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AURA DE CRISTAL: um diálogo entre somática e criação em dança CAIO PICARELLI Mestrando em Artes Cênicas (PPGAC/UNIRIO) sob orientação de Dra. Nara Keiserman, especialista em Preparação Corporal nas Artes Cênicas pela Faculdade Angel Vianna (FAV/RJ). É pesquisador-colaborador do Núcleo Experimental de Butô (SP), membro do coletivo Performers Sem Fronteiras (RJ) sob direção de Tania Alice. É professor de Dança Butô na Faculdade Angel Vianna. RESUMO O artigo apresenta aspectos da investigação preliminar do projeto intitulado Aura de Cristal, um mergulho performativo duracional e na perspectiva do autocuidado gerado e cultivado pelo autor, durante a pandemia de COVID-19. Com o intuito de gerar caminhos de centramento dos corpos sutis e físicos por fluxos dançados, o projeto realizado através do Abramovic Method carrega em seu bojo uma exploração em estar presente tanto no tempo quanto no espaço; com exercícios focados em respiração, movimentação, paragem dinâmica e concentração (ABRAMOVIC, 2016). Nas investigações da Aura de Cristal, que vêm ocorrendo duas vezes na semana, há o mergulho nas sensações promovidas pelo contato com pedras em união da cadência respiratória profunda, durante o período de uma hora, resultando na ampliação da escuta interna e externa; do tato ativo e sutil; e do olfato. Após a escuta do processo, a esfera de pedras é desfeita através de movimentos espiralados em um fluxo contínuo que parte da ponta dos dedos das mãos, por um corpo mais desperto e consciente de sua própria vida. Observam-se: quais pedras, pensando nas suas propriedades vibracionais, foram escolhidas; a relação entre o corpo e os cristais; quais posições corporais foram utilizadas; o que mudou de percepção interna; e que imagens vibram conjuntamente à contemplação. Com a meditação em movimento – reconhecendo na pausa dinâmica a movimentação dos órgãos – é cultivada a dança que ressoa junto do espaço e os cristais. PALAVRAS-CHAVE: Abramovic Method; Somática; Imersão como Pesquisa AURA OF CRYSTAL: A DIALOG BETWEEN SOMATICS AND CREATION IN DANCE ABSTRACT This research seeks to present preliminary developments from the initial investigation of the project entitled Aura of Crystal, a performative dive in duration and perspective of self-care generated and cultivated by me, during the COVID-19 pandemic, in order to generate paths of centering from subtle and physical bodies to danced flows, performed through the Abramovic Method, which carries in its core an exploration of being present both in time and space; with exercises focused on breathing, movement, dynamic stopping and concentration (ABRAMOVIC, 2016). In the investigations of the Aura of Crystal, which have been taking place twice a week, there is a dip in the sensations promoted by the contact with stones in conjunction with the deep breathing cadence, for a period of one hour, resulting in the expansion of internal and external listening; of active and subtle touch; and smell. After listening to the process, the sphere of stones is broken down through spiral movements in a continuous flow that starts from the fingertips of the hands, for a body more awake and aware of its own life. It is observed: which stones, thinking about their vibrational properties, were chosen; the relationship between the body and crystals; which body positions were used; what changed in internal perception; and what images vibrate together with contemplation. With moving meditation – recognizing in the dynamic pause the movement of the organs – the dance that resonates with the space and the crystals is cultivated. KEYWORDS: Abramovic Method; Somatics; Immersion as Research CAD. GIPE CIT Salvador ano 25 n. 46 p. 108-121 2021.1 PROCESSOS METAMÓRFICOS INICIAIS 1 1 1 . A ideia é que ao longo do ensaio seja conduzida uma prática sensível de conscientização e cuidado com o corpo e algumas proposições de se experimentar enquanto pessoa no Universo. Por minha preferência, os