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Revisão Final | Alexsandro Rodrigues e Sérgio Rodrigo da S. Ferreira
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
T772
Transposições [recurso eletrônico] : lugares e fronteiras em
sexualidade e educação / organização, Alexsandro Rodrigues,
Catarina Dallapicula, Sérgio Rodrigo da Silva Ferreira. - Dados
eletrônicos. - Vitória : EDUFES, 2015.
366 p. : il.
Inclui bibliograia.
ISBN: 978-85-7772-234-1
Também publicado em formato impresso.
Modo de acesso: <htp://repositorio.ufes.br/?locale=pt_BR>
1. Educação. 2. Sexo. 3. Comunicação. I. Rodrigues,
Alexsandro, 1970-. II. Dallapicula, Catarina, 1983-. III. Ferreira,
Sérgio Rodrigo da Silva, 1987-.
CDU: 37.01
organização
Alexsandro Rodrigues
Catarina Dallapicula
Sérgio Rodrigo da S. Ferreira
Vitória, 2015
SUMÁRIO
9
Prefácio
Maria Elizabeth Barros de Barros
15
Apresentação
Jésio Zamboni
ENTRE COMUNICAÇÕES, DIÁLOGOS
E NARRATIVAS
21
Artes do fazer trans: corpos em narrativas e seus
processos educacionais
Mateus Dias Pedrini
Alexsandro Rodrigues
Pablo Cardozo Rocon
41
“Cavalheiros, liguem seus motores... E que vença
a melhor mulher!”
Catarina Dallapicula
Simone G. da Costa
Sarah Pederzini (Cezar Vinicius Pederzini)
55
A experiência farmacopornopolítica: do discurso
ao diálogo
Luiz Cláudio Kleaim
Sérgio Rodrigo da Silva Ferreira
79
O jornal como máquina de poder: reverberações
curriculares das biopolíticas nas tramas cotidianas
Alexsandro Rodrigues
Hugo Souza Garcia Ramos
Mateus Dias Pedrini
CIRCULANDO PELAS ESCOLAS
99
Heteronormatividade e vigilância de gênero no
cotidiano escolar
Rogério Diniz Junqueira
125
Um tema que não “ousas dizer o nome”: as repre
sentações existenciais de professore(a)s acerca da
sexualidade de jovens com deiciência mental/
intelectual
Hiran Pinel
Paulo Roque Colodete
Rogério Drago
149
Diversidade Sexual & Educação Popular: pos
síveis diálogos
Eliane Saiter Zorzal
Henrique José Alves Rodrigues
DESLOCAMENTOS CONCEITUAIS
171
Relacionados mas diferentes: sobre os conceitos
de homofobia, heterossexualidade compulsória e
heteronormatividade
Leandro Colling
Gilmaro Nogueira
185
Diferenças, multiplicidade, transversalidade: para
além da lógica identitária da diversidade
Sílvio Gallo
201
213
“O que pode o corpo?”: fronteiras e
transposições
Fátima Lima
Nas bordas do humano: lutas pelo
reconhecimento e capturas identitárias
Henrique Caetano Nardi
DOS DIREITOS E DAS LUTAS
229
O conceito de homofobia na perspectiva dos
direitos humanos e no contexto dos estudos
sobre preconceito e discriminação
Roger Raupp Rios
269
Igualdade, justiça e diferença
André Luiz Zanão Tosta
297
O problema do contrato sexual
321
Cuidado de si e diversidade sexual: capturas,
rupturas e resistências na produção de políticas
e direitos LGBT no campo da saúde
Jésio Zamboni
Victor Oliveira Ribeiro
Marco José de Oliveira Duarte
349
Resistir/educar: o black bloc, a fragilidade
democrática e a convicção da luta
Davis Moreira Alvim
Maria Elizabeth Barros de Barros
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
PREfÁCIO
Era uma bela tarde de sábado. O telefone toca. Era o
companheiro Jésio que me fazia um entusiasmado convite:
prefaciar o livro “Transposições: Lugares e Fronteiras em Sexualidades e Educação” produzido pelo Grupo de Estudos e
Pesquisas em Sexualidades (GEPSs). Não hesitei um segundo!
Essa tarefa-convite me entusiasma, me encanta, me desaia.
Convite a transitar entre puriicação e misturas. Convite a pensar fronteiras, riscos. Fronteiras, não como lugar onde as coisas
se encerram ou se destinam a uma condição de impossibilidade
de acontecer, mas lugar de fronteira como um não lugar, lugar
onde algo se agiganta, lugar onde algo emerge. Algo começa a
se fazer presente, algo se atualiza... lugar em que se experimenta
alguma coisa para além das conigurações ordinárias, produz estranhamentos, sensação de pele arrancada. Se vamos à intenção
enganosa de encontrar no livro o familiar, nos deparamos com a
violência das práticas educacionais que realizam laminação dos
modos subjetivos de existência.
Convite que se aliança, portanto, com o modo como
esse grupo vem indagando dispositivos e enunciados de saber/
poder que constroem um regime de verdade, operando por nomeação, classiicação, patologização, constatação, fazendo perguntas a uma pretensa verdade sobre o sexo, o que contribui para
uma forma dominante da heterossexualidade.
O convite-desaio, então, me desloca da tarefa de uma
fala intérprete, que busca falar sobre o livro, informar ou introduzir o leitor na aventura que a obra nos incita. Ao contrário, o que
11
TRANSPOSIÇÕES
ganha força no convite é a composição numa viagem onde não
se teme as tempestades, os percalços, mas se deseja as errâncias.
Convite que fortalece uma política da amizade que tenho construido carinhosamente com vários autores da obra.
Uma política da amizade que exige a ousadia de criar novos modos de vida em comunidade. Uma amizade que é do tamanho
do mundo…do mundo que sonhamos juntos, do mundo que
inventamos juntos. Neste mundo, apenas um mundo, cabe todo
mundo, como nesta experiência que compartilhamos com os
ativistas do GEPSs e seus aliados na trama desta obra.
Mas o que nos oferece o livro? Qual sua matéria? A vida
em seu movimento permanente de engendramento de modalidades outras de existência. Um livro que tem como tarefa crítica um trabalho paciente proveniente de “uma impaciência pela
liberdade.” (Foucault, 1988: 3041) Uma inquietude que se expressa nos textos que compõem a obra, uma inquietude que tem
sido a marca do grupo. Seu modo de funcionamento? A problematização como trabalho interrogativo do pensamento, que
expressa um desejo de liberdade na indagação sobre o que somos
e o que estamos em vias de nos tornar. Ainal, a construção do
presente é preciso ser feita com cuidado e paixão.
“Transposições: Lugares e Fronteiras em Sexualidades e
Educação” mostra o vigor das dúvidas e a dedicação em reinventtá-las, mas jamais perdê-las. Um livro-jornada que não é
solitária, muito ao contrário, se faz como construção coletiva
eivada de desaios e apostas. E assim foram construindo possibilidades de fazer durar sonhos e um viver desejante que se faz
artesão do nosso tempo, num exercício incansável de liberdade.
Os cartógrafos-autores que compõem a obra produzem novos regimes de enunciação sobre o sexo. Livro-afecção de corpos, gerando bons e alegres encontros, deixando
marcas, pleno de devires, e com o desaio de fazer ciência sem
1
Foucault, M. Que es la Ilustración? In: Sociologia. México,
Universidad Autonoma Metropolitana. Ano 3, n.7-8; mayo-deciembro.
Mexico, 1988.
12
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
uma forma determinada e antecipada de verdades que sobrecodiicam e aprisionam potências geradas no encontro com
o outro como alteridade radical. Esses cartógrafos nos lembram que as nossas relações intersubjetivas precisam ser tomadas como acontecimento ético que exige um sair de si. É
preciso arranjar, inventar outras ferramentas de análise que
nos permitam interferir e, assim, nos situar neste tempo recheado de questões a nos embaralhar, eis o desaio proposto.
Destaca-se em “Transposições: Lugares e Fronteiras em Sexualidades e Educação» o modo como a questão da experiência é
pensada de forma estética, no sentido que lhe atribui Foucault.
Pensar a experiência, mostrando a historicidade daquilo que,
muitas vezes, tomamos como independente da experiência.
Logo, vamos encontrar na obra pistas interessantes para
uma Estética da Existência, que não se pretende um programa
acabado para pensar a experiência, ao contrário, nos indica a
possibilidade de fazer desaparecer a idéia de uma moral como
obediência cega a um código de regras, destacando a importância de uma estetização da existência na qual não cabe qualquer
submissão a fundamentos. Acompanhando Foucault (1995) 2,
podemos pensar que, se o sujeito não é dado, só nos resta “criar a
nós mesmos como uma obra de arte”. (pg 261) e assumir radicalmente que a ética é uma estética de si. Perguntar como se efetiva
a constituição do indivíduo como sujeito de suas ações morais, o
que supõe pensá-lo como obra, obra de si mesmo, obra de arte.
“O que me surpreende é o fato de que, em nossa sociedade, a arte
tenha se transformado em algo relacionado apenas a objetos e
não a indivíduos ou à vida; que a arte seja algo especializado ou
feito por especialistas que são artistas”. [...] “não poderia a vida
de todos se transformar numa obra de arte? Por que deveria uma
lâmpada ou uma casa ser um objeto de arte, e não a nossa vida?”
(Foucault, 1995:261)3.
2
Foucault, M. (1995) O sujeito e o poder. In: Rabinow, P; Dreyfus,
H. Michel Foucault. Uma trajetória ilosóica. Para além do estruturalismo e
da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
3
Foucault, M. Estética, literatura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos e escritos, III. Manoel de Barros da Motta (org.). Tradução: Inês
Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
13
TRANSPOSIÇÕES
O livro assume, assim, uma postura crítica (que produz
crise), persegue uma estética da existência que encontra em sua
base os domínios de saber e os dispositivos de poder que condicionam a experiência do sexo e desenham a margem de possibilidades de nossa época, que não são necessárias nem imutáveis. Isto quer dizer que os limites impostos se evidenciam como
tantos outros lugares de transgressão possíveis, que devem ser
pensados tendo em conta sua radical contingência. O que a experiência histórica mostra é o fato de que os limites são variáveis
e os fundamentos mutáveis. “Devemos mudar totalmente nosso
modo de ser, nossa relação com os outros, com as coisas, com a
eternidade, com Deus, etc. e se produzirá uma verdadeira revolução sob as condições dessa mudança radical de nossa experiência”. (Foucault, 2001:302) 4.
Como modo de experimentação, a estética da existência
propõe colocar à prova tanto os limites impostos à experiência,
como a própria condição de sujeito que os limites constroem.
As formulações foucaultianas nos mostram, assim, que os limites do conhecimento, as divisões normativas, e as posições que
o sujeito adquire, não correspondem a um fundamento, mas
têm caráter de acontecimento histórico. Na trilha de Foucault,
os autores apresentam uma postura que é crítica das diferentes
tentativas de encontrar o fundamento para uma moral universal
de caráter normativo. Trata-se de uma aposta ético-política que
busca estilos de existência tão diferentes uns dos outros como
seja possível. Não buscam qualquer forma moral que seja aceitável para todos, de forma que todos devam submeter-se a ela, o
que seria catastróico.
Mas, enim, o que a obra nos convoca? A um exercício
permanente de desestabilizações e à criação de espaços de experimentação sempre abertos à alteridade, não como aceitação ou
respeito à diferença, mas como relação agonística de onde advém o imprevisto.
4
Foucault, M. Estética, literatura e pintura, música e cinema. Coleção Ditos e escritos, III. Manoel de Barros da Motta (org.). Tradução: Inês
Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
14
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Aos leitores desejo fabulações diabólicas a partir, além
e aquém dessa obra. Que realizem sua cartograia, deixando-se
devir os textos.
15
Jésio Zamboni
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
APRESENTAÇãO
Esta nova obra tecida no seio do Grupo de Estudos e
Pesquisas em Sexualidades (GEPSs), da Universidade Federal do
Espírito Santo, é composta por uma série de artigos, produzidos
pelos pesquisadores do GEPSs e por seus aliados espalhados em
outros espaços de discussão das sexualidades. É preciso dizer que
o conjunto deste livro emerge de um tensionamento disparado
por seu título, Transposições: lugares e fronteiras em sexualidades e educação, o qual é proposto aos diversos autores, que
partem deste ponto para escrever-nos sobre suas diversas pesquisas, airmando-as como posições em deslocamento, como trânsito entre diversas perspectivas a produzir um horizonte móvel
para o pensamento e a prática das relações entre sexualidade e
educação. O leitor poderá perceber que os temas da sexualidade
ou da educação desaparecem em alguns textos, mas é em todos
que já se pode perceber um processo de desterritorialização dos
saberes da sexualidade e da educação. As fronteiras e os lugares sendo transpostos possibilitam a emergência de temáticas
que perpassam a multiplicidade dos escritos, airmando lugares
como transposições entre educação e sexualidades.
Os meios de passagem, entre-lugares, nesse livro airmam-se principalmente pela vontade de comunicar, de produzir
zonas de comum que subvertem e parodiam toda ideia de unidade que possa aí se pretender. É, antes, uma ininidade de diálogos que se travam por todos os textos: entre conceitos, práticas,
lutas etc. Neste sentido, o que se produz é um corpo narrativo,
17
TRANSPOSIÇÕES
cujas variantes singularidades conectam-se entre si por diversos
pontos. Estes movimentos comunicativos, dialógicos e narrativos, no entanto, não querem se fechar sobre si mesmos, mas
produzir, por estas conexões, uma abertura a outros encontros
possíveis, para além da obra que aqui ganha contornos. Neste
ponto, o leitor desses textos é convidado a esta tarefa, para além
das conexões já feitas pelos autores entre diversos outros textos,
práticas, lutas, discussões, debates, etc. É por isto que abre-se
esta coletânea com um conjunto de textos intitulado Entre comunicações, diálogos e narrativas, formando uma constelação
principal como signo dessa vontade de comunicar, dialogar e
narrar que marca todo a obra. Entrevistas, blogs, reality shows,
jornais entram em cena como materializações dos processos comunicativos que servem de suporte ao debate das problemáticas
relativas ao dispositivo da sexualidade no contemporâneo. A
discursividade na produção do feminino, dos corpos trans, enim, das regulações da sexualidade em geral, podem deslocar-se
pela narratividade pela qual se constituem. Esta abertura da comunicação pelo diálogo tecendo narrativas divergentes é o mote
pelo qual esse livro prossegue seu percurso de transposições.
Pelos processos narrativos, chegamos logo à escola, estabelecimento crucial à educação moderna, onde as práticas e
saberes da sexualidade não apenas circulam, mas constituem-se
como vontade de saber. Circulando pelas escolas é o segundo
conjunto de textos desta coletânea, o qual aponta diretamente
como os discursos da sexualidade perpassam o cotidiano escolar, as representações existenciais que ali se forjam e as questões
que o animam. Neste conjunto, torna-se perceptível que mesmo aqueles outros textos que se encontram aqui sem referência
explícita à educação estão intimamente entrelaçados com este
campo. A educação, no dentro e fora da escola, torna-se assim
um local de conlitos, controvérsias que não são restritas ao espaço, mas que tomam este lugar como meio crucial às lutas da
diversidade sexual. Os artigos deste trecho abordam as questões
de gênero e sexualidade no cotidiano escolar em geral, mas também focando as problemáticas especíicas da educação inclusiva
dos sujeitos com deiciência mental/intelectual e da educação
de jovens e adultos. Eles nos ensinam que as fronteiras do campo
18
Os modos de produção do conhecimento entram em
questão quando se tem por princípio a experiência, a vida em
seus luxos de criação e mudança. É pelas situações problemáticas que a vida se movimenta, que somos forçados a pensar.
Neste processo, os conceitos funcionam como instrumentos
para intervir na experiência, como ferramentas para a construção de mundos a viver. Os conceitos não estão nunca prontos e
acabados de uma vez por todas, seus funcionamentos se modiicam em função das situações problemáticas nas quais operam.
O conceito precisa permanecer aberto, questionável e remodelável, utilizável em contextos diferentes de onde foi criado, com
contornos sempre indeiníveis, para que possa permanecer vivo.
Os Deslocamentos conceituais, desenvolvidos desde o início deste conjunto, são condensados e protagonizam a terceira parte do
livro. Eles fabricam nós, amarrações e junções, das linhas de desarranjo e rearranjo conceituais que se espalham pelo livro. São
nós que entrelaçam os conceitos de homofobia, heterossexualidade compulsória e heteronormatividade, bastante comuns nas
discussões de diversidade sexual; mas que, também, compõem
outros arranjos com os conceitos de diferença, multiplicidade,
transversalidade, levando adiante a crítica à política da identidade com a qual os movimentos de diversidade se debatem. Nesta
perspectiva da diferença, que desponta com força em toda esta
obra, aborda-se ainda os conceitos de corpo e de humano, questionados em seus limites deinitórios. Estes enlaces conceituais
sustentam uma potência crítica que provém das lutas que interrogam os limites e as possibilidades de existência e ação coletiva.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
da educação se fazem como linha de tensão e problematização
do que seja o lugar do saber em relação à vida.
Os limites e possibilidades da existência e ação coletiva
demarcam o que, nas sociedades modernas, denomina-se como
campo dos direitos. Tal dimensão tem sido constantemente assediada pelas lutas e resistências em meio às relações de poder e
sexualidade. Questionando os direitos estabelecidos em suas demarcações, as lutas interpelam suas deinições e postulados, perturbam sua lógica, extravasam a noção de direito para airmar-se
como produção coletiva cuja garantia não se pode estabelecer
19
TRANSPOSIÇÕES
por uma transcendência da justiça. É disto que se trata na última
sessão desta obra, Dos direitos e das lutas, em que esta problemática se desenvolve em diversas orientações. O preconceito e
a discriminação são discutidos pelo conceito de homofobia
em suas interferências no campo jurídico; a própria noção
de justiça vai ser confrontada com o debate sobre igualdade
e diferença; o problema do contrato, da lei e da instituição,
como elementos da experiência do direito são interrogados
pela experiência da produção de subjetividade; os direitos
da diversidade sexual no campo da saúde são debatidos
em sua conformação pelo dispositivo da sexualidade em
desenvolvimento nas sociedades ocidentais, especialmente
no contexto brasileiro; por fim, todo este debate em torno
dos direitos nos conduz à consideração das lutas nas ruas,
deslocando os marcos do direito em relação às lutas. Mas é toda
essa obra que quer se fazer instrumento para lutas da diversidade, atravessando educação, comunicação, ilosoia, direito, etc.
Todo esse trabalho que aqui se junta e mistura quer ser
meio de transposição das fronteiras da sexualidade e da educação. Indaga-se pelos funcionamentos imprevisíveis que pode
suscitar nas coletividades das lutas cotidianas. Pergunta-se,
como caixa de ferramentas textuais, o que pode maquinar no
corpo social, que cortes pode efetuar nos nossos funcionamentos hegemônicos, que relações pode engendrar na composição
de outros mundos. Estas possibilidades não se encerram no livro
como obra fechada, mas anseiam proliferar debates, controvérsias, narrativas, diálogos, a que convidamos o leitor a desenvolver conosco. Este livro pretende, então, transpor posições, não
para estabilizar uma posição de um lugar a outro, mas para produzir reposicionamentos pelas disposições às lutas cotidianas
entre sexualidades e educação.
20
ENTRE COMUNICAÇÕES,
DIÁLOGOS E NARRATIVAS
ARTES DO fAzER TRANS: CORPOS
EM NARRATIVAS E SEUS PROCESSOS
EDUCACIONAIS
Mateus Dias Pedrini1
Alexsandro Rodrigues2
Pablo Cardozo Rocon3
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
1
Quando nasci, veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o im
(Chico Buarque)
Introdução
“Gente, não se assusta não, tá.”, diz uma de nossas narradoras enquanto tira sua peruca devido ao forte calor na sala que
realizamos um encontro para discutirmos questões envolvendo
1
Estudante de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades
(GEPSs) e do Núcleo de estudos e Pesquisas em Sexualidades (NEPS); bolsista de Iniciação Cientíica pela UFES.
2
Doutor em Educação; Professor Adjunto II do Centro de Educação (CE) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); coordenador
do Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades (GEPSs) e do Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Sexualidades (NEPS).
3
Estudante de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito
Santo (UFES); integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidade
(GEPS)s e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades (NEPS); bolsista de Iniciação Cientíica pela Fundação de Amparo a Pesquisa do Espírito
Santo (FAPES).
23
TRANSPOSIÇÕES
a produção dos corpos trans. Este breve momento, incapturável
em nossas ferramentas de pesquisa, revela no corpo um espaço
de constante (des)construção, que se (re)faz ante nossos olhos
e questiona muitas verdades absolutas. Aqui, corpo assume formas variadas, como investimento político na produção de um
espaço e um objeto de arte ( JEUDY, 2002): para além da beleza resultante nas transformações corpóreas, remetemo-nos aos
processos de produção que se tomam por uma série de (des)afetos, desaios, desejos, sorrisos e tristezas.
A pretensão desse texto se fará no relato dos bons encontros com sujeitos trans, apostando em sua potência como
disparadores de mudanças, problematizações e indagações através de suas narrativas sobre a plasticidade de seus corpos, a produção de si e de seus modos de ser e estar no mundo.
Compreendendo a sexualidade como uma produção
que se faz e incide no coletivo, percebemos os discursos para/
com a sexualidade como formas de poder que tecem maneiras
de ser e estar no mundo e que não reprimem as atitudes, mas
instigam e incitam para que se façam acontecer (FOUCAULT,
1985). Tomamos como referência para essa discussão os sujeitos trans4 à medida que seus corpos e modos de vida não estão
condizentes com uma forma desejante de/na normatização dos
corpos e reprodução da espécie, mas em devires que ensinando e
aprendendo, numa constante autopoiética, modos de ser e estar
no mundo.
Aqui, observamos a forma como o outro é produzido,
modelado, subjetivado, construído e curricularizado nas relações e tramas constitutivas do poder presentes em nosso cotidiano. Poder, mais uma vez com o auxílio dos estudos de Foucault
4
Em concordância com Benedetti (2005), deinimos “sujeitos
trans” como aqueles que transgridem e se transformam na direção de seus desejos e vontades na produção de novos modos de ser. Muito mais que aqueles
sujeitos que izeram ou desejam realizar uma cirurgia de redesignação sexual,
também abarcamos nessa deinição outros corpos transgressores, que estão
em constante processo de (re)escritas de si. Portanto, abarcamos como sujeitos para essa discussão travestis, sujeitos inter-sexo (CIS), pessoas que se
airmam como transexuais com desejo de manter o pênis ou vagina, entre
tantas outras possibilidades do ser/fazer trans.
24
Nos processos cognitivos de conhecimento e produção
do outro/diferente/abjeto não há um mundo/corpo pronto,
acabado em si mesmo a ser decifrado por nós, narradores-pesquisadores das informações desse espaço que nos relacionamos:
se ele existe, é construído, percebido, interpretado e (des)dobrado nas relações e possibilidades que criamos com ele, o que se dá
pelas redes e tramas das relações de poder (KASTRUP, 2012).
Nesse sentido, as narrativas transparecem construir e fazer parte
dessas mesmas tramas, afetando outros corpos e sendo afetadas
em seus modos de vida na produção redes de (des)afetos, desejos, vontades, signiicantes e signiicados.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
(1985), trata-se exatamente de uma relação, um jogo, uma aposta em que todos os envolvidos estão fazendo parte deste processo: o poder (ou seja, os discursos, os currículos, os saberes e os
modos de vida) não pode ser entendido como algo que poucos
têm/possuem em detrimento de outros, mas como uma trama
em rede que se faz de forma coletiva.
Essa rede nunca está inalizada, mas em produção e
sempre será (re)direcionado, ao longo dos processos históricos,
sociais e culturais. Como nos lembra Correia Junior e Pedrini
(2012), quanto mais capturamos os sujeitos trans nas categorias que nos propomos a criar na compreensão de seus modos
de vida, mais diiculdades encontramos em armazená-las nessas
mesmas redes conceituais. Isso acontece pois é na possibilidade
de transformar o corpo, e consequentemente o gênero, que os
sujeitos trans encontram em seus corpos um espaço de discussão
e problemática capaz de ensinar e aprender não somente para si
mesmos, mas também aos outros que faz conexões. Aos modos
de Althusser (1977), percebemos nestes corpos um importante
movimento instituído e instituinte de verdades, desejos, vontades, ações, afetos, entre outros, modelando corpos que nunca
estarão inalizados, mas sempre se (re)fazendo.
É neste constante processo instituinte e instituído que
Deleuze e Guatarri (1997) também questionam as possibilidades de um corpo sem órgãos, ou seja, desconstruirmos um corpo
ao ponto do mesmo se fazer valer a pena, se relacionar e cons25
TRANSPOSIÇÕES
truir num mundo sem espaços de preenchimento de si que limitem sua potência de vida. Convidamos estes autores para discussão uma vez que os mesmo nos fazem pensar de que forma as
porosidades presentes nos corpos trans são capazes de produzir
modos de vida: não há uma linha de chegada nessa fabricação
de si, mas está em processo de se tornar algo que, mesmo se tiver
alguma forma, ela é vibrante, pulsante, (des)regularizadora de
normas e verdades cristalizadas.
Nesse sentido, buscamos nas narrativas potências de
produção de mundos e possibilidades de vida na imergência e
emergência de um novo eu: um (re)criar do eu que desaia as verdades sobre os corpos. Para Carvalho e Costa (2011), narrativas
são mais que recordações e rememoramentos, mas um processo
de arte e encontro com o outro que(des)compõe (des)afetos, incômodos, produção e invenção de mundos. Uma arte capaz, na
ordem do presente, de dialogar com um passado recriado (no
ato da narrativa e rememoração), potencializando um espaço
problematizador, diferenciado, refeito, repensado (BERGSON,
2006). Assim, as narrativas se tornam uma arte que “dobram,
redobram e desdobram os corpos no encontro e produzem neles a potência de compor com outros corpos novos encontros”
(CARVALHO e COSTA, 2011, p. 72).
A produção de corpo trans também está lexionada com
as questões que envolvem a educação, à medida que os espaços
escolares e de produção de conhecimento são atravessados por
questões sociais, culturais, políticas e temporais. A escola não
está fechada em si mesma, mas se conectando com sujeitos, problemas e questões que envolvem a sociedade que a refaz, desfaz,
constrói e desconstrói. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2005) a
educação não se centraliza no espaço da escola, pois todo espaço
de produção de conhecimento é de alguma forma espaço educativo. Escola não somente para a obtenção de notas e acúmulo de
conhecimento, gradeado pelos currículos escolares: currículo é
aqui entendido como relação de poder, intimamente relacionadas a processos de signiicação.
A luta pelo signiicado é uma luta por hegemonia, por predomínio, em que o signiicado
26
O fazer trans, portanto, também se mostra a nós como
um fazer curricular de produção de si à medida que o outro
também é capaz de se conectar a esse mundo e construí-lo,
seja através do contato, seja a través da própria negação da
existência ou participação deste mundo, uma vez que todas as
posturas tomadas são posturas políticas. Somos movidos por
histórias ouvidas nos bastidores dos inúmeros encontros com
os sujeitos que ao rememorarem e narrarem sobre a vida nos
contam versões sobre si e o outro, apresentando a nós micropolíticas das relações de poder, de resistência e sobrevivência
com as lógicas normativas excludentes. Somos provocados por
sabermos que as histórias dos outros nos constituem e desejamos desenvolver uma escuta sensível frente os sujeitos trans,
acreditando que através dela possíveis podem acontecer, indicando-nos realidades outras sobre os sujeitos da educação e
dos processos educativos.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
é, ao mesmo tempo, objeto e meio, objeto e
instrumento. O caráter incerto, indeterminado, incontido do processo de signiicação, por
sua vez, faz com que o resultado dessa luta não
seja, nunca, garantido, previsível. As relações
de poder dirigem o processo de signiicação;
elas, entretanto, não o esgotam, não o realizam plenamente (SILVA, 2006, p. 24).
Neste sentido, propomo-nos desenvolver neste texto
uma relexão que busque não mais falar sobre estas pessoas, mas
falar com elas, trazendo à cena suas vozes, suas histórias e seus
testemunhos. Entendemos e buscamos compreender que as pessoas trans, suas narrativas, potências e inlexões com a educação
são capazes de desenhar contornos nos corpos desses sujeitos
como processos produtores de obras de arte, da vida enquanto
arte. Para além das narrativas e histórias de sofrimento, tristeza,
tragédia e adoecimento, é possível narrar e apostar em outras
histórias, uma vez que elas são possíveis de acontecer, serem ouvidas e problematizadas.
Dessa forma, este texto apostou nas narrativas como estratégia de investigação, acreditando que o passado pode revelar
ao presente espaços de luta política. Para tanto, foram realizados
27
TRANSPOSIÇÕES
encontros com sujeitos trans, entre travestis e transexuais residentes dos municípios da Grande Vitória.
(Re)invenções, (re)escritas e (re)desenhos dos corpos trans
O ser humano existe, para além de muitos fatores, em
função de seu corpo. (LE BRETON, 2013). Ele faz deste lócus um espaço de produção e reinvenção de si que nunca está
inalizado, mas sempre um processo, um constante estar por vir
atravessado por toda uma série de fatores biológicos, psicológicos, sociais, cultuais e temporais. Conforme Foucault (1987), o
corpo se tornou ao longo dos anos um espaço de investimento
político capaz de produzir tipos de sujeitos especíicos para determinados desejos criados nas relações de poder. Muito mais do
que os espaços institucionalizados, como a escola, as prisões, os
manicômios, os conventos, os hospitais, entre outros, o espaço
corpo também é (re)cortado nas micropolíticas e nos mais variados espaços onde o poder se ramiica e se faz acontecer. Neste
acontecimento, podemos ouvir de Pandora5:
Pandora: Na minha adolescência, minha família já sabia que eu ia mudar. Tinham certeza
pelo meu jeito. Eu sempre quis botar peito, botar
bunda, cabelo. Sempre que mamãe saia para
trabalhar, eu ia para o quarto dela, botava suas
roupas icava admirando no espelho.
Atentando para este trecho, enfatizamos este momento como exemplo da forma como o corpo se torna um importante espaço de (re)invenção e inovação na experiência de si.
É o corpo se esvaziando e se preenchendo com uma série de
dispositivos e mecanismos disponíveis e revolucionantes. É o
corpo, no seu limite, que se torna um ser intenso, um nódulo onde tantas outras coisas, fatores e processos se ramiicam
e se conectam na produção de escrita(s) de si (DELEUZE e
GUATTARI, 1997). Este corpo é transbordante, irrequieto,
5
Optamos por nomear nossas narradoras com nomes ictícios, a
maioria advindos da mitologia Greco-romana, com o objetivo preservar as
identidades das mesmas.
28
Perséfoni: Teve um casamento que eu tive que
ser cavalheiro e eu vesti o vestido da dama de
honra. Foi um espanto e eu não apanhei porque
eu tive que entrar no casamento. E eu tenho a
foto: você precisa ver a minha foto entrando na
igreja, a minha cara e o choro que eu estava.
É pensando nos processos que fazem e refazem o corpo
que Jeudy (2002) nos lembra que ele também é uma peça de
arte. Arte, aqui, não deve ser entendida apenas como um objeto
pronto, estagnado e inlexível a ser apreciado, louvado e admirado por outros sujeitos que perpassam pela peça. Arte, antes de
tudo, se trata de um processo, um constante devir que conecta
pessoas, histórias, lugares, vidas, formas e momentos de ser e estar no mundo, produzindo uma peça mutante, lexível e que se
conecta com as outras formas de arte/vida que por ela é atravessada. Como bem nos lembra Deleuze (1997), arte se faz na relação, na conexão, naquilo que se produz no encontro e também
naquilo que se faz inesperado nestes mesmo encontros, e menos
na signiicação, interpretação e classiicação.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
desconfortável, gritante, assustador e incrivelmente belo: um
espetáculo da vida se fazendo acontecer bem diante de nossos
olhos. Outros sujeitos trans que nos encontramos neste trabalho não fogem de tal espetáculo:
Assim, investir no corpo também se torna uma interessante forma de investimento político, atravessando este mesmo
território por uma série de questões desestruturantes de verdades
absolutas para com as sexualidades. Trata-se, portanto, de um
devir mulher, bem como aponta Guattari (1987), que questiona as formas do ser/fazer trans, travesti, mulher, homem, bicha,
hétero, animal, entre outras formas capazes de desestabilizar as
estruturas que formam o corpo. No devir mulher, o corpo se torna poroso, opaco, líquido, volátil, e não se faz somente com ele
mesmo, mas está sempre em conexão com outros.
Tomamos por referência tal discussão à medida que o
constante (des)fazer do corpo trans se mostrou presente durante
nossos encontros. Transcendendo corpo certo, nossas narradoras e suas narrativas nos ensinam que o espaço corpo tem uma
29
TRANSPOSIÇÕES
série de possibilidades que estão se (re)fazendo no dia-a-dia. Se
o corpo que se apresentou para nós ao longo desses encontros
está fora de todo um desejo para que seja considerado “saudável”,
“correto”, há uma série de motivos que atravessam este mesmo
espaço para que se conigure desta maneira e, como tal, deve ser
compreendido o seu processo como produção de diferença(s).
Nesse sentido, Afrodite nos ensina:
Arodite: Eu tinha uns oito anos de idade e eu
achava que eu era menina, que tinha algum
problema e que logo minha mãe iria me levar
no hospital e que eu ia ser tratada. Hoje tenho
28 anos e aprendi a ter paciência, a me acostumar da forma que eu estou. Mas aceitar em ser
um menino eu nunca aceitei. Então essa cirurgia de trangenitalização vai ser ótima, eu vou
me sentir livre. É como se eu estivesse mesmo
num corpo que não me pertence.
Weeks (2010, p. 40) diz que as sexualidades são modeladas por fatores e situações presentes no social que incidem sobre o
corpo: “isso tem profundas implicações para nossa compreensão
do corpo, do sexo e da sexualidade, implicações que precisamos
explorar”. A visão essencialista do ser humano, que binarizou as
relações para/com as sexualidades e tornou as verdades sobre o
sexo uma forma de poder estruturante de saberes e poderes universalizados, criou uma forma de verdade interior e anterior aos
sujeitos. Tal fator reduz a complexidade das questões envolvidas
no processo de produção dos corpos e, no caso dos corpos trans,
observamos que tais verdades e essencialismos são capazes de incidir de forma mais violenta para com este grupo.
Ao negar um corpo masculino, um pênis, uma voz engrossada, ao ter vontade de injetar silicone nas mais variadas partes do corpo, sujeitos trans apostam e arriscam em suas vidas vários dispositivos e mecanismos que negam este corpo estanque
para si, o que (des)estabiliza e redesenha uma série de projetos
para masculino e feminino produzidos em nossa sociedade. Mas
que dispositivos e mecanismos seriam esses? Como eles agem?
Benedetti (2005) nos aponta alguns deles utilizados por travestis para produzirem seus corpos:
30
Nesse sentido, observamos durante nossos encontros,
bem como nos estudos de Berenice Bento (2006) que dispositivos como o cabelo, o silicone, as roupas, entre tantos outros dispositivos são capazes de produzir esses sujeitos, delimitando os
vários modos de signiicar o feminino presente em seus corpos:
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
As travestis, ao investir tempo, dinheiro e
emoção nos processos de alteração corporal,
não estão concebendo o corpo como mero suporte de signiicados. O corpo das travestis é,
sobretudo, uma linguagem; é no corpo e por
meio dele que os signiicados do feminino e
do masculino se concretizam e conferem à
pessoa suas qualidades socais. É no corpo que
as travestis se produzem enquanto sujeitos
(BENEDETTI, 2005).
Perséfoni: Eu tive que ser como um camaleão.
Eu pedia roupas para o meu pai e ele não dava
e as roupas que eu escolhia, não eram bem vistas. Então, o que eu fazia? Ia trabalhar num
salão e a cabeleireira fez um truque comigo:
ela cortou o cabelo de uma forma que, quando prendesse, parecia um cabelo de homem e
quando eu deixava ele solto parecia um cabelo
de mulher. Na hora de sair na rua, meu cabelo
era lisinho, caia e eu icava como uma mulher.
Era inconfundível: as pessoas não percebiam
que era truque.
Arodite: Eu já me transvestia como menina
quando criança. Então a diretora não aceitou
que eu entrasse na escola com roupas femininas.
Aí ela me mandou embora para casa. Minha
mãe teve que ir ao conselho escolar, conversar e
eu lembro que teve uma grande burocracia.
Assim como nos exemplos acima, vale lembrar também
da forma como o outro também é um sujeito produtor do corpo trans: este processo não se faz apenas de forma solitário, mas
também com o olhar, o auxílio, o palpite e a intervenção de um
corpo outro. É aí que surge a igura do outro que produz o eu,
ou seja, um ser/pessoa/corpo que também em muitos momentos é o autor no desenho dos corpos trans: o médico, a amiga, o
cliente, os familiares, nós no lugar de pesquisadores e acadêmicos, entre tantos outros, estamos em algum momento pegando
31
TRANSPOSIÇÕES
emprestado este lápis/pincel que desenha o corpo trans para que
também sejamos autores de suas histórias.
Cassandra: Quando eu tinha 17 anos, um irmão meu me pegou a força e raspou meu cabelo.
Acontecia isso direto e eu falei que não queria
cortar o cabelo. Chorei, me arrastei, me escondi, iz o diabo. Minha irmã me pegou e cortou
meu cabelo: na verdade ele mandou ela cortar
meu cabelo, passou a máquina. Aquilo passou,
eu esperei todo mundo dormir. Às 10 horas da
noite eu fugi de casa só com a roupa do corpo.
Sumi no mundo.
Atenas: Ter uma perereca não te faz mulher.
Tem gente que, aparentemente é uma mulher,
mas na cabeça é homem. Tem que ser mulher na
cabeça. Se não, não adianta. Quando um gay
põe uma perereca e eu, uma trans, ponho também, um homem pode muito mais ser feliz como
gay sem perereca do que eu que tenho perereca.
E aí a mulher acha que ter a perereca é tudo,
mas ter perereca não é tudo.
É impossível falar de processos de educação e produção
de si sem se lembrar do espaço corpo, principalmente quando
estamos falando da forma como o corpo trans está se fazendo: é
lá que incide toda uma série de processos que atravessam o sujeito. Mais uma vez lembrando Tomas Tadeu da Silva (2005), educação é um processo que está para além dos espaços formais de
ensino, mas também se fazendo presentes das redes de afecções,
afetações e amizades que somos capturados ao longo de nossos
inesperados encontro com um outro em nossas vidas. Curricularizar, portanto, se faz como um saber produzido no coletivo,
que determina, no caso de nossas narradoras, formas de produção e modelação de seus corpos
É lembrando desses processos de educação e desencontros que somos capturados por Foucault a respeito das políticas
de amizade e suas relações com o cuidado de si (2004a). No cuidado de si, Foucault nos lembra das formas como nossas práticas
incidem e se fazem acontecer no/com outro que nos conectamos em nossas relações, sendo este um ponto e um espaço de
análise e indagação: como o ilósofo muito bem nos pergunta,
32
Pois o cuidado de si é, com efeito, algo que,
como veremos, tem sempre necessidade de
passar pela relação com um outro que é o mestre. Não se pode cuidar de si sem passar pelo
mestre, não há cuidado de si sem a presença de
um mestre. Porém, o que deine a posição do
mestre é que ele cuida do cuidado que aquele
que guia pode ter de si mesmo (FOUCAULT,
2004a, p.73).
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
“o que temos feito de nós mesmos?” (2004b). Assim, as redes de
amizade são importantes meios no processo do fazer trans, uma
vez que a igura das amigas tornam-se agentes produtores dessa
diferença. Na igura do outro, cria-se a igura de um mestre, um
sujeito outro que apresenta para esta corpo uma série de possibilidades no seu refazer. Talvez o grande salto desta relação se faz
no momento da ruptura com este mestre:
Tomamos esta relexão uma vez que muitas de nossas
personagens começaram a se hormonizar no boca-a-boca, na
ligação com a outra que a ajuda, instrui a outra a medicalizar-se
com os conhecimentos agenciados e se fazem acontecer nas redes de amizade produzidas por estes mesmo sujeitos. Em outro
momento de nossos encontros, que nossos limites dos dispositivos do gravador não conseguiram capturar, Cameron, após
um de nossos encontros, conversa com Medusa, nossa outra
narradora. Cameron tem muita vontade de se hormonizar com
um acompanhamento médico, mas Medusa a aconselha a não
fazer isso pois, segundo ela, os médicos não estão preocupados
em ajudar os sujeitos trans, receitando e indicando medicações
que não ajudam a produzir um corpo mais feminino. Assim, ela
mesma instrui Cameron a quais medicamentos ela deve usar,
que toma nota de todos os nomes dos remédios e quais procedimentos deve tomar para si. É nesse momento que percebemos
as formas como os corpos trans se conectam com outros corpos,
produzindo espaços de ensinamento e aprendizagem, de um
mestre para seu aprendiz.
Para além deste exemplo apresentado acima, nossos gravadores também conseguiram capturar estes momentos em que
um outro é capaz de produzir um novo eu:
33
TRANSPOSIÇÕES
Madalena: Na época que eu comecei, por incrível que pareça, foi com uma sapatona, que falou
que eu deveria tomar. Na época, eu não sabia o
que era hormônio. Eu trabalhava num barzinho, usava uma calça colada e ela dizia para eu
tomar hormônio por causa do meu corpo.
Arodite: Então, com oito anos eu já me transvestia como mulher. Mas com 12 anos eu conheci uma amiga, ela já era mais bem vivida, bem
mais velha do que eu. Ela foi me ensinando, me
instruindo em como modiicar o corpo, porque
a gente tem poucos recursos pra isso. Esta amiga
me ajudou e me explicou como tomar anticoncepcional. Porque a cabeça nossa é sempre a mesma, sempre é feminina. O corpo eu fui mudando aos poucos, com tratamento. E agora eu tenho
tratamento aqui no Hospital das Clínicas. O
doutor tem passado pra mim um bloqueador
de hormônios masculinos. Eu tenho tido muitas
modiicações no meu corpo.
Ainda na linha do outro que produz um novo eu, vemos
as formas como os saberes médicos também estão recortando
verdades e poderes capazes de produzir corpos trans. Bem como
nossa narradora nos lembra em sua fala acima, ela procura mais
que a amigas para se transformar, mas também o saber médico na
realização de uma neocolpovulvoplastia. As resoluções que permitem que tal cirurgia seja realizada no Brasil (nº 1482/1997;
nº1652/2002; nº 1995/2010) reconhecem que sujeitos podem
participar do processo transexualizador, de acordo com o artigo
4º da Resolução de 2010:
Art. 4°: Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação
de equipe multidisciplinar constituída por
médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo
os critérios a seguir deinidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto
(BRASIL, 2010).
Deinindo tais critérios para seleção e ingresso no processo transexualizador, percebemos como o saber-poder médico
é capaz de incidir nas formas do fazer trans. Mas de que formas
esses saberes, portarias, regras e conceitos para/com a transexu34
Dora: Essa visita que eu iz hoje foi por causa
de um questionário que ele queria fazer de uma
pesquisa. Mas ele sempre fala que, se a gente
quiser vir, a gente pode vir. Porque se a gente for
a um posto médico, ele diz: “Se o médico icar reparando alguma coisa que a gente fez, é melhor
procurar a gente porque somos especializados em
vocês.” Então muitas vezes, quando a gente tem
qualquer coisinha a gente vem aqui, mas faz
muito tempo que eu não venho.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
alidade são capazes de incidir nos corpos trans? Bento (2008)
nos indaga de forma muito interessante as maneiras como tão
poucos saberes são capaz de produzir tantos fazeres e poderes na
medicina, que reairmam práticas da biopolítica e do biopoder
(ou seja, práticas e políticas do poder que incidem e se fazem
acontecer no vivo) que airmam modos universais e estruturantes para/com o outro. É como bem nos lembra Dora:
Entretanto, é preciso lembrar que este tipo de saber/poder não se faz somente na igura do médico, mas também com
aqueles outros proissionais da saúde que estão na rede e no coletivo na promoção da saúde da população trans. Como Berenice
Bento (2005) bem nos apontou em suas pesquisas, para além da
igura do médico como aquele que detêm um saber e um fazer
que incide na produção do corpo trans, a igura do psicólogo, do
assistente social também são também agentes importantes destes processos, agenciando na rede de saberes e poderes recortes e
produções do/no/com os sujeitos trans.
Arodite: Ela faz diversas perguntas, perguntas
sobre a minha adolescência, a minha infância,
se dentro da minha família ocorreu algum tipo
de assédio sexual, algum tipo de estupro. No inal de tudo ela sempre pergunta “Você sabe que
essa é uma cirurgia que não tem volta, não é?”.
Ela me explica tudo, que é uma cirurgia que
não tem volta, pode haver um arrependimento.
Trata-se, mais uma vez, da igura do mestre trazida por
Foucault, que na relação com o corpo trans faz deste momento
um espaço que o desenha e que também se vê necessário num
movimento de rompimento com este mesmo corpo, fazendose de outras formas para além desta relação. As próprias trans
35
TRANSPOSIÇÕES
também alimentam essa rede de afetos, criando a imagem do
médico e dos proissionais da saúde como aqueles que irão transformar seus corpos em direção de seus desejos, vontades e afetos.
Como muitas delas lembraram em nossas visitas ao Hospital das
Clínicas, o médico é a fada-madrinha que irá, magicamente, realizar seus sonhos.
Entretanto, também observamos um outro movimento
desses corpos trans que negam esta forma de produzir corpos e
subjetividades, mas que criam novos caminhos para si na busca
de um corpo potente. Como Foucault bem nos lembra (2004b),
se existe uma série de maneiras com que o poder se faz acontecer,
é interessante também observarmos as formas como negamos os
tipos de poderes que nos atingem: negá-lo é uma forma de resistência que potencializa ações para os corpos trans na tentativa
de resistir as várias formas de opressão, secção, determinação e
enquadramento dos corpos. Xena, uma de nossas narradoras,
nos fala em uma roda de conversa com outros corpos, nos diz
que, apesar de estar hormonizada e mesmo iniciando seu tratamento de forma tardia, ela não se sente ou se airma como uma
transexual, mas um homossexual de formas mais afeminadas.
Mais uma vez pegando emprestado o conceito de Benedetti (2005), percebemos as formas como a categorização possibilita, mas também restringe as várias formas do fazer trans:
Ainal, Xena é um homem ou uma mulher? É transexual? O
que é (e o que não é) Xena? Em quem ela se tornou em nossos
encontros e o que estar por vir deste/neste corpo? Negar uma
identidade trans parece-nos uma interessante forma de tensão,
resistência, produção e escrita de si que airma outras possibilidades para que um corpo trans para que se faça acontecer e
valer a pena como processo de vida. Utilizamos também como
exemplo para esta discussão nossa amiga Atenas que, em suas
narrativas, lembra de seu processo transexualizador e airma que,
apesar de ter realizado a cirurgia de transexualização e dizer que
“se pudesse, faria tudo de novo”, sua narrativa denuncia o serviço
público, suas defasagens e questiona aquilo que está sendo oferecido para elas. Atenas, portanto, nega uma forma de poder que
está posta para os trans enquanto serviço público, airmando e
36
Atenas: Está faltando uma equipe multidisciplinar para preparar as pessoas que vão operar.
Falta assistente social, psicólogo, e ginecologista.
Mas eu acho que existe uma guerra interna,
uma politicagem. E Como eu resolvo isso? Vou
no meu bairro, onde sou muito bem atendida.
Aqui eles tratam mal e a gente paga o preço por
causa dessa politicagem e dessa guerra. Por isso
que acabou a equipe.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
também buscando novas possibilidades de mudanças corporais
para estes mesmos sujeitos.
(Des)conclusões: o que os corpos trans têm a nos ensinar?
O que pode um corpo? Mais especiicamente, o que
pode um corpo trans? Nossas narradoras nos mostraram em
nossos encontros que seus corpos se fazem num processo de
construção de si e na produção de uma identidade que se expõe
ao mundo. Como na pesquisa de Benedetti (2005), observamos que vários mecanismos são produzidos e coletivizados na
construção de um corpo em consonância a uma série de desejos,
trans-formando aquilo que parece estar fora do lugar. Nestas
transformações, esses sujeitos se colocam em movimentos desejantes na intenção de esculpir um novo corpo aos modos de uma
obra de arte.
Redes educativas e de amizades construídas aos modos
do cuidado de si formam uma rede tecnológica, farmacêutica,
dietética e a exercícios de escritas de si que capturam modos não
pensados de ser e estar no mundo. Assim, o cabelo, os peitos, a
bunda, o silicone, a bombadeira, o cirurgião plástico, a cirurgia
de transgenitalização, as roupas, o batom, a maquiagem, o “bofe”,
as amigas, os proissionais da saúde, o programa, a pegação, o
pênis, a vagina, entre tantos outros, se tornam importantes mecanismos de produção de si e do espaço do corpo. Conforme Le
Breton (2013), percebemos com nossas narradoras que “o corpo
transexual é um artefato tecnológico, uma construção cirúrgica
e hormonal, uma produção plástica sustentada por uma vontade
irme.“ (p. 32).
37
TRANSPOSIÇÕES
João Nery (2011) nos lembra em sua autobiograia que
ser um transexual é estar sujeito a ser uma cobaia humana: há
uma experimentação constante de si, dos outros e dos mundos
constituídos por nós, na medida em que o fazer trans é um fazer
político de tomar o próprio corpo como obra de arte, uma tela
onde novos desenhos e contornos são realizados na produção de
algo novo. Neste processo, João nos ensina que trans somos todos nós: os processos transformadores de nossas vidas, relações,
ações e subjetividades é algo que se dá e está presente a todo o
momento em nosso cotidiano, desaiando nossos sentidos, desejos, prazeres, saberes e currículos a se deslocarem de nossas zonas de conforto. Assim, buscamos compreender que os corpos e
pessoas trans também são capazes de ensinar e aprender com os
outros sujeitos que os constituem.
Muito mais do que realizar a resolução de problemas
trazidos pelo outro, nos propomos no processo de encontro
com esses sujeitos viabilizar e problematizar as questões que
surgem nesse mesmo processo: Guacira Lopes Louro (2004),
diz que “o que importa é o andar e não o chegar. Não há um
lugar de chegar, não há destino pré-ixado, o que interessa é o
movimento e as mudanças que se dão ao longo do trajeto” (p.
13). Como no ilme “Priscilla – A rainha do deserto”, que conta
a história de um grupo de drag-queens que atravessa o deserto
australiano para fazer um show, as protagonistas do ilme nos
ensinam que, muito mais do que o espetáculo a ser apresentado,
o trajeto percorrido nesse processo é que toma espaço de produção, subjetivação e construção de si. Os desertos que atravessam
nossos caminhos são capazes de nos proporcionar uma série de
interessantes surpresas.
Não há dúvidas como as narrativas que encontramos são
atravessadas no/com/pelo corpo na produção de si, de outros e
de mundos, produzindo modos de educação informal que ensinam e aprendem tanto quanto nos respectivos locais formais de
ensino e educação. Se o(s) corpo(s) e suas ininitas possibilidades
são capazes de falar muito mais do que ele aparenta isicamente,
o corpo trans é capaz de gritar, aos quatro cantos do mundo e
para quem queira ouvir, como é possível uma constante e coti-
38
Referências
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelho ideológico do Estado. Lisboa: Horizonte, 1977.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
diana reescrita de si. É pensando nas questões que nos atravessaram nesse nosso processo de encontros com nossas narradoras
que nos fazem formular a seguinte problematização: reletindo
nos processos de produção de si, das redes de amizade, dos (des)
afetos do encontro com o outro, das redes de poderes e saberes
criados nas relações que produzem o fazer trans, o que os corpos
trans têm a nos ensinar?
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40
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Pg. 35-82.
41
“CAVALHEIROS, LIGUEM SEUS
MOTORES... E QUE VENÇA A MELHOR
MULHER!”
Catarina Dallapicula1
Sarah Pederzini2
Simone G. da Costa3
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
2
As câmeras mostram uma grande sala, com algumas mesas de costura, manequins, araras e espelhos. Então entra a primeira igura feminina, com roupas coloridas, sexys, engraçadas
ou quase sem roupas, uma a uma chegam as estrelas do show e
se apresentam. Algumas se reconhecem e abraçam com carinho,
outras cumprimentam com desprezo, sempre na expectativa de
que a próxima a atravessar o portal de entrada seja a última. Até
que, inalmente, RuPaul aparece para dar as boas-vindas às novas concorrentes de seu show, o primeiro episódio de cada temporada começa mais ou menos assim.
RuPaul´s Drag Race é um programa no formato reality
show que se propõe a escolher a próxima estrela drag da América.
1
Professora de Inglês da SEDU/Espírito Santo. Mestre em
Educação – PPGE/UFES. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Sexualidades – GEPSs. E-mail: cdallapicula@hotmail.com
2
Graduanda em Ciências Biológicas na Universidade Federal
do Espírito Santo, (Cezar Vinicius Pederzini) é integrante do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Sexualidades – GEPSs. E-mail: sarahpederzini@
hotmail.com
3
Professora da SME/Rio de Janeiro. Pedagoga e Mestre em
Educação – Proped/UERJ. Integrante do Grupo de Pesquisa Currículos,
Narrativas Audiovisuais e Diferença. E-mail: si25.costa@gmail.com
43
TRANSPOSIÇÕES
A proposta é lançar desaios dos mais variados às concorrentes,
buscando avaliar sua capacidade criativa na produção de roupas
e criação de cabelos e maquiagem. Enquanto modelos, apresentadoras, garotas-propaganda, atrizes e mulheres públicas, poderão a qualquer momento igurar em eventos de moda ou diante
das câmeras em uma ininidade de habilidades que o programa
compreende como fundamentais para uma verdadeira estrela
drag, nas palavras de RuPaul, à “melhor mulher”.
Para participar, as candidatas enviam um vídeo apresentando suas atribuições e provando que merecem ser a nova estrela drag da América. Uma seleção é realizada e com pelo menos
doze participantes selecionadas (depende da temporada) dá-se
inicio à competição. O programa foi sucesso de audiência em
todas as suas edições, tendo maior destaque na terceira, quando
bateu recordes entre os reality shows do canal em que é exibido.
Marco na conquista de espaço televisivo para drag queens, a importância política e histórica da produção deste show é
experienciada pela sua reprodução em diversos países e mesmo
pela abordagem natural sobre as práticas do universo drag. Enquanto interagem e competem entre si, as concorrentes têm momentos de desabafo sobre suas vidas pessoais, falando sobre preconceitos e aceitação de sua homossexualidade (e mesmo transexualidade), sobre relações familiares, planos futuros, medos e
questões pessoais, que dão um tom emotivo ao programa. Ao
mesmo tempo, apresentam diversos dispositivos enunciativos a
que recorrem para produzir-se enquanto mulheres na construção de suas personas. Esses marcadores, que referem-se às convenções sociais de performance de gênero, constituem-se como
dispositivos na construção do corpo e airmação do eu feminino
perante as performances a ele reservadas.
As concorrentes são avaliadas pelos jurados, porém a palavra inal é de RuPaul, a drag queen que dá nome ao programa.
Em suas palavras, os critérios para seleção são: carisma, originalidade, nervos e talento. Ao longo das cinco primeiras temporadas e da temporada “All stars” (a sexta foi lançada quanto este
texto estava sendo inalizado) foram premiadas como próxima
44
No processo de competir, tentando atender às expectativas do painel de jurados e superar as demais, tornando-se assim a
“melhor mulher”, as concorrentes promovem um simulacro performático das pedagogias da sexualidade (LOURO, 2010). Os
comentários de juízes e as orientações de RuPaul se constituem
no programa como a materialização, em certa instância, de um
poder pastoral (FOUCAULT, 2012) que se pretende orientador da pedagogia pública da sexualidade feminina. Assim como
em relações cotidianas, aquelas que conseguem seguir o que é
apontado como o “ideal” para a constituição da “melhor mulher” recebem elogios e benefícios. As demais serão analisadas e
julgadas em cada desvio, como estratégia de ensino do que “deveriam ser e fazer”.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
estrela drag artistas performáticas negras, mais jovens na carreira, de mais idade, uma que brinca com marcadores de feminino
e masculino, uma que assume um estilo relacionável a ilmes de
terror trash, uma especializada em imitar Cher, uma jovem com
habilidades teatrais... Todas magras, e de diferentes formas se encaixando em certos padrões de beleza e feminilidade.
Entendemos que neste contexto, os prêmios, as competições e os desiles, são “mecanismos de treinamento”, estratégias
que instauram um lócus de enunciação (BHABHA, 1984) da
corporeidade em que apenas determinados sentidos de verdade
são aceitos. Sendo produzidos nas estratégias de uso de marcadores convencionados, os “padrões de gênero e sexualidades” são
questionados por Foucault:
Nessas estratégicas, de que se trata? De uma
luta contra a sexualidade? De um esforço para
assumir seu controle? De uma tentativa de
melhor regê-la e ocultar o que ela comporta de
indiscreto, gritante, indócil? De uma maneira
de formular, a seu respeito, essa parte de saber
que poderia ser aceitável ou útil, sem mais? De
fato, trata-se antes da própria produção da sexualidade. Não se deve concebê-la como uma
espécie de dado da natureza que o poder é tentado a por em xeque, ou como um domínio
obscuro que o saber tentaria, pouco a pouco,
desvelar. (FOULCAULT, 1988, p. 100).
45
TRANSPOSIÇÕES
A sexualidade, assim como o gênero, constitui-se então
como categoria cultural, através das convenções pelas quais o
poder se articula. Logo, o poder não põe em xeque a sexualidade, ele a produz como sentido de verdade. De forma rizomática,
tanto o poder pastoral (FOUCAULT, 2012) da pedagogia pública da sexualidade feminina (que impõe via diversos mecanismos os sentidos de feminino e de mulher sobre tod@s aquel@s
que tentarem ocupar este papel) quanto o biopoder (FOUCAULT, 2005) que a mantém se alimentam mutuamente.
Porém, se entendemos que para haver poder deve haver,
antes dele, a resistência, passamos a pensar que as sexualidades
“desviantes”, as representações não formatadas do feminino, são
condição sine qua non para a produção enunciativa dos binarismos de gênero e de sexualidades. É a tentativa de controle do
desviante que produz a norma. O ato de reairmá-la a produz. E
as tentativas de desconstruí-la e negá-la a airmam. Pois a norma
só é norma enquanto referencia as práticas que não abarca, que
não prevê.
Em RuPaul’s Drag Race, tensionamos os sentidos de ser
mulher a partir de um não-lugar de mulher airmado a todo momento. As competidoras são “female impersonators” (travesti, ou
imitador de fêmea, em uma tradução mais crua), ou seja, não
são “fêmeas” dentro dos sentidos de verdade que isso implica no
lócus de enunciação contemporâneo, nem mulheres, mas quem
é? Novamente, a “mulher real” é airmada a partir da negação,
neste caso do que seja a travesti, ou a drag queen. Simone de Beauvoir já questionava:
Se a função da fêmea não basta para deinir a
mulher, se nos recusamos também explicá-la
pelo “eterno feminino” e se, no entanto, admitimos, ainda que provisoriamente, que há
mulheres na terra, teremos que formular a
pergunta: que é uma mulher ? (BEAUVOIR,
1970, p.9)
No caso deste programa, ainda sem saber o que é uma
mulher, questionamos então o que signiica ser a “melhor mulher”. Enquanto sentidos de verdade produzidos dentro de cer46
Dentro do discurso das próprias participantes a prática
de regulação e censura impera como ingrediente associado ao
clima de competição e aos padrões de beleza dos quais uma drag
queen não deverá abrir mão. Nesses padrões também estão as
possibilidades de fuga e os “deméritos” das drags, como a impossibilidade de “esconder a neca”, que denunciam e destituem a
“autenticidade feminina”.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
tas contingências espaçotemporais e, por isto mesmo, datados, os
sentidos de mulher aplaudidos, airmados e premiados em cada
edição de RuPaul’s Drag Race resultam em criar a mulher que
pressupõem usar como referência.
“Lembrem-se: não estraguem tudo!”
Ao inal de cada episódio as duas participantes que tenham tido o “pior” desempenho nos desaios propostos são desaiadas uma última vez a dublarem uma música e, assim, provarem seu talento como drag queen. Àquela que desempenhar
melhor a performance, RuPaul dirá “Shantay, you stay...” e ela se
juntará às outras competidoras, à concorrente de performance
inferior é dita a frase “Sashay away...” e assim o programa se despede desta.
A permanência das participantes ao longo dos episódios
está envolvida em uma ininidade de exigências implicadas pela
produção da igura de mulher idealizada. As análises e julgamentos, comentários, críticas estão diretamente relacionados à
forma como esse corpo é produzido e entre diversos discursos
há tanto o hegemônico sendo reiicado quanto as participantes
que ousam escapar, criar linhas de fuga e instituir o jogo discursivo da exceção, o que não signiica se desvencilhar da regra (da
norma), pois
Percorrer histórias, procurar mediações entre passado e presente, identiicar vestígios e
rupturas, alargar olhares, desconstruir representações, desnaturalizar o corpo de forma a
evidenciar os diferentes discursos que foram
47
TRANSPOSIÇÕES
e são cultivados, em diferentes espaços e tempos, é imperativo para que compreendamos o
que hoje é designado como o corpo desejável e
aceitável. (GOELLER, 2003, p.33).
Começa a corrida, como o próprio nome do programa sugere, e as meninas têm que mostrar todo o seu potencial
para conquistar o tão sonhado título de drag queen superstar
da América. Neste percurso percebemos jogos enunciativos
que constituem-se como manifestações do biopoder (FOUCAULT, 2005), nem sempre sutis, e que instituem não apenas
a “ausência de talento” para tal título, mas uma airmação pretensiosa de determinados estereótipos rigorosos e vigilantes na
produção do feminino no universo das drag queens. Detalhes
mínimos não passam despercebidos, julgamentos e avaliações
são voltados para vários aspectos, desde a habilidade com a máquina de costura ao tom da maquiagem, passando pela combinação nas vestimentas, as tendências da moda, a musa inspiradora, pelo caráter, companheirismo, capacidade de trabalhar
em grupo ou liderá-lo.
Ainda que todo esse aparato de controle já pareça extenso, não se reduz a isso. O que foge ao padrão pré-estabelecido é
produzido ao mesmo tempo em que se produz o padrão. Numa
conjugação perspicaz entre a produção de ideal de feminino e
o preconceito direcionado às performances tidas como imperdoáveis para a “mulher ideal”, as práticas de poder pastoral e
biopoder (FOUCAULT, 2012 e 2005) enredam-se no clima de
competição que é a principal proposta do programa.
A prática de “esconder a neca”, por exemplo, quando
não dominada por algumas das competidoras, torna-se motivo
de desqualiicação e piadas entre as participantes e os jurados.
Em alguns momentos tal tema é discutido entre as concorrentes.
Enquanto umas alegam que não se poupam da dor causada pela
prática de “esconder a neca” usando ita adesiva, outras dizem
que não se sentem confortáveis e que utilizam outras táticas para
alcançarem tal resultado. Jade, umas das competidoras que foi
repetidamente repreendia por não “desempenhar esta tarefa” de
forma apropriada, aceitou a primeira piada feita sobre isso, mas
48
Shangela, competidora que participou de mais de uma
edição do programa, ouviu inúmeros comentários por não conseguir esconder de forma apropriada, usando maquiagem, a
sombra da barba. Willam, que parecia ser uma competidora imbatível por sua igura feminina, passou pelo mesmo constrangimento. As críticas direcionadas a Willam foram ainda mais freqüentes tendo em vista que era ishy (termo usado para elogiar as
competidoras que parecem mulheres “reais”, o que quer que isso
signiique). Para as competidoras era inadmissível que uma drag
(especialmente com o corpo belo e o rosto que Willam tem) não
fosse capaz de resolver um problema que parecia simples: a sombra da barba.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
se mostrou muito constrangida quando os jurados prosseguiram
fazendo comentários do tipo “ainda vejo uma cobra nesse avião”.
Para uma drag queen, a falta de domínio sobre o hábito de “esconder a neca” é uma das maiores armas de desqualiicação da
outra em concursos de dança ou beleza.
Algumas características inerentes a esses corpos, tensionados e produzidos na tensão, trazem à tona “problemas” que
não são simples de serem solucionados pelas competidoras. Um
exemplo é a voz. Uma das competidoras chegou a ouvir de um
jurado que seria necessário que pensasse em uma maneira de
mudar a sua voz, pois esta seria “extremamente masculina”.
Se desviarmos a atenção dos aspectos físicos para as escolhas e estilos das competidoras, nos chama a atenção o determinismo nos padrões de vestimentas. Há certo incômodo causado pelas competidoras que aderem a estilos que desviem do
hegemônico, ou da “moda do programa”, escolhendo padrões
estéticos alternativos.
Tammie Brown, uma competidora cuja “personiicação
de fêmea” segue um estilo de feminino inspirado nos anos 50,
sofreu retaliação tanto dos jurados quanto das outras competidoras por não ter “glamour suiciente” para a competição. Ela
retorna na temporada All Star (que reunia as melhores de cada
temporada) e sofre as mesmas críticas.
49
TRANSPOSIÇÕES
Nina Flowers, participante da mesma temporada que
Tammie, chegou ao top three (entre as três inalistas) e é considerada por muitos a “verdadeira” vencedora da primeira temporada. Porém, durante toda sua participação no reality show foi
criticada pelo seu estilo andrógino de drag queen, que não era
aceito como feminino o suiciente para a “mulher ideal”, indicando um padrão restrito de feminilidade a ser seguido. Padrão
este, novamente airmado a partir da negação, da marcação do
que “não é ser a mulher ideal”.
Quanto ao porte físico, o padrão hegemônico de beleza associado a mulheres magras também prevaleceu. Como
exemplo disso, destacamos Mystique. A competidora possui
características completamente fora dos padrões de beleza que
não são exclusivos da competição: é gorda, negra e pouco habilidosa na arte da costura. Obviamente sofreu as maiores críticas de sua temporada.
Destaca-se o episódio em que Mystique alega que não
foi capaz de produzir um vestido porque não lhe ofereceram tecido suiciente para cobrir seu corpo inteiro (neste desaio, os
vestidos eram produzidos a partir de peças únicas de cortinas
estampadas). Além de ter cometido outro “erro imperdoável”
no programa: repetir uma blusa em duas competições diferentes. Percebemos que os mesmos discursos (limitadores do que
aquel@ que ocupa o lugar de mulher pode fazer) são transpostos para embasar a seleção da “melhor mulher” enquanto produzem sentidos do que é ser, ou não, esta mulher.
Delta Work e Stacy Layne Matthews encaram de maneiras diferentes a relação com seus respectivos corpos. Acontece
entre as duas algo curioso em RuPaul’s Drag Race. Ambas são
gordas e criticadas por isso, porém, durante o programa, Delta
Work se mostra capaz de ultrapassar as barreiras estéticas que
seu peso poderia impor e ganha vários desaios, enquanto Stacy
permanece culpando seu corpo fora do padrão quando é criticada pelos jurados.
Mimi Imfurst aparece gorda em sua primeira tempora-
50
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
da no programa e magra quando retorna em All Stars. Os jogos
discursivos em que se enreda tendem a uma airmação de que a
sabotagem às meninas gordas não é o único impedimento para
que elas cheguem ao top three. Neste caso, Mimi não foi considerada uma pessoa talentosa, independente do seu peso. Roxxxy
Andrews, auto-entitulada ex-gorda (emagreceu trinta quilos
antes de entrar no programa), mostra um novo estilo de drag
queen (plus size) não perdendo a sensualidade. Sua participação
emerge como uma exceção à regra da impossibilidade de uma
drag queen não magra atender a certas expectativas, mas ao ser
indicada, por exemplo, como “sexy, apesar de gorda”, entra num
campo discursivo de airmação da regra a partir da fuga.
Detox é uma competidora que tem silicone por todo o
corpo, mas com formas masculinas. Esta característica poderia
ser impedidora de uma performance “aceitável” de feminilidade.
Porém todo o seu silicone é móvel, o que permite que quando
ela use sutiã ou meia-calça, as próteses mudem de lugar, dando
a ilusão de um corpo feminino. Este é um exemplo de como a
inventividade das praticantes produz possibilidades de vida e de
corpo que “torcem” as normas, ainda que não as anule, provocando atualizações constantes.
Inúmeras táticas de produção de si são utilizadas pelas
participantes na negociação com seus corpos materiais, com
suas características desejáveis e admiráveis, ou não, para aproximarem-se do esperado na competição. O corpo, no processo de
transformação constante para atender às demandas dos desaios,
passa pelas mudanças possíveis. Porém, no caso das mulheres
consideradas gordas, é necessário lançar mão de processos que
nem sempre dão conta das expectativas, portanto a eliminação
chega mais cedo ou mais tarde para todas elas. Percebemos assim, que o dentro e o fora também são produzidos neste lócus
de enunciação, como pedagogia pública da sexualidade feminina, utilizando o corpo como instância maior da possibilidade de
existência e resistência. Se o corpo não “cabe” nas normas, não
permite existir, apenas resistir nesse contexto.
Em outros casos algumas competidoras são “acusadas”
51
TRANSPOSIÇÕES
de possuir alguns “privilégios da natureza” como um corpo com
traços femininos, que se aproxima muito do indicado como “perfeição”. É preciso entender que cada vez que uma participante se
aproxima do “ideal”, o desloca, pois este não pode e não deve ser
alcançado, ou perderá seu poder como dispositivo de controle
enunciativo. As participantes que se encontram em posição de
“vantagem” em relação a seus corpos e estética, então, jogam
com os sentidos de “parecer” e “ser”, como argumenta Foucault:
[...] se a natureza, por suas fantasias ou acidentes, pode “enganar” o observador e esconder
durante um certo tempo o verdadeiro sexo,
pode-se desconiar que os indivíduos dissimulam a consciência profunda de seu verdadeiro sexo e se aproveitam de algumas bizarrias
anatômicas para servi-se de seu próprio corpo
como se ele fora de um outro sexo (FOUCAULT, 2012 p.82).
Uma competidora que talvez se aproxime do que Foucault (2012) nos aponta é Carmen Carrera. Ela é o que chamam
de ishy, por ser a mais feminina e se parecer mais com uma “mulher biológica”. Incidem sobre ela diversos mecanismos de controle do corpo e das performances de feminino por não precisar
de enchimento ou uma grande produção para icar pronta para
apresentar-se.
Vivienne Pinay, por outro lado, era considerada um caso
“clássico” de fake-ishy. Ela se auto-deine feminina o suiciente
para se julgar ishy, mas todas as outras garotas discordam e não
a consideram uma competidora com quem devam se preocupar. É preciso entender que “ser uma competidora com a qual
as outras se preocupem” não é um dado a priori, mas criado na
relação com as outras, de forma rizomática, não tendo relação
causal com a materialidade corporal, embora esta se enrede nos
jogos de verdade (FOUCAULT, 2003) produzidos que dão a
entender que sim.
O que importa nestes jogos de verdade (FOUCAULT,
2003) é o que se produz sobre o corpo via enunciação. Enfatizamos que tanto a verbalização quanto a movimentação corporal
se constituem como exemplos de enunciação. Enquanto as com52
“Sashay, Shantay. Pantera na passarela.”
Em propaganda online, a emissora americana que transmite RuPaul’s Drag Race explica aos interessados que RuPaul, o
homem, orienta os desaios, enquanto RuPaul, a mulher, julga e
dá a palavra inal sobre quem ica no show (Shantay, you stay.)
e quem sai (Sashay away.). Essa airmação em si desloca a “verdade” produzida pela busca da “melhor mulher”. RuPaul, assim
como cada uma das participantes no show é masculino e feminino, fêmea e macho, homem e mulher, não chegando a ser plenamente nenhum destes ao desempenhar funções performáticas
distintas que também se constituem como regimes de verdade
em determinado lócus enunciativo. Explicamos que a “verdade”
aqui mencionada se aproxima daquela que Foucault airma em
seu argumento:
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
petidoras tentam produzir os sentidos de mulher que julgam alcançar o mérito de “mulher ideal” neste lócus de enunciação da
sexualidade feminina, também potencializam sentidos de mulher e de não-mulher que não haviam planejado, através de fala,
gestos, roupas, cabelos, calçados, acessórios, uso da voz, empatia,
desenvoltura, etc.
[...] por verdade, não entendo uma espécie de
norma geral, uma série de proposições. Entendo por verdade o conjunto de procedimentos
que permitem a cada instante e a cada um pronunciar enunciados que serão considerados
verdadeiros. Não há absolutamente instância
suprema. (FOUCAULT, 2012, p.227)
O programa não deve ser considerado apenas como
mais um programa de TV voltado para regulação e controle dos
corpos em busca de um referencial materializado na concorrente considerada a “melhor mulher”. Podemos reconhecê-lo como
um espaço oportuno para desmitiicação de alguns paradigmas
em torno da igura das drag queens e mesmo sobre a existência de
práticas de sexualidades desviantes. Os jogos de verdade (FOUCAULT, 2003) aqui mencionados, enquanto mecanismos de
53
TRANSPOSIÇÕES
produção enunciativa de sentidos sobre a materialidade implicam que, dentro e fora do programa, os sentidos de feminino
não são unidirecionais, como se “emitidos” por um produtor do
discurso e “recebidos” por um interlocutor, como o pensamento
estruturalista poderia nos sugerir.
A “melhor mulher” é, então, um conceito negociado
rizomaticamente entre pré-conceitos instaurados a que recorremos na produção de sentidos de verdade sobre a materialidade,
sempre projetados no campo da transcendência. Sendo assim,
tanto a pergunta “O que é ser a “melhor mulher”?” quanto “O
que é ser mulher?” não são passíveis de resposta, pois nas negociações enunciativas sempre que nos aproximamos de um sentido compartilhado o deslocamos, produzindo outras redes enunciativas. Lançamos, assim, a criação enunciativa da identidade,
neste caso, de mulher sempre no campo do por-vir.
RuPaul’s Drag Race apresenta à audiência a oportunidade de acompanhar o proissionalismo e a dedicação que as
concorrentes devotam à sua carreira. O cuidado na produção
do igurino, da maquiagem e da coreograia joga com marcadores enunciativos da sexualidade desejada para que se alcance um
espetáculo que venha a agradar o público. As personagens e as
artistas que acumulam as mais variadas experiências no campo
proissional e da performance sexual tensionam, por seus modos
de existência e resistência, o pressuposto da deinição identitária, quer seja ela de homem, de gay, de drag, de negro, ou mesmo
de mulher, enquanto tentam airmá-la.
O movimento de airmação da “melhor mulher” só se
constitui e produz algum sentido de verdade a partir da enunciação do que seja “não ser mulher”. Assim também a tentativa
da deinição identitária produz em si o deslocamento discursivo
que a impede de alcançar seu objetivo. E entendendo tudo o que
fazemos no campo da materialidade como enunciação, também
os corpos airmam e negam os sentidos de verdade que tenta-se
produzir sobre eles.
A “neca” que escapa tanto afasta a drag queen do sentido
54
Tanto o poder pastoral (FOUCAULT, 2012), aqui
exempliicado nos comentários e piadas de juízes e outras drag
queens, quanto o biopoder (FOUCAULT, 2005), ao qual nos
referenciamos via práticas das próprias drags entre si e consigo,
em sua manifestação no que chamamos pedagogia pública da
sexualidade feminina, simultaneamente negam e airmam os
sentidos de mulher das concorrentes. A cada vez que as práticas de controle incidem sobre uma concorrente airmando
que determinada manifestação enunciativa não corrobora na
airmação identitária “mulher”, airma a verdade da ocupação
deste status, pois joga sobre ela os limites enunciativos restritos
a tal categoria.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
de mulher desejado, por denunciar a presença da genitália tida
como masculina, quanto aproxima por disparar mecanismos da
pedagogia pública do discurso que também são utilizados sobre
os corpos ditos “de mulher” ao cercear a exposição de vaginas e
seios. A sombra da barba tanto “denuncia” a presença de hormônios masculinos e uma constituição genética indesejada para
aquel@s que ocupem o lugar de “fêmea”, quanto traz esses corpos para perto de práticas tipicamente femininas e destinadas à
categoria “mulher”, como depilação, uso de pinças, maquiagem
para disfarçar regiões em que há pelos não desejados, etc.
