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A ISSN 2358-6060 DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 A rteda revista P Q F OR UE A Cen AZEMOS P ERFORMANCE E ATIVISMO FEMINISTA? “¿Por Qué Hacemos Performance y Activismo Feminista?” Stela Fischer* Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas Universidade de São Paulo RESUMO: O texto identifica e analisa duas ações cênicas ativistas do Coletivo Rubro Obsceno: Eu abortei (2014) e O que te prende, mulher? (2014-2016), ambas apresentadas como intervenção urbana na cidade de São Paulo. Considerando a análise e cartografia dessas ações - que lançam posicionamentos políticos na construção de poéticas cênicas, e cujas premissas giram em torno de visibilizar as subjetividades das mulheres -, enfatizo a importância da reflexão crítica a partir do próprio fazer artístico. Compartilho a experiência de atuação enquanto artista das artes cênicas e, acima de tudo, identifico os motivos pelos quais ainda se faz necessário promover ativismos feministas. Palavras-chave: Ativismo feminista; performance feminista; teatro de mulheres. RESUMEN: El texto identifica y analiza dos acciones escénicas y activistas del Colectivo Rubro Obsceno: Eu abortei (2014) y O que te prende, mulher? (20142016), ambas presentadas como intervención urbana en la ciudad de São Paulo (Brasil). Teniendo en cuenta el análisis y cartografía de estas acciones - que lanzan posiciones políticas en construcciones poéticas escénicas, y cuyas premisas giran en torno a visualizar las subjetividades de las mujeres - enfatizo la importancia de la reflexión crítica a partir del propio hacer artístico. Comparto la experiencia de trabajo como artista de las artes escénicas y, sobre todo, identifico las razones por las que todavía es necesario promover el activismo feminista. Palavras-clave: activismo feminista; performance feminista; teatro de mujeres. Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 8 A DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 A rteda revista Cen A ISSN 2358-6060 Há alguns anos venho me dedicando ao no Brasil como em diversos países nos quais a ativismo artístico, em especial às ações cênicas discriminação e a violência contra mulheres se- que são ao mesmo tempo poéticas, estéticas e guem culturalmente arraigadas. Reivindicações políticas, que tratam dos direitos das mulheres e são constantemente “re-historicizadas”, tais como das minorias políticas. Não faz sentido para mim a autonomia em relação ao corpo e à sexualidade; realizar uma arte que não esteja vinculada às de- a descriminalização e legalização do aborto; o mandas do meu entorno social. E a realidade do enfrentamento à violência e à cultura do estupro; Brasil – assim como a maioria dos países da Amé- a equidade salarial; a maior representatividade rica Latina - é ainda hostil em relação às mulheres das mulheres em cargos políticos e institucionais; e demais grupos invisibilizados, sobre os quais as desigualdades sociais envolvendo conflitos de perpetuam-se os discursos e articulações políticas classe e raça; enfim, todas as pautas urgentes, em que naturalizam a violência e precariedade dos especial no nosso contexto latino-americano. modos de existir. Ainda mais em tempos como Hoje, no entanto, estas reivindicações são am- este que vivemos. Tempos de governo ilegítimo pliadas e entrelaçadas a outras questões sociais e no Brasil, no qual pode-se antever tentativas de políticas, envolvendo as multiplicidades identitá- recrudescimento dos dispositivos de controle rias e subjetivas inter-relacionais2. Os desafios dos biopolíticos e de subjetividades, escamoteados feminismos e suas lutas são contínuos e devemos nas medidas de corte dos gastos públicos1 que ainda desestabilizar os binarismos, bem como reforçam os padrões da heteronormatividade “[...] formular novas constelações para pensar a patriarcal, machista, racista, capitalista, cristã e normatividade, se quisermos proceder de ma- homofóbica. Tempos nos quais se faz necessário neiras intelectualmente abertas e compreensivas resistir. a fim de compreender e avaliar o mundo em que vivemos” (BUTLER, 2015b, p. 207). É no ativismo artístico que desenvolvo