pronomes utilizados para designar outras pessoas será “ela/ dela”. Sugiro que a leitura acerca das ações seja feita de maneira atenciosa, pois serão realizadas preferencialmente de olhos fechados. A cadência respiratória que iremos utilizar é um encontro aproximado da Respiração Celular1 e recomendo que leia o pé de página. Começando. Sinta seus apoios. Que partes de seu corpo sustenta você no espaço? São os ísquios? É o sacro? São as suas plantas dos pés? Como você se sente mais confortável ao respirar junto de seus apoios, do peso de seu corpo, buscando liberar eventuais tensões que circundam do topo da cabeça até as plantas dos pés. Após o tempo que você julgar necessário, busque abrir os olhos com calma para que você possa se acostumar com a iluminação. Boa leitura. 1 Um dos Padrões Neuro Celulares Básicos atribuídos a Irmard Bartenieff. “Quando nascemos, a respiração celular da vida que perpassa nosso fluxo sanguíneo é alimentada pela movimentação de nossos pulmões, nutridos pelo Mundo-Mãe, e esse ritmo é contínuo. Nós sabemos que nossas vidas dependem deste padrão. [...] Como primeiro padrão desenvolvido na infância, respirar é o fundamento que dá base para os demais padrões que se seguem, [...] e curar o Corpo-Mente está diretamente ligado com as funcionalidades e sensibilizações da respiração” (HACKNEY, 2002, 51-52). CAD. GIPE CIT O ensaio que segue é um processo de criação que bebe das fontes da escrita performática que vem se fortalecendo como pesquisa em artes através de algumas autoras como Ciane Fernandes (UFBA), Tania Alice (UNIRIO), Melina Scialom (UFBA), Diego Pizarro (IFB), entre outras. Salvador ano 25 n. 46 p. 108-121 2021.1 O relato de experiência se refere ao projeto ainda em cultivo que intitulo de Aura de Cristal. Um processo Somático-Performativo (FERNANDES, 2018) que visa explorar possibilidades de criação em dança que não se alinhe em um processo técnico, mas no reconhecimento de movimentos que passam a ser construídos na ampliação da escuta e ausculta junto de alguns minerais, para o compartilhamento de experiências com as demais participantes por vias remotas. Bordeante entre as possibilidades cartográfica e somática, meu intento com as palavras que trago é buscar uma linha de pensamento e afecção acerca de processos, mudanças e experimentações que estou a vivenciar durante a pandemia causada pela COVID-19, quando temos sido convidadas a permanecer mais do que nunca em frente à tela de nossos aparelhos digitais como forma de comunicação, produção e relação interpessoal. Enquanto artista-docente-pesquisador em Dança, sempre me pareceu impossível a possibilidade de relação corporal entre telas, já que comumente o corpo pede corpo, a temperatura, o cheiro, o suor, a presença. Tudo mudou conforme a pandemia se fortaleceu e tivemos de pensar em outras perspectivas-quase-epistêmicas para continuar a sobreviver com saúde mental, física e espiritual. Houve o convite de jogar-se, e mesmo mergulhar nos processos da metamorfose. O que de fato é importante? O que me atravessa? É mergulhar no mundo que se dá pela experiência e que se dá ao abrir-se pela sensação. A capacidade que o corpo tem ao se metamorfosear na entrega da ação, das contrações que se dão pelos processos das movimentações e respirações; abrir-se ao vir-a-ser pela curiosidade e pela fome. Exercitar o acolhimento e analisar empaticamente os novos limites e possibilidades de ações transformadoras na vida cotidiana, e, por consequência, com as relações interpessoais. É retornar ao casulo. Utilizo aqui o casulo como uma potente imagem poética, como material de alimentação cinestésica para a proposta de autocuidado e o reencontro com a possibilidade de uma vida mais pautada em um diálogo Somático de se projetar na vida, e(m) processo pandêmico. No casulo 1 1 1 . CAD. GIPE CIT reside o caminho da entrega aos processos autopoiéticos de se permitir constantemente morrer e renascer, em um retroalimentar-se e germinar constantemente. Encontrar o estágio do