As concorrentes de RuPaul’s Drag Race, enquanto “female impersonators” nos lançam então o desaio da compreensão
de que negociam com seus corpos sentidos de mulher que nunca
serão plenamente alcançados. Nem por elas, nem por ninguém.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: Fatos e mitos. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1970.
BHABHA, Homi. Representation and the Colonial Text: A Critical Exploration of Some forms of Mimeticism. IN: GLOVERSMITH, Frank. THE
THEORY OF READING. Sussex: he Harvester Press, 1984, p. 93-122.
55
TRANSPOSIÇÕES
FOULCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio
de Janeiro, Edições Graal, 1988.
______. Ditos e Escritos IV: Estratégia, Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003.
______. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______. Ditos e Escritos V: Ética, Sexualidade, Política. 3.ed.- Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2012.
GOELLNER, Silvana Vilodre. A produção cultural do corpo. In LOURO, Guacira Lopes; NECKEL, Jane Felipe; GOELLNER, Silvana Vilodre
[orgs] Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
LOURO, Guacira Lopes. O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade.
IN: LOURO, Guacira Lopes (org.). O Corpo Educado: Pedagogias da Sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
56
A EXPERIÊNCIA
fARMACOPORNOPOLÍTICA: DO
DISCURSO AO DIÁLOGO
Luiz Cláudio Kleaim1
Sérgio Rodrigo da Silva Ferreira2
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
3
Corpos Trans
A história recente do travestismo na modernidade ocidental e da invenção da transexualidade tem como seu elemento
irradiador a emergência do dispositivo da heteronormatividade,
cuja consolidação pôde ser notada desde a instauração do dimorismo corporal/sexual, e seus acarretamentos nas diversas áreas e
saberes, até o estabelecimento da categoria homossexual. Além
da discussão do desejo como categoria formadora do sujeito, e
tendo reconigurados alguns discursos sobre o corpo e o sexo
e os papéis sociais entre homens e mulheres, tal dispositivo se
nutriu de binarismos rígidos, estanques e oposicionais, como os
de masculino/feminino, heterossexual/homossexual, normal/
anormal para assegurar e legitimar a heterossexualidade.
Os saberes médicos do século XIX, a partir da patologização da homossexualidade, vão associar travestismo com “in1
Plur@l – Grupo de Diversidade Sexual e Gepss – Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades, Ufes / Uninorte - Universidad del Norte de
Colombia, Barranquilla, Colômbia.
2
Gepss – Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades e Rasuras –
Grupo de Pesquisa em Imaginação Espacial, Poéticas e Cultura Visual, Ufes,
Vitória/ES, Brasil.
57
TRANSPOSIÇÕES
versão sexual”, compondo com um viés sexualizante a um comportamento que até então compreendia não somente atitudes
eróticas, mas também sociais e políticas. Seu traço marcante,
que era/é o da vestimenta, adquire o sentido da homossexualidade, alçando a categoria de anormalidade que entra no rol das
patologias sexuais e que também servirá de apoio à emergência
da heterossexualidade, bem como de dar-lhe seus contornos
(BOURCIER, 2001; NEWTON, 2008; ÁVILA; GROSSI,
2010 e ÁVILA; GROSSI, 2013). Reforçado ainda pela sua classiicação enquanto fetichismo, por Freud (1976a / 1976b), o
travestismo passa a ser controlado/orquestrado sob os saberes
Psi e catalogado como perversão contrária à natureza.
Revisitando os discursos que atribuíram o status de
“transtorno” para a travestilidade, Marie-Hélène Bourcier
(2001, p. 153-172) defende que essa patologização tem seu caráter assimétrico por terem sido tomadas como foco as experiências de travestismo de homens em detrimento de uma ausência
da literatura (cientíica?) a respeito das mulheres e das lésbicas.
Se observarmos a desigualdade e a diferença entre os gêneros,
podemos perceber que “disfarçar-se de homem é sempre garantia
de um conforto social e econômico imediato e causal” [tradução
nossa] - como diz Bourcier. Logo, os signiicados atribuídos à
travestilidade de homens e à de mulheres não seriam os mesmos.
Mais que isso, as diversas experiências de travestimento/travestilidade foram menosprezadas em sua diversidade eroto-sócio
-econômico-política e encaixotadas em uma mesma taxonomia
deinidora concebida por sexólogos e disciplinadores.
Também a invenção da transexualidade, no século XX,
que vem se basear na discordância entre o sexo biológico e o gênero - por meio do qual o sujeito reivindica sua identidade - retoma
os binarismos da ordem heteronormativa de gênero, tais como os
de homem/mulher, masculino/feminino, heterossexual/homossexual. A ixação de um estatuto universal para a transexualidade
serviu para corroborar uma exclusiva possibilidade de resolução
dessas discordâncias entre corpo, subjetividade e sexualidade,
além de diferenciar tal “transtorno” de outros já conhecidos, como
a homosexualidade e a travestilidade (BENTO, 2006, p. 151).
58
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Por outro lado, a reairmação da heterossexualidade enquanto paradigma de normalidade/sanidade possibilita-nos repensar a suposta ixidez desses binarismos que a sustentam, uma
vez que a perspectiva dos médicos acerca da transexualidade intentava estabelecer que o gênero (social) seria o espelho do sexo
(biológico). Sob essa concepção de olhar para o sexo e ver o gênero ou de fazer o sexo anatômico adequar-se ao gênero, entendese que a sexualidade é construída de acordo com as disposições
naturais e/ou psicossociais e que a transgenitalização resolveria a
inadequação entre sexo-gênero (uma busca por essa suposta coerência, mas que atualiza certa maleabilidade e plasticidade). Os/
As transexuais trazem à tona os limites de um suposto dispositivo dimórico que as nossas instituições vieram sustentar, pois
questionam a adequação dos seus corpos ao gênero com o qual
se reconhecem e se identiicam. Ambiguamente, reairmando a
necessidade de tal adequação, esse não paralelismo sexo-gênero
desmonta a naturalidade da norma heterossexual.
O sistema da heteronormatividade se sustenta, dessa
forma, com a “naturalidade” do elemento heterossexual em detrimento da patologização do desejo homossexual e das travestilidades, bem como da transexualidade. Se perscrutarmos as diversas relações em que os signiicados do gênero estão envolvidos
nisso, podemos perceber gênero como uma arrojada “tecnologia
social heteronormativa” operacionalizada pelas instituições médicas, Psi, linguísticas, domésticas e escolares na produção dos
corpos com disposições heterossexuais “naturais”, ou seja, corpos-homens e corpos-mulheres. E será a heterossexualidade a
matriz que agirá sob reiterações contínuas e proporcionará inteligibilidade a esses corpos e suas diferenças sexuais.
A construção do gênero, nesse sentido, se realiza por
meio de tecnologias diversas, como os discursos institucionais,
a linguagem, o cinema, a arte e a literatura (ÁVILLA; GROSSI, 2013, p. 5-6), os saberes Psi e a medicina. Todas as atuações
que o corpo tiver durante o seu desenvolvimento que fugirem às
expectativas e suposições (esperadas para esse corpo) serão postas à margem, pois transgridem ao que os discursos que lhes são
atribuídos podem esperar. São identidades transtornadas a que
59
TRANSPOSIÇÕES
os saberes médicos se encarregaram (e se encarregam) por muito
de adequar, como Karol3 exempliica em sua fala:
Desde os 9 anos, época mais antiga de minha
vida que me é possível lembrar, meu comportamenteo social, na escola principalmente e
com meus amigos de infância era de passividade. Não jogava futebol e era tida como mariquinha do grupo. já que icava sempre de lado
e eu gostava desse papel.
Mais ou menos lá pelos 11 anos resolvi, em
um dia que iquei só, vestir uma meia-calça de
minha mãe. Nossa! que sensação boa... desilei sozinha diante do espelho e, a partir desse
momento minha vida mudou completamente. Ficava pensando no que eu era, se devia ter
nascido mulher e se eu apenas era um “viadinho”... coisas da minha cabeça.
O fato é que não parei de desejar ter um corpo
feminino, sonhava com uma cirurgia de troca de
sexo e vagava meus pensamentos nesses sonhos4.
A invenção da transexualidade, medicalizada e psicopatologizada, teve repercussões na vida dos sujeitos trans. A partir
disso, aqueles que se autoidentiicassem5 com o outro gênero/
sexo seriam considerados doentes, tendo que passarem por terapias e tratamentos de saúde, serem submetidos aos saberes de
proissionais de sáude sem terem reconhecimento social e legal
de sua condição (ÁVILLA; GROSSI, 2013, p. 4).
Tanto a travestilização quanto a transgenitalização do
corpo se inserem numa época em que este já não pode mais
ser considerado como uma matéria imutável, mas sim como
algo que possa ser transformado, aumentável e/ou tecnologicamente produzido. As modiicações a que os sujeitos trans
recorrem não se encontram deslocadas de reconigurações
3
Transexual autora de uma das narrativas analisadas.
4
http://karoltrans.blogspot.com.br/
5
Ávilla e Grossi fazem a opção pelo termo “autoidentiicada” ao se
referirem à transexualidade colocando a questão ao nível da identidade e não
do diagnóstico, distanciando a questão dos discursos patologizantes.
60
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
pelas quais o corpo tem passado em outros campos do conhecimento. Não mais como uma totalidade homogênea, mas
como interface, como “um mosaico lexível e permeável, cujas
formas e estruturas se tornaram voláteis” (SANTAELLA,
2007, p. 11), o corpo tem sido reinterpretado e reivindicado
por determinados sujeitos contemporaneamente (BUTLER,
2006), movendo-se entre as práticas impositivas e os discursos
de controle institucional e as estratégias criativas de solidariedade e de atuação política em confronto com os discursos hegemônicos (SANTAELLA, 2007, p. 12).
farmacopornopolítica e os Saberes Vaga-lumes
Se no período industrial, o corpo era lugar de disciplina e do controle, entendido como ferramenta de produção; na
sociedade pós-industrial, globalizada e midiática, ele, junto com
o sexo e a sexualidade, se torna lugar de gestão política e técnica
da vida. Para Beatriz Preciado (2008), encontramo-nos em um
estágio de transformações nos processos de gestão biomolecular
(fármaco-) e semiótico-técnica (-porno) da subjetividade sexual,
impulsionadas pelos novos suportes industriais do tecnocapitalismo, como a indústria bioquímica, eletrônica, informática e da
comunicação. Trata-se de uma era a qual a pensadora classiica
de farmacopornográica em que a autoridade cientíica, bem
como os seus conceitos e a sua capacidade de inventar e produzir
artefatos vivos, alcança hegemonia nas diversas esferas da vida.
Assim, transforma-se masculinidade em testosterona, depressão em Prozac, ereção em Viagra etc. (PRECIADO, 2008, p.
33-34). Ao reconhecerem-se como seres com “transtorno” ou
“disforia de gênero” os sujeitos trans dialogam com os saberes
médicos e Psi e com essa rede tecnocientíica de conhecimentos,
protocolos e produtos que descrevem/prescrevem/manipulam/
produzem (sua)a realidade.
Dirá Preciado que, perpassando desde as biotecnologias
até a indústria da comunicação, o sistema de produção farmacopornográica “caracteriza hoje um novo período da economia
61
TRANSPOSIÇÕES
política mundial não por sua preponderância quantitativa, mas
sim porque qualquer outra forma de produção aspira a uma produção molecular intensiicada do desejo corporal semelhante à
narcoticossexual” (PRECIADO, 2008, p. 37, tradução nossa).
Por meio de soisticados “dispositivos de autovigilância e difusão
ultrarrápida da informação, um modo contínuo e sem repouso
de desejar e resistir, de consumir e destruir, de evolucionar e de
autoextinguir-se”, tal período resume e estabelece um “modo especíico de produção e de consumo, uma temporalização masturbatória da vida, uma estética virtual e alucinógena do objeto
vivo, um modo particular de transformar o espaço interior em
fora e a cidade em interioridade e em ‘espaço lixo’” (PRECIADO, 2008, p. 37, tradução nossa).
Nesse sentido, o convite que nos fazemos e o estendemos ao leitor neste ensaio-artigo é o de buscar as experiências
dos sujeitos trans que se transmitem para além da vontade de
uma Sociedade do Espetáculo6 e dos poderes constituídos numa
tecnobiopolítica7, que age na regulação dos corpos como também na gestão da vida. Tal convite é o de tratar de narrativas
enredadas em uma concepção de história a qual dê conta de
substituir a tradição do poder que incide na exclusão inclusiva
do Outro e na captura de sua diferença pelas possíveis estratégias
de contrapoder; a luta a qualquer preço contra as várias formas
de fascismo. Nossa atenção reside naqueles sujeitos que surgem
como um testemunho intermitente, sujeitos imersos numa tradição que nos ensina que o “estado de exceção” no qual vivemos
é a regra e que o ressentimento é um meio de renovar a leitura
das fontes (DIDI-HUBERMAN, 2011).
6
Conceito cunhado pelo escritor francês Guy Debord que trata da
transformação em escala global da política e da economia capitalista em uma
“imensa acumulação de espetáculos”, na qual a mercadoria e o próprio capital
tomam a forma midiática da imagem (DIDI-HUBERMAN, 2011).
7
Beatriz Preciado concebe este conceito para tratar não somente
do poder sobre a vida, como Foucault quando trata de biopolítica. A autora
inclui no jogo de poder e do controle o tecnovivo, o conectado, o midiatizado, o transformado em veículo de reprodução; dessa forma, a ciência e a
tecnologia são elementos constitutivos importantes na construção dos corpos sexuados, indo no sentido de conservar e/ou de reestabelecer a divisão
dos gêneros.
62
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Embebidos pela leitura que Georges Didi-Huberman
(2011) faz de Walter Benjamin em que a origem das coisas nunca se dá a se conhecer de maneira transparente, mas apenas sob
uma dupla perspectiva: “de um lado, como uma restauração,
uma restituição” e “de outro lado como algo que está, por isso
mesmo, inacabado”, “sempre aberto” (p. 110). É nesse sentido
que este texto se constitui como uma discussão advinda a partir
de uma “arqueologia dos contrapoderes” ou como um debruçar
sobre as relações dos sujeitos colocados como marginais, deslocados ou desviantes. Didi-Huberman descreve como um Sabervaga-lume um tipo de “saber clandestino, hieroglíico, das realidades constantemente submetidas à censura”, - ainda que não
explícito, silenciado pela doxa cientíica, pela transfobia das instituições -, o “saber de uma humanidade descartável, como papéis que vão para o lixo” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 136).
Pretendemos delimitar o território do conceito das narrativas das experiências farmacopornopolíticas em suas escritas
de si, observando os domínios do compartilhamento dessa experiência nas comunicações em rede mediadas por computadores e a potência do diálogo na produção de conhecimentos menores8. Realizamos tal tarefa dando prosseguimento à pesquisa
ensejada por nós, a qual teve sua primeira parte apresentada em
Florianópolis, em 2013, na décima edição do Seminário Fazendo Gênero, sob o título “A produção e o compartilhamento
de saberes farmacopornopolíticos por pessoas em processo de
transexualização em redes de conhecimento abertas” (FERREIRA; KLEAIM, 2013). Nesse trabalho tomamos como objeto o
conteúdo postado em dispositivos de suporte para blogs de caráter confessional, ou de auto-revelação, e que foram criados e
mantidos por pessoas trans (homem para mulher, mulher para
homem e travestis).
O presente texto se constitui enquanto o relato de relexões advindas de uma pesquisa ainda em prolongamentos acerca
8
Aqui pensamos com o conceito de luz menor que Didi-Huberman
(2011, p. 52) concebe a partir de Félix Guattari e Gilles Deleuze. Essa concepção demarca aquilo que possui forte coeiciente de desterritorialização,
sendo essencialmente político e com valor coletivo, uma vez que trata das
condições revolucionárias imanentes à própria marginalização de um povo.
63
TRANSPOSIÇÕES
das narrativas de pessoas que passam pelo processo de transexualização de seus corpos e que procuram narrar esse decurso.
À mercê do dispositivo que regula discursos e práticas que patologizam as travestilidades e as transexualidades, esses sujeitos
têm utilizado as redes sociais de forma a expor seus processos
de transformação, bem como de promover outras relações colaborativas, de diálogo, de autopromoção, de airmação de “nova”
identidade, de exposição, de solidariedade, de trocas de saberes
etc. reairmando muitas vezes a heteronormatividade das instituições, mas também questionando-a, a partir de suas experiências, como, por exemplo, a decisão de Sabrina de desfazer-se
como forma de estabelecer uma nova/outra vida:
Pois é pessoal… se você acessou esse endereço
para ler meus textos, agora eles já eram…
Esse BLOG me ajudou muito num momento
em que muita confusão acontecia na minha
vida e na minha cabeça.
Por 3 anos escrevi muitos textos, publiquei diversas fotos. Tinha até que coisas bem interessantes, assim como coisas que eu quero apagar.
Parece que então aconteceu uma coisa ruim,
ou eu me tornei uma pessoa medíocre a ponto
de deletar todas as minhas histórias… É justamente o contrário!
Agora, minha vida é assim: uma página em
branco pronta para ser escrita e recomeçada.
O que passou, me trouxe experiência, conhecimento e amadurecimento.
Fecho o BLOG, e vou viver… Quem sabe você
me encontra em algum momento pela vida…
Um beijo,
Sabrina9.
Em contrapartida, outras pessoas irão relatar suas experiências, mas questionando algumas denominações normativas:
Minha amiga Roberta Brandão, fotógrafa
proissional, realizou a operação e teve a bondade de registrar suas impressões, entre outras
informações valiosas, em um documento que
publico no im dessa postagem. Sintam-se à
9
64
http://thesabrinaroxx.wordpress.com/
Minha única observação oposta às coisas que
Roberta airma no decorrer do documento é
pertinente à deinição de travesti e transexual.
Ela deine de acordo com a presença ou ausência de vontade em alterar o órgão sexual.
Algumas pessoas deinem como o gênero psicológico da pessoa, airmando que travestis
têm gênero ambíguo, são bigêneras, agêneras,
etc. e transexuais se sentem do gênero oposto
ao sexo biológico. Eu nunca cheguei a uma
conclusão deinitiva sobre a distinção dos termos, nem sei, atualmente, me enquadrar em
nenhum canto especíico além de simplesmente ‘trans’10.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
vontade para baixar o documento e, se restarem mais dúvidas, entrar em contato com ela.
Uma das características que é comum a essas experiências é que se trata de pessoas que reivindicam a autonomia de
seus corpos diante o controle estatal, lutando para que a autodeterminação corporal e integridade corporal sejam princípios
aceitos como bens políticos (BUTLER, 2006, p. 39-40). Essa
luta pela autodeterminação e, ao mesmo tempo, pelo reconhecimento, proteção e respeito à sua integridade passam pela busca
de autonomia corporal perante um controle estatal que tem arregimentado políticas mini-celulares de gestão da vida e do sexo.
Para Butler, de certo modo, isto é um paradoxo, pois se tratam
de reivindicações que maximizam proteção e libertação dos grupos minoritários. Entretanto, a autora complementa que não se
trata de abandoná-las, mas é necessário usá-las estrategicamente.
Ela lembra que, ainal de contas, nosso corpo leva a marca que
lhe impõem, pois, enquanto fenômeno social no espaço público
e locus de agência, ele é nosso e, ao mesmo passo, não é nosso.
Reclamá-lo, então, signiica um gesto de sua negação e de sua
airmação (BUTLER, 2006, p. 40-42).
Butler relembra que a luta pelos direitos sobre os corpos possui via de mão dupla, pois o corpo nunca é de todo dos
indivíduos; ele possui sua dimensão pública, pois é constituído
como fenômeno social na esfera pública (2006, p. 40-41). Por
10
ml#more
http://trans.parencia.com.br/2014/03/redesignacao-sexual.ht-
65
TRANSPOSIÇÕES
outro lado, as reivindicações desses sujeitos, os transexuais, têm
ampliado os parâmetros culturais da noção do humano, do aceitável e do inteligível, pois questionam os ideais que ditam como
deveriam ser seus corpos (BUTLER, 2006, p. 50).
Preciado (2008), sob o suporte livro, cujo título foi
Testo Yonqui (drogada de testosterona), também relata sua experiência de duzentos e trinta e seis dias de uso de testosterona
a partir da qual foi possível produzir uma icção autopolítica
acerca de tais transformações isiológicas e políticas na sua subjetividade e nas suas relações. A relexão de tal experiência leva
Preciado a sugerir, além de outros argumentos, que o controle
farmacopornográico da subjetividade movimenta o tecnocapitalismo atual com seus produtos farmacêuticos, químicos e
visuais/virtuais cuja inalidade se encontra na produção de estados “mentais e psicossomáticos de excitação, relaxamento e descarga, e onipotência e de total controle” (PRECIADO, 2008,
p. 36-37) da subjetividade.
Nota-se, com isso, que na vida contemporânea, em determinados contextos, “as realidades da vida moderna implicam
uma relação tão íntima entre as pessoas e as tecnologias que não
é mais possível dizer onde nós acabamos e onde as máquinas começam” (HARAWAY, 2009, p. 24). Para designar essa diluição
de fronteiras, Donna Haraway utiliza o termo tecnociência com
o objetivo de demarcar essa transformação havida na narrativa
histórica e do avanço da história do processo de globalização do
mundo (2004, p. 22). Tal mudança estabelece a junção de um
termo que ultrapassa a distinção de concepções que estruturam
a modernidade, como ciência X tecnologia, natureza X sociedade, sujeito X objeto, natural X artiicial. Perante essas mudanças e, ao mesmo tempo, como resultado disso, Haraway se
autoairma “modesta e confusa testemunha” da revolução ética
trazida pela Engenharia Genética para pôr em voga sua crítica
do caráter masculinista da forma pela qual a Biotecnologia vem
construindo nossos corpos (HARAWAY, 2009, p. 21).
A princípio, veriicamos as temáticas envolvidas nos
universos desses sujeitos e, acima de tudo, procuramos com-
66
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
preender a constituição de relacionamentos em forma de rede
baseados no compartilhamento de informações. Entendemos a
linguagem dos dispositivos tecnológicos - aqueles ligados aos gêneros de produção de comunicação digital - como hipertextualizada, multimidiatizada, fragmentada e dialógica. Lucia Santaella (2004b, p. 53) argumenta que a novidade do ciberespaço
consiste no aspecto de transformar as identidades, concebidas
previamente como unas, em múltiplas identidades. A conclusão
a que chega Santaella ao se questionar sobre a problemática das
identidades múltiplas, tema que se encontra no debate contemporâneo, especialmente com o advento das tecnologias de mídias sociais na internet, também é nossa, especialmente em se
tratando do assunto já descrito. O estabelecimento da cultura
digital, alargada pelas tecnologias de comunicação on-line, permitiu a insurgência dos processos de criação de redes abertas de
produção e de distribuição de conhecimento colaborativo por
pessoas em processo de transexualização. E não só isso, mas também uma experiência coletiva de corpo; uma mutamorfose identitária, como diria Santaella.
Os discursos que fomentam tais relações sociais encontradas em plataformas de redes sociais on-line e que geram
conhecimento especíico de uma diferença de identidade de gênero se organizam pela própria rede de modo rizomático ao deslocar a autoridade para relações colaborativas que criam novos
conhecimentos comuns. Nesses espaços, a comunicação está organizada em forma de “teia de luxos e nódulos, como uma trama complexa de percursos e entrecruzamentos que entrelaçam
comunicação e contemporaneidade” (RUBIM, 2000, p. 27).
Pensada dessa forma, a comunicação se constitui como um eixo
especíico em torno do qual gravita uma série de outros poderes
com os quais se defronta – entre eles a política, o sexo, os saberes
médicos e cientíicos, por exemplo –, ressigniicando não apenas
suas relações, mas também uma série de aspectos sociais.
Manuel Castells (1999) defende que os recentes paradigmas tecnológicos têm transformado nossa cultura devido à
universalização de uma linguagem digital que, por ser comum
a todos, permite que a informação possa ser gerada, armazena-
67
TRANSPOSIÇÕES
da, recuperada, processada e transmitida e causar uma mudança
fundamental em uma série de estruturas econômicas, sociais e
culturais. O cerne dessa transformação está nas tecnologias da
informação, processamento e comunicação. Desse modo, a sociedade tende cada vez mais a ser organizada sob morfologia e
lógica das redes como resultados da economia capitalista com
seus processos produtivos e de experiência, poder e cultura e,
nesse sentido, “a internet é a espinha dorsal da comunicação global mediada por computadores” (CASTELLS, 1999, p. 431).
Tecnologias Confessionais e a Partilha da Experiência farmacopornopolítica
Inseridos nessas tramas, os atores sociais que constituíram o foco de nossa análise tomaram para si os sistemas tecnológicos de conissão, os blogs. Esses sistemas são pensados aos
modos foucaultianos (CANDIOTTO, 2007) que concebem a
organização dos discursos na Modernidade tendo como base a
incitação ao sujeito para verbalizar sobre si mesmo como forma
de produzir a verdade sobre sua identidade. Isso posto, como
tecnologias confessionais entendemos aqueles dispositivos que
se baseiam no ato discursivo por meio do qual o sujeito, diante
do conhecimento daquilo que é ou pratica, se agrega a essa verdade e se põe em paralelo ao outro que compactua com o estabelecido; e por meio desse discurso se reconigura em relação a
si mesmo11.
A sociedade, organizada em redes sociais on-line, fez com
que nossa experiência de vida – e, neste caso, aspectos importantes da vida que estão ligados ao corpo e às modiicações sobre ele
– fosse também um narrar sobre nossa subjetividade ciberneticamente, onde não há mais a possibilidade de se separar a máquina
11
Judith Revel (2011, p. 23) explana que em um terceiro momento
de seus estudos Michel Foucault se volta ao estudo da conissão enquanto a
produção de uma fala subjetiva da qual se “origina uma estratégia, de objetivação e de controle, e uma fala que, pelo contrário, possibilita ao sujeito a
construção da sua própria subjetividade num jogo que também faz parte da
liberdade.
68
A observação do conteúdo nos levou a caracterizá-lo a
partir do que havia de produção de comum no que se refere à
transexualidade; o que nos casos analisados leva à constituição
de uma subjetividade distribuída e de uma experiência de corpo
compartilhada. A partir dos conhecimentos farmacopornopolíticos adquiridos e transmitidos na soma das experiências vai se
criando na rede um modus operandi acerca das identidades de
gênero que opera de forma colaborativa, como vemos exempliicado no trecho abaixo, extraído de um dos textos presentes no
escopo do trabalho12:
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
do humano. A vida nesse contexto social passa a ser uma questão
de hardware. O corpo híbrido (ao mesmo tempo orgânico e maquínico) é a evidência de uma era pós-biológica e pós-histórica,
inaugurada com a consciência de um novo estatuto de corpo, a
partir da evidência de sua compreensão como biocibernético.
Pensando deste modo, a partir da cibernética, o corpo e a mente
são concebidos como uma rede comunicacional.
Gente.... dsculpem-me por somente agora
atualizar o meu blog... agradeço a todos os
que me acompanham e peço que continuem
a comentar... tudo é muito importante, cada
opinião, cada comentário...
Realmente o Perlutan é ótimo, mas produz
efeitos colaterais indesejáveis... os anti andrógenos também, como a impotencia... por isso
e também por ja contar com 49 anos, resolvi
mudar tudo...
Comecei, aconselhada por um médico, com
um hormônio em gel, o Estreva, por ser mais
seguro e produzir efeitos mais lentos...
Estou me sentindo ótima, meus seios não
diminuíram e continuam a se desenvolver
bem devagar... A minha situação social é que
não mudou muito, mas um dia consigo me
desvencilhar disso e ter a coragem para meu
desabrochar.... beijinhos a todos e obrigada...
Ah! ia me esquecendo... tirei ontem fotos novinhas.... vejam como estou....
12
http://karoltrans.blogspot.com.br/
69
TRANSPOSIÇÕES
Esse exemplo é bastante emblemático, pois traz em si
muitas das questões que temos visto ao longo da pesquisa, como
o relacionamento (dialogia), a troca de conhecimento farmacomédico (o medicamento e seus efeitos) e a escrita de si (a constituição de um “eu” e seus índices de veracidade), tríade fundamental para entendermos a experiência coletiva de corpo.
O que vimos é que muitos dos saberes sobre determinadas questões referentes à transexualidade criados em colaboração competem a uma inteligência que, numa perspectiva subordinada apenas às opiniões de uma série de indivíduos portadores
de saberes especíicos oiciais e avalizados sob o ponto de vista
de posições institucionalizadas, tenderia a ser desprezada, ignorada, inutilizada e até humilhada, mas que é, no entanto, importante e utilizada pelo grupo de interesse comum (LÉVY, 1998).
Na sociedade do impresso e dos mass-media as informações estão de modo geral subordinadas às opiniões de uma série
de indivíduos portadores de determinados saberes oiciais, avalizados e tidos como fontes privilegiadas, sendo que, desse modo,
falam sob o ponto de vista de posições institucionalizadas. O
fenômeno a que nos debruçamos, no entanto, está inserido num
recente processo tecnobiopolítico de digitalização da vida. Nesse contexto, as diferentes realidades são passíveis de serem compartilhadas, pois há uma convergência nos códigos binários por
meio das tecnologias da informação, possibilitando a criação e
difusão das produções e, logo, de discursos e experiências por
meio dos diversos dispositivos informáticos. A troca de informação vai constituindo uma experiência colaborativa dos sujeitos enredados no ambiente on-line.
Esse novo paradigma impõe um estado descentrado aos
objetos e aos sujeitos que se apresentam em rede, em luxos, múltiplos e distribuídos e um contexto espacial de estado de rede, de interação, de plurivocalização, de uma estética informacional, de imaterialidade e de virtualidade. Além disso, potencializa a expressão do
múltiplo que abarca as questões de sexualidade e de gênero como
linhas de diferença e hierarquia social. Assim, ocorre um processo
de midiamorfose em que há uma transformação das narrativas.
70
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Vimos que em muitas das narrativas surgem relatos sobre a trajetória de vida, a manipulação de hormônios com ou
sem acompanhamento médico-institucional, as mudanças corporais ocorridas, os desabafos acerca de determinado momento de tristeza ou de impasses no cotidiano, as orientações (após
experiência) acerca da hormonoterapia, os diálogos com alguns
comentários/dúvidas, as informações sobre a categoria trans e,
principalmente, a narrativa de si enquanto pessoa que se percebe
(ou que está se tornando). Desse modo, há autoexposição por
meio das escritas de si. Nota-se, através desses registros, um exercício de pôr em texto (imagens, sons e palavras) como a pessoa
se vê; uma escrita de si que contribui para a (re)invenção desse
“eu”, em interação/diálogo com o(s) outro(s), e que se constitui
enquanto pessoa, ampliando as noções de inteligibilidade, de autonomia e, até mesmo, de humano. Como uma trans de um dos
blogs escreve: “Eu hoje dou a vocês a minha maior prova de coniabilidade, com este blog… Dizendo tudo o que sou e penso. Isso
faz parte do meu amadurecimento como mulher e pessoa”13. Ou
ainda este outro relato que vai ao encontro da autoexposição/
escrita de si que forja relacionamentos interpessoais na rede 14.
Nunca pensei a fundo sobre “virar um homem”. Depois dessa conversa, simplesmente
não consegui tirar isso da minha cabeça, e
então resolvi pesquisar sobre o assunto. Fiquei
pasmo com o que eu lia, era como se eu tivesse
inalmente descoberto todas as respostas pra
tudo o que eu senti durante toda minha vida.
Todas as minhas frustrações na infância, todos os meus “fetiches” na adolescência e todo
o vazio na fase adulta.
Desse modo, há a multiplicidade das narrativas, pois
não existe unicidade que sirva de pivô do objeto ou do fato descrito e sim um plano de consciência indeterminado e incerto.
A totalidade da realidade dessas novas narrativas, assim, é contraditória, confusa e complexa e, por isso mesmo, potente. Do
ponto de vista da viralização, o valor de repasse da informação
estará então condicionado a uma série de fatores subjetivos que
13
http://thesabrinaroxx.wordpress.com/about/
14
http://becomingbernardo.tumblr.com/
71
TRANSPOSIÇÕES
vão desde a relevância do tema até o processo de eleição social
dele, ou seja, a popularidade que ele alcança muitas vezes alavancada por questões afetivas que produz.
Há, pois, ao se estabelecer um contexto comum, a criação de paisagens móveis de signiicações em que o saber se essencializa na soma das informações difusas e dispersas pela rede
social on-line onde ninguém sabe tudo e todos sabem alguma
coisa. O objetivo é alimentar a rede visando ao reconhecimento
e ao enriquecimento mútuo das pessoas com interesses comuns.
Proativamente, o sujeito intervém sobre esse conhecimento espalhado pela rede e atua como agenciador da comunicação a
partir do iltro da sua subjetividade, amparado pelas tecnologias
da informação que dão os meios de coordenar suas interações no
mesmo universo virtual de conhecimento com seus interesses e
identiicando competências ains.
São redes abertas, pois não se fecham em si mesmas, não
constituem comunidades, nem grupos. A cola social é o que elas
constituem de comum; no caso, são os temas que atravessam as
questões de transexualidade, os saberes farmacomédicos (hormônios, sintomas etc.), os relacionamentos românticos e o sexo.
A constituição de saberes passa não só pelos conhecimentos
farmacomédicos, mas também pelos afetos que eles englobam,
de modo indistinto, tratando de sentimentos, segredos e necessidades. Eles, compartilhados, geram reciprocidade de auto-exposição e interações positivas que criam relações luídas, como
vemos bem exempliicado neste trecho de um relato postado por
uma transexual15:
Como muita gente no meu peril pessoal do
Facebook sabe, semana passada eu iz um implante de silicone nos seios. Logo, antes de
falar um pouco sobre o procedimento, quero primeiro agradecer ao carinho e aos votos
positivos nas minhas postagens e mensagens
pessoais e me desculpar por não ter icado em
São Paulo mais tempo para poder visitar mais
pessoas.
15
72
http://trans.parencia.com.br/
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Muitas das relações formadas são perenes e se estabelecem na rede por meio de laços sociais luidos (fracos) em que os
sujeitos se ligam e se desligam com grande facilidade e velocidade. Esse movimento de interações, justamente por sua característica, permite que informações e saberes circulem com mais facilidade pela rede social do ponto de vista estrutural, pois rompe
com as relações que se forjam de forma mais concisa, como amizade, por exemplo, furando os círculos de guetização e espalhando o conhecimento e os performativos para esferas mais amplas.
Dos Discursos ao Diálogo: por uma autoescrita de nossos
corpos
Somos, nós humanos, entes históricos, pois somos
capazes de armazenar experiências adquiridas e transmiti-las
(FLUSSER, 2011). Em nossa pesquisa, a experiência se dá no
plano do corpo em plena transformação a partir da inoculação
de dispositivos farmacopornopolíticos e que são transmitidas no
nível da comunicação por meio da mediação de equipamentos
tecnológicos de comunicação digital, por meio das redes sociais.
O processo de comunicação humana, para Vilém Flusser (2011,
p. 71-79), compreende dois aspectos diferentes e relacionais:
de um lado os discursos - relacionados ao aspecto cumulativo e
(re)distributivo da informação; e do outro, os diálogos - que se
referem ao aspecto produtivo, sintético e intersecional da informação. Os discursos estão lá nos diálogos vindos das fontes institucionalizadas avalizadas dos saberes médicos e lá, ao mesmo
tempo, estão as fugas que resultam de um acúmulo de saberes
criados em processos dialógicos. Como neste exemplo16:
(...) So que de tres dias para ca eu resolvi
seguir a tabela e como eu ja estava com os seios
parcialmente dezenvolvidos resolvi comecar
ja do terceiro passo:aldactone, inasterida,
provera, estrofen e os polivitaminicos. Ai
e que vem o pior em apenas 3 dia de terapia
seguidos pela tabela senti que os meus seios
estao diminuindo sei que o tratamento varia
16
http://reicla-trans.blogspot.com.br/
73
TRANSPOSIÇÕES
de pessoa para pessoa mas como eu falei
anteriormente estou apenas contando minha
esperiencia. Fui correndo rsrsrs hoje pela
manha na farmacia encomendar Androcur
(ciproterona) e vou subtituir o aldactone e
o inasterida por ele (androcur)e as demais
medicaçoes eu vou continuar, ate porque
pelo que eu andei pesquisando a funcao do
androcur e a que esperamos: parar a producao
de testosterona.
Neste relato, observamos os experimentos que são
realizados no corpo, onde o saber médico é testado e, se
necessário, ignorado a partir de uma necessidade que é subjetiva.
Flusser airma que o que distingue o discurso do diálogo é o
clima, sendo que o diálogo se dá num clima de responsabilidade,
que é abertura para respostas. Ali as respostas vêm dos relatos,
mas também dos avanços corpóreos que os experimentos dão ou
não aos sujeitos. Se o discurso médico reiica os corpos trans e o
lugar da heteronormatividade, os diálogos comuns aos sujeitos
produzem intersubjetividades e novos conhecimentos.
Uma experiência interior, por mais subjetiva e pouco
clara que pareça ao outro, pode aparecer furtivamente, a partir
do momento que encontra a forma justa de sua construção, de
sua narração, de sua transmissão. A experiência como narrativa
de si neste caso é entendida como issura, como um não saber,
prova do desconhecido, ausência de projeto, errância nas trevas
(DIDI-HUBERMAN, 2011). Ela é não poder por excelência,
notadamente com relação aos poderes constituídos, avalizados,
institucionalizados, mas é potência de outra ordem: potência de
contestação. “A experiência estaria para o saber assim como uma
dança na noite profunda está para uma estase na luz imóvel”
(p. 148). A experiência é airmada como indestrutível mesmo
que se encontre reduzida às sobrevivências e às clandestinidades
perenes e intermitentes.
Se antes das tecnologias de comunicação on-line os
conhecimentos farmacomédicos eram difundidos entre as
pessoas em processo de transexualização por meio de discursos
em que o receptor encarava o emissor, presencialmente, em um
discurso aberto para o diálogo; e se, por outro lado, os discursos
74
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
disciplinadores (médicos, políticos, policiais) surgiam com viés
piramidal, ou seja, não propenso ao diálogo, mas à obediência,
em que a fonte do emissor se torna inacessível aos receptores;
atualmente, com as atuais plataformas interação social, essa
comunicação se torna estrépita ao se irradiar no sentido de que se
apropriam e bagunçam tanto o conhecimento farmacomédico
quanto o de um sem número de autoexperimentos que enredam
os corpos numa grande, difusa e aberta narrativa que transa a
experiência múltipla dos indivíduos e que compõe miríades de
afetos e de técnicas compartilhadas que produzem uma ideia de
corpo socialmente e discursivamente constitutivo.
A própria noção que tínhamos do sujeito, advinda do
cartesianismo, que era entendida como universal, indivisível e
eterna, sendo sua identidade estável e inabalável, cede lugar às
perspectivas que apresentam novas imagens de subjetividade na
contemporaneidade com o sujeito visto como algo fragmentado,
múltiplo e descentrado (SANTAELLA, 2004b). A partir das
teorias que lidam com a linguagem no processo de formação do
sujeito, os dispositivos digitais de interação social recombinam
o espaço e o tempo e assumem a função de potencializar a
descentralização e a multiplicidade do sujeito que já existiam.
O que esses espaços fazem, pois, é tornar evidente essa
multiplicidade do sujeito já em crise, sendo apenas vias propícias
de sua encenação e de sua representação.
Esse modo de perceber o sujeito, delineado a partir de
subjetividades multiformes, descentradas, instáveis e fragmentadas tem, no entanto, que lutar contra as práticas regulatórias
de instituições sociais e das mídias que insistem na imagem
do “eu” cartesiano, uno, heterossexual, masculino, branco, eurocentrado. Contraposto a esse eu uno e heterocentrado, no
ciberespaço, a consciência da incorporação do novo eu e a interação com outros eus conscientemente incorporados fazem
que essa multiplicidade identitária pareça mais fragmentada.
Mas isso só acontece devido à mediação do Outro – por meio
da linguagem, da cultura e do ciberespaço – que possibilita
interações e diálogos que não seriam imagináveis de se experimentar em outras conjunturas.
75
TRANSPOSIÇÕES
O que o ciberespaço tem trazido de novo tem sido a
possibilidade de haverem experiências contadas. Ao se auto-narrar, os sujeitos podem lidar com “encenar e brincar com a multiplicidade da identidade humana já existente” (SANTAELLA,
2004b, p. 54). No ciberespaço, o indivíduo é levado ao limite da
experimentação de “identidades múltiplas compartilhadas e arrasta desejos, fantasias, e imaginários a novos contextos e realidades existentes e conscientes” (SANTAELLA, 2004b, p. 54) para
além do silêncio construído e de uma/sua inscrição no vazio.
Como veriicamos, por meio dessas experiências de
desfazer-se e de reinventar-se, tanto no corpo físico quanto no
ciberespeço, de modo autorreferencial, são estabelecidas por
meio dos diversos dispositivos redes difusas alimentadas com
informações pela proatividade dos membros interessados no enriquecimento mútuo de dados, na partilha de suas experiências
e pelo fomento a um saber de interesse comum obtido pela soma
das narrativas. Tal saber tem se dado por meio da mobilização
efetiva, com o agenciamento das interações no qual as subjetividades iltram seus interesses, amparadas pelas tecnologias de
informação que dão os meios para coordenar suas interações no
mesmo universo virtual de conhecimentos. Pode-se conjecturar,
por meio dos primeiros resultados, que além de uma paisagem
móvel de signiicações, as redes geram também cumplicidade e
solidariedade de desconhecidos, além de uma forma de relacionamento por meio da qual sentimentos, segredos e necessidades
têm sido compartilhados.
Os sujeitos trans estão, pois, em nossa sociedade – e
aqui não há disjunção entre o mundo on-line e of-line –, se articulando no campo do possível no sentido de questionar o que
pode ser dito enquanto homem/mulher real e/ou o que deve
sê-lo, mostrando como a viabilidade como humanos, a possibilidade de (re)conhecermo-nos como humanos, ou seja, das
condições de inteligibilidade que perpassam normas e práticas
sociais que se converteram em pressuposições do que viemos a
pensar o humano. Ali, naqueles espaços em que se tem pleno
domínio do signo, aquilo dito se torna ainda mais potencializado. Como diria Butler, “como corpos sempre somos algo mais
76
O que temos é a destruição dos discursos que airmam a
naturalização dos corpos e das identidades postas por meio das
articulações intersubjetivas e de (re)negociações dos sentidos
das relações entre sexo, subjetividade e desejo. Desse modo,
vão ao encontro do que Haraway (2004/2009) airma que os
discursos de naturalização do corpo e da vida servem para que
se impeça que se possam mudar as coisas. Com as tecnologias,
diluem-se cada vez mais as fronteiras do possível e se aumenta
nossa capacidade de (re)fazer nossos corpos, nosso gênero, nossa
identidade, remoldando-os e remodelando-os. Haraway ainda
airma que essas tecnologias não são neutras, pois “estamos
dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de
nós. Vivemos em um mundo de conexões – e é importante saber
quem é que é feito e desfeito” (2009, p. 32).
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
que nós mesmos e algo diferente de nós mesmos. Articular isto
como um direito não é sempre fácil, mas talvez não é impossível”
(BUTLER, 2006, p. 46).
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79
O JORNAL COMO MÁQUINA
DE PODER: REVERBERAÇÕES
CURRICULARES DAS BIOPOLÍTICAS1
NAS TRAMAS COTIDIANAS
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
4
Alexsandro Rodrigues2
Hugo Souza Garcia Ramos3
Mateus Dias Pedrini4
Introdução
Cada sociedade tem seu regime de verdade,
sua política geral de verdade: isto é, os tipos de
discurso que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiros; os mecanismos e as instâncias
que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona
uns e outros; as técnicas e os procedimentos
que são valorizados para obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de
dizer o que funciona como verdadeiro (Foucault, 2006, p. 12).
A sexualidade, conectada a uma determinada condição
histórica, tem sido processualmente inventada e instituída através de dispositivos e enunciados de saber/poder, construindo
1
Este texto é parte da pesquisa intitulada: “Sexualidade(s) e biopolíticas: problematizações das narrativas curriculares dos jornais e A Tribuna sobre diversidade sexual e direitos humanos”, inanciada pela Ufes
(2012/2013).
2
Professor do Centro de Educação (CE) da Universidade Federal
do Espírito Santo (UFES);
3
Estudante de Pedagogia da UFES; integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades (GEPSs).
4
Estudante de Psicologia da UFES; integrante do GEPSs; secretário do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades (NEPS).
81
TRANSPOSIÇÕES
um regime de verdade sobre o sexo que opera por nomeação,
classiicação, patologização, identiicação, análise, explicação e
constatação. Essa pretensa verdade sobre o sexo, envolta em relações de poder e saber contribuiu, e contribui signiicativamente
para uma determinada representação dominante da heterossexualidade. Essa sexualidade que se busca coerente e dominante
no campo dos direitos e das biopolíticas constitui-se historicamente a partir dos limites da referência identitária inventada
sob cânones: biológico, desejo, procriação, população e da moralidade judaica-cristã, instituindo uma forma desejada para o
corpo e o governo da população. Com este modelo incoerente
de sexualidade, que toma estes cânones como referência, vê se
formar paradoxalmente a produção do outro como desvio, estranho, abjeto, negação e pecado. Construindo o outro como
desviante, fora da norma, engendra-se uma política sobre o sexo
que pretende reger o que é permitido e o que é proibido, certo
e errado, normal e anormal, sadio e patológico, e ajustar todos
e todas num modelo de sociedade biopoliticamente governada.
Nos estudos de Foucault (1979; 2005), os conceitos
de biopoder [poder sobre o corpo] e biopolítica [poder sobre
a população] vão aparecendo em seus textos nos diferentes movimentos de problematização que foram acontecendo das pesquisas arqueológicas [ser-saber] para um princípio genealógico
[ser-poder]. Foucault entrelaça em seus estudos sobre o ser-saber
e ser-poder, domínios epistemológicos e metodológicos que vão
nos possibilitando problematizar as técnicas racionalizadas de
poder que atuam sobre os sujeitos [corpo e espécie] produzindo
efeitos de verdades.
No decorrer do século XVII e em seu prosseguimento
nas redes do tempo, viu-se aparecer outra tecnologia de poder.
Não do mesmo tipo disciplinar, que agia sutilmente sobre o corpo, mas um tipo de poder que pensa e atua sobre a espécie. Essa
tecnologia, denominada por Foucault por biopolítica não exclui
os dispositivos do poder disciplinar [uns sobre outros], mas reforçava-o, tendo em vista que esse poder plural é de outro nível
de atuação [conjunto] e que seus instrumentos de exercícios são
de outra natureza [especialistas]. Sua aplicabilidade é no con-
82
Se as ações das biopolíticas são o conjunto da população
em seus modos de afecções, subtendemos que essa população
oferece ios de desejo (proposições) que mantém e alteram os
modos de operar das biopolíticas e dos sujeitos tecidos nessas e
por essas redes.Dessa forma, não há dúvidas das possibilidades
humanas na transformação e atuação das biopolíticas;ibertando, possibilitando, desnormatizando aquilo que se encontra naturalizado e cristalizado, pois ao mesmo tempo em que ela proíbe/normatiza/regula, novas possibilidades da vida acontecem.
Assim, percebemos que os ditos processos disciplinatórios são
porosos, permeáveis, inacabados em si mesmos e é nesses espaços que encontramos a atuação de forças e tensões que se fazem
acontecer nos jogos de poder:
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
junto, uma vez que “diferentemente da disciplina que se dirige
ao corpo – a vida dos homens, ou, ainda, se vocês preferirem,
ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no limite, se vocês quiserem, ao homem-espécie”
(FOUCAULT, 2005, p.290).
O importante não é se é possível ou até desejável uma cultura sem restrições, mas sim se o
sistema de repressões em cuja moldura funciona uma sociedade deixa seus indivíduos a
liberdade de transformá-lo. Evidentemente,
qualquer tipo de repressão pode ser intolerável para alguns segmentos da sociedade. [...]
Mas um sistema de repressões se torna realmente intolerável a partir do momento em
que as pessoas a quem afeta não tenham possibilidade de modiicá-lo, fenômeno que pode
ocorrer quando esse sistema se converte em
intangível por ser considerado expressão de
um imperativo moral ou religioso ou conseqüência necessária da ciência médica (FOUCAULT, 2005, p. 26-27).
Precisamos nos atentar nas intervenções e nas práticas
dos LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais)
sobre suas condições de sujeitos nesse processo de produção de
verdades para/com a sexualidade. Observamos a formação de
um processo histórico, cultural e social cujas práticas e comportamentos estão intimamente engendrados na abjeção/negação/
83
TRANSPOSIÇÕES
rejeição/reclusão dos mesmos. Leal e Carvalho (2012) nos lembram que reduzi-los apenas em seu caráter sexual não constituem uma unidade segura para identiicá-los, pois suas práticas
são mutantes, apresentam ambigüidades que se (re)fazem constantemente nas novas relações de poder entrelaçadas na sociedade: as sexualidades não se resumem somente as suas práticas,
mas também a uma identidade e uma atitude no meio social,
cuja riqueza, diversidade e pluralidade são em muitos momentos caladas por verdades, discursos, saberes e poderes delimitadores dos mesmos.
Nesse entrelaçamento entre linguagem/currículo e distribuição cultural de sentidos e signiicados culturais, os textos
do jornal “A Tribuna” se apresentam para nós como importantes instrumentos de análise, uma vez que colocam emmovimento modos/formas de agenciamento, endereçamento e de
investimento político. Nesse sentido, tencionamos os discursos
midiáticos como importantes e potentes meios produtores de
verdades, na medida em que eles estão muito presentes e reverberantes em nosso dia-a-dia. Jornais, telejornais, revistas, folhetins, rádios, entre tantos outros meios, são formas produtoras de
verdade capazes de instituir e apontar modos de vida, silenciando-os e também os potencializando. Se a linguagem escrita e falada são tecnologias que constroem o mundo que conhecemos,
então, só poderemos construí-lo de forma diferente conhecendo, questionando e desconiando de alguns dispositivos/enunciados que nos agenciam em nossos modos de ver, falar, julgar,
narrar, problematizar a compreensão de que pensamos nossas
realidades (MELO e TOSTA, 2008).
Ellswordth (2001) chama nossa atenção para o fato de
que os endereçamentos e as pressuposições identitárias colocadas em circulação pelos textos jornalísticos da mídia impressa
localizam seu público e buscam ixar nos seus textos: gênero,
identidade de gênero, sexualidade, geração, classe, raça, direitos
humanos e muito mais. Utilizando de suas idéias e pedindo licença a mesma, enxertamos em seu texto as palavras leitor/consumidor para pensar os modos de endereçamento do currículo
das mídias impressas:
84
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Da mesma forma que os leitores/consumidores/praticantes nunca são exatamente quem, o
currículo midiático pensa que ele ou ela são,
assim também o currículo midiático não é,
nunca, exatamente o que ele pensa que é. Não
existe, nunca, um único e uniicado modo de
endereçamento em um currículo midiático.
Não importa quanto o modo de endereçamento do currículo midiático tente construir
uma posição ixa e coerente no interior do conhecimento, do gênero, da raça, da sexualidade, a partir da qual o currículo midiático deve
ser lido: os leitores/consumidores/praticantes
reais sempre leram os currículos em direção
contrária a seus modos de endereçamento,
respondendo aos currículos midiáticos a partir de lugares que são diferentes daqueles a
partir dos quais o currículo midiático fala ao
leitor/consumidor/praticante (ELLSWORDTH, 2001, p. 21).
Os jornais e suas notícias/artigos/informações apresentam uma série de estratégias de persuasão capazes de convencer
ao leitor de que aquilo que ele está lendo trata-se de uma realidade: é desta forma que esta mídia se apresenta como mais um meio
capaz de produzir verdades e, além disso, subjetivar os modos
de vidas a ela integrados (LEAL e CARVALHO, 2012). Não
esqueçamos que o jornal, assim como outras mídias, são formas
de poder que se entrelaçam, criam redes de relacionamentos e
afetos que se apresentam como força política que reverbera na
cena coletiva, na vida cotidiana e nas nossas relações.
Foucault nos ensina que “o investimento político não se
faz simplesmente ao nível da consciência, das representações e
no que julgamos saber, mas ao nível daquilo que torna possível
algum saber” (2002, p. 154). E se é possível saber/divulgar/ curricularizar/noticiar algo sobre nossas invenções/classiicações/
realidades e sujeitos, a mídia impressa então disputa o direito
de dizer/falar e representar uma ideia de verdade. Estes textos
disputam jogos de saber/poder e colocam em circulação verdades instituídas, em nosso caso especíico, a heterossexualidade
compulsória e o limite do campo dos direitos de lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais.
85
TRANSPOSIÇÕES
As redes de notícias criadas pelas mídias jornalísticas
capturam os acontecimentos e os transformam naquilo que conhecemos como notícia, que tanto circularão entre os leitores
“quanto irão gerar histórias, em outras mídias” (LEAL e CARVALHO, 2012, p.11). Destacamos que a produção, criação e
circulação de um jornal não se torna produto somente e por
meio dos jornalistas, redatores e editores que trabalham em sua
criação, mas também na relação que este veículo de comunicação
faz com quem o consome. Tal relação cria identidades, subjetiva
modos de vida e produz verdades circulantes em que o leitor não
é objeto na relação, mas sujeito do processo.
A escolha das mídias e dos jornais impressos dos personagens que compõem o cenário LGBT não se dá de uma maneira aleatória: ela “revela a reprodução de uma ideologia historicamente hegemônica e construída sobre os homossexuais”
(MELO, 2010, p.128). Se a heterossexualidade é considerada
normal e a homossexualidade a desviante, isso se dá por uma série de vozes capazes de interferir em nosso cotidiano e também
nos rumos das histórias, das sociedades, das culturas, das subjetividades e das vidas. Os jornais, assim como as outras mídias,
também são agentes de produção de verdades. Nos interessa então tencionar e implicar a responsabilidade desses trabalhadores
culturais pelos efeitos de realidade produzida por eles.
Se concordamos que os sistemas midiáticos
como dispositivos de produção de sentidos e
signiicados se constituem em um novo espaço teórico capaz de fundamentar práticas de
formação de sujeitos autônomos, está posta a
necessidade de conhecer o lugar onde os sentidos se formam, desviam, emergem, viajam...
Na complexidade de encontros entre mecanismos simbólicos como a escola e a mídia,
os sentidos são consumidos, usados, ressigniicados, e a capacidade de pensar e agir criticamente frente à realidade torna-se indispensável, sobretudo quando entendemos que a cultura da mídia se manifesta como um conjunto
articulado e diversiicado de produtos. É um
cenário de enunciação e transmissão que entra em relação com um conjunto de vivências
marcadas pela cotidianidade da vida na qual
receptores/usuários organizam a recepção/
86
Nesse encontro entre escola e a mídia, estamos compreendendo currículos/enunciados/mensagens como dispositivos
de produção de sentidos e signiicados. E aos modos de Tomaz
Tadeu da Silva (1999), compreendemos por currículo, as redes
de saberes e fazeres que são tramadas com o objetivo de produção
de sujeitos de um certo tipo. Buscamos compreender que tipos
de sujeitos e realidades estão sendo contemplados nos discursos/
mensagens/conteúdos /currículos desenvolvidos, produzidos
e distribuídos pela mídia impressa, especiicamente os sujeitos
LGBTs e a sua dimensão com o campo dos direitos humanos.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
interpretação/consumo/uso dos bens simbólicos (MELO e TOSTA, 2008, p. 56).
Problematizações da diversidade sexual em cartas de leitores:
narrativas curriculares do jornal “A tribuna”
Gostaríamos de iniciar esta sessão do texto problematizando a seguinte carta do leitor, endereçada ao jornal A Tribuna
no dia 21 de maio de 2011:
Há atualmente um grande engajamento da
sociedade, sobretudo dos grupos religiosos cristãos, no combate a transferência de cidadania
e dignidade aos homossexuais. A união civil
entre pessoas do mesmo sexo transforma alguns
pastores e padres em radicais islâmicos [...].
Os religiosos cristãos não concordam em quase
nada, mas no que dizem respeito ao homossexualismo, eles estão em pleno acordo: trata-se
de grande ameaça. Eu tenho uma sugestão:
em vez de tentarmos mudar a vida de pessoas
que já estão integradas e felizes, vamos mudar a
vida de milhares de crianças brasileiras que não
tem merenda, educação, abrigo e nem futuro.
Vamos debater o que é realmente importante:
contenção demográica, planejamento familiar
e métodos contraceptivos, uma vez que já temos
muitas crianças demandando acolhimento. (A
Tribuna, 21 de maio de 2011)
É pensando neste tipo de material,produzido por um
leitor e endereçado para seu veículo de informação, que perce87
TRANSPOSIÇÕES
bemos as várias formas do fazer viver e deixar morrer presentes
em nosso cotidiano. Segundo Foucault (2005, p.297), desde o
im do século XVIII, são introduzidas no controle do vivo e da
população duas tecnologias: uma “em que o corpo é individualizado como organismo dotado de capacidades e, [...] uma
tecnologia em que os corpos são recolocados nos processos biológicos de conjunto”. André Duarte (2009, p.39), valendo-se de
Foucault (1994), salienta que em nossa atualidade pós-totalitária, o fascismo, precisa ser problematizado e mencionado como
aquilo “que está em todos nós, que acossa nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder,
desejar essa coisa que nos domina e nos explora”.
A proposta de Foucault para uma vida bela e ação política, operacionaliza-se em nossas redes cotidianas (cuidados de
si) e acontece nos enfrentamentos das atrocidades ditas e não
ditas nos/dos/com os dispositivos das biopolíticas. Estes dispositivos, capilaridade de poder das biopolíticas estão distribuídos
como força da população. Em defesa de uma não contaminação
desta população, práticas e discursos fascistas tentam abafar a
proliferação das diferenças, usando como justiicativa o medo de
contaminação de uma pretensa pureza identitária.
Não falamos mais de uma ideia de poder representado
e posto (sob o status da herança e do desejo do povo) nas mãos
e no exagero de governamentalidade do soberano que possuía/
possui o direito de deixar viver e/ou morrer, mas de um poder
distribuído entre aqueles que amam uma forma de poder autoritário e que corroboram com a airmação e desejo pela tão sonhada, requerida e prometida identidade, seja ela: racial, sexual,
de gênero etc. Em nome desta pureza, identidades produzidas
nas descontinuidades da história numa relação permanente de
saber/poder, são apagadas, mortas, agredidas, aniquiladas, silenciadas, desterritorizalizadas, despatriadas, desracializadas,
dessexualizadas, desgenerizadas, entre outros. E nestas redes de
poder, todos estão capacitados a emitir e a incitar juízo de valor.
O nosso Supremo Tribunal Federal gastou seu
precioso tempo votando uma matéria que beneicia os casais gays. Gostaria de entender a
88
Não sou fanático religioso, nem falso puritano,
mas creio em Deus e nas boas relações humanas.
Quero parabenizar ao leitor [...] pelo espetacular e lúcido comentário sobre a relação homossexual e a pedoilia; aprovada a primeira, não teremosmoral para reprovar a pedoilia,bem como
relações depravadas entre pais e ilhos e outras
até piores (tudo será forma de amor). Cuidado!
Deus com certeza está atento!(A TRIBUNA,
21 de maio de 2011)
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
rapidez da votação, se existem matérias muito
mais importantes para serem discutidas nesta
casa da lei. Por exemplo, as ações impetradas
pelos aposentados, que foram obrigados a voltar
ao trabalho porque seus benefícios foram reduzidos a migalhas. Após trabalharem por longos
anos, pensam que vão curtir uma merecida
aposentadoria, mas por descaso do governo, isto
não acontece. Causa gay não é prioridade para
ninguém, a não ser para eles mesmos(A TRIBUNA, 10 de maio de 2011)
Nessa rede de poder, todos aqueles que escapam, contam outra história e não reiteram essa ordem, são e podem se
tornar alvos de um desejo desenfreado de normalização/moralização/medicalização, e até de cura. Em nome dessa conservação
paradoxal da vida, da população e de uma identidade pura e mais
sadia, racismos vêm sendo alimentados por práticas fascistas que
recorrentemente ganham as páginas de nossos jornais. Fica parecendo que o poder do soberano, permanentemente está sendo
reiterado e, em sua reiteração, a ativação do racismo (direito de
matar e de deixar viver) ganha destaque em nossas vidas e nas
cidades (FOUCAULT, 2004).
Não se trata de ser ou não homofóbico. Uma coisa é respeitar homossexual, como todas as pessoas devem ser respeitadas, independentemente de
orientação sexual. Outra é difundir nas escolas,
para crianças em formação, que homossexualidade é natural, o que não é verdade! Basta reletir que a união de duas pessoas que não podem
procriar não pode ser natural pois, na acepção
da palavra, natural é de acordo com a natureza.
Leis da natureza estabelecem procriação das espécies. Assim, é evidente que união homossexual
contraria a natureza, o que não signiica que
89
TRANSPOSIÇÕES
homossexuais não mereçam respeito. Todavia,
casal homossexual cultiva o amor e o prazer da
atividade sexual, atividade essa, contudo, estéril. Se a humanidade fosse formada por casais
homossexuais, estaria extinta em uma geração
(A TRIBUNA, 2de julho de 2011).
Foucault alargando a discussão do racismo como dispositivo do biopoder chama nossa atenção para o fato de que:
O racismo é a condição de aceitabilidade de
tirar a vida numa sociedade de normalização
[...]. Quanto mais indivíduos anormais forem
eliminados, menos degenerados haverá em
relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo, mas enquanto espécie – viverei, mais
forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei
proliferar (Foucault, 2005, p. 306).
Podemos perceber que o racismo está para além das
ideias da morte justiicada pelo evolucionismo e biologismo que
sustentou ideologias e regimes políticos. O racismo, direito do
soberano em tirar a vida, atinge e solapa o direito de viver de:
crianças, doentes mentais, mulheres, homens, negros, índios,
velhos, deicientes, homossexuais, lésbicas, travestis, transexuais,
transgêneros, sem tetos, sem terras, sem cidadania e a multiplicidade do vivo que se recusa a assumir uma forma já dada. Por
tirar a vida, não compreendemos o limite do assassinato direto,
mas suas formas indiretas e a multiplicação dos riscos, rejeição
e exclusão.
Pensar currículo, sexualidade e gênero como domínios
de saber-poder das biopolíticas jornalísticas e suas formas de
regulamentação torna-se extremante importante, uma vez que
em seus enunciados encontramos elementos de sustentação de
práticas do racismo/preconceitos que imprimem uma marca de
superioridade, hierarquia, classiicação e divisão. Como Foucault (2005, p.307) precisamos relembrar que “o racismo vai se
desenvolver primo com a colonização, ou seja, como genocídio
colonizador” e epistemicídio, por isso justiicável e aceitável.
Com respeito às uniões homoafetivas, ao contrário da decisão do STF, a regra, ou a norma,
esta expressa claramentena Constituição (§ 30,
90
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
do artigo 226). ou seja, “para efeito da proteção
do Estado, é reconhecida a união estável entre o
homem e a mulher como entidade familiar”. No
entanto, para decidir sobre a igura da chamada “união estável para homossexuais”. O STF,
para justiicar sua decisão, fundamentou-se
em “princípios da dignidade” (?). O que não é
norma clara, expressa. Com essa decisão vimos
largamente divulgada decisão de um juiz de
São Paulo que teria determinado inscrição no
Registro Civil de uma união homoafetiva e conseqüente expedição da Certidão de casamento
Civil, contrariando o dispositivo constitucional.
(A TRIBUNA, 02 de julho de 2011)
O governo recuou na divulgação dos kits gay nas
escolas públicas de ensino fundamental. Mas a
sociedade precisa estar atenta. É bem provável
que mais hora menos hora, talvez sem alarde,
venham a jogar novas bombas nas cabeças de
nossos estudantes.(A TRIBUNA, 04 de junho
de 2011)
Reiteramos como foco de atenção que a sexualidade, ao
longo dos séculos XIX e XX , adquiriu formas de poder e saber de uns sobre outros, como disciplina e controle e que seus
domínios se projetam como modos de aplicação sobre o corpo
e a população. Para tanto a sexualidade (como discursos e enunciados que produzem efeitos de subjetividades) se entremeia nos
corpos individualizados, dóceis, produtivos e consumidores e se
liga aos domínios da população desejante de inclusão e pertencimento. Muitos de nós queremos estar contemplados neste projeto e, assim, ativamos estes domínios. Não é só o corpo objeto
de investimento de tecnologias/saberes/poderes disciplinares
que está na pauta das biopolíticas, mas a população com suas
taxas e estatísticas de natalidade, morbidade, saúde global, seguridade, identidade, territorialidade etc. Nas biopolíticas, o poder de regulamentação consiste em fazer viver mais e em deixar
morrer quando julgar preciso.
Acredito que há anos existem coisas muito piores
acontecendo dentro de algumas instituições religiosas e políticos que fazem coisas piores para as
pessoas se preocuparem do que icarem criticando, batendo boca, fazendo “barraco”, por causa
da escolha feita pelas pessoas por sua opção se-
91
TRANSPOSIÇÕES
xual! Estamos ou não em um País livre? Assim
como é proibido atos sexuais em vias publicas por
que acreditam que os homossexuais fariam isso?
Mistérios divinos por meio de livros, intelecto,
espíritos de mortos. Pura arrogância, terminam
dando com os burros nos espinheiros. São responsáveis por tantos enganos, heresias mundo
afora. Não entram nem deixam outros entrar
na feliz morada. Ninguém sabe nada a não ser
que o Espírito Santo revele. Inferno signiica separação do Pai celestial, após a morte. Enim,
sorimento perpétuo. A Sagrada Escritura e incansável quanto ao cuidado que o homem deve
ter com sua alma. Jesus ainda esta de braços
abertos aos que se arrependem em deinitivo de
seus pecados. No Céu não habitarão imundos.
Obedecer a Sua Palavra é imprescindível(A
TRIBUNA, 15 de maio de 2011).
Nas biopolíticas toda a sociedade, por isso a multiplicidade da vida, precisa ser exposta ao risco da contaminação e da
morte pela ameaça que representa a presença do outro, do diferente, do estranho, do anormal. Nas biopolíticas em que diferentes formas de racismos e preconceitos se justiicam como direito
do soberano, do policiamento espontâneo (uns sobre os outros)
e da visibilidade dos comportamentos. Exercendo-se pela distribuição das pessoas nos espaços com seus princípios e rituais
de normalização e efeitos da vontade de verdade: “a sociedade
de normalização é uma sociedade em que se cruzam, conforme
uma articulação ortogonal, a norma da disciplina e a norma da
regulamentação” (FOUCAULT, 2005, p.302).
O sentido de alerta, como ação e condição cultural politicamente comprometida com a vida, convoca-nos a perceber
os sentidos e signiicados que os currículos jornalísticos produzem em nossas vidas. Precisamos intencionalmente mobilizar
forças, histórias, imagens e mensagens diferentes das produzidas
por circuitos reduzidos e hegemônicos de informação e conhecimento para que as mesmas possam nos contar outras histórias.
Outras, porque possível. Por acreditar na construção e desconstrução de histórias e das realidades que alijam o direito a vida,
continuamos desconiados de “o que e quem, estamos nos tornando” entre currículos, narrativas, discursos, enunciados ima92
Conclusões
Ora, agora que o poder é cada vez menos o
direito de fazer morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver, e na maneira
de viver, e no “como” da vida, a partir do momento em que, portanto, o poder intervém
sobretudo nesse nível para aumentar a vida,
para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deiciências, daí por diante a
morte, como termo da vida, é evidentemente
o termo, o limite, a extremidade do poder. Ela
está do lado de fora, em relação ao poder: é o
que cai fora de seu domínio, e sobre o que o
poder só terá domínio de modo geral, global,
estatístico. Isso sobre o que o poder tem domínio não é a morte, é a mortalidade (FOUCAULT, 1979, p. 295-296).
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
gens, mensagens, dispositivos, acontecimentos, endereçamentos, saberes e poderes.
Quando Foucault problematiza as questões em torno das biopolíticas e dos biopoderes, o ilósofo nos coloca no
centro de questões das relações de poder que criamos e capilarizamos em nosso cotidiano. O que antes era uma questão referente ao soberano, ao rei que delimitava o fazer morrer e deixar
viver de seus submissos, agora o problema torna-se muito mais
próximo de nós: é o constante fazer viver e deixar morrer que
está presente nas nossas ações, nossa pele, nossos ossos, nossos
corpos, nossas verdades e nosso dia-a-dia. Sendo assim, a morte
está para muito além de um fator físico, mas principalmente a
um fator simbólico, que (re)corta o(s) outro(s) através de vários
processos de produção de verdade, modos de vida, de ser e estar
no mundo. Os constantes e potentes dispositivos de controle,
dessa forma, se fazem acontecer nas micropolíticas, produzidas
nas mais variadas relações possíveis e imagináveis.
Tendo em vista esses fatores, não é difícil airmar a forma
como as mídias jornalísticas e suas relações com leitores, redatores, jornalistas, editores e patrocinadores são capazes de fazer
acontecer biopoderes e biopolíticas para/com as formas do ser
93
TRANSPOSIÇÕES
e do fazer LGBTs. A constante produção de verdades capazes
de moldar, dobrar e desdobrar essas identidades se faz em todo
o momento num processo que mata, mas também potencializa
o outro. Se tratarmos as biopolíticas como meios problematizadores dos espaços que sufocam e também permitem a(s) vida(s)
acontecerem, torna-se mais do que necessário um processo de
questionar e produzir um novo a partir daquilo que as cartas do
jornal A Tribuna curricularizam.
Na condição de educadores, psicólogos e trabalhadores culturais, não partilhamos dos mesmos olhares e discursos
de verdade que circulam nos estudos da comunicação, mas tal
perspectiva não nos impede de realizar relexões a partir daquilo
que este jornal nos apresenta. Buscando nos estudos de Carlos
Ginzburg (1989) os conceitos e ideias do paradigma indiciário,
percebemos nas cartas pistas e indícios capazes de nos apontar
questões, verdades e questionamentos que estão para além daquilo que está aparente. Na relação da razão com a sensibilidade,
do consciente com o inconsciente, da parte com o todo é que
podemos perceber pistas, sinais e indícios capazes de nos informar aquilo que está para além do que encontrávamos escrito nas
próprias cartas.
Nessas redes interpretativas produzidas com as cartas,
foi possível constatar as tramas de relações de poder no modo
de o jornalismo operar a partir da lógica do mercado. Diante
disso, o jornal está muito mais preocupado em vender mais e
maximizar assim o lucro; ao invés de ter uma responsabilidade
social e política. Imersos nessas lógicas, seus discursos/notícias/
currículos estão em consonância com o saber-poder das biopolíticas, em que encontramos elementos de sustentação de práticas
do racismo/preconceitos que imprimem uma marca de superioridade, hierarquia, classiicação, divisão e enquadramento.
Fomos nos (re)fazendo à medida que as cartas do jornal A Tribuna foram surgindo e desconstruíam as várias formas
de verdades presentes nelas mesmas, através das análises que fomos desenvolvendo ao longo do processo de leitura das mesmas.
Lembrando das propostas de Deleuze (1997), leitura não é um
94
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
processo de imersão naquilo que nos conectamos, mas principalmente é aquilo que transborda dessa relação, aquilo que é
possível de ser desconstruído em nós na produção de um novo
eu. Nesse sentido, as cartas que fomos nos encontrando não estavam inalizadas em si mesmas: as leituras das mesmas foram
capazes de romper as ditas informações neutras, direcionandonos para o destrinchamento das relações de poder e produção
de verdades, modos de vida, saberes e poderes. A indagação das
ditas verdades absolutas e informativas nos meios jornalísticos
tornou-se, e ainda é, um movimento necessário na compreensão
de textos e mídias jornalísticas, uma vez que a nossa relação com
o material pesquisado não é distanciado, objeto da ação, mas dinâmica, mutante, potente e desestruturante.
Não somos mais os mesmos sujeitos que éramos no início do processo de leitura das cartas, pois os olhares e objetivos
que temos agora para/com o jornal A tribuna e/ou qualquer
outro tipo de mídia jornalística agora são outros: a problemática que nos propomos analisar é possível de ser aplicada não
somente num processo de pesquisa, mas principalmente nas políticas e processos de produção de vida presentes em nosso cotidiano, capazes de mudar, indagar e produzir uma nova realidade
para aquilo que está posto para nós enquanto verdade absoluta
e inquestionável. Para além de uma interpretação do jornal A
Tribuna, buscamos uma política da produção da vida enquanto
potente, possível, desestruturante e mutante.
Referências
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95
TRANSPOSIÇÕES
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Nunca formos humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica,
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GINZBURG, Carlos. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São
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MELO, Iran Ferreira de Melo. Análise crítica do discurso: um estudo sobre a
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Horizonte: Autêntica Editora, 2008.
_______. Documentos de identidade: uma introdução as teorias do currículo.
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
96
CIRCULANDO PELAS ESCOLAS
HETERONORMATIVIDADE E
VIGILÂNCIA DE GÊNERO NO
COTIDIANO ESCOLAR
Rogério Diniz Junqueira1
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
5
Introdução
Temos um problema em minha escola: um garoto
afeminado demais, com muitos trejeitos. É ótimo
dançarino! Apanha sempre dos colegas, e todos os
professores riem dele. Eu já lhe disse: “Tu és gay
mesmo, tudo bem, eu respeito, mas para de desmunhecar, pois estás atraindo a ira dos outros sobre ti.”
Já mandei chamar a mãe dele. Ele está com 6 anos
agora. Que iz com os outros? Fazer o quê? (Relato
de Coordenadora Pedagógica)
Na minha escola, tinha um aluno muito feminino. Todo mundo fazia deboche dele dizendo
que era mulherzinha. Ele foi aparecendo cada
vez mais com coisas de mulher. Ele dizia que
era travesti, queria ser tratado com nome feminino e ir ao banheiro feminino. As pessoas diziam que não queriam um homem no banheiro das mulheres. Todo mundo lhe dizia para
deixar dessa vida. Ele deixou a escola. (Relato
de Professora)
1
Doutor em Sociologia pelas Universidades de Milão e Macerata
(Itália). Pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (Inep), onde atua na Coordenação-Geral
do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica e na Comissão de
Especialistas em Educação Especial e Atendimento Diferenciado em Exames
e Avaliações da Educação Básica. E-mail: rogerio.junqueira@inep.gov.br
101
TRANSPOSIÇÕES
Nas festas da pré-escola, a gente costuma distribuir balões coloridos. Esse ano, um dos meninos
de 5 anos icou com o último. Ele não queria
porque era rosa. Ficou tenso e não brincava. A
quem passava perto dele ele se explicava: “Não
fui que escolhi esse balão. Eu sou homem”. Depois entendi que estava com medo que o pai
o visse com aquele balão. Levei o caso para a
coordenadora. Ela disse para não fazermos balões rosas nas turmas em que temos meninos.
(Relato de Professora)
No mundo social da escola, cotidiano e currículo se interpelam e se implicam mútua e indissociavelmente, ao longo
de uma vasta produção de discursos, enunciados, gestos e ocorrências, na esteira de situações em que se (re)constroem saberes,
sujeitos, identidades, diferenças, hierarquias (CAMARGO &
MARIGUELA, 2007). A observação e a análise do cotidiano
escolar revelam situações e procedimentos pedagógicos e curriculares estreitamente vinculados a processos sociais por meio
dos quais se desdobra e aprofunda a produção de diferenças, distinções e clivagens sociais que, entre outras coisas, interferem na
formação e na produção social do desempenho escolar.2 Assim,
no presente artigo procuro reletir sobre dimensões da heteronormatividade presentes no cotidiano escolar que impregnam o
currículo, compõem redes de poderes, controle e vigilância, promovem a gestão das fronteiras da (hetero)normalidade, produzem classiicações, hierarquizações, privilégios, estigmatização,
marginalização, comprometem o direito à educação de qualidade e comportam o exercício de uma cidadania mutilada.3
O cotidiano escolar interage e interfere em cada aspecto
do conjunto de saberes e práticas que constituem o currículo
formal e o currículo oculto.4 O currículo (seja ele qual for) cons2
“Sucesso” e fracasso” escolares são frequentemente atribuídos a indivíduos e não às instituições que os fabricam, ao hierarquizar, marginalizar
e excluir.
