Caligrama, Belo Horizonte, v.20, n.1, p. 53-72, 2015
Futuros de Arguedas
Arguedas’s Futures
Marcos Natali
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, São Paulo, Brasil
mpnatali@hotmail.com
Resumo: A partir da relexão sobre a morte de José María Arguedas,
e portanto sobre sua herança e porvir espectral, o artigo interroga
diferentes possibilidades de futuro presentes na igura do escritor peruano,
encontrando-as em alguns lugares improváveis, como as obras de Roberto
Bolaño e Mario Bellatin.
Palavras-chave: José María Arguedas; Roberto Bolaño; Mario Bellatin;
futuro.
Abstract: Beginning with a few relections on the death of José María
Arguedas and, therefore, his inheritance and spectral future, the paper
probes different possibilities contained in the igure of the Peruvian
writer, inding them in some improbable places, such as works by Roberto
Bolaño and Mario Bellatin.
Keywords: José María Arguedas; Roberto Bolaño; Mario Bellatin;
future.
Recebido em 25 de setembro de 2015.
Aprovado em 26 de outubro de 2015.
eISSN: 2238-3824
DOI: 10.17851/2238-3824.20.1.53-72
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O futuro de Arguedas, Arguedas e o futuro, o futuro em Arguedas,
Arguedas como futuro possível, Arguedas ainda por vir.1 Há mais de um
futuro aqui, atravessando este presente, recomendando que mais uma
vez seja utilizado o plural. Nesse esboço de inventário, há em primeiro
lugar o futuro presente na obra de Arguedas, esse conjunto de textos já
dolorosamente cortados pela preocupação com o porvir, essa escrita em
estado de alerta para a qual o futuro fulgura como promessa ou horror,
tanto nas cenas agônicas (em que se vislumbra o futuro do presente do
escritor) quanto nas recordações da infância (onde as lembranças, quando
belas, são temperadas por aquilo que veio depois, pela violência contra o
futuro que a criança havia tido). Nos escritos de Arguedas, nos lamentos
por aquilo que já não está, incluindo esses futuros destruídos, o que se
fez foi gravar no arquivo da literatura latino-americana a história de
uma série de perdas, sem ignorar a possibilidade de que a expansão e o
domínio do arquivo literário já fossem eles mesmos sinais da perda maior.
Seria necessário recuperar ainda o tratamento que o futuro
reservou a Arguedas, nas leituras de sua obra e também naquilo que restou
da literatura no presente, onde podemos procurar rastros inesperados dos
futuros do autor. Mesmo assim, mesmo aí, algo em seu nome parece
permanecer extemporâneo, como se pertencesse a uma época que não
chegou a ter lugar, a um tempo que não chegamos a ver, esse nome que
signiicou uma crise na série que se esboçava na história da literatura
latino-americana do século XX.
E tudo isto, vejam só, agora, quando escrevo, neste momento em
que já estamos próximos do im, já quase no futuro do colóquio sobre
sua ausência, relembrando a última fala do último dia, em conferência
anunciada como de “encerramento”, palavra que utilizamos para casos
como este e que parece condensar tudo aquilo que não quero fazer
hoje, aqui, ao escrever sobre Arguedas. A própria possibilidade do
encerramento – de um evento, mas também de uma obra, uma cultura,
uma história, uma língua, uma vida – ocupa um lugar decisivo na obra de
Arguedas: a possibilidade de uma extinção estar prestes a acontecer, ou
Uma versão deste texto foi lida em junho de 2010 na Universidade Federal de Minas
Gerais como parte do colóquio “A herança de Arguedas aos 40 anos de sua ausência”
e publicada, em tradução ao espanhol, como “Arguedas y el futuro”, no periódico
Alborada Internacional.
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pior ainda, a possibilidade de estarmos já além do im, incapazes sequer
de divisar aquilo que já se perdeu.
No colóquio que marcou os 40 anos da morte de Arguedas
a questão é inevitável em vários sentidos, entre eles o seguinte: este
aniversário poderia ainda não estar acontecendo, é cedo demais para
estarmos registrando 40 anos da ausência de Arguedas. Pode não ser
de bom tom começar justamente por aí, pelo encerramento trágico e
precoce de uma vida, e o problema do tom adequado para uma elegia é
algo a que será necessário voltar (como também à questão de seu tempo:
quando uma fala ou um texto deixa de ser uma elegia? Quanto tempo
depois da morte?). E no entanto, como evitar esse ponto de partida, se
o acontecimento derradeiro nos assombra desde tantos lugares, não só
deinindo a data deste nosso encontro, mas também tocando e afetando
as leituras da obra, toda ela, todos esses textos heterogêneos que a partir
da morte passam a ser lidos como momentos anteriores a ela?2
Mais até do que em outras circunstâncias, aqui não está disponível
a alternativa de decretar a separação entre vida e obra do autor. Em
primeiro lugar, a própria “obra” desautoriza essa cisão, o que signiica
que qualquer exercício que se propusesse a ler a obra em si, apenas a obra,
encontraria nela justamente o seu fora. No caso de El zorro de arriba y
el zorro de abajo, o próprio formato inalmente dado à obra póstuma,
com a reunião em um mesmo volume de um discurso, de trechos de um
diário autobiográico, de diálogos entre seres mitológicos e de relatos
iccionais, impossibilita a separação, por seus leitores, daquilo que o
livro insiste em juntar, de maneira tensa e incerta. Além disto, se há
algo de obsceno em falar do suicídio do autor, de voltar a ele e de nele
se demorar, o próprio texto dos Zorros parece nos impelir a essa tarefa
dolorosa. Longe de um acontecimento que poderia ser facilmente deinido
como “extraliterário”, ou então como incidente pertencente a outro tempo,
posterior ao livro, é o próprio texto que insiste na presença do suicídio,
Ao longo dos 40 anos, passamos a ser assombrados também por tudo aquilo que seria
associado ao espectro de Arguedas, inclusive a seu suicídio – por Mario Vargas Llosa,
por exemplo, para quem a morte do autor fora uma espécie de “chantaje al lector”
(VARGAS LLOSA, 1980, p. 110-111). Ou então que se note a ressonância que adquire
a seguinte frase de Ángel Rama, que não faz referência a Arguedas: “La modernidad
no es renunciable y negarse a ella es suicida” (RAMA, 2004, p. 71). Na continuação
do texto haverá uma ressalva: “lo es también renunciar a sí mismo para aceptarla”.
