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VIOLÊNCIA DE ESTADO, RACISMO E LUTAS POPULARES NA AMERICA LATINA

2024, VIOLÊNCIA DE ESTADO, RACISMO E LUTAS POPULARES NA AMÉRICA LATINA

VIOLÊNCIA DE ESTADO, RACISMO E LUTAS POPULARES NA AMÉRICA LATINA Comissão Editorial Ma. Juliana Aparecida dos Santos Miranda Ma. Marcelise Lima de Assis Conselho Editorial Dr. André Rezende Benatti (UEMS*) Dra. Andréa Mascarenhas (UNEB*) Dra. Ayanne Larissa Almeida de Souza (UEPB) Me. Daniel Alem Rego (UFBA) Dr. Fabiano Tadeu Grazioli (URI) (FAE*) Fernando Miramontes Forattini (Doutorando/PUC-SP) Dra. Yls Rabelo Câmara (USC, Espanha) Me. Marcos dos Reis Batista (UNIFESSPA*) Dr. Raimundo Expedito dos Santos Sousa (UFMG) Ma. Suellen Cordovil da Silva (UNIFESSPA*) Nathália Cristina Amorim Tamaio de Souza (Doutoranda/UNICAMP) Dr. Washington Drummond (UNEB*) Me. Sandro Adriano da Silva (UNESPAR*) *Vínculo Institucional (docentes) Felipe de Araújo Chersoni Miguel Melo Ifadireó VIOLÊNCIA DE ESTADO, RACISMO E LUTAS POPULARES NA AMÉRICA LATINA Catu, BA 2024 © 2024 by Editora Bordô-Grená Copyright do Texto © 2024 Os autores Copyright da Edição © 2024 Editora Bordô-Grená TODOS OS DIREITOS GARANTIDOS. É PERMITIDO O DOWNLOAD DA OBRA, O COMPARTILHAMENTO E A REPRODUÇÃO DESDE QUE SEJAM ATRIBUÍDOS CRÉDITOS DAS AUTORAS E DOS AUTORES. NÃO É PERMITIDO ALTERÁ-LA DE NENHUMA FORMA OU UTILIZÁ-LA PARA FINS COMERCIAIS. Editora Bordô-Grená https://www.editorabordogrena.com bordogrena@editorabordogrena.com Projeto gráfico: Editora Bordô-Grená Capa: Keila Lima de Assis Editoração: Editora Bordô-Grená Revisão textual: Editora Bordô-Grená S U M Á R I O PREFÁCIO APRESENTAÇÃO A GUERRA IDEOLÓGICA DO NEOLIBERALISMO: UM ENSAIO SOBRE IMPERIALISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL Ana Lucia Westrup, Ana Karina Licodiedoff Baethgen, Felipe de Araújo Chersoni e Débora Ferrazzo 9 14 17 PRODUCCIÓN Y REPRODUCCIÓN DE LA VIDA: APUNTES DESDE LA TEORÍA DE LA REPRODUCCIÓN SOCIAL PARA COMPRENDER LA (R)EXISTENCIA DE MUJERES FRENTE AL TRABAJO EN EL MERCADO ILEGAL DE LAS DROGAS Aila Fernanda dos Santos 39 BREVES NOTAS SOBRE SISTEMA CARCERÁRIO; ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL E ABOLICIONISMO PENAL Matheus Ferrari França Carreira e Flavio Bortolozzi Junior 75 CRIMINOLOGIA MODERNA A PARTIR DA MATRIZ LOMBROSIANA E REFLEXOS NO NOVO CONSTITCUIONALISMO LATINO-AMERICANO Lorenna Verally Rodrigues dos Santos 97 OS DANOS AMBIENTAIS CAUSADOS POR USO DE AGROTÓXICOS: UM OLHAR VOLTADO A APICULTURA DESDE O MARCO TEÓRICO DA CRIMINOLOGIA VERDE Marcia Leopoldino do Carmo de Melo e Marcelo Negri Soares 114 CÁRCERE SEM FÁBRICA: INTERLOCUÇÕES SOBRE A FORMAÇÃO DO CÁRCERE DO BRASIL À CRICIÚMA/SC Felipe Alves Goulart, Felipe de Araújo Chersoni e Jackson da Silva Leal 134 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL: ENTRE O AVANÇO DA NORMA E O ATRASO DA MENTALIDADE SOCIAL Airton Santos de Souza Junior 160 RESISTENCIA NEGRA E PODER POLÍTICO DAS IRMANDADES RELIGIOSAS NO CARIRI CEARENSE Miguel Melo Ifadireó e Henrique Cunha Júnior 171 ESCREVIVÊNCIAS DE UM PERCURSO ANTIRRACISTA NA CIDADE DE GASPAR SANTA CATARINA: “O PAPEL DO BRANCO NA LUTA ANTIRRACISTA” Cristiane Westrup 212 AS POSSIBILIDADES DE UM FEMINISMO MATRICÊNTRICO NEGRO: CONTRIBUIÇÕES DE ANDREA O´REILLY E PATRÍCIA HILL COLLINS Nayara Augusto Felizardo e Thayline de Freitas Bernardelli 225 SORBRE OS ORGANIZADORES 238 240 SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES |8| PREFÁCIO A coletânea de textos intitulada de Violência de Estado, Racismo, Lutas Populares na América Latina, recortada com muita propriedade pelos organizadores, consegue articular os objetivos dos documentos oficiais com a realidade. A partir disto, são trazidas reflexões pertinentes. No conjunto, os artigos evidenciam que a transdisciplinaridade pode ocorrer no envolvimento de uma ou mais áreas, mas não necessariamente numa reunião de disciplinas abordando a mesma temática. Sobretudo, ela pode ser realizada no interior de uma dada disciplina se articulando e se moldando em diferentes esferas. Em relação aos aspectos teóricos, são visíveis a relação das diversas correntes com os contextos raciais, sociais e históricos. As reflexões e perspectivas transversais constituem-se em uma prova concreta de propostas de enfrentamento da realidade, sendo importante ferramenta para a reflexão da Criminologia Crítica na atualidade. Neste sentido, este livro traduz essa busca e evidência a preocupação dos autores com reflexões e perspectivas transdisciplinares. Com uma linguagem acadêmica simples e segura, possui os méritos de ousar na ruptura com as abordagens tradicionais. A presente obra, sob a organização do Prof. Ms. Felipe Araujo Chersoni e do Prof. Dr. Miguel Melo Ifadireo, torna-se de extrema relevância para a sociedade brasileira. Após a leitura, consegui mensurar a relevância deste livro, que se refere à construção de laços sociais através de redes criadas durante o processo da escravidão no Ceará. A resistência, através da cosmovisão africana com a ressignificação das religiões de matriz africana, e a participação dos africanos e da população |9| negra escravizada foram responsáveis pelas irmandades religiosas que resultaram na preservação da identidade cultural e religiosa. A presente obra também tem o mérito de trazer as vozes sobre a luta no combate ao racismo e à discriminação racial. A importância do reconhecimento de práticas racistas e a compreensão da exaltação das origens europeias, a supremacia racial da branquitude, torna-se desafiadora, principalmente no Estado de Santa Catarina lócus de diversas cédulas nazistas, é neste sentido, também, que se torna importante falar sobre o papel do branco no combate ao racismo. Esse trabalho é, portanto, potente! pois traz o impacto do continente europeu sobre as Américas e o impacto no Brasil, que se tornou a referência mundial de Estado Moderno e também de civilização e desenvolvimento. Esse fato culminou em um sistema de poder fortalecido pela lógica capitalista, introduzindo a chamada globalização, onde se busca a reflexão com a temática da colonialidade e das suas relações com o poder, principalmente no que se refere à estrutura em que se firmou a criminologia moderna punitivista, tendo Cesare Lombroso como precursor, o poder de seus efeitos nefastos, e a presença no novo constitucionalismo latino-americano. A abordagem à doutrina e à jurisprudência, nas quais são sistematicamente voltadas à ampliação dos métodos de segregação social através da manutenção do racismo, diante do perverso argumento da "Guerra às drogas", que é uma ferramenta de criminalização e controle social, transformando territórios desprovidos de segurança cidadã em territórios marginais, e os impactos econômicos, e o encarceramento em massa. Assim, as ferramentas de perpetuação do racismo atualizam-se em novas formas de exclusão e extermínio da população negra. Em nome do "combate às drogas", os governos | 10 | justificam uma série de violações de direitos contra seus moradores e, especialmente, contra sua juventude, em um contexto de ausência de políticas públicas e de presença ostensiva do braço violento do Estado. A importância da ação foi proposta com o objetivo de que fosse reconhecida a violação de direitos fundamentais da população carcerária e, como consequência, que fossem impostas a adoção de providências para sanar lesões a preceitos fundamentais. Cabe ressaltar que a população carcerária brasileira, atualmente e há muito tempo, é superior à capacidade dos presídios, gerando, segundo a ADPF 347, um Estado de Coisas Inconstitucional, no qual direitos e garantias fundamentais são lesados constantemente. Sua clientela é sistematicamente composta pela população negra que historicamente encontra-se relegada à periferia constitucional. Vivendo diante da herança provocada pela escravização, propicia a continuidade de um estado de coisas inconstitucionais, apresentado pela ADPF-347 e o reflexo na vida desta população, destituída antes da prisão do direito a existir. A presente obra aborda as incursões e efeitos perversos dos golpes de Estados envolvendo o Brasil, Chile e toda a América Latina, o desmonte de políticas públicas, e onde no cenário brasileiro, proporcionou a integração dos mercados financeiros, formação de blocos econômicos, acúmulo de riquezas por parte de uma parte privilegiada da sociedade, gerando distorções socioeconômicas muito graves, como o aumento da desigualdade social e racial. Com imensa satisfação, posso ver trabalhos desenvolvidos que trazem a questão ambiental, que necessitam de análises multidisciplinares capazes de apresentar diferentes perspectivas científicas, possibilitando a compreensão da complexidade, principalmente dos crimes de Estado e suas corporações | 11 | privadas que afetam o meio ambiente, como o uso abusivo de agrotóxicos, desmatamentos, e crimes contra a natureza, inúmeras vezes ignorados pela criminologia convencional. A transdisciplinaridade da Criminologia verde surge como ferramenta para lidar com tais problemáticas. O livro, que ora é prefaciado, torna-se indispensável à leitura, tanto daqueles que estão iniciando os seus estudos jurídicos, ciências sociais, psicologia, serviço social, quanto para aqueles que já passaram por essa fase e se encontram na pósgraduação, mestrado ou doutorado. Esta obra também é voltada aos profissionais do direito (juízes, promotores de justiça, advogados e defensores públicos), devendo ser utilizada no seu dia a dia. Ao leitor é oferecida uma teia de entendimentos que amplia os horizontes interpretativos, além de servir de material consultivo. A estes leitores e leitoras, meus cumprimentos, com a recomendação e sugestão para leitura. Isto porque, para os organizadores, os leitores são os destinatários mais importantes da presente obra, já que serão eles que poderão lê-la, extrair as lições e aprendizados, e fazer as devidas reflexões. Devo dizer que o convite para prefaciar este livro reside no encontro de um bom e atual panorama dos estudos sobre a Criminologia Crítica. Deise Benedito Graduada em Direito. Mestre em Direto e Criminologia Universidade de Brasília. Ex-perita do Mecanismo Nacional de Prevenção Combate à Tortura (MNPCT) decorrente do Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas Contra a Tortura (OPCAT/ONU). Foi Diretora do Departamento de Promoção e Defesa. Assessora Especial da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Atua como Palestrante | 12 | e Conferencista em Conferências Nacionais e Internacionais Contra o Racismo, Segurança Pública, Sistema Penitenciário e Prevenção e Combate a Tortura, Mulheres Negras e Juventude Negra. Atualmente é Assessora Técnica na Câmara dos Deputados em temas de direitos humanos, relações étnicoraciais, tortura e violência institucional. | 13 | APRESENTAÇÃO A capa desta coletânea de textos ilustra camponeses, incluindo crianças, presos pelo Estado durante a Guerra do Contestado. A foto, retirada do arquivo do Exército, foi resgatada por um texto escrito pelo Instituto Humanitas Unisinos (2015) e publicada, entre outros lugares, no site eletrônico do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), ilustrando a ideia geral desta coletânea. A repressão às classes populares, por exemplo, resguarda raízes coloniais, racistas e, em grande medida, são fundamentais para a manutenção do latifúndio em nosso território. Em um convite para o retorno às estruturas, Cristiane Luiza Sabino de Souza (2023) tem demonstrado a indissociabilidade entre racismo e superexploração da força de trabalho no capitalismo dependente. Em outros textos de nossa autoria, demonstramos que a repressão aos movimentos populares – pesquisando e participando junto ao MST – é uma ferramenta burguesa de manutenção da superexploração da força do trabalho (Araújo Chersoni, 2023). Para nós, as interlocuções defendidas pela professora Cristiane Luiza Sabino de Souza (2023) são fundamentais para fazer uma leitura concreta da realidade do nosso território, sobretudo, da desmedida violência que historicamente nossos povos enfrentam, desde a colonização. Essa coletânea de textos, que tem como título Violência de Estado, Racismo e Lutas Populares na América Latina, reúne diversas contribuições que objetivam compreender e enfrentar essas dinâmicas de violência. Resumidamente, e como veremos adiante, nosso leitor encontrará textos que tratam sobre a guerra ideológica do neoliberalismo; resistência de mulheres frente ao trabalho no mercado ilegal de drogas; sistema carcerário e estado de coisas inconstitucional; interlocuções entre a criminologia e o constitucionalismo latino-americano; danos ambientais; | 14 | interlocuções sobre a prisão no Brasil e a formação do cárcere na cidade de Criciúma/SC; violência contra a mulher no Brasil; resistência negra e poder político das irmandades religiosas; escrevivências de um percurso antirracista na cidade de Gaspar, Santa Catarina; e as possibilidades de um feminismo matricêntrico negro. O caminho que resultou na consolidação desta coletânea de textos se confunde com nosso próprio percurso formativo e como formador. Em experiência profissional junto a uma das faculdades nas quais lecionei, iniciei um projeto denominado de Direito Penal e Realidade. Este projeto foi fundamental para a consolidação das ideias iniciais desta obra e do que aqui se inicia. A coleção Direito Penal e realidade, na qual temos a ideia, se possível, de lançarmos anualmente um volume reunindo textos que abordam a realidade da repressão sofrida pelas classes populares. Neste sentido, cada uma dessas obras que serão lançadas terá um convidado ou convidada especial que, em forma conjunta, colaborará com as ideias do livro, agregando interdisciplinaridade, pesquisadores e pesquisadoras, impulsionando os horizontes de alcance do projeto. Para esta edição, contamos com a coorganização de Miguel Melo Ifadireó, competente professor vinculado à Universidade de Pernambuco, campus Salgueiro, e um lutador pelo antirracismo no Brasil. Miguel, além de nos brindar com um belo escrito no livro, nos forneceu substrato para pensarmos a estrutura dos capítulos e o livro como um todo. À frente do projeto "Conversa Preta com (ciência)", Miguel tem reunido pensadores e pensadoras de diversas matrizes para discutir e enfrentar o racismo e diversas outras violências estruturais e sistêmicas enfrentadas por nós, povo preto e periférico deste país. Sua presença nesta coletânea como autor e organizador | 15 | muito nos gratifica e demonstra os rumos nos quais nosso "modesto projeto" pretende alcançar. Além disso, almejamos com esta coletânea não somente compilar escritos de pessoas de diversas localidades do Brasil e América Latina. Acreditamos também que este projeto possa ultrapassar os muros, gigantescos, da academia e alcançar pessoas diversas, contribuindo para que estas possam nutrir uma radical esperança por um mundo melhor. Porto Alegre, Outono de 2024. Felipe de Araújo Chersoni Doutorando em Ciências Criminais pela Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). REFERÊNCIAS ARAÚJO CHERSONI, Felipe de. A criminologia campesina: os impactos do controle social na luta pela terra junto ao movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na região do planalto catarinense. 2023. 231 f. - Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC, Criciúma - Santa Catarina, 2023. SOUZA, Cristiane Luiza Sabino de. A indissociabilidade entre racismo e superexploração da força de trabalho no capitalismo dependente. Serviço Social & Sociedade, v. 146, n. 1, p. 16–35, 2023. UNISINOS. Instituto Humanitas. 100 anos da Guerra do Contestado: silêncio, invisibilidade e miséria. Site do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, [s. l.], 2015. Disponível em: https://mst.org.br/2015/06/03/100-anos-da-guerra-docontestado-silencio-invisibilidade-e-miseria/. Acesso em: 22 abr. 2024. | 16 | CAPÍTULO 1 A GUERRA IDEOLÓGICA DO NEOLIBERALISMO1: UM ENSAIO SOBRE IMPERIALISMO E DEMOCRACIA NO BRASIL Ana Lucia Westrup Ana Karina Licodiedoff Baethgen Felipe de Araújo Chersoni Débora Ferrazzo INTRODUÇÃO Ao final da Segunda Guerra Mundial, o mundo passou por alterações no fluxo de poder dos Estados nação, existindo especial destaque para os Estados Unidos da América, que liderou a reconfiguração do capitalismo mundial, e para a União Soviética, que de forma antagônica, se opunha ao modo de produção capitalista, liderando as forças socialistas. O momento que durou de 1947, no período Pós-II Guerra, até 1991 com a dissolução da União Soviética, ficou conhecido como GuerraFria. A partir desse momento histórico, as regiões periféricas do globo, dentre elas a América Latina, passou a sofrer dura intervenção política, ideológica e cultural por parte dos EUA, fato amplamente documentado e, inclusive, reconhecido pelo próprio país imperialista. O processo de globalização que decorreu desse lapso temporal veio acompanhado da neoliberalização ao nível mundial, com a adoção das políticas político-econômicas, a partir da década de 1970, momento em que passou a se verificar maior 1 Comunicação apresentada na XIV Semana de Ciência e Tecnologia da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), como parte dos resultados de pesquisa do Núcleo de pesquisa em estado e cidadania (NUPEC/Unesc). | 17 | número de privatizações e retirada do Estado de áreas antes voltadas ao Estado, em detrimento da teoria keynesiana do “Estado do bem-estar social”. Assim, muitos estados passaram a incorporar a teoria neoliberal de forma voluntária ou, em alguns casos, por pressões coercitivas por parte dos EUA (Harvey, 2008, p. 12-13). A América Latina, em especial, gestou o primeiro experimento de caráter neoliberal com a ascensão de Augusto Pinochet ao poder chileno, no ano de 1973. A partir desse período se verificam diversos outros fatos que levaram à disseminação dos ideais neoliberais em caráter global, como as eleições de Margareth Tatcher e Ronald Raegan no Reino Unido e nos Estados Unidos, assim como a adesão do Fundo Monetário Internacional ao neoliberalismo em 1990. Também no Brasil é possível observar que, desde o golpe cívico-militar de 1964, são implementadas medidas de austeridade na política socioeconômica do país, o que perdura até o marco de 30 anos pós-redemocratização. O presente trabalho tem como principal objetivo verificar de que forma as tendências neoliberais foram incutidas nas sociedades de países dependentes, tais como os países da América Latina. Assim, considerando o panorama dado, se revela uma necessidade de aprofundamento nos instrumentos utilizados pelas forças imperialistas a fim de assegurar sua hegemonia ideológica e cultural visando sabotar o desenvolvimento econômico e social dos países afetados, a fim de assegurar seu poderio político-econômico. Para isso, o artigo se dividirá em três partes: na primeira parte, dissertaremos de forma mais ampla sobre a influência estadunidense nos territórios periféricos a partir da intervenção cultural e ideológica imperialista; na segunda parte, faremos uma breve exposição sobre como se deu tal intervenção na | 18 | América Latina e os instrumentos de propagação utilizados para tal fim; na última parte pretendemos trazer breves apontamentos como tais instrumentos influenciaram nas políticas internas brasileiras e quais foram – e ainda são – suas ferramentas de disseminação. Será adotado o método dialético de abordagem, com método histórico de procedimento e técnica bibliográfica de pesquisa. A INTERVENÇÃO IDEOLÓGICA E CULTURAL IMPERIALISTA: BREVES APONTAMENTOS DA INTERVENÇÃO ESTADUNIDENSE EM TERRITÓRIOS PERIFÉRICOS Com o fim da Segunda Guerra Mundial houve um movimento de reconfiguração do capitalismo sob a direção dos Estados Unidos. Com isso, as forças burguesas, com o intuito de expandir o seu sistema e contrapor as influências comunistas da União Soviética, passaram a desempenhar papel fundamental na divulgação dos valores liberais pelo mundo (Araújo, p. 17). Para fins de conceitualização, o neoliberalismo é uma ideologia socioeconômica que teve como seus precursores os filósofos Ludwig von Mises e Friedrich Hayek em resposta à filosofia do “Estado do bem-estar social” desenvolvida por John Maynard Keynes e aplicada nos países de Primeiro Mundo (Estados Unidos e Europa) após a crise econômica que resultou da II Guerra Mundial. Afastando-se do liberalismo clássico de Adam Smith, disserta o autor David Harvey que os neoliberais entendiam sua ideologia como: O neoliberalismo é em primeiro lugar uma teoria das práticas políticoeconômicas que propôe que o bem-estar humano pode ser melhor promovido liberando-se as liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos a propriedade privada, livres mercados e | 19 | livre comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada a essas práticas; o Estado tem de garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade do dinheiro. Deve também estabelecer as estruturas e funções mi litares, de defesa, da polícia e legais requeridas para garantir direitos de propriedade individuais e para assegurar, se necessário pela força, o funcionamento apropriado dos mercados. Além disso, se não existirem mercados (em áreas como a terra, a água, a instrução, o cuidado de saúde, a segurança social ou a poluição ambiental), estes devem ser criados, se necessário, pela ação do Estado. Mas o Estado não deve aventurar-se para além dessas tarefas. As intervenções do Estado nos mercados (uma vez criados) devem ser mantidas num nível mínimo, porque, de acordo com a teoria, o Estado possivelmente não possui informações suficientes para entender devidamente os sinais do mercado (preços) e porque poderosos grupos de interesse vão inevitavelmente distorcer e viciar as intervenções do Estado (particularmente nas democracias) em seu próprio benefício (Harvey, 2008, p. 12). Contudo, a teoria neoliberal não só aquiescia quanto à modulação econômica da mínima gerência do Estado, como também se utilizou de tal pensamento desde o período entreguerras até o colapso da União Soviética investindo “na lógica normativa e na produção de subjetividades de controle, reduzindo a democracia a mero procedimento formal, ou fazendo uma ditadura o simulacro do estado legalista” (Teles, 2021, p. 16). Nesse contexto, Pierre Ansart (1978, p. 75-76) refere que o conflito ideológico é inerente às formas de organização social, colocando as “instituições como produtoras e reprodutoras de linguagens sociopolíticas”, sendo que os meios de divulgação de informações para as massas e os mecanismos de propaganda utilizados são de extrema importância para a imposição de uma ideologia específica. Isso se opera através da ilusão criada por tais mecanismos e dispositivos que atuam de tal forma que o receptor acredite que ele chegou “por pura convicção” à verdade, mascarando a manipulação intrínseca ao seu assentimento (Ansart, 1978, p. 83). | 20 | Neste sentido, após a ascensão do neoliberalismo, observa-se que se abriu um novo leque para a chamada “devastação capitalista”. Desta forma, ocorreu uma nova maneira de se pensar a hegemonia financeira, fazendo com que dentro do capitalismo já existente, funcionasse esse novo microssistema, que, diante de várias formas de se pensar, visava o acúmulo de riquezas como principal enfoque, e servindo como uma resposta eficiente para as revoltas dos trabalhadores, eles não tinham mais do que se queixar, visto que eram supostamente livres, inclusive dentro das empresas (Duménil; Lévy, 2007, p. 3). O período do pós-Segunda Guerra Mundial é um importante lapso temporal para compreendermos a expansão do imperialismo. Isso porque neste momento da história marcaramse os paradigmas de dependência, onde hegemonicamente os Estados Unidos passam a ser vistos como uma potência dominante, tendo sua marca na concentração de riquezas e introjeção econômica em diversos outros países americanos (Dos Santos, 2012). Sendo assim, os EUA agem como se o território latinoamericano fosse uma enorme empresa que monopoliza relações econômicas por meio de investimentos nas economias internas de cada país, ao passo que assume característica imperialista, exercendo poder em todas de decisões e influenciado nas governabilidades nacionais. No pós-guerra, esses investimentos ampliam-se, mas sem perder o condão da mais-valia; pelo contrário, nesse cenário a mais-valia expande-se, fazendo com que setores da indústria nacional entrem em crise, culminando no fortalecimento das empresas que detém os investimentos estrangeiros e seus capitais. Os países da periferia do capitalismo entram em crise, e os países dominantes duplicam sua lucratividade justamente por conta da crise nacional (Dos Santos, 2018, p. 58). | 21 | Uma das principais características do imperialismo, que se ancora em um capitalismo já avançado, segundo Lênin (2011, p. 216-217), “é a substituição da livre concorrência capitalista pelos monopólios capitalistas”. Essa substituição, como veremos adiante, tem forte impacto nos países da periferia do capitalismo. A livre concorrência é uma das fundamentações centrais do capitalismo de mercado, porém os monopólios são o contrário disto. “Criando a grande produção, eliminando a pequena, substituindo a grande produção por outra ainda maior, e concentrando a produção e o capital a tal ponto que do seu seio surgiu e surge o monopólio” (Lênin, 2011, p. 216-217). No campo militar, esse período é marcado pela exigência da “defesa social”. No campo penal, os estadunidenses vestem a roupagem de “boa vizinhança”, o que facilita a introjeção de seus interesses e práticas também no campo da segurança pública, lembrando que o território latino-americano tem como uma de suas principais, e tristes, marcas as sucessivas tentativas de golpes militares (Del Olmo, 2004, p. 116; Araújo chersoni, 2023). Nesse contexto, em Genebra, no mês de julho de 1947, ocorre o V Congresso Internacional de Direito Penal, tendo como temas emergentes dois pontos: “1. Como os Estados Unidos pode, por meio de sua legislação interna, contribuir para garantir a paz de outro Estado; 2. O princípio da legalidade e da oportunidade da perseguição penal” (Del Olmo, 2004, p. 117). A principal preocupação, em síntese, seria a “colaboração” estadunidense para a garantia da “paz” entre diferentes países “democráticos”. Rosa Del Olmo (2004, p. 117) chama atenção para o surgimento da alternativa socialista em diversos lugares do mundo na época, através das organizações populares, pois, para manter o que seria denominado de “paz”, era necessário encontrar os resistentes à ordem posta. | 22 | Vânia Bambirra (2019, p. 126) parte do mesmo marco temporal, o pós-segunda guerra, para explicar como a hegemonia estadunidense avançou pelos países subdesenvolvidos, conforme penetração sistemática do capital estrangeiro no setor mais dinâmico das economias. Os efeitos produzidos por essa intensificação da entrada de capitais são: a) O controle e domínio, por parte do capital estrangeiro, dos novos setores e ramos produtivos industriais, que desde então começam a se desenvolver. b) A intensificação da monopolização, concentração e centralização da economia, que se expressa através da instalação de grandes empresas e da absorção, por parte destas, de empresas nacionais, mediante compras, fusões, associações, etc. c) O processo de desnacionalização progressiva da propriedade privada dos meios de produção dos setores industriais até então controlados pelos produtores nacionais. d) A integração, cada vez mais articulada, dos interesses das empresas estrangeiras aos interesses das classes dominantes locais, o que se reflete nas políticas econômicas nacionais, além da integração das políticas externas dos países dependentes à política dos Estados Unidos para a América Latina, acompanhada também de uma integração no âmbito militar (Bambirra, 2019, p. 126). Com isso, observam-se diversas mudanças em termos qualitativos e quantitativos no funcionamento das formas internas dos sistemas capitalistas dependentes. E essas mudanças ocorrem de forma essencial no abandono realista, pelas classes dominantes, de projetos reformistas e populistas de desenvolvimento autônomo nacional. Aguçando medidas cada vez mais dependentes, de dominação e subalternização, em relação ao centro hegemônico do mundo (Bambirra, 2019, p. 126). Neste sentido, destaca-se ainda que o caráter dependente não diz respeito apenas aos processos de acumulação de riquezas para os países hegemônicos, a dependência também se torna política. O poder de decisão, seja no âmbito do trabalho ou de | 23 | organizações sociais, fica nas mãos da burguesia internacional (Bambirra, 2019, p. 144). A INFLUÊNCIA DA IDEOLOGIA IMPERIALISTA NA AMÉRICA LATINA E SEUS INSTRUMENTOS DE PROPAGAÇÃO Delimita-se ideologia na base da organização e ação do imperialismo e das elites nacionais, na propagação e defesa os valores liberais e na marginalização dos ideais socialistas, a fim de influenciar a elaboração de políticas públicas e a manipular a opinião popular, perpetuando a condição de exploração. Entretanto, há momentos em que as massas emergem no processo histórico, criando uma atmosfera de inquietude e revolta, e mesmo sem uma consciência de classe, são momentos de tensão para as elites dominantes, que agem ostensivamente no intuito de impedir a organização popular e conformar as massas a seus objetivos. Para tanto, se utilizam da manipulação como um instrumento fundamental para a manutenção dessa dominação (Freire, 2005, p. 167-169). Nessa perspectiva, o que se observa como a maior empreitada na disseminação dos ideais neoliberais culminou nas práticas adotadas na década de 1970, tanto influenciadas como financiadas pela Escola de Chicago2, momento na qual se identifica um giro neoliberal em caráter global. A “cena política primitiva do neoliberalismo” se deu com o golpe de Estado de Augusto Pinochet em 11 de setembro de 1973, que pôs fim à experiência política de Salvador Allende, presidente com eleito 2 Escola de Chicago” é um termo cunhado a partir da década de 1950 para designar os pensadores do departamento de Economia da Universidade de Chicago (EUA). Seus ideais são atrelados ao liberalismo econômico, afastando-se da teoria keynesiana em favor de um sistema de liberdade econômica através da organização da atividade econômica pelo mercado. A Escola de Chicago teve grande influência na disseminação do ideal neoliberal, ganhando maior notoriedade na década de 1970, destacando-se dentre os seus pensadores mais influentes, Frederick Hayek e Milton Friedman. | 24 | pela Unidade Popular chilena (Sauvêtre et al, 2021, p. 41; Harvey, 2008, p. 17). Aduz Sauvêtre et al (2021, p. 41-50) que o golpe à democracia chilena, também denominado de “primeiro 11 de setembro”, teve apoio ativo do então presidente estadunidense Richard Nixon, bem como foi financiado pela Agência Central de Inteligência (CIA) do país. Quanto à forma utilizada pelo governo ditatorial a fim de manter o controle do aparato estatal no estado recém dominado pelas forças imperialistas, foi empregada uma campanha de desestabilização do governo anteriormente constituído, através da política de repressão do “diferente”: Mais de oito milhões de dólares foram gastos, em três anos, a fim de financiar veículos de imprensa (notadamente El Mercurio) e influenciar a opinião pública, partidos de oposição (entre os quais, particularmente, a Democracia Cristã, para que recusasse qualquer comprometimento com Allende) e, em menor medida, organizações corporativas do setor privado, hostis à Unidade Popular. Isso sem contar a pressão econômica contra o Chile, os contatos estabelecidos com militares golpistas e o apoio logístico da CIA: essa ‘obscenidade secreta’ da história recente de ve fazer parte de toda reflexão sobre o fim da ‘via chilena’ (Gaudichaud apud Sâuvetre et al, 2021, p. 50). Tal experiência se alastrou além das fronteiras chilenas, abrindo espaço para o processo de neoliberalização que tomou proporções globais no decorrer dos anos. Isso pode ser observado através da ascensão de Margaret Tatcher ao poder em 1979, pela eleição de Ronald Reagan em 1980 e pela absorção dos | 25 | ideais neoliberais ao Fundo Monetário internacional pelo Consenso de Washington3 em 1990 (Harvey, 2008, p. 23). David Harvey (2008, p. 26-27) refere que o projeto de neoliberalização do globo, sobretudo na América Latina e nos demais países de terceiro mundo, atuou desde o seu início a fim de reestruturar o poder de classe nas mãos da elite econômica, com evidente recrudescimento das desigualdades sociais nas regiões em questão. Para tanto, se observa que as organizações latino-americanas receberam amplo apoio logístico e financeiro dos Estados Unidos, como destaca Bruna Pastore (2021, p. 60): Os Estados Unidos apoiaram amplamente e ajudaram a articular os projetos para depor os presidentes que se negassem a se alinhar ao seu projeto político dos países da América Latina. O presidente John Kennedy, já no começo de sua presidência nos Estados Unidos, no início dos anos 1960, estabeleceu algumas diretrizes estratégicas contrarevolucionárias. Segundo Enrique Serra Padrós, a Aliança para o Progresso (ALPRO), um programa financeiro elaborado pelos Estados Unidos no governo de Kennedy para ser implantado na América Latina, era uma das estratégias contrarrevolucionárias. Assim, como nos debruçaremos a seguir, o ideal neoliberal que vem sendo imposto em escala mundial, sobretudo aos países subdesenvolvidos, não só se opera frente ao modelo econômico atribuído a determinado estado, mas também e principalmente como um projeto político a fim de manter a acumulação do capital, econômico e social com as elites financeiras nacionais e as imperialistas (Harvey, 2008, p. 29). Isso porque, conforme se observa pelo desenvolvimento do neoliberalismo na América Latina, a implementação dos 3 Em resumo, o Consenso de Washington se caracteriza por um conjunto de determinações econômicas calcada em princípios neoliberais, com medidas de estabilização monetária voltados para os planos de desenvolvimento dos países de Terceiro Mundo. Foi idealizado em novembro de 1989 – e implementado no ano seguinte, com o fim de avaliar as reformas econômicas empreendidas nos países latino-americanos e formar um conselho sem caráter deliberativo, mas com capacidade para coordenar ações realizadas pelos organismos financeiros internacionais – como o FMI e o Banco Mundial. | 26 | ideais neoliberais resultou na paralisação das políticas públicas que não estivessem conforme o seu entendimento, fato que acabou por dilatar a condição de subordinação desses estados aos capitalistas transnacionais em aliança com a burguesia nacional (Granato, 2021, p. 112). De tal modo, a “disciplina impiedosa do mercado” (Sauvêtre et al, 2021, p. 64) neoliberal é executada enquanto programa político, com o viés de formar uma sociedade aparentemente livre, em que se preze o direito à liberdade, mas que é invariavelmente atravessada pela concorrência e pelo consumo – o que pode ser feito a partir de qualquer formação de Estado, desde que não ameace a sua forma capitalista. Assim, para que os empreendedores do projeto político neoliberal colhessem seus frutos, as sementes deviam ser estrategicamente plantadas para que perfurassem e criassem raízes nas massas, o que foi feito através da ampla divulgação dos ideais neoliberais de abertura econômica e liberdade individual, principalmente alinhados com princípios tradicionalistas. Sobre o tema, disserta Harvey (2008, p. 15): Nenhum modo de pensamento se toma dominante sem propor um aparato conceituai que mobilize nossas sensações e nossos instintos nossos valores e nossos desejos, assim como as possibilidades inerentes ao mundo social que habitamos. Se bem-sucedido, esse aparato conceitual se incorpora a tal ponto ao senso comum que passa a ser tido por certo e livre de questionamento. As figuras fundadoras do pensamento neoliberal consideravam fundamentais os ideais políticos da dignidade humana e da liberdade individual, tomando-os como "os valores centrais da civilização". Assim agindo, fizeram uma sábia escolha, porque esses certamente são ideais bem convincentes e sedutores. Esses valores sustentavam essas figuras, estavam ameaçados não somente pelo fascismo, pelas ditaduras e pelo comunismo, mas também por todas as formas de intervenção do Estado que substituíssem os julgamentos de indivíduos dotados de livre escolha por juízos coletivos. | 27 | A referida via utilizada pelos neoliberais para inculcar seus princípios básicos, como o próprio Hayek referiu em sua obra, se deu através da “guerra ideológica” proposta pelo seu próprio projeto econômico (Sâuvetre et al, 2021, p. 35). É a partir desse cenário retratado que a ideologia neoliberal se tornou hegemônica como forma de discurso, haja vista que se faz presente de forma central no inconsciente coletivo global, penetrando no modo-de-viver da sociedade na totalidade. Isso ocorre a partir de suas ocupações em postos de notável influência no mundo acadêmico (como universidades e Think Thanks que logo serão melhor discutidas), nos meios de comunicação, nas entidades financeiras, nos cargos de direção das mais variadas corporações, nas instituições estatais (como os ministérios da economia e bancos centrais) e nas instituições internacionais de regulação do mercado (como o FMI, já anteriormente citado, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio) (Harvey, 2008, p. 13). BREVE HISTÓRICO DAS CONSEQUÊNCIAS DO IMPERIALISMO NAS POLÍTICAS INTERNAS BRASILEIRAS E SUAS FERRAMENTAS DE DISSEMINAÇÃO Ao longo das décadas seguidas, o Brasil, em decorrência da ação direta e indireta das forças imperialistas, sofreu o golpe de estado civil-militar de 1964. Ruptura institucional que durou 21 anos, sendo marcada pela repressão violenta e o favorecimento dos interesses econômicos da classe dominante e do capital estrangeiro em detrimento dos da classe dominada, do povo. Ao final da Guerra Fria, o Brasil já havia se redemocratizado, com a promulgação da Constituição “Cidadã” e passado por eleições diretas. No entanto, nesse tempo as estruturas capitalistas se consolidaram e definiram a divisão | 28 | internacional de produção e de trabalho. Para o Brasil, país colonizado e massivamente explorado pelos colonizadores, foi imposta a condição subalterna de produção e desenvolvimento. Fato que tornou a economia do país dependente da produção de commodities e quase incapaz de desenvolver de forma competitiva os setores industriais e tecnológicos. Considerando o panorama histórico, do início da Guerra fria até os dias atuais, o Brasil passou diversos momentos em que as forças imperialistas atuaram por meio da influência ideológica e cultural para sabotar o desenvolvimento econômico e social do país. Como já descrito, a partir da Guerra-Fria, momento histórico que perdurou dos anos quarenta aos anos noventa, as forças capitalistas, lideradas pelos Estados Unidos, com o apoio da elite nacional, se utilizaram da cultura e da propaganda ideológica para intervir politicamente no país. Um grande exemplo foi o complexo IPES/IBAD que atuou para legitimar o golpe civil-militar de 1964 e frear os movimentos populares que reivindicavam reformas econômicas e estruturais. Fundado em 1961, obteve desde o início apoio da grande mídia, intelectuais e políticos, sendo considerada uma reação da elite orgânica do país ao crescimento da esquerda em comunhão com os interesses dos grandes empresários nacionais, militares conservadores e empresas multinacionais, forças anticomunistas que buscavam adequar o Estado a satisfação dos seus interesses (Pastore, 2021, p. 58-59; Dreifuss, 1981, p. 163). O instituto IPES/IBAD se apresentava publicamente como uma organização que não representava interesses classistas e ideológicos, mas sim, desejava fazer estudos que pudessem contribuir para melhorar a realidade brasileira (Pastore, 2021, p. 59). No entanto, seu principal objetivo era preparar ideologicamente os mais variados setores da sociedade para o | 29 | golpe de estado. Tendo como pauta a abominação do socialismo e comunismo, valorização do indivíduo e do livre mercado. Interesses escusos aos do povo, mas que interessavam muito a classe dominante e ao capital internacional para a consolidação do capitalismo. A partir da posse de João Goulart, as produções “intelectuais” do instituto passaram a atacar diretamente a figura do presidente e as medidas econômicas defendidas por ele. Como as reformas de base, que visavam desenvolver as forças produtivas do país por meio de maior intervenção do Estado na economia, e o controle de remessa de lucros ao exterior. Também foi duramente criticada a proposta de direito ao voto para os analfabetos e militares de baixa patente. O IPES/IBAD conseguiu concentrar uma série de empresas das mais variadas áreas de atuação, além de oficiais militares, organizações culturais, etc. As estratégias táticas do grupo foram desde o início bem definidas, tendo como projeto a massiva divulgação por meio da mídia de material de cunho ideológico; o exercício de influência dentro dos sindicatos, movimentos estudantis, organizações de classes trabalhadoras, igrejas e forças armadas; promover estudo de conjuntura; publicar livros; se aproximar de políticos e aumentar o número de integrantes (Pastore, 2021, p. 58-61; Gesteira, 2014, p. 7). As publicações em jornais, revistas e livros tiveram reflexo direto na opinião pública, que passou a defender a intervenção militar. A “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” foi um reflexo disso, movimento que contou com amplo apoio do empresariado, da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e publicamente do próprio IPES/IBAD (Pastore, 2021, p. 69). Movimentos civis que contribuíram para a concretização do golpe civil militar de 1964. | 30 | Ao final da Guerra Fria, o Brasil já havia passado por um processo de redemocratização, com a promulgação da Constituição “Cidadã” e tido eleições diretas. No entanto, nesse tempo as estruturas Capitalistas se consolidaram, e agora sem o antagonismo da União Soviética, ficaram livres para definir a divisão internacional de produção e de trabalho. Para o Brasil, país colonizado e massivamente explorado pelos colonizadores, foi imposta a condição subalterna de produção e desenvolvimento. Fato que tornou a economia do país dependente da produção de commodities e quase incapaz de desenvolver de forma competitiva os setores industriais e tecnológicos. Vidal e Lopez (2021, p. 2-8) destacam que no atual cenário, destaca-se a mega organização internacional Atlas Network, com sede nos Estados Unidos, comanda uma rede global de institutos classificados como Think Tanks, sendo que na América Latina e Caribe, existem mais de 100 institutos filiados. A Atlas Network, nasceu como um braço da Sociedade Mont Pélerin (SMP), fundada pelo economista neoliberal Friedrich Hayek em contraposição às ideias econômicas Keynesianas. A organização opera como uma organização guardachuva, voltada à criação, manutenção e orientação de institutos parceiros. Institutos usados como espaços de promoção de dirigentes na esfera política, a fim de influenciar políticas públicas atreladas aos interesses hegemônicos. Destaca também que esse grande guarda-chuva recebe parte de seu financiamento do Departamento de Estado dos Estados Unidos (Vidal; Lopez, 2021, p. 2-8). A fundação do Instituto Liberal do Rio de Janeiro (IL-RJ) em 1983, foi um marco importante de articulação e promoção dos ideais liberais entre as elites formadoras de opinião. Sob a influência deste e de outros dos institutos concebidos nos anos | 31 | subsequentes assistiu-se há infiltração da ideologia neoliberal e a concatenação do projeto político que proporcionou a eleição de Fernando Collor, com fundamental interferência da Rede Globo (principal emissora e veículo de comunicação da época), que manipulou notícias, informações e até debates para favorecer o candidato. Posteriormente, com a eleição de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) houve a consolidação da hegemonia neoliberal, onde passou a prevalecer a tese de que o livre comércio e a diminuição do poder do Estado por meio de privatizações, garantiria o desenvolvimento e a prosperidade do país. Durante os anos de FHC, as atividades das Think Tanks diminuíram, no entanto, com a ascensão do Partido dos Trabalhadores no Brasil e o crescimento da esquerda na AL no início dos anos 2000, as atividades dos institutos voltaram com maior força. Com a popularização do acesso internet e das redes sociais, as Think Tanks, por meio do aprimoramento das estratégias de comunicação, exerceram papel fundamental na articulação dos rumos da democracia brasileira, com especial destaque para as mobilizações que resultaram no Impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 (Vidal; Lopez, p. 25-27, 2021; Avelar, 1992, p. 43). O Instituto Millenium e a organização “Estudantes pela Liberdade- Brasil (EPL)”, são dois dos principais articuladores da propagação ideológica liberal, cooptação e formação de militantes, além de propulsores de candidaturas a cargos eletivos. O Instituto Millenium fundado em 2005, tem em seus quadros diversos empresários das mais diversas áreas e intelectuais articulistas, como Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, Reinaldo Azevedo, blogueiro da revista Veja e Pedro Bial, apresentador da Rede Globo. Além das publicações independentes, têm grande influência no editorial nos meios de comunicação mais acessados pelas classes populares (O Globo, | 32 | Estado de São Paulo, Veja, Exame, entre outros). Suas principais pautas são a defesa da propriedade privada, o Estado mínimo, a meritocracia e a responsabilidade individual. As movimentações das novas Think Tanks repercutiram diretamente na organização da direita nacional e na articulação do Impeachment em 2016. Na ocasião destacou-se a atuação do Movimento Brasil Livre (MBL), movimento fundado pela organização dos Estudantes pela Liberdade (EPL), que em 2015 realizou a cooptação de jovens estudantes de escolas e universidades, proporcionando para essas formações de grupos, treinamento, estrutura e suporte para a realização de atividades em defesa da “sociedade livre”. A EPL-Brasil, com o suporte da Athas Network, ofereceu a diversos jovens de destaque treinamentos em eventos internacionais. Entre as novas lideranças formadas, ganharam destaque os fundadores do Movimento Brasil Livre (MBL), Kim Kataguiri, Fernando Holiday e Fábio Ostermann (Pastore, p. 70-71; Barbosa, p. 153-155). Com Bolsonaro na presidência (2018-2021), se assistiu à ascensão dos dirigentes dos institutos liberais a diversos cargos no governo, com destaque a Paulo Guedes, membro fundador do Instituto Millenium, que assumiu o cargo de Ministro da Economia, além de outros membros de institutos liberais como Kim Kataguiri do MBL, eleito como deputado federal por São Paulo. Portanto, observa-se que além de operarem como disseminadores de ideologia neoliberal, agora seus atores ideológicos e ativistas encontram-se como os atores políticos em posse dos instrumentos de poder necessários para colocar em prática seus projetos de poder (Vidal; Lopez, 2022, p. 28-3; Conjur, 2022). Assim, ao longo dos anos, verifica-se a organização da elite econômica nacional em comunhão com o imperialismo internacional, sendo amplamente disseminados os ideais liberais | 33 | na sociedade brasileira por meio do trabalho de formação de jovens estudantes, por meio da mídia hegemônica e mais recentemente com a presença no mundo digital. Propagação ideológica que se apresenta como consenso apartidário, no entanto, tem raízes em um megaprojeto político arquitetado globalmente no intuito de manter e ampliar as estruturas de poder estabelecidas. CONCLUSÃO Durante a Guerra-Fria, momento pós-Segunda Guerra Mundial, ocorreu a reconfiguração do Capitalismo sob a liderança dos Estados Unidos. A partir desse momento, conhecendo a importância da dominação ideológica e cultural, as forças neoliberais passaram a se organizar para difundir seus valores em todos os continentes. A partir desse momento histórico, o Brasil, assim como toda a América Latina, passou a sofrer dura intervenção política, ideológica e cultural por parte dos EUA. Nesse panorama, a elite nacional abandonou o projeto nacionalista reformista e passou a pautar suas ações em prol desses interesses, sujeitando a política econômica do país cada vez mais a dependência e a subalternização ao centro hegemônico. O presente artigo correlaciona estas influências (ideológicas e culturais) a partir da guerra fria até o momento, influências que conduziram o país para a condição de estado exceção permanente, impossibilitando que os poderes institucionais do Estado Democrático de Direito, que na formalidade se vive, tenham força e legitimidade para concretizar as vontades e necessidades do povo. A interferência da ideologia causou e causa, na América Latina, na totalidade, a desmobilização das políticas públicas que não se subordinam a agenda neoliberal. Fato que reduz a região | 34 | a condição de subordinação frente as potências do centro hegemônico. Abordou-se a experiência chilena na qual os EUA financiaram e apoiaram o golpe de estado de Augusto Pinochet que culminou com a queda do presidente eleito Salvador Allende e a implementação da política econômica neoliberal. E a experiência brasileira, em que o golpe civil militar de 1964, teve grande interferência e influência do imperialismo aliado com a atuação do complexo IPES/IBAD, Think Tanks que preparou ideologicamente a população brasileira para a ruptura institucional por meio da propagação de notícias, textos e afins. Além de ter articulado grupos e lideranças dentro do governo e do exército. Ao final da Guerra Fria, o Brasil já havia passado pelo processo de redemocratização, com a promulgação da Constituição “Cidadã”. No entanto, nesse tempo, as estruturas Capitalistas já estavam consolidadas e operava globalmente a Atlas Network, grande financiadora de Think Tanks voltadas a propagação da ideologia neoliberal. No Brasil, as eleições de Ferdano Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso foram marcadas pelo apoio da grande mídia, que sempre favoreceu o candidato “queridinho” do “mercado”, governos pautados pela defesa irrestrita das agendas neoliberais. Nos anos 2000, com a ascensão do governo petista no Brasil, e de outros governos de esquerda na América Latina, os trabalhos das Think Tanks se intensificaram, alavancando campanhas contra os programas sociais, direitos trabalhistas, entre outras políticas de governo feitos nos anos petistas, ações que fabricaram crise institucional que possibilitou a conjuntura para o impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016. | 35 | O presente artigo demostra que nossa frágil democracia convive com as consequências da pesada guerra ideológica articulada e financiada pelo imperialismo estadunidense, tendo como aliadas as elites econômicas regionais, que submetem a economia do país, cada vez mais dependente do setor privado, a condição subalterna de desenvolvimento. Nessa perspectiva, considerando o atual panorama, as sociedades da periferia do capitalismo, como as da América Latina, não podem deixar de refletir de forma crítica os impactos da dominação do centro hegemônico, e sobretudo, traçar estratégias para romper com a dependência, observando as necessidades e peculiaridades locais, constituindo uma sociedade verdadeiramente paulada pelos princípios democráticos. REFERÊNCIAS ANSART, Pierre. Ideologias, conflito e poder. Rio de Janeiro: Zahar Editores. 