3
Valho-me de relatos de professoras das redes públicas de todo o
país que participaram de cursos de formação continuada no âmbito do Programa Brasil Sem Homofobia a partir de 2005.
4
O currículo oculto contribui para aprendizagens sociais
relevantes (atitudes, comportamentos, valores, orientações), ensinando
“o conformismo, a obediência, o individualismo [...] como ser homem ou
102
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
titui-se um artefato político e uma produção cultural e discursiva. Isto é, o currículo se relaciona à produção sócio-histórica
de poder por meio da produção de regras e padrões de verdade,
bem como da seleção, organização, hierarquização e avaliação
do que é deinido como conhecimento ou conteúdo escolar. É
um campo de permanentes disputas e negociações em torno de
disposições, princípios de visão e de divisão do mundo e das coisas – especialmente das que concernem ao mundo da educação
escolar e às iguras que o povoam e, ali, (re)deinem sentidos e
(re)constroem signiicados. É um espaço de produção, contestação e disputas que abriga relações de poder, formas de controle,
possibilidades de conformismo e resistência.5
Historicamente, a escola brasileira estruturou-se a partir
de pressupostos tributários de um conjunto de valores, normas e
crenças responsável por reduzir à igura do “outro” (considerado
estranho, inferior, pecador, doente, pervertido, criminoso ou contagioso) quem não se sintoniza com os arsenais cujas referências
eram (e são) centradas no adulto, masculino, branco, heterossexual, burguês, física e mentalmente “normal”. A escola tornou-se um
espaço em que rotineiramente circulam preconceitos que colocam em movimento discriminações de diversas ordens: classismo,
racismo, sexismo, heterossexismo, homofobia e outras formas de
gestão das fronteiras da normalidade fazem parte da cotidianidade escolar. Não são elementos intrusos e sorrateiros, que, além de
terem entrada franca, agem como elementos estruturantes do espaço escolar, onde são cotidiana e sistematicamente consentidos,
cultivados e ensinados, produzindo efeitos sobre todos/as.6
mulher, [...] heterossexual ou homossexual, bem como a identiicação com
uma determinada raça ou etnia” (SILVA, 2002, p. 78-79). Suas cujas fontes
e meios animam, caracterizam e delineiam as relações sociais da escola, a
organização dos espaços, o ensino do tempo, rituais, regras, regulamentos e
normas, classiicações, categorizações etc.
5
Para além das dicotomias conteúdo/forma, explícito/oculto, a
noção de “currículo em ação” se refere à pluralidade de situações formais
ou informais de aprendizagens vivenciadas por toda a comunidade escolar
(planejadas ou não, dentro ou fora da sala de aula), sob a responsabilidade da
escola. Trata-se do que “ocorre de fato nas situações típicas e contraditórias
vividas pelas escolas [...], e não o que era desejável [...] ou o que era
institucionalmente prescrito” (GERALDI, 1994, p. 117).
6
“[A]s marcas permanentes que atribuímos às escolas não se
103
TRANSPOSIÇÕES
A escola é um espaço obstinado na produção, reprodução e atualização dos parâmetros da heteronormatividade – um
conjunto de disposições (discursos, valores, práticas) por meio
das quais a heterossexualidade é instituída e vivenciada como
única possibilidade natural e legítima de expressão (WARNER,
1993). Um arsenal que regula não apenas a sexualidade, mas
também o gênero. As disposições heteronormativas voltam-se
a naturalizar, impor, sancionar e legitimar uma única sequência
sexo-gênero-sexualidade: a centrada na heterossexualidade e
rigorosamente regulada pelas normas de gênero, as quais, fundamentadas na ideologia do “dimorismo sexual”,7 agem como
estruturadoras de relações sociais e produtoras de subjetividades
(BUTLER, 2003).
A heteronormatividade está na ordem das coisas e no
cerne das concepções curriculares; e a escola se mostra como
instituição fortemente empenhada na reairmação e na garantia
do êxito dos processos de heterossexualização compulsória e de
incorporação das normas de gênero, colocando sob vigilância os
corpos de todos/as.8 Histórica e culturalmente transformada em
norma, produzida e reiterada, a heterossexualidade hegemônica
e obrigatória torna-se o principal sustentáculo da heteronormatividade (LOURO, 2009). Não por acaso, heterossexismo e homofobia agem aí, entre outras coisas, instaurando um regime de
controle e vigilância não só da conduta sexual, mas também das
referem aos conteúdos programáticos [...], mas [...] a situações do dia-adia, experiências comuns ou extraordinárias que vivemos no seu interior [...].
As marcas que nos fazem lembrar [...] dessas instituições têm a ver com as
formas como construímos nossas identidades sociais, especialmente nossa
identidade de gênero e sexual” (LOURO, 1999, p. 18-19). Isso vale também
para as (re)conigurações de identidades étnico-raciais e os processos de
ediicação de hierarquias.
7
Tal ideologia sustenta a crença na existência natural de dois sexos
que se traduziriam de maneira automática e correspondente em dois gêneros
necessariamente complementares e em modalidades de desejos igualmente
ajustadas a esta lógica binária e linear.
8
As normas de gênero encontram no campo da sexualidade reprodutiva um dos mais poderosos argumentos para justiicar as teses naturalizantes acerca das identidades sexuais e de gênero e as violações dos direitos das
pessoas que pareçam delas destoar.
104
É oportuno observar que o termo homofobia tem sido comumente empregado em referência a um conjunto de emoções
negativas (aversão, desprezo, ódio, desconiança, desconforto
ou medo) em relação a “homossexuais”.9 No entanto, entendê-lo
assim implica pensar o seu enfrentamento por meio de medidas voltadas sobretudo – ou apenas – a minimizar os efeitos de
sentimentos e atitudes de indivíduos ou de grupos homofóbicos em relação a uma suposta minoria. Relacionar a homofobia
simplesmente a um conjunto de atitudes individuais em relação
a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais implicaria desconsiderar que as distintas formulações da matriz heterossexual,
ao imporem a heterossexualidade como obrigatória, também
controlam o gênero. Por isso, parece-me mais adequado entender a homofobia como um fenômeno social relacionado a
preconceitos, discriminação e violência voltados contra quaisquer
sujeitos, expressões e estilos de vida que indiquem transgressão ou
dissintonia em relação às normas de gênero, à matriz heterossexual, à heteronormatividade. E mais: seus dispositivos atuam
capilarmente em processos heteronormalizadores de vigilância,
controle, classiicação, correção, ajustamento e marginalização
com os quais todos/as somos permanentemente levados/as a
nos confrontar ( JUNQUEIRA, 2007, 2009).10
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
expressões e das identidades de gênero, como também das identidades raciais. Por isso, podemos airmar que o heterossexismo
e a homofobia são manifestações de sexismo, não raro, associadas a diversos regimes e arsenais normativos, normalizadores e
estruturantes de corpos, sujeitos, identidades, hierarquias e instituições, tais como o classismo, o racismo, a xenofobia ( JUNQUEIRA, 2009b).
9
O termo homofobia, apesar de seus limites e os equívocos que
tende a gerar, conquistou espaços importantes no campo político e ainda
apresenta certo potencial que não recomenda seu abandono. Ao buscar evitar
a carga semântica da idéia de “fobia” e sublinhar aspectos políticos relativos
à discriminação social, fala-se em heterossexismo (MORIN, 1977; HEREK,
2004, entre outros), homonegatividade (HUDSON & RICKETT, 1980),
homopreconceito (LOGAN, 1996) etc. São termos que também apresentam
limites e sofrem ressigniicações. Para um histórico do termo heterossexismo
e suas origens no pensamento de feministas lésbicas, ver: HEREK (2004).
10
O termo homofobia, na acepção aqui empregada, se aproxima da
noção de heterossexismo corrente nos Estados Unidos, porém não a sobrepõe,
105
TRANSPOSIÇÕES
Dizer que a homofobia e o heterossexismo pairam ameaçadoramente sobre a cabeça de todos/as não implica airmar que
afetem indivíduos e grupos de maneira idêntica ou indistinta.
Embora a norma diga respeito a todos/as e seus dispositivos de
controle e vigilância possam revelar-se implacáveis contra qualquer um/a, a homofobia não deixa de ter seus alvos preferenciais.
As lógicas da hierarquização, da abjeção social e da marginalização afetam desigualmente os sujeitos. O macho angustiado por
não cumprir com os ditames inatingíveis da masculinidade hegemônica (CONNELL, 1995) não tenderá a ter seu status questionado se agredir alguém considerado menos homem. Pelo contrário, com tais manifestações de virilidade, além de postular-se
digno representante da comunidade dos “homens de verdade”,
ele poderá até ser premiado. Aligido pela pesada carga11 que sua
posição de dominante acarreta, ele, para esconjurar ameaças a
seus privilégios, terá à sua disposição um arsenal heterossexista
socialmente promovido.
O aporte da escola, com suas rotinas, regras, práticas e
valores, a esse processo de normalização e ajustamento heterorreguladores e de marginalização de sujeitos, saberes e práticas
dissidentes em relação à matriz heterossexual é crucial. Ali, o heterossexismo e a homofobia podem agir, de maneira sorrateira
ou ostensiva, em todos os seus espaços.12 Pessoas identiicadas
pois lá esta ainda gira mais em torno da discriminação por orientação sexual
(não raro, a partir de pressupostos essencialistas), conferindo pouca ênfase
às normas de gênero e à heteronormatividade, que me parecem centrais.
Ao considerar tal centralidade, adotar uma acepção mais ampla e evitar
abordagens individualizadoras e despolitizantes, parece-me adequado
empregar heterossexismo ao lado de homofobia, também para enfatizar que
a última deriva do primeiro.
11
“O privilégio masculino é também uma cilada e [...] impõe a todo
homem o dever de airmar [...] sua virilidade [...], entendida como capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como aptidão ao combate e ao
exercício da violência [...], é, acima de tudo, uma carga” (BOURDIEU, 1999,
p. 64).
12
Com efeito, em distintos graus, na escola encontramos
heterossexismo e homofobia no livro didático, nas concepções de currículo,
nos conteúdos heterocêntricos, nas relações pedagógicas normalizadoras.
Explicitam-se na hora da chamada (no furor em torno do número 24, mas,
sobretudo, na recusa de se chamar a estudante travesti pelo seu “nome social”),
nas brincadeiras e nas piadas consideradas inofensivas e usadas inclusive como
106
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
como dissonantes em relação às normas de gênero e à matriz
heterossexual serão postas sob a mira preferencial de uma pedagogia da sexualidade (LOURO, 1999) geralmente traduzida,
entre outras coisas, em uma pedagogia do insulto por meio de
piadas, ridicularizações, brincadeiras, jogos, apelidos, insinuações, expressões desqualiicantes e desumanizantes. Tratamentos preconceituosos, medidas discriminatórias, ofensas, constrangimentos, ameaças e agressões físicas ou verbais têm sido
uma constante na rotina escolar de um sem-número de pessoas,
desde muito cedo expostas às múltiplas estratégias do poder e a
regimes de controle e vigilância.
As “brincadeiras” heterossexistas e homofóbicas (não
raro, acionadas como recurso didático) constituem-se poderosos mecanismos heterorreguladores de objetivação, silenciamento (de conteúdos curriculares, práticas e sujeitos), dominação simbólica, normalização, ajustamento, marginalização e
exclusão. Essa pedagogia do insulto se faz seguir de tensões de
invisibilização e revelação, próprias de experiências do armário.
Uma pedagogia que se traduz em uma pedagogia do armário,13
que se estende e produz efeitos sobre todos/as.
Vigilâncias das normas de gênero e a pedagogia do armário
Embora para a instituição heteronormativa da sequência
instrumento didático. Estão nos bilhetinhos, carteiras, quadras, banheiros,
na diiculdade de ter acesso ao banheiro. Aloram nas salas dos professores,
nos conselhos de classe, nas reuniões de pais e mestres. Motivam brigas no
intervalo e no inal das aulas. Estão nas rotinas de ameaças, intimidação,
chacotas, moléstias, humilhações, tormentas, degradação, marginalização,
exclusão etc ( JUNQUEIRA, 2009). Ao lado disso, vale notar que no “jogo
do bicho” se entrelaçam crenças, visões de mundo, sistemas de classiicação
e hierarquização, e as apostas são feitas a partir um intricado sistema de
palpites em que são relacionados números, animais, coisas, sentimentos,
sonhos e acontecimentos. O 24 costuma ser o número de referência do
veado, tradicionalmente associado ao homossexual masculino. Enquadrado
entre os bichos passivos (alvos dos “perseguidores ativos”), o veado ica em
uma posição ambígua, entre o masculino e o feminino (um “perseguido
inalcançável”). Ver: Da Matta & Soares (1999).
13
Termo cunhado por Graciela Morgade e Graciela Alonso (2008),
que, porém, não o caracterizam.
107
TRANSPOSIÇÕES
sexo-gênero-sexualidade concorram diversos espaços sociais e
institucionais, parece ser na escola e na família onde se veriicam seus momentos cruciais. Quantas vezes, na escola, presenciamos situações em que um aluno “muito delicado”, que parecia preferir brincar com as meninas, não jogava futebol, era alvo
de brincadeiras, piadas, deboches e xingamentos? Quantas são
as situações em que meninos se recusam a participar de brincadeiras consideradas femininas ou impedem a participação de
meninas e de meninos considerados gays em atividades recreativas “masculinas”?
Processos heteronormativos de construção de sujeitos
masculinos obrigatoriamente heterossexuais se fazem acompanhar pela rejeição da feminilidade e da homossexualidade, por
meio de atitudes, discursos e comportamentos, não raro, abertamente homofóbicos. Tais processos – pedagógicos e curriculares – produzem e alimentam a homofobia e a misoginia, especialmente entre meninos e rapazes. Para eles, o “outro” passa
a ser principalmente as mulheres e os gays e, para merecerem
suas identidades masculinas e heterossexuais, deverão dar mostras contínuas de terem exorcizado de si mesmos a feminilidade
e a homossexualidade. Eles deverão se distanciar do mundo das
meninas e ser cautelosos na expressão de intimidade com outros
homens, conter a camaradagem e as manifestações de afeto, e
somente se valer de gestos, comportamentos e ideias autorizados para o “macho” (LOURO, 2004). À disposição deles estará
um arsenal nada inofensivo de piadas e brincadeiras (machistas,
misóginas, homofóbicas etc.) e, além disso, um repertório de linhas de ação de simulação, recalque, silenciamento e negação
dos desejos “impróprios”.
Na escola, indivíduos que escapam da sequência heteronormativa e não conseguem ocultá-lo, arriscam-se a serem
postos à margem das preocupações centrais de uma educação
supostamente para todos/as (BUTLER, 1999). Tal marginalização, entre outras coisas, serve para circunscrever o domínio do
sujeito “normal”, pois, à medida que se procura consubstanciar e
legitimar a marginalização do indivíduo “diferente”, “anômalo”,
termina-se por conferir ulterior nitidez às fronteiras do conjun-
108
Por meio da tradução da pedagogia do insulto em pedagogia do armário, estudantes aprendem cedo a mover as alavancas
do heterossexismo e da homofobia. Desde então, as operações
da heterossexualização compulsória implicam processos classiicatórios e hierarquizantes, nos quais sujeitos ainda muito jovens podem ser alvo de sentenças que agem como dispositivos
de objetivação e desqualiicação: “Você é gay!”. Estas crianças e
adolescentes tornam-se, então, alvo de escárnio coletivo sem antes se identiicarem como uma coisa ou outra.14 Sem meios para
dissimular a diferença ou para se impor, o “veadinho da escola”
terá seu nome escrito em banheiros, carteiras e paredes, permanecerá alvo de zombaria, comentários e variadas formas de violência que a pedagogia do armário pressupõe e dispõe, enquanto
sorrateiramente controla e interpela cada pessoa.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
to dos “normais” (DOUGLAS, 1976). A existência de um “nósnormais” não depende apenas da existência de uma “alteridade
não-normal”: é indispensável naturalizar a condição de marginalizado vivida pelo “outro” para airmar, conirmar e aprofundar o fosso entre os “normais” e os “diferentes”.
Tais “brincadeiras” ora camulam ora explicitam injúrias
e insultos, que são jogos de poder que marcam a consciência,
inscrevem-se no corpo e na memória da vítima e moldam pedagogicamente suas relações com o mundo. Mais do que uma
censura, traduzem um veredicto e agem como dispositivos de
perquirição e desapossamento (ÉRIBON, 2008). E mais: o insulto representa uma ameaça que paira sobre todas as cabeças,
pois, por exemplo, pode ser estendido a qualquer um que por
ventura falhar nas demonstrações de masculinidade a que é submetido sucessiva e interminavelmente. A pedagogia do armário
interpela a todos/as. Ora, o “armário”, esse processo de ocultação da posição de dissidência em relação à matriz heterossexual,
faz mais do que simplesmente regular a vida social de pessoas
que se relacionam sexualmente com outras do mesmo gênero,
submetendo-as ao segredo, ao silêncio e/ou expondo-as ao des14
“Identiicar-se como gay” não comporta necessariamente “sair do
armário”. As lógicas do armário são mais complexas do que o binarismo dentro/fora pode levar a supor.
109
TRANSPOSIÇÕES
prezo público. Com efeito, ele implica uma gestão das ronteiras
da (hetero)normalidade (na qual estamos todos/as envolvidos e
pela qual somos afetados/as) e atua como um regime de controle
de todo o dispositivo da sexualidade. Assim, reforçam-se as instituições e os valores heteronormativos e privilegia-se quem se
mostra devidamente conformado à ordem heterossexista (SEDGWICK, 2007).
Em suma, a vigilância das normas de gênero cumpre papel
central na pedagogia do armário, constituída de dispositivos e
práticas curriculares de controle, silenciamento, invisibilização,
ocultação e não-nomeação que agem como forças heterorreguladoras de dominação simbólica, (des)legitimação de corpos,
saberes, práticas e identidades, subalternização, marginalização
e exclusão. E a escola, lugar do conhecimento, mantém-se em
relação à sexualidade e ao gênero, como lugar de censura, desconhecimento, ignorância, violência, medo e vergonha15.
Regime de vigilância, generiicação heterorregulada e
inclusão periférica
A internalização dos ditames da heterossexualidade como
norma faz com que frequentemente se confundam expressões de
gênero (gestos, gostos, atitudes), identidades de gênero e identidades sexuais. Não existe uma forçosa, inescapável e linear
correspondência entre esses conceitos. Comportamentos não
correspondem necessariamente a assunções identitárias. Bastaria notar que podemos ser ou parecer masculinos ou femininos,
masculinos e femininos, ora masculinos ora femininos, ora mais
um ora mais outro, ou não ser nenhuma coisa ou outra, sem que
nada disso diga necessariamente respeito a nossa sexualidade.
Para ser “homem” alguém precisa ter pênis, ser agressivo, saber
controlar a dor, ocultar as emoções, não brincar com meninas,
detestar poesia, bater em “gays”, ser heterossexual ou estar sempre pronto para acossar sexualmente as mulheres?
15
Para uma análise dos mitos e medos curricularmente (re)produzidos acerca das (hetero/homos)sexualidades, ver: BRITZMAN (1996).
110
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Em frases como “Vira homem, moleque!”, tão comumente relatadas, além de pressupor uma única via natural de amadurecimento para os “garotos” (que supostamente devem se tornar
“homens”), subjaz a ideia de um único modelo de masculinidade possível. Algo a ser conquistado pelos indivíduos masculinos,
numa luta árdua por um título a ser defendido a cada momento
da vida, sob a implacável vigilância de todos. Uma busca por um
modelo inatingível, fonte permanente de insatisfação, angústia
e violência. Reairma-se a ideia segundo a qual rapazes afeminados seriam “homossexuais”. Uma crença cuja força reside na fé
que se deposita na insistentemente reiterada doxa heteronormativa. A sua sistemática repetição confere uma inteligibilidade ao
“outro” que, porque “menos masculino”, só pode ser homossexual e, portanto, inferior.16
Não existe apenas o modelo da masculinidade hegemônica, mas uma gama variada de possibilidades de masculinidades,
que representam distintas posições de poder nas relações quer
entre homens e mulheres, quer entre os próprios homens (CONNELL, 1995), fortemente inluenciados por fatores como classe
social, etnicidade, entre outros, apresentando diferentes resultados. As escolas incidem nesse processo de construção na medida
em que lidam com diferentes masculinidades, especialmente ao
classiicarem seus estudantes como bons e maus, reforçando hierarquias de classe, raça/etnia e gênero (CARVALHO, 2009).
Seria necessário perceber que não são apenas os alunos os
que vigiam cada garoto “afeminado”, mas sim a instituição inteira. E todos o fazem à medida que, de maneira capilar e permanente, controlam os demais e a si mesmos. E mais: “Vira
homem!”, mesmo que potencialmente endereçável a todos os rapazes, costuma conigurar um gesto ritual por meio do qual seu
alvo é desqualiicado ao mesmo tempo em que seu enunciador
procura se mostrar como um indivíduo perfeitamente adequado
às normas de gênero. Assim, um professor que, aos berros, cobra
16
Não existe em contextos sexistas um correspondente do “Vire
homem, moleque!” para as meninas, Neles, “virar mulher” tende a ser
percebido como um desfecho fadado de uma feminilidade naturalmente
incrustada nos corpos das meninas ou, ainda, a se revestir de significados
negativos nas situações em que “mulher” se contrapõe à ideia de “virgem”.
111
TRANSPOSIÇÕES
de um aluno que vire “homem” pode sentir-se um emissor institucionalmente autorizado, orgulhosamente bem informado
pelas normas de gênero.
Valeria então ressaltar a existência plural, dinâmica, porosa e multifacetada de masculinidades e feminilidades. No entanto, ao percorrer as escolas, notamos facilmente a intensa generiicação dos seus espaços e de suas práticas, e o quanto as fronteiras
de gênero são obsessiva e binariamente demarcadas. Atividades,
objetos, saberes, atitudes, espaços, jogos, cores que poderiam ser
indistintamente atribuídos a meninos e a meninas tornam-se,
arbitrária e binariamente, masculinos ou femininos. São generiicados e transformados em elementos de distinção, classiicação
e hierarquização. A distribuição tende a ser binária e biunívoca,
e os critérios podem ser improvisados e imediatamente assumidos como naturais. A criatividade é facilmente posta a serviço da
heteronormatividade.
Airmações ou expressões heteronormativas como “meninos brincam com meninos e meninas com meninas”, “coisas
de mulher”, entre tantas outras, requerem problematizações. Por
que uma simples boneca ou um objeto rosa nas mãos de um garoto pode gerar desconforto e até furor? Uma criança não pode
preferir brincar com outras deinidas como pertencentes a um
gênero diferente do seu? Por que o atravessamento ou o borramento das fronteiras de gênero é tão desestabilizador? Seria possível existir uma masculinidade (heterossexual ou não) que permitisse livre trânsito de jogos, objetos, gestos, saberes, habilidades e preferências hoje entendidas como femininas? O mesmo
não pode se dar em relação às meninas e às “coisas de homem”?
São possíveis masculinidades ou feminilidades homo ou bissexuais? Feminilidades e masculinidades devem continuar a ser
atribuídas de maneira binária? Investir na oposição binária entre
masculinidades/feminilidades ou entre hetero/homossexualidades não seria reiterar ditames heteronormativos (BUTLER,
2003; JULIANO & OSBORNE, 2008)?
As escolas prestariam um relevante serviço à cidadania
112
Tal regime de controle compõe um cenário de estresse,
intimidação, assédio, agressões, não-acolhimento e desqualiicação permanentes, nos quais estudantes homossexuais ou transgêneros são frequentemente levados/as a incorporar a necessidade
de apresentarem um desempenho escolar irrepreensível, acima
da média. Estudantes podem ser impelidos/as a apresentarem
“algo a mais” para, quem sabe, serem tratados/as como “iguais”.
Sem obrigatoriamente perceber a internalização das exigências
da pedagogia do armário, podem ser instados a assumirem posturas voltadas a fazer deles/as: “o melhor amigo das meninas”,
“a que dá cola para todos”, “um exímio contador de piadas”, “a
mais veloz nadadora”, “o goleiro mais ágil”. Outros/as podem
dedicar-se a satisfazer e a estar sempre à altura das expectativas
dos demais, chegando até a se mostrar dispostos/as a imitar condutas ou atitudes atribuídas a heterossexuais. Trata-se, em suma,
de esforços para angariar um salvo-conduto que possibilite uma
inclusão consentida em um ambiente hostil, uma frágil acolhida,
geralmente traduzida em algo como: “É gay, mas é gente ina”,
que pode, sem diiculdade e a qualquer momento, se reverter
em “É gente ina, mas é gay”. E o intruso é arremetido ao limbo
( JUNQUEIRA, 2009).
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
e ao incremento da qualidade da educação17 se se dedicassem à
problematização de práticas, atitudes, valores e normas que investem nas polarizações dicotômicas, no binarismo de gênero,
nas segregações, na naturalização da heterossexualidade, na essencialização das diferenças, na ixação e reiicação de identidades, na (re)produção de hierarquias opressivas. Isso, porém, sem
desconsiderar que, graças às cambiantes operações da heterossexualidade hegemônica e obrigatória, impugnações do binarismo
de gêneros podem ser acompanhadas de novos métodos de normalização heterorreguladora.
Dentro ou fora da escola, as contínuas vigilâncias e repetições da doxa heteronormativa aprofundam o processo de distinção e elevação estatutária dos indivíduos pertencentes ao grupo
de referência – os heterossexuais – cujos privilégios possuem
17
Qualidade na educação tornou-se uma palavra de ordem em torno
da qual existem entendimentos distintos.
113
TRANSPOSIÇÕES
múltiplas implicações. A norma os presume, e sua incessante
reiteração garante maior sedimentação das crenças associadas
ao estereótipo, podendo levar a sua “profecia” a se cumprir ou a
exercer seus efeitos de poder na inclusão periférica ou na marginalização do “outro”, em termos sociais e curriculares.
Normalização, desumanização e direitos humanos
No cotidiano escolar, as normas de gênero podem aparecer em versão nua e crua das pedagogias do insulto e do armário.
Estudantes, docentes, funcionários/as identiicados como “não
-heterossexuais” são frequentemente degradados à condição de
“menos humanos”, merecedores da fúria homofóbica cotidiana
de seus pares e superiores, que agem na certeza da impunidade,
em nome do esforço corretivo e normalizador. Seus direitos
podem ser suspensos e contra eles/as pode ser despejada toda a
ira coletiva. As pessoas aí não agem em seus próprios nomes: o
que temos aí é a escola – a instituição e não apenas os colegas e
os superiores – mostrando-se cruamente como uma instituição
disciplinar (FOUCAULT, 1997). Seus dispositivos, técnicas
e redes de controle e de sujeição conseguem alcançar, microisicamente, cada espaço, situação e agente. Aqui, disciplinar
é mais do que controlar: é um exercício de poder que tem por
objeto os corpos e por objetivo a sua normalização, por meio
da qual uma identidade especíica é arbitrariamente eleita e naturalizada, e passa a funcionar como parâmetro na avaliação e
na hierarquização das demais. Ela, assim, recebe todos os atributos positivos, ao passo que as outras só poderão ser avaliadas
de forma negativa e ocupar um status inferior (SILVA, 2000).
Quem não se mostrar apto a ser normalizado torna-se digno
de repulsa e abjeção, habilitando-se a ocupar um grau inferior
ou nulo de humanidade.
Isso não necessariamente signiica que toda violência ou
arbitrariedade venha ao conhecimento dos setores formalmente
responsáveis pelo controle social da escola. Em uma instituição
disciplinar isso não é necessário, já que ali os agentes vigiam-se
114
No relato de uma diretora escolar, surge um “problema”: um
aluno de seis anos que, por ser considerado feminino, ela conclui
ser homossexual. Ela o aconselhou a “deixar de desmunhecar para
não atrair a ira dos outros”, ignorando os processos de reiicação,
marginalização e desumanização conduzidos pela instituição, bem
como toda a violência física a que ele é rotineiramente submetido.
Ora, somente uma fúria disciplinar heterorreguladora pode fazer
alguém identiicar/antecipar e atribuir (como em uma sentença
condenatória) homossexualidade a uma criança e não se inquietar
diante da violência a que é submetida, coletiva e institucionalmente.
Na esteira do processo de desumanização do “outro”, a indiferença
em relação a esse sofrimento e a cumplicidade para com os algozes
exprime um autêntico “estado de alheamento, isto é, uma atitude de
distanciamento, na qual a hostilidade ou o vivido persecutório são
substituídos pela desqualiicação do sujeito como ser moral, não reconhecido como um agente autônomo ou um parceiro (COSTA,
1997, p. 70).19 E só um profundo estado de alheamento poderia
fazer com que o curioso conselho – nítida expressão curricular da
pedagogia do armário – seja considerado aceitável.20
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
mutuamente e cada um vigia a si mesmo.18 De todo modo, não
é incomum que dirigentes escolares mostrem-se desorientados,
indiferentes ou alheios em relação a casos de ostensiva opressão
heterossexista. Não raro, eles parecem preferir não ver o não tomar providência com o rigor necessário. Mesmo quando admitem a ocorrência de tais atos, eles diicilmente os reconhecem
enquanto manifestação de heterossexismo ou homofobia ( Junqueira, 2009a).
18
Não por acaso, Foucault (1997) nos pergunta se ainda devemos
nos admirar que prisões se pareçam com fábricas, escolas, quartéis, hospitais
e que estes se pareçam com prisões.
19
Processos de desumanização também degradam e aviltam quem
agride e objetiica o “outro”, similarmente ao que se dá nos casos de tortura,
nos quais o torturador busca prazer no aniquilamento alheio, na vã esperança
de superar a própria (im)potência.
20
“Quando nos convencemos de que um grupo não vale nada, é subumano, estúpido ou imoral, e desumanizamos os seus membros, podemos
privá-los de uma educação decente, sem que nossos sentimentos sejam afetados” (ARONSON, 1979, p. 187).
115
TRANSPOSIÇÕES
É patente a insuiciência do discurso dos direitos humanos
frente à fúria normalizante das pedagogias do insulto e do armário. A livre expressão de gênero e do desejo é um direito humano
(INTERNATIONAL COMMISSION OF JURISTS, 2007).
Porém, diante da sanha (hetero)normalizadora, é preciso reter
que processos disciplinares voltados à normalização de indivíduos são responsáveis por impossibilitá-los de se constituírem como
sujeitos autônomos (FONSECA, 1995). Juntos, normalização,
heteronomia e alheamento produzem pedagogias e um currículo
em ação a serviço do enquadramento, da desumanização e da marginalização. Porque cerceadora da autonomia do sujeito, a heteronormatividade conigura uma violação dos direitos humanos. Por
isso, Jaya Sharma (2008) considera inútil falar em direitos humanos de maneira abstrata e genérica: além de duvidar de formulações vagas e bem-intencionadas, é indispensável enfrentar crenças
e valores especíicos que alimentam a hostilidade.21
Negação, silenciamento e desprezo pelo feminino
O preconceito e a discriminação contra lésbicas e a lesbianidade parecem igurar entre as menos perceptíveis formas de heterossexismo e homofobia, inclusive nas escolas.22 Com efeito, a
maior parte dos relatos de docentes referem-se a heterossexismo
e homofobia quase que apenas contra estudantes de sexo masculino. Isso, de um lado, faz pensar na vigilância obsessiva das normas de gênero na construção e no disciplinamento dos sujeitos
portadores da identidade de referência, a masculina heterossexual.
De outro, remete-nos a processos sócio-históricos de interdição e
21
A defesa com bases essencialistas das homossexualidades traduzem
uma ânsia por autorização, concessão, aquiescência ou clemência. Ela não
implica avanço ético e político algum, pois advoga pelo reconhecimento do
inevitável e não da legitimidade de um direito. Na esteira desse conformismo,
encontra-se a rejeição do termo “opção/escolha sexual”, em favor de uma
noção essencialista de “orientação sexual”. Ver: SOUSA FILHO (2009).
22
O fato de a sociedade aceitar certas manifestações de afeto entre
as mulheres costuma ser percebido como uma maior tolerância em relação
à lesbianidade. O que talvez esteja se tornando apenas midiaticamente mais
palatável é o par que reúne mulheres “femininas”, brancas em relações estáveis
e sem disparidade de classe ou geração (BORGES, 2005). Algo relativamente
análogo talvez ocorra nos casos de homens homossexuais mais masculinos ou
não-afeminados.
116
O preconceito, a discriminação e a violência que, variadamente, atingem homossexuais masculinos ou femininos e lhes
restringem direitos básicos de cidadania, se agravam signiicativamente sobretudo em relação a transgêneros. Essas pessoas, ao construírem seus corpos, suas maneiras de ser, expressar-se e agir, não
podem passar incógnitas, pois tendem a se mostrar pouco dispostas a se conformar à pedagogia do armário. Situadas nos patamares
inferiores da “estratiicação sexual” (RUBIN, 1992), veem seus direitos serem sistematicamente negados e violados sob a indiferença
geral.24 Nas escolas, elas tendem a enfrentar obstáculos para se matricular, participar das atividades pedagógicas, ter suas identidades
respeitadas, fazer uso das estruturas escolares (como os banheiros)
e preservar sua integridade física. Embora o campo da saúde pública pareça ser relativamente mais aberto ao reconhecimento dos direitos das pessoas transgênero, por que nas escolas brasileiras é ainda muito difícil conseguir garantir-lhes o direito de serem tratadas
de uma maneira em que se sintam seguras e confortáveis e, sobretudo, humanas? Até quando o nome social das pessoas transgênero
será confundido como uma veleidade ou uma espécie de apelido?
Trata-se, em vez disso, de um fator que representa o resgate da dig-
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
silenciamento do feminino e da mulher, seu corpo e sua sexualidade. As normas de gênero e seus regimes de vigilância e controle geralmente não exigem que mulheres exorcizem a masculinidade e
a homossexualidade para serem reconhecidas como tais. Os “delitos femininos” são outros: o infanticídio (o aborto), a prostituição
e o adultério (JULIANO & OSBORNE, 2008). Nesta lógica de
negação e subalternização do feminino e do corpo da mulher, a
lesbianidade não existiria como alternativa.23
23
Nas escolas o beijo entre as meninas tem preocupado muitos/as
dirigentes escolares. A pedagogia do armário lhes oferece amparo curricular:
de um lado, um discurso procura esvaziá-lo de seu possível conteúdo transgressivo e desestabilizador, banalizando-o, deinindo-o como “moda”, “coisa
passageira”, de outro, dispõe de medidas disciplinares para inibi-lo e cerceá
-lo.
24
Travestis são a parcela com maiores diiculdades de permanência
na escola e inserção no mercado de trabalho (PERES, 2009). Os preconceitos e as discriminações a que estão cotidianamente submetidas incidem diretamente na constituição de seus peris sociais, educacionais e econômicos,
os quais são usados como elementos legitimadores de novas discriminações e
violências contra elas.
117
TRANSPOSIÇÕES
nidade humana, o reconhecimento político da legitimidade de sua
identidade social e do direito à autodeterminação de gênero.
O currículo em ação eclode e se explicita nas atitudes cotidianas de docentes frente à diferença. Com efeito, ao se recusar a chamar uma estudante travesti pelo seu nome social, o/a
professor/a ensina e incentiva os/as demais a adotarem atitudes
hostis em relação a ela e à diferença em geral. Trata-se de um dos
meios mais eicazes de se traduzir a pedagogia do insulto e o currículo em ação em processos de desumanização, estigmatização
e exclusão e, assim, de reforçar ulteriormente os ditames que a
pedagogia do armário exerce sobre todo o alunado.
É importante chamar a atenção para esse quadro de rebaixamento, marginalização, exclusão, pois processos de normalização com epicentro na matriz heterossexual também podem
se relacionar a processos sutis de invisibilização das violações.
Exemplo disso é a espacialização – procedimento crucial dos
dispositivos de poder, acompanhado de naturalizações que tornam imperceptíveis (e legitimam) interdições e segregações. É
um dos aspectos centrais de uma pedagogia que se desdobra na
esteira dos processos de divisão, distinção e classiicação que o
currículo continuamente opera em termos normativos. Quando informada pelas normas de gênero, a espacialização implica a
negação do direito do uso do banheiro a travestis e transexuais.
Uma violação de seus direitos de autodeterminação de gênero
que comporta a legitimação de um arsenal disciplinar voltado
a assegurar a observância das normas de gênero, reiterar distinções e naturalizar segregações – com efeitos sobre todos/as.
À guisa de concluir: Pedagogia do armário x qualidade da
educação
Seria um equívoco pensar que heterossexismo e homofobia se manifestam de modo fortuito ou isolado nas escolas, como
uma mera herança cujas manifestações a instituição meramente
admitiria. A heteronormatividade está na ordem do currículo e
do cotidiano escolar. A escola consente, cultiva e promove homo118
Ademais, a força pedagogia do armário parece residir inclusive na sua capacidade de garantir a não-nomeação de suas
violências, o silenciamento de seus alvos e o apagamento de seus
rastros. Não por acaso, nos relatos coletados, foi infrequente o
uso dos termos homofobia e heterossexismo. Mencionar sujeitos
e violações a que estão submetidos poderia implicar processos de
reconhecimento não só de suas existências sociais, mas de suas
condições como sujeitos de direitos26 - passo importante para se
enfrentarem as hierarquias e os privilégios que os processos de
invisibilização que o armário nutre ou produz.27
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
fobia e heterossexismo, repercutindo o que se produz em outros
âmbitos e oferecendo uma contribuição decisiva para a sua atualização e o seu enraizamento. Não raro também informados pelo
racismo e pelo classismo, heterossexismo e homofobia atuam na
estruturação deste espaço e de suas práticas pedagógicas e curriculares (HOOKS, 1989; CRENSHAW, 1991; PLATERO,
2012). Ali, ela fabrica sujeitos e identidades, produz ou reitera
regimes de verdade, economias de (in)visibilidade, classiicações, objetivações,25 distinções e segregações, ao sabor de vigilâncias de gênero que exercem efeitos sobre todos/as.
25
Não raro, professoras anteciparam uma homossexualidade nas
crianças após identificarem em certas expressões de gênero delas alguma
dissintonia em relação às normas de gênero.
26
Não raro, as narradoras posicionam-se como observadoras
externas, apresentando dificuldade para se perceberem como parte do
problema – como se as relações ali construídas, as práticas pedagógicas
adotadas, as normas e as rotinas institucionais não fossem socialmente
relevantes na naturalização da heterossexualidade hegemônica, na heterossexualização compulsória e na legitimação da marginalização dos/as
“diferentes” ou “anormais”.
27
Em vários relatos nota-se uma ausência de indignação e uma forte
busca de auto-apaziguamento. Uma mescla de ingredientes (conformismo,
resignação, dor, indignação, descontentamento, desconforto, compaixão,
impotência, indiferença) alia-se a uma falta de motivação para sair em busca
de alternativas mais eicazes, coletivamente construídas. Ao sabor das disposições da pedagogia do armário, as providências são paliativas ou equivocadas
e não apontam para nenhuma articulação social ou política. Muitos encaminhamentos parecem informados por um modo de ver que não leva à mudança. Não raro, discursos perfazem um deslocamento nos processos de atribuição de responsabilidades, que migram do grupo e da instituição, autores da
violação, para o alvo da discriminação direta. Uma ação heterorreguladora da
economia da culpa da pedagogia do armário.
119
TRANSPOSIÇÕES
Na esteira dessa pedagogia, entre bem-pensantes é recorrente o entendimento de que respeitar o “outro” seria um gesto
humanitário, expressão de gentileza, delicadeza ou magnanimidade. Uma espécie de benevolente tolerância que deixa ilesas hierarquias, relações de poder e técnicas de gestão das fronteiras da
normalidade. Informadas por uma matriz de conformação, pessoas com distintos graus de preconceitos costumam se perceber
dotadas de atributos positivos por crerem-se portadoras de certa
sensibilidade em relação às vítimas – uma dose de compaixão,
em função da qual o “outro” recebe uma aquiescente autorização
para existir, em geral, à margem e silenciado. Na escola, antes de
falar em respeito às diferenças, vale questionar processos sociocurriculares e políticos por meio dos quais elas são produzidas,
nomeadas, (des)valorizadas. Não basta denunciar o preconceito
e apregoar maior liberdade: é preciso desestabilizar processos de
normalização e marginalização. Muito além da busca por respeito e vago pluralismo, vale discutir e abalar códigos dominantes
de signiicação, desestabilizar relações de poder, fender processos de hierarquização, perturbar classiicações e questionar a
produção de identidades reiicadas e diferenças desigualadoras.
Não é de pouca monta investir na desconstrução de processos sociais, políticos e epistemológicos, próprios da pedagogia
do armário, por meio dos quais alguns indivíduos e grupos se
tornam normalizados ao passo que outros são marginalizados.
Diante das possibilidades, descontinuidades, transgressões e
subversões que o trinômio sexo-gênero-sexualidade experimenta e produz, vale resistir à comodidade oferecida por concepções
naturalizantes que separam sexo da cultura e oferecem suporte a
representações essencialistas, binárias e redutivistas em relação a
corpo, gênero, sexualidade, identidades etc. (LOURO, 2004b).
Processos de coniguração de identidades e hierarquias
sociais nas escolas também estão relacionados à desigualdade
na distribuição social do “sucesso” e do “fracasso” educacionais.
É previsível que ambiências preconceituosas desfavoreçam o
rendimento das pessoas que são alvo de preconceito e discriminação direta. No entanto, a “Pesquisa sobre preconceito e discriminação no ambiente escolar” (BRASIL, INEP, 2009) vai
120
A escola é um espaço onde o naturalizado e tido como
incontornável pode ser confrontado por pedagogias dispostas a
promover releituras, reelaborações, diálogos e modos de ser, ver,
classiicar e agir mais criativos. Ali, “táticas criações de práticas
de vida” (DE CERTEAU, 1998) podem ensejar invenções de
formas de conviver, ensinar, aprender, em favor da reinvenção e
a digniicação da vida.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
além: revela uma correlação negativa entre ambiência escolar
discriminatória e desempenho escolar do conjunto do alunado.
Ao produzirem e alimentarem privilégios e discriminações, ambiências escolares tendem a comprometer o rendimento escolar
médio de todos/as.
Se um jovem sai de uma escola obrigatória
persuadido de que as moças, os negros ou os
muçulmanos são categorias inferiores, pouco
importa que saiba gramática, álgebra ou uma
língua estrangeira. A escola terá falhado drasticamente (PERRENOUD, 2000, p. 149).
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125
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
UM TEMA QUE NãO “OUSAS DIzER
O NOME”1: AS REPRESENTAÇÕES
EXISTENCIAIS DE PROfESSORE(A)
S ACERCA DA SEXUALIDADE DE
JOVENS COM DEfICIÊNCIA MENTAL/
1
INTELECTUAL
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
6
Hiran Pinel 2
Paulo Roque Colodete 3
Rogério Drago 4
Introdução
A Deiciência Mental (DM) tem sido reconhecida
1
Oscar Wilde (1854-1900), referindo-se ao tema homossexualidade, defendendo os modos dele ser sendo gay junto ao outro no mundo gay
de sua época dizia do amor que não “ousas dizer o nome”. Não se “ousava”, no
recinto da justiça inglesa, dizer “homossexualidade” – mas o termo traz mais
signiicados sentidos.
2
Professor Associado da Universidade Federal do Espírito Santo,
Centro de Educação, Departamento de Teorias do Ensino e Práticas Educacionais, Programa de Pós-Graduação em Educação – UFES/ CE/ DTEPE/
PPGE. Pós-doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais – FAE/ UFMG. Líder da linha de pesquisa: “Diversidade e Práticas Educacionais Inclusivas”. Temas de investigação:
Educação Especial, Inclusão, Psicopedagogia e Pedagogia Social.
3
Doutor (e Mestre) em Educação pelo Programa de Pós Graduação
em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
na Linha de Pesquisa “Diversidade e Práticas Educacionais Inclusivas”. Enfermeiro, psicólogo, professor, pesquisador.
4
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Pós-Doutor
em Educação pelo PPGE/CE/UFES; Doutor em Educação pela PUC-RJ.
Membro da linha de pesquisa de Diversidade e Práticas Educacionais Inclusivas, onde coordena o GEPEI – Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
e Inclusão.
127
TRANSPOSIÇÕES
como uma experiência com a qual professores e educadores
desvelam profunda diiculdade em lidar com ela na sala de
aula escolar e não escolar, sendo esse um dos anteparos para se
promover efetivamente a inclusão. Drago (2012; 2013), fundamentando-se na LDB 9394/ 1996, airma que esse aparato
legal determina e valoriza o acesso e a permanência na escola
regular dos sujeitos com deiciência, mas ao mesmo tempo reairma que “algumas dessas pessoas ainda enfrentam uma série de
problemas quanto à efetivação de sua matrícula e permanência
na escola” (DRAGO, 2014, p. 3).
Será o próprio Drago, associado a Pinel (2014), que irá
destacar as vicissitudes enfrentadas pelo aluno (e ou educando)
com DM, dizendo perceber,
[...] que, entre o grupo de pessoas com deiciência (mental, visual, auditiva, cegas, surdas,
dentre outras), as que enfrentam mais barreiras em relação à inclusão nas salas comuns da
educação em todos os seus níveis são aquelas
que apresentam deiciência mental e transtornos globais do desenvolvimento, o que inclui
as pessoas com Síndromes de Down, Autismo, Asperger, Williams, dentre outras (p. 3).
Também denominado, muitas vezes no senso comum,
Retardo Mental (RM), esse quadro, apresenta com antecedentes
problemas neurobiológicos (VASCONCELOS, 2004) e fatores hereditários,
[...] alterações precoces do desenvolvimento
embrionário, problemas de gravidez e perinatais, transtornos mentais (autismo e outros
transtornos globais do desenvolvimento –
TGD), condições médicas contraídas no início da infância e inluências ambientais e outros transtornos mentais (privações de afeto
e de cuidado, por exemplo) – (DSM-IV-TR,
2002; p. 77).
Essa problemática traz consequências e que, por exemplo, na Educação Especial, que assume uma perspectiva inclusiva, denomina de Deiciência Intelectual – DI (PINEL, 2011).
A consequência da DM na escola, agora chamada DI, é des128
A expressão da sexualidade (e consequentemente sua repressão) tem sido considerada como um fator que pode perturbar o desenvolvimento-aprendizagem (de impacto no desempenho acadêmico) do jovem discente com DM (DI) estando ele
na sala de aula escolar e atendido pela Educação Especial Inclusiva – trata-se às vezes de criar um espaço livre e aberto para discussão do tema, em um movimento de uma Didática (Erótica? 5)
de afetar pela relação pedagógica e psicopedagógica, as informações, os sentimentos, as emoções, os desejos, os raciocínios, dentre outros aspectos. Destarte, “O que convém aos nossos encontros amorosos é um quarto bem fechado, e geralmente cobrimos
com um véu o que seria indecente mostrar. Procuramos, se não
as trevas, ao menos uma penumbra discreta e um local de menor
claridade que o pleno dia” (OVÍDIO, 2005; p. 146).
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
crita como aquele discente com nível baixo de funcionamento
intelectual e pobre adaptação (DSM-IV-TR, 2002; AMIRALIAN, 1986). O termo DI descreve melhor ao professor algo
indissociado à sua prática (e possivelmente práxis) pedagógica
e psicopedagógica.
Entretanto, a sexualidade é ainda um tabu em muitas
culturas, sociedades – a escola e seus agentes não estão livres
de preconceitos, e há mesmo um movimento de resistir em desenvolver práticas didáticas inventivas e criativas escolares que
abordem a sexualidade desses alunos e/ou alunas. Há um temor
– a sexualidade nos ameaça, e no máximo o que pode acontecer
dentro do aparelho escolar é a biologização daquilo que é sexual,
e que carece ser abordado nos aspectos afetivos, sensitivos, prazerosos, orgásticos, etc.
Há por assim dizer uma queixa geral de pesquisadores
de que a sexualidade não é abordada na escola seja para qual tipo
de aluno e ou aluna for.
5
Didática Amorosa ou Erótica: quando um sujeito ensinante
assume intencionalmente o papel de professor/educador de/do amor em
todos os seus sentidos, seja ele heterossexual, homossexual e ou bissexual
(ou...), sendo seu porta-voz em um modelo maior “inspirativo” em Ovídio,
autor de “A Arte de Amar” (2005; os dois primeiros volumes foram escritos
entre 1 a.C. e 1 d.C., e o terceiro, foi escrito depois).
129
TRANSPOSIÇÕES
Caminhos e trajetos
Diante do exposto anteriormente, o objetivo desse artigo
é o de descrever e analisar Representações Existenciais/ RE 6 de
professores/professoras de uma escola pública capixaba acerca
da sexualidade de seus/suas discentes jovens com DI/DM. Trata-se, portanto de uma investigação fenomenológica que pensa
“ao mesmo tempo a exterioridade e a interioridade” (MERLEAU-PONTY, 1990, p. 156).
Estudos da representação, como a Representação Social,
tem sido associado a Fenomenologia como em Sodré (2004):
“As representações são, então, apresentadas como componentes
simbólicos na estruturação dos laços sociais e identidades, em
estreita relação com as experiências, as práticas, narrações e discursos históricos dos agentes sociais” (p. 75).
Representação Existencial/ RE, diz-nos Pinel (2004),
pode ser entendida aqui-agora como um ato-sentido de representar algo, que de tão fortemente vivido (na existência), tornase uma realidade, algo concreto – inventado, mas sempre a nos
tocar. Trata-se de um conjunto de explicações, crenças e ideias,
que na existência, podem acabar por evocar e ou se relacionar a
um dado acontecimento, pessoa e ou objeto – ou aos três elementos de uma só vez, ou dois. Essas representações existenciais
(em estado de subjetivação) são descritas e ou narradas por uma
pessoa, mas como ela é social, cultural e historicamente marcada/produzida, podemos sugerir que elas são construídas também nas relações interpessoais e sociais, no existir delas interiorizadas subjetivamente 7.
Os estudos das RE subsidiam as atitudes, o clima, o es6
Trata-se de um método, desse modo trabalhado, ainda em exploração – sendo esse um dos limites dessa pesquisa/ investigação fenomenológica. Partimos do pressuposto de que a pessoa representa, e por isso é; e “é” no
sentido de um dos “modos de ser sendo junto ao outro no mundo” (2004).
7
Objetivamos uma “pesquisa de representação existencial” que nos
reporta à possibilidade de estudá-la por um método de inspiração fenomenológico-existencial, donde o iccional (representação) é fenômeno denominado “modo de ser sendo junto ao outro no mundo” (PINEL, 2004).
130
O método de pesquisa da RE parte do princípio que o ser (sendo junto ao outro no mundo) foi jogado na sociedade/ cultura sem sua
anuência explícita e a sua tarefa aqui-agora é a
de viver e a relacionar-se nesse mesmo mundo, criando/ produzindo/ inventando ações
de sentido junto ao outro (como parte de si).
Essas ações, não raras vezes, são preconceituosas também – não só, mas também. Trata-se,
nessa modalidade de pesquisa, de compreender as representações existenciais criadas pelo
sujeito (ou pelos sujeitos) no seu existir no
mundo, ser-no-mundo que é sendo, impondo
sempre um envolvimento existencial com o
fenômeno representacional e dele, ao mesmo
tempo, se distanciando, produzindo signiicados sentidos acerca do que existiu na sua
carne, então uma representação (teatro) que se
desvela concretamente (PINEL, 2004; p. 97).
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
tilo, o espírito do entendimento (e compreensão) do professor
frente ao tema sexual advindo de discentes diagnosticados (e rotulados) como DM/DI, gerando nele, na sua subjetivação, pensamentos, sentimentos e ações.
Pinel (2003) recomenda os passos gerais para realizar
estudos do que denominamos de
[...] método de pesquisa de RE: a) uma postura constante de envolvimento existencial e
distanciamento relexivo do fenômeno dado
– posturas/ atitudes vividas junto ao outro no
mundo, e mundo como foco da RE de uma determinada sociedade também; 2) escolha do
tema de pesquisa ou interrogação que privilegie a subjetividade representacional indicada
pela experiência, como um processo vivido
como ação, narração, linguagem, simbolismo,
identidade e alteridade – a representação é o si
mesmo junto ao outro no mundo; 3) elaboração do projeto de pesquisa – sempre estratégico, ou seja, aberto às mudanças quando nos
colocamos no vivido do campo; 4) produção
dos dados – podemos então defender - que no
campo ou mesmo trabalhando com bibliograias e imagens, por exemplo - juntos somos
capazes de produzir algo, pois o que o outro
diz e ou faz (e sente) tem muito da nossa presença no mundo – uma presença de sentido;
131
TRANSPOSIÇÕES
5) fazer inúmeras leituras dos depoimentos/
livros/ imagens etc., dos mais diversos modos,
– através de sistemática postura/ atitude de
envolvimento e distanciamento do fenômeno
– postura que acompanha todo o processo; 6)
procura cuidadosa de criar Guias de Sentido –
GS – um guia sempre inconcluso, incompleto, inacabado – interno e externo; 5) escrita
do texto cientíico, privilegiando a invenção
de um discurso literário/ artístico advindo do
fato jurídico - ou do que seja uma verdade. Na
RE o sujeito pesquisado fala de “um outro” –
de não si - e esse outro, nessa produção discursiva, pode representar esse mundo [no caso,
sociedade] (PINEL, 2003, p. 95).
Seguindo este contexto foram produzidos dados de cinco professoras (sexo feminino) e dois professores (sexo masculino), todos com curso superior completo e todos com pós-graduação lato sensu (sendo duas professoras com o título de mestrado), entre 30 a 50 anos de idade, que estão, inclusive, a vivenciar
(no momento) a presença de um aluno com Síndrome de Down
na 8ª série do ensino fundamental de uma mesma escola pública
da Grande Vitória, ES.
Individualmente foi entregue a cada sujeito uma folha
de papel A-4 e nela digitada um quesito interrogativo: A partir de suas experiências na sala de aula, qual a representação que
você tem da sexualidade de um aluno ou aluna descrito/a como
DM ou DI?
Fomos conversar individualmente com cada proissional acerca das respostas escritas objetivando capturar os sentimentos e os pensamentos (e ações) quando responderam ao
quesito, e pudemos ampliar. Coletamos e produzimos tais dados
independente do conceito deles do que seja DM/DI – se cientíico ou não.
De posse das respostas, fez-se uma análise de conteúdo
criando Guias de Sentido (GS) e produziu-se análise a partir daí.
No sentido progressista e humanista-existencial, consideramos que classiicações de problemas humanos (tema da
132
Outro aspecto das classiicações e dos diagnósticos é
que, em nossa opinião, eles servem se nos provocarem a planejar,
executar e avaliar intervenções e interferências de ajuda, apoio e
cuidado, ainal nós temos a capacidade/ habilidade/ atitude de
“ser mais” (FREIRE, 2010).
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Patologia e ou Psicopatologia) só têm signiicado dentro de um
contexto cultural, social e histórico. Os problemas, os transtornos, os desvios – apenas assim o são, quando apoiados por esses
contextos. Outros contextos diferenciados não considerariam
“isso-daí” que pontuamos, como doenças, patologias etc.
Os modos de sendo da pessoa indica um desejo de conhecer/ sentir/ agir si mesmo (junto ao outro no mundo), em
prol de sua liberdade – uma liberdade experiencial e prenhe de
social, político, econômico, midiático etc.
As rotulações que tendem a engessar o sujeito - na sua
identidade - naquilo que o diagnóstico considera como falta,
mascara o real (versus iccional) de ser inconcluso, inacabado,
relacional, aberto, em devir, indissociado ao outro, impedindo
desvelar na representação, o que é (sendo).
Jovem, inclusão, sexualidade, deiciência e intervenção
Representações
Nosso objetivo aqui-agora é o de produzir uma pequena revisão de literatura que abarque nossa temática de modo
direto ou não. Escolhemos intencionalmente três livros e dez
artigos cientíicos.
Kropotkin (1998) diz que a questão vital do jovem é:
“O que eu me tornarei?”. Partindo da premissa de que o processo
ensino-aprendizagem depende de uma relação professor-aluno
mais inventiva e provocativa, os preconceitos contra as expressões sexuais de alunos/alunas com DM/DI, só tenderão a facilitar ao jovem discente tornar-se algo desumano impregnado de
133
TRANSPOSIÇÕES
coisiicação, com autoestima baixa. O jovem é “coisa”, é objeto
– não é humano na sua autonomia diante do outro. Tornar-se-á
subserviente, dominado, dependente, acossado dentro de um
clima quase persecutório – humano, mas desumanizado.
Pinel (2002) investigou a Representação Fenomenológica-Existencial de ser deiciente frente à sexualidade no cinema,
detectando modos de ser sendo junto ao outro no mundo do
enfrentamento e resiliência, donde esses valores e atitudes predominam também na sexualidade, que nem sempre é explicitamente abordada. Observou que o cinema é geralmente catártico, e que inais positivos faz parte da obra de arte na indústria
que a subsidia.
Giami (2004) estudou as representações sociais [RS]
das diferenças focando nos temas sexualidades e deiciência
mental, e para isso coleta dados, detectando como algo problemático entre pais e professores acerca de pessoas com DM/DI
internadas em quatro instituições. As conclusões do autor quanto aos educadores podem ser assim sintetizadas: há uma complexa RS de que os indivíduos com DM/DI têm uma sexualidade
mais selvagem (algo que descontrolada) e de difícil educação
mesclando numa representação de que eles são inibidos e embotados. Já quanto aos pais: as RS destacam de modo acentuado
os componentes afetivos de seus próprios rebentos, tornando-as
dessexualizadas, crianças “ad eternas”.
Segundo Kempton (1983) a associação DM/DI e sexualidade, faz emergir um conjunto de atitudes, por parte dos pais
e dos proissionais. Tais atitudes favorecem muito mais a repressão da sexualidade desses jovens do que a sua experiência que é
saudável. Esse autor então classiica três tipos de atitudes diante
da sexualidade desse jovem: a) os jovens são eternas crianças; b)
são seres infra-humanos (seres grosseiros com instintos animalescos); c) pessoas em desenvolvimento: que são pessoas com
desenvolvimento sexual diferenciado da maioria, mas normal;
são seres humanos com plenos direitos em todas as áreas da vida,
incluindo a sexual.
134
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Maia e Camossa (2002), por sua vez, trabalharam com
jovens deicientes mentais escutando deles relatos sobre a sexualidade, e para isso criaram e aplicaram diversos instrumentos
que facilitaram as expressões orais desses sujeitos: 1) Desenho
da Figura Humana; 2) Apresentação de bonecos da família
sexuada; 3) Apresentação de pranchas dos temas: namoro, casamento, masturbação, jogos sexuais, menstruação, relação sexual, gravidez, parto, amamentação e abuso sexual. As autoras
concluíram que esses jovens: a) têm noção de identidade e papéis sexuais; b) diferenciam e nomeiam órgãos sexuais humanos, especialmente o órgão sexual masculino adulto; c) apesar
de saberem nomeá-los, nem todos sabem sua função; d) com
frases curtas e objetivas os jovens mostraram os conceitos sobre
os diferentes temas apresentados.
As estratégias utilizadas pelas autoras foram eicientes
para incentivar o relato de jovens com limitação intelectual em
temas complexos como a sexualidade. No mesmo texto as autoras reconhecem que a “sexualidade da pessoa com deiciência
mental é inegável, pois, como atributo humano, ela é inerente
a qualquer pessoa a despeito de limitações incapacitantes de
cunho biológico, psicológico ou social” (p.1). Concordamos
ainda com Maia e Camossa de que, ainda que o “grau do retardo possa inluenciar sobremaneira a capacidade de manifestar
e vivenciar vínculos afetivo-sexuais, a maior problemática do
deiciente mental não está na sua condição biológica ou nos déicits intelectuais, mas sim na diiculdade da sociedade em lidar
com a manifestação e com a educação sexual da pessoa deiciente mental” (p.1).
Maia e Ribeiro (2010) são autoras que abordam num
estudo ideias preconceituosas sobre a sexualidade de pessoas/
discentes com DM/DI discorrendo, de modo crítico e relexivo,
sobre diversos mitos, tais como:
(1) pessoas com deiciência são assexuadas:
não têm sentimentos, pensamentos e necessidades sexuais; (2) pessoas com deiciência são
hiperssexuadas: seus desejos são incontroláveis
e exacerbados; (3) pessoas com deiciência são
pouco atraentes, indesejáveis e incapazes para
135
TRANSPOSIÇÕES
manter um relacionamento amoroso e sexual;
(4) pessoas com deiciência não conseguem
usufruir o sexo normal e têm disfunções sexuais relacionadas ao desejo, à excitação e ao
orgasmo; (5) a reprodução para pessoas com
deiciência é sempre problemática porque são
pessoas estéreis, geram ilhos com deiciência
ou não têm condições de cuidar deles (p. 1).
O ato de acreditar nesses mitos (como se verdades fossem, e que assim se cristalizam) desvela um modo preconceituoso e estigmatizante de entender e de compreender a sexualidade
de discentes com deiciência em geral, e especiicamente com
DM/DI, como sendo desviante. Mas esse desvio só o é a partir
de padrões deinidores de normalidade e isso se torna um anteparo ou barreira para a aprendizagem e o desenvolvimento de
vida afetiva e sexual plena dos sujeitos objetos de preconceitos.
Uma proposta pedagógica pode ser a de esclarecimento, desvelando os mitos que aí se mostram, ou seja, seus modos de superar a discriminação social e sexual que prejudicam os diversos
sentidos positivos do que venha a ser uma sociedade (escola e
professor) inclusiva.
Nesse caminho, Bastos e Deslandes (2005) fazem uma
revisão bibliográica sobre o tema sexualidade e o adolescente
com deiciência mental indissociado às repercussões familiares
do adolescer. Os resultados obtidos mostram,
[...] que os pais se deparam com novos desaios para a integração social dos seus ilhos
com deiciência mental quando estes chegam
à adolescência, especialmente com o despertar de sua sexualidade genital. Os trabalhos
corroboram que os preconceitos no campo
da sexualidade ainda estão presentes. Fica
evidente o temor diante das manifestações
sexuais desses adolescentes, como a masturbação, e a diiculdade dos pais em lidar com
a situação. Pelo receio do abuso sexual e da
gravidez decorrente, métodos contraceptivos,
inclusive a esterilização, são discutidos. A revisão da literatura indica, enim, que o desenvolvimento da sexualidade se dá igualmente nos
adolescentes com e sem deiciência, mas são
atribuídas representações distintas aos dois
136
Moura e Cavalcanti (s/d) também fazem um estudo bibliográico objetivando pesquisar os modos como pais e professores pensam, sentem e agem na sexualidade de discentes com
DM/DI na escola. A partir daí levantaram duas interrogações:
1) Existem mitos e estereótipos a respeito da sexualidade nas
pessoas com DI? 2) Como a temática sexualidade vem sendo
abordada no ambiente escolar? Os autores concluem que o
tema tal qual se propõem estudar ainda é pouco produzido e
ao responder cada questão: 1) encontraram que apenas dois artigos abordam a temática; esses artigos apregoam ações contra
os mitos e estereótipos que só prejudicam o desenvolvimento
e aprendizagem escolar dos sujeitos com DI; as pessoas e alunas com DI são vistas como anjas (puras, sacrossantas) e feras
(hipersexuadas, demoníacas); 2) encontraram também apenas
dois artigos; a inclusão escolar ainda falta muito para ser efetivada, mas os professores andam cuidando de si e aceitando
mais as diversidades; a discussão sexual é mais comum entre
discentes, do que entre professores; o tema é pouco debatido
ainda, pois causa preconceito e vergonha; no âmbito da Educação Especial pouco tem sido realizado no que se relaciona à
sexualidade nos DI – e isso ocorre também em escola comum.
Mesmo que os PCN’S contemplem a Educação Sexual, a escola
prossegue rígida ao tema, uma instituição preconceituosa. Os
artigos destacam a esperança de produção de intervenções na
escola acerca da temática.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
grupos. Conclui-se que a ampliação do debate
aos pais e adolescentes com deiciência pode
contribuir para que eles tenham uma vivência
da sexualidade com menos estigmas, menos
exposta a riscos e, consequentemente, mais
satisfatória (p. 1).
Para Maia (2001) a sexualidade é parte indissociada de todo
o ser humano e sua manifestação independe da presença ou ausência de uma ou mais deiciências – é ser humano, tem sexualidade e a
expressa de algum modo. A importância desse tema na investigação
em Educação Especial, concordamos com a autora, acontece se objetivamos buscar ações alternativas de orientação mais adequadas, pertinentes e éticas – e estéticas, acrescentaríamos isto pelo fato de que,
137
TRANSPOSIÇÕES
Comumente a família, os proissionais e os
professores, seja por ingenuidade, desconhecimento ou ainda por despreparo, tratam a
sexualidade de acordo com crenças, preconceitos e ideias distorcidas, atribuindo aos
deicientes uma sexualidade com limitações
ou com exageros. As possíveis elaborações
de programas de orientação sexual demandariam preliminarmente uma investigação
sobre as concepções que os educadores têm
acerca da sexualidade das pessoas com deiciência. Isso possibilitaria acréscimos metodológicos (de conteúdo e de estratégias) para
consolidar futuras propostas de ações educativas voltadas à sexualidade do deiciente,
seja qual for a condição da deiciência e sua
possível limitação social (p. 35).
Intervenções
Furlani (2011) classiica as abordagens atuais para intervenção/interferência em Educação Sexual, descrevendo a
biológica-higienista, a moral-tradicionalista, a terapêutica, a
religiosa-radical. E depois a autora prossegue citando as abordagens mais positivas, ou seja, as mais planejadas contemporaneamente quando o professor está interessado em sair da mesmice do moralismo, do conteudismo biológico (e da higiene),
do sentido de considerar toda expressão sexual uma doença psicológica e orgânica, do fundamentalismo religioso: a dos direitos humanos, a dos direitos sexuais, a emancipatória e a queer.
Essas últimas quatro abordagens da/na Educação Sexual, em
nossa opinião, estão ligadas diretamente também ao discurso e
práxis de Paulo Freire (2005). Nesse sentido, o texto de Furlani
(2011) dá subsídios ilosóicos, sociológicos e psicossociais para
uma formação continuada dos/ das docentes em sexualidade, e
aqui explicitamos a sexualidade da pessoa com DM/ DI como
destaca Vieira (2012).
Costa (2000) é, na época do seu artigo, uma quartanista
de um curso de Psicologia, e monta um programa de Orientação
Sexual para jovens deicientes de uma escola estadual comum –
em sala inclusiva. Os discentes tinham paraplegia, paralisia cerebral e paralisia infantil. Para a autora, incluir “não é negar as
138
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
diferenças, mas desvendá-las no processo social, como diferentes
do padrão, compreendendo esse padrão como uma referência
construída pelos homens nas relações sociais. Incluir então implica em ‘desnaturalizar’” (p. 54). A intervenção da autora junto
ao grupo de deicientes (n = 04) objetivou ir contra os preconceitos e tabus, que ela assim descreve: produzir uma ação visando
interromper o “processo de exclusão que vai se construindo ao
longo da vida e do processo educacional” (p. 54), e isso signiica,
“dar início a um novo caminho, no qual, em parcerias com os
alunos, podem-se debater os preconceitos, as limitações impostas pela deiciência, e, ainda, os tabus que são criados; discutir
a sexualidade na forma como se apresenta em uma sociedade, e
nas possibilidades de ser vivida por cada um de nós, com nossas
características pessoais, apresentem elas deiciências/diferenças
ou não” (p. 54).
Leão e Ribeiro (2007) tiveram por objetivo esboçar uma
produção textual e reletir a questão da orientação sexual no cenário inclusivo, e para isso consultaram artigos, dissertações, teses e livros que versam sobre os temas da inclusão e sexualidade,
aspectos estes interrelacionados e indissociáveis, airmando que:
“O assunto da sexualidade é um dos muitos que pode facilitar o
processo de inclusão das pessoas com deiciências, pois está associada muito mais com o trabalho de expressão de sentimentos,
atitude e de formação de valores morais, do que com conteúdos
acadêmicos e cientíicos a ser dominado intelectualmente pelos
alunos” (p. 1).
Prioste (2010) diz, e com ela compactuamos, que o
tema da sexualidade apesar de ter se ampliado e sendo objeto de
relexões e até de mudanças, as manifestações sexuais continuam sendo tema tabu para professores, e isso se amplia quando se
trata da sexualidade de alunos e alunas que são abordados pela
Educação Especial numa perspectiva inclusiva, sejam na sala de
aula regular, acompanhados (ou não) de Atendimentos Educacionais Especializados – AEE – ou “crianças com necessidades
educacionais especiais” (p. 14). Ela trabalhou sob um foco psicanalítico com um grupo de professores e de professoras (n=28;
dividiu em dois grupos) durante a Hora do Trabalho Pedagógi-
139
TRANSPOSIÇÕES
co Coletivo – HTPC. Das 16 reuniões, as preocupações foram
se centrando em Luciene, 16 anos de idade, com Síndrome de
Down, inserida em classe comum/regular. No referido artigo,
a autora produz a análise dos dados dos discursos dos mestres,
inferindo que: “De um modo geral, os professores tendiam a
explicar os problemas de Luciane partindo da perspectiva biologizante, ou seja, acreditavam que o comportamento da aluna
decorria das supostas características típicas das pessoas com Síndrome de Down. Além disso, culpavam os pais por não instruírem a aluna. Fica claro que, para os professores, questões sobre
sexualidade deveriam ser oferecidas em casa e não na escola, ou
então por proissionais especialistas”.
Concluiu Prioste, em im, que as manifestações da sexualidade da pessoa com DI/DM são muitas vezes interpretadas
(analisadas) como desvio de conduta, ao invés de serem percebidas como curiosidade e desejo de saber. Ela diz que as reações
moralistas ganham escopo abafando a demanda de produzir debates e os esclarecimentos sobre o tema.
Resultados e discussão
Diante do exposto nos tópicos que fazem parte desse
nosso artigo, que também visa – mais do que responder algo –
problematizar e trazer à tona outras/novas inquietações acerca
da capacidade humana de “ser mais”, apresentamos nossos dados, que em alguns momentos reletem e em outros retratam os
apresentados anteriormente, mas que contribuem para “manter
a chama do debate acesa”.
Sempre “ousas dizer o nome” de uma “lor” sempre infantil - do
ingênuo, do bondoso
Professora 1: “Eu acho que nosso aluno tem
sexo não! [risos] Tem, mas não o modo de
expressar [risos] É uma espécie de anjinho
ele ou ela, e por isso eu rezo sempre pra essas
crianças”.
Professora 2: “A última coisa que eu penso é
140
Professora 3: “Minha ideia é que eles podem
até ser sexualidade, mas eu não trabalho nunca
isso. Não vejo necessidade, não vejo mesmo, é
querer macular o outro”.
Professora 4: “Eu vejo o aluno com deiciência intelectual como aquele que por ter essas
perturbações precisa mais de mim ao lado dele
ajudando-o e não o pervertendo. Nessa nossa sociedade doida, é bem possível se a gente
resolver educar sexualmente alguém seria taxado de pedóilo, de doente. O aluno precisa
de nossa ajuda”.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
sexo que esses alunos especiais podem ter...
Não penso! Eles são puros demais, pra essas
maldades”.
Por essas respostas tão rígidas – nenhuma das respostas
transitou entre uma ou outra RE aqui descrita em três – podemos antever que os dados coletados na revisão de literatura indicam a presença de preconceitos em lidar com a sexualidade de
sujeitos discentes/ alunos com DM ou DI, dividindo-os entre os
bondosos e puros e os maléicos e perversos.
As respostas, nesse tópico analisado, reportam a uma
ideia de que a RE dos professores acerca da sexualidade do aluno
é de que ele é intocável por ser um sacrossanto e puro, no dizer
de Giami (2005) um anjo. Um contexto que desvela uma sociedade com diiculdades em lidar com esse tema (MAIA; CAMOSSA, 2002; MAIA, 2001).
Assim é que a reza ou oração pode aparecer para apagar
a culpa de nada fazer de concreto com o fato sexual que perturba a ordem estabelecida, e descumprir recomendações dos Parâmetros Curriculares Nacionais (no seu mínimo), indo contra as
propostas de intervenção como em Costa (2000), Leão e Ribeiro (2007), Prioste (2010), bem como Suplicy et al (1999), além
de nossa disposição a “ser mais”, a crescer diante do outro, em um
processo de identiicação interligado à liberdade.
A nomeação de santos e anjos aparece para retirar o
conteúdo sexual dos alunos que deixam de ser humanos (já
141
TRANSPOSIÇÕES
que assexualizados), indo em direção de parte das discussões
de Giami (2005).
Há o professor simplesmente nega e diz que nem pensa.
Não ousa tocar no tema. O tema não lhe diz respeito e nem ao
aluno e ou aluna.
A professora reconhece que os alunos e ou alunas “até”
podem ser sexualizados, mas isso não aparece nas suas aulas;
isso é negado, e ela faz uma travessia para um menino ou menina idealizado/a. Falando de sexo pode macular, ferir, contaminar. Então se nega esse conteúdo que poderia transitar pelo
cotidiano escolar e até nas aulas propriamente ditas, no ensino
de conteúdos.
Outra vez acontece da professora entender a Educação
Sexual planejada, executada e avaliada nas emergências do cotidiano escolar, onde mais o desejo parece vir à tona, como algo
do descuidado, como perversão. O conteúdo que existe advindo
como aspecto natural da sexualidade humana passa a ser descaracterizado, parece-nos. Há a denúncia de uma sociedade hipócrita que pode agir histericamente em “denuncismos” contra o
mestre que opta fazer um trabalho desses – há um medo, um
sentimento persecutório.
Sempre “ousa dizer o nome” do humano sem humanidade – do
pecado, da tara.
Professor 5: “Esses alunos são uns tarados [risos]. Se eu tocar no assunto eles se descontrolarão, e bem mais do que os normais que já
aprontam. Minha representação é essa”.
Professora 6: “Um dia desses eu peguei o
Henrique [nome do aluno com Síndrome
de Down – nome modiicado por questões
éticas da pesquisa] mexendo no “lepo lepo”8
dele [no pênis; risos] no bilauzinho [risos]. Eu
iquei apavorada. Essa família não educa esse
menino, não? Ele precisa de um psicólogo, eu
falei com a coordenadora. Falei mesmo! Eu
8
“Lepo Lepo” é o título de uma música de carnaval, de Márcio Victor (canta a banda Psirico), de muita popularidade nesse evento em 2014.
142
A RE aqui-agora de professores com vivências com aluno e ou aluna é de que se trata provavelmente de alguém perverso, sorrateiro, supersexuado, um tarado, um pecador, um diabo,
um demônio etc. Um descontrolado – a fera descrita por Giami
(2005) que é um mito contra o aluno com DM/DI e sua sexualidade como em Maia e Ribeiro (2010), Bastos e Deslandes
(2005), Moema e Cavalcanti (s/d). Esse tipo de Guia de Sentido
que vem a lume a partir da RE está provavelmente compatível
com a ideia de Kropotkin (1998), onde o jovem poderá se tornar aquilo que impregna a representação, qual seja perverso e
outros adjetivos relacionados, discurso que humilha e diminui o
sujeito, que pode evocar bullying.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
não dou conta de um desavisado desses... Ele
sabe o que está fazendo, ele sabe que é imoral,
ele tem consciência”
Há nessa RE do professor o discurso vulgar (“lepo lepo”,
“bilauzinho”, tarado) acerca da sexualidade do outro – seu aluno,
sua aluna. Há o medo e o desespero do mestre diante do tema sexual, e então não raro eles fazem a recomendação de especialistas
- que não eles mesmos – diagnosticam e tratem dos distúrbios
que eles acreditam que o aluno tenha. Assim, qualquer expressão sexual dos sujeitos os professores provavelmente taxarão de
feras sem controle. Há uma responsabilização do discente como
aquele que malvadamente faz conscientemente tudo o que faz,
porque assim o deseja.
