AURA DE CRISTAL:
um diálogo entre somática
e criação em dança
CAIO PICARELLI
Mestrando em Artes Cênicas (PPGAC/UNIRIO)
sob orientação de Dra. Nara Keiserman, especialista em Preparação Corporal nas Artes Cênicas
pela Faculdade Angel Vianna (FAV/RJ). É pesquisador-colaborador do Núcleo Experimental de
Butô (SP), membro do coletivo Performers Sem
Fronteiras (RJ) sob direção de Tania Alice. É professor de Dança Butô na Faculdade Angel Vianna.
RESUMO
O artigo apresenta aspectos da investigação preliminar
do projeto intitulado Aura de Cristal, um mergulho
performativo duracional e na perspectiva do autocuidado
gerado e cultivado pelo autor, durante a pandemia de
COVID-19. Com o intuito de gerar caminhos de centramento
dos corpos sutis e físicos por fluxos dançados, o projeto
realizado através do Abramovic Method carrega em seu
bojo uma exploração em estar presente tanto no tempo
quanto no espaço; com exercícios focados em respiração,
movimentação, paragem dinâmica e concentração
(ABRAMOVIC, 2016). Nas investigações da Aura de Cristal,
que vêm ocorrendo duas vezes na semana, há o mergulho
nas sensações promovidas pelo contato com pedras em
união da cadência respiratória profunda, durante o período
de uma hora, resultando na ampliação da escuta interna
e externa; do tato ativo e sutil; e do olfato. Após a escuta
do processo, a esfera de pedras é desfeita através de
movimentos espiralados em um fluxo contínuo que parte
da ponta dos dedos das mãos, por um corpo mais desperto
e consciente de sua própria vida. Observam-se: quais
pedras, pensando nas suas propriedades vibracionais,
foram escolhidas; a relação entre o corpo e os cristais;
quais posições corporais foram utilizadas; o que mudou de
percepção interna; e que imagens vibram conjuntamente
à contemplação. Com a meditação em movimento –
reconhecendo na pausa dinâmica a movimentação dos
órgãos – é cultivada a dança que ressoa junto do espaço e
os cristais.
PALAVRAS-CHAVE:
Abramovic Method; Somática; Imersão como Pesquisa
AURA OF CRYSTAL: A DIALOG BETWEEN SOMATICS AND
CREATION IN DANCE
ABSTRACT
This research seeks to present preliminary developments
from the initial investigation of the project entitled Aura of
Crystal, a performative dive in duration and perspective
of self-care generated and cultivated by me, during
the COVID-19 pandemic, in order to generate paths of
centering from subtle and physical bodies to danced flows,
performed through the Abramovic Method, which carries
in its core an exploration of being present both in time and
space; with exercises focused on breathing, movement,
dynamic stopping and concentration (ABRAMOVIC, 2016). In
the investigations of the Aura of Crystal, which have been
taking place twice a week, there is a dip in the sensations
promoted by the contact with stones in conjunction with
the deep breathing cadence, for a period of one hour,
resulting in the expansion of internal and external listening;
of active and subtle touch; and smell. After listening to
the process, the sphere of stones is broken down through
spiral movements in a continuous flow that starts from the
fingertips of the hands, for a body more awake and aware
of its own life. It is observed: which stones, thinking about
their vibrational properties, were chosen; the relationship
between the body and crystals; which body positions
were used; what changed in internal perception; and
what images vibrate together with contemplation. With
moving meditation – recognizing in the dynamic pause the
movement of the organs – the dance that resonates with
the space and the crystals is cultivated.
KEYWORDS:
Abramovic Method; Somatics; Immersion as Research
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PROCESSOS
METAMÓRFICOS
INICIAIS
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A ideia é que ao longo do ensaio seja conduzida
uma prática sensível de conscientização e cuidado com o corpo e algumas proposições de se
experimentar enquanto pessoa no Universo. Por minha preferência, os pronomes utilizados para
designar outras pessoas será “ela/ dela”. Sugiro que a leitura acerca das ações seja feita de maneira atenciosa, pois serão realizadas preferencialmente de olhos fechados.
