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1 James Hillman 2 Nota do tradutor Os ensaios alquímicos de James Hillman são fascinantes. Alguém já disse que ele faz da psicologia o braço investigativo da poesia. Essa percepção está em cada palavra sua tornada insight psicológico, carregando a imaginação da sabedoria profunda por meio de uma linguagem ativada, viva. Escritas ao longo de toda uma vida de trabalho analítico e estudo da alquimia medieval, este livro reúne as contribuições originais que o autor acrescenta a uma psicologia alquímica. Publicados esparsamente em revistas e coletâneas internacionais, alguns apresentados originalmente como palestras ou aulas em diversos lugares, há muito tempo esses ensaios mereciam estar reunidos num volume consistente. Isto se dá agora, quando o volume finalmente ganhou forma. Cada um deles passou por uma revisão minuciosa do autor para esta edição completa, o que acrescentou as reflexões e as novas compreensões trazidas pelos anos. Juntos formam o avanço de uma teoria alquímica da prática do trabalho analítico. A alquimia é a arte da transformação; almeja atingir o coração das coisas. Trabalha fundamentalmente com a ideia da transmutação, como um processo de elevar a matéria de uma dada circunstância a um nível superior de sua manifestação. Uma operação sideral. Inegavelmente, trata-se também da elevação do próprio artífice a um nível superior de consciência. Portanto, abriga uma metáfora poderosa para o trabalho psicológico. O que a alquimia dá para a psicologia é um ponto de vista objetivo: ela apresenta fatos e processos da vida psíquica que não podem nem ser negados, nem expostos de outra forma. Ela apresenta a possibilidade de escapar do subjetivismo, o excesso de subjetividade, e assim é uma longa e detalhada demonstração daquilo que reconheceu e chamou de psique objetiva. A diferença entre o trabalho de Jung e o de James Hillman com a alquimia, entretanto, é que o primeiro elaborou, em profundidade e de forma pioneira, um exame consistente daquilo que havia de alquimia na psicologia profunda, ou vice-versa, entendendo projetivamente os conteúdos psíquicos presentes nos tratados alquímicos. Fez psicologia da alquimia. Serviu para fundamentar definitivamente suas teses sobre a alma mais profunda e os níveis coletivos do inconsciente. Jung abriu o campo. Hillman, por outro lado, já é alquímico em seu próprio texto, e a própria reflexão aqui se constrói com recurso direto às metáforas alquímicas, reflexão profundamente impregnada das substâncias e processos que descreve. Hillman nos ensina a raciocinar alquimicamente em psicologia; faz propriamente uma psicologia alquímica, o título deste livro. A alquimia pensa por meio de imagens, mas imagina em termos de cores. Ou seja, por meio dos processos de coloração da alma, com os quais ela própria é tingida e com os quais ela tinge o mundo e suas experiências. Tingimento na alquimia significa mudança de estado; indica a transmutação. As cores na alquimia revelam processos na alma: do preto da decomposição (nigredo) ao branco da clara reflexão (albedo), passando pelas transições de azul e amarelo, para atingir aquele vermelho próprio da materia almada e das condições pulsantes e vitais da existência (rubedo) - a pedra filosofal. Os ensaios de Hillman neste livro caminham por todos esses estágios. Hillman opera aqui uma alquimia de extração paracélsica. Isto quer dizer que, como Jung, trabalha com um esquema cosmológico tripartite, onde sal, mercúrio e enxofre fundamentam a composição de todas as coisas visíveis e invisíveis. Essas três substâncias básicas apontam para as três instâncias elementares por onde a existência se manifesta: corpo, alma e espírito. Como sabemos, é possível fazer alquimia em todos esses níveis. Uma alquimia puramente física, encarada muitas vezes como uma pré-química, na qual o estudo das transformações da matéria serve para se entender o funcionamento mais oculto e íntimo da natureza. Uma alquimia metafísica, em que as imagens e descrições de seus tratados são vistas como analogias místicas perfeitas para a busca de um caminho espiritual de elevação ao princípio único universal. E, finalmente, uma alquimia da alma, caminho aberto por Jung, no qual o que encontramos em meio às 3 bizarrices e proposições extremadas são correlatos precisos dos processos de transformação da psique profunda exibindo diretamente a vida psicológica. Comecei a tradução desta obra em 1985. Ela foi sendo feita lentamente ao sabor do aparecimento dos ensaios individualmente. Trazer para o português cada capítulo que compõe este livro serviu originalmente para estudo em grupos preocupados em encontrar uma abordagem ao mesmo tempo mais imaginativamente rica e mais clinicamente precisa à psicoterapia. Traduzi-los sempre foi um grande e iniciático desafio. Hillman, além de um teórico extraordinário, é também um escritor, um artista das palavras intensamente preocupado com a linguagem que carrega seus insights. Os textos alquímicos de James Hillman nos forçam a entender a importância da metáfora como instrumento básico no trabalho com a alma, que é o que nos ensina, logo na abertura do livro, seu primeiro capítulo. É impossível compreender a alquimia psicologicamente sem essa entrada na metáfora, o que também é verdade para a poesia e, por que não dizer, para a psique. Aqui aprendemos que essa ‘poesia da matéria’, como ele enxerga a alquimia, depende da metáfora para ser também uma psicopoiesis - uma tradição que começou, não se esqueça, com uma famosa tábua esmeralda. Gustavo Barcellos - Dezembro de 2010 Abreviações utilizadas neste livro: Bonus = Bonus of Ferrara. . Londres: J. Elliot & Co., 1894 [Trad. de A.E. White]. Collectanea = Eirenaeus Philalethes [George Starkey). . Londres: J. Elliot & Co., 1893 [Trad. de A.E. White]. CP = Sigmund Freud. . 5 vols. Londres: The Hogarth Press/The Institute of Psychoanalysis, 1924-1950 [Trad. autorizada sob a supervisão de Joan Riviere]. Figulus = Benedictus Figulus. . Londres: J. Elliot & Co., 1893. HM = , Restored and Enlarged. 2 vols. Londres: J. Elliot & Co., 1893 [Trad. de A.E. White]. Jung Letters = C.G. Jung Letters. Vol. 2,1951-1961. Princeton: Princeton University Press, 1976 [Org. de G. Adler - Trad. de J. Hulen]. KY = C.G. Jung. The Psychology of Kundalini Yoga: Notes of the Seminar Given in 1932 by C.G. Jung. Princeton: Princeton University Press, 1996 [Org. de Sonu Shamdasani]. Lexicon = Martin Ruland, o Velho. . Londres: J. Elliot & Co., 1893 [Trad. de A.E. White]. MDR = C.G. Jung. Memories, Dreams, Reflections. Nova York: Vintage Books, 1989 [Registradas e organizadas por Aniela Jaffé - Trad. de R. e C. Winston]. Minerais = Albertus Magnus. . Oxford: Clarendon Press, 1967 [Trad. de D. Wyckoff]. OC = . Vol. 1-18. Petrópolis: Vozes [Referidos pelo número do volume e do parágrafo]. Paracelsus = . 2 vols. Londres: J. Elliot & Co., 1894 [Trad. de A.E. White]. SE = . 24 vols. Londres: The Hogarth Press/ Institute of Psychoanalysis, 1953-1974 [Org. por J. Strachey). UE = . 11 vols. Putnam, Conn.: Spring Publications, 2004-. 4 Prefácio do autor /.../ com base neste simples sistema de diversas cores está a investigação variada e infinitamente diversificada de todas as coisas. Zósimo de Panópolis {ca. 250) As páginas seguintes foram escritas para diferentes ocasiões e, exceto pelos capítulos 2, 5 e 6, foram apresentadas como palestras. Chamei a primeira tentativa de apresentar minha maneira de abordar esse material, nos anos 1960 no Instituto C.G. Jung de Zurique, de . Minha intenção tanto naquele momento quanto agora era oferecer à psicanálise um outro método para imaginar suas ideias e procedimentos, ao mostrar como a alquimia exibe diretamente a vida psicológica de um modo ao mesmo tempo mais clinicamente imediato e menos espiritualmente progressivo. Palestras na cidade de Nova York e notas para cursos semestrais para estudantes universitários em 1968 (Chicago), 1973 (Yale), 1975 (Syracuse) e 1979 (Dallas) fizeram expandir as fontes e os insights que elas instigaram, que foram compactados, quando relevantes, nestes capítulos. Durante todo esse tempo, meu trabalho sempre partiu das extraordinárias conquistas acadêmicas de C.G. Jung, que abriu o campo para a compreensão psicológica. Embora seguindo suas pegadas, vesti meus próprios sapatos; ou seja, tento renunciar a uma narrativa grandiosa que encerre a alquimia numa teoria explanatória, tal como a conjunção de opostos de Jung, ou a realização do Self, evitando a tentação de fazer sentido por meio da tradução em símbolos universais e em nobre metafísica. Ao invés, tentei seguir um dos próprios princípios de Jung, ‘ficar com a imagem’ - com as cores, os químicos, os vasos, o Fogo - imagens da imaginação sensorial que apresentam estados da alma. ‘Ficar com a imagem’ recupera a antiga máxima grega, ‘salvar os fenômenos’ (sozein ta phainomena), e os fenômenos da alquimia apresentam um caos. ‘Qualquer outra arte ou ciência são bem razoáveis’, diz um texto básico atribuído a Bonus de Ferrara,1 ‘as diferentes proposições seguem-se umas às outras em sua ordem lógica; e cada afirmação é explicada e demonstrada pelo que veio antes. Mas nos livros de nossos sábios, o único método que prevalece é aquele do caos; há, por toda a parte, estudada obscuridade de expressão; e todos os autores parecem começar, não com os primeiros princípios, mas com aquilo que é bem estranho e desconhecido dos estudantes. A consequência é que nos debatemos em todos estes trabalhos com pequenos vislumbres de compreensão somente aqui e ali’ [...]. Obscuridade de expressão é natural da psique. Principal exemplo: nossos sonhos; meros vislumbres. Salvar os fenômenos da psique conclama um método alquímico do caos, um método que favorece a beleza surpreendente e a liberdade inventiva da alma, e que fala tanto da psique com psicologia quanto para a psique com imaginação. Ao preparar este livro, recebi ajuda e sou grato a Mary Helen Sullivan, ao falecido Gerald Burns, a Stanton Marlan por valiosas sugestões e por me manter na tarefa, e Klaus Ottman por sua inteligência, gosto e labor. James Hillman Thompson, Conn. Março de 2010 1 Bonus, p. 113-114. Quem foi ‘Bonus’, onde e quando viveu permanece incerto. Cf. Ferguson, J. Bibliotheca Chemica. 2 vols. Glasgow: James Maclehose and Sons, 1906, vol. 1., p. 115. 5 Sumário ............................................................................................................................................................................................ 1 James Hillman ..................................................................................................................................................................... 2 Psicologia Alquímica............................................................................................................................................................ 2 Nota do tradutor .............................................................................................................................................................3 Abreviações utilizadas neste livro: ..................................................................................................................................4 Prefácio do autor.................................................................................................................................................................. 5 Sumário ............................................................................................................................................................................... 6 1 .......................................................................................................................................................................................... 8 O valor terapêutico da linguagem alquímica: uma introdução aquecida .................................................................................. 8 2 ........................................................................................................................................................................................ 17 Rudimentos ................................................................................................................................................................................. 17 I Fogo .............................................................................................................................................................................17 Fogo dos deuses ......................................................................................................................................................................... 21 Acelerar a natureza .................................................................................................................................................................. 22 II Combustível: Carvão Vegetal e Ar............................................................................................................................24 III Metais .......................................................................................................................................................................26 Resistência ................................................................................................................................................................................ 28 IV Os Vasos ...................................................................................................................................................................29 Vidro......................................................................................................................................................................................... 31 O banho-maria ......................................................................................................................................................................... 32 O Pelicano ................................................................................................................................................................................ 33 O vazio no vaso ........................................................................................................................................................................ 34 V Fornos e fogões ..........................................................................................................................................................36 VI O espírito do Fogo ...................................................................................................................................................38 3 ........................................................................................................................................................................................ 43 O sofrimento do sal ..................................................................................................................................................................... 43 Rumo a uma Psicologia Substancial ......................................................................................................................................... 43 Minas de sal: a extração e a fabricação do sal .......................................................................................................................... 47 Quando e como salgar .............................................................................................................................................................. 52 O fervor do sal .......................................................................................................................................................................... 56 4 ........................................................................................................................................................................................ 63 A sedução do preto ...................................................................................................................................................................... 63 A cor da não cor ....................................................................................................................................................................... 63 A nigredo alquímica.................................................................................................................................................................. 65 Intenções pretas ......................................................................................................................................................................... 66 Mais preto que o preto .............................................................................................................................................................. 69 5 ........................................................................................................................................................................................ 74 O azul alquímico e a unio mentalis ............................................................................................................................................ 74 I Os azuis .......................................................................................................................................................................74 II Animus e anima ........................................................................................................................................................79 6 III Imaginação é realidade.............................................................................................................................................82 IV Unio mentalis ..........................................................................................................................................................88 6 ........................................................................................................................................................................................ 93 A prata e a terra branca ............................................................................................................................................................ 93 Prefacio ..........................................................................................................................................................................93 A prata alquímica: sua natureza e propriedades psicológicas ................................................................................................... 94 A extração da prata ................................................................................................................................................................101 Terra alba, o branqueamento e a anima ................................................................................................................................113 Loucura ..................................................................................................................................................................................140 Pós-escrito ................................................................................................................................................................................148 7 ...................................................................................................................................................................................... 149 O amarelecimento da obra........................................................................................................................................................149 Uma excursão ao enxofre ........................................................................................................................................................151 Entre branco e vermelho..........................................................................................................................................................154 Um caso ..................................................................................................................................................................................159 Também o analista é amarelado.............................................................................................................................................161 Pós-escrito: o amarelo que falta ...............................................................................................................................................164 7 O valor terapêutico da linguagem alquímica: uma introdução aquecida O trabalho alquímico de Jung foi relevante para a psicologia analítica em dois principais aspectos. Sugiro um terceiro. O primeiro foi muito bem apresentado por David Holt em sua palestra .1 Nela, Holt mostra que Jung imaginou seu trabalho teórica e historicamente substânciado pela alquimia, e que Jung passou uma grande parte de seus anos de maturidade trabalhando, em suas próprias palavras, ‘uma base alquímica para a psicologia profunda’,2 particularmente o opus da transformação psicológica. Como Holt indica, é para a alquimia que devemos nos voltar para posicionarmos adequadamente todo o empenho de Jung. Precisamos da alquimia para compreender nossa teoria. O segundo aspecto foi profundamente elucidado por Robert Grinnell em seu livro 3 . Ali, Grinnell demonstra incontestáveis paralelos entre os processos psíquicos de uma paciente italiana moderna e aqueles que acontecem no opus alquímico. Onde Holt enfatiza a teoria alquímica como background, Grinnell enfatiza a fenomenologia alquímica na prática. Vemos em Grinnell a continuidade ou ‘arquetipalidade’ de temáticas alquímicas em estudos de caso. Desta forma, para trabalhar com a psique em seus níveis mais fundamentais, devemos imaginá-la como fizeram os alquimistas, pois tanto eles quanto nós estamos engajados com processos similares, mostrando a nós mesmos em imagens similares. Precisamos da alquimia para compreender nossos pacientes. O terceiro ângulo, que agora vou expor, está relacionado com a linguagem alquímica. Resumidamente, meu ponto de vista é o seguinte: além da teoria geral da transformação alquímica e além dos paralelos particulares das imagens alquímicas com o processo de individuação, é a linguagem alquímica que pode ser a mais valiosa para terapia junguiana. A linguagem alquímica é um tipo de terapia; ela é, em si, terapêutica. Para falar sobre terapia, precisamos primeiro falar sobre neurose, e aqui sigo a teoria geral de Jung que diz que a neurose é um ‘desenvolvimento unilateral da personalidade’ ( ), o que eu entendo como o inevitável desenvolvimento unilateral da consciência per se. Penso que Jung 1 2 3 ‘ . Palestra proferida na Royal Society of Medicine, Londres, em 21/11/1974, sob os auspícios do Clube de Psicologia Analítica de Londres. ‘Meu encontro com a alquimia foi decisivo para mim, pois forneceu-me a base histórica que até então me faltava’ ( . Nova York: Vintage Books, 1963, p. 200). : . Zurique: Spring, 1973. Cf. tb. seu . In: . Fellbach-Oeffingen: Adolf Bonz Verlag, 1980. 8 quer dizer que a neurose reside nos padrões de organização de nossa personalidade consciente, em nosso habitual caminho de todos os dias. O que quer que façamos requer repressão de alguma coisa: faço porque reprimo, ou reprimo porque faço. Como a própria formulação de Jung afirma: ‘A unilateralidade é uma característica inevitável e necessária do processo dirigido, pois direção implica unilateralidade’ ( ). A neurose pode ser cognitiva, conativa ou afetiva, introvertida ou extrovertida, pois podemos ser unilaterais em qualquer direção da personalidade. A de Jung é uma bela e limitante ideia de neurose, mantendo-a como algo que pode ser chamado de ‘psicologia do ego’. Eu não iria, não poderia, chamá-la assim por razões que ainda veremos; mas ao menos a ideia de Jung da unilateralidade protege a neurose de complicadas explicações em termos de processos socio adaptativos, historicismos desenvolvimentistas, dinamismos intrapsíquicos, mecanismos de biofeedback e outros jargões. A neurose está localizada exatamente nos limites da consciência ( ). Sou um neurótico por causa do que acontece aqui e agora, enquanto estou aqui de pé e olho e falo, e não por causa do que aconteceu antes, ou acontece na sociedade, ou em meus sonhos, fantasias, emoções, memórias, sintomas. Minha neurose reside em minha mente e na maneira pela qual ela constrói o mundo e se comporta nele. Bem, a linguagem é essencial a todo aparato mental de toda personalidade. Então, a linguagem deve ser um componente essencial de minha neurose. Se sou neurótico, sou neurótico na linguagem. Consequentemente, a unilateralidade que caracteriza toda neurose em geral é também encontrada especificamente como uma unilateralidade na linguagem. Uma implicação importante dessa afirmação é que, para descobrir as características de qualquer neurose, devo examinar as especificidades de linguagem essenciais a esta, os estilos de discurso nos quais a neurose está contida. Jung começou nesse caminho com seus estudos sobre associações de palavras; a semântica diferencial de Charles Osgood e a psicologia de constructos pessoais de George Kelly poderiam levar-nos além em detalhes e praticidade. Há muito a apreender com respeito à retórica das neuroses. Pois nós psicólogos escutamos o estilo do discurso e não apenas os conteúdos deste discurso, e o tom e corpo de sua voz. A psicologia arquetípica já começou a examinar a linguagem, especialmente os estilos retóricos do discurso manifesto, seja na hora, nos relatos de sonho, ou em trabalhos escritos, e dentro das próprias palavras. Mas deixamos tudo isso de lado hoje em dia. A principal implicação desta proposição de que a unilateralidade da neurose ocorre essencialmente na unilateralidade da linguagem nos levará mais diretamente à meta desta introdução. Para chegar lá rapidamente, deixe-me limpar o terreno em um arranco, um pulo e um salto. O arranco: uma vez que a linguagem é amplamente social, a unilateralidade da minha linguagem reflete a linguagem coletiva da sociedade. Então, o pulo: Jung já tinha definido a linguagem coletiva como ‘dirigida’ (‘processo dirigido’, ‘pensamento dirigido’ ) e eu tinha atacado isto em várias oportunidades sob seus disfarces de ‘nominalismo’, ‘racionalismo’, ‘linguagem psicológica’, ‘consciência apolônica’ e ‘conceitos diurnos’. Por último, o salto: a linguagem conceitual, que é nominalista e por isso nega a substância e a fé em suas palavras, é o estilo 9 retórico usual do ‘ego’, especialmente do ‘ego’ dos psicólogos, e é o locus crônico de nossa neurose coletiva como ela aparece na linguagem. Você vê que estou afirmando, como fizeram Freud e Jung de outras formas, uma neurose cultural geral de unilateralidade ocidental. Entretanto, estou localizando essa neurose em nosso processo dirigido de linguagem, o qual é dirigido a partir de dentro (pois, afinal, quem ou o que dirige nosso pensamento dirigido?) por suas estruturas sintáticas, gramaticais e conceituais inerentes, resultando em racionalismo conceitual. Horrible dictu, essa neurose é reforçada pelo treinamento acadêmico que devemos ter para nos transformarmos em membros da profissão psicoterapêutica. Por racionalismo conceitual entendo artigos como este aqui, artigos que explicam eventos em termos conceituais ao invés de em palavras-objeto, palavras-imagem, palavras-arte. Também me refiro ao nosso habitual uso de verbos de identidade (tais como ‘é’), os quais inconscientemente substantivam os mesmos termos que nós conscientemente declaramos ser somente nominais. Portanto, nos hipostasiamos nossas hipóteses. Desenvolve-se uma divisão entre teoria e prática, ou até mesmo uma ilusão teórica sobre a prática. Como Jung, afirmamos que nossas declarações conceituais são somente heurísticas; mas, por causa da linguagem, não podemos evitar uma substantivação na prática daquilo que nossa teoria afirma ser somente heurístico, somente hipotético. Simplesmente somos pegos no literalismo de nossa própria linguagem. Nos falamos em conceitos: o ego e o inconsciente; libido, energia e instinto; opostos, regressão, função sentimento, compensação e transferência. Quando trabalhamos com esses termos, curiosamente esquecemos que eles são apenas conceitos, úteis apenas para abarcar eventos psíquicos que eles inadequadamente descrevem. Sobretudo tendemos a descuidar do fato de que esses conceitos oprimem nosso trabalho porque chegam carregados com sua própria história inconsciente. Então, não apenas como Jung diz, são os conceitos psicológicos ‘irrelevantes na teoria’, mas como ele também diz, o psicólogo ‘deve desfazer-se da noção comum de que o nome explica o fato psíquico que ele denota’ ( ). Todavia nós, psicólogos, imaginamos esses termos conceituais como sendo palavras-coisas, pois como Jung continua: ‘A psicologia [...] ainda sofre de uma [...] mentalidade na qual nenhuma distinção é feita entre palavras e coisas’. O que é essa mentalidade, essa aflição? Está Jung falando de literalismo, daquela unilateralidade da mente que experimenta a linguagem apenas singularmente? Em tal consciência não há ‘como se’ entre a palavra e o que quer que ela esteja descrevendo. Então os sujeitos em nossas frases tornam-se sujeitos existentes e os objetos tornam-se fatos objetivamente reais. Então, conceitos tais como o ego, o inconsciente, a função sentimento, a transferência tornam-se literalmente coisas reais. Substantivos tomam-se substâncias - tanto é que consideramos esses conceitos capazes de explicar a personalidade e suas neuroses. Mas estou argumentando que esses mesmos termos conceituais - ego, inconsciente, transferência - são a neurose. Da mesma forma que Freud começou pela desliteralizacao da memória do trauma sexual em suas fantasias, e da mesma forma como Jung começou desliteralizando incesto e libido, precisamos desliteralizar um bando de outros conceitos substancializados, começando com ‘o ego’ e ‘o inconsciente’. Pessoalmente, nunca encontrei nenhum deles, exceto em livros de psicologia. 10 Penetrar na alquimia - em suas palavras-coisa, palavras-imagem, palavras-arte. Todas as cinco supostas fontes da alquimia são tecnologias. Cada uma é um trabalho manual que lança mão de materiais sensoriais. (1) Metalurgia e joalheria: extrair, aquecer, derreter, forjar, temperar; (2) Tecidos e tingimento: banhar, colorir, secar; (3) Embalsamamento dos mortos: desmembrar, esvaziar, infundir, preservar; (4) Perfumaria e cosmética: moer, misturar, destilar, evaporar; (5) Farmácia: distinguir, fazer tinturas, dosar, dissolver, dissecar, pulverizar. A essas fontes tradicionais é preciso acrescentar a preparação e conservação de comida, os atos diários de transformar materiais crus em alimentos saborosos e nutritivos. Para uma mente que não separou denotações conceituais de inferências metafóricas, todas estas atividades manuais e sensoriais carregavam noções sobre a natureza, a vida, a morte e a alma. Um ferreiro tinha que saber como lidar com o Fogo e controlar o calor; um farmacêutico deve fazer misturas nas proporções corretas, ou um remédio poderia matar em vez de curar. (A própria palavra pharmakon significa tanto veneno quanto remédio.) As matérias básicas da personalidade - sal, enxofre, mercúrio e chumbo - são materiais concretos; as descrições da alma, aqua pinguis ou aqua ardens, assim como as palavras para os estados da alma como albedo e nigredo incorporam eventos que podemos tocar e ver. O trabalho de fazer alma requer ácidos corrosivos, solos pesados, pássaros ascendentes; há reis transpirantes, cachorros e cadelas, fedores, urina e sangue. Quão semelhante a linguagem de nossos sonhos é diferente da linguagem com a qual interpretamos nossos sonhos! Quando a alquimia fala em níveis de calor, ela não usa números. Ao invés disso, ela se refere ao calor do estrume do cavalo, ao calor da areia, ao calor do metal tocando o Fogo. Esses calores diferem, além do mais, não somente em níveis, mas também em qualidade: o calor pode ser lento e brando, ou úmido e pesado, ou súbito e agudo. Da mesma forma, o calor do estrume do cavalo revela as propriedades materiais aquecidas do próprio estrume. O calor não pode ser abstraído do calor do corpo que lhe origina. As palavras para os vasos alquímicos - as formas da alma nas quais nossa personalidade está sendo trabalhada – contrastam com os conceitos que utilizamos, conceitos tais como espaço interior ou objetos internos, ou fantasia, paciência, repressão, supressão, relacionamento. A alquimia apresenta um arranjo de diferentes qualidades de vaso, diferentes fragilidades, visibilidades e formas: espiral de condensamento, alambiques de várias cabeças, pelicanos, retortas, panelas planas abertas. Usa-se cobre, vidro ou argila para conter a substância e cozinha-la. Finalmente, as palavras para as operações – aquilo que se faz ao trabalhar com a psique – são também concretas. Aprendemos a evaporar o vapor, a calcinar para queimar paixões em essências secas. Aprendemos sobre condensamento e congelamento de condições nubladas para delas pegar gotas duras e limpas. Aprendemos sobre coagulação e fixação, sobre dissolução e putrefação, sobre mortificação e enegrecimento. Compare essas palavras artesanais da alquimia com as palavras usadas para as operações da psicoterapia: analisando a transferência, regressão a serviço do ego, desenvolvimento da função inferior, administrando a raiva, identificação sintônica, demonstrando hostilidade; melhorar, negar, resistir, identificar... Essa linguagem não é apenas abstrata; ela é imprecisa. Por causa dessa imprecisão em nosso equipamento, em nossos conceitos para alcançar os movimentos da alma, acabamos acreditando que a alma e em si um fluxo inapreensível, quando na verdade a psique sempre se apresenta em comportamentos, experiencias e imagens bem especificas e sensoriais. 11 Antes que seu pensamento fosse tocado pela alquimia, Jung levantava dúvidas com relação a linguagem sensorial de que ele tanto gosta. Em 1921, escreve em seu : As funções racionais são, por natureza, incapazes de criar símbolos já que produzem apenas um produto racional necessariamente restrito a um significado único, o que o impede também de abarcar seu oposto. As funções sensoriais também são inadequadas para a criação de símbolos porque, pela própria natureza do objeto, elas também estão confinadas a sentidos únicos que abarcam apenas eles mesmos e negam o outro.4 Entendo que Jung esta afirmando que a percepção sensorial e tão unilateral quanto a compreensão conceitual, o que implica, portanto, que a linguagem sensorial se aferra a seus referentes (as coisas e operações concretas da alquimia) de forma que outras conotações não podem emergir. Aqui, creio, Jung está confundindo o concreto com o literal. A alquimia afastou Jung do racionalismo sistemático dos Tipos. Podemos agora enxergar, como cita Holt, quão necessária foi a alquimia para fornecer uma base para sua psicologia profunda, pois a alquimia abandona inteiramente o literalismo unilateral. Nenhum termo significa apenas uma coisa. Todo fenômeno alquímico é tanto material quanto psicológico ao mesmo tempo; do contrário, a alquimia não poderia se enxergar como salvação tanto da alma humana quanto da natureza material. Ela é toda metafórica (simbólica, no sentido que Jung dava a esta palavra em 1921). Toda analógica. Toda uma poiesis da mão. Nossas mentes ainda retêm essa propensão alquímica para transformar tecnologia em psicologia. A gíria psicoterapêutica revela como de verdade imaginamos muito antes que a profissão chegue a conceitos sofisticados. A linguagem do trabalho manual, do esforço técnico, emerge da oficina mecânica de automóveis. Lá, na garagem, abundam metáforas para nossa vida psíquica: realinhamentos, ligações diretas, ajustar freios, encher o tanque, trocar o óleo, balancear... Desde que Jung abriu as portas da alquimia para os psicólogos, tivemos a tendência de adentrá-la em apenas uma direção: aplicamos nosso pensamento dirigido ao pensamento de fantasia da alquimia, traduzindo suas imagens em nossos conceitos. Rainha Branca e Rei Vermelho viraram os princípios feminino e masculino; sua relação sexual incestuosa transformou-se em união dos opostos; o hermafrodita louco e o uniped, a cabeça dourada com cabelos prateados, vermelho por dentro e preto por fora - estes viraram representações paradoxais da meta, exemplos de androginia, símbolos do Self. Você vê o que acontece: a imagem sensorial desaparece dentro do conceito, precisão em generalização. Até mesmo as imagens peculiares do Rosarium Philosophorum ( ), que provocam contemplação perplexa, é pedido que sirvam como um manual para uma psicologia geral da transferência. Podemos entrar pela porta de modo diferente. Podemos tentar traduzir de modo oposto: as realidades da psicoterapia e a linguagem que usamos para conceber aquelas realidades colocadas imageticamente dentro das precisas palavras alquímicas - palavras-objeto, palavrasimagem e palavras-arte. O livro de Grinnell faz exatamente isso - e assim as mentes conceitualmente viciadas acham a leitura difícil. Pesada. É duro e pesado precisamente porque fala sobre o opus em palavras concretas. 4 . Nova York: Pantheon, 1923, p. 141-142. 12 Podemos também simplesmente não atravessar a porta. Pois se para começar passamos por cima dos conceitos, não precisamos de traduções. Então falaríamos aos sonhos e dos sonhos como os próprios sonhos falam. (Por ‘sonho’ aqui entendo também o sonho, ou fantasia, dentro do comportamento.) Isto me parece acompanhar a máxima de Jung de seguir sonhando o mito. Para fazê-lo devemos falar em termos de sonho, imageticamente - e materialmente. Introduzi ‘materialmente’ porque estamos perto do extremo,5 e o extremo da alquimia é a matéria. E o extremo de nossa prática também - fazer a alma ter importância6 para o paciente, transformar seu sentido do que tem importância. Holt, seguindo Jung, já havia mostrado que a alquimia é essencialmente uma teoria de redenção do físico, redenção da matéria. Se é assim, então esse processo de redenção deve também ter lugar em nosso discurso, no qual a ausência de matéria e mais severa e, especialmente, porque essa privação está tão próxima que nós e inconsciente até mesmo quando falamos. Mal podemos esperar que a terapia - tão dependente do discurso - trabalhe essa massiva maldição da consciência ocidental, nossas torturas na relação com a matéria, se a ferramenta com a qual trabalhamos, nosso discurso, não tiver ele mesmo resolvido a maldição. Nosso próprio discurso pode redimir a matéria se, por um lado, ele desliteralizar (dessubstanciar) nossos conceitos, distinguindo entre palavras e coisas, e se, por outro lado, ele rematerializar nossos conceitos, dando a eles corpo, sentido e peso. Nós já fazemos isso inadvertidamente quando falamos sobre o que os pacientes trazem como ‘material’, quando procuramos pelas ‘bases’ (grounds) de suas queixas, e também ao tentarmos fazer ‘sentido’ disso tudo. Repenetrar na alquimia. Sua beleza está justamente na sua linguagem materializada, a qual ao mesmo tempo nunca podemos tomar literalmente. Eu sei que não sou formado de enxofre e sal, não estou enterrado em estrume, putrefazendo ou congelando, ficando branco ou verde ou amarelo, cercado por uma serpente que morde o seu rabo, elevando-me em asas. E todavia eu sou! Não posso tomar nada disso literalmente, mesmo que seja tudo preciso, descritivamente verdadeiro. Mesmo quando as palavras são concretas, materiais, físicas, sabemos de cara que seria um grande erro tomá-las literalmente. A alquimia nos dá uma linguagem da substância que não pode ser tomada substancialmente, expressões concretas que não são literais. Este é o efeito terapêutico da alquimia: ela força a metáfora sobre nós. Somos carregados pela linguagem para dentro de um como-se, para dentro tanto da materialização da psique quanto da psiquização da matéria ao pronunciarmos nossas palavras. Os textos alquímicos são monstruosamente arcanos. Estão compactados de camadas entrelaçadas de referências e analogias. Parecem deliberadamente afetados, supostamente para esconder seus segredos da mente comum e das autoridades dogmáticas. Mas há uma intenção mais profunda, mais psicologica, por trás do obscurantismo da alquimia. Os sábios nunca davam um nome a qualquer de suas coisas, nem as comparavam com algo, a menos que houvesse um aspecto que requisesse a contemplação do observador e sua 5 6 ‘Extremo’ aqui é a tradução de crunch, que também significa ‘crise’, ‘hora decisiva’ ou ‘trituração’ [N.T.]. Aqui, o autor faz um trocadilho significativo com a palavra matter que significa ‘importar’, ‘ter importância’, mas que também significa ‘matéria’ (N.T.). 13 meditação (...). Eles não cunhavam exemplos ou descrições, exceto no sentido de apontar por meio deles sua pedra escondida. Eles não os inventavam para diversão ou entretenimento.7 A própria linguagem tem um efeito psicológico. A linguagem do homem deve esforçar-se para capturar a densidade de sentido (a pedra escondida) transmitida pelos signos. É propriamente esse fato que faz dos textos paracélsicos algo tão difícil de interpretar. Seu vocabulário fantástico não está desenhado para definir características únicas e singulares dos fenômenos; ao invés, está construído para revelar tanta profundidade de sentidos quanto possível - suas palavras intencionam reverberar na imaginação com muitos sentidos.8 A linguagem conceitual, entretanto, não é uma metáfora auto evidente. Ela é muito contemporânea para ser transparente; estamos vivendo bem imersos nela, e seu mito está acontecendo em tudo que se refere a nós - então ela não tem um senso metafórico embutido. Eu certamente não sei, e não posso perceber, que eu não seja verdadeiramente composto de um ego e um Self, de uma função sentimento e um instinto de poder, de posições depressivas e ansiedades de castração. Isto soa literalmente real para mim e, a despeito de minha própria experiencia em usar esses termos, há uma inutilidade assombrosa neles. O nominalismo9 fez com que desacreditássemos em todas as palavras - o que há em um nome? - pois elas são somente ‘palavras’, ferramentas; qualquer outra serviria da mesma forma. Elas não tem substância. Mas nossa linguagem psicológica se tornou literalmente real para nós, apesar do nominalismo, porque a psique precisa demonizar e personificar, o que na linguagem torna-se a necessidade de substancializar. A psique anima o mundo em que habita. A linguagem é parte dessa atividade de animação (por exemplo, o discurso onomatopeico com o qual supõese que a linguagem ‘começou’). Se a minha linguagem não preencher essa necessidade de substanciar, a psique vai substanciar de qualquer modo, inesperadamente, endurecendo meus conceitos em coisas físicas ou metafísicas. Devo insistir que não estou propondo um cancelamento de nossos conceitos e uma restituição dos neologismos arcaicos da alquimia como um novo esperanto para nossa prática e para nossos assuntos. Isso seria apenas tomar a linguagem alquímica literalmente. Eu não quero dizer: vamos começar a falar de alquimia: o quero dizer e, primeiro vamos falar como alquimistas, como se estivéssemos falando alquimicamente. Então podemos falar de alquimia como alquimistas, usando seus velhos termos loucos, porque então não os estaremos usando como substituições literais para nossos conceitos, meramente trocando um jogo de categorias conceituais por outro. Assim, não é um retorno literal para a alquimia o que e necessário, mas uma restauração do modo alquímico de imaginar. Pois nesse modo restauramos a matéria em nosso discurso - e isto, afinal de contas, é nosso objetivo: a restauração da matéria imaginativa, não da alquimia literal. 7 8 9 Muhammad Ibn Umail. Hofmeier, T. (orgs.). Hannaway, O. 1984, p. 63. Cf. a discussão sobre nominalismo em meu vendo a psicologia. Petrópolis: Vozes, 2010]. (Kitab Hall Ar-Rumuz). In: ABT, T.; Madelung, W. & . Vol. 1. Zurique: Living Human Heritage, 2003, p. 73. . Baltimore: Johns Hopkins University Press, . Nova York: Harper and Row, 1975, p. 5-8 [Re14 Eu disse antes que a unilateralidade da neurose é perpetuada em nossa linguagem psicológica, em seu racionalismo conceitual. Unilateralidade - essa definição geral da neurose agora se torna mais precisa. Ela agora pode ser vista referindo-se a natureza ampla de nossas ferramentas de compreensão, nossos conceitos, que organizam a psique de acordo com suas formas. Nossos conceitos estendem sua compreensão sobre imagens concretamente vividas ao abstrair (literalmente ‘empurrar para longe’) sua matéria. Nós não vemos mais a urna funeral de barro ou a estufa de ferro com um centro de cerâmica, mas a ‘Grande Mãe’; não mais vemos o mar além do porto, o cano de esgoto entupido com estrume ou uma madeira de arvore numa noite de verão, mas ‘o Inconsciente’. Como podemos ter fé no que fazemos se as palavras que usamos para isso são desincorporadas de substância? Aqui novamente me junto a Grinnell e Holt, que consideravam a fé como a chave para todo o opus psicológico e alquímico. Porém, eu localizaria essa fé nas palavras que expressam, operam, até são essa empreitada. Novamente: conceitos abstratos, nominações psicológicas que não importam nem tem peso, querendo ou não acrescentam sempre mais dureza, imobilidade plúmbea e fixação, tornando-se objetos ou ídolos de fé ao invés de serem seus portadores vivos. Quando falamos psicologicamente não podemos evitar nos tornarmos rigidamente metafísicos porque a imaginação física foi esvaziada de nossas palavras. De acordo com Jung, a neurose está dividindo, e a terapia juntando. Se nossa linguagem conceitual divide neuroticamente ao abstrair a matéria da imagem e ao falar somente a partir de um lado, então o ‘como se’ da metáfora é em si mesmo psicoterapia exatamente porque distingue dois ou mais níveis - sejam palavras e objetos, eventos e significados, conotações e denotações juntando-os na própria palavra. Se a coniunctio é uma metáfora imaginada, então metáforas são a coniunctio falada. Em especial, nossa linguagem conceitual separa psique imaterial de matéria sem alma. Nossos conceitos definiram de tal maneira essas palavras que esquecemos que matéria é um conceito ‘na mente’, uma fantasia psíquica, e que alma é nossa experiencia de vida entre coisas e corpos ‘dentro do mundo’. Quando Jung envelheceu, ele se ocupou cada vez mais com esta divisão em particular matéria e alma, tentando juntá-la sempre com novas formulações: psicoide, sincronicidade, unus mundus. Mesmo definidas como abrangendo ambos os lados e mesmo que apresentadas ambígua e simbolicamente, essas palavras (diferentes, por exemplo, das alquímicas ‘pedra suave’, ‘hermafrodita’ ou ‘Casamento Real’ no Mar dos índios), somente reforçam o efeito de divisão inerente em tal linguagem unilateral. Pois elas também são conceitos, sem corpo ou imagem. Então, a psicologia continua neurótica: temos uma psique nominalista sem matéria (e, portanto, fantasia e imagem não importam ‘realmente, estão ‘somente’ na mente ou devem magicamente conectar-se com a matéria na sincronicidade), e uma matéria desalmada que busca sua redenção por meio de terapias corporais, consumo hedonista e marxismo. Terminamos com uma afirmação cultural sobre a neurose e sua terapia, parecida a que foi feita por Freud e por Jung. Nossa neurose e nossa cultura são inseparáveis. Depois da fala dúbia política, dos jargões e do pentagones, depois do cientificismo sociológico e econômico, do gerenciamento do discurso pela mídia e de todos os outros abusos - até aqueles de Lacan e Heidegger e as teorias 15 de comunicação realizadas em nome da linguagem - que esgotaram as palavras de seu sangue, trouxeram para nossos dias uma nova síndrome, mutismo infantil, e nos fizeram na psicologia perder a fé no poder das palavras, tanto que a terapia deve se voltar para gritos e gestos: depois disso tudo estou apaixonadamente sugerindo um modo de recuperar a linguagem retornando ao discurso que importa. Estou também retornando a Confúcio, que insistia que a terapia da cultura começa com a retificação da linguagem. A alquimia oferece essa retificação. 