O que e como o jovem se tornará com+vivendo [convivendo] com um professor preconceituoso, seja considerando-o
como anjo e ou como demônio? Que tipo de jovem com DM/
DI está se educando? Como tais preconceitos produzem impacto nos comportamentos e subjetivações de jovens estando eles
envolvidos em um processo de ensino-aprendizagem de conteúdos oiciais escolares? Considerando que a categoria autoestima
é indispensável para desenvolver e aprender, como essa situação
impregna o jovem? Como esse jovem tem conseguido transcender a tais relações de rótulos negativos? Como ele consegue
resistir e ou ser da resiliência? Essas questões, entendemos, pre143
TRANSPOSIÇÕES
cisam ser problematizadas no cotidiano escolar urgentemente,
pois fazem parte do processo de humanização do ser humano.
Sempre “ousas dizer o nome” de um ser sempre em desenvolvimento – do ser aberto a mais aprendizagens de sentido.
Professor 7: “Eu acho que é um aluno que precisa de nossa ajuda, e mais, eu destaco dessa
ajuda, justamente devido ele ter lá sua problemática, que a maioria não tem, que é a da
deiciência mental – de fato até nós professores precisamos de cuidado [risos]. Eu mesmo
conversei com o Henrique um dia desses sobre
a masturbação dele na aula da Mirta (professora 5). Fui numa boa, ele estava mexendo no
pênis dele também na minha aula... Eu não iz
escândalo, iquei “na minha” e cheguei fundo,
indo perto dele e o pedi que continuasse nas
tarefas – as que eu propus à turma e que todos de um certo modo estavam envolvidos. Eu
conversei e deixei muito ele conversar, mesmo
ele tendo diiculdades de falar. O que ele faz
pareceu-me um instinto, um impulso normal
das pessoas, só que ele não tem controle – e
ao mesmo tempo é um direito dele ter prazer.
Dialogar pode ser um caminho para ensinar (e
ele aprender) que na vida há limites que a própria sociedade coloca pra existir civilidade – e
ao mesmo tempo recordar-lhe que é um sujeito de direitos. Para mim, enquanto professor,
meu papel é dizer-se ‘eu preciso dialogar sem
temor, com paciência, persistência, com esperança’. Muita perseverança eu preciso ter, pois
não é em uma ‘conversinha’ que tudo resolve,
é preciso diálogo pra tentar começar uma procura de compreensão e ação”.
Trata-se de um discurso correto existencialmente, em
nosso entendimento, compatível com a prática e novas percepções
não preconceituosas acerca do discente na sala de aula escolar ou
fora dela – isso é sentido na fala do professor 7. Tal sentido se mostra compactuado com estudos de Moema e Cavalcanti (s/d) e de
Pinel (2002). Isso indica que há possibilidades positivas quando
se reconhece professores engajados, indicando dos possíveis benefícios de uma formação continuada nessa esfera – a das sexualidades dos mestres e mestras também, como mostrou Vieira (2012).
144
O professor parece tomar para si os problemas que a
professora 5 tem em lidar com a questão da masturbação na sala
de aula. Ele então, aproveitando da mesma emissão comportamental do aluno Henrique, parte para uma ação pautada pelo
diálogo, que ele diferencia de uma “conversinha”, algo sem planejamento, na esfera do disse-me-disse. O diálogo passa a ser,
desse modo uma produção dialógica, um termo que denota interesse sincero pelo outro, por seu comportamento e subjetivação.
Não desconhece a questão da pressão social e o processo civilizatório, as repressões que aí aparecem. Ao mesmo tempo em que é
preciso ter o controle (o autocontrole junto ao outro no mundo)
e desse espaço que se pode produzir a insubmissão pela aceitação
das “diferenças de ser um outro”. A abordagem desse professor
talvez se encaixe numa abordagem dos direitos humanos e sexuais, com tendência emancipatória (FURLANI, 2011) em um
discurso que se aproxima a Paulo Freire (2005; 2010) pelo foco
e valor que fornece ao diálogo e ao “ser mais”.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
O professor 7, então, se aproxima do sentido do cuidado
(cuidar) para “ser mais”, reconhecendo no sujeito suas demandas
especiais e ao mesmo tempo diferenciadas, mas numa igualdade
de direitos – indo além dos preconceitos, crenças, ideias distorcidas (MAIA, 2001; FURLANI, 2011; COSTA, 2000; LEÃO;
RIBEIRO, 2007; PRIOSTE, 2010; SUPLICY et al., 1999).
O sentido de ser (sendo) humano indica-nos ser ele um
ser mais, ou seja, um ser de relações em um contínuo processo
de vir-a-ser nesse mesmo mundo de possibilidades. O ser mais,
próprio do homem, é um termo voltado a buscar superação de
critérios desumanizantes que enfatizam o sentir-se não ser, presente no processo histórico da humanidade.
O diálogo aqui-agora pode ser uma atuação político-pedagógica intencionada do professor objetivando a transformação dos limites da opressão social impostos contra as pessoas em
seu processo do ato sentido de dizer o/do mundo. A intenção
nessa Pedagogia é a de que toda pessoa pode assumir, de modo
consciente e crítico, sua responsabilidade pelo contínuo devir
do mundo com o outro, em um projeto interminável (e sempre
145
TRANSPOSIÇÕES
sendo) de tornar-se mais e mais humano.
Diálogo então para Paulo Freire (2005) é o encontro entre pessoas mediatizadas pelo objeto de conhecimento, no desejo de produzir e reconstruir o conhecimento, sendo uma comunicação dialogal solidária entre homens democratizados, um ao
lado do outro e imbricados na relação junto ao outro no mundo,
donde emerge solidariedade de saberes entre ambos os sujeitos,
intencionados a transformar o mundo – e com isso a si próprios.
Trata-se de dialogar com a energia sexual do discente,
uma força motriz dos movimentos humanos socialmente valorizados. Um momento pedagógico e psicopedagógico em que o
jovem discente pode reavaliar seu existir, ser feliz sem submeterse, ser feliz junto ao outro no mundo. No diálogo os homens
“buscam a airmação dos homens como sujeitos de decisão, todos estes movimentos reletem o sentido mais antropológico do
que antropocêntrico de nossa época” (FREIRE, 2005, p. 31).
(In)Conclusão
Entre os sujeitos da pesquisa, professores de escolas
públicas, que trabalham com jovens alunos com DM/DI, não
ocorreram respostas intercambiáveis entre os três tipos detectados na pesquisa, desvelando um modo ser sendo rígido advindo
desse mundo que apregoa essa pretensa solidez frente a ameaça
do ser processo. O incrível é reletir que isso gera ação na sociedade, na cultura, na história – subjetividades poderosas.
Foram respostas rígidas que não izeram nenhum tipo
de travessia entre os três tipos de representações existenciais – e
por isso parece estar os professores “crentes” dessa verdade universal (que é pretensa, que é pseudo). Uma travessia entre Deus
(bondade, anjo – ser assexuado), diabo (perversão, maldade –
ser hipersexuado) e a Terra do Sol 9 (compreensão da sexualidade
como algo comum aos seres humanos; ser do desenvolvimento e
9
Brincando com o título do ilme brasileiro, de 1964, “Deus e o
Diabo na Terra do Sol”, direção de Glauber Rocha.
146
O professor 7, em uma produção discursiva mais corretamente esperada de um proissional do ensino-aprendizagem
escolar, chega, de certo modo, a criticar a rigidez advinda das
representações existenciais de que o menino/menina e sua sexualidade na sala de aula é o diabo ou deus, anjo ou demônio,
bandido e mocinho. Pensa/ sente, em um discurso que é ação,
contra a dicotomia.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
da aprendizagem sexual). Na formação continuada, é preciso reletir, (pró)curar o sentido desse vivido arrogante e determinista,
aprender a criticar o mundo, “ser-no-mundo” que se é (sendo),
sua capacidade de “ser mais”.
Os professores – a maioria - assim se desvelaram rígidos
e arcaicos, carecendo talvez de uma formação continuada que
proporcione a eles mesmos falar de suas vidas sexuais e sentir
numa escuta perante a sexualidade do outro, permitindo suas
expressões como algo humano, algo que pertence e compõe essa
humanidade, que é dele, do aluno, da família, da comunidade –
de uma Nação.
Quando um tema “toca” tanto a pele do professor como
é a sexualidade do aluno, é bem vinda uma formação que afeta,
donde o formador escuta empaticamente e ao mesmo tempo,
de modo ativo, coloca provocações, humanizando as dores (e as
alegrias), os preconceitos, os estigmas, os tabus criando/ inventando coletivamente pontes de transformação de seres duros em
maleáveis, que desrespeitam para seres respeitadores, de punidores para pessoas permissivas.
Fazer travessias da rigidez para lexibilidade e abertura
ao inusitado daquele humano em sala de aula, cuja demanda é
receber ensino e aprender – desenvolver-se mais, aprender mais.
Na Pedagogia (e Filosoia) paulofreiriana, encontramos o fato
de que o ser é capaz de transformar a realidade em que está inserido, “ser mais”.
147
TRANSPOSIÇÕES
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150
DIVERSIDADE SEXUAL& EDUCAÇãO
POPULAR: POSSÍVEIS DIÁLOGOS
Eliane Saiter Zorzal1
Henrique José Alves Rodrigues2
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
7
Para seguir-me,
o fundamental é não seguir-me.
Paulo freire, 1985.
Introdução
Cena 1: Em uma sala de aula no turno noturno de uma escola pública de Vitória/ES, a
educadoranovata faz chamada dos nomes dos
educandos da turma. Ao chamar por Valéria, a
educadora escuta um tímido “presente” emitido
por um corpo jovem, inequivocamente masculino, de boné, bermuda, camiseta e de máscula
tatuagem no braço. A educadora emite uma sonora risada e pede educadamente que “a brincadeira” não volte a se repetir, principalmente
numa hora tão séria como a chamada. Em
seguida, os outros estudantes emitem risadas
mais agudas do que a da educadora. Uma edu1
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da UFES;
bolsista OBEDUC-CAPES.
2
Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação da
UFES; bolsista OBEDUC-CAPES.
151
TRANSPOSIÇÕES
canda explica à encabulada educadora: “professora, o nome de batismo dela é Valéria, mas
nós a chamamos de João”.3
Cena 2: Em uma sala de aula, no sertão da
Paraíba, a educadora Amanda (nome civil Arthur) ministra didaticamente uma aula sobre
a Vinda da Família Real Portuguesa ao Brasil,
enquanto a educandaMonick (nome civil Fernando), inge educadamente prestar atenção
às palavras da educadora, mas na verdade está
com pensamento focado na minúscula roupa
que irá vestir na movimentada noite da praça
de uma cidade pernambucana vizinha, onde já
possui clientela certa.4
O que estas duas cenas nos apontam é o turbilhão de
questões que emergem, no contexto das escolas e nos espaços de
aprendizagem não formais, quando sujeitos jovens e adultoscom
marcas de gênero que não atendem às nossas expectativas habituais sobre os corpos das/os educandas/os exercem o direito
de frequentar os espaços e tempos formativos. No caso das duas
cenas em foco, podemos perceber que o exercício do direito à
educação não se resume à garantia do acesso. As presenças físicas daqueles corpos no lugar de educadora e educanda põem
em análise o nosso saber e o nosso não saber sobre modos de
vida que não se encaixam nos modelos de masculinidade e feminilidade instituídos; bem como no potencial de desestruturação de normas da instituição escolar que cotidianamente naturalizamos: a hora “séria” da chamada; os nomes com que nos
dirigimos aos sujeitos, sem que lhes perguntemos o nome que
desejam ser chamados; a imagem de educadora e de educanda
que reiteradamente esperamos etc.
3
Trata-se de relato de experiência que um dos autores deste artigo
ouviu de uma educadora, em momento de formação de uma escola pública
municipal, em um bairro popular de Vitória/ES, no âmbito de um programa
de inclusão de jovens do governo federal, o PROJOVEM. Os nomes Valériae
João são ictícios.
4
Estamos nos referindo a uma das cenas do belo curta-metragem
Amanda &Monickdo diretor André da Costa Pinto(2007) sobre as trajetórias verídicas de duas travestis (ambas se auto-referem como travestis) e seus
dilemas de vida.
152
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
As nossas experiências como educadora e educador da
Educação de Jovens e Adultos (EJA) de Vitória/ES nos permitem airmar o quanto estas questões vêm atravessando nossas
práticas de sala de aula e os momentos formativos não escolares.
Apesar do persistente preconceito, que cerceia o acesso e o exercício do direito à educação, a presença física de lésbicas, gays,
travestis, transexuais e de sujeitos de corpos híbridos ou estranhos5torna-se cada vez mais comum nos momentos de formação
de educandas/os e educadoras/es.Estas questões também nos
apontam a necessária abordagem curricular de questões envolvendo a diversidade sexual que ecoam nas salas de aula e outros
espaços educativos de EJA, trazidas por correntes de informações midiáticas ou de relatos das/os educandas/os e das/os educadoras/es de situações cotidianas.
Como o campo da Educação Popular se constitui em
uma de nossas referências de leitura dos desaios da EJA, nos
perguntamos sobre as possibilidades de diálogo entre esta referência educacional e o campo da Diversidade Sexual na qual
também militamos fora e dentro da escola e da educação. Apesar
de suas notórias distinções, nos indagamos sobre quais as possibilidades de composição criativa entre o campo teórico da Educação Popular e o campo teórico da Diversidade Sexual?
Trata-se portanto de um ensaio, um movimento inicial
de pesquisa acerca dos pontos de contato entre o pensamento de
Paulo Freire e a estudiosa da Diversidade Sexual Guacira Louro,
que precisa ser melhor sistematizado, mas que já indica inusitadas surpresas para nós que militamos na fronteira entre a Educação de Jovens e Adultos e a Diversidade Sexual.
Procuraremos explicitar nossas ainidades no campo da
Diversidade Sexual, a vertente pós-identitária preconizada por
Guacira Louro, e no campo da Educação Popular, o pensamento
5
Em nossa perspectiva, a categoria estranhopossui positividade, pois
nos remete ao que escapa das normas, embaralha nossas familiares dicotomias: homem-mulher; heterossexual-homossexual; masculino-feminino;
bofe-bicha; ativo-passivo. Como as/os leitoras/es poderão perceber, explicitaremos melhor esta questão ao abordarmos mais detidamente a perspectiva
pós-identitária da Diversidade Sexual.
153
TRANSPOSIÇÕES
e as experiências educacionais de Paulo Freire. Selecionamos as
temáticas do corpo e do pensamento como pontos de interseção
entre estes dois campos de forças do pensamento em educação.
Relatando dois casos envolvendo sujeitos da EJA no município
de Vitória/ES nos perguntamos se é possível vislumbrarmos a
busca por direitos (que alimenta o campo da Educação de Jovens e Adultos na atualidade) com um olhar e práticas criativas
no campo da educação e na invenção de modos de vidas que escapem ao jogo de gênero e de sexualidade normalizados.
Diversidade Sexual& Educação Popular: a questão do corpo
e do pensamento
Tanto a área da Diversidade Sexual, quanto a da Educação Popular são por demais amplas e compostas por acirradas
controvérsias internas, sendo necessário explicitarmos nossas
ainidades teóricas nestes dois campos de força. Quando mencionamos Educação Popular, estamos nos referindo à vertente
reireana, que pensa a Educação Popular tendo como premissa a
ideia de que as características dos sujeitos são matrizes da prática educacional (Freire, 2011); bem como o postulado de que as
práticas educacionais devem mover-se pela produção de outros
modos de aprender, de ser educadora/or e de ser educanda/o.
Nas últimas décadas, estes princípios da Educação Popular se
constituem em uma das referências da própria legislação educacional que regula a EJA em nosso país, pontuando como um dos
postulados de oferta da modalidade, e de sua matriz curricular,o
reconhecimento dos modos de vida e de trabalho dos sujeitos,
bem como a caracterização da EJA como direito social e não
como “oportunidade” ou “chance” para aquelas/es que não tiveram acesso à escolarização na considerada “idade certa”.6
No campo de forças teórico da Diversidade Sexual, possuímos experiência de leitura a estudiosa em gênero GuaciraLopes Louro (2001), pesquisadora que auxiliou na difusão do
6
Para estudo da importância da categoria “direitos dos sujeitos” na
legislação nacional da EJA, consultar Parecer nº 11/2000 do Conselho Nacional de Educação.
154
Na área do pensamento educacional, temos a importante contribuição de Tomaz Tadeu da Silva (1999), que categoriza
estes dois campos de pensamento em teoria crítica (Educação
Popular, mais precisamente na igura de Paulo Freire) e teoria
pós-crítica (Diversidade Sexual, perspectiva pós-identitária).
Embora conscientes de se constituírem em modos de olhar a
educação de maneiras distintas e em alguns pontos antagônicos, apostamos que há pontos de intercessão que podem subsidiar nossas práticas educacionais na abordagem das questões
envolvendo diversidade sexual no campo da EJA, entendida em
sua dimensão de Educação Popular. Portanto, embora entendamos de maneira generosa a categorização proposta pelo autor, o
mesmo Tomaz Tadeu da Silva (1999) não discordaria de nossa
airmação de que a prática discursiva possui como duas de suas
possibilidades a abertura e a plasticidade, pois possui dimensões
pouco visualizadas pela recepção de seus leitores em determinada época, possuindo possibilidades não antevistas até mesmo
pelo seu autor8. Mas neste pequeno trajeto da pesquisa podemos vislumbrar uma das distinções fundamentais entre as duas
vertentes: a questão do direito.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
pensamento pós-identitário na educação brasileira. Com uma
visão crítica sobre a produção de identidades sexuais e de gênero no contemporâneo, esta autora nos aponta que na atualidade
outros modos de vida são produzidos nos interstícios dos antigos lugares de gênero; que o jogo de se contrapor ao modelo de
identidade heterossexual masculina possui como risco a captura
pelos valores heteronormativos que tanto criticamos, com a sua
obsessão pela produção de corpos inteligíveis e por isso mesmo
controláveis pelas tramas de saber/poder no contemporâneo.7
Se para Freire(2011), a Educação Popular e a própria
legislação atual da EJA as identidades sociais dos sujeitos, suas
lutas por reconhecimento, conquista e exercício dos direitos são
7
Para aprofundamentos acerca da categoria heteronormatividade
consultar: Richard Miskolci (2009), JuditButler (2008) , Beatriz Preciado
(2008) e Guacira Louro (2001).
8
Nos inspiramos nos estudos de Michel Foucault sobre a categoria
“discurso” para formular tal airmação. Conferir: A Ordem do Discurso,
2005.
155
TRANSPOSIÇÕES
fundamentais para o próprio funcionamento das aprendizagens
escolares, os estudos pós-identitários da Diversidade Sexual irão
nos alertar para as ciladas deste “jogo identitário”, pois a conquista dos direitos, em nossas sociedades atuais, possui como efeito
colateral a adesão ao modo de vida instituído como modelo, no
caso da sexualidade e do gênero, o modo de vida heterossexual
(LOURO, 2001).
A nossa pesquisa procura mover-se na produção de um
elo de intercessão entre estas duas perspectivas aparentemente
antagônicas: é possível exercer os direitos (e não apenas conquistá-los) e produzir diferenças, ou seja, escapes ao modo de vida
e às práticas sociais e educacionais cristalizadas como normas?
Voltaremos a esta questão nas palavras inais deste artigo. Por ora,
nos atentaremos para as temáticas do corpo e do pensamento.
Em nossa leitura, a categoria corpo -no centro das análises da Diversidade Sexual, mas pouco lembrada quando mencionamos Paulo Freire, que seria única e exclusivamente o pensador da conscientização - nos indica pontos de diálogo que tanto
mencionamos neste texto.
Analisando os processos educacionais do presente pela
via do corpo, Louro(2004a) se debruça não só sobre os dispositivos de controle da sexualidade, mas sobretudo nos movimentos de criação de outras possibilidades de produção de
nossos corpos:
A não nitidez e a ambiguidade das identidades
culturais podem mesmo ser, às vezes, a posição desejada e assumida – tal como fazem, por
exemplo, muitos jovens homens e mulheres
ao inscrever em seus corpos, propositalmente,
signos que embaralham possíveis distinções
de masculinidade e feminilidade. Os corpos,
como bem sabemos, estão longe de ser uma
evidência segura das identidades! Não apenas
porque eles se transformam pelas inúmeras
alterações que o sujeito e as sociedades experimentam, mas também porque as intervenções
que neles fazemos são, hoje, provavelmente
mais amplas e radicais do que em outras épocas (LOURO, 2004a, p. 49).
156
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Nesta perspectiva de problematização e de tensionamento das identidades sexuais e de gênero, Guacira Louro (2004a)
não nos propõe uma negação das identidades, mas outro jogo de
gênero, outra política sexual que dê lugar às forças da ambiguidade, do humor e da ironia em desestabilizar às identidades mais
cristalizadas e delimitadas de hetero/homo, feminino/masculino, macho/bicha. Deveríamos então, segundo a autora, até mesmo tecer problematizações em relação às produções identitárias
dos movimentos homossexuais. Louro (2004b) analisa a política de identidade empreendida pelo movimento homossexual
norte-americano nos anos 1970, com seu esforço de produção
de uma identidade gay unitária, coesa e bem delimitada:
O discurso político e teórico que produz a representação “positiva” da homossexualidade
também exerce, é claro, um efeito regulador
e disciplinador. Ao airmar uma posição-desujeito, supõe, necessariamente, o estabelecimento de seus contornos, seus limites, suas
possibilidades e restrições. Neste discurso, é a
escolha do objeto amoroso que deine a identidade sexual e, sendo assim, a identidade gay
ou lésbica assenta-se na preferência em manter
relações sexuais com alguém do mesmo sexo
(LOURO, 2004b p. 33).
Na leitura de Louro (2004b) a construção deste tipo de
identidade gay e lésbica silencia e/ou desqualiica os sujeitos de
práticas bissexuais, ou aqueles que não baseiam sua identidade
pelo objeto de desejo, mas sim pelas práticas de prazer, como
os sadomasoquistas. Sem esquecermos que a mensagem do movimento gay norte-americano da década de 1970 possuía componentes de raça, de classe e de geração (branco/classe média/
adulto) que não dialogavam com minorias sexuais negras, latinas, trabalhadoras e jovens.
O movimento de ruptura com esta política de identidade, que possuía o movimento gay norte-americano como referência em diversas sociedades (incluindo a brasileira), emerge
na década de 1990, com o esforço de enfrentamento da epidemia do HIV e a resistência à tentativa de repatologização das
homossexualidades (a perversa categoria médica de “grupo de
157
TRANSPOSIÇÕES
risco”), bem como a visibilidade de um universo de minorias
sexuais mais plural que antes era silenciada tanto pelas práticas
perversas do preconceito, quanto pelos próprios movimentos
homossexuais. Louro (2004b), tendo como referências o pensamento de Judith Butler (2008), nos aponta que novos sujeitos
ganham visibilidade na cena pública. Não apenas as travestis e
transexuais se constituem em sujeitos políticos, mas também
outros sujeitos desviantes, excêntricos, estranhos se visibilizam
com suas performances de gênero que atravessam o masculino e
o feminino, o hetero e o homossexual.
Neste contexto, Louro (2004b) se pergunta sobre as possibilidades de uma prática pedagógica referenciada pela perspectiva pós-identitária, já que o campo da educação seria tradicionalmente normalizador e regulador dos sujeitos, com suas listas
de conteúdos, programas, projetos e avaliações de desempenho:
Nós, educadoras e educadores, geralmente
nos sentimos pouco à vontade quando somos
confrontados com ideias de provisoriedade,
precariedade, incerteza – tão recorrentes nos
discursos contemporâneos. Preferimos contar
com referências seguras, direções claras, metas
sólidas e inequívocas (LOURO, 2004b p. 41).
Nesta perspectiva, a vertente pós-identitária da Diversidade Sexual propõe uma “reviravolta epistemológica” não
apenas no campo das sexualidades, mas no próprio modo de
operarmos o pensamento, logo o próprio modo de concebermos a educação. Deslocamentos, descentramentos, dispersões,
provocações e subversões são termos que nos fornecem imagens
para o que se propõe. Ou seja, Louro nos propõe uma pedagogia
queer,9 uma pedagogia do estranho,do ex-cêntrico ( fora do centro).
Escapando ao jogo de embates dos binarismos, Louro (2004b)
nos convida a proliferar:
9
O termo queer era como os sujeitos de práticas sexuais e de gênero
desviantes eram denominados pelo discurso do preconceito em língua inglesa. O equivalente a bicha ou veado no Brasil. Os movimentos de diversidade
sexual se apropriaram positivamente do termo, passando a reivindicá-lo em
oposição às possibilidades normalizadoras das categorias homossexual ou
gay. Ver: LOURO, 2004b.
158
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Tal pedagogia não pode ser reconhecida como
uma pedagogia do oprimido, como libertadora ou libertária. Ela escapa de enquadramentos. Evita operar com dualismos, que acabam
por manter a lógica da subordinação. Contrapõe-se, seguramente à segregação e ao segredo
experimentados pelos sujeitos “diferentes”,
mas não propõe atividades para seu fortalecimento nem prescreve ações corretivas para
aqueles que os hostilizam. Antes de pretender
ter a resposta apaziguadora ou a solução que
encerra conlitos, quer discutir (e desmantelar) a lógica que construiu esse regime, a lógica
que justiica a dissimulação, que mantém ixa
as posições de legitimidade e ilegitimidade
(LOURO, 2004, p. 51 e 52).
A citação acima expressa uma assertividade tão intensa
que pode nos indicar que as questões que emergem no campo
da Diversidade Sexual em hipótese alguma podem dialogar com
o pensador pernambucano da “pedagogia do oprimido” e da
“conscientização”. Somos tentados a conceber a Educação Popular como um cenário de teatro em que os diversos pólos antagônicos encenariam suas peças de mútuas exclusões: opressor/
oprimido, consciência crítica/consciência ingênua, libertação/
opressão, dentre outros casais de triste convivência. Todavia,
provocados pelo convite pós-identitário de produção de um
pensamento estranho e inquieto, vislumbramos o enlace inusitado entre as questões até aqui expostas acerca da diversidade sexual e a educação e aquelas que passaremos a expor sobre Freire
e a Educação de Jovens e Adultos.
Afonso Celso Scocuglia (2008), estudioso da obra freireana, nos aponta algumas pistas para a construção da imagem
de outro Paulo Freire em nós. Somos lançados na desconstrução da imagem já consagrada de um homem que tão somente
moveu-se pelo mundo nas décadas de 1960/70, mas cujo pensamento teria continuado sedentário e imobilizado por nossas leituras, que o tornaram um “clássico inofensivo”, pois já não teria
nada a nos provocar e nos forçar a produzir novos movimentos
no campo da educação contemporânea.
Diferentemente desta imagem clássica, Scocuglia (2008)
159
TRANSPOSIÇÕES
nos ajuda a vislumbrar um nomadismo no pensamento de
Freire: se num primeiro percurso de seu pensamento o educador pernambucano estava implicado com questões religiosas e
de cunho político liberal, na década de 1960 seu pensamento
produz uma inlexão e é permeado por referências marxistas,
cuja obra Pedagogia do Oprimido seria o seu registro mais forte; teríamos também o último Freire, pós-moderno10, ligado às
questões do poder no cotidiano, às questões da subjetividade
no processo educativo, às questões de gênero e raça presentes na
obra Pedagogia da Esperança.
Ao termos contato com alguns dos livros de Freire após
sua experiência de dezesseis anos de exílio11 nos deparamos com
a categoria corpo permeando suas preocupações com a educação e a alfabetização de jovens e adultos. Apesar de se constituir
numa questão lateral, não se constituindo a principal questão
em análise nestes escritos, consideramos que a categoria corpo
possui a força de deslocar nossos olhares sobre a obra de Freire,
que possui implicações não apenas sobre o modo como o mesmo concebeu a educação, mas também ao modo como concebe
e opera o seu pensamento. Portanto, as questões que abordaremos a seguir se constituirão em lentes para a nossa análise futura
de toda a obra de Freire, dos anos 1950 aos anos 1990. Onde
estamos habituados (como o próprio Scocuglia) a vislumbrar o
teórico da “conscientização popular”, ou do “por vir libertador”,
apostamos no atravessamento destas questões com um Freire teórico do “corpo que aprende” (FREIRE, 2000, p. 109).
Em diálogo com o educador chileno Antonio Faundez, Freire (1985) comenta sua experiência de estranhamento
no exílio em países europeus, cujos sujeitos, ao contrário das
10
Consideramos problemática a expressão pós-moderno; porém, o
estudo de Scocuglia (2008) possui o mérito de apontar o fato de que Freire
não esteve alheio às questões que ganharam visibilidade no campo educacional na atualidade.
11
Freire foi exilado político no período da Ditadura Militar que
iniciou-se no ano de 1964; percorreu a América Latina, Africa, Europa e
EUA, retornando ao nosso país em 1980. Sobre suas experiências no exílio,
consultar “Por uma Pedagogia da Pergunta” (1985), livro-diálogo entre
Freire e o educador chileno Antonio Faundez.
160
O corpo humano, velho ou moço, gordo ou
magro, não importa de que cor, o corpo consciente, que olha as estrelas, é o corpo que escreve, é o corpo que fala, é o corpo que luta,
é o corpo que ama, que odeia, é o corpo que
sofre, é o corpo que morre, é o corpo que vive!
(Freire, 1985, p. 28).
Para Freire, “é meu corpo inteiro que conhece” (2000, p.
109). A questão do corpo marcou tão fortemente suas experiências no exílio, que em diálogo com o educador Antonio Faundez
sobre suas ações pedagógicas em Guiné-Bissau,12Freire (1985)
menciona a necessidade de reinvenção da pedagogia, para que
dimensões como o corpo, o gesto e a dança não se constituíssem
em pólos antagônicos à escrita e aos seus saberes, mas que estas
dimensões compusessem um mesmo processo educativo.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
nossas sociedades latino-americanas, possuem uma cultura de
interdição social do contato corporal entre as pessoas. Em seguida, Freire aborda a questão da interface corpo/aprendizagens nos airmando que:
Para Freire e Faundez (1985), o pano de fundo das questões pedagógicas que emergiram na experiência de Guiné-Bissau
estava a relexão sobre a proeminência da globalidade do corpo
nos processos de aprendizagens.
Provocado pelo relato de Freire, Faundez airma que a
alfabetização:
Não é apenas ler e escrever; é apropriar-se de
um conhecimento básico em todos os níveis
da vida, que o ser humano possa progressivamente ter condições de responder às pergun12
Freire relata sucessivas experiências de fracasso das propostas de
alfabetização pela língua portuguesa em Guiné-Bissau, caracterizando tais
experiências como violência cultural, já que a oralidade, o grande dispositivo
de registro da cultura nas sociedades africanas, era desconsiderado e desclassiicado como não-saber a ser combatido. A posição de Freire e de sua equipe
foi vencida pela posição do partido comunista local, que defendeu a prescrição do português como única via de ação educativa. A equipe a qual Freire
compunha vislumbrava a possibilidade de invenção de uma língua escrita
crioula, tendo as línguas do cotidiano como base e também inluenciada pelo
português. Para aprofundamento desta questão ver: Cartas à Guiné-Bissau
(1978).
161
TRANSPOSIÇÕES
tas essenciais que nosso corpo, nossa existência cotidiana nos coloca ( 1985, p. 90).
Além da questão do corpo, podemos vislumbrar um
pensamento freireano mais inquieto do que frequentemente
estamos habituados. Admardo Seraim de Oliveira (1996), em
clássico estudo sobre o pensamento freireano pontua o registro da indissociabilidade entre experiência de aprendizagem e
a mudança de modo de vida do sujeito que aprende na obra
do educador pernambucano. Analisando a categoria diálogo,
nos indica que para Freire a aprendizagem pressupõe uma relação – um afetar-se pelo outro – e a criação de outro modo de
pensar e estabelecer contato com o mundo. Sobre o sujeito que
aprende airma:
[...] o processo dialógico lança-o para fora da
“norma” de desenvolvimento de sua personalidade forçando-o, assim, a um novo começo.
O indivíduo é, dessa forma, como que literalmente “sacudido” por essa nova realidade na
qual ele passa, agora, a experimentar-se: uma
realidade que se mostra irreversível diante
dele. [...] O homem vê-se forçado a mudar seu
modus vivendi (OLIVEIRA, 1996, p.14, grifo nosso).
Nesta perspectiva podemos vislumbrar um Freire
(1996) que nos lembrará não apenas da clássica – e ainda atual temática pedagógica sobre a necessidade de uma amorosidade e
do afeto no processo educativo, mas sobretudo de uma temática
que ganha contornos no presente, que consiste no papel da experiência, da intuição e das paixões no processo mesmo de produção do pensamento. Que o pensamento reireano não opera
por modelos ou proposição de métodos, pois para seguir seus
princípios pedagógicos as/os educadoras/es deverão “refazerme, quer dizer, não seguir-me (1985, p.41).
Portanto, não são miragens de paraísos no futuro que
estas palavras de Freire (1985) nos sugerem, mas uma aventura,
um arrisca-se, pois não aposta numa educação para e sobre as/
os educandas/os, mas com e a partir de seu repertório cultural.
Uma pedagogia da pergunta, logo da hesitação, do suportar a in162
As escolas ora recusam as perguntas, ora burocratizam o ato de pergunta. A questão não
é introduzir no currículo o momento das perguntas, de nove às dez, por exemplo. Não é
isso! A questão nossa não é a burocratização
das perguntas, mas reconhecer a existência
como um ato de perguntar! (1985, p. 51).
Este modo de pensar a educação, partindo desta perspectiva da educação popular, nos inspira a estarmos à altura do
desaio da diversidade sexual e de gênero na atualidade? Pensamos que sim. Não possuímos receitas de como acolhermos, nos
relacionarmos e contribuirmos na ampliação das aprendizagens
escolares de corpos inusitados que cada vez mais ousam adentrar
os espaços educativos e teimam, apesar dos preconceitos, a exercerem o seu direito à educação. Portanto, um modo de pensar a
educação que seja marcada pelo princípio da pergunta e da criação se constitui em fundamental ferramenta para que possamos
caminhar e interpelar nossos não-saberes sobre estes sujeitos e
seus corpos. Se nos inspirarmos em Freire, o caminho não se
resumirá em apenas fortalecer identidades de gênero ditas desviantes, como se tivéssemos o caminho da “salvação”. Evitando
este caminho fácil, podemos pensara diversidade sexual a partir
de Freire pela via do “assombrar-se”:
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
certeza como convite à criação de outros caminhos para o exercício do fazer educativo:
Me parece importante observar como há uma
relação indubitável entre assombro e pergunta, risco e existência. Radicalmente, a existência humana implica assombro, pergunta e
risco. E, por isso, implica ação, transformação.
[...] Então, a pedagogia da resposta é uma pedagogia da adaptação e não da criatividade.
Não estimula o risco da invenção e da reinvenção (Freire, 1985, p.51)
Faundez (1985), provocado por Freire (1985) vai mais
além e diante de uma pedagogia da pergunta proposta por seu
interlocutor propõe uma “pedagogia do erro”:
Sem esta aventura, não é possível criar. Toda
prática educativa que se funda no estandar-
163
TRANSPOSIÇÕES
tizado, no preestabelecido, na rotina em que
todas as coisas estão pré-ditas, é burocratizante e, por isso mesmo, antidemocrática (p. 52).
Estamos aqui muito próximas/os de questões abordadas pela “pedagogia do estranho” mencionada por Louro (2004).
Para lidarmos com corpos estranhos, precisamos produzir um
pensamento estranho, que não teme as tensões, mas as considera
um convite para um mergulho na experiência educativa. Já não
temos a ilusão de certezas de outrora, ou a imagem de um centro inescapável de questões13 tão ao gostode quem adere ao modo
homem branco burguês de estar no mundo, com seu ar de certeza de si, suas inlexíveis abordagens do mundo e do outro. A
pergunta se constitui não só em ferramenta de um devir pedagógico, mas também da prática do pensamento; e se a pergunta
for consistente e não meramente retórica, não possui ponto de
chegada preestabelecido.
Todavia, Freire até o im da vida continuou apostando na
conquista e no exercício dos direitos dos sujeitos, sem a problematização operada pela vertente pós-identitária da educação.
Neste ponto de nossa relexão podemos exercitar uma aposta:
a de que não haveria tanta incongruência entre o primado dos
direitos dos sujeitos tão enfatizados pela Educação Popular e
o convite pós-identitáriode mergulho em experiências educativas inventivas e desestabilizadoras das clássicas referências da
educação. Talvez, os dois pequenos relatos a seguir possam nos
auxiliar a pensar esta questão envolvendo diversidade sexual e
Educação Popular.
13
Com o termo centro inescapável de questões estamos caracterizando
ironicamente certas abordagens teóricas que consideram que determinadas
categorias (como classe social para alguns marxismos) possuiriam uma centralidade para todo e qualquer problema educativo ou de pesquisa. Pensamos
que o equívoco reside não na seleção de qual categoria possui centralidade,
mas na ideia mesma de centralidade. Ou seja, as questões e categorias (como
classe, gênero, raça, sexualidade, geração) se atravessam, sendo problemático
pretender analisar determinadas questões educacionais e mesmo do mundo
do trabalho sem operarmos com duas ou mais categorias de análise, abordarmos duas ou mais questões para a análise, sem haver necessariamente hierarquia epistemológica entre elas. O que não impede uma ênfase maior ou
menor numa ou outra questão ou categoria conforme o problema de análise
do sujeito quepesquisa. Sobre a questão do atravessamento de questões para
se pensar a educação ver Guacira Louro, 2001 e 2004b.
164
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
O primeiro relato se refere a uma educanda de EJA de
uma escola pública da Região da Grande Vitória. No ano de
2013, tivemos a oportunidade de participar como delegados
do XIII Encontro Nacional da Educação de Jovens e Adultos
(ENEJA), um evento que objetivou discutir questões pertinentes ao campo da EJA14. Nossa delegação era composta por
educadoras/es, gestoras/es e educandas da escola básica e da
universidade. Uma das educandas que compunha a delegação
possuía nome social feminino, pois não desejava ser mencionada por seu nome civil masculino. Em uma entrevista a educanda nos relatou que sua primeira entrada em uma escola de Educação de Jovens e Adultos da rede estadual na Grande Vitória
foi marcada por fortes reações de homofobia e discriminações.
Nos relata que: “No início ouvi muitas piadas de cunho homofóbico, a todo tempo eu ouvia... Não aguentava mais. Na lista
eles não queriam me chamar pelo nome social15, e cada vez mais
aumentavam as piadas. Eles me proibiram de usar maquiagem
ou que me vestisse de menina”.
Essa mesma estudante, ao ser questionada sobre quais
eram as reações do corpo gestor da instituição sobre esses processos sofridos por ela na escola,nos informa que: “Fui falar com
o coordenador sobre a questão da roupa e do preconceito, ele me
disse que o meu jeito atraía este tipo de preconceito e que Deus tinha
me feito homem e eu tinha que agir como tal. Eu reagi às piadas.
Tive que sair da escola escoltada, porque 10 queriam me bater”.
A educanda nos relatou que teceu articulações com o
Fórum de Direitos Humanos do Estado e com a Secretaria Estadual de Direitos Humanos e que no ano seguinte foi estudar em
outra escola, em que a “aceitaram melhor”, uma escola de Ensino
Médio que a estudante considera que“até agora” está tudo bem.
A experiência desta educanda possui duas dimensões de
análise. A primeira dimensão nos informa sobre os obstáculos ao
14
Os ENEJA são encontros bianuais realizados pelos vinte e seis
Fóruns Estaduais e do Distrito Federal de EJA do Brasil.
15
Denominamos por “nome social” o nome utilizado socialmente
pelas educandas transexuais. O nome de uso social é escolhido pela pessoa.
165
TRANSPOSIÇÕES
exercício do direito à educação que persiste na cultura escolar e
no campo social. O relato reairma a questão sobre a reação de
muitas escolas ao se depararem com sujeitos e corpos que não
atendem às expectativas de gêneroconsideradas como modelos.
Como não temos todas as respostas, podemos airmar que o
campo de pesquisa sobre a Diversidade Sexual precisa avançar
principalmente no debate com a EJA.
Por outro lado, existe uma outra dimensão nesta experiência: a resistência pessoal e de outros sujeitos para garantir a
permanência desta educanda em um espaço educativo. A educanda não naturalizou o preconceito e se articulou como movimento social e uma secretaria estadual. Esta mesma educanda se
constituiu em uma das vozes que denunciaram ao sindicato de
professores e ao Fórum Estadual de EJA da fusão de turmas de
EJA e possível cancelamento de oferta de EJA em escolas de seu
município no ano de 2013. Apesar dos obstáculos de preconceitos e violências, a trajetória escolar desta jovem também nos
informa sobre um esforço de resistência. A educanda é jovem,
recém ingressou no ensino médio e possui amplas relações com
a militância social, o que demonstra que encontrou vários cúmplices e aliados na escola e no campo social. Apesar das barreiras
da intolerância, o fato de não ter desistido de seu processo de
escolarização nos aponta não só o seu empenho pessoal de resistência, mas práticas coletivas de abertura e diálogo de muitos
sujeitos que atuam na educação. Mas para que as questões que
a presença física de um corpo transexual feminino possam mobilizar pedagogicamente o campo da EJA, faz-se necessário não
apenas escuta, mas sobretudo a disposição de inventar outros
modos de se constituir como educanda/o e como educador/a.
Nosso segundo relato é de um educador de escola exclusivamente de EJA do município de Vitória, que narrou sua
experiência em um dos encontros de formação de educadoras/
es a qual participamos. Esse educador, ao adentrar uma das salas de aula nos aponta a matrícula e entrada de uma educanda
transexual. Em uma conversa com a turma, o educador sugere
que cada educanda/o fale seu nome. Ao ser indagada, a educanda fala com constrangimento seu nome civil masculino. O
166
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
educador questiona se ela não teria outro nome que gostaria de
ser chamada e a estudante responde: “Gosto de ser chamada de
Rose16”. O educador relatou que a partir daquele momento, percebeu o quanto a educanda se mostrou “a vontade” na sala, sorrindo mais, dialogando mais com as/os colegas, demonstrando
que ser mencionada pelo seu nome social, contribuiu para o seu
acolhimento e empatia com a turma e com o educador.A Educação Popular chamaria tal procedimento pedagógico de “respeito às características sociais do sujeito”; o movimento social
LGBTTI chamaria de política de fortalecimento de identidade
de gênero. Tal relato de experiência nos sugere que, como ponto de partida do processo educativo e estratégia de acolhimento
das educandas, a airmação de suas identidades se conigura em
questão fundamental para que possamos contribuir para a garantia do acesso e a permanência de pessoas LGBTTI na escola.
O que não inviabiliza a produção de um processo educativo criativo, pois podemos nos perguntar sobre quais questões pedagógicas, de pensamento e de poder em sala de aula podem emergir
quando acionamos alguns dispositivos de política de identidade
LGBTTI, como o nome social. Pois sem estes dispositivos de
acolhimento dos sujeitos,como poderíamos começar um processo de criação e experimentação pedagógica como airmam os
estudos pós-identitários?
Se num primeiro momento da escrita deste artigo utilizamos o repertório discursivo pós-identitário da Diversidade
Sexual para estranhar a Educação Popular/Paulo Freire e até
mesmo o próprio movimento social LGBTTI com suas políticas de identidade, ao inal desta escrita questões pontuadas pela
Educação Popular/Paulo Freire e o movimento LGBTTI nos
auxiliam a fazer inusitadas e tensionadas relações entre exercício
do direito e criação pedagógica e de outros modos de vida como
nos sugeriu a vertente pós-identitária. Apontando-nos que talvez direito e experimentação não sejam pólos que se excluem,
mas dimensões que se atravessam, compõem, se tencionam e devem permanecer sob tensão.
16
Nome feminino ictício.
167
TRANSPOSIÇÕES
Referências
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FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 2000.
___________. Cartas à Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
___________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 43. ed., São Paulo: Paz e Terra, 2011.
___________. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1985.
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Janeiro: Graal, 1988.
LOURO, Guacira. Currículo, gênero e sexualidade: o “normal”, o “diferente”
o “excêntrico”.. IN: MEYER, Dagmar E. e SOARES, Rosangela de Fatima R.
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_____________. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Belo
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Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Disponível em: www.teleilme.net/sinopse-do-ilme-13440_AMANDA-EMONICK.html acessado em 13 de setembro de 2010.
169
DESLOCAMENTOS CONCEITUAIS
RELACIONADOS MAS DIfERENTES:
SOBRE OS CONCEITOS DE
HOMOfOBIA, HETEROSSEXUALIDADE
COMPULSÓRIA E
HETERONORMATIVIDADE
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
8
Leandro Colling1
Gilmaro Nogueira2
Os conceitos de homofobia, heterossexualidade compulsória e heteronormatividade possuem muitas relações entre
si, mas são diferentes e têm sido usados, muitas vezes, como sinônimos. Por isso, o objetivo deste texto é o de apontar as relações entre eles, delimitar algumas das principais diferenças
e, por im, propor o uso conjugado e crítico desses conceitos e
quais são potencialidades políticas desta proposta.
Antes de mais nada, é importante ressaltar que as palavras e os conceitos não são um “retrato” da realidade, mas uma
tentativa de dar conta da realidade ou, em todo caso, uma forma
de apontar como entendemos certos aspectos do mundo. As palavras e os conceitos não são operações matemáticas ou deinições e relexões objetivas. Dizendo isso, queremos evidenciar o
caráter impreciso, no sentido que todo conceito é uma tentativa
1
Leandro Colling é jornalista, mestre e doutor em Comunicação
e Cultura Contemporâneas, professor da Universidade Federal da Bahia e
coordenador do grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS).
2
Gilmaro Nogueira é psicólogo, mestre pelo Programa
Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade e integrante do
grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS).
173
TRANSPOSIÇÕES
de dar conta do real, e também mutável, na medida em que não
há um sentido único, mas variável dos conceitos.
Os conceitos em questão neste artigo se constituem em
tentativas de formular críticas às normas, que produzem modos
considerados normais e naturais de sexualidade, e aos atos decorrentes dessas normas, como, por exemplo, as violências contra as pessoas excluídas desses padrões.
Nesse sentido, os conceitos necessitam potencializar politicamente os grupos excluídos das representações normais de
sexualidade, apontar o caráter histórico e político das normas e
evidenciar as hierarquias das categorias sexuais como produtoras de violências e abjeções.
O objetivo do texto não é o de sugerir uma substituição de um conceito por outro, mas de tentar marcar diferenças
e contatos, de evidenciar o que cada um coloca em questão e reletir o quanto eles são limitados, imprecisos e podem produzir
novas exclusões dentro dos subalternos.
Homofobia
Homofobia é um conceito criado para pensar a repulsa
geral às pessoas homossexuais, ou fobia aos homossexuais. Segundo Borrillo (2001, p.21),
e, no que concerne aos homossexuais, o ódio
até a si mesmos o termo parece pertencer a K.
T. Smith, quem, em um artigo publicado em
1971, tentou analisar as características de uma
personalidade homofóbica. Um ano depois,
G. Weinberg deiniu a homofobia como ´o
temor de estar com um homossexual em um
espaço fechado ´.
Fone (2008, p. 20) suspeita que o termo tenha sido
cunhado na década de 1960 e também informa que um dos primeiros textos sobre o assunto foi o de Smith e que, em 1972,
George Weinberg publicou o livro Society and the healthy ho174
Em geral, usamos o conceito de homofobia para descrever
qualquer atitude e/ou comportamento de repulsa, medo ou preconceito contra os homossexuais. A homofobia não se restringe
apenas às violências físicas. Existe também a violência verbal, via
insultos e xingamentos; a violência psicológica, como as atitudes
que causam danos emocionais e à autoestima, tais como constrangimentos, humilhações, insultos; a violência simbólica, que se baseia na produção de representações de normalidade e anormalidade e faz com que os sujeitos se reconheçam nessas representações,
isto é, se vejam a partir das construções do discurso do Outro.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
mosexual, no qual deiniu a homofobia como “o temor de estar
perto de homossexuais”.
Borrillo diferencia vários tipos de homofobia (irracional, cognitiva, geral e especíica) e depois sintetiza:
A homofobia pode ser deinida como a hostilidade geral, psicológica e social, a respeito
daqueles e daquelas de quem se supõe que
desejam indivíduos de seu próprio sexo o
tenham práticas sexuais com eles. Forma especíica de sexismo, a homofobia rechaça
também a todos os que não se conformam
com o papel predeterminado para seu sexo
biológico. Construção ideológica consistente
na promoção de uma forma de sexualidade
(hétero) entre detrimento de outra (homo), a
homofobia organiza uma hierarquização das
sexualidades e extrai dela consequências políticas (BORRILLO, 2001, p. 36).
Ou seja, a homofobia, neste sentido, não seria apenas
um problema para os homossexuais, mas também poderia atingir os heterossexuais que, porventura, pareçam, aos olhos homofóbicos, como homossexuais.
O conceito de homofobia é controverso e, ainda que
muitas pessoas defendam o seu uso, em função dele já ter sido
incorporado por boa parte da sociedade, ou que o ampliem para
além de aspectos de ordem psicológica, como faz Junqueira
(2007), a ideia de fobia está, queiramos ou não, dentro do campo das patologias. Enquanto isso, sabemos que aprendemos no
175
TRANSPOSIÇÕES
dia-a-dia quem deve ser respeitado e quem pode ser injuriado,
portanto, não estamos falando de uma patologia em sentido estrito/inato, mas de um problema social/cultural e, se for o caso,
de uma patologia produzida pelas normas hegemônicas em torno das sexualidades e dos gêneros, como veremos a seguir3.
Outro problema tem a ver como o preixo homo é decodiicado no Brasil. Os criadores do conceito de homofobia agruparam
dois radicais gregos para formar a palavra: homo (semelhante) e fobia (medo). No entanto, para nós, homo signiica homossexual e,
por isso, o conceito de homofobia ica reduzido a uma identidade,
isto é, aos homossexuais masculinos, e invisibiliza a multiplicidade de
outros sujeitos e suas identidades. Isso fez surgir novos conceitos, tais
como lesbofobia, bifobia, travestifobia, transfobia. Borrillo (2011,
p.23) reconhece esse problema, dizendo que homofobia pode se
confundir como gayfobia, mas ainda assim decide usar apenas a noção de homofobia alegando “razões de economia de linguagem”.
Ora, trata-se de um argumento muito questionável, pois
sabemos, há muito tempo, em especial nos estudos das sexualidades e dos gêneros via Foucault (1998) e Butler (2003), por exemplo, que a linguagem está carregada de relações de poder e marcada pelas normas que geram preconceitos contra as pessoas não
heterossexuais. E, além disso, esses e tantos outros estudos evidenciam que a linguagem muda com o decorrer do tempo, em especial quando existe uma política para nela interferir. Portanto, não
se sustenta a alegação do uso de um conceito que, como vimos,
opera exclusões, em função de uma “economia de linguagem”.
Heteronormatividade
Nos chamados estudos gays e lésbicos, nos quais se desenvolveu o conceito de homofobia, outro conceito muito valorizado é o de heterossexismo,
3
Ou seja, não estamos utilizando aqui um falso binarismo entre
patologia versus problema social/cultural, mas apenas sublinhando o quanto
o termo patologia, em seu sentido comum, está muito ligado às questões
inatas e biológicas do ser humano.
176
Ainda que o conceito de heterossexismo também tenha
produzido muitas relexões e obteve certo sucesso junto aos estudos e políticas, colocando em questão a esfera hétero, a heterossexualidade, nos estudos sobre o tema, só foi deinitivamente tirada
de sua “zona de conforto” com os conceitos e relexões sobre heterossexualidade compulsória e heteronormatividade, caros aos
estudos queer, que são posteriores aos estudos gays e lésbicos.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
[..] que se deine como a crença na hierarquia
das sexualidades, que coloca a heterossexualidade em um nível superior. E o resto das
formas de sexualidade aparece, no melhor dos
casos, como incompletas, acidentais e perversas, e no pior, como patológicas, criminosas,
imorais e destruidoras da civilização (BORRILLO, 2011, p. 32).
O conceito de heterossexualidade compulsória começou a aparecer por volta de 1980. Neste ano, dois textos importantes foram publicados sobre o tema. Um deles é da feminista
Adrienne Rich (2010), em uma análise sobre a experiência lésbica. Para Rich, essa experiência é percebida através de uma escala
que vai do desviante ao odioso ou até mesmo invisível. Além
dessa percepção, as mulheres são convencidas de que o casamento e a orientação sexual, voltadas para os homens, são inevitáveis.
As mulheres são doutrinadas pela ideologia do romance heterossexual através de contos de fadas, da televisão, do cinema, etc,
isto é, todos esses mecanismos fazem propagandas coercitivas da
heterossexualidade e do casamento como padrão.
Através desses mecanismos, as mulheres seriam aprisionadas psicologicamente à heterossexualidade e tentariam ajustar
a mente e o espírito a um modo prescrito de sexualidade. Embora Rich faça uma análise da experiência lésbica, essa doutrina
também ocorre com os homens, mesmo que de modo diferente.
Também pensando a heterossexualidade em relação às
lésbicas (mas não usando as palavras heterossexualidade compulsória), Monique Wittig publica, em 1980, o texto O pensamento heterossexual, no qual argumenta que a heterossexualidade é um regime político que obriga as mulheres a reproduzir
177
TRANSPOSIÇÕES
para sustentar a sociedade heterossexual. Pelo fato das lésbicas
não se submeterem a esse regime, Wittig (2006, p. 57) conclui:
“as lésbicas não são mulheres” Para ela, a heterossexualidade não
é uma orientação sexual, mas um regime político que se baseia
na submissão e na apropriação das mulheres. O feminismo, ao
não questionar esse regime, diz Wittig, ajudar a consolidá-lo.
A heterossexualidade compulsória consiste na exigência
de que todos os sujeitos sejam heterossexuais, isto é, se apresenta
como única forma considerada normal de vivência da sexualidade. Essa ordem social/sexual se estrutura através do dualismo heterossexualidade versus homossexualidade, sendo que a heterossexualidade é naturalizada e se torna compulsória. Isso ocorre,
por exemplo, quando buscamos as causas da homossexualidade,
um fetiche vigente ainda hoje inclusive entre militantes e pesquisadores que se dizem pró-LGBT4. Ao tentar identiicar o que
torna uma pessoa homossexual, colocamos a heterossexualidade
como padrão, como um princípio na vida humana, do qual, por
algum motivo, alguns se desviam.
Mesmo que não consideremos que a homossexualidade seja anormal ou patológica, cada vez que tentamos achar um
momento ou ocasião que a origina, nós naturalizamos a heterossexualidade e ocultamos um dos mecanismos de produção da
anormalidade, isto é, a naturalização da sexualidade. Para não
incorrer nesse erro conceitual e político, teríamos que substituir
a questão de uma causa da sexualidade para problematizar que
mecanismos tornam alguns sujeitos aceitáveis, normalizados,
coerentes, inteligíveis (Butler, 2003) e outros desajustados, abjetos. Sairíamos de uma busca pela causa para uma problematização dos mecanismos de produção das abjeções.
Mas o que queremos dizer, seguindo os estudos queer,
que a heterossexualidade não é natural? Primeira observação:
4
No início de 2013, por exemplo, a polêmica voltou à tona quando
o geneticista Eli Vieira, em resposta ao pastor Silas Malafaia, publicou um
vídeo na internet em que defendia estudos que tentam comprovar causas genéticas para a homossexualidade. Colling rebateu os “argumentos” do geneticista em texto que pode ser acessado em http://www.ibahia.com/a/blogs/
sexualidade/2013/02/05/nem-pastor-nem-geneticista-e-a-cultura-caralho/
178
Mas por que, ainal, a heterossexualidade não é natural
nesses termos que esboçamos aqui. Não o é porque a sociedade
obriga que todos sejamos heterossexuais e, para isso, desenvolve
o que alguns estudos, como os de Guacira Lopes Louro (2010),
chama de “pedagogia da sexualidade”. Mesmo antes de nascermos, a nossa heterossexualidade já é imposta sobre nós. Vários
instrumentos são usados nesse processo, em especial as normas
relativas aos gêneros. A escolha do nome e das roupas do bebê
precisam atender aquilo que a sociedade determinou como nomes e coisas de menino ou de menina.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
quando dizemos que a sexualidade de alguém não é natural não
queremos dizer, com isso, que as pessoas são doentes. Apenas
enfatizamos que a sexualidade de cada pessoa não é o resultado de ações exclusivas de cada um de nós. Ou melhor, que as
nossas sexualidades sofrem fortes inluências do meio onde vivemos. Certamente muitas pessoas heterossexuais icam chocadas
quando dizemos que ser heterossexual não é algo natural. Elas
sempre pensam que “diferentes” são as pessoas LGBT, que por
algum motivo se desviam da naturalidade e que os heterossexuais vivem sua sexualidade naturalmente.
Assim, começamos a ser criados/educados e também
violentados para nos comportar como meninos ou como meninas, a depender da nossa genitália. Caso não sigamos as normas,
começamos a sofrer violências verbais e/ou físicas. Ou seja, a
violência sofrida por aqueles que não seguem as normas comprova que a norma não é natural. Se assim o fosse, a violência
não seria necessária, pois todos e todas nasceriam e se comportariam desde sempre como heterossexuais. A violência é o modus
operandi com o qual a heterossexualidade sobrevive inabalável
enquanto norma hegemônica. Temos esse modelo de heterossexualidade à custa de muito sangue e dor.
Confrontadas com essas evidências, algumas pessoas recorrerem à reprodução da espécie e aos hormônios para explicar
a atração e diferenças entre pessoas de sexos diferentes. Os mais
afoitos dizem que se todos fossem homossexuais a vida humana
na terra estaria ameaçada. Tudo isso revela o poder do discurso
179
TRANSPOSIÇÕES
naturalizante e reprodutivo sobre as nossas sexualidades. Primeiro: faz muito tempo que os homens perderam a capacidade de identiicar quando uma mulher está no cio. Ao ingressar
em uma nova etapa do processo histórico da humanidade, que
Freud (2010), por exemplo, chamou de “civilização” ou de “cultura”, os homens e mulheres domaram os seus instintos e, no mínimo, os transformaram em “pulsões”.
O conceito de pulsão é complexo, é “aquilo que está entre o
mental e o somático” (Birman, 2009) e aqui pode ser traduzido entre aquilo que diz o corpo (biologia/instinto “natural”) e a
mente. Ou seja, a nossa sexualidade não pode mais ser explicada
como um dado exclusivo de nossos instintos, hormônios etc desde, pelo menos, Freud, lá pelos idos de 1900. É evidente que temos cargas hormonais diferentes entre homens e mulheres, mas
não são elas que acionam sozinhas os nossos prazeres e não são
apenas elas que comandam o nosso processo de identiicação em
relação às orientações sexuais e identidades de gênero.
Em uma sociedade como a nossa, midiática e dominada
pela produção de corpos em academias e pela ingestão de uma
série de produtos químicos (Preciado, 2008), as identiicações e
os prazeres são acionados por um sem número de outras coisas, a
exemplo de imagens, padrões corporais, experiências anteriores,
associações que fazemos de forma consciente ou não. Isso não
quer dizer que a ação de apenas uma pessoa seja determinante
para a sexualidade de alguém. Os processos de identiicação, todos eles, desde porque gostamos de determinada cor e não outra,
sofrem milhares de inluências externas que são decodiicadas
de formas igualmente diversas pelos sujeitos. Isso também explica porque, mesmo sendo educados para sermos heterossexuais, muitas pessoas não decodiicam a mensagem como deseja a
maioria e orientam o seu desejo para outras direções.
E sobre a perpetuação da espécie humana? Ora, eis mais
um argumento que, no fundo, é preconceituoso e profundamente vinculado com uma perspectiva naturalizante, que sempre aparece vinculada com a perspectiva reprodutiva, como se
toda a nossa sexualidade só tivesse como inalidade a procriação.
180
Com a retirada da homossexualidade da categoria de
crime e a sua posterior despatologização, a partir de 1973, a
heterossexualidade compulsória perde um pouco de força em
alguns países. Isto porque a patologização sustentava a heterossexualidade como única forma sadia de vivenciar a sexualidade.
A partir de então, heterossexualidade e homossexualidade são
consideradas formas possíveis de vivência da sexualidade, ao menos em tese, em muitos lugares do planeta (mas não em todos).
Mesmo que a “ciência” tenha retirado a homossexualidade (e
mantido a transexualidade) na lista das doenças, no senso comum as pessoas ainda acreditam que ser normal e sadio é ser hétero. Além disso, algumas concepções “cientíicas” partem ainda
da heterossexualidade como natureza humana e se apoiam no
dualismo hétero versus homo.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Primeiro que, ao dizer que a heterossexualidade não é natural,
não estamos dizendo que todos devam ser homossexuais (aliás, que pânico é esse, não?). Segundo: hoje existem tecnologias
suicientes para a produção de gestações sem o famoso sexo papai-mamãe. Os primeiros a usar esses métodos, aliás, foram os
heterossexuais, é bom lembrar.
Os estudos sobre a heterossexualidade compulsória,
além de analisar as sexualidades heterossexuais, que são problematizadas e explicadas, também realizam relexões de modo a
entender as orientações sexuais não heterossexuais. Nas relações
sociais, a vivência não heterossexual pode ser alvo de atos homofóbicos, isto é, o sujeito não hétero não é considerado digno
de viver, de ocupar cargos públicos ou de fazer parte do rol de
amigos. Ou seja, a homofobia pode ser uma forma de expressão
dessa heterossexualidade compulsória.
Já o conceito de heteronormatividade, segundo Miskolci
(2012), foi criado em 1991, por Michael Warner, que busca dar
conta de uma nova ordem social. Isto é, se antes essa ordem exigia que todos fossem heterossexuais, hoje a ordem sexual exige
que todos, heterossexuais ou não, organizem suas vidas conforme o modelo “supostamente coerente” da heterossexualidade.
181
TRANSPOSIÇÕES
Enquanto na heterossexualidade compulsória todas as
pessoas devem ser heterossexuais para serem consideradas normais, na heteronormatividade todas devem organizar suas vidas
conforme o modelo heterossexual, tenham elas práticas sexuais
heterossexuais ou não. Com isso entendemos que a heterossexualidade não é apenas uma orientação sexual, mas um modelo
político que organiza as nossas vidas.
Se na heterossexualidade compulsória todas as pessoas
que não são heterossexuais são consideradas doentes e precisam
ser explicadas, estudadas e tratadas, na heteronormatividade elas
tornam-se coerentes desde que se identiiquem com a heterossexualidade como modelo, isto é, mantenham a linearidade entre
sexo e gênero (Butler, 2003): as pessoas com genitália masculina
devem se comportar como machos, másculos, e as com genitália
feminina devem ser femininas, delicadas. Nesse sentido, um homem até pode ser homossexual, inclusive fora do armário, mas
não pode se identiicar com o universo feminino, nem uma mulher lésbica pode se identiicar com o masculino.
Enquanto a heterossexualidade compulsória se sustenta
na crença de que a heterossexualidade é um padrão da natureza, a heteronormatividade advoga que ter um pênis signiica ser
obrigatoriamente másculo, isto é, o gênero faz parte ou depende da “natureza”; existe uma relação mimética do gênero com a
materialidade do corpo. Em ambas a naturalidade aparece como
sustentáculo. Na perspectiva da heteronormatividade, é preciso
que a erotização (não heterossexual) seja invisibilizada, isto é,
dois homens podem aparecer como parceiros, mas esse vínculo
não pode ser erotizado/sexualizado, ou, como dizem as pessoas:
“o sexo é dentro de quatro paredes, pode fazer o que quiser na
cama, mas na rua se comporte como homem”. Para organizar a
sua vida conforme a heteronormatividade, os homossexuais devem fazer tudo o que um heterossexual faz. Assim, o ritual do
casamento e a adoção de crianças se transformam em um simulacro da sexualidade reprodutiva.
Ainda como motor da heteronormatividade, podemos
citar as concepções de saúde/doença existentes nos manuais de
182
Miskolci (2012) também se preocupou em fazer a distinção entre heterossexismo, heterossexualidade compulsória e
heteronormatividade. Ele sintetiza:
Heterossexismo é a pressuposição de que todos são, ou deveriam ser, heterossexuais. (...)
A heterossexualidade compulsória é a imposição como modelo dessas relações amorosas
ou sexuais entre pessoas do sexo oposto. (...)
A heteronormatividade é a ordem sexual do
presente, fundada no modelo heterossexual,
familiar e reprodutivo. Ela se impõe por meio
de violências simbólicas e físicas dirigidas
principalmente a quem rompe normas de gênero (MISKOLCI, 2012, p. 43-44).
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
diagnóstico, que continuam considerando como portadores de
um transtorno de gênero quem não segue a linha coerente entre
sexo / gênero. Pessoas com genitália masculina que se constroem como femininas ou com vagina que se constroem como masculinas são ainda consideradas como doentes.
Saídas e potencialidades
Após essas relexões, o que sugerimos? O abandono do
conceito de homofobia? Junqueira também fez essas perguntas
e concluiu:
Mesmo que o conceito de homofobia se preste
a diferentes entendimentos e o de heteronormatividade nos acene com a possibilidade de
análises mais fecundas e ações potencialmente
mais incisivas, não creio ser prudente defender
o imediato abandono do primeiro em favor do
último. Seja como for, diferentes e fortemente
relacionados, os conceitos de homofobia e heteronormatividade, entre outros, talvez possam
contribuir para compreendermos dimensões
distintas de mesmos fenômenos ou de processos conexos. Abandonar o conceito de homofobia pode comportar o risco de jogarmos
fora a criança junto com a água do banho, mas
empregá-lo de modo acrítico pode certamente
comprometer a produção dos efeitos que dele
se espera (JUNQUEIRA, 2007, p. 165).
183
TRANSPOSIÇÕES
Nós pensamos que o uso do conceito de homofobia necessita estar colado com as relexões sobre heterossexualidade
compulsória e heteronormatividade, que possuem a vantagem
de pontencializar várias questões, eis apenas algumas delas:
1) denunciar a violência utilizada para que a heterossexualidade compulsória e a heteronormatividade se mantenham
no centro, disfrutando do poder de deinir o que é marginal, natural e sadio;
2) revelar o caráter histórico e construído das sexualidades em geral e as suas permanentes mutações;
3) evidenciar que a heterossexualidade compulsória e a
heteronormatividade produzem a homo, lesbo, bi e transfobia e
também preconceitos contra outras formas de vivenciar as heterossexualidades;
4) evidenciar a multiplicidade e evitar a homogeneização das identidades através de um único arranjo identitário,
como faz, em alguma medida, o conceito de homofobia;
5) convocar o “Outro normalizado” a questionar a sua
própria naturalidade e tirá-lo desta “zona de conforto” que colabora para a produção das abjeções;5
6) possibilidade de agrupar pessoas de diferentes categorias para a luta contra a produção das subalternidades. O
conceito de heteronormatividade pode evidenciar que determinados heterossexuais também podem ser discriminados e, assim,
podem se sentir convocados a lutar a favor de uma sociedade
que aceite, conviva e apreenda com as inúmeras expressões das
sexualidades e dos gêneros.
Referências
BIRMAN, Joel. As pulsões e seus destinos: do corporal ao psíquico. Civiliza5
Apenas a título de exemplo, citamos os heterossexuais passivos. Ler
Nogueira
184
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ção Brasileira, 2009.
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185
186
TRANSPOSIÇÕES
DIfERENÇAS, MULTIPLICIDADE,
TRANSVERSALIDADE: PARA ALéM
DA LÓGICA IDENTITÁRIA DA
DIVERSIDADE
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
9
Sílvio Gallo1
Somos heterossexuais estatisticamente ou molarmente, mas homossexuais pessoalmente,
quer o saibamos ou não, e, por im, transexuados elementarmente, molecularmente (Gilles
Deleuze; Félix Guattari, O Anti-Édipo, p. 97).
A noção de diferença ganhou o mundo, no inal do século vinte. E chegou ao campo teórico da educação e às escolas.
Educar a diferença; educar na diferença; educar para a diferença passaram a ser palavras de ordem em planos de educação de
órgãos governamentais, em projetos políticos pedagógicos de
escolas, em projetos de organizações não governamentais. Projetos multiculturais proliferam, culturas de paz, tolerância e
convivência consensual são airmadas nos mais diversos âmbitos. Airmamos o multiculturalismo e o respeito à diversidade e
dormimos em paz com nossa consciência burguesa. Como diria
1
Professor Associado (Livre Docente) do Departamento de Filosoia e História da Educação, Faculdade de Educação da Universidade Estadual
de Campinas. Coordenador do DiS – Grupo de Estudos e Pesquisas Diferenças e Subjetividades em Educação e Pesquisador do CNPq. E-mail para
contato: silvio.gallo@gmail.com.
187
TRANSPOSIÇÕES
o impertinente Tom Zé: faça suas orações uma vez por dia, depois
mande a consciência, junto com os lençóis, pra lavanderia...2
Mas uma pergunta se impõe: compreendemos, de fato,
a diferença? Vivemos a diferença, ou ela está apenas em nossos
discursos? Enim: como nos relacionamos com as diferenças?
A diferença está aí, sempre esteve, para quem teve olhos
para ver... Ela não é nenhuma novidade. E não está para ser reconhecida, respeitada, tolerada. Tudo isso implica em tentar
apagar a diferença, não em vivê-la, de fato, convivendo, compartilhando a vida com as diferenças que nos rodeiam.
A questão é que estamos colonizados pela ilosoia da
representação e, em seu contexto, percebemos a diferença em relação ao mesmo e não em relação a si mesma. A lógica da representação é centrada no princípio de identidade, que airma que
uma coisa é idêntica a si mesma (A=A) e diferente de seu outro
(A≠B). A diferença é pensada, portanto, sempre em relação à
identidade. Se dizemos que x é diferente, é porque ele é diferente de uma certa identidade previamente deinida, isto é x é
diferente de y, por exemplo. Para dizer de outra maneira, pensamos sempre a diferença em relação a algo, nunca a diferença pela
diferença, ou a diferença em si mesma. Neste referencial, a diferença não é, de fato, diferença, mas simples variação. Variação do
mesmo. Por isso está contida no mesmo. E pode ser respeitada,
tolerada, reconhecida, porque não sai do contexto, porque não
causa estrago, porque apenas conirma a norma. Seja ou não trazida para dentro da norma, ela é a conirmação da regra.
Gilles Deleuze apontou com precisão em que medida a
ilosoia da representação perde a diferença:
A representação deixa escapar o mundo airmado da diferença. A representação tem
apenas um centro, uma perspectiva única e
fugidia e, portanto, uma falsa produtividade;
mediatiza tudo, mas não mobiliza nem move
nada. O movimento implica, por sua vez, uma
2
Versos da canção Defeito 1: O gene, gravada no álbum Com defeito
de fabricação, lançado em 1998.
188
Para experimentar a diferença é preciso mudar os óculos
ilosóicos. Deleuze propôs uma ilosoia baseada na diferença e
não na identidade, que escapa ao âmbito da representação. Segundo o ilósofo, a diferença é tratada na ilosoia da representação como uma espécie de “monstro”:
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
pluralidade de centros, uma superposição de
perspectivas, uma imbricação de pontos de
vista, uma coexistência de momentos que
deformam essencialmente a representação: já
um quadro ou uma escultura são “deformadores” que nos forçam a fazer o movimento, isto
é, a combinar uma visão rasante e uma visão
mergulhante, ou a subir e a descer no espaço
na medida em que se avança (DELEUZE,
2000, p. 121-122).
E não é certo que seja apenas o sono da Razão a engendrar monstros. Também a vigília,
a insônia do pensamento, os engendra, pois
o pensamento é este momento em que a determinação se faz una à força de manter uma
relação unilateral e precisa com o indeterminado. O pensamento “faz” a diferença, mas a
diferença é o monstro /.../ Arrancar a diferença de seu estado de maldição parece ser, pois,
a tarefa da ilosoia da diferença (DELEUZE,
2000, p. 82-83).
A ilosoia da diferença tira a diferença do jugo da representação, em que ela é vista mais como negação ou ao menos
como relativa a uma identidade, para tratá-la como airmação.
Tomando a diferença em si mesma e para si mesma, sem ser relativa a algo ou mesmo uma negação signiica deslocar o referencial da unidade para a multiplicidade. Diferenças, sempre no
plural. Diferenças que não podem ser reduzidas ao mesmo, ao
uno, diferenças que não estão para serem toleradas, aceitas, normalizadas. Diferenças pelas diferenças, numa política do diverso, implicando um outro jogo, que não é o do consenso.
A questão, então, está em pensar a diferença no registro
da identidade e da unidade ou em pensá-la no registro da diferença mesma e da multiplicidade. Em suma, está em jogo o embate
entre dois projetos ilosóicos muito antigos: pensar o mundo
189
TRANSPOSIÇÕES
como identidade (registro da representação), projeto que se tornou hegemônico no ocidente; ou pensar o mundo como diferença (registro da multiplicidade), projeto que icou marginalizado.
O que airmo aqui é que nossas práticas e nossas políticas públicas estão sendo pensadas e produzidas no registro da
identidade. Por exemplo, o movimento negro defende a “identidade negra” ou mesmo a “identidade afro”; o movimento gay,
por sua vez, investe na airmação de uma “identidade homossexual”, de uma “identidade gay”. Claro, esses movimentos identiicam que o jogo político se trava no tabuleiro da identidade, com
suas casas pretas e brancas; ou se é uma coisa ou se é outra. Daí
a necessidade de airmar uma identidade de grupo, para ganhar
força na luta.
Mas o problema se impõe: ao jogar nesse tabuleiro não
estaremos aceitando as armas e as regras do “inimigo”? Não estamos nos submetendo a ele, jogando seu jogo? E ao fazer isso não
estaremos sendo recolhidos no mesmo, apagando as diferenças?
Por que não impor novas regras? A tentativa que faço,
pois, é de pensar no registro da diferença, investir em outra lógica, de modo a airmar, de fato, as diferenças e não perdê-las ao
investir na lógica da identidade.
Diferenças e multiplicidade
Quando pensamos a diferença por si mesma, fora do
registro da identidade, airmamos a multiplicidade, o mundo
como conjuntos de diferenças, que estabelecem, entre si, as mais
distintas relações. No prefácio à edição italiana de seu livro Mil
Platôs, Gilles Deleuze e Félix Guattari airmaram que tratava-se
de um projeto “construtivista”, de uma “teoria das multiplicidades” tomadas por si mesmas e esclareceram:
As multiplicidades são a própria realidade, e
não suportam nenhuma unidade, não entram
em nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um
190
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
sujeito. As subjetivações, as totalizações, as
uniicações são, ao contrário, processos que se
produzem e aparecem nas multiplicidades. Os
princípios característicos das multiplicidades
concernem a seus elementos, que são singularidades; as suas relações, que são devires; a seus
acontecimentos, que são hecceidades (quer
dizer, individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres; a
seu modelo de realização, que é o rizoma (por
oposição ao modelo da árvore); a seu plano
de composição, que constitui platôs (zonas de
intensidade contínua); aos vetores que as atravessam, e que constituem territórios e graus de
desterritorialização. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 8).
Como vemos, trata-se de uma forma de compreender o
mundo: podemos concebê-lo como multiplicidade, que faz proliferar diferenças, ou como unidade, na qual as diferenças nada
mais são do que distintos aspectos do mesmo. No registro da
unidade, impõe-se uma universalização: somos diferentes, mas
no fundo somos iguais, pois nos reconhecemos na unidade do
humano, por exemplo.
