O GLOBO
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PROSA & VERSO
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PRETO/BRANCO
PÁGINA 3 - Edição: 29/12/2007 - Impresso: 27/12/2007 — 19: 55 h
Sábado, 29 de dezembro de 2007
PROSA & VERSO
O GLOBO
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3
[FICÇÃO][FICÇÃO][FICÇÃO][FICÇÃO]
[FICÇÃO][FICÇÃO][FICÇÃO][FICÇÃO]
Vertigem da vida pós-11 de Setembro
Prisão, tortura e
exílio, mas sem
ressentimentos
Em ‘Homem em queda’, Don DeLillo reflete sobre a situação do artista diante de uma tragédia
Richard Drew/AP/11-01-2001
mem em queda”, podemos observar um deslocamento, especialmente evidente a partir
da produção de sua narrativa
mais microscópica e “intimista”, “A artista do corpo” — livro que apresenta um tratamento único da memória, da
perda e do luto, bem como dos
poderes transformadores da
arte, e que expõe a reação pessoal à desgraça privada explorando apenas uma personagem, a artista performática
que dá título ao livro.
Em “Homem em queda” DeLillo utiliza um procedimento
semelhante: há, mais uma vez,
um artista, uma situação catastrófica, e uma leitura artística da catástrofe. Mas dessa
vez o artista lida com questões públicas, provoca controvérsias e debates, e funciona
como uma espécie de suporte
alegórico para a narrativa, que
busca colocar questões da
mesma natureza que as derivadas das emulações de um
homem vestido de terno lançando-se do World Trade Center realizadas por David Janiak: o que fazer, artisticamente diante da catástrofe? Silenciar, confirmar um discurso
oficial, problematizar? Qual a
melhor opção? E melhor para
quem, por quê?
Homem em queda, de Don
DeLillo. Tradução de Paulo
Henriques Britto. Companhia das
Letras, 256 pgs. R$ 47
Antonio Marcos Pereira
E
m “Os detetives selvagens”, de Roberto Bolaño, um dos personagens
quer descrever a estatura excepcional de um fotógrafo
e o faz dizendo que ele era “como Don DeLillo para os escritores, um fotógrafo magnífico, um
sujeito que havia fotografado
todas as formas da estupidez e
do descaso humano”.
A comparação é apropriada, pois alguns textos de DeLillo fazem o mesmo que as
melhores fotografias: não
apenas representam as circunstâncias, mas as interpelam, revelando o imprevisto,
o improvável e o novo na captura de um momento. “Homem em queda” narra o que
acontece com Keith, Lianne e
Justin, membros de uma família nova-iorquina, ao redor
dos acontecimentos do 11 de
Setembro. Em ponto menor,
aparece também a trajetória
de Hammad, um dos agentes
muçulmanos envolvidos no
atentado. E há, por fim, David
Janiak, um artista performático que emula a célebre foto
de um homem se lançando
das torres gêmeas, o “Homem em queda” do título. Um
conjunto modesto de personagens e um evento de proporções nada modestas: tratando de um tema tão grandioso para a cena contemporânea, estamos diante de um
trabalho complexo, que toca
em questões capitais para o
entendimento de um marco
histórico.
Como um pequeno grupo dá
sentido a um grande evento
Apesar disso, o livro nunca
é complicado, e nunca embaraça a complexidade das
questões que aborda com investimentos formais de ruptura canhestros: o que se vê
aqui são personagens, suas
atribulações e vicissitudes, e
suas trajetórias históricas expostas de maneira mais ou
menos linear no universo paralelo que a ficção engendra
para tratar de questões que
tocam o assim-chamado
mundo real. Há no livro algo
da micro-história sugerida
por Marcelo Masagão em seu
filme “Nós que aqui estamos
por vós esperamos”: parte do
esforço de DeLillo é dirigido
a mostrar como um pequeno
grupo de pessoas insignificantes, em meio a suas vidinhas ordinárias, confere sentido a um grande evento histórico.