1978. ARAUJO, Jonathan Frade. O Fenômeno dos Think Tanks e as Relações Internacionais: O Caso do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES). Seropédica/RJ, 2019. ARAÚJO CHERSONI, Felipe de. A criminologia campesina: Os impactos do controle social na luta pela terra junto ao movimento dos trabalhadores rurais (MST) na região do Planalto Catarinense. 231 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de PósGraduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC, Criciúma, 2023. 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Aurora, Marília, v. 5, nº 2, jan-jun 2021. Saiba quem foram os parlamentares mais votados na eleição de 2018. Conjur, 2022. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-out02/quem-foram-parlamentares-votados-eleicao-2018; Acesso em: 30 jul. 2023. TELES, Edson. “Do poder soberano ao inimigo íntimo” in DARDOT, Pierre; GUÉGUEN, Haud; LAVAL, Christian; SÂUVETRE, | 37 | Pierre. Uma outra história do neoliberalismo. Tradução: Márcia Pereira Cunha. Porto Alegre: Editora Elefante. 2021. p. 9-20 VIDAL, Camila Feix. Lopez, Jahde. (Re) pensando a dependência latinoamericana: Atlas Network e institutos parceiros no governo Bolsonaro. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 38, p. 1-40. | 38 | CAPÍTULO 2 PRODUCCIÓN Y REPRODUCCIÓN DE LA VIDA: APUNTES DESDE LA TEORÍA DE LA REPRODUCCIÓN SOCIAL PARA COMPRENDER LA (R)EXISTENCIA DE MUJERES FRENTE AL TRABAJO EN EL MERCADO ILEGAL DE LAS DROGAS Aila Fernanda dos Santos INTRODUCCIÓN Este trabajo forma parte de los resultados emergentes de una investigación doctoral aún en desarrollo realizada en el Programa de Postgrado en Trabajo Social de la Pontificia Universidad Católica de São Paulo (Brasil) en colaboración con el Programa de Trabajo Social de la Universidad Externado de Colombia1. La justificación central de esta investigación proviene del reconocimiento de que las producciones teóricas y los debates en relación con el prohibicionismo y el mercado ilegal de drogas, especialmente el trabajo de las mujeres en este mercado, se han llevado a cabo de manera fragmentada y atravesada por la falta de reconocimiento y problematización en relación con el trabajo reproductivo, al que las mujeres han sido compulsoriamente empujadas (Bhattacharya, 2019). Por ello, desde una perspectiva de totalidad fundamentada en el método del materialismo histórico dialéctico (NETTO, 2017) se busca entender el trabajo de las mujeres en el mercado ilegal de drogas como un trabajo. Aunque aparentemente esta afirmación pueda parecer trivial, tiene dos grandes desafíos. 1 Es importante reconocer que esta investigación aún se encuentra en desarrollo, por lo que aún es necesario profundizar en el análisis teórico. Por lo tanto, este capítulo está escrito en el marco de aproximaciones teóricas, así como de aproximaciones a la realidad colombiana y brasileña. | 39 | El primero es reconocer el trabajo en el mercado ilegal y las actividades ilegales como parte de la propia dinámica del capital, en la que el trabajo formal no es la realidad para la mayoría de la población en los países del capitalismo dependiente y periférico, y la informalidad es una característica fundamental del mercado de trabajo (TELLES, HIRATA, 2007). Es frente a formas inusitadas de reproducción de la vida que el trabajo informal e ilegal se plantea como una condición de existencia frente a la organización social impuesta por el capital. El segundo desafío es la articulación dialéctica entre producción y reproducción social, es decir, el develamiento del trabajo invisible, no remunerado, precario y subordinado que realizan las mujeres en el mercado ilegal de drogas. En este sentido, se busca un diálogo crítico esencial con cierto marxismo que durante mucho tiempo consideró trabajo sólo a aquellos centrados en la producción directa de plusvalía (ROCHA, et.al., 2022), así como con ciertas vertientes del feminismo marxista basadas en la perspectiva interseccional, que tienen formas de entender la dinámica del capitalismo a través de la intersección de opresiones (MORAES, 2021). Es importante resaltar que muchas investigaciones han sido realizadas en Brasil y Colombia con relación al encarcelamiento de mujeres por el delito de tráfico de drogas, o sea, actividades desarrolladas en el microtráfico. Sin embargo, todavía hay una ausencia de investigaciones sobre la situación de las mujeres en la economía de las drogas en relación con el cultivo y la producción (RELEVO et. al, 2018). Incluso Relevo (2018) señala que la propia ONU Mujeres ha mencionado la necesidad de estudios sobre la participación de las mujeres en la economía de la coca y los impactos que se derivan de este vínculo. | 40 | Además, con base en una perspectiva marxista, la contradicción capital versus trabajo también pone en evidencia la lucha de clases (MARX, 2017). Por lo tanto, a partir del reconocimiento del mercado ilegal como espacio de venta de fuerza de trabajo frente a las necesidades de producción de capital y reproducción de la vida, es necesario reconocer que la existencia de estas mujeres no ocurre pacíficamente frente a los impactos de la prohibición y del mercado ilegal de drogas. Existen movilizaciones, organizaciones, movimientos y formas de vida en estos territorios que constituyen la propia lucha de clases en su máxima concreción. Es frente a este complejo de relaciones que partimos de la pregunta "¿cómo la TRS puede iluminar el análisis del trabajo de las mujeres en el mercado ilegal en Brasil y Colombia y cuáles son las formas de resistencia de estas mujeres?”. Dado esto, el objetivo de este capítulo es presentar algunas pistas para entender cómo el trabajo en el mercado ilegal de drogas atraviesa la vida de las mujeres en Brasil y Colombia desde la perspectiva de la Teoría de la Reproducción Social, ya que aún no hay investigaciones publicadas en Brasil en relación a este tema en esta perspectiva teórico-política. Se asume que este capítulo compone algunos resultados parciales de una investigación de enfoque cualitativo donde se utilizaron fuentes primarias a través de entrevistas semi-estructuradas realizadas a mujeres líderes durante el período de pasantía doctoral en Colombia, así como a través de fuentes secundarias como informes, investigaciones y publicaciones sobre el tema en Brasil y Colombia. | 41 | LA TEORÍA DE LA REPRODUCCIÓN SOCIAL (TRS) COMO CLAVE PARA ANALIZAR LA TOTALIDAD DE LAS RELACIONES SOCIALES Para profundizar nuestra comprensión de las r(e)existencias de las mujeres frente al mercado ilegal de drogas, es necesario primero entender los fundamentos de la matriz teórico-político-metodológica que nos guía. El feminismo marxista ha ganado ascendencia en los debates feministas actuales. Sin embargo, no se trata de una nueva perspectiva de análisis sobre la opresión de las mujeres. Aunque el debate haya adquirido nuevos contornos con el capitalismo en su fase actual, que ha exigido nuevas lecturas de la realidad, es la expresión de un legado del campo feministasocialista2 y articulados debates sobre feminismo y marxismo de los años 60 y 70 en EE.UU., Canadá y Europa Occidental (ROCHA, et.al, 2022), período en el que también se desarrolló la destacada obra de Lise Vogel "Marxism and the Oppression of Women: Towards a Unitarian Theory", publicada inicialmente en 1983, que constituye el punto de partida de la Teoría de la Reproducción Social3. Cabe destacar que en la época este trabajo sufrió un profundo borramiento debido a la desorganización del movimiento feminista-socialista en un contexto de avance del neoliberalismo y la posmodernidad en la década de 1980, en un escenario de retroceso, flexibilización de las relaciones laborales, 2 3 Algunas mujeres importantes participaron en el proceso de la Revolución Rusa de 1917, como Alexandra Kollontai, Clara Zetkin y Nadêja Krupskaia, que ya denunciaban la condición de la mujer trabajadora. Tal fue el protagonismo de las mujeres en la Revolución Rusa que fueron las primeras en estar en las calles en huelga, exigiendo mejores condiciones de vida, lo que desembocó en la Revolución ( FERGUSON, MACNALLY, 2017). La Teoría Unitaria tiene como principal hito la obra de Lise Vogel: "Marxismo y opresión de la mujer: hacia una teoría unitaria", publicada en 1983 y reeditada y recuperada en 2013. Esta obra fue traducida en Brasil en 2022 por mujeres integrantes del Grupo de Estudios sobre Teoría de la Reproducción Social, publicado por Expressão Popular. | 42 | retirada de derechos sociales y laborales, que impactó en las organizaciones de izquierda (FERGUSON, MCNALLY, 2017). Según Ferguson y McNally (2017), a pesar de este borramiento, algunos grupos continuaron alimentando los debates sostenidos por Vogel debido a su originalidad en el campo feminista-socialista, especialmente por su diálogo y desarrollo de teorizaciones materialistas históricas basadas en la obra madura de Marx - El Capital (Volumen I), Esto fue lo que constituyó el punto de partida teórico de Vogel, que para la época se consideró un avance, ya que gran parte de la tradición del feminismo-socialismo se basaba en textos como La idología alemana de Engels o El origen de la familia, la propiedad privada y el Estado. Esto permitió un salto cualitativo indispensable para entender la opresión de las mujeres en el capitalismo al tener en cuenta importantes categorías así como la centralidad de la teoría del valor-trabajo de Marx, abriendo un nuevo campo de investigación feminista-socialista (FERGUSON; MACNALLY, 2017). La obra de Vogel fue recuperada y reeditada en 2013, ya en un escenario de reorganización de la clase trabajadora en respuesta a una crisis estructural del capital expresada por una crisis civilizatoria y reproductivo-social que intensificó aún más las contradicciones entre la producción de valor frente a la reproducción de la vida. En este contexto, hay una reconvocatoria del marxismo para explicar esta realidad, culminando en un campo de convergencia entre intelectuales y militantes que buscaban explicar la realidad a través de "una teoría unitaria capaz de explicar la unidad dialéctica de las relaciones de explotación y opresión - en particular entre género, raza y clase" (ROCHA, et.al., 2022. p. 17). Es precisamente esta reedición de Vogel en la conformación de este campo y la construcción crítica de la obra y sus avances teóricos, que se basa | 43 | la Teoría de la Reproducción Social. Sin embargo, en Brasil, asume otros contornos, porque no ocurrió a través de debates teóricos publicados en medios nacionales en grupos militantes y académicos y sí, "es fruto de una práctica de resistencia cotidiana oral, corporal y comunitaria a la experiencia colonial, imperialista y a la organización del capitalismo dependiente" (ROCHA, et.,2022, p. 18). Por lo tanto, es a partir del legado de la lucha y resistencia de las mujeres negras e indígenas que lucharon contra la esclavitud durante el período de la colonización, que marcaron formas de relaciones sociales de producción y reproducción de la vida que aún hoy están presentes, que se parte para pensar la lucha de clases y la construcción de la TRS en este territorio: Ubicar, por lo tanto, la tradición teórica feminista-socialista en Brasil no puede reducirse a posicionar cronológicamente textos y reflexiones sobre el capitalismo y la opresión de las mujeres. Es necesario considerar análisis como el de Werneck (2020), por ejemplo, que sitúa el proceso de resistencia intergeneracional de las mujeres negras destacando su relación con tradiciones de matriz africana, indígena y afroindígena. En la metáfora ialodês, la agencia de las mujeres negras en resistencia continua en la historicidad brasileña es explicable y se torna comprensible a partir de su cosmogonía, oralidad y prácticas corporales que informaron e informan esa actuación política (ROCHA, et.al., 2022, p. 19, traducción nuestra ). En este sentido, las luchas y resistencias a lo largo de la historiografía brasileña también tendrán importantes repercusiones en el campo de las formulaciones teóricas dentro y fuera de las universidades públicas (aunque con diversos límites debido a la falta de representatividad en estos espacios). En la década de 1960, mientras las mujeres del centro del capitalismo realizaban importantes debates en relación al trabajo doméstico y a la opresión de las mujeres, enfrentaban una realidad de represión, reducción de la circulación de perspectivas revolucionarias, así como de producciones | 44 | feministas-socialistas debido al período dictatorial (ROCHA, et. al, 2022). Autoras importantes como Lélia González4 y Heleieth Saffioti5 Lélia González y Heleieth Saffioti estuvieron entre las autoras pioneras en Brasil en teorizar y ofrecer una base analítica para comprender el género, la raza y la clase a partir de la formación socio-histórica brasileña y, por lo tanto, encarnando la historia de la resistencia y de las luchas populares, feministas, originarias, negras y socialistas, aunque se haya intentado borrar sus formulaciones, especialmente sus perspectivas anticapitalistas. A partir de estas formulaciones embrionarias de una perspectiva de totalidad, es a través del legado de estos autores en Brasil que la TRS pretende avanzar en un marxismofeminismo que dialogue con la realidad de los países del capitalismo dependiente y periférico (ROCHA, et. al, 2022), especialmente considerando las r(e)xistencias de las mujeres en este proceso histórico. Es en la incorporación de estos debates en los estudios académicos y en la lucha comprometida del movimiento de mujeres que la TRS llega con fuerza a Brasil, impulsando incluso la traducción de importantes obras. Siguiendo este legado, la obra de Vogel contribuyó al campo marxista en medio de un contexto histórico de acalorados debates sobre el trabajo doméstico en Europa. Frente a tantas controversias, Vogel, basándose en la teoría del valor de Marx, 4 5 El libro Lélia Gonzalez: Primavera de Rosas Negras (2018), organizado y editado por la Unión de Colectivos Panafricanistas (UCPA), y el posterior Por um Feminismo Afro-Latino-Americano (2020), organizado por Flávia Rios y Márcia Lima, son dos recopilaciones de diversos escritos de Lélia Gonzalez, importante intelectual brasileña. Filósofa, antropóloga, profesora, escritora y activista, fue una de las pioneras en el estudio de la cultura negra en Brasil, así como miembro del Movimiento Negro Unificado (MNU) y una de las principales referencias del feminismo negro en el país. Saffioti fue socióloga marxista, profesora y una de las principales referencias en estudios de género. El libro A mulher na Sociedade de classes: mito e realidade es una de las principales obras sobre la situación de la mujer trabajadora en el modo de producción capitalista en Brasil. La obra es el resultado de la tesis libre-docencia de la autora, publicada en 1976, bajo la supervisión del sociólogo brasileño Florestan Fernandes. | 45 | ofrece una famosa contribución al afirmar que el trabajo doméstico no remunerado, aunque no participa directamente en la producción de plusvalía, ya que no produce valor de cambio (MARX, 2017), contribuye a su dinámica de producción en la medida en que constituye valor de uso, ocupando así un lugar fundamental en la producción de valor. Esta aportación supone, sin duda, un salto significativo en la comprensión del trabajo femenino, permitiendo arrojar luz sobre los hilos menos visibles del trabajo no remunerado a través de una explicación teórica única e integrada sobre la opresión de la mujer y la importancia de la reproducción social para el capitalismo (FERGUSON, MCNALLY, 2017). Bhattacharya (2019), autora contemporánea en los estudios de TRS, al recuperar la perspectiva de totalidad de Vogel, indaga que: Si la fuerza de trabajo produce valor, ¿cómo se produce la propia fuerza de trabajo? Este cuestionamiento lleva en sí mismo el poder de mostrar que la lucha de clases, librada entre el capital y el trabajo, no concierne sólo al campo de la producción, tal como ha sido históricamente entendido. Afecta, al mismo tiempo y de forma integrada, también al campo de la reproducción social, el espacio donde se produce y reproduce la mercancía fuerza de trabajo para garantizar la reproducción ampliada del capital: Este es esencialmente el argumento principal de lo que Vogel y estos marxistas posteriores llaman la "teoría de la reproducción social". La teoría de la reproducción social muestra cómo "la producción de bienes y servicios y la producción de vida forman parte de un proceso integrado", como dice Meg Luxton. Si la economía formal es el lugar de producción de bienes y servicios, las personas que producen tales cosas, se producen a su vez fuera de la economía formal a un coste muy bajo para el capital (BHATTACHARYA, 2019, p. 103, traducción nuestra). También según Bhattacharya (2019), la fuerza de trabajo en general se reproduce mediante tres procesos integrados: 1) | 46 | Mediante actividades que regeneran a los trabajadores para que puedan volver al proceso de producción. Estas actividades van desde la alimentación y la aseo hasta la asistencia educativa, psíquica y emocional. 2) Actividades que mantienen y regeneran a los trabajadores que están fuera del proceso de producción, es decir, niños, mayores, adultos desempleados o personas que están fuera del mercado laboral y; 3) La renovación generacional de la mano de obra, realizada a partir de la producción de "trabajadores frescos". Según la autora, estas actividades forman la base que sustenta el capitalismo y son realizadas gratuitamente por las mujeres (BHATTACHARYA, 2019). Esta comprensión también permite que la TRS avance en relación a otras perspectivas teóricas del campo feministamarxista6, que consiste en la retomada de la categoría de totalidad de Marx, posibilitando superar una perspectiva estructuralista en la comprensión de que "esferas" de la producción y reproducción sociales son concebidas de formas separadas y aisladas, lo que impactó directamente en la comprensión de qui es la classe trabajadora y, consecuentemente, lo que es luta de classes (BHATTACHARYA, 2019). Con esto, también podemos destacar otro elemento crucial en la crítica de las autoras de la TRS que representa un avance en relación a los sistemas dobles y triples, es decir, las perspectivas que entienden que el género, la raza y la clase son sistemas separados, que operan de forma independiente y con leyes propias y, por lo tanto, a veces se cruzan y a veces se entremezclan, según algunas conceptualizaciones de interseccionalidad y consubstancialidad (MORAES, 2021). La TRS teóricamente entiende que género, raza y clase son fenómenos del mismo sistema (el modo de producción 6 Es importante destacar que las feministas que reivindican el marxismo no lo hacen de una única manera, ya que existen varias lecturas del propio marxismo (MORAES, 2021). | 47 | capitalista) y busca a través de mediaciones, entender la sociabilidad generizada y racializada como una totalidad social. En este sentido la TRS se diferencia de otras claves explicativas. Es importante mencionar que los debates sobre la interseccionalidad son un campo heterogéneo con varias controversias. Según Moraes (2021), ni siquiera hay consenso sobre qué es la interseccionalidad, si consiste en un concepto, una teoría, una herramienta analítica, una metodología o un enfoque. Según la autora, ni siquiera Kimberlé Crenshaw, que acuñó el término interseccionalidad en 1989, la considera una teoría. Además de las diferencias en el campo teórico, también es diversa la forma en que se moviliza la interseccionalidad en el campo de la lucha, ya que la interseccionalidad se utiliza a menudo para referirse a la importancia del debate integrado sobre género, raza y clase, o incluso para reivindicar la agenda antirracista (MORAES, 2021). Actualmente, también presenciamos la cooptación neoliberal de la interseccionalidad en las políticas públicas sin hacer una articulación con la clase social, o entendiéndola apenas como un estrato social. Esto, según Moraes (2021), se debe muchas veces a cómo la interseccionalidad gana el espacio de la academia por Kimberlé Crenshaw que "retrata lo social en términos espaciales, en los que, para usar su ejemplo, la intersección de las calles del colonialismo y el patriarcado representa un nodo de múltiples opresiones" (FERGUSON, 2017, p. 16). Patricia Hill Collins (2017), que rescata una perspectiva crítica de la interseccionalidad, señalará incluso cómo el término se pierde en la traducción de su institucionalización, ya que lleva su origen en el movimiento feminista negro en los Estados Unidos, especialmente a través de la lucha del Colectivo del Río | 48 | Combahee y, por lo tanto, teniendo un aspecto revolucionario y emancipador7. En cuanto a la consubstancialidad, tiene su génesis en el feminismo francófono de 1970-1980. La principal precursora del término fue Danièle Kergoat, que propone superar las nociones de adición e intersección, tal como defiende la interseccionalidad, proponiendo la lectura de que el sexo8, raza y clase se producen y se co-reproducen mutuamente y, por lo tanto, estas relaciones son consustanciales, coextensivas y aprehendidas de forma indisociable, trabajando con la perspectiva de imbricación (CISNE, SANTOS, 2018). A pesar de los esfuerzos, la consustancialidad seguirá recayendo en la comprensión de sistemas triples, pues la imbricación de relaciones ratifica que clase, raza y género pertenecen a sistemas diversos, siendo necesario comprender que, desde la perspectiva marxista, que "el todo no es la simple suma de las partes" (MORAES, 2021, p. 150) y, por lo tanto, la perspectiva de totalidad y el análisis desde la ontología integradora que es lo que propone teóricamente la TRS avanza más allá de la adición o imbricación de las relaciones de opresión, aunque comprendiendo la importancia que consiste el avance de estos estudios. Según Ferguson (2017), el capitalismo es un todo unificado, diferenciado y también contradictorio. Por lo tanto, la 7 8 Es importante mencionar que las feministas socialistas negras norteamericanas ya habían señalado desde 1940 la importancia de pensar la totalidad social, considerando género, raza y clase, siendo por lo tanto pioneras en este debate (RUAS, 2020). Como ya mencionamos, en Brasil, feministas negras como Lélia González, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, entre otras, también hicieron esta crítica, aunque no utilizaron el término interseccionalidad. Para comprender las diferencias y controversias entre los términos género y sexo, véase: Scott, J. (2017). Género: una categoría útil de análisis histórico. Educación &Amp; Realidad, 20(2). Recuperado de: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721 y también: CISNE, M; SANTOS, S.M. Las relaciones sociales de sexo/sexualidad y el concepto género En: Feminismo, diversidad sexual y Servicio Social - São Paulo: Cortez, 2018, p.46 a 56. | 49 | categoría de concreto en Marx se vuelve fundamental para pensar el género, la raza y la clase (BANNERJI, 2022). En este mismo sentido, comprender la dialéctica del todo no excluye explicitar las diferencias de las partes que constituyen esta totalidad social, porque son esenciales para la reproducción del todo. Por eso, el capitalismo racializado y generizado es una unidad diversa y, según Ferguson, "una teoría integradora está incompleta a menos que pase de esta abstracción a nombrar la lógica social que informa la unidad existente y concreta de estas relaciones"(FERGUSON, 2017, p. 23). Este análisis confirma la necesidad del capital de expropiar el trabajo de las mujeres para su propia producción y reproducción, dándole un aura de tiempo social improductivo, pero que en realidad es la base para sostener la acumulación capitalista. En esta misma dirección, Ferreira (2017) señala que la apropiación sistemática del tiempo de vida de las mujeres es absolutamente funcional a la acción del Estado en las sociedades periféricas. Según la autora, al utilizar este tiempo social, el Estado asegura el cumplimiento de su tendencia histórica en el capitalismo dependiente, que tiene como objetivo satisfacer las necesidades de reproducción de la fuerza de trabajo a través de políticas de bajo costo. En palabras de Ferreira (2017, p. 184): El tiempo perdido de las mujeres es el tiempo descubierto por el capital, y por su Estado, como recurso, en términos de trabajo y conocimiento, para la realización de sus políticas sociales. Podemos considerarlo, pues, como parte del fondo público que, captado por el Estado, permite liberar para el capital los recursos financieros de la "plusvalía social" gestionada por el Estado. El Estado ahorra en la reproducción de la fuerza de trabajo apropiándose de este tiempo social improductivo en la reproducción social privada, que se convierte entonces en vital, constitutivo de la reproducción social en la esfera pública (traducción nuestra). | 50 | Es en este marco que se inscribe la TRS, no sólo por sus aportes sobre los procesos de degradación del trabajo doméstico, sino, sobre todo, por el hecho de que las feministas de la TRS pensarán, a partir de Marx, la diversidad del trabajo y de los cuerpos que trabajan, entendiendo el trabajo como "una experiencia concreta, encarnada" (FERGUSON, 2017, p. 27). Según los autores, esto significa reconocer que los cuerpos trabajadores son generizados y racializados como no blancos, al mismo tiempo que ocupan espacios geográficos específicos y desiguales en la dinámica capitalista global, lo que determinará su acceso a determinadas políticas sociales, derechos e incluso creará diferenciaciones y desigualdades en la propia forma de explotación laboral (FERGUSON, 2017). Por lo tanto, no se trata de un análisis restringido únicamente al ámbito del trabajo doméstico. La TRS contribuye a ayudarnos a analizar la realidad a partir del desvelamiento de la totalidad social y de la relación entre la supuesta esfera de producción y reproducción. Según Bhattacharya (2019, p.105) toda discusión sobre el salario, el lugar de trabajo o la lucha por los derechos y beneficios laborales es una cuestión altamente sexuada. Cuando observamos la inserción de las mujeres en el mercado de trabajo en Brasil, constatamos que siempre ha estado marcada por la precariedad y por altos niveles de desigualdad en relación a la inserción de los trabajadores hombres, con dosis aún mayores debido a las determinaciones étnico-raciales y las contribuciones de la TRS permiten iluminar otros ángulos de este cuadro, revelando cómo la opresión de las mujeres se sostiene y se configura en la dinámica de la relación contradictoria entre producción de valor y reproducción de la vida. Según Marques et al. (2018, p. 6) la informalidad, que siempre ha sido una característica histórica del mundo del | 51 | trabajo en Brasil, se ha expandido y diversificado considerablemente en los últimos años, superando las tasas de trabajo formal al alcanzar el nivel del 51,29% de la población económicamente activa del país en 2018. En 2019, cerca de 13,5 millones de mujeres trabajaban informalmente en Brasil (DIEESE, 2021), sin contar el contingente de 6,4 millones de trabajadoras domésticas, muchas de las cuales son informales. Ellas alternan entre trabajos mal remunerados con contrato formal, trabajos sin contrato formal, trabajos ocasionales como limpiadoras, niñeras, vendedoras ambulantes, trabajos temporales y tercerizados, y también la inserción en el mercado ilegal. En otras palabras, las mujeres siguen una trayectoria de vida laboral cada vez más distante del patrón salarial y de protección social que históricamente sustentó la noción de trabajo, lo que sólo puede evidenciarse si consideramos la perspectiva ampliada de trabajo que propone la TRS al analizar la reproducción social. Telles e Hirata (2007) destacan la difusa frontera entre lo informal, lo ilegal y lo ilícito en la que se expande una zona gris, asociada al trabajo precario y temporal, con actividades ilegales, delictivas y clandestinas en el escenario urbano. En esta clave, los autores conceptualizarán como "bazar metropolitano" el que se configuró a partir de la década de 1980 en el que se constituyen "fronteras porosas entre lo legal y lo ilegal, lo formal y lo informal transitando, discontinua e intermitentemente, las figuras modernas del trabajador urbano, haciendo uso de oportunidades legales e ilegales que coexisten y se superponen en los mercados de trabajo" (TELLES, HIRATA, 2007, p. 174). No es casualidad que el avance de los empleos precarios en el mercado ilegal de drogas avance en un período de mayor retracción de derechos, desmantelamiento y flexibilización del trabajo y entre en una dinámica en la que los autores | 52 | denominarán "supervivencia expeditiva" (ibdem., p. 74). Así como el capitalismo contemporáneo difumina estas fronteras en la medida en que los circuitos ilícitos entran en la economía globalizada del capital financiero, haciendo intrínseca esta relación. Frente a lo expuesto, lo que vale la pena destacar aquí es que este mercado ilegal o ilícito forma parte y compone la dinámica del capitalismo contemporáneo en el que las mujeres han venido ocupando un lugar en la reproducción de la fuerza de trabajo, especialmente en el marco histórico de la acumulación primitiva de capital, que se ha mantenido hasta nuestros días. Son ellas las que han sido objeto de formas inusitadas de reproducción de la vida y su inserción en este mercado ilegal se ha convertido cada vez más en una forma de supervivencia ante el avance del capital. Así, la TRS puede ayudar a iluminar estas fronteras entre lo legal y lo ilegal, entre lo productivo y lo reproductivo, y a comprender las formas contemporáneas de resistencia a esta realidad. MUJERES EN EL MERCADO ILEGAL DE DROGAS EN BRASIL Y COLOMBIA: FORMAS DE R(E)EXISTENCIAS Para situar este debate, es importante mencionar que las drogas siempre han estado presentes en la sociedad. Estas sustancias se encontraban en plantas o parte de ellas y contenían un valor de uso (MARX, 2017) para los pueblos originarios y varias otras culturas con fines medicinales, festivos, rituales y religiosos (ESCOHOTADO, 2004, p. 11-12). Sin embargo, las drogas han sido cooptadas por intereses económicos y transformadas en mercancías con fines de intercambio. Según Santos (2019) esta cooptación ocurrió en tres momentos importantes de la historia: en el marco de la acumulación primitiva del capital, que mantenía el interés en ampliar el | 53 | mercado, utilizando el trabajo de los pueblos esclavizados en la colonia; Para la producción y el uso subordinado al capital para que la clase obrera pudiera dar cuenta de las precarias condiciones de explotación laboral en la condición de "trabajo libre"; y en la condición de mecanismo de control de la clase obrera a través de la coerción y la prohibición de determinadas sustancias que pasan a ser consideradas ilícitas. De esta forma, la prohibición de las drogas se constituye como un mecanismo ideológico para someter a determinados grupos sociales a los intereses capitalistas. A pesar de los hechos relevantes a favor de la prohibición de ciertas drogas a lo largo de la historia, fue en el siglo XX cuando la prohibición comenzó a consolidarse de manera sistematizada por la clase dominante a través de leyes y tratados internacionales bajo el liderazgo de Estados Unidos, momento en el que este país inició su proceso de dominación económica, imponiendo ciertos acuerdos y políticas antidrogas a diversos países, entre ellos Brasil y Colombia. La Convención Internacional del Opio de Shanghái y la más amplia y restrictiva concluida en La Haya (Países Bajos) en 1912, sirvieron de base para que el gobierno estadounidense defendiera la urgencia de adaptar las leyes internas estadounidenses a sus compromisos externos en materia de control de drogas (FIORE, 2012; GALLEGO, 2017). Como resultado de la influencia estadounidense, en 1960, a través de reuniones patrocinadas por las Naciones Unidas, se estableció un conjunto de normas con el fin de castigar a quienes consumieran, vendieran o produjeran drogas. Como resultado de este esfuerzo, encontramos la actual coherencia en la dirección de las leyes de drogas en el mundo. En este sentido, la ilegalidad del mercado de drogas es una construcción imperialista de los Estados Unidos a los países productores dependientes, | 54 | imponiendo sanciones y una adhesión a las organizaciones internacionales con el fin de mantener el mercado monopólico y crear a través de la ilegalidad, una cadena de producción extremadamente rentable y controlada a través de leyes criminalizadoras de la producción, circulación y consumo de drogas (DUARTE, 2022). Según Duarte (2022), los valores multimillonarios derivados del narcotráfico dependen de las instituciones financieras globales, como los bancos, para transformar este dinero ilícito en lícito a través del lavado de dinero. Esto muestra cómo la financiarización sirve a los intereses del capital que mantiene a través de la criminalización, junto con el aparato estatal, el mercado ilegal y, al mismo tiempo, subyuga a las mujeres, sobre todo, para cuidar de sus propias condiciones de vida. Mientras se exportan toneladas de drogas y se realizan transacciones multimillonarias, son las mujeres que trabajan en el mercado minorista de drogas para mantener su subsistencia las que son criminalizadas. El mercado ilícito de drogas ha sido una fuente de empleo para mujeres pobres, negras, originarias, campesinas, negras y periféricas. Aunque en Brasil existan pocos estudios que exploren los papeles que las mujeres desempeñan en el cultivo de plantas con fines de producción de drogas ilícitas, varias entidades y agencias multilaterales han demostrado esta preocupación de la participación de las mujeres en la economía ilícita en América Latina (FRAGA, 2015). Cabe destacar que en Colombia se han desarrollado producciones académicas enfocadas en la participación de las mujeres en las economías y circuitos productivos, y Brasil se ha enfocado en estudios sobre la participación de las mujeres en el microtráfico. Al hacer un paralelo entre Brasil y Colombia, podemos identificar algunos fenómenos en común. Según Albornoz | 55 | (2019), el aumento del encarcelamiento femenino en Colombia tiene su principal razón: los delitos relacionados con drogas. Entre los años 1991 a 2018 hubo un aumento del 429 %, superior al relacionado con el aumento del encarcelamiento masculino por el mismo delito y en el mismo período. Hecho similar ocurre en Brasil, donde los datos comparados entre los años 2000 y 2016, la población carcelaria femenina representó un aumento del 656% en comparación con el total registrado a principios de la década de 2000, y, por otro lado, la población carcelaria masculina creció un 293%, siendo la principal razón de encarcelamiento también el tráfico de drogas9 (INFOPEN MULHERES, 2018). Cuando miramos el perfil de estas mujeres en Brasil, nos damos cuenta de que la mayoría son mujeres jóvenes, entre 18 y 34 años, con baja escolaridad, con sólo el 15% de ellas habiendo completado la escuela secundaria, el 62% son solteras y la mayoría, el 74% tienen hijos, así como también, el 62% de las mujeres encarceladas son negras (INFOPEN MULHERES, 2018). Según la investigación realizada por Albornoz (2019), la mayoría de las mujeres privadas de la libertad entrevistadas en Colombia tenían entre 19 y 37 años. La mayoría tiene un bajo nivel educativo, no habiendo terminado estudios de nivel secundario debido a la necesidad de dedicarse al trabajo desde muy jóvenes, así como también, la mayoría tenía hijos y eran consideradas jefas de hogar, es decir, las principales responsables del cuidado de sus hijos, demostrando un perfil común entre las mujeres privadas de libertad de ambos países10. 9 10 Es importante destacar que la legislación brasileña no hace distinción entre la plantación y la venta, ambas se consideran un delito para el tráfico de drogas. Sin embargo, el encarcelamiento de mujeres se ha centrado más en las actividades de comercio (FRAGA, 2015). En este estudio no se encontró información sobre la pertenencia étnica y racial de estas mujeres. | 56 | Otro dato que llama la atención es que en ambos países estas mujeres ocupaban actividades históricamente feminizadas, así como trabajos temporales, informales y precarios (ALBORNOZ, 2019; HELPES, 2015). Según (HELPES, 2015), la mayoría de las mujeres eran responsables económicamente de su familia antes de ser encarceladas, y eran madres solas, las principales responsables de la actividad de reproducción social. De acuerdo con los datos de las entrevistas realizadas a estas mujeres, se observó un cambio en la razón por la que ingresan al trabajo "ilegal" del narcotráfico. Si antes se debía al vínculo afectivo con la pareja o con el hijo involucrado en el tráfico, o también al desempleo, ahora no hay condiciones suficientes para mantener la reproducción de la vida, aunque tengan empleo: De hecho, varios entrevistadas que sufrían la falta de posibilidades de garantizar condiciones materiales razonables para sus familias se insertaron de alguna forma en el mercado de trabajo. De los 81 entrevistadas, sólo 19 declararon no haber trabajado en ninguna profesión, es decir, el 25%, mientras que 62 entrevistadas, el 76%, declararon haber trabajado en puestos remunerados antes o durante el tráfico de drogas. Entre las entrevistadas en el mercado de trabajo, 33% no tenían tarjeta de trabajo firmada ni garantizaban otros derechos laborales (HELPES, 2015, p. 123, traducción nuestra). Helpes (2015) también señala en esta investigación que las principales actividades de estas mujeres se desarrollaban en el sector servicios, siendo la principal actividad la de empleada del hogar. Según Albornoz (2019) en relación a la ocupación de estas mujeres en Colombia también destaca las mismas actividades: De las 19 mujeres entrevistadas por los delitos de drogas, 6 dijeron realizar oficios varios (aseo, camarera, etcétera), 3 ventas, 2 reciclaje, 2 eran amas de casa, una costurera, una secretaria; una dijo vender droga, otra se abstuvo de contestar y 2 manifestaron ser desempleadas. Datos que coinciden con los encontrados en el estudio de los 23 expedientes: doce mujeres se identificaron en ventas, tres como amas de casa, tres en oficios varios, una como artesana, tres eran desempleadas y una no manifestó su ocupación. | 57 | Ocupaciones que coinciden con las establecidas por el Dane en el trimestre de noviembre 2018-enero 2019, al señalar que la rama de actividad con mayor participación de mujeres fue la de servicios comunales, sociales y personales (Dane, 2019). Según el estudio de Sánchez-Mejía et al. (2018), el 37,1% de las mujeres condenadas por estos delitos manifestó que sus ingresos mensuales eran inferiores a un millón de pesos (p. 72). Aunque no haya una única razón para la entrada de las mujeres en el mercado ilegal de drogas, es evidente que los cambios y reestructuraciones en el mundo del trabajo, así como la organización social capitalista generizada y racializada, pone diversas condiciones a la clase trabajadora en su heterogeneidad. Según Duarte (2020) y Albornoz (2019), el desempleo es uno de los principales factores que llevan a las mujeres a entrar en el narcotráfico y esto guarda una importante relación con cómo se constituye la acumulación de capital en los países del capitalismo periférico y dependiente "vía desindustrialización e informalidad forzada al circuito global de las drogas" (DUARTE, 2020, p. 881). Según Duarte (2020), las actividades que las mujeres realizan en el narcotráfico también están relacionadas con la forma en que el modo de producción capitalista se organiza y utiliza los cuerpos generizados y racializados. En general, las mujeres ocupan posiciones de "mulas" y, en la historia colonial de Brasil, esto no es una mera coincidencia, ya que la mula fue un animal esencial para el proceso de colonización y de extrema importancia para el desarrollo de la colonia: Entre las características atribuidas a la mula, además de la fuerza física, expresada en la capacidad de caminar durante horas y con bajo gasto energético, los propietarios de mulas afirmaban que era un animal obediente, pasivo y dócil, que aceptaba órdenes con mayor facilidad. Afirmaban que, por ser hembra y proceder del cruce de asno macho y yegua, era más inferior que otros animales de la especie de la que procedía (caballos y asnos) (DUARTE, 2020, p. 873, traducción nuestra). | 58 | Las mujeres que ejercen la actividad de "mulas" son en su mayoría negras, y no corresponden al transporte de los grandes narcotraficantes, sino más bien a las actividades ligadas al pequeño comercio. Muchas de ellas siguen colocadas en situaciones de mulas-estratégicas, contratadas incluso sin saberlo, precisamente para ser detenidas. Es importante decir que este lugar que ocupan las mujeres en las cadenas del narcotráfico las coloca en condiciones aún más expuestas a la criminalización y al encarcelamiento. Sin embargo, la aceptación de esas condiciones de trabajo no representa mera pasividad, sino una búsqueda de condiciones de supervivencia, orientadas a la reproducción social de la vida y de la familia, pues las mujeres refieren que el dinero proveniente del mercado de drogas, en su mayoría, está dirigido a mejorar sus condiciones de vida y promover el bienestar económico y material de sus hijos (DUARTE, 2020). Este es un elemento central de análisis de cómo el colonialismo y el capitalismo racializado y generado se expresa en la realidad brasileña y que sigue anunciando, desde su génesis, la forma en que este modo de producción se estructuró a partir de la colonización y la importancia del racismo para el desarrollo y consolidación del capital (FAUSTINO, 2018). Según Lélia Gonzalez (2020), el lugar de la mujer negra en la colonización estructuró el modo de producción capitalista y, por lo tanto, este lugar necesita ser constantemente recolocado. La función de "mucama" se caracterizaba por las funciones de la mujer esclavizada en el sistema de producción esclavista. Era ella quien prestaba los servicios domésticos de cuidado y educación de los hijos de las mujeres blancas de la Casa Grande e incluso los servicios sexuales de los señores. Por ello, la mujer | 59 | negra era vista a veces como la "mulata”11, ya fuera para satisfacer las necesidades sexuales o para satisfacer las necesidades domésticas de reproducción social de la familia. Por lo tanto, "vemos que el engendramiento de la mulata y de la mujer doméstica se basaba en la figura de la mucama" (GONZALEZ, 2020, p. 73, nuestro énfasis). Este engendramiento que Lélia nos relata es lo que aún hoy podemos experimentar en el lugar social de la mujer negra en la sociedad brasileña cuando analizamos el trabajo y el perfil de las trabajadoras domésticas en la actualidad.12. En cuanto a la doméstica, no es más que la mucama permitida, la que proporciona bienes y servicios, es decir, la burra que lleva a cuestas a su familia y la de los demás. Por eso es el lado opuesto de la exaltación; porque está en la vida cotidiana. Y es en esta vida cotidiana donde podemos ver que somos vistos como domésticas. El mejor ejemplo de ello son los casos de discriminación de las mujeres negras de clase media, que cada vez son más numerosos. De nada sirve ser "educada" o "bien vestida" (al fin y al cabo, la "buena presencia", como vemos en los anuncios de empleo, es una categoría "blanca", sólo atribuible a los "blancos" o "blancas"). Los conserjes de los edificios les obligan a entrar por la puerta de servicio, obedeciendo las instrucciones de los liquidadores blancos (los mismos que "se los comen con los ojos" en Carnaval o en las oba-obas de la vida). Al fin y al cabo, si es negro sólo puede ser doméstica, así que, puerta de servicio (GONZALEZ, 2020, p. 73, traducción nuestra) Las mujeres negras son la mayoría de las trabajadoras domésticas en Brasil (PNAD, 2019), al igual que las mujeres 11 Lélia señala que el término mulata, antes entendido como hija mestiza entre una persona negra y una blanca (y que hoy es un término problematizado por el movimiento feminista negro), va más allá. Es una creación de este sistema para dar un lugar a las mujeres negras en el mercado de trabajo. La mulata es el producto de exportación. Para ella "la profesión de mulata es ejercida por jóvenes negras que, en un proceso extremo de alienación impuesto por el sistema, se someten a la exposición de sus cuerpos (con el mínimo de ropa posible), a través del "rebolado", para el deleite del voyeurismo de turistas y representantes de la burguesía nacional" (GONZALEZ, 2020, p. 51, traducción nuestra). Esta es la representación de la mujer negra hoy en el carnaval brasileño. 