a minha resistência. Posiciono-me enfaticamente E é, também, na intersecção de trânsitos a partir do lugar de ativista feminista. Eu não possíveis entre as atuais teorias feministas, a refuto essa denominação. Inúmeras são as ques- criação artística e o ativismo, entre a performance tões pendentes e perpetradas que reeditam as e o teatro, que me interessa fazer uma arte feita temáticas clássicas dos feminismos levantadas de fissuras e aporias. Trata-se de convocar as por Simone de Beauvoir no livro O segundo sexo, identidades marginalizadas de diversas mulheres publicado em 1949, e que ainda são atuais tanto para tomar o centro das discussões sob os vieses Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 9 A DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 A rteda revista Cen A ISSN 2358-6060 político, ético e poético. Demarcar articulações Paulo em 2015, e do X Encuentro do Hemispheric do pensamento decolonial a partir das políticas Institute of Performance and Politics, em Santiago do corpo e das artes como espaço de experimen- do Chile, julho de 2016. Em sua trajetória, o Rubro tação identitária em que as diferenças são aceitas, Obsceno realiza projetos artísticos sociais sob a estimuladas, e as relações de poder e opressão são perspectiva de um teatro voltado ao empodera- denunciadas. mento de diferentes grupos de mulheres, como: mulheres soropositivas (Projeto ++Mulheres, em Desenvolvo um trabalho junto ao Coleti- parceria com a ONG Ecos Comunicação e Se- vo Rubro Obsceno, agrupamento teatral criado xualidade, 2010-2013), mulheres em situação de em 2013 na cidade de São Paulo, a partir dos violência (parceria com o Centro de Referência encontros do The Magdalena Project no Brasil3. da Mulher – Casa Eliane de Grammont, 2015), Composto exclusivamente por mulheres artis- mulheres com mais de 60 anos (Projeto [des]ve- tas da performance, da dança e do teatro tem lhecer, SESC Santana, 2016), e, mais recentemente, a finalidade de tratar as questões sobre a legi- mulheres em situação de cárcere (Projeto Mulheres timação de direitos das mulheres no contexto Possíveis, junto ao Coletivo Teatro Dodecafônico, social brasileiro. Juntas promovemos grupos de 2016/2017). estudos sobre a mulher na contemporaneidade, abordando textos de Gayatri Spivak e Paul Beatriz Para uma melhor compreensão sobre os Preciado etc.; workshops com artistas convidadas; motivos pelos quais o Rubro Obsceno desenvol- festivais, como a Mostra ObsCENAs: encontro de ve trabalhos ativistas e artísticos “afetados” pela mulheres artistas, que teve sua primeira edição realidade das mulheres brasileiras, apresento a em novembro de 2014 e contou com a presença seguir duas ações do coletivo que foram realizadas de Julia Varley, atriz do Odin Teatret e fundadora como intervenção artística urbana na cidade de do The Magdalena Project; e criações artísticas. São Paulo. Por exemplo, estivemos em parceria com a performer mexicana, na criação da performance “Para A primeira é o solo Eu abortei (2014). É aquelas que não mais estão”, memorial às vítimas uma ação-protesto ante os meios de controle de feminicídio na América Latina e, também, sobre o corpo das mulheres brasileiras e da sua denúncia poético-cênica da violência contra as sexualidade. Vale sempre lembrar e insistir que a mulheres. A performance participou da II Bienal proibição ao aborto “retira às mulheres o domí- Internacional de Teatro da Universidade de São nio sobre seu corpo, restringindo também seu Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 10 A A rteda revista Cen DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 A ISSN 2358-6060 direito à privacidade na decisão sobre questões de do aborto. No nosso Legislativo essa perspectiva forte relevância ética e moral para os indivíduos” torna-se cada vez mais combatida. Isso se deve (BIROLI & MIGUEL, 2014, p. 44). Mesmo sem muito a certa bancada composta de deputados números oficiais, milhares de mulheres morrem e senadores fundamentalistas que obstrui os anualmente no Brasil por fazer abortos clandes- “direitos individuais das mulheres, compromete tinos; outras sofrem discriminações e violência a laicidade do Estado e, com isso, a