Nos últimos quarenta anos,
DeLillo vem tratando sistematicamente de um conjunto de
obsessões, refinando seus ins-
HOMEM CAI DA Torre Norte do WTC: obra de DeLillo revela o improvável e o novo na captura de um momento
Divulgação
trumentos de trabalho como
narrador, e cinzelando textos
quase infalíveis de tão consistentes. Uma das manifestações dessa consistência está
na desarticulação dos personagens: uns falam contra o silêncio de outros, todos sentem coisas que não compreendem, hesitam e se arrependem
e fazem planos que eles mesmos estranham. Incapazes de
dar conta de si mesmos, vivem
às voltas com a necessidade
incontornável de compreender os outros e ainda por cima
são tragados em um evento de
vulto, e cada um resolve isso
como pode.
DeLillo constrói o panorama de “Homem em queda” fazendo uso do que talvez seja
sua marca estilística maior,
que produz um efeito único
— diálogos oblíquos, arrevesados e incrivelmente vívidos, denunciando a sensibili-
O ESCRITOR Don DeLillo
dade do autor aos matizes do
vernáculo (seu “ouvido”) e
sublinhando o caráter errático da vida cotidiana. Essa estrutura que aparece nos diálogos permeia tudo: as descrições de eventos, os pensamentos dos personagens, o
trabalho de criação de atmosfera. Em um certo momento,
Hammad, o terrorista, pensa
“essas pessoas correndo no
parque, a hegemonia global”.
Em outro, o narrador avança
nos pensamentos de Lianne,
a mulher do casal central, para dizer “que os significados
latentes se debatam ao vento,
livres de comentários definitivos”. O aparente non-sequitur de uma frase, a assertivid a d e t r a n q ü i l a m e n t e p eremptória de outra: isso é o
que nos habituamos a esperar de DeLillo.
Em uma de suas raras entrevistas, na época do lançamento de “Submundo” (1997), DeLillo dava mostras de reconhecer o esgotamento de certos
temas que haviam marcado
sua produção anterior —
Guerra Fria, paranóia, conspiração. Nesses dez anos que separam “Submundo” de “Ho-
Autor expõe o irracional
da experiência humana
Resposta absoluta não há
nenhuma, é claro. Mas a certa
altura as performances do
“Homem em queda” levam
uma personagem a pensar
que “seria bom poder acreditar que aquilo era uma espécie de teatro de rua maluco,
um teatro do absurdo que
provocasse os passantes a
compreender com humor o
que há de irracional nos grandes esquemas do ser ou no
próximo pequeno passo que
se vai dar”. É matéria de controvérsia o sucesso do artista
performático, personagem do
livro, ao tratar dessas questões; menos problemático é
compreender que neste trecho está dito o que o livro de
DeLillo faz: provoca seus leitores a refletir, cada um a partir de suas disposições particulares, sobre o que há de irracional na experiência humana, do grande sistema explicativo à menor hesitação cotidiana. Mesmo considerando o
que pode se provar como certa mudança de curso nos liv ro s m a i s re c e n t e s , p a r a
aqueles que já conhecem DeLillo “Homem em queda” traz
bastante para satisfazer o
apetite; para os que ainda não
o conhecem, é um bom aperitivo, e funciona bem como um
convite ao trabalho de um autor seminal. ■
ANTONIO MARCOS PEREIRA é
professor da Universidade Federal
da Bahia
CARTAS
De novo O Judeu
Em resposta à carta de Tom Job
Azulay, criticando a afirmação de minha resenha sobre Antônio José da
Silva (Prosa & Verso, dia 8/12/2007)
quanto a esse pertencer à literatura
portuguesa, não à brasileira, vale a
pena ressaltar o seguinte: em nenhum momento nego a importância
dos anos de infância e das origens para o homem Antônio José da Silva.
Pertencer a uma literatura nada tem a
ver com isso. O fato de se haver
transferido aos sete anos de idade para a Metrópole, e lá ter composto toda a sua obra, sobre temáticas ibéricas e clássicas, e lá ter vivido até a
sua morte trágica, é que define isso
com clareza cristalina. É o mesmo caso do também carioca Gonçalves
Crespo, que viveu o dobro de tempo
no Brasil, transferiu-se para Portugal
aos 14 anos, e é poeta obviamente
português, não brasileiro, como é
consenso geral, ainda que conserve
mais “cor local” em certos poemas do
que em toda a obra de Antônio José
da Silva. E um Joseph Conrad, será
que pertence à literatura polonesa?