vir-a-ser casulo, tal como Coccia nos convida a refletir: Salvador ano 25 n. 46 p. 108-121 2021.1 O casulo é a forma e o paradigma da consciência de si: a relação que cada ser vivo mantém consigo (...) o transformam irremediavelmente e o transpõem para um mundo totalmente diferente daquele em que viveu até então. As ideias, as opiniões, as sensações – pouco importa se elas vêm de fora ou de nosso próprio corpo – são forças que nos transformam: asas que emergem do nosso corpo de verme, intercessores de um mundo que não mais podemos percorrer, um mundo que apenas voando podemos perceber. (COCCIA. 2020, p. 100) Durante os meses iniciais do distanciamento social causado pela pandemia, vislumbrei o meu estado-casulo definhando de maneira apática, em resistência às transformações forçadas, recusando-me a não as reconhecer ou aceitá-las. O processo de desilusão com as pesquisas estacionadas, quase como término, passou a também se transformar, “Como posso eu me afetar novamente pela vida se não a partir da própria experimentação de viver?”. Influenciado pelo processo de Marina Abramovic em sua metodologia relacional, cultivada ao longo de décadas de experimentações em treinos no tocante das pulsões físicas, emocionais e psicológicas, que convoca a pressionar o corpo contra o solo, até respirar com a terra (ABRAMOVIC, 2016), resgatando as vivências realizadas há quase sete anos no Marina Abramovic Institute, rodeei-me das várias pedras e cristais que compõem meu quarto, quase como em uma aura-esfera ao redor de meu corpo, e por lá, deitado, passei horas observando o fluxo de minha respiração. A integração gradual que passa a acontecer quando se reconhece a composição humana como formada de várias, várias e várias células respirando em uníssono, “nesse momento, não se tem consciência das diferentes partes do corpo, ou qualquer organização mais diferenciada entre as mesmas, apenas um todo em expansão ou concentração em meio a líquidos” (FERNANDES, 2006). Ali, afundando e respirando amparado pelas vibrações de meus cristais, foi como me percebi preenchido de caminhos e possibilidades de me sentir e relacionar com o meu corpo em movimento, com minhas movimentações internas e o fluxo de emoções, e, assim, sigo investigando as possibilidades de presença encarnada, preenchida de carne. 1 1 1 . CAD. GIPE CIT Salvador Munido das experiências que ressoam em cada fibra que existe em mim, me dei conta de que a utilização dos cristais de meu lar poderiam auxiliar o meu processo de escuta por suas ativações vibracionais. Não se trata então de significados simbólicos pois são canais que atuam no tocante do que é visceral de Eu-corpo, ao menos para mim. ano 25 n. 46 p. 108-121 2021.1 Nas investigações da Aura de Cristal, que vêm ocorrendo entre duas e três vezes na semana, há o mergulho nas sensações promovidas pelo contato com pedras em união da cadência respiratória profunda durante o período mínimo de uma hora focalizando a respiração, resultando na ampliação da escuta interna e externa; do tato ativo e sutil; e do olfato. Após a escuta de quais vibrações minerais ressoam em meu corpo naquele momento específico, a esfera de pedras é desfeita através de movimentos espiralados em um fluxo contínuo que parte da ponta dos dedos das mãos por um Eu-corpo mais consciente de sua própria vida e extensão física. O tempo médio de cada investigação se dá entre quatro e cinco horas de duração. Observam-se: quais pedras, pensando nas suas propriedades vibracionais, foram escolhidas; a relação entre o corpo e os cristais; quais posições corporais foram utilizadas; o que mudou de percepção interna; e que imagens vibram conjuntamente à contemplação. Com a meditação em movimento – reconhecendo na pausa dinâmica a movimentação dos órgãos – é cultivada a dança que ressoa junto do espaço transfigurado pela vibração dos cristais. Quantas experiências moram nas minhas células? Existir, manter-me com vida durante a pandemia, em coletivo e sujeito ao atravessamento por vias