12 Según el PNAD, en 2019 Brasil contaba con cerca de 6,4 millones de trabajadores domésticos, de los cuales el 92% eran mujeres y el 65% mujeres negras, en su mayoría con bajo nivel educativo y de familias empobrecidas. | 60 | negras son las más encarceladas por tráfico de drogas en Brasil. Según la investigación realizada por Helpes (2015), la mayoría de las mujeres entrevistadas que fueron encarceladas por tráfico de drogas eran negras y realizaban trabajos informales y precarios como empleadas domésticas y limpiadoras mientras trabajaban en el mercado ilegal de drogas, en su mayoría trabajando como "mulas". Con el apoyo teórico de González (2020) podemos reflexionar sobre el proceso histórico de estos roles sociales que se evidencia en el trabajo de las mujeres en el mercado ilegal de drogas. La "mulata", que representa el "producto de exportación", también asume el papel de "mula", como producto para la exportación de drogas que muchas veces son incluso introducidas en sus propios cuerpos (DUARTE, 2020). La doméstica, como afirma González (2020), carga sobre sus espaldas los costos de la reproducción social de otras familias, realizando el trabajo más precario e informal de reproducción social, inserta en ese proceso de deshumanización absoluta. En este sentido, el engendramiento de lo "doméstico" y la "mula" que se expresa en la "mucama" es la exteriorización más concreta de estas mujeres que trabajan en el mercado ilegal como mulas, ya que, como señala la investigación de Helpes (2015), también realizan mayoritariamente actividades como empleadas domésticas y de limpieza. Este análisis de la totalidad es muchas veces mistificado por la separación dualista que permea los estudios de género y que llevó a entender que el aumento del encarcelamiento femenino está sujeto a un sistema patriarcal de opresión de los hombres sobre las mujeres, ocultando un análisis del propio metabolismo social del capital como modo de producción que integra explotación y opresión en una totalidad social, considerando además que esta informalidad y el trabajo en | 61 | circuitos considerados "ilegales" son parte de un proyecto de gestión individualizada de esta supervivencia. Es importante mencionar que esta expresión de lo concreto puede evidenciarse en la división socio-sexual, étnicoracial e internacional del trabajo13,que se hace aún más evidente en momentos de crisis del capital, ofreciendo salarios por debajo del costo de supervivencia a mujeres racializadas como noblancas en Brasil y Colombia. Esta realidad también se imprime en el mercado "ilegal" y se refleja en el aumento del encarcelamiento femenino en los últimos años en estos países, ya que están expuestas por ocupar, en su mayoría, posiciones subordinadas en la cadena del narcotráfico como estrategia de supervivencia, al mismo tiempo que les permite realizar actividades y trabajos informales o incluso mantener el espacio doméstico y el cuidado de sus hijos, ya que la mayoría de ellas son también cabezas de familia y madres solas. LAS FORMAS DE (R)EXISTIR FRENTE AL CULTIVO ILÍCITO Las formas de R(e)xistencia frente al mercado ilegal de drogas en determinadas condiciones sociales también están relacionadas con las condiciones históricas de los países. En Brasil, las actividades de plantación están restringidas a determinadas áreas geográficas y a menudo son insuficientes para abastecer el mercado internacional. Esta división internacional del trabajo en el mercado ilegal también coloca a Brasil como un país con una función de salida de estos bienes, dada su ubicación geográfica fronteriza con los países productores (como Bolivia, Perú y Colombia), así como la 13 Para la TRS en la que nos basamos, la opresión de las mujeres en el capitalismo no se localiza únicamente en la división sexual del trabajo, sino en toda la producción y reproducción de la fuerza de trabajo como punto de partida, superando la teoría de los sistemas duales y triples como el capitalismo, el racismo y el patriarcado tomados por separado (MCNALLY, FERGUSON, 2017). | 62 | estructura que permite la circulación (FRAGA, 2015). Sin embargo, aunque poco discutidas, existen algunas regiones productoras enfocadas en la siembra. Según Fraga (2015), datos de la investigación "Mujer y Delito: un estudio sobre la participación de las mujeres en las plantaciones ilícitas en Brasil", realizada en Vale de São Francisco (región nordeste del país), revelaron que la plantación de cannabis es una fuente alternativa de ingresos para las familias que encuentran dificultades para sobrevivir a los cultivos legales en la agricultura tradicional, ya que la prohibición eleva el precio de los productos, pero por otro lado, muchas veces las somete a situaciones de violencia en los territorios. El trabajo de las mujeres en la producción de cannabis, a pesar de su importancia, ha sido invisibilizado dentro de este proceso productivo. Al no ser consideradas actividades necesarias para este proceso, terminan disminuyendo el costo total de producción de la planta, haciendo que la ganancia sea aún mayor, además de la acumulación de actividades domésticas y de cuidado de los hijos que también necesitan realizar. Según la investigación, un hecho muy importante que da particularidades a la siembra de la planta de cannabis es que su producción se concentra en regiones más pobres y con el objetivo de abastecer la expansión de un mercado interno. A las demandas de consumo se suma el crecimiento del agronegocio, en el cual se realizaron inversiones en rutas para el flujo de mercancías. Con el escenario de construcción y crecimiento de represas hidroeléctricas, miles de pequeños agricultores fueron afectados, siendo sus tierras inundadas para la construcción de represas, haciendo de las plantaciones ilícitas una alternativa en esta región. La construcción de la presa, por lo tanto, fue un momento dramático para la mayoría de los trabajadores agrícolas de la región inundada, cuya producción se basaba en la | 63 | agricultura familiar. Como la propia Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco (CHESF), responsable de la administración y mantenimiento de las centrales hidroeléctricas que se construyeron con las aguas del río São Francisco, admite en un informe posterior, el proceso de desplazamiento de la población se hizo de forma desarticulada y prolongada, lo que causó graves problemas a los trabajadores rurales, con o sin tierras en la región (FRAGA, 2015, p. 19, traducción nuestra). La alternativa de plantar cannabis en Brasil, dadas las diversas condiciones marcadas por el agronegocio y la falta de inversión pública en los problemas de esta región, configura el involucramiento de los agricultores con redes criminales de producción y circulación y se expresa en diversas dinámicas de violencia. Las mujeres en estos espacios realizan, en su mayoría, actividades de reproducción social, como cocinar y cuidar de las tumbas de las que sus compañeros son responsables y, además, los recursos resultantes de estas actividades son utilizados para la reproducción social, ya que "las mujeres utilizan gran parte de los recursos para mejorar las condiciones de vida de su familia, en los estudios de sus hijos o su calidad de vida mediante la compra de bienes que, según sus evaluaciones, les proporcionan comodidad" (FRAGA, 2015, p. 31). La creación de condiciones de existencia para estas mujeres en Colombia tampoco es diferente, en donde este proceso se relaciona principalmente con las condiciones de acceso a la tierra y el conflicto armado que impone diferentes condiciones a las mujeres campesinas y afrocolombianas dedicadas a actividades de producción de hoja de coca en determinados territorios. La "guerra contra las drogas" ha impuesto condiciones particulares en la vida de estas mujeres, especialmente frente a la erradicación forzada de los cultivos a través de la fumigación con glifosato, que ha afectado el suelo, el agua y la producción de alimentos y plantea riesgos para la salud, creando aún más desafíos para la supervivencia. | 64 | A pesar del importante hito del Acuerdo de Paz alcanzado por el gobierno nacional con las FARC-EP, especialmente en lo que se refiere al punto 4 de este documento, referente a las plantaciones ilícitas y al Programa Nacional de Sustitución de Cultivos (PNIS), en términos generales aún falta incorporar el enfoque de género, ya que existe un ocultamiento de las experiencias y voces de las mujeres en los estudios sobre drogas e importantes vacíos sobre su participación en el cultivo y producción de esta economía, lo que se refleja en la ausencia de salidas políticas importantes para la sustitución de cultivos y los impactos de la economía cocalera en sus vidas (REVELO, et. al, 2018). Los roles que desempeñan las mujeres en la economía cocalera del Putumayo se constituyen en diferentes momentos de la producción, así como también sufren cambios de acuerdo a las variaciones según cada región del país. Según CUESTA, MAZZOLDI y DURÁN (2017) las mujeres participan en todas las etapas del proceso, desde el cultivo, raspado, procesamiento de la pasta base, venta, transporte, etc. Asumen todas estas tareas principalmente porque son las principales responsables de la reproducción social de sus familias y aún sufren una serie de estigmatizaciones por tener que asumir funciones del ámbito productivo. Otro elemento importante es que aunque participan en actividades como jornaleras, raspachinas o coecheras, finqueras; cocineras; quimiqueras; mulas o colaboradoras (CUESTA, MAZZOLDI, DURÁN, 2017), son ellas quienes siguen asumiendo el trabajo doméstico y el cuidado de los hijos: Ahora que hombres y mujeres trabajan en la ras pa, las labores domésticas, bien sea en el cultivo o en la casa, son asumidas por las mujeres, además de las responsabilidades alrededor de los hijos. A diferencia de un hombre raspachín, la mujer raspachina asume una doble y hasta triple jornada de trabajo, a lo que se suman las consecuencias que trae su movilidad entre cosechas. En no pocos casos, las mujeres jornaleras asumen los retos que implica moverse en tiempos | 65 | de cosecha y hacer de la raspa su labor principal de sustento económico. Las características de movilidad propias de esta labor en la cadena de la coca, han tenido en el largo plazo implicaciones económicas y riesgos diferenciados para las mujeres.(CUESTA, MAZZOLDI, DURÁN, 2017, p. 23-24). Las condiciones de supervivencia y R(e)xistencia impuestas a las mujeres afrocolombianas, indígenas y campesinas las llevan a enfrentar diferentes procesos en los territorios frente al narcotráfico y el conflicto. Las diversas situaciones terminan empujándolas a crear condiciones de supervivencia, como el alquiler de sus tierras para sembrar hoja de coca, actuando como administradoras de la cosecha. Tenemos entonces, por un lado, un proceso histórico, social y económico que legitima el mercado ilegal porque extrae de él enormes cantidades de dinero, y por otro, criminaliza estas mismas actividades como forma de control a través de un aparato estatal y militar. De acuerdo con la entrevista realizada a una mujer afrocolombiana, ella resalta cómo las dinámicas económicas empujan a las comunidades hacia el mercado ilegal como estrategia de sobrevivencia: El tema de la coca se ha impuesto en las comunidades y no hemos dejado de sembrar porque sembrar coca garantiza recursos que nuestro pan no tiene porque no hay forma de acceder a él. La coca se compra directamente en el territorio. (...) en nuestra vía de acceso no es fácil vender nuestros productos y eso hace que efectivamente se desplacen, pero con eso, digamos, con este cambio de cultivo, porque también surge otro problema porque la coca trajo violencia, la coca trajo destierro en nuestras comunidades, todo el tema de la desaparición, de las masacres que no es fácil de afrontar” (Mujer líder afrocolombiana). En una entrevista realizada por una campesina, ella destaca cómo la estrategia de criminalización y la "guerra contra las drogas" es en realidad una forma de someter a los campesinos a condiciones favorables para ofrecer su mano de obra al mercado ilegal. La ausencia de acceso a derechos y políticas | 66 | sociales para la reproducción social de la propia vida se ha destinado cada vez más a la responsabilidad individual, especialmente de las mujeres, principales responsables de esta reproducción. “Para nosotros ha sido muy difícil el tema de criminalizar la coca, no la coca sino el campesinado porque el campesinado por el abandono estatal se ha visto obligado a cultivarla, no porque quiera, sino por simple necesidad. No como verdadero narcotraficante..." (Líder de derechos humanos y campesina). Es evidente que el trabajo de las mujeres en el mercado ilegal de drogas ocurre de manera diferente, es decir, la forma en que la explotación de este trabajo se articula dialécticamente con las diversas opresiones de clase, raza, etnia y género para mantener el estado de cosas. Ellas realizan las tareas más esenciales en la cadena de este proceso productivo, que es mantener su propia existencia económica y social frente a la desigualdad social, el abandono estatal y la pobreza, pero también resisten a la violencia contra ellas y sus hijos, garantizando la reproducción social de la vida y del territorio. Son ellas las que sostienen las actividades productivas del mercado ilegal también a través de su trabajo reproductivo, ya sea en las propias actividades, realizadas según la división sociosexual y racial del trabajo, o administrando los recursos financieros para las condiciones de vida de sus familias. Son ellas las que generan los "trabajadores frescos", los sujetos políticos de este proceso que luego son reclutados para la guerra: “Ese día nos pusimos de pie y le dijimos al gobierno nacional, a los senadores, a los diputados a la cámara, al presidente y también a la guerrilla "No vamos a parir más hijos para la guerra” y aquí estamos las madres de todos. Somos las madres de los guerrilleros, somos las madres de los policías, somos las madres de los soldados, somos las madres de los paracos y nosotras, como madres, ya no permitiremos que asesinen y recluten en nuestro | 67 | territorio…” (Líder de Derechos Humanos, madre y mujer campesina) Las mujeres indígenas son las que han problematizado la criminalización de la planta sagrada y han defendido y resistido los territorios y el cuidado de la tierra, sin la cual no hay vida ni reproducción de la vida: Porque yo no cultivo coca para venderle a los narcos, cultivo mi coca para mi mambeu, para pensar bonito, para entender, para aprender. Para eso vine. Cuando entendemos, nos metemos en estos espacios porque también queremos aprender a respetar la planta, ¿sí? Porque la planta no es la causa y tenemos que cambiar” (Mujer líder indígena). CONCLUSION Viabilizar estas rutas individuales y colectivas de resistencia implica entender que la lucha de las mujeres por y para la reproducción de la vida no es una lucha aislada contra un sistema patriarcal o racial, sino cómo el metabolismo social de producción y reproducción se estructura y desarrolla a través de las opresiones de género, raza-etnia y clase para universalizarse, ya sea utilizando economías ilegales para esta expansión, o continuando asentándose mediante la violencia como partera de la historia (MARX, 2017) en la que la prohibición como mecanismo ideológico de control de los cuerpos feminizados y racializados, impacta con rasgos estructurales y particulares estos territorios del capitalismo dependiente y periférico. La perspectiva teórico-metodológica y política de la TRS nos permite iluminar los rincones más olvidados, pero más centrales de este modelo económico-social: la reproducción social. Sin explotación del trabajo no hay plusvalía y el trabajo esencial que permite restablecer esta dinámica es el trabajo de las mujeres. Esto muestra como la forma de explotación del trabajo no es la misma, implica diferentes niveles de articulación con la opresión, por lo tanto no es posible jerarquizar explotación y | 68 | opresión para pensar en la superación del capitalismo, lo que han hecho diversos estudios marxistas, entendiendo que la revolución obrera sería suficiente para superar todas las formas de opresión. La necesidad de mantener la vida humana es la apuesta de las soluciones encontradas por estas mujeres y, por lo tanto, sus luchas por la tierra, por el territorio, por la vivienda, por el trabajo, que muchas veces no son nombradas o identificadas como feministas o socialistas por las propias mujeres que viven en estos contextos, pero que contienen, sobre todo, una dimensión central en la resistencia contemporánea contra el capital. Pero decimos que la mejor manera de poder controlar y lograr estos procesos de conversión de economías ilegales en legales es garantizando la propiedad colectiva de los territorios. A nosotros en la figura de resguardos, a los afros los territorios colectivos de comunidades negras ya los campesinos con zonas de reserva campesinas porque así hacemos el control interno" (Mujer Líder Indígena). Finalmente, entendemos que las realidades presentadas entre Brasil y Colombia se expresan con particularidades de acuerdo a las dinámicas de su formación social, sin embargo, con similitudes que nos constituyen como países latinoamericanos que conformamos ciertas condiciones de vida, trabajo y R(e)xistencias. En este sentido, aún es necesario avanzar en otras investigaciones, incluyendo esta tesis doctoral, en estos puntos estructurales que nos unen. REFERENCIAS BAUTISTA REVELO, A. J.; B Capacho, L. Cruz, M Martinéz, I. Pereira y L. 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É, neste sentido, que percebemos que o objeto central das metodologias punitivas são os “sujeitos indesejáveis”, ou melhor, aqueles que desviam do socialmente aceito pela ordem burguesa (Neder, 1995). É, a partir desta perspectiva que a criminologia nasce antes do século XIX, a discussão sobre o crime surge com a história da humanidade, inclusive, o positivismo criminológico compõe essa trajetória no desenvolvimento histórico da disciplina. No século XIX com o paradigma etiológico fundado com o positivismo, nasce de uma tentativa de construção de uma ciência da criminalidade, como a escola positivista italiana que se desenvolve com o amadurecimento do capitalismo industrial na Europa (Melossi; Pavarini, 2006). Com o desenvolvimento da criminologia etiológica, ou seja, uma ciência da criminalidade, sendo estabelecido, portanto, o crime como uma realidade ontológica, onde o criminoso é um ser ontologicamente criminoso e a potencialidade de delinquir está em suas anomalias, nas suas características. Seja de ordem, biológicas, psicológicas, anatômico, fisiológica, seja num momento posterior pela interferência de um físico ou social. O diagnóstico da penalidade passa a ser vista como meio de defesa social e a principal função declarada da pena que emerge é a prevenção especial positiva, ou seja, todo discurso de tratamento do delinquente através da prisão começa a se tornar legitimo, mediante discursos da possibilidade de readaptação ou ressocialização dos criminosos através da instituição da prisão (Malaguti Batista, 2008). Embora no contexto histórico da disciplina ocorra uma mudança no paradigma, a prisão já está estabelecida na sociedade e sua existência passa a ser uma necessidade. Como discorre a professora Angela Davis, nos Estados Unidos, por exemplo, em 1980, o período que ficou conhecido como Era Reagan, em que políticos argumentavam que prisões mais severas, penas mais longas seria uma espécie de solução para manter a sociedade livre da criminalidade. Porém, a prática do encarceramento em massa, além de ter pouco ou nenhum efeito sobre as estatísticas oficiais de criminalidade, não levaram a comunidades mais seguras, mas sim a populações carcerárias ainda maiores. E com a expansão do sistema criminal norteamericano, também se expandia o envolvimento corporativo na construção, inclusive no uso de mão de obra prisional (Davis, 2018, p. 11). E dessa forma se desenvolve uma sociedade, cujo imaginário é de que não conseguem se sentir seguros sem a existência das prisões. No entanto, ao tempo que a sociedade se desenvolve insegura com a existência das prisões, a instituição segue de forma ilegítima, tornando seus efeitos nocivos e prejudiciais à sociedade na totalidade em razão de uma instituição comprometida e ineficaz. Tratando-se de uma instituição insalubre e desumana, já inclusive reconhecida pelo estado como uma instituição que mantém a violação de direitos fundamentais da população carcerária, conforme foi solicitado pelo Partido Socialismo e | 76 | Liberdade (PSOL), sendo, portanto, instaurado o estado de coisas inconstitucional do sistema carcerário brasileiros, conforme será exposto no presente artigo. O artigo será desenvolvido, visando apresentar o estado de coisas inconstitucional num viés criminológico, trazendo dados da população carcerária. Para então, adentrar o positivismo criminológico dentro de seu contexto histórico, como principal base para a situação do sistema penal. E de forma conclusiva do presente trabalho será apresentado o abolicionismo penal como alternativa de forma analítica e crítica a esse sistema desumano e insalubre que se mantém dentro dos estabelecimentos penais. As teorias abolicionistas se desenvolvem para denunciar o que há de mais grave no sistema punitivo vigente atualmente. Um sistema que segrega, violenta, tortura e sobretudo mata. Os abolicionistas irão rediscutir possibilidades não violentas, e sobretudo, comunitárias, de solução dos litígios, ao mesmo tempo, ao passo que se estruturará um novo garantismo dentro do pensamento dogmático, uma crise dogmática critica, reconstruindo então as possibilidades de defesa mínima de garantias diante deste sistema penal deslegitimado, de modo que no plano político criminal os desdobramentos do pensamento criminológico critico que é um pensamento plural, complexo, que atravessa todo esse eixo euro americano, e, os, desdobramento disso é a busca de alternativas ao controle penal. O SISTEMA CARCERÁRIO E O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL: BREVÍSSIMAS CONSIDERAÇÕES A constituição é fruto de um longo desenvolvimento histórico e doutrinário. Ocorre mais especificamente na Idade Média, onde os governantes eram uma figura acima da lei, e, portanto, as criavam, onde quem estabeleciam a lei, era este chefe | 77 | de governo denominado pelo povo e a sociedade como um escolhido por Deus, época marcada na história como absolutismo. No Brasil este contexto histórico ocorre da colonização, marcado pela escravização dos corpos de pessoas trazidas da África. Como contextualizou Paulo Bonavides, o Brasil até os dias atuais enfrenta alguns obstáculos para construir um certo modelo de país constitucional. Se tornando república somente setenta anos após as repúblicas vizinhas, como, por exemplo, as colônias hispânicas, que na tentativa de adotarem a sugestão republicana, federativa e presidencial de Filadélfia, acabaram por criar repúblicas fragmentadas, federações desfeitas e governos dissolvidos em ditaduras de opressão e caudilhismo (Bonavides, 2001, p. 190-191). Este contexto histórico tem sua importância para uma análise na forma como o Estado foi constituído, a necessidade de regulamentação que se dá a partir deste momento em que os sujeitos passam a conviver entre si de fato, formando sociedades. Passa a ser formulada, portanto, uma constituição para regular direitos básicos para este convívio em sociedade, e desta forma se trata da lei maior do Estado, onde se encontra os princípios, conceitos e direitos que regem aquela nação (Bonavides, 2001, p. 190-191). Atualmente, a Constituição Federal (1988), em seu art. 5°, LXI, estabelece que somente possa ocorrer a prisão “em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciaria competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” (Brasil, 1988). Ademais, a Constituição assegura a não aplicação de penas cruéis, a proteção da integridade física e moral, bem como nenhuma pessoa será submetida à tortura ou tratamento desumano, ou mesmo degradante. São direitos fundamentais e | 78 | basilares como esses, protegidos constitucionalmente, que vêm sendo desrespeitados na aplicação e execução das penas. O estado de coisas inconstitucional é uma técnica decisória desenvolvida pela Corte Constitucional da Colômbia, visando superar a violação de direitos fundamentais de diversas formas dentro do sistema (Campos, 2016, p. 120). A teoria colombiana influenciou na ADPF 347, julgada no dia 9 de setembro de 2015 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), apresentada pelo Partido Socialismo e Liberdade, que declarou o estado de coisas inconstitucional, devido à precariedade do sistema prisional brasileiro, principalmente a omissão em relação à situação em que o sistema punitivo ou mais especificamente o sistema carcerário se encontra. Neste sentido, evidencia uma série de “coisas” atuais no estado que contrariam a Constituição Federal, consideradas, portanto, inconstitucionais. Ao se referir sobre inconstitucionalidade, surge, automaticamente, a ideia de omissão, seja por parte da legislação regulamentadora ou por parte do Estado na aplicação das mesmas (Campos, 2016, p. 181). A própria Constituição Federal de 1988, estabelece ferramentas para suprir determinadas lacunas legislativas, no entanto, acerca do sistema carcerário, pela realidade encontrada na estrutura que o Estado possui atualmente, tais meios não suprem a necessidade. Nas palavras do professor Carlos Alexandre de Azevedo Campos, o estado de coisas inconstitucional. “Trata-se de técnica decisória por meio da qual se declara uma realidade inconstitucional”. Ou seja, uma ferramenta processual utilizada pelas cortes para declarar uma contradição insuportável entre texto constitucional e realidade social (Campos, 2016, p. 185). A Constituição Federal Brasileira de 1988 elenca uma série de direitos fundamentais, inerentes ao cidadão brasileiro, e | 79 | foram conquistados a partir das lutas e revoltas populares. Tais direitos são definidos por lei e por entendimentos normativos indeterminados, denominados como princípios. Em relação ao modelo, que se faz a Corte Constitucional colombiana, destaca determinados fatores, para definir o estado de coisas inconstitucional, sendo eles: a) a vulneração massiva e generalizada de vários direitos fundamentais que afetam um número significativo de pessoas; b) a prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantir esses direitos; c) a não adoção de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a vulneração dos direitos; d) a existência de um problema social cuja solução demanda a intervenção de várias entidades, requer a adoção de um conjunto complexo e coordenado de ações bem como compromete significativos recursos orçamentários; e) a possibilidade de se lotar o Poder Judiciário com ações repetitivas acerca das mesmas violações de direitos (Corte Constitucional da Colômbia, 2004). Tendo em vista os pressupostos elencados pela corte, diante a atual situação que o Brasil se encontra. A omissão do estado e, em consequência, a vulneração massiva de direitos fundamentais, uma herança do positivismo criminológico. Essa “omissão das autoridades” em verdade se configura em projeto, seria uma continuidade dessa construção ideológica, considerando que a ausência do Estado em proteger a dignidade da pessoa humana, além de contrariar diretamente a Constituição Federal, trata-se de preconceitos intrínsecos na sociedade, tendendo a marginalização das pessoas, baseada em um argumento de ódio. Resultante da herança histórica de momentos difíceis, inclusive para a ciência no final do século XIX, e virada para o século XX, como, Vera Malaguti, denominou como “o século dos manicômios era também o século das prisões e asilos” (Malaguti Batista, 2011, p. 44). | 80 | Relacionando as falhas estruturais e omissão estatal, podem ser elencados no Brasil vários setores sociais como políticas públicas insuficientes, tais como: saúde pública, saneamento básico, uso abusivo de substâncias como o crack, e a guerra contra as drogas, que faz parte de um projeto de segregação racial no qual o Estado é parte. O sistema carcerário brasileiro pode ser considerado o que mais obtém violação de direitos humanos de forma generalizada, devido à omissão e incapacidade que as autoridades públicas apresentam em solucionar estas questões, sendo que inclusive legitimam penas ilegais, como penas de tortura e pena de morte informal (Araújo Chersoni; Das Chagas; Muniz, 2022). Em 2015, quando foi julgada a ADPF 347, na própria Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, foi exposto alguns dados referentes a população carcerária naquele ano de 2015 quando fora julgada: “Explicita estar se agravando o drama descrito, em virtude do crescimento significativo da população carcerária, que, de cerca de 90.000 presos, em 1990, chegou, em maio de 2014, a 563.000, sem contar os mais de 147.000 em regime de prisão domiciliar. Argumenta que, hoje, o número deve ultrapassar 600.000, possuindo o Brasil a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, da China, e da Rússia. Se somadas as prisões domiciliares, o Brasil passaria a Rússia. Em 25 anos, verificou-se majoração de mais de 650%. O déficit seria de, pelo menos, 206.307 vagas, o aumentaria para 730 mil vagas, se fossem cumpridos todos os mandados de prisão expedidos.” 1 Conforme apresenta o professor Campos, um estudo realizado pela clínica UERJ de direito apontou a violação de diversos direitos fundamentais dos presos. Os pesquisadores informaram que a maioria das pessoas que compõe a população carcerária, são pobres e negros, chegando a cerca de 570 mil 1 Min. Marco Aurélio Relator. Supremo Tribunal Federal. ADPF-347 Distrito Federal, 2015. pp. 5-6. | 81 | pessoas, onde a maioria está sujeita a violações de seus direitos como: Superlotação, tortura, homicídios, violência sexual, celas imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, falta de água potável e de produtos higiênicos básicos, corrupção, deficiência, no acesso à assistência judiciária, à educação, à saúde e ao trabalho, domínio dos cárceres por organizações criminosas, insuficiência do controle estatal sobre o cumprimento das penas, discriminação social, racial, de gênero e de orientação sexual. (Campos, 2016, p. 265). O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) levou ao STF a ADPF 347/DF para que se fosse reconhecido, expressamente, o estado de coisas inconstitucional, relativo ao sistema penitenciário brasileiro e a adoção de providências estruturais em face de lesões a preceitos fundamentais dos detentos. O STF deferiu parcialmente os pedidos cautelares da ADPF. O professor Carlos Alexandre de Azevedo Campos, expõe a ementa do acordão: CUSTODIADO – INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL – SISTEMA PENITENCIARIO – ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – ADEQUAÇÃO, cabível é a arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada a situação degradante das penitenciarias no Brasil. SISTEMA PENITENCIARIO NACIONAL – SUPERLOTAÇÃO CARCERÁRIA – CONDIÇÕES DESUMANAS DE CUSTÓDIA – VIOLAÇÃO MASSIVA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS – FALHAS ESTRUTURAIS – ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL – CONFIGURAÇÃO. Presente quando de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como “estado de coisa inconstitucional”. | 82 | FUNDO PENITENCIÁRIO NACIONAL – VERBAS – CONTIGENCIAMENTO. Ante a situação precária das penitenciárias, o interesse público direciona à liberação das verbas do Fundo Penitenciário Nacional. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA – OBSERVÂNCIA OBRIGATÓRIA. Estão obrigados juízes e tribunais, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a realizarem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciaria no prazo máximo de 24 horas, contado do momento da prisão (Campos, 2016, p. 289-290). Embora esteja longe da solução, a referida decisão foi uma conquista aos direitos humanos e um marco inicial do estado de coisas inconstitucional na jurisdição brasileira, visto que, em um Estado democrático de direito, ninguém deve ser esquecido, para que a igualdade não seja apenas um sonho utópico, mas sim uma condição de vida a qualquer pessoa. O século XIX europeu produziu um senso comum sobre a criminalidade e pena, que se perduram até os dias atuais, tornando-se uma ideologia dominante. Muito por influência de suas raízes na epistemologia positivista, principalmente em países europeus como a Itália. O que reflete muito na história e evolução da pena ou das mediadas punitivas que vigiam na época, inclusive as anteriores ao final do século XVIII, quando o suplício, por exemplo, perde força e deixa de representar uma medida punitiva aplicada pelo estado. Que neste momento estava mais relacionada a uma espécie de vingança, retribuição aos deuses ou até mesmo o combate ao mal. E passa a ocorrer uma espécie de humanização da pena de uma perspectiva tanto quanto utópica de se avaliar (Malaguti Batista, 2018). E desta forma esse contexto histórico, são fios condutores que reflete diretamente no sistema carcerário brasileiro, a precariedade, a situação desumana em que algumas pessoas | 83 | sobrevivem pelo simples fato de estarem encarceradas é reflexo de como e para que este sistema, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como um estado de coisas inconstitucional, declarado. NOTAS SOBRE POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO: A CONSTRUÇÃO DO “SER PUNÍVEL, SEGREGÁVEL E MATÁVEL” Para adentrar uma nova perspectiva diante o cenário criminológico, é necessária uma certa desconstrução em meio a sociedade, desconstruir o próprio senso comum herdado do positivismo, que ainda é disseminado e faz parte do senso comum dos debates brasileiros sobre “crime” e “criminalidade”. A criminalidade é pensada com a lupa do positivismo, já que ele consolidou os grandes estereótipos de criminoso perigoso, vinculado tanto às classes sociais mais baixas quanto ao sujeito masculino negro (Góes, 2016). O “criminoso” protótipo, estereotipado tem uma base classista, racializada e sexista, é por este motivo a importância da desconstrução social dessa visão estereotipada da criminalidade para entender a criminalidade como uma construção social. Ou seja, o resultado da ação que é aquilo que alguém faz, mas, sobretudo, como o sistema penal reage ao que as pessoas fazem, selecionando algumas dentro todas aquelas pessoas que praticam aquelas mesmas condutas. E construindo-as uma posição negativa de criminoso perante a sociedade (Góes, 2016). No entanto, embora tenha ocorrido esta mudança no paradigma dentro da criminologia, a herança histórica permanece enraizada na sociedade e no sistema penal. O positivismo de fato influencia diretamente não só na forma como a sociedade visualiza as pessoas, o “criminoso”, mas também na forma como o sistema penal funciona, no entanto, o contexto | 84 | histórico e social em que o positivismo se legitimou é completamente distinto do contexto atual, como menciona a professora Vera Malagutti Batista (Malaguti Batista, 2018). No contexto da revolução industrial, onde necessitava de uma intensa exploração da mão de obra, é estabelecido prisões como modelo das casas de correção. Constituindo o controle punitivo da mão de obra, surgindo a própria ideia de polícia como “polícia médica”, formando uma espécie de higienismo social. Neste sentido, o controle punitivo vai se expandir da prevenção às reabilitações, se utilizando, portanto, este ideal reabilitador do trabalho como medida ressocializadora. Onde os seres humanos considerados recuperáveis serão tratados enquanto os irrecuperáveis neutralizados, dividindo a sociedade entre normais e anormais, sendo a loucura e o crime alvo de terapêuticas sociais. O reflexo evidente desta herança histórica do positivismo, atualmente, consiste, por exemplo, no fato de a justiça terapêutica se tratar de uma “novidade” para a questão das drogas, em razão deste controle social das populações, dado mediante estratégias disciplinares (Malaguti Batista, 2011, p. 4142). Como podemos observar, a exploração da mão de obra é determinante para compreender a mudança do paradigma etiológico dentro da criminologia para o da reação social, que por sua vez com a exploração do trabalho humano, principalmente durante o período da revolução industrial. Fica estabelecido uma forma de controle social manipulado pelas chamadas classes dominantes. Esta compreensão contextualiza o que Lombroso chamou de “O Homem Delinquente” neste se referindo ao sujeito masculino, e posteriormente também criou “A Mulher Delinquente, a Prostituta e a Mulher Normal”, criando e concretizando assim o estereotipo de criminoso de uma forma geral às pessoas que pertencem a classes de baixos status dentro | 85 | da sociedade. A teoria positivista evolui inclusive anteriormente as teorias de Cesare Lombroso, como explica Vera Malagutti Batista: Se o racismo foi uma invenção da colonização, segundo Foucault, a partir do século XIX ele vira discurso científico. As teorias de Darwin, que em 1830 buscavam o elo perdido em nosso continente, naturalizavam a inferioridade, possibilitavam sua transposição para as ciências sociais como fez Spencer, inspirando o evolucionismo social. O conceito de degenerescência é fundamental para entendermos como nossa mestiçagem iria ocupar “naturalmente” os andares inferiores na evolução humana (Batista, 2011, p. 41). Neste sentido, na busca de apresentar fatores biológicos para explicar o comportamento dos criminosos, o positivismo foi responsável por experiências consideradas na época “cientificas” e que buscavam comprovar suas teorias de que o crime ou o criminoso partia de características biológicas, físicas e desta forma cria-se um exemplar de como seria a figura de uma pessoa criminosa. Trata-se de um momento marcado sobretudo pela dominância do senso comum, que inclusive influencia o pensamento criminológico e o sistema penal até os dias atuais, o racismo enraizado na sociedade atual advém deste período desumano onde é deixado de lado o pensamento sociológico e uma tentativa, de certa forma perversa e frustrada de analisar o crime e consequentemente o ser humano que pratica algum fato delituoso de uma forma cientifica, sobretudo, buscando respostas no corpo em si do ser humano e não o contexto social em que este está introduzido (Malaguti Batista, 2011, p. 41-42). Como demonstra a Professora Vera Malagutti Batista, “entre 1812 e 1819, a frenologia de Gall e Spurtzheim já tinha como objeto de estudo o espirito localizado no cérebro.”. Na busca por estabelecer que a delinquência estaria determinada biologicamente, realizando um trabalho intenso comparando e medindo crânios buscando determinadas funções físicas no | 86 | cérebro. Gall durante 20 anos pesquisou a “anatomia” do centro da razão, usando muitas cabeças, buscando comprovar a superioridade da raça branca caucásica. A Professora ainda expões que, “Determinadas áreas das neurociências retomam hoje, nesses tempos difíceis, a tarefa fundamental para o capital naturalizar o crime e o criminoso” (Malaguti Batista, 2011, p. 4142). Como leciona a professora Vera Regina Pereira de Andrade, referente a esse momento em que o positivismo criminológico predomina, na medida que os estudos positivistas se desenvolvem, caminhando para um certo “diagnostico” referente ao conceito de criminoso. A ideia de que o criminoso consiste em algo natural, de que a causa do crime é identificada no próprio autor do crime, partindo de estudos biológicos e psíquicos do crime, é inicialmente desenvolvida pelo médico italiano Lombroso. Que confrontando os grupos não criminosos com criminosos dos hospitais psiquiátricos e prisões, buscando comprovar através das ciências naturais esse “criminoso nato” como foi sugerido por Ferri que auxiliava Cesare Lombroso em suas experiências com humanos. Visando especificar nos criminosos e doentes apenados características fisiológicas, anatômicas que eram interpretadas como naturalísticas que justificavam no entendimento do médico italiano. “(...) o tipo antropológico delinquente, uma espécie à parte do gênero humano, predestinada, por seu tipo, a cometer crimes.” (Andrade, 2003, p. 35-36). Esse contexto histórico é determinante para o que o sistema carcerário se transforma no futuro, principalmente em países como o Brasil, marcado pela escravização de pessoas enquanto ainda se tratava de um país colônia dos reinos de Portugal. Na medida que o período de escravidão perde forças, o Brasil desenvolve um sistema penal também seletivo | 87 | desenvolvido durante esse momento em que as teorias positivistas predominam, criando uma espécie de sistema penal responsável pela “higienização” da sociedade, desenvolvido por uma espécie de medo do negro. Desta forma, os escravos tratados como subordinados até então, de objeto de troca passa esse ex-escravizado a ser tratado como objeto de estudo e aprisionamento (Góes, 2016). No Brasil, não ocorre uma transição do feudalismo para o capitalismo como na Europa, ocorre uma transição do escravismo para o capitalismo e um capitalismo dependente, periférico que vai se utilizar não da mão de obra camponesa excludente do feudalismo, mas da mão de obra escrava “liberta” da escravatura. Os negros tratados como mercadoria durante o escravismo, os negros que sobraram e nunca tiveram um espaço de inclusão social no modo de produção capitalista, nem como capitalista, nem como trabalhador, sendo sempre criminalizado pelo sistema penal burguês que, não obstante, se denomina liberal e científico, positivista (Araújo Chersoni, 2023). E é nesse sentido que desenvolve o sistema penal brasileiro sobre influência direta do positivismo em um local em que a desigualdade racial predomina antes mesmo da desigualdade capital. Embora ambas as desigualdades interferem diretamente uma na outra, pois a pessoa considerada na época como uma pessoa de cor agora de certa forma estava “livre”, mas ainda precisava trocar sua força de trabalho para sobreviver, consequentemente também se tratava, portanto, nesse momento como a classe mais baixa da sociedade economicamente. Assim, as classes dominantes acumulam ainda mais riquezas e o cárcere se torna um produto capitalista, produzido não para garantir a segurança da sociedade e nem mesmo de ressocializar e reintegrar o ser humano e sim como forma de dominação de corpos úteis ao trabalho (Góes, 2016) | 88 | O estado degradante, insalubre, sobretudo desumano que se encontra o sistema carcerário atualmente é o reflexo direto do positivismo criminológico dentro do sistema penal. Segundo o relatório disponibilizado pelo Infopen (2017), Departamento Penitenciário Nacional, observa-se um déficit total de 358.663 mil vagas e uma taxa de ocupação média de 197,4%, sendo que 64% da população prisional é composta por pessoas negras (Infopen, 2017). O problema na estrutura e capacidade das penitenciárias, além de alguns fatores sociológicos já citados, geram grandes consequências também na forma em que o processo penal é conduzido. O relatório ainda disponibiliza o índice de pessoas privadas da liberdade. Sendo que 292.450 mil destas estão sem condenação, somando 40% dos encarcerados no território brasileiro sem o trâmite do devido processo legal (Infopen, 2017). A população carcerária no Estado brasileiro continuou e continua em constante ascensão, como demonstrou, o documento denominado de Anistia Internacional, em análise ainda de 2017: O sistema prisional continuou superlotado os presos eram mantidos em condições degradantes e desumanas. A população carcerária era de 727.000 pessoas, das quais 55% tinham entre 18 e 29 anos e 64% eram afrodescendentes, segundo o Ministério da Justiça. Uma parcela significativa dos internos – 40% no âmbito nacional – estava detida provisoriamente, situação em que costumam permanecer por vários meses até serem julgados (Anistia, 2018). Os relatórios demonstram os reflexos da política de encarceramento que divaga em meio a sociedade na medida que a população carcerária não para de crescer, e os números continuam em constante ascensão, comprovando toda a influência do positivismo criminológico, a herança do período colonial principalmente, perpetuando os métodos punitivos da escravatura e do capitalismo no Brasil. Essa perpetuação dos métodos punitivos do escravismo por dentro do capitalismo na | 89 | relação entre pena e estrutura social, demonstra que a pena nunca abandonou os corpos no Brasil. A fúria punitiva sobre esses corpos se origina na permanência do modo de punir da escravidão, do tronco, do suplício, por isso nunca nos libertamos da tortura e da pena de morte informal. A análise dos sistemas penais mostra a estrutura capitalista e a luta de classes para a conclusão de que o sistema penal obedece a uma seleção de classe, uma lógica que integra o projeto de dominação burguês de exclusão e dominação (Vaz, 2020). NAS TRINCHEIRAS DO PUNITIVISMO: NOTAS SOBRE ABOLICIONISMO PENAL Conforme a anterior construção, fica evidente que o sistema de justiça penal brasileiro, e não somente ele, é uma verdadeira distopia que não consegue minimamente cumprir com os próprios ideias que os sustentam. Essa breve introdução ao capítulo de fechamento do texto, serve para situar o leitor para compreenderem o abolicionismo que se defende tal artigo. O abolicionismo de base e para as bases. Percebe-se que ao trabalhar os conceitos de movimentos populares, este se diferencia dos movimentos sociais. Os movimentos populares são aqueles que partem da base, em um sentido de classe, raça e gênero e se organizam com um viés revolucionário de enfrentar as estruturas (Pazello, 2014, p. 26; Araújo Chersoni, 2023, p. 112-115). A princípio, pode-se parecer que metodologicamente esta distinção não faz sentido neste momento, visto que toda a problemática do trabalho está amparada em uma perspectiva de superação do positivismo criminológico nas encruzilhadas do poder punitivo brasileiro. Pois bem, ao compreender o sistema de justiça penal em uma perspectiva radical, elucida-se que como fruto da modernidade burguesa, as prisões exercem um papel de | 90 | controle social que perpassa as meras formalidades legais de prevenção delitiva (Santos, 2018, p. 19). Na construção de uma criminologia que tenha como base os ideais de enfrentamento dos problemas sociais desde a América Latina, percebe-se como o sistema de justiça penal age na intensão clara de extermínio das populações vulneráveis. Portanto, se pensar em uma criminologia verdadeiramente preocupada com o olhar de “nestra america” é pensar em uma criminologia conectada com as bases populares (Aniyar de Castro, 2005, p. 43; Araújo Chersoni, 2023, p. 128-132). Ou seja, o sistema de justiça penal é algo amplo e não se constitui apenas nas prisões, sendo estas o cerne material da discussão. Se reportando então aos autores basilares do abolicionismo penal mundo afora, compreende-se que Davis (2018) problematiza que a pena de morte ainda existe em algumas partes do mundo como nos Estados Unidos, porém, ela é vista até pelos mais ferrenhos defensores das penalidades como uma problemática a ser repensada. Já a pena de prisão, é tida como imutável e permanente, portanto, dificilmente alguma pessoa que não tem contato militante e acadêmico com as temáticas abolicionistas (e até alguns que têm esse contato) entenderá que é impossível um mundo sem este estabelecimento, que perpassa o físico e está inerente a própria condição de existência das pessoas. Ao pensar na possível obsolescência do sistema penal, deve-se perguntar como milhões de pessoas no mundo foram levadas a um estabelecimento sem maiores questionamentos da sua aplicabilidade, como se fosse algo dado e inerente da convivência humana (Davis, 2018, p. 912; Araújo Chersoni, 2023). A prisão não é a única instituição complexa que se faz difícil, quase impossível, pensar a vida sem a existência física. Não coincidentemente na história o sistema escravocrata, (no | 91 | contexto da autora o Norte Americano, mas é possível pensar nesta esteira com os patamares estruturais brasileiros), foi preciso quase que um século para abolir tal sistema, ainda, sim, de maneira inacabada ou meramente formal, abolicionistas eram retratados na mídia da época como fanáticos radicais e seres a serem combatidos, era impensável na época a vida sem tal sistema. Foi necessária uma guerra sangrenta para “abolir esta instituição peculiar” (Davis, 2018). O que é o movimento abolicionista penal? Nas palavras de Hulsman (2003) os abolicionistas se dividem em duas posturas, de um lado temos “a postura que nega a legitimidade das atividades desenvolvidas na organização cultural e social da justiça criminal”, negando também as imagens da vida social desenvolvidas com base nesta construção, sendo a justiça criminal ilegítima para dar uma resposta à situação-problema criminal. Desta forma, esta postura tem uma dupla forma de lidar com tal questão: tende de parar com as atribuições da questão criminal no bojo justiça penal, negando a mesma como abita a agir em tal práxis. Mas se abre a lidar com as questões para além da alçada penal, se estende portando a pensar a questão para outras vertentes, como, por exemplo, a questão de gênero, raça, abolição da casa as bruxas, dentre outras. Tendo então um caráter de movimento social comparado a movimentos históricos. De outra monta, temos uma postura que não nega a ilegitimidade da justiça criminal em toda sua universalidade, mas sim, em especificações da justiça criminal, como, por exemplo: o direito penal e a criminologia em caráter punitivista. Fazendo jus a valores acadêmicos que defendem a independência intelectual e de práticas sociais existentes a permitir uma avaliação objetiva do poder punitivo (Hulsman, 2003, p. 197; Araújo Chersoni; Felizardo; Silva; Melo, 2023, p. 3251-3254). | 92 | “Devemos, então, concluir que a abolição das prisões é um sonho impossível”? Mathiesen (2003), aponta que à primeira vista parece que sim, (visão ainda atual). Ao menos no futuro, bem como, em um presente próximo a abolição do sistema de justiça penal, parece algo distante e impalpável, o clima político favorece de maneira gigante a cultura da punição, três erros e os sujeitos estão fora do convívio social. Buscando os dizeres de Sebastian Scheerer e questionando-se que nenhuma das grandes transformações sociais eram tratadas como atingíveis, muito pelo contrário, todas, como a abolição da escravidão moderna, como a própria queda do Império Romano, eram tidas como estúpidas e utópicas pela grande maioria até mesmo dos especialistas (Mathiesen, 2003, p. 82; Araújo Chersoni; Felizardo; Silva; Melo, 2023, p. 3251-3254). A prisão é uma estrutura física e subjetiva gigante, porém em um solo de barro (frágil), é um “sistema aparentemente solido”, mas com uma sustentação deficiente, este solo de barro no qual o autor se refere é a total irracionalidade da prisão, no que diz respeito ao próprio objetivo da mesma, tal instituição contribui muito pouco ou quase nada para a sociedade, visto que se criou um discurso onde não se consegue imaginar a sociedade sem a mesma, relatórios, estudos e números demonstram que o sistema de justiça penal é algo totalmente fora dos padrões que o mesmo defende (Mathiesen, 2003, p. 89; Araújo Chersoni; Felizardo; Silva; Melo, 2023, p. 3251-3254). Ainda na visão do autor supracitado, a prisão se estabelece com cinco objetivos, qual seja: “reabilitação; intimidação; prevenção geral; interdição dos transgressores; justiça equilibrada, a resposta neoclássica ao crime através da prisão”. Objetivos estes que em suma não são conquistados por tal instituição. O grande segredo da mesma ainda estar viva em termos práticos e subjetivos é o grande segredo que a esconde, o | 93 | agigantamento dos muros carcerários, por mais estudos que os tenham, fazem com que as pessoas materialmente não consigam compreender o quanto a mesma é frágil, irracional e cria um ambiente ainda mais perigoso, pela própria funcionalidade da mesma, muito por tal questão que esse instituto foi pensado fisicamente nos moldes que se apresenta (Mathiesen, 2003, p. 905; Araújo Chersoni; Felizardo; Silva; Melo, 2023, p. 3251-3254). E assim o encarceramento em massa vai criando a chamada nova segregação que aprisiona jovens negros e provenientes de periferia, em uma escala assustadora, patrocinada, sobretudo, por sua condição econômica e racial, os levando a gigantescos campos industriais penais, com os patamares bem próximos aos sombrios tempos de escravização. Tais campos explorados por empresas nas quais tais pessoas trabalham em condições degradantes e praticamente obrigadas, sendo assim, o aprisionamento vai ganhando patamares que coloca a punição como cerne de uma nova lógica de exploração do trabalho (Alexander, 2017. p. 206). As questões de raça e classe são intrinsecamente ligadas ao fenômeno prisão, muito por isso que as lideranças dos movimentos negros, como também mencionado anteriormente, foram grandes difusores da luta política pela abolição dos escravos também em territórios latinos. A abolição do sistema de justiça penal nos Estados Unidos, como também na América Latina, vem começando a ser a bandeira dos movimentos negros e populares (Araújo Chersoni; Felizardo; Silva; Melo, 2023). REFERÊNCIAS ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa.1 ed. São Paulo: Boitempo, 2017. ANDRADE, Vera. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. 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A escolha do tema deu-se pelo interesse em saber como acontece o processo da decolonialidade na América Latina e suas consequências. A provável contribuição dessa discussão, dá-se por buscar o giro decolonial e o pensamento de cidadania do novo constitucionalismo latino-americano. Portanto, pautou-se o problema seguinte problema de pesquisa: Como acontece a genealogia do giro decolonial com o novo constitucionalismo latino-americano? Com o objetivo geral iremos analisar o pós- colonialismo e o giro decolonial no contexto do constitucionalismo latinoamericano. E como objetivos específicos, perceberemos o processo do pós- colonialismo ao giro decolonial; bem como, analisaremos os reflexos da colonialidade do poder na política brasileira entre os anos de 2019 a 2020. O percurso metodológico do trabalho nesta seção, onde este se fez de fundamental importância para a realização da pesquisa. Com a abordagem qualitativa, articula-se algumas categorias analíticas extraídas da investigação a partir da técnica de Análise do Conteúdo. Atenta-se que a pesquisa bibliográfica se fez presente desde as buscas para o processo de delineamento do estudo. No tocante ao procedimento de pesquisa utilizamos a descritiva, Vergara (2000) nos diz que essa, é uma pesquisa que proporciona a identificação de um determinado universo, pois esta, expõe as peculiaridades considerando as variáveis pertencentes à definição da natureza do objeto. Em se tratando da pesquisa exploratória, o uso desta, tem como propósito interpretar e analisar fatos. Esse tipo de pesquisa requer um maior investimento de teorização e reflexão sobre o objeto a ser estudado. A análise de dados na presente pesquisa deu-se por meio da técnica de análise de Conteúdo. Como forma de explorar e aprofundar uma melhor compreensão sobre a percepção de estudantes de direito a respeito de direitos de imigrantes refugiados. Iniciaremos nossa discussão falando sobre o colonialismo, que teve seu marco inicial em meados dos anos 90, o autor Quijano (QUIJANO, 2005, p. 227-278) o descreveu como o lado mais obscuro da modernidade, falou ainda que a colonialidade era a resposta à globalização, destaca-se que a modernidade era o ponto de maior influência no colonialismo, segundo o pensamento de Quijano. Não há como se falar em modernidade e não mencionar a colonialidade, logo, uma não existe sem a outra. Ou melhor, uma é preexistência da outra. Mignolo (2010) abrangeu o significado de colonialidade por diversos ramos, o autor indica a colonialidade do poder como sendo o destaque da colonialidade, onde a matriz colonial do poder é uma base enigmática e interligada ao controle da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, da economia, do gênero e da sexualidade bem como, da subjetividade e do conhecimento. | 98 | ALGUMAS CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS Apresentaremos o percurso metodológico do trabalho nesta seção, uma vez que se fez de fundamental importância para a realização dessa pesquisa. Assim, os métodos e as técnicas exploradas para a preparação do trabalho em questão. Da mesma forma, serão evidenciados quais os instrumentos eleitos a coleta de dados. Com a abordagem qualitativa, articulamos algumas categorias analíticas extraídas da investigação a partir da técnica de análise de conteúdo. Esta, envolve a preparação dos dados para análise e posterior categorização. No pensamento de Minayo: A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares ela trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (1995, p. 21-22). Atenta-se que a pesquisa bibliográfica se fez presente desde as buscas para o processo de delineamento do estudo. Fonseca (2002, p. 32) conceitua o procedimento de pesquisa bibliográfico, no qual diz que se trata de um levantamento de publicações existentes, dessa forma o pesquisador poderá conhecer do assunto. A pesquisa bibliográfica é feita a partir do levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por meios escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites. (2002, p. 32). No tocante ao procedimento de pesquisa utilizamos a descritiva, Vergara (2000) nos diz que essa, é uma pesquisa que proporciona a identificação de um determinado universo, pois esta, expõe as peculiaridades considerando as variáveis pertencentes à definição da natureza do objeto. | 99 | Pode-se dizer ainda que esta pesquisa tem o intuito de esmiuçar as peculiaridades de determinado trajeto da colonialidade. Em se tratando da pesquisa exploratória, o uso desta, tem como propósito interpretar e analisar fatos. Esse tipo de pesquisa requer um maior investimento de teorização e reflexão sobre o objeto a ser estudado. Em se tratando da pesquisa exploratória, o uso desta tem como propósito interpretar e analisar fatos. Esse tipo de pesquisa requer um maior investimento de teorização e reflexão sobre o objeto a ser estudado. Para Gil (2009), com a pesquisa exploratória visa-se identificar os fatores que levam a ocorrência de determinado fenômeno, explicando a razão. A análise de dados na presente pesquisa deu-se por meio da técnica de análise de conteúdo. Retrata Chizzotti (2006, p. 98): “o objetivo da análise de conteúdo é compreender criticamente o sentido das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as significações explícitas ou ocultas”. Como forma de explorar e aprofundar uma melhor compreensão sobre a questão da colonialidade, decolonialidade, pós-colonialismo e novo constitucionalismo latino-americano. COLONIALIDADE E DECORRÊNCIAS DO PÓSCOLONIALISMO NA COLONIALIDADE DO PODER Iniciaremos nossa discussão falando sobre o colonialismo, que teve seu marco inicial em meados dos anos 90, o autor Quijano (QUIJANO, 2005, pp. 227-278) o descreveu como o lado mais obscuro da modernidade, falou ainda que a colonialidade era a resposta à globalização, destaca-se que a modernidade era o ponto de maior influência no colonialismo, segundo o pensamento de Quijano. Não há como se falar em modernidade e não mencionar a colonialidade, logo, uma não existe sem a outra. Ou melhor, uma é preexistência da outra. | 100 | Mignolo (2010) abrangeu o significado de colonialidade por diversos ramos, o autor indica a colonialidade do poder como sendo o destaque da colonialidade, onde a matriz colonial do poder é uma base enigmática e interligada ao controle da autoridade, da natureza e dos recursos naturais, da economia, do gênero e da sexualidade bem como, da subjetividade e do conhecimento. Nesse sentido, contextualizando a colonialidade do poder ao nosso cenário político brasileiro, podemos dizer que o golpe mortal do governo já foi dado, a qualquer momento iremos explodir enquanto humanidade. O Brasil está num contexto preocupante por conta do atual desgoverno do clã familiar do atual presidente, que nega a ciência, nega as estatísticas e elimina todo àquele que discorda de sua opinião, que implementa o sistema de colonialidade do poder em todas essas formas de controle elencadas por Mignolo. O pós- colonialismo se posiciona como oposição à teoria eurocêntrica, onde está tinha como principal objetivo legitimar a ideologia de raça superior ao processo de colonização. Essa ideologia possuía como base a afirmação que os países da Europa Ocidental seriam culturalmente superiores em relação ao resto do mundo. Esse estigma de homem hétero, branco, bem-sucedido, vestia um terno e gravata que só cabia no corpo do homem da Europa Ocidental. Dessa forma, todo àquele que assim não o fosse, não seria um indivíduo “digno”, ficando às margens da sociedade. Como forma de analisar as repercussões do colonialismo Europeu, surgiu o pós- colonialismo, que este, por sua vez, já é um pensamento decolonial. Para Mignolo, “a conceitualização da colonialidade como constitutiva da modernidade é já o pensamento de-colonial em marcha” (Mignolo, 2008, p. 249). | 101 | Nesse diapasão, sobre o a forma de dominação do colonialismo os autores Barbosa e Teixeira nos afirmam que: O colonialismo se refere a um padrão de dominação e exploração em que o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de populações determinadas possui uma diferente identidade de suas sedes centrais. (BARBOSA; TEIXEIRA 2016, P. 1116). É importante destacarmos que colonialismo e colonialidade são momentos históricos distintos, que conversam entre si. O primeiro diz respeito a um padrão de dominação, de determinados momentos históricos. O segundo, corresponde a um dado momento da história que acontece por meio da dominação e superioridade de determinada raça e cultura em relação às demais. Fato este, com pesadas marcas negativas até os dias de hoje. Como nos conceitua, Barbosa e Teixeira. Colonialidade diz respeito a um fenômeno histórico complexo que se estende até os dias de hoje e se refere a um padrão de poder que opera através da naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas que possibilitam a reprodução de relações de dominação, que não apenas possibilitam a exploração pelo capital dos seres humanos em escala global, mas que subalternizam os conhecimentos, as experiências e as formas de vida (BARBOSA; TEIXEIRA 2016, P. 1117). Quijano sobre a conceito de colonialidade nos afirma que, a colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista. Se funda na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo como pedra angular do dito padrão de poder e opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e da escala social. (Quijano, 2000, p. 342). | 102 | Resgatando a origem do pós- colonialismo, Costa (2006, p. 83-84) afirmou que o pós-colonialismo compartilha, em meio suas diferentes perspectivas, do “caráter discursivo do social”, do “descentramento das narrativas e dos sujeitos contemporâneos”, do “método da desconstrução dos essencialíssimos” e da “proposta de uma epistemologia crítica às concepções dominantes de modernidade”. Inegavelmente a modernidade possui grandes marcas do colonialismo do padrão europeu, que dominou vários continentes do globo, (Barbosa; Teixeira, 2016). Para Mignolo (2003, p. 39), o fato da identificação dos povos baseados nas próprias faltas e excessos é um motivo essencial para a desigualdade colonial, refletida e reproduzida pelo movimento da colonialidade do poder, o poder colonial em si. O debate decolonial parece não se apropriar adequadamente da dimensão dos desafios postos ao pensamento jurídico nacional no que se refere a temas como pobreza, violência, estigmatização, exclusão etc. em perspectiva regional (TEIXEIRA, 2020). A colonialidade do poder desenvolve um papel fundamental quanto à estrutura do chamado “sistema- mundo, moderno/ colonial”, nessa perspectiva Grosfoguel indica que, A expressão “colonialidade do poder” articula os lugares periféricos da divisão internacional do trabalho com a hierarquia étnico-racial global e com a inscrição de migrantes do Terceiro Mundo na hierarquia étnico-racial das cidades metropolitanas globais. Grosfoguel (2008, p. 126). Essa diferença colonial surge como estratégia para inferiorizar diversas populações do “sistema-mundo”. | 103 | PERSPECTIVAS CRIMINOLÓGICAS EM FACE DO EUROCENTRISMO NA COLONIALIDADE DO PODER; A ideia da criminologia moderna teve como principal idealizador Cesare Lombroso, na nossa contemporaneidade suas ideias não são mais aprovadas, apesar de que foram essenciais para os estudos criminológicos científicos onde direcionava o estudo para o criminoso, como nos disse (Wolgang,1972). Lombroso sempre muito influenciado pelas teorias materialistas positivistas e evolucionistas (43), em sua teoria normalizou o discurso do saber jurídico, de que a pessoa que cometia algum crime era “anormal”, onde a criminalidade era uma característica natural do indivíduo. (termo criado por Ferri). Nessa perspectiva, o criminoso era ou doente ou primitivo. Ao longo dos anos a criminologia se esteou no poder de punir, de tal maneira que a expressão da verdade, de é sinônimo de detenção de poder. Dessa forma, é visualmente identificável as características da teoria da criminologia desde o tempo da Inquisição, os primeiros teóricos; e os exorcistas, os primeiros clínicos (Zaffaroni; Batista, 2003). Para a atividade de controle dos corpos, foi criado nesse período uma base discursiva pautada na neutralidade científica e na generalização proporcionando uma razão justificadora fundada em estereótipos que tinha como objetivo o aprisionamento seletivo social. (MACHADO; SANTOS, 2018, P. 258). E com base nessa ferramenta de diferenciar os indivíduos, distinguindo-os entre superiores e inferiores. Com o Eurocentrismo, criou-se uma distinção entre os indivíduos que eram superiores e os que eram inferiores, e essa distinção encontrou abrigo nos sistemas punitivos brasileiros, tendo justificativa a sua forma de atuação. | 104 | A narrativa Europa sobre o continente africano e asiático, fato que garantiu a visibilidade e a penetração da ciência evolutiva e determinista dos finais do século XIX, até então desconhecida (Schwarcz, 1993). O positivismo bioantropológico contextualizado por Lombroso, assim como, o positivismo idealista de Garofalo e o penal-sociológico de Ferri, surgiram para ressaltar que o determinismo biológico e social foi elencado como ferramenta das causas da criminalidade, cabendo às estruturas do Estado conterem o avanço do doente e curá-lo (Baratta, 2002). Del Olmo, fala que a ciência teve uma tarefa fundamental para a neutralização das críticas e para a criação do desenho teórico da nova demanda, com a finalidade de “proteger o capital, conservar a ordem e não perturbar o progresso” (Del Olmo, 2004, p. 44). É fundamental discutir em que medida a importação de teorias salvacionistas dos países centrais, por mais sedutoras que pareçam, estão carregadas da violência colonizadora sobre o mundo periférico. (MACHADO; SANTOS, 2018, p. 260) Elas resultaram em graves cicatrizes à população, aos moldes europeus. Dessa forma, a questão da raça se tornou um fator decisivo para a segregação das nações. Essa base teórica de pensamento, chegou ao Brasil e foi bem recebida pelos centros de pesquisa em meados dos anos de 1970 agrupavam a elite intelectual nacional (Schwarcz, 1993). No Brasil, o período pós-abolição, ficou marcado com o ingresso de imigrantes brancos que eram tidos como mão de obra qualificada para serviços intelectuais, e, em contrapartida, os ex- escravos estavam sendo considerados como unicamente trabalhadores braçais, bem articula esse momento, (RODRIGUES,1957, p. 175) “No caso da América Latina, para classes dominantes, a única raça capaz de obter progresso era a | 105 | raça branca. As outras seriam consideradas perniciosas porque levavam consigo ‘elementos degenerativos’.” “contra os atos antissociais das raças inferiores, sejam estes verdadeiros crimes nos conceitos dessas raças, ou seja, ao contrário, manifestações de conflito, da luta pela existência entre a civilização superior da raça branca e dos esboços de civilização das raças conquistadas ou dominadas” (Rodrigues, 1957, p. 174). Observa-se que a importação e posterior discussão sobre o positivismo criminológico aconteceu de forma acrítica em países considerados periféricos. Para OLMO (2004, p.160) aconteceu uma dinâmica de escolasticismo, assim, “bastava que um fato fosse afirmado por Galileu, Darwin ou Spencer para que fosse acreditado. Os fatos eram aceitos sem qualquer discussão”. Por essas questões a criminologia deve ser observada com cautela pela academia, uma vez, que possui essas fervorosas marcas do eurocentrismo. Posteriormente, as ideias bases da antropologia criminal se encontravam caminhando ao descrédito, em razão disso, segundo (Darmon, 1991, p. 110), encontraram nos país da América Latina, "verdadeiros eldorados da nova escola". No Brasil, nos anos inaugurais do regime republicano a teoria de Lombroso e a escola positiva de direito penal, ganhou grande notoriedade no ambiente jurídico. E, somente depois de décadas reproduzindo a “criminologia Lombrosiana”, foi que está passou a ser criticada como forma de conhecimento. Não é fácil dizer que a criminologia foi apenas um emaranhado de pensamentos, sem maiores sequelas. As consequências da impressão estigamatizadora têm suas repercussões até hoje no âmbito jurídico. | 106 | RESULTADOS Nelson Torres (2007) conceitua o movimento de resistência prático, político e teórico à lógica da modernidadecolonialidade como, movimento do giro decolonial. Sobre o pensamento decolonial, Mignolo nos faz refletir sobre uma nova dimensão, para ele; A descolonialidade – em contrapartida – arranca de outras fontes. Desde a marca descolonial implícita na Nueva Crónica y Buen Gobierno de Guamán Poma de Ayala; no tratado político de Ottobah Cugoano; no ativismo e crítica decolonial de Mahatma Ghandi; na fratura do Marxismo em seu encontro com o legado colonial nos Andes, no trabalho de José Carlos Mariátegui; na política radical, o giro epistemológico de Amilcar Cabral, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Rigoberta Menchú, Gloria Anzaldúa, entre outros (Mignolo, 2010, p. 14-15). Destaca-se que pensamento decolonial, anteriormente já foi chamado de “pensamento fronteiriço”, sobre esse pensamento, Mignolo (2003) afirma que ele resistiu às cinco principais ideologias da modernidade, que foram: Liberalismo, conservadorismo, colonialismo, cristianismo e o marxismo. Para Mignolo: O pensamento fronteiriço, desde a perspectiva da subalternidade colonial, é um pensamento que não pode ignorar o pensamento da modernidade, mas que não pode tampouco subjugar-se a ele, ainda que tal pensamento moderno seja de esquerda ou progressista (Mignolo, 2003, p. 52). Dessa forma, entende-se que o pensamento fronteiriço surge de forma que não nega o pensamento da modernidade, sobretudo, não se subjuga ao mesmo, independente de posicionamento político, ele surge com propósito de afirmar o espaço de onde foi negado. O projeto des-colonial difere também do projeto pós-colonial (...). A teoria pós-colonial ou os estudos pós-coloniais estão entre a teoria crítica da Europa (Foucault, | 107 | Lacan y Derrida), sobre cujo pensamento se construiu a teoria pós-colonial e/ou estudos pós-coloniais, e as experiências da elite intelectual nas ex-colônias inglesas na Ásia e África do Norte (Mignolo, 2010, p. 19). O autor Mignolo (2010, p. 17), analisa que mesmo antes do movimento do giro decolonial as ideias da decolonialidade já existiam nos posicionamentos de Quijano quando ele floresce a colonialidade do poder e com o posicionamento de Dussel, quando ele produz a ideia da trans-modernidade. “a pluriversalidade como projeto universal” de Mignolo (2010, p. 17). Ainda na sequência de pensamentos do autor Mignolo, destaca-se a propositura dele para a gramática da “descolonialidade”, onde foi marcado pelo giro da estratégia, afastando-se das epistemologias de pensamentos eurocêntricos e estadunidenses. (MIGNOLO, 2010, p. 95-97). Sabe-se que as concepções do pensamento descolonial possuem o objetivo de envolvimento dos saberes ocultos que goram reprimidos e/ou marginalizados pelo árduo processo de colonização. O Novo Constitucionalismo se originou por conta da preocupação com as desigualdades sociais e tem como “fundamento justamente as exigências das camadas marginalizadas da população” (MOURA, 2012, p. 10). Nesse sentido, podemos dizer que o Novo Constitucionalismo preconiza a Constituição como sendo um meio regulador para as múltiplas questões, sejam elas, sociais, políticas ou ambientais, de maneira mais democrática. Movimento que em passos lentos está sendo identificado em alguns países, por exemplo, na Bolívia e no Equador, por esse motivo se compôs um paralelo entre o Novo constitucionalismo e o Novo Constitucionalismo latino-americano, em razão de | 108 | ambos os movimentos estarem em desenvolvimento sincronicamente. No Estado Moderno seguia-se com rigor o modelo europeu “de cima para baixo” (MOURA, 2012). Com a colonização europeia, se transferiu valores e princípios fortalecendo a “dependência da cultura jurídico europeia”. Nesse sentido, o Novo Constitucionalismo é uma prática constitucional adotada em vários países nos últimos trinta anos, e representa avanços e rupturas em relação ao modelo constitucional de matriz europeia e norte-americana que, de forma geral, serviram de modelo teórico para as Constituições desses países (BRAGATO, 2014 apud BARBOSA; TEIXEIRA, 2016). Assim, percebe-se que o Novo Constitucionalismo surge como contraste ao Estado Moderno, que se estabelecia através da soberania eurocêntrica. E, como forma de abranger os interesses dos povos locais, anteriormente excluídos pelo padrão Europeu, surgiu o Novo constitucionalismo. Como grande exemplo de uma Constituição aos moldes do Novo Constitucionalismo, podemos citar a Constituição da Bolívia(2009), que em seu conteúdo, incluiu direitos indígenas em oitenta, dos mais de quatrocentos artigos, lhes assegurando garantia da propriedade exclusiva da terra, recursos hídricos e florestais (ALVES, 2012, p. 142). Para Alves, o Novo Constitucionalismo é passagem inovadora que expõe a tentativa de colocar em prática o respeito da colaboração popular democrática e segurança social e ambiental (ALVES, 2012). “A sociedade é o conjunto das relações “horizontais” dos indivíduos e dos grupos. Sua estrutura específica é a organização do trabalho da comunidade, a rede das funções sociais” (CANIVEZ, 1991, p. 16). | 109 | CONCLUSÃO Percebe-se ao todo os difíceis caminhos percorrido por toda humanidade que não se encaixava nos padrões “terno com gravata”, ou seja, o padrão eurocêntrico. O processo da decolonização é diferente da rejeição da criação humana criada pelo Norte global. Vimos que as consequências das teorias Lombrosianas, estigmatizante de “perfil criminoso”, onde ele se fundamentava na ciência para exprimir anseios puramente político, a fim de continuar subalternizando pessoas em razão de rua raça, tem suas grandes e árduas segmentações até os dias atuais. A subalternização teórica conversa com as versões periféricas marginalizadoras elaboradas fora do Norte Europeu. Nesse sentido, decolonizar a teoria, é sobretudo decolonizar o poder eurocêntrico. O Novo Constitucionalismo, é um movimento que vem desabrochando e ganhando proporção em países da América Latina, ele significa um novo modelo Constitucional que vem para descontinuar os antigos paradigmas do “padrão” Constitucionalista tradicional. A grande propositura do Novo Constitucionalismo é fomentar uma nova institucionalização, para que com isso possamos ter uma Constituição mais abrangente, plural e que permita o diálogo entre as normas e os princípios. Em suas peculiaridades, destacam-se a participação popular das minorias, como de fato aconteceu com a Constituição da Bolívia. Podemos dizer a história da criminologia passou por diversas etapas de metamorfoses com o objetivo de adequaremse às necessidades locais aqui no Brasil, que por sua vez, encontrou grande aconchego na cultura racista brasileira, e com o exercício do poder punitivo o Estado alcança o controle social “formal”. | 110 | Nesse sentido, contextualizando a colonialidade do poder ao nosso cenário político brasileiro, podemos dizer que o golpe mortal do governo já foi dado, a qualquer momento iremos explodir enquanto humanidade. O Brasil está num contexto preocupante por conta do atual desgoverno do clã Bolsonaro, que nega a ciência, nega as estatísticas e elimina todo àquele que discorda de sua opinião, que implementa o sistema de colonialidade do poder em todas essas formas de controle elencadas por Mignolo. REFERÊNCIAS ALVES, Maria Vitorio. Neoconstitucionalismo e o novo constitucionalismo latino-americano característica e distinções. Revista da SJRJ nº 34. Direito Constitucional, 2012. BARBOSA, Maria Lúcia; TEIXEIRA, João Paulo Allain. Neoconstitucionalismo e Novo Constitucionalismo Latino-Americano: dois olhares sobre igualdade, diferença e participação. Revista Direito & Praxis, 2016. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Introdução à sociologia do Direito Penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. BRAGATO, Fernanda Frizzo; CASTILHO, Natalia Martinuzzi. A importância do pós-colonialismo e dos estudos descoloniais na análise do novo constitucionalismo latino-americano. 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Neste ponto, a linha a se seguir é a responsabilidade pelos danos a biodiversidade e a displicência econômica à apicultura, um espectro de estudos voltados à análise entre os danos ambientais e definição de crimes, seus limites, seu caráter classista, bem como, o amparo as vítimas ambientais. Na busca do entendimento e no ramo, inovador da “Criminologia”, denominada de “Criminologia Verde”, podemos compreender, que está, se preocupa com uma série de questões associadas aos danos causados ao meio ambiente, pelo próprio Estado, pelas corporações e também no campo individuo, e demais responsáveis. Conduzindo um conceito de responsabilidade, como a noção de compromisso, de obrigação de assumir as consequências de determinada atividade, significando a segurança ou garantia de restituição, ou compensação. Assim movimentar primordialmente nos estudos dos fatores ambientais e os padrões criminais. Danos inerentes ao modo de produção, a ingerência do uso dos defensivos e dessecantes, bem como a responsabilização e a suscetibilidade das vítimas. A partir disso, este trabalho tem como principal objetivo, utilizar os paradigmas da “Criminologia Verde” como ferramenta de leitura e enfrentamento aos denominados crimes dos poderosos, tendo como preocupação, o uso de agrotóxico, nas mortes de abelhas e nos impactos causados a flora, assim como, seus danos em extensão as pessoas envolvidas em toda sociedade, e no campo do manejo individual. É, neste ponto, que iremos compreender o caso em específico que irá ser utilizado como exemplo, a questão dos Apicultores. Para perquirir estes objetivos, será utilizado de pesquisa bibliográfica, em teses, livros, artigos, dissertações e trabalhos relacionados ao campo, cruzadas com pesquisa documental, legislativa, a partir do método dedutivo de abordagem, partindo de um problema maior, para chegar a um problema específico. O caminho que se traça, portanto, é compreender os paradigmas históricos da Criminologia Crítica, para estudo de caso específico, apontando os limites da Criminologia Crítica para as questões do meio ambiente, assim como, as possibilidades de leitura estrutural da “Criminologia Verde” frente a problemática. | 115 | DA CRIMINOLOGIA POSITIVISTA A CRIMINOLOGIA CRÍTICA: CAMINHANDO NOS TORTUOSAS ESTRADAS DE COMPREENSÃO DO FENÔMENO CRIMINAL A Criminologia Crítica foi fruto de uma das principais rupturas em termos de epistemologias e tomada de posição, diante das correntes positivistas da Criminologia, está, como veremos adiante, responsável por naturalizar o fenômeno criminal, compreendendo o crime como algo ontológico, ou seja, algo que nascia com o “sujeito criminoso”. Essas correntes positivistas, que variam no bojo dos médicos e juristas, preocupa-se em compreender as causas do crime a partir de uma perspectiva físico-psíquica (Batista, 2011; Araújo Chersoni, Das Chagas, Muniz, 2022). É, neste sentido, que “criminoso” protótipo, estereotipado tem uma base classista, racializada e sexista, é por este motivo, que diversos estudos - o que culminou na criminologia crítica posteriormente - demonstrou a importância da desconstrução social dessa visão da “criminalidade” para compreender os processos de violência, crime e punição, desde uma perspectiva social (Batista, 2011; Araújo Chersoni, Das Chagas, Muniz, 2022). No entanto, embora tenha ocorrido esta mudança no paradigma dentro da criminologia, a herança histórica permanece enraizada na sociedade e no sistema penal. O positivismo de fato influencia diretamente não só na forma como a sociedade visualiza a pessoas tidas como criminosas, bem como, suas permanências históricas influenciam até os dias atuais em decisões judiciais e na forma com que se compreende o crime, criminalização e suas variantes (Batista, 2011; Araújo Chersoni, Das Chagas, Muniz, 2022). No contexto da revolução industrial, onde se necessitava de uma intensa exploração da mão de obra, para consolidar os processos de expansão do capitalismo, é estabelecido, a | 116 | institucionalização da punição, por meio das prisões, como principal de meio de segregação, bem como, estabelece-se o sistema penal de modo alargado (polícias, tribunais, etc.) (Batista, 2011). É, neste contexto, que a Criminologia Crítica, denuncia algumas das “reais” funcionalidades do controle punitivo, o controle da mão de obra, surgindo a própria ideia de polícia como “polícia médica”, formando uma espécie de higienismo social. A Criminologia Crítica, portanto, exerce importante papal de compreensão dos processos punitivos, que não necessariamente, compreendia os sujeitos enquanto “criminosos”, mas contrapõe esta ideia, a partir do conceito de “criminalização” compreendendo, sobretudo, que existe uma distribuição de rótulos a partir do status social de cada pessoa (Becker, 2008). Como podemos observar, a exploração da mão de obra é determinante para compreender a mudança do paradigma etiológico dentro da Criminologia Positivista, para o da reação social, já navegando em uma compreensão alargada e sociológica para compreender o que é crime. Estes entendimentos serão primordiais para que por sua vez é chamado de “criminologia verde” (Dias; Budó, 2019, p. 289). Com a exploração do trabalho humano, principalmente durante o período da revolução industrial. Fica estabelecido uma forma de controle social manipulado pelas chamadas classes dominantes. Esta compreensão contextualiza o que Lombroso chamou de “O Homem Delinquente” neste se referindo ao sujeito masculino, e posteriormente também criou “A Mulher Delinquente, a Prostituta e a Mulher Normal”, subjetivando e concretizando assim o estereotipo de criminoso de uma forma geral às pessoas que pertencem a classes de baixos status deixando os crimes cometidos pelas grandes corporações, pelo | 117 | próprio estado, “etc”, longe dos controles dos órgãos oficiais (Dias; Budó, 2019, p. 289). Se o racismo foi uma invenção da colonização, segundo Foucault, a partir do século XIX ele vira discurso científico. As teorias de Darwin, que em 1830 buscavam o elo perdido em nosso continente, naturalizavam a inferioridade, possibilitavam sua transposição para as ciências sociais como fez Spencer, inspirando o evolucionismo social. O conceito de degenerescência é fundamental para entendermos como nossa mestiçagem iria ocupar “naturalmente” os andares inferiores na evolução humana (Batista, 2011, p. 41). Atualmente, um dos principais conceitos acerca de criminologia é que ela se constitui enquanto uma ciência que estuda materialmente os processos de criação das leis e normas sociais que se correlacionam com os comportamentos denominados de desviantes, bem como a relação desses comportamentos com a reação social que geram (Aniyar De Castro, 2008). A Criminologia Crítica teve como uma de suas principais contribuições em afastar o enfoque positivista no sentido de não tratar mais os sujeitos como criminosos e sim atribuir-lhes a roupagem de sujeitos criminalizado. Isso implica em uma série de mudanças sobre a compreensão das práticas punitivas, a principal delas, é, entender que os crimes corporativos, por exemplo, não eram alvos dos controles truculentos (Araújo Chersoni, Das Chagas, Muniz, 2022; Aniyar De Castro, 2008). Sendo assim, o objeto desloca-se da criminalidade para a criminalização, esta última como uma realidade construída, demonstrando acima de tudo que o crime é uma atribuição dada a comportamentos ou pessoas, algo construído não só através da normatização, mas também da própria construção como sociedade (Araújo Chersoni, Das Chagas, Muniz, 2022; Aniyar De Castro, 2008). | 118 | “A Criminologia Crítica constitui-se como uma “nova” criminologia, que além de contrapor os dizeres do senso comum acerca de “crime e “criminalidade”, desconstrói referencialmente e, sobretudo, na prática”, uma criminologia pautada no conservadorismo (Araújo Chersoni, Das Chagas, Muniz, 2022, p. 275) — esta que, em um contexto de hegemonia do pensamento eurocêntrico, foi uma das ferramentas responsáveis pela segregação de parcela significativa da população (Dornelles, 2017). A CRIMINOLOGIA VERDE E OS LIMITES DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA FRENTE AOS DANOS AMBIENTAIS A Criminologia Verde aponta que as correntes críticas da criminologia - raiz da criminologia verde - não alcançou a partir de suas lupas de análise os crimes ambientais, o uso de agrotóxicos, seus impactos na vida humana e não humana, dentre outros aspectos. É, neste sentido, que a “Criminologia Verde” propõe ao menos dois deslocamentos do alcance da Criminologia Crítica: o primeiro deles, é deslocar o objeto da Criminologia Crítica do ambiente urbano para o rural, seu segundo preocupe-se com a “criminalidade” dos chamados de “poderosos” (Dias; Budó, 2019, p. 289). Uma das principais preocupações, por, exemplo da “Criminologia Verde” que vem sendo construída no Brasil, é pensar, a partir de casos como o de brumadinho, não, focando em uma expansão do direito penal para punir os crimes dos “poderosos”, visto que a Criminologia Crítica já demonstrou diversos problemas do direito penal, sobretudo sua expansão, frente a criminalização das classes empobrecidas, mas, neste sentido, enfocar o olhar da Criminologia Verde, é, também, e | 119 | principalmente, preocupar-se com as vítimas destas catástrofes (Dias; Budó, 2019). É, neste sentido, que as possibilidades de compreender os danos sociais e os sofrimentos humano e não humano, frente aos danos sociais, são um dos principais objetos da Criminologia Verde, é, neste ponto, que para alcançar esses objetivos, foram necessárias uma série de rupturas. “Algumas delas podem ser sintetizadas aqui como: 1) um inicial reconhecimento sobre a importância de elaborações científicas que analisem e respondam às causas do crime no contexto positivista (em finais do século XIX); 2) as primeiras críticas ao positivismo, a partir de diferentes aproximações funcionalistas, como a noção de que o crime não é uma patologia social” (França; Budó; Dias, 2021, p. 4). Mediante tais aproximações, iniciais, vislumbra-se que além do objeto diferenciado, que se ancora no que se denomina de dano social, a vertente da Criminologia Verde “almeja atingir mais do que apenas modificações legais ou a punição dos responsáveis pelas violações ambientais, pretendendo alcançar, também, ações efetivas e igualmente o nível de aplicação ofertado pelas políticas públicas”. Este ponto, parece crucial, nas análises que iremos propor neste trabalho, compreender a responsabilidade do estado frente a reparação das vítimas destes danos, assim como, a regulamentação de práticas ecologicamente sustentáveis buscando as proteções de vidas humanas e não humanas (Dias; Budó, 2019, p. 287). Sendo assim, para a Criminologia Verde, observou-se que dois conceitos são necessariamente importantes para a compreensão deste deslocamento das lupas de análises da Criminologia Crítica: o conceito de dano social e seus impactos na vida humana e não humana, bem como, um debate sobre crime, criminalização, para compreender o que é entendido por | 120 | criminalidade dos poderosos. Pois bem, iremos nos atentar a este segundo conceito. Uma das primeiras questões a serem levantadas pelas próximas teorias, fazendo um debate mais lucido acerca dessas problemáticas, apontam que a população, no geral, está altamente mais suscetível a serem vítimas de crimes cometidos pelas grandes corporações ou pelo próprio Estado do que crimes no âmbito interpessoal (Colognese; Budó, 2018, p. 58). Outro ponto para a compreensão deste tipo de criminalidade, é as observações acerca do que se compreende enquanto crime, pois, muitas práticas extremamente danosas a vida humana e não humana – como o caso do uso de agrotóxicos -, objeto da Criminologia Verde, compreende-se como práticas comuns, não sendo consideradas crimes ou, quando são, não são alvos do controle penal ou de outros ramos do direito, como a reparação cível dentre outras (Colognese; Budó, 2018, p. 58). É, nesse contexto, que numerosos autores e autoras vêm buscando uma compreensão mais alargada, sob maneiras, de como essas condutas mais danosas à humanidade, ao meio ambiente e aos animais não humanos, praticadas por detentores de poder social, podem ser reparadas, sobretudo, sem “expandir” o controle penal e ele acabar sendo utilizado meramente a partir de suas reais funções, como já aponta a Criminologia Critica e seu longo acumulo teórico (Colognese; Budó, 2018, p. 58), e no caso em específico, como veremos a frente, observaremos os impactos destas condutas nos pequenos agricultores. Apesar dos grandes impactos a vida “pessoal” da população causada por estes atos criminosos praticados pelos “poderosos” uma das potencialidades da Criminologia Verde é lançar sobre estas questões, a partir de um olhar estrutural, neste ponto, não se abandonam algumas perspectivas centrais das | 121 | ciências sociais, como, por exemplo, a compreensão histórica de que estamos imersos em uma sociedade dividida em classes, sobretudo, quando se pensa nos países latino americanos e o caráter dependente do capitalismo nesta periferia global. “Alguns dos aspectos trazidos pelo campo no estudo dos crimes dos poderosos são o aprofundamento da violência estrutural na interação entre corporações transnacionais e elites locais no sul global” (França; Budó; Dias, 2021, p. 2). Sendo assim, compreender as dinâmicas destas formas de criminalidade, a partir dos grandes movimentos históricos que os constitui, compreendendo que os impactos interpessoais causados pela liberação e o uso de agrotóxicos, aliados assim, a outras formas de dano social, como o caso do amianto, da indústria de celulose, dentre outras, são parte de um movimento que estrutura a sociabilidade dos países subdesenvolvidos, como o caso do Brasil (Silveira, Budó, 2021). A interdisciplinaridade da Criminologia Verde, herança, também histórica da Criminologia Crítica, constitui objeto de amplitude nos interesses de estudos desta nova forma de compreender o fenômeno criminal dos poderosos, pois, o caráter cientifico é o motor dos estudos criminológicos verdes, visto que, o comprometimento social, a partir de dois polos: as vítimas dos crimes ambientais e dos poderosos, e a omissão do Estado frente a essa criminalidade, demonstram um comprometimento desta ferramenta em fomentar o engajamento destes cientistas com outras formas de enfrentar tal criminalidade, como, por exemplo, políticas públicas e o comprometimento com os “pequenos agricultores”, por exemplo (Silveira, Budó, 2021). Apesar de sensivelmente mais danosas do que condutas tipificadas como crimes patrimoniais e contra a vida praticadas por indivíduos contra indivíduos, as consequências negativas das dinâmicas produtivas no capitalismo global costumam ser invisibilizadas nas mais diversas esferas do discurso. Dos discursos midiáticos | 122 | àqueles políticos e científicos, as noções hegemônicas de “segurança” e “violência” muito raramente são associadas a condutas rotineiras de empresas, sejam elas urbanas ou rurais, nacionais ou internacionais, ou mesmo aquelas praticadas pelos Estados (Silveira, Budó, 2021, p. 3). É em torno do anteriormente exposto, que a Criminologia Critica, por si só, não consegue fornecer os deslocamentos adequados para uma maior compreensão desta criminalidade, até mesmo, tratando-se de “vertentes” criminológicas, que se propõe a produzir conhecimentos entrelaçados com os movimentos populares, por exemplo, é neste ponto, que a interdisciplinaridade da Criminologia Verde, acaba por der ferramenta eficaz, sobretudo, no tempo presente para compreender as dinâmicas do capitalismo atual (Budó, 2021). OS DANOS SOCIAIS VOLTADOS A PRODUÇÃO DOS APICULTORES: UM OLHAR A PARTIR DA CRIMINOLOGIA VERDE Um dos ramos que vem sofrendo muito com o uso de agrotóxico, são as criações de abelhas, sendo esta, a problemática central deste texto. Diversos apicultores vêm denunciando que muitos de seus companheiros de trabalho estão em dificuldades para se manterem no ramo, pois, nas regiões onde existe o uso de agrotóxicos, as abelhas não sobrevivem. A apicultura, é importante forma de renda em diversas regiões do Brasil, sobretudo, no que diz respeito aos pequenos criadores, estes, os que mais sofrem com o uso destes tipos de “venenos”, além, das abelhas serem importantíssimas para a manutenção do equilíbrio ecológico em diversas regiões (Amorim, 2023). No Brasil, têm sido frequentes os relatos de apicultores sobre a ocorrência de mortes súbitas em suas colônias de abelhas, abrangendo diversas regiões do país, como o Piauí, especificamente no município de Simplício Mendes, bem como | 123 | em regiões do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e no interior do Estado de São Paulo. Na região central de São Paulo, em cidades como Rio Claro, Pirassununga, Araras, Mogi Mirim, Piracicaba, Brotas, Boa Esperança do Sul, São Rita do Passa Quatro, São Carlos e Tabatinga, esses relatos têm sido mais frequentes. Em todos esses casos, os apicultores relataram perdas significativas, com uma média de cerca de 400 colmeias atingidas e perdidas em cada situação. Infelizmente, na grande maioria dos casos, não foi possível coletar amostras de abelhas mortas para análises e confirmação da