16 Rudimentos I Fogo Pois tudo o Fogo, aproximando-se, julgará (e condenará). Heraclito Reconhecerias o Mestre perfeito? É aquele que entende de regular o Fogo e seus graus. Nada se provará a ti tão formidável impedimento quanto a ignorância do regime - do calor e do Fogo. Thomas Norton Desejar não é suficiente; de fato, o desejo ignorante se frustra ou se deixa queimar. Para que o desejo se consuma, para que a opus tenha fruição - na arte, no amor, em qualquer tipo de prática - aprenda tudo o que puder sobre seu Fogo: sua radiância, sua instabilidade tremeluzente, seu calor e sua raiva. O Fogo, como um elemento acima e abaixo da razão humana, requer uma ‘psicanálise do Fogo’ - o próprio título do estudo exemplar de Bachelard.1 A arte do Fogo e a chave da alquimia significam aprender como aquecer, excitar, entusiasmar, inflamar, inspirar o material a mão, que é também o estado de nossa natureza, de forma a ativá-la rumo a um estado diferente. É claro que o laboratório, o forno, os alambiques e as retortas, os cotrabalhadores são invenções imaginárias tanto quanto fenômenos materializados. Você é o laboratório; você é o vaso e a coisa sendo cozinhada.2 Assim, também o Fogo é um calor invisível, um calor psíquico que clama por combustível, lugar arejado e consideração amorosa constante. Como produzir o calor que pode secar o orvalho encharcado, derreter as opressões plúmbeas e destilar umas poucas e preciosas gotas de claridade intoxicante? Na Grécia, nos templos de Asclépio onde os ‘pacientes’ iam para encontrar cura ao sonhar, eles incubavam por um período de tempo devotando-se a um chocar focado e a procedimentos corretos de forma a serem abençoados por um sonho benéfico. 1 2 Bachelard, G. . Boston: Beacon Press, 1964 [Em português: . São Paulo: Martins Fontes, 1994 - Trad.de Paulo Neves]. Tanto o corpo metálico quanto o alquimista sofrem e sentem prazer no processo. Não apenas as substâncias se juntam no alambique, também o alquimista ao mesmo tempo junta-se com a natureza’ (Lindsay, J. . Londres: Frederick Muller, 1970, p. 294). 17 Na Bíblia, Jonas, abandonado por seus companheiros, teve que permanecer por um tempo na barriga de uma grande baleia nas profundezas do mar. Naquela escuridão ele gerou calor, perdeu seus cabelos. Confinamento solitário; internalidade máxima. Esta é Nekya3 a viagem marítima noturna através do mundo das trevas, também feita por Ulisses, Enéas e Hercules, e por Eurídice, Inana, Perséfone, Psique, por Orfeu, por Cristo. Quer seja frígido e horripilante, ou fervente com os calores do inferno, esse mundo das trevas é um território caracterizado por temperaturas adequadas apenas a demônios, fantasmas, heróis e heroínas, deusas e sombras que já não pertencem inteiramente ao mundo de cima. Forasteiros. Marginais. Alquimia. Uma profissão de marginais; aqueles dos extremos. Aqueles que vivem de seu próprio Fogo, suando-o, autossustentando suas próprias temperaturas que podem diferir do clima coletivo. Tapas: o ardor do calor interno. Na Índia, o sábio senta-se na neve do Himalaia e com o calor de seu próprio corpo derrete um lugar para ficar contido por seu próprio continente. O Fogo da natureza é tanto celestial, descendo do sol, das estrelas e dos trovões, quanto ascendendo da terra em fontes termais, gases, gêiseres e vulcões. O alquimista trabalha com ambos os tipos, os que vêm do além para a esfera humana, os clarões e as febres, manias explosivas e cegueiras por olharmos para a luz, como também os fogos culinários interiores, os calores metabólicos do corpo que guisam, digerem e derretem os lombos de prazer. ‘Quanto maior a estatura espiritual de uma pessoa, maior a paixão sexual’, diz o Talmude (Tract. Sukkah). Como o Fogo que lambe e se junta ao tronco que queima, a paixão gruda-se aos corpos da vida. “Li/Aderir” (30), descreve o trigrama da filha do meio do . Como as garras de um gato, as patas de um leão, o Fogo sulfúrico liga-se ao objeto de seu desejo, ou liga-se ele mesmo a seu desejo. Calor interno intenso como o momento da fertilidade. A cadela está no cio (heat): ‘Solo aestu libidinis’, o calor apenas da libido liberta Mithras da pedra. Se a alquimia é a arte do Fogo, e os alquimistas, ‘artistas do Fogo’, como repetem tantos textos, então o alquimista deve ‘conhecer’ todos os tipos de Fogo, graus de Fogo, fontes de Fogo, combustíveis para o Fogo. E o alquimista deve ser capaz de combater Fogo com Fogo, usando seu próprio Fogo para operar sobre os fogos com os quais está operando. Trabalhar o Fogo por meio do Fogo. A natureza trabalha a natureza. A alquimia, uma arte da natureza, uma arte natural que aumenta as temperaturas da natureza. “O tempo da natureza é extremamente longo, e o modo de sua cocção é uniforme, e seu Fogo é bem lento. O da Arte, por outro lado, é curto; o calor é controlado pela inteligência do artista, assim o Fogo é também feito mais intenso ou mais brando.”4 Enquanto a ciência mede o calor por graus de temperatura, a alquimia observa os diferentes tipos de calor, as qualidades do Fogo. O calor aumenta à medida que a obra prossegue, crescendo através de quatro estágios clássicos. ‘Cada um destes é duas vezes maior que seu precedente’, diz Mylius.5 Textos diferentes descrevem esses quatro estágios em diferentes imagens, mas as seguintes ocorrem mais frequentemente: uma galinha choca,6 vagarosa e branda como a 3 4 5 6 Jung, C.G. .• Maier (1617), apud . . Mineola, N.Y.: Dover, 1995, p. 37. (1612), apud READ, J. . Cambridge: MIT Press, 1966, p. 264. ‘O Fogo deve ser brando, suave e úmido, como aquele de uma galinha chocando seus ovos’ Lexicon, v. ‘ ’. 18 carne; o sol em junho; grande e forte Fogo calcinante, queimador e veemente capaz de derreter o chumbo ou fundir o ferro. Outro texto lista os quatro como agua de banho, banho de cinzas, banho de areia e chama nua. O Dicionario de Ruland preenche os quatro estágios com descrições ricas.7 [‘O primeiro grau é muito vagaroso, e é como uma tepidez inativa; é chamado de calor de um banho morno, do excremento, da digestão, da circulação [[...]] semelhante ao calor gerado por uma galinha chocando sua cria’. Evidentemente, esse Fogo é gerado por chocar, digerir e manter dentro do corpo inferior seus intestinos fermentosos e ventre silencioso. As atitudes são mornas, acanhadas. A vagareza e a limitação da ação são por si mesmas capazes de desenvolver calor. “O segundo grau é mais feroz, ainda que seja seguro tocá-lo, e não machuca a mão. Eles o chamam de calor das cinzas [...]. Cinzas, por causa de sua finura, não produzem muito Ar.” O capítulo 9 adiante discute o papel do Ar; aqui, podemos notar que esse segundo estágio é alimentado com pouco combustível. Tem pouca inspiração, nenhuma respiração pesada. Ao invés, uma lentidão asfixiante, empoeirada, cinzenta, seca. “Não sobrou nada de mim, apenas cinzas”.8 “A cinza sobre um velho é toda a cinza/Que nos deixaram as rosas já sem viço.9 Esse calor pode ser tocado, manejado, vindo provavelmente de resíduos peneirados, um calor que se levanta da quentura das reminiscências, misturando memória e desejo”.10 Leia Eliot, Proust; leia Akhmatova: o calor feroz de cinzas finas, não revolvidas pelas brisas da fantasia. Por que feroz? Porque a cinza é a redução máxima, a alma nua, a última verdade, tudo o mais dissolvido. ‘A cinza é tudo’, disse Zosimo de Panopolis,11 o ‘primeiro alquimista, a autoridade patronal da disciplina’. O Rosarium Philosophorum (OC 16) diz que a cinza ‘permanece’, e Muhammad , o alquimista árabe do século X conhecido no Ocidente latino como Zadith Senior, escreve em sua : “Cinzas queimadas e a alma são o ouro do sábio”. Feroz? Porque somos assados em nossa própria natureza básica. “O terceiro grau queimará a mão, e é comparado a areia fervente ou limaduras de ferro”. Dissecação, uma condição da alma conhecida na Idade Média como siccitas acedia, a depressão seca da alma forçada pela resolução da vontade a realizar sua tarefa. O ferro de Marte, raivoso. O tempo no deserto infinito sob um sol causticante. Esse Fogo ‘queimará a mão’, de forma que não pode ser manejado. Está fora de controle, fora de alcance. Se o primeiro estágio era mantido no corpo e o segundo na memória, este é o calor da determinação desesperada, uma fúria isolada que torna a obra cada vez mais quente. “O quarto é o grau mais alto e é geralmente o mais destrutivo!...] uma chama viva e produzida da madeira ou do carvão.” Bernardus de Treviso diz: o quarto está ‘no ferro, ou na chama’.12 Além da óbvia associação do 7 8 9 10 11 12 Lexicon, v. ‘ ’. Norton descreve quatorze qualidades quentes do calor de modo crescente (‘ ’. In: HM/2). Cocteau . . Nova York: Coward-McCann, 1967, p. 32. Eliot, T.S. ’. . Nova York: Harcourt Brace & Company, 1952, p. 139. ‘ ’. ... Op. Cit. p.37. Berthelot . (org.). . Paris: Georg Steinheil, 1888, III.LVI. Lexicon, v. ‘Ignis’. 19 ferro e da chama com o ferreiro e a forja, há uma implicação do guerreiro-do-espírito no terceiro e no quarto graus. O santo do deserto, ascetismo; ‘é morte para a alma tornar-se úmida’, disse Heraclito, para quem o Fogo era o princípio básico. Toda a viscosidade da alma queimando nas chamas, desaparecendo no Ar fino, e a mundanidade esfumaçada, oleosa e fedorenta dos desejos sulfúricos foi purificada. É uma mudança do enxofre ‘comum’ ao ‘enxofre claramente ardente’ (ignis clare ardens) ou ‘Fogo extinto’ (ignis extinctus), ‘Enxofre privado de sua virtude’.13 Os dois fogos mais quentes são recomendados para a operação chamada calcinação: ‘A redução dos corpos em Cal por queima’.14 Cal = ‘qualquer pó reduzido pela separação de umidade supérflua’.15 A redução da confusão a uma essência, da umidade ou de um sólido a ‘um fino pó’,16 de lembranças nebulosas a uma imagem pungente, de um bloqueio teimoso a fantasia leve. Epitome = Epifania. A realização essencial. Momentos na memória ou uma tecedura de sensações (odores, sabores) desbridadas de associações pessoais, deixando apenas uma cal, um correlativo objetivo da questão super-determinada. Nenhum relato enfadonho das circunstâncias, apenas o coração quente da coisa. Nenhuma causalidade. Nenhum contexto ou condições. A verdade daquilo que é porque simplesmente é - não amalgamada. Redução máxima por meio do calor. ‘Seu material só pode ser cozinhado em seu próprio sangue’, dizem os textos. Esses pós trabalham em outros corpos como catalisadores e ativadores, entrando em misturas, absorvidos e desaparecidos. Ou, como um pigmento em pó que, quando tocado por uma gota viva de umidade (uma dor cruciante de desgosto, uma onda de volúpia, um jorro de esperança), pode colorir toda uma cena. O alquimista trabalha com essas essências, essa natureza tratada, cozinhada, conquistada, não com a natureza crua. O corpo calcinado é aquele que passou pelo Fogo, um corpo renascido, um corpo sutil, não mais ligado ao que esteve ligado e que, portanto, pode ser inteiramente absorvido pela obra. O calor medido em números num termômetro não tem qualidades palpáveis, apenas mais alto ou mais baixo, mais ou menos. Bidimensional. O calor qualificado por uma galinha choca, chumbo derretido, pelas estações, cinzas, traz a imaginação do operador diretamente para uma relação com o Fogo. Além disso, esses calores particularizam o Fogo. A quentura dada por um banho é sentida de modo diferente que a quentura que irradia de carvão aceso. Assim como o calor do vento do deserto difere da umidade da selva. A fonte do calor qualifica o calor, leva para o calor suas virtudes de cinza, água, esterco, chama. Quando a alquimia usa termos para o Fogo tais como ‘Fogo persa’ (ignis persicus) (uma úlcera torturando com um calor de Fogo),17 ‘barriga do cavalo’ (venter equi), ou ‘Fogo do leão’ (ignis leonis), ela estimula uma atenção cuidadosa às imagens, uma prática semelhante a cuidadosa observação cientifica do termômetro. Termos poéticos tomam a medida da imaginação. 13 14 15 16 17 Ibid., v. ‘ ’. Ibid., v. ‘Combustio.’ Ibid., v. ‘Calx’. Alchemy. Harmondsworth: Penguin Books, 1957, p. 45. Lexicon, v. ‘ ’. 20 Figulus avalia graus de calor pela mão.18 “O primeiro grau é aquele que permite que a mão o segure [[...]]. Um segundo grau é aquele que permite que a mão o segure, mas por pouco tempo. Note que é o Fogo que permite.” O Fogo é o agente, o mestre da obra. Conhecer esse mestre é o mais importante; não aprendemos sobre ele em livros ou palestras sobre o desejo. A boa cozinheira já queimou alguns pratos e também sua mão. Aprendemos sobre o calor com chefs, ferreiros, ceramistas, embalsamadores, curando tabaco, defumando presunto e peixes, assando pizzas, secando folhas de chá, fermentando cerveja, destilando bourbon. Derreter açúcar por si só requer uma linguagem sutil de muitos pontos, consistências, graus. O conhecimento manual das intensidades aplica-se a outras disciplinas. Escrever, por exemplo: deixe o capítulo sobre a escrivaninha intocado por três dias. Apanhe-o novamente apenas para descobrir que ele coagulou como fria carne de carneiro. O boxeador deixa de lado o treinamento por um tempo, e suas pernas perdem sua dança no ringue. O paciente vem para análise apenas a cada quinze dias, ou fica fora por um mês, e então o calor nunca aumenta, e as sessões tomam-se preguiçosas, triviais, mornas. Ao virar as páginas dos velhos tratados de alquimia com suas gravuras, ou as muitas representações detalhadas do pintor flamengo David Teniers, o Jovem (1610-1690), do alquimista trabalhando podemos ter uma compreensão errônea de que Fogo é externo. Não, o alquimista traz sua própria participação calórica; ele está com o Fogo, no Fogo. O velho senhor no laboratório preparando soluções com seu aparato, ajoelhado ao pé do Fogo, e o velho senhor da mente, suas mãos no forno de seu próprio corpo, suando sobre a transformação de sua própria natureza - nossos próprios ácidos e enxofres, nossas próprias putrefações, nossos próprios sais amargos. Fogo dos deuses O Fogo como uma criança sempre faminta, Fogo como uma criança crescendo rápido, jovem e flamejante, Fogo como uma virgem sempre renovável. Lareira como útero, berço, abraçando o centro em torno do qual a opus circumambula. Estamos de volta a Hestia19 que se sentava no meio da casa antiga, do palácio do rei, da prefeitura - não como uma estátua ou uma figura personificada, mas simplesmente como o Fogo na lareira. Simples assim. O Fogo de Hestia requer cuidado. Ela é um Fogo domesticado da cultura; uma restrição severa da paixão; uma quieta, ainda que feroz, quentura da atenção. Esse Fogo é o mistério da própria consciência focada. Hestia vinha primeiro na declinação da hierarquia divina em orações e, algumas vezes, em procissões, porque antes de tudo vem a habilidade de atender, de estar atento. Enxergamos o escuro e enxergamos no escuro por causa de sua luz. Senhora das tarefas, disciplinadora, intenção pura, dignidade - tais são as demandas que ela coloca para o trabalhador do Fogo, e a alquimia está entremeada com esse tipo de alertas severos. Outros deuses, outros fogos. Ou, como disse a respeito do politeísmo o mestre mitógrafo Karl Kerenyi, não muitos mundos diferentes, mas o mesmo mundo estilizado de acordo com uma variedade de divindades. Assim, os alquimistas também são filhos de Hefesto, pois sua ancestralidade volta aos ferreiros e suas forjas; e filhos de sua esposa, Afrodite, por causa de sua ancestralidade nas artes da joalheria, da perfumaria, da cosmética e do tingimento de 18 19 Figulus, p. 267-26$. Cf. Hillman, J. ‘Hestia ’. Mythic Figures, 6, p. 1. 21 tecidos; e de Ares/Marte, seu amante, por causa do calor vermelho ígneo cujos emblemas na taquigrafia alquímica são a espada, a flecha, a faca, a lança, instrumentos que perfuram, matam e fazem separações; e de Hermes, por causa das sutis transformações e formulações secretas, das manipulações truculentas, do ímpeto mercantil e das pretensões charlatãs; do velho Saturno, porque o árduo trabalho começa no chumbo e termina no chumbo, disse Michael Meier, uma via longissima, um labor de manter o Fogo aceso, retirando cinzas, atento e insone; ou de Hades por causa de sua linguagem de crueldades e um calor que apodrece assim como o Fogo infernal da morte seca20 e por causa das origens da alquimia no embalsamamento e a suposta origem egípcia para a raiz da palavra khem = preto, esta ‘arte negra’, como foi chamada que, como Hades, opera invisivelmente, às escondidas, longe da visão humana diária. Ainda assim, entre todos esses está o Fogo de Hestia, e de /Afrodite, que nos atrai para a obra com um sentido de prazer e amor, e um prazer sensual com as cores, os cheiros as texturas das misturas. Alquimia como uma paixão, uma devoção, uma bhakti yoga. “O Fogo é o Fogo do amor, a vida que escorre da divina Vênus [...] o Fogo de Marte é demasiado colérico, demasiado abrupto, e muito feroz[...]”.21 Muitos deuses e deusas, incluindo referências a Diana/Artemis e a Lua; os raios de Zeus; Eros; o vinho e o desmembramento de Dioniso. Mas uma figura em que nos modernos pensamos em primeiro lugar com relação ao Fogo, Prometeu, está faltando! Prometeu não pertence a devotio alquimica, e a obra precisa estar sempre alerta com relação ao ‘pecado prometeico’, roubar o Fogo para uso humano. De acordo com Platão, Prometeu roubou o Fogo de Hefesto (Esquilo diz que foi de Zeus; Hesíodo diz que foi do Sol). A versão de Platão sugere uma clarificação básica.22 Hefesto trabalha com o Fogo pelo bem da obra; é o amor, diz Platão, que o instiga. Prometeu quer o Fogo para o ‘bem da humanidade’. O primeiro é estético, até mesmo religioso: o segundo é ideológico. Mas, de qualquer forma, Prometeu era um Titã e uma dominante do capitalismo, do nacionalismo e do humanismo ideológicos titânicos da Era Industrial, e da mutação final da alquimia em química (cf. cap. 9). Acelerar a natureza Já que a natureza tem seu próprio calor e trabalha lentamente em sua própria melhoria, o Fogo do alquimista pretende principalmente ajudar os próprios esforços da natureza. ‘Os próprios esforços da natureza’ - isto nos dá a chave da apropriação do Fogo por Prometeu e por alquimistas que buscaram o ouro real e a cura real. Jung reconhece o pecado prometeico assim como ele aparece no cristianismo, embora não faça a ligação com o mito grego. Há uma ‘separação de caminhos’, escreve Jung, entre a obra cristã e a alquímica. O alquimista “pode ter um papel na perfectio, o que lhe confere saúde, riqueza, iluminação e salvação, mas [...] uma vez que não é ele que deve ser redimido, ele está mais interessado em aperfeiçoar a substância do que a si mesmo.” 23 20 21 22 23 Onians, R.B. Cambridge University Press, 1951, p. 288 e 258, n. 5. Pordage . (1607-1681). In: . Platão. Simposio 197a. • Protagoras 321e. Jung, C.G. Oc12,451. . Cambridge: 22 A visão alquímica mais ampla vai além do humano; ela quer redimir a natureza, alcançar sua perfeição, e o Fogo é o meio para atingir esse fim. Como um dos quatro elementos que dá base ao ser do cosmo, o Fogo não pertence nem mesmo aos deuses. O Fogo não pode ser roubado e tornado disponível para o uso humano mais que a Terra, o Ar e a Água podem ser usurpados para o benefício de uma espécie apenas. O impulso prometeico e, na medida em que ele se tornou cristianismo humanamente centrado, dificilmente tem um caráter ambiental. Qualquer estudante de alquimia, qualquer um que tome emprestado seus tropos para sua própria arte ou prática, fazendo o trabalho para sua própria natureza, permanece prometeico, um humanista secular, um cavador de ouro. Se a alquimia está por trás dos processos naturais que acontecem na psicoterapia profunda, como mostrou Jung e também nas artes, então essas atividades também devem ter um objetivo para além de Prometeu. O cultivo da alma de um indivíduo, ou mesmo da coletividade, ainda permanece humano. Como a alquimia, a psicoterapia profunda é obrigada a estar focada na perfeição da substância, não do sujeito, ou ela permanece moralmente em falta, como Prometeu, por ter roubado os deuses, e os praticantes da psicoterapia vão se perceber acorrentados a uma rocha de humanismo centrado na pessoa. Como conceber esse serviço à natureza? Como o paradigma alquímico pode avivar uma prática, uma arte, de forma que a prática, a arte, sirvam a natureza? Muito simples: ao reconhecer as coisas e as ferramentas, os lugares e as construções como tendo cada um deles seus espíritos animados; ao reconhecer a anima mundi - que todas as coisas são almadas, que têm interações próprias, hábitos e prazeres próprios. Tratar as coisas com respeito a suas propriedades. Alquimia é animismo. Os materiais confiam que possamos melhorá-los. Nada pode ser usado sem sua cooperação consentida. Ao tratar os materiais como almados, ao invocar os espíritos dos metais e ao falar de suas qualidades emocionais, a alquimia encontrou deuses na natureza, e alma, ou animação, no mundo físico. A devoção à alquimia não era exatamente um ramo do então contemporâneo humanismo; menos o estudo das obras humanas da cultura e da linguagem, mais um foco no mistério não humano das coisas, seus potenciais inatos, sua animação. Todos os conselhos piedosos e as admoestações morais, de que os textos estão repletos, parecem estar lá para contrabalancear a experimentação desumanizante, talvez demoníaca, com aquilo que está fora da medida humana. A ciência de hoje, que investiga poderes não humanos semelhantes, omite contrapesos morais semelhantes. O Fogo produz e permite efeitos diferentes em substâncias diferentes e em situações diferentes. Santo Agostinho nota que o Fogo preteja a madeira e embranquece a pedra, produzindo efeitos contrários em materiais que são mais parecidos do que contrários.24 Cada coisa incendeia de acordo com seu próprio estilo. Conheça seu Fogo, mas conheça também seu material. Por exemplo: um marido e uma esposa são parecidos, são um casal. Considerar entrar no vaso de uma psicoterapia é aumentar o calor de suas dificuldades. O Fogo pode embranquecê-lo, e pretejá-lo, ou vice-versa, e eles acabam como contrários. Quando aceleramos a natureza com calor, adaptamos o calor às qualidades da substância. Mais que isso: o calor que aplicamos externamente por meio do Fogo visa acender e reforçar 24 Agostinho. Cidade de Deus. Livro XXI, 4 [s.n.t.]. 23 o calor inclusus dentro da substância. A quantidade e a qualidade do calor são determinadas pela coisa com a qual estamos trabalhando. Não demais, não de menos. Dosagem. Assim, a aceleração da natureza não tem fórmula, nenhuma clareza quanto a quantidade de horas, dias, anos. ‘Quanto tempo vai levar?’, pergunta o paciente ao médico, o cantor a seu instrutor, o escritor a sua agenda para fazer deste rascunho algo decente para enviar. Bonus de Ferrara observa: “O tempo necessário para a obra é colocado por Rasis em um ano. Rosino o fixa em nove meses; outros em sete, outros ainda em quarenta ou oitenta dias. Ainda assim, sabemos que o tempo que leva uma galinha para chocar seus ovos é sempre o mesmo, então um certo número de dias ou meses, e não mais, deve ser suficiente para a obra. A dificuldade com relação ao tempo também envolve o segredo do Fogo, que é o grande mistério da Arte.”25 Uma passagem mais sutil compara a opus com um embrião que requer nove meses para maturar, cada trimestre governado por um elemento.26 Primeiro a opus é nutrida por Água, depois por Ar e, finalmente, por Fogo. A transição de Água para Ar, das inundações e dissoluções para a secagem e o distanciamento é muito conhecida de artesãos em qualquer trabalho que requeira concentração. Então, a obra é ‘ativada pelo Fogo’. Vive por si mesma. O desejo ou o ímpeto que impeliu o trabalho se exaure, todas as intenções, expectativas e ambições queimadas na pura paixão do fazer. II Combustível: Carvão Vegetal e Ar Nas florestas e campos da velha Europa e ainda hoje em partes da Ásia Central e da África, e no Brasil, Japão, Índia e China, carvoeiros juntam seus troncos e galhos para fabricar o combustível que era essencial a alquimia.27 O naturalista romano Plinio, o Velho (23-79 d.C.), listou cuidadosamente os tipos de madeira que dão o melhor carvão e para quais propósitos específicos. O abeto, escreve ele, absorve melhor os foles; é de combustão lenta, portanto se adequa a ferreiros e suas forjas. Para o ferro, carvão de castanheira; para a prata, de pinheiro. Para uma mentalidade alquímica, o Fogo mais puro precisa do combustível da substância mais pura. Aquilo que você ganha do Fogo é somente aquilo que o alimentou. O carvão de lenha é o combustível mais desejado porque sua matéria foi purificada. Ou morta. É por isso que ele é preto e tão leve. Tudo aquilo que é supérfluo foi queimado. Ele passou pelo Fogo, um combustível nascido duas vezes, primeiro como madeira natural, depois como a essência daquela madeira. Carvão: um opus contra naturam. O carvão também sinaliza em seu tempo de vida as cores da opus alquímica: torrões pretos, cinza branca, chama amarela, brasas vermelhas. Algo ainda mais misterioso: até a origem da palavra [charcoal] em inglês é desconhecida. Nascido do Fogo e morrendo no Fogo, o carvão é o devoto do Fogo. O serviçal altruísta, seco de umidade, sem desejos de transformação próprios. Assim ele serve tão bem como limpador, 25 Bonus, 115-116. 26 27 . Toronto: Inner City, 2000, p. 290. Estima-se que cem milhões de toneladas de carvão vegetal ainda estão sendo produzidos anualmente. Cf. .‘ ’. Science Review, 160, 2001, p. 383. 24 absorvente, purificador, permitindo que outras coisas atravessem seu corpo poroso sem participação. Nem reagente ou combinador, nem catalisador, o carvão é o combustível que não interfere, um doador de energia que não pede nada em troca. Esta é a qualidade da energia que opera na opus. Ainda mais leve que o carvão é o Ar do qual o Fogo depende. É o combustível primário, dado pelos deuses como mostra o Fogo dos relâmpagos. Gravuras de alquimistas junto a seus fornos e fogões, e de ferreiros junto a suas fornalhas, com frequência mostram um assistente, chamado ‘soprador’, trabalhando com um fole, mantendo o Fogo com um fluxo constante de Ar. Há imagens egípcias desses sopradores com seus foles já em 1450 a.C.28 De zarabatanas indígenas (pequenos tubos de soprar) e foles primitivos as rajadas das fornalhas de fundição, o Fogo usa o Ar para intensificar o calor. Para extinguir um Fogo, corte sua fonte de Ar. O que é este ‘Ar’ e como maneja-lo? Bem no começo do pensamento ocidental sobre a natureza e o cosmo, Anaximenes de Mileto (século VI a.C.) propunha que um Ar Elemental era o fundamento do cosmo. A ideia de um elemento invisível e transparente que se rarefaz e se condensa, e do qual o Fogo e a luz dependem, do qual, de fato, toda a vida depende, continuou a deixar perplexo o pensamento humano que divisou teorias do éter, do flogisto, anjos aéreos e demônios alados, poderes celestiais e máquinas voadoras, vapores e fantasmas, a alma como sopro - até a análise química do Ar, durante o Iluminismo, por Priestley e Lavoisier, e a descoberta do oxigênio (cf. cap. 9). O fascínio pelo Ar, e a imaginação inspirada que dele vêm, continua nos maravilhosos tratados de Bachelard sobre a poética do Ar e de David Abram sobre a linguagem, o Ar e o ruach da respiração divina. O caráter do Ar Elemental também vem da astrologia médica e psicológica, em que o Ar é um dos elementos fundamentais que compõem o cosmo. Textos antigos de psicologia apresentados na simbólica da astrologia ensinam que o Ar fornece ao Fogo um resfriamento, ainda que o Ar incremente seu calor; um distanciamento, de forma que o Fogo não se queime e se extinga; e jorros de inteligência sagaz, pensamentos elevados e mobilidade de direção, mesmo enquanto ele cegamente enfurece. O Ar também alimenta o Fogo com invisibilidades mentais, com espírito e uma visão mais ampla, de longo alcance. Um fluxo constante de atenção focada aviva o carvão inerte, produzindo quentura e luz. O Fogo de fato queima o Ar, o bruxuleio da chama é o mesmo oxigênio que queimamos. Porque estamos vivos, estamos queimando, consumindo o Ar, e portanto gerando o calor inclusus que sustenta nossos dias. Nossa morte é uma expiração, o balão de Ar esvaziado, o Fogo extinto. O ato de respirar é nossa primeira participação no cosmo, circulando em nossa interioridade íntima. O Fogo vive da mente, e o calor sustentável de nosso sangue quente depende de inspiração, de invenção fantástica, de inteligência ‘brisada’ e retórica ventosa, de brain-storming, teorias rarefeitas e ideias frescas. A mente, uma fornalha rajante. Uma almasopro de palavras infladas deve continuamente alimentar a obra. O alquimista com seu soprador e seu fole suga para seu projeto a inspiração do nous do mundo, a mente arquetípica que se move como o vento por toda a terra. Dos quatro cantos, o sopro de vida do pensamento tradicional bombeia a obra. E assim encontramos os alquimistas referindo-se constantemente a outros textos, inalando o pensamento de outros doutores da Arte e apresentando essa dependência com a máxima ‘um livro abre outro’, tal como pintores leem 28 Read. . (s.l.]: [s.e.l, p. 79. 25 filósofos, compositores observam arquiteturas, filósofos visitam museus, poetas traduzem coisas de línguas distantes ou mortas - seus fogos desesperados por novos influxos. Pois o Fogo deve ter palavras; e os escritores cujas vidas são Ar - Keats, Stevenson, Lawrence - morrem jovens de consumição;29 não queimados, mas acesos. III Metais Embora a alquimia tenha se movido da forja para o laboratório, trabalhar com metais não foi deixado para trás. Os metais elementais - ferro, chumbo, cobre, mercúrio, estanho ou antimônio - entravam nos compostos, acrescentando suas naturezas às misturas. Cada um dos principais metais corresponde a um dos sete corpos planetários que influenciam a alma por meio de suas exalações, o pneuma, respiração ou inspiração, que dão qualidades especificas à obra. A – ‘assim acima como abaixo’ – significa mais que a simbolização na terra dos planetas do céu. Correspondência: “congruência; intercurso amigável; adaptação mútua; conexão; correspondência (escrever cartas). Significa estar em contato, receber mensagens. As coisas na terra, particularmente os metais na terra, estão em contato com os deuses; eles carregam mensagens míticas. Há um espírito no ferro, no chumbo, um spiritus rector, um princípio guia que ensina o artesão. O ferro ensina lentidão; o cobre, quentura rápida; o mercúrio ensina o inalcançável e a fusibilidade. Esse espírito no metal, seu corpo sutil, e sua sombra, em vez do mineral enquanto tal, torna-se o foco da alquimia. Portanto, o trabalho alquímico com os metais e chamado de ‘sofisticação dos metais’. O alquimista tenta extrair qualidades especificas do metal. Como um refinador tenta soltar o metal de seu minério, o alquimista tenta perceber uma qualidade no metal - o vigor passional no ferro, digamos, de forma que a pedra (aquela meta da obra) seja forte, penetrante, intencional. Ao mesmo tempo, a alquimia alerta para a possessão pelo próprio espírito que está buscando, uma possessão que pode manter o artífice preso à sombra do ferro: rígido, marcial, sobrecarregado, enferrujado. O processo é tanto de ‘Refinamento’, ao extrair do refugo a essência, quanto de 'transmutação’, ao elevar o grau do metal do mais baixo para o mais alto, de chumbo e ferro para prata e ouro, pois os próprios metais estão repletos de um desejo de retornar à condição mais elevada da qual caíram. Em cada metal está o desejo adormecido de se transmutar num estado mais nobre.30 Refinamento e sofisticação almejam a pureza, uma prata que é esterlina, de lei, um ouro que é 24 quilates. Pureza: a menor quantidade possível de misturas estranhas. Pureza: inteiramente igual. O metal refinado não está adulterado; o metal sofisticado foi reduzido a suas qualidades essenciais. Refinamento e sofisticação pela disciplina. 29 30 ‘Consumição’ em inglês, consumption, além dos sentidos de consumo, gasto, dispêndio, também significa doença devastadora, em especial a tuberculose [N.T.]. A alquimia ignora a distinção moderna entre química orgânica e não orgânica. Cf., p. ex., o grande e original trabalho de Ângelo Sala (1576-1637) sobre açúcar (orgânico) e o sal (inorgânico). Ambas as substâncias incorporavam princípios paracélsicos semelhantes: o combustível (enxofre), o fluido (mercúrio) e o resistente ao calor (sal). Para os paracélsicos, e alquimistas como um todo, os metais e seus minérios ‘cresciam’ na Mãe Terra como plantas. Cf. Gelman, Z.E. ‘ ’. Ambix, vol. 41, n. 3,1994, p. 146-160. 26 O ferro impõe sua disciplina. Adentre a forja da raiva, derreta e coagule, renda-se ao martelo e endureça, seja mergulhado repetidas vezes no fogo e no banho de resfriamento. Esses rigores ressoam com as fúrias de Marte e seu temperamento colérico, a impaciência, a dureza, a resistência à maleabilidade, e a necessidade de se manter livre de ferrugem, seco. A disciplina venusiana do cobre trabalha rumo a uma essência mais sofisticada ao separar secando, queimando - idealizações coletivas, restrições tradicionais, insinuações sentimentais, de forma a alcançar a beleza essencial do cobre que é revelada pela sutil pátina de sua superfície. (Vênus como a deusa da pele das coisas - sua sensação, seu brilho.) Em grego, a palavra ορυχείο refere-se a um canal subterrâneo ou mina; μεταλλωρύχος é aquele que procura metais, um mineiro; e αναζήτηση significa buscar, inquirir. Um jogo de palavras adiciona ainda outro significado: μεταλλάσσω significa mudar, alterar - talvez os metais tenham prazer em alterar-se e aproveitem a disciplina a eles imposta para retirar-lhes o corpo do minério e a própria fundição. Como na busca alquímica um livro leva a outro, então, diz Plinio, o Velho, um veio leva a outro. O adepto provocado pelo metal torna-se um garimpeiro, explorando a fundo o coração elemental da psique buscando as substâncias fundamentais que subjazem ao comportamento superficial das coisas. É como se os deuses planetários, em seus esconderijos metálicos, empurrassem as profundezas para buscar mais fundo, ganhando cada vez mais conhecimento essencial e habilidade técnica daquilo que os metais fornecem. Eles se tornam os mestres, os mentores. A inerente perfeição das substâncias afasta todas as coisas do literal, do indiferenciado e do apenas natural como dado ou como achado. O ‘apenas natural’ pode ser necessário, mas é insuficiente, já que os próprios metais pedem por sofisticação. A alma dada pede para ser trabalhada. A alma, em seu estado natural, é inocente, ignorante e, portanto, perigosa. O fato de que o próprio material pede para ser refinado, o cru querendo ser cozido, sugere uma base arquetípica para as ideias de perfeição, progresso, assim como de evolução. A condição material primária de uma substância esconde sua natureza essencial. Ela nem mesmo conhece a si mesma, ‘refugo’. Seu trabalho move o material de sua apresentação primeira ou primária para um momento de revelação quando se torna psicologicamente inteligível. O praticante busca não somente libertar o metal de seu minério, mas libertar os sentidos do metal, suas ligações com a inteligibilidade do cosmo. Para o alquimista, o mundo está assinado pelos deuses, e aprendemos a ler suas assinaturas e ganhar o significado dado por cada coisa. Aqui, assumimos a inerente inteligibilidade do mundo. Esse conhecimento inato não reside na mente onisciente de Deus, mas é imanente no mundo das coisas, dando a cada uma delas seu valor especifico, permitindo que seja compreendida. Ao lermos o mundo como fazem os animais, adaptamo-nos a ele e podemos ajuda-lo melhor em seu caminho rumo a suas metas. A alquimia não era apenas a fabricação de ouro para o benefício do alquimista e seu patrão. Dentro do trabalho estava a visão que queria trazer o próprio mundo para uma era dourada, preenchendo seu desejo de perfeição, um cultivo de alma do próprio mundo. A natureza está constantemente trabalhando para esse fim. Seu próprio calor inclusus, ou calor inato, vagarosamente transmuta a matéria primária teimosamente resistente. O alquimista, 27 contudo, ao intensificar engenhosamente o calor, podia acelerar os objetivos da própria natureza. Em seu laboratório, e em seu forno, o adepto acreditava que podia levar a fruição, no período de uma vida, ou mesmo em menos tempo, o que a natureza por ela mesma leva séculos para realizar. Embora a obra seja sempre apresentada como uma opus contra naturam (uma obra contra a natureza), era, é claro, um seguir a natureza, guiada pela natureza, instruída pelo livro da natureza que o alquimista diligentemente estudava. Portanto, a melhor afirmação para resumir a atitude alquímica e de Ostanes, que Jung cita frequentemente: “A natureza se deleita na natureza; a natureza subjuga a natureza; a natureza governa a natureza.”31 Resistência A natureza subjuga a natureza por meio do fogo. O calor dissolve a coesão de uma substância; aquele desejo natural de manter-se como ela é. O calor separa o metal de seu corpo de minério e pode calcinar o metal numa condição mais trabalhável. No estado apenas natural, as substâncias resistem a mudança. Elas intencionam permanecer como são e como tem sido por milhões de eras, enterradas e escondidas. Ainda assim, o impulso inato à perfeição recebe bem o fogo. Portanto, elas também regozijam em sua submissão, permitindo serem fundidas, marteladas e extraídas de sua base. A resistência de qualquer coisa é dada com sua natureza essencial. “O poder ou o esforço, com que cada coisa se empenha em persistir em seu próprio ser, não é nada além do que a essência dada ou factual da coisa em questão”, escreveu Spinoza.32 A resistência no trabalho, e ao trabalho, não é pessoal, mas ontológica. O ser não se move, disse Parmenides, ao que replicou Heraclito, tudo se move. Duas ontologias divergentes. Ambivalência ontológica. A máxima de Ostanes dá conta da ambivalência inerente nos metais e em toda a arte alquímica. A máxima de Ostanes sofistica a própria ideia de ambivalência. De fato a natureza goza seu estado natural e resiste a mudanças; ainda assim, luta contra sua predileção pela estase, dominando a si mesma e tornando a mudança possível. A natureza se sofistica, dividindo sua ambivalência em dois aspectos - o imutável e o mutável. É, portanto, tolo tentar mudar o imutável. Ou, como diz o alquimista: ‘Não se pode fazer uma vaca leiteira de um rato’. O que muda e o que não muda? O que permanece o mesmo e o que se toma diferente? Em termos filosóficos, a existência muda, mas a essência permanece inalterável. O corpo natural do metal pode se tomar um líquido, um pó, um vapor; pode combinar-se, alterar a cor, submeter-se aos efeitos de outras substâncias. O corpo sutil, entretanto, persiste em sua própria inalterabilidade. É preciso calor para dominar a resistência inata de uma substância, um calor suave o bastante para derreter o que é teimoso, e feroz o suficiente para impedir o regresso ao estado original. Somente quando a regressão à condição original ‘encontrada’ - a substância em sua apresentação sintomática - não é mais possível, somente quando ela foi inteiramente cozinhada, e foi verdadeiramente separada de seu modo de ser histórico e habitual, pode-se dizer que uma alteração foi alcançada. Então a substância, que a psicologia 31 32 Jung, C.G.OC9/2, 244n. Ethica, parte III, prop. VII. B. de Spinoza. In: Nijhoff, 1914. , J.P.N. (orgs.). Opera. Vol. 2. : Martinus 28 poderia chamar de um complexo, torna-se menos autônoma e mais maleável e fundível, tendo perdido sua independência como um objeto intratável que objeciona e resiste. Somente aí pode o corpo sutil do metal - a dureza do ferro, a quentura rápida do cobre, o peso do chumbo - juntar-se a obra. ‘Somente coisas separadas podem ser reunidas’, dizem os alquimistas. IV Os Vasos O paradoxo inescapável do fogo - da alquimia, da psique, da vida inteligente - consiste deste mandamento duplo: Não reprimirás/Não atuarás. Por um lado, o fogo irá atuar. O fogo se espalha; seu apetite consome tudo o que seja combustível. Não pode ser guardado. ‘Três coisas não se pode esconder’, diz um provérbio árabe, um camelo no deserto, alguém apaixonado e o fogo.33 O fogo insiste em ser visível. Não quer ser reprimido, suas faíscas abafadas, extinguidas. Ele persiste muito tempo após terem morrido suas chamas. Por outro lado, o desejo pode não ser lançado diretamente no mundo. A obra se perde no calor direto, dizem os alquimistas. Não deixe as chamas tocarem o material. O fogo direto chamusca, enegrece as sementes. O fogo é rápido, e ‘toda a pressa vem do diabo’. ‘Festina lente’, ‘pressa vagarosa’, advertia uma conhecida máxima renascentista. Não atuar; não segurar. Um paradoxo. É uma negativa dupla, o que sugere uma via negativa, um cancelamento desliteralizante de ambos os mandamentos. Um escape mercurial da oscilação exasperante entre eles. Em vez de segurar ou atuar, aja internamente. Cozinhe no rotundum - como já foi chamado um vaso, referindo-se tanto a um recipiente quanto à redondeza do crânio.34 Mantenha o calor dentro da cabeça ao esquentar os devaneios da mente. Imagine, projete, fantasie, pense. Os vasos tanto contêm quanto separam. Uma das principais operações da obra é a separatio. Cada substância, cada qualidade, deve ser distinta da massa confusa do material primário, a confusão original. Embora se mencione constantemente as duas operações de separação e conjunção como básicas à obra o tempo todo (também chamadas ‘dissolve e coagule’), a separatio é a mais fundamental. Isto, novamente, porque somente coisas separadas podem ser reunidas. Qualquer substância mantida num cesto ou num jarro foi separada da pilha principal e indiferenciada simplesmente em função de um recipiente. A coisa material não é diferente, e ainda assim foi totalmente diferenciada por sua forma. Sua cerveja numa garrafa, minha cerveja numa lata, são a mesma e não são a mesma. Água numa jarra é água de jarra, como água engarrafada, água de mina, água de rio. No momento em que a água escorre da torneira enchendo este vaso ou aquele jarro ela assumiu uma forma. 33 34 (1946), um filme dirigido por Robert Z. Leonhard, com Claudette Colbert, Walter Pidgeon e Lionel Barrymore, abre com o seguinte prólogo escrito: ‘Há três coisas que não podemos esconder: o Amor - a fumaça – e um homem montando um camelo - velho provérbio árabe’. Jung, C.G. . 29 Não podemos manejar todo o sofrimento, todo o mal, toda a ignorância, toda a emoção somente aquela parte específica que foi separada e que tomou uma forma reconhecível. A própria água nos chega numa variedade de condições, de gotas de chuva até os oceanos, do pântano estagnado à cascata branca. Os vasos que a contêm têm paredes e fundos. Não é meramente uma questão de estarmos muito molhados ou muito secos, muito gotejantes e aguados ou muito ressecados e quebradiços, mas que forma tem nossa umidade. A humanidade dá forma, como os pássaros dão um formato a seus ninhos e animais que vivem em tocas formam seus túneis. E também damos forma a nossos túmulos e urnas funerárias horrível quando os corpos dos mortos são baixados a uma cova, sem forma. Tudo aquilo com que lidamos deve estar limitado de alguma maneira. Até os oceanos têm suas costas. Se Deus não tivesse nos dado vasos / Seus outros presentes seriam inúteis.35 Há vasos de todo formato e tamanho, feitos de todo o tipo de material, desde junco de rio e varas de salgueiro até argila grossa para potes, madeira para barris, metal e vidro para canecas. Alguns vasos esquentam rápido, mas racham fácil. Alguns são opacos, outros transparentes; alguns são chatos e abertos para permitir evaporação, outros são fechados firmemente para intensificar a pressão. Vasos: métodos de conter. Você aguenta o calor? Você é opaco e denso, aquece devagar, de forma que ninguém pode dizer o que se passa aí dentro? Às vezes interessa menos o que está dentro do vaso, a natureza da coisa que está sendo contida, e mais seu formato, sua forma: mal vedado, frágil, quebradiço, sólido, tão cheio que vasa, vazio, rachado [...] Estou bem, estou em grande forma. Vasos são o modo como abraçamos os eventos, os estocamos, os estilizamos. Antes das armas e das ferramentas, o vaso. Cace o mastodonte; cozinhe sua carne; mas a sobra precisa ser guardada, e a água precisa ser trazida do rio. Seus outros presentes seriam inúteis. Junto às pedras lascadas e machadinhas de pedra, às pontas de lança e varas de pescar - instrumentos de matança - há cestos, sacolas, cabaças e potes - instrumentos de conter. Já que os primeiros duram no tempo, enquanto os segundos decaem e se fragmentam, nosso quadro da vida humana mais antiga coloca o macho caçador em primeiro plano, e a fêmea coletora, zeladora e separadora ao fundo. Vasos apresentam o estilo de uma cultura. Uma imagem conta toda uma história: uma quitinete barata, uísque tomado num vidro sujo, lascado, de escova de dentes, numa página de Graham Greene; e latinhas de cerveja, copinhos de plástico, xícaras de café engraçadinhas, lixeiras de motel. O falatório a respeito de tipos de taças para vinho, sua base, sua espessura[...] Dize-me qual teu vaso e dir-te-ei quem és. Que seus vidros para destilação sejam redondos ou ovais [...] Que a altura do pescoço do vaso seja mais ou menos um palmo, da largura da mão, e que seja claro e espesso (quanto mais espesso melhor, desde que seja claro e limpo), e que te permita distinguir o que se passa dentro dele [...] O 35 ‘If God has not given us a vessel / His other gifts would have been of no avail.’ Esta máxima é atribuída a Alberto Magno, apud ‘ .’ HM 2, p. 62. Norton acrescenta, ‘e este vaso é de vidro’. ‘Além do mais, o tamanho e formato de seu vaso deve estar em porporção à quantidade de sua substância, e a todas as outras condições do experimento.’ 