remotas, continua a ser uma tessitura possível de afetos entremeados onde a alteridade e a escuta de um cultivo mareante se deságua na possibilidade do atravessamento ético-social que tem como base o afeto, a afetação e a afecção. É aquele momento de trocas sinuosas de líquidos entre as pessoas envolvidas em que o acolhimento gerado reverbera como uma dança celular. Refletir sobre a possibilidade desta encarnação – corpo-carne encarnado – e da arte como insurgência de resistência e vida colhida à base do afeto é também a possibilidade de se permitir afetar pela humanidade, é o transbordar de um amor que segue um fluxo espiralado, descentralizado, transversalizado e rizomático em essência. Tenho, para mim, que é como um leite dourado que escorre desta Mãe do Mundo que é invisível, mas imanente. É enxergar na diferença do momento e da experiência, que me potencializa para pulsar perante as urgências de se relacionar em 1 1 1 . CAD. GIPE CIT um mundo por vias remotas, um encontro de amor com você e o Universo, “um esvaziamento voluntário do si mesmo” (HAN, 2019, p. 11). Salvador ano 25 n. 46 p. 108-121 2021.1 GERMINAÇÃO Feche os olhos. Friccione as palmas das mãos para esquentá-las, e, quando sentir que é o suficiente, posicione ambas as mãos no rosto. Sinta seu rosto como se em cada ponta de dedo morasse um olho que quer enxergar todos os detalhes possíveis. Reconhecer e sentir a temperatura, as diversas texturas da pele, as pequenas marcas criadas pelo tempo... Reconheça se há a necessidade de um toque mais intenso ou de um acariciar a fim de distensionar alguma parte específica do rosto. Vibre um pouco com as sensações deixadas na pele conforme a presença dos dedos vai se deslocando para fora do rosto. Ajeite-se confortavelmente em seu local e aos poucos busque abrir novamente os olhos com serenidade. A percepção em relação ao que me atravessa nos espaços. Acompanhar a morte da flor da expectativa é um rompimento com o conservadorismo que se dá em um cotidiano dominado por um corpo que se reduz a ser funcional. Arte e espírito estão ligados a tudo o que comemos, o que respiramos, o que me faz existir-resistir. A construção de presença é um modo de existência com: 1 1 1 . CAD. GIPE CIT Salvador ano 25 n. 46 p. 108-121 2021.1 • • • Treinamento performativo na proposição de fugir de um tempo cotidiano para mergulhar em uma dilatação de uma ausculta, dando tempo para o corpo se relacionar no mundo (FERNANDES, 2018). Criação de subjetividade ao identificar o mundo através das experiências já vivenciadas, mas presentificando cada momento no constante presente. Encontro com os afetos na potencialização de práticas de cuidado como matrizes poéticas na criação em arte. (ALICE, 2016) Tudo é passível de ação. Há preconceito com o autoconhecimento. Como vir-a-ser-estar obra de arte. É preciso esculpir para reestruturar. O aprendizado gestado das explorações do Aura de Cristal se dá pelo movimento sempre, é através da afetação da/na/com a vida. Isso começa a convidar a intuição como parte da pesquisa que, neste caso, não se compromete com a finalização, mas vê no processo da própria experiência o grande tutano, criando assim ”um território de passagem, algo como uma superfície sensível que aquilo que acontece afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos” (BONDÍA, 2002, p. 19). O que de fato é importante? O que me atravessa? É mergulhar no mundo que se dá pela experiência e que se dá ao abrir-se pela sensação. A capacidade que o corpo tem ao se metamorfosear na entrega da ação, das contrações que se dão pelos processos das movimentações e respirações; abrir-se ao vir-a-ser pela curiosidade e pela fome da experiência. Quando o ordinário já não basta para o processo, acaba por vazar o cosmos interior no Universo exterior. Metamorfoses como busco entremear em minha pesquisa, é como traz Coccia ao apontar que “cada ser vivo é em si mesmo uma pluralidade de formas simultaneamente presentes e sucessivas” (2020, p. 20), logo, pode representar