cidadania e a por não ter atendimento legal no sistema de construção de uma sociedade plural e democrá- saúde público ao darem entrada em hospitais em tica” (BIROLI& MIGUEL, 2014, p. 126). Vide as situação de abortamento4. adesões e tentativas de aprovação de inúmeros projetos de lei, como o Estatuto do Nascituro (PL Como consequência, as mulheres convivem 487/07), que prevê que o aborto seja proibido em com uma prática silenciosa, seguida de culpabili- qualquer circunstância, atribuindo ao embrião o zação, humilhação, isolamento, riscos de saúde e status jurídico e moral de pessoa nascida e viva; morte, porque o aborto é uma prática usual entre o seu desdobramento na “bolsa estupro”5, assis- as mulheres. Pesquisas recentes apontam que uma tência financeira para a gestante que tenham sido em cada quatro mulheres já praticou aborto no vítima de estupro; e o PL 5069/20136, que restringe Brasil (GODINHO & VENTURI, 2013, p. 195). o atendimento pelo Sistema Único de Saúde às O Código Penal Brasileiro prevê a prisão de um vítimas de violência sexual. Estas só poderão a três anos para a mulher que abortar intencio- receber atendimento hospitalar após registro de nalmente. Apenas em três casos a interrupção é queixa na polícia e exame de corpo de delito pelo legalmente permitida no Brasil: quando a gesta- Instituto Médico Legal. Além disso, o projeto pede ção oferecer risco de morte para mãe; quando a o aumento de pena para profissionais da saúde que gravidez decorre de um estupro; e quando o feto é praticarem o aborto e restringe a distribuição das anencéfalo. E há articulações políticas envolvendo chamadas “pílulas do dia seguinte”. Operações de governantes – muitos filiados a partidos que têm poder como estes PLs são aqui destacadas para vínculos com o fundamentalismo cristão – que enfatizar que a falta de laicidade real do Estado querem violar, inclusive, os direitos das mulheres, legitima a violência contra as mulheres. E essas constitucionalmente assegurados pelo Artigo 128 medidas ilustram bem o quanto a sexualidade e do Código Penal. Ou seja, vivemos momentos de as mulheres brasileiras têm sido cada vez mais anacronismos em relação aos direitos das mulhe- vigiadas e a discussão sobre a legalização do res e à pauta da descriminalização e legalização aborto, sem dúvidas, está blindada no nosso atual Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 11 A DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 A rteda revista Cen Congresso Nacional. FIGURA 1. Stela Fischer em Eu abortei. São Paulo, setembro de 2014. Foto: divulgação A decisão pelo aborto não é fácil. Gera an- A ISSN 2358-6060 partir de algumas orientações/instruções de uso que estão escritas num cartaz: “1. Pegue uma pedra; 2. Julgue; 3. Atire”. O público tem a opção de atirar a pedra em mim ou de se deixar carimbar. São inúmeras as reações: abraços apertados, choros contidos, gritos de apoio, compartilhamento de experiências traumáticas. Mas, em geral, há uma comoção no instante em que me deixam imprimir em seus corpos algo que já está para sempre marcado: o aborto é uma marca na vida de uma pessoa - tanto para as mulheres quanto para os homens - que levamos até a morte. siedade, insegurança, medo, culpa, dor. Na maio- ria das vezes é uma decisão que produz sequelas para toda a vida de uma mulher. Nesse sentido, a intervenção urbana Eu abortei é um “abraço” simbólico, um acolhimento às mulheres (e aos homens) que em algum momento de suas vidas tiveram que tomar essa – muitas vezes difícil – decisão. Seja pela intimidação de se praticar um crime, ou pela dificuldade de realizar o procedimento de forma segura. Ou, ainda, e de forma FIGURAS 2, 3 e 4. Stela Fischer em Eu abortei. Fotos: Clarissa Wolff e Gabriela Biló mais severa, pela falta de amparo emocional e apoio no período que segue após o abortamento, Realizar esta intervenção é deliberadamente pois não se pode falar abertamente sobre o assun- um ato de exposição e risco. Estou num espaço to em âmbito social. público, evocando um assunto que ainda é tomado como tabu e divide opiniões, incitando a Na ação, estou em silêncio, sentada diante espectador, transeunte da cidade, a julgar-me e de um monte de