30 vidro deve ser forte para impedir que os vapores que ascendem de nosso embrião estourem o vaso. Que a boca do vaso seja muito cuidadosa e efetivamente fechada por meio de uma grossa camada de cera. 36 Três observações que tiramos dessa passagem. (1) distinguir o que se passa dentro dele : os insights devem ser claros, não vagos e nebulosos; (2) os vapores que ascendem de nosso embrião [podem estourar] o vaso : a semente viva da obra não é viável para a vida, não deve deixar o vaso; e, enquanto germina, dá vasão a fantasias que buscam escapar para o mundo (em programas e projetos); (3) que a boca do vaso seja muito cuidadosa e efetivamente fechada : trate a obra em andamento como um segredo. Conserve sua boca fechada. Observe com cuidado o que, como e para quem comentar sobre o que está acontecendo dentro. Dentro? Onde é isto? Dentro do vaso, qualquer que seja o vaso: sempre que houver um foco contido e separado, uma zona guardada, algo cozinhando. Você não é o vaso, nem há razões para se acreditar que dentro seja dentro de você - seus relacionamentos pessoais, seus processos psíquicos, seus sonhos. A interioridade está dentro de todas as coisas - a jardineira que está sendo preparada, o poema que é o foco de emoções atentas. Preste bem atenção a essas interioridades; dando atenção estamos envasando, pois é o vidro do vaso que permite estar atento, e estar atento traz a própria separação e o continente que estão expressos concretamente pelo vaso de vidro. O alquimista atento é também aquilo que está sendo observado. Dentro do vaso, formam-se criaturas, imagens estranhas de materiais excitados, reis e rainhas, homúnculos - figuras em miniatura com faces e olhos. O alquimista torna-se o sujeito de observações interiores. As intenções da vontade humana se submetem a uma guiança imagística, um tipo de influência poética de outros assim que o vaso os traz à vida. Vidro Vidro: como o Ar, como a Água, feito de Terra, feito no Fogo. O vidro soprado derrete, liquefaz-se, brilha, expande-se, assume todo o tipo de forma, tamanho, espessura, radiância e cor. Suporta o calor. O vidro nos permite ver o que se passa dentro dele, por trás dele. Vidro, o vaso da revelação interior, capturando e transmutando o vislumbre ou relance em observação estudada. Dentro dos alambiques de vidro, representados em Splendor solis e em Trésor des trésor, figuras gloriosas atravessam suas transmutações alquímicas. O vidro guarda sangue precioso em frasquinhos, rosas num vaso, vinho num decantador. Ao levar a opus da forja para o forno, o vidro torna a alquimia possível, e psicológica. O vidro também torna a ciência da química possível no laboratório das observações e experimentações controladas, in vitro. O vidro também separa observador de observado. É o material do distanciamento, separando da vida os eventos por meio de frágil transparência, encerrando-os a cada um em sua própria casa, como eram às vezes chamados os vasos. Como o vidro claro que a alquimia preferia é por si mesmo quase invisível, sua invisibilidade permite a visibilidade da opus - mas, somente quando o vidro tem a forma de um vaso, ou seja, traz continente. Lâminas de vidro, contagotas de vidro, espelhos, não são suficientes para a obra alquímica. 36 Filaleto. ‘ ’. . 31 Os paralelos com a psique são óbvios. Também a psique é invisível; é alcançada apenas na reflexão, senão a identificamos com seus conteúdos - este sonho, aquele sentimento ou lembrança. A psique fica parecendo ser apenas aquilo que ela contém. O vidro, como a psique, é o meio pelo qual enxergamos dentro, enxergamos através. Vidro: a incorporação física do insight. A ilusão do vidro faz com que conteúdo e continente pareçam o mesmo, e porque vemos o conteúdo antes de reconhecermos que está guardado pelo vidro, a princípio não vemos sua forma, sua densidade, suas imperfeições, pois nosso foco está fixado no conteúdo. Vidro como corpo sutil requer uma sutileza de observação. A sofisticação do material necessita de sofisticação de insight. A mentalidade alquímica estava preocupada em notar propriedades. Quais qualidades, quais atributos são as virtudes, para usarmos os termos de Paracelso, de uma substância? As coisas naturais podiam ser agrupadas, ou mesmo classificadas, por seus adjetivos: duro, frio, amargo, invernal; podiam juntar fenômenos dos três reinos - animal, vegetal, mineral. Já que o mundo é inerentemente inteligível, podemos descobrir o que pertence cada fenômeno por meio do estudo de suas propriedades, do cuidado com os adjetivos. O banho-maria O vaso de vidro é em si envasado. Pode estar sobre um pote de cinzas ou areia, mas de modo mais frequente está dentro de um recipiente maior cheio de água: o bain marie ou banhomaria. O calor penetra a coisa que está dentro do vaso de vidro por meio da água. Tanto o fogo quanto a água cooperam para regular o calor, embora nenhum desses elementos toque a substância diretamente. Um método engenhoso de indireção, juntando dois inimigos notórios, Fogo e Água, para servir à opus.37 Quando se encontram, normalmente eles assobiam, esguicham e exalam nuvens de vapor escaldante; mas o bain marie os protege de matarem-se mutuamente, e protege a substância de uma guerra elemental. O bain marie aparece na tradição alquímica como uma invenção antiga, originária do Egito talvez, vinda de uma adepta chamada Maria a Judia,38 idêntica ou confundida com Maria Profetisa. O bain marie desenvolveu-se supostamente na cozinha de uma senhora judia, mística, experimentadora, cozinheira. Os cozinheiros de hoje ainda o usam. Enquanto a água preencher o banho, a substância não queima, nem ferve. O calor do banho aumenta sempre gradualmente, de forma a soltar e relaxar a resistência teimosa da substância por meio de um calor suave. Como seu corpo numa banheira aquecida, que lentamente sobe de temperatura se você acrescenta mais água quente. A quentura que permeia o vaso de vidro no banho é outra maneira de imaginar atenção simpática, encorajamento gentil, tolerância abrangente. Fronteiras, nós, restrições vão embora. Não realize nenhuma operação até que tudo tenha se tornado água. Psicologicamente falando, antes de podermos fazer qualquer coisa devemos dissolver a atitude original com a qual abordamos um problema. Os próprios problemas são posições fixas. A palavra problema refere-se, em 37 38 . . The Jewish Alchemists. : ‘Maria a Judia’. 32 suas acepções originais, a xadrez, matemática, estratégia de batalha - todas condições apertadas. Nós nos rendemos e cedemos, e a mente, focada em resoluções, larga sua própria atitude que busca as resoluções. No banho, força de vontade torna-se lassidão. Não realize nenhuma operação até que tudo tenha se tornado água: a análise racional deve esperar que a emoção flua, que os devaneios flutuem, reunidos num tanque, misturando-se, afundando, encontrando saídas. Discriminações ficam obscuras. Isso e aquilo confundem-se, misturam-se; certo e errado, e suas culpas, tornam-se flexíveis e empapados; pouco importam, nenhum fato concreto, nenhuma certeza sólida à qual se apegar. Tudo cede à água quente. Abrandamo-nos conosco mesmos. Perdemos a pressa de chegar, nenhuma correria. Um banho não é uma ducha. Nós somos a substância, nosso corpo e nossa mente entram no vaso da alma, no banho de Maria. Somos o cozinheiro e também aquilo que é cozido, incapazes de sentir a diferença. O Pelicano O vaso tampado serve muito bem para a sublimação (alçar a substância a um nível mais alto) e para a precipitação (uma substância que está no fundo pode produzir gotas ou líquido no topo, ou um precipitado fino e branco). Mas, para operações mais sutis, requer-se um vaso especialmente fechado: o Pelicano. Esse recipiente de vidro tem um corpo redondo e gordo que sobe para fora de seu corpo num longo pescoço que se curva para baixo, que torna a se ingressar no corpo, assim permitindo a circulação da mesma matéria por vários estágios, de baixo para cima e de volta para baixo. O Pelicano traz sofisticação a imagem alquímica familiar do Ouroboros, a cobra que morde o próprio rabo. Também o Pelicano é um comedor de rabo: a ponta final é consumida pela ponta de cima, a cabeça, mas o processo não para ali na reflexão mental. A cabeça envia seu produto de volta para baixo, para o corpo, repetidamente. Acontece uma circulação continua. O que sobe para a cabeça não escapa. A medida que a substância derrete, evapora, lançando vapores para cima, formam-se ideias nebulosas, a pressão aumenta, giram sentimentos leves e animadores. Mas essas inspirações e ideias quentes são reprocessadas e lançadas para baixo por serem muito imaturas, muito cruas, ainda fora do ponto, muito irreais. Ao invés, são jogadas de volta no vaso para serem alimento novamente. É a opus que precisa ser alimentada, precisa continuar a todo custo. Repetição. Iteratio: assim a chamaram. Mas eu já vi isso! Mas eu já fiz isso! A mesma coisa, repetidamente. O Pelicano incorpora o sacrifício; ele é um vaso sacrificial. E o instrumento do ritual. Uma das essências dos rituais e a queixa: De novo? Iteratio, circulatio, morder seu próprio rabo, comer seu próprio corpo que alimenta seu próprio corpo. O processo é fechado em si mesmo, vive de si mesmo, alimenta suas próprias imagens, inclusive as imagens de um produto emergente, de metas, de futuros. O sacrifício é não chegar. Lugar nenhum, utopia como meta. Daí o termo Pelicano, já que esse pássaro, de acordo com a tradição, bica seu próprio peito para verter o sangue com que alimenta sua cria. Cristo foi esse pelicano, nutrindo seus fiéis 33 com seu próprio sangue vivo. O pelicano é, portanto, e ao mesmo tempo, uma ferida, um ritual repetitivo, um sacrifício e uma humilhação. É um instrumento necessário para alimentar a opus de dentro dela mesma. O que surge durante a obra pertence à obra, não ao mundo. Antes que se possa abrir o vaso, seus conteúdos precisam ser inteiramente psicologizados, refinados, sofisticados; suas concretizações vaporizadas. Mantenha o calor; tampe o vaso; encontre prazer na repetição. A alma está sendo alimentada por sua ferida. Agora, algo ainda mais sutil: o Pelicano duplo. As imagens mostram dois pelicanos interligados, lado a lado ou face a face. O que emerge do corpo do vaso da esquerda flui através de seu pescoço para o corpo do vaso da direita, e vice-versa, ou seja, os conteúdos cozidos no vaso da direita fluem através de seu longo pescoço curvado para baixo para o corpo do vaso da esquerda. Troca de devaneios, como amantes interligados, reunidos por um imaginar mútuo. Um modelo de cogeração, companheirismo, afinidade intima. YabiYum. Índios americanos, em alguns lugares, fumavam seu tabaco em semelhantes rituais parelhados. Por meio de um tubo em meu nariz, eu inalo o que você exala, e o reverso: enquanto sopro minha fumaça para fora, você a inspira e põe para dentro. Fertilização cruzada de espíritos. A alma requer material psíquico. Os resíduos do mundo diário, Tagesreste como Freud os chamava, podem encher o vaso, mas não o alimentam. Informação e influências nutrem somente depois de terem sido um pouco fermentadas e cozidas. Pense na alma como uma vaca com vários estômagos: reflexão como regurgitação. Pepsis era um dos termos usados para descrever o que se passava dentro do vaso: pepsis, o termo grego para digestão, a transubstânciação do cru no cozido. Transformar os eventos do dia em experiências, que é uma das definições de cultivo da alma (soul-making). Os alquimistas alertam a respeito de material não digerido - comparações, interpretações, teorias e explicações estranhas, emprestadas. Eles dizem leia, mas também dizem, nada que se encontre nos livros e útil. Tudo o que e necessário já está dado, se for adequadamente cozido. O Pelicano oferece uma imagem para a ferida que a obra causa. Sentimos seu custo no sangue. As coisas precisam ser cozidas em seu próprio sangue, é um conselho frequente. Sentimos o esgotamento no corpo a respeito daquilo que poderá vir depois, mas que agora é totalmente desconhecido, a cria do Pelicano, crianças da imaginação, pois a fantasia da corpo/a coisas até então desconhecidas 39. O Pelicano: vaso da fé psicológica, uma frase usada por um estudante perspicaz da alquimia, Robert Grinnel,40 para descrever uma atitude ou devoção que exige nada mais que um render-se, um entregar à obra todas as demandas pessoais que dela esperamos, para o bem da obra, venha o que vier. O vazio no vaso Cada vaso tem sua forma específica. Dentro é o vazio. Cada vaso forma-se em torno desse vazio. Devido a nossa cultura ocidental ter declarado que A natureza abomina um vácuo, nós abominamos o vazio. (Empty/vazio), do inglês antigo, significa no lazer, desocupado, ou seja, fora 39 40 ‘ / ’. Shakespeare, W. Grinnel, R. ‘ Archetypal Psychology and Jungian Thought, 1970. (s.l.): [s.e.], p. 15-39. , ’. Spring: an Annual of 34 do trabalho, não funcional.) Para nós, o vácuo dentro do vaso é apenas isso: vazio. Miramos os vasos de fora, admirando o esmalte do pote, o talhe do cristal, a trama de um cesto, a alça de um jarro. Quando avaliamos seu interior, são só medidas: quantos litros? Um quarto? Quantos gramas? No budismo, o vazio não é um vácuo, mas uma força positiva.41 O interior forma em torno de si a forma externa visível. O repouso do vaso chinês (T.S. Eliot)42 42começa dentro; a forma extraordinária que vemos e o repouso que emana do vazio, sempre esse vazio especifico habita essa forma especifica. A cultura afeta a forma dos vasos e, portanto, eles revelam qualidades misteriosas de uma cultura que suas outras artes e textos escritos podem não expressar tão bem. Formatos estranhos, formas perfeitas de diferentes dinastias chinesas, potes gregos, etruscos, fenícios, franceses rococó, as cerâmicas de Picasso, os agrupamentos de quietas garrafas de Morandi. Barricas e toneis, cântaros e moringas. A garrafa long-neck de cerveja, a velha garrafa de CocaCola, a garrafa de leite com o bojo para um creme amarelo. O futile romano que pode tombar, a pele de cabra para o vinho, o cantil de metal com formatos diferentes de acordo com o exército de cada nação. Os vasos expõe o Zeitgeist invisível, o visível formado pelo invisível. A frenologia ocidental e a medicina romântica expressaram uma ideia semelhante, atribuindo os contornos e as fendas do crânio humano à forca do cérebro e, dentro desse órgão, o poder da mente ou da alma. Frenologistas penetravam a natureza interior de uma pessoa estudando e medindo os inchaços palpáveis do crânio. Eles diziam poder ler os dons e as deficiências de uma pessoa, o próprio caráter mais profundo, a partir das colinas e vales da topografia craniana. Esses modos - orientais e românticos - de se considerar o vazio interior sugerem que cada vazio tem sua forma individual e está contido de uma maneira particular. Seu vazio não é o meu vazio, e o dela e também diferente. A forma como uma pessoa contém suas lacunas já e uma revelação daquilo que está sendo contido. Termos generalistas, diagnósticos simplistas abandono, necessidades, crise de identidade, baixa autoestima, humor depressivo, dependência, desamparo masoquista - não podem descrever adequadamente, que dirá compreender, a força do vazio. Devido a nossa natureza coletiva ocidental abominar um vácuo, corremos para preencher um vazio com qualquer coisa, com tudo, de comida lixo a autoajuda lixo; de bebida, compras e novidades em jogos e equipamentos eletrônicos a comiseração de companheiros de alma, ou simplesmente lagrimas infindáveis. A alquimia, contudo, sugere que esses sentimentos de vazio são indicações de um vaso se formando. O vazio está construindo uma forma, uma forma especifica. Talvez vários vasos. Modos de conter. Modos de medir. Modos de diferenciar. A realidade da psique está abrindo seu caminho para a vida e reformando nossa vida por meio de sentimentos de vazio. 41 42 Eoyang, E.C. ‘‘ Eliot, T.S. ‘ ’. Tamkang Review, 16, n. 1,1985, p. 51-65. ’. :‘ / ’. [‘O repouso, como um vaso chines que ainda se move / Perpetuamente em seu repouso.’] 35 As vezes o vazio pode ser localizado fisicamente. Bem aqui, em minha barriga; bem atras de meu coração sinto-me aéreo, tonto. As vezes aparece num sonho quando caímos no espaço, ou num buraco, numa caverna escura, num saguão enorme e desocupado. Enquanto não atribuirmos poder formativo ao interior secreto de um vaso, continuaremos a ler sua função numa única direção. O cântaro contém a agua, o vaso segura as flores, a cesta guarda as frutas. O vazio interior e meramente um receptáculo; a agua, as flores e as frutas são o que importa. Uma leitura contrária diz: o jarro é úmido, o vaso é florido, a cesta é frutada. Os mestres pintores da Holanda e da França do século XIX mostraram as papoulas, as íris e as rosas, as peras, as maçãs e as uvas emergindo da concavidade de seus receptáculos,(o vazio como fonte da beleza. Se você examinar os vasos que contém as flores, os cestos e pratos nos quais estão as frutas, esses recipientes são cada um deles manifestações de formas, cores e texturas particulares, e são inerentes aquilo que mostram. Se Deus não tivesse nos dado vasos/Seus outros presentes seriam inúteis. V Fornos e fogões Os vasos contém a substância, mas o próprio fogo precisa ser contido. O calor que abastece toda a obra e torna a alquimia possível requer um recipiente a altura de sua força de combustão. O desejo precisa de direção.) A argila racha, o vidro se quebra, a madeira queima, o metal derrete. Que vaso pode conter a opus major? Os métodos usados pelos vasos - a terrosidade da argila, a reflexão e a lucidez do vidro, o naturalismo materialista da madeira, e a dureza disciplinada do metal - acabam vítimas do grande calor. A alma queima loucamente por ouro; de que outra forma dar conta da insanidade da alquimia, da loucura, das privações e perseguições miseráveis e da ambição exaltada daqueles que a perseguem até a morte? O elixir que cura todas as moléstias, que garante longevidade e imortalidade da alma, assim como fama, fortuna e a companhia de reis - estas eram as visões do desejo alquímico. Tao excessivas, tão extremas que só podiam vir dos deuses. Tal era a imaginação de Zosimo, que reconta uma história judaica (Genese ) como se fosse as origens da alquimia: Os anjos foram tomados de paixão pelas mulheres. Desceram dos céus e lhes ensinaram todas as operações da natureza (...) Eles eram os que compunham obras químicas (...] Seu livro e chamado de Khema, e é deles que a química [kumia] recebeu seu nome.43 A alquimia começa no desejo; o desejo precisa de direção. A supressão ética não pode controlar o desejo. A essência do fogo é fora-de-controle. Ele vem das regiões celestiais, vem dos anjos, dos deuses e das entranhas incandescentes da terra. Daí o aspecto xamânico do ferreiro como mestre do fogo, e o crime do humanismo prometeico. Fumus, o forno como resposta ao fogo. O Fumus assume responsabilidade sobre o fogo. O rigor e a fantasia do fogão deve ser igual às forças do fogo. Deve ser capaz de governar a 43 Patai. . [s.l.]: [s.e.], p. 56. 36 combustibilidade selvagem do fogo, e um texto chines refere-se ao sacrifício ao fogão (tsao), e você será capaz de convocar ‘coisas’ (isto e, espíritos) 44. Fumus: a lógica de um sistema forte, bem construído, cuidadosamente encaixado, duradouro. Regras básicas, tijolos e argamassa, disciplina de ferro da Igreja, da escola ou da sociedade que mantém o espírito vivo em foco, concentrado, e capaz de suportar a chama da inspiração, os lampejos e faíscas da paixão que incendeiam as matas e espalham a intensidade. Direção, objetivo, propósito, concentração, foco. Focus, em latim, lareira. O fogão resistente ao fogo e dirigido por seu próprio princípio governante: resistir ao fogo. As regras são feitas para manter o fogo sob controle. Um fogão e construído; ele é um constructo, um sistema conceituai. Seu desenho tem desígnios para o fogo, designando sua direção e qualidade. Fornos de teste, fornos de apurar, fornalhas para refinar a prata, fornos para derreter ferro, para derreter vidro, para fundir chumbo ou estanho e para separar prata de cobre, e para a produção de mercúrio e resina.45 Boca posterior do fogão, usada para cozimento mais lento; múltiplas aberturas, múltiplas temperaturas, fornos escondidos, aquecedores, grelhas quentes de carvão. Alguns fogões alquímicos tinham mais de quarenta lugares diferentes para cozinhar. Calores múltiplos para materiais múltiplos e operações múltiplas concomitantes. O fogão: a disciplina da multiplicidade. Saber onde cada coisa tem seu lugar; um lugar para cada operação e cada coisa em seu lugar. Localizar como a arte da cozinha. Novamente, Maria a Judia é considerada, ao menos por Zosimo, como a fonte para a mais antiga descrição da construção de uma fornalha, o que lógica e necessariamente segue sua invenção do bain marie.46 Tipos de cozimento, múltiplas operações: evaporação numa panela achatada deixa o vapor dissipar; a destilação produz algumas gotas, de claridade a partir de uma massa confusa; a sublimação leva um material para cima, longe da sedimentação no fundo do vaso; o congelamento permite que as questões esfriem e se solidifiquem numa forma definida; a fermentação encoraja a coisa a enriquecer-se a partir de sua própria obscuridade interna. Múltiplas operações, múltiplos fogões.47 Fornalha ascendente leva o calor para cima; fornalha descendente leva o calor para baixo; fornalha de areia circunda o vaso em cinzas, o calor vindo do fogo de ontem: suave, cinza, seco, queimado, ainda assim caloroso; forno de reverbero no qual o calor vem das paredes interiores, cozinhando por eco, repetições que constroem a intensidade; a fornalha de explosão aumenta as chamas por meio de uma corrente de ar, para liquefazer e derreter minerais; fornalha balão suspende o material num balão com sua boca projetada para fora do forno. Essas são apenas algumas descrições da literatura técnica sobre fornos, condensadas no Dicionario de Ruland no verbete Furnus. 44 45 46 47 Waley, A. ‘ ’. , vol. VI, n. 1,1930, p. 2. London Institution. Meitzner, B. ’ des Andreas Libavius von 1606. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 1995. PATAI. . Op. cit., p. 90. Cf. HILL, C.R. ‘ ’. Ambix, 22,1975, p. 101-110, com inúmeras ilustrações. 37 Homens velhos imaginaram para esta Arte/Uma Fornalha especial para cada parte.48 Norton inventou sua própria fornalha desconhecida dos antigos. Eu a construí]...] com um gasto considerável [...] Está construída de tal forma que sessenta diferentes operações, para as quais diversos tipos de calor são necessários, podem ser levadas a cabo ao mesmo tempo, e um fogo bem pequeno[...] fornece um grau suficiente de calor para todos estes processos.49 Ele continua descrevendo outros fornos que está construindo, sua engenhosidade, sua economia de fogo (combustível), seus serviços múltiplos, sua capacidade de regular graus de intensidade de calor - e quais fornalhas são melhores para quais operações em particular, por exemplo, purgar e secar para a exaltação. Se o fogão disciplina o fogo e direciona o calor, ele incorpora regras e advertências que os alquimistas amam pronunciar. Dificilmente encontramos um texto que não encontre falhas em outros textos e erros de procedimento, ou que não sucumba a dar avisos, alertas e admoestações morais. O tratado de Norton insiste em cinco regras ou acordos : A primeira regra a ser observada é que a mente do estudante esteja em perfeita harmonia com a obra. O desejo de conhecer esta Arte deve ter um lugar predominante em sua mente; do contrário, seus esforços resultarão em nada. O segundo acordo e que ele deve conhecer a diferença entre esta Arte e aqueles que a professam. O terceiro tipo de harmonia e aquela que deveria existir entre a obra e os instrumentos. O quarto acordo designa a obra o lugar que é mais adequado para sua execução. O quinto acordo e a simpatia que deveria existir entre sua obra e a esfera celestial.50 Se fossemos imaginar que as regras para a opus alquímica são igualmente válidas para o trabalho psicanalítico, então essas cinco regras poderiam ser enunciadas em termos contemporâneos: (1) Conhecimento da psique em todas as suas vicissitudes, em vez de conhecimento de si ou do paciente, deve ter lugar predominante na mente do praticante. (2) O valor do trabalho psicológico não e medido eo ipso pelos exemplos daqueles que praticam a profissão da psicologia. (3) Já que os conceitos são os instrumentos da pratica psicológica, eles devem favorecer harmoniosamente as intenções do trabalho. (4) Seu lugar de prática deve ajustar-se a seu estilo de prática e seus objetivos. (5) A prática expressa uma cosmologia. Deve haver uma harmonia entre cosmo e clínica, entre sua visão mais ampla de ordem última do mundo e o trabalho íntimo com o sofrimento das almas. VI O espírito do Fogo Mais rudimentar que as ferramentas, as coisas e os procedimentos usados pela alquimia é o fogo do qual tudo depende – o elemento com o qual este capítulo se iniciou e agora termina. O fogo é o primeiro princípio, a raiz metafórica. Assim como a obra é governada pelo fogo, dependente do fogo, também o é o pensamento alquímico sobre a obra. Em consequência 48 49 50 Holmyard. Alchemy. (s.l.]: [s.e.], p. 193. ‘ ’. HM 2, p. 62. 50. Ibid p 50-60 38 disso, as características do fogo arquetipicamente propelem a reflexão alquímica numa direção especifica.51 O pensamento requer uma linguagem. A ideia de que o fogo transforma a matéria não é apenas uma ideia empírica testemunhada quando uma chama queima um pedaço de madeira ate uma cinza preta. Essa transformação já estava implícita no termo grego para matéria, hyle (madeira), que mais tarde recebeu sentidos mais abstratos de potencialidade aristotélica (capaz de ser transformado) e queda crista (capaz de ser redimido). Assim como a madeira submete-se ao fogo, a natureza material também submete-se ao espírito pelo qual e purgada, transformada e elevada. Qualquer trabalhador do fogo pode facilmente perceber suas características primarias. Ele sobe. Seu calor domina e altera os materiais. Ele produz luz. Não pode ser tocado diretamente. Não pode ser saciado. Ascensão, transmutação, iluminação, intangibilidade, insaciabilidade essas cinco ideias empiricamente testemunhadas no laboratório afetam as formulações dos textos alquímicos e dos seus comentadores posteriores. Resumindo, o fogo da a alquimia suas leituras espirituais. Ascensão: No fogo da obra, ou pegando fogo com sua obra, os alquimistas estão sujeitos ao desafio do fogo à gravidade, e imaginam seu trabalho apontando para cima de acordo com as chamas e o calor que tentam controlar. Do mais baixo ao mais alto; do inerte ao ativo; do pesado ao leve; do pequeno, incerto e sem chama ao intenso e saltitante. Uma escada de valores e estágios de progresso: da imperfeição à perfeição, saúde, do particular ao universal, do mortal ao imortal - medicina católica, panaceia, ressurreição, corpo adamantino, ouro, salvo do fogo do inferno pelo fogo divino, a salamandra que sobrevive ao fogo, a fênix que renasce das cinzas. Transmutação: Um fogo interno está em operação em toda à natureza, levantando-a em estágios do impuro ao puro. Testemunhe as transmutações alcançadas em alguns tipos de pedra: cristais, gemas preciosas, pepitas de ouro. A evolução está incrustrada no corpo mineral da terra. Embora o fogo possa calcinar uma substância até um pó cinza, enegrecendo-a até a morte, o modelo total de melhoria apropria-se dos efeitos rebaixantes e desintegrativos. Luz no fim do túnel; escuridão antes do amanhecer; Getsêmani e Gólgota antes da Ressurreição. O fogo altera tudo o que toca: todas as coisas estão sujeitas à sua onipotência transformadora. Até a água evapora, a pedra derrete em lava e o mais forte ferro dobra-se diante de sua vontade. A chama do espírito supera toda a resistência material. Iluminação: O fogo ilumina a escuridão. Por meio dele podemos enxergar no escuro, avançar no escuro, enfrentar a noite. Ainda assim esse mesmo fogo afia e aprofunda a escuridão. Ao ficarmos perto de sua luz, perto do fogo (fogueira de acampamento, chama da vela, lampião), os cantos e sombras do perímetro mais distante tornam-se breu, impenetráveis. Quanto mais luz, mais escuridão, o que requer cada vez mais iluminação brilhante. Luz e sombra, contrários que se definem; eventualmente, opostos guerreando-se. Iluminação, uma via 51 A figura paradigmática para essa direção é o químico e médico belga Jan Baptista van Helmont, que via a si mesmo como um philosophus per ignem, um filosofo pelo fogo. Esse pensador místico, ainda que empírico, mantinha que Deus se comunica ‘por meio do fogo - o penúltimo meio químico de investigação. O fogo é uma concentração da luz, e em seu poder destrutivo (...) é uma criação divina’ (Heinecke, B. ‘ , 1579-1644’. Ambix, vol. 42, n. 2,1995, p. 72). 39 longissima, pois a inconsciência aumenta na proporção da luz. Solução do paradoxo? Uma iluminação epifânica, somente o fogo apocalíptico de um despertar espiritual elimina a própria escuridão: E a morte e o inferno foram lançados no lago de fogo ( ); Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória? ( ). Intangibilidade: Porque o fogo não pode ser tocado diretamente, precisa ser alcançado indiretamente, por alusões, palpites, analogias, alegorias, cifras crípticas e símbolos arcanos. Gnósticos, rosa-cruzes, cabalistas. A arte negra do conhecimento secreto. Qualquer coisa normalmente perceptível pelo olho comum não é o ouro alquímico; todas as coisas, a própria mente, devem ser iniciadas, sofisticadas. Somente uma elite, uma casta de sacerdotes, reclusos e disciplinados, tendo sofrido o mistério longamente, tendo passado por suas mortificações e orações, pode trabalhar o fogo. Insaciabilidade: Quando Thomas Norton descreve as qualidades necessárias aos assistentes de um alquimista, sua descrição de emprego poderia também descrever aquele de uma amaseca. O cuidado com o fogo em muitas culturas indígenas está entre as tarefas das mulheres e dos velhos. Como um bebê, o fogo quer apenas crescer e seu apetite é insaciável. Precisa de alimentação constante, ar suficiente, e nada indigesto - galhos úmidos, madeira podre, raízes sujas de terra, esterco acumulado. À medida que cresce busca pular para fora do berço, andar por si mesmo, e espalhar suas chamas. A insaciabilidade da alquimia as vezes está disfarçada, as vezes e ostensiva. Insaciável, a quantidade cada vez maior de termos, a diferenciação dos apetrechos, tipos de vaso. Insaciável, o apetite de aprendizado: um livro abre outro. Insaciável, o desejo da meta dourada. Até mesmo os últimos estágios da opus major são ilimitados: exaltatio, multiplicatio, rotatio. E a alquimia não se deixa ser reduzida a simples fórmulas e regras normativas, como se, por causa do fogo, a alquimia não pudesse chegar a um sistema coeso que suas próprias operações de coagulação e conjunção requerem. Como o espírito, ela vai onde quer, segue seu impulso. Como o espírito, o fogo está numa missão, acender outros fogos por aí afora, convertendo os dias em combustível para engordar suas próprias chamas. Essas cinco ideias principais, tão aparentes a qualquer trabalhador do fogo, formam juntas uma metafisica alquímica. O impulso ascendente arquetípico do fogo dá a alquimia sua visão espiritual, traduzindo suas imagens e insights em mensagens para o caminho para cima. O cristianismo dos principais autores da alquimia não se origina apenas de seu contexto histórico: o fato de estarem escrevendo numa era fortemente cristã. Sua metafisica redentora está ainda mais determinada pelo seu contexto arquetípico o ascensionismo espiritual do fogo elemental. Uma passagem de Aristóteles pode salvar a psicologia alquímica desse determinismo arquetípico e da leitura espiritual da alquimia. Escreve Aristóteles: Pois o crescimento do fogo é ilimitado enquanto houver algo a ser queimado, mas em todas as coisas que são constituídas naturalmente há um limite e uma proporcao tanto para o tamanho quanto para o crescimento^ e estes pertencem a alma, nao ao fogo, e aos princípios, não a matéria?52 52 Aristoteles. : ( ). Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 19 (416a). 40 Já que a alma se reconhece em suas imagens, e já que a produção de imagens (poiesis) é a atividade primária da alma,53 o princípio definitivo que governa o crescimento do fogo são imagens. Elas são os rudimentos essenciais de toda a obra. Elas são aquilo que o alquimista vê, cheira e toca com suas mãos - e * o que ele imagina. Manter o foco nelas limita a especulação metafisica infinita (crescimento do fogo) aquilo que está presente agora. As descrições da linguagem e das gravuras alquímicas são coagulações que servem para condensar em apresentações reais a volatilidade da psique engajada. Alquimia: um estudo das apresentações, pois essas aparições retratam, definem e afetam a alma. Consequentemente, o impulso espiritual insaciável da alquimia, seu fogo, requer limitações psicológicas, uma alquimia da alma - como este capítulo rudimentar e este livro como um todo intencionam apresentar. 53 JUNG, C.G. .• . Cf. . Nova York: Harper & Row, 1975, p. xvii: ‘(Jung) considerava as imagens de fantasia que atravessam nossos sonhos acordados e nossos sonhos da noite, e que estão presentes inconscientemente em toda nossa consciência, como os dados primários de nossa psique. Tudo o que sabemos e sentimos, e cada afirmação que fazemos [...] provem de imagens psíquicas’. 41 42 O sofrimento do sal 3 Alguns não estão em busca de ouro, mas não há um só homem que não precise de sal. Cassiodoro Rumo a uma Psicologia Substancial O sal alquímico, como qualquer outra substância alquímica, é um sal metafórico ou filosófico. Em vários textos alquímicos somos alertados de que esse mineral não é o sal comum, nosso sal de mesa ou cloreto de sódio. Ainda assim, como poderemos ver, esse sal alquímico é, de fato, comum a todos nós - e não apenas como o conteúdo fisiológico necessário ao nosso sangue e nossos fluidos.1 Talvez o epíteto comum, que curiosamente é ligado, dentre todos os nossos comestíveis diários, somente ao sal, revele que o sal e o substrato daquilo que queremos dizer com “comumente humano”, de forma que o sal e o princípio arquetípico tanto do sentido do comum quanto do senso comum, ou bom-senso. Vocês já podem ver como estaremos trabalhando nesse capítulo: estaremos ativando a imagem do sal (1) como uma substância psicológica que aparece na alquimia como a palavra sal (2) como uma operação que libera um resíduo; (3) como uma das várias substâncias físicas genericamente chamadas de “sais”; e (4) como uma propriedade de outras substâncias. Principalmente depois de Paracelso, a palavra sal nos textos alquímicos frequentemente indica a base estável da vida, sua terra, seu chão, seu corpo. Entretanto, o termo também se refere mais particularmente aos alumes, álcalis, cristalizações, bases, cinzas, sal amoníaco, potassa, assim como as qualidades sensoriais equivalentes a esses materiais: amargor, 1 A vida animal depende do sal. Cavalos (de acordo com raça, tamanho e localização) precisam de até 40 libras por ano, vacas de até 80. Humanos consomem cerca de 10 libras (não incluídas as quantidades já presentes nos alimentos preparados). Cada um de nós contém cerca de oito onças de sal - o suficiente para encher vários saleiros. [O sal] participa de contrações musculares, incluindo os batimentos cardíacos [...] impulsos nervosos [...] a digestão. Sem sal o corpo entra em convulsões, paralisias, morte. Ponha células de sangue num fluido sem sal e elas se rompem (Young, G. . National Geographic, set./1977, p. 381.) Já que a necessidade de sal é tão básica, governos apoiaram-se em monopólios do sal e impostos sobre o sal como uma fonte segura de fundos. Rebeliões motivadas pela taxação do sal emergiram, pois o sal representava a necessidade comum do povo, de forma que o controle sobre ele era uma injustiça que afetava a própria vida. A derrota dos secessionistas sulinos em 1865 foi atribuída a uma fome de sal, e um proverbio chines afirma que um homem privado de sal por uma quinzena ficaria tão fraco a ponto de não poder atar uma galinha ( . . Baltimore: The Johns Hopkins University :ess, 1978, p. 3-19.) O sal era tão valioso que era importado de grandes distâncias (por exemplo, da Sicília, via Veneza, para os camponeses dos vales do Reno na Suíça.) Na África, blocos de sal saariano eram vendidos para omias subsaarianas em troca de pó de ouro, marfim e escravos. Comida salgada é sinônimo de comida ‘sagrada’ no antigo hebreu (Brudel, F. - Vol. 1: . Berkeley: University of California Press, 1992, p. 209). 43 adstringência, pungência, mordacidade, dissecação e rispidez, ferroadas e dores secas, agudeza e aspereza. Essas qualidades da vida humana pertencem à própria substância do caráter. De fato, as qualidades amargas e mordazes não somente são tão comuns e básicas quanto o sal, mas também são tão essenciais a incorporação de nossa natureza psíquica quanto o próprio sal o e para nossos corpos físicos. Nossos momentos mordazes, adstringentes e secos não são eventuais e acidentais; eles fazem parte de nossa substância e essência. Essa abordagem psicológica ao sal tem dois principais predecessores: Ernest Jones, seu ,2 e o capítulo ricamente condensado sobre o sal de C.G. Jung em seu OC 14/1, 228-340.3 As principais diferenças entre suas abordagens e a minha estão em nossos diferentes objetivos. Enquanto eles examinam o sal de uma maneira acadêmica, no intuito de apreender um significado objetivo dessa substância alquímica, estou tentando levar ao leitor sua substancialidade como uma experiencia pessoalmente reconhecível. Enquanto Jung faz uma metapsicologia da alquimia, estou tentando um psicologizar alquímico. Portanto, seu capítulo sobre o sal, e a amplificação principalmente antropológica de Jones, são backgrounds indispensáveis mesmo que eles ofereçam menos proximidade experimental ao material. Pretendo que minha fala sobre o sal tenha nela mesma traços de sal. Nosso modelo é o microcosmo/macrocosmo e a doutrina das correspondências entre eles. Um homem, ou uma mulher, e uma disposição menor (kosmos) na qual todas as coisas da natureza estão representadas proporcionalmente. Não somente o mundo macrocósmico esta personificado e vivo com qualidades subjetivas que hoje em dia permitimos apenas a seres humanos, mas o microcosmo do ser humano, por ser um microcosmo da natureza, e também um objeto mineral e físico, que se constitui de substâncias tais como o sal. A diferença entre esta substancialidade psicológica e aquela da química, que também sustenta que elementos minerais e físicos entram na composição de um ser humano, e que o modelo químico não requer consciência ou alma. Ha um corte radical entre o sujeito consciente e as substâncias físicas. Enquanto o modelo alquímico sugere: o que está dentro é igual ao que está fora. O mundo físico tem sua interioridade e subjetividade porque é uma disposição mais ampla da natureza humana. Para a alquimia, tanto o homem quanto o mundo são almados. Inteligência, sentido, exibição estão potencialmente presentes em tudo. O modelo do microcosmo/macrocosmo requer uma responsividade micro/macro. Ele pede que seja possível sentirmos o mundo da matéria com sensibilidade para as diferenças qualitativas. Pede para que encontremos em nossas experiências objetivas analogias e metáforas de processos e substâncias físicas. O modelo micro/macro funciona em duas direções. Ao dotar o mundo de alma, ele também indica que a natureza humana atravessa processos naturais objetivamente minerais e metálicos. Nossa vida interior é parte da ordem natural do mundo; e essa perspectiva nos previne de tomarmo-nos tão pessoalmente e de identificarmos aquilo que acontece na alma com o ego subjetivo. Assim, os sais pertencem à própria materialidade da psique. Sal descreve um de nossos materiais, um dos materiais que portamos, aquilo que é de importância em nós e aquilo que nos importa - ou seja, sal demais, 2 3 Imago 1 (1912). Reimpresso em Jones, E. - Vol. 2: . Londres: Hogarth Press, 1951. Ambos ensaios foram republicados, com uma introdução excelente. Woodstock, Conn.: Spring Publications, 1995. . 44 ou pouco demais, ou sal nos lugares errados e horas erradas, ou ainda combinado erroneamente. A psicologia alquímica descreve uma miríade de substâncias. O de William Johnson, de 1652, e o de Martin Ruland, de 1612, listam centenas de palavras referentes a materiais. Essas podem ser reduzidas a um sistema de sete elementos básicos derivados das sementes metálicas dos deuses planetários tradicionais: todo o tipo de palavras pode se referir à prata e às suas operações, por exemplo, e cada uma dessas palavras conota também o princípio planetário da lua numa fase, disfarce ou combinação específicos. Uma variação do sistema sétuplo é o de três substâncias mais uma quarta, a “tetrasoma” que, em si mesma, combina quatro dos metais planetários primários (chumbo, cobre, ferro e estanho, ou antimônio). O sistema triplo, no qual o sal tem um lugar de importância, deriva-se principalmente de Paracelso,4 o radical filósofo da natureza, médico religioso e excêntrico suíço que propôs o sistema do enxofre, mercúrio e sal, que era um modo de imaginar mais sutil e químico que o modelo mais grosseiro e metalúrgico dos sete. Por causa das complexidades inter-relacionadas dessas substâncias, os modelos alquímicos são politeístas, ou seja, não se pode falar verdadeiramente de qualquer dos elementos sozinho. O que quer que seja dito sobre o sal está sempre contaminado, e deve mesmo estar contaminado, pelos materiais, os vasos e as operações com os quais ele está em interação. Os materiais psíquicos estão sempre numa interpenetração difusa com outros materiais e não permanecem simplesmente autoconsistentes, e assim requerem interpretações múltiplas. Na verdade, essa própria contaminação é parte de sua definição: digamos que a alquimia tem contornos flexíveis. As diferenças entre seus elementos não podem ser estabelecidas prontamente e com precisão porque esses elementos também são naturezas vivas elementares. A técnica de isolamento, tão essencial ao método das ciências naturais modernas, força arbitrariamente a natureza a sujeitar-se a um tipo de consciência que isola, bem como com sua epistemologia, que corta, separa, e opõe para conhecer.5 4 5 Embora uma variedade de sais fossem conhecidos pela alquimia na Antiguidade (Theophrastus, Plínio, e depois Geber e Rasis), somente com Paracelso o sal foi elevado a um dos tria prima, mais fundamental do que os sete planetas e os quatro temperamentos elementais. Paracelso refundou a alquimia num esquema tripartite ao introduzir o sal como um novo terceiro termo. Essa posição ‘terceira’ é característica de Paracelso, pois ele sustentou uma posição contra Aristóteles e os Escolásticos, por um lado, e Galeno, por outro. Como mostra Walter Pagel (Stevenson, L.G. & Multhauf, R.P. (orgs.). ‘ ’. Medicine, Science and Culture. Baltimore: Johns Hopkins, 1968, p. 57ss.), sua tradição era platônica e neoplatônica, particularmente ao seguir a cosmoantropologia tripartite de Marsilio Ficino - corpo, alma, espírito - a quem ele admirava. É em sua defesa de um terceiro princípio que vejo a importância de Paracelso para como um ancestral espiritual (Jung, C.G. OC 15, 1-43.. . [s.l.): [s.e.], p. 200 e 220). Ambos lutaram contra, por um lado, o espiritualismo teológico e, por outro, o materialismo empírico, na busca de sustentar uma posição intermediária da alma, ou da realidade psíquica. Parte da assim chamada ‘indefinição’ de Paracelso (Temkin, O. ‘ ’. Bull. Hist. Med., 26, 1952, p. 201-217) pode ser atribuída a essa posição intermediária mercurial. Embora Paracelso normalmente identificasse o enxofre, ao invés do sal, com o tegumento intermediário, sua defesa do sal e sua própria salinidade (a natureza física, prática, comum, vernacular, purgativa, aguda na fala, amarga, não combinável de sua personalidade) mostram como essa substância foi fundamental tanto para sua natureza quanto para sua reflexão. Ele morreu, a propósito, em Salzburgo. Sobre as três linhas de pensamento, cf. Temkin, O. Galenism. Ithaca: Cornell University Press, 1973, esp. p. 128-170. ‘Ciencia’, derivado de scire, conhecer ou saber, e cognato de scindere, cortar, dividir, e tem provavelmente a mesma raiz de cisma [em inglês, no original, schism], divisão [em inglês, no original, shed\, e merda (como separação) [em inglês, no original, shit\. Cf. Weekley, E. . Londres: John Murray, 1921. 45 O sal alquímico encontra-se normalmente num tanden com o enxofre, e aquilo que é dito sobre o sal e normalmente dito de uma perspectiva sulfúrica. Na alquimia paracélsica, por exemplo, o sal é frequentemente imaginado como a alma (o enxofre como o corpo e o mercúrio como o espírito que os combina). A imagem ilustrativa é o ovo, cuja gema (enxofre) - oleosa, fedorenta, pegajosa e vital - e seu corpo; cuja casca (sal) - fixa, inflamável, dura e fechada - e sua alma; e cuja clara (mercúrio) conectando gema e casca, mutável, escorregadia, volátil, alterando sua forma e consistência é o espírito do ovo. Ou: a casca (sal) pode ser o corpo; a gema (enxofre), a alma. Cheguei à conclusão de que é melhor considerar cada componente como tendo seu próprio tipo de corpo, ao invés de insistir que o sal é sempre a alma (ou sempre o corpo)6 numa equação um para um. Devemos lembrar que uma substância psíquica não significa, e não pode significar, uma só coisa. Portanto, percebemos que os alquimistas deslocavam “corpo” para equacioná-lo com isto ou com aquilo, dependendo da tarefa a ser completada. O mesmo também é verdade para nosso trabalho psíquico hoje: certos problemas tomam corpo ou gritam por libertar-se do corpo, ou perdem seu corpo, de forma que nenhum aspecto único de nossa vida psíquica pode firmemente ser chamado de “corpo”. Como já disse várias vezes , o corpo é o elemento mais enganoso. Quando o corpo está equacionado com o enxofre, o que se quer dizer é a urgência excitável e palpável, o corpo das paixões e das vontades geradoras. Quando o corpo é chamado de sal, o que se compreende é o corpo fixo, consistente e estável que é o continente de qualquer existência, como uma casca externa. Paradoxalmente, o sal também pode significar o seu núcleo central, pois o sal foi imaginado por Khunrath como o centro da terra. Talvez a melhor maneira de se entender “corpo” nesse contexto seja pela ação de uma substância: aquilo que coagula ou dá corpo deve portanto ser ele mesmo corpo. Às vezes, o enxofre é o agente coagulante; outras vezes, a coagulação é atribuída ao poder do sal. O tandem do sal com o enxofre continua nas vidas e nos sonhos modernos. Uma mulher em análise oscila entre entusiasmos incandescentes por novas pessoas, projetos, lugares; está pronta para pegar fogo a qualquer momento, impregnando a vida de energia vital com uma imaginação rica e generosa. Ela também tem momentos de depressão: bebendo solitária, ensimesmada, embutida, amarga com as lembranças do que se passou, paralisada por horas sentada numa cadeira quadrada, junto a uma mesa quadrada, sentindo-se para baixo, fisgada pelo centro da terra. Não há conexão direta entre seu enxofre e seu sal. Eles oscilam em “variações de humor”. O trabalho terapêutico, de acordo com a fórmula alquímica, não seria temperar um com o outro, mas tocar ambos com mercúrio, ou seja, libertá-los de seu concretismo alternado através da reflexão psicológica, cujos primeiros passos seriam enxergar quão impessoalmente autônomas as variações são e como constelam uma à outra, como o fazem o enxofre e o sal. Em um outro caso, um rapaz, encontrando dificuldade em abandonar sua inocência infantil e a vida valiosa no colo da mãe e dos deuses, primeiro sonha estar caminhando com sua namorada num deserto de sal; depois sonha estarem juntos degustando uma carne salgada; e depois, sonha com um homem estranho que tem uma barraquinha na calçada e que entrega ao sonhador uma bisnaguinha de pão recheada com um tipo de salsicha salgada, ao invés daquilo que ele tinha pedido - uma bisnaguinha recheada de um tipo de creme doce e 6 Cf. Jung. C.G. corpo ou terra. . Sal é também o , Mercúrio, e portanto o espírito assim como a alma, e o 46 amarelado. O sonhador fica ofendido. Ele queria o sabor e o prazer do enxofre nas coisas doces e suaves que deslizam para dentro sem esforço algum.7 Mas o estranho homem da rua (talvez o próprio Mercúrio) entrega-lhe a ferroada amarga do sal que pode trazer lágrimas aos olhos. Temos agora que explorar a natureza deste sal. Minas de sal: a extração e a fabricação do sal Em primeiro lugar: onde encontramos sal? Como extraí-lo, fabricá-lo, prepará-lo? Irineu Filaleto responde: “Desça em si mesmo, pois você o carrega consigo [...]”. Ele deve ser encontrado no “Sangue do homem fora do corpo, ou urina do homem [...]