A cadência respiratória que iremos utilizar é um
encontro aproximado da Respiração Celular1 e
recomendo que leia o pé de página. Começando.
Sinta seus apoios. Que partes de seu corpo
sustenta você no espaço? São os ísquios? É o
sacro? São as suas plantas dos pés? Como você se
sente mais confortável ao respirar junto de seus
apoios, do peso de seu corpo, buscando liberar
eventuais tensões que circundam do topo da
cabeça até as plantas dos pés. Após o tempo que
você julgar necessário, busque abrir os olhos com
calma para que você possa se acostumar com a
iluminação. Boa leitura.
1 Um dos Padrões Neuro
Celulares Básicos atribuídos a Irmard Bartenieff.
“Quando nascemos, a
respiração celular da vida
que perpassa nosso fluxo
sanguíneo é alimentada
pela movimentação de
nossos pulmões, nutridos
pelo Mundo-Mãe, e esse
ritmo é contínuo. Nós sabemos que nossas vidas
dependem deste padrão.
[...] Como primeiro padrão
desenvolvido na infância,
respirar é o fundamento que dá base para os
demais padrões que se
seguem, [...] e curar o
Corpo-Mente está diretamente ligado com as
funcionalidades e sensibilizações da respiração”
(HACKNEY, 2002, 51-52).
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O ensaio que segue é um processo de criação que bebe das fontes da escrita performática que
vem se fortalecendo como pesquisa em artes através de algumas autoras como Ciane Fernandes
(UFBA), Tania Alice (UNIRIO), Melina Scialom (UFBA), Diego Pizarro (IFB), entre outras.
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O relato de experiência se refere ao projeto ainda em cultivo que intitulo de Aura de Cristal. Um
processo Somático-Performativo (FERNANDES, 2018) que visa explorar possibilidades de criação
em dança que não se alinhe em um processo técnico, mas no reconhecimento de movimentos
que passam a ser construídos na ampliação da escuta e ausculta junto de alguns minerais, para
o compartilhamento de experiências com as demais participantes por vias remotas.
Bordeante entre as possibilidades cartográfica e somática, meu intento com as palavras que
trago é buscar uma linha de pensamento e afecção acerca de processos, mudanças e experimentações que estou a vivenciar durante a pandemia causada pela COVID-19, quando temos
sido convidadas a permanecer mais do que nunca em frente à tela de nossos aparelhos digitais
como forma de comunicação, produção e relação interpessoal.
Enquanto artista-docente-pesquisador em Dança, sempre me pareceu impossível a possibilidade
de relação corporal entre telas, já que comumente o corpo pede corpo, a temperatura, o cheiro,
o suor, a presença. Tudo mudou conforme a pandemia se fortaleceu e tivemos de pensar em
outras perspectivas-quase-epistêmicas para continuar a sobreviver com saúde mental, física e
espiritual. Houve o convite de jogar-se, e mesmo mergulhar nos processos da metamorfose. O
que de fato é importante? O que me atravessa? É mergulhar no mundo que se dá pela experiência e que se dá ao abrir-se pela sensação.
A capacidade que o corpo tem ao se metamorfosear na entrega da ação, das contrações que se
dão pelos processos das movimentações e respirações; abrir-se ao vir-a-ser pela curiosidade e
pela fome. Exercitar o acolhimento e analisar empaticamente os novos limites e possibilidades
de ações transformadoras na vida cotidiana, e, por consequência, com as relações interpessoais.
É retornar ao casulo.