2
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e desde o início, na verdade desde a primeira linha da primeira página:
“En abril de 1966, hace ya algo más de dos años, intenté suicidarme.”3
No princípio, portanto, aparece, como elemento disparador da narrativa
e do próprio gesto de narrar, uma morte, que quase aconteceu, após uma
tentativa fracassada de suicídio. (Mas o que signiica falar em fracasso
quando é de um suicídio que se trata, como se outro desfecho fosse
diferente do fracasso, como se fosse possível um inal bem-sucedido?)
O suicídio é o passado que aciona a narração, o suicídio é o futuro
que ela prevê, pois logo em seguida outro, ainda por vir, é anunciado.
Enquanto escrevia, o autor não tinha como saber o resultado da próxima
tentativa – “si el balazo se da”, escreverá ele nas últimas páginas,
“y acierta” (ARGUEDAS, 1992, p. 247) –, mas o leitor, sim, esse
conhecimento assimétrico interferindo no sentido daquilo que é narrado.
Assim, se o presente da escrita desconhece o seu desfecho, a experiência
de leitura parte de um saber triste a respeito do futuro dessas palavras
proféticas que abrem o livro: sabemos que houve não um, mas dois
balazos, e que eles “acertaram”. E é isso – essas duas balas que Alberto
Moreiras chamará de marcas diacríticas encerrando o romance – que
assombrará a leitura, afetando o sentido não só das profecias suicidas, mas
também dos trechos em que o autor se mostra esperançoso, vislumbrando
mesmo que fragilmente a possibilidade de uma recuperação através
da escrita. Para Moreiras, o “suicídio suspende todos os sentimentos
de vitória ou de libertação. Assim, suspende qualquer possibilidade
de ‘realização’, a menos que se trate de uma realização de ‘negação’”
(MOREIRAS, 2001, p. 243).
Se não é incomum um romance começar com o anúncio da morte
de um personagem, se não faltam exemplos de romances em que mortos
são inclusive narradores – um deles, Pedro Páramo, muito admirado por
Arguedas – a diferença dos Zorros é que a morte anunciada é a do autor,
de modo que, após esse início, a narração passa a ser, para o leitor, o
relato do percurso do escritor em direção à própria morte, que se dará
em pouco mais de um ano. (Lembremos que tudo aqui está datado,
numa espécie de contagem regressiva: 10 de maio de 1968, 11 de maio,
13 de maio...). A contagem e a escrita se dão entre os dois suicídios, a
morte que encerra o livro espelhando a tentativa relatada nas primeiras
Todas as citações do livro são de José María Arguedas, El zorro de arriba y el zorro de
abajo. Ed. Eve-Marie Fell. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1992.
3
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linhas. Esta, por sua vez, remete a um episódio anterior, de 1944, que
teria levado o escritor a um período de paralisia criativa, e que, segundo
ele, teria origem numa “dolencia psíquica contraída en la infancia”.
Para trás a infância – a questão é sempre a infância –, na outra direção a
morte, no futuro que é vislumbrado: “Y ahora estoy otra vez a las puertas
del suicidio” (ARGUEDAS, 1992, p. 7). Estamos ainda no segundo
parágrafo da primeira página, e este texto já está mais extenso do que
as linhas glosadas – mas como ter pressa, como não querer adiar aquilo
que se anuncia como o im?
A escrita no livro de Arguedas também vai se deter, colocandose à espera, e retomando ainda outra espera, anterior a esta: “En abril
del 66 esperé muchos días que llegara el momento más oportuno para
matarme.” (ARGUEDAS, 1992, p. ??). O dilema será não só o momento
adequado, mas também a questão prática do modo de dar im à própria
vida: “Me resulta inaceptable el doloroso veneno que usan los pobres en
Lima para suicidarse; no me acuerdo del nombre de ese insecticida en
este momento.” (ARGUEDAS, 1992, p. ??). Assimetria e desigualdade
insinuam-se aqui até no acesso a formas de interromper a vida: há um
método para morrer – inaceitável para ele, excessivamente doloroso –
utilizado sobretudo pelos pobres da cidade grande. E mesmo se inalmente
decidisse por ele, há outro obstáculo: o nome, do qual não se lembra. A
quem indagar, diante da dúvida a respeito do nome do veneno? E a quem
recorrer na busca de uma pistola (“El revólver es seguro y rápido, pero
no es fácil conseguirlo”)? Além disso, “Soy cobarde para el dolor físico
y seguramente para sentir la muerte. Las píldoras – que me dijeron que
mataban con toda seguridad – producen una muerte macanuda, cuando
matan.” (ARGUEDAS, 1992, p. ??). Na indeinição do sujeito resta a
questão da origem que pode ter tido uma informação como essa. Quem
teria sido capaz de dar essa garantia, e com que inalidade? Com quem
essa experiência poderá ter sido compartilhada?