. Repare bem que esses corpos que fluem para fora de nossos corpos são sais e alumes”.8 Assim como há sal no macrocosmo, da mesma forma ele pode ser extraído de dentro da microcósmica natureza humana. De fato, porque o sal é “o bálsamo natural do corpo vivo” ( descemos ao componente experimental desse corpo - seu sangue, suor, lágrimas e urina - para encontrarmos nosso sal. Jung ( ) considera o sal alquímico referindo-se aos sentimentos e a Eros; eu seria ainda mais específico com relação a essa noção ao dizer que o sal é a base mineral, impessoal e objetiva da experiência pessoal que torna a experiência possível. Sem sal, nenhum experimentar - meramente um suceder e um rolar de acontecimentos sem corpo psíquico.9 Portanto, o sal faz-nos sentir e experimentar os eventos, dando a cada um de nós o sentido do pessoal - minhas lágrimas, meu sangue e suor, meu gosto e meu valor. Toda a opus alquímica sustenta-se na habilidade de experimentar subjetivamente. Daí estar dito no : “Aquele que trabalha sem sal jamais levantará corpos mortos”.10 A menos que se trabalhe com sal, os problemas são todos apenas macrocósmicos e químicos, lá fora, mortos. Essas experiências intensamente pessoais são, contudo, comum a todos - minhas, e ainda assim comuns enquanto sangue, urina, sal. Em outras palavras, o sal atua como a base da subjetividade (“Aquilo que resta no fundo de nossos vasos de destilação é nosso sal - isto é, nossa terra”).11 Ele torna possível aquilo que a psicologia chama de “experiência sentida”. Portanto, devemos nos voltar para essa mesma base para extrair nosso sal. “Experiência sentida” assume um sentido radicalmente alterado à luz do sal alquímico. Podemos imaginar nossos ferimentos profundos não meramente como feridas a serem curadas, mas, como minas de sal das quais ganhamos uma essência preciosa e sem as quais a alma não pode viver. O fato de retornarmos a esses ferimentos profundos, com remorso e pesar, com arrependimento e vingança, indica uma necessidade psíquica além da mera e mecânica compulsão à repetição. Em vez disso, a alma tem um impulso para lembrar; ela é como um animal que retorna ao seu cocho de sal, o local onde se deposita sal para o gado lamber; a alma lambe suas próprias feridas para retirar delas seu sustento. Fabricamos sal em nosso sofrimento e, ao mantermos fé neles, ganhamos sal, curando a alma de sua carência de sal. Disse D.H. Lawrence: 7 8 9 10 11 Um psicanalista clássico provavelmente veria o contraste entre salsicha bisnaguinha cremosa simbolizando uma oposição entre as genitálias. Filaleto, I. ‘ ’. Collectanea, p. 12-13. Na culinária comum, o sal é utilizado para ‘contrair’ as fibras da carne. . Ware, Hertfordshire: Wordsworth, 2006, p. 269. HM 1, p. 22. Ibid. 47 Eu não sou um mecanismo; a reunião de várias partes. E não é porque o mecanismo está funcionando errado, que estou doente. Estou doente pelas feridas na alma, no eu emocional profundo, e as feridas da alma tomam tempo, muito tempo, só o tempo pode ajudar e paciência, e um certo arrependimento dificil [...].12 As substâncias alquímicas oferecem diferenças para os tipos de sofrimentos. Sal, por exemplo, pode ser distinguido do chumbo, pois o primeiro é cortante, pungente, agudo: ele queima a si mesmo com perspicácia e dor aguda, amargura corrosiva, ganhando sentido através da autoacusação e da autopurificação. Ele é depurativo. O chumbo, contudo, e crônico e denso, um sofrimento pesado, opressivo, obscuro, sem foco especifico, sem sentido. Ele é constipado. Enquanto o sal diz, “machuca”, o chumbo diz, “não posso”. Enquanto o sal saboreia os detalhes de sua dor ao lembrar precisamente e com uma agonia penetrante, o chumbo não consegue enxergar, nada sabe, permanecendo paralisado e mergulhado numa obliteração geral e abstrata da memória empírica. A cura dessas condições também varia: sal requer um beliscão, sentir o beliscão do evento que aflige, que pica; o chumbo parece requerer tempo, aquela paciência da qual Lawrence fala, espera. Aquilo que resulta da cura do sal é um novo sentido do que aconteceu, uma nova apreciação de seu valor para a alma. O resultado da cura do chumbo é profundidade, peso, gravidade, mais inteireza e a habilidade de “suportar”, “carregar”. Os dois também contrastam em dois gêneros literários de sofrimento: ironia (sal) e tragédia (chumbo). O primeiro inclina-se na direção da experiência humana comum, enquanto o segundo tende a proporcionar distância dessa experiência. Claro, na alquimia há “sais plúmbeos”, ou seja, condições nas quais os aspectos plúmbeos e salgados do sofrimento estão tão combinados que é difícil de se notar as diferenças: normalmente, aquilo que entorpece e obscurece a natureza do sal é resultado do chumbo. A tarefa torna-se separar chumbo do sal, humor negro das lembranças, espírito intoxicado da experiencia subjetiva, o fatídico inescapável destino dos erros pessoais culpados. O sal também pode ser extraído daquilo que é estável. Como o princípio da estabilidade, cujo signo alquímico era o quadrado,13 o sal pode ser extraído das pedras da experiência concreta, aquelas fixações que marcam nossas vidas com posições definidas. Esses lugares não são meramente fatos sólidos - meu diploma, minha propriedade, meu acidente de carro, meu aborto, meu divórcio, minha condecoração militar; esses são também lugares onde o corpo psíquico e salmourado é guardado. Essas pedras, quando reconhecidas e possuídas, pertencem à história de minha alma, onde ela foi salgada pelas fixações da experiência, dando certa cristalização à minha natureza e me poupando de inflamações e volatizações. 12 ‘Healing’. . Ware: Hertfordshire: Wordsworth, 1994, p. 513: ‘I am not a mechanism, an assembly of various sections. / And it is not because the mechanism is working wrongly, that I am ill. /I am ill because of wounds to the soul, to the deep emotional self / and the wounds to the soul take a long, long time, only time can help / and patience, and a certain difficult repentance [...l’. 13 Cf. Silberer, H. . Nova York: Moffat, Yard and Company, 1917, p. 395-396. Com relação ao sal como quadrado ou cubo, Silberer faz uma interessante distinção: ‘A cristalização produz a forma regular; a fixação, a densidade’. O microscópio eletrônico mostra que a estrutura do sal comum como quadrados de contornos bem definidos ou pequenos cubos achatados. Cf. o alquimista Edward Jorden (1569-1632) em Debus, A.G. . Londres: Oldburne Press, 1965, p. 163. 48 Como o sal não é inflamável,14 parece não estar sujeito ao calor: fabricamos sal menos no ardor do que na recriminação, menos pelo desejo do que pela memória do desejo. “A cinza sobre um velho é toda a cinza / Que nos deixaram as rosas já sem viço” [“Ash on an old man’s sleeve / Is all the ash the burnt roses leave”] (Eliot, T.S. ). Como se as cinzas fossem a memória do fogo; não um carvão apagado, mas a essência inflamável e fixa daquilo que uma vez queimou para os céus. Embora não possamos fabricar sal pelo fogo, realmente o fazemos através de dissoluções. O sal é solúvel. Chorar, sangrar, suar, urinar traz o sal para fora de suas minas interiores. Ele aparece em nossas umidades, que são o fluir do sal para a superfície. “Durante o trabalho o sal assume a aparência do sangue” ( ). Momentos de dissolução não são apenas colapsos; eles liberam um sentido de valor pessoal humano das incrustações do hábito. “Eu também sou um ser humano merecedor de meu sal” - daí de meu sangue, suor e lagrimas. É curioso o modo como estamos fixados em nossas feridas. A psicologia fala de trauma e inventou até uma teoria traumática da neurose e a síndrome do stress pós-traumático. Por que a psicologia volta para a criança ferida para legitimar o desenvolvimento psíquico, e por que a própria psique necessita olhar para trás? Parece que a alma deve ter sua lembrança encravada em sinais em seu corpo psíquico para assim saber que ela tem ou é um corpo. A dor nos envolve imediatamente com corpo, e dor psíquica com corpo psíquico. Estamos sempre sujeitos à dor, de forma que os eventos que doem, como os traumas da infância, o abuso e o estupro, forçam nossa subjetividade sobre nós. Na memória, esses eventos parecem ser mais reais que outros, porque eles trazem consigo a força da realidade subjetiva. Vistos da perspectiva do sal, os primeiros traumas são momentos de iniciação no sentido de sermos um “eu” com um interior pessoal subjetivo. Tendemos a nos fixar no que nos foi feito e em quem o fez: ressentimento, vingança. Mas aquilo que importa psicologicamente é que foi feito: o golpe, o sangue, traição. Como as cinzas que são esfregadas nas feridas em ritos de iniciação para purificar e escarificar, a alma está marcada por seu trauma. O sal ainda toca o corpo no batismo cristão, e ainda é comido no Pessach judaico num ritual de memória do trauma.15 Um trauma é uma mina de sal; é um lugar fixo para a reflexão sobre a natureza e o valor de meu ser pessoal, no qual a memória se origina e a história pessoal começa. Esses eventos traumáticos iniciam na alma um sentido de sua incorporação como um sujeito vulnerável experimentador. A história paradigmática do “olhar para trás” é a da mulher de Ló ( ). (Ló e sua mulher foram até mesmo usados como termos alquímicos para o sal - cf. o .) Porque a mulher de Ló não parava de olhar para trás, para ver a destruição de Sodoma, da 14 15 Sobre o fogo e o sal, cf. Jung, . O ‘fogo’ contido no sal é seu poder seco, ou espírito, mesmo que ele mesmo não seja inflamável. O cloreto de sódio comum só derrete a 800°C. Ainda assim, há um ‘fogo’ escondido no sal, pois o sal comum de mesa e composto de ‘um metal tão instável que ele incendeia quando exposto à agua; e um gás letal (cloro)’ (Young, ‘Salt’, p. 381). O toque do sal e de ervas amargas no Pessach judaico traz de volta a imagem memorial do Mar Vermelho e do deserto. A imagem não deve ser esquecida, pois ela é parte daquilo que faz esse dia diferente de qualquer outro dia, ou seja, a memória ajuda a diferenciar e traz significado. O sal inicia a criança mais jovem nas imagens amargas da alma. Quando, no entanto, a memória se transforma em algo mais que o toque, muito sal, então ‘não esquecer’ literaliza-se na história enquanto fatos. Então ficamos paralisados no passado, ao invés de ligados na imagem, e o sal não é mais uma lembrança imagística, mas torna-se uma experiência histórica literalizada. 49 qual ambos tinham sido salvos, ela foi transformada num pilar de sal. Comentadores judeus16 dizem que seu amor de mãe fez com que ela se voltasse para trás para ver se suas filhas casadas seguiam com ela; e comentários cristãos sobre (Clemente de Alexandria, ) também veem a origem de seu movimento nas lembranças da família e de familiares, subjetividades pessoais do sentimento. Evidentemente, as fixações familiares também são minas de sal. As frustrações, as preocupações, as dores do amor do complexo materno - a noite junto ao álbum de fotografias, as lembranças - são modos de a psique produzir sal, retornando aos eventos para transformá-los em experiências. O perigo aqui é sempre a fixação, quer seja nas recordações, nos traumas da infância, ou numa noção literalizada e personalizada da própria experiência: “Sou aquilo que experimentei, que vivi”. Paracelso define o sal como o princípio da fixação ( ).17 Esse termo, assim como projeção, condensação, sublimação, reaparece séculos depois na psicanálise, em que Freud o define: A fixação pode ser descrita dessa forma. Um instinto, ou um componente do instinto, deixa de acompanhar o resto pelo caminho do desenvolvimento normal antecipado e, em consequência (...) é deixado para trás num estágio mais infantil.18 Aqui temos recapitulado na linguagem moderna da psicanálise. A imagem da família de Ló em sua jornada é agora apresentada como um “caminho do desenvolvimento”. A parábola torna-se teoria; a história salgada em ciência. Entre essas fontes de sal, a urina tem um lugar especial.19 De acordo com o modelo do macrocosmo/microcosmo, a urina é o mar (salmoura) humano. É o microscópico oceano interno, ou as “águas de baixo”. Lendas judaicas20 explicam que o sal é incluído em todos os sacrifícios como uma lembrança do ato da criação pela separação das águas de cima das águas de baixo, por elas terem sido separadas, e o sal lembra essas águas mais baixas e seu choro por terem sido rebaixadas da proximidade de Deus. Os sais urinários são traços residuais flutuantes na pessoa de baixo. Eles são lembranças essenciais que denunciam nossa natureza interna, sua cor, cheiro, opacidade. Desordens da bexiga, bem como sintomas e sonhos urinários, podem referir-se a um despertar para as águas de baixo, para o fato de que existe vida psíquica na pessoa de baixo independentemente do que acontece acima, e essa vida é uma necessidade intensa, flamejante, pessoal, que ninguém pode fazer para você e para a qual devem ser encontrados tempo, lugar e privacidade. Um paciente sonha: “Vários químicos serão utilizados para examinar minha urina. Tenho na minha frente várias garrafas de vidro com diferentes químicos, mas não sei quanto pegar de cada químico para cada garrafinha e como vou colocar minha urina nelas”. A psicanálise como uma urinoanálise sugere discriminações muito cuidadosas de resíduos internos, 16 17 18 19 20 Ginzberg, L. . Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1998 [vol. 1, p. 225; vol. 5, p. 241-242. Os mesmos comentários notam que a chuva destrutiva que caiu sobre Sodoma enquanto a mulher de Ló estava olhando para trás, para o lugar do desejo luxurioso, era uma chuva de enxofre, ou seja, o sal desejoso de enxofre. Cf. READ, J. . Londres: G. Bell and Sons, 1936, p. 27. Freud, S. ‘ ’. Collected Papers. 4 vols. Londres: Hogarth Press, 1924- 1925 [vol. 3, p. 453]. Cf. Filaleto. ‘ ’, para um pequeno tratado sobre a urina. Para uma receita sobre ‘mijo e vinagre’, cf. HM 2, p. 74 (‘ ’). A urina deve ser coletada de um ‘rapaz não poluído [virgem]’. Ginzberg. . Op. cit., vol. 5, p. 18. 50 privados, e distinções claras (vidro) entre eles. É como se tivéssemos que separar os sais urinários da memória generalizada e do sofrimento generalizado, e examiná-los em suas particularidades bem específicas. Para o sonhador, a tarefa é dupla: dosagem (quanto pegar) e foco (capturar o fluxo em percepções estreitamente acuradas). É um exercício em “particularidade” leachness] - um termo predileto de William James para fazer frente p pensamento global e ao sentimento de totalidade. A urina de um menino virgem (entre 8 e 12 anos) era frequentemente mencionada como uma substância com a qual iniciar o trabalho. Essa “urina de menino” é um dos vários nomes da materia prima. Refere-se aos sais no oceano microcósmico antes da queda, ou seja, a essência arquetípica de cada caráter específico antes de ter acumulado resíduos pessoais: o sal não como resultado dos eventos, mas como anterior aos eventos. A condição virginal não é vazia ou vaga, mesmo que não manchada pela experiência. Esses sais têm sua própria gravidade e qualidades específicas - isto é, há um sal a priori em nosso “menino da alma”, que é definido pelas intensidades fixas que são as urgências e exigências de nossa própria essência particular. Os sais na urina do menino são esses traços arquetípicos da essência do caráter, memórias platônicas que são virgens porque são dadas intactas com nossa natureza e só podem ser abertas pela opus alquímica. O afirma tacitamente: “urina puerorum est mercurius”. Claro, há uma legião de nomes para Mercúrio; quando, entretanto, uma substância é abertamente chamada assim há um significado imediato para o cultivo da alma (soul-making). Isso significa que as ambições da fantasia do puer, que a psicologia freudiana atribuiu à fase urinária no desenvolvimento do menininho, assumem um significado revelatório. Não é meramente um “erotismo urinário”21 – ou seja, que eu posso fertilizar sexualmente o mundo, ou extinguir o seu fogo, ou iniciar regatos. A ambição urinária do “menino da alma” é também uma expressão de meu sal, a essência de mim mesmo, minha base. “Olhe (diz ela], veja meu xixi; isso sou eu.” Ha um espírito poderoso a ser encontrado no mijo corriqueiro de nosso próprio menino (talvez até no xixi que ele faz na cama). Podemos sentir o sal primordial do puer nas dores amargas da ambição que queimam antes de qualquer realização, e também na sensação de remorso que penetra antes de ter havido eventos externos dos quais se arrepender. Intensidades flamejantes podem assombrar a infância antes que as experiências com o mundo se iniciem, e essas mesmas dores salgadas reaparecem quando o menino da alma é constelado. Na urina puerorum há uma lembrança de coisas a priori, que encharcam uma ação no mundo com mais sal do que a consciência pueril pode muitas vezes suportar: culpas monstruosas, esperanças elevadas, até mesmo o suicídio. Pois o puer aparece não apenas nas asas que voam ou em jogos de amor; ele vem, também, pungindo com uma memória da beleza e daquilo para o que se está na terra. A urina puerorum sugere que, com a operação certa, podemos recuperar o aspecto salgado do puer. O sal para se colocar no rabo dos voos do puer já está lá para começo de conversa, se conhecermos a operação certa para recuperá-lo. Uma das operações que a alquimia sugere para a fabricação de sal é a evaporação. O menino aguado que flutua de um lado para o outro nas marés da emoção e segue os fluxos com a menor das resistências pode ser fixado pelos sais escondidos em seus próprios tecidos. Esses sais trazem regularidades, densidades, quadraturas e corpo. Quando as marés são 21 Murray, H.A. . In: Hillman, J. . Irving, Texas: Spring Publications, 1979, p. 91ss. 51 expostas à luz do sol e seu movimento é estancado, o sal cristaliza; assim podemos ganhar o sal pela evaporação do fluxo microcósmico. Para essa operação, os alquimistas utilizavam uma panela aberta e achatada; todas as coisas expostas à plena luz do dia fazendo com que toda a pressão ascendente pudesse escapar. O vapor, a névoa e a fumaça ascendiam e se dissipavam no ar quente. Perdemos o sumo (a exuberância)22 dos sentimentos, o pântano (o resplendor)23 das esperanças exageradas, os brejos taciturnos da inércia; e, na medida em que as umidades desaparecem, algo essencial cristaliza-se no ar seco. Portanto, o vaso hermético fechado seria inadequado. Evaporação significa não tomar os eventos tão profunda ou intensamente, mas, em vez disso, nivelar os afetos e deixar uma pressão evaporar-se por si mesma até que ela retorne a si mesma. Evaporação de um sal: esse é o sal comum da mesa do dia a dia do mundo que é, ao mesmo tempo, nossa própria experiência dele, agora cristalizada.24 A ideia alquímica de que a urina continha um espírito poderoso, um lumen naturalis (luz da natureza) mercurial, tornou-se evidente em 1669 quando um alemão, Hennig Brand - chamado de “o último dos alquimistas” - cozinhou urina misturada com areia produzindo um resíduo cremoso que queimava.25 O fósforo havia sido descoberto. Etimologicamente, a palavra significa “que dá luz”. É um epíteto para a estrela da manhã, para Lúcifer e para Hermes. De fato, urina Puerorum est mercurius. Quando e como salgar declara: “O sal é necessário a qualquer solução”.26 Esta parece uma afirmação estranha, na medida em que vínhamos imaginando o sal como o princípio da fixação, da impertinência amarga. Soluções, ao contrário, parecem conotar condições fluidas, passivas, receptivas, permitindo que a amargura se dissolva e a impertinência derreta. Em psicologia alquímica, contudo, a solutio é uma das pouquíssimas operações básicas e, em função de sua ubiquidade por toda a opus alquímica, não pode ser definida de um só modo. Evidentemente, uma solução genuína deve ter a capacidade de estabilizar-se. Deve sustentar uma condição, não meramente dissolvê-la. A solutio alquímica não sugere uma solução simplificada dos problemas. Em vez disso, requer o sal para afetar a matéria em questão de forma prolongada. As minas de sal, sobre as quais falamos na última seção, são tanto depósitos de sal quanto tentativas de solução. Quando paramos para pensar e refletir, estamos estabilizando e adicionando sal à solução de forma a torná-la uma solução genuína. Os problemas parecem não ir embora até que primeiro eles tenham sido inteiramente recebidos. 22 23 24 25 26 No original, em inglês, a palavra lushness carrega, entre outros, pelo menos esses dois sentidos, com os quais o autor está jogando; de forma que optamos por incluir, no corpo do texto, entre parênteses, um segundo sentido, a bem de tornar mais clara a intenção do autor [N.T.]. Aqui também, como o jogo intencional com a palavra (no original em inglês, flush) é o mesmo, adotamos o mesmo procedimento [N.T.]. Uma vez que existem muitos sais, há muitas operações para produzi-los, sendo a evaporação apenas uma delas. As outras são calcinação, putrefação, destilação (sal como um subproduto), coagulação. Asimov, I. . Nova York: Basic Books, 1962, p. 35-36. Cf. tb. Multhauf, R.P. . Londres: Oldbourne, 1966, p. 22s. Alberto Magno. . Berkeley: University of California Press, 1958, p. 61. 52 A questão aqui é a capacidade de internalizar, de admitir e receber um problema em nossa natureza mais íntima como nossa natureza íntima. Isso seria salgá-lo. Um problema encontra sua solução somente quando ele é adequadamente salgado, pois aí ele nos toca pessoalmente, penetrando naquele ponto em que podemos dizer: “Fiat mihi; tudo bem; eu admito, rendo-me; é realmente um problema meu; tem que ser”. O gosto dessa experiência é amargo, humilha e dura uma solução durável. Um segundo uso do sal é para “matar o enxofre”.27 Lembrem-se: o sal é quadrado e azul,28 e coagula. Quando o enxofre chameja, ele pode ser apagado com uma pitada de sal, a pitada que mata, quer seja um olhar lacrimoso, um comentário ferino, um toque de bom-senso. O sal fere e aniquila as reações impulsivas, pois ele relembra a dor experimentada em eventos similares. O sal nos dá a consciência da repetição; o enxofre, somente a compulsão. Talvez a famosa sal sapientia (o sal da sabedoria, sabedoria do sal) não seja nada mais grandioso do que a habilidade do sal de inibir o enxofre. Assim como há psicologias do enxofre, as quais pregam ação e baseiam-se no desejo, no impulso e na vontade, examinando eventos psicológicos em termos do comportamento e seu controle ou reforço, também há psicologias do sal. Essas tendem a literalizar a ideia de que o sofrimento pessoal é necessário para qualquer solução. Elas insistem no desenvolvimento da vida interior, na culpa, na penitência e no trabalho, na história subjetiva, sentimentos pessoais, traumas. A psicologia alquímica corrige esse tipo de literalização ao apresentar o fator pessoal, que tanto domina as psicologias do sal, como impessoal e comum a todos. Portanto, quando trabalhamos em nossa correção, nossa melhora, nossa purificação, percebemos que não é o “eu” o foco de nosso bom trabalho; é o sal. Estamos simplesmente trabalhando no sal. Dessa forma, na psicologia alquímica, o sal ajuda a manter o trabalho imune de inflamar-se na inflação egoísta da culpa pessoal. Sou o único responsável; é tudo culpa minha. Falta sal particularmente em gente jovem. Um homem jovem e descuidado sonha que visita Jung em sua casa, que na verdade trata-se de um laboratório sobre uma enorme duna de sal onde um esguio Jung explica como ele trabalha na fabricação do sal. Outro rapaz, cheio de promessas e vazio de realizações, sonha com um belo veado que corre saltando para dentro de um rio, cruza-o, seus chifres altaneiros e, então, colapsa na outra margem, desesperadamente necessitado de sal. Uma transição do espírito foi realizada, mas somente pela exaustão pode o sonhador perceber o quanto ele necessita conservar, não apenas seu espírito saltitante, que ricocheteia abrindo caminhos, mas também as experiências de sua vida onírica, na qual seu espírito se mostra. A menos que os animais de sua imaginação sejam salgados, eles podem simplesmente esvair-se em heroísmos espirituais ou voos estéticos. Sim, pegamos o pássaro colocando sal em seu rabo. Por que o amor jovem é tão amargo, e os estudos para os exames tão terríveis? Não são eles rituais do sal, modos de intensificar que engrossam as matérias e cimentam-nas nos lugares? O amor amargo é uma cura do sal, curando a alma terna, com lágrimas, recriminações e, finalmente, algum tipo de padrão estabilizado. As idas e vindas das brigas dos amantes, entre paixões violentas e lágrimas apaixonadas, representam estágios da conjunção sal/enxofre. O 27 28 HM 1, p. 154-155. ‘ Debus. ’. . [s.I.]: [s.e.], p. 163: ‘As cores azuis são próprias dos sais’ (referência a Jorden, E. . Londres, 1631). Jorden também escreveu provavelmente o primeiro tratado em inglês sobre histeria. 53 componente de sal, que simplesmente “não deixa passar”, ajuda a preservar o relacionamento quando o enxofre explodiria tudo, ou deixaria as coisas ficarem pretas. Assim como o sal macrocósmico conserva carnes, peixes, e vegetais, em salmoura ou escabeche, também precisamos do sal na ecologia microcósmica para fixar, manter, preservar. Não conseguimos engolir e digerir tudo o que acontece num dia, ou numa noite - portanto, precisamos de longas horas fazendo picles dos acontecimentos em jarros de vidro para mais tarde apreciarmos, oferecermos e consumirmos. Se queremos guardar algo, devemos salga-lo, salmourá-lo. O impulso decadente da natureza jovem - quanto mais fresca e pura a substância, mais cedo e mais certamente ela apodrece - é mantido em suspenso. O sal nos dá tempo, paciência, sobrevivência. Ele tempera a juventude ao remover umidade excessiva, portanto preservando a alma pela secura. Almas secas são as melhores, disse Heraclito, que Filon refraseou: “onde a terra é seca, a alma é mais sábia” – sal sapientia. A análise contrai. “O sal faz com que as coisas engrossem.” Ele atua como “liga e cimento”.29 Aquilo que a psicologia moderna chama de “integração da personalidade” e “integridade de caráter”, a psicologia alquímica chama de sal, pois é essa substância sófica que efetua uma adesão interna, amarrando e ligando os eventos à experiencia, encolhendo as generalidades em especificidades. O sal dá o sentido do detalhe significativo, cristalizações que acumulam de importância aquilo que, de outra forma, poderia ter sido uma noite branda de “inúteis horas tristes se alastrando para frente e para trás” [“waste sad time streching before and after”] (Eliot, T.S. ). Na festa, queremos encontrar alguém com quem conversar significativamente. Num encontro de família, é geralmente uma rabugenta tia velha, ou um avô, que adiciona o sal. O fluxo dos acontecimentos de repente se condensa e permanece fixo ao sermos paralisados por uma penetrante observação salgada. Há ainda um outro tempo e lugar para o sal: quando a alma precisa de terra. Quando os sonhos e os eventos não parecem suficientemente reais, quando o mundo tem um sabor insosso, chato e sem proveito, quando nos sentimos desconfortáveis na comunidade e perdemos aquele sentido do “eu” - sentindo-nos fracos, alienados, marginais - então a alma precisa de sal. Às vezes nos confundimos com o remédio e buscamos o enxofre: ação, falsa extroversão, esforço. Contudo, o movimento em direção ao macrocosmo pode primeiro ter que se voltar em direção ao microcosmo, de forma que o mundo possa ser experimentado, e não apenas agregado e atuado como um campo abstrato. O mundo precisa se tornar terra; e esse movimento, da ideia para uma presença tangível, requer sal. Ruland.diz: “Nada pode ser tangenciado sem a presença do sal”. Linguagem salgada, inteligência salgada, preço salgado, pagamento salgado (salário = salarium), valer o próprio sal, uma conta salgada, uma pitada de sal - tudo isso expressa os valores tangíveis da terra básica, terra do dia a dia do trabalho, a terra comum que nossas mãos tocam e na qual caminham nossos pés. Essa linguagem do sal revela cada ser humano como o “sal da terra”: somente aqueles bemnascidos e bem colocados podem sustentar se colocar “acima do sal”. As minas da experiência comum oferecem esse sal: os provérbios e o hábil know-how físico dos mais velhos, as cristalizações antigas da lei comum e do discurso comum. Isso tudo são minas de sal, e podemos derrubar nossas noções pretensiosas e ideias prematuras temperando-as com bom-senso. O sal dá àquilo que cada um tem em sua cabeça um valor entre as pessoas: um valor tangível na terra. Contudo, é necessária uma diferenciação entre 29 Oldroyd, D.R. ‘ (citando o alquimista francês Nicolas Le Fèvre (1615-16691). ’. Ambix, 21,1974, p. 148 54 ser comum e ser prático, ou aplicável. Trazer uma imagem para a terra não é vender uma invenção. Em vez disso, salgar, ou trazer para a terra, nossas especulações aladas significa expressá-las com um toque comum; tangibilidade de estilo. Terra também significa um sentido de localização. Há sal na fala local: sotaques, gírias, dialetos, idiomas. Quer sejam bordões que são epítomes saborosas ou contos mais extensos que vagueiam pelo país, a fala local torna tangíveis as palavras. A diferença entre dialeto e dialética, entre gíria e jargão, entre o humor comum e a piada suja, entre o idiomático local e a idiotia nacional (“televisiones”) é sempre uma questão de sal. “O sal não é adicionado em porções iguais a todo tipo de comida; essa circunstância deveria ser considerada com atenção pelo médico” ( ). Bem, estamos falando de dosagem. O sal requer particularização; força-nos a notar o gosto específico de cada evento. Tangibilidade significa reconhecimento e discriminação de naturezas específicas. Isso traz uma luz nova para a ideia do comum: evidentemente que não se trata apenas do geral e coletivo; aquilo que é comum, entretanto, é uma sensibilidade para o particular - a água nesta vila é mais suave e doce do que a água do outro lado do vale; você não pode usar esse tipo de prego nesse tipo de madeira; quando a febre se transforma em suor, você tem que tomar ainda mais líquido. A medicina paracélsica voltava-se para o paciente e tentava fazer percepções diferenciais precisas; ainda assim também tentava ser uma medicina do e para o povo comum, num dialeto comum. Pervertemos o sentido de “comum” para dizer todos, ou normal, ou igual; enquanto, alquimicamente falando, “sal comum” refere-se à percepção precisa das naturezas inerentes que revelam suas propriedades individuais de forma que podemos entender a dosagem certa. Na medida em que nos tornamos salgados, a prudência do sal tende a reverter-se. Onde antes era necessário voar e proteger experiências, começamos a nos surpreender lentamente envolvidos em salmouras. Os acontecimentos não nos largam: eles voltam ao sangue de nosso coração, lançam-se com lágrimas aos nossos olhos, levam-nos a ataques de suor frio pensando no que fizemos. (Paracelso fala do “mal que há no sal” [ ) Não mais a aplicação consciente do sal; o salgar agora torna-se autonomamente psíquico. A alma impõe sua tangibilidade sobre nós e nos traz nossa comum e básica suscetibilidade à dor humana. Talvez seja esse o eros do sal sobre o qual escreve Jung, ou sua sabedoria, ou mesmo a terra negra e a sombra associadas às vezes ao sal na alquimia. Ou talvez seja para as cinzas e a terra seca que estamos retornando, a essência da alma tornando-se fixa, intimações de imortalidade que, a princípio, sentimos como dor pessoal. Paracelso escreve ( ): “Sal corrige e fixa a leprosa Luna, limpando-a de sua negritude”. Portanto, o sal também é um “corretivo” - e especialmente um corretivo das condições de nigredo lunática, fixando-as. Um desespero amargo, uma mesquinharia mal-humorada, uma preocupação corrosiva, uma ignorância teimosa são todos leprosos. Essas condições devoram a si mesmas, espelham-se contagiosamente. Golpeamo-nos a nós mesmos. Essas condições tornam o poder reflexivo, que pertence à Luna, borrado, aparecendo em manchas, aqui e ali, rasgos de brancura que reproduzem a condição leprosamente, em vez de clareá-la. Embora “leproso” geralmente signifique “impuro” na alquimia, Paracelso parece estar falando de uma doença da própria reflexão, quando os poderes da lua tornam-se doentes, num estilo hamletiano. Em vez de terem o corpo de um insight claro, tais reflexões atacam nossa própria incorporação minhas ações, minha natureza, meu eu. O sal corrige essa doença da reflexão ao fixar precisamente aquilo que está errado. A negritude refere-se às manchas generalizadas que obscurecem a reflexão, aquelas tentativas 55 introspectivas de enxergar no escuro que somente escurecem ainda mais a mente. O ataque agudo do sal particulariza o estado mental por meio de uma precisão do sentimento. Exatamente o que, quando, onde e como deve ser sentido, de forma que “o caos generalizado da imprecisão do sentimento” [“general mess of imprecision of feeling”] (Eliot, T.S. “ ”) pode ser descoberto, e cada mancha clareada uma a uma. O desastre maior é corrigido pelo sentido menor que se tem dele. Precisão significa intensidade; doloroso para a doença autodevoradora, ao mesmo tempo em que a limpa de demasiada reflexão lunar. Uma mulher sonha com um pequeno e profundo lago de sal, e há sinais para ficar fora da água. Ela cai no lago e a água é tão densa que não parece líquida. Um comprido pedaço de sal pega seu braço direito e começa a puxá-la para baixo. Com muito esforço ela se livra dele e consegue subir de volta agarrando-se em fendas de sal solidificado pelas bordas do lago. A opinião pública, coletiva, alerta para aquilo que ela enxerga como uma salgada fossa profunda de depressão. Mas ela cai lá dentro, apesar da opinião prudente e de sua intenção. Quando ela está dentro desse lago, ele é tão denso e coagulado que a água não flui mais. Paralisada. (O sal faz com que a matéria se densifique, diz um de nossos textos.) Aqui, esse engrossar é como o processo de identificação: ela está imersa na densidade de seu sofrimento que, ao mesmo tempo, é o lugar onde ela pode se tornar mais densa, estável e sólida. Um pedaço desse lago generalizado de sal, um de seus momentos cristalizados - uma lembrança, uma culpa, uma pontada amarga de dor - agarra seu braço da ação e a puxa ainda mais para dentro e para baixo. Desembaraçar-se dele acontece com esforço, especificamente ao encontrar onde em se agarrar experiências já cristalizadas da memória, em que a umidade secou. Ela pode realmente encontrar sua saída ao segurar-se naquilo pelo que já passou. Ela encontra uma saída para fora do lago profundo ao se segurar numa “borda” sólida, ao “abordar” algo sólido, que está lá sempre que o lago profundo estiver. A saída está na borda, em sua marginalização. Semelhante cura semelhante: o desembaraço da identificação com o sal acontece não através de esforços que somente a afundam mais ainda (não pelo braço direito), mas por pequenas compreensões básicas que podem ser encontradas nas pequenas falhas (fendas) e depressões de sua experiencia subjetiva solidificada. O fervor do sal Nossas considerações procuraram demonstrar a experiência do sal na psicologia alquímica. Pudemos ver que, como a base da subjetividade, sua natureza é fixar, corrigir, cristalizar e purificar. Tudo isso ele pode fazer para a própria subjetividade. Nesta seção final, ocupar-nos-emos mais especificamente dessa purificação da subjetividade, em que mais claramente emerge a conexão entre sal e virgindade. Já nos deparamos com sua natureza rígida e quadrada, densa e protetora. Por exemplo: a analogia do ovo, de Paracelso, onde o sal era a casca; e nos escritos de Joseph Duchesne ( ) onde o sal aparece na matéria dura das coisas, suas raízes, pele e ossos, aquelas partes que estão coaguladas, grumosas, cimentadas, congeladas.30 Podemos ir além e atribuir a essa substância aquela tendência nos escritos sobre o sal de concluir com um pensamento coagulado, uma redução a uma ideia básica. A múltipla natureza dos sais, suas múltiplas origens e efeitos, sua referência a tantas qualidades 30 Debus. . [s.l.]: [s.e.], p. 94 (apud Duchesne, . Paris: [s.e.], 1595). 56 diferentes de experiência e materiais químicos (álumes, álcalis, cinzas, etc.)31- tudo isso tende a se congelar num simples princípio básico. Para Jones essa ideia era “sêmen”; para Jung, “Eros”. A coisa sobre a qual escrevemos torna-se a coisa com a qual escrevemos, e somos afetados pelo material com que trabalhamos. Assim como queremos absorver o leitor, cativando e convencendo, também o material, por ser almado, captura nossa imaginação: perdemos a volatilização mercurial e a riqueza sulfúrica, e nos reduzimos a repetições, constrangimentos morais e fixações da expressão à medida que tentamos nos aprofundar de modo acurado em direção às raízes puras e aos ossos, cristalizando aquela experiência chamada “sal”. Em vez disso, a importância do sal como valor (expressa acima como o salário) torna-se uma supervalorização ou do lugar dessa substância dentro da opus alquímica, ou de nossa própria interpretação: uma ideia supervalorizada devido a uma overdose de sal. Esse efeito do sal provém de seu próprio fervor, um fervor da fixação, que pode ser distinguido do fervor do entusiasmo sulfúrico e sua ebulição e agitação maníacas, e também do fervor do mercúrio e sua volatilização efervescente. O fervor do sal é, ao invés disso, sagrado, purificador e amargo, inamovivelmente fixo, fanático. Lembrem que Paracelso ( ) mantinha que comemos sal para cuidar e apreciar nossa natureza salina, e que desejamos o sal em si mesmo. O sal deseja a si mesmo. Seu apetite funciona em nós e através de nós para ele mesmo. Ele é fixado em si mesmo. Enquanto o enxofre e o mercúrio são encontrados em outros eventos e, por meio desses outros eventos, o sal é a experiência de alimentar-se com a experiência. Ao fechar-se a outros princípios ele pode intensificar sua própria interioridade. Uma mina de sal bem ali no que quer que chamemos de “meu”.32 Assim in extremis, o sal alimenta-se de sua própria natureza, corrosivo como um detergente - em suas próprias purificações autorreflexivas: recriminações, arrependimento, cinzas, purificações em busca de uma essência cada vez mais pura. Seu sofrimento é autoinfringido. Esse é o sal que transforma todos os vermelhos em azuis - azul nos sentidos de frio, puritano, celestial, exclusivo, leal, lúgubre, mortal (cianureto, cobalto, azul-escuro, cianídrico).33 Aqui podemos rever aquelas imagens do sal puro que já examinamos: a urina do menino virgem, cristal branco, cinzas. Também aqui estão presentes as imagens do deserto de sal como se ele fosse o paraíso: os Campos Elíseos tornam-se um Mar Morto, celestial, imaculado e estéril, um campo cristalino de autolaceração, aquele sentido de estarmos suportados pela nobreza de um sofrimento longo, que nega até mesmo o fiat mihi. Pois nada vem do Grande Lago Salgado quando nos tornamos nós mesmos puramente sal, como a esposa de Ló. Na medida em que o sal fixa-se e se purifica, o sofrimento torna-se fanatismo. A intensidade desse fanatismo aparece na linguagem alquímica tanto como amônia, soda cáustica, álcali, cal branco quanto como sódio, o sal branco do nitrato de potássio, o salitre, que é um pó destrutivo e explosivo. (Mesmo o sal de mesa é um metal altamente inflamável e instável - sódio.) 31 32 33 Para um tratado que mostra vários sais e as diferentes operações para cada um deles cf. Steele, R. ‘ ’. Isis 12, 1929, p. 10-21. [As práticas de Rasis são relatadas por Ferrara, B. . Londres: Vincent Stuart, 1963, p. 366-371.] Outro jogo de linguagem utilizado pelo autor, onde mine, ‘meu’ em inglês, também significa ‘mina’ [N.T.]. Cf. adiante, capítulo 5, O azul alquímico e a unio mentalis. 57 Alguns alquimistas reconheciam como sais qualquer coisa que aparecesse em forma cristalina. Poderíamos imaginar que um sal se cristaliza para concentrar seu fervor inerente? Esses sais fanáticos manifestam-se mais em negócios políticos e doutrinários, embora atitudes semelhantes apareçam também na askesis concreta da esquizofrenia paranoide. A própria virtude do sal - seu sentido de pé no chão, daquilo que é concretamente comum parece ser uma virtude apenas se combinada com outros elementos. Sozinho, o sal fixa-se em si mesmo, tentando tornar-se o elixir puro que a alquimia insiste em dizer ser o resultado de muitas combinações. A capacidade inerente do sal de cristalizar sua própria essência é aquilo que chamo de a virgindade inerente do sal. Aqui, por virgindade quero dizer a constante e fechada devoção à pureza. Acredito que é esse aspecto do sal que está alquimicamente associado ao aspecto frio e duro da Luna, a rainha como “prostituta”.34 A conexão Luna-sal é longamente discutida por Jung, que considera sal um outro termo para lua, outra manifestação do princípio mais geral do “feminino”.35 Na Roma Antiga o sal era, de fato, o campo do feminino virginal, as Vestais.36 Elas preparavam os animais sacrificiais e borrifavam-nos a cada um com sal para torná-los sagrados. A Vestal (ou seja, uma iniciada e ritualizada) virgem era a amante do sal; ela sabia como lidar com ele. Aqui está a virgem, não no fervor do fanatismo, mas a virgem como mediatrix; ela conhece a dosagem certa, uma pitada, um toque, não um estado. Jung cita Picinellus: “Que a palavra seja borrifada com sal, não inundada nele”.37 A dosagem do sal é uma arte: deve ser tomada cum grano salis, não com uma ironia amarga e corrosiva, sarcasmo picante ou dogmas fixos imortais, mas o toque habilidoso que dá o sabor. Até mesmo o sal da sabedoria (sal sapientia) e o sal do senso comum tornam-se cristalizados e destrutivos quando tomados sozinhos, em si mesmos, ou imaginados sem riqueza, pois está na própria natureza do sal literalizar-se e conservar-se num corpo de cristal. Qualquer insight ou experiência preservados como verdade ou fé tornam-se virginais: fecham-se em si mesmos, tornam-se intransponíveis, densos e defensivos. Sal demais. Somos todos virgens quando somos preservados da experiência por uma experiência preservada. Daí a importância das Virgens Vestais. Semelhante cura semelhante. Sua virgindade consciente capacitou-as para lidar com o poder purificador do sal. Como iniciadas no culto do sal, elas devem ter entendido os perigos de seu “fermento corruptor”.38 A sociedade está sempre ameaçada pelo perigo do fervor do sal - fanatismo, puritanismo, terrorismo - e a preservação da cultura romana dependeu das Virgens Vestais.39 Isso sugere que uma compreensão psicológica do poder do sal e sua dosagem é necessária para o corpo humano, o corpo da alma, e o corpo político. Muito pouco, e os princípios fracassam; demais, e um reino de terror assola. Podemos reconhecer quando o princípio da fixação tornou-se uma fixação de princípios. Então o sal não é capaz de entrar em combustão e soltar-se pela ação do enxofre, ou de ser 34 35 36 . Robert Grinnell ( . Dallas: Spring Publications, 1973) analisa a ‘prostituta’ em profundidade. .. Demetrakopoulos, S. ‘Hestia ’. Spring: An Annual of Archetypal Psychology and Jungian Thought. [s.I.]: [s.e.], 1979, p. 65-68, com notas. Cf. para detalhes sobre a preparação da mola, . 2 vols. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1996 [vol. 1, p. 318]. 37 38 39 Filaleto. ‘ ’. Op. cit., p. 22. Cf. Demetrakopoulos. ‘Hestia ’. Op. cit., p. 68. 58 tocado e manchado pelo mercúrio: nem a vida nem o insight são possíveis, só dedicação, estéril e pura. A psicologia alquímica protege-se do sal com seu pensamento misto, misturas, uma pitada disso e uma pitada daquilo. O sal alquímico está sempre cedendo seu corpo ao enxofre e o mercúrio, ao seu amor pelo espírito e pela alma, fiat mihi - deixe isso acontecer para mim -, receptiva a outros poderes, tocando-os e em contato com aquilo que ela não é, o estranho e o irregenerado. Pois a função do sal não é sua própria conservação, mas a preservação daquilo que ele toca. Imagens da Virgem Maria acolhendo o estrangeiro, deixando que todas as coisas venham a ela e dando proteção ao dar seu corpo a elas, quaisquer que sejam suas condições, dando aquele toque que revela seu sabor e abençoa sua terra - isso apresenta o sal solúvel, Stella Maris. Pois, como disse Arnold de Villanova, “O sal que pode ser derretido” é o sal desejado.40 “Prepare esse sal até ele ficar doce”.41 Como um exemplo final do fervor do sal, ou daquilo que o alquimista Khunrath42 imagina como um fogo infernal no meio do sal, talvez uma luz brilhante demais na qual a pureza queima com uma paixão que consome, deixem-me concluir com um “texto alquímico” de D.H. Lawrence, de seu romance , de 1915, do capítulo intitulado “ ”.43 A cena se passa entre montes de feno, sob o luar, numa festa de casamento. Imagens de fogo e obscuridão abundam, e aqueles opostos alquímicos comuns aparecem quando “o fogo vermelho cintila numa saia de seda branca”. A personagem principal, Ursula, “queria se largar”. Ela queria alcançar e estar entre as estrelas brilhantes, queria correr com seus pés e estar além dos confins dessa terra. Estava louca para se desprender. Era como se um cão estivesse se contorcendo na coleira, pronto a se lançar na escuridão, depois de uma batalha sem nome. Ela convida Skrebensky a dançar. “Era o desejo dele e o desejo dela {...] selados num só movimento, e ainda assim nunca se fundindo, sem nunca deixar que um sobrepujasse o outro.” Enquanto a dança oscilava solta, Ursula tinha a sensação de uma influência que a espiava de cima [...]. Algum olhar poderoso, brilhante, fitava-a diretamente [...]. Ela se voltou e viu uma grande lua branca [...]. E seus seios abriram-se para ela [...]. Ela ali ficou, repleta de lua cheia, oferecendo- se [...]. Ela queria que a lua a preenchesse, queria mais, mais comunhão com a lua, consumação. Skrebensky toma sua mão, envolve Ursula com um grande capote escuro, e se sentam. Ela desesperadamente deseja livrar- se de suas roupas e escapar em direção à lua, ao “cristalino e livre luar”. Skrebensky também assume uma qualidade metálica, “um magnetismo obscuro, impuro. Ele era a escória, as pessoas eram a escória”. Skrebensky, como uma pedra a pesar sobre ela [...]. Ele estava inerte, e pesava sobre ela [...]. Ah, pela frieza e total liberdade e brilho da lua. Ah, pela liberdade fria de ser ela mesma [...]. Ela se sentia como um metal brilhante [...]. E suas mãos cerraram-se “na refulgência orvalhada da lua, como se estivesse louca”. Então, uma estranha ira lhe assola, e suas mãos parecem lâminas de metal destrutivas. “Deixe-me 40 41 42 43 HM 1, p. 177 (‘ ’). ; . Lawrence, D.H. . Londres: Penguin Books, 1995, cap. 11. Outras passagens que exibem metáforas salinas, lunares e metálicas, e até uma visão química do caráter humano no relacionamento de Ursula e Skrebensky, aparecem no cap. 15, ‘The Bitterness of Ecstasy’. 59 só”, disse ela. Ela se livra de seu capote escuro e caminha em direção à lua, “branca-prata ela mesma”. Eles começam de novo a dançar e uma luta inicia-se entre eles. Ela sente “uma paixão feroz, branca e fria em seu coração”. E, embora ele avance seu corpo sobre ela, como que para fazêla sentir-se inerte com ele, em seu corpo permanece uma “paixão fria, indomável”. “Ela estava fria e inamovível como um pilar de sal.” Para ele, ela parece “fria e sólida e compacta de fulgor como a própria lua”, e ele tem o impulso de laçá-la e compeli-la a seu desejo. Eles se encaminham em direção [...] aos grandes montes novos de milho [...] prateados e presentes sob azul do céu noturno [...] o ar prateado e azulado. Tudo era intangível, o queimar de fogos frios, luzentes, esbranquiçados como aço. Ele estava com medo da grande conflagração lunar das pilhas de milho [...]. Ele sabia que morreria. Ursula torna-se consciente do poder que tem: “uma lascívia repentina toma-lhe conta, de agarrá-lo e dilacerá-lo e anulá-lo”. Suas mãos estão fortes e firmes como lâminas, e sua face um raio “brilhante e inspirado”. Skrebensky novamente puxa-a para perto de si: E, timidamente, suas mãos aproximam-se dela, do brilho compacto de sal de seu corpo (...]