Podemos lembrar aqui uma canção do grupo Karnak,
que evidencia esse recolhimento das diferenças na universalidade do mesmo. Cito a letra:
O Mundo
Karnak (álbum Karnak, 1995)
Composição: André Abujanra / Karnak
O mundo é pequeno pra caramba
Tem alemão, italiano e italiana
O mundo ilé milanesa
Tem coreano, japonês e japonesa
O mundo é uma salada russa
Tem nego da Pérsia, tem nego da Prússia
O mundo é uma esiha de carne
Tem nego do Zâmbia, tem nego do Zaire
O mundo é azul lá de cima
O mundo é vermelho na China
O mundo tá muito gripado
O açúcar é doce, o sal é salgado
191
TRANSPOSIÇÕES
O mundo caquinho de vidro
Tá cego do olho, tá surdo do ouvido
O mundo tá muito doente
O homem que mata, o homem que mente
Por que você me trata mal
Se eu te trato bem
Por que você me faz o mal
Se eu só te faço o bem
Todos somos ilhos de Deus
Só não falamos as mesmas línguas
Todos somos ilhos de Deus
Só não falamos as mesmas línguas
Everybodyis ilhos de God
Só não falamos as mesmas línguas
Everybodyis ilhos de Ghandi
Só não falamos as mesmas línguas
A intrigante canção, com seu tom irônico e brincalhão,
faz desilar sob nossos olhos e faz adentrar nossos ouvidos um
conjunto de diferenças; mas elas se resolvem no refrão: “todos
somos ilhos de deus / só não falamos as mesmas línguas”. Ora,
embora sejamos a expressão das diferenças, embora vivamos diferentes culturas, embora falemos diferentes línguas, “todos somos ilhos de deus”. A universalidade de sermos ilhos de deus
(ou simplesmente humanos, se quisermos sair do registro do religioso) “resolve” nossas diferenças, nos coloca todos no mesmo
patamar: no inal das contas, somos todos iguais. Eis o discurso
da unidade.
No registro da multiplicidade, não há redução igualitária possível; somos, todos, diferentes. E não há remédio; não
há, de antemão, o que nos reúna, o que nos resolva, o que nos
faça “tolerar” uns aos outros. Viver a multiplicidade, viver na
multiplicidade, airmar a diferença é não encontrar o porto seguro da igualdade.
Não há, no registro da multiplicidade, o apelo à identidade, posto que não há sujeito. A noção de sujeito, mostrou Deleuze em outro lugar,3 funcionou muito bem na modernidade
3
Reiro-me a um texto de 1988, intitulado Réponse à une question
sur Le sujet, publicado na coletânea de textos e entrevistas organizadas por
192
No registro da multiplicidade, o que temos são singularidades sem sujeito, que se articulam entre si produzindo agenciamentos, inscrevendo-se em dispositivos. As singularidades não são pessoas ou indivíduos, mas expressões
das diferenças que se misturam e se transformam constantemente na medida em que agenciam-se com outras singularidades. As singularidades nunca estão dadas ou prontas, estão
sempre em devir, em movimento.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
porque atendeu à sua problemática central: articular universal
e particular numa única igura. É isso, o sujeito: um indivíduo
que traz em si uma universalidade. Esse sujeito, enquanto indivíduo, possui, assim, uma identidade que é reconhecida na universalidade do conjunto dos sujeitos. É a identidade que permite
sua individualização. Mas esse pensamento moderno que centrou-se no sujeito era justamente um pensamento da representação, que airmava a unidade do universal, não um pensamento
do múltiplo e da diferença.
De modo que as singularidades não são portadoras de
qualquer universalidade, nem redutíveis a qualquer unidade
universalizante. São singularidades, diferenças airmadas. Diferenças que podem viver em comum, agenciando-se e agenciando projetos, mas sem apelarem para uma igualdade de fundo que
permita o diálogo. O agenciamento se faz nas diferenças e pelas
diferenças, produzindo dispositivos múltiplos, sempre em devir.
As singularidades territorializam, produzem territórios, platôs,
possibilidades, mas também desterritorializam, desconstroem
aquilo que está instituído, buscando novas possibilidades. Nada
está dado de antemão; nada é universal.
Diferenças e transversalidade
O mundo visto pela ilosoia da diferença é um mundo
sem hierarquias. As relações que se produzem entre as singularidades que se agenciam são relações transversais, feitas sempre
no mesmo nível.
David Lapoujade: Deux Régimes de Fous – texteset entretiens (1975-1995).
193
TRANSPOSIÇÕES
O conceito de transversalidade foi proposto por Félix
Guattari no começo da década de 1960, como forma de compreender as relações travadas no campo da análise institucional.
Penso que tal conceito pode ser estendido para as relações entre
as singularidades, e então vale a pena atentarmos para as considerações de Guattari quando airma que:
Transversalidade por oposição a:
– uma verticalidade que se encontra por
exemplo nas descrições feitas pelo organograma de uma estrutura piramidal (chefes, subchefes etc.);
– uma horizontalidade como aquela que se
pode realizar no pátio do hospital, na ala dos
agitados, ou melhor, a dos cretinos, isto é, certo estado de fato em que as coisas e as pessoas
se arranjam como podem à situação na qual se
encontram (GUATTARI, 2004, p. 110).
Percebe-se que se é evidente que a transversalidade implica em uma perspectiva não hierárquica, opondo-se às relações
tomadas como verticalidade, ela também se opõe (o que é menos evidente) a relações horizontais, quando essas são tomadas
apenas como adaptação a uma situação dada. A transversalidade
se coloca para além de verticalidade e de horizontalidade; ela é
de outra natureza, justamente por ser concebida como relações
travadas entre singularidades, que são diferenças. Não se trata
da relação entre sujeitos de distintos níveis hierárquicos, mas
também não se trata da relação entre sujeitos “aparentemente
iguais”, que se encontram no mesmo nível. A transversalidade
é marcada por um encontro de diferenças sem que haja, porém,
o predomínio de umas sobre outras. É o exercício de se inventar
novas formas de relação, novos atravessamentos, que possibilitem agenciamentos coletivos.
Não sendo nem verticalidade pura nem horizontalidade
simples, airma Guattari (2004, p. 111) que a transversalidade
“tende a se realizar quando ocorre uma comunicação máxima
entre os diferentes níveis e, sobretudo, nos diferentes sentidos”.E essa comunicação máxima possibilita a instituição de
“um novo gênero de diálogo” (idem, p. 114): não um diálogo
194
Vimos anteriormente que as multiplicidades se realizam
em rizomas. Esse conceito foi criado por Deleuze e Guattari e
apresentado em Mil Platôs como oposição ao modelo da árvore
e da raiz, que é, por natureza, hierárquico. No rizoma, não há
hierarquia, mas heterogeneidade e conexão: diferenças que se
encontram e se conectam umas às outras. O rizoma é um mapa
aberto, no qual os traçados vão se constituindo como devires e
não um decalque, a imposição de uma cópia, de um modelo sobre o múltiplo. O rizoma “não tem começo nem im, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 32).
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
entre “iguais”, que nada acrescentaria, mas um diálogo entre diferentes singularidades, que se expressam em suas diferenças e,
nessa condição, possibilitam um agenciamento, uma expressão
coletiva que, mais tarde, junto com Deleuze, Guattari denominaria “agenciamento coletivo de enunciação”, para distingui-lo
do “agenciamento maquínico de desejo”.4É esse diálogo das diferenças em suas diferenças, sem a busca de alguma universalidade
que as possa reunir numa identidade, que pode produzir mais
diferença, desterritorializando o que está instituído e abrindo
novos campos de possíveis.
A transversalidade constitui, pois, a forma de luxo e de
encontros entre as singularidades em um rizoma. Sem hierarquia; sem imposição; sem dominação; sem unidade. Multiplicidades singulares agenciadas, conectadas, produzindo encontros
e possibilidades.
Um rizoma não começa nem conclui, ele
se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é iliação,
mas o rizoma é aliança, unicamente aliança.
A árvore impõe o verbo “ser”, mas o rizoma
tem como tecido a conjunção “e... e... e...” [...]
Entre as coisas não designa uma correlação
localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular,
4
Fugiria do escopo deste texto aprofundar-se nessa distinção entre os
dois agenciamentos; sugiro ao eventual leitor interessado que recorra ao livro
de Deleuze e Guattari, Kaka, por uma literatura menor. De modo especial ao
seu último capítulo, cujo título é, justamente: “O que é um agenciamento?”.
195
TRANSPOSIÇÕES
um movimento transversal que as carrega uma
e outra riacho sem início nem im, que rói as
suas margens e adquire velocidade no meio.
(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 37).
Aliança: palavra-chave do rizoma. Alianças entre singularidades, produzidas nos encontros e nas conexões. Sempre
“entre” as coisas, “entre” as singularidades que se conectam e se
agenciam: aí reside a transversalidade como movimento do devir.
Diferenças e “direito”: outra política, lutas outras...
Vivemos no Brasil uma história de cinco séculos de relações verticais de dominação, de sujeição, de discriminação e de
preconceito. Só muito recentemente em nossa história, a diversidade e o multiculturalismo começaram a ser airmados como
valores e não se reverte um quadro histórico de discriminação e
violência de um dia para outro, de um ano para outro. O processo é lento e as lutas são contínuas; às vezes, um passo à frente
signiica dois passos atrás no momento seguinte.
A bandeira política que temos empunhado na airmação da diversidade é a bandeira contra o preconceito e contra
a discriminação, na airmação dos direitos de todos e de cada
um, entendendo-se tais direitos como “universais”. Em última
instância, nossa referência social e política segue sendo a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, que os
franceses aprovaram em 1789 como um dos resultados de sua
revolução, bem como sua forma mais contemporânea, aprovada pela ONU em 1948 como a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Nas políticas públicas recentes no Brasil, na tentativa de
saldar sua dívida histórica com os grupos dominados, explorados, silenciados e mesmo perseguidos, vêm sendo airmados os
direitos dos afrodescendentes, dos indígenas, das mulheres, dos
homossexuais, das crianças e adolescentes, dentre outros, não
sem muita luta e conlitos, como todos sabemos. Conhecendo a
história desse país, torna-se difícil, para qualquer um que se pre196
Mas a provocação que faço é a seguinte: ao lutar por
esses direitos, tomados como direitos universais, não estaremos
reforçando a lógica da dominação, sendo uma vez mais presas do
pensamento da representação e da universalidade? Enim, ao lutarmos pelo “direito à diferença” não estaremos perdendo a diferença pela reairmação do mesmo? Ou, ainda: se sou “respeitado”
como diferente em nome de um direito imposto (uma legislação,
por exemplo), não será esse “respeito” algo ilusório e vazio?
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
tenda minimamente “progressista”, na falta de palavra melhor,
colocar-se contra tal movimento, uma vez que isso signiicaria
reairmar a discriminação e a dominação.
Para ajudar-nos a pensar essas questões e para tentar
pensá-las na lógica da multiplicidade, recorro uma vez mais a
Deleuze. Agora não exatamente a um texto, mas a uma longa
entrevista ilmada com ele em 1988, com a condição de que ela
só seria veiculada na televisão após sua morte.5 A jornalista Claire Parnet escolheu, para cada letra do alfabeto, uma palavra, de
modo que a partir dela o ilósofo teceria seu comentário, com
intervenções da jornalista. Recorro aqui à letra G, em francês
destinada a gauche, esquerda. Deleuze foi incitado a comentar
sobre a esquerda, mas fez um certo desvio para falar dos “Direitos Humanos” e apresentou uma crítica mordaz. Recortei os
trechos que me parecem mais signiicativos; ainda assim a citação icou bastante longa, mas penso que vale a pena seguirmos o
raciocínio do ilósofo.
A respeito dos Direitos Humanos, tenho vontade de dizer um monte de coisas feias. Isso
tudo faz parte deste pensamento molenga
daquele período pobre de que falamos. É puramente abstrato. O que quer dizer “Direitos
Humanos”? É totalmente vazio. É exatamente
o que estava tentando dizer há pouco sobre o
desejo. O desejo não consiste em erguer um
objeto e dizer: “Eu desejo isto”. Não se deseja a
liberdade. Isso não tem valor algum. Existem
5
A entrevista acabou sendo veiculada pela primeira vez na televisão
francesa em 1994, embora Deleuze só viesse a falecer no ano seguinte. Porém, como estava muito doente e sentindo-se muito próximo da morte, ele
autorizou sua veiculação.
197
TRANSPOSIÇÕES
198
determinadas situações como, por exemplo,
a da Armênia. É um exemplo bem diferente.
Qual é a situação por lá? [...] Pelo que se sabe
atualmente, suponho que seja isso: o massacre
dos armênios mais uma vez no enclave. Os armênios se refugiam em sua República [...] E aí,
ocorre um terremoto. Parece uma história do
Marquês de Sade. Esses pobres homens passaram pelas piores provas, vindas dos próprios
homens e, mal chegam a um local protegido, é
a vez da natureza entrar em ação. E aí, vêm me
falar de Direitos Humanos. É conversa para
intelectuais odiosos, intelectuais sem ideia.
Notem que essas Declarações dos Direitos
Humanos não são feitas pelas pessoas diretamente envolvidas: as sociedades e comunidades armênias. Pois para elas não se trata de
um problema de Direitos Humanos. Qual é o
problema? Eis um caso de agenciamento. O
desejo se faz sempre através de um agenciamento. O que se pode fazer para eliminar este
enclave ou para que se possa viver neste enclave? É uma questão de território. Não tem nada
a ver com Direitos Humanos, e sim com organização de território [...] Não é uma questão
de Direitos Humanos, nem de justiça, e sim
de jurisprudência. Todas as abominações que
o homem sofreu são casos e não desmentidos
de direitos abstratos. São casos abomináveis.
Pode haver casos que se assemelhem, mas é
uma questão de jurisprudência [...] Agir pela
liberdade e tornar-se revolucionário é operar
na área da jurisprudência. A justiça não existe!
Direitos Humanos não existem! O que importa é a jurisprudência. Esta é a invenção do
Direito. Aqueles que se contentam em lembrar e recitar os Direitos Humanos são uns
débeis mentais! Trata-se de criar, não de se fazer aplicar os Direitos Humanos. Trata-se de
inventar as jurisprudências em que, para cada
caso, tal coisa não será mais possível. É muito
diferente [...] Este pensamento dos Direitos
Humanos é ilosoicamente nulo. A criação
do Direito não são os Direitos Humanos. A
única coisa que existe é a jurisprudência. Portanto, é lutar pela jurisprudência [...] Ser de
esquerda é isso. Eu acho que é criar o direito.
Criar o direito (DELEUZE, 2004, verbete G
comme Gauche).
Para Deleuze, a questão se coloca no nível da jurisprudência, noção à qual ele também recorreu no texto anteriormente
citado sobre o conceito de sujeito. Ali, ele airmou que “a noção
jurídica de ‘caso’, ou de ‘jurisprudência’ destitui o universal em benefício das emissões de singularidades e das funções de prolongamento” (DELEUZE, 2003, p. 327). Sem universal, não há como
julgar senão caso a caso. E o juízo dos casos vai constituindo uma
jurisprudência, que ajuda a avaliar casos similares. Para o ilósofo,
o pensamento “de esquerda” se coloca no âmbito da jurisprudência: não atuar em nome de universais, mas sempre em lutas locais
e localizadas. Um pouco adiante, comentou:
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Ainda que seja central na argumentação de Deleuze um
exemplo que estava na ordem do dia das discussões na Europa na
época, mas que já está bastante distante de nós, ica evidente sua
perspectiva. Os Direitos Humanos são uma universalização vazia, falam de um modelo que seria capaz de “iluminar” as ações
humanas, mas, de fato, não são capazes de chegar à concretude
da vida das pessoas. Por isso, para ele, os Direitos Humanos são
“ilosoicamente nulos”. Nada acrescentam; ao contrário, são um
entrave nas lutas pelas liberdades efetivas, ao defender, abstratamente, uma liberdade abstrata, porque universal.
Ser de esquerda é saber que os problemas do
Terceiro Mundo estão mais próximos de nós
do que os de nosso bairro. É de fato uma questão de percepção. Não tem nada a ver com a
boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso.
E, segundo, ser de esquerda é ser, ou melhor,
é devir-minoria, pois é sempre uma questão
de devir. Não parar de devir-minoritário. A
esquerda nunca é maioria enquanto esquerda por uma razão muito simples: a maioria é
algo que supõe – até quando se vota, não se
trata apenas da maior quantidade que vota em
favor de determinada coisa – a existência de
um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão [...] Portanto, irá obter a maioria aquele
que, em determinado momento, realizar este
padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem
adulto, macho, cidadão. Mas posso dizer que
a maioria nunca é ninguém. É um padrão
199
TRANSPOSIÇÕES
vazio. Só que muitas pessoas se reconhecem
neste padrão vazio. Mas, em si, o padrão é vazio. O homem macho, etc. As mulheres vão
contar e intervir nesta maioria ou em minorias secundárias a partir de seu grupo relacionado a este padrão. Mas, ao lado disso, o que
há? Há todos os devires que são minoria. As
mulheres não adquiriram o ser mulher por natureza. Elas têm um devir-mulher. Se elas têm
um devir mulher, os homens também o têm.
Falamos do devir-animal. As crianças também
têm um devir-criança. Não são crianças por
natureza. Todos os devires são minoritários
[...] O homem macho, adulto não tem devir.
Pode devir mulher e vira minoria. A esquerda
é o conjunto dos processos de devir minoritário. Eu airmo: a maioria é ninguém e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber
que a minoria é todo mundo e que é aí que
acontece o fenômeno do devir (DELEUZE,
2004, verbete G comme Gauche).
O devir está na minoria, naquilo que é minoritário
numa dada sociedade. Na medida em que os Direitos Humanos
investem no majoritário, pela universalização e pela aplicação
dos modelos instituídos, eles estão fora da lógica do devir e da
transformação. Não há um devir-homem, um devir-macho, formas maiores instituídas; mas há um devir-criança, um devir-animal, um devir-mulher, um devir-homossexual... Ora, quando
crianças, animais, mulheres, homossexuais reivindicam o reconhecimento de seu Direito Humano Universal, recusam-se ao
devir, recusam-se à possibilidade de transformação, de produção
do novo na lógica das diferenças. Ao contrário, reivindicam para
si o estatuto de maioridade, de imposição de uma forma-criança, de uma forma-animal, de uma forma-mulher, de uma forma
-homossexual, assim como há uma forma-macho instituída. Em
outras palavras, trata-se de uma reivindicação fascista, que quer
enquadrar o desejo nessas formas, impedindo seus livres luxos
transversais e minoritários.
A lógica da diferença pede uma política outra, uma política das minorias e dos devires-menores. Uma política que Deleuze e Guattari denominaram “micropolítica” ou “política molecular”, que implica na produção de transformações nas formas
200
Aí estaria um programa para nossa atuação, para além
do registro da representação e da universalidade. Um conjunto de lutas das singularidades que airmam um devir-mulher,
um devir-criança, um devir-homossexual, um devir-afro, um
devir-indígena e assim por diante, fora da perspectiva de exigir
seus “direitos”, como se esses estivessem dados, mas produzindo
a jurisprudência da airmação desses direitos como algo totalmente novo, fruto de suas lutas. Entendam-me bem: quando
falo em lutas das singularidades não estou falando de lutas isoladas, pessoais, individualizadas; como vimos, as singularidades
se agenciam, produzem coletividades, em suas relações transversais e não hierárquicas. Nessa produção de coletividades, os
agenciamentos são possíveis; posso não ser mulher, mas assumir um devir-mulher e ser mais um nessa luta; posso não ser
negro, mas assumir um devir-afro e ser mais um nessa luta; e
assim por diante. Nos devires minoritários as singularidades se
encontram e se agenciam, produzindo suas lutas e outras formas de fazer política.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
pelas quais vivenciamos o desejo e conjuramos o fascista que há
em cada um de nós. É esse jogo micropolítico que faz sentido na
airmação das diferenças, para além de qualquer universal que
reduz tudo ao mesmo.
Para inalizar, retomo o pequeno trecho que coloquei
como epígrafe deste texto. Os ilósofos airmam que, molecularmente, no nível do desejo, somos todos transexuados. Um
devir-mulher, um devir-homossexual, um devir-transexual constituem armas básicas para a luta contra a sociedade falocrática,
centrada no “macho adulto branco sempre no comando”, como
cantou Caetano Veloso.6 Para além dos universais, façamos diferenças, façamos proliferar as diferenças. E vejamos os “estragos”
que isso pode provocar no campo de estudos de gênero, dominado pelo pensamento da identidade. Que novos devires nos
atraiam para outras vivências do desejo, possibilitando outras
armas de luta contra o mesmo.
6
Reiro-me a um verso da canção O Estrangeiro, gravada no álbum
de mesmo título e lançado em 1989.
201
TRANSPOSIÇÕES
Referências
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GUATTARI, F. Psicanálise e Transversalidade – ensaios de análise institucional. Aparecida: Ideias & Letras, 2004.
202
“O QUE PODE O CORPO?”:
fRONTEIRAS E TRANSPOSIÇÕES
Fátima Lima1
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
10
O instigante enunciado que faz parte do título do presente texto - “O que pode o corpo” - é um fragmento de Baruch
de Espinoza na “Ética III - Da origem e da natureza das afecções”. Diz Espinosa (1973, p.186) “(...) ninguém, na verdade, até
o presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência
não ensinou a ninguém, até o presente, o que, considerado apenas como corporal pelas leis da natureza, o corpo pode fazer e o
que não pode fazer (...)”.
Este texto trata disso: da potência dos corpos e suas multiplicidades2. Com certeza, o debate promovido por Espinoza
1
Antropóloga. Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de
Medicina Social/IMS/UERJ. Professora Adjunta da Universidade Federal
do Rio de Janeiro/UFRJ/Campus Macaé. Professora colaboradora e
orientadora na linha de pesquisa “Micropolítica do trabalho e cuidado em
saúde” da Pós Graduação em Clínicas Médicas/UFRJ. Email fatimalima4@
gmail.com
2
A discussão sobre a multiplicidade segue as relexões apresentadas
e discutidas por Deleuze e Guattari no texto “Introdução: Rizoma” no Mil
Platôs - volume 1. Recuperando a ideia de Rizoma em oposição aos conhecimentos arborescentes, rizoma que conecta diferentes pontos nos processos
sociais (agenciamentos coletivos). Para discutir a multiplicidade, recorrem à
ideia do múltiplo onde “é preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre
uma dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de
sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é somente
203
TRANSPOSIÇÕES
na Ética nos convida a pensar muitas coisas, principalmente a radical dualidade entre corpo e alma (mente) e a forma como certa
biologia, herdada dos séculos XVIII e XIX, tomou os corpos
como algo meramente biológico, orgânico, anatômico e funcional. É sob estas características que os sujeitos3, seus corpos e subjetividades4 têm sido tomados por correntes mais conservadoras
que reivindicam a dimensão a-histórica dos corpos, apagando
suas singularidades.
Constituem, assim, enquanto objetivos dissertar, a partir de alguns autores/as intercessores/as, sobre as possibilidades
de pensarmos os corpos e suas e existências. Promove-se, dessa
forma, um debate que traz alguns conceitos como ferramentas
capazes de ler e tomar realidades de forma que as múltiplas possibilidades de sujeitos e corpos sejam consideradas como uma
condição imprescindível nos modos de existência.
assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1” ( Deleuze e
Guattari, 2004, p.15). Mais adiante discutindo o princípio de multiplicidade
coloca que “ (...) as multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades arborescentes. Inexistência, pois, de unidade que sirva de
pivô no objeto ou que se divida no sujeito. Inexistência de unidade ainda que
fosse para abortar no objeto e para “voltar” no sujeito. Uma multiplicidade
não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (...)” ( Deleuze e
Guattari, 2004,p.16).
3
O sujeito é tomado aqui como um sujeito moderno historicamente construído onde “há dois signiicados para palavra sujeito: sujeito ao outro
através do controle e da dependência e ligado à sua própria identidade através
de uma consciência ou do autoconhecimento” (Foucault, 2010, p.278).
4
Tomo de Guattari & Rolnik (2005, p. 39) a discussão sobre o que
vem a ser a subjetividade. Para o autor “a subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação. Os processos de subjetivação ou de semiotização
não são centrados em agentes individuais (no funcionamento de instâncias
intrapsíquicas, egóicas, microssociais), nem em agentes grupais. Esses processos são duplamente descentrados. Implica no funcionamento de maquinas
de expressão que podem ser tanto de natureza extrapessoal, extra-individual
(sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia, ou seja, sistemas que não são mais imediatamente
antropológicos), quanto de natureza infra-humana, intrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagem, e de valor, modos de memorização e de produção de
ideias, sistemas de inibição e de automatismos, sistemas corporais, orgânicos,
biológicos, isiológicos e assim por diante”.
204
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Pensar em transposições de lugares e fronteiras é pensar nos corpos para além dos limites instituídos a partir de certa
anatomia e da ideia da natureza como algo intrínseco e imutável
( LIMA, 2011). Com certeza a crítica ao imperativo normativo
de gênero, ao contínuo sexo-corpo-gênero-sexualidade-desejo
(Butler; 2003) e a naturalização do sexo, passa por uma retomada dos corpos a partir de outras perspectivas. O diálogo traz
pensadores como o próprio Espinosa (1973), Michel Foucault
(1997; 2002; 2008a; 2008b;2010), Gilles & Guattari 1995),
Suely Rolnik (2011), Judith Butler ( 1993; 2002; 2003; 2004),
homas Laqueur (2001), Beatriz Preciado (2008) entre tantos/
as outros/as que tomaram categorias ixas como elemento de
análise e de crítica.
Corpos e Devires
“(...) Não há natureza pura, só pura diferença.
O artifício é a diferença nela mesma” (Suely
Rolnik, 2011, p.37)
O corpo tem sido, desde a emergência e consolidação das chamadas Ciências Humanas e Sociais, um elemento
primordial de análise em diferentes domínios de saber. A Antropologia, a Sociologia, a História, a Psicologia, a Psicanálise
entre outros campos de conhecimento tomam o corpo como
categoria importante para compreensão dos fenômenos sociais,
culturais, históricos e subjetivos. Marcel Mauss (1974) foi o primeiro antropólogo que visibilizou conceitualmente os corpos
enquanto construções culturais (simbólicas). No célebre texto
“As técnicas corporais” o autor ressaltou que os corpos passam
por diferentes técnicas de treinamento (andar, pescar, dormir,
nadar, desilar, etc..) e que estas técnicas estavam circunscritas
aos diferentes domínios culturais. Sem dúvida alguma, seu texto
inaugurou uma discussão, principalmente no campo da Antropologia que deslocou o corpo do determinismo biológico, inscrevendo-o no âmbito da cultura.
Desde então, no campo das designadas ciências do so205
TRANSPOSIÇÕES
cial, o corpo não é tomado enquanto um dado natural e não se
encerra em sua dimensão biológica, mas constitui uma complexidade mutável, lexível, plural, polimorfa e polissêmica. Os corpos estão circunscritos no social e no cultural e nessa interação
sujeito/realidade explodem na sua dimensão histórica. Nessa
perspectiva, excedem os limites da biologia, da anatomo-isiologia; contemplando subjetividades, experiências, vivências, sofrimentos, dores, desejos, formas de ser e estar no e em mundos,
um corpo vivo e vivido em suas múltiplas dimensões. Através
dos corpos os sujeitos instauram o mundo, constroem signiicados, produzem inteligibilidades, fazem e refazem histórias. Sem
os corpos é impossível conceber nossa dimensão de humanidade. Assim, o corpo é nossa singularidade, nossa individuação,
nossas produções identitárias, mas dialogicamente é a nossa relação com o outro, com o mundo (corpo social), a dimensão de
alteridade nas existências.
No entanto, ainda prevalece discussões em alguns campos, principalmente nas ciências naturais que tentam explicar os
corpos e os processos de subjetivação através do determinismo
biológico. Nessas discussões os corpos são radicalmente dicotomizados do ponto de vista dos sexos (genitálias) encerrando-se
a na radical divisão entre os designados “machos” e “fêmeas”,
sendo os atributos sociais e culturais de “mulher” e “homem”
o relexo direto dessa determinação. Contrapondo estas ideias,
o trabalho de LAQUEUR (2001) possibilita uma releitura da
relação corpo/sexo. O autor trabalha a ideia de que até o inal
do século XVIII as explicações sobre as diferenças entre homens
e mulheres eram centradas no modelo do sexo único - one-sexmodel, onde a diferença do sexo feminino era explicada em oposição ao sexo masculino, modelo que prevalecia como único. No
inal do século XVIII um novo modelo, centrado no dimorismo sexual- two-sex-model, emergiu em contraposição ao antigo. “Em alguma época do século XVIII, o sexo que nós conhecemos foi inventado” (LAQUEUR, 2001, p.189). Tomando
como referência acontecimentos históricos, relexões ilosóicas
e posteriormente diversas experiências como o resurgimento
da anatomia no século XVI, o autor mostra como o modelo do
sexo único atravessou diferentes momentos da história e cultura
206
Outra contribuição importante nas discussões sobre os
corpos tem sido apresentadas por Judith Butler. Sem dúvida suas
contribuições no campo dos estudos de gênero e nas discussões
sobre a materialidade e inteligibilidade dos corpos constituem
um divisor epistemológico e político nas explicações que circundam a relação sexo/corpo/gênero/desejo. Tomando como
referência as discussões de John Austin no campo da linguagem
e de Jacques Derrida sobre a noção de citacionalidade e iteração, a discussão dos gêneros como atos performativos trouxe
um re-pensar para questões nevrálgicas neste campo. Derrida
(1991) na discussão sobre a escrita e os signos coloca que os
mesmos comportam uma dimensão de ausência em relação aos
destinatários; ausência que não é uma modiicação ontológica,
da presença, mas uma relação iterável sempre com o outro, com
a alteridade5.Butler (2003) dialogando com essas ideais coloca
que os gêneros constituem construções performativas onde nem
os sujeitos antecedem discursos, nem os discursos antecedem
os sujeitos. Enquanto “sujeitos gendrados” estes se tornam inteligíveis a partir de uma reiteração discursiva com a matriz heteronormativa. Nesse contexto, Butler desloca-se da dicotomia
sujeito/discurso; colocando no movimento performativo a materialização dos corpos e sua inteligibilidade cultural. Portanto,
tem-se aqui uma oposição à noção de um sujeito e de um corpo
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
ocidental, onde a diferenciação entre mulheres e homens acontecia pautada na ordem das coisas, estabelecendo lugares e posições. Nesse mundo era o gênero que prevalecia, constituindo-se
numa categoria sociológica, enquanto o sexo reletia o caráter
ontológico. Nesse contexto, o sexo e o corpo eram compreendidos “como o epifenômeno, enquanto que o gênero, que nos
consideramos uma categoria cultural, era primário ou real” (LAQUEUR, 2001, p.19).
5
Derrida (1991, p.18) sobre a iterabilidade coloca que“ (...) É preciso, como se vê que minha comunicação escrita permaneça legível, apesar do
absoluto desaparecimento de todo destinatário determinado em geral para,
que tenha sua função de escrita, isto é, sua elegibilidade. È preciso que seja
repetível – iterável – na ausência absoluta do destinatário ou no conjunto
empiraicamente determinado dos destinatários. Essa iterabilidade (iter, derechef, viria de itara, outro em sânscrito e tudo o que se segue pode ser lido
como a exploração da lógica que liga a repetição à alteridade) (...).”.
207
TRANSPOSIÇÕES
universal que antecedem as relações de gênero bem como uma
oposição a ideia de que os gêneros constituem atributos culturais que se inscrevem sobre um corpo preexistente.
Assim, os corpos materializam-se a partir da iteração
constante entre a norma e o sexo. O gênero é produzido no âmbito desse movimento cujas reiterações constantes engendram,
legitimam e reconhecem a matriz caracterizada pelo binarismo e
pela heterossexualidade. Constitui-se através de uma série de inclusões/exclusões produzindo uma “falsa estabilização do gênero”, um falso efeito de substância e essência. Portanto, os gêneros
são, antes de tudo, iccionais. No entanto, na sua materialidade,
assumem contornos políticos importantes que acabam por segregar, estigmatizar e, por vezes, eliminar os corpos e performatividades que não correspondem à ideia de normalidade.
Nesse sentido, seguindo as pistas deixadas por Michel
Foucault na obra “História da Sexualidade - a vontade de saber”
toma a categoria de sexo como uma norma; um ideal regulatório; uma prática “que produz os corpos que governam” (Butler,
2002, p.18) onde a materialização dos corpos constitui um efeito (produtivo e assujeitador) do poder. Dessa forma, não
há modo de interpretar o gênero como uma
construção cultural que se impõe sobre a superfície da matéria entendida como o corpo
ou bem como seu sexo dado. Antes bem, uma
vez que entende o sexo mesmo em sua normatividade, a materialidade do corpo não pode
ser concebida independentemente da materialidade dessa norma reguladora. O sexo não
é pois essencialmente algo que um tem ou
uma descrição estática do que é: será uma das
normas mediante as quais esse um pode chegar a ser viável, essa norma que qualiica um
corpo por toda vida dentro da esfera da inteligibilidade cultural ( Butler, 2002, p.19).
Sem dúvida, essas interpretações não apenas deslocam
os corpos das explicações biológicas, mas constituem outra leitura para além da divisão biologia e cultura. Os corpos não são
mais tomados como construções culturais sob um corpo biológico, mas entendidos como performatividades que não ante208
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
cedem nem sucedem discursos, mas forjam-se discursivamente
numa iteração contínua com as normas, ganhando materialidades e inteligibilidades. A questão que ica é a de que nem todos
os corpos são performativamente inteligíveis, ou seja, não são
reconhecidos socialmente como relacional ao modelo normativo, habitando zonas de abjeções (ininteligibilidade). Perguntar
o que pode o corpo traz a possibilidade de visibilizar como potentes corpos, modos de subjetivação, vidas que se encontram
nessas zonas de abjeções.
Os Corpos e a Biopolítica Contemporânea
“Uma sociedade normalizadora é o efeito
histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” (Michel Foucault).
No pensamento de Foucault a questão dos corpos, seus
processos de assujeitamentos e resistências faz parte do conjunto de sua obra. Para Foucault (1997; 2008a; 2008b) a vida tornou-se o espaço de investimento da sociedade contemporânea.
A emergência do que o autor chamou de biopoder tomou os
corpos dos indivíduos (seja na sua dimensão individual ou social) como espaço de investimento.
Nesse contexto, a disciplina passou a se conigurar como
um dos principais elementos de funcionamento nos dispositivos de controle, caracterizada pela “inserção dos corpos em um
espaço individualizado, classiicatório e combinatório” (FOUCAULT, 2002, p.106). Instituídos a partir do século XVIII, os
modelos disciplinares se coniguraram numa relação de força
cujo objetivo foi ordenar os corpos e os espaços sociais. As técnicas disciplinares dividiram espaços e dividiram nos espaços
- quem internar, onde internar; ordenaram o tempo - quando,
como, quanto, passando a ser a arte de distribuição dos indivíduos no espaço, o esquadrinhamento e a compartimentalização
dos sujeitos e grupos sociais.
Os conjuntos de práticas disciplinares, criadas a partir de então, constituíram técnicas
209
TRANSPOSIÇÕES
de poder que tinham como inalidade a vigilância dos indivíduos, de seus corpos, o registro sistematizado e contínuo onde nenhuma
informação poderia escapar imprescindível
ao ajuste dos sujeitos à ordem social, econômica e política. Ao mesmo tempo em que o
corpo social foi o alvo das práticas disciplinares, o corpo individualizado foi o seu lugar de
atuação. É a partir desse duplo processo que
podemos pensar o poder de individualização
e singularização dos sujeitos no corpo social
(FOUCAULT, 2002, p. 106-107).
Neste contexto, o corpo deixava de ser uma experiência
valorizada na dimensão individual, singular, para tornar-se um
objeto de intervenção das relações de saber/poder. Corpos disciplinados, medicalizados, cada vez mais adequados ao Estado,
ao controle, a governabilidade dos indivíduos e do social Nesse
contexto, emergiram as ideias do que deveria ser corpos saudáveis, normais, belos, atléticos, patrióticos, enim corpos que reairmam o modelo e a moral burguesa, o triunfo da sociedade
capitalista, da técnica, da razão e das ciências. Corpos brancos,
europeus e heterossexuais que garantissem a reprodução da espécie e consequentemente a reprodução do capital.
Inscrito no âmbito do fortalecimento do capitalismo, o
indivíduo deixou de ser entendido como uma espécie – modelo
explicativo baseado em Lineu - para ser compreendido enquanto
corpo social. Socializado, publicizado e agora coletivo, o corpo
social, através dos corpos dos indivíduos, aparece como o lugar
do saber/poder. A partir do século XIX, podemos perceber um
conjunto racionalizado de explicações sobre o corpo - social e individual, que o retira cada vez mais do estatuto cristão, herança
das explicações ilosóicas (RABINOW, 1999, p. 178). “Foi no
biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu
a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade bio-política”
(FOUCAULT, 2002, p. 80; FOUCAULT, 1997, p.87).
Conceito importante nas relexões contemporâneas - o
Biopoder - tem sido ressigniicado a partir dos acontecimentos no campo da biotecnologia nas últimas décadas. Outros
centros de produções de verdades e estratégias de poder foram
210
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
erigidos, conigurando novos espaços e formas de controle dos
indivíduos que podemos designar como a biopolítica contemporânea. O que começa a mudar a partir XVII e, principalmente do século XVIII é a invenção do conceito de população e
como esta, com todo seu aparato adjetivo, passará a ser o espaço
sobre o qual a relação saber/poder, a incitação e controle atuarão (Foucault; 2008b). Neste contexto, a própria deinição de
uma norma e, consequentemente do “normal” e do “patológico” sofrerá alterações consideráveis. Foucault (2008) estabelecendo diferenças entre as sociedades disciplinares e o contexto
da biopolítica coloca que:
Nas disciplinas, partia-se de uma norma e era
em relação ao adestramento efetuado pela
norma que era possível distinguir depois o
normal do anormal. Aqui, ao contrário, vamos ter uma identiicação do normal e do
anormal, vamos ter uma identiicação das diferentes curvas de normalidade, e a operação
de normalização vai consistir em fazer essas
diferentes distribuições de normalidade funcionarem umas em relação às outras (...). São
essas distribuições que vão servir de norma. A
norma está em jogo no interior das normalidades diferenciais. O normal é que é primeiro,
e a norma se deduz dele, ou é a partir desse
estudo das normalidades que a norma se ixa
e desempenha seu papel operatório. Logo, eu
diria que não se trata mais de uma normação,
mas sim, no sentido estrito, de uma normalização (FOUCAULT, 2008, p.82).
Preciado (2008) recupera a noção de biopolítica no
pensamento de Michel Foucault para discutir o investimento
do capitalismo industrial que transformou os corpos, sexos e as
sexualidades em objetos privilegiados de gestão pública a partir
do inal da segunda guerra mundial e, principalmente, durante
a guerra fria. Para a autora o contexto contemporâneo do capitalismo tem como característica fundamental “a gestão política
e técnica do corpo, do sexo e da sexualidade” (Preciado, 2008,
p.26). É neste contexto que a presente relexão se inscreve, entendendo que as possibilidades de vidas dependem das resistências e subversões que operam no âmbito das relações de poder e
dos processos de assujeitamentos.
211
TRANSPOSIÇÕES
Os Corpos Podem
O que é possível fazer diante da biopolítica contemporânea que produz e controla corpos e subjetividades? Como produzir resistências e subversões? Como transpor os limites corpóreos
estabelecidos a partir de diferentes imperativos normativos? A
interrogação que perfaz o título desse texto transforma-se numa
airmação: o corpo pode; pode porque o corpo é potência, é produção desejante, ressigniica-se a partir de múltiplas dimensões
que não se ancoram no biológico. Deleuze & Guattari no inquietante texto “28 de novembro de 1947 - como criar para si um corpo sem orgãos” no Mil Platôs volume 6 traz para discussão o que
ele chama de corpo sem órgãos - CsO. Tomando a frase do Antonin Artaud “porque atem-me se quiserem, mas nada há de mais
inútil do que um órgão” ( Deleuze & Guattari, 2004,p.10), os
autores deslocam radicalmente o corpo da dimensão anatômica e
isiológica, não para negá-la , mas para trazer para a dimensão de
potência e das afecções que habitam os corpos.Sobre o CsO nos
coloca Deuleze & Guattari ( 2004, p.9)
Não é uma noção, um conceito, mas antes
uma prática, um conjunto de práticas. Ao
corpo sem órgãos não se chega, não se pode
chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um
limite. Diz-se: que é isto - o CsO – mas já está
sobre ele - arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo como um
louco, viajante do deserto e nômade da estepe. É sobre ele que dormimos. Que lutamos,
lutamos e somos vencidos, que procuramos
nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que
penetramos e somos penetrados, que amamos
(Deleuze & Guattari, 2004, p. 9-10).
Rolnik (2011) dialogando com vários conceitos intercessores do pensamento de Deleuze e Guattari traz como uma
oferta interessante a noção de corpo vibrátil, “corpo sensível aos
efeitos dos encontros e suas reações” (Rolnik, 2011, p.31), dimensão que tem sido cada vez mais perdida no capitalismo contemporâneo, através de diferentes processos de assujeitamentos.
Assim, perceber e tomar como parte das performatividades corporais e dos modos de subjetivação o corpo sem órgãos - CsO e
212
Referências
BUTLER, Judith. Bodies that matter: on the discursive limits of “sex”. Nova
York: B. Library; 1993.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
o corpo vibrátil signiica tomar os corpos pela não determinação
dos órgãos e pelos padrões estabelecidos e estigmatizantes, mas
tomá-los como espaço das produções desejantes e suas conexões,
abrindo-se para potência da vida, para fazer as vidas e os corpos
tornarem-se aquilo que Foucault (2010) tão bem colocou: uma
obra de arte.
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213
TRANSPOSIÇÕES
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214
NAS BORDAS DO HUMANO: LUTAS
PELO RECONHECIMENTO E
CAPTURAS IDENTITÁRIAS
Henrique Caetano Nardi1
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
11
Qual o sentido produzido pelo fato de ser reconhecido como integrante desse duplo empírico-transcendental que a
modernidade construiu em torno da igura do humano? O que
legitima e deslegitima alguém, que designamos como pertencente à espécie humana, como sujeito de direitos? Como a cultura modela o que chamamos de natureza na produção do que
somos? No interior desse campo de tensão permanente entre
natureza e cultura, é possível existir sem que um pertencimento a categorias identitárias deinidas no interior das construções
sociais naturalizadas de sexo, sexualidade e gênero seja reconhecido como legítimo e coerente? A identidade é um elemento
necessário para que o Estado nos reconheça como iguais em
direitos? Essas questões coniguram alguns dos vetores centrais
do diagrama da subjetivação local e situada que marca o Brasil
contemporâneo, vetores estes que só podem ser analisados se
pensados na intersecção com outros marcadores sociais. Nessa
direção, cabe ainda perguntar quais os efeitos da interseccionalidade sexo-sexualidade-gênero-raça-classe na deinição das hierarquias do humano e na efetividade do reconhecimento pelo
Estado no cotidiano das práticas?
1
Professor do Departamento e do Programa de Pós Graduação em
psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade e Relações de Gênero (www.nupsex.org). e-mail: hcnardi@gmail.com
215
TRANSPOSIÇÕES
O que somos, ou melhor, a forma como marcas identitárias nos são atribuídas e pelas quais somos interpelados/as,
depende das condições de possibilidade delimitadas pelo a priori histórico brasileiro. É ele que situa a emergência das cadeias
enunciativas que delimitam nossas existências. Nosso a priori é
marcado por feridas históricas não cicatrizadas que foram produzidas por relações políticas autoritárias e que paulatinamente
transformaram a diversidade das formas de existência em desigualdade no acesso aos direitos. Traçar breves linhas de análise
que buscam descrever os efeitos dos rastros dessas relações na
produção de subjetividade é o objetivo desse texto.
As manifestações de junho e julho de 2013 e a reação
violenta da polícia foram extensamente documentadas2, essa
violência expõe nossa frágil democracia. Ela remete para uma
das faces da celebração da emergência do Brasil como nação
marcada pelo autoritarismo de Estado. As marcas do autoritarismo também se fazem presentes na tríade pátria, família e
propriedade que marca a defesa da família tradicional, aquela
na qual as crianças e as mulheres estavam subordinadas ao pater
potestas (pater familias). Essa tríade tem efeitos bastante nítidos
nos números do mapa da violência contra as mulheres, negros,
negras e nas estatísticas recentes sobre a violência e as violações
de direitos da população LGBT. Entre 1980 e 2010, de acordo com o mapa da violência de 20123, foram assassinadas no
país mais de 92 mil mulheres, 43,7 mil só na última década. O
número de mortes nesse período passou de 1.353 para 4.465,
o que representa um aumento de 230%, mais que triplicando
as mulheres vítimas de assassinato. Para termos uma dimensão
comparativa, o Brasil ocupa o 7º lugar no mundo, a Argentina o
36° lugar e, na Islândia, a taxa foi zero.
Nossa herança escravagista e eugenista é encontrada
nos números que mostram que, para cada branco vítima de ho2
Como documento dessa violência ver: https://www.
facebook.com/photo.php?fbid=682909781736534&set=a.197612510266266.54717.180044272023090&type=1&theater
3
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/MapaViolencia2012_atual_mulheres.pdf
216
A brutalidade da ditadura militar que abortou o breve
projeto democrático, construído entre 1946 e 1964, é tristemente recordada e reivindicada por aqueles setores da sociedade
que demandam hierarquias rígidas e a manutenção da desigualdade e da submissão de parcelas da população. As desiles de 7
de setembro5 são momentos que não nos deixam esquecer da
“Marcha da família com Deus e pela liberdade” que apoiou
o golpe militar em 1964 e que tem nos assombrado recentemente (independentemente de sua píia efetivação nas ruas,
o apoio nas redes sociais foi signiicativo, assim como a
repercussão na mídia) a partir de seus/suas defensores/es
contemporâneos no triste aniversário dos 50 anos do golpe. O Estado de direito e a democracia só existem, de fato, no
reconhecimento de diretos universais6, os quais não dependem
exclusivamente de sua airmação constitucional e de sua exaltação em tratados internacionais, eles só são efetivados se nos
considerarmos como iguais em direitos. Essa efetivação é um desaio ético que depende da airmação do jogo democrático e do
enfrentamento das desigualdades estruturais, as quais adquirem
materialidade nos marcadores sociais de raça, etnia, sexo, gênero, sexualidade, escolaridade e idade, entre outros.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
micídio, proporcionalmente, morreram 2,3 negros pelo mesmo motivo4.
Esses marcadores são produto de processos históricos
implicados na construção da abjeção e de lógicas de deslegi4
pdf
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_cor.
5
Ver exemplos desse tipo de manifestação em: http://i2.wp.com/
www.sul21.com.br/jornal/wp-content/uploads/2013/09/20130907por
-ramiro-furquim-_oaf0848.jpg
6
Categorias universais tem sido alvo de questionamento das lutas
pela desconstrução da imposição de uma hierarquia do humano que assegura(va) a posição superior do homem branco ocidental, entretanto, há o risco
de bloquear as estratégias de desconstrução na tática da visibilidade identitária. Acredito que visibilizar de forma não abjeta é somente um passo, o seguinte é a abolição da identidade (sustentada na nação, no sexo, na orientação
sexual, na raça, na identidade de gênero, na idade, etc.) como necessária para
o reconhecimento de direitos, construindo um outro Universal.
217
TRANSPOSIÇÕES
timação que deinem as bordas do humano. Esse humano tão
exaltado na modernidade é, de fato, uma abstração jurídica e
um projeto cultural. Durante o século XIX e a primeira metade
do século XX, ele foi constituído a partir da igura do homem
branco, heterossexual, cristão, europeu ou norte americano e
não proletário. A nação brasileira se construiu a partir de uma
imagem invertida, ou seja, daquilo que não eramos. O autoritarismo político das oligarquias, do populismo e das ditaduras
associado ao eugenismo e ao higienismo com suas estratégias de
branqueamento, discursos de degenerescência e de controle da
sexualidade, produziu dinâmicas sociais que expulsaram múltiplas possibilidades de existência para fora do campo da biolegitimidade7 (Fassin, 2006).
Nossa história produziu vidas que deveriam buscar refúgio nos guetos e em uma privacidade sempre ameaçada, sob
o risco de serem exibidas nas cadeias e nos manicômios, uma
vez que só lhes era assegurada a existência no avesso da norma.
Os discursos cientíico, jurídico e religioso autorizavam moral,
cientíica e legalmente que essas vidas fossem negligenciadas em
relação à proteção do Estado; eram eles que diagramavam a higienização da sociedade. A proteção se traduzia em extermínio
do que ela mesma tinha produzido como abjeção. Na lógica do
biopoder, são vidas que deviam ser extintas, uma vez que constituíam um projeto de nação às avessas. Essas existências foram e
ainda são condenadas, mas não são invisíveis8; ao contrário, para
que elas mantenham sua função de reiterar as hierarquias, elas
necessitam ser interpeladas cotidianamente nos insultos9, nos
7
Biolegitimidade é um conceito criado por Didier Fassin que busca
apontar para a distinção no interior da biopolítica entre as vidas que merecem investimento estatal e aquelas que não são dignas de investimento. Na
discussão acima, a noção de biolegitimidade se situa na fronteira do racismo
de Estado.
8
Existe um paradoxo do visível e do invisível na tensa relação entre
reconhecimento e submissão ao Estado, alguns aspectos desse paradoxo são
apontados ao longo do texto.
9
Ver, como exemplo, o pronunciamento de um dos arautos do combate aos direitos sexuais e aos direitos humanos, o deputado Jair Bolsonaro:
http://www.youtube.com/watch?v=pqe5WlQ-xl4
218
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
desejos, ao mesmo tempo incitados e proibidos, no prazer em
matar, no gozo no exercício da violência que demarca a inferiorização do outro e que conirma, pela sua expulsão do campo
das vidas legítimas, a dominação sustentada nos privilégios da
normalização. Vidas deslegitimadas e inferiorizadas socialmente que, mesmo após a democratização recente do país, sofrem a
violência do aparato policial e do ódio religioso, cujos efeitos
se fazem presentes na violência espetacularizada ou cotidiana
que continua reiicando vidas tornadas não humanas ou menos
humanas. Os efeitos desse(s) processo(s) são experimentados na
violência patrocinada pelo Estado (da polícia à Universidade)
que, se por um lado, airma direitos, pelo outro, exerce a violência. São espectros do não acesso ou do acesso pela porta dos
fundos, apesar do reconhecimento parcial e recente de direitos
um pouco mais igualitários.
Ainda, no interior da dinâmica contemporânea que
marca a forma de condução da conduta na governamentalidade
neoliberal, cabe ressaltar que o discurso psicológico se tornou
uma ferramenta para o governo das populações e dos indivíduos. Como disse Robert Castel (2011) a governamentalidade neoliberal transfere para o campo do indivíduo, designado como
autônomo e rei, conlitos que são eminentemente políticos. Um
governo pela psicologia, um governo das identidades, o qual teria substituído o jogo político que implica em fazer sociedade,
retomando aqui a clássica expressão de Émile Durkheim. No
lugar de fazer sociedade, classiicamos os humanos na hierarquia
da vida.
O humano
Faço aqui a aposta inicial de falar do humano como par
empírico-transcendental, de acordo com a conhecida formulação de Foucault (1966) em “As palavras e as coisas”. Nesse livro,
Foucault buscou encontrar uma issura entre as perspectivas teórica dominantes da época na França, ou seja, a fenomenologia
e o marxismo. Ele buscou, no livro, ultrapassar as epistemologias
hegemônicas que situavam as formas de pensar a partir de um
sujeito fundador ou da luta de classes como motor da história.
219
TRANSPOSIÇÕES
Foucault aposta em uma arqueologia do saber para demonstrar
como a igura do “homem” foi construída nas ciências humanas,
ao mesmo tempo como objeto e sujeito do conhecimento, sem
que a metafísica implícita nessa construção fosse pensada a partir das condições de possibilidade para sua emergência.
Ao mostrar as objetiicações do homem que trabalha,
vive e fala, respectivamente pela economia, pela biologia e pela
linguagem, intenta desconstruir essa igura transcendental. O
campo de pesquisa aberto pelo livro apresenta questões fundamentais para pensar o lugar situado da pesquisa e para a forma
como os “sujeitos” da diversidade sexual se tornaram frutos dos
discursos que deles falam. Avançando em sua trajetória, em seus
últimos trabalhos, particularmente no curso intitulado “A Hermenêutica do Sujeito” de 1981-1982, Foucault (2001) apresenta o momento cartesiano como o acontecimento que marca a
emergência de um novo modo de pensar a verdade, ou seja, diferentemente da episteme grega que pressupunha o acesso à verdade a partir de um trabalho sobre si, ela não mais dependeria de
um trabalho de transformação de si. O projeto de uma história
da sexualidade pensado em seis volumes, mas nunca terminado
e abandonado nos seus objetivos iniciais, mostra (no volume I,
de 1976) como o esvaziamento do sujeito realizado paulatinamente pelo cristianismo, abriu as possibilidades para que a sexualidade da burguesia fosse colocada do lugar do sangue nobre
da aristocracia como nova forma de assegurar a dominação de
classe. Assim, o dispositivo da aliança cedeu lugar ao dispositivo
da sexualidade. Deus não é mais ordenador da vida, cabe ao homem (“o” cientista), ocupar o lugar de desvendar seus mistérios.
A verdade última sobre o sujeito estaria localizada ali,
no sexo. Nos séculos XVIII, XIX e XX se produziram deslocamentos da alma ao inconsciente (hoje buscado no cérebro),
do pecado à perversão, das práticas às identidades. Da sodomia
nasce o homossexual e do homossexual nasce o heterossexual.
No esquadrinhamento da vida no interior do dispositivo, a lógica de Lineu (Carolus Linnaeus), ordenadora da classiicação das
espécies, encontra no par empírico-transcendental do humano,
um terreno fértil. Nessa esteira classiicatória, a sexologia nas-
220
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
cente (Krat-Ebing,1965[1886]) compõe o dispositivo histórico da sexualidade como forma de esquadrinhar a vida a partir da
norma. O dispositivo nasce no apogeu do momento cartesiano,
ruptura epistemológica que indica a ausência da necessidade de
constituição do sujeito ético para a construção das verdades,
pois bastaria encontrar as leis da natureza que determinam o que
somos. Foi na vigilância/escrutínio das práticas que se produziu
o nascimento dos desvios reveladores da violação dessas mesmas
“leis”. Se airmava ali o homossexual como sujeito contra-natureza. Logo adiante, na emergência do positivismo, não se tratava
mais de construção, mas sim de descoberta. Foi na interpretação/invenção das perversões, na “descoberta” da “essência” do
perverso, na descrição de sua personalidade, que se encontrará
“a” verdade. O normal emergirá da construção do patológico.
O dispositivo hoje
As lutas contemporâneas pelo reconhecimento da diversidade sexual e de expressões de gênero como integrantes de
uma mesma ‘natureza’ humana (vemos que a disputa em torno
do natural se mantem), só adquirem legitimidade via direitos
de cidadania, os quais são dependentes do pertencimento a um
País10. No Brasil, elas têm sido marcadas por estratégias identitárias que comportam um risco importante de normalização, pois
reairmam hierarquias.
Os embates pela igualdade de direitos, hoje nutridos pelos discursos jurídico e cientíico, sofrem o ataque da religião,
religião essa que também é produto de nossas cicatrizes sociais
e que se nutre, tanto da desigualdade social e seus efeitos nas
possibilidades de compreensão do mundo, como da ausência de
uma disputa aberta e clara entre distintos projetos seculares de
sociedade. Como nos mostra os exemplos de publicidade, onde
psicólogas/os cristãs/ãos se posicionam contra o que chamam
de “ditadura gay” e a desconstrução da família tradicional, ao
10
“Cidadãos do mundo uni-vos” é um paradoxo, uma vez que, apesar
do discurso e dos tratados em torno dos direitos humanos, o acesso aos direitos passa pela lógica da cidadania geograicamente delimitada.
221
TRANSPOSIÇÕES
mesmo tempo em que vendem seus produtos (DVDs, palestras
e cursos) em diversas parcelas no cartão de crédito11.
Na defesa da família, chamada de tradicional, e no combate aos direitos sexuais e aos direitos humanos braveados por
personagens políticos e religiosos (ou ambos), muito presentes
na mídia, há uma complexa combinação de lógicas neoliberais
que airmam o sujeito empreendedor de si mesmo e a manutenção das hierarquias sociais sustentadas nas relações autoritárias
de gênero e no combate à laicidade do Estado. Pode-se entender
essa resistência como efeito das transformações recentes dos discursos jurídico e cientíico que alteraram o diagrama de forças
que compõe o dispositivo da sexualidade (Foucault, 1976). Na
igura abaixo buscamos esquematizar a transformação do dispositivo desde sua airmação em torno da homossexualidade na
última metade século XIX e nos dois primeiros terços do século
XX até nossos dias, no contexto ocidental:
Essas transformações, sobretudo a partir da epidemia
11
Publicidade que pode ser encontrada no site abaixo: https://
www.facebook .com/photo.php ?fbid=10201930436768674&set=a.1810633631743.104006.1417073362&type=1&theater
222
É a respeito desse período que Judith Butler (2002)
constrói o conceito de incorporação melancólica da homossexualidade. Ela airma, a partir da fórmula: “nunca te amei e nunca
te chorei”, a impossibilidade cultural do luto das mortes pela aids
que deriva da incorporação melancólica da homossexualidade
na cultura. O desejo pelo mesmo sexo é apagado de forma mais
ou menos violenta nas sociedades marcadas pela heteronormatividade como a única regra possível para uma inteligilibilidade
não abjeta dos sujeitos. A força da violência da expulsão do
desejo (cuja cicatriz é uma lembrança permanente) marca a
intensidade do retorno da violência quando o/a sujeito é confrontado/a com as demandas de reconhecimento de vidas que
foram reduzidas a suas expressões de gênero e sexualidade.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
da aids, produziram uma estratégia de luta para a reversão do
preconceito que, em parte suscitada pela resistência à re-estigmatização produzida pela deinição epidemiológica equivocada
dos grupos de risco, foi capturada por um modelo identitário.
Os chamados grupos de risco, que se tornaram na nomenclatura oicial, ao longo do tempo, grupos mais vulneráveis à epidemia, marcaram a constituição do movimento LGBT brasileiro,
o qual foi amplamente inanciado pelo programa de aids (Fachini, 2002).
As bordas do humano são assim delimitadas. A construção social naturalizada, dicotômica e polarizada que alinha
as polaridades sexo/corpo-gênero/cultura-desejo/sexualidade
que coniguraram e, apesar das transformações recentes, ainda
coniguram a norma, faz com a violência contra gays, lésbicas,
travestis e transexuais seja considerada legítima. A reiicação
dos sujeitos a partir das práticas e expressões que coniguram o
avesso da norma desclassiica como humanas ou tornam menos
humanas determinadas vidas.
Os assassinatos associados à orientação sexual e à identidade de gênero são um efeito desse processo. Em 2012 houve
9.982 denúncias de violações dos direitos de pessoas LGBT12 e
12
http://www.sdh.gov.br/noticias/2013/junho/numero-de-denuncias-de-violencia-homofobica-cresceu-166-em-2012-diz-relatorio
223
TRANSPOSIÇÕES
os dados compilados pelo Grupo Gay da Bahia, na ausência de
informação governamental, indicam que 312 pessoas LGBT foram assassinadas no país em 201313. Não busco aqui remeter a
discussão para o campo do indivíduo, pois a produção do que
somos é sempre social. Mas, reforço que a forma melancólica
de incorporação da homossexualidade produz efeitos claros de
sofrimento psíquico e diiculdades de produzir relações prazeirosas. Intento, sobretudo, indicar a necessidade do reconhecimento da diversidade humana na cultura de forma que as futuras gerações possam se construir ultrapassando o modelo sexista, heterossexista e heteronormativo que sustenta a dominação
masculina dependente de uma virilidade violenta.
A questão que se apresenta para a construção de um projeto de sociedade plural que ultrapasse as barreiras ético-políticas e epistemológicas do modelo em que ainda vivemos, é a de
como fazer, como chegar lá. Mesmo que tracemos teleologias
pré-deinidas nas estratégias que construímos, não há garantia
que elas se efetivem na direção que pensamos. O modelo escolhido, sobretudo após a epidemia da aids, tem sido o de apostar
na ampliação da visibilidade social e em demandas no campo
dos direitos sociais. Encontramos, no centro das lutas políticas,
a visibilidade de pessoas com práticas e identidades diversas,
tanto em relação ao exercício da sexualidade, como em relação
às expressões de gênero que, ressalte-se, muitas vezes, mas nem
sempre, se assentam em identidades. O jogo é arriscado, pois o
Estado, pelo menos na sua forma moderna e contemporânea,
se alimenta de identidades. Ou seja, ele deine no jogo político,
quem merece direitos e proteção e, ao fazê-lo, põe em ação a máquina burocrática de identiicação dos cidadãos e das cidadãs. A
carteira de identidade não é uma denominação sem peso, ela é
performativa. Diga-me quem és e te direi quais direitos possuis.
A estratégia de buscar, na norma, identidades inteligíveis, tem
sido a grande armadilha.
O desejo pelo desejo do Estado de que nos fala Butler
(2004) é um caminho perigoso, pois ele pode, ao constituir/air13
http://atarde.uol.com.br/brasil/materias/1568348-ggb-registra312-assassinatos-de-gays-em-2013
224
Há ainda o risco estratégico de intensiicar o reconhecimento de identidades ixas pelo Estado (Butler, 2004), pois ele
pode produzir o ataque dessas mesmas identidades pelo movimento conservador (vide referências no debate parlamentar à
ditadura gay). Além disso, encontramos batalhas de vitimização
no interior das letras dos movimentos LGBT. Talvez, se a batalha tivesse sido centrada em estratégias de universalização de
direitos, alterando a coniguração do dispositivo e recusando o
que o alimenta, ou seja, a normalização a partir da nomeação de
identidades, o diagrama de forças contemporâneo fosse outro.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
mar identidades que sejam reconhecidas como inteligíveis para
a máquina estatal14, demandar políticas e direitos construídos
pela lógica de reconhecimento que emana da norma heterossexual familista. Assim, facilmente da heteronormatividade nasce
a homonormatividade, a sexualidade dá lugar ao afeto (a homoafetividade). São estratégias que buscam um caminho curto e
não apostam na transformação das lógicas já presentes no modelo heteronormativo e sexista. A dinâmica interna da estratégia
reforça a hierarquia moral das sexualidades, descrita por Gayle
Rubin (1984) em hinking Sex.
Breves apontamentos inais
Ao buscar identiicar os riscos do presente na problematização das estratégias pela igualdade de direitos, não busco
apontar para saídas que se sustentariam em utopias pós-norma, mas de rascunhar alternativas políticas sustentadas em
uma coalizão de forças guiada pela produção de uma universalidade que não dependa de categorias identitárias, as quais são
sempre limitadas e excludentes, para airmar o direito a existir.
Trata-se também de buscar seguir o convite de Michel Foucault quando perguntado sobre as estratégias do movimento
gay (1994), ou seja, de não buscarmos descobrir o que somos,
nas armadilhas da objetiicação, mas de inventarmos novas for14
Não tomo o Estado como um ente, como um bloco, mas como
um campo de força que se reconfigura dependendo do jogo político que
determina a sua forma e a direção de suas ações. Entretanto, a máquina existe
e resiste, ela tende a se reproduzir e para que ela funcione de outra forma, é
necessário desconstruí-la a partir do conhecimento de suas engrenagens.
225
TRANSPOSIÇÕES
mas de assegurar direitos que não sejam dependentes de nossas
expressões de gênero ou sexualidade, pois elas nada dizem (em
si) de nossa posição política, nosso compromisso ético ou nosso engajamento cidadão.
Como já disse, a forma como as capturas identitárias se
acoplam às expressões de gênero e sexualidade foi alvo de um
alerta de Michel Foucault em relação às estratégias identitárias
do movimento gay, tomo essa citação como encerramento desse
breve e precário texto:
“Se a identidade não é nada mais que um jogo,
se ela nada mais é que uma forma de favorecer
as relações, relações sociais e relações de prazer sexual que criarão novas amizades, então
ela é útil. Mas se a identidade se transforma
no problema central da existência sexual, se
as pessoas pensam que devem ‘desvelar’ sua
‘identidade própria’ e que esta identidade deve
se tornar a lei, o princípio e o código de suas
existências; se a questão que se coloca permanentemente é: Isto está de acordo com minha
identidade? Então eu penso que vai acontecer
um retrocesso em direção a uma forma de
ética muito próxima da virilidade heterossexual tradicional. Se nós devemos nos situar
em relação à questão da identidade, é a partir da perspectiva de que somos seres únicos.
As relações que devemos construir com nós
mesmos não devem ser relações de identidade; elas devem ser relações de diferenciação,
de criação, de inovação. É muito cansativo ser
sempre o mesmo (...) nós não devemos tomar
a identidade como uma regra ética universal”
(1994, p. 739).
Referências
BUTLER, Judith. La Vie Psychique du Pouvoir. Paris, Ed. Léo Scheer, 2002.
_____________ Undoing Gender. London, Routledge, 2004.
CASTEL, Robert. La Gestion des Risques. Paris, Ed. de Minuit, 2011.
226
FASSIN, Didier. Biopouvoir ou Biolegitimité: splendeurs et misères de la
santé publique. In: GRANJON, Marie-Christine. Penser avec Michel Foucault. Paris, Karthala. 2005 (pp. 161-182).
FOUCAULT, Michel. Les Mots et les Choses : une archéologie des sciences humaines. Paris, Gallimard, 1966.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
FACCHINI, Regina. «Sopa de Letrinhas”? – Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90: um estudo a partir da cidade de
São Paulo. 2002. Dissertação (Mestrado em Antropologia) Departamento
de Antropologia do IFCH, UNICAMP, Campinas, SP.
_________________ Histoire de la Sexualité I: la volonté du savoir. Paris,
Gallimard, 1976.
_________________Michel Foucault, an interview: sex, power and the politics of identity. In: DEFERT, Daniel & EWALD, François (orgs.). Dits et
Ecrits, Vol. IV. Paris, Gallimard. 1994 (pp. 735-746).
_________________ L’Herméneutique du Sujet : cours au Collège de France,
1981-1982. Paris, Gallimard-Seuil, 2001.
KRAFFT-EBING, Richard. Psycophatia Sexualis. New York, Arcade Books,
1965 [1866].
RUBIN, Gayle. hinking Sex: Notes for a Radical heory of the Politics
of Sexuality. In: VANCE, Carole (0rg.), Pleasure and Danger. New York,
Routledge,1984. (pp. 143-178)
227
DOS DIREITOS E DAS LUTAS
O CONCEITO DE HOMOfOBIA
NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS
HUMANOS E NO CONTEXTO DOS
ESTUDOS SOBRE PRECONCEITO E
DISCRIMINAÇãO
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
12
Roger Raupp Rios1
Introdução
Anti-semitismo, racismo, sexismo e homofobia são as
expressões mais patentes do preconceito e da discriminação
nos debates públicos e nas lutas sociais e políticas desde meados do século XX2. É, pois, considerando estas manifestações,
que o estudo e a compreensão do preconceito e da discriminação têm-se estruturado, tanto na esfera acadêmica, quanto nos
âmbitos social e político. Dentre tais expressões discriminatórias, a homofobia é aquela menos discutida e ainda mais controversa. Isto se constata pela discrepância entre a bibliograia
e as políticas públicas desenvolvidas a partir de cada um destes
temas, sem esquecer da relativa leniência diante de manifestações homofóbicas, se comparadas, por exemplo, às reações
1
Juiz Federal, Mestre e Doutor em Direito/UFRGS. Membro do
Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos – CLAM/
IMS/UERJ (algerio@uol.com.br).
2
O elenco do anti-semitismo, do racismo, do sexismo e, mais
ultimamente, da homofobia como casos emblemáticos nos estudos sobre
preconceito e discriminação não signiica menosprezar qualquer outra forma
de discriminação, como, por exemplo, por deiciência ou idade. Trata-se
somente de identiicar os casos mais esudados na literatura especializada a
partir da segunda metade do século XX.
231
TRANSPOSIÇÕES
diante do racismo ou do sexismo.
O objetivo deste artigo é, por meio de uma breve notícia do estado da arte dos estudos sobre preconceito e discriminação, avançar na compreensão da discriminação perpetrada
contra homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais (ao qual
se aplica, de modo disseminado, a designação de “homofobia”).
Neste esforço, far-se-á o contraste entre a homofobia e as aludidas formas de discriminação (anti-semitismo, racismo e sexismo). Deste modo, pretende-se não só salientar alguns elementos
especíicos da discriminação contra homossexuais, como também reletir sobre as diversas manifestações do preconceito e da
discriminação e suas mútuas relações. Tudo isto será realizado
sob a perspectiva dos direitos humanos e, em especial, do direito
da antidiscriminação. Deste modo, ganha-se não só em clareza,
dada a intensa polêmica em torno do tema, como também em
capacidade de reação, dado o alto grau de violação de direitos
humanos perpetrado pela homofobia.
Para tanto, este estudo se desdobra em três momentos.
Na primeira parte, visitam-se as principais abordagens sobre o
preconceito e a discriminação, buscando aproximações entre
o anti-semitismo, o racismo e o sexismo diante da homofobia.
Na segunda parte, examina-se a homofobia de modo especíico, discutindo sua compreensão, principais abordagens e a sua
relação com as demais formas de discriminação. A terceira e última parte propõe uma compreensão da homofobia no quadro
conceitual dos direitos humanos, voltada, principalmente, para
o impacto dos institutos do direito da antidiscriminação na percepção e no combate à homofobia. O trabalho se encerra com
algumas indicações das possíveis respostas jurídicas em face desta modalidade discriminatória.
1. Preconceito e discriminação: anti-semitismo, racismo, e
sexismo diante da homofobia
mentos
232
1.1. Preconceito e discriminação: deinições e ele-
Por preconceito, designam-se as percepções mentais
negativas em face de indivíduos e de grupos socialmente inferiorizados, bem como as representações sociais conectadas a tais
percepções. Já o termo discriminação designa a materialização,
no plano concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias,
comissivas ou omissivas, relacionadas ao preconceito, que produzem violação de direitos dos indivíduos e dos grupos. O primeiro termo é utilizado largamente nos estudos acadêmicos,
principalmente na psicologia e muitas vezes nas ciências sociais;
o segundo, mais difundido no vocabulário jurídico.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Preconceito e discriminação são termos correlatos, que,
apesar de designarem fenômenos diversos, são por vezes utilizados de modo intercambiado. Para o desenvolvimento deste estudo é necessário, de início, ixar o sentido em que são empregados.
1.2. Preconceito e discriminação: abordagens psicológicas e sociológicas
Há vasta literatura cientíica sobre o preconceito e a discriminação, sua natureza e dinâmica. Esta produção acadêmica
pode ser sumariada mediante a indicação dos dois campos do
saber que deles costumeiramente se ocupam, quais sejam, a psicologia e a sociologia. Apesar de conceitualmente distintos, eles
têm sido estudados conjuntamente, dada sua evidente relação
(Young-Bruehl, 1996).
1.2.1. Abordagem psicológica
Preconceito é o termo utilizado, de modo geral, para
indicar a existência de percepções negativas por parte de indivíduos e grupos, onde estes expressam, de diferentes maneiras
e intensidades, juízos desfavoráveis em face de outros indivíduos e grupos, dado o pertencimento ou a identiicação destes a
uma categoria tida como inferior. Agregam-se a este conceito, de
modo exclusivo, preponderante ou conjugado, conforme o caso,
as notas de irracionalidade, autoritarismo, ignorância, pouca
disposição à abertura mental e inexistência de contato ou pouca
233
TRANSPOSIÇÕES
convivência com membros dos grupos inferiorizados (Lacerda,
Pereira e Camino, 2002).
As abordagens psicológicas, em síntese, buscam na dinâmica interna dos indivíduos as raízes do preconceito.3 Basicamente, elas podem ser divididas em dois grandes grupos: as
teorias do bode expiatório e as teorias projecionistas.
O primeiro pode ser nomeado como “teorias do bode
expiatório”. Diante da frustração, os indivíduos procuram identiicar culpados e causadores da situação que lhes causa mal estar,
donde a eleição de certos indivíduos e grupos para este lugar.4
O segundo grupo, por sua vez, pode ser indicado como
“teoria projecionista”. Os indivíduos, em conlito interno, tentam solucioná-lo, mediante sua projeção, parcial ou completa,
em determinados indivíduos e grupos, razão pela qual lhes destinam tratamento desfavorável, chegando às raias da violência
física, que pode alcançar até a pura e simples eliminação. A projeção trata-se, na síntese de Allport (1979, p. 391), de um aspecto decisivo na psicodinâmica do preconceito, derivada da vida
mental inconsciente.
Outra contribuição presente nas abordagens psicológicas diz respeito ao estudo dos processos de aprendizagem e interação sociais, esfera onde os indivíduos, dado seu pertencimento
a certo grupo, a este relacionam atributos positivos, em detrimento dos membros de outros agrupamentos. Nesta dinâmica,
a construção de uma auto-percepção positiva tem como contraface a atribuição de uma representação negativa dos estranhos
ao grupo.
3
Allport (1979) realizou ampla e sistemática investigação, a partir
da psicologia social, acerca das raízes, dinâmicas, conseqüências e possíveis
respostas a diversas manifestações de preconceito. Sua obra he Nature of
Prejudice, de fato, é considerada um clássico nos estudos sobre preconceito.
4
Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson e Sanford (1982) titularizam a pesquisa mais célebre, radicada na psicologia social, acerca do preconceito e sua relação com a teoria do bode expiatório. O conjunto de seus
estudos, publicados no relatório he Authoritarian Personality, preocupa-se
centralmente com o “indivíduo potencialmente fascista”.
234
1.2.2. Abordagens sociológicas
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Assim entendido, o preconceito apresenta-se como fenômeno único, com diversas manifestações, tais como racial,
sexual, religiosa e étnica. Desvendar suas origens e dinâmicas
possibilitaria sua superação, uma vez empregadas as medidas
adequadas. Nesta empreitada, a educação, o auto-conhecimento e o convívio com outros indivíduos e grupos são apontados
como respostas possíveis e eicazes.
Numa perspectiva sociológica, o preconceito é “deinido como uma forma de relação intergrupal onde, no quadro
especíico das relações de poder entre grupos, desenvolvem-se
e expressam-se atitudes negativas e depreciativas além de comportamentos hostis e discriminatórios em relação aos membros
de um grupo por pertencerem a esse grupo (Camino & Pereira, no prelo). Entre os processos cognitivos que se desenvolvem
neste tipo de relações sociais, destacam-se a categorização e a
construção de estereótipos (Dorai & Deschamps, 1990; Schadron, Morchain & Yzerbyt, 1996; Yzerbyt, Rocher & Schadron
1997)” (Lacerda, Pereira e Camino, 2002).
Destaco, dentre as abordagens sociológicas, por sua
relevância teórica e pela inluência, duas contribuições especíicas: a obra de Erving Gofman e a leitura marxista mais tradicional e divulgada.
Com efeito, é por meio da idéia de estigma, formulada
por Gofman (1988), que são conduzidas muitas análises das relações sociais pautadas pelo preconceito e pela discriminação.
De acordo com Parker e Aggletton (2002, p. 11), Gofman, ao
identiicar no estigma um atributo negativo, mapeado sobre os
indivíduos e produtor de uma deterioração identitária, capta
uma verdadeira relação de desvantagem, um processo social.