Lembremos que esse texto que se dedica a sopesar diferentes
formas de encerrar a vida é escrito – é o que se lê logo na página seguinte –
“porque se me ha dicho hasta la saciedad que si logro escribir recuperaré
la sanidad” (ARGUEDAS, 1992, p. 8). As páginas que leremos serão,
deste modo, desse início até o seu im, e exatamente no movimento
entre o início e a possibilidade do im, a veriicação da validade dessa
promessa: a de que a escrita seria capaz de devolver a “sanidade” ao
escritor, afastando dele o desejo de morte. É o que “se me ha dicho”, e
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mais, “hasta la saciedad”, de modo que o que parece faltar é conseguir
escrever, a continuidade da vida dependendo da continuação da escrita.
O texto que começa a preencher as páginas vai empurrando a morte ao
futuro, aquelas marcas diacríticas inais sendo ao mesmo tempo o que
é adiado e o ponto de chegada que se aproxima. E no entanto a escrita,
para ser “bem-sucedida”, parece precisar alimentar-se justamente da
ideia da própria morte do escritor:
…como no he podido escribir sobre los temas elegidos,
elaborados, pequeños o muy ambiciosos, voy a escribir
sobre el único que me atrae: esto de cómo no pude
matarme y cómo ahora me devano los sesos buscando
una forma de liquidarme con decencia, molestando lo
menos posible a quienes lamentarán mi desaparición.
(ARGUEDAS, 1992, p. 8)
O quadro paradoxal criado é a airmação terapêutica da ligação entre
escrita e vida, e inclusive a promessa da interdependência entre as duas,
e a deinição da morte como tema e im da escrita. Esta se dedicará
então à composição de um inventário do desejo de morte, desde quando,
ainda criança, o autor “quiso morir en un maizal del otro lado del río
Huallpamayo”, após mais uma humilhação sofrida. “Pero, también allí,
en el maizal, sólo me quedé dormido hasta la noche. No me quiso la
muerte, como” – e passamos a outra experiência de proximidade com
a morte –
no me aceptó en la oficina de la Dirección del Museo
Nacional de Historia, de Lima. Y desperté en el Hospital
del Empleado. Y vi una luz melosa, luego el rostro muy
borroso de gentes. (Una boticaria no me quiso vender tres
píldoras de seconal; dijo que con tres podría quedarme
dormido para no despertar; y yo me tomé treinta y siete.
Fueron tan eficaces como la imploración que le dirigí
a la Virgen, llorando, en el maizal de Huallpamayo.)
(ARGUEDAS, 1992, p. 11)
De novo a importância do número: ao invés de três, tomou 37 pílulas (ica
o registro do encontro com a farmacêutica, alguém com quem algum tipo
de diálogo parece ter ocorrido, alguma espécie de compartilhamento da
solitária agonia, podemos imaginar que através de meias palavras, com
olhares que não querem dizer demais, gestos delicados). Contaram-se
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as pílulas, acumulam-se as páginas: “Ayer escribí cuatro páginas. Lo
hago por terapéutica” (ARGUEDAS, 1992, p. 10). Qual é o número de
páginas necessário – para a cura, para a morte?
2
Na parte iccional dos Zorros há outra referência ao poder
terapêutico da externalização da interioridade e do abjeto. Nesse caso,
o exercício é estimulado não pelas instruções de um psicoterapeuta,
mas por um xamã, que convence Don Esteban de la Cruz, sobrevivente
da mina de Cocalón, de que conseguirá se curar quando terminar de
expulsar os restos de carvão que traz dentro de si. Também aí haverá
uma quantiicação: cinco onças de pó de carvão é o que precisa ser
expelido para se salvar. Don Esteban, oscilando entre a obediência e o
ceticismo, tosse sobre folhas de jornal, em seguida pesando o catarro
enegrecido (ARGUEDAS, 1992, p. 131-136 e 155). A garantia, fornecida
pelo primo que descrevera o procedimento, era a experiência anterior de
outro mineiro, que após cuspir sete onças de carvão vivia normalmente:
Tú, chiquito eres. Yo voy a decir: botarás cinco onzas y
¡yastá, hermano! ¡Libre quedas! Pagas precio tu vida
qui´has dado al capitán polaco mina Cocalón. ¡Libre
Cocalón también quedará! El aukillu sabe. (ARGUEDAS,
1992, p. 159)
Sete onças, talvez cinco, quando o peso do indivíduo for menor. Quando
a conta é feita, já passamos por mais de uma centena e meia de páginas
escritas. A conta é incerta, tanto num caso quanto no outro, mas a
acumulação necessária para a cura parece não se dar em qualquer um
dos casos, tendo o mesmo im personagem e autor. Na verdade, à morte
de don Esteban haverá uma referência no último diário (ARGUEDAS,
1992, p. 243) – aí já serão mais de 200 páginas –, mas no relato iccional
ela não chega a ser narrada, e isto justamente por causa do fracasso da
grafoterapia colocada em prática pelo autor. O desfecho do tratamento
do escritor impede que seja narrado até o im o fracasso do tratamento do
personagem. Jesusa, esposa de don Esteban, recomenda outra forma de
externalização em busca de salvação: a conissão dos pecados, proposta
repudiada por Moncada: “Al contrario, comadrita (...). La confesión
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apura la muerte cuando hay enfermedad grave; engorda la salú cuando
hay salú” (ARGUEDAS, 1992, p. 151-152).
O confessionário, o consultório médico, a clínica psicológica: há
aí uma genealogia possível da ideia da externalização do abjeto (ao lado
de outra, talvez paralela e heterogênea, com a referência ao xamã).4 É
uma esperança cuja precariedade busca apoio na aparente precisão do
número – sete onças no máximo, talvez cinco. Enquanto isso, Arguedas
continua escrevendo: “Porque yo si no escribo y publico, me pego un
tiro” (ARGUEDAS, 1992, p. 14). O leitor sabe como esse duelo termina,
o que não impede que a leitura de Arguedas busque brechas possíveis,
futuros alternativos embutidos no passado.