contaminação. Foram levantadas diversas suspeitas na tentativa de identificação das causas por trás da intoxicação e mortalidade das abelhas. Algumas dessas suspeitas incluem mudanças climáticas globais, que estão alterando o padrão de chuvas em muitas regiões e resultando em secas prolongadas, a intoxicação causada por plantas tóxicas e, especialmente, a exposição de abelhas e agrotóxicos usados em nossas áreas de cultivo (Osmar et. al, 2008, p. 43-44). A partir do exposto, uma reportagem do jornal “Brasil de Fato” teve acesso a relatos de importantes criadores de abelhas na Bahia, onde, neste caso em específico, relatos aponta que morreram uma média de 90 milhões de abelhas dentro do lapso temporal de um mês. Uma das regiões com maior produção de mel da Bahia perdeu pelo menos 90 milhões de abelhas neste mês. Apicultores de Ribeira do Pombal e região já contabilizam a morte de mais de 1.500 enxames. Os primeiros testes realizados pela Cooperativa de Apicultores de Ribeira do Pombal (Cooarp) juntamente com a Secretaria de Desenvolvimento Rural da Bahia (SDR) apontam que os insetos morreram envenenados com fipronil, um agrotóxico utilizado nas lavouras de milho e, irregularmente, também em pastagens (Amorim, 2023, s/p). “O Fipronil é utilizado como inseticida e tem sua venda proibida na União Europeia. No entanto, a sua produção em solo europeu e sua exportação para outros países segue sendo | 124 | permitido. No Brasil, ele já é proibido desde 2021 no estado de Santa Catarina”, por exemplo (Amorim, 2023). Neste sentido, um dos locus de denúncia da Criminologia Verde, é a “normalidade” deste tipo de prática em países subdesenvolvidos, exercendo, uma espécie de colonialismo, onde os países centrais produzem e vendem estes tipos de “venenos” para os países subdesenvolvidos, estes, que não exercem uma política eficaz de regulação sobre estes “produtos” como no Brasil (França; Budó; Dias, 2021). “O contato entre os agrotóxicos e as abelhas pode ocorrer tanto com a ingestão do néctar e coleta de pólen, quanto pela exposição a partículas em suspensão no ar e nas partes vegetais” (Rego, 2022, p. 17). Isso torna, inclusive, mais difícil a quantificação da extensão do problema, visto que, parte considerável dessas abelhas, são criadas de forma livre e não em cativeiro, o que implicaria em maior investimento, assim como, na qualidade dos insumos produzidos a partir do mel (Amorim, 2023). Um dos principais exemplos de agrotóxicos que levam as mortes das abelhas, além dos já mencionados, são os “herbicidas”, estes, “representam a classe de agrotóxicos mais utilizada mundialmente” (Carneiro et al., 2015; Caldas, et. al, 2018, p. 3). Com o advento das estratégias de plantio de forma direta “(onde novas culturas são implantadas diretamente sobre a palhada após o controle de ervas daninhas com a aplicação de herbicidas)” (Caldas, et. al, 2018, p. 3), e por sua vez, a utilização de transgênicos que exercem um efeito de resistência à aplicação dessas moléculas, o uso de herbicidas nos apresentou exponencial aumento (Gianessi, 2013; Caldas, et. al, 2018, p. 3). Em lapso temporal considerável, os herbicidas eram classificados enquanto seguros para as abelhas, entretanto, | 125 | atualmente esse conceito vem sofrendo alterações. Muito porque, o uso de herbicidas reduz, consideravelmente, a disponibilidade de “flores silvestres que crescem no entorno de plantações e representam importantes fontes de alimentos (néctar e pólen) para as abelhas” (Caldas, et. al, 2018, p. 3). A especialista em bioecologia de abelhas, Genna Sousa, explica que uma perda dessa amplitude terá impactos futuros na produção de alimentos, pois cerca de 70% dos alimentos consumidos pelos seres humanos dependem, em algum grau, da polinização das abelhas. Sousa, que também é bióloga e doutora em Ciências Agrárias, ressalta ainda que as abelhas solitárias e sem ferrão são fundamentais para a polinização das matas nativas, sendo, portanto, extremamente relevantes para a manutenção da vida desses biomas (Amorim, 2023, s/p). Neste sentido, mesmo com o respaldo de diversos órgãos técnicos e legais, como o caso do código florestal, que estipula diversas medidas para limitar a pulverização dos agrotóxicos, observa-se, uma fragilidade no que concerne aos órgãos fiscalizadores, assim como, é considerado “normal” o uso abusivo destes “venenos” (Gussoni; Ribeiro, 2017; Amorim, 2023). Na maioria dos casos, os inseticidas afetam as abelhas, por meio de alterações na fisiologia do sistema nervoso, resultando na morte devido à hiperexcitação ou paralisia das funções. Os agrotóxicos, além de seu efeito tóxico que culmina na morte dos insetos, também têm a capacidade de causar efeitos subletais em concentrações baixas. Esses efeitos subletais levam a alterações cognitivas que, por sua vez, resultam em prejuízos na manutenção das colônias de abelhas. Os impactos subletais incluem a redução do movimento e da mobilidade, a diminuição da capacidade de comunicação e aprendizado, dificuldades no retorno à colônia, alterações no comportamento de forrageamento e nos processos de polinização (Nocelli, 2012, p. 200-2010). | 126 | Foi observado que abelhas adultas da espécie A. mellifera que tiveram contato com inseticidas como tiametoxam e metidationa, seja por ingestão oral ou aplicação tópica, apresentaram sintomas como distúrbios de coordenação motora, incapacidade de voar e prostração nas primeiras horas após a exposição. No caso da abamectina, a mortalidade atingida é de 99% das abelhas após 30 horas de exposição, enquanto a deltametrina provocou movimentos desordenados e tremores após apenas 1 hora de contato (Nocelli, 2012, p. 200-2010). Esses agrotóxicos afetam a capacidade das abelhas em processos como memorização, aprendizado, habilidades olfativas e orientação espacial. Esses efeitos têm o potencial de ter um impacto significativo sobre o funcionamento da colônia como um todo, uma vez que depende da capacidade de aprendizado e orientação das abelhas forrageiras. Estas, devido às suas atividades externas, estão mais expostas à contaminação. Para que essas reações ocorram, os agrotóxicos ou seus metabólitos precisam penetrar no organismo das abelhas e afetar determinados mecanismos celulares. Isso pode se manifestar em alterações morfológicas e/ou fisiológicas (Nocelli, 2012, p. 2002010). Seguindo neste viés, os inseticidas contendo imidaclopride e beta-ciflutrina podem persistir nas culturas de canola, representando uma ameaça à sobrevivência das abelhas mesmo mais de uma semana após a aplicação. Portanto, é aconselhável evitar o uso desses produtos neste cultivo agrícola. Em vez disso, é essencial optar por pesticidas seletivos e amigos das abelhas. Isto é crucial, uma vez que as fases de floração e enchimento dos grãos nas culturas de canola muitas vezes se sobrepõem, tornando-se um momento crítico tanto para a visitação floral como para potenciais infestações de pragas que podem prejudicar a produtividade (Abati, 2001, p. 87). | 127 | Considerando a importância económica e ambiental das abelhas e os problemas causados pelos pesticidas a estes polinizadores, é imperativa mais investigação. Isto deve abranger investigações sobre métodos alternativos de controlo de pragas que não dependam de produtos químicos, ou opções de controlo químico que sejam mais amigas das abelhas e que tenham em conta os insetos benéficos. Além disso, é necessário aumentar o apoio a estas vias de investigação, que podem ser interligadas para desenvolver estratégias integradas de gestão de pragas, garantindo uma abordagem mais sustentável aos agroecossistemas que sejam mais seguros tanto para as abelhas como para os seres humanos (Abati, 2001, p. 87). Sendo assim, os princípios da agroecologia vêm sendo aplicado a criação de abelhas em diversos lugares do Brasil. A agroecologia pode ser conceituada como uma disciplina que tem como propósito sustentar a mudança dos paradigmas atuais de desenvolvimento rural e práticas agrícolas, produzidas em direção a abordagens de desenvolvimento rural e práticas agrícolas sustentáveis. Seu objetivo é promover uma melhoria contínua e harmoniosa dos elementos que representam os progressos positivos nas esferas econômica, social, ecológica, política, cultural e ética da sustentabilidade (Teixeira, 2007, p. 1296). Sob uma perspectiva socioeconômica, diversas estratégias de comercialização evoluíram com o objetivo de mitigar os riscos financeiros associados à venda de produtos provenientes da meliponicultura. Essas abordagens ainda persistem em várias comunidades locais, principalmente no nordeste brasileiro. Isso ocorre porque a comercialização do mel de abelhas sem ferro, em sua grande maioria, ocorre em canais de distribuição de curta extensão, como feiras livres e vendas diretas realizadas em propriedades próprias. A identificação, o fortalecimento e, | 128 | quando necessário, a reinvenção desses tipos de canais de venda são ações relevantes. Vale ressaltar que o mel das abelhas sem ferro tem uma longa tradição de uso na medicina popular (Teixeira, 2007, p. 1296). Diversos estudos demonstram a importância da agroecologia enquanto, inclusive, princípio constitucional, visto que, o princípio da precaução, por exemplo, este que se aplica a Constituição Federal, demonstra que O Estado brasileiro deveria antecipar o se agir com estratégias concretas de proteção ao meio ambiente, neste caso, como exemplo, a proteção dos apicultores. No contexto da proteção ambiental, o Estado brasileiro deve orientar suas ações com base no princípio da precaução, a fim de antecipar-se e, consequentemente, evitar a ocorrência de danos ambientais (Sarlet; Fensterseifer, 2019, p. 54-55). Nesse sentido, é fundamental enfatizar a responsabilidade do Estado em prevenir riscos ambientais graves para a vida, incluindo a implementação de sistemas de monitoramento e alerta imediato destinados à detecção de tais riscos significativos, bem como a criação de sistemas de ação imediata para lidar com esses riscos ameaças. Esse entendimento é particularmente relevante no contexto da proteção ambiental relacionada às questões climáticas, uma vez que tais “sistemas governamentais de prevenção de danos ambientais” possibilitariam uma atuação mais eficaz em cenários de eventos climáticos extremos, como enchentes e penetrações de terra. Dessa forma, seria possível antecipar esses desastres naturais e, até mesmo de maneira preventiva ou, no mínimo, com a intenção de reduzir os impactos, proteger de forma mais eficaz os direitos fundamentais das pessoas expostas a tais situações (Sarlet; Fensterseifer, 2019, p. 54). É, neste ponto, que se centraliza as análises da Criminologia Verde, que busca, não somente uma compreensão | 129 | legal/legislativa na problemática, mas defende, que este problema é uma questão estrutural na sociabilidade dos países subdesenvolvidos. O debate de “crime” e “criminalidade dos poderosos”, tomam a frente das análises, pois, por conta das diversas continuidades do conceito de “criminoso” construído pelos próprios preceitos dos “positivismos criminológicos” a problemática dos crimes cometidos pelas pessoas de alto status, acaba sendo dificultoso, quando, considera-se crime, pois em muitos casos nem crimes são considerados (Budó, 2021). Sendo assim, um dos importantes movimentos para sanar tais problemáticas, centra-se, também, em enfrentar essas estruturas de opressão, observa-se com isso, a necessidade da defesa de políticas de Estado eficazes, tanto ao nível fiscalizatório, quanto, na construção de políticas de fomento de uma nova sociabilidade no que tange a produção alimentícia no Brasil, uma das saídas, sem dúvidas, é a agroecologia, o fomento do pequeno agricultor, dentre diversas outras possibilidades – aliadas aos órgãos de controle desta criminalidade (Budó, 2021). É, neste ponto, que diversos estudos, como, Caldas (2018), defende com afinco políticas de redução do uso de agrotóxicos. “A redução do uso de agrotóxicos e da exposição das abelhas a essas substâncias são essenciais para garantir sua manutenção e sanidade, para garantir os serviços de polinização e o maior desenvolvimento da apicultura” (Caldas, 2018, p. 5). Assim como, diversas notas técnicas, defendem que os apicultores devam recorrer, cadastrar-se, e reivindicar junto aos órgãos fiscalizadores, políticas efetivas para a proteção desta classe de trabalhadores, visto que, os impactos do agrotóxico nestes casos, afetam não somente a um importante nicho do mercado de trabalho, como tem impactos diretos no equilíbrio ambiental e nas formas de vidas humanas e não humanas (Gussoni; Ribeiro, 2017). | 130 | CONCLUSÃO Conclui-se com o breve estudo, que o caso dos Apicultores e as mortes de abelhas, é uma questão que se enraíza nas estruturas brasileiras. O uso de agrotóxicos e seus impactos, podem levar a um diversificado desequilíbrio ecológico e causar impactos irremediáveis na própria vida humana. Para encarar a complexidade da questão, evocou-se ramo inovador do direito e das ciências sociais. A Criminologia Verde, compreende-se a problemática a partir de uma visão estrutural, que passa pela compreensão de crime e entende-se que tal criminalidade estudada, por muitas vezes, não é enxergado de tal forma, sobretudo pelos meios de proteção e os órgãos fiscalizadores. Isso se dá por diferentes questões, e a principal delas, é que o rotulo de crime é distribuído historicamente para as populações de baixo status social, visto que essas são continuidades históricas na sociabilidade brasileira. Como reposta a questão dos Apicultores, defende-se, a partir das chaves de análises propostas a defesa de Políticas de Estado para a proteção desta forma de vida, uma expansão no debate público qualificado acerca do problema e a responsabilização destes crimes nos mais diversos âmbitos. REFERÊNCIAS ABATI, Raiza et al. Agrotóxicos e abelhas: cienciometria e análise de efeito residual de imidaclopride e beta-ciflutrina em canola Brassica napus L. 2021. Dissertação de Mestrado. 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Não foi por acaso que Lemos Brito (1926, p. 252) reportou ao então Ministro da Justiça a necessidade de uma legislação federal que regulamentasse a matéria em uníssono e superasse essa disparidade entre as localidades do país. Segundo Brito, a pena privativa de liberdade “[...] mais do que da condenação do indivíduo a um artigo qualquer do Código ela depende da aplicação que lhe derem na prisão” (Britto, 1926, p. 252). 1 Nome de coletânea de textos em homenagem a Massimo Pavarini lançado pela editora Revan em 2019. O fato é que apesar da iniciativa e diversas investidas que culminaram na Lei de Execuções Penais2, a uniformização proposta por Lemos Brito não conseguiu ser implementada na sua integralidade diante das diversas concessões aos poderes locais perpetradas pela legislação federal. Pesquisas mais recentes têm corroborado nesse sentido e demonstrado que, apesar das iniciativas, a “configuração prisional” brasileira ainda é administrada de forma tão heterogênea que estabelecimentos penais vizinhos possuem regras e rotinas completamente diferentes (Chies; Riveiro, 2019). Por isso, as pesquisas e trabalhos precedentes demonstram que para se pesquisar o cárcere brasileiro, antes de tudo é necessário recortá-lo a partir de sua região e sua normatização para além da Lei de Execuções Penais uma vez que cada local possui a sua especificidade tornando cada cadeia um corpo singular dentro do contexto brasileiro e mundial. O presente trabalho se situa exatamente nessa margem. Como essas circunstâncias locais que singularizam a cultura e também marcam as prisões da cidade são elementos importantes a serem levados em consideração nas pesquisas dessa seara, o trabalho procura fornecer elementos e informações a respeito da formação dos estabelecimentos penais no município a partir das emergências nacionais e locais impulsionadoras para a construção dessas instituições. Dessa forma, o trabalho resgata documentos oficiais e arquivos das instituições, contextualiza as prisões na localidade e tem como objetivo geral compreender quais foram as circunstâncias que levaram a construção de tais Unidades Prisionais em determinadas regiões da cidade. Iniciando pelo resgate da formação do cárcere no Brasil a partir do período 2 BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 28 jun. 2021. | 135 | colonial até o século XX quando a instituição foi consolidada em Santa Catarina, se aprofunda na história da cidade de Criciúma, contextualiza a formação da localidade em paralelo às emergências que subsidiaram a instalação das prisões no município. A (DE)FORMAÇÃO DO CÁRCERE NO BRASIL A prisão, assim como tantas outras organizações brasileiras, surgiu antes mesmo da sua institucionalização normativa. Materializou-se através de um conjunto de atividades das autoridades constituídas e somente depois foi regulada por atos legislativos e administrativos correspondentes. Por isso, seguir uma ordem lógica entre teoria e prática do cárcere brasileiro tende a subsidiar teoricamente os paradoxos institucionais a que ela se coloca desde o seu princípio (Chies, 2019, p. 55). Argumentamos sobre essa contradição porque logo que os povos originários viram sua terra invadida por europeus no século XV, iniciando, segundo Dussel (1995, p. 86) a Era Moderna, eles nunca mais deixaram de conviver com a exploração. Especificamente no Brasil, além de todo o processo de dominação e escravização promovido pelos invasores, a localidade foi colocada pela Corte da época como destino das pessoas condenadas a pena de degredo. Pedroso (2002, p. 61), utilizada como referência na afirmação descrita, ainda materializa o fato ilustrando que: A primeira menção à prisão no Brasil é dada no Livro V das Ordenações Filipinas do Reino, que decreta a Colônia como presídio de degredados. A pena era aplicada aos alcoviteiros, culpados de ferimentos por arma de fogo, duelo, entrada violenta ou tentativa de entrada em casa alheia, resistência a ordens judiciais, falsificação de documentos e contrabando de pedras e metais preciosos (Pedroso, 2002, p. 61). | 136 | O Brasil foi destino de degredados até 1808 quando a Corte portuguesa aportou foragida da invasão napoleônica (Pedroso, 2002, p. 61). Após a chegada de D. João VI, o país deixou de ser destino de degredo, mas outras formas de punição foram sendo implementadas com base nas determinações constantes nas Ordenações Filipinas, as quais regularam a matéria até 1830 (Araújo, 2009, p. 240). A primeira prisão instalada no Brasil data de 1769, quando uma Carta Régia determinou a criação de uma casa de correção no Rio de Janeiro (Pedroso, 2002, p. 61). Durante o período colonial poucas cadeias começaram a existir, pois elas se destinavam a somente albergar pessoas que aguardavam alguma definição das autoridades, como descreve Aguirre (2009, p. 35). Os mecanismos coloniais de castigo e controle social não incluíam as prisões como um de seus principais elementos. O castigo, de fato, se aplicava muito mais frequentemente por meio de vários outros mecanismos típicos das sociedades do Antigo Regime, tais como execuções públicas, marcas, açoites, trabalhos públicos ou desterros (Aguirre, 2009, p. 35). As prisões coloniais foram frutos da criação de cada localidade e consequentemente de inteira responsabilidade das autoridades desses sítios. As municipalidades tinham a capacidade de instituir, regulamentar e administrar as chamadas “Casas de Câmara e Cadeia”, onde ocorriam - como o próprio nome sugere - desde as deliberações legislativas relacionadas a administração regional até o albergamento de pessoas privadas de liberdade (Rossler Junior, 2020, p. 84). Essas casas estavam longe de serem locais adequados para a implementação de tais albergamentos. Aguirre (2009, p. 35) demonstra como as péssimas condições de estrutura, saneamento, higiene, etc, traziam consequências nefastas a esses | 137 | lugares e problemas de toda sorte emergiam exatamente pela falta de planejamento e preocupação das autoridades. Somente com o advento da independência nacional que o país deliberou e criou, já no ano de 1830, um ordenamento criminal próprio (Araújo, 2009, p. 652). Porém, é inegável o fato de que a chegada da corte ao Brasil em 1808 tenha transformado a então longínqua colônia, pois esse movimento trouxe o Brasil para o centro político lusitano. Dessa forma, entrou em curso um importante processo de urbanização das cidades brasileiras, sobretudo do Rio de Janeiro, e embora o ordenamento jurídico ainda fosse o mesmo do século anterior, as dinâmicas e aplicações administrativas no Brasil foram colocadas como prioritárias, trazendo reflexos em todas as áreas da sociedade colonial (Schwarcz, 2018). Ainda que a legislação tenha se mantido nas Ordenações, o cárcere sofreu impactos com a chegada da Corte ao Brasil. No Rio de Janeiro essa transformação ocorreu de forma mais direta, porque na cidade, desde 1747, a Cadeia de Relação, recebia reclusos como medida temporária até a definição das autoridades e o prédio onde a prisão alojava-se foi requisitado para a instalação da comitiva real, provocando a mudança do local da prisão (Holloway, 2009, p. 283). O prédio requisitado e colocado como destino dos aprisionados da época restou estruturado, portanto, como cárcere civil. A prisão recebeu o nome de Aljube e, segundo Holloway (2009, p. 283), entre 1808 e 1856, “[...] tornou-se o destino da maioria dos presos, escravizados ou livres, que aguardavam julgamento ou eram condenados por pequenos delitos ou crimes comuns [...]”. As condições do Aljube eram absolutamente impróprias para o albergamento de qualquer pessoa e essa pauta foi objeto de discussão pelas autoridades, sobretudo após a implementação do Código Criminal do | 138 | Império de 1830, quando o Brasil procurou importar o iluminismo penal para a realidade brasileira e centralizou a prisão no cenário punitivo da época (Sant’anna, 2009). As contradições entre as condições reais dos cárceres brasileiros e a legislação criminal imperial que prezava por valores de dignidade à pessoa sujeita a prisão, começaram a ser objetos de destaque justamente neste período (Chies, 2019, p. 55). As autoridades se viam na obrigação de aprimorar a instituição criada antes das determinações legislativas para a nova realidade reclamada pelos documentos em regência. Foi nesse contexto, ainda segundo Holloway (2009, p. 266), que a discussão de modernização das prisões ganhou corpo nos centros urbanos, principalmente na capital brasileira, gestando, nesta última, a criação da Casa de Correção em 1850. O projeto penitenciário deveria ter uma finalidade moral, no sentido de reformar os indivíduos criminosos por meio do trabalho e da disciplina. Nesse sentido, as mudanças na forma de punir se inseriam em um conjunto de ideias liberais europeias, pertencentes ao campo da escola clássica do direito penal, que tinha em Cesare Beccaria – autor de Dos delitos e das penas, publicado pela primeira vez em 1764 – um precursor (Sant’anna, 2009, p. 302). Os meios de controle social do século XIX se consolidaram no mundo ocidental através das instituições de correção que, segundo Rushe e Kirchheimer (2004, p. 67-68), foram iniciadas na Europa ainda no século XVI. As Casas de Correção justificavam o trabalho como mecanismo de disciplina, quando na verdade, se apresentavam como ferramentas de exploração barata de mão obra pelo liberalismo econômico já espraiado naquela oportunidade. O Brasil abraçou essa iniciativa e gestou Casas de Correção a partir do século XIX em lugares como São Paulo, Bahia e Porto Alegre (Sant’anna, 2009, p. 308). Porém, como o Código Criminal do Império previa duas formas de prisão: a simples e a com trabalho, as prisões do século XIX | 139 | dividiam-se entre aquelas que ofereciam trabalho ou não, de modo que os cárceres com trabalho ganharam destaque (Pedroso, 2002, p. 67). A fundamentação teórica da execução das penas neste período ficava a cargo de um modelo baseado no iluminismo penal que, segundo Foucault (2014, p. 135), objetivava inserir o aprisionado dentro da sociedade disciplinar, utilizando-se, para tanto, dos aparatos de vigilância, controle e sanção para docilizálo. Sem desconsiderar a ampla inserção positivista na intelectualidade brasileira que provocavam críticas importantes ao ordenamento em vigor (Alvarez, 2003, p. 72)3, as iniciativas executivas sob o modelo das prisões brasileiras do século XIX foram baseadas no círculo dos paradigmas institucionais dialogados na América do Norte que também bebiam das construções teóricas utilitaristas benthanianas (Pedroso, 2002, p. 63). Lá dois modelos de execução prisional se destacaram no século XIX: o da Pensilvânia e de Auburn (Rushe; Kirchheimmer, 2004, p. 179). O sistema da Pensilvânia estabelecia que o aprisionado deveria isolar-se em absoluto, ainda que o trabalho fizesse parte da rotina. De origem religiosa, o modelo procurava recuperar o condenado através do retraimento e da reflexão, utilizando-se do isolamento para tanto. O sistema de Auburn, por sua vez, fixava um modelo disciplinar pelo trabalho coletivo, aplicando o isolamento do preso somente no período noturno para descanso ou, em qualquer horário, como aplicação de alguma sanção interna. Dentro das lógicas iluministas já implementadas no ocidente do século XIX, este último modelo se adaptou melhor aos objetivos capitalistas e conquistou a hegemonia nos Estados 3 Vera Malaguti Batista compreende que o positivismo se enraizou tanto em nosso território que ganhou robustez e, para além de uma “escolha” acadêmica, se transformou na própria cultura brasileira (Malaguti Batista, 2023). | 140 | Unidos da América se espraiando ao resto do mundo (Rushe; Kirchheimer, 2004, p. 183). As Casas de Correção brasileiras, portanto, para desagrado dos positivistas, fundamentadas nas construções clássicas, foram instituídas dentro dos modelos auburnianos de trabalho e disciplina (Koerner, 2006). Segundo Aguirre (2009, p. 40) “Durante várias décadas, de fato, cada uma destas penitenciárias representaria a única instituição penal “moderna” em meio a um arquipélago de centros de confinamento que não tinham sido alterados por reforma alguma”. Na teoria as Casas de Correção poderiam até ser essas ilhas narradas por Koerner (2009), mas na prática, a tentativa de implementação dos ideários iluministas também sofreu com a desorganização, como relata Sant’anna (2009, p. 312): “Parece realmente que muitos foram os tumultos iniciados nas oficinas de trabalho. Tanto assim que o novo regulamento, instituído em 1882, trazia medidas mais severas para a disciplina dos presos nesses lugares”, mantendo a tradição paradoxal brasileira entre o discurso e realidade. As péssimas condições das Casas de Correção acompanharam esses estabelecimentos desde as suas fundações até os seus sucessivos encerramentos, quando outras reformas foram iniciadas juntamente com as transformações políticas ocorridas já na República brasileira e a abolição formal da escravização (Melo, 2020, p. 81). O Código Penal da República de 1890, embora flertasse com o positivismo, não foi longe nos conceitos da “Nova Escola” e continuou valorizando ideários do iluminismo penal. Isso não prejudicou os debates entre juristas e médicos que ainda perquiriam aportes científicos como meios para a prevenção criminal e gestão da execução das punições (Alvarez, 2003, p. 72; 132). Aguirre (2009, p. 53) demonstra que a criminologia | 141 | positivista conseguiu espaço e direcionou as atividades de execução penal da América Latina a partir da virada para o século XX. Essa influência, segundo ele, ocorreu sobretudo “na implementação de terapias punitivas e na avaliação da conduta dos presos”. Embora tenham ocorrido mudanças legislativas na passagem para a República, as mudanças práticas não ocorreram de forma tão imediata e contundente. Os problemas carcerários assinalados desde o Império foram destacados pelas autoridades, mas não foram imediatamente superados (Sant’anna, 2009, p. 317). O decreto 774, de setembro de 1890, aboliu as penas de morte, galés e açoite, e o Código Penal da República trouxe mudanças nas formas de punição (prisão celular, reclusão, prisão com trabalho, prisão disciplinar) e no regime penitenciário adotado. Implantou a opção da progressão de cumprimento da pena, começando pelo isolamento celular, trabalho obrigatório e, como último estágio, o livramento condicional para presos que apresentassem bom comportamento. Tudo isso, no entanto, sem fazer nenhuma mudança significativa na organização interna dos estabelecimentos carcerários (Sant’anna, 2009, p. 318). As autoridades republicanas herdaram os estabelecimentos penais da época e seus problemas (Sant’anna, 2009, p. 318). Paulatinamente, já no século XX, as instituições prisionais do Império foram sendo substituídas por outras unidades com características mais “modernas”, diga-se, adaptadas às disposições de um novo Código Penal da República já em vigor, alinhando essas execuções aos conhecimentos teóricos da “Nova Escola Penal” positivista que se encontrava bem difundida entre os pesquisadores de então (Alvarez, 2003). Além da pretensa modernização, essas unidades precisavam atender às novas realidades colocadas na legislação como a progressão de regime. A ideia do sistema progressivo, segundo Alessandra Teixeira (2009, p. 45) não advém da matriz | 142 | auburniana, mas sim do sistema progressivo irlandês, outro modelo de operacionalização prisional. Diante da realidade colocada onde o dispositivo carcerário se articulava através de um modelo inteiramente americano, os estabelecimentos penais republicanos precisariam ser transformados para atender a essa mais nova dinâmica. Em verdade, o que se procuraria arquitetar a partir das legislações republicanas seria a consolidação do somatório de modelos prisionais distintos em um só (Teixeira, 2009, p. 45). Segundo Aguirre (2009, p. 39), a primeira Penitenciária latino-americana teria sido construída no Rio de Janeiro em 1850 com a Casa de Correção do Império. Embora não haja motivo para discordar dessa afirmação, com a devida licença ao autor, procuramos utilizar o termo “Penitenciária” somente às instituições que emergiram no Brasil no século XX enquanto resultado da tentativa de reestruturação do cárcere ocorrida no período, a fim de atender as novas emergências provocadas pelas mecânicas implementadas nas legislações republicanas. O fazemos dessa forma, não somente com o objetivo de reproduzir expressamente as denominações das autoridades da época, mas também como mecanismo didático de compreensão das distintas instituições criadas em momentos dispersos da história nacional. Voltando ao raciocínio, o Código Penal Republicano, embora tenha abordado questões importantes sobre a execução penal brasileira e mantido muito mais disposições relacionadas ao classicismo, seguiu a lógica do Código Imperial no que se refere a descentralização dos regulamentos disciplinares das prisões e, com isso, facilitou a inclusão ainda maior dos conceitos positivistas predominantes entre os juristas da época (Alvarez, 2003, p. 73). O positivismo criminológico encontra ampla aceitação no momento republicano porque as elites | 143 | preocupavam-se em conter a massa de desvalidos recém libertos da escravização. O positivismo também contava com a simpatia da maior parte dos reformadores de prisões e autoridades do Estado e, de fato, foi usado como fonte doutrinária em regimes sociopolíticos muito diferentes, o que ressalta seu caráter ambíguo e adaptabilidade (Aguirre, 2009, p. 52). As instituições prisionais republicanas do século XX surgem exatamente dentro dessas acomodações de forças. O positivismo ofereceu o arcabouço científico necessário para que a prisão republicana fosse instrumentalizada como ferramenta de punição ao Outro, ao criminoso brasileiro, sob a justificativa de estar cumprindo com as mais avançadas teorias europeias (Alvarez, 2003). Assim, um projeto de “modernização” das instituições carcerárias foi iniciado em algumas regiões do país, já nas primeiras décadas do século XX, como discorrem Moreira e AlAlam (2009, p. 69). Salla (2015) ao descrever a criação da Penitenciária do Estado de São Paulo, por exemplo, demonstra as novas metas dessas instituições casadas com o classicismo e concubinadas com o positivismo. O primeiro momento a ser descrito e analisado compreende as duas primeiras décadas de funcionamento da Penitenciária do Estado de São Paulo. Essa prisão era apresentada pelas autoridades como modelar e, portanto, suas práticas de controle sobre o cotidiano se encaixavam na lógica de sua exibição como uma instituição disciplinar a ser imitada. As disposições legais para o controle do cotidiano prisional e as punições a serem aplicadas estavam colocadas na lei n. 1.406, de 1913, e no decreto n. 3.706, de 1924. (Salla, 2015). Melo (2020, p. 95) construindo a ideia da “burocracia penitenciarista” afirma que nesta passagem com a criação de novos estabelecimentos penais cunhados nas ideias republicanas, a Penitenciária do Estado de São Paulo e, | 144 | consequentemente, a gestão carcerária do respectivo estado, teria se colocado como modelo e referência do país, influenciando as demais penitenciárias criadas a partir dali. [...] A proposta de um novo sistema prisional se inseria num conjunto mais amplo de instituições de controle social e reabilitação dos criminosos, que incluía também o manicômio, o Asilo e reabilitação dos criminosos, que incluía também o manicômio, o Asilo de Meninos Desvalidos, o Instituto Disciplinar, a vigilância sobre egressos prisionais e, posteriormente, como principal referência, a Penitenciária do Estado de São Paulo que seria concebida como presídio modelo de uma nova perspectiva penal [...] (Melo, 2020, p. 87). Neste meandro, modelos como o de São Paulo se colocaram na condição de carros chefe da execução das penas republicanas, criando outras instituições carcerárias como as Colônias Agrícolas, organismos destinados a cumprir a perspectiva progressiva das penas fixada pelo Código Penal em vigor. A chegada àquele estabelecimento seria a “resultante de um conjunto de intervenções técnicas que supostamente teriam preparado o indivíduo para cumprir pena num regime de menor contenção” (Melo, 2020, p. 90). O modelo carcerário centrado na penitenciária de inspiração positivista também chega ao estado de Santa Catarina, mas em um momento mais tardio da República Velha. Quando Lemos Brito (1925, p. 285) visitou o estado para a elaboração de sua pesquisa, a construção de uma penitenciária estava em curso. Conhecendo uma unidade de padrões antecedentes à reforma ele descreveu que “[...] os presos vivem em promiscuidade lamentável, sem hygiene e sem trabalho organizado [...]” depois de sua descrição, o autor reservou um espaço no trabalho para transcrever uma mensagem do então governador de Santa Catarina que abordava justamente a construção de uma unidade suficiente a atender “[...] nossos sentimentos de humanidade [...]” (Lemos Brito, 1925, p. 325). | 145 | Pensada dentro dos meandros da modernidade penal da época (Lemos Brito, 1925, p. 325), a Penitenciária de Florianópolis foi inaugurada já no ano de 1930, na cidade de Florianópolis, como solução para a superlotação das instituições prisionais locais, recebendo os condenados para o cumprimento de suas penas (Miranda, 1998, p. 46). Tratava-se não só de ampliação do número de vagas em prisões, mas de uma transformação qualitativa no tratamento da criminalidade com a aplicação de uma técnica para atuar e modificar o caráter “delinqüente” dos indivíduos a ela submetidos. No entanto, segundo os novos diretores, houve um descompasso entre este discurso e sua prática efetiva, quando se tentou aplicar os conceitos referidos, no princípio do funcionamento da nova instituição (Miranda, 1998, p. 49). Miranda (1998, p. 52) discutiu em seu trabalho como se deu a implementação da Penitenciária de Florianópolis e as tratativas das autoridades para a instalação do sistema progressivo fixado no Código Penal Republicano. A esta passagem nos interessa compreender que a Penitenciária enquanto instituição de execução simbioticamente classicista e positivista se instalou no país (Melo, 2020, p. 95) e chegou a Santa Catarina através da unidade alocada em Florianópolis. Apesar das modificações ocorridas no contexto das reformas penais ocorridas em 1940, as instituições carcerárias brasileiras não sofreram modificações tão profundas porque o cerne disciplinar dessas reformas continuou abraçado ao trabalho, à obediência às normas internas criadas em cada estabelecimento e na retribuição ao criminoso pelo mal praticado. Em outras palavras, apesar de uma aproximação culturalista, a execução das penas no Brasil continuou calcada na atabalhoada simbiose classicista e positivista, mantendo de pé as instituições carcerárias criadas no início do século XX mantendo | 146 | os problemas carcerários nacionais ao longo dos séculos (Teixeira, 2009, p. 74). “SANTA AUGUSTA”: O BAIRRO OU A CADEIA? A comunidade de Criciúma/SC comemora a fundação do município no dia 06 de janeiro. Data oficial da celebração. Neste dia, no ano de 1880, motivados pela condição de enriquecerem na América, um grupo de imigrantes italianos fixou-se onde hoje é a cidade, fundando o núcleo São José de Criciúma (Volpato, 1982, p. 34). Os imigrantes instalados na cidade capitanearam a economia basicamente pela agricultura e o comércio dos produtos das plantações. Entre o período de instalação até a primeira década do Século XX a cidade foi construída a partir dessas atividades ligadas a agricultura que, de acordo com Teixeira (1996, p. 54), diante da desigual distribuição de terras promovidas pelo órgão central brasileiro, gestou-se a desigualdade social e a formação de uma pequena elite. [...] até 1925, Criciúma era apenas um dos distritos do município de Araranguá, controlado politicamente desde 1900 por um luso-brasileiro, o coronel João Fernandes de Souza. Isso significa que também a emancipação política de Criciúma foi marcada por interesses socioeconômicopolíticos e envolveu disputas políticas em âmbito local e regional. O desmembramento suscitou a perda do controle político de Criciúma pelo grupo liderado pelo coronel João Fernandes de Souza, que em âmbito estadual era próximo da oligarquia dos Ramos (Triches; Zanelatto, 2015, p. 37). A emancipação formal e a transformação da localidade em município ocorreram em 04 de novembro de 1925 com a sanção do projeto de lei nº 1516. Tratava-se de consequência natural da influência política, econômica e social que a região adquirira já nas primeiras décadas do século a partir da descoberta e exploração do carvão que paulatinamente ganhou espaço na | 147 | região e no país (Triches; Zanelatto, 2015, p. 37). Segundo Volpato (1982, p. 34) o carvão já havia sido descoberto antes mesmo da chegada dos imigrantes italianos no ano de 1880, porém, segundo a autora essas descobertas foram frutos de “expedições exploratórias” que somente “confirmaram a existência do mineral” sem que os exploradores “fixassem residência no local”. O mineral se torna uma prioridade com a emancipação e a ascensão quase seguida de Getúlio Vargas ao poder em 1930 a extração do carvão se hegemonizou no cenário econômico de toda a região graças aos constantes subsídios governamentais oferecidos pela ditadura varguista (Triches; Zanelatto, p. 51). Todo complexo energético-carbonifero montado na região sul de Santa Catarina (usinas termelétricas, sistema portuário e ferroviário, coqueiras industriais carboquímicas, mineradoras, etc) e que forma o mosaico urbanamente caótico que se chama Criciúma, todo este complexo que caracteriza e fundamenta a história e o desenvolvimento econômico da cidade, foi constituindo a partir de uma ligação político-estrutural entre a esfera pública e privada, mais exatamente, entre o patrimônio público e o patrimônio privado (Teixeira, 1996, p. 16). A exploração do carvão provocou uma segunda onda migratória de trabalhadores que aportaram na cidade oriundos de regiões do planalto serrano e do litoral em busca de emprego e renda. Outra consequência dessa massificação foi a mobilização dos mineiros em busca de melhores condições de trabalho e moradia. Ao mesmo tempo em que a elite da cidade se acomodou entre os proprietários das mineradoras e na exploração destes trabalhadores, os movimentos populares de mineiros iniciaram um processo de organização, imprescindível para inúmeras conquistas adquiridas naqueles tempos (Triches; Zanelatto, 2015, p. 51). A hegemonização do carvão na cidade seguiu das primeiras décadas do século XX, ultrapassou todo o período | 148 | varguista e começou a cambalear exatamente a partir da década de 60 e 70. A indústria dependia muito do auxílio governamental e a ajuda oscilou com o fim da Segunda Guerra Mundial, porque o acesso a outras fontes de energia mais baratas, até então dificultado pelo entrave do conflito, deixou de ser um problema (Triches; Zanelatto, 2015, p. 51). Diante das frequentes crises no setor, uma parcela do empresariado buscou outras fontes para a economia como nas atividades calçadista e azulejista que, paulatinamente, começaram a concorrer com a economia local e empurram o carvão do centro econômico da cidade (Volpato, 1982, p. 37). Com o estouro da crise do carvão, o desemprego, os baixos salários e as péssimas condições de trabalho as turbulências e a pobreza aumentaram na cidade. Neste mesmo período, o Brasil sofreu o golpe militar de 1964 que rapidamente foi apoiado pelas elites locais e contrariado pelos trabalhadores organizados da mineração. No cenário entre disputas políticas e a falta de condições dignas aos grupos subalternizados, iniciou-se um duro processo de repressão contra esses segmentos da população, transformando a sociedade criciumense profundamente (Triches; Zanelatto, 2015, p. 106). A iniciativa “documentos revelados” demonstra um pouco deste panorama de repressões. Na história do movimento sindical dos mineiros de Criciúma, o período entre dezembro de 1957 e 31 de março de 1964 marca uma fase de forte engajamento em prol dos trabalhadores, quando as terríveis condições de trabalho eram frequentemente denunciadas (Documentos Revelados, 2023, s/p). O sindicato era visto como um canal para essas denúncias e, junto com os trabalhadores, lutava por melhores condições nas minas. Essa luta incluía a busca por equipamentos de proteção e segurança para amenizar os sérios problemas de saúde | 149 | enfrentados pelos mineiros, como bronquites, reumatismos crônicos e a pneumoconiose, uma doença pulmonar causada pela inalação prolongada do pó de carvão. Além disso, havia o constante perigo de desmoronamentos nas minas, uma ameaça real na vida dos mineiros. Além das batalhas por melhores condições de trabalho, também havia a luta contra perdas salariais e pela organização do movimento sindical (Documentos Revelados, 2023, s/p). Na semana que antecedeu o golpe de 1° de abril de 1964, em Criciúma, ocorreram diversas reuniões. No entanto, com a notícia da deposição do presidente João Goulart pelos militares, os líderes sindicais anunciaram uma greve geral nas minas. A Rádio Difusora de Criciúma, ocupada por simpatizantes do presidente deposto, incentivava a paralisação do trabalho e conclamava o povo a repudiar e resistir ao golpe. A repressão e a violência eram iminentes, com tropas militares próximas à cidade (Documentos Revelados, 2023, s/p). A sede do Sindicato dos Mineiros foi invadida, seus membros perseguidos e muitos foram presos imediatamente após o golpe. Houve intervenção no sindicato, que durou dois anos e meio, tornando suas ações praticamente inexpressivas, concentradas principalmente em ações assistenciais (Documentos Revelados, 2023, s/p). Em um período de dura repressão, o cárcere começa a ser objeto de maior atenção pelas autoridades já que os aprisionados eram alocados de forma improvisada em lugares não criados para isso no centro da cidade (Triches; Zanelatto, 2015, p. 106). A primeira detenção dos presos políticos ocorreu no colégio estadual Professor Lapagesse, localizado no centro urbano da cidade de Criciúma. Lá, eles permaneceram incomunicáveis por 15 dias. Posteriormente, foram transferidos para o prédio do Plano de Carvão Nacional, uma repartição do governo | 150 | requisitada pelos militares e situada na rua Coronel Pedro Benedet, próxima ao Hospital São José. Após as prisões realizadas pelo Exército de Tubarão, o 23º Regimento de Infantaria de Blumenau foi estabelecido em Criciúma, encarregado de conduzir os inquéritos policiais militares, liderados pelo coronel Nilton Machado Vieira. Na prisão improvisada, as lideranças políticas e sindicais foram divididas em grupos, com os principais líderes colocados em celas isoladas numa média de 45-90 dias para evitar qualquer contato com seus seguidores (Triches; Zanelatto, 2015, p. 209). Fontes orais consultadas por Morgana Vieira Modolon (2013) em importante levantamento aponta que cerca de 45 pessoas foram presas na região. Entre os detidos, 13 pessoas ligadas ao movimento operário de Criciúma foram identificadas, incluindo nomes como Amadeu Hercílio da Luz, Jobe Silva da Nova, Jorge João Feliciano, Jorge Vieira, Lourival Espíndola, Luiz Jorge Leal, Paulo Antonio, Roberto Cologni, Roque Felipe, Sebastião Ernesto Goulart e Túlio Valmor Bresciani. Além desses, houve indivíduos como Ciro Pacheco e Walter Henrich Willy Horn (conhecido como Alemão), que foram presos devido à sua história de luta e resistência, parte dela desenvolvida na cidade de Criciúma (Modolon, 2013, p. 50)4. A partir de então, as discussões e os trabalhos em torno da construção de uma cadeia pública são iniciados, compreendendo-se que o ideal seria alocar este novo estabelecimento em um local distante do centro da cidade e sem improviso (Câmara Municipal de Criciúma, 2001). 4 Não por acaso, a exploração e repressão a classe trabalhadora, está na gênese da prisão moderna no mundo o que se confunde com o bairro prisão Santa Augusta. O indispensável cárcere e fábrica demonstra que o “problema” dos pobres passou a ser enfrentado com as chamadas casas de correção. Estas casas tratava-se de “oferecer” trabalho aos desempregados, e aos que não aceitavam as condições de trabalho era imposto o trabalho forçado. Aos jovens as casas de correções era uma forma de “educá-los” para a exploração do trabalho (Melossi; Pavarini, 2006, p. 37). | 151 | Diante dessas emergências a primeira cadeia pública da cidade é alocada no bairro Santa Augusta. O Presídio Regional de Criciúma foi inaugurado no ano de 19775 a aproximadamente 05 quilômetros do centro da cidade e inicialmente projetado para recolher 167 pessoas (Câmara Municipal de Criciúma, 2001). A unidade que funciona até hoje, portanto, se relaciona em sua essência pela própria necessidade que os aparatos de repressão da época encontraram para alocar o excessivo número de prisioneiros que a cada ano aumentavam na cidade desde os grandes movimentos do Golpe Militar de 1964. Apesar de ser denominado formalmente como Presídio Regional de Criciúma, o estabelecimento foi ao longo do tempo sendo chamado pela população local como “Presídio Santa Augusta”, nome do bairro em que está alocado. Com o passar do tempo, a cidade rapidamente cresceu e, do dia para a noite, o presídio se viu em meio urbano. O avanço do número de pessoas aprisionadas em detrimento do número de vagas rapidamente superlotou o Santa Augusta, criando uma série de problemas internos (motins, mortes, rebeliões, etc) e externos com a própria vizinhança que se via incomodada com a onipresença do cárcere. Dessa forma, os conflitos de superlotação que costumeiramente ocorriam com a vizinhança nas cadeias improvisadas na região central da cidade passaram a acontecer (Câmara Municipal De Criciúma, 2001). No ano de 2001 a Câmara Municipal de Criciúma instalou uma Comissão Especial para, conforme artigo 1º da Resolução n° 006/01, “tratar sobre o problema Presídio Santa Augusta” (Câmara Municipal De Criciúma, 2001). A Comissão permaneceu ativa até o ano de 2002 e tentou de todas as formas retirar a cadeia pública do local sugerindo que ela fosse instalada 5 Periodo que se confunde com que a professora Rosa Del Olmo vai compreender como a “internacionalização” do poder punitivo. | 152 | em um sítio distante do bairro, naquela oportunidade já urbanizado. As respostas formuladas pelos órgãos de segurança da época que constam no processo da Câmara Municipal foram no sentido da impossibilidade de outra remoção. O então Secretário de Segurança Pública propôs-se a tentar minorar o problema promovendo reformas internas no local já inadequado fisicamente (Câmara Municipal De Criciúma, 2001). Daqueles tempos até os atuais, a cadeia pública em questão sofreu diversas reformas, sendo a última concluída no ano de 20176. Conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (2021), no ano de 2020, o Presídio Regional de Criciúma possuía um quantitativo de 1018 pessoas, recolhidas nas 696 vagas. A unidade possui presos que aguardam o processo - portanto, provisórios - e condenados em regime fechado e semiaberto. Atende, além de Criciúma, outras 05 comarcas da região que não dispõem de cadeia pública própria. Como se pode observar, ainda no ano de 2020, apesar das inúmeras reformas prometidas desde 2001, o problema da superlotação do estabelecimento continua, assim como os protestos da vizinhança. Em socorro à superlotação da unidade da região central da cidade, foi inaugurada, em junho de 2008, a Penitenciária Sul de Criciúma. Localizada em um bairro de Criciúma afastado do centro da cidade e do próprio Presídio Regional de Criciúma, a penitenciária, de acordo com os dados extraídos do Departamento Penitenciário Nacional (2021), destina-se ao recolhimento de pessoas condenadas em regime fechado. 