pedras. Carimbo meu corpo tomar uma atitude sobre mim, diante da minha com os dizeres “eu abortei”, enquanto o público é autorrevelação. Neste contexto, é realizada a con- estimulado a interagir comigo e executar ações a fissão como uma prática de exame de si que “não Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 12 A A rteda revista Cen DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 A ISSN 2358-6060 consiste numa crítica de si, ou, com efeito, na in- diálogo sem palavras, assim como é abortar para teriorização de normas reguladoras, mas se torna muitas mulheres, feito de silêncios. E a maioria uma maneira de se entregar a um modo público de dos espectadores que se aproxima para participar aparição” (BUTLER, 2015a, p. 147). Ao me expor da ação, recebe a pedra que eu ofereço, decide por e me colocar à berlinda de suas repostas, evoco deixar-se marcar e permanece em contato comigo, no público o seu gesto ético. Se o julgamento se olhando nos meus olhos, em silêncio. Acolhidos faz inútil, a ação torna-se um convite ao diálogo um no outro. sensível de um tema que não se pode falar. Um FIGURAS 5, 6, 7 e 8. Eu abortei. Fotos: Luciana Ramin e Gabriela Biló Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 13 A DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 A rteda revista Cen A ISSN 2358-6060 A segunda intervenção artística urbana coração da subjetividade dominante, produzindo um do Rubro Obsceno é O que te prende, mulher?, jogo que a revela, ao invés de denunciá-la. Isso quer com o intuito de propor uma “libertação simbó- dizer, ao invés de pretendermos a liberdade (noção indissoluvelmente ligada à consciência), temos de lica” das inúmeras amarras que nós mesmas nos retomar o espaço da farsa, produzindo, inventando colocamos ou aceitamos apenas por sermos mu- subjetividades delirantes que, num embate com a sub- lheres. É uma reflexão cênica tratada com leveza jetividade capitalística, a façam desmoronar (ROLNIK, 1989, p. 30). e humor para nos inteirar criticamente dos atos que reproduzimos cotidianamente e que refor- Somos três performers (Leticia Olivares, çam os dispositivos biopolíticos de produção das Monica Siedler e Stela Fischer) emaranhadas por diferenças de gênero. Nossa intenção é provocar fios e fitilhos nos quais fazemos o gesto repetido de as mulheres participantes para voltar à atenção dar nós. Convidamos mulheres para participar de para si e identificar em suas próprias atitudes e nossa performance, orientando-as também a par- discursos formas de opressão de gênero natura- tir das seguintes instruções de uso: “1. Pegue uma lizadas que elas mesmas reproduzem sem ques- folha e uma caneta; 2. Escreva um nó que você tionar. É um deslocar-se do seu próprio lugar de mesma, como mulher, se prende; 3. Leia em voz vítimas para produzir subjetividades “delirantes” alta; 4. E desate esse nó”. Damos uma prancheta que desmoronem e combatam todo sistema de com papel e caneta para a participante escrever a opressão pautado no capital e nas diferenças de resposta que quiser. Ficamos com o seu texto e em gênero, raça e classe: troca lhe entregamos um nó, bem apertado que Uma prática política que persiga a subversão da tem que desatar. Ao realizar com sucesso o ato de subjetividade de modo a permitir um agenciamento desatar o nó, vibramos, abraçamos, festejamos a de singularidades desejantes deve investir o próprio sua “libertação”. FIGURAS 9, 10 e 11: Stela Fischer, Leticia Olivares e Monica Sielder na intervenção O que te prende, mulher?. São Paulo, março de 2015. Fotos: Roderick Steel e Clarissa Olivares. Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 14 A DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 A rteda revista Cen A ISSN 2358-6060 Como respostas à pergunta “O que te pren- Nota-se nas respostas que a opressão às de, mulher?”, tivemos as seguintes respostas: “A mulheres ainda está muito atrelada aos afazeres sexualidade, quero me libertar!!” (Vanessa, 22 domésticos, à repressão do corpo e da sexuali- anos); “A falta de liberdade e de escolha com o dade, à violência sexual muitas vezes em âmbito meu corpo” (Brenda, 16); “O que me prende como familiar, aos papeis sociais de representação de mulher é ainda hoje o meu marido não me deixar gênero impostos pelos dispositivos sociais e, prin- trabalhar fora” (Cleide, 45); “Dizem que eu tenho cipalmente, à presença do homem como aquele que casar” (Bárbara, 26); “O que me prende é a que oprime. Com essa ação construímos redes falta de compreensão do meu pai” (Nina, 18); “A temporárias para operar um momento de troca, cultura da chapinha” (Marilda, 30); “Sofrer pre- interação e compartilhamento de subjetividades: conceito” (Cátia, 39); “Você não vai passar um “Qual é a nossa responsabilidade em relação batom nem por um brinquinho?” (Marina, 18); àqueles que não conhecemos, em relação àqueles “Sou impedida de usar o que quero e o que me faz que parecem testar nosso senso de pertencimento bem” (Raquel, 27); “O machismo” (Silvana, 42); ou desafiar normas disponíveis de semelhança?” “Moralismo” (Luiza, 50); “Desigualdade e violên- (BUTLER, 2015b, p. 61). Todos os “nós” aponta- cia” (Lucimar, 47); “Estupro em família” (Taís, 25); dos, todas as amarras enunciadas pelas mulheres “A cobrança em relação ao meu papel na família” com quem nos relacionamos na ação descrita tam- (Fátima, 46); “Me sentir impotente” (Vivian, 26); bém são as nossas amarras. Estamos falando de “A falta de coragem” (Raíssa, 18); “Insegurança” um lugar comum. Com a intervenção acionamos (Tainá, 17); “Ter medo” (Isadora, 20); “Preciso me um espaço sutil de pertencimento que desafia as impor mais e reconhecer minha força” (Marian, normas da semelhança. E o nosso compromisso 23); “Ter que fazer tudo e sempre ouvir que está com elas reside no acolhimento que é o nosso errado” (Tatiana, 25); “Não ter os mesmos direitos gesto político. Na rua, pedimos um minuto de que os homens” (Giovana, 11); “Ganhar salário atenção. E desse breve instante, juntas, abre-se um menor do que os homens” (Cristina, 53); “Ser mãe espaço para falar de si, de revelar queixas, de jogar e me preocupar com as pessoas” (Daiana, 30); “A e brincar com a sensação de libertação e cura. responsabilidade perante os outros” (Natália, 31); Gera-se um campo de afetos capaz de promover “Casamento compulsório” (Rosângela, 37); e “Ser um posicionar-se sobre a forma como habitamos muito sozinha pra tudo” (Carla, 40) (Material de e/ou desejamos habitar os nossos mundos en- acervo do Coletivo Rubro Obsceno). quanto mulheres, principalmente e em relação às Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 15 A A rteda revista Cen DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 A ISSN 2358-6060 normas excludentes com as quais temos que lidar “não tenho ilusão de compreensão mútua, nem cotidianamente. Nosso ativismo também está na o desejo de passar qualquer mensagem preesta- escuta, no acolhimento e na receptividade. Assim belecida. Longe disso. Trabalho para a cocriação como Eleonora Fabião define suas ações, nas quais de sentidos momentâneos e compartilhados. a receptividade transforma o corpo em campo: Para a criação conjunta de um campo relacional” (FABIÃO, 2015, p. 17). FIGURAS 12, 13 e 14: Intervenção O que te prende, mulher? Fotos: Roderick Steel e Clarissa Olivares. Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 16 A DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 A rteda revista Cen A ISSN 2358-6060 A intervenção O que te prende, mulher? que ocupa o espaço urbano, apropriamo-nos de também foi apresentada na reinauguração da Casa questões da ordem do dia em relação às falas das Eliane de Grammont, em São Paulo, quando ini- mulheres ali presentes e promovemos um espaço ciamos um trabalho voluntário de aulas de expres- de convívio no qual a interatividade é condição são e teatro com as mulheres vítimas de violência para que essas vozes ganhem espaço. Propiciamos e frequentadoras desse espaço, em outubro de o que Ileana Diéguez (2011) aponta como espaço 2015. E na saída da Estação de Metrô Tiradentes, liminar entre performance e ativismo e construí- em março de 2016, como parte da programação mos a nossa maneira um ato político próprio, sem da Ocupação Mulheres, Performance e Gênero, deixar de ser poético. promovida pela Oficina Cultural Oswald de Andrade, parceria entre os coletivos Rubro Obsceno Assim, Eu abortei e O