como ato político de subjetividade manifesta a evidência destes casulos que se formam a partir do processo e que se reconhecem como práticas de cuidado. Em minha pesquisa é coerente intitular esse processo de dança, me lembra o que Uno (2014, p. 46) diz sobre a arte do bailarino e fundador da Dança Butô, Tatsumi Hijikata, grande norteador ético e poético da minha construção enquanto artista-pesquisador, onde o 1 1 1 . CAD. GIPE CIT Salvador ano 25 n. 46 p. 108-121 2021.1 “corpo que dança, recusa se submeter à articulação determinada por uma ação. Sua unidade não é embasada na ação e se constrói a despeito da ação”. 1 1 1 . Como quem arranca as flores de campo chamadas de “ervas daninhas” para ter um jardim só verde. Que chato. Me imbuo de presença composta pelo processo, para me fortalecer das pulsões de afeto que vibram dentro de mim, para, tão logo possa, ter como proposição a expansão da experiência sensória Aura de Cristal como processo somático-performativo e afetivista2 para outras pessoas, afinal, é o afeto que move. Aqui, junto da coleta da experiência, me convido a reconhecer que todo esse processo pode se fortalecer como uma metodologia de treino e criação, mas também que se alinha em processos de cura através do movimento e de conexão do micro para o macro. O gesto, a presença, a qualidade do contato entre pessoas evidencia a porosidade da transformação e cura que se dá no afeto (HOLMES, 2009). Presentificar a presença através do cuidado e da percepção que a presença é cuidado e que cuidado é afeto. “Na era da virtualidade e das relações sempre mais distanciadas, oferecer presença, cuidado e atenção se torna um dos motores e fermentos da performance, que a tornam potente. (ALICE, 2016, p. 28) Cresci em um ambiente onde me fizeram acreditar que é frágil sentir, e era válido apenas aquilo que podia ser meticulosamente pensado. Durante o isolamento social fortalecido pela pandemia da COVID-19, tal como voltar minhas atenções para a gestação do Aura de Cristal, o autocuidado e a poética dos afetos se fortaleceu em meu cotidiano como dança, ensino, pedagogia e prática Somático-Performativa, pois como compartilhado por Fernandes, sobre a Abordagem SomáticoPerformativa (ASP) – utilizada nesse trabalho: Se associa às minhas experiências de vida em vários níveis, daí somáticas, [...] se constrói no diálogo entre pulsação e rastro, experiência e comunicação, realização e testemunha, no acontecimento do continuum espaçotempo de simultaneidades e reescrituras – daí performativo. (FERNANDES, 2018, p. 18) Vida e(m) Soma de todas as danças sempre a serem agraciadas com a poesia da metamorfose das células. Então me pergunto: Qual verbo se forma junto das experiências com cristais? Entremear quartzos e ametistas e obsidianas e amazonitas através das experimentações compostas nas 2 Afetivista: Ativista do afeto em tempos neoliberais, de acordo com Brian Holmes (2009). CAD. GIPE CIT Salvador experiências da minha própria vida, que bordeiam meus processos performativos e somáticos e transbordam para as estudantes em um espaço mediado por mim com um grupo de quatro artistas – por vias remotas. Uma teia aracniana de afetos coletivos e performativos. Assim, me permito evocar Fernand Deligny que traz à luz a poética da aranha, ao dizer que: ano 25 n. 46 p. 108-121 2021.1 Sempre tive um grande respeito pelas aranhas; hoje posso dizer que se tratava de uma intuição [...] à minha obra eu estava predestinado; desde tenra idade sempre tive alguma rede para tramar. Mas será possível dizer que a aranha tem o projeto de tecer sua teia? Não creio. Melhor dizer que a teia tem o projeto de ser tecida. (DELIGNY, 2018, p.16). O que iniciou apenas comigo, passa então a ter as artistas Mirela, Fernanda, Lucas e Jaqueline. Começamos a estudar coletivamente o livro Metamorfoses, de Emanuele Coccia, no início da pandemia, e a essas quatro artistas confiei o compartilhamento do processo da Aura de Cristal. Seguimos até a presente data na troca de experiências toda