Utilizo aqui o casulo como uma potente imagem poética, como material de alimentação cinestésica para a proposta de autocuidado e o reencontro com a possibilidade de uma vida mais
pautada em um diálogo Somático de se projetar na vida, e(m) processo pandêmico. No casulo
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reside o caminho da entrega aos processos autopoiéticos de se permitir constantemente morrer
e renascer, em um retroalimentar-se e germinar constantemente. Encontrar o estágio do vir-a-ser casulo, tal como Coccia nos convida a refletir:
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O casulo é a forma e o paradigma da consciência de si: a relação que cada ser
vivo mantém consigo (...) o transformam irremediavelmente e o transpõem para
um mundo totalmente diferente daquele em que viveu até então. As ideias, as
opiniões, as sensações – pouco importa se elas vêm de fora ou de nosso próprio
corpo – são forças que nos transformam: asas que emergem do nosso corpo de
verme, intercessores de um mundo que não mais podemos percorrer, um mundo
que apenas voando podemos perceber. (COCCIA. 2020, p. 100)
Durante os meses iniciais do distanciamento social causado pela pandemia, vislumbrei o meu
estado-casulo definhando de maneira apática, em resistência às transformações forçadas, recusando-me a não as reconhecer ou aceitá-las. O processo de desilusão com as pesquisas estacionadas, quase como término, passou a também se transformar, “Como posso eu me afetar
novamente pela vida se não a partir da própria experimentação de viver?”. Influenciado pelo
processo de Marina Abramovic em sua metodologia relacional, cultivada ao longo de décadas
de experimentações em treinos no tocante das pulsões físicas, emocionais e psicológicas, que
convoca a pressionar o corpo contra o solo, até respirar com a terra (ABRAMOVIC, 2016), resgatando as vivências realizadas há quase sete anos no Marina Abramovic Institute, rodeei-me das
várias pedras e cristais que compõem meu quarto, quase como em uma aura-esfera ao redor de
meu corpo, e por lá, deitado, passei horas observando o fluxo de minha respiração. A integração
gradual que passa a acontecer quando se reconhece a composição humana como formada de
várias, várias e várias células respirando em uníssono, “nesse momento, não se tem consciência
das diferentes partes do corpo, ou qualquer organização mais diferenciada entre as mesmas,
apenas um todo em expansão ou concentração em meio a líquidos” (FERNANDES, 2006).
Ali, afundando e respirando amparado pelas vibrações de meus cristais, foi como me percebi
preenchido de caminhos e possibilidades de me sentir e relacionar com o meu corpo em movimento, com minhas movimentações internas e o fluxo de emoções, e, assim, sigo investigando
as possibilidades de presença encarnada, preenchida de carne.
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Munido das experiências que ressoam em cada fibra que existe em mim, me dei conta de que a
utilização dos cristais de meu lar poderiam auxiliar o meu processo de escuta por suas ativações
vibracionais. Não se trata então de significados simbólicos pois são canais que atuam no tocante
do que é visceral de Eu-corpo, ao menos para mim.
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Nas investigações da Aura de Cristal, que vêm ocorrendo entre duas e três vezes na semana, há
o mergulho nas sensações promovidas pelo contato com pedras em união da cadência respiratória profunda durante o período mínimo de uma hora focalizando a respiração, resultando na
ampliação da escuta interna e externa; do tato ativo e sutil; e do olfato. Após a escuta de quais
vibrações minerais ressoam em meu corpo naquele momento específico, a esfera de pedras é
desfeita através de movimentos espiralados em um fluxo contínuo que parte da ponta dos dedos das mãos por um Eu-corpo mais consciente de sua própria vida e extensão física. O tempo
médio de cada investigação se dá entre quatro e cinco horas de duração.
Observam-se: quais pedras, pensando nas suas propriedades vibracionais, foram escolhidas; a
relação entre o corpo e os cristais; quais posições corporais foram utilizadas; o que mudou de
percepção interna; e que imagens vibram conjuntamente à contemplação. Com a meditação
em movimento – reconhecendo na pausa dinâmica a movimentação dos órgãos – é cultivada a
dança que ressoa junto do espaço transfigurado pela vibração dos cristais.
Quantas experiências moram nas minhas células? Existir, manter-me com vida durante a pandemia, em coletivo e sujeito ao atravessamento por vias remotas, continua a ser uma tessitura
possível de afetos entremeados onde a alteridade e a escuta de um cultivo mareante se deságua na possibilidade do atravessamento ético-social que tem como base o afeto, a afetação e a
afecção. É aquele momento de trocas sinuosas de líquidos entre as pessoas envolvidas em que
o acolhimento gerado reverbera como uma dança celular.