que te prende, mulher? e Teatro Dodecafônico; na Jornada Internacional figuram a construção de uma resposta à pergunta/ de Teatro Feito por Mulheres, organizada pelo título deste artigo, quando procuro justificar o Magdalena Project 3a. Geração, em 3 de dezembro motivo pelo qual fazemos uma arte e ativismo de 2016, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, feminista ainda nos dias de hoje. Sem dúvida o também na capital paulista. que nos move – e aqui eu me incluo, apesar do E então... distanciamento investigativo – é a perplexidade em relação aos tratamentos políticos, sociais e culturais quando se trata dos assuntos relacionados Estas duas intervenções do Rubro Obsceno às mulheres brasileiras. Nós não representamos são um ato de aproximação entre as mulheres/ o ativismo. A partir da cena, também nós pro- performers e mulheres/público que compartilham testamos. Estamos em defesa dos feminismos, um momento de aproximações e “inversão de mas não de forma ingênua. Bem sabemos que papeis”, pois à medida que as ações transcorrem, tanto o feminino como o masculino são produ- as participantes tomam à frente do acontecimen- tos de uma economia reguladora do gênero, do to tornando-se agentes criadoras da ação e nós, sexo e que movimenta todo um “capitalismo dos performers, nos identificamos com suas questões, gêneros” (PRECIADO, 2008), incluindo aqui as queixas e dores. Isso faz da ação uma ocasião formas tidas como dissidentes, ou subversivas de socialização ao mesmo tempo artística e rei- do sistema de heterossexualidade compulsória. vindicatória, no qual afetamos e nos deixamos O nosso conceito de feminismo é uma constru- afetar. Ao produzirmos uma experiência artística ção particular pautada em leituras e estudos, nas Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 17 A ISSN 2358-6060 A rteda revista Cen a elas inerentes, em nossas relações pessoais, no nosso posicionamento político e, principalmente, em nossa prática artística. Um feminismo pró- prio cheio de divergências, rupturas, dissensões e fragmentações. Somos ativistas sem perder de vista a criação estética. O nosso ativismo artístico é resultado de processos de simbolizações e corporificações de memórias e testemunhos de situações de traumas e violência, de dominação e colonialidades, do resgate de constituição de identidades que formam, ao final, a construção de subjetividades políticas. E acreditamos em diferentes A nossas experiências de vida, nas idiossincrasias DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 N OTAS Por exemplo, de acordo com o portal do orçamento do Senado Federal, o governo Temer reduziu em 61% verba para atendimento à mulher em situação de violência em 2017. Sem contar que na sua gestão, os cargos políticos e institucionais são ocupados na sua maioria por homens (brancos!). Isso afeta a representatividade das mulheres no Congresso Nacional e, consequentemente, o avanço na legislação e na criação de medidas que favoreçam as mulheres. E esse quadro assevera-se ao considerar a ausência das mulheres negras e indígenas na gestão Temer. 1 possibilidades estéticas, poéticas e discursivas para transcender a condição de vitimização das mulheres, articulando a partir de nossas criações outros temas numa dinâmica capaz de envolver expressões múltiplas, principalmente quando se trata de expressões de construção de identidades com valores sociais que desestabilizem as construções de discursos opressores. A cena é o nosso manifesto. Como, por exemplo, o direito à visibilidade social das mulheres transexual e transgênero; os movimentos das mulheres do campo contra as práticas insidiosas do agronegócio e a luta pela reforma agrária; as jovens estudantes secundaristas nas ocupações das escolas diante da discrepante reestruturação do sistema educacional brasileiro; as causas ambientais do ecofeminismo; a saúde e melhores condições de atendimentos às mulheres de baixa renda; e assim por diante. 