Quanto à perspectiva marxista tradicional, preconceito
e discriminação seriam produtos e manifestações das reais condições que mantém, reletem, criam e recriam a alienação huma235
TRANSPOSIÇÕES
na; na base de tais condições, a dinâmica própria da sociedade
capitalista. Deste modo, para utilizar como exemplo a questão
racial, estudada por Octavio Ianni (1988, p. 89), “contradições
étnicas, raciais, culturais e regionais são muito importantes para
compreendermos o movimento da sociedade tanto na luta pela
conquista da cidadania, como na luta para transformar a sociedade, pela raiz, no sentido do socialismo.” A conseqüência desta
abordagem, do ponto de vista teórico, é o tratamento colateral,
quando não secundário e subordinado do preconceito e da discriminação às “problemáticas maiores” do nacionalismo, do imperialismo, do colonialismo e das classes sociais, no sentido da
revolução capitalista e de sua superação pelo socialismo.5
Por im, no rol dos estudos sobre preconceito e discriminação, é de se destacar a contribuição dos estudos culturais.
De acordo com esta perspectiva, as identidades são produzidas
a partir das diferenças, na medida em que às diferenças são atribuídas determinadas signiicações. Deste modo, não é a discriminação que é produzida pela diferença e por ela precedida; ao
contrário, é a discriminação que atribui um certo signiicado negativo e institui a diferença.6
1.3. Anti-semitismo, racismo e sexismo diante da
homofobia
Desde o inal da II Grande Guerra, preconceito e discriminação são temas disputados e estudados por intermédio de
suas manifestações mais contundentes nas sociedades ocidentais: anti-semitismo, racismo e sexismo. Somente nos últimos
anos, o preconceito e a discriminação voltados para expressões
da sexualidade passaram a merecer atenção.
5
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2004) fornece um breve
escorço histórico da influência e superação do marxismo nos estudos sobre
discriminação racial no Brasil, salientando como a situação de negros e
mulheres, por exemplo, poderia, neste horizonte, ser explicada sem “o apelo
para o preconceito e outros elementos subjetivos.”
6
(2000).
236
Ver Tomaz Tadeu da Silva, Stuart Hall e Kathryn Woodward
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
No esforço de compreensão dos fenômenos do preconceito e da discriminação, a cada uma das aludidas manifestações
associou-se um conjunto de circunstâncias, na tentativa de explicar a gênese e reprodução destes processos. Nesta empreitada, vislumbrou-se na pertinência cultural e genealógica o traço
desencadeador do anti-semitismo; na identiicação de sinais
corporais distintivos, especialmente cor e sinais morfológicos
especíicos, os marcadores de pertença racial, sob os quais se
dinamiza o racismo; pela valorização da distinção morfológica
sexual, a atribuição de identidades de gênero binárias, engendrando o sexismo.
Considerando as características da modernidade ocidental e as especiicidades destas manifestações, foram-lhes relacionados contextos próprios, cuja presença aponta para a sua
propulsão e reprodução. Assim, respectivamente, ao anti-semitismo relacionou-se a emergência dos totalitarismos; ao racismo, os desdobramentos da escravidão; ao sexismo, a estrutura
familiar patriarcal. As respostas sociais e políticas diante destes
preconceitos e discriminações, por sua vez, se voltaram contra
os discursos religiosos, cientíicos e políticos que tanto os legitimaram quanto os perpetuam. Daí o esforço, especialmente nos
âmbitos cientíicos e políticos, por se denunciar a deturpação
ideológica dos saberes cientíicos (notadamente no campo da
biologia, psicologia e das ciências sociais), bem como o combate
às plataformas políticas que acolhem e acionam tais proposições
e perspectivas.
As tentativas de superação do preconceito e da discriminação, neste contexto, estruturam-se a partir da premissa
da descoberta dos processos de geração do preconceito e do
enfrentamento aos respectivos atos de discriminação. Tanto
do ponto de vista das ciências sociais e psicológicas, quanto
do direito, cuida-se de identiicar as circunstâncias concretas
que, diante da dinâmica própria do fenômeno discriminatório,
desencadeiam a discriminação, bem como, ao mesmo tempo,
combater tanto suas causas quanto conseqüências. Nas causas,
o totalitarismo, a escravidão e o patriarcado; nas conseqüências,
os inumeráveis atos de discriminação e a desigual repartição de
237
TRANSPOSIÇÕES
poder e benefícios entre os grupos. Entre eles, dinâmicas psicológicas e sociológicas, cuja presença traz à tona as imperfeições
subjetivas e as conseqüências de processos de interação social
conlitivos e injustos.
Deste ponto de vista, anti-semitismo, racismo e sexismo podem ser superados ou, ao menos, atenuados, na medida
em que a conjugação de iniciativas individuais (auto-conhecimento, abertura para o outro), coletivas (políticas públicas,
especialmente educacionais) e jurídicas (repressão de atos discriminatórios e incentivo a medidas reparatórias e positivas),
tenha condições de implementação e funcionamento. Totalitarismo, segregação racial e a estrutura familiar patriarcal seriam,
portanto, realidades distintas, cujo vencimento aponta para a
instituição de relações sociais mais igualitárias e menos discriminatórias, conduzindo, inclusive, não-só a uma democratização da vida em sociedade, como também a um processo de
aperfeiçoamento pessoal.
Todavia, como referido desde a introdução, os estudos e
o combate ao anti-semitismo, ao racismo e ao sexismo, revelamse em estágio diverso daquele experimentado pela homofobia.
Examinar mais detidamente a dinâmica da homofobia e sua relação com as aludidas expressões discriminatórias, portanto, é
um caminho que necessita ser percorrido, objetivando compreender o porquê desta realidade.
Antes de adentrar nesta tarefa, é preciso sublinhar o caráter interseccional da discriminação. No exame das manifestações discriminatórias aludidas, costuma-se isolar cada uma das
diversas expressões do preconceito e da discriminação. Este procedimento, meramente para ins comparativos, não signiica ignorar a interseccionalidade da discriminação, isto é, a associação
simultânea de múltiplas dinâmicas discriminatórias na realidade
concreta de indivíduos e grupos. Também designada como “discriminação composta” ou “discriminação de cargas múltiplas”
(Crenshaw, 2002), a interseccionalidade da discriminação chama
a atenção para o resultado da articulação das diversas discriminações, tais como raça, sexo, classe, orientação sexual e deiciência.
238
Na primeira parte deste artigo, foi delineado, de forma
sucinta e esquemática, o quadro conceitual por meio do qual
é estudado o fenômeno discriminatório nos debates atuais. A
partir dele, será analisada a homofobia, mediante a exposição
das abordagens psicológica e sociológica e da relação entre as
diversas formas de discriminação antes referidas. Antes de iniciar tal plano, noticio os usos correntes do termo e um pouco de
sua história.
Com efeito, neste percurso investigatório, surgem muitas indagações: a homofobia se restringe a homossexuais ou alcança outros grupos? Quais as semelhanças e as diferenças entre
a homofobia e outras formas de discriminação e preconceito?
Qual a relação entre a homofobia e as demais manifestações
discriminatórias? Diante da polêmica acerca do que seja a homossexualidade e, por conseguinte, de quem são homossexuais,
como identiicar as vítimas da homofobia?
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
2. Homofobia
Mesmo que tão abrangentes e disputadas questões extrapolem o objeto desta relexão, elas serão tangenciadas na
medida em que a compreensão da homofobia e de suas manifestações requerer.
2.1. Homofobia: deinição e elementos
O que é homofobia? Uma resposta rápida e direta, no
horizonte deste estudo, divisa a homofobia como forma de preconceito, que pode resultar em discriminação. De modo mais
especíico7, e agora valendo-me da acepção mais corrente, homofobia é a modalidade de preconceito e de discriminação direcionada contra homossexuais.
7
Daniel Welzer-Lang (1994) distingue a utilização do termo
homofobia de um modo genérico ou particular. Antes mesmo da “homofobia
especíica” (aversão dirigida contra homossexuais), há a “homofobia geral”
(manifestação do sexismo que resulta em discriminação dos sujeitos em
virtude do seu sexo e gênero, sempre que estes carregam características
atribuídas ao gênero oposto).
239
TRANSPOSIÇÕES
A literatura registra a utilização do termo “homofobia”
no inal da década de 60 do século passado8. Foi na pesquisa do
psicólogo estadunidense George Weinberg, procurando identiicar os traços da “personalidade homofóbica”, realizada nos
primeiros anos de 1970, que o termo ganhou foros acadêmicos,
correspondendo a uma condensação da expressão “homosexualphobia” (Young-Bruehl, 1996, p. 140). Outra nota relevante é a
proposição do termo a partir da experiência da homossexualidade masculina, donde a proliferação de outros termos objetivando designar formas correlatas e especíicas de discriminação, tais
como a putafobia (prostitutas), transfobia (transexuais), lesbofobia (lésbicas) e bissexualfobia (bissexuais).
As deinições valem-se, basicamente, de duas dimensões,
veiculadas de modo isolado ou combinado, conforme a respectiva compreensão. Enquanto umas salientam a dinâmica subjetiva
desencadeadora da homofobia (medo, aversão e ódio, resultando em desprezo pelos homossexuais), outras sublinham as raízes
sociais, culturais e políticas desta manifestação discriminatória,
dada a institucionalização da heterossexualidade como norma,
com o conseqüente vilipêndio de outras manifestações da sexualidade humana.
Neste último sentido, como será explicitado adiante, o
termo “heterossexismo” é apontado como mais adequado, disputando a preferência com o termo “homofobia”, para designar
a discriminação experimentada por homossexuais e por todos
aqueles que desaiam a heterossexualidade como parâmetro de
normalidade em nossas sociedades.
A formulação de cada conceito, logicamente, é tributária das respectivas compreensões sobre a homofobia, salientando
ou combinando, como referido, uma ou outra dimensão. Daí a
importância de prosseguir esta investigação visitando, ainda que
sucintamente, a discussão sobre as causas e as origens da homofo8
Há referências anteriores à década de 1920 (conforme registro
do Oxford English Dictionary); o termo “homoerotophobia”, por sua
vez, aparece para alguns como precursor, donde se derivou “homofobia”
(utilizado por Wainwright Churchill, no livro Homosexual Behavior among
Males. A cross-cultural and cross-species invetigation, de 1967).
240
2.2. Homofobia: aversão fóbica e heterossexismo
De modo geral, a investigação sobre cada modalidade
discriminatória estrutura-se a partir da constatação de concepções e práticas discriminatórias, voltadas contra um certo grupo
de indivíduos. Veriicada esta realidade, a pesquisa volta-se às
causas e origens, objetivando, em seguida, respostas visando à
superação desta situação. Esta operação é complexa, pois pressupõe uma série de premissas: desde a injustiça da distinção (que
caracteriza a diferenciação como ilegítima e, portanto, merecedora de reparação e combate) até a dinâmica geradora das ações
e omissões discriminatórias, passando pela desaiadora identiicação dos indivíduos e grupos discriminados.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
bia. Como será visto logo a seguir, tal debate tem conexão direta
com as abordagens psicológica e sociológica da homofobia.
No caso da homofobia, cada um destes estágios é particularmente controverso. Em primeiro lugar, pelo fato de que, no
horizonte contemporâneo do combate ao preconceito e à discriminação, diversamente do que ocorre com o anti-semitismo,
o racismo ou o sexismo, ainda persistem posturas que pretendem atribuir à homossexualidade caráter doentio ou, ao menos,
condição de desenvolvimento inferior à heterossexualidade. Em
segundo lugar, pela complexidade da compreensão das causas e
origens da homofobia. Em terceiro lugar, pelo intenso debate
sobre a natureza ou construção social da homossexualidade, a
dividir “essencialistas” e “construcionistas”.
Nesta arena de debates conceituais e disputas políticas,
destaco as duas grandes vertentes pelas quais se desenrola o entendimento da homofobia. Com efeito, as idéias de “aversão a
homossexuais” e de “heterossexismo” operam como pontos de
convergência de algumas das controvérsias aludidas, possibilitando examinar o estado da arte destes estudos e uma análise da
homofobia dentro do paradigma dos direitos humanos.
241
TRANSPOSIÇÕES
2.2.1. A homofobia como aversão fóbica
No rol dos esforços de compreensão da homofobia, a
abordagem psicológica tem grande relevo e disseminação. Com
efeito, o próprio termo foi cunhado a partir de elaborações psicológicas9. Daí a relação direta que se estabeleceu entre a elaboração conceitual da homofobia e a vertente psicologista dos
estudos sobre discriminação.
Assim compreendida, a homofobia é, em síntese, a rejeição ou aversão a homossexual ou à homossexualidade. A
discriminação homofóbica seria, portanto, sintoma que se cria
a im de evitar uma situação de perigo, cuja presença foi assinalada pela geração de angústia (Freud, 1998, p. 56). Como refere
Pocahy (2006), ao descrever a formulação psicológica desta dinâmica, da reação a este medo, geralmente paralisante e voltada
para si, em caráter de evitação, podem resultar atos de agressão,
visando a suportá-lo. Daí a aplicação das abordagens psicológicas do fenômeno discriminatório à homofobia.
Neste contexto, uma hipótese particularmente divulgada é a de que reações homofóbicas violentas provêm de sujeitos
em grave conlito interno com suas próprias tendências homossexuais, resultantes da projeção de um sentimento insuportável
de identiicação inconsciente com a homossexualidade, donde a
intolerância à homossexualidade.
Não obstante a discussão sobre a posição freudiana
diante da homossexualidade (Young-Bruehl, 1996, p. 13910), o
fato é que a “homofobia clínica”, ao lado da “homofobia antropológica”, do stalinismo e do nazismo foram as principais ideologias que construíram a homofobia moderna, de caráter laico e
não-teológico (Borrillo, 2000).
9
Para uma notícia histórica do trabalho de George Weinberg, ver
Gregory M. Herek, (2004).
10
Tratando da homossexualidade, Sigmund Freud já em 1905 teria,
conforme citação de Young-Bruehl (1996, p. 139), concluído explicitamente
que “a abordagem patológica para o estudo da inversão foi suplantada pela
abordagem antropológica”, em nota aos célebres “Três Ensaios sobre a Teoria
da Sexualidade”.
242
Na esteira da tese projecionista, a homofobia seria combatida, de um lado, pela adoção de terapias psicológicas objetivando a superação da eventual egodissintonia da homossexualidade que venha a caracterizar certo indivíduo e, de outro, pelo
estímulo ao convívio e conhecimento do outro e de sua realidade, visando à superação da ignorância e do preconceito.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
O recurso ao campo psicológico como saber apto à
compreensão da homofobia, mais que tenso face à relação desta
ciência com as origens da homofobia, pode chegar ao paradoxo. Com efeito, como adverte M. Dorais (1994), a pesquisa das
causas psíquicas da homossexualidade constitui, em si mesma,
manifestação preconceituosa e discriminatória, por pressupor
a existência de uma sexualidade normal (a heterossexualidade),
parâmetro pelo qual as demais expressões da sexualidade serão
interpretadas e valoradas.
2.2.2. A homofobia como heterossexismo
Como visto, a compreensão do preconceito e da discriminação sofridos por homossexuais a partir da noção de fobia
tem como elemento central as dinâmicas individuais experimentadas pelos sujeitos e presentes em sua socialização. A idéia de
heterossexismo se apresenta como alternativa a esta abordagem,
designando um sistema onde a heterossexualidade é institucionalizada como norma social, política, econômica e jurídica, não
importa se de modo explícito ou implícito. Uma vez institucionalizado, o heterossexismo manifesta-se em instituições culturais e organizações burocráticas, tais como a linguagem e o sistema jurídico. Daí advém, de um lado, superioridade e privilégios
a todos que se adéquam a tal parâmetro, e de outro, opressão e
prejuízos a lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e até
mesmo a heterossexuais que porventura se afastem do padrão de
heterossexualidade imposto.11
11
Gregory M. Herek (2004, p. 15) fornece um panorama histórico
do surgimento do termo heterossexismo, salientando suas origens no pensamento de feministas lésbicas.
243
TRANSPOSIÇÕES
Na ideologia e no sistema heterossexistas, mais do que
uma questão de preferência ou orientação sexuais, o binômio
heterossexualidade/homossexualidade é critério distintivo para
o reconhecimento da dignidade dos sujeitos e para a distribuição dos benefícios sociais, políticos e econômicos. Isto porque o
pertencimento a grupos inferiorizados implica a restrição, quando não a supressão completa e arbitrária de direitos e de oportunidades, seja por razões jurídico-formais, seja por pelo puro e
simples exercício da força física bruta ou em virtude dos efeitos
simbólicos das representações sociais12. Exemplos destas situações são, respectivamente, a impossibilidade jurídica do acesso
de homossexuais a certos institutos jurídicos, como o casamento
civil, e o elevado número de agressões físicas e verbais experimentadas por homossexuais13.
O heterossexismo originou-se e se alimenta em várias
ideologias. Sem esquecer das cosmovisões religiosas e das visões
de mundo da Antigüidade greco-romana, Borrillo (2000) fornece um sumário deste amplo e complexo quadro, referindo-se
a quatro discursos homofóbicos: a “homofobia antropológica”,
a “homofobia liberal”, a “homofobia stalinista” e a “homofobia
nazista”. A homofobia antropológica, por fundar-se na crença
de que a evolução das sociedades caminha rumo à consagração
da conjugalidade heterossexual monogâmica, vê na homossexualidade o risco e a manifestação da desintegração da sociedade
e da civilização. Já a “homofobia liberal”, por considerar as manifestações da homossexualidade matéria estritamente privada,
não provê homossexuais de proteção jurídica no espaço público,
12
Guacira Lopes Louro (2001, p. 14) demonstra como a classiicação
binária da heterossexualidade/homossexualidade institui a heteronormatividade compulsória, produzindo normalização e estabilidade, mecanismos
não-só de controle, como também de acionamento das políticas identitárias
de grupos homossexuais.
13
Para um panorama sobre as pesquisas de vitimização sobre homossexuais, ver o documento elaborado por Laura Moutinho (2005). Especiicamente, quanto à discriminação sofrida por homossexuais, nada menos
que 64.8% dos participantes homossexuais, bissexuais e transgêneros que
freqüentaram a 9ª Parada do Orgulho GLBT, realizada em 2004 no Rio de
Janeiro, declararam terem sido vítimas de discriminação, chegando a 61.5%
o índice que experimentou violência sexual, agressão ou ameaça de agressão
física ou verbal e extorsão (Carrara, 2005, p. 74).
244
A relação umbilical entre sexismo e homofobia é um
elemento importantíssimo para perceber a homofobia como
derivação do heterossexismo. De fato, a literatura dedicada à
homossexualidade dialoga constantemente com a noção de gênero14. O binarismo classiicatório, entre masculino e feminino,
analisado nos estudos de gênero, de novo se apresenta no âmbito da sexualidade, agora através do par heterossexualidade/
homossexualidade15. Mais ainda: Costa (1996) salienta como
na dinâmica relacional destes duplos-conceituais, à dominação
masculina sobre o feminino corresponde a superioridade da heterossexualidade sobre a homossexualidade. Neste contexto, o
heterossexismo e, por conseguinte, a homofobia, têm raízes no
diferencialismo presente na divisão dos sexos e na diversidade
dos gêneros.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
considerando este domínio natural e exclusivo da heterossexualidade. A “homofobia stalinista”, por considerar comportamentos homossexuais um sintoma da decadência moral capitalista,
promoveu, em nome do “humanismo proletário”, a condenação
da homossexualidade. Por im, a “homofobia nazista”, preocupada com a expansão da população ariana e a supremacia alemã,
valeu-se de bases biológicas e morais para condenar e conduzir
pelo menos 500.000 homossexuais à morte nas prisões.
A homofobia revela-se como contra-face do sexismo e
da superioridade masculina16, na medida em que a homossexu14
Regina Facchini (2005) fornece um apanhado das discussões sobre
gênero, enfatizando a contribuição de Butler, e sua pertinência às questões
identitárias relacionadas à homossexualidade.
15
Para uma crítica da pertinência deste binarismo classiicatório
diante da realidade brasileira, ver Peter Fry (prefácio do livro de Edward
MacRae, A construção da igualdade: identidade sexual e política no Brasil
da ‘abertura’, 1990); o mesmo autor sustenta a maior signiicação do binômio masculinidade/feminilidade do que a hetero/homossexualidade entre
nós (A persistência da raça, 2005, p. 177). Richard Parker (2002) examina
a construção social do gênero no Brasil e suas repercussões para as homossexualidades no país.
16
Fernando Sefner (2004) demonstra como este mecanismo é acionado, reforçando a centralidade da masculinidade heterossexual hegemônica, ao estudar a masculinidade bissexual.
245
TRANSPOSIÇÕES
alidade põe em perigo a estabilidade do binarismo das identidades sexuais e de gênero, estruturadas pela polaridade masculino/feminino. Toda vez que esta diferenciação for ameaçada
– hipótese realizada por antonomásia pela homossexualidade
– apresentar-se-á todo um sistema de ações e reações prévio
ao indivíduo, no qual ele está imerso, nele se reproduz e dele
vai muito além: trata-se do caráter institucional da homofobia
como heterossexismo.17
Nas palavras de Borrillo (2000, p. 87), “sexismo e homofobia aparecem portanto como duas faces do mesmo fenômeno
social. A homofobia e, em particular, a homofobia masculina,
cumpre a função de ‘guardião da sexualidade’, ao reprimir todo
comportamento, todo gesto ou todo desejo que ultrapasse as
fronteiras ‘impermeáveis’ dos sexos.”
2.3. A Homofobia diante do anti-semitismo, do racismo e do sexismo
Nas análises teóricas e nas lutas políticas, predomina a
concepção de que anti-semitismo, racismo, sexismo e homofobia são manifestações diversiicadas dos fenômenos singulares
do preconceito e da discriminação. Daí, como acima referido
(item 1.3.), a associação a cada uma destas expressões discriminatórias uma série de notas especíicas, relacionadas aos critérios
de identiicação dos discriminados, aos contextos geradores e reprodutores das discriminações e às estratégias de enfrentamento
destas realidades discriminatórias. No que se refere ao anti-semitismo, relacionam-se a pertinência cultural e/ou genealógica e a emergência dos totalitarismos; ao racismo, cor e sinais
morfológicos e os regimes escravocratas; ao sexismo, a distinção
morfológica sexual, o binarismo quanto ao gênero e o patriarcado. Como estratégias de superação da discriminação, comuns a
tais manifestações, a conjugação de iniciativas centradas no in17
Mary Douglas demonstra não-só a pertinência da teoria institucional no debate sociológico contemporâneo, como também o quanto as relações de poder entre os indivíduos e os processos de decisão são engendrados a
partir das realidades institucionais (Como as instituições pensam, São Paulo:
Editora da USP, 1998).
246
Quanto aos critérios de identiicação dos discriminados,
em torno da homossexualidade gravitam acirrados debates, polarizados entre “essencialistas” e “construcionistas”. Em apertadíssima síntese, enquanto para os primeiros a identiicação dos
homossexuais se dá mediante a enunciação de uma característica
pré-deinida e invariável (a atração e/ou conduta sexual por pessoa do mesmo sexo, por exemplo), para os segundos a própria
existência desta categoria e, em caso airmativo, a caracterização
dos discriminados, dependem da especiicidade de cada contexto cultural, sendo inviável qualquer classiicação antecipada.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
divíduo (auto-conhecimento e abertura para o outro) e medidas
voltadas para a coletividade (políticas públicas, especialmente
educacionais, conjugadas com respostas jurídicas, de cunho reparatório e promotor da diversidade). Diante deste quadro, ica
a questão sobre as semelhanças e diferenças entre a homofobia
e as aludidas formas correlatas de discriminação, visando a melhor compreender a homofobia.
Uma vez identiicadas as vítimas da discriminação homofóbica, não importa qual corrente for adotada, apresenta-se,
de modo peculiar, a questão da chamada “visibilidade homossexual”. Diversamente do sexismo ou do racismo, onde estão presentes marcadores corporais, e do anti-semitismo (onde a pertinência genealógica pode ser rastreada), a homossexualidade está
presente em todos os sexos, raças, etnias e convicções religiosas.
Não há como, salvo auto-identiicação ou atribuição por terceiros, distinguir por mero recurso visual, de antemão, homossexuais de heterossexuais.
Ainda com relação à indicação dos sujeitos discriminados, um dado instigante quanto à homossexualidade é a gênese
da identidade homossexual na modernidade. Segundo Michel
Foucault (1993, p. 43), a identidade homossexual em si mesma
é fruto de um processo de controle e assujeitamento dos indivíduos. Nas suas palavras,
“é necessário não esquecer que a categoria psicológica, psiquiátrica e médica da homossexualidade constituiu-se no dia em que foi carac-
247
TRANSPOSIÇÕES
terizada [...] menos como um tipo de relações
sexuais do que como uma certa qualidade da
sensibilidade sexual, uma certa maneira de
interverter, em si mesmo, o masculino e o feminino. A homossexualidade apareceu como
uma das iguras da sexualidade quando foi
transferida, da prática da sodomia, para uma
espécie de androginia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie.”
Neste sentido, a identidade homossexual como marcadora das vítimas da homofobia revela uma dinâmica bastante
singular em face das demais categorias vitimizadas pelo sexismo, pelo racismo e pelo anti-semitismo. Como salienta Young-Bruehl (1996: 142), diversamente da condição feminina, da
afrodescendência ou da judaicidade, que não foram instituídas
originariamente como destinatárias de discriminação, a homossexualidade foi uma invenção dos homófobos.18
Apontada estas características, nas relações entre a homofobia e as demais formas de discriminação, nunca é demais
ressaltar a interseccionalidade do fenômeno discriminatório.
Para tanto, trago à cena a combinação discriminatória entre
orientação sexual e condição sorológica positiva para o vírus
HIV. Como alerta Terto Jr. (2002), a identiicação dos homossexuais ora como vilões, ora como vítimas da AIDS, produz estigmas e preconceitos decorrentes da associação AIDS-homossexualidade19; conforme a descrição de Toro-Alfonso (2002), esta
dinâmica de discriminação combinada dá origem a situações de
vulnerabilidade e violência experimentadas por homossexuais
na América Latina. Nesta linha, Parker e Camargo (2000) arrolam opressões e discriminações múltiplas (pobreza, racismo,
desigualdade de gênero e homofobia) interagindo de forma sis18
Não se ignora a advertência de Judith Butler, quanto à possibilidade de subverter-se internamente a binaridade pressuposta e disseminada
quanto aos gêneros, até o ponto em que ela deixe de fazer sentido (apud Nardi, Silveira & Silveira, 2003); todavia, salienta-se a intensidade desta dinâmica na homofobia.
19
Sobre o impacto desta associação discriminatória na compreensão
do sujeito dos direitos sexuais, Rios (2002).
248
Ainda quanto à interação das múltiplas discriminações,
não se pode deixar de mencionar as combinações da homofobia com o racismo e com o sexismo. Sobre esta última, é suiciente referir a seção anterior, falando da íntima relação entre
o sexismo, o heterossexismo e a homofobia; nesta linha, Parker
(1993) demonstra como as estruturas de desigualdade de gênero
são replicadas pela estigmatização de homossexuais afeminados
e de transexuais. Sobre a interseccionalidade entre homofobia
e raça, Pinho (2006) descreve as dinâmicas internas e externas
vividas pelas comunidades homossexuais, precisamente em face
da interssecionalidade entre raça, cor, classe e sexualidade; Moutinho (2006), por sua vez, acompanhando a trajetória de jovens
negros homossexuais que vivem no Rio de Janeiro, fornece material para a percepção da inter-relação entre homossexualidade
e raça/cor.20
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
temática, fazendo com que homossexuais sujeitem-se a situações
de acentuada vulnerabilidade ao HIV.
Por im, resta examinar a homofobia e sua relação com
as referidas expressões discriminatórias quanto às estratégias de
enfrentamento. De um modo geral, o combate ao preconceito
e à discriminação requer a consideração das singularidades de
cada dinâmica concreta, suas causas e conseqüências. Feito este
diagnóstico, são desenhadas e empregadas estratégias, dirigidas
tanto aos indivíduos quanto à coletividade, o que inclui respostas
jurídicas (repressão, reparação e prevenção da discriminação).
Quando se volta a atenção para o anti-semitismo, o racismo e o sexismo, deparamo-nos com desaios urgentes e candentes. Entretanto, sem subestimar a intensidade e a injustiça de cada
uma destas realidades, no combate à homofobia surgem obstáculos peculiares dignos de nota. Dois deles serão destacados.
20
A inter-relação entre raça, sexualidade e gênero, particularmente
nas suas conseqüências nos processos de saúde e doença, foram objeto de
número temático da Revista de Estudos Feministas (vol. 14, nº 1, jan./abril
2006), que retrata o Seminário Internacional Raça, Sexualidade e Saúde:
perspectivas regionais, promovido pelo Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos.
249
TRANSPOSIÇÕES
Em primeiro lugar, o fato de que, diversamente das aludidas discriminações, ainda pesa contra a homossexualidade, de
modo intenso e muitas vezes aberto, a pecha de condenação moral e inaceitabilidade social e política, circunstância que fomenta a homofobia. Além disso, persistem posturas que atribuem
à homossexualidade caráter doentio ou, ao menos, condição de
desenvolvimento inferior à heterossexualidade.
Em segundo lugar, a airmação da tolerância étnica e religiosa, do convívio respeitoso entre as raças e da igualdade de
gênero, como alternativas ao anti-semitismo, ao racismo e ao
sexismo, apresenta-se, de modo geral, compatível ou assimilável
face ao modus vivendi hegemônico. Esta compossibilidade, ainda que por vezes limitada e tensa, se dá, particularmente, no que
respeita a instituições e dinâmicas que estruturam o cotidiano
dos indivíduos e a organização social, tais como a família fundada na heterossexualidade e a generiicação da realidade.
A homofobia, como já referido, apresenta-se mais renitente do que outras formas de preconceito e discriminação.
De fato, se hoje são inadmissíveis as referências discriminatórias
a negros, judeus e mulheres, ainda são toleradas, ou ao menos
sobrelevadas, as manifestações homofóbicas. A persistência da
homofobia ocorre, dentre outros fatores, porque a homossexualidade tende a afrontar de modo mais radical e incômodo instituições e dinâmicas basilares na vida em sociedade21.
é claro que este contraste não rejeita, por exemplo, o
potencial revolucionário do feminismo para a organização da
vida familiar e social, pública e privada. Com propriedade,
pondera-se que, assim como no combate à homofobia, a superação do sexismo pode contender a estrutura tradicional da
21
Esta airmação, de que a homossexualidade tende a desaiar tais
instituições e dinâmicas, sem necessariamente fazê-lo, pode ser constatada
pelas diversas posturas presentes no movimento gay. Conforme a descrição de
Bamforth (1997), enquanto alguns adotam uma perspectiva “revolucionária”,
pugnando pela superação das identidades hetero/homossexuais e rejeitando a
assimilação/adaptação a modalidades de relacionamento tradicionais, outros,
“reformistas”, pleiteiam a inclusão na estrutura social vigente, basicamente
pela eliminação das restrições decorrentes da identidade de sexos nas relações
afetivas e sexuais.
250
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
família heterossexual ou questionar a binariedade do discurso de gênero (Butler, 1999). Todavia, na homofobia, o que se
reclama não é somente o rearranjo das relações conjugais heterossexuais ou a reorganização do espaço público, possibilitando
condições de igualdade entre homens e mulheres. O combate à
homofobia reclama não só ir além da “normalidade” da dominação masculina e do sexismo. Ele demanda, além do questionamento aos paradigmas já criticados pelo feminismo, rumar à
crítica da heterossexualidade como padrão de normalidade. É
preciso, neste sentido, a superação de mais esta “normalidade”.
Neste passo, abrem-se, pelo menos, duas alternativas, que denomino de respostas radical e moderada diante da homofobia.
A resposta radical pode ser estruturada como um dilema: a superação da homofobia insta à desconstrução do binômio hetero/homossexualidade, uma vez que a homofobia pressupõe a airmação da heterossexualidade por meio do repúdio à
homossexualidade. Dito de outro modo: para atacar a homofobia em suas raízes, é preciso suplantar a heterossexualidade e a
homossexualidade como identidades sexuais. Tal resposta pode
soar, aos ouvidos de muitos, como “suicídio identitário”: acabar
deinitivamente a homofobia pela abolição da própria homossexualidade. Uma crítica deste jaez seria improcedente: ela pecaria
por não perceber que o vencimento do heterossexismo, levado
às últimas conseqüências, é que está em causa.
A resposta moderada, por sua vez, pode redundar em um
paradoxo: como sustentar a igualdade entre as orientações sexuais (e, por conseguinte, suprimir a homofobia), se, como sustenta Katz (1995), a heterossexualidade se deine precisamente pela
negação e desvalorização da homossexualidade? Dito de outro
modo: cuida-se de tentar conciliar o inconciliável.
Diante desta encruzilhada teórica e política, é preciso
buscar alternativas que ofereçam compreensão e respostas, possibilitando reagir à extensa gama de direitos violados pela discriminação homofóbica. Para tanto, lanço mão do aporte que o
paradigma dos direitos humanos e, em particular, seus conteúdos
antidiscriminatórios, fornece quando desaiado pela homofobia.
251
TRANSPOSIÇÕES
3. Direitos humanos e antidiscriminação: aporte jurídico
para a compreensão e para o combate da homofobia
O objetivo desta seção é, mediante o aporte da perspectiva dos direitos humanos, contribuir para o entendimento da
homofobia e seu enfrentamento. Consciente da amplitude de
temas, de perspectivas e de questões que o paradigma dos direitos humanos suscita, limito-me ao âmbito do direito da antidiscriminação, entendido como conjunto de conteúdos e institutos
jurídicos relativos ao princípio da igualdade enquanto proibição
de discriminação e como mandamento de promoção e respeito
da diversidade. Deste modo, pode-se avançar não-só na conceituação da homofobia, como também na efetividade de seu combate, potencializando o raciocínio e o instrumental jurídicos em
face desta realidade.
3.1. Conceito jurídico de discriminação
Como referido (item 1.1.), o termo discriminação designa a materialização, no plano concreto das relações sociais,
de atitudes arbitrárias, comissivas ou omissivas, originadas do
preconceito, capazes de produzir violação de direitos contra
indivíduos e grupos estigmatizados. Mais freqüente no vocabulário jurídico, é a partir deste campo que ora se analisa o conceito de discriminação.
Alerte-se que a abordagem da discriminação através de
uma perspectiva jurídica não implica desconhecer ou menosprezar o debate sociológico ao redor deste conceito. Como indica
Marshall (1998), os estudos sociológicos sobre discriminação, inicialmente vinculados à investigação do etnocentrismo, atualmente
se concentram em padrões de dominação e opressão, como expressões de poder e privilégio. A adoção de um conceito de discriminação mais jurídico que sociológico tem dupla função neste trabalho:
ao mesmo tempo que possibilita ao leitor um apanhado do estado
da arte dos estudos sobre discriminação e sua aplicação para a homofobia, impulsiona um aspecto pouco desenvolvido no esforço
de compreensão e superação da discriminação homofóbica.
252
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Nesta perspectiva, o conceito de discriminação aponta
para a reprovação jurídica das violações ao princípio isonômico22, atentando para os prejuízos experimentados pelos destinatários de tratamentos desiguais. A discriminação aqui é visualizada através de uma perspectiva mais substantiva que formal23:
importa enfrentar a instituição de tratamentos desiguais prejudiciais e injustos. Como Fredman (2004:95) demonstra, uma
abordagem meramente formal poderia levar à rejeição de um
pleito de proteção jurídica (fundado na proibição de discriminação sexual) diante de um empregador que praticasse assédio
sexual contra homens e mulheres simultaneamente.
Neste contexto, valho-me do conceito de discriminação desenvolvido no direito internacional dos direitos humanos,
cujos termos podem ser encontrados na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial24 e na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra a Mulher25. Segundo estes dizeres, discriminação é “qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência
22
A propósito, deve-se registrar que o termo “discriminação” tem
sido amplamente utilizado numa acepção negativa, tanto no direito nacional
quanto no direito comunitário e internacional, ao passo que o termo
“diferenciação” tem sido empregado para distinções legítimas. Ver Marc
Bossuyt (1976, p. 8) e Rhoodie (1984, p. 26).
23
Como refere Patmore (1999, p. 126), a discriminação substantiva
se caracteriza pela referência a uma distinção prejudicial diante de uma pessoa
ou grupo relacionada a um fator de diferenciação ilegítimo, ao passo que a
discriminação formal pressupõe a ilegitimidade de toda e qualquer distinção.
24
Aprovada pelas Nações Unidas em 21.12.1965 e ratiicada pelo
Brasil em 27.03.1968. Reza seu artigo 1º, I: “Qualquer distinção, exclusão,
restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o
reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos
e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural
ou em qualquer outro campo da vida pública.”
25
Aprovada pelas Nações Unidas em 18.12.1979, ratiicada pelo
Brasil em 31.03.1981. Diz seu art. 1º, ao deinir discriminação: “toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo, exercício pela mulher,
independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e
da mulher, dos direitos humanos e das liberdades fundamentais nos campos
político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.”
253
TRANSPOSIÇÕES
que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos
e liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural
ou em qualquer campo da vida pública.”
Por im, alerte-se que não se subsumem ao conceito jurídico de discriminação hipóteses de diferenciação legítima, decorrentes da elaboração e aplicação de normas jurídicas em face
de situações desiguais (dimensão material do princípio jurídico
da igualdade); exemplo disso são os tratados internacionais que,
na esfera empregatícia, apartam do conceito aquelas distinções
fundadas em qualiicações exigidas para determinada função.26
3.2. A discriminação homofóbica: contrariedade ao
direito e formas de violência
Tendo presente a exposição realizada na primeira e na
segunda partes deste artigo, ica claro que a indivíduos e grupos
distantes dos padrões heterossexistas é destinado um tratamento diverso daquele experimentado por heterossexuais ajustados
a tais parâmetros. Esta experiência, comumente designada pelo
termo “homofobia”, implica discriminação, uma vez que envolve
distinção, exclusão ou restrição prejudicial ao reconhecimento,
ao gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e
liberdades fundamentais.
O pressuposto para a qualiicação jurídica de uma relação
social como discriminatória é a contrariedade ao direito. Com
efeito, não haverá discriminação se a diferenciação de tratamento
for considerada conforme o direito, como se dá, por exemplo,
diante da proteção jurídica à mulher no mercado de trabalho.
Sendo assim, a fundamentação jurídica homofobia
como expressão discriminatória exige que se destaquem, ao me26
Ver Convenção sobre Discriminação em Emprego e Proissão, n.
111 – Organização Internacional do Trabalho, artigo 1, seção 2 – “ as distinções, exclusões ou preferências fundadas em qualiicações exigidas para um
determinado emprego não são consideradas como discriminação.”
254
Quanto ao primeiro tópico, revela-se necessário salientar a injustiça dos tratamentos discriminatórios homofóbicos27.
Como visto, ainda persistem posturas que pretendem legitimar
tais discriminações, diversamente do que ocorre, em larga medida, diante do anti-semitismo, do racismo ou do sexismo. Com
efeito, a teoria e a jurisprudência dos direitos humanos e dos
direitos fundamentais airmam, de modo cada vez mais claro e
irme, a ilicitude da discriminação por orientação sexual. Tanto
tribunais internacionais de direitos humanos, quanto tribunais
constitucionais nacionais, têm vislumbrado ofensa a diversos direitos humanos e fundamentais na discriminação dirigida contra manifestações divorciadas do heterossexismo. Nestes casos,
direitos básicos como a privacidade, a liberdade individual, o
livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade humana,
a igualdade e a saúde são concretizados e juridicamente protegidos em demandas envolvendo homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais.28
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
nos, dois aspectos: (1) a contrariedade ao direito dos tratamentos homofóbicos e (2) as modalidades de violência pelas quais a
discriminação homofóbica se manifesta.
Como aludido no parágrafo anterior, a homofobia viola
de modo intenso e permanente uma série de direitos básicos, reconhecidos tanto pelo direito internacional dos direitos humanos, quanto pelo direito constitucional. Ao lesionar uma gama
tão ampla de bens jurídicos, a homofobia manifesta-se por meio
de duas formas de violência: física e não-física.
A violência física, mais vísivel e brutal, atinge diretamente a integridade corporal, quando não chega às raias do
homicídio. A segunda forma de violência, não-física, mas não
por isso menos grave e danosa, consiste no não-reconhecimento e na injúria. O não-reconhecimento, conigurando uma es27
Lopes (2003) analisa a injustiça da discriminação por orientação
sexual no contexto dos debates atuais de ilosoia moral, demonstrando as
implicações para a prática do direito.
28
Um panorama desta evolução no direito internacional dos direitos
humanos, ver Wintemute (1995) e Heinze (1995); no direito brasileiro, Rios
(2001) e Golin (2003).
255
TRANSPOSIÇÕES
pécie de ostracismo social, nega valor a um modo de ser ou de
viver, criando condições para modos de tratamento degradante
e insultuoso. Já a injúria, relacionada a esta exclusão da esfera
de direitos e impedimento da autonomia social e possibilidade
de interação, é uma das manifestações mais difusas e cotidianas
da homofobia (Lopes, 2003:20). Nas palavras de Didier Eribon
(citado por Lopes, 2003),
“O que a injúria me diz é que sou alguém
anormal ou inferior, alguém sobre quem o outro tem poder e, antes de tudo, o poder de me
ofender. A injúria é, pois, o meio pelo qual se
exprime a assimetria entre os indivíduos. [...].
Ela tem igualmente a força de um poder constituinte. Porque a personalidade, a identidade
pessoal, a consciência mais íntima, é fabricada
pela existência mesma desta hierarquia e pelo
lugar que ocupamos nela e, pois, pelo olhar do
outro, do ‘dominante’, e a faculdade que ele
tem de inferiorizar-m insultando-me, fazendo-me saber que ele pode me insultar, que sou
uma pessoa insultável e insultável ao ininito.
A injúria homofóbica inscreve-se em um contínuo que vai desde a palavra dita na rua que
cada gay ou lésbica pode ouvir (veado sem-vergonha, sapata sem-vergonha) até as palavras
que estão implicitamente escritas na porta de
entrada da sala de casamentos da prefeitura:
‘proibida a entrada de homossexuais’ e, portanto, até as práticas proissionais dos juristas
que inscrevem essa proibição no direito, e até
os discursos de todos aqueles e aquelas que
justiicam essas discriminações nos artigos
que apresentam como elaborações intelectuais (ilosóicas, teológicas, antropológicas, psicanalíticas etc.) e que não passam de discursos
pseudocientíicos destinados a perpetuar a ordem desigual, a reinstituí-la, seja invocando a
natureza ou a cultura, a lei divina ou as leis de
uma ordem simbólica imemorial. Todos estes
discursos são atos, e atos de violência.”
Estando manifesta a contrariedade ao direito da homofobia, bem como a violência de suas manifestações, deve-se
atentar para o quanto a discriminação homofóbica está disseminada em nossa cultura heterossexista. De fato, ao lado de ex256
3.3. Modalidades de discriminação: homofobia direta e indireta
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
pressões intencionais de homofobia, convivem discriminações
não-intencionais, mas nem por isso menos graves ou injustas.
Uma análise destas modalidades de discriminação homofóbica
pode ser desenvolvido a partir das modalidades direta e indireta
do fenômeno discriminatório, elaboradas no seio do direito da
antidiscriminação.
A homofobia, como expressão discriminatória intensa e cotidiana, ocorre sempre que distinções, exclusões, restrições ou preferências anulam ou prejudicam o reconhecimento,
gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e
liberdades fundamentais nos campos econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública. Assim compreendida, a qualiicação de um ato como homofóbico não depende
da intencionalidade do ato ou da situação ocasionadora da
lesão aos direitos humanos e liberdades fundamentais afetados. Deste modo, há discriminação homofóbica sempre
que, de modo proposital ou não, houver tal espécie de lesão
a direitos, decorrente da concretização de preconceito diante
de estilos de ser e de viver divorciados do heterossexismo. Daí
a relevância da análise das formas intencionais (discriminação
direta) e não-intencionais (discriminação indireta) de discriminação homofóbica, uma vez que ambas lesionam direitos de
modo grave e disseminado.
3.3.1. Discriminação direta e homofobia
Na modalidade direta, cuida-se de evitar discriminação intencional. Três são as suas principais manifestações: a
discriminação explícita, a discriminação na aplicação e a discriminação na elaboração da medida ou tratamento.
Na primeira, tem-se a mais clara e manifesta hipótese:
257
TRANSPOSIÇÕES
trata-se de diferenciação injusta explicitamente adotada. Uma
manifestação homofóbica que ilustra a primeira situação são os
cartazes espalhados por grupos neonazistas pregando o extermínio de homossexuais. Discriminação explícita também ocorre quando a diferenciação é imediatamente extraida da norma,
ainda que esta não o tenha referido literalmente. É o que ocorre,
por exemplo, na discriminação perpetrada contra homossexuais
no regime legislativo da Previdência Social: neste caso, a redação
da legislação de benefícios, ao arrolar os dependentes, almejou
excluir companheiros homossexuais, como revelou de modo inconsteste a Administração. 29
A discriminação na aplicação ocorre quando, independentemente das intenções do instituidor da medida, a diferenciação ocorre, de modo proposital, na execução da medida.
Isto ocorre quando a Administração Pública emprega, em concurso público, um critério constitucionalmente proibido através de um procedimento, em tese, neutro: o exame psicotécnico.
Em litígios judiciais concretos, por exemplo, constata-se que a
Administração Pública já se valeu, de forma deliberada e intencional, deste expediente para discriminar por orientação sexual
na seleção de agentes policiais, em que pese inexistir qualquer
determinação administrativa oicial neste sentido.
Discriminação na aplicação do direito também ocorre
na liberdade de locomoção. Eventual atividade policial, abrangendo vigilância ostensiva, advertências seguidas e averiguações
constantes, fundada somente na orientação ou conduta sexuais
juridicamente lícitas, pode conigurar tal espécie de discriminação, uma vez que a autoridade policial vale-se de prerrogativa genérica e de poder de polícia diante de todos investido de modo
especial e mais restritivo a determinado grupo, sem a presença
de outra motivação que não a pertinência a um grupo discriminado. Tal foi o examinado pelo Superior Tribunal de Justiça ao
julgar o Recurso em Hábeas Corpus nº 7.475 - SP30. Naquela
oportunidade, o voto condutor assentou que “o controle policial
29
Ver, para um histórico do caso e peças processuais mais importantes, Leivas (2003).
30
Superior Tribunal de Justiça, DJU 11.12.2000.
258
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
da circulação de gays e travestis situa-se no plano do exercício do
poder de polícia. Advertências que se fazem a tais indivíduos,
quando circulam na busca da clientela, o fenômeno chamado
de trottoir, atendem a ditames da ordem e segurança públicas,
não constituindo restrição ilegal ao direito de locomoção.” Registre-se que, em casos desta espécie, é preciso atentar cuidadosamente para todas as circunstâncias do caso concreto, a im de
que legítimas preocupações com a segurança pública não sirvam
de pretexto para o exercício de preconceito e discriminação. Por
exemplo, a pura e simples identiicação, por meio de estereótipos, da homossexualidade com a prostituição pode apontar para
uma percepção preconceituosa diante da orientação sexual.
Outra hipótese examinada pela jurisprudência nacional de aplicação discriminatória do direito envolveu o artigo 203 do Código de Processo Penal, que menciona a avaliação
da credibilidade da testemunha entre os fatores relevantes para
a capacidade de testemunhar. O Superior Tribunal de Justiça
reformou decisão da Justiça do Distrito Federal que excluiu
homossexual deste encargo exclusivamente em virtude de sua
orientação sexual, revelando preconceito e discriminação ilegítimas. Este foi o precedente lavrado no Recurso Especial nº
154.857 – DF31, onde icou assentada a impropriedade da postura havida no Juízo recorrido ao afastar a testemunha alegando
“grave desvio ético e moral”.
Por im, a discriminação pode ocorrer ainda na própria concepção da legislação ou da medida (discrimination by
design), ainda que do seu texto não se possa inferir, literal e diretamente, a diferenciação. Isto ocorre quando a medida adota
exigências que, aparentemente neutras, foram concebidas, de
modo intencional, para causar prejuízo a certo indivíduo ou grupo. Pode-se citar, exempliicativamente, uma regra instituidora
de uma exigência desnecessária de escolaridade superior num
dado concurso público com o propósito de excluir pessoas negras, dado que os indicadores escolares variam substancialmente
em prejuízo da população negra. Outro exemplo mais cotidiano
da realidade brasileira foi a utilização, por largo tempo, da refe31
Superior Tribunal de Justiça, DJU 26.10.1998.
259
TRANSPOSIÇÕES
rência “boa aparência” em anúncios de emprego, objetivando,
na concepção, a exclusão de negros. É importante ressaltar aqui
que, não obstante a neutralidade aparente da regra, ela foi concebida com o propósito de excluir do certame ou do emprego
pessoas negras, donde a sua classiicação como hipótese de discriminação direta.
Como manifestação direta de homofobia no direito
brasileiro, pode-se trazer como exemplo o artigo 235 do Código Penal Militar, que deine o crime de pederastia ou outro
ato de libidinagem. Ao destacar a prática de ato libidinoso homossexual, passivo ou ativo, em lugar sujeito à administração
militar, dentre os demais atos libidinosos, ica clara a discriminação na concepção da norma penal. A legislação, é possível
inferir, objetivou mais que reprimir condutas libidinosas em
estabelecimentos militares. Ela foi concebida especialmente
considerando a repressão da homossexualidade. Tal conclusão
pode ser reforçada pela análise da jurisprudência castrense. As
decisões do Superior Tribunal Militar associam à libidinagem
homossexual a pecha de conduta infamante, comprometedora
do caráter e da moral dos envolvidos, ao passo que atos libidinosos heterossexuais não são assim qualiicados e ensejam menores prejuízos (compare-se, por exemplo, a decisão na Apelação
1994.01.047182-0/AM32 com a proferida no Conselho de Justiicação nº 1994.02.000165-5/DF33; a primeira, cuidando de
heterossexual, a segunda, de homossexual).
3.3.2. Discriminação indireta e homofobia
Independentemente da intenção, a discriminação é um
fenômeno que lesiona direitos humanos de modo objetivo. Seu
enfrentamento exige, além da censura às suas manifestações intencionais, o cuidado diante de sua reprodução involuntária.
Mesmo onde e quando não há vontade de discriminar, distinções, exclusões, restrições e preferências injustas nascem, cres-
260
32
Tribunal Superior Militar, DJU 17.02.1995.
33
Tribunal Superior Militar, DJU 19.02.1998.
Diante destas realidades, o conceito de discriminação
indireta ganha especial relevo e importância. De fato, muitas
vezes a discriminação é fruto de medidas, decisões e práticas
aparentemente neutras, desprovidas de justiicação e de vontade de discriminar, cujos resultados, no entanto, têm impacto
diferenciado perante diversos indivíduos e grupos, gerando e
fomentando preconceitos e estereótipos inadmissíveis.
Quando se examina a homofobia, ica ainda mais clara a pertinência e a relevância desta preocupação. De fato, em
uma cultura heterossexista, condutas individuais e dinâmicas
institucionais, formais e informais, reproduzem o tempo todo,
freqüentemente de modo não-intencional e desapercebido, o
parâmetro da heterosssexualidade hegemônica como norma
social e cultural. A naturalização da heterossexualidade acaba
por distinguir, restringir, excluir ou preferir, com a conseqüente
anulação ou lesão, o reconhecimento, o gozo ou o exercício de
direitos humanos e liberdades fundamentais de tantos quantos
não se amoldarem ao parâmetro heterossexista.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
cem e se reproduzem, insulando força e vigor em estruturas sociais perpetuadoras de realidades discriminatórias.
Nesta linha, a discriminação indireta se relaciona com
a chamada discriminação institucional. Enfatiza-se a importância do contexto social e organizacional como efetiva raiz dos
preconceitos e comportamentos discriminatórios. Ao invés de
acentuar a dimensão volitiva individual, ela se volta para a dinâmica social e a ‘normalidade’ da discriminação por ela engendrada, buscando compreender a persistência da discriminação
mesmo em indivíduos e instituições que rejeitam conscientemente sua prática intencional (Korn, 1995). Conforme a teoria
institucional, as ações individuais e coletivas produzem efeitos
discriminatórios precisamente por estarem inseridas numa sociedade cujas instituições (conceito que abarca desde as normas
formais e as práticas informais das organizações burocráticas e
dos sistemas regulatórios modernos, até as pré-compreensões
mais amplas e difusas, presentes na cultura e não sujeitas a uma
discussão prévia e sistemática) atuam em prejuízo de certos indi261
TRANSPOSIÇÕES
víduos e grupos, contra quem a discriminação é dirigida.34
O estudo da discriminação indireta demonstra a relação
entre homofobia e heterossexismo. Não só porque há instituições
e práticas, formais e informais, em nossa cultura, que historicamente excluem ou restringem o acesso a certas posições e situações apenas a heterossexuais (realidade cujos casos do casamento
e do acesso às Forças Armadas ilustram), como também porque
ica patente a supremacia heterossexista no convívio social.
Com efeito, a percepção da discriminação indireta põe a
nu a posição privilegiada ocupada pela heterossexualidade como
fator decisivo na construção das instituições sociais, cuja dinâmica está na base do fenômeno discriminatório, nas suas facetas
individual e coletiva. Este privilégio heterossexista faz com que
a cosmovisão e as perspectivas próprias de um certo grupo sejam
concebidos como “neutros do ponto de vista sexual”, constitutivos da “normalidade social”, considerada “natural”: tudo aquilo
que é próprio e identiicador da heterossexualidade enquanto
expressão sexual especíica é efetivamente percebido como neutro, genérico e imparcial.
Esta pseudoneutralidade heterossexista, que encobre
relações de dominação e sujeição, pode ser entendida, segundo Flagg (1998), por meio do “fenômeno da transparência”.
Vale dizer, a tendência de heterossexuais desconsiderarem sua
orientação sexual como fator conformador e normatizador da
realidade, conduzindo-os a uma espécie de inconsciência de
sua heterossexualidade. Este fenômeno só é possível pelo fato
de heterossexuais serem socialmente dominantes e faz com que
a heterossexualidade seja norma sexual e a homossexualidade
transformada em diferença.
Registro, para que não paire qualquer dúvida, a compatibilidade da discriminação indireta como forma de violação
do princípio da igualdade no direito brasileiro. Não bastasse a
previsão explícita da discriminação indireta no próprio conceito jurídico de discriminação presente no ordenamento jurídico
34
Sobre as dinâmicas institucionais e seus efeitos concretos independente da vontade dos indivíduos que nelas atuam, ver Douglas (1998).
262
Conclusão: respostas jurídicas à homofobia
A análise da homofobia no quadro mais amplo dos estudos sobre preconceito e discriminação, acrescida do aporte jurídico do direito da antidiscriminação, fornece elementos a pesquisadores, operadores do direito e ativistas para uma melhor
compreensão das violações aos direitos humanos experimentadas por homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais. No
combate a esta expressão discriminatória, as funções do direito
são várias.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
nacional (sublinhe-se que a discriminação é distinção, restrição,
exclusão ou preferência com o propósito ou o efeito de anular
ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício de direitos
humanos), há precedente do Supremo Tribunal Federal sancionando com a inconstitucionalidade medida estatal desprovida
de intenção discriminatória, que, todavia, produz discriminação
em virtude de seu impacto diferenciado contra certo grupo social, no caso, as mulheres.35
A partir da crucial airmação dos direitos básicos de tais
indivíduos e grupos, o ordenamento jurídico pode, na contramão da discriminação homofóbica, colaborar na crítica e no
enfrentamento do heterossexismo. Este é o resultado, por exemplo, da censura judicial a laudos psicológicos que excluem homossexuais como inaptos para o acesso a cargos públicos, exclusivamente em virtude de sua orientação sexual.
A introdução de diretrizes respeitosas à diversidade sexual na atividade administrativa, por sua vez, pode agir no sentido da promoção de mudanças institucionais e na superação
de preconceitos e discriminações historicamente consolidadas,
mobilizando organizações tradicionalmente associadas ao controle e à repressão de minorias. Este esforço pode ser ilustrado
pela adoção de parâmetros curriculares e de cursos de formação
do magistério atentos e respeitosos às diversas expressões da sexualidade no ambiente escolar.
35
Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
1.946 – DF, relator Ministro Sydney Sanches, DJU 14.09.2001.
263
TRANSPOSIÇÕES
Outra resposta jurídica capaz de contribuir com processos mais amplos de mudança é a reparação de injustiças perpetradas, individual ou coletivamente, a grupos estigmatizados.
Neste ponto, apresentam-se tanto as demandas individuais por
indenização de danos materiais e morais decorrentes de demissões arbitrárias, quanto iniciativas judiciais coletivas visando à
alteração de praxes institucionais discriminatórias, formais ou
informais.
Mais diretamente ligadas ao direito da antidiscriminação,
a denúncia e o combate a tratamentos discriminatórios, de modo
direto ou indireto (itens 3.3.1. e 3.3.2.), são medidas inequivocamente capazes de concorrer para a luta contra a homofobia.
Neste quadro, as violações físicas diretas à vida e à integridade física de grupos contra os quais se dirige a discriminação
heterossexista são realidades inadmissíveis, cuja superação é
vital para a promoção dos direitos humanos e o combate à homofobia. Diante destes episódios, cuja freqüência horroriza,
não se deve exigir menos que a atuação dos órgãos estatais de
persecução penal, extraindo-se do direito penal e do direito
civil toda a responsabilização cabível.
Já a violência não-física, pontuada pela injúria homofóbica, expõe, além das lesões concretas perpetradas contra determinados indivíduos, a dimensão democrática da luta contra a
homofobia. Como demonstra Lopes (2003), a estigmatização
da diferença por orientação sexual fere o direito ao reconhecimento, a todos devido e necessário para o convívio democrático,
intimamente relacionado à dignidade e à liberdade individual.
De fato, a intolerância não é uma conduta dirigida contra determinada pessoa, decorrente de uma condição peculiar e
restrita àquela vítima. A intolerância viola o direito à existência
simultânea das diversas identidades e expressões da sexualidade,
que é um bem comum indivisível. Uma vez acionada, a intolerância ofende o pluralismo, que é requisito para a vida democrática. Daí a compreensão de que os chamados crimes de ódio,
manifestação que merece intensa reprovação jurídica, atentam
264
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TRANSPOSIÇÕES
IGUALDADE, JUSTIÇA E DIfERENÇA
André Luiz Zanão Tosta1
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
13
Introdução
A população LGBT deve ser considerada
como sujeito de direito e sujeito político. (…) O
Plano Nacional de Promoção da Cidadania
e Direitos Humanos LGBT parte da certeza
de que um maior acesso e participação social
nos espaços de poder é um instrumento essencial para democratizar o Estado e a sociedade.
Dessa forma, é uma estratégia de longo alcance, no sentido de democratização do Estado,
sendo de responsabilidade do conjunto de governo, e não de uma área especíica. (…) orienta-se pelos princípios da igualdade e respeito à
diversidade, da equidade, da laicidade do Estado, da universalidade das políticas, da justiça
social, da transparência dos atos públicos e da
participação e controle social (BRASIL, 2009,
p.11-12, grifos meus).
Pensar o campo de disputa política dos movimentos sociais em geral, e dos movimentos de diversidade sexual em especíico, é, entre outras coisas, pensar nos atores sociais e políticos
1
Mestrado em Ciências Sociais – UFES
271
TRANSPOSIÇÕES
que o mobilizam e os princípios de justiça que tais atores acionam. É claro que existem estruturas políticas e partidárias em
jogo, interesses nacionais, locais e transnacionais se articulando
e repertórios de atuação sendo acionados: pensar atuação política é pensar em todas estas dimensões de ação coletiva, neste
emaranhado de interesses, instituições e objetivos que são manipulados, investidos ou abandonados.
Porém em outro nível é possível, por uma questão puramente de recorte de um campo tão vasto, compreender que
estruturas políticas, interesses e repertórios estão a disposição
(ou não) para que sujeitos os operacionalizem buscando inalidades distintas e baseando-se em princípios de atuação. A justiça
aparece neste contexto como o ideal máximo a ser perseguido,
embora não exista um conteúdo plenamente compartilhado entre os atores políticos de seu conteúdo, da melhor estratégia para
ser alcançado este estado de justiça.
A 1ª Conferência Nacional LGBT realizada em 2008
por decreto do então presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva foi
um importante marco para a atuação política em torno da diversidade sexual. Aos moldes de outras conferências realizadas
pelo governo federal que almejavam a democratização e a participação popular no estado, a Conferência e o documento por
ela gerado2 constituíram-se como importantes dispositivos de
discussão e troca de experiências de militância, bem como de
acirrados debates sobre o conteúdo e os rumos do movimento
político nacional.
O trecho dos “Princípios” do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT com o qual
este texto se inicia pretende apontar algumas destas contribuições. Consolida-se a ideia da população LGBT como “sujeito
de direitos e sujeito político” aptos e capacitados para atuarem
politicamente por seus interesses especíicos ao mesmo tempo que
recorremos ao princípio da igualdade e da equidade a im de garantir a constitucionalidade das demandas. Já a busca de justiça
2
Trata-se do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos
Humanos LGBT, cujo fragmento inicia o presente texto.
272
Longe de se tratar de um campo coerente de atuação,
parte-se neste texto da percepção de que o movimento político LGBT (assim como todo movimento político) é algo como
uma rede: de relações, interesses, instituições e atores. Esta rede
embora não seja coerente é necessariamente interligada, atuando em diversos níveis e conectando seus elementos de diferentes
formas. Embora não se busque neste momento traçar os elementos constitutivos da rede, retomaremos alguns pontos que nos
permitem compreendê-la.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
social esbarra nos limites do que se compreende como justiça,
quais suas “bases materiais” de exclusão e quais seus “recursos
sociais” de perpetuação. A universalidade da atuação de políticas
públicas esbarra na especiicidade dos contextos concretos para
sua implementação necessitando sempre de novos e criativos arranjos para sua execução.
Esta retomada teórica estará as voltas com o problema
de como pensar adequadamente a questão da justiça em contextos de patente assimetria social, inspirando-se sobretudo na produção teórica feminista. Ao mobilizar as produções teóricas de
Joan Scott e Judith Butler pretende-se demonstrar que a teorização sobre justiça - em torno das “minorias sexuais3” - não deve
passar ao largo de uma discussão sobre os limites normativos e
jurídicos da atuação política, pois tais produções acadêmicas
evidenciam que os princípios jurídicos de igualdade e representação são em si limitadores para estas populações, e devem ser
repensados. Em um segundo momento recorreremos a teorização de Nancy Fraser buscando um princípio de justiça que, sem
negar a tensão entre igualdade e diferença, seja adequado para
julgar as demandas e atuações concretas dos atores em um contexto de pluralização das opiniões sobre o conteúdo substantivo
da justiça. Por im pretende-se reabilitar a diferença como categoria analítica dentro deste quadro de referências a partir da
produção de Avtar Brah e a sugestão de encará-la como processo
de localização social e cultural dos sujeitos.
3
Pego emprestado o termo utilizado por Gayle Rubin em seu texto
“hinking Sex: Notes for a Radical heory of the Politics of Sexuality” de
1984.
273
TRANSPOSIÇÕES
As raízes liberais da justiça: o paradoxo da igualdade e o apagamento da representação
Joan Scott, em seu texto “O Enigma da Igualdade”
(2005) se debruça sobre a tarefa de compreender um campo de
atuação política que, em sua perspectiva, encontra-se polarizado:
por um lado existiria uma concepção liberal de igualdade, o que
chamarei de “igualdade formal” herdada predominantemente
dos ideais da Revolução Francesa, que presume indivíduos autodeterminados e capazes de atuar socialmente mediante méritos e atributos igualmente individuais. Por outro lado existira
a percepção de que tais indivíduos tornados iguais pela lei não
encontram as condições reais de igualdade nas relações sociais,
por serem identiicados a grupos desprestigiados e discriminados, impedindo que a igualdade formal seja estendida a todos
por arranjos sociais que impedem que os indivíduos sejam avaliados pelos mesmos critérios de mérito (SCOTT, 2005, p.13).
Ao identiicar esta polarização na luta política dos grupos marginalizados a autora lança de antemão a impossibilidade
de solucionar este embate. Para ela as perspectivas entre igualdade e diferença, entre a igualdade formal da lei e a diferença cotidiana dos grupos discriminados por esquemas de signiicação
social e cultural, coniguram um “paradoxo” (SCOTT, 2005,
p.14) que não pode ser solucionado facilmente, seja abandonando um dos polos da disputa ou subsumindo um termo ao outro.
Seu texto foca assim um conjunto de três paradoxos advindos do
conlito entre perspectivas políticas de igualdade e de diferença,
da tensão entre grupo e indivíduo:
1. A igualdade é um princípio absoluto e uma
prática historicamente contingente;
2. Identidades de grupo deinem indivíduos
e renegam a expressão ou percepção plena de
sua individualidade;
3. Reivindicações de igualdade envolvem a
aceitação e a rejeição da identidade de grupo
atribuída pela discriminação. Ou, em outras palavras: os termos de exclusão sobre os
quais essa discriminação está amparada são
274
Interessa-nos para o presente texto, sobretudo, os dois
primeiros paradoxos elencados por Joan Scott por tratar-se
precisamente dos pontos onde a igualdade enquanto princípio
absoluto, uma concepção ideal e formal de organização da ação
social, esbarra em sua concretude, em sua materialização nas relações cotidianas.
Em sua gênese revolucionária, o ideal formal de igualdade foi uma importante promessa jurídica de garantia da plena
participação social e política de todos os cidadãos. Indo de encontro ao ancient régime das monarquias absolutistas, baseadas
em estamentos sociais rígidos e organizadas por direitos especíicos de nascença e herança, a promessa de igualdade formal é a
pedra angular que permite a justiicação não apenas da Revolução Francesa, mas de uma proposta política moderna que será
compartilhada pelo ocidente desde então.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
ao mesmo tempo negados e reproduzidos nas
demandas pela inclusão (SCOTT, 2005, p.15
grifos no original).
Porém não é difícil, para a autora e para nós, perceber
os limites de tal proposta formal. No caso francês a gênese da
igualdade foi marcada pela construção dos “iguais”, excluindo
da plena participação política os escravos, as mulheres e os indivíduos despossuídos, interpretados como “muito dependentes
para exercerem o pensamento autônomo que era requerido dos
cidadãos” (SCOTT, 2005, p.15). No caso brasileiro é possível
perceber, como exemplo, a mesma construção dos limites da plena cidadania ao constatar que as mulheres adquirem o direito ao
voto apenas em 1932, e até 1989 analfabetos não detinham o
direito de participar dos pleitos4.
A igualdade por mais que seja um princípio absoluto é
concretamente limitada na construção de quem deve ser reconhecido como “igual”. Isso não quer dizer que existem contextos
onde existam ou não diferenças sociais, culturais ou sexuais, mas
4
Para um breve comentário sobre a história do voto no Brasil ver
Vera Chaia (A longa conquista do voto na história política brasileira. 2010.
Disponível em http://www4.pucsp.br/fundasp/textos/texto_01_11_10.
html. Acessado em 29/07/2010)
275
TRANSPOSIÇÕES
revela que as diferenças são possibilidades de interpretação. A
construção da igualdade, assim como a constatação da diferença, é um ato arbitrário5 (porém não aleatório) de quais signos,
atributos ou características são relevantes de gerarem diferenças
e quais não são.
Conhecemos sistemas discriminatórios baseados na
cor da pele (como o apartheid sul-africano ou o sistema de segregação racial da primeira metade do século XX nos Estados
Unidos) ou sistemas de hierarquização social baseados no status
de nascimento (estamentos do ancient régime absolutista ou as
castas indianas). Encontramos inclusive esquemas de “criminalização” de grupos baseados em aspectos “comportamentais” que
são interpretados como patológicos ou “nocivos” como é o caso
das sexualidades não hegemônicas ou por questões religiosas e
políticas. Contudo nos pareceria um tanto absurdo se tais sistemas de classiicação social fossem baseados em outros sinais
diacríticos de diferença tais como cor dos olhos6, data de nascimento, ou a preferência de uma cor em detrimento de outra.
Dizer que tais atribuições são arbitrárias signiica que não
existe, nos próprios termos da diferença, justiicativas para o sistema discriminatório – sabemos que fenótipo corporal ou posição
social de nascimento não são, per si, atributos substantivos que
denotam melhores ou piores capacidades cognitivas ou morais –,
porém a atribuição social e cultural da diferença gera sua própria
legitimação ao produzir grupos que serão dotados de “algumas
qualidades inerentes” e tais qualidades serão a “razão e também a
racionalização de um tratamento desigual” (SCOTT, 2005, p.18).
Aos moldes teleológicos de uma profecia que auto se realiza, a atri5
Um panorama dos sistemas raciais, focando a arbitrariedade dos
signos mobilizados para a construção da diferença, pode ser encontrado na
obra de Demétrio Magnoli (Uma gota de sangue: história do pensamento
racial. São Paulo: Contexto, 2009).
6
A professora Jane Elliott demonstra de forma provocadora como
os processos de exclusão e subordinação podem ser direcionados contra os
indivíduos, baseando-se em prerrogativas arbitrárias, como no experimento
narrado no documentário “Blue Eyed” (1996) onde as pessoas de olhos azuis
são sistematicamente expostas a discursos estigmatizantes. Ver: http://www.
youtube.com/watch?v=N-1EPNmYKiI acessado em 29/07/2013.
276
Ao assumir que a igualdade é uma prática historicamente contingente resta a questão de qual seria o conteúdo substantivo da igualdade. Na matemática a igualdade é uma relação
de correspondência exata, quantidades idênticas que podem ser
mensuradas, aferidas e comparadas. Contudo tal conceito de
igualdade é inaplicável para os contextos de interação social,
denotando antes uma relação de semelhança entre atributos
ou qualidades, entre os níveis em termos de posição, status ou
dignidade. Assim concebida a igualdade como semelhança é exprimida no ocidente em termos de direitos sociais e políticos
(SCOTT, 2005, p.16) que devem ser exercidos por cidadãos,
compreendidos como indivíduos singulares.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
buição do status de minoria cria as condições sociais, psicológicas
e morais que perpetuam e legitimam a diferença, produzindo as
desigualdades de status ao mesmo tempo que as descreve.
É neste ponto que o nó górdio da igualdade formal se
revela. Enquanto uma relação de semelhança entre cidadãos é a
própria categoria de cidadão que deve ser analisada. Pensando
o processo de constituição da igualdade como um processo de
percepção seletiva da diferença, é mais do que evidente que o
indivíduo neutro, autodeterminado e juridicamente igualitário
é também uma construção marcada pela exclusão dos que não
podem ou não devem ser reconhecidos como cidadãos, ou seja,
a “abstração do conceito de indivíduo mascara a particularidade
da sua coniguração” (SCOTT, 2005, p.24). O “cidadão” é uma
construção social e historicamente localizada, e também jurídica e discursiva especíica:
a icção do indivíduo abstrato, desencorporado, é uma grande virtude da teoria democrática liberal; foi feita para garantir a igualdade completa perante a lei. Na sociedade,
entretanto, os indivíduos não são iguais; sua
desigualdade repousa em diferenças presumidas entre eles, diferenças que não são singularmente individualizadas, mas tomadas como
sendo categóricas (SCOTT, 2005, p.24).
A histórica promessa da igualdade que não reconhece
a diferença entre seus cidadãos esbarra na concretude do reco277
TRANSPOSIÇÕES
nhecimento de certas diferenças “natas” entre estes cidadãos,
e estas diferenças natas são especiicadas e apontadas por uma
gramática que atrela este cidadão individual a um grupo especíico dotado de atributos distintivos. A igualdade é uma prática
historicamente contingente, pois a delimitação de quem pode
gozar da igualdade também o é. Assim adentramos no segundo
paradoxo da autora: identidades de grupo deinem indivíduos e
renegam a expressão ou percepção plena de sua individualidade.
Para aqueles que podem legitimamente gozar dos direitos e prerrogativas da igualdade formal, seu status de “indivíduo”
é inequívoco, pois são dotados dos atributos necessários para a
plena participação social e política. Embora variáveis, as críticas
pós-coloniais e feministas identiicaram alguns atributos atribuídos aos sujeitos que podem gozar do estatuto de indivíduo: teriam a capacidade de serem “indivíduos soberanos”, indivisíveis e
únicos7 capazes de transcender ao universal por suas capacidades
racionais8 não icando atrelados aos aspectos particulares e emotivos de suas existências. Fica a sugestão que, historicamente, o
cidadão neutro tem os adjetivos de ser homem, heterossexual,
branco ou “da metrópole” e possuidor de capital: atributos que
o permitem ser soberano, racional, universal.
É precisamente no ponto em que certos sujeitos são
identiicados a grupos especíicos (e não ao ideal racional autodeterminado de “indivíduo”) que a igualdade formal encontra
seus limites de atuação. Concordo com o posicionamento de
Joan Scott de que identidades de grupo são “aspectos inevitáveis
da vida social e da vida política” (SCOTT, 2005, p.18) assim
sendo não são as categorias coletivas de pertencimento o problema: é na hierarquização destes grupos, na atribuição sistemática
de atributos e características especíicas aos membros das coleti7
Stuart Hall (A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A, 2006).
8
Iris Marion Young (A imparcialidade e o público cívico: algumas
implicações das críticas feministas da teoria moral e política. In: BENHABIB,
S & CORNELL, D (org.). Feminismo como crítica da modernidade:
releitura dos pensadores contemporâneos do ponto de vista da mulher. Rio
de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987).
278
No entanto a própria constituição dos grupos, das
identidades sociais, também é problemática pois categorias coletivas não se constituem por desdobramentos evidentes dos
atributos dos indivíduos que o compõem (atributos estes possuídos ou presumidos). Adentramos no movediço território
da representação, processo esse que também encontra diiculdades especiicas de análise.
Judith Butler no início de seu livro “Problemas de Gênero” questiona a centralidade e a necessidade de uma categoria
estável de “mulher” para o projeto feminista apontando a complexidade do processo de representação. Para a autora, representação:
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
vidades, que residem os germes da desigualdade social.
serve como termo operacional no seio de um
processo político que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres como sujeitos políticos; por outro lado, a representação
é a função normativa de uma linguagem que
revelaria ou distorceria o que é tido como
verdadeiro sobre a categoria das mulheres
(BUTLER, 2003, p. 18).
Entende-se com isso que a representação política não é
o processo positivo de descrever os grupos de indivíduos, suas
agendas políticas e demandas especíicas, como se estes grupos
fossem autoevidentes, coesos, tais como unidades concretas aptas a serem representadas no processo de deliberação política. A
representação é também o processo de constituição da diferença, o momento fundante em que os atributos arbitrários citados
anteriormente são mobilizados para produzir ativamente os termos do grupo e qualiicar os sujeitos que o integram.
Baseando-se na proposta genealógica de Michel Foucault, Judith Butler inicia então sua exposição partindo de uma
teoria produtiva do poder, ao observar que “os sistemas jurídicos
de poder produzem os sujeitos que subsequentemente passam
a representar” (BUTLER, 2003, p.18, grifos no original). Seja
o sujeito neutro universal da igualdade formal, sejam os grupos
discriminados e minoritários, os sujeitos jurídicos são fruto de
279
TRANSPOSIÇÕES
práticas ativas de constituição que delimitam quais os indivíduos
são habilitados ou não. Habilitar o sujeito é produzir os termos
de seu pertencimento ao grupo ao mesmo tempo em que ocorre
um apagamento de tal construção, sendo esta ocultação do caráter artiicial, contingente e contextual da identidade coletiva
imprescindível à estrutura jurídica. É mediante este apagamento que as identidades podem se apresentar aos seus portadores
como autoevidentes, como lugares sociais não problematizáveis.