Refletir sobre a possibilidade desta encarnação – corpo-carne encarnado – e da arte como insurgência de resistência e vida colhida à base do afeto é também a possibilidade de se permitir afetar
pela humanidade, é o transbordar de um amor que segue um fluxo espiralado, descentralizado,
transversalizado e rizomático em essência. Tenho, para mim, que é como um leite dourado que
escorre desta Mãe do Mundo que é invisível, mas imanente. É enxergar na diferença do momento e da experiência, que me potencializa para pulsar perante as urgências de se relacionar em
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um mundo por vias remotas, um encontro de amor com você e o Universo, “um esvaziamento
voluntário do si mesmo” (HAN, 2019, p. 11).
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GERMINAÇÃO
Feche os olhos. Friccione as palmas das mãos
para esquentá-las, e, quando sentir que é
o suficiente, posicione ambas as mãos no
rosto. Sinta seu rosto como se em cada ponta
de dedo morasse um olho que quer enxergar
todos os detalhes possíveis. Reconhecer e
sentir a temperatura, as diversas texturas
da pele, as pequenas marcas criadas pelo
tempo... Reconheça se há a necessidade de
um toque mais intenso ou de um acariciar a
fim de distensionar alguma parte específica
do rosto. Vibre um pouco com as sensações
deixadas na pele conforme a presença dos
dedos vai se deslocando para fora do rosto.
Ajeite-se confortavelmente em seu local e
aos poucos busque abrir novamente os olhos
com serenidade.
A percepção em relação ao que me atravessa nos espaços. Acompanhar a morte da flor da expectativa é um rompimento com o conservadorismo que se dá em um cotidiano dominado por
um corpo que se reduz a ser funcional. Arte e espírito estão ligados a tudo o que comemos, o que
respiramos, o que me faz existir-resistir. A construção de presença é um modo de existência com:
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Treinamento performativo na proposição de fugir de um tempo cotidiano para mergulhar em uma dilatação de uma ausculta, dando tempo para o corpo se relacionar no mundo (FERNANDES, 2018).
Criação de subjetividade ao identificar o mundo através das experiências já vivenciadas, mas presentificando cada momento no constante presente.
Encontro com os afetos na potencialização de práticas de cuidado como matrizes poéticas na criação em arte. (ALICE, 2016)
Tudo é passível de ação. Há preconceito com o autoconhecimento. Como vir-a-ser-estar obra
de arte. É preciso esculpir para reestruturar.
O aprendizado gestado das explorações do Aura de Cristal se dá pelo movimento sempre, é através
da afetação da/na/com a vida. Isso começa a convidar a intuição como parte da pesquisa que,
neste caso, não se compromete com a finalização, mas vê no processo da própria experiência
o grande tutano, criando assim ”um território de passagem, algo como uma superfície sensível
que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas,
deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (BONDÍA, 2002, p. 19).
O que de fato é importante? O que me atravessa? É mergulhar no mundo que se dá pela experiência e que se dá ao abrir-se pela sensação. A capacidade que o corpo tem ao se metamorfosear na entrega da ação, das contrações que se dão pelos processos das movimentações e
respirações; abrir-se ao vir-a-ser pela curiosidade e pela fome da experiência.
Quando o ordinário já não basta para o processo, acaba por vazar o cosmos interior no Universo
exterior. Metamorfoses como busco entremear em minha pesquisa, é como traz Coccia ao apontar que “cada ser vivo é em si mesmo uma pluralidade de formas simultaneamente presentes e
sucessivas” (2020, p. 20), logo, pode representar como ato político de subjetividade manifesta a
evidência destes casulos que se formam a partir do processo e que se reconhecem como práticas de cuidado. Em minha pesquisa é coerente intitular esse processo de dança, me lembra o
que Uno (2014, p. 46) diz sobre a arte do bailarino e fundador da Dança Butô, Tatsumi Hijikata,
grande norteador ético e poético da minha construção enquanto artista-pesquisador, onde o
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“corpo que dança, recusa se submeter à articulação determinada por uma ação. Sua unidade
não é embasada na ação e se constrói a despeito da ação”.