É um exercício dessa ordem o que parece ocupar Shiki Nagaoka:
Una nariz de icción, romance de Mario Bellatin composto pela biograia
iccional de um escritor e fotógrafo japonês. No relato, futuro imaginado
é que tanto Arguedas quanto Juan Rulfo, outro escritor que teria em
determinado momento optado pelo silêncio, teriam vislumbrado na
obra fotográica de Nagaoka a forma de uma sobrevivência possível,
possibilidade relacionada à noção de um além da literatura:
Estos tres escritores, Juan Rulfo, José María Arguedas
y Nagaoka Shiki, estuvieron de acuerdo, cada uno por
su lado, en que la fotografía narrativa intenta realmente
establecer un nuevo tipo de medio alterno a la palabra
escrita y que quizá aquella sea la forma en que sean
concebidos los libros en el futuro. (BELLATIN, 2001,
p.31-32)
Uma forma para o futuro, uma forma vinda do futuro, uma forma que
poderia permitir a existência de outro futuro – e no entanto é uma obra
que não é acessível:
Esta obra no pudo ser apreciada ni por Juan Rulfo ni
por José María Arguedas. Leerla, aunque esto sea pura
suposición, pues no se conoce aún el contenido real
del libro, quizá hubiera evitado la muerte de estos dos
escritores en la forma como ocurrió: uno en medio de
la depresión motivada por no poder crear una obra de
carácter totalizante, y el otro cometiendo suicidio por estar
4
Desenvolvo algumas dessas questões em NATALI, 2008.
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incapacitado para colocar en palabras la angustia que
lo atenazaba no únicamente a él sino a su nación entera.
(BELLATIN, 2001, p. 39)
Pouco se sabe dessa obra, apresentada como esperança de sobrevivência
de toda uma comunidade, a não ser que foi redigida numa língua
desconhecida, um idioma inventado por Nagaoka (ARGUEDAS, 1992,
p. 33).
Se em Shiki Nagaoka a língua é inacessível e inexistente, em
Lecciones para una liebre muerta (BELLATIN, 2005) a questão será
mais uma vez a língua em que se coloca a questão da língua. Fragmentos
breves vão bosquejando linhas narrativas incertamente relacionadas,
uma delas composta pelas lembranças que um dos narradores tem de
seus encontros com o avô: “Mi abuelo me sujetaba con fuerza la mano.
Nunca más volví a verlo. Seguramente murió al poco tiempo. Pero yo
en ese entonces no me enteré de nada.” (BELLATIN, 2005, p. 13). A
morte do avô só seria chorada muito mais tarde, o escritor, já adulto,
percebendo que essa ausência, que já se tornara um costume, signiicara
o im de uma língua e de uma forma de narrar:
Empecé a recordar las historias que contaba. (…) Junto
a la imagen del abuelo y el relato de macaca aparecieron
también una serie de palabras dichas en otro idioma, el
quechua, lengua de mis antepasados. (BELLATIN, 2005,
p. 13)
“Nunca he comentado el trance de percepción tan particular que me
produjo escuchar a mi abuelo hablar en quechua” (BELLATIN, 2005,
p. 16) – mas até para o avô, airma o narrador, o quéchua já remetia à
alegría e ao transe da infância: “Mi abuelo solía decir – y yo le creía –
que las palabras en quechua lo transportaban a dulces sensaciones de
la infancia” (BELLATIN, 2005, p. 22). É esse avô do narrador que será
aproximado da igura de Arguedas:
Me gustaría saber con qué palabras fue hecha la petición
que, tirado en un extenso campo de maíz después de que
sus compañeros de escuela se burlaron de sus expresiones
en quechua, le hizo mi abuelo a su dios para que le
concediera la muerte. (BELLATIN, 2005, p. 66)
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No episódio que Bellatin recria, a partir do relato presente nos diários dos
Zorros, o incidente está relacionado duplamente à língua: o sofrimento é
o resultado do escarnecimento do quéchua e essa dor leva a uma súplica,
na qual está em questão a língua (além do destinatário, indeterminado,
deus de outro). Quais palavras, e de que língua, pergunta o narrador,
foram utilizadas para rogar pela morte? O temor, insinuado apenas, é de
que até na súplica o quéchua podia já estar perdido.
3
O nome de Arguedas, quando aparece no romance de Bellatin,
é já uma remissão ao passado, com a frase atribuída ao escritor uma
mensagem a um antepassado: “Abuelo mío, estoy en el mundo de arriba”
(BELLATIN, 2005, p. 33). Quando o narrador, por sua vez, se apresenta
também como neto, mas de Arguedas, o que surge é a esperança de que
tenham sobrevivido rastros desses sujeitos no presente. Encontrar o nome
de Arguedas em meio a um romance de Bellatin, assim como inseri-lo no
título de um texto como este, mesmo quando associado ao futuro, é ao
mesmo tempo dar testemunho de sua ausência, ausência do corpo no do
corpus. O nome é separável do corpo (é a lição que Derrida lê em Sarah
Kofman), como se a possibilidade dessa operação fosse justamente o que
é próprio da morte. É como se, escreveu Derrida (2001, p. 176-179), em
todo lugar em que o nome é separado do corpo, isso que acontece o tempo
todo, sempre que falamos e escrevemos sobre outro, fôssemos testemunhas
de uma morte, ao mesmo tempo em que buscamos protestar contra ela.
Além de personagem de Bellatin, Arguedas aqui aparece como
título de um colóquio, título de uma conferência, “tema” de nossas
elucubrações, pretexto para este texto. O que é transformado, no entanto,
com a sua morte, é a possibilidade de ele ser o destinatário desses textos.