2 The Magdalena Project (1986) é uma rede internacional de artistas mulheres do teatro com sede em Cardiff (País de Gales). Sua meta principal é o intercâmbio e incentivo à reflexão crítica sobre a mulher no teatro contemporâneo. Trata-se de uma ampla rede mundial que aglutina criadoras de diferentes localidades e culturas (Índia, Dinamarca, Cuba, Espanha, Colômbia, Peru, USA, Argentina, Austrália, Nova Zelândia, Alemanha, Bélgica, Brasil, por exemplo). Promove encontros periódicos que objetivam agregar mulheres artistas em 3 Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 18 A ISSN 2358-6060 A rteda revista Cen Basta lembrarmos o caso ocorrido em fevereiro de 2015, em São Bernardo (SP), de uma jovem de 19 anos que chegou ao hospital com hemorragia pós-aborto, causada por ingestão de medicação. Ela foi hostilizada pelo próprio médico que a manteve algemada à cama até a chegada da polícia. O médico violou o Artigo 73 do Código de Ética Médica que estabelece normas de sigilo profissional. A jovem foi autuada em flagrante e seu processo corre, podendo ficar até três anos detida. O Ministério da Saúde possui uma norma que zela pelo atendimento humanizado a pacientes em situação de abortamento, com privacidade e confidencialidade de informações. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ cotidiano/2015/02/1592839-medico-chama-policiaapos-atender-jovem-que-fez-aborto-na-grande-sp. shtml>. Acesso, março de 2017. 4 A “bolsa estupro”, de autoria dos então deputados federais Luiz Bassuma (PT-BA) e Miguel Martini (PHS-MG), é uma assistência financeira para as gestantes que tenham sido vítimas de estupro e que decidam levar sua gravidez adiante, ao invés de abortar. Nesse caso, o pai terá direito de registrar a criança, ser o responsável pela pensão alimentícia 5 A atividades de intercâmbio de experiências, como workshops, debates, demonstrações de trabalhos e apresentações artísticas. No Brasil temos quatro edições do The Magdalena Project: Solos Férteis – Festival Internacional de Mulheres no Teatro, em Brasília (DF), organizado por Luciana Martuchelli; Multicidade – Festival Internacional de Mulheres nas Artes Cênicas, no Rio de Janeiro (RJ), por Paola Vellucci; Magdalena 3ª. Geração, em Jundiaí (SP), por Luiza Bitencourt; e Vértice Brasil, em Florianópolis (SC), por Barbara Biscaro, Glaucia Grigolo, Marisa Naspolini e Monica Siedler.. Informações no site: www.themagdalenaproject.org. DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 e, consequentemente, de visitar a criança. O projeto também inviabiliza pesquisa com células-tronco e fertilização in vitro. O PL 5069/2013, de autoria do ex-Presidente da Câmara, o criminoso e condenado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), restringe o atendimento pelo Sistema Único de Saúde às vítimas de violência sexual (Lei 12.845/13). 6 R EFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Volume 1 e 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. BIROLI, Fávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismos e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. 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GODINHO, Tatau; VENTURI, Gustavo (orgs.). Mulheres brasileiras e gênero nos epsaços público e privado: uma década de mudanças na opinião pública. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013. DOI: https://doi.org/10.5216/ac.v3i1.46166 A ISSN 2358-6060 * STELA FISCHER é doutora em Artes Cênicas na Universidade de São Paulo, Mestre em Artes/Teatro pela Universidade Estadual de Campinas. Autora do livro Processo Colaborativo e Experiências de Companhias Teatrais Brasileiras (Hucitec, 2010). Coordena na cidade de São Paulo o Coletivo Rubro Obsceno, um agrupamento de mulheres artistas com a finalidade de discutir as questões de gênero nas artes da cena. E-mail: stelafis@terra.com.br PRECIADO, Beatriz. Texto Younqui. Madrid: Espasa, 2008. ROLNIK, Suely. Cartografia Sentimental. Transformações contemporâneas do desejo. São Paulo: Estação Liberdade, 1989. ROLNIK, Suely. Geopolítica da cafetinagem. 2006. Disponível em: http://eipcp.net/transversal/1106/rolnik/pt. Acesso mar. 2016. SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. Artigo submetido em: 31/03/2017 Aprovado em: 22/05/2017 Stela Fischer - Por que fazemos performance e ativismo feminista? Arte da Cena, Goiânia, v. 3, n. 1, p. 08-20, Jan-jun/2017 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce 20