6 SANTA CATARINA. Secretaria de Estado da Administração Prisional e Socioeducativa. Florianópolis, 2017. Disponível em: https://www.sap.sc.gov.br/?option=com_content&view=article&id=1294:secretariada-justica-e-cidadania-entrega-reforma-e-ampliacao-do-presidio-regional-decriciuma&catid=19&Itemid=260. Acesso em 14, abr. 2022. | 153 | Em matéria veiculada no sítio da Câmara de Vereadores da cidade em fevereiro de 20057, é possível observar algumas nuances da unidade prisional então projetada. Naquela oportunidade, o Secretário de Segurança Pública, à época responsável pela administração dos presídios, compareceu ao parlamento municipal a fim de advogar pela implantação da instituição na cidade. Segundo a matéria veiculada A realidade do Presídio Santa Augusta e da sua população carcerária e a qualidade e segurança do projeto elaborado foram os principais argumentos utilizados pelo secretário de Estado para convencer os vereadores de Criciúma a construírem na cidade o futuro presídio do Sul catarinense. Conforme Benedet o “Santa Augusta”, construído na década de 70 foi projetado para abrigar 167 detentos e hoje conta com um total de 512 detentos. Dentre esses, 267 são condenados e os demais aguardam julgamento. Entre os presos que já cumprem penas são de Criciúma 173 homens e 39 mulheres e apenas sete são de outras cidades. Dos 245 detentos provisórios, que aguardam julgamento, são de Criciúma 146 homens e 21 mulheres e 12 são de outros municípios catarinenses. A nova penitenciária terá capacidade para atender cerca de 300 detentos, ou seja, todos os presos que cumprem penas no Presídio Santa Augusta, que continuará funcionando, apenas com detentos que ainda aguardam decisão da justiça (Câmara Municipal De Criciúma, 2005). Portanto, através dos argumentos da falta de vagas, “segurança” e necessidade de alocação de condenados em regime fechado em um local supostamente adequado, as autoridades articularam a criação da Penitenciária Sul. Ao contrário do disposto na matéria, o estabelecimento foi inaugurado com o quantitativo de 352 vagas. Entre reformas e ampliações, o local passou a dispor, já no ano de 2019, de 650 vagas, sendo alocados, na oportunidade 785 reclusos, número 7 VEREADORES CONHECEM PROJETO DA PENITENCIÁRIA SUL. Câmara de Vereadores de Criciúma, 2005. Disponível em https://www.camaracriciuma.sc.gov.br/noticia/vereadores-conhecem-projeto-dapenitenciaria-do-sul-85. Acesso em 28 mar. 2022. | 154 | este que passou para 893 em 2021 em consequência dessas ampliações (Brasil, 2021). Outra instituição criada para “amenizar” os problemas do Presídio Regional de Criciúma é a Penitenciária Feminina. Conforme dados do Departamento Penitenciário Nacional (2021) o estabelecimento foi inaugurado em 30/01/2018 criando de 286 vagas. Localizada ao lado da Penitenciária Sul, a unidade feminina recebeu logo no início todo o contingente de mulheres até então alocadas no Presídio Regional de Criciúma. Os números do ano de 2021 demonstram que a unidade abrigava 306 pessoas. Reunindo as histórias e o quantitativo disposto nos três estabelecimentos a cidade de Criciúma apresentava, no ano de 2021, 2200 pessoas recolhidas em unidades prisionais. Gestadas a partir das necessidades e emergências dos conflitos ocorridos no período de repressão e consolidadas por políticas penais de encarceramento em massa promovido especialmente a partir do fim do século XX (Batista, 2011, p. 100-101), as instituições penais de Criciúma abrigavam, no ano de 2020, 2200 pessoas (Brasil, 2021). CONCLUSÃO É importante compreender e discutir os processos de formação, consolidação e função do cárcere na sociedade moderna desde o seu surgimento. No Brasil, especificamente, pode-se perceber que essa instituição apresenta algumas particularidades que a diferenciam não somente em sua “configuração” com o resto do mundo, mas também pela singularidade de cada pequeno estabelecimento pelo país. Diante dessa discrepância, qualquer pesquisa que procure discutir determinadas dinâmicas em um estabelecimento penal brasileiro precisa levar em consideração essa singularidade. No | 155 | rápido levantamento realizado neste trabalho, foi possível observar que os a política central nacional, os eventos históricos e as particularidades da região da cidade de Criciúma foram fundamentais para criar as instituições penais da cidade com as suas particularidades que as transformam em “ilhas” dentro do arquipélago da configuração prisional brasileira. Em Criciúma, as emergências não apenas nacionais, mas também locais, provocadas por sucessivas crises econômicas e sociais durante o período da ditadura militar, consolidaram as instituições penais na região, singularizando-as da forma como são hoje. Os processos de repressão à classe trabalhadora local, assim como as políticas de militarização das cidades, foram fundamentais para a consolidação do cárcere em Criciúma. Essas especificidades regionais guardam profundas relações com o desenvolvimento do sistema carcerário a nível nacional e não fogem de sua gênese na modernidade. REFERÊNCIAS AGUIRRE, C. O. O cárcere na América Latina, 1800-1940. In: Maia, C. N. et. al.(orgs.) História das Prisões no Brasil. V. 1. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 253-281. ALVAREZ, Marcos César. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: IBCCrim, 2003. ARAÚJO, Carlos Eduardo M. de. Entre dois cativeiros: escravidão urbana e sistema prisional no Rio de Janeiro 1790-1821. História das prisões no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 217-248. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2011. BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm. Acesso em: 28 jun. 2021. BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. 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Essa é uma perspectiva que dialoga com a própria natureza do direito, pois, sendo ele uma prática social, uma vez que se trata de uma ciência social, é notória que sua preocupação também desemboca no comportamento humano, especialmente naquele capaz de provocar um efeito e/ou consequência no mundo jurídico (Nader, 2020; Reale, 2005). Desse modo, compreendendo o direito como prática social e que, portanto, sem sociedade não haveria direito e muito menos a necessidade de havê-lo, somos levados ao entendimento de que as leis, muito mais do que normas abstratas, representam o espelho que reflete os costumes, valores e comportamento social de uma sociedade situada no tempo/espaço. Nesse sentido, ao discutir a violência contra a mulher no Brasil, por meio da análise das Ordenações Filipinas, do Código Criminal de 1830 e da Lei Maria da Penha (11.340/2006), tem-se a possibilidade de visualizar nessas normas diferentes comportamentos sociais representativos de épocas e sociedades igualmente distintas. A investigação desses documentos permite compreender que a legislação vigente em cada período histórico do Brasil representa não apenas um fragmento daquele ordenamento jurídico, mas um reflexo dos comportamentos, valores e cultura daquele passado histórico. Portanto, o exame dessas normas em conjunto com o exame do tempo ao qual elas se vinculam permite entender o modo como a prática da violência contra a mulher foi sendo construída de forma naturalizada ao longo da história brasileira, sobretudo, no contexto colonial. Em razão disso, o objetivo proposto neste capítulo é discutir o passado jurídico1 que antecede a publicação da Lei nº 11.340/2006, através da análise das Ordenações Filipinas e do Código Criminal de 1830, a fim de compreender tanto o trajeto de evolução dos instrumentos normativos voltados para o combate à violência contra a mulher no Brasil, quanto se essa evolução normativa implica numa mudança da mentalidade e comportamento do corpo social. Além disso, entender como o direito pode ser usado como ferramenta por meio da qual a violência é exercida, reproduzida e ampliada sobre determinados corpos. A hipótese, portanto, da qual parto é a seguinte: do século XVI ao XX, especialmente até a publicação da Constituição de 1988 e da Lei Maria da Penha, a legislação em vigor no Brasil mostrou-se conivente com as práticas de violência contra a mulher. Não somente legitimando-as, mas reforçando alguns dos preconceitos e estereótipos que revelam as bases de uma cultura machista e patriarcal sobre a qual se constrói o Brasil. Com isso, ao direcionar o olhar para a representação construída da mulher tanto nas Ordenações Filipinas quanto no Código Criminal de 1830, é possível que se perceba uma série de estereótipos e preconceitos lançados sobre ela. Isso revela o comportamento social e o modo como a própria sociedade da época compreendia a mulher e seu espaço. Tanto é que nas Ordenações Filipinas, por exemplo, era dado ao homem, seja pai 1 Objeto de investigação da História do Direito. Ver: Eyzaguirre (2000). | 161 | ou marido, o total controle sobre o corpo da mulher, podendo até mesmo castigá-la fisicamente sem, contudo, preocupar-se com alguma sanção que pudesse vir a ser aplicada como consequência desse ato. Ademais, no Código Criminal de 1830, especialmente no artigo 250 desse diploma, é possível que se note a visão estereotipada que paira sobre a mulher, uma vez que o enunciado do referido artigo, além de tipificar o adultério como crime cometido por mulheres, demonstra a forma nada isonômica como mulheres e homens eram tratados. Na contramão dessas normas, com o advento da Lei nº 11.340/2006, é que então se torna possível visualizar um avanço robusto – embora ainda incipiente – no combate à violência contra a mulher, cuja prática passa a ser considerada problema social que precisa ser combatido. A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL: DAS ORDENAÇÕES FILIPINAS À LEI MARIA DA PENHA Historicamente nem sempre a violência contra a mulher foi encarada como um problema social. Muito pelo contrário, pois as práticas de violência eram não somente naturalizadas, mas intensificadas por meio de legislações que coadunavam com elas. Desse modo, investigando nosso passado jurídico, é possível que se encontre um conjunto de representações sobre o sujeito feminino, fundadas num olhar que discrimina e ao mesmo tempo diminui a mulher retirando dela, inclusive, a autoridade frente ao próprio corpo. Durante o período colonial, a legislação trazida de Portugal ao território que se tornaria séculos mais tarde o Brasil era constituída por um conjunto de documentos chamados Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas. Para a discussão aqui proposta, pauto-me no exame de alguns enunciados | 162 | disponíveis nas Ordenações Filipinas. Esse documento consiste numa compilação de leis em livros (4 livros e/ou capítulos), constituídos sob as ordens de D. Felipe I, e permaneceu regendo nosso território até a publicação do Código Civil em 1916. No que se refere à representação da mulher nas Ordenações, nota-se que pouco direito havia para ela, uma vez que as mulheres, conforme concebe a norma, deveriam ser tuteladas em todos os atos da vida civil pelo pai ou, se casada, pelo marido. O livro V, título 36, das Ordenações, é categórico ao destacar que as mulheres se encontravam sujeitas ao poder disciplinar do pai ou marido, não podendo se opor a ele. Portanto, em virtude desse poder, criminalmente estavam isentos de pena os homens que ferissem uma mulher ou os maridos que castigassem suas esposas. Isso ocorre, pois a mulher encontrava-se sob a tutela do homem. Além disso, segundo Rodrigues (2003), no que tange ao adultério, por exemplo, a mulher que cometesse tal ato poderia ser morta pelo marido, sem a necessidade de prova, bastando que houvesse tão somente rumores públicos. Com isso, é perceptível que a violência contra a mulher não se trata de uma prática do agora, mas que encontra raízes nas bases da formação histórica do Brasil, legitimando-se não somente por meio dos preconceitos e estereótipos que pairavam sobre a mulher, mas no próprio ordenamento jurídico do passado. Essa percepção reforça o entendimento defendido de que o direito não se encontra apático aos acontecimentos sociais, ao contrário, o direito, assim como a literatura (Barthes, 2007), é capaz de representar os valores, preconceitos e estereótipos que se encontram na estrutura do comportamento de uma sociedade. Portanto, são justamente esses valores, preconceitos e estereótipos que se encontram registrados nas Ordenações | 163 | Filipinas quando esse documento se refere à mulher. – Preconceitos que ainda hoje encontram eco em nossa sociedade. Embora as Ordenações Filipinas permaneçam em vigor até a publicação do Código Civil de 1916, percorrendo, portanto, um trajeto histórico que parte do período colonial ao nacional, faço referência a ela somente no que compreende ao período que entendo como colonial, que vai do século XVI ao XIX (1822). Assim, reportando-me agora ao século XIX (1822), momento a partir do qual o Estado brasileiro já existe, pelo menos não mais como colônia de Portugal, temos o então Código Criminal de 1830. Em relação à atenção dada à mulher, o Código representa um avanço quando comparado às Ordenações, uma vez que sob o seu regimento já não era permitido que o marido retirasse a vida da esposa caso essa tivesse cometido adultério. Apesar disso, embora a vida e o corpo da mulher já não se encontrem sob a total tutela do homem, podendo ele agredi-la se assim quiser, é possível notar que o preconceito e a violência de gênero, naturalizados e reforçados pelas Ordenações Filipinas, se mantiveram presentes na sociedade brasileira do século XIX. O Código Criminal de 1830, por exemplo, aponta no capítulo III, seção III e art. 250, que trata especialmente do crime de adultério, que “A mulher casada, que commetter adulterio, será punida com a pena de prisão com trabalho por um a tres annos” (Brasil, [1830] 2022, grifo nosso). É interessante observar que o art. 250 é o responsável por abrir a seção que trata do crime de adultério, como se por meio dele o legislador definisse o que se concebe como tal. Partindo disso, o ponto que chama a atenção no art. 250 diz respeito ao modo como a mulher é representada, pois, através da análise do código, percebe-se que o adultério, pelo menos da forma como consta no artigo, é tipificado como delito cometido por mulheres. | 164 | Além disso, é importante ressaltar a forma nada isonômica como homens e mulheres são tratados na legislação criminal do séc. XIX, haja vista que, comparando os arts. 250 e 251 do Código Criminal, para que o homem possa ser penalizado na mesma medida que a mulher não basta que o adultério tenha sido cometido. Antes, é preciso que se demonstre que o homem tinha com a “amante” uma relação que se prolonga no tempo, sendo ele o responsável pelo sustento dela: “Art. 251. O homem casado, que tiver concubina, teúda, e manteúda, será punido com as penas do artigo antecedente” (Brasil, [1830] 2022, grifo nosso). Portanto, a despeito da prática de igual conduta delitiva, homens e mulheres recebiam do legislador diferente tratamento, o qual conferia às mulheres maior reprovabilidade. Essa postura nada inocente sugere que o adultério era uma prática cuja reprovação era muito mais acentuada quando cometida, sobretudo, por mulheres. Essa é uma posição que encontra eco, inclusive, na própria literatura realista do século XIX (Cademartori, 1986). Se pegarmos como exemplo a obra Dom Casmurro, de autoria do escritor brasileiro Machado de Assis, perceberemos nela a mesma postura assumida frente à mulher, uma vez que a Capitu (personagem da obra) é retratada no enredo como uma pessoa dissimulada, cujos olhos são de uma cigana oblíqua capaz de transformar um menino doce (Bentinho) num homem turrento (Casmurro). Além do que, na mesma linha do artigo 250, ao longo de toda a narrativa é sugestiva a traição e adultério cometido por Capitu, pela mulher, e não pelo homem. Este tratamento desigual entre homens e mulheres, no que diz respeito ao crime de adultério, se manteve até o século XX, quando o Código Penal de 1940 adota outra postura frente ao delito: “Art. 240 - Cometer adultério: Pena - detenção, de quinze dias a seis meses” (Brasil [1940] 2022, grifo nosso). O art. 240 demonstra a preocupação do legislador em conferir um | 165 | tratamento isonômico para ambos os sexos, não importando se o delito é cometido por homem ou mulher, pois a reprovabilidade está na conduta e não no sujeito. Somente no ano de 2005 é que então o adultério deixa de ser tipificado como crime no Brasil. Quanto a isso, um dos pontos possíveis de elencar que justificam o abolitio criminis ou descriminalização do adultério compreende o modo nada isonômico como a pena para tal conduta era aplicada quando praticada por mulheres e quando por homens. Esse tratamento desigual não encontra anos mais tarde recepção em nossa Constituição (Brasil, [1988] 2022), uma vez que nela, em alusão ao princípio da igualdade, “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Com isso, a manutenção de um dispositivo que estimule o tratamento não isonômico entre homens e mulheres representa uma clara violação ao princípio da igualdade, sendo, portanto, essa norma não recepcionada pela Constituição de 1988 (Fernandes, 2022). É neste contexto, cujas normas infraconstitucionais são irradiadas pela Constituição, que se encontra o instrumento normativo mais robusto voltado ao combate à violência contra a mulher: trata-se da Lei nº 11.340/2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha. Se no passado a violência contra a mulher não foi encarada como problema social, com o advento da Lei Maria da Penha o Brasil passa a reconhecê-la como problema social grave que precisa ser combatido. Essa é uma percepção que embora evidente na atualidade não o era séculos atrás, quando a violência contra a mulher, além de legitimada pelas Leis, sequer era pensada como problema social. A Lei nº 11.340/2006 representa, portanto, um importante avanço normativo no combate à violência contra a mulher, pois traz uma série de | 166 | medidas voltadas para a proteção da integridade física, emocional e material dela. Além disso, em consonância com as mudanças e necessidades sociais do presente, o próprio conceito de mulher se amplia no escopo da Lei Maria da Penha, uma vez que se tem estendido a proteção assegurada por lei também às mulheres trans. Haja vista que, conforme o art. 5º da Lei n° 11.340/2006, a violência contra a mulher se baseia não no sexo biológico, masculino/feminino, mas no gênero feminino, enquanto construção social (Butlher, 2017). Assim, muito embora encontremos na Lei Maria da Penha um importante avanço na legislação que visa combater a violência contra a mulher, essa mudança não tem sido acompanhada por uma evolução e/ou transformação da mentalidade social acerca da mulher e de seu papel em nossa sociedade. E como consequência dessa discrepância entre o avanço da norma e o atraso da mentalidade social, que parece ainda condicionada ao regime jurídico das Ordenações Filipinas e do Código Criminal de 1830, é que então se constata que os preconceitos e violência de outrora ainda hoje, apesar do avanço possibilitado pela Lei nº 11.340/2006, encontram eco e se proliferam como joio em nossa sociedade. Isso ocorre, pois apesar da Lei Maria da Penha representar um divisor de águas no combate à violência contra a mulher, encarando essa problemática como problema social grave que precisa ser combatido, essa prática se caracteriza como um problema social de natureza estrutural, sedimentado nas raízes sobre as quais se constrói o nosso território. Portanto, estamos diante de uma Lei que, embora relevante, completasse no ano de 2023 apenas 17 anos de vigência contra toda uma tradição de violência e opressão contra a mulher que parte do século XVI e se estende ao século XXI, somando 500 anos de história. | 167 | CONCLUSÃO Através desta discussão foi possível verificar que no Brasil nem sempre a violência contra a mulher foi encarada como problema social. Muito pelo contrário, através do exame das Ordenações Filipinas e do Código Criminal de 1830, é possível que se constate que até a publicação da Lei Maria da Penha a violência contra a mulher não era reconhecida como problema social grave que precisa ser combatido, antes era reproduzida e ampliada por meio da legislação em vigor. Isso revela que o Direito foi usado como ferramenta de violência (Foucault, 1977) e que a legislação de outrora foi, portanto, barbaramente conivente com a prática de violência contra a mulher, uma vez que muitos dos preconceitos e estereótipos socialmente construídos sobre ela se encontram legitimados e reforçados por meio de normas como as Ordenações Filipinas e o Código Criminal de 1830, que, embora não mais em vigor, ainda se irradiam por nossa sociedade. Ademais, muito embora a Lei Maria da Penha represente um avanço positivo no combate à violência contra a mulher, esse avanço promovido pela norma não tem sido acompanhado, pelo menos não de forma satisfativa, de uma mudança no comportamento e mentalidade do corpo social no que diz respeito à mulher e seu espaço na sociedade brasileira. Com isso, muitos dos preconceitos, estereótipos e violência de outrora, a exemplo de quando ao homem era garantida a tutela e total controle sobre o corpo e até mesmo a vida da mulher, ainda se mantêm vivos no presente. Portanto, encerro este capítulo defendendo que embora seja importante que o direito acompanhe as mudanças sociais, pois ele próprio é uma ciência social, é crucial que a sociedade saiba e possa acompanhar as mudanças que a legislação promove, especialmente quando essa representa um avanço diante de | 168 | problemas sociais que merecem nossa atenção e que precisam ser efetivamente combatidos. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado. Dom Casmurro. 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Palhoça: UnisulVirtual, 2013. | 170 | CAPÍTULO 8 RESISTENCIA NEGRA E PODER POLÍTICO DAS IRMANDADES RELIGIOSAS NO CARIRI CEARENSE Miguel Melo Ifadireó Henrique Cunha Júnior INTRODUÇÃO O presente artigo é fruto dos trabalhos de mapeamento de leitura, discussões e ações de ensino, pesquisa e extensão universitária que se enraizaram nos três últimos anos nas reuniões do grupo de trabalho Nbuntu - Decolonialidade, Pensamento Afrodiaspórico e Religiosidades Não-hegemônicas do Grupo de Pesquisa sobre Contemporaneidade, Subjetividades e novas Epistemologias (G- PENSE!) da Universidade do Estado de Pernambuco. Neste contexto, é importante salientar as distintas atividades investigativas que estão sendo realizadas em conjunto com o Estágio Pós-doutoral junto ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará (PPGE-UFC) a partir do desenvolvimento do Projeto Guarda-Chuva intitulado “Filosofia Afrodescendente, População Negra, Religiões de Matriz Africana no Ensino do Direito no Brasil”, o qual se desdobrando em projetos subsidiários1 sob supervisão do professor pesquisador Henrique Cunha Júnior. Os objetivos da investigação em tela são por deveras modestos, uma vez que nos propomos a levantar algumas considerações que, a nosso ver, foram de certo modo, silenciados pelas ciências sociais aplicadas, humanas e da saúde e, quando não, foram tratados apenas de forma periférica ou superficial, os quais somente conseguiram alcançar maior visibilidade a partir da segunda metade do século XX, com a implementação e proliferação de cursos de pós-graduação (específicos) strictu senso em nosso país. Todavia, não buscamos tratar o tema com exaustão, uma vez que este ensejaria em um estudo mais aprofundado sobre o assunto. Sendo assim, nos propomos a compreender o processo que permitiu a construção de laços sociais, estabelecidos pelas redes sociais de irmandades negras no Brasil, que ancoraram, por um lado, na edificação de poder político de resistência ao regime escravista da produção capitalista e, por outro lado, contribuíram com a concretização da cosmovisão ancestral africana da religiosidade do candomblé no Ceará, mais especificamente, no Cariri cearense. Para responder as inquietações desta investigação recorremos a duas considerações sobre o tratamento dos negros escravizados e, respectivamente, de seus afrodescendentes pelos meios de comunicação durante e após o período escravagista. 1 Neste sentido, avultam-se: a) Projetos de Ensino: “I. Conversa Preta Com(sciência) Desafios contemporâneos para uma educação antirracista” (UPE 2023.1); e “II. Conversa Preta Com(sciência) - Diálogos Empretecidos sobre a Violência e suas interfaces raciais com o Direito, a Saúde, a Educação, a Política e a Segurança Pública” (UPE 2023.2 e 2024.1); b) Projetos de Iniciação Cientifica: “Estudos sobre os crimes de ódio, violência racial e saúde integral da população negra sob o foco da criminologia preta” (MePESa/ UNILEÃO 2023.2 e 2024.1); “Currículo oculto e o silenciamento de paradigmas não ocidentais no ensino superior jurídico. Um estudo de caso a partir da revolução haitiana” (MePESa/ UNILEÃO 2023.2 e 2024.1); “Educação antirracista e silenciamento epistêmico no ensino jurídico: um estudo de caso a partir da Revolução Haitiana” (FACEPE/ UPE 2023.2 e 2024.1); c) Projeto de Extensão: “Elaboração de manuais de consciência multimídia para uma educação antirracista no ensino superior das ciências sociais aplicadas, humanas e da saúde: perspectivas metodológicas e curriculares afrorreferenciadas” (UPE 2023.2 e 2024.1). | 172 | Caio Prado ao destacar o desenvolvimento da história econômica do Brasil, entende que “a população africana e afrodescendente não tinha importância na história brasileira, a não ser braçal” (Prado, 2012, p. 160), onde qualquer possibilidade de se reconhecer as qualidades do negro e de suas contribuições no processo produtivo era marginalizada pelos teóricos escravocratas que difundiam concepções afirmativas da inferioridade racial advindas de suas peculiaridades históricas (Conrad, 1975). Por sua vez, Cunha Júnior (2005) ao tecer considerações sobre a contribuição dos povos africanos e afrodescendentes no Brasil, destaca a ausência de tratamento valorativo das análises de conjuntura embranquecida pelas ciências sociais brasileiras, uma vez que não era dada uma “satisfatória notoriedade à especificidade dos africanos e dos afrodescendentes” (Cunha Jr., 2005, p. 249) da força política e econômica das irmandades negras na produção e desenvolvimento da historiografia colonial e imperial brasileira, visto que não era dado ênfase ao “[...] eixo das lutas de classe uma formulação que explicasse a particularidade da história e da cultura desenvolvidas pelos povos africanos e por seus descendestes” (Cunha Jr., 2005, p. 250). Outro fator igualmente importante, que a nosso ver, permaneceu de certa forma negligenciada pelas abordagens sociais acadêmicas, surgidas a partir da segunda metade do século XX, foi a não atenção dada a consistente capacidade de organização e conexão que as redes sociais “periféricas” de irmandades religiosas de negros tiveram, e como elas se mantiveram - diante das estruturas de preconceito, hostilidades e segregação racial que se perpetuaram durante todo o regime escravista – fieis aos valores e objetivos culturais comuns, mesmo diante de práticas como, por exemplo, sincretismo religioso. | 173 | Assim, destaca-se a relevância deste ensaio, quando buscará analisar a importância da resistência negra e o poder político das irmandades religiosas de pretos no Brasil e, especificamente, no Cariri cearense, objetivando assim, ressignificar, por um lado, os limites, que ora separavam e ora uniam os relacionamentos entre as diferentes nações-étnicas, contribuíram para a preservação de um mínimo de africanidade e afrodescendência (Cunha Jr., 2021) e, respectivamente, de identidade religiosa afrodiaspórica (Ifadireó, 2021) como hoje é vivenciada por negros2 e não negros nas diferentes religiões de matriz africana e afro-indígena e indígena no Brasil. A metodologia utilizada neste ensaio é, predominantemente, construída em cima de uma revisão bibliográfica afrorreferenciada com foco em uma reconstrução histórica crítica, a partir do procedimento de análise documental. Fato que leva a mesma a ser uma pesquisa qualitativa, descritiva exploratória e dedutiva que objetiva, a partir da adesão a este procedimento metodológico, preencher as lacunas de fontes existentes sociais e jurídicas que dificultam o entendimento e a reconstrução dos fenômenos sociais que ensejariam em uma mudança de paradigmas nos movimentos políticos organizados por negros africanos e afrodescendentes no Brasil do século XVIII e XIX. Na visão de Scott (2002) é importante destacar que grande parte da produção (registros históricos, arquivos 2 Neste sentido destacamos que ao longo de todo este ensaio faremos uso do termo “negros/as” para nos referirmos aos “pretos/as e pardos/as”. Adotando assim, a contemporânea postura político-cultural do ativismo negro, seja por parte do Movimento Negro Brasileiro (MNB) e/ou do Movimento Feminista Negro (MFB), seja por parte do ativismo científico da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN) e/ou do Consórcio Nacional de Núcleos de Estudos AfroBrasileiros em relação às questões étnico-raciais no Brasil, uma vez que os antigos termos “pretos, pardos, morenos, mulatos entre outros” são terminologias que além de não representarem os conceitos de Africanidade e de Afrodescendência, de suma importância para todo este ensaio, são advindos de um período em que predominava nas ciências uma postura científica racista e eurocentradas, predominante, na intelligentsia brasileira. De fato, eram termos que mais separavam do que agregam ou se aproximam de uma mudança de paradigmas na elaboração de uma nova literatura antirracista no Ensino Superior Jurídico brasileiro. | 174 | materiais e processuais) que envolvem “outros grupos” subjugados e dominados ao longo da história e pela história, somente obtêm visibilidade política nos momentos que estes representavam e/ou ameaçam não apenas o poder político local, mas também a ordem social que é imposta pelas classes dominantes e legitimada pelas diferentes e distintas ciências do conhecimento. Por fim, autora complementa que não é “ocasionalmente” que os fenômenos e/ou ações revolucionárias advindas de atores sociais e/ou cenários político insurgentes ganhavam destaque, pois, quando muito apareciam nos registros oficiais apenas como “meros atores coadjuvantes” no processo histórico. A CRUEL TRANSIÇÃO DA MÃO-DE-OBRA ESCRAVA NO CARIRI CEARENSE O Brasil, último país da América a abolir a escravidão, manteve um sistema escravocrata enraizado em uma relação violenta e cruel com a mão-de-obra escrava em todas as regiões, persistindo mesmo durante a instauração da república. Assim, desse confronto forçado entre o dominador e o dominado se construiu a história da escravidão, sendo perpetuada como história oficial a versão do explorador e através de estratégias de silenciamento a história oficial que representava o interesse das elites dominantes, tentou calar a voz do dominado, porém a história não é só construída pela cosmogonia discursiva e científica das elites dominantes, mas também, pela cosmovisão dos descendentes insubmissos de um povo criminosamente escravizado. Dentro desta linha constatamos que a estrutura de superioridade racial, deve ser entendida como resultado de práticas anteriormente estruturadas, as quais fizeram à história, com base em condições produzidas – em tendências, linhas de | 175 | força, constrangimentos, preconceitos, violações de direitos – pelas elites urbana e rural durante os séculos de escravidão, onde práticas de hostilidades e discriminação fundamentavam as ideologias e os discursos de poder existentes. Em função disso, este novo discurso, entende que o projeto colonizador do “discurso dominante” objetivava reproduzir nas colônias o discurso legitimador produzido na metrópole, daí, percebia-se a necessidade de se construir toda uma estrutura - principalmente devido à diversidade cultural local – de poder e de controle social, para assim, assegurar as coroas europeias a exploração e a conservação do domínio colonial. Sem fugirmos a essa perspectiva, se percebe que o discurso de negação, de discriminação étnico-racial e de dominação, também foi produzido pelas elites dominantes do Ceará, e no Cariri cearense, construindo entre outros, o mito da inexistência de Negros, e consequentemente, da ausência de uma influência cultural e religiosa africana, na cultura religiosa da Província3. Como caracteriza Nunes (2011) ao avultar que: O Estado do Ceará carrega uma história de invisibilização da sua população negra. O discurso corrente é de que não tivemos uma população significativa de escravizados e, portanto ‘o Ceará não tem Negros’. Além disso, os processos políticos e a produção dos intelectuais cearenses a partir da segunda metade do século XIX, especialmente os pertencentes ao Instituto do Ceará, influenciados pelas ideias determinais e evolucionistas, negando a presença negra no nosso Estado e omitindo as condições de vida e formas de organização desta população. São argumentos que revelam um desconhecimento da nossa história e da escravidão que aqui se processou (Nunes, 2011b, p. 2). 3 Para assegurar essa “estrutura de dominância” social e política, era necessária, a colaboração de mais um discurso, no caso, o religioso. Esse veio a legitimar a expansão cultural étnico-religiosa do velho mundo sobre o novo mundo, estreitando assim, as relações entre o Estado e a Igreja, com intuito de apresentarem os povos pagãos à “verdadeira fé”. Finalizamos assim, aceitando a tese do “discurso dominado”, de que esse postulado de “religião do bem”, “religião moral”, “religião de Deus” e de “verdadeira fé” se justificou não apenas no Brasil, com em toda a América Latina. | 176 | Através das leituras bibliográficas e exploração de trabalhos realizados em campo, nos deparamos com teses, dissertações e artigos, que nos remetem a outros horizontes, demonstrando sim, a participação ativa de africanos, afrodescendentes, negros e caboclos nas atividades laborais escravas na Província do Ceará e na Região do Cariri cearense, tais como: agricultura de subsistência, pecuária, casas de engenho e plantações de cana-de-açúcar (Abreu, 1975; Figueiredo Filho, 1958), exploração de minas auríferas que não se consolidaram na região, atividades de caráter doméstico (Pinheiro, 1950) e em ofícios de artesanato e construção civil (Oliveira, 2008; Macedo, 1990). Neste sentido, através da revisão bibliográfica sobre o negro na historiografia caririense, é obrigatório ressaltar os estudos desenvolvidos pelo Instituto Cultural do Cariri (ICC), o qual teve fundamental importância na preservação do patrimônio imaterial e material, principalmente no que se refere à transmissão da memória, história, política, artes e literatura da região (Silva; Conceição, 2011). Conforme apontam Semeão e Gonçalves (2010) ao ressaltarem que o ICC tinha por finalidade “o estudo das ciências, letras e artes em geral, e especialmente da História e da Geografia Política do Cariri” (Semeão; Gonçalves, 2010, p. 1)4. Soma-se a isto, o fato de que foi a partir dos trabalhos desenvolvidos pelo ICC em meados do século XX, que pesquisadores contemporâneos vêm realizando pesquisas sociais transdisciplinares que vêm contribuindo para responder a muitos questionamentos e provocando diferentes abordagens teóricas. Retomando a temática sobre as relações escravagistas estabelecidas na Província do Ceará, mais especificamente, na região do Cariri cearense, percebemos que estas salvo algumas 4 Nesse sentido ver a Ata da Sessão de Fundação e Instalação do Instituto Cultural do Cariri (ICC) e de eleição de sua Primeira Diretoria. In: Revista Itaytera, nº. 1, 1955, p. 179. | 177 | exceções (a saber: o movimento de industrialização, chegada de imigrantes europeus, urbanização das cidades e aparecimento de uma burguesia urbana em detrimento da rural) em nada se diferenciavam das que ocorriam no país, principalmente, de finais do século XVIII a segunda metade do século XIX, onde a mão-de-obra negra escrava era utilizada na cultura agrícola, pecuária, casas de engenho, plantações de cana-de-açúcar e minas auríferas. Como caracteriza Brígido (2001): Por volta de 1756 o cultivo de cana-de-açúcar estava muito adiantado no Cariri e contaram-se 952 fazendas de criar. Ou seja, a partir deste século, já são delineadas as duas principais atividades econômicas do sul cearense. (...) no século XIX ainda se percebe tal conjuntura, já havendo uma preponderância no número de engenhos de rapadura em relação às fazendas de criar. (...) Não obstante, a outra atividade, a pecuária, e outras lavouras de subsistência, como a farinha de mandioca, também se utilizava da mão de obra cativa. (..). O delineamento do Cariri estava voltado para a produção de derivados de cana – especialmente a rapadura – atividade praticada nesse espaço entre os séculos XVIII e XIX. E, também, como o comércio de escravos que influenciou na constituição econômica da região (Cortez; Cortez; Irffi, 2012, p. 2s.). Além disso, quando analisamos o crescimento das cidades da região do Cariri – Crato, Jardim, Barbalha e Missão Velha -, verificamos que o século XIX caracterizou por um lado, o aumento da introdução de escravos (africanos de angola, benguelas e congos) com o fim de exploração, conforme expõem Cortez, Cortez e Irffi (2012) a ideia que se tinha sobre a existência de minas auríferas na região do Cariri, a saber: Como a Mina de São José dos Cariris não se transformou em realidade, os escravos trazidos foram paulatinamente sendo alocados em outras atividades econômicas desenvolvidas no território caririrense. De forma que o trabalho cativo passou a ser um investimento rentável para os donos das novas terras. Tanto no meio urbano quanto no rural era aplicada a força de trabalho cativa. A escravaria pertencente a senhores do Cariri se espalhou por todo o território da região, contudo | 178 | a zona rural detinha a maior parte desta mão de obra (Cortez; Cortez; Irffi, 2012, p. 10). Por outro lado, o crescimento e desenvolvimento da freguesia do Crato e Jardim estavam atrelados a conquista de novos espaços comerciais dentro da própria província, e consequentemente, com freguesias das províncias vizinhas que passaram a comprar as mercadorias e os bens de produção oriundos das casas de engenho da região, o que elevou as relações de poder e a influência das duas Aristocracias Rurais canavieiras do Cariri. Nesse sentido, constata Cortez e Irffi (2011) ao apresentar um Ensaio Estatístico da Província do Ceará, visto que: No Cariri (Crato e Jardim) onde existem trezentos engenhos de madeira e ferro quase toda a cultura de canna reduz-se ao fabrico de rapadura, melaço e aguardente, sendo que de 1857 para cá é que se começou a fazer assucar e já em 1858 exportaram-se 10.000 arrobas. O Cariri e Serra-Grande exportam imensas quantidades de rapadura, melaço e aguardente para as províncias visinhas do Piauhy, Pernambuco, Parayba e Bahia (Cortez, Irffi, 2011, p. 5). Oliveira (2008) acrescenta que somente a partir da segunda metade do século XIX foi que se iniciou uma transformação nas estruturas urbanas e na democracia das cidades do Cariri, principalmente na freguesia do Crato, que se deu o aumento das moradias, principalmente com a migração de ricas famílias burguesas de comerciantes, que devido à prosperidade na freguesia, saíram de suas freguesias para ali se instalarem, aumentando o esplendor e provocando mudanças nos costumes das famílias da aristocracia local, acelerando assim, o processo de urbanização e modernização do espaço urbano das cidades, em detrimento do espaço rural. Conforme aponta Pinheiro (1950): Muito ocorreu para o progresso de Crato (...) na época de 50, fizeram-se (...) prédios melhores que os primitivos, os quais eram geralmente de taipa. Em 1857, levantou o Coronel | 179 | Antônio Luís Alves Pequeno, à rua grande; esquina da travessa da Califórnia, para sua residência um sobrado sob molde dos da capital pernambucana. (...) A par do aperfeiçoamento das construções urbanas, a partir de 1850, refinam-se os costumes do Crato (Oliveira, 2008, p. 46). Jardim, assim como o Crato, era em finais do século XVIII e inícios do século XIX, era uma freguesia representada pelo poder local de uma aristocracia rural, detentora de engenhos e de casas comerciais, que se representava por coronéis, detentores da estrutura agrária baseada no latifúndio e na exploração escravista de escravos comprados nas cidades de Floresta e Belo Jardim da Província de Pernambuco (Pereira, 1987). Já na segunda metade do século XIX a freguesia de Jardim dividia sua influência comercial com a freguesia de Barbalha, ultrapassando outros limites territoriais, tais como: Porteiras, Abaiara, Penaforte e Jati na Província do Ceará; Cedro e Salgueiro na Província de Pernambuco, além de abastecer, os sertões do Piauhy e Rio Grande do Norte (Leite; Santos, 2010). Diante do contexto aqui exposto é válido ressaltar que a cidade de Juazeiro do Norte, Joazeiro do Cariry, surge como um povoado - que chamava atenção por ser um lugar de descanso para viajantes e comerciantes que se dirigiam ao Crato que era a freguesia mais importante da região do Cariri – e apenas com a chegada de Cícero Romão Batista em 1872, para substituir o então Padre da Capela Nossa Senhora das Dores, é que se inicia o processo de ocupação do povoado que ensejou na modificação dos costumes e comportamento da população, a saber: Ao promover a valorização ética do trabalho, o Padre Cícero contribuiu para romper com as representações ‘escravocratas’, nas quais o trabalho estava associado à ‘dor’, ao ‘castigo’ e, portanto, à humilhação e à desvalorização do homem. Inserido em um Nordeste predominantemente rural, no qual encontravam-se presentes formas de relação de produção não tipicamente capitalistas, como a utilização da mão-de-obra escrava, o Padre inseriu naquele espaço social um novo discurso, a partir do qual emergiam novas | 180 | práticas de trabalho, vinculadas à construção de um mundo melhor, mais igualitário e mais livre (Araújo, 2005, p. 75). Todavia, as transformações impostas pelo Padre estavam diretamente relacionadas ao término da Escravidão e Proclamação da República. Diante disto destaca-se ainda o ‘suposto milagre’ e o mito da hóstia que se transformara em sangue na boca da beata Maria de Araújo, a saber, beata Mocinha, em março de 1889. Assim, diante da capacidade política de Cícero Romão Batista, em julho de 1914, através da Lei Nº. 1.178, a já então Vila de Juazeiro foi elevada à categoria de Cidade, tornando-se independente do Crato (Machado, 2011). Neste sentido Pereira (2012) ressalta que desde então, Juazeiro e Crato vêm disputando a hegemonia da região do Cariri cearense, onde a partir da década de 1970, Juazeiro do Norte passa a ter a “maior expressão política, econômica e social no Estado do Ceará” (Pereira, 2012, p. 306). Em contraposição, ao analisarmos os trabalhos produzidos pelos iccanos, conforme advertem Semeão e Gonçalves (2010) que o Crato a partir da segunda metade do século XX, destacava-se não apenas pelo projeto próprio de modernidade pensado a partir ideia de cultura e da identidade regional, como também, procurava distanciamento do comportamento “fanático-religioso” que se instalou em Juazeiro do Norte, desde o “milagre da hóstia em sangue” que envolvia Padre Cícero e a beata Mocinha Maria de Araújo (Araújo, 2005; Cortez, 2000). Assim, diante de tal impasse construído em tão curto espaço temporal, Juazeiro do Norte surge como cidade da fé, do turismo religioso e do comércio, recheado de crendices, simbologias religiosas e penitências; em contraste com o Crato, lugar que afirmava ser o detentor da identidade regional do Cariri, marcado pela ideia de civilização, racionalidade e cultura segundo os padrões de intelectualidade defendidos pelo ICC (Cortez, 2008). | 181 | A este respeito, caracteriza Cortez (2000), ao ressignificar o projeto de civilização cratense, aponta que foi a partir das últimas décadas do século XIX que, por um lado, a freguesia do “Crato se propunha ser o núcleo disseminador de um projeto civilizador para a região do Cariri”; e por outro lado, aspirava ser “o espaço mais povoado e de maior projeção na região”, como também, por “ser o local onde se concentrou o maior número de intelectuais” (Cortez, 2000, p.19). A autora ressalta ainda que: [...] os esforços de intelectuais, políticos, religiosos e capitalistas, consubstanciaram-se também na lógica do contraste em relação a Juazeiro do Norte, orientando a produção simbólica do Crato na região através da valorização de uma cultura letrada e da reprodução dos padrões de condutas civilizadas para homens e mulheres (Cortez, 2000, p. 14). Diante desta relação de contraste que desabrochou entre Juazeiro do Norte (enquanto cidade que respira religiosidade e catolicismo popular em torno do espaço sagrado edificado pelo Padre Cícero) e o Crato (como lugar de civilidade e da cultura letrada, que se orgulha de seu passado glamoroso, responsável pela solidificação de uma identidade política, intelectual e econômica da região do Cariri cearense), percebemos que as demais formas de expressão da cultura e das manifestações religiosas dos grupos dominados, tais como de negros e índios existentes no Cariri (Brígido, 2001), foram totalmente desprezados e negligenciados, não apenas nas duas cidades, como também, nas demais cidades que hoje compõem a Região Metropolitana do Cariri, surgindo apenas o interesse pela temática, a partir de hodiernos trabalhos stricto senso por parte de descendestes dos grupos étnicos. Assim, seguindo esta linha de pensamento, ressalta-se aqui a importância de se analisar a presença da tradição religiosa | 182 | africana enquanto signo da resistência do “povo negro ao regime de dominação a que historicamente estão submetidos” (Nunes, 2011a, p. 2) e para que se torne possível à compreensão do campo religioso da cultura