semana. PRIMEIRO BROTO Com suavidade levante-se. Reconheça sua bipedia. Foque sua atenção com mais vigor nos metatarsos e nos calcanhos, presentificando o triângulo desenhado nas plantas dos pés em relação ao chão. Mantenha as pernas na largura dos seus quadris, dê espaço para suas axilas e passe a se focar em sua respiração nessa posição. É um bom momento para se sintonizar com a respiração que pode melhor atender você neste momento. Ainda com os olhos fechados, 1 1 1 . CAD. GIPE CIT Salvador ano 25 n. 46 p. 108-121 realize duas respirações profundas que se findam com uma longa espreguiçada. Abra os olhos com tranquilidade e leia o texto que se segue em pé, em movimento, ou de outra forma que faça bem a você. 2021.1 Encaminho-me para a percepção onde as investigações com Aura de Cristal passam então a nortear minhas relações humanas dentro de casa e aquelas de vias remotas com estudantes, familiares, amizades e afins. A pandemia causada pela COVID-19 se apresenta como aquele berro que reforça a ideia de que os processos da vida não devem ser úteis para fortalecer um sistema econômico onde a dominação dos corpos se estabelece em prol de um refinado funcionamento mercantil e robótico. O contato com os cristais me traz a percepção que a cada dia que acordo estou com demandas, desejos e processos distintos e não necessariamente continuados ou continuáveis em seus segmentos. É um momento de permitir que essa integração convide quais cristais serão utilizados de acordo com suas vibrações, afinal de contas, todo cristal é distinto e ressoa em pulsões distintas, e esse é meu critério nas escolhas. Disponho os cristais ao meu redor, contudo, só vibro nas pulsões que melhor dialogam com minha existência no próprio dia em vigência. Noto através do compartilhamento de experiências que pedagogicamente pode ser um caminho fértil para corpos que sintam necessidade de desenvolver um acolhimento através do movimento. Nesse sentido, o processo da Aura de Cristal exercita a escuta como caminho de criação de vínculos. Assentar a presença no que ecoa em mim é tecer o fio, a banda de Moebius aqui apresentada como poética por Lygia Clark (1963), que diz ser a banda como os processos da vida, “conforme a fita vai sendo cortada, ela fica mais fina e é desdobrada em entrelaçamentos. No final, o caminho é tão estreito que não pode mais ser cortado” (CLARK apud BUTLER, 2014, p. 69). Pertencimento não se cria sem vínculos. O que potencializa esses encontros então? É a chance da abertura e da escuta. A pesquisa da Aura de Cristal tem evidenciado, como diz Krenak (2020, p. 47), que “cada movimento que um de nós faz, todos fazemos. Foi-se a ideia de que cada um deixa sua pegada 1 1 1 . CAD. GIPE CIT Salvador individual no mundo; quando eu piso no chão, não é o meu rastro que fica, é o nosso”. O que vibra e ressoa não são apenas os cristais ao meu redor, mas é a própria Terra/Gaia/Pachamama. São todas as pessoas que vieram antes de mim, todas as que estão no mundo nesse momento, e as que também virão. É um tempo não linear, mas espiralado e ambivalente. ano 25 n. 46 p. 108-121 2021.1 Na repetição, com o encontro dos cristais em minha pele em movimento até a retirada deles como uma mandala tibetana, percebo que a maior ação política que pode ser exercitada na contemporaneidade dentro de uma realidade pandêmica é aquela de manter-se com vida. É sobre cultivar a saúde mental, emocional, espiritual, física. É Soma. A experiência me edifica o fato de que não tem diferença entre ser pesquisador-professor ou performer-criador. É tudo borrado, transversalizado, diluído. É por isso que o tempo Somático não respeita e não cabe em uma norma ou em uma disciplina. É o tempo bordeante que reside e se fecunda entre tudo isso. O tempo Somático então – tal como a Somática – não é produtivo, e, sim, é para ser vivido. O movimento dançado apresenta-se como um caminho para essas transversalidades. Como atingi-las? Bem, posso fazer apontamentos e deixar aqui algumas pistas, pois o