. Se ao menos ele pudesse enredar seu corpo brilhante, frio, queimando de sal com o ferro suave de suas próprias mãos [...]. Ele se esforçou [...] com toda sua energia para envolvê-la, para tê-la. E sempre ela estava queimando, brilhando e firme como o sal, e mortal. Ele cola sua boca na dela, “embora parecesse estar pondo sua face junto a uma amedrontadora morte”, e seu beijo era “furioso e cruel, corrosivo como o luar [...]” frio como a lua e fogoso como um sal feroz. Até que gradualmente seu suave ferro cedeu, cedeu, e lá estava ela feroz, corrosiva, fervendo de destruição, fervendo como um corrosivo e cruel sal em torno da última substância de seu ser, destruindo-o, destruindo-o com seu beijo. E sua alma cristalizou-se num triunfo, e a alma dele fora dissolvida em agonia e aniquilação. Deixei que D.H. Lawrence apresentasse as figuras e a cena de minha conclusão por diversas razões. Primeiro: para mostrar novamente as ligações entre a psicologia e a literatura, e para sugerir sua intercambialidade. Segundo: para testemunhar a presença contínua da imaginação alquímica - nesse caso, o imaginário de conjunção de sol et luna, como ferro sulfúrico e sal. (Não acredito que possamos reduzir essas imagens e essa retorica à influência sobre Lawrence de seu pai, um mineiro, ou do ambiente das minas de sua terra natal.) Terceiro: para mostrar que as personalidades são compostas de, e carregadas de, substancias imaginais - sementes metálicas, elementos químicos, minerais impessoais, as naturezas firmes e persistentes dos deuses aparecendo em nossos desejos. E, quarto: para levantar um véu e alertar sobre a chamada consciência lunar indiferenciada. Enquanto o século XX se encerrava, uma lua cheia se levantava. Tanto quanto a iluminação solar e sua obsessão com claridade, ótica, medida, realeza e categorias de ordens hierárquicas possuíram a mente ocidental do século XVI até a Revolução Romântica, raios lunares infiltraram-se no final do século XX: hemisférios cerebrais direitos e cultos da mão esquerda; ervas e vegetais, velas perfumadas e ritos de cura; medo dos oceanos transbordarem e dos aquíferos tornarem-se salgados; visões pop de Nossa Senhora; as liberdades de Artemis, o poder de Diana, política lésbica, a ordenação de mulheres na Igreja; governadoras, senadoras, generais, CEOs mulheres, historia feminista; passeatas de mães de lágrimas salgadas, a compaixão como um bálsamo lunar por todas as criaturas, grandes e pequenas. Todas as 60 deusas de uma só vez. “O Feminino” como um fervor do sal; a nova sanidade e a velha loucura agora indistinguíveis sob o luar. Muita proximidade da lua pode significar loucura. “O amor queima com as mudanças da lua.” “Ela chega tão próximo da terra/E faz os homens enlouquecerem./Ah, miséria!” [“She comes so near to earth/And makes men mad. /O misery/”], diz Robert Duncan (“ ”). Observamos essa lua próxima demais da terra em Ursula, cuja demência e um fanatismo que lida todo o tempo com a morte: um sal amargo, assertivo, cáustico, estéril, corrosivo. Testemunhamos o corpo de Ursula virando sal à medida que ela se torna tomada por sua subjetividade. Como a mulher de Lo, ela está ocupada consigo mesma. Por ser o sal a alma do corpo, ele pode nos alcançar pela subjetividade corporal. Tornamo-nos pura experiencia corporal e transformamos o acontecimento do outro apenas num instrumento da experiência. Assim, o corpo vira sal; ele permanece intocado, sua virgindade preservada, mesmo enquanto está sendo abraçado, porque nenhuma conjunção está acontecendo, somente a intensa experiencia da subjetividade. Ha uma confusão aqui entre o impulso de pureza e o desejo da liberdade. A Virgem Vestal completamente subjugada; não havia possibilidade de imaginar a liberdade junto com a pureza. O resultado dessa confusão é um férvido e solitário purismo, o vestígio de uma virgem sem seu ritual e isolada de seu culto, ardendo com o eros divino, ainda assim buscando a luz branca para si mesma, sua devoção à lua envenenada pelo sal da subjetividade. “As pessoas eram a escória.” O purismo é o sal na alma que não permite recuperação; é também a paixão da vingança. “Cartago deve ser exterminada”, disse um obsessivo e fanático Cato; seu solo fechado com sal. Purismo como destruição máxima. Cada planeta, cada culto, cada perspectiva arquetípica tem seu tipo de terror. Portanto, há um terror na Lua, na pureza de uma devoção ingênua que seu sal pode exigir. O terror não se origina somente nesse assim chamado lado escuro, em Lamia, na prostituta de Hécate, ou Lilith, mas na influência da lua sobre o sal dos mares e sobre nossos fluxos microcósmicos. Com a análise desse capítulo podemos entender o purismo como a fixação do sal numa literalização do princípio de preservação. Devido à relação especial entre Luna e Sal, o purismo é o maior perigo em nossas devoções à lua. Invocar a lua é convocar o sal44 - e, a menos que tenhamos treino na natureza e no poder do sal, como tinham os alquimistas e as Virgens Vestais, podemos nos tornar terroristas involuntários da noite, não importando a nobreza de nossa dedicação. A simplicidade fanática liberta-nos do poder do outro, mas à custa de destruir o coração da existência do outro. Podemos ficar de pé, mas ficamos sós, frios e estéreis como a lua. Ursula não foi treinada em psicologia alquímica, em que se aprende que a lua não é um local de chegada. Tanto a alquimia quanto a astrologia a consideram como uma estação no caminho a outros planetas,45 assim como a lua microcósmica, a psique humana, implica 44 45 Um dos nomes para o sal era ‘a lua comum’ ( ). A afinidade de sal e foi experimentada metalurgicamente no processo da fabricação do ouro: quando se adiciona sal a um compositum de ouro e prata e depois se expõe ao calor vermelho por um período de tempo, o sal ‘ataca’ a prata, levando-a às paredes do cadinho para formar o cloreto de prata, deixando o ouro purificado libertar-se. Este processo é comparável ao ‘ataque’ do sol à reflexão lunar leprosa, libertando a luz da inteligência da hipersubjetividade (Forbes, R.J. . 2. ed. Leiden: Brill, 1971, p. 180). : ‘Lua representa os seis planetas [...]. Ela é de natureza múltipla’. 61 vários deuses. A lua implica outros; ela não é um soberano rei solar produzindo sua luz toda importante e autossuficiente a partir de si mesmo. Ela reflete a luz que vem de além dela. Para uma psicologia alquímica, a devoção à lua estende-se àquilo que ela reflete - uma variedade de outros poderes. No uso diário, o sal é um purgativo e um emético. Pode nos livrar de venenos. Na diluição correta, é medicinal e acelera a cura. Porque purifica, era espargido no chão sagrado e nos animais sacrificiais pelas vestais romanas. Essa pureza era porcionada de modo preciso, ritualisticamente, sem contaminação por outros elementos. Principalmente, nada de água. Às virgens era dada apenas a quantidade de água a ser utilizada a cada dia, e a água era guardada num jarro irregular (o futile), de forma que não se podia reter nada. A pureza não pode permitir diluição. Cada um de nós precisa de uma Virgem Vestal para guiar nossas mãos na distribuição proporcional de nossa férvida dedicação e das sementes de inerente amargura que acompanham a dedicação, dando-lhe seu gosto. O mesmo sal que é a sabedoria honesta, a verdade sincera, o senso comum, a inteligência irônica e o sentimento subjetivo é também o sal destruidor. A dosagem46 e a arte do sal; um toque da virgem, não demais. E só nosso gosto individual e o senso comum podem prescrever essa dosagem. Somente nosso sal pode saborear suas próprias necessidades. 46 Foi Paracelso e sua escola (Debus. ) que ‘trabalhou arduamente para determinar a dosagem correta de seus remédios’. A preocupação com dosagem derivou-se mais provavelmente da iatroquimica dos sais minerais e metálicos como remédios específicos. Se os seguidores de Paracelso ensinaram a arte de dosar os sais, o sal foi o princípio que ensinou os seguidores de Paracelso. 62 A sedução do preto 4 O princípio da arte é o corvo. C.G.Jung A cor da não cor Preto e branco. Essas duas não cores para o olho newtoniano da ciência são, para o olho da cultura, as primeiras de todas as cores - as verdadeiras cores primárias. Dois etnologistas da Universidade da California publicaram um estudo sobre as palavras para cores em noventa e oito línguas.1 A partir daí chegaram a uma conclusão mais ampla e universal. Eles reportam que todas as línguas tem palavras para preto e branco, escuridão e luz, obscuro e brilhante. Depois, reportam que se uma língua possui um terceiro termo para cor, ele é o vermelho, e se existe um quarto e um quinto, são o amarelo ou verde. Para nós, seu principal achado, e o menos contestado, é a primazia do par preto-branco. Parece que todas as culturas fazem essa distinção, sugerindo a importância do ritmo diurno2 e, especialmente para a psicologia, sugerindo que o contraste3 é essencial para a consciência. Entre os povos da região ao sul do Sahara, as três cores primárias - preto-branco-vermelho (e estou traduzindo expressões metaforicamente mais concretas em nossos termos mais abstratos para as cores) - formam os próprios princípios governantes do cosmo. Não são apenas palavras para cores, nomes de tons. Encontramos uma ideia semelhante nas três gunas da cosmologia indiana: tamas preto, rajas vermelho e sattva branco entram na composição de todas as coisas. O antropólogo afirma que essas três cores “fornecem uma classificação primordial da realidade”.4 São “experiências comuns a toda a humanidade”, são como “forças” arquetípicas, “biológicas, psicológicas e logicamente anteriores às classificações sociais, quinhões, clãs, totens sexuais e todo o resto”. Para a cultura, preto e branco, e também vermelho, precedem e determinam o modo como a vida humana é vivida. As afirmações de Turner separam a “cultura” da cor da “ciência” da cor. Do ponto de vista cultural, as cores não são meras qualidades secundárias, redutíveis a sensações físicas nos sistemas neurológicos do sujeito que percebe. Por um lado, as cores têm a ver com luz, reflexão, ótica e nervos; por outro, têm algo a ver com o próprio mundo. Elas são o próprio mundo, e esse mundo não é meramente um mundo colorido em função de acidentes de luz e química, ou como se fosse decorado por um Deus pintor. As cores apresentam a realidade 1 2 3 4 Berlin, B. & Kay, P. . Berkeley: University of California Press, 1969. Cf. adiante para uma apresentação mais completa da escala de Berlin-Kay. Durand, G. . Paris: Presses Universitaire de France, 1963. O contraste favorece um modo estético de fazer distinções, diferente da lógica severa da oposição e da contradição, que são frequentemente aplicadas às cores contrastantes, como se o preto e o branco ou o verde e o vermelho fossem oponentes antagônicos em vez de correlativos radicalmente divergentes. Turner, V. . Itaca: Cornell University Press, 1967, p. 90. 63 fenomenal do mundo, o modo como ele se mostra e, como agentes operativos no mundo, são princípios formativos primários. De acordo com a imaginação medieval, até mesmo o arco-íris retira suas cores do mundo fenomenal (ao invés da refração da luz): “Dos céus ele retira a cor ígnea; da água, o púrpura; do ar, o azul; e da terra, a cor herbosa”.5 Quer a terra retire suas cores de uma luz incolor e invisível nas alturas, ou componha essa luz através de seus próprios tons elementais (erva verde, água azul), o arco-íris junta o visível e o invisível. A Torá diz que Deus enviou o arco-íris como um sinal visível de que o cosmo é sustentado por princípios invisíveis. O arco-íris também afirma o duplo princípio de que a aparição da beleza se dá passo a passo com a discriminação, o espectro de tons finamente diferenciados. Apenas numa visão de mundo fisicamente reduzida, ou seja, uma visão de mundo reduzida à física e pela física, pode o preto ser chamado de uma não cor, uma ausência de cor, uma privação da luz. Essa definição privativa do preto ignora o fato de que o preto aparece em plena luz do dia em pigmentos naturalmente dados e em outros fenômenos, do carvão e da obsidiana, aos blackberries e olhos de animais. Além disso, a definição negativa e primitiva do preto promove a moralização do par pretobranco. O preto é então definido como o não branco, e é privado de todas as virtudes atribuídas ao branco. O contraste se torna oposição, até mesmo contradição, como se o dia fosse definido como uma não noite, e um blackberry definido como um não whiteberry. A lei da contradição, quando moralizada, dá vez à nossa mentalidade ocidental corrente, que se origina nos séculos XVI e XVII, a Era da Luz, o Iluminismo, quando Deus é identificado com a brancura e a pureza, e o preto com a privatio boni, tornando-se cada vez mais fortemente a cor do mal. O racismo norte-europeu e norte-americano pode ter sido iniciado com a moralização dos termos para as cores. Muito antes que algum aventureiro de língua inglesa tocasse a costa da África Ocidental, os significados do “preto” no século XV incluíam: “profundamente manchado com sujeira; sujo, imundo; manchado; maligno. atroz, horrível, mau; desastroso, sinistro, mortífero [...]”. Quando os primeiros marinheiros de língua inglesa espiaram os nativos no litoral da África Ocidental chamaram essa gente de “pretos”. Este foi o primeiro termo descritivo que usaram - não “nus”, não “selvagens”, não “pagãos”, mas “pretos”. Uma vez assim nomeados, esses povos nativos foram amaldiçoados com todos os significados implícitos nesse termo. O termo inglês “branco” caracterizando um grupo étnico ocorre primeiramente em 1604, após a percepção dos africanos como “pretos”. A moralização e a oposição entre branco e preto continuam até hoje no uso comum da língua inglesa, já que branco equaciona-se com bom, preto com mau, sujo, imundo, sinistro, o mal. “Branco”, como um termo para os cristãos, tornou-se firmemente estabelecido no léxico americano já em 1670.6 O desdém pelo preto não é apenas contemporâneo, ocidental e inglês. A cor preta no mundo grego, e também em línguas africanas, carregou significados contrastantes com branco e vermelho, e incluiu não apenas a fertilidade da terra e o mistério do mundo das trevas, mas também doença, sofrimento, trabalho, feitiçaria e má sorte. 5 6 BOYER, C.B. Jordan, W.D. Carolina Press, 1968, p. 94. . Nova York: Thomas Yoseloff, 1959, p. 85. , 1550-1812. Chapel Hill: University of North 64 O preto, no entanto, não é mais amaldiçoado do que qualquer outra cor. De fato, termos para cores carregam significados extremamente contrários. Cada um deles equilibra-se com um conjunto de opostos - o amarelo da luz do sol e da decadência; o verde da esperança e da inveja; o azul do puritanismo e da lascívia. A maldição do preto aparece apenas quando os termos para as cores são colocados nos seres humanos - uma maldição de nossa cultura anglo-americana que pesou na maioria das culturas rotulando-as de brancas, carregando-as assim com a maldição arquetípica da supremacia branca. Poderia haver um aspecto arquetípico da escuridão que seria responsável por nosso desdém, bem como pelo medo, o arrepio fisiológico que ele pode provocar? Será que o olho humano prefere a luz à escuridão? Será o ser humano heliotrópico, fundamentalmente adaptado à luz? Será a percepção visual seu sentido preferido, como testemunhamos no embrião onde, a partir de suas primeiras semanas, o sistema ótico rudimentar começa a se formar antes de muitos outros? Se o animal humano tem uma predileção inata pela luz, então a exclusão do preto como um termo para cor substituindo “escuridão” poderia encontrar justificativa. A exclusão da escuridão favorece a adaptação ao mundo fenomenal e um funcionamento ótimo nele por meio de nossos órgãos sensoriais primários, os olhos. Então podemos concluir que a definição de preto como uma não cor pertence à identidade ocular da consciência humana. O olho torna-se a pars pro toto para a consciência humana comum, e o preto ameaça o próprio centro dessa identidade. Esta ameaça, entretanto, é também sua virtude! A nigredo alquímica A significação cósmica dessas cores primárias também aparece nos primórdios da ciência ocidental, ou seja, na tradição da alquimia. Das três, o preto tem uma importância especial, como a base da obra, e até mesmo entra na formação da palavra “alquimia”. A raiz khem refere-se ao Egito como a terra preta, ou terra do solo preto, e a arte da alquimia era chamada de ciência ou arte “negra”. A tradição alquímica ocidental deita suas raízes na techne egípcia do embalsamamento, do tingimento de tecidos, da joalheria e da cosmética. Os primeiros quatro termos para as cores - preto, branco, vermelho e amarelo - são também as cores primárias que abarcam toda a opus alquímica: nigredo, albedo, xanthosis ou citrinitas e iosis ou rubedo. Esses termos descrevem: (1) os estágios do trabalho, (2) as condições do material no qual se trabalha, e (3) os estados da psique do artífice, ou alquimista. Cada termo combina três distintas categorias que nossa consciência moderna mantém separadas: o modo de trabalho, a coisa na qual se trabalha e a condição do trabalhador. Para nossa epistemologia, não há nenhuma relação inerente ou necessária entre método, problema e subjetividade. Por exemplo, para que alguma substância alquímica entre na fase de nigredo e preteje, as operações devem ser escuras, e são chamadas, na linguagem alquímica, mortificatio, putrefactio, calcinatio, e iteratio. Ou seja, o modus operandi é vagaroso, repetitivo, difícil, dissecador, severo, adstringente, esforçado, coagulante e/ou pulverizante. Enquanto isso, o trabalhador entra no estado de nigredo: deprimido, confuso, constrangido, angustiado e sujeito a ideias pessimistas, ou até mesmo paranoides, de doença, fracasso e morte. O modo alquímico de fazer ciência mantinha a lei das semelhanças entre todos os participantes em qualquer atividade: o trabalho, o modo de se trabalhar e o trabalhador. Tudo deve estar conforme; ao passo que podemos ter uma ciência na qual a subjetividade do 65 experimentador pode estar radicalmente separada do desenho experimental e dos materiais do experimento. O método alquímico, ao contrário, trata cada problema de acordo tanto com a natureza do problema quanto com a natureza do alquimista. Esta é a razão pela qual nenhum sistema de fato abrangente possa ser retirado dos textos alquímicos; as medidas sejam irrelevantes; as invenções de um alquimista sejam tão estridentemente opostas por outros alquimistas; e é também a razão pela qual até mesmo os materiais trabalhados sejam tão radicalmente diferenciados - daí os vários tipos de sal, os vários nomes para o mercúrio, tantos estilos e formas dos instrumentos. A radical idiossincrasia é ainda assim a profunda concordância entre método, problema e subjetividade também é responsável pelo fato de a psicologia profunda encontrar na alquimia um pano de fundo tão útil para o trabalho em seus laboratórios: os consultórios onde as condições de nigredo são tão familiares. Podemos ler essa conformidade entre trabalhador, aquilo que é trabalhado e o modo de trabalho, de trás para frente, oferecendo insights psicológicos que não podem ser alcançados por uma ciência cartesiano-newtoniana, que separa trabalhador de trabalho. Com a alquimia aprendemos que se você, como um trabalhador de qualquer campo em qualquer projeto - da pesquisa ao casamento, dos negócios à pintura - torna-se exausto, seco, paralisado, deprimido e confuso, então há indicações de uma fase de nigredo e o material que está encontrando é, ele mesmo, obscuro e obstinado. Essa “depressão” não significa um fracasso nem da sua personalidade, nem de seu método. De fato, as próprias dificuldades em seu método e a escuridão de suas fantasias indicam que você está no lugar certo, fazendo a coisa certa, exatamente por causa da escuridão. As leituras otimistas e mais cristianizadas dos textos alquímicos dão à nigredo um lugar principalmente inicial no trabalho, enfatizando então o progresso para além dela, rumo a condições melhores, quando então o pretume será ultrapassado e o novo dia da albedo ressuscitará do ofuscamento e do desespero. Leituras cristianizadas parecem incapazes de evitar o salvacionismo.7 Mas esta, entretanto, é apenas uma possibilidade de leitura. Os textos deixam bem claro que a nigredo não é idêntica à materia prima, esta um cesto de condições muito maior. A nigredo não é o começo, mas um estágio alcançado. O preto é, de fato, uma realização! É uma condição de algo que foi trabalhado, como o carvão é o resultado do fogo atuando numa condição ingênua e natural da madeira, como as fezes pretas são o resultado de sangue digerido, como o fungo escurecido é o resultado da decadência. Embora a depressão, as fixações e obsessões, e um enegrecimento geral do humor e da visão, possam, a princípio, trazer uma pessoa para a terapia, essas condições indicam que a alma já está envolvida em sua opus. A iniciação psicológica começou bem antes da primeira hora de terapia. Jung fala da nigredo: “É certo que a opus magnum começa neste ponto”.8 Intenções pretas O que quer o preto alcançar? Por que é uma realização? Deixem-me brevemente listar o que ocorre no pretejamento, sem me utilizar da linguagem mística de São João da Cruz, Simone Weil e 7 EDINGER, E.F. . Chicago/LaSalle, III.: Open Court, 1985. 8 66 outros defensores da escuridão religiosa. Primeiro, como uma não cor, o preto extingue o mundo colorido perceptivo. Segundo, o pretejamento nega a “luz”, quer seja ela a luz do conhecimento, a ligação com uma consciência solar como um modo de previsão de longo alcance, ou o sentimento de que os fenômenos podem ser entendidos. O preto dissolve o significado, e a esperança pelo significado. Estamos assim cercados de trevas.9 Terceiro, os dois processos mais relevantes para se produzir o pretejamento - putrefação e mortificação - quebram a coesão interna de qualquer estado fixo. A putrefação, pela decomposição ou desmembramento; a mortificação, pela moagem, como sementes num pilão são refinadas em partículas cada vez mais finas e menores. O próprio Newton disse: “Para a produção do preto, os corpúsculos devem ser menores do que quaisquer outros que exibam cores.”10 Newton disse que a espessura e a solidez dos materiais com que trabalhou atenuaram-se pela ação do fogo e pela putrefação, “o dissolvente mais sutil”. A matéria preta era a menos formada e a mais suscetível à dissolução ou, em nossa linguagem, o caos. Esse “dissolvente sutil”, quando misturado a outros tons, traz à tona seu obscurecimento e aprofundamento ou, na linguagem da psicologia alquímica, seu sofrimento. O preto conduz todas as variedades de brilho às sombras. Seria então a corrupção a intenção do preto? Uma resposta depende daquilo que entendemos por “sombra”. Certamente essa intenção não é meramente macular a inocência, manchar aquilo que é natural, este preliminar necessário a qualquer pensamento alquímico. Portanto, não estamos lidando meramente com a corrupção da inocência natural. A “sombra” que o preto aflige pertence ao campo mais profundo e invisível das sombras, o Reino de Hades, que é o “dissolvente sutil” do mundo luminoso por excelência. Podemos começar a perceber, ainda que embaçadamente, por que a cor preta está condenada a ser uma “não cor”. Ela carrega os significados de acaso e de informe. Como um buraco negro, ela suga e faz desaparecer as estruturas fundamentais de segurança da consciência ocidental. Ao tornar a cor ausente, o preto impede os fenômenos de apresentarem suas virtudes. A desconstrução que o preto atua sobre qualquer positividade - experimentada como dúvida, pensamento negativo, suspeita, destruição, falta de valor - explica por que a nigredo é necessária para qualquer mudança de paradigma. O preto quebra o paradigma; ele dissolve o que quer que reconheçamos confiantemente como real e caro. Sua força negativa retira da consciência suas noções dependentes e confortantes de bondade. Se o conhecimento é bom, então o preto o confunde com nuvens de ignorância; se a vida é boa, então o preto representa a morte; se as virtudes morais são boas, então o preto significa o mal. Se a natureza é concebida como um esplendor multicolorido, então o preto significa toda a opus contra naturam, traduzindo o grande mundo fenomenal nas abstrações escritas das letras, números e linhas, substituindo o dado palpável e visual com as informações de marcas e traços. Ao desconstruir a presença na ausência, a nigredo torna possível a transformação psicológica. A transformação vem do efeito dissolvente do preto sobre todas as positividades. “A negação 9 10 Cf. mais adiante sobre sol niger, que radicalmente altera o sentido de ‘cercado de trevas’ [benightedness] para um tipo de iluminação. Dobbs, B.J.T. , or ‘ ’. Cambridge: Cambridge University Press, 1975, p. 224. 67 traz fluidez”11; a energia psíquica ou libido (cuja raiz etimológica significa fluxo, como nos líquidos) desprende-se de suas coagulações, busca novas metas. Portanto, cada momento de enegrecimento é um arauto da mudança, de descoberta invisível e de dissolução das ligações com tudo aquilo que foi tomado como verdade e realidade, fato sólido ou virtude dogmática. Ele escurece e sofistica o olhar de forma que ele pode enxergar através. Assim, o preto muitas vezes se torna a cor das vestimentas12 no mundo das trevas, da gente urbana sofisticada, e dos idosos que já viram muito. Em função do preto quebrar os paradigmas confortáveis, é a cor preferida daqueles com tendências espiritualistas e dos reformadores políticos e “marginais” - adolescentes, rebeldes, piratas, damas da noite, cultistas, ciclistas, satanistas, puritanos, anarquistas, pistoleiros, padres - todos os “não conformistas” que então caem na armadilha de sua própria identificação com o preto. Embora as máximas alquímicas digam que a obra deve se parecer com uma “cabeça de corvo” em sua negrura, e que esse corvo é o “princípio da arte”, esses dizeres identificam a profundeza da radicalidade do preto. Eles não intencionam uma radical identidade ou identificação com o preto. O preto não é, em si, um paradigma, mas aquilo que quebra os paradigmas. Esta é a razão de ser colocado como uma fase num processo de cores, e a razão de aparecer a todo instante na vida e na obra, a fim de desconstruir (solve et coagula) aquilo que se tornou uma identidade. Aqueles que usam a camisa preta ou a capa preta, o capuz preto e roupas intimas pretas como sinais de uma identidade radical tornam-se assim nem anarquistas ou marginais, nem reformadores, mas fundamentalistas. Daí a severidade rígida e o literalismo monoteísta dos revolucionários. A psicologia alquímica nos ensina a entender como realizações os períodos infrutiferamente amargos e secos, as melancolias que parecem não ter fim, as feridas que parecem não sarar, as opressivas e sádicas mortificações da culpa e a putrefação do amor e das amizades. Estes são começos por serem fins, dissoluções, desconstruções. Mas não são o começo, como uma ocorrência única no tempo. Tal seria uma leitura literal do processo alquímico que não e um modelo unidirecional, progredindo com o tempo. É uma iteratio; o preto se repete para que a desconstrução continue, como nos mostra, por exemplo, a no comentário de Jung sobre o Rosarium alquímico.13 A alma retorna, o rei e a rainha estão unidos - ainda assim, para fora do chão emergem os pássaros pretos. Seriam esses pássaros a “sedução do preto”, levando a psique de volta ao conforto protetor das queixas tão familiares, o ninho do status quo ante? “Aquilo com o que deves ser mais cuidadoso [...] é impedir que as crias do corvo voltem ao ninho depois que o deixaram”.14 Não quero nem condená-los a este estado negro permanente, nem aliviá-los dele prometendo a volta do mundo colorido que a alquimia nos apresenta em imagens deslumbrantes. Meu objetivo não é nenhum destes. 11 12 13 14 Kawai, T. permissão do autor]. Harvey, J. , Chicago: University of Chicago Press, 1996. . Filaleto, E. ‘ ’. HM 2, p. 192. [ensaio de circulação privada, citado com a 68 Mais preto que o preto Mobiliza-me uma outra intenção: advertir. E também as advertências pertencem à nigredo, pois falam com a voz do corvo, prevendo acontecimentos horrendos que podem resultar da sedução do preto. Lembrem-se de como os colonos do século XIX temiam virar pretos; de como Joseph Conrad percebeu uma loucura e um horror no coração da escuridão; de como a peste negra, o guerreiro preto, a camisa preta e o inquisidor de preto assombram a história europeia; e de muitas das imagens mais horripilantes da infância, desde a chaminé da lareira, o mágico, a viúva negra, o Rotweiller e o Doberman, até esqueletos em sua danse macabre e o próprio ceifeiro implacável rastejam-se nos salões da fantasia - todos de preto. Socializar esses medos nas relações raciais não alcança sua imaginação arquetípica. Sejamos claros: negro não é a nigredo, embora uma figura num sonho chamada de “preto”, assim como qualquer fenômeno onírico assim chamado, possa introduzir e representar o enegrecimento. Mas particularmente numa sociedade racista, precisamos manter bem distintos, por um lado, os epítetos que arbitrariamente colorem os seres humanos e, por outro, as forças cósmicas que moldam a alma apesar dos seres humanos. O que a sociedade civilizada teme é a magia negra: o impulso mágico da atração pelo preto, o desejo da alma por descer à escuridão, como Perséfone ao Hades.15 Tememos o que mais desejamos e desejamos o que mais tememos. A essência desse medo está na própria raiz do preto: ele é implacável, indelével, permanente, um componente crucial da aqua permanens - aquele sentido de realidade psíquica sublinhando e subjacente a todas as outras realidades, como uma conscientização da morte. Aí está o paradoxo trágico do preto. Ele gruda como alcatrão16 à sua própria fechada negatividade. Assim como ele amaldiçoa as outras cores ao escurecer seu brilho, também amaldiçoa-se a si mesmo ao tornar-se “mais preto que o preto”, além do toque de Mercúrio duplex. Em outras palavras, a cor necessária à mudança priva-se a si mesma da mudança, tendendo a se tornar cada vez mais literal, redutiva e severa. De todas as cores alquímicas, o preto é a mais densamente inflexível e, portanto, o mais opressivo e perigosamente literal estado da alma. Assim, os médicos temem que condições nigredo de depressão possam levar ao suicídio literal, que a raiva vingativa gere violência, e que o ódio leve à crueldade doméstica. Daí, também, o motivo para que os movimentos redutivos e o trabalho com a “sombra” na terapia se pareçam tão concretos e confinados.17 Claro, como bem o sabem os pintores, há muitas saturações do preto. Parte da obra dos pintores é a diferenciação dos pretos: pretos que recedem e absorvem, aqueles que 15 Cf. J. Hillman ( . Nova York: HarperCollins, 1979), para um tratamento psicológico mais completo do reino de Hades. 16 Filaleto. ‘ ’. Op. cit., 192: ‘O todo é seco como poeira, com exceção de uma substância que se lança, que de vez em quando borbulha; tudo apresenta uma imagem de morte eterna. Contudo, é uma visão que alegra o coração [...]’. 17 Bachelard escreve: ‘Qualquer cor sobre a qual medita um poeta das substâncias encontra no preto uma solidez substancial, uma substancial negação.. J. O preto alimenta as profundezas de toda cor; ele é sua íntima residência’ Sachelard, G. . Paris: Corti, 1948, p. 27), Em português: A Terra e os devaneios do repouso - Ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991 - Trad. de Paulo Neves]. 69 umedecem e suavizam, aqueles que delineiam e aguçam, e outros ainda que brilham quase que com uma refulgência - um sol niger.18 Contudo, a máxima alquímica “mais preto que o preto” afirma uma última radicalidade para além de todas as variedades e tons diferentes de preto. Aquilo que é mais preto que o preto é a essência arquetípica da própria escuridão,19 muitas vezes nomeada pela alquimia de noite, sata, pecado, corvo, caos, tenebrositas, cão preto, morte... Já que o Mercúrio está escondido e que a albedo é uma graça imprevisível, então o que pode “curar” a nigredo? O que pode liberar a alma de sua identificação sombria? Esta é a questão colocada em cada análise, e também colocada durante os momentos de nigredo da vida. A resposta do alquimista: decapitação. De acordo com Jung, o espírito negro deve ser degolado, um ato que separa a compreensão de sua identificação com o sofrimento. Porque “na nigredo o cérebro se obscurece”20, a decapitação “emancipa a cogitatio”. O negror permanece, mas a distinção entre cabeça e corpo cria um “dois”, enquanto o sofrimento nos aprisiona na singularidade, no único. A mente pode começar a reconhecer aquilo que o corpo só sente. A decapitação permite que a mente liberte-se da identificação com o corpo. É claro que a decapitação faz sentido como uma operação só como um tratamento para a nigredo. Ela é, naturalmente, contraindicada - até mesmo redundantemente sem sentido para aquelas condições da alma em que a cabeça está colada de modo muito fraco e raramente reconhece qualquer coisa que o corpo sinta. E, claro, o “corpo” alquímico refere-se não meramente a carne física e seus sintomas, mas também a todas as perspectivas imaginais que estão presas em concretismos habituais. A decapitação é, portanto, uma separatio - para usar um termo alquímico para o movimento terapêutico básico de fazer distinções, ou analisar. Apesar da rigidez e da qualidade fixa dos humores da nigredo e de seus pensamentos repetitivos, a análise separa o material - sonhos, humores, projeções, sintomas - da identificação literal da mente com esse material. O denso e opressivo material torna-se imagens que podem ser entretidas pela mente. Imagens mentais nos emancipam da escravidão à nigredo; embora o material permaneça escuro, a decapitação permite à mente cogitar a escuridão. A alquimia nos alerta: “cuidado com o físico no material”. Não é o “material” do sofrimento que envenena a obra com o desespero, mas o “físico”, ou seja, a mente naturalista substantiva que nos afasta de uma apreciação imaginativa do material. A psicologia alquímica oferece exatamente essa apreciação imaginativa. Os pacientes, e qualquer um de nós em tantos momentos, que são “incapazes de imaginar” estão muitas vezes enredados na nigredo por traumas passados, e aprisionados pelo “físico no material”. Esses mesmos pacientes, contudo, podem estar enredados também na nigredo 18 ‘Há um preto que é velho e há um preto que é fresco. Preto lustroso e preto monótono, preto na luz do sol e preto na sombra. Para o preto antigo deve-se usar uma mistura de azul, para o preto monótono uma mistura de branco, para o preto lustroso deve-se acrescentar goma. O preto como luz solar deve ter reflexos cinza.’ O artista japonês Hokusai, citado pelo pintor americano Ad Reinhardt. Cf. Hussein, M. & Wilkinson, R. . Londres: Ashgate Publishing, 2006, p. 239. 19 Marlan, S. . College Station: Texas A&M University Press, 2005. 20 70 de seus terapeutas que não foram decapitados e cujas cogitações não foram emancipadas da compreensão redutiva, naturalista21 e historicista daquilo que está acontecendo. O literalismo é certamente o mais obstinado de todos os nossos concretismos habituais. Por “literalismo” quero dizer unicidade de significado; identificação de qualquer incorporação concreta com sua “palavra”, aquela identidade entre palavra e coisa de forma que as palavras se tornam coisas. A decapitação também liberta a palavra “preto” apenas de significados nigredo, assim libertando aqueles fenômenos chamados “pretos” (inclusive pessoas) das fixações indeléveis das projeções de nigredo. Lembrem-se aqui de que a “palavra” em nossa cultura é escrita em preto, e esta seleção de cor para a tinta pode ser mais que meramente conveniente e eficiente. O próprio pretume da letra tingida suporta sua fixação indelével e incita o poder amaldiçoante do literalismo. Então, talvez as tentativas contemporâneas de múltiplos significados (polissemia), de separar o significante do significado, de brincar com a ambiguidade do “traço”, tropo, deslocamento, e a insistência na diferença e, também, a ausência de todas as certezas nas proposições positivas - esses movimentos desconstrutivos podem ser modos franceses da decapitação do cogito - libertar a mente da unicidade que eu condeno como literalismo. Todo o esforço francês assemelha-se a tentativas da alquimia (o obscurantismo arcano da fala desconstrutivista soa de fato como a linguagem dos alquimistas) no sentido de convidar Mercurio duplex de volta ao discurso do qual a clareza lógica francesa o expulsou. Embora eu possa perceber uma intenção alquímica no pensamento francês contemporâneo, não pratico seu método: ele se interrompe e permanece um exercício de cogito. A lamina da guilhotina nunca corta totalmente. O cérebro permanece enegrecido, e assim as cogitações de sua mente são lidas pelos críticos como niilismo, europessimismo, cinismo, teologia negativa e como a última moda no desespero existencial - e, portanto, o desconstrucionismo torna-se mais um concretismo habitual do pensamento ocidental. Ele se interrompe antes que a nigredo se torne azul. Depois do preto vem o azul - não cínico, mas triste; não duro e esperto, mas lento. Os azuis trazem de volta o corpo com um sentimento revisto, cabeça e corpo reunidos. Os alquimistas falaram desta fase como a unio mentalis, que elaborarei no capítulo 5 adiante. O azul dá voz à nigredo, e voz une cabeça e corpo. A escuridão imaginada como uma luz invisível, como uma sombra azulada, por trás e dentro de todas as coisas. O principal concretismo contra o qual este presente capítulo vem lutando é a convenção newtoniana, sustentada pelo dicionário,22 que exclui o preto do campo das cores porque ele não é concretamente visível no espectro. Contudo, talvez a culpa não seja realmente de Newton, mas resulte do literalismo amaldiçoado do preto, seu desejo de estar fora deste mundo, num submundo de invisibilidades, ou no reino escuro da morte. Talvez o preto não possa eliminar a maldição de sua própria cabeça, de forma que isso se torna nossa tarefa, de cada um de nós - decapitar a nigredo, emancipar nossas mentes de uma maneira pósnewtoniana. 21 22 , cf. Hillman, J. . Nova York: Harper & Row, 1975, p. 84-86. Oxford English Dictionary, v. Black: ‘Oposto ao branco, sem cor em função da ausência ou completa absorção da luz [...] cor não distinguível.’ 71 O sol niger dissipa a maldição da nigredo porque ele é “mais preto que o preto”. Como mostra Stanton Marlan,23 podemos estar enegrecidos e ainda assim iluminados. Sol niger – um dos nomes do objetivo último de todo o empenho alquímico – preteja com uma escuridão “não assimilável”. Parece ser uma “imagem intolerável”.24 E mesmo assim é uma imagem de sol, um sol iluminador que pode obscurecer todo o positivismo do mundo diurno, mas não todo insight. Como a negação da negação, o sol negro erradica ontologicamente o pavor primordial do não ser, aquele abismo que não preenchemos - ou, o abismo torna-se a base ilimitada das possibilidades. A negação concebida como mal teológico, um estágio num processo dialético, ou um poder maniqueísta, dá uma função positiva à escuridão, aumentando a sedução do preto. Sucumbimos ao reverso do otimismo solar e descemos a uma negação positivista revelada como “o horror, o horror”, descemos ao pessimismo, ao cinismo, ao desespero, ao suicídio como uma resposta racionalmente válida para uma visão nigredo. Mas o sol niger brilha invisivelmente em cada uma dessas coagulações negativas. Escuridão e translucidez ao mesmo tempo, uma verdadeira decapitação da mente comum. Daí Filaleto poder falar da “morte eterna que alegra o coração”. Esta emancipação da mente significa mais que pensar pensamentos obscuros com um cérebro enegrecido ou sofrer as obstinadas depressões do corpo. Significa a incorporação da invisibilidade dentro de todas as percepções, nunca perdendo o olho negro ou ignorando o desejo da alma por sombreamentos e pesares. Hades nunca longe de seu irmão Zeus. Estar cercado de trevas e só o começo; ser preto, enxergar preto - é assim que a nigredo inescapavelmente nos afeta. Mas, enxergar por meio do preto, enxergar o habitual como mistério, o aparente como ambíguo, transforma fixações concretas em imagens metafóricas. Esta e a emancipação da nigredo do literalismo. Semelhante cura semelhante; curamos a nigredo tomando-nos, como dizem os textos, mais pretos que o preto - arquetipicamente pretos e, portanto, não mais coloridos pelos demasiado humanos preconceitos de cor. Tornar-se mais preto que o preto também seria estarmos dirigidos para o caos e a tragédia daquilo que e chamado erroneamente de relações “raciais”, que são mais verdadeiramente relações de cores, porque são reflexos na esfera humana de processos alquímicos cujas intenções apenas marginalmente dizem respeito às pessoas. Pois o desejo da alquimia não era meramente com relação a alma humana; ela buscava a alma do mundo. A alquimia é uma obra cosmológica; seguir uma psicologia alquímica imediatamente nos leva a trabalhar com o mundo. A alquimia reanima o denso e o rejeitado, às vezes chamado de “matéria”, e exige uma descida recorrente naquela escuridão, aquela invisibilidade algumas vezes chamada de Hades. Ao continuar a encarar o preto como uma não cor, segregando- a da brilhante beleza do prisma newtoniano, nossa falha cosmologia permanece incapaz de encontrar um lugar para a nigredo, exceto como fenômenos da “sombra”, tais como o crime, a crueldade, o racismo, o aprisionamento, a toxicidade e a desordem mental da depressão. Nossa psicologia infectada pela ciência, além disso, ao localizar fenômenos da nigredo apenas na subjetividade como humores e fracassos humanos, continua m seu método ilusório que desconecta o trabalho do trabalhador, e ainda do mundo ecológico sobre o qual se trabalha. 23 24 Marlan, S. . Op. cit., cap. 4. Micklem, N. Jungian Though. [s.L.]: [s.e.], 1979, p. 1-19. . Spring: An Annual of Archetypal Psychology and 72 Ainda pior é o perigo de nossa epistemologia ocidental perder sua habilidade para corrigir sua própria brilhante cegueira ao fazer mudanças radicais de paradigmas. A conversão do preto de uma não cor para uma cor, de negativo para a negação da negação, e portanto não apenas uma questão de reforma social, com relação à inclusão de povos mais escuros e dos sombreamentos mais escuros da existência. A inclusão do preto entre as cores torna-se um modo para a consciência ocidental poder decapitar o fundamentalismo ingênuo de suas ilusões esperançosamente coloridas. 73 O azul alquímico 5 e a unio mentalis the soul vanishes the soul. vanishes. into the shape of things Robert Kelly I Os azuis As transições do preto para o branco as vezes atravessam uma série de outras cores,1 especialmente os azuis mais escuros, os azuis das contusões, da sobriedade, do autoexame puritano; os azuis do jazz mais lento, o blues. A cor da prata não era apenas branca, mas azul. Podemos considerar o azul uma cor de transição, quer resultante do sofrimento da prata (sal e vinagre), quer resultando em prata.2 De qualquer forma, o azul tem uma afinidade tanto com o preto quanto com o branco, tanto nigredo quanto albedo. Além disso, contudo, o azul é uma condição da alma que não está em transição, não está em movimento, mas toda em si mesma, múltipla, complexa, multitonalizada.3 A alma desaparece como uma substância pesada, plúmbea, carregando meu interior pessoal e aparece como uma ressonância sombreada, um subtom, uma dimensão a mais nas coisas como elas são. Wallace Stevens diz em seu extraordinário poema sobre esse tema, 1 2 3 Cf. Ordinal de Norton ( ). ‘Os médicos descobriram dezenove cores intermediárias entre o branco e o preto na urina [...] Magnesia [um termo para o branco] produz um esplendor suave e puro no estágio sutil de nossa Arte; e aqui observamos todas as cores que foram vistas pelo olho mortal - cem cores, e certamente muitas mais do que as que foram observadas na urina; e em todas essas cores nossa Pedra deve ser encontrada em todos os seus estágios sucessivos. Na ordenação de seus experimentos práticos, e ao conceber as diferentes partes do trabalho em sua própria mente, você deve ter tantas fases, ou estágios, quanto há cores.’ Ruland lista 27 tipos de prata azulada. Norton escreve ( ): ‘A prata pode ser facilmente transformada na cor da lazulita porque [...] a prata, produzida pelo ar, tem uma tendência a ser assimilada pela cor do céu’. É tão forte a associação do azul com a prata e com o branqueamento que mesmo quando a química moderna duvida do testemunho alquímico (que retira um pigmento azul da prata tratada com sal, vinagre, etc.), ela assume que os alquimistas tinham alguma justificativa física desconhecida para nós em suas alegações. (Dorothy Wyckoff aponta que a prata ‘assim tratada não daria um pigmento azul. Contudo, essa receita, com variações, é encontrada em muitas coleções antigas, portanto deve ter algum valor’ (Albertus Magnus. . Oxford: At the Clarendon Press, 1967, p. 192-193n [Wyckoff, D. (org.)]. Mas não estão essas alegações baseadas na fantasia, uma prata sófica de uma imaginação branca que sabe que o azul pertence à prata, e portanto o enxerga? Para a rica complexidade do azul, cf. Pastoureau, M. Blue: the History of a Color. Princeton: Princeton University Press, 2001.. Gass, W. . Boston: David R. Godine, 1976. Theroux, A. The Primary Colors. Nova York: Henry Holt, 1994. Esses autores não abordam a alquimia. 74 “ ”: “Things as they are! Are changed upon the blue guitar”4. “Alma” move-se de substantivo para adjetivo e advérbio, tornando-se o qualificador universal, menos algo aqui e ali, mas um humor ou tom em qualquer lugar. A mente começa a se tornar psicológica, descobrindo a alma como uma segunda camada (senão a primeira), que dá profundidade metafórica e valor psíquico para as coisas como elas são. Portanto, o azul torna-se necessário em nossas explorações do branco, da prata e da albedo. Para lhes fazer justiça, precisamos primeiro ter ganho olhos azuis. O trânsito azulado entre o preto e o branco é como aquela tristeza que emerge do desespero à medida que ele caminha para a reflexão. Aqui, a reflexão vem de, ou nos leva para uma distância azul, menos um ato concentrado que fazemos e mais algo que se insinua sobre nós como uma inibição fria, que nos isola. Essa retirada vertical é também como um esvaziamento, a criação de uma capacidade negativa, ou um escutar profundo – já uma intimação da prata. Goethe associa essas mesmas experiências com o azul:5 {O azul} ainda traz consigo um princípio de escuridão (p. 778). Como matiz ele é poderoso, mas está no lado negativo, e em sua mais elevada pureza e, por assim dizer, uma negação estimulante [...] um tipo de contradição entre excitação e repouso (p. 779). Como o céu lá no alto e as montanhas parecem azuis, uma superfície azul parece distanciar-se de nós (p. 780). (Ele] nos atrai (p. 781). O azul nos dá uma impressão de frieza e assim, novamente, lembra-nos das sombras. Já falamos antes de sua afinidade com o preto (p. 782). Salas pintadas de puro azul parecem de alguma maneira maiores, mas ao mesmo tempo vazias e frias (p. 783). A aparência de objetos vistos por uma lente azul e triste é melancólica (p. 784). A tristeza não e tudo. Uma dissolução turbulenta da nigredo pode também se mostrar como blue language, Vamour bleu, o azul do absinto e a “ruína azul” do gin, Barbazul, assassinato azul, as contusões preto e azuis de , de David Linch, e os corpos cianóticos da Dietrich em , no primeiro Picasso, em Schiele, e os pobres famintos de Van Gogh.6 E – nos filmes azuis [blue movies], como já foi chamada a pornografia. Os filmes pornográficos são azuis porque estão saturados de depressão e cinismo. Não meramente o grafismo concreto de uma lição de anatomia, as repetições saturninas laboriosas, as molestações, os grunhidos e a sujeira, mas também o local onde são assistidos: espeluncas, quartinhos escuros nas paradas de caminhoneiros; a mirada fixa em meio ao ar azul esfumaçado. 