As afirmações de Sílvio Romero e
Teófilo Braga, vindas de quem vêm,
são das menos abalizadas para defender o contrário. Quanto a chamar de
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“sarcástico” o belíssimo, trágico e
emocionado poema de Machado de
Assis, é apenas um índice de como lê
poesia o ilustre cineasta. Quanto a
chamá-lo de “rancoroso”, um poema
que é uma comovida homenagem, entre tantas das “Ocidentais”, a um homem tragicamente assassinado cem
anos antes do nascimento do autor
de “Brás Cubas”, acho inútil qualquer
comentário.
Alexei Bueno
Poeta
Ainda O Judeu
Com referência à carta do cineasta
Jom Tob Azulay, publicada no Prosa &
Verso (22/12) a respeito da resenha do
meu livro “As comédias de Antônio José, o Judeu”, feita pelo escritor Alexei
Bueno, gostaria que publicassem os
seguintes reparos. Existem inúmeros
equívocos a respeito da vida e da obra
de Antônio José da Silva que já duram
mais de um século e que o meu livro
propõe acabar e que, infelizmente,
Azulay está a repeti-los. No livro, há
um longo estudo sobre o grupo de intelectuais brasileiros que, em Portugal, lutava pelo arejamento mental do
império lusitano. No entanto, ao contrário do que afirma Jaime Cortesão ci-
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tado por Azulay, Alexandre de Gusmão, até onde se sabe, não foi autor
dramático. Na sua correspondência,
diz o culto e refinado diplomata que
não aceitou que o seu nome constasse
na “Biblioteca Lusitana”, de Diogo Barbosa Machado, cujo primeiro volume
foi publicado em 1741, dois anos após
a morte de Antônio José, porque não
era autor de nenhum livro, uma vez
que, para o teatro, fez ele apenas a versão para o português da ópera bufa
italiana “La pazienza di Socrate”.
O estudo de Sílvio Romero sobre
Antônio José da Silva, como já demonstrei no ensaio publicado na “Revista Brasileira”, da Academia Brasileira de Letras (45: 131-142, 2005), está eivado de equívocos, nada tendo de brasileiro o seu lirismo. Não custa recordar que esse engano, ou má leitura, de
Romero foi retomado em 1940 por
Cândido Jucá Filho no seu livrinho
“Antônio José, o Judeu”.
Na sua carta, Azulay repete o grave
erro a respeito da música na obra de
Antônio José, porque retoma o velho
equívoco de Teófilo Braga, que afirmava ser O Judeu músico e que levou do
Brasil a modinha e a introduziu no teatro português. No livro, dedico todo
um capítulo à música na obra de Antônio José. Creio que este seja o mais
documentado estudo já publicado so-
bre a música na obra do dramaturgo e
nele acabo com essa fantasia, de mais
de um século, de que o escritor era
também compositor e que teria introduzido a modinha em Portugal. O Judeu escreveu os textos e o autor da
música para as suas óperas, como
eram chamadas as suas comédias, é o
compositor barroco português Antônio Teixeira, seu contemporâneo.
Aproveito para comentar a descoberta feita em Pirenópolis, Goiás, no arquivo da família Pompeu de Pina, das
partituras musicais de Antônio Teixeira para a obra dramática de Antônio
José. Portanto, é preciso terminar de
vez com essa lenda de que Antônio José foi compositor ou que levou para
Portugal a música brasileira.
Por fim, há o equívoco a respeito de
Machado de Assis. No livro, coloquei
três epígrafes, uma de cada século,
simbolizando como cada época interpretou o tempo em que viveu o Judeu.
A de Alexandre de Gusmão é uma crítica ao fanatismo religioso da sua época. A de Antônio José Saraiva, que produziu a mais brilhante tese sobre a Inquisição ibérica, destaca que não era a
fé que movia os inquisidores, mas a
cobiça pela riqueza da comunidade
cristã-nova. De Machado de Assis
transcrevo o trecho do primoroso ensaio em que analisa o teatro de Antô-
nio José. Ao contrário do que fala Azulay, o criador de D. Casmurro valoriza
a obra dramática do Judeu, realçando
exatamente os seus personagens populares, os “peraltas”, nome com que
Nicolau Luís, um continuador de Antônio José, crismou as personagens da
sua comédia “Os maridos peraltas”.