processo está longe do fim. É coerente e honesto com cada pessoa a criação de caminhos pessoais que surjam a partir do movimento para uma melhor sobrevivência – em um Brasil conduzido por políticas de morte: sentir os contornos do corpo a partir do toque; longos espreguiçares antes de se levantar da cama; sentir longamente a planta dos pés no chão e o empilhamento de cada vértebra da coluna; se espreguiçar mais na bipedia; torcer o corpo – incluindo a face – para sensibilizar cada centímetro da pele, dos músculos até o tocante dos ossos; se hidratar e se alimentar bem na medida do possível; tirar pausas ocasionais no meio das demandas do cotidiano para repetir todo esse processo; ter para si quartzos de cores variadas para o assentamento dos centros energéticos do corpo; meditar ao menos cinco minutos por dia com um cristal em um dos sete chacras. Através dos compartilhamentos com Mirela, Fernanda, Lucas e Jaqueline, pude observar que as experiências continuadas com os cristais em cada experimentação podem servir como uma prática Somático-Performativa também dentro da universidade. A parceria com as artistas deu 1 1 1 . CAD. GIPE CIT Salvador ano 25 n. 46 início à germinação de algo maior, onde a Aura de Cristal, tão logo haja o retorno ao ensino presencial de maneira saudável e com a vacinação em massa, possa ser ofertada na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO/RJ), junto do Centro de Letras e Artes (CLA) e da Escola de Teatro, a fim de propor um ambiente de criação, mas também poéticas do cuidado, cura e imersão. p. 108-121 2021.1 Busco criar diálogos possíveis entre a Abordagem Somático-Performativa (ASP) e a abordagem das Performances de Arte Relacional como Cura (PARC), desenvolvida pela performer Tania Alice, um “conceito operador para auxiliar o entendimento desses fenômenos que abordam a performance como cura por meio de dispositivos relacionais acionados por um performer/terapeuta” (ALICE, 2015, p. 402). O diálogo que crio entre essas duas manifestações performativas é o caminho em busca de um processo empático e que exercite a alteridade para uma escuta de um momento traumático que o mundo vivencia em decorrência da pandemia causada pela COVID-19, tendo nos cristais os objetos relacionais que mediam a criação em artes. Finalizo o texto então, ressaltando a tremenda importância de manter os sonhos vivos e bem cuidados, como quem cuida de um jardim. Venho a descobrir que sonhar é ação performática e ecológica que desagua também no universo. Criar em processo de cuidado, ampliação de escuta, afeto e presença (com os cristais, com o espaço, consigo, logo, com todas as demais pessoas) só fortalece a Somática como um campo produtor de conhecimento corporalizado no mundo. O relato que seguiu é um recorte que segue em experimentação para reverberar em processos pedagógicos e performativos para fortalecer a Prática Artística como Pesquisa (FERNANDES, 2013) dentro da academia. O conhecimento que se dá através da carne, da prática e da vida encarnada repleta de sonhos. 1 1 1 . CAD. GIPE CIT Salvador ano 25 n. 46 p. 108-121 2021.1 REFERÊNCIAS » ABRAMOVIC, Marina. Walk through walls. Nova Iorque: Crown Archetype, 2016. » ALICE, Tania. PARC (Performances de Arte Relacional como Cura): performance e somatic experiencing. Revista Brasileira Estudos da Presença. Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 396-412, maio/ago., 2015. » ALICE, Tania. Performance como revolução dos afetos. São Paulo: Annablume, 2016. » BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Tradução de João Wanderley Geraldi. Revista Brasileira de Educação, Universidade Estadual de Campinas – Departamento de Linguística, Campinas, n. 19, p. 20-28, 2002. » CLARK, Lygia in BUTLER, Cornelia (org). Lygia Clark: The abandonment of art, 1948-1988. Nova Iorque: MoMA Publications, 2014. » COCCIA, Emanuele. Metamorfoses. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2020. » DELIGNY, Fernand. 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