4 5 6 Stevens, W. ‘ ’. The Collected Poems of Wallace Stevens. Nova York: Vintage Books, 1990, p. 165. . . Cambridge: MIT Press, 1970. Cf. tb. Kandinsky, W. . Nova York: Dover, 1977, p. 38: ‘O azul (...J retrai-se do espectador [...] voltando-se a seu próprio centro (...). Quando afunda quase até o preto, ecoa uma tristeza que é mais que humana’. Cf. Gass particularmente para os azuis bizarros e sexuais. Sobre os aspectos cianóticos do azul, cf. as observações de Jung sobre a fase azul de Picasso ( ), que Jung compara com uma Nekya ao reino de : ‘Adentramos no mundo inferior. A objetividade e marcada pela morte, expressa na obra prima horripilante das prostitutas adolescentes, sifilíticas e tuberculosas’. 75 Este é o reino do cão azul alquímico7 (kyanos, azul; kynos, cão); o azul assume uma qualidade canina: envergonhado e safado ao mesmo tempo. Por que a depressão procura o pornô? Por causa da excitação? Para que Eros, Priapo e Venus possam aparecer? Ao invés, penso eu, para manter a depressão, para redirecionar a verticalidade do desejo para baixo e para trás (tipo cachorrinho), grampeando as asas de eros. Pornografia – uma opus contra naturam, um contrainstinto da psique, pervertendo o convencionalmente natural, escravizante, torturado; uma erótica do desespero. Como o “cão negro”, como Winston Churchill chamou suas depressões desesperadas, o cão azul também aponta seu nariz para baixo, em contato com a tristeza e os ossos enterrados no mundo das trevas e suas deusas da decadência e da destruição que têm sempre um cão como companhia. Ainda assim, os textos dizem que o cão tem “um tom celestial”, e o “velho itifálico” representando esse cão é “alado” ( ). O cão do azul pode ser material em suas ligações, mas não físico em seus propósitos. Seu nariz aponta para além de sua predileção pela sujeira, aponta para a terra lunar onde o poder fascinante das imagens possui a mente. A mente engolida por sua obsessão, sua vergonha e seu desgosto e, deparando-se com a impotência de sua vontade de suprimir a perseguição de suas fantasias, é forçada a admitir a realidade psíquica – ainda que a admissão venha por alamedas escuras. Assim, o cão alquímico, como uma energia instintiva da fase azul, é chamado de “procriador”, aquele que traz um “logos divino” ( ) ou uma inteligência arquetípica (como [O cão de caça do paraíso] do famoso poema espiritual de Francis Thompson que obstinadamente busca um propósito), neste caso escondido na sujeira. De acordo com Kalid ( ), esse cão “previne os corpos de se queimarem e do calor do fogo”. Quanto mais baixo vamos nos submundos lentos, azuis e úmidos de Eros, menos estamos sujeitos à chama erótica do puer. Portanto, o cão é também portador de doenças ( ). A mente patologizada está mais capacitada a suportar as abluções lunares da albedo que limpariam todas as manchas. O cão é guardião e mantenedor da fé na condição humana, sua base na baixeza que não pode ser transcendida. Assim, quando começam esses tipos de fantasias pornográficas, perversas, horripilantes ou viciosas, podemos situá-las alquimicamente dentro da terra de ninguém azul entre a nigredo e a albedo. Procuraremos um pouco de prata no vício. Um espelho de autorreconhecimento se forma através do horror e da obscenidade. A putrefactio da alma está gerando uma nova consciência de anima, uma nova base psíquica que precisa incluir experiências subterrâneas da própria anima: suas afinidades mortais e perversas expressas alquimicamente pela “cadela lunar” ( ), pelo “cão raivoso” ( )8 e pela loucura que vem com a deusa lunar, 9 Diana. O azul-escuro do manto da Madona tem muitos sombreados, e estes lhe dão profundidade de compreensão, da mesma forma que a mente forjada na lua viveu com Lilith 7 8 9 Para um exame extensivo do cão alquímico erótico num caso particular, cf. GRINNELL, R. . Dallas: Spring Publications, 1989, p. 101ss. Sobre a loucura lunar, cf. adiante, cap. 6. Cf. tb. Hillman, J. ‘ ’. Animal Presences, 9, p. 150-160. O cão azul oferece outra leitura do conto de Diana . O obstinado caçador, atraído por fantasias do corpo feminino nu, é destruído pelo concretismo de seu desejo, em vez de pelo seu obscuro objeto - a lunar. O concretismo pertence ao cão que, diz-se brincando, tem apenas três preocupações: comer, defecar e copular, equivalentes às fases libidinais oral, anal e fálica de Freud. Para discussões ricas sobre o conto de Acteão, cf. Moore, T. Artemis . In: Hillman, J. (org.). . Dallas: Spring Publications, 1979. Giegerich, W. . Frankfurt am Main: Peter Lang, 1998, cap. 6. 76 e, portanto, seu pensamento nunca será ingênuo, nunca deixará de esbarrar em sombras profundas.10 O azul protege o branco da inocência. A direção vertical, como reafirma Jung ( ), está tradicionalmente associada com o azul.11 As palavras gregas antigas para o azul significavam mar.12 Em , o azul referia-se tanto ao mar quanto ao céu,13 da mesma forma que a palavra grega (bathun) e a latina (altus) tinham conotações de altura e profundidade ao mesmo tempo. A dimensão vertical como hierarquia ainda está presente em nossa linguagem como o sangue azul da nobreza, fitas azuis14 e as tantas imagens mitológicas dos “deuses azuis”: Kneph no Egito e os embrulhos azuis de Odin,15 Jupiter e Juno,16 Krishna e Vishnu, Cristo em sua pregação terrena como aquele Cristo-azul visto por .17 10 11 12 13 14 15 16 17 Cf. Jung, C.G. : ‘E como pode um homem se realizar plenamente se a rainha não interceder por sua alma negra? Ela compreende a escuridão |... |’. Essa passagem segue-se à discussão de Jung sobre o ‘azul’. Cf. Cirlot, J.E. . Londres: Routledge, 1962, p. 52. . Vol. 1. Nova York: J. Aronson, 1973. p. 307. Irwin, E. . Toronto: Hakkert, 1974, p. 79-110, v. ‘Kyaneos’. Dronke, P. ‘ ’. Eranos Yearbook, 41, 1972, p. 67. Sobre o céu azul (claro), cf. o capítulo de Gaston Bachelard ‘ ’, no seu . Dallas: The Dallas Institute Publications, 2002 [Em português: O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990 - Trad, de Antônio de Pádua Danesi]. O mundo inferior como um lugar aéreo e azul aparece na cosmologia dos índios Navaho. É azul o mundo seguinte ao mundo mais profundo (vermelho), habitado por pássaros azuis. Cf. Reichard, G.A. . 2 vols. Nova York: Pantheon Books, 1950. , em inglês, sinal de alta distinção, usada especialmente pelos Cavaleiros da Ordem da Jarreteira [N.T.]. Bayley, H. . Londres: Williams & Norgate, 1912, p. 78-79. Bayley deriva ‘azul’ de palavras que significam ‘verdade’ - um exemplo curioso de fantasia arquetípica apresentada como etimologia. Cirlot. . Op. cit., p. 51. Dronke. ‘ ’, p. 98 (Scivias II,2). Um azul é desviante, senão herético. A imagem, no entanto, de fato dá suporte à discussão de Howard Teich (cf. adiante, nota 33) de que o azul representa uma masculinidade lunar, nem vermelho solar (masculino), nem branco lunar (feminino), mas uma conjunção anterior ao conhecido par vermelho e branco. Teich argumenta que o azul foi reprimido no simbolismo cristão. O azul não era uma cor canônica, como eram o violeta, o branco, o verde, e o preto. Será que o azul carrega um indelével sinal etimológico? Kyanos é cognato do sânscrito cunya, ‘vazio, vago, vão’, cuna-m, ‘ausência, carência’; do latim cavus, ‘oco’. Caerulus (em latim, céu azul-escuro) é cognato (via o sânscrito Cyama) de escuro, desaparecido, deixar, ser deixado. Livid (latim para azul) pertence a um grupo de palavras que significam escapar, contrair, desaparecer, fluir. O próprio germânico Blue pertence a uma ‘grande classe de nomes de cores [...] que significam [...] marcado, desgastado, maculado’, manchado e colorido no sentido de ‘descolorido’ (Wood, F.A. . Halle: Niemeyer, 1902, passim). Compare com essas etimologias do azul este sumário da avaliação de Goethe: ‘[o azul] está na polaridade negativa das cores onde a privação, a sombra, a escuridão, a fraqueza, o frio, a distância, uma atracão e uma afinidade com os álcalis são encontrados’ (Badt, K. . Berkeley: University of California Press, 1965, p. 59). 77 A transição do preto para o branco via o azul18 implica que o azul sempre traz o preto consigo (Entre os povos africanos, por exemplo, o preto inclui o azul;19 enquanto na tradição judaico-cristã o azul pertence, ao contrário, ao branco).20 O azul carrega traços da mortiacatio para o branqueamento. Aquilo que antes era a viscosidade do preto, como piche ou alcatrão, difícil de se livrar, transforma-se nas tradicionalmente virtudes azuis da constância e fidelidade. A música country americana canta o blues da deserção e da fidelidade. “Foi-se e me deixou”, “você me fez mal”, “não consigo deixar de te amar”. Posso estar arruinado e machucado, mas meu coração ainda é fiel. Não dá para deixar para trás e seguir adiante. O azul lembra, e o preto nele não deixa as coisas irem embora. O aspecto torturado e sintomático da mortificação - autocritica severa, a pulverização de velhas estruturas, a decapitação da vontade teimosa, os ratos e a podridão de nosso porão pessoal dá lugar ao luto. Como até mesmo o mais escuro dos azuis não é preto, então também o mais profundo desespero não é a mortiacatio, que significa morte da alma. A mortiacatio é mais fechada, imagens presas compulsivamente no comportamento, visibilidade zero, a psique amarrada na inércia e na extensão da matéria. Uma mortificatio é um tempo de sintomas. Essas torturas da psique na physis, inexplicáveis e demasiadamente materializadas, são aliviadas, de acordo com a sucessão das cores, por um movimento em direção à melancolia, que pode começar com um arrependimento pesaroso até mesmo com relação a um sintoma perdido: “Era melhor quando doía fisicamente - agora eu só choro”. Desgraça azul. Com o aparecimento do azul, o sentimento autorreflexivo torna-se mais preeminente e o sentimento supremo é o pesaroso lamento. Rimbaud21 equaciona o azul com a vogal “O”; Kandinski,22 com os sons da flauta, do violoncelo, do baixo e do órgão. Esses lamentos sugerem a alma, sugerem reflexão e distanciamento através da expressão imagista. Aqui podemos perceber melhor por que a psicologia arquetípica enfatizou a depressão como a via regia no cultivo da alma (soul-making). Os exercícios ascéticos que chamamos de “sintomas” (e seus “tratamentos”), os desesperos culposos e o remorso na medida em que a nigredo declina, reduzem a velha personalidadeego, mas essa necessária redução é apenas preparatória23 para o sentido de alma que aparece primeiramente na imaginação obscura da depressão à medida que ela azula em melancolia. 18 A mistura de preto e branco no azul aparece numa antiga expressão britânica blue skin (‘pele azul’), que era uma ‘pessoa gerada numa mulher negra por um homem branco’. Um dos blue squadron (esquadrão azul) significava ‘a lick of the tar brush’ (de sangue negro) (‘Lexicon Balatronicum’. , University Wit and Pickpocket Eloquence. Londres: C. Chappel, 1811). 19 Zahan, D. . In: Ottmann, K. (org.). . Putnam, Conn.: Spring Publications, 2005, p. 217-218. 20 A associação de azul com branco não aparece apenas no simbolismo mariano, pois o azul tem um papel espiritual importante no simbolismo místico e no culto judaicos. Cf. Scholem, G. ‘ Tradition’. In: Ottmann, K. (org.). Color Symbolism. Op. cit., p. 1-14. 21 O soneto de Rimbaud ‘Voyelles’ onde o azul equaciona-se com o ‘O’, Omega. ‘Voweils’. Rimbaud Complete. Nova York: Modern Library, 2002, p. 104. 22 Crohmann, W. . Nova York: Harry Abrams, 1958, p. 89. 23 ‘Os da vestimenta azul’ é uma forma usual persa de chamar os Sufis, para o que ‘várias explicações foram dadas’ (Corbin, H. . Boulder: Shambala, 1978, p. 157, nota 121). Supostamente, roupas azuis são ‘apropriadas àqueles que ainda estão nos primeiros estágios da vida mística’. Roupas azul-escuras são usadas quando ‘a psique inferior [ ] foi ultrapassada, como se estivéssemos em luto por ela’. 78 Digamos que o azul é produzido por uma colaboração entre Saturno e Vênus. De acordo com Giacento Gimma,24 um gemologista do século XVIII, o azul representa Vênus, enquanto o Bode, o emblema saturnino de Capricórnio, é o animal do azul. O símbolo zodiacal do Capricórnio estende-se vagarosamente das profundezas para as alturas; uma amplitude e uma paciência imensas, devoção e obsessão ao mesmo tempo. Enquanto o azul traz a Vênus uma melancolia mais profunda, e a Saturno uma magnanimidade (outra virtude do azul, segundo Gimma), ele também diminui a expansão da brancura, pois ele é a cor do repouso (Kandinsky). Assim, o azul é o fator que retarda o branqueamento. É a ansiedade pensativa da depressão, que levanta dúvidas profundas e altos princípios, desejando compreender as coisas fundamentalmente e colocá-las em ordem. Esse efeito do azul no branco pode aparecer nos sentimentos de serviço, trabalho e obrigação, e na observância disciplinada de regras, conformidades cívicas como a cruz azul, uniformes azuis, que as figuras personificadas desses sentimentos podem carregar em público. O efeito ainda pode aparecer nos humores azuis de uma culpada conscientização. Ha de fato um “aspecto moral do branqueamento”25 – e penso que este é precisamente o efeito do azul. O branqueamento não implica nem uma redução da sombra, nem sua conscientização. A albedo alquímica não é uma inocência sem sombra. Embora o suspiro do desespero possa virar um suspiro de alívio, a mancha azul permanece. Há agora mais espaço psíquico para a estatura total e misteriosa da sombra, um céu mais alto e um mar mais profundo. A alma embranquece à medida que a sombra está livre da repressão e é arejada na vida. Uma gota de azul na máquina de lavar roupas as torna mais brancas. “A alma desaparece na forma das coisas”, pois a interioridade privada da alma expande-se, tingindo o mundo com um peso sério, da mesma forma que os azuis dão profundidade de sombras e formas mais palpáveis nas pinturas a óleo. De fato, à medida que as sombras azuladas do mundo emergem, a tristeza é sentida no próprio mundo, como se mantida e embrulhada pelo pesar. Se o branco alquímico depende do azul, então esse azul depende do preto. A (em latim, ca. 1150 d.C.), que tanta influência exerceu, afirma: “Quando o preto excede o branco por um grau, exibe uma cor azul celeste”.26 Evidentemente, os raios de luz e chamas azuis das aspirações celestiais requerem uma quantidade módica de depressão, uma gota de putrefação. Um grau de escuridão é a graça salvadora da inspiração. De fato, a graça salvadora do azul-claro de Maria pode estar numa imperceptível madona negra escondida sob seu manto. II Animus e anima Tenho entendido que a noção junguiana do azul como a “função pensamento” refere-se à antiga associação do azul com as profundidades impessoais do céu e do mar, a sabedoria de 24 25 26 Kuns, G.F. . Filadelfia/Londres: J.B. Lippincott Company, 1913, p. 31. Um século antes de Gimma, Cesare Ripa lista em seu dicionário para pintores (Iconologia) estas figuras que deveriam estar vestidas de azul: Astrologia, Bondade, Poesia, Firmeza e também Inconstância (a prostituta azul de Picasso? Ou ao menos o lado sombrio do constructo fidelidade-verdade-constância). . Princeton: Princeton University Press, 1966, p. 243. Dronke. ‘ ’. Op. cit., p. 76. Cf. este paradoxo de Wittgenstein: ‘Num desenho onde um pedaço de papel branco ganha sua claridade do céu azul, o céu é mais claro que o papel branco. E ainda assim, num outro sentido, o azul e a cor mais escura e o branco a mais clara’ (Wittgenstein, L. . Vol. 1. Berkely/Los Angeles: University of California Press, 1978, p. 2 [ (org.)]. 79 Sofia, a filosofia moral e a verdade. Imagens pintadas de azul, diz o neoplatonista cristão Dioniso, mostram o que “está secreto em sua natureza”.27 O azul é “escuridão tornada visível”.28 Essa profundidade é uma qualidade da mente, um poder invisível que permeia todas as coisas, como o ar - e o azul, disse Alberti em sua grande obra renascentista ,29 é a cor do elemento ar. Quando os azuis mais escuros aparecem na análise, eu me seguro e me preparo, pois estamos prontos para os altos e baixos de animus e anima, ou aquilo que às vezes os junguianos chamam de “o animus da anima”. (você sabia que blue-stocking queria dizer “mulher que tem interesse intelectual e literário”, coloquialmente uma “sabichona”; que blueism queria dizer “a posse ou a afetação de conhecimentos numa mulher”; e que a simples palavra blue [azul] já quis dizer “gostar de literatura”?).30 Esses azuis profundos são inflações do impessoal, do oculto. Eles não parecem nada elevados, mas aparecem como pensamentos filosóficos graves, julgamentos sobre o certo e o errado, e o lugar da verdade na análise. Entretanto, aquilo que parece, e até mesmo é, tão profundo está na verdade longe e desligado das questões à mão. Aquilo de que estamos falando “parece distanciar-se de nós” e “nos atrai” (Goethe), na maneira sedutora da anima.31 Jung ( ) descreve esse estado lunar como um “azulado crepuscular”, uma “aparência enganadora [...] que magicamente transforma o pequeno no grande e o elevado no baixo [...] em uma unidade insuspeitada”. O animus da anima pode nublar a precisão analítica com ideias obscuras e pseudossábias, unificando generalidades. Howard Teich atribui ao próprio Jung uma névoa de generalização imprecisa com relação ao lugar do azul na obra alquímica. O azul, diz Teich, significa uma qualidade lunar masculina.32 Os opostos de Jung são uma fórmula muito batida (Luna = feminino = anima = branco), levando Jung a não notar uma fase crucial: a união dos semelhantes dentro do componente “masculino” - o masculino solar com o masculino lunar representados pelo azul. Ignorar o azul negligencia o homem na lua ou a lua no masculino, que traz sensibilidade, receptividade e compaixão ao enxofre hiperativo do Rei Vermelho. O rei deve ser completo, regiamente purpúreo de azul, antes de se unir à rainha. Antes da opus major ou grande conjunção, o masculino ou animus deve ser temperado, deve aprender as cordas sombrias de uma chave menor. 27 28 29 30 31 32 : . Mahwah, N.J.: Paulist Press, 1987, p. 189 (337b). Cirlot. . Op. cit., p. 51. Alberti, L.B. . New Haven: Yale University Press, 1966, p. 50. Para uma mente mais antiga, a qualidade ‘aérea’ do azul podia ser fisicamente demonstrada pelo fato de a tinta azul ser a mais fugitiva das cores, apagandose rapidamente porque não tinha nenhum pigmento nativo, apenas lápis lazúli esmagado grosseiramente trazido da região de Oxus na Ásia Central. Sobre a história e a tecnologia da tinta azul cf. Badt. . [s.I.]: [s.e.], p. 62, 79. Essas referências podem ser encontradas em Davies, T.L.O. . Londres: Bell, 1881, p. 68-69. Para uma fenomenologia completa da nos escritos de Jung, cf. Hillman, J. . Putnam, Conn.: Spring Publications, 2007. Teich, H. , p. 10 [manuscrito inédito): ‘Embora curiosamente ausente nos relatos clássicos da alquimia, a cor azul de fato aparece (...] representando um estágio crítico do processo de transformação que não recebe grande atenção [...] a cor azul significa uma união de aspectos solares e lunares na psique masculina, pré-requisito da ‘união dos opostos’ final, masculino e feminino’. Cf. a resposta de Jung à pergunta ‘Por que falta o azul?’ (OC 12, 320). 80 A união dos semelhantes precede a união dos opostos. De acordo com Teich,33 esses semelhantes são gêmeos, e aparecem como um no unípede azul ( .) e como o irmão azul na mitologia Navajo. Os gêmeos unidos dividem uma alma e um espírito. São imaginados como complementos (ambos juntos) em vez de opostos (ou/ou). Estão emparelhados nas formas que encontramos por todo este capítulo (depressão e libido, celestial e submundo, paixão e compaixão, fantasia e razão e, particularmente, como anima e animus, ou psique e logos). A própria psicologia depende dessa complementaridade, essa unio mentalis, se quiser fazer justiça à anima no animus e ao animus na anima. Então a alma nutre um espírito ativo e inteligente e o espírito instiga uma alma receptiva e compreensiva. Ao lembrar-me de que “o animus da anima” é um espírito psíquico tentando iluminar a alma ao aprofundá-la ou elevá-la às verdades impessoais, estou mais capacitado a viver essas sessões analíticas lotadas de pensamento. Percebo, graças a Goethe, que essas profundas conversas azuis de uma “negação estimulante” (pensamentos negativos do animus, julgamentos negativos da anima) têm intenções que buscam a alma. Um trabalho de distanciamento e de desprendimento (Goethe) está acontecendo, uma tentativa de reflexão ainda manchada pela nigredo, pois ela escava muito fundo, força intensamente, desprezando as superfícies imediatas das quais prata retira sua luz. Entretanto, as “negativas” que tanto obcecam a reflexão com intuições sombrias e ruminações estéreis estão alargando o espaço psíquico ao esvaziar a sala (Goethe) de seus antigos artefatos. Enquanto a alma procura seu caminho para longe da escuridão através de esforços filosóficos, o branqueamento está acontecendo; o animus está a serviço da anima. Mesmo a crítica ou o humor negativos, e meu próprio desligamento que sinto durante esses exercícios, também pertencem a esse caminho azul em direção ao branco. A nigredo não acaba abruptamente com uma pancada, nem numa choradeira, mas passa imperceptivelmente à alma-aérea (anima) com um suspiro. Aqui ajuda-nos lembrar de uma imagem de contada por Gershom Scholem.34 A chama ascendente é branca, mas abaixo dela, como que seu próprio trono, há uma luz azul-escura cuja natureza é destrutiva. A chama escuro- azulada atrai as coisas para ela e se consome, enquanto as chamas brancas continuam brilhando. O azul destrutivo e o branco pertencem ao mesmo fogo. Como comenta Scholem, em função de sua própria inerência na nigredo, a chama azul é capaz de consumir a escuridão que ela alimenta. A transição azul é delicada; as coisas podem dar errado. Tanto a anima quanto o animus (do grego anemos, corrente de ar, vento) podem nos estourar.35 Quando o elemento ar e a imaginação longínqua do azul se unem, uma possessão arquetípica pode acontecer. Os textos nos alertam sobre o vermelho que vem cedo demais, sobre a obra tornando-se preta, sobre um calor alto demais, sobre a queima das flores, e sobre a vitrificação apática. Muitos riscos, muitos passos ruinosos. O que pode dar errado com o azul? Cuidado para não literalizar a imagem ou, como dizem os alquimistas: “Cuidado com o físico no material”. Físico, é 33 34 35 Teich, H. ‘ ’. Proceedings of the 7th International Conference on the Study of Shamanism, set./1990, p. 313-316. São Rafael, Cal., setembro de 1990. Cf. tb., sob o mesmo título, em Chrysalis: Journal of the Swedenborg Foundation, 6, 1991, p. 157-164. Scholem. ‘ ’. [s.n.t.), p. 41-43. Onians, R.B. . Cambridge: Cambridge University Press, 1951, p. 168-173, sobre a etimologia e o uso antigo de anemos. Cf. tb. Hillman, J. Anima. Op. cit., p. 91. 81 claro, também significa metafísico - a literalização de ideias aéreas em verdades densas e dogmáticas. Qualquer azul que se torne puro azul não é o azul verdadeiro. As conotações que viemos revelando nessa amplificação indicam a importância do azul no processo alquímico. Se o branco tivesse que ser entendido meramente como um clarear, algo essencial estaria sendo perdido. Algo deve incorporar à albedo uma ressonância ou uma fidelidade ao que aconteceu e transmitir o sofrimento com uma outra tonalidade: não como uma dor opressiva, como decadência e como a memória da depressão, mas como valor. Valor pertence à fenomenologia da prata (como discutido no capítulo 6 adiante). O reconhecimento do valor das realidades psíquicas não nasce meramente do alívio da aflição negra. O azul qualifica o branco com um valor nos modos em que mencionamos e especialmente por introduzir preocupações morais, intelectuais e divinas, conferindo assim à mente alvejada uma capacidade para avaliar imagens, uma devoção a elas, e um sentido de sua verdade, ao invés da mera reflexão sobre seu jogo enquanto fantasias. É o azul que aprofunda a ideia de reflexão para além da noção simples de espelhamento, reflexo, um aprofundamento em direção às noções de consideração, ponderação e meditação. A mente em conjunção com a imaginação afasta-se para longe de si mesma. Esse distanciamento interno aponta para cima e para baixo, ao mesmo tempo; obscurecido e iluminado, moral, imoral e amoral. III Imaginação é realidade36 As cores que introduzem o branco são descritas como Íris e o arco-íris, como várias flores e, principalmente, como a radiação da cauda do pavão com seus múltiplos olhos.37 Segundo Paracelso,38 as cores resultam da secura agindo sobre a umidade. Naturalmente acreditamos que a umidade traz cor, como na mata e nos campos depois da chuva. Mas o pensamento alquímico não segue o fácil e habitual; o processo alquímico é uma opus contra naturam. Para Paracelso, portanto, a cor entra mais significativamente quando a profusão libertina da mente seca e as essências das coisas podem se desnudar. Daí a importância do preto como a supressão da cor e a ausência de luz. A nigredo chamusca e arruína as falácias simplistas do naturalismo. Secar libera a alma do subjetivismo pessoal e, quando a umidade diminui aquela vivacidade que o sentimento possuía, pode agora passar para a imaginação. O azul é particularmente importante aqui, pois ele é a cor da imaginação tout court. Baseio essa declaração não apenas em tudo que vimos explorando: o humor azul que patrocina o delírio, o céu azul que ativa ao máximo a imaginação mítica, o azul de Maria que é a epítome ocidental da anima e seu 36 37 Avens, R. . Dallas: Spring Publications, 1979. ‘Tome então da prata, bem purificada de todos os metais [...] depois lacre o óleo da [...] e coloque-o num Balneo para putrefazer até que mostre todas as cores, até chegar finalmente no branco cristalino’ (‘ ’. Collectanea Chemica. Londres: Stuart & Watkins, 1963, p. 137). · Paracelsus, 1: 83: ‘Quando a dieta do fogo é moderada, a matéria é em muitos graus levada ao pretume. Depois, quando a secura começa a agir sobre a umidade, várias flores de diferentes cores aparecem simultaneamente no vidro, da mesma forma que aparecem na cauda do pavão, e de uma maneira que jamais se viu antes [...]. Depois, essas cores desaparecem, e a matéria largamente começa a se tornar branca [...]’. Cf. Jung, C.G. .· : ‘Peacock’ [‘pavão’], cauda pavonis, etc., passim. 38 82 convite ao imaginar, a rosa azul do romance, um pothos 39 que anseia pelo impossível contra naturam (e pothos, a flor, era uma espora azul ou um delfínio colocado nos túmulos); também me refiro ao azul de Wallace Stevens e de Cézanne. O azul “representa, no trabalho [de Stevens], a imaginação [...] como o romântico ou o imaginativo em distinção ao realista”.40 E, para Stevens, o azul também era a cor da estabilidade intelectual e da “razão”. “Tanto o intelecto quanto a imaginação são azuis”,41 da mesma forma que a poesia de Stevens apresenta tão bem a combinação de imagem e pensamento.42 O aparecimento do azul no processo de coloração indica aquela porção do espectro em que pensamento e imagem começam a se fundir, em que as imagens oferecem o meio para os pensamentos enquanto as reflexões tomam um caminho imaginativo para fora da frustração obscura e confinada da nigredo em direção ao horizonte mais amplo da mente. O instrumento azul leva a alma de seu pequeno lamento sonoro ao grande sopro do órgão de Kandinsky, com seu largo, a marcha espaçosa do filosofar que pode incorporar as feridas de nossa própria história a um sentido trágico da vida. Assim como em Stevens, também em Cézanne:43 “Quando ele estava compondo [...] somente a concepção imaginativa de um visionário ou de um poeta [...] poderia ajudá-lo. Era-lhe impossível começar com algo isolado, real, visto”.44 Ele baseou seus quadros em “caminhos e contornos sombrios”,45 dos quais “coisas reais” emergiam como pontos locais. A concepção imaginativa, a sombra visionária, origina e apoia a coisa real vista na natureza. “A mais profunda cor sombria na pintura de Cézanne, aquela que sustenta a composição e é mais apropriada para as sombras, é o azul.”46 A “sombra” azul contrasta notadamente com a noção junguiana de sombra enegrecida pela repressão, pela culpa e pelo moralismo. “Quando [Cézanne] usou o azul desta forma, ele transcendeu qualquer conotação especial ligada ao modo como ele era utilizado anteriormente. O azul era agora reconhecido como pertencente a um nível mais profundo da existência. Expressava a essência das coisas e [...] colocava-as numa posição de distância inatingível”.47 A sombra azul é a base imaginal que permite ao olho enxergar imaginativamente, o evento como imagem, criando ao mesmo tempo uma distância das coisas reais (Cézanne) do mundo verde (Stevens), uma distância sentida na nostalgia que o azul traz. 39 Cf. Hillman, J. ‘ ’. Senex & Puer, p. 179-192. Kessler, E. . New Brunswick, N.J.: Rutgers University Press, 1972, p. 198. 41 Ibid., p. 196: ‘ ’, onde Stevens usa mais abertamente o azul como símbolo, é, nas palavras do próprio poeta, um trabalho de ‘pura imaginação’. A cor é talvez caracterizada como um símbolo para o pensamento especulativo, ou simplesmente para a mente. 42 ‘O poeta, para satisfazer-se plenamente, deve realizar uma poesia que satisfaça tanto a razão quanto a imaginação’ (Stevens, W. . Nova York: Vintage Books, 1951, p. 42). 43 ‘Cézanne é mencionado na prosa crítica de Stevens bem mais frequentemente do que qualquer outro pintor moderno’ (Baird, J. . Baltimore: Johns Hopkins University Press. 1968, p. 84). Cf. p. 82-93 a respeito de suas semelhanças; embora Baird enfatize suas preocupações comuns sobre estrutura, estou sublinhando suas observações comuns sobre o azul e suas implicações para as visões imaginais de ambos os homens sobre seus trabalhos. 44 Badt. K. . Op. cit., p. 56. 45 Ibid., capítulo sobre ‘ ’. Cf. o soneto de Keats sobre o azul, onde escreve: ‘What strange powers/Hast thou, as a mere shadow!’ . Nova York: Random House, 1994, p. 240. 46 Ibid., p. 56. O azul de Cézanne provocou comentários tanto de Zola quanto de Rilke, eles próprios homens de imaginação. Badt. . Op. cit., p. 56-58. 47 Ibid., p. 82. 40 83 Essa nostalgia, entretanto, não é nem sentimental, nem desejosa – não um azul insípido, azul bebê, ou azul lavanda. Para Stevens, o azul máximo é real ao máximo, um azul ardente, que se aproxima do ouro, do vermelho e do fogo, uma aurora, o amanhecer vívido das coisas vivas. “Quando o céu está assim azul, as coisas cantam em si mesmas”,48 escreve Stevens, que numa carta explica: “[...] o adjetivo ‘amorista’ significa azul como um mundo metamorfoseado em azul como uma realidade.”49 O azul, assim, traz uma dupla nostalgia, tanto por aquilo que nunca poderá ser, que foi perdido e que já foi, a distância como a remoção da alma de seu lar, quanto a nostalgia da intensidade azul, a visão azulada, o lapis lazuli dos cabelos das deusas e os momentos nos quais “as coisas cantam em si mesmas”, e a alma está finalmente em casa. Uma vez que o preto se transforma em azul, a escuridão pode ser penetrada (diferentemente da nigredo que absorve todos os insights de volta para si mesma, compondo a escuridão com introspecções literais, impenetráveis).50 A mudança para o azul permite a entrada de ar, de forma que a nigredo pode meditar sobre si mesma, imaginar-se, reconhecer que este próprio estado sombrio expressa “a essência das coisas”. Aqui está a consciência imaginal afirmando sua própria base, capaz de transformar a base do concretismo maciço, como na pintura de Monet da : Um dia, Claude Monet quis que a catedral fosse uma coisa verdadeiramente aérea - aérea em sua substância, aérea até o coração de sua alvenaria. Então a catedral tomou da névoa azulada toda a matéria azul que a própria névoa tinha tomado do céu. O quadro de Monet ganha sua vida desta transferência do azul, esta alquimia do azul.51 Cézanne escreve: “O azul dá às outras cores sua vibração, de forma que devemos sempre colocar uma certa quantidade de azul num quadro”.52 De seu ponto de vista, o azul seria a cor crucial na paleta do pavão pois ele transforma as outras cores em possibilidades da imaginação, em acontecimentos psicológicos, que se tornam vivos em função do azul. comenta: “a imaginação do Grande Mistério, onde uma vida essencial e maravilhosa é concebida”, resulta das cores.53 O 48 49 50 51 52 53 ‘ ’. . Este azul azulado será amplificado mais adiante, no cap. 10. Stevens, H. (org.). Letters of Wallace Stevens. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1996, p. 783. Cf. adiante, cap. 10, para uma exposição detalhada da diferença entre uma leitura da e uma azul do sintoma apresentado no famoso caso inicial da psicanálise, Anna O. Bachelard. G. . Dallas: Dallas Institute Publications, 1988, p. 26. . Compare com a observação de Kessler sobre o azul de Stevens como ‘aquela faculdade humana que busca unificar e distinguir as cores na natureza externa’. O Grupo do Cavaleiro Azul, na Alemanha, é um outro exemplo de uma união entre pensamento e imaginação. ‘[...] o azul era a cor favorita tanto de Kandinsky quanto de Marc |... |’. ‘Pensamos no nome [ ] sentados na mesa de um café [...]. Ambos gostávamos do azul e de coisas azuis, Marc de cavalos azuis, e eu de cavaleiros azuis’ (Relato do próprio Kandinsky, 1930. In: Grohmann. . [s.n.t.], p. 78). A introversão mística na representação da ‘natureza’, a falta de gosto para o ‘verde’, e a reflexão metafísica que eles trouxeram para o imaginar, tudo isto está de acordo com a tradição ‘azul’. Conta-se que Duke Ellington ‘detestava o verde’. Kandinsky coloca o verde naquilo que é ‘burguês - autossatisfeito, imóvel, estreito [...]. Na música, o verde absoluto é representado pelas notas plácidas e medianas de um violino’ (Kandinsky. . Op. cit., p. 38-39). Para uma perspectiva totalmente diferente, alçando o verde a um valor espiritual alto, cf. Corbin, H. ‘ ’. . Boulder, Col.: Shambala, 1978. Na mesma passagem de Böhme ( , citado por Jung, ) encontramos que primeiro vem um ‘azul-brilhante’, depois várias outras analogias coloridas e então ‘é como o azul no verde, ainda que cada qual retenha seu azulado e sua radiância’. A tensão azul/verde (discutida mais adiante e na nota 58) também é observada por Böhme, que os pode ver juntos, ainda que retenham suas diferenças. 84 florescimento total da imaginação mostra-se como a amplitude qualitativa das cores e, assim, o imaginar é um processo das cores, senão de cores literais, então como a diferenciação qualitativa de intensidades e matizes que é essencial à unio mentalis. A inclinação de Jung para a unidade e a síntese blinda-o de uma implicação essencial deste momento da opus e dos textos que está explicando. Ele escreve ( ): “A cauda pavonis anuncia o fim da obra, exatamente como Íris, seu sinônimo, é a mensageira de Deus. O delicioso jogo das cores da roda do pavão anuncia a síntese iminente de todas as propriedades e elementos que estão unidos naquele ‘redondo’ da pedra filosofal.” Em vez de uma mensageira de Deus (uma afirmação que Jung toma irrefletidamente de Khunrath ( ), Íris é uma mensageira de muitos deuses e, portanto, não indica nem a integração de todas as cores, como escreve Jung, nem “a chegada de Deus” ( ). De fato, os parágrafos seguintes ( .) referem-se a um autor (Penotus) que “atribui ao coniungium (casamento) os ‘dii mortui’ (deuses mortos), supostamente porque eles necessitam da ressurreição”. Essas passagens também se referem às fases governadas por Marte e Vênus, e por Juno cujo pássaro é o pavão. Em vez de uma insistência sobre a unidade e uma amplificação com os significados cristãos da ressurreição ( ), o texto indica a ressurreição dos deuses mortos no que está culturalmente reprimido, e que aparecem numa apresentação diferenciada de múltiplas cores tanto no arco-íris quanto no leque de muitos olhos do pavão. A mensagem da Íris é simples: sua substância vaporosa a proclama, uma substância que é apenas e totalmente aparência. Mire com os olhos do coração54 para seu corpo brilhante e verás os deuses no poder e na beleza das cores. Sua infinitude realiza-se na variedade infinita de sombras e tons que compõem o mundo. Quando as cores brilham na cauda do pavão também brilham os olhos através dos quais elas são percebidas. A visão imaginativa precede a própria brancura, pois de outra forma a terra branca não poderia ser percebida como a transfiguração da natureza pela imaginação. Pois essa nova percepção, a percepção também das cores, passa por uma transubstanciação que desemboca num sentido místico ou pictórico das cores enquanto substâncias. São as faces da luz que revelam a qualidade básica da natureza: suas infinitas e sutis intensidades múltiplas. As cores deixam de ser fenômenos da luz para se tornarem fenômenos essenciais em si mesmas.55 A luz, como uma abstração newtoniana generalizada, transforma-se na apresentação das cores e secundária a elas, de forma que a terra alba não seja um branco puro no sentido literal, mas um campo de flores (multi flores),56 uma cauda de pavão, um manto de várias cores. 54 55 56 Cf. Hillman, J. . Putnam, Conn.: Spring Publications, 2004, p. 3-7. Novamente, o motto deste livro, de Zósimo: [...] com base neste simples sistema de diversas cores está a variegada e infinitamente diversificada investigação de todas as coisas. As muitas flores aparecem na terra branca de Corbin. Ele fala dessa ‘botânica sagrada’ que dá à consciência alvejada realidade sensual e conteúdo específico (ao invés de um mero campo nevado ou uma luz branca). Em nosso contexto ocidental de , as flores são uma aparição como Flora, o florescer da imaginação como formas vivas enraizadas. Diz Corbin: ‘As flores fazem o papel da prima materia para a meditação alquímica. Isto significa reconstituir mentalmente o Paraíso, fazer companhia a seres celestiais’ ( . Princeton: Princeton University Press, 1977, p. 3132). Von Franz cita uma variedade de passagens esplêndidas sobre as muitas flores ( . Op.cit., p. 391-395, referindo-se a Jung), que ela interpreta como ‘componentes de nossa totalidade psíquica, o Self’, e ‘indicam o brotar do relacionamento psíquico’ como ‘relacionamentos humanos’ (p. 395). A redução das flores 85 A transubstanciação anunciada pelo pavão alquímico reverte a história da filosofia. (As visões de cor de Newton e Locke, de Berkeley e Hume, pertencem ao subjetivismo concentrado da nigredo e sua negação e rejeição dos fenômenos naturais.) A cor pode agora tornar-se uma qualidade primária novamente, a própria coisa como phainoumenon à mostra, o coração na matéria, anterior a abstrações tais como magnitude, número, figura e movimento. Quando a cor existe, o mundo existe como o enxergamos - não apenas verde como a sensopercepção naturalista acredita, mas verde por causa de suas sombras azuis.57 Mesmo nas simplicidades da roda colorida do jardim da infância, o verde é secundário ao azul, que é primário. O mundo natural depende da primazia do imaginal que confere implicações profundas e multiniveladas aos dados sensoriais. Por causa do azul, o mundo verde produz metáforas, analogias, instruções inteligíveis, fornecendo reservatórios de beleza e insight. O mundo é como o vemos em nossos sonhos e poemas, visões e pinturas, um mundo que é verdadeiramente um cosmo, adornado cosmeticamente, um evento estético para os sentidos, pois eles se tornaram instrumentos do imaginar. O multi flores e os diversos olhos na cauda do pavão sugerem que a visão colorida é uma visão múltipla. Devemos ser capazes de enxergar policromaticamente, polimorficamente, politemporalmente, politeisticamente antes que a terra alba apareça. O movimento de um universo monocêntrico para um cosmo de perspectivas complexas começa com o azul uma vez que ele “dá às outras cores”, como diz Cézanne, “sua vibração”. Então as cores alquímicas desaparecem e são substituídas por um lustro branco e brilhante. Aqui, podemos ficar tão encantados pelo novo brilho da mente a ponto de tomarmos o branco literalmente, como se o branco significasse apenas e literalmente uma coisa - a brancura - portanto, esquecendo-nos da multiplicidade que tornou possível a brancura.58 A multiplicidade deve já ter sido construída na mente como 57 58 ao personalístico ‘nosso’ ignora o próprio material que ela reuniu, em que ela afirma: ‘Na alquimia grega flores e brotos são imagens para espíritos e almas’ (p. 392). É com os ‘seres celestiais’ - as figuras imaginais - que ocorre agora o relacionamento psíquico. Somos testemunhas de seu florescimento e somos seus jardineiros. A persistente oposição entre verde e azul, tida como um princípio pelo grupo de pintores do Cavaleiro Azul, e superenfatizada como uma oposição entre a natureza e a imaginação em Stevens (Kessler. . Op. cit., p. 185 - que conta 163 menções a essas duas cores na obra de Stevens), precisa de novas reflexões. Azul e Verde eram os nomes de facções rivais no circo romano, e a rivalidade das cores continuou por pelo menos mais mil anos nos choques reais entre partidos durante as disputas políticas e ideológicas no Império Bizantino (Cameron, A. . Oxford: Clarendon Press, 1976). Os próprios estudiosos se dividem a respeito; alguns (por exemplo, Gregório, Magno) atribuem o azul as altas classes que ocupavam posições mais ortodoxas e imperiais, e outros (por exemplo, Villari) pensam exatamente o contrário. A diferença das opiniões acadêmicas confirma o poder de divisão das cores estudadas. Outra fantasia persistente também atesta a problemática do azul e do verde. É dito que muitas culturas antigas e ‘primitivas’ e suas linguagens não conheciam o azul como nós o conhecemos, não podiam nem mesmo ‘ver’ o azul como o fazemos em função da evolução cultural e da importância crescente da discriminação cortical. Um mundo apenas verde, separado do azul, sugere uma fantasia arquetípica (ocidental?) de paraíso e do selvagem feliz. Um cosmo sem nostalgia, depressão ou perversão, sem afastamento enganoso ou distanciamento misterioso, tudo dado, nada implícito. A confusão linguística entre azul e verde afirma uma fusão de natureza e imaginação, como no japonês onde o termo aoi pode significar tanto azul quanto verde e, em outra língua imagística, o irlandês, onde gorm e glas podiam significar tanto azul quanto verde (Toinbin, C. ‘Prefácio’. In Lovely Blueness. Dublin: The Chester Beatty Library, 2001). Cf. tb. Theroux. . Op. cit., p. 56-60. Cf. para um exemplo do esquecimento da multiplicidade. Jung diz: ‘O omnes colores (todas as cores) vem acentuado muitas vezes no texto, e com isso se quer indicar a totalidade. Todas as cores se reúnem então para, por exemplo, formar o branco ( ), que, para muitos alquimistas, era o clímax do trabalho. Em todo caso, a prima pars operis (primeira parte da obra) está concluída com isso, ao mesmo tempo que a multiplicidade separada, que indica a confusão do caos, foi conduzida à unidade do branqueamento, e surgiu ex omnibus unum 86 as vibrações, os sombreamentos e as sutilezas de Cézanne que não somente estão lá nas coisas, mas que estão lá nos olhos da mente através dos quais as coisas são vistas como imagens. É como se entrássemos no mundo sem preconceitos, fascinados pelos fenômenos em que tudo é dado e nada é garantido. Experimentar dessa maneira é recuperar a inocência - daí o lustro branco e brilhante. Ruskin o chamou de “a inocência do olho [...] um tipo de percepção infantil dessas manchas rasas de cor, meramente enquanto tais, sem a consciência do que elas significam”.59 A atenção muda do significado da percepção para a própria percepção. Notamos e somos afetados pelas qualidades sensoriais - O que está aí? De que forma está aí? O que está fazendo aí? E o que está fazendo para mim? - ao invés de Como foi parar aí? Por quê? Para que serve? Estamos chegando à essência da unio mentalis: a transformação da imaginação, e uma mudança radical na própria ideia de imaginação. Depois do desespero do azul e do desejo do azul, a virtuosidade inventiva dessa força saturou tanto nossos corações e nossas visões com um sentido de vida que vem do céu ou do inferno, a imaginação tendo se tornado um poder tão pervasivo, que ela não pode mais ser confinada a uma função mental ou concebida como uma capacidade psicológica entre outras. De fato, a imaginação não pode mais pertencer à psicologia humana, mas como a graça deve-se reconhecer nela uma atribuição arquetípica, algo que desce às nossas vidas de um reino imaginal. O dom da imaginação em qualquer pessoa humana é primeiramente um dom do azul além, onde as próprias cores se originam, tanto quanto o arco-íris descende de algum lugar imaginado, e não podemos achar onde ele toca a terra. As cores são apresentações primárias de uma diferenciação arquetípica, cada cor uma celebração da sensualidade do cosmo, cada sombra e tom tingindo a psique com um conjunto de humores ligando-a ao mundo com afinidades específicas. Estas se tornam nosso gosto, nossas aversões e delícias. Em reconhecimento ao poder das cores, aqueles dedicados à transcendência que favorecem abstrações sem cor, pureza matemática, uma via negativa espiritual é uma metafísica do vazio, atacam as cores concebendo-as como meras aparências, apenas derivadas do efeito da luz no sistema ótico. Marcham para o topo das montanhas desviando os olhos.60 O caminho espiritual afasta-se da alquimia que favorece o palpável, o oleoso e o vívido. A alquimia mergulha nas questões coloridas te mundo; seus devotos são discípulos da cor. Como uma graça arquetípica concedida pelo cosmo, as cores doam sua força imaginativa à nossa criatividade. Do contrário, como dar conta das obras-primas azuis nas artes? Gershwin, por exemplo, ou Miles Davis? Seria apenas uma convenção chamar sua música de blues? Ou o poder arquetípico do azul afirma sua realidade imaginal por meio destas obras-primas? O azul tornou a música azul [blue] como faz nossas almas entristecerem. O presente específico 59 60 (a partir de muitos o um). De um ponto de vista moral, isto significa simultaneamente a multiplicidade psíquica da desunião original, o caos interior das partes da alma que colidem entre si, os rebanhos de animais de Orígenes que se tornaram o vir unus (o homem uno)’. Essa interpretação identifica totalidade com unidade, ao passo que totalidade também pode significar tudo enquanto tudo (ou seja, cada um e todos). Além disso, a interpretação moral de Jung não apenas enxerga os vários como ‘desunidade’ e chaos, mas coloca o homem acima do animal. Ha em Jung, entretanto, citações de outras passagens que contradizem sua própria perspectiva, por exemplo, Khunrath, ): ‘na hora da coniunctio aparecerao a negrura e a cabeça do corvo e todas as cores do mundo. Apud Gombrich, E.H. . Princeton: Princeton University Press, 1961, p. 296. Cf. ‘ ’. In: Moore, T. (org.) . Nova York: HarperCollins, 1989, p. 114-121. 