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Como quem arranca as flores de campo chamadas de “ervas daninhas” para ter um jardim só
verde. Que chato. Me imbuo de presença composta pelo processo, para me fortalecer das pulsões de afeto que vibram dentro de mim, para, tão logo possa, ter como proposição a expansão
da experiência sensória Aura de Cristal como processo somático-performativo e afetivista2 para
outras pessoas, afinal, é o afeto que move. Aqui, junto da coleta da experiência, me convido a reconhecer que todo esse processo pode se fortalecer como uma metodologia de treino e criação,
mas também que se alinha em processos de cura através do movimento e de conexão do micro
para o macro. O gesto, a presença, a qualidade do contato entre pessoas evidencia a porosidade
da transformação e cura que se dá no afeto (HOLMES, 2009).
Presentificar a presença através do cuidado e da percepção que a presença é cuidado e que
cuidado é afeto. “Na era da virtualidade e das relações sempre mais distanciadas, oferecer presença, cuidado e atenção se torna um dos motores e fermentos da performance, que a tornam
potente. (ALICE, 2016, p. 28)
Cresci em um ambiente onde me fizeram acreditar que é frágil sentir, e era válido apenas aquilo
que podia ser meticulosamente pensado. Durante o isolamento social fortalecido pela pandemia
da COVID-19, tal como voltar minhas atenções para a gestação do Aura de Cristal, o autocuidado
e a poética dos afetos se fortaleceu em meu cotidiano como dança, ensino, pedagogia e prática
Somático-Performativa, pois como compartilhado por Fernandes, sobre a Abordagem SomáticoPerformativa (ASP) – utilizada nesse trabalho:
Se associa às minhas experiências de vida em vários níveis, daí somáticas, [...]
se constrói no diálogo entre pulsação e rastro, experiência e comunicação,
realização e testemunha, no acontecimento do continuum espaçotempo de
simultaneidades e reescrituras – daí performativo. (FERNANDES, 2018, p. 18)
Vida e(m) Soma de todas as danças sempre a serem agraciadas com a poesia da metamorfose das
células. Então me pergunto: Qual verbo se forma junto das experiências com cristais? Entremear
quartzos e ametistas e obsidianas e amazonitas através das experimentações compostas nas
2 Afetivista: Ativista do
afeto em tempos neoliberais, de acordo com Brian
Holmes (2009).
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experiências da minha própria vida, que bordeiam meus processos performativos e somáticos
e transbordam para as estudantes em um espaço mediado por mim com um grupo de quatro
artistas – por vias remotas. Uma teia aracniana de afetos coletivos e performativos. Assim, me
permito evocar Fernand Deligny que traz à luz a poética da aranha, ao dizer que:
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Sempre tive um grande respeito pelas aranhas; hoje posso dizer que se tratava
de uma intuição [...] à minha obra eu estava predestinado; desde tenra idade
sempre tive alguma rede para tramar. Mas será possível dizer que a aranha tem
o projeto de tecer sua teia? Não creio. Melhor dizer que a teia tem o projeto de
ser tecida. (DELIGNY, 2018, p.16).
O que iniciou apenas comigo, passa então a ter as artistas Mirela, Fernanda, Lucas e Jaqueline.
Começamos a estudar coletivamente o livro Metamorfoses, de Emanuele Coccia, no início da
pandemia, e a essas quatro artistas confiei o compartilhamento do processo da Aura de Cristal.
Seguimos até a presente data na troca de experiências toda semana.
PRIMEIRO BROTO
Com suavidade levante-se. Reconheça sua
bipedia. Foque sua atenção com mais vigor nos
metatarsos e nos calcanhos, presentificando
o triângulo desenhado nas plantas dos pés
em relação ao chão. Mantenha as pernas na
largura dos seus quadris, dê espaço para suas
axilas e passe a se focar em sua respiração nessa
posição. É um bom momento para se sintonizar
com a respiração que pode melhor atender você
neste momento. Ainda com os olhos fechados,
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realize duas respirações profundas que se
findam com uma longa espreguiçada. Abra os
olhos com tranquilidade e leia o texto que se
segue em pé, em movimento, ou de outra forma
que faça bem a você.