Parece encerrar-se a possibilidade de nos dirigirmos a ele, cabendonos apenas falar “em seu nome”, sem que ele possa nos responder ou
contradizer, sem que dele possa vir uma resposta inesperada. Estamos,
assim, no terreno da elegia, do lamento, do tributo, com todos os riscos
especíicos que o gênero traz, entre eles a suposição de que sabemos o
que o ausente tinha a nos dizer, isto é, a suposição de que sabemos o que
perdemos.
No entanto, se insistimos na impossibilidade de falar hoje a
Arguedas, ao mesmo tempo em que buscamos de certo modo partir de sua
obra, surge uma diiculdade especial. Na obra, ainal, o que encontramos
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é o endereçamento a mortos – Guimarães Rosa, por exemplo, falecido
no ano anterior à redação deste trecho do diário:
¿Por qué me dirijo a ti? ¿Será porque has muerto y a mí
la muerte me amasa desde que era niño, desde esa tarde
solemne en que me dirigí al riachuelo de Huallpamayo,
rogando al santo patrón del pueblo y a la Virgen que me
hicieran morir, y lo único que conseguí fue que la luz del
sol me entrara por la cabeza y me empapara la carne, la
hiciera arder en ansias todopoderosas e inalcanzables
como esas barbas de los árboles que, con el viento fuerte
se sacuden causando espanto entre los animales? Hoy ya
es 18, João… (ARGUEDAS, 1992, p. 21)
O que se tem a dizer a Guimarães Rosa, registre-se, é justamente o relato
de uma experiência de endereçamento em que os destinatários não eram
humanos (como no trecho do avô do romance de Bellatin). Não seria
então uma forma de idelidade para Arguedas tentar imaginar formas de
destinação e interlocução ainda possíveis, apesar de tudo?
O cuidado com o ato de rememoração, como este no qual me
detenho aqui, é também homenagem a um gesto comum a Arguedas.
O falar a partir da perda, como aqui se está a fazer, é também um
exercício de aproximação a um procedimento comum a diversos textos
de Arguedas, onde a atenção às diversas formas da morte, ou ao momento
do falecimento, ou àquilo que vem após a morte, inclusive os rituais
fúnebres (o próprio entre eles) é recorrente, como se os romances Los
ríos profundos e Todas las sangres, o livro El zorro de arriba y el zorro
de abajo, os contos e textos etnográicos, os versos e canções fossem
um longo inventário das formas do morrer.
O deslizamento que faz o corpus tomar o lugar do corpo também
precisaria ser motivo de relexão aqui, sobretudo porque o que tantas
vezes encontramos, nos textos em questão, é a insistência na insuiciência
dos livros, a airmação pelo autor de que havia lido pouco e que, desse
pouco, pouco havia aprendido. O ceticismo diante dos livros e a recusa
a conceder primazia ao literário é uma peculiaridade de Arguedas em
meio à sua geração, e é possivelmente o que esteve em jogo na altercação
com Cortázar, que por parte de Arguedas termina com uma resposta
formulada, não na literatura, mas numa canção. Desde esse abalo a
história da preferência pelo livro, da fascinação pelo livro, do livro como
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política pública e metonímia mesma da política, também precisaria ser
contada novamente, em tensão com as versões triunfalistas de algumas
histórias literárias do continente. Se a história da expansão do livro na
América Latina fosse contada a partir desta ótica, chamaria a atenção
como há, em Arguedas, contrapontos ao livro.
4
Em nome de quê, em nome de quem, são formuladas essas perguntas?
Em que língua? Se sabemos que o pensamento não é indiferente à língua,
o que dizer sobre a língua que expõe estas relexões? E a que língua, a
que tradição, pertence o nome José María Arguedas? A uma, a mais de
uma? É possível dizer um nome em mais de uma língua?
Se nomes próprios não são traduzíveis da mesma maneira que
outras palavras, caroços que resistem à passagem de uma língua particular
a outra, mesmo assim algo é transformado – um pouco mais, um pouco
menos – quando um nome é dito numa nova língua. O que acontece
quando se fala de Arguedas nesta língua que estou falando, e o que
signiicaria, neste caso, falar desde o Brasil? Aparentemente, na passagem
do espanhol ao português é mínima a modiicação: de “José María
Arguedas” a “José María Arguedas”. Se na primeira palavra a mudança
é clara, na segunda ela quase não se ouve, embora não seja incomum,
em textos críticos brasileiros sobre o autor, a mudança de “María” a
“Maria” – alteração que, se é imperceptível para quem agora me ouve,
signiicou na folha que tenho diante de mim o desaparecimento de um
acento. (A supressão do acento é menos grave que aquilo que ocorre em
Narradores de esta América, livro de Emir Rodríguez Monegal em que
Arguedas se torna “José Miguel”, como comenta Cornejo Polar en Los
universos narrativos de José María Arguedas.)
O deslocamento necessário para uma leitura dos livros do autor
em português não é menor, a diiculdade primeira sendo o fato de que
não há nos livros apenas uma língua a ser traduzida. Assim, se é urgente
que seja traduzido El zorro de arriba y el zorro de abajo, uma urgência
que já dura mais de 40 anos,5 a tradução é também tarefa impossível,
Mas que logo terminará! Soubemos que esta carência inalmente será corrigida, com
a publicação da tradução de El zorro de arriba y el zorro de abajo por Rômulo Monte
Alto, um acontecimento a ser celebrado.
5
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pois a questão central do livro, inclusive formalmente, é justamente a
possibilidade da resistência à tradução e a elaboração de uma escrita
que seja já sinal do fracasso de qualquer empreitada tradutória. Como
traduzir um texto que existe simultaneamente em mais de uma língua?
Como impedir que as camadas linguísticas em batalha sejam assimiladas
por um terceiro elemento, numa síntese acima das línguas particulares?