87 do azul é para nossa mente, de forma que sua visão seja um insight [visão interior], sua visão seja visionária, e a metáfora sua terra firme. A aparição do azul no mundo traz um sombreamento primordial a toda existência, começando o mundo de novo para e a partir da imaginação, como no próprio início do mundo quando a face do profundo criou o céu e os oceanos à sua semelhança. IV Unio mentalis Esta pesquisa, essas imagens, e as figuras que convocamos - Cézanne, Stevens, Monet, Rimbaud, Kandinsky, Kelly, Wakoski, Bachelard, Jung, Picasso, Marc - nos revelam algo sobre a natureza da unio mentalis. Jung, ampliando , considera a unio mentalis como a união do julgamento racional com a fantasia estética (logos e psyche) ( ), libertando a alma do corpo ( ), anterior a uma reunião com o corpo (physis, física, mundo, ) ( .). Essa unio mentalis - a primeira meta da opus - como união de logos e psyche, não é nada mais que a própria psicologia, uma psicologia que tem fé ( ) em si mesma, e que indica e ativa a albedo que se segue ao azul. Essa psicologia, que nos dá um “fundamento interior” ( ) e uma “segurança interior” ( ), Jung também descreve como esse in anima ( ) - estar na alma. Sim, o azul pode ativar. Apesar do distanciamento reflexivo frio do azul em Goethe, a unio mentalis é espirituosa, animada; animus na anima. Um vento sopra através dele. Uma ) relata que, na medida em que o material cresce e floresce com muitas cores, o verde de Vênus torna-se como um jacinto, “ou seja, azul” ( ). Essa é uma fase de Marte ( ). Um Marte azul? Essa imagem paradoxal sugere tanto um Marte mais pensativo quanto uma qualidade marcial no azul, uma atividade corada da própria mente. Pois, sob a égide de Marte, o arco-íris e a cauda do pavão resplandecem. A afirmação de Dorneus, “a cor azul depois do amarelo” [itálicos meus], pareceria reverter a progressão padrão das cores na qual o azul precede o amarelo, assim como o amarelo precede o vermelho. A unio mentalis, entretanto, deve ser reafirmada antes do avermelhamento, do contrário a passagem ao vermelho poderia omitir a obscuridade, o mistério e os valores que o azul trouxe para a albedo. O amarelo precisa ser contaminado psiquicamente pelo azul que está escondido dentro dele e que, como explica Dorneus, “conduzirá até à total negrura ou putrefação após um tempo muito longo” ( ). Resumindo, progressão simples através de estágios definidos não é psicologia alquímica; uma mente psicológica sofreu a unio mentalis, quando sombras negras perseguem cada fase e cada tonalidade, principalmente por meio do azul. Uma mente casualmente reunida despedaça-se facilmente, de forma que desprezar os azuis como nostálgicos demais, tristes demais, complicados e sutis demais permite que a mente se divida contra si mesma. Sem a ponte azul da metáfora, caímos num pensamento preto e branco: ou/ou, fato/fantasia, bom/mau... Crucificados pelos opostos. Esticados pela lógica da contradição. Assim, a unio mentalis não é nem uma progressão do preto para o branco, nem uma síntese de preto e branco. Ao contrário, é uma descida da mente daquela cruz, uma possibilidade sempre presente de poeiesis de uma mente refazendo-se a partir do tecido azul que está por baixo e pode solapar as oposições. 88 A natureza da unio mentalis alcançada pode ser depreendida dos relatos daqueles que convocamos. Eles sugerem que a unio mentalis é a interpenetração de ideia e humor, de mundo percebido e mundo imaginal,61 um estado mental que não está mais preocupado com as diferenças precisas entre coisas e ideias, entre tempo e atemporalidade, nostalgia e profecia, aparência e realidade, ou entre o intelecto que constrói teorias e a alma que inventa fantasias. Colorimos essa unio mentalis de “azul”, pois o azul que temos encontrado transfigura as aparências em realidades imaginais e imagina o próprio pensamento de uma forma nova. O azul é preparatório e incorporado ao branco, indicando que o branco se torna terra, ou seja, fixo e real. Quando o olho se torna azul, ou seja, capaz de enxergar através das ideias e enxergá-las como formas imaginativas, então as imagens se tornam a base da realidade. A “tintura” azul resplandecente (testemunhada separadamente no capítulo 10 adiante) não transcende totalmente o azul do humor e da loucura porque aquela ocorrência azulada é preparada, de acordo com Dorneus ( ), por uma experiência do mundo das trevas, também chamada “vinho” ( ). O vinho tem uma relação vernacular com embriaguez azul (blue drunkenness), blue noses e blue laws de proibição62 e, na outra ponta do espectro, o vinho é o portador da embriaguez divina nos estados místicos de Rumi e Kabir. Aqui, devemos imediatamente lembrar Heráclito dizendo que Dioniso e Hades são um só, de forma que a unio mentalis traz consigo obscuridade (Hades), desarranja a mente habitual e sugere um mistério dionisíaco. Uma lente azul permite-nos enxergar dentro do mais desconcertante dos cultos antigos e da experiência dionisíaca. O vinho oferece a verdade e a teatralidade, tanto pesar quanto alegria, ou, em termos diagnósticos horríveis, “depressão e libido”, que Stephen Diggs entende como sendo o segredo do jazz ao declarar Dioniso o Deus da “ ”.63 Albert Murray explica: A função fundamental do músico de blues (também chamado de músico de jazz) [...] não é apenas de mandar a tristeza [blues] embora [...] mas também de evocar um ambiente de folia dionisíaca no processo.64 O deus na doença cura a doença; semelhante cura semelhante; livrese da tristeza por meio da tristeza. 61 62 63 64 Mundo percebido e mundo imaginal aparecem juntos no fenômeno das penas do pássaro azul. Uma coloração azul vívida não é um pigmento, não é uma tintura, mas uma reflexão da luz que salta do opaco esmaecido das penas físicas pretas. O azul que vemos não está ali materialmente, é puro reflexo, tanto quanto o azul do céu. Enquanto penas vermelhas e amarelas (e, parcialmente, também penas verdes) recebem sua coloração da pigmentação, uma pena azul é um fenômeno da estrutura e da luz. Cf. Portmann, A. ‘ ’. . Basileia: F. Reinhardt, 1942, p. 102-110. Blue nose, em inglês, designa coloquialmente uma pessoa puritana; blue laws, também em inglês, refere-se a leis puritanas muito severas outrora em vigor na Nova Inglaterra, Estados Unidos [N.T.]. Diccs, S. . Spring: a Journal of Archetype and Culture, 61, 1977), p. 40s. Dois poemas eróticos mais longos são caracterizados tanto pela depressão quanto pela libido: , de Robert Kelly ( . Boston: David. R. Godine, 1979, p. 181) e , de Diane Wakoski ( . Vol. 9. Nova York: Doubleday, 1968, p. 9). You paint my body blue [Você pinta meu corpo de azul], diz Wakoski, I cannot shake you out of the sheets [Não consigo te arrancar dos lençóis]. Perda, rejeição, alma machucada - e desejo sério. Kelly encontra uma solução no último verso de seu poema repleto de lembranças sexuais, dizendo: Deep inside the image there is time for everything (Há tempo para tudo bem dentro da imagem]. A imaginação é capaz de conter ambas, depressão e libido, em virtude do distanciamento azul. Murray, A. . Nova York: Da Capo Press, 2000, p. 17. 89 Esses autores mantêm Hades e o mundo das trevas por perto e junto. Por causa do blues estar baseado no mais dissonante dos intervalos (o trítono), já foi conhecido como o e, em algum momento, foi até ilegal. Além disso, “o que é mais idiossincrático no blues é o achatamento [...] perdendo a altura do som”, “como que dizendo, volte à terra”.65 Com relação à consciência que esses mistérios trazem, sabemos o que nos disseram Dodds, Otto e Kerényi - a natureza está viva. A presença de Deus permeia a existência comunitária como uma grave sombra que concede uma alegre vibração a todas as coisas ou, como Goethe descreveu o azul, “um tipo de contradição entre excitação e repouso”.66 A unio mentalis implica uma embriaguez divina67 que inclui o que a mente nigredo normal considera patológico. Não posso chamar diretamente Dioniso de “azul”, apesar do fato de seu cabelo e seus olhos, no a ele dedicado, serem kyaneos. Ele vê com olhos azuis e, para enxergá-lo, nossos olhos têm que ter a mesma cor. Posso, contudo, conectar esse Senhor das almas e do vinho com a exposição de Kessler acima a respeito do azul de Cézanne: aquela “profundidade de significado”, aquele “nível mais profundo da existência” que tanto segura o mundo como comunidade “coexistindo” e ainda assim numa “posição de distância inatingível”. “Os tibetanos dizem que as deusas têm cabelos de lápis lazuli”.68 Quando os mitos dizem que os deuses têm cabelos e corpos azuis, eles têm! Os deuses vivem num lugar azul da metáfora, e não são descritos numa linguagem naturalista, mas com uma “distorção” teatral. “A divindade nos escolta gentilmente, a princípio com azul”, escreve Hölderlin.69 A fala mítica deve estar cheia de hipérbole; os deuses vivem nas alturas e nas profundezas. Para representá-los corretamente necessitamos da paleta expressionista, não da impressionista. Essa mudança para a percepção mítica ocorre precisamente com a unio mentalis. Agora “imaginamos” a natureza da realidade, e o azul-escuro torna-se a cor certa para expressar os cabelos de Dioniso, pois é o matiz natural e razoável para o cabelo deste deus nesse hino, o mais realista dos retratos, uma verdade poética (como defenderia Vico). Uma dessas representações que nutrem a imaginação alquímica é o unípede, explicado por Jung ( ), com pranchas). Essa figura de uma só perna tem um pé azul; noutra representação, roupas íntimas azuis; uma terceira mostra o pé azul com uma ponta preta. Essa figura singular mostra nitidamente o poder da imaginação louca de ultrapassar a falácia naturalista de um ponto de vista bípede e pedestre. O unípede também insiste que seu azul ainda retém sua mancha preta. E essa mancha? Um resquício da nigredo, da qual neste contexto comenta Jung: “os conteúdos psíquicos se separam do aprisionamento no corpo” ( ). Não do corpo, mas de sua ligação com o corpo; uma libertação da literalização do corpo, dos eventos corporais como apenas corpo. Não um estado sem corpo, mas um sentido diferente de corpo junto com a mente, 65 Diggs. ‘ ’. |s.n.t.], p. 36. Compare com as duas naturezas contrastantes do elemento Terra em Bachelard: atividade energética e repouso ( . Dallas: The Dallas Institute Publications, 2002. . Dallas: The Dallas Institute Publications. [s.n.t.)). [Em português: A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991 - Trad. de Paulo Neves.. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes, 1990 - Trad. de Paulo Neves]. 67 Sobre a embriaguez divina, cf. Miller, D.L. Christs. Nova York: The Seabury Press, 1981. 68 ‘ ’. No Nature: New and Selected Poems. Nova York: Pantheon Books, 1992, p. 78. 69 ‘ ’ (‘ ’. In: HÖLDERLIN, F. , Dokumente. Vol. 12. Munique: Luchterhand Literaturverlag, 2004, p. 44 [SATTLER, D.E. (org.)]. 66 90 preenchido de mente (e mente com um pensamento incorporado). O pé azul único sobre o qual o corpo se apoia permite-o ser carne e mistério ao mesmo tempo. Essa carne vestida de azul nos leva de volta ao tema anterior do cão azul. Há muito tempo, um “gnóstico” herético, Justino, imaginou que o Deus criador não era ninguém mais que Príapo,70 uma ideia rigorosamente vilipendiada por um dos Padres da Igreja Antiga, Hipólito de Roma, como contrária aos Santos Decretos, portanto herética, portanto pagã.71 Mas a discussão de Scholem do arco-íris como um sinal de Jeová da aliança divina entre o céu e a terra diz: “A palavra hebraica para arco, keshet, denota, na literatura hebraica, não apenas arcoíris, mas, na literatura rabínica, também pênis”.72 Além disso, o termo brith, ou aliança, que o arco-íris significa, também se aplica à circuncisão. As cores do arco-íris encontram sua localização concentrada na sefirah Yesod, o falo místico, chamada de base ou fundação naquelas imagens do corpo humano que representam a árvore cósmica da Kabbalah que se estende do céu até a terra. Os genitais transmitem a força do que está acima para o que está abaixo, e este abaixo - a última sefirah, Shekhina, a alma do mundo - é puro azul.73 Ao traduzir essas referências esotéricas nas obsessões perversas do cão azul, descobrimos isto: Hades Invisível aparece no mundo como Dioniso.74 Há um impulso divino (isto é, invisível, insondável) que busca entrar na vida comum. Quer conhecer a alma no sentido bíblico. Conhecimento carnal, conhecimento íntimo, conhecimento das intimidades. (Daí as inúmeras imagens de copulação que aparecem por toda a alquimia.) A alma anseia por essa copulação, e canta esse anseio no blues, azulando sua própria carne, puxando o divino para baixo, para o corpo comum. (Daí o humor libidinoso do blues.) Aquele quartinho escuro nas paradas de caminhoneiros, o denso fascínio75 de imagens tremeluzentes, é também um mundo de alma, um receptáculo da penetração divina. Há sementes divinas em todas as coisas, pedaços do corpo despedaçado de Dioniso vibrando em toda a criação.76 Portanto, é claro que o pornô é espalhafatoso, e o jazz é para baixo e sujo, terreno como um cachorro, não importa a altura em que voe o pássaro nas notas do trumpete ou nas linhas da cocaína. A carne vestida de azul não significa embrulhar impulsos em constrições protetoras puritanas de autocontrole voluntarioso. Mais liberalmente, aquele unípede significa manter-se em pé como um eixo estático no frontão do realismo imaginal, uma compreensão dada com o cão azul quando a fantasia é extremamente concreta e o mundano extremamente fantástico. Isto também é uma unio mentalis. 70 71 72 73 74 75 76 Grant, R.M. . Nova York: Harper and Row, 1966, p. 19. Hipólito. ‘ ’. In: Roberts, A.; Donaldson, J. & Cleveland Coxe, A. (orgs.). . Vol. 5. Búfalo, N.Y.: Christian Literature Publishing, 1886. Scholem. ‘ ’. [s.n.t.], p. 37. Ibid. p. 40. Sobre a identidade /Dioniso, cf. Hillman, J. . Nova York: Harper & Row, 1979, p. 44, 171, 177, e passim. A fonte e Heraclito, D. 15: ‘Mas Hades e Dioniso é o mesmo, a quem deliram e festejam nas Leneias’. Glare, P.G.W. Oxford Latin Dictionary. Oxford: Clarendon Press, 1982: fascinum, o pênis; fascinosus, lúbrico; fascinatio, rogar uma maldição, enfeitiçar. A noção mitológica de que Dioniso desmembrado como força vital está presente promiscuamente em todas as coisas e discutida em Hillman, J. ‘ ’. Mythic Figures, 1, p. 15-30. 91 O alquimista trabalha com uma máxima prevalente, “solve et coagula” (dissolver e coagular). As literalizações azuis devem ser dissolvidas a fim de que o poder arquetípico não se coagule numa visão metafísica monocular.77 Não é o corpo ou as pedras que precisam se tornar azuis, mas a mente. Se a mente não continua sua prática laboriosa e astuta de solve - dissolvendo o literal em sua fantasia - ela pode ser possuída por um aspecto singular da imaginação arquetípica azul, por exemplo: o manifesto e os atos demonstrativos de Yves Klein; o levantamento persistente de William Gass da linguagem erótica azul, como se guiado pelo cão azul; o psicologizar estreito de Howard Teich do azul num componente da personalidade masculina. De todos aqueles que permitiram ao azul inundar seu trabalho, talvez somente Stevens e Cézanne mantiveram a complexidade da cor. Eles continuaram até o fim dissolvendo e coagulando e dissolvendo de novo as múltiplas tonalidades do azul, nunca deixando a unio mentalis fixar-se numa mente ou humor simples. Uma unio mentalis é uma mente que pode manter quietamente tudo aquilo que o azul evoca, percebendo que a mente moveu-se para uma sensibilidade poética, dissolveu sua obsessão conceitual em linguagem. “Resumindo, a cor azul é em parte um artefato puramente linguístico”.78 Os primeiros termos para “azul” em grego e latim foram “tomados da poesia pela prosa”,79 da recitação oral, do canto da garganta, como o blues hoje em dia carrega a tradição poética expressa a imaginação do pensamento do coração. Se a poesia e a fonte do azul mais profundo, então tivemos que mencionar figuras como Stevens e Cézanne para melhor compreendermos o processo de coloração da alma e a psicologia da unio mentalis. Termos nos voltado a um poeta e um pintor também nos conta quem são os alquimistas de nosso tempo. Os poetas e os pintores, e as figuras em nós que são poetas e pintores, são os que estão lutando pela continuidade do problema: a transubstanciação da perspectiva material em alma através da ars. Artífice agora como artesão. O laboratório alquímico está em seu trabalho com as palavras80 e as tintas,81 e a psicologia continua sua tradição de aprender com a alquimia ao aprender com eles. Eles ainda nos contam algo mais sobre a terra branca: se a base imaginal for percebida primeiro por um método artístico, então a própria natureza dessa terra deve ser estética - o caminho é a meta. Chegamos à terra branca quando nossa maneira de fazer psicologia é estética. Uma psicologia estética, uma psicologia cuja musa é a anima, já está se movimentando, hesitantemente, mas certamente se movendo, naquele lugar branco. 77 78 79 80 81 A complexidade exasperante do azul - que ele recede, deprime e exalta-com frequência força sobre seus devotos uma redução monocromática que idealiza um componente específico, muito famoso, a ‘revolução azul’ de Yves Klein. Theroux. . [s.n.t.], p. 59. Rowe, C. ‘ ’. Color Symbolism: Six Excerpts from Eranos. Dallas: Spring Publications, 1977, p. 351. Cf. o ensaio que examina Freud como alquimista de Randolph Severson, ‘ ’. Dragonflies, vol. 1, n. 2, 1979), p. 91-121. Kucler, P. . Einseideln: Daimon Verlag, 2002, que termina com a frase: ‘[A matéria] é transformada em imaginação’. John Constable, o pintor de paisagens inglês, citava esta frase como seu motto (ou um motto alquímico): ‘Todo o objetivo e a dificuldade da arte (na verdade, de todas as belas-artes) é unir imaginação com natureza’ (Gombrich. . [s.n.t.], p. 386). 92 A prata e a 6 terra branca Prefacio Permitam-me apresentar o mais clara e racionalmente possível aquilo com que estarei trabalhando neste estranho capítulo. Ele tem origem em duas grandes ideias. A primeira vem de Hegel que disse que, na insanidade, a alma almeja restaurar sua perfeita harmonia interna. Para Hegel, a insanidade é um estágio essencial no desenvolvimento da alma, e um estágio que a alma intencionalmente desempenha.1 A insanidade e essencial ao cultivo da alma (soulmaking). A segunda grande ideia vem da alquimia. No cultivo de alma alquímico o ouro é necessariamente precedido pela prata. Isto significa que o ouro vem da prata, o vermelho vem do branco, o sol vem da lua, uma consciência mais clara vem da loucura. O cultivo de alma alquímico propõe que a ideia final do sol em conjunção com a lua não significa nada mais e nada menos do que uma condição do ser na qual o brilho e o despertar solar e a loucura lunar estão magnificamente unificados. O mysterium conjunctionis é uma loucura iluminada. Prossigamos então no sentido de colocarmos as proposições hegeliana e alquímica juntas mas não tão depressa, principalmente não antes de examinarmos algo do que está implícito nessas palavras alquímicas: prata, Luna, branqueamento. Isto, o aspecto albedo da alquimia, tem sido notavelmente negligenciado em nossa febre solar e nossa corrida do ouro. Qualquer descrição mais comum da alquimia dirá que ela é a arte da fabricação do ouro (quer seja físico ou “sófico”), e que os alquimistas têm como meta transformar, através de devoção, magias e técnicas, os metais básicos em ouro nobre. E embora todos esses mesmos relatos concordem que a prata é a penúltima grande fase e a própria parceira do ouro, há extraordinariamente muito pouco escrito sobre ela. (Os termos “prata”, “albedo”, “brancura” e “Luna” (lua) têm significação semelhante.) Essa lacuna pode ser atribuída a uma tendência masculina presente em toda a alquimia e à repressão daquilo que é tão simples e indiferenciadamente (portanto monoteisticamente) chamado de “o feminino”, uma vez que no simbolismo genérico a prata carrega um sinal feminino (embora nem sempre).2 Eu não aceito essa explicação feminista para a lacuna com relação à prata; acho que tem mais a ver com a natureza arquetípica da prata, da Luna e da brancura. Acredito ainda mais que nossa investigação dirá não apenas mais sobre a rejeição 1 2 Hegel. 125ss. Figulus, p. 285: ‘A prata é masculina’. . Oxford: Oxford University Press, 1971, p. 93 geral da prata, mas também algo mais fundamental sobre a rejeição do “feminino” daí originária. Certamente não preciso aqui pôr à prova o valor da alquimia para a psicologia, o que já foi muito bem provado por Jung3 na primeira metade do século XX, e por Von Franz e Edinger desde então. Mas talvez eu realmente tenha que enfatizar a relevância especial da alquimia para a psicopatologia.4 Pois, afinal, não é a alquimia um prolongado testemunho de homens loucos trabalhando em si mesmos? A prata alquímica: sua natureza e propriedades psicológicas A prata é o metal da Lua, a semente da Lua na Terra.5 Outros metais são o cobre, como a semente de Vênus, e o chumbo, como a semente de Saturno. Os metais eram imaginados como vapores úmidos coagulados, como um gás condensado, cujo espírito podia ser liberado pelas operações adequadas. Porque os metais eram inerentemente úmidos, ou seja, incorporando fleuma, eles tinham uma tendência fleumática para serem passivos ou inertes, necessitando de fogo. A resistência às mudanças é dada com as sementes de nossa natureza, e somente um calor intenso pode mover a natureza humana de sua inércia inata. Ao considerar os metais como sementes, a alquimia prendeu-se menos à distinção entre os reinos vegetal e mineral (orgânico e inorgânico). Sementes são forças vivas; um metal como a prata é uma vis naturalis com uma intencionalidade codificada, uma capacidade de movimentar-se, formar corpos, entrar em combinações, assumir uma história, ramificar-se. Mas, através de todas essas tais atividades e transmutações, ela permanece fiel a seu próprio “sangue”. Esses corpos minerais não eram matéria morta a ser carregada por aí, mas sementes vitais, incorporações de alma; não fatos objetivos, mas fatores subjetivos. A visão alquímica incorporava em suas premissas teóricas aquilo que a moderna ciência natural agora postula como novo: o observador e o observado não são independentes um do outro. O fato de os espíritos planetários estarem na Terra como metais lembra-nos que os deuses estão dentro do mundo, enterrados nas profundezas dos assuntos terrenos, debaixo de nossos pés quando caminhamos. Caminhamos sobre suas cabeças e ombros, eles nos suportam, embora através de nossas fantasias humanas possamos imaginá-los localizando-os numa órbita celestial. Apesar de estarem aqui mesmo em nosso chão, eles somente se tornam manifestos quando os procuramos lá fora. 3 4 5 Jung considerava a alquimia o paradigma e o suporte fundamental para sua psicologia (cf. ). Um bom terço da obra escrita de Jung está direta ou tangencialmente relacionada com a alquimia, proporcionalmente muito mais do que aquilo que ele escreveu sobre tipologia, psiquiatria, experimentos de associação, sabedoria oriental ou parapsicologia. Cf. Grinnell, R. . Dallas: Spring Publicaions, 1973. Sobre ‘como os metais são produzidos nos intestinos da terra’ cf. Sendivogius. ‘ ’, HM 2, p. 90s. Outras fontes: , especialmente o livro 3: ‘ ’. - Dibner, B. . Norwalk, Conn.: Burndy Library, 1958. O foi traduzido para o inglês em 1912 por um engenheiro de minas (junto com sua mulher), Herbert Hoover, filho de um ferreiro de um vilarejo, e mais tarde seria presidente dos Estados Unidos. Um alquimista na Casa Branca! Sobre a relação dos deuses planetários com os metais (voltando a tempos babilônicos ou quem sabe sumérios), cf. Partington, J.R. ‘ ’. Ambix, 1, 1937, p. 61-64. Sobre a história dos metais em geral, cf. Aitchison, L. . 2 vols. Nova York: Interscience, 1960). Sobre a prata: Forbes, R.J. . Leiden: Brill, 1950. 94 É precisamente isto que a palavra “metal” significa: “procurar”. Homero usa o verbo metallao, que se traduz “procurar”. Metalleia significa a procura dos metais, enquanto metallon, como uma mina ou pedreira, significa um lugar de cuidadosa busca, pesquisa, escrutínio.6 A ideia de um planeta como um metal - e não somente um corpo celestial ou um Deus personificado - induz a atividade de buscar profundamente na natureza pelo deus absconditus. A metalurgia não está somente nos primórdios da ciência física empírica, mas também nos primórdios da pesquisa teórica. Os metais agem como sementes forçando a mente a agitar-se em investigações. Como diz Plínio o Velho ( 96): “Sempre que se encontrar um veio, outro não está longe de se buscar”. E é o garimpeiro que incorpora a visão prospectiva das escavações psicológicas: olhar para a frente, ir mais adiante, procurar por ainda outros veios. Em várias línguas, bem diversas entre si, as palavras para prata convergem sobre uma ideia de brancura: o egípcio hd significa branco; o hebraico keseph significa metal branco brilhante; a raiz radj tanto do grego argyros quanto do latim argentum significa branco, brilhante, radiante, cintilante. O grego argos, além de ter em sua raiz os sentidos de branco e cintilação, também denota rapidez, como cães de caça. Na própria palavra para a prata estão os cães de Ártemis/Diana, a deusa da Lua, sua evasividade e perigo, e é uma convenção alquímica utilizar intercambialmente branco, prata e lua – e também Diana. A faísca, o brilho e a rapidez da prata aparecem no Argo, o barco dos argonautas de Jasão, aquela embarcação necessária para a viagem em busca do Tosão de Ouro no Reino do Sol. Aqui também, uma conjunção alquímica apresentada como uma configuração mítica, confirma nossa tese: o caminho para o ouro é via a prata. Resumindo, pratear é branquear, o estágio da albedo na obra, e a lunificação do material refere-se a qualquer processo - lustro, calcinação, coagulação - que possa fazer surgir uma condição branca e brilhante de alma no material. A transmutação para a prata significa limpar e purificar, o que ao mesmo tempo significa tornar-se mais essencial e durável. Essas mudanças qualitativas referem-se particularmente ao fazer brilhar ou trazer à luz o caráter lunar da alma, incluindo até mesmo seus “azuis”. A cor da prata não era apenas branca, mas azul. Ruland lista vinte e sete tipos de prata azulada. Norton escreve: “A prata pode facilmente ser convertida na cor do lazulite porque [...] a prata produzida pelo ar tem uma tendência a ser assimilada pela cor do céu”.7 Precisamos aqui brevemente distinguir entre o branco como um nome para a materia prima (ethesia alba, magnesia alba, o leite da virgem, etc.), quando branco refere-se à inocência não trabalhada, um sono de Endimião8 com sonhos de marshmallow, doce, virgindade tímida e daí por diante, e aquele branco da albedo, um resfriamento que resulta de violentas torturas, da 6 7 8 Liddell, H.G. & Scott, R. . Oxford: Clarendon Press, 1996, v. μεταλλαω, μεταλλεια, μεταλλον, HM 2, p. 45. A assimilação da prata (branco) pela cor do céu é comparável a este paradoxo de Wittgenstein: ‘Num quadro onde um pedaço de papel branco toma sua leveza do céu azul, o céu é mais leve que o papel azul. E, num outro sentido, o azul é a cor mais escura e o branco a mais clara’ ( . Vol. 1. Berkeley: University of California Press, 1978, p. 2). É tão forte a associação do azul com a prata que mesmo quando a química moderna duvida do testemunho alquímico (retirando um pigmento azul da prata tratada com sal, vinagre, etc.), a mente moderna entende que os alquimistas tinham uma justificativa física, desconhecida para nós, para seus achados. Mas seus achados não estão, ao invés, baseados na fantasia - uma prata sófica da imaginação embranquecida que sabe que o azul pertence ao prateamento, e que portanto o enxerga? Cf. a nota de Dorothy Wyckoff à sua tradução do (Minerals, p. 192-193). Cf. . . In: Stroud, J. & Thomas, G. Images of the Untouched: Virginity in Psyche, Myth and Community. Dallas: Spring Publications, 1982. 95 paciência de um longo sofrimento, de um intenso calor. Todos os brancos não são o mesmo branco,9 e somente o branco da albedo refere-se à prata alquímica como um estado da consciência que provém não da alma assim como ela está dada, mas do trabalho feito nela. O corpo da Lua consiste de Ar. Sua terra não é nossa terra, pois “ela fora inteiramente permeada de éter”, diz Plutarco.10 Trazer o metal da lua ao nosso alcance mental significa ser capaz de agarrar-se e permanecer junto às sutis invisibilidades do ar. “Os minerais têm sua raiz no Ar [...]”.11 Enquanto a psicologia contemporânea imagina o elemento fértil como terra, a psicologia alquímica considera o ar como o princípio nutriente. Se o fogo é o segredo da arte e princípio sagrado da obra, então o ar é o que a nutre e a terra, o que a extingue. Para Paracelso “somente pelo ar todas as coisas são nutridas” e a terra “provê um término para o elemento do fogo (crescimento)”.12 A terra limita, fixa, para. Mas o materialismo moderno elevou a terra e esvaziou o ar até a insubstancialidade.13 A psicologia contemporânea influenciada pela terra avisa dos perigos do ar: inflação, o puer, delirante; porém nunca percebe a idiotice enlameada presente em seu próprio ponto de vista ou a poeira seca assentando em suas páginas. Se a terra da lua é etérea, devemos imaginar o metal da lua como um corpo aéreo sutil que nutre os fogos do espírito e as paixões da alma pela contínua geração de imagens, de fantasias. Imagine esse metal então como um ar branco intangível, um corpo branco prateado, etéreo como o globo da lua cheia flutuando, suspenso na receptividade do firmamento azul-escuro, uma mente dura, fria e brilhante no seu máximo, cujos efeitos são tanto nutritivos quanto dessecantes e adstringentes.14 Pois essa frieza e secura é precisamente aquilo no que o fogo se regozija e de que se alimenta. Ao contrastarmos a prata com seus metais companheiros podemos discernir melhor suas propriedades naturais. Como o cobre, a prata é condutiva, embora não seja vermelha. Como o ouro ela é densa, nobre, preciosa e bela, porém mais dura e menos maleável. Como o estanho e o chumbo ela é acinzentada ou branca e pode se tornar útil, mas diferentemente deles ela tem lustro, pode ser polida e refletir. E como mercúrio em sua primeira aparição, a prata coagula-se num estado mais firme e estável, não dispersivo ou fragmentário. Essas comparações indicam que a prata é um condutor frio e branco, não um condutor quente e vermelho, pois ela tem um “corpo frígido e úmido”;15 indicam também que ela tem uma certa rigidez ou inflexibilidade inata; que ela enobrece o útil ao poder ser polida, polimento este 9 Essa distinção crucial entre o branco ingênuo e o sofisticado é ampliada em meu ensaio ‘ ’ [Spring, 1986. Dallas: Spring Publications]. Muhammad Ibn Umail dá uma quantidade de nomes para a ‘brancura intensa’, que e chamada de ‘A segunda brancura’ (Book of the Explanations of the Symbols [Kitab Hall ar-Rumuz). In: ABT, T.; Madelung, W. & Hofmeier, T. . Vol. 1. Zurique: Living Human Heritage Publications, 2003, p. 9. 10 ‘ ’. Moralia, XII, 1951. Cambridge, Mass.: Harvard University Press. 11 Citado de E.A. Hitchcock de um tratado não especificado em seu . Los Angeles: Philosophical Research Society, 1976, p. 41. 12 Paracelsus, 2, p. 266. 13 Sobre a importância do ar para o trabalho psicoterapêutico com a (alma), cf. Hillman, J. Anima: . Putnam, Conn.: Spring Publications, 2007, p. 143-145 [Em português: Anima: anatomia de uma noção personificada. São Paulo: Cultrix, 1990 - Trad. de Gustavo Barcellos e Lucia Rosenberg] e mais adiante o capítulo 9, ‘ ’. 14 Lexicon, p. 41. 15 Filaleto. ‘ ’. . Cf. tb. Figulus, ’ ’. 96 em virtude do qual ela reflete; que ela não flui facilmente, mas que tende para a estabilidade e a magnificência da autoconsistência. A equação Luna = prata16, tão frequentemente usada na alquimia, não é uma identidade verdadeira. A prata corresponde a Luna somente em alguns aspectos. Não se trata da lua de Lilith, a lua da noite e dos mortos, e certamente não se trata da pequenina crescente, a menininha virgem nos começos. A prata também não é a flutuante lua das marés, do sangue e da vegetação, caminhando através de fases, mudando com a passagem do tempo; também não a amargura salgada da lua e seu senso comum. Em suma, a prata apresenta o brilho total da lua, sua completude ou elevação. É o metal de uma Grande Luz, para usar o modo tradicional de falar, um princípio arquetípico de imensa potência equivalente à opus major da Primeira Grande Conjunção, a anima realizada como uma imaginação tão sólida, uma alma tão encarnada, que a reflexão de suas imagens embranquecem a terra da consciência mundana. Repetidamente o ouro e a prata são mencionados de uma só vez e juntos, os dois metais perfeitos, o rei e a rainha. A sutil diferença entre eles faz-se notar, por exemplo, nesses adjetivos: o ouro “verdadeiro” e a prata “fina”.17 O ouro nos envolve com a verdade, e tudo o que a verdade estabelece com seu poder, um reino eterno, físico ou metafísico, moral e espiritual. A prata nos envolve com valor estético, discriminação, apreciação, refinamento, que é também um fim (finis) em si mesmo. Revendo as propriedades da prata: ela é dura e seca tendo sido purificada tanto da viscosidade do enxofre quanto de sua própria umidade fleumática e viscosa ( )ou seja, a prata filosófica nem se adere às suas reflexões, nem é passivamente conduzida por suas imagens. A psique da prata é “dura e seca”; brilhante. A prata tilinta, e revela sua verdadeira natureza ao ressoar quando tocada. Mais que isto, sua verdade está em seu soar, o estampido da verdade, aquela resposta estética instantânea dos sentidos aos estímulos que afetam o corpo psíquico que é “frígido e úmido”. O corpo da prata não queima nem inflama outras coisas, e talvez por causa de sua “fria” condutividade, a “a prata é o que há de melhor para manter unidos metais fundidos” (Minerals, 3, p. 2.1). A psique fria e prateada, embora aparentemente “não relacionada”, pode estabelecer relações entre as questões mais ardentes e mantê-las unidas, ainda que sem fundi-las num falso compromisso (amálgama). Ela media, ligando facções derretidas através de seu próprio distanciamento. A prata enrijece o ouro, pois o ouro, segundo Alberto Magno, não pode ser moldado em filamentos ou folhas a menos que amalgamado com a prata. Ouro não amalgamado não “suporta os golpes do martelo” ( ). Uma liga verdadeira não é nem muito úmida 16 17 Cf. Holmyard, E.J. (org.). . Londres: J.M. Dent & Sons, 1928, p. 16.. Lexicon, p. 209.. Paracelsus 1: 8-9, para outros três exemplos onde e prata são sinônimos. Geoghecan, D. ‘ ’; ‘ ’. Ambix 6, 1957, p. 14. A raiz médio-oriental da palavra prata (kaspu) deriva-se de ‘refinar’, assim como o árabe (sarif = prata pura) tem na raiz o sentido de ‘metal refinado’. Cf. . Leiden: Brill, 1971, p. 247. Devemos lembrar aqui que refinamento e pureza não são a mesma coisa. Refinamento alquímico significava uma ‘sofisticação’ do metal, sua transmutação num poder diferenciado e sutil. Enquanto nossas noções de refinamento hoje em dia tendem a significar uma percentagem cada vez maior da mesma coisa, singularidade e concentração. A noção alquímica é mais estética a moderna, mais quantitativa e simplificada. 97 (maleável), nem muito seca (rígida) e, como diz Alberto, o martelo quebra facilmente as ligas pobres, em função de sua mistura “gaguejante”. A prata é necessária para a opus da fabricação do ouro, pois, evidentemente, é a dura mente lunar, sólida na realização de suas formas imaginativas, que permite ao ouro ser moldado em formas específicas. Devemos lembrar que o ouro alquímico é um elixir vermelho. Ele é ativo e encarnado, um remédio universal, um poder multiplicador no mundo, um rei-filósofo, da mesma forma que essa ambição universal própria do ouro aparece nas ambições mundanas do alquimista de fabricar ouro. O ouro não é um estado espiritual transcendente de consciência, uma santidade mística da luz, da verdade e da perfeição somente, mas, em vez disso, essas mesmas virtudes moldadas e definidas em formas precisas, para o que a prata é necessária. Além dessas propriedades, a prata reflete. “Um espelho”, diz Albertus, é fabricado pela umidade que é solidificada e então é capaz de ser bem polida; e ele recebe imagens porque é úmido, e as retém porque é sólido ou limitado (terminatum); pois ele não as reteria dessa forma se a umidade não estivesse incorporada e regida por um limite.18 Se a prata reflete porque é tanto receptiva (úmida) quanto sólida, então receptividade sólida é o tipo de consciência que serve para refletir. Reparem como para refletir é necessário ter incorporado ou digerido sua própria umidade e estar limitado por seus próprios limites. Não é possível refletir se você facilmente flui; e não se pode refletir tudo, mas apenas aquilo que se pode receber e ao que se está solidamente presente dentro dos limites de nossas próprias fronteiras. Refletir não é uma receptividade vazia; refletir requer foco. O ar, continua Albertus, “não retém tais imagens, embora as receba [...] por não ter limite algum, ele não as focaliza em um lugar ou em uma forma [...] mas atua somente como um meio através do qual as imagens passam, e não como um limite restritivo que as dê existência”.19 A mente aérea não consegue fixar e reproduzir até mesmo suas próprias imagens. Elas apenas atravessam e nós mesmos somos somente um meio, a menos que estejamos fixados por um sentido de limitação. Quando estamos envolvidos num projeto delimitado dentro de um contexto limitado (um prazo, por exemplo) somos mais capazes de imaginar do que quando permanecemos em puras possibilidades; tal imaginar não é especulativo, um refletir que realmente imagina qualquer coisa, pois não tem término, sem um fim fixo ou um foco. Para que a mente reflita imagens é necessário um caso específico, ou um evento específico naquele caso, que traz uma especulação verdadeira com mais solidez do que as generalidades derivadas de tantos exemplos. Essas são meramente ar, refletindo nada especificamente. Precisão e foco pertencem ao refletir da prata; são inerentes ao próprio metal do imaginar. Não podemos formar uma imagem sem sermos precisos, e aquilo que não é preciso, não é limitado ou focado, não é uma imagem. A prata serve ainda a mais um propósito que não podemos esquecer. Ela tem “o poder de revolver o enxofre inerente ao mercúrio” (“ ”, HM 1, p. 255). diz: “O mercúrio só pode ser animado pelo fermento branco da prata”.20 Surpreendentemente esse frio metal da lua anima e ativa ambos os elementos fundamentais, enxofre e mercúrio. Isso não significa então que a opus inteira requer fermento mental, a animação do pensamento e da reflexão, a intervenção ativa da imaginação, e que talvez até mesmo a loucura enquanto um estado de prata ativada é a prata trabalhando sobre o mercúrio, vivificando, animando 18 19 20 Cf. Norton, T. ‘ ’. : ‘A causa de um espelho é umidade fixa; e por esta razão ele também é homogêneo, porque o ar não recebe nenhuma impressão, e é incapaz de conter-se a si próprio’. Figulus, p. 281. 98 Mercúrio, o Deus e o guia de toda a opus, revolvendo um fermento branco através do qual ele se torna lunático? Como Luna é o recipiente de todas as influências planetárias21 e como o branco contém todas as cores, então a prata incorpora todos os metais e fases anteriores em seu corpo. Diferentemente da lua, contudo, a prata não é um lugar de origem. Geralmente ela não é um dos vários nomes para a materia prima:22 ela não é dada, mas precisa ser preparada, ou seja, preparada através do opus contra naturam, preparação na qual a negrura é essencial. “Sua substância nunca será branca se primeiro ela não tiver sido preta. É através da putrefação e decadência que ela atinge o corpo glorificado de sua ressurreição”.23 “O enxofre queima a prata quando é espargido sobre ela depois de derretido, e o enegrecimento da prata mostra que ela é queimada pelo enxofre” ( ). Embora a prata derretida seja pouco afetada pelo enxofre, quando a superfície da prata sólida é tratada com enxofre fundido, ele “queima” a prata deixando-a preta, um efeito que não ocorre quando o enxofre fundido é aplicado à madeira, à pedra ou ao ouro. Esses curiosos eventos empíricos sugerem que somente a prata fria e endurecida é sujeita aos impulsos sulfúricos, enquanto a prata que se entrega a suas próprias intenções acaloradas permanece não manchada. Alberto argumenta que o enxofre afeta a prata dessa maneira por causa de sua inata afinidade. Como poderia ser caracterizada esta afinidade? A prata retém em seu corpo uma pequena quantidade de umidade sulfúrica. Avicenna24 considerava a prata constituindo-se de “enxofre branco” (junto com “puro mercúrio”), e Bonus diz que “a prata sofre de uma lepra fleugmática, pois ela contém uma quantidade de enxofre combustível”.25 Imaginemos que a mente lunar reflexiva, apesar de suas propriedades estáveis e adstringentes, retém uma afinidade com as paixões ardentes. (Afinal, como disse Rasis, a prata manifesta é cobre [venusiana] por dentro, assim como o cobre manifesto é prata [lunar] por dentro).26 Essa suscetibilidade da prata ao enxofre fundido deriva-se de uma quantidade inata de enxofre combustível, seu próprio estado de desejo oleoso, como uma professorinha adstringente que cai em pecado apesar de seu brilhantismo e de seu “corpo frio e úmido”, como Hefesto saltando para cima da fria Atená, como a própria Perséfone, puramente modesta e ainda assim sujeita a ser envelopada pela paixão copulatória do negro Hades, como se dentro de Perséfone existisse a umidade secreta da afinidade com o Inferno. 21 22 23 24 25 26 Cf. Paracelsus 1, p. 8-9. Sendivogius, em ‘ ’ (HM, 2, p. 98), nota que ‘as virtudes dos planetas descendem, mas não ascendem’ e uma vez que ‘a última estampa é ocupada pela lua’ é este princípio que recebe e passa abaixo as influências dos outros. A psique prateada por natureza reflete imagens do universo politeísta; ela é por natureza politeísta e infere a priori os outros planetas e seus metais. A prata refinada, sofisticada, não pode significar prata pura, exclusiva ou simples; ela não pode ser definida, exceto em termos de uma multiplicidade de virtudes completamente misturada, que tenha descido sobre ela e cujas luzes ela reflete. Seu corpo recebeu o delas, como a lua recebe seus raios invisíveis. Portanto, uma consciência que reflita essa prata nunca será capaz de permanecer sozinha, ou de conceber, ou de imaginar num estilo unívoco, isolante, monoteísta. A exceção que confirma a regra está no léxico de Ruland: o octagésimo primeiro epíteto para a prima materia é ‘prata’ (Lexicon, p. 225). Filaleto. ‘ ’. HM, 2, p. 255. Cf. Holmyard, EJ.Alchemy. Harmondsworth: Penguin Books, 1957, p. 94. Bonus, p. 272. Rasis. . Apud Minerals, 3, p. 1,8. 99 A frieza da imagem, seja da lua ou do submundo das trevas, e o distanciamento frio com o qual enxergamos através da imagem, pode ser capturada, como que por algo proveniente de fora, pelo calor inclusus ou calor inato do amor escondido dentro dela. Então haverá dentro de cada momento da prata - fantasia criativa, pensamentos e ideias, reflexões - uma propensão a queimar-se com o enxofre. Talvez quanto menos ativado esse calor do amor inato dentro do imaginar (isto é, quanto menos manifesto o cobre ou mais úmido e viscoso o enxofre), mais a prata da psique está sujeita a chamuscar sua pele externa, pelo que entendo a exteriorização e a literalização do enxofre inato em desejos que não mais podem se enxergar como imagens (o pretejamento da prata). Daí a importância de reconhecermos, como estamos fazendo neste capítulo, tudo aquilo que a prata implica. Estaremos ativando-a de forma que ela não empreteje, de forma que nossas imagens não se queimem por sua inata vitalidade. Mas tal paixão é também curiosamente fleugmática. A “lepra fleugmática” (lepra como um termo técnico para imperfeição), que pode tornar a prata manchada ou negra (isto é, uma consciência esporádica ou intermitente; reflexões que não iluminam, mas, ao contrário, envenenam, corroem, enegrecem), parece ser causada por flegma, uma palavra grega que significa inflamação mórbida, e que também veio com o tempo a se referir a um temperamento não temperamental, passivo, monótono. Portanto, a afinidade da prata com o enxofre indica que a mente pode ser inflamada pelo impulso quente para a ação, quando sua habilidade reflexiva torna-se instantaneamente obscurecida, e essa propensão para responder ao chamado do enxofre fundido, mesmo na mais sólida e coagulada prata, dá-se porque a prata fleumaticamente supura dentro de sua própria natureza. Ela é engomada pelo fétido flegma de sua própria atividade mental que não lhe sai da cabeça, lá se coagula, gruda em si mesma, autoenvenena-se. Evidentemente há muito mais na prata do que podemos perceber ao olhar sua superfície clara e branca: uma fantasia passiva, uma viscosidade ou preguiça mental acompanha o próprio brilho da mente.27 Daí as longas horas desperdiçadas (“não consigo continuar”), a lepra fleugmática que acompanha a atividade intelectual. Há inércia e monotonia mesmo no meio de um pensamento soberano. Daí também a necessidade da fantasia passiva (fleugmática) junto da imaginação ativa. Ativo e passivo, fantasia e imaginação são inseparavelmente coincidentes na natureza da prata. Parece que essa mórbida inflamação dentro da prata necessita de ociosidade como uma companhia legítima da vida da mente. Do ponto de vista de uma psicologia alquímica, a ociosidade é o flegma da prata, sua lepra necessária, de forma que a sociologia do lazer origina-se das sementes dos metais tanto no homem quanto no mundo. A classe ociosa, considerada estéril e cruel, como a nobreza ou a elite intelectual e acadêmica, ou ainda aqueles que vivem de sua prata como dinheiro (rentiers), representa, no corpo público, o componente de prata, inclusive sua indolência fleugmática. Sem essa prata tanto veloz quanto preguiçosa, sem esse esbranquiçado corpo aéreo, não há ouro. “Nenhum ouro é gerado, exceto se ele primeiro tiver sido prata”.28 E não há conjunção: o 27 28 Há um curioso trocadilho fonético em grego que sublinha uma contradição inerente à prata: argos enquanto brilhante, brilho, ágil, veloz, relacionado etimologicamente com branco, prata, etc., e àrgos como inútil, preguiçoso, inativo, cru, não trabalhado, vagaroso, indolente, vagabundo, relacionado etimologicamente com ‘não trabalhar a terra’. Os vários significados etimológicos e associativos de argos estão discutidos em maior profundidade em Irwin, E. (Toronto: Hakkert, 1974, p. 215-218). Também interessante é o fato de que o vento invisível, o próprio ar, era considerado ‘branco’, isto é, ‘prateado’ (argestes). Ibid., p. 169173. Figulus, p. 277. 100 poder do ouro permanece charlatão, um vermelho sem branco, sangue sem mente, actus sem potência, verdade sem sutileza, “atos sem imagens” (ein Tun ohne Bild), como alertou Rilke.29 Ou como insistiu Keats, a Verdade e a Beleza subsistem juntas. O incansável alerta dos alquimistas de que “nosso ouro não é o ouro comum” era um aviso sobre o esquecimento da prata. Precisamos primeiro estabelecer o corpo aéreo da reflexão imaginal antes de podermos compreender o ouro como imagem e não entendê-lo como o metal natural. Se o processo alquímico é testemunho da fabricação do ouro, primeiro precisamos perceber a mente alvejada de imagens cintilantes, mantendo o sentido estético da prata de forma que o ouro possa se tornar ouro “filosófico”, a verdade possa emergir da beleza, os fatos significarem imagens em vez do meramente reino literal das energias, heróis e brilho solares. É a mente lunar dentro do ouro que imagina o ouro de dentro e é seu chão primordial, restringindo seu multiplicatio com frieza, capacitando o ouro a reconhecer que ele e todo o seu poder são mantidos para a realização de imagens psíquicas. Somente aqueles feitos que se originam na prata, que incorporam a reflexão das imagens e espelham essa reflexão, podem justamente ser chamados de ouro verdadeiro. A extração da prata A alquimia geralmente mostra onde podemos encontrar as substâncias de que precisamos. O enxofre, por exemplo, diz o beneditino inglês Kramer (HM 2, p. 154), é encontrado “Em todas as coisas deste mundo - metais, ervas, árvores, animais, pedras são sua mina”. Podemos obter enxofre de tudo aquilo que chama a nossa atenção, que chameja. Ele vem do mundo natural e de nossa mundanidade. Ele pode ser extraído de qualquer compulsão, fascínio ou atração no macrocosmo. O sal, como vimos acima, é extraído de nosso mundo interno microcósmico. “Mergulhe em si mesmo, pois você o carrega consigo”, diz Irineu Filaleto.30 Lágrimas, suor, sêmen, e especialmente sangue e urina. Reavemos o sal de nossa subjetividade interior e ele nos remete de volta à sua origem através dos resíduos e sabores da experiência. De onde então vem a prata? Lembremos primeiramente que essa extração dos metais é uma operação metafórica. Beedictus Figulus diz: “Meu filho, compreenda aqui a Luna Metaphorica, não a literal [...]”