negra na região, devemos compreender a importância que as confrarias, irmandades ou associações negras tiveram para consolidação do Candomblé, durante e após o regime escravagista no Brasil, e em especial, no Cariri cearense. PODER POLÍTICO DAS IRMANDADES E A PRESERVAÇÃO DAS AFRICANIDADES O poder político do discurso filosófico do Direito Colonial e Imperial escravagista - produzido e implementado pelo ocidente - evidenciava práticas de dominação que não apenas manipulavam às aparências de que tanto às normas constitucionais, quanto às extra constitucionais deveriam proteger os interesses e os bens jurídicos dos cidadãos brancos, mas que também alimentava a panaceia da falsa igualdade entre os homens, conforme preconizavam os princípios gerais do direito ostentados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa de 1789 (Firmin, 2011; Pierre, 2009; Constituição do Haiti de 1805, 1961). Ademais, destacam-se os esforços e as explicações proferidas pelas práticas jurídicas de manutenção das normas conceituais - no Brasil Colonial e Imperial – em defesa da escravidão geraram ostensivas teorias, fundadas nem sempre de simples normas compreensivas que eram ensinadas e defendidas por uma considerável parte do colegiado de professores dos pioneiros cursos de Direito no Brasil (Schwarcz, 1993). Estas normas conceituais produziam, distinguiam e delineavam conceitos e pressuposições teóricas mantenedoras e legitimadoras da colonização escravagista. Assim, ao se analisar a disposição das normas e dos discursos filosóficos no Direito | 183 | (colonial e imperial) percebemos evidências de oportunismos de linguagens jurídicas e do respectivo, poder político na produção do estranhamento ao Negro por nuances de realidade objetificadas pela complementaridade funcional entre a escravidão e a sobrevivência econômica dos meios de produção capitalista (Bethell, 1976; Figueiredo Filho, 1966). Ao lado destas considerações aparece os significantes discursivos da filosofia jurídica da época, a qual impunha paradigmas de ausência de consciência nas interações do ser-sujeito e do ser-objeto, subjugado pela tensão entre a ação dos “Direitos do Homem e do Cidadão” e a ação da escravidão. Dentro desta linha de reflexão e absorvendo os paradigmas da lógica da descolonização do pensamento defendidos por Fanon (2022) e Ramose (2011), podemos avultar a emergência de uma outra hermenêutica (Moreira, 2019), capaz não apenas de descolonizar os paradigmas científicos que, ainda hoje, fundamentam tanto as fontes materiais e formais, quanto os princípios gerais do direito, mas também, de remeter o direito na busca ontológica de seu real sentido do bem viver (Cunha Jr., 2020). Assim, ao proferir críticas à insegurança jurídica e ao falso glamour das normas jurídicas subsequentes à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa de 1789, afiliamos à Firmin (2011), Ramose (2011), Fanon (2022), Babha (1998), Césaire (1961) entre outros pensadores, afrorreferenciados neste ensaio, principalmente, quando estes avultam que os pressupostos revolucionários franceses em momento algum objetivaram mudar os paradigmas científicos “iluministas” de outrora. À frente destas concepções iluministas está a crítica de que tanto a Revolução Francesa, quanto a Declaração de Direitos (Degler, 1976), corroboravam com a manutenção do status quo do discurso colonial escravagista e da manutenção da estrutura | 184 | legal de segregação pelas diferenças raciais que inferiorizavam, objetificavam e separavam os direitos civis de indivíduos negros, criminosamente escravizados (Fanon, 2022; Handerson, 2010; Cunha Jr., 2005). Decerto é viável a compreensão de que os princípios agitadores – liberdade, igualdade e fraternidade - da Revolução Francesa pela abolição de Leis Raciais no Direito não era apenas um direito a ser conquistado, mas do que isso, era um dever a ser posto em prática por todo um conjunto de atos para além da lógica deformada pela estrutura escravocrata ocidental (Azevedo, 2010; Fonseca, 1988). Por dentro destas reflexões está a necessidade de se observar que o poder político das irmandades e/ou confrarias religiosas de pretos foi fundamental para a manutenção da “força vital” ancestral africana que compreendia as mais distintas interações com as ações necropolíticas - psicológicas, culturais, jurídicas, econômicas, religiosas e políticas - dos negros com a ordem escravagista que era dominante tanto na arquitetura colonial, quanto na imperial (Melo, 2016; Nunes, 2011b). Dentro desta perspectiva afrocentrada, Santana e Lourau (2023), ao investigarem o papel político da Irmandade do Rosário dos Pretos, destacam: O traço quilombista das Irmandades negras nasce num viés do direito à memória e no resgate do conhecimento ancestral, que também é uma resposta ao anseio de superação da condição subalterna dada historicamente ao afrodescendente, vide o passado colonial e introduz questões da comunidade negra brasileira, numa narrativa afrocentrada ligada as vivências sócio-históricas e culturais, que é também da luta do povo negro (Santana; Lourau, 2023, p. 30). Sob esta visão, avultam-se as mais distintas contribuições e ações políticas de resistência e assistência interativa, diante das brechas do sistema escravagista, realizadas pelas irmandades de pretos, quando estas cuidavam de negros livres e escravizados (Oliveira, 2008), auxiliando com serviços de “sociabilidade | 185 | vinculadas ao mundo do trabalho” (Cord, 2012, p. 1), tais como auxilio (cultural, religioso, letramento-alfabetização, trabalho), cuidados médicos aos idosos (órfãos, doentes) e com apoio de comunicação por serviços de tradução e comunicação com os negros recém chegados pelo tráfico internacional e nacional (Silva; Conceição, 2011; Vainsencher, 2010; Nunes, 2007). Segundo Mattos (2011) e Santos (2008) era estratégia de dominação pelos europeus para organização do tráfico de escravos vindos de diferentes partes da África Ocidental, Equatorial e Oriental, e costume do comércio transatlântico, a prática de identificação dos diferentes grupos étnico-raciais africanos, que eram classificados a partir da ideia de “nação”, a saber: minas, angolas, benguelas, congos, moçambiques, jejes, nagôs, cassanges, cabindas, monjolos, fons, ewes, haussás, ashantis, entre outras etnias africanas. Além disso, ressalta Mattos (2011) que o batismo cristão era uma prática frequente que ocorria antes da travessia intercontinental para a escravidão, uma vez que: Quando o batismo não acontecia no continente africano, logo que chegava ao Brasil, o proprietário levava seu escravo até a paróquia mais próxima para ser batizado. Nesse momento o escravo africano recebia um nome cristão e ficava conhecido pela “nação” a qual pertencia (Mattos, 2011, p. 144). Consequentemente com a introdução do negro africano como escravo pelo tráfico internacional escravista no Brasil Colônia, para o desenvolvimento da economia agrícola, pecuarista e mineira, durante mais de três séculos, estas diferentes “nações” étnicas africanas trouxeram consigo suas culturas materiais e imateriais, e entre estas, cabe destacar os bens imateriais da tradição religiosa de suas divindades africanas (Ifadireó et. al., 2020). Com o passar dos séculos de escravidão aumentavam-se as formas de resistência à opressão e | 186 | ao regime escravagista, como por exemplo: o aumento de fugas, revoltas, insurreições, suicídios5 e infanticídios6 (Costa; Melo et. al., 2018). A este respeito, destacam Ifadireó et. al. (2019) que produção capitalista escravocrata era mantida pela disputa interna entre distintas forças que disputavam a colonialidade do poder político entre a dominante aristocracia rural que perdia espaço para a ascendente burguesia urbana, a qual juntamente com o clero, construíram um passado de dor, de castigo e de penas que eram implementadas para controlar os cativos e, desencorajar ao longo do tempo, toda e qualquer investida conjurante de negros insurgentes (Quijano, 2000). Por conseguinte, acentua Azevedo (1987) que o “medo branco”, de uma eventual “onda libertária negra”, após a gloriosa revolução haitiana dos nègres marrons7 e 1789-1804 (Saint-Gérard, 2004), passava a agoniar toda a estrutura de produção capitalista das elites escravocratas de finais do século XVIII até finais do século XIX (Ramos, 1979), não apenas no Brasil Colônia e Império (Ribeiro, 1995), mas também em todo o continente americano (Quijano, 2005) que vivenciava repetidos e sintomáticos movimentos insurgentes de comunidades quilombolas negras e/ou indígenas-negras que floresciam na luta de resistência antiescravagista (Querino, 1980) das américas negras (James, 2000) e em defesa do desmantelamento da estrutura colonial que os aniquilava (Carpentier, 1976). A este respeito, Marquese (2004) em seu estudo sobre a teologia cristã e seu poder político colonial na administração de escravos pelas, acentua que as mais distintas ordens religiosas - inglesas, 5 6 7 Nesse sentido Mattos (2011, p. 131) aponta que “embora alguns escravos recorressem às armas de fogo, ao enforcamento, ao envenenamento, a maior parte dos suicídios era por afogamento, pois tinha um significado muito específico, sobretudo para os africanos”. Causados por escravas em influência do estado puerperal que não queriam que seus filhos permanecessem escravos. Negros quilombolas. Segundo destaca Arthur Ramos (1979), no-francês haitiano o termo “Marrons” evidencia a terminologia “quilombo” no contexto político afrodescendente brasileiro. | 187 | francesas, portuguesas e hispânicas – enquanto instituições de controle social da sociedade escravocrata foram responsáveis pela submissão de corpos negros (Césaire, 1961) pela estrutura do patriarcado escravocrata produzindo e recriando indivíduosobjetos, através da “docilização” da mente, da alma e do espírito (Moura, 1981). Assim, estes “feitores do corpo e missionários da mente” (Marquese, 2004) apoiaram com a ideologia de que o: [...] status de um escravo durava toda a sua vida e era herdado. Outro elemento comum a todos os sistemas de escravidão, moderno e antigo, era o fato de o status ser herdado da mãe. Assim, o filho de uma mulher escrava e de um homem livre era um escravo, tanto no Brasil, como nos Estados Unidos [...] (Degler, 1976, p. 38). Neste contexto de poder político colonial, acrescenta de Santos (1986) que as estratégias de propagação e manutenção do controle destes corpos negros escravizados não poderia parar apenas no controle do indivíduo em vida, através de práticas coercitivas de dominação de suas almas e de seus espíritos, era necessário exercer esta ascendência sobre a morte, propagando assim, o medo da morte (Melo; Dias, 2018). Assim, a Igreja fazendo uso da fé cristã, como instrumento de dominação, de controle e de subordinação, aceitou e até auxiliou a formação de irmandades, confrarias e associações religiosas de negros cristãos, pensando consequentemente no controle do espírito, para provocar uma mudança de comportamento e atitude que sujeitasse os negros ao regime de servidão (Cardozo, 1973)8. Neste sentido, Reis (1996) ao pesquisar sobre a identidade e diversidade étnica presente nas irmandades negras no tempo da 8 Nesse sentido, Fernandes e Souza (2010) acrescenta que as irmandades religiosas chegaram ao Brasil com os primeiros colonizadores ainda no século XVI, embora, eles tenham se iniciado no período colonial (séculos XVII e XVIII), passaram pelo período regencial e imperial (século XIX), e ainda hoje (século XXI), estão presentes, adquirindo outras obrigações, depois, de reformas estatutárias, necessárias, após, termino da escravidão. Por exemplo, as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Barbalha e de Sobral. | 188 | escravidão no recôncavo baiano, durante as festividades de Natal, em janeiro de 1809, relata que: Vários escravos de todas as nações, e unindo-se em três corporações com muitos, desta vila, segundo a sua nação, formaram ranchos de atabaques, e fizeram os seus costumados brinquedos, ou danças, a saber, os Geges, no sítio Sergimirim, os Angolas, por detrás da Capela do Rosário, e os Nagôs e Uçás9 na rua detrás junto ao alambique que tem de renda Thomé Correiade Mattos, sendo este rancho o mais luzido, vestidos ao meio corpo, com um grande atabaque (Reis, 1996, p. 7s.). Ao analisarmos a citação acima, percebemos que tais festas ao mesmo tempo em que serviam para unir os negros, no caso dos nagôs e haussas, servia para separá-los, no caso, os primeiros dos angolanos e dos geges, e estes dos primeiros respectivamente. Sendo assim, é importante destacar que, enquanto estes encontros ocorriam no seio das festividades católicas dos escravocratas, eram percebidos “pelos brancos como passatempo inocente ou desafogo das tensões do cativeiro” (Reis, 1996, p. 8), para os africanos e afrodescendentes, quando eles eram repletos de significações e representações sociais, principalmente, porque eram nestas celebrações que os escravos, negros livres e seus descendentes: [...] aproveitavam as celebrações do calendário cultural dos senhores para praticarem suas próprias tradições culturais, entre as quais a tradição, frequentemente reinventada, de se organizarem segundo a origem étnica, em torno das quais os negros se organizavam de forma mais ou menos autônomas, destacam-se as confrarias ou irmandades religiosas, dedicadas à devoção de santos católicos (Reis, 1996, p.9). Por conseguinte, há de se destacar que as irmandades religiosas e/ou confrarias de pretos contribuíam com a recriação e ressignificação de todo um universo religioso e simbólico africano, a partir da autorização dada pela própria elite 9 Haussás, uma etnia mulçumana. | 189 | escravocrata – senhores escravocratas rurais e urbanos, bem como pela Igreja católica -, os quais em concordância com a implementação de tais instituições, acreditavam que estas associações de “homens e mulheres pretos” serviriam para a sujeição da condição de cativo sem contestação, diminuindo a partir de então, qualquer possibilidade de insurreição e revolta de uma onda negra à revolução haitiana. A este respeito, Fernandes e Souza (2010, p. 1) referendam que: O século XIX recebeu de herança o que ficou conhecido por ‘religiosidade colonial’ ou ‘cristianismo moreno’, um ‘cristianismo mestiço’ que se manifestava no cotidiano, marado pela exuberância, vitalidade e festividade e que, ainda hoje, caracteriza as manifestações de religiosidade popular no Brasil. Uma das expressões típicas desse cristianismo foram às irmandades de ‘Pretos’ (...). Mantidas dentro da própria estrutura da Igreja Católica, eles abrigavam escravos, forros ou pobres livres. Somando-se a isto, o fato de que o poder político destas organizações funcionava como uma sociedade filantrópica de ajuda mútua, a partir da contribuição dos associados, estas prestavam não apenas serviços de assistência social aos negros escravos e libertos (famintos, solitários, velhos, doentes e em caso de morte, sepultamento e missas fúnebres) diante da situação de abandono que viviam após anos de mão de obra escrava em contextos de dominação e de exploração durante o regime escravista, mas também serviam para a manutenção da memória social da ancestralidade negra de uma morte coletiva de liberdade em África que não poderia ser esquecida como destaca Santos (2010): Na memória social, se a morte de outrem é lembrada, sensibilidades e peculiaridades obre ela de alguma forma pode ser revelada. Assim, sendo, em nossa reflexão sobre as narrativas orais da morte [...] vemos que o tipo de morte sofrida possui relevância. A esse respeito é importante observar que as narrativas convergem para um evento lamentável e doloroso (Santos, 2010, p. 25). | 190 | Sobre a constituição das irmandades religiosas negras e a sua importância enquanto forma de resistência contra a situação excludente, destaca Marquese (2004) que eram constantes as práticas discriminatórias e segregacionistas que eram vivenciadas pelas diferentes etnias de escravos e negros livres. Práticas estas que tinham total apoio e que, por muitas vezes, eram realizadas por membros da própria Igreja católica – com apoio financeiro e incentivo ideológico de salvação das almas pagãs - alastradas por todo o Brasil. Na freguesia de Salvador, Província da Bahia, os negros escravos e negros livres da etnia jejes/gêges desenvolveram sua própria confraria, chamada de Irmandade do Senhor do Bom Jesus das Necessidades e Redenção que se reunia na igreja do Corpo Santo; os angolas/cabindas/congos se organizavam entre outras, na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário, confraria religiosa que tinha representação em outras províncias do Brasil, e na Irmandade do Rosário dos Pretos na igreja da Conceição da Praia (Reis, 1996). Já os nagôs – que englobavam os mais diferentes grupos étnicos iorubá/ yorubá – mantiveram encontros na igreja da Barroquinha, mais especificamente, na Irmandade do Senhor dos Martírios e na Irmandade Nossa Senhora da Boa Morte. Também, existiam as confrarias religiosas ‘mistas’ que aceitavam pessoas de qualquer etnia - fossem africanos, negros brasileiros, afrodescendentes, crioulos e brancos -, como a Irmandade de Santo Antônio de Categeró, que se reunia na igreja matriz da freguesia de São Pedro. Destaca-se ainda que estas irmandades mistas eram “exclusivas de negros”, formados por diferentes grupos étnicos - fossem estes: angolas/ benguelas/ geges/ nagôs/ minas/ costa d’áfrica/ moçambique entre outras – como a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos das Portas | 191 | do Carmo10, que se reuniam na igreja azul do Pelourinho. De todo, entre todas as irmandades religiosas, não podemos deixar de fora, as formadas exclusivamente por africanos islamizados e negros brasileiros mulçumanos, haussás e nagôs, como por exemplo, a Irmandade de Nossa Senhora do Amparo dos Desvalidos (Reis, 1996). No interior da província da Bahia, a Irmandade do Senhor do Bom Jesus dos Martírios na freguesia da Vila de Cachoeira no Recôncavo baiano, era formada principalmente por povos jejes e negros afrodescendentes. Finalmente, destaca-se a Irmandade do Senhor Bom Jesus da Cruz, na freguesia de São Gonçalo dos Campos, exclusiva de afrodescendentes. Ao buscarmos referências sobre as confrarias religiosas negras na Província de Pernambuco, uma confraria chama a atenção, pela sua antiguidade e pela sua importância e significância para a propagação do sincretismo e preservação da religiosidade africana na freguesia de Recife, é a Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, oriunda do séc. XVII, que como muitas de sua época, escapou a inquisição da igreja, devido a interferência da Ordem Religiosa dos Dominicanos. Como caracterizam Souza e Valença (2008), ao ressaltarem que esta irmandade negra teve fundamental importância na construção de uma igreja, edificada em 1630 no Recife, de ‘pretos e para pretos’, e também, por ter permitido que práticas de devoção, realização de preceitos religiosos ‘católicos’ e africanos - típicos da cultura religiosa africana -, não se perdessem por completo. Respectivamente, é válido ressaltar que a difusão da Irmandade em toda a freguesia, contribuiu para que o acesso dos africanos, negros brasileiros e caboclos, ficasse 10 Nesse sentido Reis (1996), ao analisar a origem étnica da Irmandade Religiosa do Rosário dos Pretos do Pelourinho entre 1798 – 1810, ressalta que esta era formada por 96 homens e mulheres de origem Jeje; 84 afrodescendentes; 35 angolas/congos; 16 minas; 9 benguelas; 9 nagôs; 4 da costa da África e 1 de Moçambique. Total de 254 membros. | 192 | mais fácil, como também, serviu para aumentar os limites espaciais do território e da territorialidade dentro e fora da igreja, conforme ressalta Veinsecher (2010): As festas da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos eram constituídas, então, por danças e batuques que não faziam parte da liturgia católica. Sendo assim, os rituais manifestados por esses irmãos chegaram, até, a ser proibidos pela Inquisição. No Cariri cearense, mais especificamente na freguesia de Barbalha, a exemplo da confraria religiosa da Freguesia de Recife, foi criada em 1860 uma Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. A irmandade barbalhense se diferenciava da recifense, devido ao fato de ter sido criada pela própria igreja, que desenvolvera as ações e as finalidades da própria sociedade, aumentando assim, o controle sobre as práticas litúrgicas durante as festividades dos santos padroeiros, o que não impedia que práticas como o sincretismo fossem utilizadas, para preservação das crenças e para que a cultura originária não se perdesse por completo; além do mais, era acessível aos escravos (africanos, negros, forros/ alforriados e caboclos), brancos e aos pobres livres Souza e Valença (2008). Esclarecendo esta perspectiva, Prandi (2003, p. 17) exemplifica que: Para se viver no Brasil, mesmo sendo escravo, e principalmente depois, sendo negro livre, era indispensável, antes de mais nada, ser católico. Por isso, os negros no Brasil que cultuavam as religiões africanas dos orixás, voduns e inquices se diziam católicos e se comportavam como tais. Além dos rituais de seus ancestrais, frequentavam também os ritos católicos. Continuaram sendo e se dizendo católicos, mesmo com o advento da República, quando o catolicismo perdeu a condição de religião oficial. Ao propormos esta análise sobre as confrarias religiosas no Brasil, se torna possível a realização de uma melhor compreensão das trajetórias vividas pela população negra no | 193 | Nordeste, e no Cariri cearense, e consequentemente, da importância destas para a preservação da cultura religiosa africana. Assim, percebemos que as diferenças étnicas propostas pelas elites dominantes, seguiam o modelo do “divida et impera, tertius gaudens”11, todavia, graças ao trabalho realizado pelas irmandades de pretos por todo o Brasil, não conseguiram alcançar seus objetivos, ou seja, provocar a uma total aculturação e/ou assimilação da cultura religiosa cristã na população negra escravizada. A partir do momento que estes se utilizavam do sincretismo religioso, a partir das celebrações a santos católicos, e conseguiam assim, manter suas tradições, a saber: como uso de máscaras, danças, instrumentos, cânticos e louvores, tendo em vista que: A reunião desses piedosos africanos, cujos idiomas e costumes eram ignorados pelos padres, permitiu que celebrassem, debaixo do manto de Nossa Senhora do Rosário, muitas cerimônias que nada tinham de católicas. No campo de tanta organização, os escravos tinham que sujeitar-se, de qualquer maneira, ao modelo católico. Dançavam para São Bendito, ao ritmo do ‘toque’ de Oxumaré (Augras, 2008, p. 29). A compreensão desses processos sociais mostra à capacidade de residência dos africanos diante de todo o contexto de segregação a aculturação que a eles foram impostos, a partir do desenvolvimento de redes sociais que conseguiram aumentar o círculo para preservação dos saberes e na manutenção da liberdade pessoal no interior das confrarias e no exterior destas para com as normas segregacionistas da sociedade escravagista. Outro fato importante a ser apontado, é a inquestionável importância destas confrarias, na região do Cariri cearense (Nunes, 2007), para a manutenção da herança cultural africana, que permitiu a sobrevivência dos “Reisados de Coroação de Reis 11 Dividir para dominar. | 194 | do Congo”12 que se espalharam por muitas cidades, como Barbalha, Missão Velha e Juazeiro do Norte (Nunes, 2011a), o que demonstra que os campos de sociabilidade africanos diante da escravidão, permaneceram mesmo que simbolicamente representados nas regiões analisadas (Nunes, 2011b). Neste sentido, avulta-se que o poder político destas irmandades de pretos, foi responsável pela ressignificação de toda uma estrutura política antiescravagista, a partir da proposição de ações de reciprocidade promovidas pelas redes sociais desenvolvidas e aprimoradas no interior e exterior das Irmandades de Pretos. Fato a ser destacado é que, mesmo diante da tentativa de extermínio cultural dos artefatos da cultura negra, através de agentes desagregadores externos que intentavam diluir e fragmentar a identidade originária africana em seus afrodescendentes, estas irmandades contribuíram com a manutenção da identidade cultural e ancestral africana (Melo, 2016; Nunes, 2011a). Corroborando com esta perspectiva sobre o poder político das irmandades de pretos ressalta Moura (1994) que: Os grupos étnicos, as comunidades negras ou bairros rurais negros travam, portanto, uma luta permanente nos níveis econômicos e sociais para que os seus padrões culturais, não sejam manipulados ou hostilizados pelos grupos de fora ou pela sociedade abrangente através de seus agentes desagregadores. Quando essa identidade étnica se dilui ou se fragmenta, um dos recursos usados é a fuga do agente discriminado para uma identidade simbólica e ambígua (Moura, 1994, p. 157). Visto que a partir desta perspectiva, o conteúdo principal da próxima análise será estabelecer uma compreensão a partir 12 Nesse sentido, Santos (2007, p. 33) afirma que “a coroação de Reis Congo no Brasil aponta para um processo de cristianização mais longo, iniciado na África do século XV, quando o primeiro soberano congolês se converteu ao catolicismo. Esse processo de cristianização levou ao ‘aportuguesamento’ das instituições do congo, por sua vez, não exterminou as tradições bakongo, servindo mais a interesses econômicos e de governo do que a interesses propriamente religiosos”. | 195 | das interações produzidas pelas ações de reciprocidade, saberes litúrgicos e contatos sociais mantidos pelas confrarias religiosas que conseguiram reinventar a tradição religiosa rural africana no cotidiano territorial e espacial urbano das cidades, surgindo assim, os Terreiros de Candomblé que permitiram que os negros pudessem viver e reviver suas religiosidades, seus costumes e tradições. O CANDOMBLÉ NO CARIRI E ÀS TENSÕES POLÍTICORELIGIOSAS Ao nos aproximarmos da análise sobre a gênese do candomblé brasileiro e consequentemente sobre a etimologia da palavra candomblé, nos deparamos com uma surpresa, ou melhor, com três grandes surpresas, a saber: a primeira é que não se sabe com certeza onde a tradição religiosa africana teria começado no Brasil, ou seja, as informações existentes se confundem e não se sabe qual teria sido o primeiro terreiro de candomblé ou a casa matriz13 que teria originado todas as outras pertencentes ao imenso panteão religioso africano, repleto de diferentes nações, etnias e asés14; por outro lado, não se sabe muito sobre a origem, ou melhor, quando a palavra teria sido 13 Força ancestral e espiritual. 14 Por muito tempo se acreditou ser o Terreiro Casa Branca do Engenho Velho, o primeiro terreiro de candomblé brasileiro, surgido ainda na primeira metade do século XIX, mas algumas pesquisas têm contestado esta história, dando a antiguidade ao Terreiro Casa de Oxumaré, o qual teria surgido ainda no século XVIII, na cidade de Cachoeira, Bahia. A Casa de Oxumarê, Associação Cultural e Religiosa São Salvador - Ilê Oxumarê Araká Axé Ogodô, fundada por Manoel Joaquim Ricardo, Babá Talabi, entre o final do século 18 e inicio do séc.19, tem suas origens ligadas no culto à Ajunsun, praticado no Calundu do Obitedó, em Cachoeira - Ba. Assim, ao contabilizarmos o seu nascimento no Calundu do Obitedó, e sua posterior passagem pela Cruz do Cosme, até a sua transferência para a Mata Escura, no atual bairro da Federação, a Casa de Oxumarê completaria, nestes cálculos, mais de 200 anos de existência. Esse fato não é decisivo para o presente trabalho, porém é importante ser salientado. De todo modo existe uma unanimidade quase geral sobre as casas matrizes do àsé ou os primeiros terreiros de candomblé da Bahia, os quais são enumerados por Casa de Osumare, a Casa Branca do Engenho Velho, o Gantois, o Opo Afonjá, o Alakétou, o Asé Bogun, o Kwe Seja Unde, o Kupapa Unsaba e tantos outros. | 196 | usada pela primeira vez15. Por conseguinte, predomina outra incerteza, a saber, se as primeiras casas que buscaram recuperar ou reinventar a tradição religiosa africana; e se estas teriam surgido primeiramente no espaço urbano ou no rural brasileiro? Verdade é que a expansão religiosa dos terreiros de candomblé, independente das nações, só teve maior êxito com o declínio e término da escravatura, e consequentemente, com a urbanização das cidades, e a territorialização de espaços sagrados que buscavam recuperar a identidade religiosa africana no espaço territorial urbano brasileiro.16 Dentro desta linha de pensamento, parafraseando Santos (2010), entendemos que para se entender o processo de formação do universo religioso africano e a sua ‘reinvenção’ enquanto ‘Candomblé’ no Brasil, temos que aceitar a tese de que o reconhecimento da unidade espacial de um terreiro de religiosidade afro-brasileira, passa em primeiro lugar, pela aceitação de e aquisição da identidade religiosa de ‘candomblecista’ enquanto sujeito de uma rede social em busca de uma identidade de pertença, pois, este espaço sagrado só será sagrado para seus adeptos e praticantes. Dialogando com esta perspectiva Silva acrescenta que “num ambiente de constante negação como o nosso, a criação de uma identidade positiva (...) será construída a partir de uma atitude relacional entre a pessoa e a coletividade” (Silva, 2011, p. 9). Todavia para que o desenvolvimento de uma ‘identidade de pertença’ ocorra é necessário que antes se compreenda as causas que originam o processo de negação da identidade 15 Santos (2007, p. 62) citando uma matéria do Jornal A ordem de 03.09.1904, p. 02, em matéria denominada “As vítimas do fetichismo” expõe que “com o fim do sistema escravocrata e a proclamação do regime republicano houve um significativo crescimento do número de candomblés que conseguiram se organizar de maneira mais aberta, uns mais rápido que outros. Encontramos a palavra candomblé na imprensa da cidade de Cachoeira pela primeira vez no dia 3 de setembro de 1904”. 16 Outro fator que não deve passar despercebido, sobre a origem dos primeiros grandes templos, é se eles surgiram no território urbano ou rural (Augras, 2008). | 197 | individual que não é uma atitude meramente individual, mas antes de tudo, uma reação que se apreende nas representações sociais oriundas das inter-relações entre diferentes grupos sociais. No que concerne ao tema em questão, verifica-se que o entendimento sobre a territorialidade, território e identidade é de fundamental importância a nosso ver, pois é a partir da vivência dentro deste contexto social que trajetórias próprias de auto atribuição são indicadas (Melo, 2017). Constata-se assim, que o conceito de auto atribuição é dotado de relações territoriais específicas que se deram e consequentemente, darão na conjuntura sociopolítica iniciada pelo isolamento e pela resistência enquanto estratégias de proteção e subsistência que marcarão a formação social heterogênea do grupo religioso dentro do terreiro (Silva; Melo, 2018). Neste contexto, avulta Melo (2016), em sua pesquisa-ação sobre as “Pretagogias na Educação e na religião dos Òrìsàs na Cidade de Padre Cícero” com sacerdotisas e/ou sacerdotes de candomblé Ketu, Angola e Jeje em Juazeiro do Norte, assevera que as irmandades religiosas tiveram papel fundamental na manutenção da identidade cultural, não apenas no que diz respeito à manutenção do status quo ancestral africano, mas também, para fomentação do poder político que às comunidades religiosas de terreiros de candomblé – umbanda, quimbanda e jurema – junto aos seus territórios e às suas territorialidades localizadas em locais longínquos em regiões acidentadas, desabitadas e afastadas nos subúrbios urbanos da Macrorregião do Cariri cearense. Em outro estudo, pontua Melo (2017) que a questão dos territórios e territorialidade dos terreiros de candomblé em Juazeiro do Norte e Crato, localizam-se em zonas periféricas17 nos subúrbios, acompanhando a mesma tendência nacional, quando verifica-se que no “Brasil a dentro” terreiros de 17 aquilombamentos sociais pretos. | 198 | candomblé e demais religiões de matriz africanas procuram afastar-se das áreas mais nobres, buscando assim, evitar futuros problemas com as elites que ainda hoje detêm o poder político nas brasileiras, uma vez que: verifica-se que o entendimento sobre a territorialidade, território e identidade é de fundamental importância [...] dentro desse contexto social onde conjuntura sociopolítica iniciada pelo isolamento e pela resistência como estratégias de proteção e subsistência do grupo religioso [...]. Assim, a distância das zonas nobres significaria a própria sobrevivência do terreiro. Ao tentar mapear os primeiros terreiros de candomblé em Juazeiro do Norte, vimos que as comunidades religiosas que se localizavam no centro ou próximas às áreas habitadas pelas “elites culturais e econômicas” sofreram mais perseguição (Melo, 2016, p. 166). Do mesmo modo, entende-se que as estratégias territoriais de distanciamento significariam a própria sobrevivência do terreiro, diante de estratégias de fuga à perseguição do racismo religioso que ocorre no cotidiano de muitos fieis das religiões de matrizes africanas, principalmente, em dias de festividades religiosas, quando as festas de louvor aos Òrìsàs acontecem por toda a madrugada (Ifadireó et. al., 2020). Conforme podemos perceber, ao tentarmos mapear os primeiros terreiros de candomblé em Juazeiro do Norte, vimos que as comunidades religiosas que se localizavam no centro ou próximo as áreas habitadas pelas “elites culturais e econômicas” sofreram maior perseguição. Diferentemente da realidade histórico-religiosa vivenciada pelas ‘comunidades religiosas dos povos de terreiro’ nas duas mais importantes metrópoles do nordeste, como Salvador e Recife, o candomblé cearense, tanto em Fortaleza como na região do Crajubar, é muito recente no que diz respeito ao culto aos orixás, nkices e vooduns. Pois, suas primeiras casas surgiram em finais da década de cinquenta em Fortaleza e meados da década de setenta no Crajubar: | 199 | O candomblé no Cariri de uma forma geral, iniciou-se com o Tata Beto de Mutalambo, em meados para finais dos anos 1970, quando este abriu a sua casa. Eu acho que ele era filho da Mam’etu MabéOrô, de Alagoas [...] bem todo mundo falava isso [...]. Aí vem o Tata Anikan e a Mem’etu Delewy há cerca de 35 anos. A Mem’etu Delewy era foi iniciada pelo Tata Onêdegê, filho do Tata Kamunkan e, depois, com a morte deste ele passou a ser filho da Mem’etu Mabê Orô... é... foi isso! Acho que eles eram todos de Alagoas, só que o Pai Beto, Tata Onedegê, conheceu a Delewy aqui em Juazeiro do Norte, ele já tinha casa aberta em finais dos anos de setenta, eu acho. (Entrevista realizada em 2015 com o Pai Mutaruessy do Nkisi Teleku Mpensu, apud. Melo, 2016, p. 167). Dentro desta perspectiva Silva (2011) esclarece que o processo de edificação da identidade individual, é antes de tudo “um processo constante de identificação do eu ao redor do outro e do outro em relação ao eu” (Silva, 2011, p. 9) que se constata, a nosso ver, dentro de um espaço social (território) definido e delimitado pelo próprio grupo ou comunidade. Assim, ao analisar a construção e a utilização do termo território pelas Ciências Sociais, observa-se que: [...] o conceito de território é ubíquo e amplo. Para os geógrafos trata-se de um dos conceitos fundadores da disciplina, que se relaciona com outro de complexidade ainda maior, que é o espaço. (..) Para os biólogos e ecólogos o conceito de território serve como recurso heurístico para análise do habitat e das formas de uso dos biomas e ecossistemas pelos animais. Os Antropólogos e etnólogos usam o conceito de território pra descrever e delimitar o espaço em que transcorrem relações e interações de determinados grupos sociais em geral demarcados por meio de símbolos e representações (Schneider, 2009, p. 3). Nesta perspectiva, concebemos a necessidade de se compreender o território enquanto um espaço delimitado a partir das relações sociais e pelo processo de ocupação do grupo social, que desenvolve consequentemente, estratégias de territorialidade. Conforme aponta Storey ao afirmar que: Em geral, o território reverte a uma porção do espaço geográfico, o que é reivindicado ou ocupado por uma | 200 | pessoa, grupo de pessoas ou uma instituição. Território é, assim, uma área de espaço limitado. Territorialidade é o processo pelo qual esta indivíduos, grupos e instituições reivindicam o território ocupado (Storey, 2001, p. 11 [tradução nossa]). Diante desta pressuposição teórica, levantada por Storey (2001), é válido ressaltar que não se intenta aqui caracterizar a materialidade do termo território a partir de sua etimologia, más a observação a outro ponto que deve ser considerado, a saber, as ações realizadas pelos grupos ou atores sociais que se organizaram e se estruturaram em um determinado território (Arruzo, 2012). Para finalizar acrescentamos que a territorialidade religiosa remete a identificação individual enquanto membro de uma determinada comunidade religiosa ou de uma nação religiosa, como a exemplo do recorrente em todo o território religioso brasileiro, esta identidade se reflete no Crajubar, desde a chegada dos primeiros Pães de Santo, até o hodierno, onde os pais e mães de santo da região metropolitana do Cariri procuram a sua legitimidade a partir da busca aos primeiros terreiros, socialmente reconhecidos como detentores da tradição religiosa, em grandes centros, como Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. CONCLUSÃO Diante do que foi pelo presente trabalho exposto, ficou explícito o caráter descritivo-dialético que direcionou o nosso estudo. A partir do momento que realizamos uma reconstrução histórica de pensadores afrorreferenciados - tais como Firmin (2011), Ramose (2011), Fanon (2022), se tornou possível, por um lado, abordar as questões da africanidade e da afrodescendência, interseccionando estes conceitos com a importância das irmandades pretas no Ceará durante o período que procedeu a escravidão negra; e por outro lado, se foi possível ressignificar a | 201 | conjuntura e o poder político que estas tiveram com a transmissão e preservação da identidade cultural e religiosa do povo negro e, respectivamente, das comunidades religiosas dos povos de terreiro. Procuramos analisar a evolução das irmandades religiosas negras tradicionais enquanto movimento, e enquanto rede social a partir da perspectiva de africanidade e afrodescendência de Cunha Jr (2020) e as concepções sobre os conceitos de resistência de Scott (2002) se percebe que alternativas tais como fuga, esconderijo foram utilizadas como forma de resistir a opressão do regime escravista criminoso. Regime este que se fundamentava em leis e decretos que pouco a pouco, num processo lento e gradual, foram sendo questionados e revogados ensejando na abolição total da escravidão em 1888. Os Estudos Decoloniais e Afrorreferenciados serviram para a reconstrução de conceitos e paradigmas, e permitiu que constatássemos como as teorias e abordagens raciais se proliferaram (em meados do século XIX a inícios do século XX) nas Ciências Sociais. Assim, se tornou possível entender como o ambiente acadêmico brasileiro negligenciou a figura do negro, as comunidades religiosastradicionais negras, fato este que só veio a obter maior visibilidade nas últimas décadas do século XX. Os conceitos de território, territorialidade e identidade serviram para compreensão das relações desenvolvidas sobre a formação social heterogênea das diferentes nações étnico-raciais que originaram três ramificações religiosas distintas na religiosidade do candomblé para nós “reinventadas” no Brasil, a saber, candomblé Ketou, Jeje e Angola. As redes sociais das irmandades pretas conseguiram não apenas manter e promover a identidade cultural e ancestral africana (Melo, 2016; Nunes, 2011ª), bem como produzir nos indivíduos a competência de perseguirem suas ações de forma | 202 | racional até a obtenção de um determinado fim - mesmo diante de adversidades que acompanhavam o embate entre classes sociais, as instituições sociais e o Estado – o qual é hoje representado pela liberdade de religiosa, de crença e expressão (Moreira, 2019; Azevedo, 2010). Sobrevivendo as truculências, perseguições, discriminações e preconceitos o papel das redes periféricas das irmandades de pretos foi de fundamental importância para a propagação de valores sociais, individuais e coletivos, que permitiram ao ‘povo de santo’ “reinventar” o candomblé no espaço urbano brasileiro (Melo, 2016). Finalmente, gostaria de finalizar acrescentando que muito há o que ser analisado, muito há o que ser compreendido, pois, este artigo não ambicionava responder a todos os questionamentos que tínhamos antes de escrevê-lo, todavia não logramos no êxito, quando verificamos que esta tarefa deveria ser especificamente aprofundada. Sob esta incerteza ficou a dúvida, a qual poderá ser respondida em um trabalho de campo, observatórios, participativos ou por histórias orais de vida, que não foi o objetivo do presente artigo, que consistia apenas em promover uma revisão bibliográfica em torno das redes sociais de irmandades pretas na (re)invenção do candomblé no Cariri cearense (Ifadireó, 2021). REFERÊNCIAS ABREU, João Capistrano de. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. 4a edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. ARAUJO, Maria de Lourdes de. A Cidade do Padre Cícero: Trabalho e Fé. 