O efeito da “lei que produz e depois oculta à noção de
‘sujeito perante a lei’” (BUTLER, 2003, p.19) levanta a questão
da existência deste sujeito que se encontra perante a lei pronto
para ser representado por ela. Para Butler a noção de um sujeito
neutro e objetivo, que se apresenta tal como é perante a lei nada
mais é do que uma icção jurídica necessária para os modernos
sistemas políticos baseados no liberalismo clássico (BUTLER,
2003, p.20) já que é esta neutralidade “pré discursiva” (como
garantia de uma ontologia anterior ao social) que produz a legitimidade do contrato social. A sociedade nesta visão contratualista deveria ser produzida por indivíduos “naturais”- no sentido
de serem autoevidentes e não produzidos por contextos sociais,
culturais e históricos – que delegam seus direitos também “naturais” a um estado mediante um contrato. Caso tais indivíduos
“naturais” se demonstrarem inexistentes, todo o contrato social
é inviabilizado em seus pressupostos lógicos.
A igualdade formal como ilha da perspectiva política
liberal também é tributária desta icção jurídica de um sujeito
neutro capaz de ser mensurado por princípios de meritocracia
burocrática, tornando-se míope para as assimetrias de status
dentro da sociedade. Como princípio de justiça, a igualdade encontra seu limite na relação “paradoxal” com a diferença. Não é
possível a busca por justiça baseando-se apenas na igualdade ou
apenas na valorização da diferença, ambas as propostas são estrategicamente válidas e devem ser utilizadas dentro de contextos
especíicos, não devendo, contudo, ser obliterada a preocupação
tanto com o conteúdo “ictício” da igualdade formal, quanto do
conteúdo “apagado” das identidades sociais.
280
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
A proposta de desconstrução genealógica seria apresentar o processo constitutivo que a estrutura jurídica apagou em
sua produção, evidenciando os “domínios de exclusão” e os efeitos “coercitivos e reguladores” (BUTLER, 2003, p.22) que estas
construções desenvolvem, mesmo quando são elaboradas com
propósitos emancipatórios. A própria gramática de luta política,
das estratégias de atuação, é alterada com esta perspectiva já que
não se objetiva mais as condições “concretas” dos sujeitos, suas
histórias singulares de opressão ou suas experiências de marginalização. Uma vez que “não são indivíduos que têm experiências, mas sim os sujeitos que são constituídos pela experiência”
(SCOTT, 1998, p.304) a análise dos sujeitos da política passa
então de uma ênfase das “experiências” de exclusão para o próprio processo exclusivo da identidade.
As várias dimensões da justiça
3.2.1. Promover os direitos fundamentais da
população LGBT brasileira, de inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, dispostos no art. 5º
da Constituição Federal;
3.2.2. Promover os direitos sociais da população LGBT brasileira, especialmente das pessoas em situação de risco social e exposição à
violência;
3.2.3. Combater o estigma e a discriminação
por orientação sexual e identidade de gênero
(BRASIL, 2009, p.10, grifos meus).
A igualdade formal é a base para a justiça nos esquemas
liberais ocidentais, porém se a tratarmos como princípio absoluto incorremos no risco de silenciar processos de injustiça
concretos que se desenvolvem ao largo (e dentro) dos sistemas
políticos. A diferença torna-se assim um aspecto imprescindível
da disputa por justiça, uma salvaguarda capaz de desnudar dinâmicas de opressão e estigmatização que levam a injustiça.
Ao apontar a centralidade da igualdade dos estados democráticos ocidentais corro o risco de apagar um outro elemen281
TRANSPOSIÇÕES
to presente nestes esquemas políticos e jurídicos, a equidade.
Partindo do trabalho de Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva
a cerca da teoria de justiça de John Raws (principal articulador
da ideia de equidade) este aparato conceitual prega uma “desigualdade de oportunidades [que] deve realçar as oportunidades
daqueles com menor oportunidade” (SILVA, 1998, p.211). Um
princípio que a primeira vista parece simples: tratamento desigual para os desiguais, visando o exercício da liberdade e a obtenção da igualdade formal. A equidade como instrumento de
justiça não se reveste de nenhuma áurea de novidade na política,
inclusive o Plano Nacional que abre este estudo e traz seu uso.
No entanto o que parece um raciocínio simples a primeira vista
se reveste de um problema: efetivamente “do ponto de vista ilosóico, religioso ou moral, o acordo político sobre a justiça como
equidade não pode ser alcançado sem o desrespeito estatal das liberdades básicas” (SILVA, 1998, p.210, grifos meus) e entre tais
liberdades básicas encontra-se precisamente a igualdade formal.
A sugestão contida no presente trabalho, correndo o
risco de uma generalização grosseira e apressada da teoria de justiça de Raws, é que o “paradoxo” de Joan Scott é precisamente
este ponto de negociação entre igualdade e diferença que funda a equidade. Quem seriam os detentores de “menor oportunidade”? Qual gramática de diferenciação deve ser mobilizada
e em quais contextos especíicos as “liberdades básicas” devem
ser suspensas para se chegar à justiça? Quando a diferença gera
dissimetria de oportunidades? São estas as questões que a autora feminista tenta abarcar, embora não se remeta diretamente a
equidade para sanar seus problemas. Ela recorre, no entanto ao
léxico próprio do movimento feminista, e com este léxico efetua sua tentativa de conciliar posições a seu ver antagônicas. Em
outras palavras, ao lidar com um “paradoxo”9 e partindo, assim,
de um ponto de vista “ilosóico” ou “moral” (para retomar os
termos de Ricardo Silva) a equidade é um projeto que, em algum
momento, desrespeita formalmente as “liberdades básicas”.
O ponto de vista, a perspectiva a ser considerada, levanta
9
Palavra que, como a própria autora explica, fora escolhida de
forma proposital (SCOTT, 2005, p. 14).
282
Nancy Fraser em suas análises políticas advoga que um
princípio de justiça que seja universal para a análise de casos
concretos é preferível a diversos princípios de justiça concorrentes a serem mobilizados dependendo do contexto. Para a autora as ênfases teóricas e políticas em princípios éticos, que visam
um juízo qualitativo do que seria uma “boa vida” deveriam ser
descartados em prol de um princípio único de moralidade que
visaria o “justo” (FRASER, 2007, p. 103).
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
a questão não solucionada com relação a qual seria um princípio
válido, o “ponto de vista”, para se pensar a justiça (dentro de um
panorama de diferentes e conlitantes concepções normativas):
qual seria o conteúdo satisfatório para este embate entre igualdade e diferença que almeja a equidade?
Esta distinção advinda da ilosoia política designa as
perspectivas éticas atreladas a compromissos com o “bom”, em
que cada grupo identiica quais as condições que são reconhecidas e necessárias para se alcançar esta “boa vida”. A ação ética seria
organizada por um viés teleológico, em que se visa a inalidade
da ação, inalidade esta já caracterizada à priori como uma vida
boa. Como cada grupo deve produzir o conteúdo especíico do
“bem” teremos diversos princípios éticos de justiça concorrentes, cada qual tão legítimo quanto os demais, impossibilitando o
ajuizamento da justiça quando estes grupos entram em conlito.
Já a perspectiva moral não está vinculada com o “bom”
mas com o “justo”, e o justo é independente de contexto ou grupo
pois é um apelo abstrato que esta anterior ao “bom”. A ação moral
por sua vez é deontológica, organizada por um princípio do que
“deve ser feito”, independente do resultado da ação. O justo não é
bom, mas a concepção moral é um princípio universal que todos
os grupos devem seguir, independentemente de suas concepções
éticas particulares sobre o “bom”. Todos concordam sobre o que é
“justo” (moral), não sobre o que é uma “boa vida” (ético).
A análise política de Nancy Fraser, iniciada com uma
leitura “democrática radical do princípio de igualdade moral”
(FRASER, 2008, p.39), estabelece como princípio moral da
283
TRANSPOSIÇÕES
justiça a paridade de participação. Assim “de acordo com esta
norma, a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos
os membros (adultos) da sociedade interagir uns com os outros
como parceiros” (FRASER, 2007, p.118). Não basta a simples
igualdade jurídico-formal para se alcançar a justiça, já que por
mais que tal princípio seja necessário, não é, porém suiciente
para garantir a paridade de participação.
O princípio da paridade de participação responde a duas
qualidades distintas: por um lado funda um princípio substantivo de aferição dos acordos sociais, onde o que se considera
justo é exclusivamente os acordos sociais que permitam a todos
os atores participarem como pares na vida social. Um segundo
ponto seria um atributo processual, em que a legitimidade democrática dos acordos sociais reside na capacidade de todos os
envolvidos poderem deliberar em condição de igualdade sobre o
acordo em questão (FRASER, 2008, p. 63).
Esta preocupação teórica é fundamentada na constatação de que “as democracias ocidentais (e suas teorias subjacentes) vinham convivendo facilmente com um quadro desalentador de profundas desigualdades sociais e políticas” (MATOS,
2010, p. 69) fornecendo o pano de fundo no qual muitos pensadores e pensadoras realizam um deslocamento da produção de
teorias da democracia para teorias de justiça.
A produção de Fraser se ajusta a esta nova demanda por
uma teoria de justiça que seja adequada para o contexto hodierno, elegendo a disparidade de atuação na vida social (ou injustiça) como central para a análise da luta política. Partindo de
um diagnóstico dos movimentos sociais e de esquerda a autora
assume que as reivindicações por justiça são formuladas em dimensões distintas de participação social e, portanto, necessitam
de uma tipologia para sua compreensão e análise10.
10
O conceito de justiça de Nancy Fraser recebeu severas críticas de
Iris Marion Young (2009) que interpretou sua construção bidimensional da
justiça (redistributiva e de reconhecimento) como um modelo teórico incapaz
de compreender os contextos de luta política, que não revelaria as tensões
concretas mas as tensões “imaginadas” (YOUNG, 2002, p. 200) pelo próprio
modelo. Em sua resposta, Fraser (2009) defendeu que a justiça formada por
284
Ativistas desta corrente pretendem uma melhor divisão
das riquezas entre os ricos e pobres, entre o Norte e o Sul global,
entre os proprietários e trabalhadores (FRASER, 2007, p. 102).
É a agenda mobilizada dentro dos direitos sociais (tais como
trabalho, moradia e assistência aos desamparados conforme o
artigo sexto da Constituição) presente nos objetivos especíicos do Plano Nacional. Seguindo o argumento da autora estas
reivindicações de redistribuição foi central na maior parte das
teorizações sobre justiça social no último século e continuam
impactando os diálogos políticos atuais.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
A primeira dimensão da justiça seria as barreiras da estrutura econômica da sociedade. As diferenças entre os acessos
aos recursos econômicos, desde a capacidade de sobrevivência
e manutenção da vida até as possibilidades de trânsito em diferentes espaços de consumo, geram entraves para que certas
populações atuem na vida social como pares. Esta dimensão da
justiça remete as estruturas de classe da sociedade e são fruto,
dentro desta gramática política, de uma má distribuição, uma
injustiça redistributiva.
A segunda dimensão apontada remete aos entraves culturais e institucionais que não permitem a paridade de participação baseada em hierarquias culturais e sociais. As hierarquias
de status social, tal como formula a autora, limitam o acesso a
bens simbólicos, culturais e sociais não permitindo o adequado desempenho da participação pública das populações que se
encontram nos extratos mais baixos das hierarquias de status,
conigurando uma “não reconhecimento ou subordinação de status” (FRASER, 2007, p. 108 grifos no original) e clamando por
estratégias de reconhecimento para serem combatidas.
Esta vertente parte do pressuposto de uma diversidade
duas dimensões complementares é antes de tudo um recurso analítico, uma
abstração. Baseado num diagnóstico dos movimentos sociais e de esquerda.
A justiça bidimensional que ela advoga não deve ser compreendida como a
construção, defesa ou proposta de um novo modelo de ação política, mas
uma tipologia para compreender o quadro atual na “ideologia pós-socialista”
(FRASER, 2009, p. 216) e como tipologia tem seus limites analíticos.
Contudo a crítica de Young foi crucial para o desenvolvimento por Fraser de
uma construção tridimensional de justiça, tal como tratada mais adiante.
285
TRANSPOSIÇÕES
positiva que deve ser valorizada, uma diferença que não enseja necessariamente uma desigualdade injusta já que as diferentes perspectivas étnicas, “raciais” e sexuais são diferenças especíicas que
devem ser protegidas. Enquanto as dissimetrias de classe social devem ser eliminadas ou dirimidas para se alcançar a justiça, os projetos de eliminação de outras diferenças – como as de orientação
sexual ou étnicas – são interpretados como propostas eugênicas,
etnocêntricas e como tais, injustas. A injustiça decorrente da subordinação social é o estigma e a discriminação como colocado novamente no Plano Nacional, e remetem a categorias de opressões.
As dimensões de redistribuição e reconhecimento não
podem ser subsumidas ou contidas uma dentro da outra, já que
as diferenças de acesso a recursos econômicos e as diferentes posições nas hierarquias de status, nas sociedades ocidentais atuais,
não correspondem umas as outras. Diferenças de classe social e de
status social se entrecruzam, como marcadores de diferença que
se reforçam e se atualizam ao posicionar sujeitos, porém são injustiças com gêneses sociais distintas. Tanto as tentativas de reduzir
as diferenças de reconhecimento de status cultural às estruturas
da econômica-política (nas visões reducionistas economicistas,
principalmente de inluência marxista) quanto as propostas de
se reconhecer as diferenças econômicas como efeitos discursivos
da subordinação de status social (nas críticas culturalistas e pósfundacionistas) mostram-se falhas para a autora.
Contudo uma visão dualista da justiça só faria sentido
dentro de um ideal político especíico. Ao distinguir os marcos que deinem a gramática ativista por justiça, Nancy Fraser
acentua o contexto político internacional que moldura as demandas econômicas por redistribuição e as demandas culturais por reconhecimento. Segundo a autora o pano de fundo
do debate político entre o inal da Segunda Grande Guerra e
até meados da década de 1970 – período de apogeu do Estado
de Bem Estar (FRASER, 2008, p. 32) – era o chamado “marco
westfaliano-keynesiano”.
O característico deste marco seria a defesa de um intervencionismo econômico do estado nacional, almejando dimi-
286
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
nuir as desigualdades sociais por meio de políticas econômicas
redistributivas alinhadas aos ideais keynesianos de bem estar social. A distribuição equitativa da produção da riqueza nacional,
por meio de estados fortes e intervencionistas, baseia-se por sua
vez na compreensão que o limite territorial para a ação política
seria o Estado Territorial Nacional tomado como unidade política evidente desde o Tratado de Westfália em 164811. O período “westfaliano-keynesiano” compreendia as reivindicações por
justiça limitados a esses dois “enquadramentos” (enmarque). O
debate político se dava dentro de limites bem deinidos onde o
que se disputava seria o conteúdo especíico que a justiça deveria
assumir, tendo como base os ideais contratualistas de uma relação entre cidadãos de um mesmo estado territorial.
As disputas que giravam em torno do “que” seria o conteúdo substantivo da justiça tornaram-se problematizadas no
período posterior a 1970 com as mudanças sociais e políticas
que se deram em âmbito internacional.
Segundo Fraser as instabilidades geopolíticas posteriores ao im da Guerra Fria e o processo de globalização propiciaram uma sensação cada vez maior de que as decisões de estados
territoriais tinham consequências que transbordavam seus territórios, e efeitos para muito além de seus cidadãos. Fenômenos
políticos recentes como as discussões sobre aquecimento global,
a expansão da epidemia de HIV/AIDS, o terrorismo internacional e o unilateralismo das potências mundiais (FRASER, 2008,
p. 34) criaram uma consciência de que as questões de justiça não
podem mais ser tratadas dentro de territórios nacionais, mas sim
levadas a debates internacionais. Assim:
las discusiones que solían centrarse exclusivamente em la cuestión de qué es debido
como materia de justiça a los miembros de
una comunidad giran ahora rápidamente
hacia debates sobre quién debe contar como
miembro y cuál es la comunidade pertinente.
No sólo el “qué”, sino tambíen el “quién” es
11
O Tratado de Westfália inaugura um sistema internacional de
Estados Territoriais soberanos que se reconhecem mutuamente (Fraser,
2008:32).
287
TRANSPOSIÇÕES
objeto ahora de libre discussión (FRASER,
2008, p. 38).
Concomitante a esta sensação de que o território nacional já não se conigura como o enquadramento apropriado para
as reivindicações de justiça o processo de globalização ocasionou outro efeito. Por mais que as duas dimensões da justiça sejam irredutíveis uma a outra, o diagnóstico político de Fraser interpreta um quadro de ativismo que, gradativamente, substitui
os termos da luta por justiça de um pólo redistributivo para um
pólo de reconhecimento. A “crescente proeminência da cultura
na ordem emergente” (FRASER, 2002, p. 8) parece produzir
uma derrocada da gramática política marxista baseada na redistribuição econômica, processo decorrente da virada cultural da
década de 1970.
A “politização generalizada da cultura” (FRASER,
2002, p.8) - os processos de descolonização da África e da Ásia,
as revoltas estudantis de 1968 e os movimentos de contracultura da década de 1970 - tiveram o efeito de descentrar o debate político da esfera econômica. Esta mudança de foco tem
um resultado perverso: o ato de negligenciar as demandas por
redistribuição econômica em prol de um reconhecimento cultural “encaixou-se perfeitamente num neoliberalismo econômico
que deseja acima de tudo reprimir a memória do igualitarismo
socialista” (FRASER, 2002, p.10).
No marco westfaliano-keynesiano, as “discussões de
primeira ordem” sobre o conteúdo da justiça permaneciam as
mesmas, gravitando em torno dos limites aceitáveis da desigualdade econômica, de quais tipos de diferença merecem respeito e
reconhecimento público e quais seriam os princípios para uma
política redistributiva justa. Porém na atualidade este marco regulador da ação política estaria em pleno desmonte. Não é mais
possível reconhecer o estado territorial como o limite apropriado da ação política (marco westfaliano), muito menos compreendê-lo como um agente de bem-estar social dentro de um contexto neoliberal de estado mínimo e de abandono das agendas
do marxismo ocidental (marco keynesiano).
288
Nancy Fraser postula com isso uma terceira dimensão da
justiça que concerne ao aparato político, compreendido como o
cenário em que se desenvolvem as disputas por reconhecimento e redistribuição, remetendo a própria estrutura de reivindicação por justiça (FRASER, 2008, p. 41). A estrutura política
descriminaria “quem” são os sujeitos legítimos para a atuação
da justiça e “quais” os procedimentos para alcançá-la. Seguindo
o raciocínio da autora, esta terceira dimensão ao centra-se em
questões de pertencimento e procedimento do processo político
fundariam a dimensão da representação da justiça. A dimensão
da representação, assim, estaria assentada em dois níveis distintos de injustiças.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Na atualidade às questões de “primeira ordem” somamse outras discussões, que a autora chama de “metanível” (FRASER, 2008, p.38), sobre quais seriam os sujeitos apropriados a
serem reconhecidos socialmente e alvo de políticas de redistribuição econômica, evidenciando o deslocamento já apontado
do debate sobre a “substância” da justiça (o “que”) para o debate
sobre o “marco” da justiça (o “quem”).
As questões de pertencimento classiicaria e legitimaria
quem esta incluído e quem esta excluído da possibilidade de
buscar a paridade de participação, de “quem” é reconhecido
como um par para a interação social. É possível com isso rastrear
os limites da comunidade política, de quem se constitui “cidadão”, e compreender o “fracasso na representação” (representación fallida) de alguns sujeitos dentro do terreno político.
Este quadro é a instalação do “fracasso da representação
político-ordinária12” (FRASER, 2008, p. 43), que nada mais é do
que a exclusão institucional, com pretensões de garantir a possibilidade de paridade de participação (na política e fora dela) para
uns e negá-la a outros. No limite o marco procedimental da política, o enquadramento de “quem” são os sujeitos que estão aptos a interagir uns com os outros, pode levar a fronteiras procedimentais que geraram “desenquadramentos13” (FRASER, 2008,
12
“representación fallida político-ordinaria” no original.
13
“des-enmarque” no original.
289
TRANSPOSIÇÕES
p. 45) onde populações podem ser alijadas do direito de serem
interpretadas como pertinentes, importantes, na disputa política.
O “fracasso da representação política-ordinária” leva a uma sub
-representação, uma representação desigual no terreno político; o
“desenquadramento” desqualiica o sujeito na participação política levando a uma “morte política” (FRASER, 2008, p. 46).
Fica perceptível que as concepções de representação
para Nancy Fraser e para Judith Butler, embora não sejam antagônicas, guardam suas próprias especiicidades. Butler evidencia
a capacidade da estrutura jurídica de produzir sujeitos políticos
coerentes mediante processos de apagamento de sua construção
arbitrária, seu foco esta na constituição do sujeito político como
processo de exclusão. Já Fraser busca evidenciar como a estrutura jurídica da política é capaz de realizar estas exclusões dos
“indesejáveis”, porém focando os processos de delimitação dos
marcos de quem esta dentro e fora do sistema jurídico da política. Para Butler é uma construção discursiva e estratégica, baseada em dinâmicas de exclusão, que gera a representação do sujeito
político; para Fraser é um quadro de injustiça baseado no racasso da representação institucional das populações marginalizadas
junto às estruturas formais da política.
É possível compreender esta distinção teórica como dois
níveis de um mesmo processo onde a representação institucional do qual nos fala Fraser é a dimensão político institucional
- quem está apto a integrar os quadros de instituições e partidos,
ocupar posições dentro da estrutura do estado ou nas redes de
militância social ou mesmo ser reconhecido como porta-voz legítimo das bandeiras e demandas políticas de suas populações do processo contingente, histórico e contextual da produção do
sujeito político representado perante a lei, dentro do esquema de
Butler. A representação perante a lei coloca em questão as possibilidades de constituição de tais instituições, redes de militância,
bandeiras e demandas políticas por processos de identiicação e
distanciamento, ou seja, por processos de exclusão.
Avançando nesta discussão, a representação para Fraser
contém ainda um segundo componente diverso dos processos
290
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
de pertencimento. O foco da representação no procedimento determina “como” deve ser realizada as discussões e embates sobre
os conteúdos de justiça e de seus sujeitos, quais as formas “adequadas” e “espúrias” de se realizar o debate e quais as condições
de participação dos sujeitos envolvidos. Neste nível de “fracasso
da representação metapolítica14” (FRASER, 2008, p. 60) o quadro de injustiça se dá pela falha de um processo democrático de
instituir um debate paritário sobre “como” a política deve ser direcionada. Os detentores do poder político, sejam as elites transnacionais ou os estados territoriais, ao negarem a possibilidade
de manifestação paritária das populações excluídas e alijadas geram os marcos delimitadores da ação política a revelia de outros
atores políticos, gerando o fracasso da representação.
Ao precisar um conceito de justiça tridimensional e
diagnosticar uma mudança radical no pano de fundo político
com o abandono de um paradigma westfaliano-keynesiano,
Nancy Fraser tenta demonstrar que as lutas por justiça – antes de
serem movimentos conlitantes entre redistribuição econômica
e reconhecimento cultural passando pela representação política – são hoje lutas pela democratização das discussões sobre os
limites da ação política (enquadramento), um giro partindo das
teorizações sobre justiça social para chegar a teorizações sobre
justiça democrática (FRASER, 2008, p. 62). Não existem mais
limites claros para a busca por justiça, seja o estado territorial
westfaliano, seja a possibilidade do estado de bem-estar social
keynesiano, ou ainda os sujeitos políticos evidentes na categoria
“cidadãos” já que:
a medida que cresce el círculo de los que piden
voz y voto en el estabelecimiento del marco,
las decisiones sobre el “quién” se ven cada vez
más como assuntos políticos, que debem ser
tratados democraticamente, y no como meros
assuntos técnicos, que pueden dejarse em manos de los expertos y de las élites (FRASER,
2008, p. 61).
Esta interpretação revela que o verdadeiro problema da
atualidade é o marco regulatório da justiça, esta construção que
14
“representación fallida metapolítica” no original.
291
TRANSPOSIÇÕES
delimita as potencialidades, os limites, os processos do “que”
constitui a justiça (sua dimensão substantiva), “quem” são os sujeitos aptos a ingressar nas relações sociais e “como” se dá esta
participação e delimitação da ação política e da luta por justiça.
Desigualdade injusta, especiicidade legítima
Iniciei a terceira parte deste texto argumentando que
a igualdade formal não pode se constituir como um adequado
princípio de justiça por ser opaca as diferenças concretas dos indivíduos que disputam politicamente conteúdos de justiça. Embora apelos a diferença sirvam como salvaguardas evidenciando
que a igualdade formal não se concretiza na prática, tampouco
são capazes de gerir adequadamente as demandas por justiça, já
que a diferença gera princípios éticos conlitantes baseados em
concepções diversas sobre o que se constituiria uma “boa vida”.
A diferença para Joan Scott é uma estratégia adotada pelos movimentos sociais para deslocar e desnudar as relações de
opressão e marginalização que a categoria jurídica da igualdade
formal tende a instaurar, reproduzir ou simplesmente negar por
processos especíicos de representação que, tal como formulado
por Judith Butler, é a função do sistema jurídico-político de produzir sujeitos políticos coerentes à custa da (novamente) diferença
interna destes grupos e realizando o apagamento desta produção, fazendo com que os sujeitos políticos pareçam a-históricos.
Já para Nancy Fraser a justiça é um conceito complexo e
ao analisar as movimentações políticas é percebido que seu signiicado varia dentro de concepções diversas em que a diferença
se expressa com sentidos também diversos, almejando sua eliminação quando se trata de dissimetrias ocasionadas pela estrutura
econômica da sociedade (redistribuição), ou sua manutenção e
valorização, quando o foco da injustiça não é a diferença em si,
mas as estruturas hierárquicas de status (reconhecimento).
Nota-se com isso que a diferença é um conceito chave
tanto para as produções teóricas quanto para a ação concreta dos
292
Brah em seu texto “Diferença, diversidade, diferenciação” constrói uma rica exposição demonstrando como categorias
coletivas de identidade são contextualmente produzidas e manipuladas pelos grupos envolvidos nas disputas políticas. A diferença como elencada nos movimentos raciais de negros (black) e
no movimento de mulheres no contexto britânico do pós-guerra
são as evidências levantadas pela autora para sugerir um quadro
conceitual onde a diferença assume quatro sentidos diversos, dos
quais nos centraremos em três de suas concepções15: a diferença
como experiência, como relação social e como identidade.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
militantes e ativistas que compõem o campo de atuação política.
Sua função oscila desde a demonstração da falácia da igualdade
formal até a ambígua relação entre a diferença que é desigualdade e a diferença que é especiicidade. Contudo neste emaranhado
teórico o termo parece se diluir em diferentes sentidos sem, contudo, produzir uma categoria analítica que seja heuristicamente
relevante para a análise. Esta última seção trata precisamente de
um esforço, uma tentativa, de forjar tal categoria analítica devidamente articulada com os argumentos precedentes, partindo
da sugestão de Avtar Brah.
A “diferença como experiência” (BRAH, 2006, p.359)
denota a dimensão da diferença atrelada as vivências cotidianas
e compartilhadas de grupos oprimidos e invisibilizados, denotando um dos mais “poderosos insights do feminismo, que é que
a experiência não relete de maneira transparente uma realidade
pré-determinada, mas é uma construção social” (BRAH, 2006,
p. 360). As vivências compartilhadas, as experiências particulares e individuais dentro de contextos de interação, são parte
indissociável do processo de constituição do que chamamos de
“realidade”, e da constituição do próprio sujeito. A diferença,
compreendida como uma instância particular e especiica de signiicação – tanto do entorno social quanto de nós mesmos – res15
A quarta concepção que trata a “diferença como subjetividade”
(BRAH, 2006, p. 365) não será mobilizada neste estudo. O objetivo é
manter o recorte em uma análise de categorias coletivas e dos processos de
ação política por justiça, assim a proposta de uma apreensão da diferença
como uma introjeção subjetiva, centrada sobretudo na análise do indivíduo,
acabou parecendo de pouca relevância para o andamento da discussão.
293
TRANSPOSIÇÕES
ponsável pela produção do sujeito dentro de campos semânticos
especíicos, evidencia uma ruptura com a ideia de uma agência
individual pautada em entidades ixas.
O sujeito da ação é produzido dentro e pela própria
ação. A agência permanece como um atributo universal dos
sujeitos, porém deixa de ser uma atividade preconcebida como
ilimitada para ser conceituada como uma conformação contingente: a pessoa “percebe ou concebe um evento segundo como
‘ela’ é culturalmente construída” (BRAH, 2006, p. 362).
Esta concepção de diferença esta profundamente atrelada à proposta já citada neste texto por Joan Scott a propósito
da “invisibilidade da experiência” (SCOTT, 1998) e os perigos
de se buscar estratégias de emancipação política baseadas em
argumentos acríticos de legitimidade ancorados na experiência
como evidência concreta16.
Já a “diferença como relação social” remonta o caráter
sistemático dos diferentes arranjos institucionais e discursivos
na produção da diferença, dentro de uma proposta de destacar
a “sistematicidade através das contingências” (BRAH, 2006, p.
362). A proposta está baseada na evidencia de que em cada contexto concreto e contingente de atuação política ou social a diferença deverá ser analisada mediante a apreensão de suas relações
socialmente organizadas: seja na mobilização (ou manipulação)
de diversos discursos provenientes das estruturas sociais, econômicas, políticas; seja na percepção das atitudes e práticas de
instituições ou entidades sociais.
A proposta de Judith Butler encontra eco nas formulações da autora quando esta acentua que a diferença como relação
social demonstra as genealogias históricas que produziram as categorias coletivas que são mobilizadas para a atuação política.
16
Esta ressalva também é levantada por Judith Butler (BUTLER,
2003, p. 22) ao argumentar, por exemplo, que a utilização de categorias
universalizáveis (as mulheres) mesmo de forma “estratégica” seria de pouca
serventia já que os signiicados destas estratégias não são controláveis.
Assumir uma identidade “essencializada” estrategicamente é, para a autora,
um risco de deturpação do processo de representação.
294
A ênfase na experiência demonstra como o sujeito (enquanto entidade portadora de uma individualidade) é produzido nas tramas dos discursos e práticas das vivências concretas,
coletivamente compartilhadas, e simbolicamente interpretadas.
A ênfase nas relações sociais complementa tal perspectiva ao
centrar-se na demonstração dos processos, dos constrangimentos e incentivos, que produzem as categorias coletivas em contextos históricos e culturais. As condições materiais e culturais
que estão presentes anteriormente a inscrição do sujeito pela
experiência é o cerne desta perspectiva que parte do pressuposto que tais condições limitam as possibilidades do sujeito e das
categorias coletivas por ele mobilizadas.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Assim ela pode ser entendida como as “trajetórias históricas e
contemporâneas das circunstâncias materiais e práticas culturais
que produzem as condições para a construção das identidades de
grupo” (BRAH, 2006, p. 363, grifo no original).
Por im a “diferença como identidade” exprime a articulação desta relação complexa e contraditória entre a experiência
dos sujeitos e as relações sociais das categorias coletivas, entre
“biograia pessoal e a história coletiva” (BRAH, 2006, p. 371).
As identidades se constituem como os pontos de interconexão
entre as vivências concretas e signiicados pessoais, por um lado,
e os sentidos socialmente compartilhadas por uma história e por
relações sociais próprias ao grupo de pertencimento por outro.
As identidades não são redutíveis a soma das vivências
experimentadas concretamente por seus integrantes, nem são
externos a esses contextos experienciais. Como pontos de atrelamento provisórios, as identidades não são ixas e imutáveis, mas
antes se tratam de bases de “identiicação num dado contexto econômico, cultural e político” (BRAH, 2006, p. 372). São pontos
de identiicação por se tratarem de “lugares” em que os indivíduos experienciam uma sensação de continuidade entre as dimensões biográicas e históricas, pessoais e coletivas, dotando-as de
um instável e provisório sentimento de coerência e unidade que
chamamos, em algum momento, de “eu” (BRAH, 2006, p. 371).
295
TRANSPOSIÇÕES
A identidade posiciona o sujeito dentro da malha das
relações sociais, dota-o de uma sensação de unicidade e coerência (mesmo que provisória) que o habilita para a ação política e
social e confere um escopo descritivo e prescritivo do que este
sujeito é ao produzir uma gramática socialmente compartilhada
de signiicações e expectativas para com ele.
Com isso a diferença não é um problema para a justiça,
uma vez que a igualdade concreta, no esquema aqui apresentado, é uma impossibilidade social que não pode ser alcançada ou
almejada na prática, pois isso signiicaria a supressão da experiência, da identidade e dos arranjos sociais que não se conformam a uma “norma” subsumida, seja ela qual for. Um projeto de
igualdade concreta, assim compreendida, estaria mais próximo
de um programa eugenista, fascista ou etnocêntrico do que da
justiça conforme delimitada neste estudo. A igualdade que é justa de ser buscada é a paridade de participação na vida coletiva,
pautada por um princípio abstrato de igualdade jurídico-formal
e sempre contrastada com o potencial de diferenciação social.
Referências
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Campinas, n. 26, janeiro-junho de 2006.
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In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 35, n. 138, abril-junho.
1998.
YOUNG, Iris Marion. Categorias desajustadas: uma crítica à teoria dual de
sistemas de Nancy Fraser. In: Revista Brasileira de Ciência Política. Brasília, n.
2, julho-dezembro. 2009.
297
O PROBLEMA DO CONTRATO SEXUAL
Jésio Zamboni1
Victor Oliveira Ribeiro2
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
14
Nas sociedades capitalistas ocidentais, as relações contratuais são tidas como paradigma da livre manifestação de vontade dos indivíduos, essencial à proposta democrática moderna.
Neste sentido, é por meio do contrato que as mais diversas relações sociais são concretizadas em nossa sociedade – à título
de ilustração, a representação e delegação se expressam pelo
contrato de mandato; as trocas patrimoniais, pelo contrato de
compra e venda; as relações afetivas e amorosas, pelo contrato
de casamento. Além destes contratos tipiicados na legislação,
um sem número de outras relações contratuais não previstas em
lei podem ser realizadas, tendo em conta a inexistência de um
rol taxativo, conforme aduz o artigo 425 do atual Código Civil
brasileiro, de acordo com o qual “é lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais ixadas neste Código”. Assim, há abertura social para a invenção de uma ininidade
1
Graduado em Psicologia, Mestre em Psicologia Institucional,
Doutorando em Educação e Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas
em Subjetividade e Políticas (NEPESP) e do Grupo de Estudos e Pesquisas
em Sexualidades (GEPSs) pela Universidade Federal do Espírito Santo.
2
Guaduado em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória.
Advogado. Pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades
pela Universidade Federal do Espírito Santo e do Grupo de Pesquisa Direito,
Sociedade e Cultura da Faculdade de Direito de Vitória.
299
TRANSPOSIÇÕES
de relações concebidas sob o signo do contrato, porém, limitada
pela legislação vigente e, menos explicitamente, pelas normatizações instituidas coletivamente.
No âmbito da sexualidade ocidental moderna, o contrato torna-se um aparato fundamental. A sexualidade considerada normal nesta sociedade – heterossexual, reprodutiva,
monogâmica, doméstica e matrimonial (RUBIN, 2007) – é
resguardada pela lei na instituição do casamento, com normas
e regras estritamente regidas pela legislação, que, por sua vez, se
apoia no funcionamento normalizado da vida conjugal. Todavia, quando uma mulher e um homem se casam, é um contrato
que codiica a união dos corpos que é estabelecida a partir de
então. Portanto, é indispensável que a conjugalidade – e toda a
normalização da sexualidade ocidental moderna – se estabeleça,
fundamentalmente, pelo contrato, ainda que a lei e a instituição sobredeterminem seu funcionamento. Como o contrato
funciona na produção da sexualidade contemporânea? Nas lutas dos movimentos sociais organizados de diversidade sexual,
o foco que mais aparece ressaltado nos últimos anos, no Brasil,
é a conquista do direito de pessoas do mesmo sexo celebrarem
o contrato de casamento. A problemática do consentimento,
enquanto requisito essencial do contrato, inclusive no verbal,
é crucial à discussão da violência sexual: o estupro só pode ser
abordado como problema supondo uma questão contratual, de
(im)possibilidade de concordância entre as partes envolvidas na
situação. Estas situações, dentre outras que se poderia a elas encadear, expõe o atravessamento do campo da sexualidade pela
questão do contrato.
As sociedades em geral dispõem de três grandes meios
ou instrumentos de codiicação das relações sociais: a lei, o contrato e a instituição (DELEUZE, 2006d). Mas, relativamente à
sexualidade, o problema do contrato não possui o mesmo estatuto que a lei e a instituição. É em torno das legislações, nacionais
e internacionais, que os movimentos organizados de diversidade
sexual se movimentam geralmente. A transformação institucional, por sua vez, igura como o contexto mais amplo sobre o qual
a questão legal intervém no sentido de reordenar o quadro das
300
Retomando as situações do contrato em relação à sexualidade, é possível explicitar a posição do contrato no processo
de codiicação sexual na contemporaneidade das denominadas
sociedades ocidentais. No caso da conjugalidade homossexual,
a alteração da lei é a arma principal para questionar e modiicar
a instituição casamento. Esta problematização institucional de
fundo, paradoxalmente, é tanto mais opaca, subentendida e desarticulada, quanto mais a igura da lei é destacada e fortalecida.
Isto porque, embora leis e instituições estejam entrelaçadas na
codiicação social, elas não se confundem. A mudança da legislação não assegura a mudança institucional, a conquista da legalidade do casamento homossexual não garante absolutamente que a instituição casamento se modiique em seus modos de
funcionar. O estupro parece evidenciar uma outra relação entre
legislação e instituição em meio aos movimentos de diversidade
sexual. O problema institucional parece se destacar pelas controvérsias em relação ao machismo e ao patriarcado, bem como
à maioridade e à consciência adulta, dentre outras instituições.
Uma vez que existem leis estabelecidas quanto ao estupro, o problema da lei permanece como plano mais amplo neste caso, em
que sobressai a discussão sobre as instituições – valores, normas
e regras que atravessam e constituem individualidades, grupalidades e sociedades (LOURAU, 2004). Então, pode-se notar
que o problema do contrato tende a desaparecer cada vez mais
no desenvolvimento destas problemáticas levantadas pelos movimentos de diversidade sexual, embora possamos dizer que
constitua um quadro mais abrangente ou um elemento mais essencial nestas situações do que as questões legais e institucionais.
As extremas concretude e abstração do contrato em relação às
codiicações legais e institucionais em nossa contemporaneidade nos convoca a considerá-lo um elemento decisivo nas lutas
pela transformação política da sexualidade.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
relações sociais. Contudo, o problema do contrato, ao mesmo
tempo em que se pode dizer que seja a ponta de lança das investidas dos movimentos atacando as relações sociais estabelecidas,
perde-se rapidamente de vista no percurso que faz ao ser lançado
e desaparece ao atingir seu alvo ou cair por terra.
301
TRANSPOSIÇÕES
Nas atuais discussões sobre políticas sexuais, é sobre a plano discursivo, da codiicação dos sexos, que cada vez mais se travam
as batalhas dos movimentos sociais. Nos movimentos homossexuais tende-se, em geral, a passar da airmação de uma natureza da homossexualidade, hegemônica nas primeiras organizações quando
se buscava descriminalizar suas práticas na Europa do século XIX,
à análise da construção histórica, social e cultural da homossexualidade e das práticas a ela associadas, no sentido de desmontar o ideal
de funcionamento dos sexos. Ao questionar o lugar socialmente
deinido para as mulheres, os movimentos emancipatórios que
lutam pela igualdade de direitos entre homens e mulheres expandem-se e transformam-se como movimentos feministas, acompanhando e sustentando o desenvolvimento do conceito de gênero,
no qual o problema da codiicação social dos sexos se desenvolve
no sentido de interrogar a construção social da sexualidade substituindo a investigação da materialidade dos corpos pela consideração das transformações incorporais da linguagem. É por meio destas duas passagens, da ideia de natureza à analítica construcionista
e do embasamento material ao assento na função enunciativa, que
as questões de gênero vão se sobrepor à discussão da sexualidade,
deslocando esta para uma perspectiva de produção discursiva da
diferenciação dos sexos.
No (des)funcionamento das relações de poder, especialmente em relação às hierarquias sexuais, torna-se crucial ao
desenvolvimento de estratégias de luta a subversão das enunciações sociais sobre o sexo, ou antes, constitutivas dele próprio.
O problema da codiicação sexual não é meramente de compreensão, relexão, manifestação ou interpretação do dado material
nos corpos sexuados, mas de produção destes corpos pela secção
enunciativa. Sendo assim, ruma-se ao abandono da problematização da divisão categorial em favor da abordagem do corte
como engendramento dos efeitos de realidade dos sexos propiciados pelo discurso. A questão discursiva torna-se tão eminente
que chega-se até mesmo a (con)fundi-la com a noção de poder3.
Mas parece-nos mais interessante que esta última tendência sustentar a diferenciação entre discurso e poder, entre formas de
3
Assinalamos este efeito na vaga dos estudos queer, especialmente
no trabalho de BUTLER (1999, 2010).
302
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
saber e relações de força (DELEUZE, 2008), para que não se reduza os agenciamentos abertos pelo contrato, seus efeitos de intervenção e produção de uma realidade, aos termos codiicados
em forma de cláusulas ou a uma ordem simbólica que organiza
todo contrato. É preciso ir mais longe ainda, pois se as relações
de força ou dispositivos de poder sempre supõem um agenciamento coletivo, uma produção de relações (a)li(g)ada a maneiras de expressar, o próprio agenciamento não parece se resumir
a um campo de poder ou discurso, principiando e se deinindo
por um movimento de fuga (DELEUZE, 1996). O agenciamento se produz, primeiramente, por descodiicação do discurso e desarranjo da máquina (DELEUZE; GUATTARI, 1977),
movimentos de invenção, antes que resistência ou objeção (DELEUZE; GUATTARI, 1995). É um devir cujo ser proposto é
proteiforme, um processo de produção em sua radicalidade, escapando à submissão a um produto ou a uma organização, o que
caracteriza a produção do agenciamento coletivo. Neste sentido,
como o contrato – tratando-se de um código, enunciado ou expressão – pode deslocar as relações de poder, especialmente em
relação ao sexo?
O contrato sexual
Carole Pateman (1993), inserida no bojo conservador
que loresceu na sociedade estadunidense da década de 1980,
desenvolve um debate sobre o contrato sexual argumentando
que, a partir da década de 1970, a teoria contratual volta a ser o
cerne de diversas discussões. Contudo, em que pese esta retomada, continua obliterado o contrato sexual que instituiria o direito patriarcal – que não se restringe, unicamente, ao direito paterno familiarista, mas também ao direito do homem, enquanto
homem, sobre as mulheres no espaço público e o acesso sexual a
elas. Pateman constrói sua argumentação em torno do conceito
de patriarcado, muito em voga no feminismo de segunda geração e que, atualmente, tem sido muito criticado. Além disso, a
autora rechaça a noção de gênero por acreditá-lo ser inoperante
politicamente às mulheres, embora sem deixar de reconhecer
que tal igura seja forjada socialmente.
303
TRANSPOSIÇÕES
O contratualismo clássico, desenvolvido nos começos
da modernidade, nasce da promessa de se promover uma sociedade livre e igualitária entre os homens. No contrato original,
idealizado como momento de nascimento da sociedade, todos
seriam iguais entre si, razão pela qual, os fundamentos de dominação de um grupo pelo outro são extintos, dado o pressuposto
de igualdade. Destarte, “a teoria do contrato era uma doutrina
emancipatória par excellence, a promessa de que a liberdade universal seria o princípio da era moderna” (PATEMAN, 1993,
p.66). No entanto, Pateman aduz que, na realidade, a sujeição
seria travestida de liberdade por esta doutrina, uma vez que ela
fundamenta a subordinação de um homem pelo outro a partir
do próprio reverso: a liberdade; isto é, enquanto livre, posso
acordar em ser cativo. Por conseguinte, não seria possível conceber contrato algum que crie direitos e obrigações sem que estes
se manifestem através de relações de dominação. A própria livre
relação contratual é limitadora e repressora, nesta perspectiva.
Sendo assim, a autonomia se expressa pela própria submissão,
razão pela qual “em vez de abalar a subordinação, os teóricos
do contrato fundamentaram a sujeição civil moderna” (PATEMAN, 1993, p. 68).
Além disso, o jaez da igualdade postulada pelos constratualistas é restrita, posto que ela se destinava aos homens
propriamente, e não às mulheres; isto porque elas seriam excluídas da vida pública, sendo destinadas exclusivamente à esfera privada da sociedade – ainal, a noção de indivíduo não as
abarcava. Tal aspecto se associa intimamente ao fato de que o
contratualismo de tradição clássica possuir uma profunda crença de que o privado é uma esfera apolítica, uma vez que apenas
na esfera pública o poder político se faz presente4. Adjacente e
simultaneamente à feitura hipotética do contrato original, haveria a realização do contrato sexual, no qual se restringiria o
direito das mulheres e legitimaria o direito do homem, enquanto homem, sobre elas. Desta forma, os postulados da igualdade,
da liberdade e da fraternidade se destinam exclusivamente aos
homens – igualdade entre aqueles do sexo masculino; liberdade
4
Noção esta que reverbera ainda em vários autores de diversas
matrizes, como, por exemplo, em Arendt (2007, p. 68 ss).
304
No que tange ao contrato de casamento, aduz-se que,
mesmo com as modiicações legais que promoveram a igualdade marital, o poder masculino inserido nesta forma contratual
subsiste pois, ainda que um homem não tire proveito da lei patriarcal, “sua posição de marido relete a institucionalização dessa lei dentro do casamento. O poder está lá mesmo se, num caso
especíico, ele não for utilizado” (PATEMAN, 1993, p. 237). É
sugestivo que seja o casamento um contrato no qual suas posições contratuais não possam ser alteradas, uma vez que a mulher
é sempre a esposa e o homem sempre o marido; esta não negociação dos termos não se trata de uma mera questão linguística,
mas sim do reforço dos papeis sexuais preexistes, um relexo do
próprio contrato sexual. Nesta esteira, airma-se que o casamento seria, na realidade, um contrato de uso sexual, que permitiria
o acesso do homem ao corpo da esposa – ainal, até bem recentemente, o estupro marital não era tido como crime, já que era
dever da mulher sujeitar-se aos impulsos sexuais do marido por
conta do seu débito conjugal.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
para eles usufruírem a esfera pública; fraternidade para que eles
exerçam, como irmãos, o direito masculino sobre as mulheres.
Em que pese a iccionalidade e idealização do contrato original
e do contrato sexual, seus efeitos são bastante concretos sobre as
mulheres, uma vez que os mesmos se repercutem nos contratos
hodiernos, como o de casamento e de prostituição.
A prostituição, por sua vez, seria tratada como uma parte integrante do capitalismo. Em uma leitura contratualista de
linhagem clássica, a prostituição nada mais seria do que uma das
formas de se vender certa capacidade de trabalho, o sexo, dentro de um contexto de voluntariedade e consenso. No entanto, a
venda do corpo seria um problema, pois ele é o meio pelo qual os
homens exercem seu direito patriarcal sobre as mulheres – haja
vista que, através da compra do sexo, elas são expostas como simples mercadorias de fácil acesso aos homens. Sendo assim, “o ‘ato
sexual’ em si dá o reconhecimento do direito patriarcal. Quando
os corpos das mulheres estão à venda como mercadorias no mercado capitalista, [...] a lei do direito sexual masculino é airmada
publicamente, e os homens recebem o reconhecimento público
305
TRANSPOSIÇÕES
enquanto senhores sexuais das mulheres – e é isso que está errado com a prostituição” (PATEMAN, 1993, p. 305).
De fato, esta argumentação a respeito do(s) contrato(s)
sexual(is) é forte e sedutora, porém, em determinados momentos, falha. Pode-se expor que um dos problemas é a forma com
a qual se reduz as relações heterossexuais ao binômio mestre e
escravo, enquanto, na realidade, existem momentos de tensão, de
resistência e de subversões (FRASER, 1997, p. 225 ss). Esta crítica é esclarecida pela forma com a qual Pateman encara as relações
sadomasoquistas, já que, para ela, estas relações dissidentes seriam
“menos uma fantasia rebelde ou revolucionária do que uma exibição dramática da lógica do contrato e de todas as implicações da
sexualidade do ‘indivíduo’ patriarcal masculino” (PATEMAN,
1993, p. 273). Por um lado, não se vislumbra nesta via a possibilidade de que, por meio do contrato, outras relações e situações
sociais, dada sua condição produtiva, possam ser criadas e que,
por sua vez, fujam dos esquadros do patriarcado; isto porque a
visada a partir da forma predominante do contrato social e sexual
não permite ver outros modos de composições contratuais. Por
outro lado, quando se considera a problemática situada do denominado sadomasoquismo, logo aparece o tensionamento entre a
revolução social e a expressão das lógicas de poder, entre o drama
no corpo de uma experiência e as determinações históricas da sexualidade, de maneira que é focando nesta zona conlituosa que
se pode acompanhar a produção de outras contratações coletivas.
O contrato contrassexual
Para percorrer o problema do contrato em meio às relações de poder, é necessário partir de uma experiência situada. O
contrato contrassexual, que encontramos em Beatriz Preciado
(2011), é o eixo por meio do qual um outro modo de sociedade,
a sociedade contrassexual, pode se desenvolver. O contrato funciona aí como um procedimento indispensável para a desmontagem da sociedade baseada na ideia de natural diferença entre
sexos, emergindo como máquina singular que possibilita cons-
306
Subjugado à lei e à instituição nas codiicações das sociedades modernas, o contrato, cuja essencialidade e abrangência
em nossa sociedade são sistematicamente escamoteadas, surge
na invenção da sociedade contrassexual como elemento decisivo. É sobretudo pelas legislações e instituições que se deinem
as democracias e repúblicas modernas (DELEUZE, 2006a;
2006b), embora se idealize um contrato original como elo perdido de uma sociedade que, pelo fato de restar inacessível como
ideal, o qual atua como bloqueio às transformações coletivas. Na
contrassexualidade, a problemática institucional funciona como
um quadro amplo ou superfície de inscrição que se desarticula
tanto quanto se inscrevem contratos contrassexuais no corpo
social. O problema da lei perde o sentido na contrassexualidade,
já que não se trata de proibição ou liberação, nem de burocracia
ou desnormartização, mas de produção e desfuncionamento. É,
fundamentalmente, uma problemática tecnológica que se opera,
em que o contrato é um aparelho determinante. Mas como funciona o contrato na maquinaria contrassexual? Pode-se falar do
contrato de um modo geral, um tipo especíico de codiicação,
independente do seu funcionamento próprio em uma conjuntura particular? Tem-se aqui que quebrar as dicotomias, especialmente aquela que se faz entre geral e particular, para poder
traçar os movimentos diferenciantes que a experiência contrassexual promove repetindo o contrato.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
truir outra formação coletiva, a sociedade contrassexual. Isto,
não no porvir, mas neste mesmo corpo social que habitamos,
uma vez que a contrassexualidade já se efetua por uma variedade
de práticas e relações acionadas.
A contrassexualidade poderia deinir-se como um processo de descodiicação social que tem por instrumento privilegiado o contrato. Embora o contrato seja um modo de codiicação, sua função aí é atacar os postulados legais e os regimentos
institucionais, parodiando o jogo de um contrato original, fundador, que passa então a ser explicitado como jogo. Pari passu,
é pelo próprio instrumento oferecido pela sociedade de cunho
liberal, que esta é sabotada, ou seja, ao invés de legitimar a ordem, o contrato pode ser encarado como um mecanismo mo307
TRANSPOSIÇÕES
diicação. Desta maneira, a lei e a instituição se descodiicam
pelo contrato. A lei e qualquer dos seus fundamentos – a ordem
simbólica, a natureza ou outra ideia de universal transcultural
– desaparece do horizonte da contrassexualidade e é remetido a
uma ordem institucional. E mesmo a instituição é descodiicada
na medida em que é deinida como temporalidade lenta ou ixa
que será objeto de desmontagem por todo trabalho da contrassexualidade. Pode-se mesmo dizer que a instituição igura como
pretexto nesta proposta, que só se chega a falar de instituição
para designar o contraponto da contrassexualidade. Nestas circunstâncias, a instituição não é considerada um modo de codiicação, mas a própria ideia de código estabelecido de uma vez
por todas, impossibilidade de codiicação que será preciso desarticular. O contra-ato, possibilitado pelo contrato, é o único ato
enunciativo possível neste contexto. Eis aí uma primeira característica do contrato contrassexual: ele expulsa, impede, inibe,
ou antes, denega qualquer outro modo de codiicação que não
seja o contrato.
Como (des)funciona tal processo de descodiicação, na
relação com outros meios de codiicação, que o contrato contrassexual põe a funcionar? Compõe-se uma série de práticas denominadas contrassexuais – a própria contrassexualidade não é
nada além do conjunto destas práticas – por colocarem em questão pela sua radicalidade as premissas hegemônicas da sexualidade em vigência na sociedade ocidental. Em meio à utilização
de dildos e à erotização do ânus, está o contrato desenvolvido
em relações sadomasoquistas. Aí, “[...] pactos contratuais que
regulam os roteiros de submissão e dominação, izeram manifestas as estruturas eróticas de poder subjacentes ao contrato que a
heterossexualidade impôs como natural. Por exemplo, se o papel
da mulher no lar, casada e submissa, se reinterpreta constantemente no contrato S&M [sadomasoquista] é porque o roteiro
tradicional de “mulher casada” supõe um grau extremo de submissão, uma escravidão em tempo integral e para toda a vida.”
(PRECIADO, 2011, p. 24-25, tradução nossa). É à pretensão
de visibilização das estruturas de poder que se presta esta enunciação contratual. Mas há algo que se esconde sob o dispositivo
da sexualidade ocidental? A questão não seria de desvelamento,
308
Para sustentar o funcionamento contrassexual, a abertura dos códigos da sexualidade pelo pacto provisório, propõese uma relação de princípios. Além do contrato, que é básico:
a mudança do nome próprio por um estratégico codinome ou
nome de guerra, sendo interessante que este seja do sexo oposto
inicialmente; a universalização de práticas sexuais consideradas
abjetas em relação à sexualidade normal, especialmente, além da
sexualização do ânus e da utilização de dildos, a simulação de
orgasmos; separação entre atividade sexual e atividade reprodutiva; estabelecimento de cirurgias corporais no sentido de desestabilizar as normas vigentes da sexualidade e desenvolvimento
de tecnologias de intervenção corporal e arquitetural que não
sejam controladas pelo Estado; consideração da prática contrassexual como trabalho, constituindo-se direito e obrigação de
todo corpo falante; eliminação da família nuclear e deinição da
prostituição como prática contrassexual; promoção de educação
contrassexual. Esta lista complexa se tece pelo io da contratação
em muitos pontos, nos quais se desenvolve a ideia da contrassexualidade em contrações bem deinidas, mas isto acaba por
aparecer, no im das contas, como uma constituição legal, o fantasma da lei que não se poderia contornar ainal – o que se torna
analisador do conjunto da proposta.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
mas de descrição; não há nada a descobrir, pois todo o dispositivo já está em atividade, produzindo condições de dizibilidade
e visibilidade (DELEUZE, 2008). É a descrição que interessa,
como paradoxal meio de descodiicação do ideal regulatório dos
sexos. “Os códigos da masculinidade e da feminilidade se convertem em registros abertos à disposição dos corpos falantes no
marco de contratos consensuados temporários” (PRECIADO,
2011, p. 26, tradução nossa).
O problema do contrato enovela vários princípios da
contrassexualidade, produzindo um eixo em torno do qual
outros princípios relativamente independentes vão poder se
enredar. Sendo um contra-contrato, primordialmente, visa-se
à desarticulação dos contratos predominantes e, sobretudo, reconhecidos pelo Estado. Esta posição está relacionada à recusa
da lei e da instituição, tão atreladas ao Estado moderno, à sua
309
TRANSPOSIÇÕES
pretensão de estabilidade. Assim, rechaça-se o contrato matrimonial e seus similares5, mas também as instituições de qualquer
tipo de privilégio sexual e herança, cuja ideia de continuidade remete à estabilidade do tempo, reairmando-se o caráter temporário do contrato. Essa é uma segunda característica do contrato
contrassexual: não apenas rejeita outros modos de codiicação
além do contrato, mas também combate as formas preponderantes de contrato. Daí resulta que toda relação contrassexual
será uma relação contratual, de modo que o contrato assume a
função de uma lei disperarsiva e variante. Ora, o que se passou
com o contrato contrassexual que, tão logo começa a se desenvolver, apela a um constrangimento legalista e passa a compor
grupos como instituições de sexo, educação, pesquisa, trabalho?
Por que, ao voltar-se contra si próprio o contrato retoma a perspectiva legal e institucional que combatia logo antes, erigindo
uma outra modelização universal? Em que emperrou o processo
de experimentação?
O contrato masoquista
O masoquismo, classiicação psiquiátrica de perversão
sexual inventada no século XIX, deve seu nome a Leopold von
5
No Ordenamento Jurídico brasileiro, a união estável, à luz do
art. 226, § 3º, Constituição Federal, e do art. 1.723, Código Civil, também
é considerada como entidade familiar, ao lado do casamento. Ambos os
institutos se aproximam, sem se confundirem, uma que vez a união estável
não se concretiza pelo contrato formal, tendo em vista que se trata de
uma situação fática que pode ser ou não reconhecida juridicamente como
uma relação contratual – além de uma outra série de implicações jurídicas
distintas no que tange ao direito sucessório etc. Sendo assim, “a celebração do
contrato de convivência, por si só, não tem condão de impor a caracterização
da união estável” (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 552). Tal aspecto é
bastante sugestivo, pois é a experiência que constitui a união estável, e não o
assinar de um contrato. É pela própria realidade da relação que a união estável
se engendra como contratação, tornando secundário o reconhecimento do
Estado, ao contrário do casamento, que só se reconhece atualmente a partir
do contrato legal, tornando secundária a experiência de convívio em seu
estabelecimento. Já em legislações estrangeiras, é possível constituir parcerias
civis, com efeitos diferentes do casamento, que se prolongam no tempo a
im de se assegurar direitos patrimonais e sucessórios: a título de exemplos,
pode-se citar o Pacte Civil de Solidarité francês, no qual direitos familiares
não se fazem presentes, e o Eingetragene Partnerschat alemão, que já garante
mais direitos que o anterior, embora este também, por suas especiicidades,
diferencie-se do casamento.
310
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Sacher-Masoch, produtor de uma vasta obra literária que se desenvolve pelas suas experiências pessoais. O masoquismo foi
basicamente deinido pela psiquiatria como estabelecimento de
uma relação entre dor e prazer. Esta deinição redutora possibilitou sua associação ao sadismo – outra classiicação psiquiátrica
forjada a partir da obra de outro escritor, o Marquês de Sade,
que também se valeu de suas experiências pessoais para escrever.
Apenas ao se atentar à complexidade da experiência masoquista é que se percebe o fato de que esta não se reduz à associação
entre dor e prazer, pois pode-se nela perceber a importância crucial do estabelecimento de contrato para o desenvolvimento de
relações, especialmente as relações sexuais (DELEUZE, 1997,
2006c, 2009). Logo, ao nos referirmos ao masoquismo, não estamos tratando da categoria nosológica, mas de uma experiência
situada pela qual Masoch pode se expressar.
A questão sexual percorre a obra de Masoch e pode-se
destacá-la especialmente em “A vênus das peles” (SACHER
-MASOCH, 2008), sua novela mais famosa. A problematização
masoquista da relação sexual, partindo da ideia de que se estabeleceu uma hierarquia e um modo de dominação entre os sexos,
promove uma revolta nessa situação. O homem não será mais o
dominador de uma mulher submissa na proposta de Masoch,
dever ser o contrário. Mas não se deve restringir esta experiência
a uma reviravolta dialética ou a uma mera reprodução do mesmo jogo de dominação tendo apenas as peças trocadas de lugar,
seguindo-se as mesmas regras. É necessário considerar os mecanismos diferenciantes e as invenções originais do masoquismo
(DELEUZE, 2009). Há uma desmontagem do jogo sexual entre
homens e mulheres a partir dele próprio, de sua dialética, mas
rompendo com esta por meio de uma micropolítica. Trata-se,
no masoquismo, de uma tensão das forças, cuja potência seria
corrosiva, diferente do embate entre formas estabelecidas – formas sempre tão vulneráveis por sua necessidade de reiteração,
porem, sempre prontas a se restabelecer por esta mesma reiteração6. A produção de outros modos de relações sociais e sexuais
6
O trabalho de Butler (1999) discute como esta reiteração discursiva do poder atua no processo de materialização dos corpos.
311
TRANSPOSIÇÕES
está no cerne da trabalho masoquista, entretanto, esta produção
não tem seu produto predeterminado: trata-se de um plano de
experimentação para a invenção de outros modos de produção
de normas de vida que se debate com a hierarquização dos sexos. Não há aí um fantasma, mas um programa (DELEUZE;
GUATTARI, 1996). Neste processo produtivo, o contrato será
um elemento decisivo.
O contrato masoquista não é uma mera reprodução
do contrato social hegemônico, ele produz um tipo de relação
contratual própria, que também exerce uma função de descodiicação, rompendo com os códigos hegemônicos para produzir
outros modos de agenciamento coletivo. A lei e a instituição,
como modos de codiicação social, ocupam o masoquista apenas passando pelo contrato, sendo afetados por sua problemática. O contrato funciona como máquina existencial, dispara a
produção de um agenciamento coletivo em que se produz uma
multiplicidade de variantes afetivas e expressivas, maneiras de
sentir e agir, modos perceptivos e discursivos, que compõem o
desejo como uma paisagem, um mundo próprio a habitar. O
contrato é a própria passagem, o meio para a constituição do
universo masoquista. Mas este meio vital não está fora da história, das formações sociais e culturais, ele as delira, apropria-se
delas e compõe com elas um outro rumo coletivo (DELEUZE,
1997). Não se pode aqui falar da lei ou da instituição como
uma substância ou uma forma imutável apesar da variação de
contextos. O contrato masoquista é um contrato dentre outras
composições contratuais que se possa produzir. Como formação histórica, o contrato varia seu modo de funcionamento, de
composição, de intervenção e ordenamento do real. O que Masoch faz é suscitar a emergência de uma nova sociedade, de um
novo agenciamento coletivo disparado pela máquina-contrato.
O agenciamento é composto de duas faces, afecção e expressão,
corpo e discurso (DELEUZE; GUATTARI, 1977, 1995).
Mas como funciona essa máquina-contrato? Primeiramente, é preciso não reduzi-la a objeto jurídico, nem tomá-la
por estrutura relacional ou princípio social. Isto porque, no
romance masoquista em questão, o contrato não se resume ao
312
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
papel assinado, nem a uma forma jurídica que lhe predetermine o funcionamento. O contrato vai se tecendo na produção da
relação masoquista, que elabora a contratação como expressão e
ação, permeando inteiramente as conexões que vão se fazendo
no universo masoquista em construção, onde a transformação
do homem é fundamental. Quando Wanda, em “A vênus das
peles”, enim redige um contrato a ser assinado por Severin, ela
lhe diz que não pense ser mais do que um cachorro, explicando
o fato de o contrato só enunciar deveres a serem cumpridos por
ele. Esta referência ao animal, ligada à humanidade questionada em Severin, que, por ser desarazoado ou demoníaco, é um
ponto nodal no contrato masoquista. É por um série de devires – mulher, animal, bicha, coisa, etc – se espraiando no corpo
masoquista, informe pelo contrato, que tanto a forma homem
como a forma jurídica que lhe apoia a existência podem se desmanchar para que Masoch possa inventar um outro modo de
relação sexual. Tal outramento, entretanto, não signiica que ele
tornasse forma algum de seus devires, nem que ele estivesse fora
do funcionamento sexual formado historicamente, mas que ele
produz um fora nesta mesma formação7, uma zona de singularização, de produção de uma outra multiplicidade de variantes
afetivas e expressivas.
Uma vez que a mulher poderá fazer o quiser, sem limitação legal ou burocracia institucional, com seu homem tornado
escravo, animal ou coisa, apenas a constituição de uma ética, independente da moralidade jurídica e da regulação institucional,
poderá sustentar a relação, a sociedade que então se trava. Mas
não se trata mais de uma sociedade baseada na igura humana,
pois esta é despedaçada. As faculdade humanas são abolidas na
experimentação: nem vontade, nem razão determinam a produção do agenciamento coletivo em Masoch, que desarticulamnas. O masoquista se lança na produção de um corpo sem órgãos
(DELEUZE; GUATTARI, 1996). É, sobretudo, à constituição
de um corpo ético, de uma produtividade de normas intrínseca
ao funcionamento coletivo, que se trata no agenciamento maso7
O conceito de fora, inspirado em Deleuze (2008), não remete a
uma exterioridade isolada de uma unidade ou de um conjunto, indica uma
potência de criação inerente aos corpos.
313
TRANSPOSIÇÕES
quista, disparado pelo contrato máquina. Neste ponto, pode-se
indagar como pensar ética em meio à tanta violência. Em vez
de se tomar a violência como situação que impossibilita a ética,
pois um sujeito trataria outro como objeto em vez de sujeito8,
será preciso situar tanto o sujeito quanto a violência como conceitos secundários ou derivados em relação ao domínio da ética,
que não constituem originalmente seu campo ou dimensão. O
sujeito sendo uma forma ou uma substância e a violência sendo a destruição de uma forma ou a corrupção de uma substância não tratam diretamente do âmbito das relações de força ou
poder. O problema da violência aparece como limite negativo
ao considerarmos o poder como relação entre forças ativas, de
maneira que a violência aparece como impossibilidade de relações de poder e, portanto, de relações éticas, nas quais as forças
dobram-se sobre si próprias (FOUCAULT, 2006; DELEUZE,
2008). Seria justamente a desmontagem da igura do sujeito, sua
involução ao bicho ou à matéria, que suscitaria a produção ética,
desarticulando as funções da lei e da instituição como garantias
sociais transcendentes, eternas e imutáveis. Quando não há lei
que impeça que uma existência seja destruída ou instituição que
instaure procedimentos que a contornem, somente a ética pode
manter uma coletividade, sustentar uma relação como movimento e mudança, sem a pretensão de garantia absoluta ou geral
da lei e sem a intenção de arranjo relativo da instituição.
Se o contrato masoquista é uma máquina discursiva que
não se pode desatrelar de um corpo sem órgãos, um plano ético cuja relação com as formas do sujeito e da lei não é direta e
imediata, não se pode dizê-lo parodístico, mas humorístico. Ler
Masoch sem rir é perder uma dimensão essencial da sua obra. A
concepção do romance masoquista desatrelada do humor que
se produz após cada suspense corrompe o sentido das situações
experimentadas em função do isolamento de um gênero literário. É no cruzamento entre gêneros que se produz um luxo de
variação contínua, um devir que entremeia e arrasta os corpos
discursivos e não-discursivos, produzindo um meio de diferenciações que pode vir a constituir um novo um novo conjunto de
8
Esta conceituação de ética atrelada ao conceito de violência é
bastante comum, encontrando-se em Chaui (2008) por exemplo.
314
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
variantes discursivas e afetivas. Desta maneira, é na encruzilhada
entre suspense, romance e humor que, de um modo singular, se
produz uma série de situações masoquistas, um circuito de experiência como situação a viver. O suspense é o procedimento
por meio do qual o romance atinge graus os mais elevados, mas
é também por meio dele, ou melhor, de seu retorno em queda
para que o circuito se desenvolva, que o humor alcança graus
máximos. Quanto mais elevada a tensão do suspense, maior a
queda que nos arranca risos incontroláveis. E este circuito se sustenta tanto como corpo quanto como expressão – não é possível reduzir a dimensão não-discursiva à discursiva (DELEUZE,
2008). Assim, não se pode tomar o contrato masoquista como
mera paródia do contrato social e sexual dominante. Fugindo
do sistema contratual da sociedade moderna e à sua afronta, inventa-se e experimenta-se, combater indiretamente a estrutura
contratual hegemônica, inventando um meio oblíquo de furá-lo
pela própria contratualidade alterada. O contrato masoquista
sustenta-se, antes e sobretudo, pelo humor, pela constituição de
um plano de imanência, de experimentação, que produz outros
luxos afetivos, outras modalidades de encontro e construção de
territórios existências – que escapam ao padrão habitual. O masoquismo é a invenção de uma paisagem, um mundo a habitar,
antes que a reviravolta linguística do poder contratual moderno.
A linha de fuga é primeira (DELEUZE, 1996), assumindo o risco de fracassar, em vez de permanecer no ambíguo jogo da paródia reiterada, da simulação sempre falha e sempre insistente.
Contrações de contra-atos
Por im, retomando estas várias formulações do contrato
sexual, convém discuti-las entre si, confrontá-las umas às outras,
arrumando uma série de proposições que faça saltar outra série,
composta por questões relativas ao funcionamento do ideal que
atravessam o problema do contrato sexual. Desta maneira, a fundamentação ideal de um contrato original – remetendo a formação social a um princípio transcendente que instaura, simultaneamente, um regime jurídico no qual são leis e instituições que se
atualizam e um regime sexual em que a hierarquia entre homens
e mulheres se apresenta como paradigmática – pode aparecer
315
TRANSPOSIÇÕES
como pressuposto discutível de uma injunção pelas controvérsias que se instalam aí quando se desenvolvem contratualidades
que escapam à sobrecodiicação legal e institucional. Este lugar
ideal em que o contrato é colocado nas sociedades ocidentais
modernas, não obstante as contratações concretas que se estabelecem cotidianamente, é uma primeira questão a se pôr. A ininitude das possibilidades de invenção contratual, constante nas
legislações modernas em geral, instala uma brecha no sistema legislativo-institucional ao qual se subsume o contrato. Em vez de
uma lista com seus termos estabelecidos precisamente, como no
caso da lei, ou de um circuito de procedimentos transformáveis,
como no caso da instituição, o contrato funciona aí como o signo de uma abertura para agenciamentos coletivos imprevisíveis,
que extrapolam os limites de possibilidade legal e institucional.
A contratação deinida em termos de lei e de instituição,
como, por exemplo, é no casamento, aparece como negatividade
social ou limitação, como constrangimento a que se é submetido por suas cláusulas, correspondente à positividade alienada
do contrato originário. Deste modo, a ininitude do contratação
é remetida a um plano ideal, uma vez que no plano da realidade esta ininitude seria impossível tanto extrínsecamente, pelas
limitações legais e institucionais, quanto intrínsecamente, pela
coação imposta pela relação contratual irmada. O contrato,
nesta linha de pensamento, não é produtivo, mas tão somente
reprodutor de uma situação de dominação absoluta. Há, entretanto, a insistência do contrato como abertura do processo de
codiicação das relações sociais. Um primeiro contra-ato a se
desenvolver no sentido da abertura contratual, de uma descodiicação pelo contrato, é a demonstração do seu funcionamento
real enquanto ideal regulatório, a denúncia dos mecanismos de
poder que se estabelecem por meio da ideia de contrato original. É isto que Pateman (1993) faz, ainda que condene o mesmo
feito na exibição da lógica contratual pelas relações sadomasoquistas como reairmação do próprio contrato e de todas as suas
implicações. Assim, ela se põe descrente de que a liberdade possa
se concretizar pelo contrato, concluindo que a relação contratual apenas cria subordinação. Ao idealizar o contrato como uma
forma estática, sempre repressiva, idealiza-se também a liberda-
316
Preciado (2011), em seu Manifesto contrassexual, também se propõe a explicitar o ideal regulatório que se apresenta
como um fantasma estático com pretensões de imutabilidade.
Contudo, não toma este ideal como um mecanismo de poder entendendo-o como dominação da qual seria preciso se liberar, mas
aborda-o como jogo iccional de corpos falantes que se produzem
por um poder sistemático funcionando sob a lógica discursiva.
A contrassexualidade se propõe a atacar este ideal parodiando o
contrato originário e simulando a formação de uma nova sociedade. Nesta paródia, entretanto, recai-se na formação de um ideal
de contrato ao tentar compor um tipo de contradispositivo9, ao
considerar os movimentos inventivos apartados de uma dimensão ética e afetiva. Ao tratar da composição dos corpos, sempre
coletivos, o contradispositivo apoia-se no aumento da velocidade
de circulação das relações de poder aglomerando um movimento
comum que não cessa de invertê-las, recusá-las, reorganizá-las e
pervertê-las de maneira a recusá-las em seu ideal de estabilidade,
de Estado, para poder compor outros processos de subjetivação.
Todavia, ao tratar-se do corpo, seria preciso abordar não apenas
as lentidões e velocidades, mas também o poder de afetar e ser
afetado (DELEUZE, 2002). Esta dimensão fugidia do poder, relativa à ética, é desprezada na contrassexualidade, que acaba por
tão somente, após desastabilizar as relações de poder, forçá-las a
se reconigurar em um novo jogo em que as linhas de criação logo
estão capturadas. O contra-ato da contrassexualidade, ao idealizar
o ato discursivo como fantasma do poder que se assusta com a
paródia pela qual ele mesmo se constitui, toma o contrato como
jogo, em vez de reduzi-lo ao poder unilateral como dominação,
cujas reviravoltas são desprovidas de humor. Neste ponto, podemos perceber o limite do contrato contrassexual em sua tentativa
de retomar o corpo como foco de produção e subversão do sexo:
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
de como negativo da repressão, como além-mundo do qual é impossível falar porque absolutamente não vivemo-lo. A liberdade,
por esta via, é o negativo da negatividade contratual. O contra-ato que se produz é a negação do contrato, o qual é identiicado
com o ideal.
9
O conceito de contradispositivo operado aqui encontra-se elaborado em Alvim (2012).
317
TRANSPOSIÇÕES
nele não há humor, a paródia se resume a uma técnica lógica de
desnaturalização da sexualidade. É uma brincadeira, certamente,
mas tão imbuída da pretensão idealista de uma sociedade contrassexual que se faz como ironia, porém, não como humor, que explora os efeitos no próprio corpo da experimentação subversiva.
Ironicamente, a paródia, neste caso, reconcilia-se com uma universalidade da lei2, compondo uma carta de princípios, uma ideal
de constituição, a reger as formações contratuais num corpo cujos
luidos se organizam pela desorganização.
Em Sacher-Masoch (2008), o processo de constituição de
um corpo coletivo em experimentação contratual não submete os
agenciamentos técnicos corporais imediatamente às relações de
poder. Embora esteja sempre às voltas com a questão da hierarquia dos sexos, sua criação contratual não se prende ao combate
ou embate a esta formação histórica. Ele a delira, denegando a igura paterna e formando um mundo composto por uma série de
iguras femininas (DELEUZE, 2009). É nesta série que se passam
os conlitos fundamentais do problema sexual no masoquismo,
não em um confronto universal entre feminino e masculino essencializados fora da história. É um fora nesta história que Masoch produz com suas singularizações suscitadas pelo conlito
próprio à multiplicidade feminina. Entre a mulher igualitária,
situada no paganismo e denunciadora das instituições patriarcais
pelas múltiplas relações sensuais que estabelece com os homens, e
a mulher sádica, que instaura um matriarcado degenerado correspondente à instauração da igura paterna como lei, oscila o ideal
da mulher masoquista a igurar um mundo de frieza e solicitude,
morte e sentimento, como uma grande nutriz habitando a estepe
(DELEUZE, 2009, p. 48 ss). Este ideal masoquista, conigurado
sob o signo de uma multiplicidade feminina em tensionamento,
designa um devir mulher10, que não signiica tornar-se mulher
10
Safatle (2006) situa esta reconciliação da paródia à forma da lei no
contexto do capitalismo contemporâneo. Entretanto, tratando tão somente
das condições negativas da história, só pode julgar as políticas da paródia e da
simulação de modo geral, tanto que não faz questão de abordar as diferenças
entre o humor masoquista em Deleuze e a performatividade queer em Butler,
o que consideramos inprescindível para explorar os processos de produção
coletiva aquém do fracasso ou da captura.
318
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
como uma forma deinida, mas produzir uma zona de comunicação entre forças, onde se podem produzir singularizações não
atreladas à individualidade11. Segue-se um devir homossexual ou
homossexualidade molecular (DELEUZE; GUATTARI, 2010)
em Masoch, no qual o desejo por outra igura masculina não está
isolado de uma paisagem de reconiguração da relação entre os sexos. Estes e outros devires – animal, coisa, etc – compõem o ideal
masoquista como uma multiplicidade de variações, são as próprias
linhas de composição deste ideal. Mas por quais movimentos se
entrelaçam estas linhas compondo o plano de experimentação
masoquista? Vimos que se trata de um movimento humorístico.