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Encaminho-me para a percepção onde as investigações com Aura de Cristal passam então a
nortear minhas relações humanas dentro de casa e aquelas de vias remotas com estudantes,
familiares, amizades e afins. A pandemia causada pela COVID-19 se apresenta como aquele berro
que reforça a ideia de que os processos da vida não devem ser úteis para fortalecer um sistema
econômico onde a dominação dos corpos se estabelece em prol de um refinado funcionamento
mercantil e robótico.
O contato com os cristais me traz a percepção que a cada dia que acordo estou com demandas,
desejos e processos distintos e não necessariamente continuados ou continuáveis em seus segmentos. É um momento de permitir que essa integração convide quais cristais serão utilizados
de acordo com suas vibrações, afinal de contas, todo cristal é distinto e ressoa em pulsões distintas, e esse é meu critério nas escolhas. Disponho os cristais ao meu redor, contudo, só vibro
nas pulsões que melhor dialogam com minha existência no próprio dia em vigência. Noto através
do compartilhamento de experiências que pedagogicamente pode ser um caminho fértil para
corpos que sintam necessidade de desenvolver um acolhimento através do movimento. Nesse
sentido, o processo da Aura de Cristal exercita a escuta como caminho de criação de vínculos.
Assentar a presença no que ecoa em mim é tecer o fio, a banda de Moebius aqui apresentada
como poética por Lygia Clark (1963), que diz ser a banda como os processos da vida, “conforme a fita vai sendo cortada, ela fica mais fina e é desdobrada em entrelaçamentos. No final,
o caminho é tão estreito que não pode mais ser cortado” (CLARK apud BUTLER, 2014, p. 69).
Pertencimento não se cria sem vínculos. O que potencializa esses encontros então? É a chance
da abertura e da escuta.
A pesquisa da Aura de Cristal tem evidenciado, como diz Krenak (2020, p. 47), que “cada movimento que um de nós faz, todos fazemos. Foi-se a ideia de que cada um deixa sua pegada
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individual no mundo; quando eu piso no chão, não é o meu rastro que fica, é o nosso”. O que vibra
e ressoa não são apenas os cristais ao meu redor, mas é a própria Terra/Gaia/Pachamama. São
todas as pessoas que vieram antes de mim, todas as que estão no mundo nesse momento, e as
que também virão. É um tempo não linear, mas espiralado e ambivalente.
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Na repetição, com o encontro dos cristais em minha pele em movimento até a retirada deles
como uma mandala tibetana, percebo que a maior ação política que pode ser exercitada na contemporaneidade dentro de uma realidade pandêmica é aquela de manter-se com vida. É sobre
cultivar a saúde mental, emocional, espiritual, física. É Soma.
A experiência me edifica o fato de que não tem diferença entre ser pesquisador-professor ou
performer-criador. É tudo borrado, transversalizado, diluído. É por isso que o tempo Somático
não respeita e não cabe em uma norma ou em uma disciplina. É o tempo bordeante que reside
e se fecunda entre tudo isso. O tempo Somático então – tal como a Somática – não é produtivo,
e, sim, é para ser vivido.
O movimento dançado apresenta-se como um caminho para essas transversalidades. Como
atingi-las? Bem, posso fazer apontamentos e deixar aqui algumas pistas, pois o processo está
longe do fim.
É coerente e honesto com cada pessoa a criação de caminhos pessoais que surjam a partir do
movimento para uma melhor sobrevivência – em um Brasil conduzido por políticas de morte:
sentir os contornos do corpo a partir do toque; longos espreguiçares antes de se levantar da
cama; sentir longamente a planta dos pés no chão e o empilhamento de cada vértebra da coluna;
se espreguiçar mais na bipedia; torcer o corpo – incluindo a face – para sensibilizar cada centímetro da pele, dos músculos até o tocante dos ossos; se hidratar e se alimentar bem na medida
do possível; tirar pausas ocasionais no meio das demandas do cotidiano para repetir todo esse
processo; ter para si quartzos de cores variadas para o assentamento dos centros energéticos
do corpo; meditar ao menos cinco minutos por dia com um cristal em um dos sete chacras.