Na verdade, os peraltas não são mais
que os “graciosos”, os criados, os joões-ninguém, a quem dedico um substancial capítulo no livro. Assim, ao
contrário do que pensa o cineasta
Azulay, o refinado ironista Machado
percebeu muito bem a alta qualidade
estética da obra teatral do Judeu e o
poema “Antônio José”, das “Ocidentais”, é, sobretudo, um louvor ao jovem dramaturgo sacrificado pela intolerância que o nosso tempo não teve o
privilégio de extirpar.
Paulo Roberto Pereira
Escritor
A correspondência para o
PROSA & VERSO deve ser
encaminhada para O GLOBO,
Rua Irineu Marinho 35, 2 o- andar,
CEP 20233-900, com nome e
endereço completos. As cartas
podem ser editadas.
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Romance premiado
de Arthur Poerner
ganha nova edição
Nas profundas do inferno, de
Arthur Poerner. Editora Booklink,
186 páginas. R$ 33
Nelson Vasconcelos
‘D
izem os escassos
testemunhos que
chorei pouco ao
nascer, tendo, pelo
menos, ficado aquém do que se
esperava — e isso num momento em que, mesmo excluído o
meu transe pessoal, havia razões até demais para lágrimas:
alguns dias antes, eclodira mais
uma guerra na Europa. Convencionaram chamá-la de segunda,
talvez para atenuar as suspeitas que àquelas alturas já pairavam sobre a natureza humana e
as origens das guerras — ou
porque ainda houvesse quem
as contasse como certas mulheres os anos de vida”.
É assim, com essa pegada
poderosa, que Arthur Poerner
inicia “Nas profundas do inferno”, romance autobiográfico
escrito em 1976, durante seu
exílio na Alemanha, e que agora merece uma terceira edição
brasileira. Demorou, mas está
às ordens, e é imperdível.
Poerner conta as experiências de um jovem intelectual
— comunista e filho dileto
dos santos africanos — às
voltas com a repressão política, a prisão e a tortura durante a ditadura no país. Mas
não espere encontrar nem
ressentimentos de butique
nem a lenga maçante que caracterizam boa parte dos livros que retratam esse período doloroso da perpétua vergonha nacional. Poerner não
cairia nesse jogo de cena.
Eis, pois, um dos seus grandes méritos: mais do que se fantasiar como um cristo-que-pagou-o-pato, Poerner preocupou-se em fazer um grande romance. E fez. Arriscando um
pouco, a gente pode dizer que o
relato sobre a experiência na
prisão é apenas mais um componente da obra — que apresenta, por exemplo, os rituais
de iniciação do candomblé com
sabedoria e inusitado humor.
O humor, por sinal, tem
sempre seu lugar, até porque
são mesmo patéticos os personagens que vamos representando pela vida, inclusive
atrás das grades — algo que
os ressentidos de plantão se
recusam a aceitar.
Um livro para exorcizar
as cenas de tortura
Segundo o próprio autor,
“Nas profundas...” serviu para
exorcizar os demônios torturadores que o acompanharam
durante anos a fio. As cenas
que presenciou nos porões da
polícia, afinal, provocaram-lhe
pesadelos durante anos. Mas
o leitor estará a salvo delas.
Poerner é fino. Não precisa fazer do livro um manual de torturas. Não ensina práticas ainda hoje tão comuns em tudo
quanto é presídio brasileiro. A
situação é angustiante, há sangue e excrementos, só que esses elementos são menos importantes que a decadência
humana que Poerner presencia durante seu período atrás
das grades. É a própria raça
tomando o rumo do inferno.
Por conta da ditadura, “Nas
profundas...” foi lançado primeiramente na Espanha e na
Itália, em 1978, recebendo o
prêmio Verrina-Lorenzon de Literatura daquele ano. Sua primeira edição brasileira só apareceu em 1979, pela Codecri, e
hoje só é encontrada em sebos
e bibliotecas seletas. Mereceu
prefácios generosos de Alceu
Amoroso Lima e de Jorge Amado, outro notável comunista e
filho dos santos africanos.
Daí que, também pelo seu
valor de época, reeditar “Nas
profundas...” era quase obrigação. Mais que isso, considerando a quantidade de lançamentos muderninhos idiotas disponíveis nas prateleiras, trata-se
de um veterano sopro de vida
nova, perdoadas sejam as possíveis contradições. ■