No romance, produz-se um suspense que se eleva a tal ponto que,
quanto maior a fantasia que daí advém, maior o humor devido
às consequências da queda no real. Não há distinção, entretanto,
entre imaginário e real (DELEUZE; GUATTARI, 2010) e Masoch o demonstra por sua literatura que é, sobretudo, produção
de realidade. Traçando repetidamente o movimento imaginário
de formação do ideal pela suspensão, produz-se uma diferença
pela quebra do ideal a cada queda. “Em relações como essas só se
pode ser um o martelo, outro a bigorna. E eu quero ser a bigorna.”
(SACHER-MASOCH, 2008, p. 54). A bigorna como superfície ou corpo que suporta, possibilita tais movimentos, engendra
a realidade para além do imaginário no choque entre o martelo e
a bigorna, o chicote e a pele, o ideal e o real. Neste choque humorístico, pela afecção do corpo, produz-se o contra-ato em relação
ao próprio ideal. Entretanto, Masoch também falha (DELEUZE;
GUATTARI, 1977, p. 97 ss), retomando em si a igura masculina
autoritária, dominante, assinalando que mesmo na produção ética não há garantias contra o fracasso na experimentação.
Contraindo esses contra-atos, podemos avaliar suas contrações do ideal. Os procedimentos de desmontagem do plano
ideal, ao qual o contrato se encontra atrelado nas sociedades ocidentais modernas, situado numa origem mítica inacessível por
completo. Tais contrações nos conduzem a considerar a experiência do contrato – em seus funcionamentos constrangedores e
11
Sobre o devir mulher, pode-se ver Guattari (1987).
319
TRANSPOSIÇÕES
opressivos, em suas possibilidades de paródia do contrato originário e em sua abertura de um plano de experimentação de outras
possibilidades da relação sexual. Elas nos indicam que um deslocamento radical dos marcos da sexualidade no contemporâneo
passará pelo desmonte do ideal contratual originário, e que isto
se fará pelo próprio contrato desidealizado e voltado contra si em
sua versão totalitária, mas, sobretudo, que o contrato já escapa
à idealização, funcionando como agenciamento coletivo, que
ele opera no encontro e pela composição de corpos. O contrato
pode assim funcionar como máquina que dispara um processo de
descodiicação radical, pequeno território de prudência em meio
aos riscos da experimentação de uma linha de fuga coletiva, que
trata de “fazer passar algo que não seja codiicável, embaralhar
todos os códigos.” (DELEUZE, 2006d, p. 321).
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322
CUIDADO DE SI E DIVERSIDADE
SEXUAL: CAPTURAS, RUPTURAS E
RESISTÊNCIAS NA PRODUÇãO DE
POLÍTICAS E DIREITOS LGBT NO
CAMPO DA SAÚDE
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
15
Marco José de Oliveira Duarte1
“Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro” (Clarice Lispector).
Emergência homossexual e apropriação médico-moral
Em História da Loucura, Michel Foucault (1978) nos
relata a respeito das técnicas de punição jurídico-penal, como
forma de disciplinamento dos corpos dos sujeitos homossexuais,
como o internamento, o coninamento e o isolamento social,
para ins de correção desses e de suas práticas sexuais degeneradas (CAPONI, 2012).
A 24 de março de 1726, o tenente de polícia
Hérault, assistido pelos ‘senhores que cons1
Professor Adjunto da Faculdade de Serviço Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Saúde Mental e Saúde Coletiva, Mestre e Doutor em Serviço Social. Coordenador do NEPS/
UERJ, do PROAFRO/UERJ, do Programa de Residência Multiproissional
em Saúde Mental da UERJ e do PET-Saúde-Redes-Rede de Atenção Psicossocial da UERJ/MS. Pesquisador do LIDIS/UERJ, Supervisor Acadêmico
do CAPS/UERJ, Conselheiro do Conselho Estadual LGBT-RJ e do CONSUN/UERJ. majodu@gmail.com
323
TRANSPOSIÇÕES
tituem o conselho de direção de Châtelet de
Paris’, torna público um julgamento ao inal do
qual ‘Etienne Benjamin Deschaufours é declarado devidamente culpado de ter cometido
os crimes de sodomia mencionados no processo. Como reparação, e outros casos, [o mesmo]
é condenado a ser queimado vivo na Place de
Greve, suas cinzas jogadas ao vento, seus bens
coniscados pelo Rei (...) Foi, na França, uma
das últimas condenações à pena máxima por
sodomia. Mas a consciência da época já se indignava bastante contra essa severidade, a ponto de Voltaire tê-la na memória ao redigir o
verbete ‘Amor socrático’. Na maioria dos casos,
quando a sanção não é o exílio em alguma província, é o internamento no Hospital, ou numa
casa de detenção (FOUCAULT, 1978, p. 88).
Não obstante airmar não só na França, mas em boa
parte da Europa, a sodomia deveria ser punida com a morte na
fogueira, podendo ser coniscadas as propriedades e bens dos
culpados por tal ato.
Em Portugal, por exemplo, segundo Green (2000), “entre 1587 e 1794, a Inquisição portuguesa registrou 4.419 denúncias (...) Do total, 394 foram a julgamento, dos quais trinta
acabaram sendo queimados: três no século XVI e 27 no século
XVII” (Op., cit, 56).
Como nos aponta Foucault (1978), “o que dá signiicação particular a essa nova indulgência para com a sodomia é a
condenação moral e a sanção do escândalo que começa a punir
a homossexualidade” (Op. Cit, 89), e, neste contexto, emerge o
internamento e/ou o enclausuramento como práticas de retirar,
extinguir e castigar esses sujeitos e seus desatinos da sociedade
para ser corrigido e/ou curado. Essa lógica do tratamento moral
veio a se constituir como modelo de assistência médico-psiquiátrica dominante a todos os loucos de todas as espécies e aos degenerados, encerrados nos manicômios mundo afora.
Ainal,
A causa da loucura é a ‘imoralidade’, entendida como excesso ou exagero. Daí a terapia ser
324
Miskolci (2007), em Pânicos Morais e Controle Social,
ao apontar o triplo estigma da identidade homossexual, associado e marcado por uma sexualidade desviante-degenerada, pela
loucura, por ser essa mesma prática considerada uma patologia
e por im, pelo crime, na medida em que essas práticas sexuais
eram consideradas ilegais, airma que também na Alemanha,
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
chamada de tratamento moral, de ‘afecções
morais’ ou ‘paixões morais’. A loucura é excesso e desvio, a ser corrigido pela mudança de
costumes, mudança de hábitos (que lembra,
forçosamente, a ‘modiicação de comportamento’ enquanto projeto de condutas inadequadas) (PESSOTTI, 1994, p. 156).
“Em 1869, quando, diante da iminente criminalização das relações sexuais entre homens na
Alemanha, o médico húngaro Karoly Maria
Benkert escreveu uma carta-protesto na qual
empregou pela primeira vez o termo homossexual. No ano seguinte, o psiquiatra alemão
Carl Westphal publicou o texto As Sensações
Sexuais Contrárias, no qual descrevia esta
nova identidade social a partir da “inversão”
que deiniria sua sexualidade e, a partir dela,
seu comportamento e caráter. Dessa forma,
o homossexual passou a ser visto como uma
verdadeira “espécie” desviada e passível, portanto, de controle médico-legal. Em 1871 o
código penal alemão condenou a homossexualidade e outras formas de sexualidade consideradas “bestiais” em seu parágrafo 175 (Westphal, 1870). Desde sua invenção médico-legal em ins do século XIX, a homossexualidade representou uma suposta ameaça à ordem.
Uma prática sexual estigmatizada, a sodomia,
passou a ser encarada como o cerne de um
desvio da normalidade e o recém-criado homossexual tornou-se alvo de preocupação por
encarnar temores de uma sociedade com rígidos padrões de comportamento. Por trás dos
temores de degeneração sexual residia o medo
de transformações profundas em instituições
como a família (...) Essas razões levaram os
saberes psiquiátricos e as leis a colocarem o
homossexual no grupo dos desviantes, ao lado
da prostituta, do criminoso nato e daquele
que talvez fosse seu parente mais próximo: o
louco” (Op. Cit. 104-5).
325
TRANSPOSIÇÕES
Em toda a Europa foram criados estabelecimentos não
só para receber os loucos, mas “todos aqueles que, em relação à
ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de ‘alteração’”(FOUCAULT, 1975, p. 78). Incluíam-se aí, por exemplo,
“inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertinos de toda espécie, pessoas a quem a família ou o poder real
querem evitar um castigo público, pais de família dissipadores,
eclesiásticos em infração” (Op. Cit.). Percebemos, portanto, que
o que se buscava nesses lugares do aprisionamento não era uma
cura médica ou reabilitação psicossocial-moral desses indivíduos, incluindo os homossexuais, mas uma exclusão social.
Neste sentido, tanto a ordem psiquiátrica (FOUCAULT, 2006) como a pedagogia se confundem na lógica de
uma reeducação dos corpos desses sujeitos. Para atingir a “normalidade das funções mentais”, seria necessária uma reeducação
dos costumes, uma reeducação moral, essencialmente repressiva, que restabeleça a norma da razão.
Mesmo com o passar desse tempo histórico, vemos continuidades e descontinuidades presentes, e uma se destaca nesse
processo de transição para uma nova ordem social que se emerge, a eugenia e seus processos de assujeitamento dos corpos e de
controle da população. A medicina, a psiquiatria e a pedagogia,
assim, tomaram como referência ideo-política a teoria da degenerescência justamente para moldar os sujeitos e suas práticas
higiênicas sobre os corpos, gêneros, sexualidades, raças, como
processo de subjetivação, fazendo emergir sujeitos dóceis e disciplinados, úteis para o novo mundo pós-colonial, moderno,
portanto, mas com resquícios do patriarcado (COSTA, 1979).
A partir da metade do século XIX, a homossexualidade
deixa de ser uma questão de repressão do regime jurídico-policial, ou seja, o sodomita, sujeito jurídico deinido por um ato
criminoso, transforma-se ou é tomado e circunscrito, por conta
do processo social, histórico e complexo de mudança na ordem
política e econômica, como homossexual, objeto da ordem médica, submetido ao seu controle social, como um indivíduo de
326
Nada daquilo que ele [o homossexual] é, no
im das contas, escapa à sua sexualidade. Ela
está presente nele todo subjacente a todas as
suas condutas, já que ela é o princípio insidioso
ininitamente ativo das mesmas; inscrita sem
pudor na sua face e no seu corpo já que é um segredo que se trai sempre. É-lhe consubstancial,
não tanto como pecado habitual, porém, como
natureza singular (FOUCAULT, 1985, p.43).
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
personalidade desviante que não deve ser julgado por um crime,
mas deinido e tratado por sua natureza anormal e pela prática da perversão sexual, na medida em que não reproduzia mais
nova força de trabalho.
Neste sentido se no século XVIII os médicos passaram a
poder se pronunciar sobre a saúde da população urbana, a partir
do XIX e metade do XX esse mesmo saber médico faz emergir
uma produção de discursos normativos que deiniriam a identidade homossexual, na medida em que esse passou a ter uma
certa autoridade, legitimada histórico-socialmente, em pronunciar sua verdade sobre o sexo e a sexualidade na sociedade e nas
famílias (COSTA, 1979).
Assim, o corpo homossexual foi cercado, deinido e materializado pelo saber médico e a sua identidade domesticada e
julgada por esse sistema de verdade, a emergência do homossexual, antes livre pela lógica do desejo e sem capturas identitárias,
é aprisionado, agora, pela ordem médico-moral burguesa.
Desta forma, em território brasileiro, essa inluência européia foi notória e pública. Podemos enumerar um conjunto de
obras, narrativas com forte conteúdo conservador e moral, que
compreende e deine a homossexualidade a partir da disfunção
psíquica, somática, moral, de causas congênitas ou adquiridas,
entre outros fatores biologizantes. Portanto, sejam pelo aspecto
médico-legal, da criminologia e da sexologia, a lógica é do enquadramento moral. Neste acervo de estudos, é pioneiro o trabalho
de Hernani Irajá, intitulado, Psicoses do amor: estudos sobre as alterações do instinto sexual (1918), que considerava a homossexualidade decadente e as pessoas envolvidas, corrompidas. Outro
de sua autoria é sexo nu: formação e deformação: inversão sexual
327
TRANSPOSIÇÕES
(1966), onde deine a homossexualidade como perversão moral.
Outro autor que se destaca no campo médico e que
considera a homossexualidade uma doença é Afrânio Peixoto,
dentre suas obras, destacam-se, Sexologia Forense (1934) e a
que escreveu com Estácio de Lima, intitulada, Inversão dos sexos
(1935). Neste mesmo período, surge a obra de Leonídio Ribeiro, Homossexualismo e endocrinologia (1938), que inluenciou a
produção médico-legal sobre a homossexualidade, desde os anos
de 1930 até os anos de 1970 do século XX, em que defende que
a homossexualidade é causada por um desequilíbrio hormonal.
Pereira (1994) analisou em seu trabalho os escritos de
médicos e criminologistas no Brasil dos anos 1920 e 1930, mostrando o trato com a homossexualidade e, em particular, a inluência do eugenismo. A guisa de exemplo sobre esse estudo
temos as produções de Aldo Sinisgalli, Considerações gerais sobre
o homossexualismo (1938-1940) e Observações sobre os hábitos,
costumes e condições de vida dos homossexuais (pederastas passivos)
de São Paulo (1938-1940) em que defende a patologização da
homossexualidade, identiicando os que praticam como degenerados e salientando que o mero encarceramento desses indivíduos não elimina sua anormalidade.
Toda essa compreensão e emergência da identidade homossexual, medicalizada, patologizada e criminalizada foi reforçada por uma força ideo-política de direita, radical e totalitária,
o nazi-fascismo. Desta forma, os ditos sujeitos difusos, inferiores,
degenerados, pederastras, abjetos, doentes, sem-vergonha, obscenos, pecadores, anormais e imorais foram aprisionados, identiicados com um triangulo rosa2, quando homossexuais masculinos
e com um triangulo negro, quando homossexuais femininos e
outros tipos de comportamentos anti-sociais não aceitos socialmente para as mulheres, todos levados e coninados nos campos de concentração e assassinados. Nesse genocídio, denominado de holocausto, também foram levados judeus, ciganos, feministas, prostitutas, comunistas, negros, criminosos,
2
Símbolo mais antigo existente que representa a comunidade
homossexual.
328
No entanto, cabe uma ressalva, no campo da esquerda,
com hegemonia do marxismo de cunho stalinista, o trato com os
sujeitos homossexuais não era tão diferente assim, na medida em
que o fenômeno da homossexualidade seria resultado da decadência e desintegração moral das sociedades capitalistas e burguesas.
Em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, escrita em 1884, airma Engels (1984, p. 103) sobre a emergência da homossexualidade na Grécia Antiga. “Mas a degradação das mulheres reluiu sobre os próprios homens e também os
degradou, levando-os às repugnantes práticas da pederastia e a
desonrarem seus deuses e a si próprios, pelo mito de Ganímedes3.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
imigrantes e opositores em geral ao governo. Reforçando as
matizes desta ideologia racista, nacionalista, anti-comunista,
anti-capitalista e liberal, eugênica e intolerante.
Borrillo (2010) brinda-nos com um fragmento de uma
carta de Engels à Marx, datada de 22 de junho de 1869, impregnada de moralismo quanto aos ditos pederastas e suas práticas
sexuais, avaliadas como obscenidade, e de certa forma, demonstra uma organização política por parte desses sujeitos.
Se por um lado as perspectivas críticas são tímidas ou
quase nulas, foi com Freud, segundo Foucault (1988), que se
altera e se rompe com o triplo do estigma sobre o sujeito homossexual na relação perversão-hereditariedade-degenerescência,
anteriormente estabelecida pela ordem médica-psiquiátrica.
Cabe salientar que Freud, em Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade, escrita em 1905, dialogou com diversos autores
de sua época que explicavam a homossexualidade pelo paradigma da inversão sexual4. Para ele, a homossexualidade não se con3
Ganímedes (mortal) era um príncipe de Tróia que pastorava e Zeus
quando o viu se apaixonou e o raptou, tornando-se um pássaro levou-o para
viver com ele no Olímpio, mantendo assim com ele sua prática homossexual,
fazendo-o assumir uma função de servir, até então exercida por outra deusa.
Esse é o primeiro registro de “amor entre iguais” no mito grego.
4
Destaque para Richard von Krat-Ebing, Havelock Ellis e Magnus
Hirschfeld (FREUD, 1985, p.127).
329
TRANSPOSIÇÕES
igura como degenerescência, como doença e nem mesmo como
hereditariedade, mas enquanto perversão, pela exclusividade de
objeto e ixação libidinal. Airma Freud (1985, p. 151), “Quando a perversão (...) suplanta e substitui o normal em todas as
circunstâncias, ou seja, quando há nela as características de exclusividade e ixação, então nos vemos autorizados, na maioria
das vezes, a julgá-la como um sintoma patológico”.
Vieira (2009) relata que Freud ao responder a uma carta
de uma mãe norte-americana, tendo em vista o relato da mesma
sobre as condutas anormais de seu ilho, disse:
Creio compreender após ler sua carta que seu
ilho é homossexual. Eu iquei muito surpreso
pelo fato que a senhora não mencionou esse
termo nas informações que deu sobre ele. Posso eu, vos perguntar por que evitou esta palavra? A homossexualidade não é evidentemente
uma vantagem, mas não há nada do que sentir
vergonha. Ela não é nem um vício, nem uma
desonra e não poderíamos qualiicá-la de doença. (...) Muitos indivíduos altamente respeitáveis, nos tempos antigos e modernos foram
homossexuais (Platão, Michelângelo, Leonardo da Vinci, etc). É uma grande injustiça perseguir a homossexualidade como crime e também uma crueldade (FREUD, 1935/1967, p.
43 Apud VIEIRA, 2009, p. 497).
Uma síntese interpretativa e relexiva de todo esse período marca a emergência da homossexualidade pela medicalização e pela criminalização, mas a mesma, embora vista como
uma expressão perversa da sexualidade humana não se enquadra
pelo crivo da invisibilidade, particularmente entre homens do
que entre as mulheres, apesar da captura normativa-moral que
tomava a prática sexual dita normal, a heterossexual.
Contestação homossexual e a luta por cidadania
Mesmo situando-se no começo do século XX, em conjunto com os movimentos dos operários e com seus partidos
de esquerda, o movimento feminista, com a singularidade do
330
É neste contexto que se situa a Revolta de Stonewall,
em New York, em 28 de junho de 1969 e posteriormente as Paradas do Orgulho Gay que se emergem mundialmente em diversas cidades e países. Esse marco histórico é um divisor de águas
entre o captura médico-moral-policial e a resistência na luta por
um estatuto de cidadania demonstrada pelo movimento de homossexuais americanos que se espalha internacionalmente.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
protagonismo das mulheres operárias, destaca-se, inluencia e é
inluenciado com tantos outros movimentos sociais que se eclodem na conjuntura do pós Segunda Guerra Mundial, quando na
luta por direitos civis e por bandeiras democráticas, libertárias
e por direitos individuais emergem tantos outros movimentos,
como os de cunho anti-racistas, em particular, os de negros, os
de homossexuais, juventude etc.
Apesar do Brasil se encontrar sob regime ditatorial burguês-militar (1964-1985), foi nesse mesmo período, na resistência, que surgiram militâncias, contos literários, produções
teóricas, artísticas e culturais sobre a experiência homossexual,
embora restrita em volume e espaços públicos, os/as entendidos/as da época, sob uma perspectiva de contestação crítica, faziam embates, debates e tensionamentos políticos e públicos em
relação a ordem médico-legal-moral que ainda prevalecia.
Esta questão se apresenta com continuidade e descontinuidade, a depender dos lugares sociais e desses mesmos sujeitos,
introduzindo alguns novos contornos e outros nem tanto, ainda
se mantinham, mas em outros aspectos visíveis rompimentos e
embates. Neste cenário emergem as novas expressões identitárias de gays e lésbicas, mantendo as/os bissexuais, bem como as
novas identidades de gênero, tanto na airmação da travestilidade, e, mais recentemente, das/os transgêneros e transexuais.
Destacam-se nesse período obras de intelectuais e ativistas do movimento5, tais como Hiro Okita, Homossexualismo: da
5
Para ins desse trabalho, dado o limite de sua exposição e dos
objetivos do mesmo, privilegiamos no corpo do texto os que tivemos mais
contato, mas perilam ainda nessa lista, Peter Fry, Edward MacRae, Nestor
Perlonger, João Silvério Trevisan entre tantas/os outras/os.
331
TRANSPOSIÇÕES
opressão à libertação (1980), pertencente a fração da Convergência Socialista (CS), tendência marxista-trotskista do interior do
Partido dos Trabalhadores (PT) e presente no então fundado,
em 1978, Grupo Somos de São Paulo; Leila Miccolis e Herbert
Daniel, Jacarés e lobisomens: dois ensaios sobre a homossexualidade (1983), do mesmo autor, um ano antes, “Passagem para o
próximo exílio” e João Antônio de Souza Mascarenhas, A tríplice
conexão: machismo, conservadorismo político e falso moralismo
(1997), referenciados pelo Grupo Triangulo Rosa, fundado em
1977, do Rio de Janeiro.
Cabe sinalizar que Herbert Daniel veio candidato a
Deputado Estadual no Rio de Janeiro, representando o movimento homossexual da época, embora tenha perdido as eleições em 1986, continuou sua militância política-afetiva-sexual
com a criação de um grupo de discussão sobre a sexualidade
masculina e mais tarde, junto com Herbert de Souza, o Betinho, à frente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS
(ABIA), focando sua luta em torno da AIDS que envolvia nesse
momento diversos gays e bissexuais, levando-os a morte. João
Mascarenhas, por outro lado, protagonizou a luta pela inclusão,
no rol das discriminações, da orientação sexual, na Nova Constituição brasileira, no processo da Assembléia Constituinte
(1987-1988). Embora não tenha passado, o debate se seguiu
mais adiante com novos personagens na cena da luta por cidadania de LGBT mais contemporânea.
Sugere, nessa insurgência de contestação homossexual,
em diversos espaços da vida social, o surgimento de novas formas
de subjetividades constituídas pela estética da existência de LGBT
ou dos sexos-diversos, apesar do governo do biopoder, na medida
em que esses se airmam como sujeitos e entram na cena da esfera
pública como reivindicantes de direitos e políticas, principalmente, no campo da saúde em decorrência da epidemia da AIDS.
No cenário internacional, portanto, enumeram as
rupturas com a lógica médico-moral por parte de associações
cientíicas médicas ou mesmo da saúde. Neste sentido, temos,
de forma pioneira, em 1973, quando a Associação Americana
332
A perspectiva ética-estética para o cuidado em saúde e lgbt
É necessário contextualizar, a partir de uma análise
histórica da legislaçãodo das novas políticas públicas de saúde e
saúde mental, para observarmos como se situa a transversalidade
do tema da diversidade sexual para o referido campo da produção de cuidado em saúde e saúde mental.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
de Psiquiatria deixa de considerar a homossexualidade como
doença mental. No entanto, dezessete anos depois, em 17 de
maio de maio de 1990, a Organização Mundial de Saúde retira o homossexualismo do Catálogo Internacional de Doenças
(CID – 302.0).
Desta forma, nosso recorte inicial tem como parametro
e como referência legislativa, a Constituição Federal de 1988 e
as Leis 8.080/90 e 8.142/90 que insituem, no âmbito do Estado brasileiro, o Sistema Único de Saúde, com seus principios e
diretrizes. Neste bojo a institucionalidade da Lei 10.216/01 que
formaliza a nova política de saúde mental, que antes do aparato
legal já vinha sendo desenvolvida no campo prático e político da
saúde mental em diversas cidades e estados.
Em todos os documentos acima o conceito de saúde não
se opera pelo modelo biomédico nem mesmo corrobora pela deinição veiculada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) agência subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU)
criada no inal da Segunda Guerra Mundial, em 19486 - que no
seu documento de fundação airma que saúde é “um completo
estado de bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermindade”.
Mesmo que possa parecer um salto conceitual romper
com a leitura biologicista, medicalizante, prescritiva e curativa
que tem como foco a “ausência de doença ou enfermidade” no
corpo, o “completo estado de bem-estar físco, mental e social” é
idealista, utópico e inantingível.
6
Cabe sinalizar que neste mesmo ano, 1948, obtivemos a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, pela mesma ONU.
333
TRANSPOSIÇÕES
Por pressupor uma existência sem angustias ou conlitos
inerentes à própria história de cada ser humano e de cada sociedade e por outro, ao reforçar a ordem médica em tudo que é
considerado perigoso, insesejável e desviante se torna passível de
intervenção e cuidado médicos para se restabelecer a normalidade e a normatização do corpo assujeitado do outro, como vimos
acima, justiicando práticas arbitrárias de controle e exclusão sociais, tais como medicalização, psiquiatrização e psicologização
das relações sociais.
Orientação sexual e identidade de gênero como determinação
social da saúde
O conceito de saúde, todavia, está intrisecamente articulado a produção de subjetividade, sendo que esta é inerente e
inseparável à deinição do processo saúde-doença ou saúde-sofrimento-cuidado, seja historicamente, na concepção restrita acima, ou mesmo no seu sentido ampliado contemporâneo, como
resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade,
acesso e posse da terra e acesso aos serviços de
saúde. Sendo assim, é principalmente resultado das formas de organização social, de produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida (BRASIL, 1986: 4)7.
Posteriormente, essa deinição embasou o processo
constituinte na elaboração da Constituição Cidadã, e na seção
II (da Saúde), no Art. 196, entendida como “a saúde é direito de
todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e
econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para
sua promoção, proteção e recuperação”.
Já no Art. 198, dentre as três diretrizes do sistema, destacamos apenas duas para esse trabalho, o “atendimento integral,
com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos
7
Deinição deliberada na VIII Conferência Nacional de Saúde em
Brasília, em 1986 (BRASIL, 1986).
334
No sentido de regulamentar o capítulo constitucional da
saúde foram promulgadas as Leis 8.080/90 e a 8.142/90 que airmam tais diretrizes, o conceito ampliado de saúde e conformam
diversos principios, com destaque para o exposto no Cap. II, Art.
7º, alínea IV, sobre a “igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie” (grifos nossos).
Neste sentido todos os documentos acima, no seu estatuto legal, tratam das seguintes temáticas: a saúde como direito social, a universalidade do acesso, a igualdade e equidade do
acesso e do tratamento, redução de danos e riscos, a integralidade do cuidado e a participação social. No entanto, pressupõe
que esses temas se fazem presentes na construção desta política
pública e na realidade concreta do SUS, de forma contraditória,
ou seja, no encontro entre seus trabalhadores e usuários nos serviços de saúde e na gestão participativa e democrática entre os
agentes que implementam, avaliam e controlam as ações planiicadas do setor saúde. .
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
serviços assistenciais”; e a “participação da comunidade”. Acrescenta que a Carta Magna tem como princípio basilar a dignidade humana e a pluralidade (CF, artigo 1º, III e V).
Airmando as mesmas diretrizes e princípios do SUS, a
politica pública de saúde mental, expressa na Lei 10.216/01, em
seu Art 2º registra os diversos direitos dos seus usuários,
destacamos o que se coloca na alínea II, quando airma “ser
tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de
beneiciar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade” (grifos nossos)
e da alínea VIII, quando o mesmo deve “ser tratada em ambiente
terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis”.
A temática da diversidade sexual no campo da saúde
A partir deste quadro comparativo e complementar das
politicas públicas de saúde e saúde mental, a temática da diversidade sexual, como expressão das singularidades de sujeitos auto
-identiicados como lésbicas, gays, bisexuais, travestis e transexu335
TRANSPOSIÇÕES
ais (LGBT) surgem neste contexto, tanto de forma transversal
até a coniguração de uma politica nacional de saúde integral de
LGBT pelo Ministério da Saúde.
A aparição desde segmento da população usuária do
SUS, durante muito tempo e ainda é, restringiu-se ao campo
da AIDS/HIV. Primeiro pela necessidade de organização dos
movimentos sociais LGBT emergidos na década de 1980 em
responder prioritariamente a epidemia da AIDS, e segundo,
por ocupar a gestão, pela forma da participação e controle social, desde 1986, com a criação do Programa Nacional de DST
e Aids - hoje, Coordenação Nacional de DST/Aids, reforçado
como espaço privilegiado de intervenção e militância, muito
mais, pela constituição do SUS a partir de 1990.
Cabe registrar que a década de 1990 é de relorescimento
de grupos de LGBT, em particular pelo inanciamento internacional em resposta a epidemia da AIDS, impulsionando o movimento social LGBT. Nesse período, funda-se a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT) no 8º EBGL. A
realização da primeira Parada do Orgulho Gay do Brasil, no Rio
de Janeiro (1995) por conta do congresso internacional da ILGA
e o PL 1151 de autoria da Deputada Federal Marta Suplicy que
propõe a legalização da união civil entre pessoas do mesmo sexo,
que marca o primeiro debate nacional sobre o tema dos direitos.
Bem como surgem o Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE) e a Articulação Nacional de Travestis (ANTRA, que mais
tarde incorpora os outros T´s, Transgêneros e Transexuais).
Desta primeira década dos anos 1990 para os anos 2000,
aponta-se uma maior visibilidade do movimento social LGBT,
bem como a estreita ligação destes, ainda, como a epidemia da
AIDS. No entanto, ressalta-se sobre esta questão, o inanciamento governamental junto aos antigos e novos grupos, de certa
forma fortalecendo-os mas transparecendo uma certa cooptação por parte da gestão pública, tanto de ativistas para a função
de determinados cargos, como de parte do movimento LGBT,
com explícita vinculação orgânica e comprometedora da autonomia desses.
336
Portanto e, principalmente, partindo desta hipótese acima é que em 2004, o governo federal lança o Programa Brasil
Sem Homofobia (BSH), mas sem inanciamento público, no
sentido de atender as demandas dos movimentos sociais LGBT,
com relação as suas vulnerabilidades especíicas desse segmento
populacional, submetidos ainda às diversas formas de preconceito, discriminação e marginalização, inclusive nos
territorios dos serviços técnico-assistenciais de saúde, nos seus
diversos níveis de atenção e cuidado.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Neste sentido observa-se uma institucionalização do
movimento LGBT, e neste contexto a agenda se volta muito
mais para as políticas públicas, reivindicações legislativas e políticas governamentais, sob a égide do contraditório e da ambiguidade desses mesmos indivíduos que ocupam determinados
lugares de gestão na esfera pública.
Não podemos esquecer das diversas resistências dos
trabalhadores da saúde com relação aos atendimentos e procedimentos técnico-operativos com LGBT, principalmente, por
conta do HIV/AIDS, em particular, por veicular a expressão
“peste gay” e todo uma gama de preconceitos, violências e mortes que esses sujeitos foram tratados historicamente pela sociedade em geral.
No respectivo programa BSH, no campo da saúde, há
sinalizadas três ações, e talvez, a principal delas seja
a formalização do Comitê Técnico de Saúde
da População de Gays, Lésbicas, Transgêneros
e Bissexuais, do Ministério da Saúde8, com o
objetivo de estruturar uma Política Nacional
de Saúde para essa população. As outras duas
reportam-se à produção de conhecimentos sobre saúde da população LGBT e à capacitação
de profssionais de saúde para o atendimento a
essa população (BRASIL, 2004a)9.
8
Ver detalhadamente a esse respeito: BRASIL. Ministério da Saúde.
Portaria GM Nº. 2.227, de 14 de outubro de 2004.
9
Cf. em MELLO, L. et al. (Orgs). Políticas Públicas para a população
LGBT: Um mapeamento crítico preliminar. Goiânia: Ser-tão – Núcleo de
Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade da FCS/UFG, 2010; MELLO,
337
TRANSPOSIÇÕES
Entretanto, cabe destacar uma série de Portarias do Ministério da Saúde que são lançadas em seguida e que colocam
esse segmento populacional como portadores de direitos e cidadania no campo da saúde, tais como a Portaria GM Nº. 426, de
22 de março de 2005, que institui, no âmbito do SUS, a Política
Nacional de Atenção Integral em Reprodução Humana Assistida, a Portaria GM N° 675, de 30 de março de 2006, que aprova
a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, que consolida os
direitos e deveres do exercício da cidadania na saúde em todo o
país e a Portaria GM Nº. 1.707, de 18 de agosto de 2008, que
instituiu, no âmbito do SUS, o Processo Transexualizador, a ser
implantado nas unidades federadas, respeitadas as competências
das três esferas de gestão, em decorrência, tardiamente, da Resolução do Conselho Federal de Medicina Nº. 1.652/2002, que
em maio de 2002 permitiu a realização de cirurgia de resignação
sexual do/a transexual ou transgenitalização, já em curso no país
de forma clandestina.
Em 2008, portanto é realizado a I Conferência Nacional LGBT, e “das 559 propostas consolidadas no Relatório Final, 167 correspondem à área da saúde. No referido documento,
temos um total de 166 estratégias de ação, destas, 48 dizem respeito ao campo da saúde” (DUARTE, 2011, p. 90).
Oriundo deste produto inal da Conferência, o governo federal, em 2009, institui o Plano Nacional de Promoção
da Cidadania e Direitos Humanos LGBT através da Secretaria
Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.
Mas somente em 2010 temos aprovado a versão inal da Política
Nacional de Saúde Integral LGBT (BRASIL, 2010), depois de
um processo longo e demorado de debates e pactuações entre os
atores necessários, inclusive com o Conselho Nacional de Saúde, que tem, segundo Mello (2012), “uma ausência de referência
L et al. (Orgs). Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade. In:
Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamericana. n. 9, p. 7–28, dec.
2011b e DUARTE, M. J. de O. Diversidade Sexual e Política Nacional de
Saúde Mental: contribuições pertinentes dos sujeitos insistentes. Em Pauta:
teoria social e realidade contemporânea. Rio de Janeiro: Faculdade de Serviço
Social da UERJ, n. 28, vol. 9, p. 83–115, dezembro de 2011.
338
No entanto, a despeito dos ditos avanços no campo
dos direitos sexuais para LGBT na saúde e não exclusivamente neste setor, mas a construção de uma política pública para a
população LGBT, no tocante ao reconhecimento dos efeitos da
discriminação, do preconceito e da exclusão destes sujeitos em
diversos segmentos sociais e, em particular, no processo saúdedoença, ainda nos deparamos nos serviços de saúde com determinados discursos e práticas que colocam uma distância e um
hiato entre o que está no papel, como vimos anteriormente, e o
que se efetiva e concretamente se faz no cotidiano do cuidado à
saúde de LGBT.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
explícita a transexuais” (Op. Cit; 16) em sua Comissão Intersetorial de Saúde da População LGBT e a retomada e reestruturação do Comitê Técnico de Saúde da População de LGBT no
âmbito do Ministério da Saúde.
Cabe destacar que muitos ao insistirem em enquadrá-los no lugar próprio da patologia, do desvio e da segregação social, mesmo que não o seja10, esse discurso de forte
conteúdo higiênico e moralista foram impostos não só pelo
víeis do conservadorismo da ordem médica, de um passado
recente, desde que a questão da orientação sexual foi retirada
da tutela policial por afetar à ordem pública, mas também,
pela esquerda stalinista, quando muitos homossexuais foram
exilados, mortos ou presos e torturados, sob o rótulo que se
enquadravam no “desvio pequeno burguês”, como até mesmo
como enquadrados como “pecaminoso” (SEFFNER, 2011, p.
67), pelo víeis de um certo fundamentalismo religioso presente
10
Salientamos que tanto no CID 10 como no DSM-IV e DSMIV-RT o desaparecimento do homossexualismo enquanto categoria de
patologização médica, embora, encontrem-se ainda no CID 10 as categorias
transexualismo (F64.0) e travestismo (F64.1) como transtorno de identidade
sexual, que nos DSM-IV são tratados como transtorno de identidade de
gênero (F64) e que é assim comumente tratado nas instituições médicas,
como do consenso na área quanto aos mesmos critérios diagnósticos tanto
pela CID-10 quanto dos DSM-IV a esses usuários quando do processo
terapêutico e transexualizador do SUS. No entanto, emerge um movimento
internacional de despatologização da transexualidade e da travestilidade para
o reconhecimento dos direitos e cidadania desses segmentos “T´s” pelas
expressões da identidade de gênero, no campo da saúde coletiva.
339
TRANSPOSIÇÕES
na sociedade e consequentemente pelo credo de alguns proissionais da saúde.
Por outro lado, essas ambigüidades vêem a tona quando temos recursos normativos e tecnológicos como as políticas de educação para o trabalho em saúde, de educação na saúde e da educação permanente em saúde. No entanto, apesar da
existência das mesmas não se vê capacitação nem para as equipes
da atenção básica, incluindo as equipes dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), quiçá no território em que se dá a articulação com as diversas redes de atenção e cuidado à saúde que se
encontram. Isso demonstra a ausência de efetivação dessas políticas para com os seus trabalhadores/as no âmbito do SUS.
Infelizmente sabemos que as situações de descriminação
e preconceito institucional, bem como o despreparo e a falta de
conhecimento sobre identidade ou expressão de gênero e orientação sexual, o completo descaso e ignorância formam o cerne
da questão e que muito ainda há que ser feito para reverter minimamente os efeitos de anos de exclusão e invisibilidade.
Ao longo dos anos, desde 1988 e da implantação do SUS, houve muitos acertos em suas
ações, mas também muitos obstáculos demarcados por cenas e discursos preconceituosos
que, de acordo com níveis de intensidade distintos, discriminam, estigmatizam, violentam e
excluem pessoas pelas mais variadas categorias,
seja classe social, raça, etnia, identidade de gêneros, orientação sexual, relação intergeracional ou estética corporal (PERES, 2010, p. 309).
Apesar dos relatórios das duas últimas Conferências
Nacionais de Saúde e da última de Saúde Mental apontarem
para necessidade da formação/capacitação continuada, como
propiciadora de acesso ao conhecimento sobre a temática da diversidade sexual, e apesar de alguns Conselhos Proissionais da
saúde, como o de Medicina, Psicologia e Serviço Social terem
deliberações próprias para a inibição das práticas discriminatórias sobre a população LGBT, e os dois últimos com normativas
próprias para o uso do nome social entre os proissionais destas categorias e junto as/os usuárias/os dos serviços públicos e
340
A temática dos direitos sexuais no campo da saúde
Embora seja verdade que a ausência da temática da diversidade sexual é presente em muitos outros setores da saúde, se articulada com a perspectiva dos direitos sexuais no campo dos direitos
humanos em saúde, o tema, portanto, continua visível e operativo,
reincidentemente, para a capacitação dos proissionais da área e nas
campanhas de prevenção de HIV/AIDS, em decorrência dos efeitos acumulativos da presença da militância LGBT desde os anos
1980, tendo em vista ser o “grupo de risco” mais enfocado por conta das suas práticas sexuais discriminadas, incluindo aí HSH.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
privados, compete ao Ministério da Saúde, como sinalizado no
Plano Operativo da Política Nacional de Saúde Integral LGBT
(2012 – 2015) essa tarefa institucional (BRASIL, 2011b), deliberada pelo conjunto da população LGBT na I Conferência
Nacional LGBT, de 2008, e que foi reairmada, por sua lacuna
ainda existente, na II Conferência, em 2011, quando da sistematização das suas diretrizes (BRASIL, 2011a).
Mas se por um lado, foi nesse campo que a temática da
diversidade sexual estreou no cenário das práticas de saúde em
geral, hoje, ele se amplia junto com o processo transexualizador
do SUS, apesar de se limitaram nestes escopos, mas também
se associam de forma transversal, as outras políticas nacionais
do Ministério da Saúde, como jovem e adolescente, da mulher,
do homem, de humanização e da população negra, bem como,
estrategicamente, no Programa de Saúde na Escola, na Estratégia de Saúde da Família/Atenção Básica, para citar algumas. O
que já é um avanço, mas tímido, no que concerne à temática da
orientação sexual e as expressões das identidades de gênero.
Desta forma, a experiência acumulada muito mais em
decorrência da epidemia do HIV/AIDS, e recentemente, com
o processo transexualizador, vem possibilitando a quebra de
paradigmas biomédicos na abordagem à saúde da população
LGBT, fazendo com que muitos proissionais refaçam em outro
patamar a relação com seus pacientes, repensem a inter-relação
341
TRANSPOSIÇÕES
entre promoção da saúde e outros direitos humanos, incluindo
os direitos sexuais e reprodutivos, introduzindo outros determinantes sócio-culturais no processo saúde-doença-cuidado,
como da orientação sexual e identidade de gênero, e mesmo o
estigma e o preconceito resultantes, e em decorrência destes, o
enfrentamento à iniqüidade em saúde, podendo produzir novas
tecnologias e linhas de cuidados à saúde deste segmento, levando em consideração o conceito ampliado de saúde, ao perceber
que o adoecimento e o sofrimento de LGBT podem ser agravados quando correlacionados ao seu modo de vida.
O direito à saúde integral para essa população
requer o redimensionamento dos direitos sexuais e reprodutivos, demandando a desnaturalização da sexualidade e de suas formas de
manifestação, bem como a recusa à medicalização da sexualidade, que tende a normatizar
as expressões da sexualidade humana segundo
a lógica heteronormativa e da linearidade na
determinação do sexo sobre o gênero. Isso
implica considerar outros discursos sobre a sexualidade humana como legítimos, inclusive
como ferramenta crítica ao saber/poder médico que tende a patologizar e medicalizar as
diferenças que denunciam a não naturalidade,
no humano, dos processos constitutivos e das
práticas sociais e relacionais vinculadas à sexualidade (LIONÇO, 2008, p. 18).
Considerações inais
No entanto, sinalizamos alguns desaios encontrados
quanto ao rompimento com certos tabus presentes no cotidiano
das instituições de saúde, e particularmente, um deles se coloca
na ordem do medo. Tanto do lado do proissional quanto dos
usuários, quando se tem que dizer alguma informação quanto a
determinados assuntos ligados à ao corpo, ao sexo e a sexualidade. É observável que impera um silêncio ou mesmo um interdito
sobre o tema das práticas sexuais.
A nosso ver, isso demonstra que mesmo que o cuidado
em saúde esteja intrinsecamente ligado ao contato inter-pessoal
342
Por outro lado, e frisamos, há uma ignorância ou preconceito por parte dos proissionais da saúde, independente
de sua área de conhecimento, em abordar questões ligadas à
sexualidade revelada ou em lidar com um “corpo diferente”. O
estranhamento, muitas vezes, cria resistência e repulsa em ambos os agentes na atenção à saúde, quando não há omissão ou
indiferença. E isso interfere, em muito, na produção do cuidado, no projeto terapêutico singular, na conduta terapêutica. As
situações vexatórias, os olhares curiosos, certas brincadeiras de
mau-gosto, atitudes preconceituosas e discriminatórias são reais
e presentes no contexto assistencial em saúde.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
entre o proissional e o/a paciente, há um encontro intercessor,
já que o processo de trabalho em saúde depende desses dois sujeitos, na perspectiva da integralidade. Observa-se que não é em
qualquer lugar que se fala sobre isso, nem é para qualquer um
que se permite essa abertura de diálogo, exceto para os campos
de HIV/AIDS e no processo transexualizador.
O lidar com a diferença e a singularidade dos sujeitos
LGBT não se limita aos muros das instituições da saúde, no entanto, promover o respeito à diversidade é orgânico aos padrões
civilizatórios de uma sociedade democrática. Assim, todas as
proissões da saúde, mesmo aquelas que até agora não se pronunciaram quanto a isso, em seus fóruns de deliberação, devem
assumir coletivamente o compromisso de contribuir com essa
mudança, no caso, a partir da saúde, compreendendo a diferença como uma pluralidade enriquecedora das relações sociais.
Essas diferenças não podem continuar sendo usadas
como instrumento para perpetuar tratamentos hierárquicos,
desiguais e discriminatórios e sim a emancipação humana, a
partir da alteridade. A existência das mais variadas formas de
diversidade, portanto, deve ser vista e trabalhada como própria
da condição humana. Somos diversos e plurais e nisso reside à
democracia e o exercício dos direitos sexuais e humanos.
Por im, quando tomamos as discriminações e preconceitos por orientação sexual e identidade de gênero, ainda hoje,
343
TRANSPOSIÇÕES
traduzido como homofobia e transfobia, incluímos esse fenômeno como elemento histórico na determinação social do processo saúde-doença-cuidado, reforçando mais sofrimento e adoecimento no conjunto de outras vulnerabilidades que LGBT
são geralmente mais acometidos.
Desta forma, temos que salientar a necessidade urgente
de operar, por um lado, esse debate e a implantação estratégica
no SUS da Política Nacional de Saúde Integral LGBT (BRASIL, 2011c) em todos os níveis de atenção e cuidado no campo
da saúde e por outro, uma ruptura contra todas as diferentes formas de fascismos, racismos, sexismos e fundamentalismos religiosos, que foram e ainda são estruturados no regime de verdade
calcados em moralismos e conservadorismos de séculos atrás e
que insistem em se prevalecer, nos perseguir, insultar e calar, mas
continuamos a lutar e apostar em nossas formas singulares de
andar a vida.
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349
RESISTIR/EDUCAR: O BLACK BLOC,
A fRAGILIDADE DEMOCRÁTICA E A
CONVICÇãO DA LUTA
Davis Moreira Alvim1
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
16
Sonhamos perigosamente entre os anos de 2011 e 2014.
No Brasil, protestos ainda inconclusos varreram o país, colocando em questão a geograia das relações de poder e reivindicando
novas possibilidades de vida em comum:direito à mobilidade
urbana, im das dependências que o capital privado impõe ao
campo político, desconiança em relação à manipulação das
grandes mídias e dos grandes monopólios de comunicação, denúncia da criminalização dos movimentos sociais e da brutalidade policial,pleno direito à saúde e à educação pública de qualidade e crítica da inluência religiosa nas decisões institucionais são
apenas alguns dos exemplos dos muitos questionamentos lançados. Reletindo no olho do furacão, esse artigo busca pensar as
resistências enquanto espaços educativos fundamentais, examinando a potência dos processos educacionais colocados em jogo
pelos atos de resistência, enfocando a tática blackbloc. Pergunta-se pelas possibilidades não só de mudança no funcionamento
concreto da vida pública que tais lutas comportam, mas pelas
possíveis aberturas educativas que as ações resistentes permitem.
1
Professor efetivo do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES).
351
TRANSPOSIÇÕES
O que é resistência?
Em primeiro lugar deve-se colocar a questão: o que é resistência? Fazendo alusão ao mestre de capoeira Almir das Areias
e sua fórmula (“em todos os movimentos tu deves ser como a corrente do rio que contorna o rochedo”), indica-se a questão paradoxal das resistências: não é a obra de arte nem o jogador que se
opõem a uma ordem ou força, “inversamente, é uma certa ordem
do mundo ou uma estrutura social dada que, como o rochedo,
constitui uma força de resistência contra a corrente da vida”2.Ou
seja, encontramos forças resistentes que tendem ao enfrentamento generalizado dos poderes e ao mesmo tempo criam modos de
vida ou de estar junto. Nômade e microfísica, as resistências não
podem deixar de captar uma potência que envolve, a um só tempo, o enfrentamento dos núcleos duros e o luxo da invenção.
Nas últimas décadas, uma diversidade de pesquisadores
tentou demonstrar que as resistências não são bem compreendidas quando associadas exclusivamente ao desejo pelo poder e
à dialética. O sociólogo Maurizio Lazzarato, por exemplo, observa que os chamados “novos movimentos sociais” (ou movimentos pós-socialistas) não operam centralmente pelo conlito,
mas pela recusa das regras tradicionais da representação política,
procurando criar novas formas de estar junto e de viver em comum, investindo na “criação e atualização de mundos”3. Não se
trata de querer o poder ou desejar dominar, mas da invenção de
novos afetos por meio da multiplicação de identidades étnicas,
da airmação da condição feminina plena, do convívio harmonioso com o meio-ambiente, da coexistência entre as diferentes
sexualidades e do direito à cidade.
Segundo Michel Foucault, os termos poder e resistência
2
DUMOULIÉ, Camille. A capoeira, arte de resistência e estética
da potência. In: LINS, Daniel (org.). Nietzsche/Deleuze: arte, resistência:
Simpósio Internacional de Filosoia (2004). Rio de Janeiro: Forense Universitária, Fortaleza, CE: Fundação da Cultura, Esporte e Turismo, 2007. p. 1.
3
LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 204-205.
352
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
não se encontram em relação de exterioridade. Estamos sempre
“no” poder e, nesse sentido, não há escapatória; o que não quer
dizer que o poder sempre vença ou que as resistências sejam inúteis. Se o poder existe numa rede vasta e multiforme de relações
de dominação, os pontos de resistência também se apresentam
como multiplicidade de focos de tensão. Assim, como não existe simplesmente um grande Poder, não existe um local único
de Recusa: “a” resistência se move para a pluralidade. Torna-se,
dessa forma, uma multiplicidade de acontecimentos possíveis,
improváveis, espontâneos, planejados, irreconciliáveis, o que em
absoluto quer dizer que estejam fadadas ao fracasso ou sejam
apenas subprodutos dessas relações4.
Gilles Deleuze e Félix Guattari sugerem que “resistir”
pouco tem a ver com conservar, sofrer, suportar ou opor-se ao
movimento. O poder não é o principal responsável pela ação
constituinte, pois há um primado das resistências sobre as relações de poder que, na verdade, são formações secundárias, ou melhor, reterritorizações5. Os poderes funcionam de forma reativa,
enquanto as resistências ligam-se às maneiras como um campo
social foge por todos os lados6. Nos sistemas sociais existem sempre linhas fugidias, mas também endurecimentos para impedir
essas fugas, ou, ainda, aparelhos que as integram, desviam ou
detêm7. Ou seja, ao lado dos pontos que o poder aprisiona, existem também “pontos relativamente livres ou libertados, pontos
de criatividade, de mutação, de resistência”8. O desaio lançado
4
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de
saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 91 em diante. Cf. também Cf.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins
Fontes, 2008. p. 155-303.
5
DELEUZE, Gilles. Desejo e prazer. In: PELBART, Peter; ROLNIK, Suely (orgs.). Cadernos de Subjetividade. São Paulo: PUC-SP, v.1, n.1,
1993. p. 18.
6
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p. 67.
7
DELEUZE, Gilles. Sobre capitalismo e desejo. In: ______. A ilha
deserta: e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006b. p. 337.
8
Pellejero, Eduardo. Dos dispositivos de poder ao agenciamento da
353
TRANSPOSIÇÕES
por Deleuze e Guattari é o de pensar as resistências como luxos capazes, não de fugir ao mundo, mas fazer o mundo fugir
em direção a outros mundos possíveis9; por isso, não podem ser
tomadas como simples enfrentamentos fragmentários ou focos
de luta contra os mecanismos de poder, pois, em certo sentido,
são os mecanismos de poder que oferecem “resistência” às novas
formas de existir e lutar propostas pelas resistências.
Em resumo, pode-se indicar que as forças resistentes são
sempre duplas: são combativas, uma vez que enfrentam e recusam determinadas conigurações das relações de poder, mas também criativas, já que incessantemente propõem a reorganização
das sociedades, não somente desaiando as normas instituídas,
mas também propondo novas formas de convívio. Nossa hipótese é que a participação em ações de resistência pode, em primeiro lugar, levar ao reconhecimento vívido das relações de poder
que submetem as coletividades e, em segundo lugar, instigar o
contato com novas formas de estar junto, de organizar-se politicamente ou afetivamente. Sugerimos que os movimentos sociais
e os protestos de rua apresentam-se como oportunidades educativas aos manifestantes quando o que se busca é potencializar o
pensamento crítico e construir democracia enquanto, ao mesmo
tempo, solidiica-se a percepção da importância das resistências
sociais perante a brutalidade e a corrupção dos poderes.
Os trabalhadores, as minorias e os autonomistas.
No início do século XX,a noção de “movimentos sociais”sugeria principalmente organizações de trabalhadores,
especialmente em sindicatos e partidos políticos de tendências socialistas10.Embasados em aspectos da ilosoia marxista,
resistência. Disponível em: <http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=35&id=419&tipo=1> Acesso: 11/07/2008.
9
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kaka: por uma literatura
menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003. P. 106.
10
Cf. GOSS, Karine Pereira; PRUDÊNCIO, Kelly. O conceito de movimentos sociais revisitado. Disponível em <https://www.journal.ufsc.br/index.php/emtese/article/viewFile/13624/12489>
Acesso:
19/03/2014.
354
A partir da década de 1970, ganha força no ocidente
uma série de movimentos heterogêneos que resistem não mais
focando o mundo do trabalho11. Deinidos como organizações
civis que apareceram no im do século XX e que buscam diferenciar-se das identidades de classe conforme as praticavam os
movimentos operário-sindicais, os “novos movimentos sociais”
passam a funcionar por meio de outras formas de conexão, envolvendo homossexuais, ambientalistas, negros, feministas, paciistas, veganistas, ateus, imigrantes, indígenas, trabalhadores sem
teto ou sem terra, ativistas antiglobalização, entre outros12. São
resistências que não criticam apenas o acúmulo de riqueza, mas
o excesso de opressão política e preconceito que a concentração
de riqueza implica; são resistências imediatas, pois não visam necessariamente ao inimigo “mor” e a construção de uma utopia
futura, mas enfrentar os pontos locais em que os poderes atuam;
inauguram uma nova relação com a individualidade e a educação, pois enfatizam o valor da diferença e reivindicam o direito à
singularidade. Colocam-se, enim, contra as respostas fundamentalistas, pseudocientíicas ou burocráticas para a pergunta “quem
somos nós?”, ou seja, reivindicam o direito de encontrar mecanismos próprios de identiicação e de construção subjetiva13.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
especialmente na importância que a mesma atribuía à luta de
classes, tratava-se de promover entre os trabalhadores o desenvolvimento de uma consciência própria (materialista), capaz
de confrontar os interesses das classes dominantes e construir
a revolução operária.
11
LAZZARATO, 2006. p. 209; Cf. também HARDT, Michael;
NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005. p. 186-188.
12
Goss, Karine Pereira; Prudencio, Kelly. O conceito de movimentos
sociais revisitado. Revista Eletrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC, Vol. 2, nº 1 (2), janeiro-julho 2004, p. 75-91.
13
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória ilosóica: para
além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. p. 231-251; PELBART, Peter Pál. Oito perguntas sobre resistência e criação. In: ______. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo,
Iluminuras, 2003. p. 132.
355
TRANSPOSIÇÕES
Atualmente, uma terceira tendência parece se delinear
com alguma clareza, movendo-se para além das burocráticas associações sindicais e dos coloridos novos movimentos sociais,
são as lutas ou coletivos autonomistas. Seu funcionamento, ainda incipiente, sugere novas particularidades. Entre elas, pode-se
citar o desgaste em relação às lutas por inclusão, consideradas
importantes, mas insuicientes para a construção de uma sociedade igualitária. Além disso, os novos coletivos apostam cada
vez mais na ação direta como mecanismo de proposição de mudanças. Entre seus métodos estão, por exemplo, os ataques diretos contra instituições que promovem a morte de animais em
risco de extinção, no mesmo sentido, o resgate de animais em
condições de sofrimento, a destruição de símbolos de grandes
marcas empresariais ou apedrejamento de vitrines de bancos enquanto, no campo virtual, promove-se a derrubada ou invasão
de sites ligados ao Estado e ou às grandes corporações. Pode-se
ainda sugerir a inspiração anarquista desses coletivos. A proximidade com o anarquismo parece possibilitar uma dupla recusa
da herança das lutas anteriores. Em primeiro lugar, recusa do
sindicalismo, entendido como fortemente centralizador e autoritário, além de promotor de estratégias de luta apoiadas na igura do Estado e na lógica dos partidos. Em segundo lugar, a recusa
da estratégia paciista e inclusiva dos novos movimentos sociais,
que apostam primeiramente em uma mudança cultural dos preconceitos cotidianos. Em uma reversão tática, os coletivos autonomistas respondem aos sindicatos que, hoje, pouco adianta
reproduzir a lógica representativa, corrupta e burocrática do
Estado em meio aos trabalhadores. Por outro lado, aos novos
movimentos sociais, os autonomistas sugerem que a igualdade
radical e o im dos preconceitos só virão quando aquilo que os
suporta ruir: o capitalismo.
Resistir/educar: movimentos sociais e educação.
Nosso interesse reside principalmente no caráter educativo dos
protestos e movimentos sociais. Em uma breve genealogia da literatura que investiga as contribuições educativas dos movimentos, encontramos alguns elementos semelhantes, aqui enumera-
356
Contribuem para criar o cidadão ativo na sociedade e
não um espectador, que aceita passivamente as submissões que lhe são impostas. Ou seja, fornece os meios
para que os indivíduos enxerguem as possibilidades e os
limites participativos das sociedades em que vivem;
Promovem a organização dos indivíduos com objetivos
comunitários, voltadas para a solução de problemas coletivos;
No que diz respeito à educação popular, os movimentos sociais são entendidos como espaços adequados ao
desenvolvimento de uma educação crítica e emancipatória, uma vez que permitem às classes populares a elaboração de uma concepção de mundo própria, criando
vias de escape em relação àquela educação que se tornou
instrumento das elites para a conquista ou manutenção
de sua hegemonia;
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
dos sem qualquer intenção hierárquica14:
Levam ao aprendizado de que as lutas sociais trazem
mudanças e conquistas políticas, sociais e econômicas,
indicando, por um lado, os momentos do passado em
que os conlitos sociais geraram benefícios e, por outro,
trazendo a percepção imediata dos processos de negociação entre manifestantes e poder constituído, dissipando a imagem do protesto como elemento simplesmente perturbador da ordem social;
14
Para construção dos itens que se seguem foram consultados: DASSIE, Sheila do Nascimento. Educação e movimentos sociais: o educador
como intelectual orgânico. Disponível em: <http://www.nuipeuf.org/
seminario_gramsci_e_os_movimentos_populares/trabalhos/Sheila_do_
Nascimento_Dassie.pdf> Acesso: 18/07/2013; GOHN, Maria da Glória.
Movimentos sociais e educação. São Paulo: Cortez, 1994; FONSECA, João
Pedro da. Educação Comunitária e estrutura de poder no Brasil. In: SILVA, Jair Militão da. (Org.) Educação comunitária: estudos e propostas. São
Paulo: Editora SENAC, 1996; OLIVEIRA, Elizabeth Serra. Movimentos
sociais e educação popular no Brasil urbanoindustrial. Disponível em:
<http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT032268--Int.pdf> Acesso em: 15/07/2013.
357
TRANSPOSIÇÕES
Provocam a percepção da discordância entre os acontecimentos vivenciados e o que é noticiado pelos grandes
meios de comunicação, colocando em questão a neutralidade dos canais informativos.
Ajudam na constituição de identidades coletivas, podendo colaborar para o desenvolvimento do empowerment do grupo, criando capital social.
Contribuem para o aprendizado das diferenças, uma
vez que se aprende a conviver com a diversidade social
e com outras tantas formas de convívio político, afetivo
e social;
A esses pontos acrescentaríamos outro (que é também
a hipótese de nosso texto), ao menos no que diz respeito à tática blackbloc:
Percepção direta da brutalidade dos mecanismos de Estado diante da dissidência social, associada à necessidade da luta pela democracia, relativizando-se os discursos
de plena liberdade que circulam nas sociedades ditas
democráticas.
Essa parece ser uma dos principais aprendizados daqueles que optaram pela tática blackbloc e literalmente lutaram pelo
direito de ocupar as ruas, rejeitando radicalmente a criminalização generalizada das resistências: nossa democracia não só é frequentemente falha, elitista e autoritária, é também frágil, passível de ampliação e, portanto, deve ser objeto de luta continuada.
Resistir/educar: da proteção à destruição e volta.
A história da tática blackbloc já contempla seus dois
grandes vetores: a ação para proteção dos espaços de autonomia
e a destruição de símbolos do capital.
358
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
Boa parte da literatura indica que as primeiras ações
blackblocs ocorreram na Alemanha Ocidental, no início dos
anos 1980, no seio do chamado Movimento Autonomista. O
autonomismo é um movimento originário da Itália, fortemente
inspirado pelo teor revolucionário do marxismo, embora também se caracterize pela recusa das burocracias sindicais e partidárias. Segundo “he blackblocpapers”, obra organizada pelo
Green Mountain AnarchistCollective e escrita por Van Deusen
e Massot, o movimento autonomista, na Alemanha, centrou-se
em dois pilares: primeiro, em acampamentos no interior do país
que visavam impedir a construção de usinas nucleares e, segundo, nas ocupações de imóveis vazios na capital, transformados
em espaços de sociabilidade contrários aos valores das sociedades capitalistas, ou seja, núcleos de subversão das relações afetivas e produtivas conforme as molda o capital15.
No ano de 1980 uma série de ofensivas policiais foi lançada pelo Estado alemão sobre esses locais. A organização da tática nasceu justamente da tentativa de defender tais espaços de
autonomia. No entanto, foi durante a manifestação de Primeiro
de Maio de 1980, em Frankfurt, que um grupo de militantes
autonomistas desilou com o corpo e o rosto cobertos de preto, usando capacetes e outros equipamentos de proteção para se
defender dos ataques da polícia. Por causa do visual do grupo, a
imprensa alemã o batizou de “schwarzerblock” (bloco negro).
Na origem já se percebe, portanto, a primeira grande
característica da tática: a proteção dos espaços de autonomia.
Quer se trate de acampamentos ou imóveis ocupados, quer se
trata do direito de reivindicar melhores condições de vida, a tática aparece como estratégia de defesa daqueles que discordam
do modo de vida dominante e são impedidos de se organizar de
15
VAN DEUSEN, David; MASSOT, Xaviar. he Black Bloc Papers: an anthology of primary texts from the North American Anarchist
Black Bloc.ShawneeMission: Alternative Media Project, 2010. Cf. também
GARCIA, Raphael Tsavkko. Para entender os blackblocs. Disponível em
<http://www.amalgama.blog.br/10/2013/entender-black-blocs/> Acesso:
27/10/2013; Fiuza, Bruno. Black blocs, lições do passado, desaios do futuro.
Disponível em <http://www.viomundo.com.br/politica/black-blocs-a-origem-da-tatica-que-causa-polemica-na-esquerda.html> Acesso: 03/12/2014.
359
TRANSPOSIÇÕES
maneira autônoma. Ou seja, a tática já nasceu como autodefesa
contra os ataques policiais. Se quisermos utilizar a nomenclatura
de HakimBey16, poderíamos deinir blackbloc da seguinte forma: trata-se de uma tática de defesa das zonas autônomas temporárias (as TAZ), sejam elas os acampamentos ou ocupações na
Alemanha, os espaços de reivindicação nas ruas ou as reivindicações dos professores cariocas e capixabas em greve.
Outro elemento importante da história da tática é o
chamado “caminho para Seattle”. Durante os anos 1990, seus
adeptos se organizaram nos Estados Unidos, embora tenham
permanecido desconhecidos do grande público até que alguns
adeptos da tática se organizaram para participar das manifestações contra a OMC (Organização Mundial de Comércio) em
Seattle, em novembro de 1999. Nesse momento apareceu a segunda grande linha de ação blackbloc: a destruição de símbolos
do capitalismo. No contexto de consolidação da globalização, a
tática passou a direcionar-se para a destruição material de símbolos das grandes corporações.
Foram realizados ataques a lojas do McDonald’s ou da
Gap, em busca de um efeito simbólico, a saber: “mostrar que
aqueles ícones não eram tão poderosos e onipresentes assim, de
que por trás da fachada divertida e amigável da publicidade corporativa havia um mundo de exploração e violência materializado naqueles logos”17.Trata-se do momento de uma virada tática:
da estratégia defensiva das zonas autônomas para o ataque simbólico aos ícones do capitalismo globalizado e neoliberal.
No Brasil, parte da literatura indica que os chamados
núcleos brasileiros da Ação Global dos Povos são os pioneiros
do bloco negro brasileiro. O primeiro Dia de Ação Global, que
contou com ações no Brasil, foi 26 de setembro de 2000, dia da
reunião do FMI em Praga. Neste dia, em São Paulo, um grupo
de manifestantes atacou o prédio da Bovespa. Houve ainda um
segundo Dia de Ação Global no dia 20 de abril de 2001 quan16
BEY, Hakim. Taz: zona autônoma temporária. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2011.
17
360
FIUZA, 2014.
Apesar de derivada da Europa e dos Estados Unidos, no
Brasil, a tática blackbloc possui suas especiicidades. Sua expansão está ligada, sem dúvida, a um movimento de reação à violenta atuação da PM brasileira nas Jornadas de Junho de 2013,
quando se expandiu o número de manifestantes, jornalistas e
cidadãos agredidos ou impedidos de se manifestarem pelas forças repressivas do Estado. Ou seja, a crescente violência policial
contra as manifestações provocou o uso mais intenso da ação
direta no Brasil. No entanto, o amadurecimento da tática deu-se
efetivamente diante de uma relação inédita com a educação. Nos
protestos ocorridos durante a greve dos professores no Rio de
Janeiro de 2013 as próprias músicas entoadas por professores e
adeptos da tática blackbloc dão prova de que as ruas tornaram-se
espaços de interação e luta comum pela educação. Enquanto “os
mascarados” cantavam “o professor é meu amigo, mexeu com
ele, mexeu comigo” e agiam na proteção dos educadores contra
a agressão policial, os professores, por sua vez, respondiam: “o
blackbloc é meu aluno, mexeu com ele, mexeu comigo”.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
do foi organizada uma manifestação como parte dos protestos
convocados em todo o mundo contra a Cúpula das Américas,
na qual líderes dos países do continente discutiram a criação da
Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Um grupo entre
os manifestantes adotou a mesma tática do blackbloc de Seattle
e atacou símbolos capitalistas na Avenida Paulista, como, por
exemplo, uma loja do McDonald´s.
Resistir/Educar: o blackbloc e a fragilidade da democracia.
Os discursos dos adeptos da tática blackbloc sugerem
insistentemente ausência ou fragilidade da liberdade no Brasil e,
ao mesmo tempo, defendem a necessidade da luta pela democracia. Ao ilmar declarações para um documentário tomamos contato com uma fala intensa e teatral: após sugerir que a liberdade de manifestação não funciona sem a proteção dos blocs, um
entrevistado chamou um de seus amigos para sentar-se ao seu
lado e propôs uma encenação para demonstrar como entende o
361
TRANSPOSIÇÕES
papel da tática nos protestos. Ele agarrou os braços do colega e
os prendeu, em seguida, se voltou para a câmera e disse:
“Eu sou o Governo”, “ele é a Sociedade”
(apontando para o amigo). Enquanto apertava com mais força os pulsos do companheiro,
ele continuou: “Eu tiro seu direito de ir e vir,
seu direito de moradia, seu direito de expressão. O que que ele vai ter que fazer para poder
conquistar seus objetivos? Pra ir em frente e
conseguir reivindicar seus direitos? Eu to segurando ele. O que que ele vai ter que fazer?”.
O amigo então responde “reação” e começa a
tentar libertar suas mãos e braços. Enquanto
a Sociedade se esforça para se livrar das mãos
governamentais que o seguram, o entrevistado
(o Governo), por outro lado, força o aprisionamento, o imobilismo e repete seguidamente “sem vandalismo, sem vandalismo, sem
vandalismo!”. “É mais ou menos isso daqui. É
uma reação do blackbloc. O blackbloc ta ali
pra linha de frente. A gente não tá ali pra brincadeira, a gente não tá ali pra gritar, gritar a
gente já grita há mais de 500 anos. (...) Então
não adianta, não se vai conseguir mudar uma
sociedade sem tocar nela”.
Semelhante sensação de sufocamento e de necessidade
urgente da luta explodem ainda quando, em uma mesa redonda
na Universidade Federal do Espírito Santo, uma das adeptas da
tática, com 18 anos de idade, se senta em uma mesa redonda ao
lado de dois doutores e anuncia sua indignação e raiva, que merecem ser reproduzidos na íntegra:
O único julgamento que aceito é o meu, pois
sou a única que tem poder sob mim. Não sou
culpada pela quebra de vidraças, pois não há
culpa. Não sou culpada pelas pedras lançadas,
pois não há culpa. Não sou culpada pelas barricadas, pois não há culpa. Poupe-me de suas
acusações, pois não há lei para os senhores que
julgam, então também não há lei para mim.
Eu entendi que tudo isso era uma luta de classes quando, enquanto tiros vinham em minha
direção, as madames da burguesia jogavam
garrafas de água da varanda de seus apartamentos para que eu pudesse matar a minha sede.
362
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
“Valeu madame, mas a minha sede é outra”. Eu
tenho sede de justiça. Justiça para os pobres
que tem suas portas chutadas e suas gargantas
rasgadas todas as madrugadas. Justiça para os
negros que ainda são feitos de escravos pelas
indústrias. Justiça para as vadias e vagabundas
que tiveram e ainda tem seus corpos violados
pelos homens de farda. Justiça para os gays e
travestis que tem seus rostos apedrejados pelo
preconceito em becos escuros. Justiça para os
índios que são expulsos de sua terra pra que
elas possam receber um estacionamento para
a copa. Justiça pela nossa cultura que foi roubada e trocada por uma bandeira verde e amarela. Justiça para todos os meus companheiros
que icaram cegos pelas bombas e balas lançadas pela mão da polícia. Justiça para os que
morreram com seus pulmões sufocados pelo
gás lacrimogêneo na guerra contra o Estado.
Eu entendi que tudo isso era uma luta de classes quando vi a burguesia saindo em defesa de
manequins e vidraças, enquanto tudo que eu
via era o Amarildo ser torturado e morto. Eu
vi o sangue escorrer na Maré. Eu vi mulheres
sendo espancadas por inúmeros homens de
farda. Eu vi pessoas sendo espancadas como se
não passassem de lixo que precisa ser retirado
da rua. Vi amigos terem suas vidas ameaçadas
pelas milícias. Vi um jovem cheio de vida ser
assassinado a sangue frio e vi os homens de farda dizerem que foi por engano. Por que é que
as pessoas só morrem por engano no morro
da penha? Por que é que eu nunca vi ninguém
ser morto por engano na praia do canto? Eu
vi uma arma apontada pra minha cara e ouvi
alguém dizer “vai pra casa, porque a partir de
agora os tiros serão de verdade”. Mas coitada
das vidraças e manequins, elas nada tem a ver
com isso.
Mães tiveram seus ilhos arrancados dos seus
braços e mortos a mando do Estado. Mães tiveram que conviver com a dor de terem seus
ilhos trancaiados em presídios de segurança
máxima. Esposas não puderam ver seus maridos chegarem em casa. Mas pobre coitado dos
policiais que são apenas trabalhadores e pais
de família.
Que se explodam as vidraças e os manequins.
363
TRANSPOSIÇÕES
Que caiam todos os muros até que não exista
mais fronteiras. Ergam as bandeiras negras.
Deem vida para as barricadas. A revolução não
vai chegar através de um pedido de licença.
Peguem as pedras, os paus, as máscaras. Nós
não queremos esconder nossas identidades,
pelo contrário, queremos ser reconhecidos
como realmente somos, a fúria de um povo. E
é por isso que usamos mascaras, pois com ela
podemos ser o que somos. Podem nos perseguir, tentar nos calar. Que venham as bombas
e as balas, enquanto qualquer um de nós puder gritar, a nossa luta vai continuar.
Talvez seja apenas com um gesto de desrespeito e arrogância que nos atrevemos a comentar tais falas. Talvez devêssemos apenas deixá-las pairar, à frente (como uma barricada) e
acima (como uma pedra atirada). Já houve e haverá o momento
para isso. Por hora é com delicadeza e prudência – antes ativistas
que cientíicas – que fazemos notar o sentimento de sufocamento, angústia e imobilidade que tais jovens expressam diante do
Estado brasileiro. No primeiro caso, o imobilismo das mãos atadas torna-se ainda mais forte quando, a qualquer movimento,
não só se é forçado de volta à posição de submissão, como também taxado de “vândalo”. No segundo caso, a mesma sensação
de sufocamento diante do julgamento pelas vidraças quebradas
mesclada ao silêncio sobre as chacinas na periferia, a mesma percepção de que a lei está a serviço dos “senhores” e “senhoras” da
elite brasileira, portanto, contra as minorias exploradas, sofridas
e assassinadas. E, ainda, a mesma convicção da importância da
luta que estilhaça vitrines, derruba fronteiras, levanta bandeiras
negras e protege com paus, pedras e máscaras.
Talvez devamos ir mais longe e indicar que um novo
parâmetro educacional surge e insurge a partir das novas lutas
brasileiras. Se as resistências/educação dos trabalhadores lutam
contra a ilusão da neutralidade e reivindicam a organização sindical e a revolução operária como soluções; se as resistências/
educação proporcionadas pelos novos movimentos sociais combatem a ilusão da igualdade e os preconceitos, propondo a inclusão como solução; os coletivos autonomistas, por sua vez, lutam
contra a ilusão da liberdade, questionam o papel da repressão
364
Resistir/educar: ainal, quem é o professor?
Se tudo isso for verdade, cabe a pergunta: quem são,
ainal, os professores? A tática blackbloc não educa apenas os
seus adeptos. Ao contrário, talvez sejam principalmente esses
meninos e meninas quem nos ensinam. Ensinam que, eles próprios, estão longe de ser uma ameaça porque quebram vitrines,
interrompem o trânsito ou afrontam a polícia. Ensinam que a
atual espetacularização e exploração do “vandalismo” promovido pela grande mídia são recursos desesperados, fabricados
para que não reconheçamos que “os mascarados” nos retiraram
daquela zona de conforto na qual pensávamos que, ao menos
desde o im da Ditadura Militar, viveríamos um período de
plena democracia e liberdade política. Ensinam que essa certeza confortável permitiu que uma geração inteira imaginasse
que podia abandonar a luta e “viver em paz”. Assim, durante
décadas, abandonou-se o engajamento a movimentos sociais
que deveriam, no máximo, incluir ou adaptar as minorias e os
marginalizados aos então inquestionáveis parâmetros do Estado empresarial e à lógica de mercado.
Lugares e Fronteiras em Sexualidade e Educação
policial, enquanto propõem a resistência continuada em nome
da democracia como solução. É possível que as recentes resistências/educação anticapilistas e autonomistas tenham trazido
novos ventos (ou furacões) para os parâmetros educacionais
(não formais e escolares), tornando necessária uma reviravolta
generalizada naquilo que se ensina.
Hoje, essa certeza caiu. Não só os antigos movimentos
mesclam-se às novas táticas de luta na forma, por exemplo, de
lutas lesbo/transfóbicas anticapitalistas e classistas, como os
dispositivos de tendência anarquista demonstraram que as lutas
pelo pleno direito à cidade, contra o autoritarismo e pelo im
da truculência estatal estão apenas começando. Foi a partir do
aparecimento “dos blocs” que o monstro estatal, empresarial e
policial saiu do armário e nos mostrou aquilo que não queríamos ver, aquilo que havíamos trancado com sete chaves: a face
365
TRANSPOSIÇÕES
sombria da democracia brasileira. Aquela sensação anestesiante
de uma vitória deinitiva sobre o autoritarismo ruiu. Trata-se de
um sentimento incômodo, pois precisamos reconhecer que a
luta não acabou, que é preciso ir às ruas e resistir.
Não tocou o sinal, mas a aula, por hora, acabou, anunciou o professor mascarado.
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367
Este impresso foi composto utilizando-se a família tipográica Garamond Premiere
Pro. Sua capa foi impressa em papel Supremo 300g/m² e seu miolo em papel Pólen
Sot areia 80g/m² medindo 14 x 21 cm, com uma tiragem de 300 exemplares.
É permitida a reprodução parcial desta obra, desde que citada
a fonte e que não seja para qualquer im comercial.