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Quando adentramos em uma região, que historicamente é vendida como de cultura de tradição germânica, constituída a partir da “imigração” europeia, assim como a cidade de Blumenau, Gaspar e regiões próximas, cidades nas quais, a “exaltação às origens europeias” retomam questões como a de supremacia racial branca, o neonazismo e, que abordar a questão racial se torna tão necessário e ao mesmo tempo desafiador. É neste sentido que falar sobre racismo, branquitude, sobre o lugar do branco na luta antirracista são temáticas imprescindíveis para se compreender as relações raciais e o racismo estrutural constituidor da hierarquia social 1 O Núcleo de Estudos em Gênero e Raça (Negra) é institucionalizado na Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc) e colabora na luta das mulheres negras a partir de pesquisas engajadas na militância antirracista. estabelecida na sociedade brasileira, porém, quando o público ouvinte são pessoas brancas, se espera certa resistência, hostilidade ou mesmo reações violentas. Neste contexto, se compreende o apagamento que há na história sobre os indígenas e os negros que constituem e fazem parte da história do Estado de Santa Catarina, como se todas as cidades catarinenses fossem fundadas ou construídas a partir da colonização e da presença do imigrante de origem europeia oriundos da Alemanha ou da Itália especificamente. Essa colonização demarca todo o espaço das cidades visitadas, em todos os lugares. A rodoviária da cidade de Blumenau, lembra a arquitetura da Alemanha nazista da Segunda Guerra Mundial. A cidade é constituída pela cultura germânica, praticamente em todos os lugares, pessoas brancas ocupam quase todos os espaços, o centro da cidade e, é percebida na linguagem, na culinária, na arquitetura, nos nomes dos estabelecimentos comerciais (hotéis, shoppings, igreja), tudo remete à colonização europeia, na preocupação das pessoas pela origem e pelo nome dos visitantes. | 213 | Rodoviária cidade de Blumenau/SC – jul. 2023. foto Cristiane Westrup. O hotel onde ficamos hospedadas na cidade de Blumenau, chama atenção logo na entrada com o nome “Himmelblau”, “céu azul” na língua alemã. No hotel as pessoas nos receberam com um tratamento cordial, mas afinal, somos duas mulheres brancas. Nos chama a atenção questões que são históricas na sociabilidade racista brasileira, a segregação dos espaços – para negros e brancos – neste sentido, logo quando você chega no hotel em destaque nas portas dos elevadores está escrito em português para não deixar dúvidas, na cor preta e com letras garrafais: “elevador social” e “elevador de serviço”. Esta prática, demarca nitidamente o espaço de forma segregada. Nas duas cidades, circulam poucas pessoas negras, como se pôde | 214 | constatar, e mesmo aquelas que encontramos ou pudemos observar, ocupavam lugares subalternizados, se encontrando em postos de trabalho precarizados. Logo do Hotel Himmelblau cidade de Blumenau/SC – jul. 2023. foto Cristiane Westrup. Fomos convidadas para jantar na cidade de Blumenau num local designado como “Vila Germânica” na segunda-feira à noite com alguns professores. Na entrada se encontra uma logomarca “patrimônio cultural”, demarcando aquele local e aquela cidade como a “capital brasileira da cerveja” desde 1860, neste local é realizada a “Oktoberfest”. Na mesma imagem, ao centro, destaca-se uma cervejaria trazendo o modelo da arquitetura local, também designada como “patrimônio cultural” da cidade, as construções em enxaimel. No espaço, havia um maior número de pessoas brancas jantando e se | 215 | divertindo, pessoas negras no mesmo espaço se encontravam servindo e trabalhando. O único negro sentado à mesa era o professor Luiz Herculano. Os lugares são muito parecidos nessas situações, como em todos os lugares onde há espaços segregados pela raça, mas, em nossa percepção, a cidade de Blumenau é ainda mais marcante essa delimitação. Entrada Vila Germânica cidade de Blumenau/SC – jul. 2023. foto Cristiane Westrup. Na terça-feira do dia 25 de julho de 2023, quando fomos para o evento, preocupei-me em como seria a recepção das pessoas sobre a temática “o papel do branco na luta antirracista” a ser apresentada como proposta de formação para professores. A professora Tatiane que me acompanhou e compartilhou comigo a atividade de formação com os professores do Instituto | 216 | Federal Campus Gaspar/SC, também estava apreensiva sobre a atividade. Quando chegamos ao local fomos bem recepcionadas pelos professores do Instituto Federal (IFSC) campus da cidade de Gaspar/SC, como pela grande maioria do nosso público. A princípio iríamos fazer uma fala com os alunos do campus, o Professor Luiz Herculano, que nos fez o convite, entendeu que era primordial fazer uma formação com os professores, trazendo a temática do papel do branco na luta antirracista. Foi minha primeira formação para professores fora da plataforma Google Meet, proporcionando novas experiências e muito aprendizado, pois interagimos com pessoas que têm experiência na docência, o que demanda uma responsabilidade maior, mas, que resultou em uma troca muito gratificante. Formação para professores IFSC. Fonte: IFSC/Gaspar/SC jul. 2023. A maioria dos professores presentes entenderam a nossa proposta, a troca de experiências, a escuta, o interesse em | 217 | contribuir para o debate, o papel do branco na luta antirracista. Contribuíram, debateram, trouxeram experiências e percepções. Nas contribuições e percepções dos professores, pode-se observar certa surpresa quando abordamos o racismo enquanto estrutura e também se percebeu a dificuldade em reconhecer-se como parte da estrutura racista em nossa sociedade. O racismo foi abordado enquanto estrutura, assim como sob o contexto institucional e também sua compreensão sobre seu aspecto moral. Outra fala marcante foi quando falamos sobre a branquitude, gerando curiosidade, questionamentos acerca do conceito, e a dificuldade das pessoas brancas se entenderem enquanto racializadas e de se colocarem como parte deste mecanismo de poder. De acordo com Dennis de Oliveira (2021), o racismo é uma ideologia que consolida as relações sociais particularmente em um país historicamente marcado por mais de três séculos de escravização de africanos e seus descendentes abolida tardiamente, o último país a abolir a escravidão no continente americano. O racismo estrutural é um produto de uma estrutura sócio-histórica de produção e reprodução de riquezas. Neste sentido, constitui a base material das sociedades, e nestas que se deve investigar os fundamentos do racismo estrutural (Oliveira, 2021). O “racismo é uma construção ideológica e suas práticas se materializam nos diferentes processos de discriminação racial” cumprindo a função de reprodução das classes sociais em dois aspectos complementares: o primeiro é a reprodução dos lugares das classes sociais (principal) e o outro, a reprodução dos atores e sua distribuição entre seus lugares (subordinado). Enquanto um mecanismo ideológico, opera na reprodução das relações de produção, constituindo os sujeitos que devem ocupar os lugares | 218 | subalternos no mercado de trabalho (Oliveira, 2021; Gonzalez, 2020). Lélia Gonzalez (2020), nos diz que uma das heranças da colonização no Brasil foi a instituição de uma sociedade com estruturas de hierarquias, de forma que o racismo se efetiva não estando legalmente institucionalizado. As hierarquizações, construídas no período colonial marcado pelo escravismo estabeleceram os lugares sociais para brancos e negros, mesmo sem a explicitação legal do racismo (Apartheid velado) (Oliveira, 2021; Gonzalez, 2020). O racismo institucional é compreendido sob o contexto de que as relações e conflitos raciais são integrantes das instituições. A desigualdade racial é posta sob os interesses de determinado grupo racial, tratando-se de interesses políticos e econômicos e que detém o poder como característica central de dominação, impondo à sociedade padrões, regras e condutas (Almeida, 2018). O racismo aparece no plano moral como um comportamento apenas, uma atitude que se explicaria pelo caráter ou pela conduta da pessoa, tentando modelar-se por uma perspectiva estrutural que essencializa o sujeito que o pratica num lugar racializado. “O branco é assim mesmo, faz “branquice” e não há o que fazer” (Oliveira, 2021). A questão dos privilégios materiais e simbólicos atribuídos à branquitude. Compreenderam a branquitude como um lugar de poder, uma forma de ver e racializar o outro ao passo que pessoas brancas não se veem enquanto racializadas, ocupando esse lugar de “conforto” e de privilégios. Lia Vainer Schucman (2012) caracteriza a branquitude como uma forma de viver no mundo, uma forma de estar no mundo. Uma identidade racial branca, porém, não pensada enquanto raça. Não sentida como raça. Existem privilégios | 219 | materiais e simbólicos nessa construção. A ideia de raça foi construída pela ciência no século XIX, pela criação de um fenótipo. Através deste fenótipo se constitui uma noção de civilização (Schucman, 2012). A branquitude se constitui por uma percepção de que o branco representa a humanidade de forma universal, enquanto negros, indígenas e outros grupos racializados fazem parte de uma humanidade particular. Se apropriar da ideia de raça construída no século XIX, para afirmar que brancos são superiores moralmente, intelectualmente e esteticamente é a base da branquitude. A branquitude é um lugar de poder, uma forma de ver e racializar o outro, hierarquizar racialmente o outro. O negro é a construção objetificada colonial, desumanizada na medida que o branco se cria enquanto sujeito (Fanon, 2008; Schucman, 2012). Maria Aparecida Silva Bento (2019) nos ensina sobre a branquitude, afirmando que há a existência do silêncio, da omissão ou uma distorção do lugar ocupado pelo branco nas relações raciais no Brasil. Existindo assim um pacto (um pacto narcisístico) entre os brancos pelo não reconhecimento do racismo estrutural e de se colocarem enquanto parte, na produção e na manutenção das desigualdades raciais. Essa rejeição de discussão sobre o branco faz parte do não reconhecimento de privilégios, sejam estes simbólicos ou materiais (Bento, 2019). E, que de certa maneira, todo branco que se dispõe a assumir sua responsabilidade sobre as relações raciais, e que reconhece sua branquitude é tido como “progressista” ou que se preocupa com os “problemas sociais e raciais”. Reconhecer a branquitude e seus privilégios, como nos lembra Schucman (2012), não significa abrir mão dos privilégios. Por sua vez, Bento (2019, p.148) afirma que: “ao discutir sobre o racismo, pessoas | 220 | brancas almejam tematizar uma opressão existente na “sociedade” não aquilo que lhes é atribuído diretamente, ou que esteja presente nas instituições das quais fazem parte”. Como esperado, alguns professores tiveram um posicionamento mais hostil, ficando em silêncio, mas não esconderam o incômodo nas muitas expressões faciais, como tiveram professores que ficaram com a cara fechada e de braços cruzados. O incômodo é necessário, seja para provocar reflexão, compreensão e, a partir destas ações concretas, mas pode também demonstrar desinteresse, aversão, desprezo, indiferença. Lembro-me de um professor, que dormia ou fingia dormir durante a nossa fala. Essa postura, foi a percepção mais forte para mim, chamou atenção porque ele escorou o rosto entre as mãos, manteve os olhos fechados, ignorando nossa presença. Para mim, a leitura que faço dessa atitude é que ele nos ignorou por completo, apesar de permanecer naquele espaço, demonstra que ele não queria estar ali. Estava seguindo um protocolo. Partilhamos do sentimento de incômodo, a partir das expressões do público, falar sobre relações raciais, ainda é uma temática não enfrentada por nós pessoas brancas, porque é muito confortável se afirmar não racista sem enfrentar a realidade e como a estrutura racista da sociedade nos beneficia, direta e indiretamente. A necessidade e urgência de abordar a luta antirracista, enfrentar o racismo, denunciar o mito da democracia racial, expor a branquitude e seus privilégios, fazem com que o núcleo de Estudos em Gênero e Raça (Negra/Unesc) se empenhe nestes percursos formativos. Ainda partilho de outras leituras sobre esta experiência, a de que é normalizado em nossa sociedade, pessoas brancas não se verem enquanto racializadas, e a partir disso, percebemos que, não se é bem recebida no local em que você, enquanto pessoa | 221 | branca vai falar para outros brancos sobre violência racial, expor ao público que eles são racistas, e que nós somos racistas e que precisamos desconstruir isso. O fato dos professores do IFSC, muitos serem de outros estados brasileiros, fez com que falássemos para um público diversificado, não um público local. Apesar das configurações, a cidade de pessoas adeptas ao neonazismo, extrema direita, supremacia branca, com arquitetura eurocêntrica, germânica, o modo de tratar as pessoas, de acordo com o sobrenome, ou a aparência, ou seja, uma pessoa branca é tratada de certa forma, enquanto uma pessoa não branca tem tratamento diferente. Cabe destacar que o Estado de Santa Catarina historicamente tem um elevado número de células nazistas, que se multiplicaram, após os anos de governo Bolsonaro. Porém, esses fenômenos não são atuais, pois o estado de Santa Catarina, segundo os estudos de Adriana Abreu Magalhães Dias (2007), a forte presença desses grupos extremistas possui origens históricas, sociais e culturais e que enaltecem o pertencimento de sangue às origens alemãs ou mesmo europeias, ao passo que não se identificam como brasileiros (Dias, 2007, p.106). Essa ideia de pertencimento, que reforçam a perpetuação da suposta supremacia branca, um dos pilares da branquitude tematizada na formação que realizamos em Gaspar/SC. A antropóloga Adriana Dias, doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do tema, monitorou há 18 anos movimentos de células extremistas de direita no país. De acordo com ela, o estado tem atualmente 85 células neonazistas organizadas em ação. O estudo dela indicava que eram 69 — ou seja, houve um crescimento de 23% na quantidade desses grupos (Dias apud Welle, 2020, s/p). É neste sentido, que, falar de antirracismo no território catarinense, se transforma em um desafio maior do que ele é, | 222 | porém, por conta deste arquétipo da branquitude que duas mulheres brancas foram bem tratadas, mesmo falando sobre luta antirracista, o que, certamente, não aconteceria se fossemos mulheres negras, sem dúvidas, teríamos tido tratamento diferente tanto na chegada em Blumenau, assim como em Gaspar, na formação de professores. Eu, assim como a professora Tatiane somos mulheres brancas. A professora Tatiane não é vista como branca quando lida ou vista dentro de uma região como Blumenau, por exemplo. Uma das professoras do Instituto Federal, uma mulher negra, relatou que já sofreu racismo na instituição e, nos afirma a importância de nós brancos nos reconhecermos enquanto racializados e a importância da compreensão do racismo e da nossa atuação na luta antirracista, assumida enquanto uma responsabilidade, e que a violência racial, o preconceito, a discriminação afetam a todos, mas violenta, desumaniza, mata em grande proporção corpos negros. Ao passo que é abordado esse tema - para as pessoas brancas ouvirem – ao se depararem com outra pessoa branca falando de relações raciais, se colocando como aliada da luta antirracista, causa, a elas, estranheza, isso se dá, porque se colocam fora dessa questão. As pessoas se “chocam” no início, quando veem uma pessoa branca falar de relações raciais, sobre racismo, mas não se veem enquanto causadoras ou beneficiárias de uma sociedade estruturada pelo racismo, que violenta, exclui, extermina a população negra sistematicamente e que normalizam essas violências. Se fossemos duas mulheres, professoras negras, chegando naquele espaço e abordando um público branco, a recepção poderia ser outra, poderiam ser rotuladas de vitimismo ou sofrerem preconceito e discriminação. Conclui-se com este relato, que apesar da relativa boa receptividade, falar de antirracismo ainda é um tabu a ser | 223 | enfrentado, não somente na região, mas na sociabilidade capitalista racial brasileira. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018. BENTO, Maria Aparecida Silva. Branquitude: o lado oculto do discurso sobre o negro. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida (Org.). 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Famílias eram descritas como deterioradas (Collins, 2019, p. 291) pelo qual as mães “eram acusadas de não disciplinar seus filhos e as filhas, de castrar os filhos homens, de tornar suas filhas pouco femininas e de retardar as conquistas acadêmicas de filhos” (Collins, 2019, p. 291). Observou-se que as mães afro-americanas não faziam parte dos estudos, ou seja, eram acusadas, mas não eram ouvidas, gerando uma interpretação errônea. Especialmente na escrita dos homens negros, suas mães são contempladas e lembradas como donas de um amor condicional por um lado e por outro, como superfortes e guerreiras por enfrentar o racismo. Ao mesmo tempo, esses negros afirmaram permitir que suas esposas e namoradas fossem provedoras de seus lares mesmo com a família estando abaixo da linha da pobreza, por terem a ideia que este seria um modelo ideal vindo da cultura africana (Ladner, 1984, p. 24) – mais um motivo que leva a reflexão sobre o fato de as mães negras não serem realmente ouvidas –. Já na literatura das feministas brancas, as mulheres negras eram apenas apontadas como pessoas que limpavam as casas de outras pessoas, cuidavam dos idosos, crianças e dos doentes, onde os problemas enfrentados em suas sobrevivências são ignorados. A maternidade afro-americana vista de dentro para fora – pelo olhar das próprias mães negras – não condiz as condições vistas pelos escritores brancos e negros. Na verdade ela é um exemplo de resiliência provinda de uma união coletiva de mulheres negras, para fazer com que seus filhos sobrevivam ao ambiente racista e segregado, pós escravatura (Collins, 2019, p. 310). Por meio de uma pesquisa bibliográfica, este trabalho tem por objetivo apresentar os conceitos que fizeram Andrea O´Reilly (2021) acreditar que a condição cotidiana das mães racializadas pode nortear o Feminismo Matricêntrico1 para discernir a maternidade negra da maternidade patriarcal e questionar: “É possível um Feminismo Matricêntrico estritamente negro?” Após a parte introdutória, a primeira seção trará a historicidade das mulheres afro-americanas frente a maternidade, em sua segunda seção apresentará os principais conceitos da maternidade negra observados por Andrea O´Reilly (2021) e utilizados pelo Feminismo Matricêntrico, seguido pelas considerações finais. NEM GUERREIRAS NEM SUPERPODEROSAS: A RESISTÊNCIA DAS MÃES AFRO-AMERICANAS 1 Feminismo específico para mulheres mães (O´Reilly, 2016). | 226 | A precariedade social de moraria e qualidade de vida, a fome, violência, racismo e a conveniência de muitos genitores com os cuidados compulsivos e normativos feito por mães negras para com as crianças, frente a narrativa cultural da maternidade africana, no qual elas são provedoras, é a realidade de seus lares em uma sociedade matrifocal2. Sobre essa situação, Collins afirma: Em vez de compreender esses temas como “normativos” e, em seguida, avaliar se as afro-americanas estão a altura de certa perspectiva “essencialista” das mulheres negras, fazemos melhor uso deles se os enxergarmos como recursos resilientes e culturalmente específicos que podem ser constantemente remodelados em resposta a novos contextos. Assim como a cultura é dinâmica e se transforma, os temas que no longo prazo tem caracterizado o ponto de vista das mulheres negras são moldados pelo diálogo e pelas práticas sociais efetivas (COLLINS, 2019, p. 297). A coletividade na maternagem, feita por parentes ou vizinhas também negras, é uma dessas transformações trazidas por Collins (2019) em busca da garantia de sobrevivência. Nos Estados Unidos segregado, com poucas creches, baixa qualidade educacional em escolas públicas para negros, com o encarceramento de jovens e a adoção de crianças negras por parte do Estado, a enorme quantia de gravidez na adolescência – vinda muitas vezes da violência nos trabalhos como empregadas domésticas (Collins, 2019, p. 308) – fizeram as mulheres mães se utilizarem da ajuda de outras mulheres da também negras como 2 Nestas sociedades, independentemente do tipo particular de sistema de parentesco, as mulheres desempenham papéis de importância cultural e social e definem-se menos como esposas do que como mães. A matrifocalidade, no entanto, não se refere tanto à dominação materna doméstica, mas sim à dominação relativa. prestígio cultural da imagem da mãe, papel culturalmente elaborado e valorizado. As mães também são estruturalmente centrais na medida em que a mãe, enquanto estatuto, “tem algum grau de controlo sobre os recursos económicos da unidade de parentesco e está criticamente envolvida nos processos de tomada de decisão relacionados com os parentes”. Não é a ausência dos homens (os homens podem estar bastante presentes), mas a centralidade das mulheres como mães e irmãs que torna uma sociedade matrifocal (Johnson, 1988, p. 226) | 227 | cuidadoras de seus filhos e filhas para poderem trabalhar e sustentar suas casas. O trabalho fora do lar para a sobrevivência de suas famílias não foi um problema para as mulheres negras afroamericanas, primeiramente, porque já era uma cultura provinda da África, segundo, porque muitas delas, ao contrário das mulheres brancas, não tinham proteção de seus maridos e em terceiro, porque era um exemplo para ensinar suas filhas meninas a serem autossuficientes – o que fazia com que muitas vezes fossem consideradas mães rígidas, dominadoras e auto protetoras –. Segundo Collins “as mães afro-americanas enfatizam fortemente proteção, seja tentando blindar suas filhas das sanções ligadas ao seu status rebaixado, ensinando a elas habilidades para serem e autônomas e se protegerem” (Collins, 2019, p. 309). As mães de criação são um símbolo político nos Estados Unidos. Collins (2019, p. 318), afirma que nos bairros negros estadunidenses sempre houve as mães de criação e grande parte do status e respeito das mulheres negras vinham do trabalho de cuidado em comunidade. Apesar disso, a autora deixa claro que o próprio Feminismo Negro não deu a devida importância a essa coletividade materna, não diminuindo a importância do ativismo das mães de criação diante delas mesmas e da sociedade: Entretanto, as tradições das mães de criação da comunidade entre mulheres negras da classe trabalhadora ou pobres, tais quais as examinadas por Nancy Naples, ainda não foram devidamente enfatizadas pelo Feminismo Negro nos Estados Unidos. Essas mulheres, que merecem reconhecimento geralmente se tornam mãe de criação por uma confluência de circunstâncias atípicas e características individuais... Em contraste, sabemos que boa parte das mães de criação da comunidade simplesmente trabalham em prol da criação de seus filhos, das mulheres e dos homens sem reconhecimento público. Ainda que as iniciativas em favor das crianças negras sejam o principal catalisador de suas | 228 | ações, trabalhar em prol da comunidade significa abordar as questões multifacetadas que as caracterizam. Essas mulheres raramente são citadas em textos acadêmicos, mas todas sabem quem elas são nos bairros onde vivem (COLLINS, 2019, p. 318). Muitas adolescentes e negras não tinham o apoio de suas mães de sangue pois essas precisam trabalhar fora do lar e buscavam apoios em outras mães e mulheres da comunidade. Conscientes que isso era necessário para que elas pudessem dar melhores condições de vida aos filhos, a manter a maternagem coletiva se torna fonte de ativismo. A autora comenta que os “esforços das mulheres negras para proporcionar um suporte físico e psíquico aos filhos e afetam os estilos de maternagem e a intensidade emocional entre mães e filhas” (Collins, 2019, p. 311), sendo assim, as mães comunitárias – geralmente avós, bisavós, amigas ou vizinhas – possuiam responsabilidades que levavam ao desenvolvimento dessas comunidades, como por exemplo, participar da vida escolar das crianças, cuidarem da saúde, criarem programas de férias, as tornando líderes, gestoras e ativistas contra um ambiente racista. Outro exemplo são as professoras negras, que por meio da “maternagem da mente” (Collins, 2019, p. 317), oferecem um diálogo de amparo e confiança para seus alunos. Assim, a maternidade afro-americana é um símbolo de poder para as mães negras devido a ajuda mútua de outras mulheres negras – que deixavam seus interesses individuais para lutarem por uma vida digna para as crianças da comunidade – elas são responsáveis por vidas, pelo crescimento das crianças, tornando esse trabalho de cuidado um espaço político. Collins (2019, p. 321-322) apresenta o depoimento de uma mãe de criação que entrou na frente de revolver para defender seu filho na escola, dizendo que não sairia até a situação acalmar, concluindo que mais do que coragem, a maternidade coletiva | 229 | politizou as mulheres, levando-as a buscarem conhecimento. Logo, enquanto para as mulheres brancas a maternidade era sinônimo de tarefa doméstica, a negra esteve influenciando o Femismo Negro e o Matricêntrico. A PRESENÇA DA MATERNIDADE NEGRA NO FEMINISMO MATRICÊNTRICO O Feminismo Matricêntrico - que é específico para mulheres mães - cunhado por Andrea O´Reilly em 2016, tem como pressupostos principais a maternidade feminista3 e empoderada4, seguidas pelo combate a maternidade patriarcal5. O primeiro fato relevante sobre a influência da maternidade do Femismo Matricêntrico é o empoderamento gerado pela união das mulheres negras – mães e não mães – provindo da ajuda mútua ofertada na comunidade para a sobrevivência e vida digna das crianças. O´Reilly (2016) atribui essa resistência ao passado das africanas que vivenciaram uma cultura matrifocal, ou seja, na África Ocidental as mulheres se definiam mais como mães do que como esposas, o que gerou grande importância na estrutura central das famílias diante de seus filhos, nas tomadas de decisões, nas responsabilidades econômicas, morais e culturais. 3 4 5 A maternidade feminista pode se referir a qualquer prática de maternidade que busque desafiar e mudar vários aspectos da maternidade patriarcal que fazem com que a maternidade seja limitante ou opressiva para as mulheres (O´Reilly, 2016, p.155, tradução nossa). A maternidade empoderada, portanto, significa uma resistência geral à maternidade patriarcal; a maternidade feminista, no entanto, refere-se a um estilo particular de maternidade empoderada em que essa resistência é desenvolvida e expressa por meio de uma identificação ou consciência feminista (O´Reilly, 2016, p. 160, tradução nossa). A autora, conceitua a maternidade patriarcal, como um modelo que perdura na história e se tornou uma instituição opressora e prejudicial as mulheres mães, em que a maternidade é considerada uma responsabilidade natural da mulher, cabendo a criação dos filhos unicamente a mãe biológica, mas ela mesma “não tem o poder para determinar as condições sob as quais ela é mãe” (O´Reilly, 2016, p. 36, tradução nossa). | 230 | Para Jhonson, (1998, p.226) dentro da matrifocalidade, o patriarcado está presente na figura da esposa e não da mulher mãe. Já na maternidade patriarcal ela é validada pelo modelo ideal de maternagem e feminilidade, contrário do que as mães negras propuseram. Andrea cita Collins: Mães negras há muito tempo integram suas atividades como provedoras econômicas em seus relacionamentos maternais. Em contraste com o culto da verdadeira feminilidade, em que o trabalho é definido como oposto e incompatível com a maternidade, o trabalho para mulheres negras tem sido uma dimensão importante e valorizada das definições afrocêntricas da maternidade negra (O´REILLY, 2016, p.40, tradução nossa). Jhonson (1998, p. 184), sustenta seu pensamento a partir da afirmação de que mulheres aprendem a ser esposas submissas doravante a relação com seus pais. Os maridos ensinam, portanto, suas filhas serem secundárias diante de seus futuros maridos, pois mesmo ao tratarem como princesas no dia a dia, as recompensam por tudo quando elas somente os obedecem, tornando-as assim mulheres definidas e orientadas por homens. A autora denomina essa relação de “incesto psicológico” (Jhonson, 1998, p.173), assegurando que elas olham a figura da mãe como uma salvadora dessa realidade inferiorizada. Sendo assim, não existe uma ausência de homens nas sociedades matrifocais, mas uma perspectiva de direitos e deveres nas mulheres que estão além do suposto lado instintivo de serem mães, pelo qual o trabalho delas se torna a base econômica do sustento de seus filhos tornando a própria maternagem e a função de esposa secundárias em suas vidas. Por meio de Joyce Ladner, O´Reilly (2016) aponta a maternidade como um momento divisório entre ser filha e assim cultuar a valorização da feminilidade ou convencionalismo e por outro lado ser mãe, assumindo um papel economicamente produtivo: | 231 | Se havia um padrão comum para se tornar uma mulher que era aceito pela maioria das pessoas da comunidade, era o momento em que as meninas deram à luz seu primeiro filho. Essa linha de demarcação era extremamente clara e separava as meninas das mulheres (O´REILLY, 2016, p.40, tradução nossa). A partir das autoras alguns questionamentos podem ser levantados: Como as mães se ocupam da maternagem ao mesmo tempo que são responsáveis pelo sustendo de seus filhos? Caso contrário, quem se ocupa dos cuidados dos filhos enquanto elas trabalham fora de casa? O que Patrícia Hill Collins (2019) denomina de maternidade das mães de criação (Collins, 2019, p.315), Stanlie James (1999) define utilizando os termos Othermothering e Community Mothering, ou seja, outras mães e mães da comunidade: “othermothering” como “aceitação da responsabilidade por uma criança que não é sua, em um acordo que pode ou não ser formal.” Outras mães geralmente cuidam das crianças, enquanto as “mães da comunidade”, como explica Njoki Nathani Wane, “cuidam da comunidade [por] mulheres [que] normalmente já passaram da idade fértil’. O papel das mães da comunidade, como observa Arlene Edwards, “muitas vezes evoluiu de ser outras mães”. James argumenta que othermothering e maternidade comunitária se desenvolveram a partir, nas palavras de Arlene Edwards, práticas da África Ocidental de estilos de vida comunitários e interdependência das comunidades (O´REILLY, 2016, p.83, tradução nossa). Na África Ocidental, o vínculo mãe e filho é valorizado pois a figura materna é sinônimo de sustento e empoderamento, enquanto os cuidados das crianças são de responsabilidade coletiva por meio da maternagem centrada em mulheres mais velhas, tornando todas elas intrínsecas para o desenvolvimento das famílias. Essa cultura que reflete na maternidade afroamericana, primeiramente nas mulheres escravizadas e | 232 | posteriormente, no que O´Reilly denomina de maternidade étnica racial. Nesse sentido, Patrícia Hill Collins (in O´Reilly, 2016, p. 76), explica que para as mulheres africanas a maternidade não é um problema como para as mulheres brancas em relação ao trabalho de cuidado. Ao observar a maternidade afro-americana, Collins traz o racismo, a falta de estudos e de empregos, inicialmente como grandes problemas para as mulheres negras, maior do que a maternidade em si, justamente pela cultura matrifocal vinda de seus antepassados africanos. Sem contar que “sobreviver em um mundo racista; dar a essas crianças sua história e identidade racial-cultural; e praticar o ativismo social e a maternidade comunitária em prol de todas as crianças da comunidade” (O´Reilly, 2016, p. 80, tradução nossa), era o foco das mulheres mães afro-americanas. A maternidade se tornou uma das bases do feminismo negro, a princípio, a partir do momento em que sua presença na educação de seus filhos foi um motivo para luta e resistência, pois enquanto nas mães brancas se preocupavam em passar maior quantia de tempo próximas aos seus filhos para resgatar o máximo a ideia de feminilidade possível, as afro-americanas precisavam nutrir e preservar o seus, diferenciando-as da maternidade americana que era considerada a cultura dominante: Collins identifica as metas das mães “raciais étnicas” como as seguintes: manter os filhos nascidos de você; apoiar a sobrevivência física dessas crianças; ensinar a resistência infantil e como sobreviver em um mundo racista; dar a essas crianças sua história e identidade racial-cultural; e praticar o ativismo social e a maternidade comunitária em prol de todas as crianças da comunidade. A escrita feminista branca tradicionalmente se preocupou com a perda da identidade feminina na maternidade e argumentou que somente garantindo um tempo longe dos filhos e criando uma vida fora da maternidade, as mulheres serão capazes de manter uma identidade autônoma separada da mãe. Contra o que | 233 | as mães étnicas raciais lutam, em contraste, não é muito tempo com seus filhos, mas muito pouco (O´REILLY, 2016, p.80, tradução nossa). A maternidade negra é essencial as crianças afroamericanas. De acordo com Sara Rudick o fato de as mães afroamericanas considerar a sobrevivência e nutrição dos filhos algo primordial é chamado “amor preservador” (2009, p.80), no qual, por meio do trabalho fora e dentro do lar - intitulado pela mesma autora como trabalho de cuidado - elas garantem abrigo e comida em lugares vulneráveis, preservando a vida das crianças de etnia racial “desprezadas há muito tempo, logo, ser mãe para muitas mulheres negras, principalmente entre as pobres, é garantir a sobrevivência física de seus filhos e da comunidade negra em geral” (O´Reilly, 2016, p. 80, tradução nossa). Assim, a maternidade afro-americana não é considerada patriarcal: “em contraste, o trabalho materno confere autoridade e centralidade às mães afro-americanas; as mulheres nesta cultura são empoderadas precisamente porque são mães” (O´Reilly, 2016, p.8, tradução nossa), logo, a reafirmação das crenças culturais da maternidade negra e sua rearticulação em um ambiente racista rumo a um lar seguro é um ato de resistência: Em uma cultura racista que considera as crianças negras inferiores, indignas e não amáveis, dar amor materno às crianças negras é um ato de resistência; ao amar seus filhos, a mãe instila neles um senso de amor-próprio e uma autoestima elevada, o que lhes permite desafiar e subverter discursos racistas que naturalizam a inferioridade racial e mercantilizam o negro como “outro” e objeto. Os afroamericanos, enfatiza hooks, “há muito tempo reconhecem o valor subversivo do lar e o lar sempre foi central para a luta de libertação” (O´REILLY, 2016, p. 90, tradução nossa). Carol Stack (1974, p.124), aponta a presença da maternidade no feminismo negro também por meio dessa rede de apoio como uma estratégia de sobrevivência crucial, pois ela | 234 | foi também um mecanismo de sustentação cultural e de empoderamento diante do divórcio, da violência doméstica e de futuros casamentos que colocassem em risco a autoridade familiar das mulheres: Famílias negras em The Flats [área não revelada do centro da cidade nos EUA] e os não parentes que eles consideram parentes, escreve Stack em sua conclusão, evoluíram padrões de co-residência, redes de troca baseadas em parentesco ligando múltiplas unidades familiares elásticas, vínculos vitalícios com famílias de três gerações, controles sociais contra a formação de casamentos que poderiam pôr em perigo a rede de parentesco, a autoridade doméstica das mulheres e limitações no papel do marido ou amigo masculino dentro da rede de parentesco de uma mulher (O´REILLY, 2016, p.87, tradução nossa). Enquanto o Feminismo Branco lutava pela conquista do espaço público e pelo trabalho fora do lar, as mulheres negras já trabalham mesmo em profissões desvalorizadas para sustentar seus filhos, com a ajuda da prática do othermothering ou maternidade comunitária que segundo Stanlie James foi “como um importante elo feminista negro para o desenvolvimento de novos modelos de transformação social” (James, 1999, p. 45). A resistência da maternidade africana reflete na afroamericana para além da nutrição e sobrevivência das crianças. A prática da maternagem comunitária foi essencial para as mães negras americanas como um ativismo social. Nem sempre as mães afro-americanas podiam contar com creches, avós e bisavós para cuidarem de seus filhos e mesmo assim obtinham ajuda de vizinhas ou outras mulheres próximas que asseguravam a responsabilidade do trabalho de cuidado, garantindo as crianças a identidade étnica e emocional da cultura africana, endossando a importância da coletividade para sobrevivência, tornando assim possível haver um Feminismo Matricêntrico especificamente negro. | 235 | CONCLUSÃO “Mais do que um ato pessoal, a maternidade negra é muito política”, descreve Jessé Bernard (1983, p. 47), ao considerar que a educação, o amor condicional, a socialização dos valores de coletividade e sobretudo o reconhecimento da importância de ter um lar, eram conquistas provindas do ato de ser mães. Pode-se considerar que o maternalismo das mulheres mães étnicas racializadas influencia o Feminismo Matricêntrico no empoderamento das mães e na força da coletividade, no qual o trabalho materno das chamadas mães de criação, aptas a lutar a favor de suas emancipações e visibilidades e sobretudo contra as condições de subordinadas da sociedade, trouxe ativismo e reconhecimento ao menos por parte dos filhos e filhas. Este estudo, após sua parte introdutória, apresentou por meio de uma pesquisa bibliográfica a historicidade da maternidade afro-americana em sua primeira seção, seguida pela influência da maternagem coletiva das outras mães ou mães de criação no Feminismo Matricêntrico em uma terceira, seguida pelas considerações finais. Através dos estudos apresentados pelo livro Feminismo Matricêntrico, Teoria, Ativismo e Prática da professora canadense de estudos maternos Andrea O´Reilly, publicado em 2016, este trabalho propôs a análise da presença da maternidade em um contexto histórico de mulheres afro-americanas para pensarem um Feminismo Matricêntrico Negro por meio do empoderamento vindo do trabalho fora do lar e do trabalho de cuidado com seus filhos - com rede de apoio de avós, bisavós e vizinhas - concluindo que a cultura herdada do maternalismo negro africano não faz parte da maternidade patriarcal em que as mães brancas estão inseridas, justificada pelo esforço da | 236 | conciliação do trabalho exterior ao lar com o pouco de tempo de amor dedicado filhos no interior dele, juntamente a ajuda das mães de criação, se tornou uma forma de resistência para a sobrevivência das mães e crianças em um ambiente racista e machista. REFERÊNCIAS BERNARD, Jessé. “Carta para sua filha.” Entre nós mesmos: cartas entre mães e filhas, editado por Karen Payne, Houghton Mifflin Company, 1983. COLLINS, Patrícia H. Pensamento Feminista Negro: Conhecimento, Consciência e Política de Empoderamento. Routledge, 2019. DOUGLAS, Susan J. MICHAELS, Meredith. O mito da mamãe: a idealização da maternidade e como ela prejudicou as mulheres. Imprensa Livre, 2004. LADNER, Joyce. Amanhã é amanhã: a mulher negra. Doubleday, 1971. JAMES, Stanlie M. Maternidade: uma possível ligação feminista negra com a transformação social. Teorizando o Feminismo Negro, o Pragmatismo Visionário das Mulheres Negras, editado por Stanlie James e AP Busia, Routledge, 1999. JOHNSON, Míriam. Mães fortes, esposas fracas: a busca pela igualdade de gênero. Imprensa da Universidade da Califórnia, 1988. O´REILLY, Andrea. Feminismo Matricêntrico: Teoria, Prática e Ativismo. Toronto: Canada. Editora Deméter. 1ª ed. Vol 1. 2016. O´REILLY, Andrea. Feminismo Matricêntrico: Teoria, Prática e Ativismo. Toronto: Canada. Editora Deméter. 2ª ed. Vol 1. 2021. RUDDICK, Sara. Pensamento Materno: Rumo a uma Política de Paz. Imprensa Farol, 1989. STACK, Carol B. Todos os nossos parentes: estratégias para sobrevivência em uma comunidade negra. Harper & Row, 1974. | 237 | SOBRE OS ORGANIZADORES Felipe de Araújo Chersoni é Doutorando em Ciências Criminais pela Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Bolsista integral do Programa de Suporte à PósGraduação de Instituições de Ensino Comunitárias (PROSUCCapes). Mestre em Direito na linha de Direitos Humanos pela Universidade (comunitária) do Extremo Sul Catarinense (PPGD-Unesc); onde, também, foi bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Comunitárias (PROSUC-Capes). É pesquisador vinculado ao Grupo Pensamento Jurídico Crítico Latino-Americano, na qual se subdivide no grupo de Criminologia Crítica Latino-Americana - Andradiano (Unesc); membro pesquisador CNPq no núcleo de Estudos em Gênero e Raça - Negra (Unesc); membro do GT de Criminologia e Movimentos Sociais - Instituto de Pesquisa em Direito e Movimentos Sociais (IPDMS). Pesquisa e escreve sobre Violência de Estado. E-mail: Felipe_chersoni@hotmail.com Miguel Melo Ifadireó é Pós-doutorando em Educação pela Programa de PósGraduação em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (PPGE/ UFC). Pós-doutorando em Educação pela Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Iberoamericana do Paraguay (UIA/PY). Possui Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Pernambuco (2017). Possui Mestrado em Criminologia e Direito Internacional e Europeu pela Universität Hamburgo/ Alemanha (2001). Foi bolsista durante o Mestrado em Criminologia Internacional e Européia pela Heinrich Boell Stiftung/ Alemanha (2001-2003). Possui Mestrado em Educação Intercultural e Inclusiva pela Universität Hamburgo/ Alemanha (2005). Possui Graduação-Bacharelado em Direito pela Universidade de Fortaleza (1997) e possui Graduação-licenciatura em Pedagogia pela Faculdade Kurios do Ceará (2015). Professor Adjunto dos Colegiados dos Cursos de Administração e Logística da Universidade do Estado de Pernambuco (UPE). Professor Efetivo do Programa de Mestrado Profissional em Ensino em Saúde do Centro Universitário Doutor Leão Sampaio (MePESa/ UNILEÃO). Professor Horista do colegiado do Curso de Direito do Centro Universitário Doutor Leão Sampaio (UNILEÃO). Membro do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Centro Universitário Dr. Leão Sampaio (CEP/UNILEÃO). Advogado inscrito na OAB/CE. Pesquisador-coordenador do GT 2: NBUNTU DECOLONIALIDADE, PENSAMENTO AFRODIASPÓRICO E RELIGIOSIDADES HEGEMÔNICAS do GPENSE! (Grupo de Pesquisa sobre Contemporaneidade, Subjetividades e Novas Epistemologias) da Universidade do Estado de Pernambuco, Pesquisador do Grupo de Estudos em Curriculo e Formação Profissional do Mestrado Profissional em Ensino em Saúde do Centro Universitário Doutor Leão Sampaio (MePESa/ UNILEÃO). | 239 | SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES Aila Fernanda dos Santos Graduada en Trabajo Social, Máster en Trabajo Social y Políticas Sociales por la Universidad Federal de São Paulo (Unifesp) y doctoranda en Trabajo Social por la Pontificia Universidad Católica de São Paulo (PUC-SP). E-mail: ailaservsocial@gmail.com. Lattes: https://lattes.cnpq.br/3388450573918701 Airton Santos de Souza Junior Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Acre. E-mail: airton.junior@sou.ufac.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5162517831093216 Ana Lucia Westrup Graduada em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Advogada. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa NUPEC (UNESC). E-mail: analuciawestrup@gmail.com. Lattes: https://lattes.cnpq.br/5144073736246811. Ana Karina Licodiedoff Baethgen Advogada inscrita na OAB/RS. Graduada em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). É pesquisadora vinculada ao Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania (NUPEC) da Universidade do Extremo Sul Catarinense. É membro do Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais (IPDMS). Atuou entre os anos de 2019 e 2021 como assistente jurídica e atualmente atua como advogada voluntária no Grupo de Assistência Jurídica e Psicossocial à Juventude Criminalizada (G10), no âmbito do SAJU/UFRGS. E-mail: anabaethgen@gmail.com Cristiane Westrup Mestra em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Bacharel em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Graduada em Administração pela Escola Superior de Criciúma (ESUCRI). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa: Núcleo de Estudos em Gênero e Raça (NEGRA/UNESC). Email: cristiane.wp79@gmail.com. Lattes: iD http://lattes.cnpq.br/4903334971261396. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9652-0649. Débora Ferrazzo Docente no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/UNESC). Doutora em Direito (2019) pela Universidade Federal do Paraná. Mestra em Teoria, Filosofia e História do Direito (2015) pelo Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Graduada em Direito (2011) pela Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB). Advogada. Pesquisadora no Núcleo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania (NUPEC). Pós-Doutorado em Direito pela Universidade LaSalle, com a pesquisa: Direitos dos animais e direitos da natureza: a dignidade da pessoa não humana como fundamento de novos paradigmas jurídicos. Henrique Cunha Júnior Pós-doutorado em Engenharia - Universidade Técnica de Berlin - Bolsista DAAD - do governo Alemão (1985). Livre Docente da Universidade de São Paulo com Título de Pós-doutoramento com tese e concurso público (1993). Doutor pelo Instituto Politécnico de Lorraine - Nancy - França (1983). Mestre em História (DEA) pela Faculdade de Letras de Nancy- França (1981). Professor Titular da Universidade Federal do Ceará (1994). Professor da Universidade de São Paulo (19841994). Pesquisador Sênior e Chefe de Departamento - Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo - IPT (1987- 1995). Professor Titular da Universidade Federal do Ceará (1994- 2020). Professor Visitante da Universidade Federal da Bahia (2020). E-mail: hcunha@ufc.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9664-5545 | 241 | Felipe Alves Goulart Mestre em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense. Especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera-Uniderp (2013). Graduado pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (2011). Felipe de Araújo Chersoni Doutorando em Ciências Criminais pela Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS). Bolsista integral do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Comunitárias (PROSUC-Capes). Mestre em Direito na linha de Direitos Humanos pela Universidade (comunitária) do Extremo Sul Catarinense (PPGD-Unesc); onde, também, foi bolsista integral do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Comunitárias (PROSUC-Capes). É pesquisador vinculado ao Grupo Pensamento Jurídico Crítico Latino-Americano, na qual se subdivide no grupo de Criminologia Crítica Latino-Americana Andradiano (Unesc); membro pesquisador CNPq no núcleo de Estudos em Gênero e Raça - Negra (Unesc); membro do GT de Criminologia e Movimentos Sociais - Instituto de Pesquisa em Direito e Movimentos Sociais (IPDMS). Pesquisa e escreve sobre Violência de Estado. E-mail: felipe_chersoni@hotmail.com Jackson da Silva Leal Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo-Sul Catarinense (PPGD-UNESC), Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), professor de Criminologia (UNESC), coordenador do Grupo Criminologia Critica Latino-americana (UNESC), e co-líder do Grupo Pensamento Jurídico Critico Latino-Americano (UNESC), membro da rede de pesquisa Grupo Brasileiro de Criminologia Critica; desenvolve pesquisas e projetos tanto em nível de graduação quanto pósgraduação acerca da questão criminal com foco na realidade latinoamericana transitando por áreas como Direitos Humanos na interface com a questão Criminal. | 242 | Flavio Bortolozzi Junior Doutorado em Direito pela Universidade Federal do Parana. (2018) Professor tempo integral e integrante do NDE da Escola de Direito da Universidade Positivo. Lorenna Verally Rodrigues dos Santos Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Direito UNICAP. Membro do GEA - Grupo de Estudos Avançados do IBCCRIM/ AL (2023-2024). Ex-Presidente da Associação dos Pós Graduandos e Pós Graduandas da Universidade Católica de Pernambuco APG-UNICAP (2023). Aluna Especial do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do PPGS- UFPE (2022.2). ExRepresentante Estudantil das Turmas de Mestrado do PPGD- UNICAP (2021-2022). Pesquisadora e monitora do LabICPP - Laboratório de Estudos e Práticas de Revisão Criminal (2020). Participante do Grupo de Extensão Universitária de Tópicos em Direitos Humanos - UNICAP (2019). Pós-Graduada em Direito Processual Civil pela ESA/PE (20172019). Aluna Especial do Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da UFPE (2017). Graduada em Direito pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca- UNIFAVIP/DeVry (2016). Pesquisadora Voluntária do Grupo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares sobre Direitos Humanos - GEPIDH-Mércia Albuquerque/UNIFAVIP (2015-2016). Extensionista do projeto ASSOCIA - Existir, Educar e Participar (2015-2016). Possui interesse nas áreas de Estudos Empíricos em Direitos Fundamentais, Direito Internacional, Migrações, Cárcere, e, Criminologia. Marcia Leopoldino do Carmo de Melo Possui graduação em Direito pelo Centro de Ensino Superior de Maringá (2013). Pós-Graduada em Direito Processual Moderno PósGraduação Lato Sensu pela Universidade Anhanguera (UNDERP); Mentora com Formação pela Fundação Getulio Vargas (FGV); Conciliadora com Formação no Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal; Militante como Conciliadora na 6 Vara da | 243 | Justiça Federal de Maringá-PR. Tem interesses em temas envolvendo Direitos Humanos, Fundamentais e da personalidade. Marcelo Negri Soares Orientador de Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado. Advogado e contabilista. Pesquisador ICETI, Next Seti e FAPESP. Editor da Springer Journal para E-Law, renomada revista europeia (2019). Editor da Revista Brasileira de Direito da Personalidade. Professor Visitante Coventry University (UK), no PPG em Direito, Administração e Negócios (2019). Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito UniCesumar, na linha Efetividade da Justiça e Direitos da Personalidade. Avaliador presencial de seminários SIAC/UFRJ (desde 2018). Avaliador Presencial de Pôsteres Conpedi (desde 2010). Pós-Doutorado pela Universidade de Coimbra-Portugal (2022/2023). Pós-Doutorado pela Uninove/SP (2017). Doutor (2013) e Mestre (2005) pela PUC/SP. Graduação em Direito UEM(1997), em PD Unicesumar (1991 - incompleto). Especialista em Direito pela UNIP (1998), Mackenzie (2006), Escola Federal de Direito (2008), Unicesumar (2019). Contabilista IEEM (1989). Funcionário do Banco do Brasil S.A. por mais de 20 (vinte) anos (última função: advogado pleno). Assessor da PGFN (1997/1998). Membro efetivo IBDC (2001), IBCJ (2003), Presidente no IBREI/SP (2016). Membro do Conselho do CBDI (2019). Parecerista FAPESP (2014). Coordenador da CAPES/BNI - Enade 2015. Extensão universitária em Harvard, Berckeley e MIT, nos Estados Unidos da América. Foi professor de Direito UNINOVE, UNIP, PUCRIO e Faculdade de Direito (UFRJ). Palestrante em eventos nacionais e internacionais. Atuação como diretor jurídico-empresarial: PROCESSUAL, AMBIENTAL, EMPRESARIAL, CONTRATUAL, BANCÁRIO, TRABALHO, TRIBUTÁRIO E CIVIL. E-mail: negri@negrisoares.page Matheus Ferrari França Carreira Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Graduado em Direito pela Unicesumar (2018). | 244 | Miguel Melo Ifadireó Pós-doutorando em Educação Brasileira pela Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC); Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Pernambuco (2017). Mestrado em Criminologia e Direito Internacional e Europeu pela Universität Hamburgo/ Alemanha (2001). Mestrado em Educação Intercultural e Inclusiva pela Universität Hamburgo/ Alemanha (2005). Graduação-Bacharelado em Direito pela Universidade de Fortaleza (1997). Graduação-licenciatura em Pedagogia pela Faculdade Kurios do Ceará (2015). Professor Adjunto do Colegiado do Curso de Administração da Universidade do Estado de Pernambuco (UPE). Professor Efetivo do Programa de Mestrado Profissional em Ensino em Saúde do Centro Universitário Doutor Leão Sampaio (MePESa/ UNILEÃO). Bolsista da Heinrich Boll Stiftung/ Alemanha (1999-2001). Pesquisador-coordenador do GT 2: Nbuntu? Decolonialidade, Pensamento Afrodiaspórico E Religiosidades Hegemônicas do GPENSE! da Universidade do Estado de Pernambuco. Pesquisador do GT Pesquisa Currículo e Formação Profissional do Mestrado Profissional em Ensino em Saúde do Centro Universitário Doutor Leão Sampaio (MePESA/UNILEÃO). E-mail: Miguel.ifadireo@upe.br. Orcid.: https://orcid.org/0000-0002-4497-4718. Nayara Augusto Felizardo Possui licenciatura plena em História pela Universidade Estadual do Paraná, campus Paranavaí (2010) e licenciatura plena em Filosofia pela Universidade da Bahia (2018). Docente na Secretaria Estadual de Educação do Paraná. Membra do grupo de Pesquisa Gênero, Trabalho e Políticas Públicas (GTPP/CNPq), da Universidade Estadual do Paraná e do Laboratório de estudos do Tempo Presente da Universidade Estadual de Maringá (LabTempo/CNPq). Mestranda em História Política (PPH/UEM) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Thayline de Freitas Bernardelli Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá. Mestranda em História na linha de pesquisa "História Política" na | 245 | Universidade Estadual de Maringá. Integrante do Grupo de Pesquisa sobre História Política e Direitos Humanos (UEM). Atuou no Programa de Iniciação Científica (PIC) entre 2020 e 2023 com dois projetos: As representações do feminismo na heroína Capitã Marvel: uma análise filmográfica do protagonismo feminino no Marvel Cinematic Universe (MCU) e; A representação feminina no filme Capitã Marvel (2019): um estudo de caso a partir da pesquisa de opinião. | 246 | | 247 |