O risco maior, nesse caso, é convencer-se de que a literatura forneceria
uma neutralidade discursiva capaz de assimilar qualquer realidade
cultural (LEGRÁS, 2008, p. 1). É na atenção ao custo dessa captura
que está a sensibilidade singular de Arguedas. Depois dele, num futuro
do qual Arguedas ainda seria parte, a pergunta já não seria então “como
é a literatura andina (ou quéchua, ou indígena)?”, mas, adaptando a
formulação de Eduardo Viveiros de Castro, “como é a perspectiva
andina, quéchua ou indígena sobre a literatura?” Aqui seria possível reler
criticamente tanto Rama e sua airmação do caráter suicida da renúncia à
modernidade, quanto as dúvidas do próprio Arguedas sobre a viabilidade
da continuação de seu projeto de escrita:
Sospecho que para seguir con el hilo de los Zorros algo
más he debido aprender de los cortázares, pero eso no
sólo signiica haber aprendido la técnica que dominan
sino el haber vivido un poco como ellos. (ARGUEDAS,
1992, p.178)
5
Roberto Bolaño escreveu sobre Macedonio Fernández, Rubén
Darío, Salvador Elizondo, Juan Rulfo, Juan José Arreola, Amado
Nervo, María Luisa Bombal, Osvaldo Lamborghini e Rodolfo Wilcock.
Escreveu sobre Mario Benedetti, José Donoso, Gabriela Mistral, Gabriel
García Márquez, Ernesto Sábato, Ernesto Cardenal, Roque Dalton, Pablo
Neruda, Sergio Pitol e Antonio Skármeta. Bolaño escreveu sobre Ricardo
Piglia, César Aira, Mario Bellatin, Diamela Eltit. Juan Villoro, Jorge
Volpi e Rodrigo Fresán. Em suas narrativas aparecem como personagens
Carlos Fuentes, Julio Cortázar, Octavio Paz, César Vallejo e Enrique Lihn.
Bolaño escreveu sobre Isabel Allende, Jaime Bayly e Paulo Coelho – e
não escreveu sobre Arguedas.
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Pensar sobre esta ausência passaria por uma consideração da
peculiar geograia literária latino-americana traçada por Bolaño, território
no qual algo que poderia ser chamado de “questão indígena” não chega
a ganhar força. É daí que vem o interesse de ler em conjunto Arguedas
e Bolaño, ler um sob a luz emitida pelo outro, essas duas obras que
têm a relação entre a escrita e a morte como preocupação constante.6
Como o peruano, Bolaño será acusado de imaturidade, de histrionismo,
de melodramático, denúncias que parecem partir da percepção de um
excesso relacionado ao ato de levar a sério demais aquilo que se faz,
inclusive – e talvez sobretudo – o que está em jogo nas disputas em torno
à literatura. Nos dois casos os excessos estariam também da disposição
para a crítica ao campo e a seus atores, chamados muitas vezes por nome
e sobrenome, numa espécie de micro-história do ambiente literário latinoamericano, uma história da vida cotidiana dentro da instituição literatura,
com seus eventos, suas viagens e hotéis, seus jantares e recepções, suas
conferências e mesas redondas.
É digno de nota, diante das incriminações que relacionam as
posturas autorais à infantilidade – ou à adolescência tardia, no caso
de Bolaño –, que nas duas obras tem importância a violência contra a
criança. Um exemplo, extraído do texto da conferência inacabada que
Bolaño preparava para ler num encontro de escritores latino-americanos
em 2003: em meio a diversas referências à infância, Bolaño aborda a
questão da novidade da literatura latino-americana contemporânea por
um ângulo oblíquo, observando que jovens escritores teriam hoje origem
na classe média ou no proletariado, e não mais na classe alta. Por isso,
“saben, pues lo vivieron de niños en sus casas, lo duro que es trabajar
ocho horas diarias, o nueve o diez, que fueron las horas laborales
de sus padres”. (Insistindo na pergunta sobre a origem – “¿De dónde
viene la nueva literatura latinoamericana?” –, responde: “del miedo”.)
(BOLAÑO, 2007, p. 176).
De repente, coloca-se no lugar do veterano, invejoso dos
aspirantes a escritor: “En realidad, me muero de envidia cuando os veo.
No sólo a vosotros sino a todos los jóvenes escritores latinoamericanos.
Um texto que sugere a aproximação entre os dois escritores é “Monsieur Pain, de
Roberto Bolaño: a dor da história”, de Graciela Ravetti (em Aletria [UFMG], p. 283-295),
onde se lê o romance de Bolaño a partir da tradição da narração como modo de evitar
ou adiar a morte.
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Tenéis futuro, os lo puedo asegurar.” (BOLAÑO, 2007, p. 177). A
insinuação da inexistência de um futuro para si – este texto, efetivamente,
nem chegará a ser lido, e Bolaño morrerá naquele mesmo ano –, aspecto
que teria levado à inveja, adquire rapidamente outro tom:
Era broma. Ese futuro es tan gris como la dictadura
castrista, como la dictadura de Stroessner, como la
dictadura de Pinochet, como los innumerables gobiernos
corruptos que se han sucedido uno detrás de otro en
nuestra tierra. (BOLAÑO, 2007, p. 177)
Então, após elencar os nomes de alguns jovens escritores hispanoamericanos, dirá que
el panorama, sobre todo si uno lo ve desde un puente, es
prometedor. El río es ancho y caudaloso y por sus aguas
asoman las cabezas de por lo menos veinticinco escritores
menores de cincuenta, menores de cuarenta, menores
de treinta. ¿Cuántos se ahogarán? Yo creo que todos.