Através dos compartilhamentos com Mirela, Fernanda, Lucas e Jaqueline, pude observar que
as experiências continuadas com os cristais em cada experimentação podem servir como uma
prática Somático-Performativa também dentro da universidade. A parceria com as artistas deu
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início à germinação de algo maior, onde a Aura de Cristal, tão logo haja o retorno ao ensino presencial de maneira saudável e com a vacinação em massa, possa ser ofertada na Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO/RJ), junto do Centro de Letras e Artes (CLA) e da
Escola de Teatro, a fim de propor um ambiente de criação, mas também poéticas do cuidado,
cura e imersão.
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Busco criar diálogos possíveis entre a Abordagem Somático-Performativa (ASP) e a abordagem
das Performances de Arte Relacional como Cura (PARC), desenvolvida pela performer Tania
Alice, um “conceito operador para auxiliar o entendimento desses fenômenos que abordam a
performance como cura por meio de dispositivos relacionais acionados por um performer/terapeuta” (ALICE, 2015, p. 402). O diálogo que crio entre essas duas manifestações performativas
é o caminho em busca de um processo empático e que exercite a alteridade para uma escuta
de um momento traumático que o mundo vivencia em decorrência da pandemia causada pela
COVID-19, tendo nos cristais os objetos relacionais que mediam a criação em artes.
Finalizo o texto então, ressaltando a tremenda importância de manter os sonhos vivos e bem
cuidados, como quem cuida de um jardim. Venho a descobrir que sonhar é ação performática e
ecológica que desagua também no universo. Criar em processo de cuidado, ampliação de escuta,
afeto e presença (com os cristais, com o espaço, consigo, logo, com todas as demais pessoas)
só fortalece a Somática como um campo produtor de conhecimento corporalizado no mundo.
O relato que seguiu é um recorte que segue em experimentação para reverberar em processos
pedagógicos e performativos para fortalecer a Prática Artística como Pesquisa (FERNANDES,
2013) dentro da academia.
O conhecimento que se dá através da carne, da prática e da vida encarnada repleta de sonhos.
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REFERÊNCIAS
» ABRAMOVIC, Marina. Walk through walls. Nova Iorque: Crown Archetype, 2016.
» ALICE, Tania. PARC (Performances de Arte Relacional como Cura): performance e somatic
experiencing. Revista Brasileira Estudos da Presença. Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 396-412,
maio/ago., 2015.
» ALICE, Tania. Performance como revolução dos afetos. São Paulo: Annablume, 2016.
» BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Tradução de João
Wanderley Geraldi. Revista Brasileira de Educação, Universidade Estadual de Campinas –
Departamento de Linguística, Campinas, n. 19, p. 20-28, 2002.
» CLARK, Lygia in BUTLER, Cornelia (org). Lygia Clark: The abandonment of art, 1948-1988.
Nova Iorque: MoMA Publications, 2014.
» COCCIA, Emanuele. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2020.
» DELIGNY, Fernand. O Aracniano e outros textos. São Paulo: n-1 editora, 2018.
» FERNANDES, Ciane. O corpo em movimento: O sistema Laban/Bartenieff na formação e
pesquisa em artes cênicas. São Paulo: Annablume, 2006.
» FERNANDES, Ciane. Em busca da escrita com dança: algumas abordagens metodológicas
de pesquisa com prática artística. Revista Dança – Revista da Pós-graduação em Dança da
Universidade Federal da Bahia, Salvador, v. 2, n. 2, 2013.
» FERNANDES, Ciane. Dança cristal: da arte do movimento à abordagem SomáticoPerformativa. Salvador: EDUFBA, 2018.
» HAN, Byung-Chul. A agonia do Eros. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2019.
» HECKNEY, Peggy. Making connections: total body integration through Bartenieff
Fundamentals. Reino Unido: Routledge Press, 2002.
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