(BOLAÑO, 2007, p. 178)
É a imagem inal, no entanto, o que interessa aqui:
El tesoro que nos dejaron nuestros padres o aquellos
que creímos nuestros padres putativos es lamentable. En
realidad somos como niños atrapados en la mansión de
un pedóilo. Alguno de ustedes dirá que es mejor estar
a merced de un pedóilo que a merced de un asesino. Sí,
es mejor. Pero nuestros pedóilos son también asesinos.
(BOLAÑO, 2007, p. 179)
Não é fácil entender o sentido que essas linhas podem ter ou avaliar a
justiça da acusação. Mas se é da tradição literária latino-americana que
se está tratando aqui, num trecho intitulado “La herencia”, poderíamos
pensar na presença rotineira, em romances latino-americanos de gerações
anteriores à de Bolaño (mas não só nelas), de relações sexuais violentas
entre velhos e mulheres bem mais novas, às vezes meninas. Para evitar
uma lista exaustiva, pensemos apenas nas cenas ao longo da obra de
García Márquez (El otoño del patriarca, por exemplo) em que, após
uma violação, uma jovem se enamora de seu violador. É essa a herança
recebida por quem escreve na América Latina hoje, parece sugerir Bolaño,
e é com ela que é preciso se haver.
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“No era Rimbaud, sólo era un niño indio”, começa o conto
“Dentista”, publicado na coletânea Putas asesinas de Bolaño. Tanta
coisa já nessa primeira frase: ecos de toda uma geopolítica da literatura,
referências à existência de um modelo até para a precocidade e a irrupção
da novidade, noções de repetição e atraso. A herança inevitável que a
literatura do presente carrega é também esta, na qual escrever é repetir
uma história que já teria ocorrido em outro lugar.
O menino não é Rimbaud, o país não é a França, e o conto segue,
narrando a morte na cidade mexicana de Irapuato, no consultório de
um dentista amigo do narrador, de uma “índia velha”, após operação
malsucedida para tratar um câncer na gengiva. O que dispara a história
é portanto uma morte acidental, possivelmente resultado de um erro
médico. Mais tarde, no mesmo dia, os dois amigos rememorarão juntos,
num bar do subúrbio de Irapuato, uma outra sequência de erros, seu
crescimento narrado como decadência: “el lento naufragio de nuestras
vidas, el lento naufragio de la estética, de la ética, de México y de nuestros
chingados sueños. (...) Después crecimos y nuestras aventuras juveniles
nos parecieron más bien detestables” (BOLAÑO, 2006, p. 187). Como
em outros conto de Bolaño, e à diferença de Arguedas, é a adolescência,
não a primeira infância, o que se recorda com certo afeto, a convivência
comum de aspirantes a artista, com o futuro que uma vez compartilharam,
embora em retrospecto até o valor dessa história seja colocado em dúvida.7
À noite num bar, no dia da morte da anciã, senta-se com os dois
amigos o adolescente José Ramírez, camponês que parece “luctuar entre
la adolescencia y una niñez de espanto” (BOLAÑO, 2006, p. 180) (a
mutação que espreita aqui não é em direção à maturidade, portanto, mas à
infância). É à narração elíptica do menino que o relato passará a se referir,
história que inclui a participação numa oicina de poesia – gratuita, como
o atendimento insuiciente à doente de câncer na cooperativa médica.
Ao ser identiicado repetidamente como um “menino índio”, Ramírez
é inserido nessa outra genealogia, não aquela a que pertence Rimbaud,
mas a de vítimas da indiferença do Estado, estabelecendo uma relação
entre as iguras do menino índio e da índia velha, o jovem talentoso e
7
A nostalgia de Arguedas será também por uma espécie de comunidade, embora
o pertencimento do autor a ela, mesmo quando criança, seja constantemente
representado como frágil, além de ser também o resultado de violência familiar.
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promissor e a anciã, morta por falta de atendimento médico satisfatório,
para quem já não há futuro. Embora sua morte pareça passar a segundo
plano, o conto operará na manutenção da tensão implícita entre esses
dois polos, além da oposição entre o menino e Rimbaud, isto é, entre o
índio e a literatura. O relato permanecerá sempre próximo da admiração
condescendente na constatação de que é um “índio” que escreve bem, e o
desejo de escrever que veem em Ramírez, aspiração que não é incomum
nos contos e romances de Bolaño, neste caso é acrescida a diferença que
resultaria da justaposição de sua história e seus anseios.
Y luego mi amigo afirmó que pocos escribían como
escribía el joven que estaba a nuestro lado. Verdad de
Dios: muy pocos. Y a partir de ese momento se embarcó
en una exegesis de Ramírez que me dejó helado. Superior
a todos, dijo. Los narradores mexicanos parecían niños de
pecho comparados con este adolescente más bien gordo e
inexpresivo y con las manos endurecidas por el trabajo en
el campo. (BOLAÑO, 2006, p. 190-191)
O sinal se inverteu: agora são os escritores “mexicanos”, categoria que
não parece dar conta de Ramírez, que em comparação perdem vitalidade.
Nem resta para eles o projeto de captura da diferença cultural, a mão que
escreve sendo aqui a mesma calejada pelo trabalho no campo.
Da cidade do México a Irapuato, do centro dessa cidade a seu
subúrbio, das cantinas da periferia, com seus operários e mendigos, a uma
casa no campo: boa parte da história da literatura latino-americana poderia
ser narrada a partir de variações nesse mesmo movimento estrutural (entre
centro e margem), com alterações no ponto de vista representado e no
sentido do deslocamento. É uma nova versão dessa história o que será
contado aqui, quando saem os dois amigos, acompanhados de Ramírez,
em direção ao campo, onde ele vive, em busca de cópias de seus contos.
Na narração do percurso aparecerá ainda uma citação do México de Juan
Rulfo, e é mesmo uma relexão sobre a tradição do olhar que é lançado
sobre essa paisagem o que se acompanha. E como em “Sevilla me mata”,
há insinuações de desconforto e inveja provocados pelo porvir que o
outro ainda teria.
Chegando à casa precária do adolescente,
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los tres nos quedamos quietos, yo diría que hechizados,
contemplando la luna o mirando compungidos la exigua
vivienda del adolescente o tratando de descifrar los
objetos que se amontonaban en el patio: sólo distinguí con
certeza un huacal. (BOLAÑO, 2006, p. 193)
No maravilhamento do narrador e do amigo, cujos olhos brilham
de excitação, entre o feitiço e a vontade de desvendamento, está a
perspectiva de muita literatura super-regionalista, todo um modelo
cultural e literário, político e pedagógico baseado na possibilidade da
captura e na desejabilidade da inclusão subordinada, em que o discurso e
a instituição da literatura apareciam como receptáculos capazes de ininita
assimilação, a fantasia do estado nacional-popular.8 No entanto, o que o
narrador irá enxergar não é material fresco para a iccionalização, mas
um dilema ético: “En aquel instante me pareció indigno lo que estábamos
haciendo: un pasatiempo nocturno sin otra inalidad que la contemplación
de la desgracia. La ajena y la propia…” (BOLAÑO, 2006, p. 193). A
peculiaridade daquilo que encontram, o motivo do espanto e do embaraço
dos dois amigos, é que o rapaz escreve, e bem, o ventriloquismo do projeto
cultural latino-americanista perdendo sua razão de ser – o im do projeto
transculturador, o encerramento do plano político-cultural de integração
da diferença, o esgotamento do escritor urbano e de classe média como
mediador e tradutor necessário da cultura periférica.
E à escrita de Ramírez o leitor não terá acesso, conhecendo-a
apenas através de uma paráfrase parca e confusa:
...y luego mi amigo empezó a contarme un cuento de
Ramírez, un cuento sobre un niño que tenía muchos
hermanos pequeños que cuidar, ésa era la historia, al
menos al principio, aunque luego el argumento daba un
giro y se pulverizaba a sí mismo, el cuento se convertía en
una historia sobre el fantasma de un pedagogo encerrado
en una botella, y también en una historia sobre la libertad
individual, y aparecían otros personajes, dos merolicos
más bien canallas, una veinteañera drogadicta, un coche
inútil abandonado en la carretera que servía de casa a un
tipo que leía un libro de Sade. Y todo en un cuento, dijo mi
amigo. (BOLAÑO, 2006, p. 191)
Cf. AVELAR. Alegorias da derrota: a icção pós-ditatorial e o trabalho do luto na
América Latina.
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Revela-se a insuficiência do relato que lemos, ou ao menos a
impossibilidade da unicidade e da univocidade: a narração, que por sua
vez resume uma paráfrase feita pelo dentista, é assombrada por outra, à
qual não teremos acesso.
“Lean lo que quieran”, sussurra o menino (BOLAÑO, 2006, p. 193),
mas mesmo com a leitura mantém-se a incapacidade de reproduzir ou
decifrar o texto ou até de narrar a leitura. Leem, no entanto (“El cuento
tenía cuatro páginas, tal vez lo escogí por eso, por su brevedad, pero
cuando lo acabé tenía la impresión de haber leído una novela.”), e são
interrompidos pela aparição do pai de Ramírez, que passa pelos três ao
sair da casa, de onde se escuta o som de alguém urinando ao ar livre. A
resposta à leitura virá num sonho:
Y yo soñé con la casa del joven Ramírez. La vi erguirse en
medio del erial y del basurero y del páramo mexicano, tal
cual era, desposeída de todo ornato. Tal como la había
entrevisto durante esa noche decididamente literaria. Y
comprendí durante un segundo escaso el misterio del arte,
su naturaleza secreta. Pero luego apareció en el mismo
sueño el cadáver de la vieja india muerta de un cáncer en
la encía y olvidé todo. Creo que la estaban velando en la
casa de Ramírez. (BOLAÑO, 2006, p. 195)
Volta, após a menção a um suposto segredo da arte, a morte da índia, e
no sonho seu velório – o lugar onde o luto e os cuidados com seu corpo
terão lugar – parece ocorrer na mesma casa em que foram testemunhas
deslumbradas da obra de Ramírez. É como se a realização do projeto
modernizador fosse isso: a extraordinária criação do adolescente
periférico convivendo com a falta de saneamento básico e de atendimento
de saúde adequado. Ou seja, mortes facilmente evitáveis continuam a
ocorrer, a desigualdade no acesso a direitos continua vigente, e o espaço
da leitura da literatura latino-americana passa a ser também o do velório,
do luto. O retorno da anciã morta, no lugar mesmo da criação do jovem,
suspende o sentimento celebratório diante da produção artística.
Ao inal da história, um dia após o episódio na casa de Ramírez,
o narrador volta a sonhar, dormindo em meio a um ilme: “Soñé que nos
suicidábamos o que obligábamos a otros a suicidarse.” (BOLAÑO, 2006,
p. 196). Deixemos essa estranha formulação, e a tensão entre as duas
possibilidades expostas nela, como desfecho deste texto, com todos os
ecos que repercutem nela.
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Referências
AVELAR, Idelber. Alegorias da derrota: a ficção pós-ditatorial e o
trabalho do luto na América Latina. Trad. S. Gouveia. Belo Horizonte:
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BELLATIN, Mario. Shiki Nagaoka: una nariz de icción. Buenos Aires:
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BELLATIN, Mario. Lecciones para una liebre muerta. Barcelona:
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del mal. Barcelona: Anagrama, 2007.
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Barcelona: Anagrama, 2006.
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Pittsburgh Press, 2008.
MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: a política dos estudos
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Convergências: XI Congresso Internacional da ABRALIC. São Paulo:
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