.31 O autor de escreve: “[...] tudo isso deve ser compreendido com um grão de sal. Você precisa compreender que [...] falei metaforicamente; se você tomar minhas palavras no sentido literal, não colherá nenhum fruto, apenas despesas”.32 Portanto, somos obrigados a descobrir modos psicológicos de extrair a prata, extraindo-a de condições da psique nas quais ela está enterrada, ou com as quais ela está amalgamada. Uma mina de prata psicológica pode frequentemente ser localizada naquele lugar que chamei de “meu”, um lugar de apropriação egóica no qual se imagina não haver nada de mais profundo, nenhuma reflexão escondida, nenhuma fantasia metafórica oculta. O trabalho com a prata nos transporta de donos de minas para trabalhadores de minas (mineiros), em direção às profundezas de nossa mente, libertando o metal brilhante de sua mina silenciosa. 29 30 31 32 Duineser Elegien LX. In: Collectanea, p. 12. Figulus, p. 304. . . 12 vols. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1975, vol. 2, p. 718. 101 1) A Antiguidade, ou seja, Lucrécio, Strabo, Diodoro, consideravam a prata como o resultado de um fogo da floresta, um holocausto.33 Um gigantesco fogo assola uma floresta, carbonizando a mata, dizimando a natureza e, depois dessa ruína, um regato fino de prata emerge. A prata, inferem eles, origina-se em grandes desastres psíquicos. Ela resulta de uma queimada. Nós a reivindicamos depois que os caramanchões de madeira do naturalismo protetor tenham sido totalmente enegrecidos. 2) A segunda e mais comum discussão a respeito da extração da prata na alquimia medieval e renascentista refere-se conjuntamente ao chumbo. Assim como os dois planetas Lua e Saturno estão frequentemente relacionados – como começo e fim, como ambos frios e ligados à morte, associados a cachorros e veneno, como suporte da mens – também, como diz Forbes, “a história da extração da prata está inseparavelmente ligada à do chumbo”.34 De acordo com Alberto Magno, o chumbo protege a prata de ser queimada,35 embora o método para extraí-la de minas mistas de prata e chumbo fosse através de repetida calcinação (calor seco), apagando o amálgama quente num líquido ácido (sal amoníaco ou vinagre), e de destilação seguida de nova calcinação. A proteção do chumbo e a libertação da prata do meio do chumbo, como uma pomba branca, indica a natureza nobre e preciosa atribuída à prata.36 Uma brancura com asas de pomba pode emergir de um estado plúmbeo que parece envelopá-la por completo. O coração vagaroso e pesado do chumbo oculta uma pomba de prata (às vezes magnésia). Para extraí-la, necessitamos de calor seco e vinagre. A prata não aparece facilmente e “uma tonelada de chumbo fundido normalmente contém apenas algumas onças de prata”.37 A libertação da pomba não a separa de seu peso, a gravitas do espírito. Ela carrega chumbo para sua prata. Imagine o chumbo tornando-se alado, móvel, aéreo, pairando sobre as operações com atenção séria (como uma pomba de asas abertas permanece suspensa sobre uma cena em ícones medievais). O espírito não mais aprisionado apenas na imanência, imerso em lutas laboriosas com o grosseiro e denso. Chumbo, como o metal de Saturno - frio, pesado, denso -, não era utilizado amplamente antes de tempos romanos. Como a prata, não era tecnicamente tão prático quanto o ferro e o cobre, de forma que ambos, chumbo e prata, como Saturno e Lua, eram mais espirituais, religiosos e místicos do que os planetas e metais mais mundanos como Marte (ferro), Vênus (cobre) e Júpiter (estanho). Típico da abordagem romana era o uso prático encontrado para o chumbo e a prata, encanamentos e utensílios para a vida diária. Objetos decorativos de prata, por exemplo, eram a ostentação da alta sociedade. Plínio dá detalhes.38 Vincent de Beauvais, na Idade Média, considerava o chumbo uma prata desvalorizada.39 A prata que havia “decaído”, ou envelhecido, ou perdido sua natureza e pureza, tornava-se chumbo. A implicação é clara: estados plúmbeos são reflexões psíquicas “decadentes” ou “perdidas”, a pomba solidificada, enterrada em idiotice e monotonia; os estados plúmbeos são tão duros 33 34 35 36 37 38 39 Forbes. Ibid., p. 197. Minerals, 3, p. 1,8. OC 12, fig. 178. Aitchison. Plínio. Forbes. . Op. cit., p. 201. . Op. cit., vol. 1, p. 46. , 33, p. 49-54. . Op. cit., p. 204. 102 de se levar (“pesado como chumbo”) em parte porque sentimos a prata oprimida dentro deles que não consegue encontrar seu caminho para a liberdade; e quando a prata era extraída, o que restava era uma nova materia prima, um chumbo mais pesado e escuro - plumbagina (grafita). Embora possamos extrair um momento de prata de nosso corpo plúmbeo, essas extrações criam uma condição até mais pesada e mais densa. A depressão é o preço da prata. Desde a Problemata de Aristóteles, a melancolia tem sido a doença dos pensadores. Quanto mais reflexão branca, mais carga de chumbo; ao produzirmos a prata, aumentamos o chumbo. Com certeza isto é muito conhecido: um insight pode ser brilhante nele mesmo, mas não deixa marcas no humor cinza no qual ele se originou. Temos a sensação de envenenamento por chumbo (saturnismo), o estado de ter sido engolido pelo chumbo, perdidos na mina de chumbo - tudo é tão longo e lento. Para que, então, sentimos, essas reflexões da prata, esse pingo de luz, se o peso da depressão não nos deixa? A verdade, contudo, é que a depressão é a mina. Este é o chumbo necessário para a prata, mesmo que a prata não seja nem útil nem funcional para alterar o chumbo. Extraímos a prata do chumbo, mas não para acabar com o chumbo, pois isso fecharia a mina. Seria demasiado estreito perceber a pomba apenas como um emblema do ascencionismo cristão, ou seja, o bem está somente acima e toda a sublimação em direção ao alto. Wallace Stevens escreve sobre “a pomba na barriga”,40 invocando um espírito santo adejando nas entranhas do profundo, sinalizando sensibilidades tremendas. A pomba na barriga estimula a vida das imagens cujas ânsias de nascer e espasmos de morte não simultâneos, análogos, até mesmo indistinguíveis. Aqui precisamos lembrar o curioso fato metalúrgico de que a prata corrompe-se com o Ar. Ela embacia. Ela converte-se com os cloretos na água da chuva, de forma que é naturalmente mais encontrada em minas argentíferas de chumbo. É muito raro que a prata possa ser encontrada pura sob a terra, em regiões montanhosas. A prata preteja com o ar e não pode sempre brilhar como o ouro. A prata requer polimento, atenção, esfregões; a prata requer cuidado. Uma vez que sua exposição a faz perder o brilho, ela fica melhor quando está guardada, escondida, protegida. Ela é coberta de preto pelo silêncio e pelo embotamento, e por esconder-se invisivelmente no chumbo. Talvez seja essa a razão de não encontrarmos muito sobre ela diretamente nos textos da alquimia. Ela aparece quase sempre em conjunto com o ouro: “O que está oculto no ouro está manifesto na prata, e o que está manifesto no ouro está oculto na prata”.41 A prata manifesta tem as qualidades brilhantes e preciosas do ouro, e, quando tentamos imaginar a natureza da prata utilizando uma consciência solar, a prata se torna imediatamente oculta, o que então a deprime num amálgama com o chumbo. 3) O terceiro lugar de onde extraímos nossa prata, além das ruínas de nossas paixões e do desespero plúmbeo, é o cérebro. Figulus fala da Luna Cerebrum.42 Muitos tratados, inclusive alguns de Paracelso, localizam a lua ou o metal da prata junto com o cérebro. O cérebro é o órgão da prata, assim como o coração é o órgão do ouro. 40 41 42 Rasis. Figulus, p. 24. . Noya York: Alfred A. Knopf, 1978, p. 366. . Apud Minerals, p. 175n. 103 Cérebro aqui, é claro, significa o cérebro metafórico, o cérebro sutil, o cérebro do corpo de fantasia como também os corpos das fantasias cerebrais. Em outras palavras, as fantasias, qualquer que seja sua natureza, contêm prata. Esse cérebro prateado apresenta-se nas descrições de fantasias prateadas. Por exemplo: “O reinado da Lua dura apenas três semanas, mas, antes de seu término, a substância exibe uma grande variedade de formas; ela se tornará líquida, e novamente coagular-se-á cem vezes por dia; às vezes ela terá a aparência de olhos de peixe, e depois de novo de pequeninas árvores prateadas com galhos e folhas. Sempre que olhar para ela terás motivo de assombro, especialmente quando a vir toda dividida em belos, porém diminutos grãos de prata [...]. Essa é a ”.43 Essas formas e padrões, essas variadas filigranas são modos de encontrar a prata: em pedacinhos e grãos e nas centelhas dançantes das reflexões, fragmentos de sonhos e fantasias espalhafatosas, brotos de pensamentos e ideias que se ramificam, cem vezes por dia, as conexões entrelaçadas, marcadas pelos “ahas” e “uhs” interiores, nossa consciência ressonando em nossa garganta à medida que a mente branca emerge em sua noite. Ruland diz em seu dicionário: “A prata é encontrada em massas conglomeradas que parecem algo como brotos distribuídos nos galhos de uma árvore [...]. Outras vezes ela assume a forma de pequenos bastões, ou outras figuras similares. Agrícola testemunha que viu exemplos perfeitos de instrumentos metálicos, tais como pás e pequenos martelos, tirados da mina. Eu mesmo enxerguei figuras ou imagens naturais de pequenos peixes, leões, lobos, etc.”44 Agrícola, o metalúrgico, viu a prata na natureza nas próprias formas de pás e martelos que eram seu interesse. A prata aparece nas formas da fantasia; ela pode ser extraída das figurações projetadas ou imaginadas de nosso cérebro. (Maomé, a propósito, também considerava a prata o metal das imagens: os amuletos muçulmanos eram proibidos em qualquer outro metal que não fosse prata.)45 A prata como o metal do imaginar indica que imaginar propriamente pode ser o modo de extrair prata e branquear o cérebro. 4) Um quarto modo de extrair a prata é extraí-la do complexo monetário.46 Desde os tempos romanos, a prata tem sido o metal do dinheiro, de forma que a própria palavra “prata”, argent em francês, significa genericamente dinheiro. O acasalamento alquímico curiosamente constante da prata com o ouro repete-se em hábitos monetários, pois o valor da prata está ligado intimamente com o do ouro. Durante os tempos clássicos (Péricles), a relação era de 10: 1; ainda hoje, embora a prata seja economicamente mais valiosa que o ouro, como uma commodity, ela é consumida mais rapidamente do que é produzida e é industrialmente mais necessária. À prata flutua mais em relação ao preço do ouro do que de acordo com seu próprio valor. A decadência do valor da prata em relação ao ouro durante o terceiro século foi considerada um sintoma, senão uma causa contributiva, do declínio de Roma. Bem no final do Império (397-422 A.D.), a razão entre eles caiu de 1:1 para 1:18 em apenas 25 anos. Mas o colapso total dos valores da prata aconteceu durante o apogeu do materialismo ocidental, entre 1870 e 1930, uma desvalorização da prata que não pode ser justificada completamente em termos das novas minas e dos novos métodos de extração. Extrair prata do complexo monetário é extraordinariamente difícil (como foi frequentemente discutido em seminários por ). Sempre que o valor da prata decai, mais 43 44 45 46 ‘ ’. HM, 2, p. 193. Lexicon, p. 40, v. ‘argentum’ Cirlot, J.E. . Nova York: Philosophical Library, 1971, p. 216. Mais sobre o ‘complexo monetário’, cf. Hillman, J. ‘ ’. Animal Presences, UE 9, p. 58-75. ‘ ’. City and Soul, UE 2, p. 355-366. 104 materialista parece ser a cultura na qual a prata é utilizada como dinheiro. À medida que os valores vão se tornando materializados, é necessário mais prata para garantir um valor. Quanto mais materialistas forem os valores de uma pessoa, menos prata filosófica será encontrada, ou seja, menos a pessoa será capaz de refletir sobre o dinheiro enquanto algo além “daquilo que ele pode comprar”. À medida que o dinheiro se torna apenas um item para troca, sem valor em si ou estímulo para reflexão, seu valor é inteiramente externo: o que você pode conseguir com ele. O principal valor do dinheiro será então materializar-se em outra coisa. A questão monetária - qual o valor intrínseco da moeda, o que o apoia - não é apenas uma questão monetária. É também filosófica na medida em que ela levanta a questão das relações e referentes internos e externos: as moedas referem-se apenas a seu valor de troca, ou carregam valores internos por e em si mesmas, como concretizações, lembrança das ideias de valor e de bem? Os psicoterapeutas em geral não encararam as questões mais profundas do dinheiro e assumiram a noção de troca sem perceber o que assim estão perpetuando na alma do paciente e na alma da comunidade. Quando um analista interpreta dinheiro num sonho como um equivalente de energia - muito dinheiro significa muita energia, e dinheiro nas mãos, energia disponível - a prata está sendo desvalorizada ainda mais. Pois essa perspectiva é puramente funcional e utilitária. O dinheiro em si não tem nenhum suporte, exceto como um registro de algo egocentricamente desejado: energia. Essa visão do dinheiro não propicia nenhuma reflexão psíquica, nenhuma prata pode ser extraída daí, e o sonho poderia perfeitamente ter sido com um carro, um cavalo ou um motor de popa como símbolos de energia equivalentes. Em vez de valor, o dinheiro passa a significar poder: o que você pode fazer com ele, comprar com ele; valioso somente ao ser colocado em uso, gastar e possuir, o que reforça ainda mais a inflação do indivíduo e da sociedade. Preciso insistir que os psicólogos profissionais, apesar de sua devoção ao Self, à alma e ao processo de individuação, reforçam o tipo mais crasso de materialismo quando apreendem do mundo diário e “apenas-natural” os significados que atribuem às imagens? A noção utilitária e materialista do dinheiro contrasta com a moeda de prata grega. A moeda foi inventada na Ásia Menor; foram os gregos que substituíram o dinheiro utilitário - torrões, barras e espetos de metal - pelas maravilhosamente trabalhadas moedas de prata mostrando as cabeças e os animais dos deuses e testemunhando o orgulho local. Uma barra de prata é como um dime47 contemporâneo nos Estados Unidos. Mas uma moeda grega de prata referese a um lugar específico, sua cultura e seu deus. As moedas gregas eram a um só tempo “um verdadeiro espelho da religião, da economia e da história gregas, assim como do amor grego pela beleza”,48 uma alegria estética, um padrão de valor, e um tributo aos deuses do lugar - tudo isso ao mesmo tempo. Nenhuma distinção aqui entre comércio e piedade, e a prata era a substância dessa valorização do comércio pelos deuses. O dinheiro perdeu há muito esse suporte da prata. Não é mais um instrumento de reflexão, mas, ao contrário, tornou-se o paradigma da antirreflexão. A desculpa definitiva que damos quando não queremos ir mais além ou mais profundamente em alguma coisa é que “custa muito”. Isto por si só paralisa a conversa e o pensamento. O que queremos dizer em última análise com a palavra “realista” é dinheiro. Realmente a realidade real passou a equacionar-se 47 48 Dime: moeda de prata de dez centavos; a décima parte de um dólar [N.T.] Lanckoronski, L. & Lanckoronska, M. Ernst Heimeran, 1958, p. 8-9. . Munique: 105 com dinheiro. O literalismo máximo é a falácia econômica, com o que quero dizer considerar o dinheiro como algo totalmente fora da psique. Extrair prata do dinheiro significa simplesmente lembrar o valor psíquico, o valor para a alma, nas questões do dinheiro. Uma discussão por dinheiro é uma briga da prata ansiedades com dinheiro à medida que ficamos velhos; brigas conjugais a respeito dos gastos do lar; heranças, seguros, indenizações; honorários analíticos - tudo isso pode se tornar um espelho valioso a refletir onde a alma está enrolada na matéria. Aqui nos é oferecida uma chance de caminharmos pelos níveis material e quantitativo em direção a um insight espelhado, podendo enxergar nossa face sombria e a face do deus específico que suporta a moeda em questão. A cada vez que tomamos o dinheiro em seus próprios termos ao darmos uma desculpa econômica - “Estou fazendo isto pelo dinheiro” - estamos de volta com Nero e Diocleciano, desvalorizando a prata, a traição do valor enquanto valor de troca somente. Não poderia haver nenhuma traição de Cristo pela prata se ela não tivesse sido rebaixada, desvalorizada. A alma é vendida não para o demônio por dinheiro, mas para o próprio dinheiro quando ele se torna a medida de valor em vez da afirmação do valor. 5) Comparável com o vermelho (ouro) e o branco (prata) da alquimia são as duas correntes que circulam pela fisiologia psíquica da kundalini yoga, o vermelho pingala e o branco ida. De acordo com o relato biográfico de Gopi Krishna,49 a experiência de ida leva a um branqueamento do mundo perceptivo e às sensações internas da prata percorrendo o corpo entregue à frieza. 50 Há uma conexão definida entre o canal ida lunar, a prata, a brancura e a frieza: a prata é “fria”, diz Figulus.51 Por que não extraí-la de nossas condições frias? Aqui são relevantes as antigas noções do submundo das trevas como um lugar de refrigeração, e os sentidos etimológicos de “psique” como fresco, resfriar, frio.52 “ ”, o ensaio de Plutarco, afirma que “a frieza é o que junta”,53 e porque a frieza expressa o elemento adstringente e o planeta Terra (assim como o calor expressa o Fogo e o Sol), é da natureza do frio enrijecer. Segundo Francis Bacon, a terra mais interna é fria, passiva e estática.54 A fantasia de Bacon é arquetípica (ou seja, tanto amplamente disseminada quanto válida): de que a profundeza fria das coisas é um lugar de morte, um submundo onde a existência da luz 49 50 51 52 53 54 Copi Krishna. Kundalini: The Evolutionary Energy in Man. Berkeley: Shambala, 1971, p. 66-67. 72-73, 136-148 [com uma ‘Introdução’ de F. Speigelberg e um comentário psicológico de J. Hillman]. Gopi Krishna descreve a experiencia ida nos seguintes termos: ‘o nervo lunar’, ‘corrente fria imaginária’, ‘um som como um filamento nervoso estalando e instantaneamente um traço prateado passou ziguezagueando pela espinha dorsal, exatamente como o movimento sinuoso de uma serpente branca’, ‘um esplendor brilhante e prateado’, ‘brilho prateado’, ‘brilho leitoso’, ‘neve recém-caída’. Esta passagem é especialmente relevante: ‘parecia como que se uma fina camada de uma poeira rala pousava entre mim e os objetos percebidos [...]. A poeira estava na tela consciente que refletia a imagem dos objetos. Parecia que os objetos vistos eram enxergados através de algo esbranquiçado, o que dava a impressão de que uma fina camada uniforme de giz havia sido derrubada sobre eles [...]. A camada estendia-se entre mim e o céu, os galhos e folhas das árvores, a grama verde, as casas, as ruas pavimentadas, as vestimentas e as faces dos homens, dando a tudo uma aparência branca de giz, precisamente como se o centro consciente em mim [...] estivesse então operando através de algo branco, um intermediário branco, que necessitasse de refinamento e clareza maiores [...]’ (Ibid, p. 140-141). Cf. o meu comentário, ibid. p. 156. Figulus, p. 304. Cf. Hillman, J. . Nova York: Harper & Row, 1979, p. 168-171. . Rees, G. ‘ ’. Ambix, 26, 1979, p. 202-211. 106 do sol e de calor reduz-se à essência psíquica, seres puramente imagens. Uma das conotações de ida é a “não existência”,55 e a transição para a prata, como no caso de , é uma experiência arrepiantemente mortal. Sonhos com neve poderiam ser colocados dentro desse contexto. Eles podem estar se referindo menos a sentimentos congelados e relacionamentos gelados, e mais à recém-caída neve da experiência ida, ou à aparição do enxofre branco e do mercúrio branco, o pó de giz com aparência de magnésia que começa a cobrir os objetos com um novo lustro, por um lado criando uma sensação do remoto e da irrealidade da vida comum do dia a dia e, por outro, congelando e firmando a realidade psíquica na terra branca. O fortalecimento da fantasia em obstinado fato psíquico requer resfriamento. A alquimia fala do congelamento como uma das grandes operações. A frieza aqui não é amarga, mas aliviante, como se a psique voltasse a si, perdendo um pouco de seus volteios aéreos, sua atração pelas chamas, suas ligações suculentas, tornando-se mais firme e sólida, alcançando seu tipo de terra ao tornar-se fria. A frieza então é um modo de aprofundamento pela adstringência, secando, dando uma base e enrijecendo a mente, solidificando a prata, desenvolvendo sua estabilidade e passividade de forma que ela pode melhor receber sua própria matéria no espelho frio da reflexão. Aquelas pessoas introvertidas, esquizoides e intuitivas (chamadas, nas descrições clínicas, de frias, distantes e apartadas) são as pessoas para as quais as formas e reflexões da mente carregam a maior convicção. Por que então não nos voltarmos para nossas condições mais frias a fim de extrair a prata? Estou pensando especificamente no ódio, que é um dado da realidade psíquica tão natural ao nosso submundo das trevas individual como era o frígido Rio Estige (e esse nome significa odioso, ódio) ao submundo mitológico e aos deuses.56 O palácio dessa deusa de ódio era sustentado por pilares de prata (Hesíodo, ), e jamais uma água foi mais fria. Talvez nossos ódios não sejam apenas pessoais, mas necessidades da prata, estabilizando a mente com princípios, dando suportes determinados para seu espelhar. Pois se no amor nada enxergamos, no ódio cada frase do outro salta aos olhos com detalhes cruéis. Talvez odiar pertença à fabricação da prata, e seja um requisito para a conjunção com o ouro, em que a visão da perfeição embeleza todas as coisas com um brilho dourado. Talvez a conjunção também signifique uma conjunção das sombras do ouro e da prata amor dourado temperado por um ódio que esfria o otimismo do coração com percepções adstringentes como um vidro prateado e frio dentro da mente. O trabalho com a prata pole o ódio. A natureza salgada pessoal do odiar e sua compulsão sulfúrica tornam-se “translúcidas”, de forma que o objeto pessoal do ódio e os sentimentos pessoais resolvem sua estreiteza de foco na face de uma imagem, como uma amedrontadora máscara japonesa, tibetana ou grega. Enrijecer a mente, não o coração, pois a coragem e a fé que o ouro traz ganha um valor verdadeiro somente quando estão casados com essas profundezas frias de insight terreno que o ódio tão bem provê. 6) A prata também pode ser obtida do lado oculto da lua, a face da psique que está voltada para longe da vida na terra em direção aos confins longínquos das influências planetárias. Estou agora falando de um aspecto da Luna que se vira de costas para a terra e que não participa das atividades do dia. Ainda assim esse lugar é tradicionalmente habitado por almas penadas e almas mortas, daimones, vultos e fantasmas cuja presença é sentida quando nossa consciência está como a prata 55 56 Krishna. Kundalini, p. 157. - Bharati, A. Cf. Hillman, J. . Londres: Rider and Company, 1965, p. 173-177. . Op. cit., p. 57-59. 107 pretejada, uma escuridão dada primordialmente e não meramente enegrecida pela exposição aos eventos. Sentimos essa prata pretejada como premonições e presságios, humores venenosos e fantasias lunáticas que baixam em nós, como se baixassem da lua, sem relação com o mundo do dia. Há prata nessas condições abstraídas, fantasmagóricas, apartadas, espectrais e readquirimos nosso metal reflexivo ao escavarmos nossas assombrações e pressentimentos supersticiosos em busca de imagens psíquicas e pepitas de ideias. Segundo o ensaio de Plutarco sobre a face na esfera da lua, nossa personalidade composta corpo, alma, espírito – sofre pelo menos duas mortes ou separações.57 A primeira, que Plutarco chama de a morte de Deméter, ocorre na terra e separa alma e espírito do corpo, rápida e violentamente: morte natural. A segunda morte acontece na lua. Essa morte pertence a Perséfone. Ela separa a mente (nous) da alma, delicada e vagarosamente, resultando em almas sem mente e mentes sem alma. Essas almas na lua tornam-se, por assim dizer, fantasias livres flutuantes, desincorporadas e insensatas, totalmente imagens ou eidola (945a). São conduzidas pelo “elemento afetivo destruído pelo delírio” (945b). Entretanto, essas almas lunáticas alienadas podem ser ordenadas pela lua, diz Plutarco, se permanecerem lá naquele lugar e naquela condição, pois em tempo receberão nova luz, podendo retornar às atividades terrenas e corpos humanos numa condição sã. A mitologia de Plutarco sobre a vida após a morte é também uma psicologia da loucura, pois descreve a condição de almas desencarnadas e insensatas sob a influência de “Perséfone contraterrestre” (944c), esperando seu retorno à luz. Essas são as almas que “piraram” ou que “perderam sua cabeça” - ou que a cabeça as perdeu – que separamos alojando-as em asilos para lunáticos, um lugar à parte, como o lado oculto da lua, onde os deuses dominantes do lugar realmente parecem ser Hécate, Lilith e Perséfone. No manicômio, a morte de Perséfone, separando mente de alma, ocorre antes da morte de Deméter. Pode-se esperar suicídio num manicômio. Segundo Plutarco, as almas nessa condição de prata empretejada (como a estou chamando), imagens sem reflexo de si mesmas como imagens - totalmente no escuro e ainda assim psíquicas - não podem esperar pacientemente em sua loucura. Levadas por uma crença delirante nos afetos (944/), elas desejam entrar muito rapidamente em corpos, dando lugar a várias condições monstruosas como Títio e Tifão, sempre confundindo o oráculo de Delfo (945d), ou seja, confundindo a habilidade das imagens de lançar para frente sua inerente inteligência como insights providenciais, estabelecendo limites, medidas e padrões para o comportamento humano. Evidentemente para Plutarco a incorporação de uma fantasia (eidolon) de uma maneira insensata leva a uma incorporação precipitada (“actingout”), uma entrada direta da alma no mundo sem ter sido ordenada pela lua. A prolongada familiaridade com a escuridão lunar, ou prata pretejada, permite a incorporação correta que não pode acontecer até que a alma sucumba inteiramente à Luna. Sucumbir a seu lado escuro abre-nos às luzes mais pálidas das influências planetárias, os múltiplos raios demasiado tênues para serem notados na luz monocular do sol. Então a alma pode entrar no mundo consciente de si mesma enquanto imagem. É essa prata do imaginal que sustenta o espelho reflexivo através do qual nos reconhecemos como imagens. Retornamos ao mundo com os eidola do imaginal, que se tornou real somente quando estávamos na lua, delirantes, iludidos, demoníacos, sem acesso a Deméter. 57 Plutarco. ‘ ’. [s.n.t.], 943a até o final. 108 Especulo (a prata também é trabalhada na especulação: speculum = espelho; species = semelhança, aparição, imagem, moeda) que é precisamente essa prata do lado remoto da lua que provê o suporte para a mente de forma que ela possa reconhecer nas questões terrenas as influências planetárias, a presença dos deuses que dão ao mundo sua inerente inteligibilidade. Na lua, na loucura, a alma “ganha tensão e força, assim como instrumentos cortantes ganham seu corte e, qualquer imprecisão e difusibilidade que ainda tenham, são fortalecidos e tornam-se firmes e translúcidos” (943d). Sem a prata suficiente acreditamos erroneamente que os afetos são mais reais e confiáveis que as imagens. É necessário uma estadia com Perséfone para enrijecer a flacidez da sentimentalidade da alma, para amolar o fio da faca da mente. E sem prata suficiente erroneamente acreditamos - porque não ousamos especular, porque desvalorizamos a prata, porque não queremos ser frios, porque tememos o corpo aéreo - que as imagens são dadas pelos objetos imaginados; enquanto elas aparecem somente num vidro prateado, para nós, refletindo a nós mesmos como imagens. Para a fotografia, a prata é o metal essencial para fixar a luz de forma a tirar uma foto. Para a psicologia, sem prata, sem imagem; sem imagem, sem reflexão. 7) O último lugar para a extração da prata é ainda mais complexo e sutil do que nossa decocção do dinheiro ou da lua. Esse lugar tem a ver com som. O dicionário de alquimia de Ruland de 1612 diz que a prata é particularmente ressonante: ela ressoa, ressona, re-soa. Estamos agora nos movendo das formas prateadas da fantasia em direção a seus sons prateados - formas como sons. Por exemplo, o modo de construção dos mais antigos instrumentos musicais, assim como as formas das letras hebraicas e árabes, foi supostamente derivado das variadas formas da lua.58 Os padrões de nossa fala e as estruturas de tons musicais são assim legendariamente atribuídos à lua. A prata também se conecta com eloquência no simbolismo cristão, especialmente a eloquência dos evangelistas que realizam o que está dito no : “As palavras do Senhor são palavras puras, como prata refinada [...]”. Pr 10,20: “Prata escolhida é língua do justo [...]”. Ainda é um clichê falar de sopranos de voz prateada e de oradores com língua de prata. , o mais renomado orador da história americana, fez seu mais renomado discurso em defesa da prata. Na peça de Shakespeare sobre os dois lunáticos e aluados amantes, Romeu diz (na cena do balcão do Ato II): “Que doce som de prata faz a língua/dos amantes à noite, tal qual música/ langorosa que ouvido atento escuta”. No Ato V, quando entram os músicos desfilando sua inteligência, a resposta do Primeiro Músico à pergunta, “Por que música de notas argentinas?” tem duplo sentido, pois “a prata tem um som doce” e “os músicos tocam por prata” - novamente nosso tema da prata e do dinheiro. Quero me dirigir aqui à garganta e, para tanto, evoco uma espantosa passagem de William Faulkner que conecta lua, prata, dinheiro, negror e garganta. Em [Desça, Moisés/, a história “ ” [“Pantalão Negro”] dá ao “luar” um novo significado, pois já não é simplesmente aquela bebida sem cor feita secretamente pela luz da lua; é uma prata líquida fria que o negro maluco da história derrama em sua garganta repetidamente enquanto caminha em direção a um desfecho lunático de assassinato por causa de um bocado de dinheiro. A cena se passa sob o luar, a personagem movimenta-se pelo ar prateado quase sólido, com sua garganta solidamente cheia do prateado, cintilante, arrepiante, gélido ar líquido da bebida. A curiosa ênfase que Faulkner coloca na solidez desse espírito, a substancialidade do ar na garganta que produz a loucura aparece num outro contexto radicalmente diferente: o chakra vishudda da . Esse é um dos sete centros do corpo sutil ou imaginal. Vishudda está 58 Cirlot. 109 na garganta; é representado por um elefante branco; seu elemento é o éter e se refere à palavra, à voz na fala e na música.59 Aqui o ar torna-se essência (éter); ganha peso e as palavras podem sustentar exércitos. Encontramos aqui a solidez resistente da mente, onde o que dizemos e cantamos tem a densidade e a durabilidade de um elefante. Jung fala a respeito do chakra vishudda: “O poder do elefante é emprestado às realidades psíquicas”.60 “Os fatos psíquicos são a realidade em vishudda”.61 Somente em vishudda “confiamos na certeza da realidade psíquica”.62 Palavras, conceitos, ideias, o logos interior que fala conosco em nossos grunhidos e zunidos semiconscientes, as vozes do espírito, os esboços da mente ao alcançarem lá embaixo o coração e lá em cima a testa - tudo isso no centro da garganta torna-se extrema e maciçamente real, ainda que branco, sem nuanças ou matizes. Nada é tão pesado ou pesa mais do que aquilo que soa de nós, assim como o tom e a intensidade de nossa voz real - um som áspero e irritante, uma voz embargada, um tom monótono anasalado - revelam a forma de nossa alma. Se a prata pode ser extraída da garganta, temos também que aprender a escutar com a prata, branquejar nossos ouvidos de forma a sintonizarmos com as ressonâncias. Essa é a arte de ouvir musicalmente, deixar a palavra ressoar, assim como o Segundo Músico brinca com o som de prata da música do Primeiro Músico, duplicando o sentido, apanhando uma inflexão adicional nas palavras. Extrair a prata de nossas próprias sílabas: Silben como silbern. Afinal, o que é a psicoterapia senão a arte da escuta, e da fala? Parece que estamos abrindo uma psicologia do vishudda, e não somente uma psicologia originada no muladhara (sexo, família, sociedade), svadhisthana (a batalha heroica com o dragão das águas inconscientes), manipura (fúrias e energias, as gestalts mais profundas da emoção pessoal), ou anahata (sentimentos). Como parte de seu empreendimento politeísta, a psicologia arquetípica senta-se no lombo de vários animais, tinge suas abstrações com cores diferentes e trabalha nas minas de vários metais, não apenas o chumbo depressivo de Saturno e o mercúrio de Hermes. Imaginem! As palavras não somente como anjos com suas trombetas de prata, mas descendentes do mamute; palavras como presas de elefante, abrindo seu caminho em nossa mente, desgrenhadas, erguendo-se acima de nossas ações frenéticas, bem perto da jugular. A prata através da qual ouvimos a sonoridade nas palavras implica que elas são universos em si mesmas e não necessitam de referências para serem autenticadas. As palavras ressoam suas próprias profundidades de reflexão - alusões, aliterações, etimologias, trocadilhos, os disfarces da retórica. Essas ressonâncias nas palavras são cantares de anjos até então sufocados pelas regras de ouro da lógica, das referências objetivas e definições. Estamos no reino das vozes, na demência: a mente ressoando a si mesma, ressoando suas profundezas, escutando sua natureza essencial como um coro de vozes, de vozes discordantes, antifônicas, sensíveis - as almas mortas falando em nós, fantasmas pendurados balançando na árvore genealógica, os ainda não nascidos agrupados na lua, todos ressoando, falando com nossas vozes e escutando as deles, alucinatórios. Esses fantasmas, e suas vozes, são o modo de mentalização da prata; a mente que espelha a mente. A prata nos dá pausa, aquela nobreza específica da mente da qual Hamlet fala em seu 59 60 61 62 O navio veloz e prateado dos Argonautas ‘tinha, nos relatos mais antigos, o dom da fala’ (Kerényi, K. . Londres: Thames and Hudson, 1959, p. 252). KY, p. 56. Ibid KY, p. 46. 110 exemplar solilóquio reflexivo ( ). “O tom nativo da resolução” (ouro sozinho?) que leva a “aventuras de grande vigor e força” são “ceifados pela sombra pálida do pensamento” e “perdem o nome da ação”. Esta hesitação de anima traz imediatamente sua personificação, Ofélia, ao palco. A trágica disjunção entre eles demonstra a impossível coniunctio (“não mais casamentos”) de dois lunáticos, de duas loucuras, cada uma distanciando-se da outra, voltando-se para outro caminho. Alucinatório, lunático, demente: “Pois vishudda significa exatamente aquilo que eu disse: um reconhecimento total das essências ou substâncias psíquicas como essências fundamentais do mundo, e não por causa de especulação, mas por causa dos fatos, como experiência”.63 Essas “essências psíquicas”, que são os fundamentos do mundo, tornam-se experiências quando a mente está prateada, e as imagens vividamente gravadas. Da perspectiva de outros centros e outros deuses tais experiências serão chamadas de lunáticas. Para recuperar a prata, quero dizer, estar convencido do valor da reflexão, do sentido da beleza psíquica, da clareza, em resumo, estar com a mente sã ou sadia, devemos ouvir todas as coisas reverberarem como palavras e expulsar de todas as palavras sua escuridão exterior (aquela escuridão que vem de sua referência a um corpo externo, um movimento que desincorpora a palavra de sua própria substancialidade, seu corpo de ar, sua voz nativa). Ao escutarmos as próprias palavras, permitimos que elas soem cada vez mais claramente, como se o ouvido alvejado pudesse ativamente livrar a fala de seus literalismos. Esse é um ouvido para a retórica, para o ritmo, o som, a respiração e para o silêncio; um ouvido que evoca as essências psíquicas, um chamado do elefante, suas trombetas, de forma que tudo lido ou dito importa para a alma, pois traz consigo matéria psíquica. Para remodelarmos com graça nossa linguagem psicológica, nossos livros, palestras e horas de análise teríamos que calcinar e lustrar nossos ouvidos. Escutar as palavras: elas brilham em sua própria prata. Em última análise, o espelho é mais sólido e real do que o mundo que ele supostamente reflete, a imagem mais brilhante que o objeto, todas as coisas ressoando. “O próprio mundo torna-se um reflexo da psique”.64 “Ele [o elefante] está corroborando essa coisa que julgamos ser a mais aérea, a mais irreal e a mais volátil, ou seja, o pensamento humano. É como se o elefante estivesse então fazendo dos conceitos uma realidade”.65 No caminho para o vishuddha “deveríamos até mesmo admitir que todos os nossos fatos psíquicos nada têm a ver com fatos materiais. Por exemplo, a raiva que você sente por alguém ou por alguma coisa, não importando o quanto ela esteja justificada, não é causada por essas coisas externas. Ela é um fenômeno em si mesma”.66 Essas fases lunáticas são minas de prata. Quando adentramos a mina, cai sobre nós a maldição de ficarmos lunáticos. Jung fala da experiência do vishudda como “um tipo muito perigoso de aventura”.67 Esses lugares, ou fases, não requerem a extração no calor da paixão, ou com o sentimento do coração. Eles são fornalhas sem calor e martelo, onde a prata se separa 63 . O uso de Jung no plural (‘essências ou substâncias’) é comparável à pomba prateada ‘como uma imagem de pluralidade’ análoga ao simbolismo tradicional da Igreja onde a imagem da pomba apresenta a ‘multidão dos virtuosos’ ( . Princeton; Princeton University Press, 1966, p. 238-239). Evidentemente, a na alquimia e a nas descrições de Jung resistem a unificações, até mesmo definições. Cf. Hillman, J. . Op. cit. 64 65 66 67 KY, p. 55. KY, p. 49. KY, p. 50. 111 do minério e escorre cristalina como um espelho, alvejando toda a terra. Nem holocausto, nem filigranas da fantasia, nem depressão; a prata extraída apenas do chumbo; agora simplesmente o estalar do metal frio que ressoa um evento de volta com outra ressonância, estranhamente paranoide ou despersonalizado. Subitamente metafórico. “Aquilo que realmente importa numa metáfora é a profundidade psíquica na qual as coisas do mundo, quer sejam reais ou imaginadas, são transmutadas pelo calor gelado da imaginação. O processo de transmutação envolvido pode ser descrito como um movimento semântico”.68 Os significados mudam; as palavras transformam-se em coisas, as coisas em palavras. Os críticos literários falam de voz, de implicações, de sugestões, de teor (e o termo técnico para elefante no vishudda chakra é “veículo”).69 Estamos na garganta da metáfora - não meramente metáfora como uma figura de linguagem e um problema semântico, mas como uma visão ontológica com uma base psíquica no corpo sutil da consciência vishudda e uma base alquímica na prata. “A metáfora é o trabalho de sonho (dreamwork) da linguagem”, assim começa o ensaio de ;70 e Nelson Goodman71 termina o seu assim: “Na metáfora os símbolos enluaram”. As metáforas são linguagem psicológica - e toda a alquimia é metafórica, a luna metaphorica de que falou Benedictus Figulus - tornando sutil tudo aquilo que alguma vez julgamos ser apenas fato empírico, quer sejam eventos no mundo, nossa própria carne, ou até mesmo os minerais elementares na terra. A alquimia transmuta o mundo para o sonho, o que ela faz no laboratório de sua linguagem.72 Por isso a prata é tão essencial a esse trabalho, e tão secreta, e aqui começam as reclamações. A prata está escondida porque está enterrada ao longo de toda a obra alquímica, dentro de cada palavra, como a ressonância metafórica que transfere tudo o que é dito ou feito para um nível psíquico. A prata é necessária desde o princípio, ou então não conseguimos ouvir corretamente as instruções. “Jogue fora os livros”, dizem os alquimistas, querendo dizer “descartem o literal”, de forma a ouvir o espírito na letra. Entretanto, se a prata é o mineral que dá a base para uma consciência metafórica, então uma psicologia que se firme, como faz a alquimia, numa ontologia metafórica - tudo está em movimento semântico - terá que comportar a patologia da loucura. Ouvir o mundo falar, considerar que as emoções não são “nossas”, permanecer no lado escuro da lua e transmutar a matéria em sonho - e especialmente aquele movimento semântico rumo ao significado acasalado sempre com frieza e dureza - convidam despersonalização e paranoia. Essas patologias poderiam nos levar a imaginar que a prata é pura reflexão, suprema subjetividade. Mas, num universo alquímico, os metais estão nas coisas assim como em nós mesmos, de forma que as coisas refletem e ressoam com subjetividade tanto quanto nós que somos corpos minerais, mesmo enquanto o mundo “objetivo” respira e deseja. A palavra “subjetividade” não se aplica, pois o que é subjetividade sem um sujeito? Numa psicologia do vishudda que fala a partir da garganta há somente essências psíquicas, ressonâncias que não pertencem a ninguém ou que pertencem ao minério da prata. 68 Wheelwright, P. Metaphor and Reality, Bloomington: Indiana University Press, 1962, p. 71. , cf. Richards, I.A. . Oxford University Press, 1936, p. 100. 70 ‘ ’. In: Sacks, S. (org.). On Metaphor. [s.1.]: University of Chicago Press, 1979, p. 29. 71 ‘ ’. In: Sacks, S. (org.). On Metaphor. [s.l.]: University of Chicago Press, 1979, p. 175. 72 Cf. o ensaio de Randolph Severson que revê Freud como alquimista (‘ ’. Dragonflies: Studies in Imaginal Psychology, vol. 1, n. 2, 1979), que conclui com a seguinte frase: ‘A matéria é transformada em imaginação’. 69 112 Então o que é a reflexão quando não há nenhum sujeito refletido, nem emoção, nem objeto externo, nenhum fato? A própria ideia de reflexão transmuta-se de testemunha de um fenômeno, um espelhar de algo outro, para uma ressonância do próprio fenômeno, uma metáfora sem um referente ou, melhor dizendo, uma imagem. E essas imagens ou corpos sutis não refletem uma luz emprestada, posterior, mais fraca. A prata não vem depois do ouro, mas, ao contrário, precede-o. De forma que as imagens têm sua própria dureza, seu brilho e soada inatos. Elas não são reflexos do mundo mas são a luz através da qual vemos o mundo. A psique vem para cada momento do mundo a partir da lua - não apenas uma vez no nascimento, numa mitologia da criação, mas no nascimento a cada dia, agora mesmo. Essa luz, através da qual o mundo reflete-se em nós, é a luz da prata, escondida como a lua à luz do sol; escondida, pois é branca e rápida, embora a cada momento esteja dando o valor diferenciado de alma a cada coisa específica que a luz do sol mostra como a mesma, pois o sol brilha magnânimo sobre todas as coisas por igual; essa é a luz da prata que a obra alquímica luta por reconstituir e refinar. Terra alba, o branqueamento e a anima Albedo é um outro termo alquímico para Luna e para prata. No simbolismo alquímico das cores o branco é o principal estágio entre o preto e o vermelho, uma transição da alma entre o desespero e a paixão, entre o vazio e a completude, o abandono e o reino. Albedo é também a primeira meta da obra, que vem depois que a nigredo dividiu o mundo entre mente e matéria, e antes que a rubedo restitua o corpo sutil a seu mantenedor carnal. Por causa dos alertas alquímicos sobre o “enrubescimento que vem depressa demais” e sobre os corvos pretos arrastando-se de volta ao ninho, a albatio ou “branqueamento” é essencial, por um lado para retardar o enrubescimento e, por outro, para retirar o negror (nigredo) de sua inércia. Como um estado intermediário, a albedo é chamada de noiva, Maria (como intercessora), lua, amanhecer e pomba. Como um estado intermediário está intimamente ligada àquilo que ela junta, mas, ainda assim, mantém-se distinta. Portanto, ela corresponde àquele reino do meio e àquela atitude mediadora à qual nos referimos como “realidade psíquica”,73 de forma que as descrições da albedo e da terra branca nos ensinam algo sobre a natureza da realidade psíquica e as operações da albatio nos ensinam como a realidade se torna psíquica e a psique se torna real. Mas muito cuidado aqui! Há pelo menos dois tipos de branco: “condições que amiúde iguais parecem/embora difiram por completo” [“conditions which often look alikelyet differ completely”], como diz T.S. Eliot em “ ”. Há, como mencionado acima, um branco original, a Luna primária ou leite da virgem, virgem pura, fumaça, nuvem, o carneiro, cuspe da lua, urina do bezerro branco, verão, umidades brancas, barrela, xarope - todos nomes para o material primário,74 todos nomes para aquelas primeiras e repetitivas misérias da alma: as nostalgias xaropentas e beijos superávidos, amor de carneirinho, a boca de desejos salivantes (a fase oral de Freud), os dias sob as nuvens, o verão, o remorso da consciência introspectiva, a fumaça que não vira fogo e nem se dissipa e, sobretudo, aquela inocência psíquica do eu, do mundo e dos outros que a psicologia renomeou de “inconsciente”. Esse branco primário é pré-preto. Aparece em figuras de linguagem, em comportamentos e em sonhos, quer aqueles feitos à noite ou os feitos por publicitários: o sorriso branco do creme dental, os removedores de manchas, os 73 74 Lexicon, v. ‘ ’. 113 milkshakes e os sorvetes, calças de flanela branca, estações de esqui, consciência-de-aspirina, “jes’ fine, jes’ fine”. O branco primário é imaculado (sem manchas ou marcas), inocente (sem mágoas, inofensivo), ignorante (que não sabe, desatento), ilibado, puro e limpo. Essa condição não pode ser a terra alba porque não há terra para ser branqueada. Então o trabalho começa com essas condições brancas originais, enegrecendo-as ao chamuscá-las, feri-las, amaldiçoá-las, apodrecendo a inocência da alma, corrompendo-a e deprimindo-a na nigredo que reconhecemos por seu fedor, seu impulso cego e pelo desespero de uma mente desperdiçando-se na matéria, perdida em suas matérias e questões introspectivas, suas justificativas materialistas para o que deu errado. Nosso branco, o segundo branco ou albedo, emerge desse preto, uma terra branca que vem de uma terra chamuscada, como a prata vem do fogo da floresta. Há uma recuperação da inocência, embora não em sua forma prístina. Aqui inocência não é a mera ou pura inexperiência, mas, ao contrário, aquela condição em que não estamos identificados com a experiência. A virgindade retorna como impessoalidade. Ou, digamos, a memória retorna como imagem, aquela noite junto ao álbum de fotografias e você não é a pessoa lá nas fotos e talvez nem mesmo a pessoa que vira as páginas. Experiência e experimentador não mais importam uma vez que “as imagens que ainda assim/ imagens frescas produzem” libertam-nos da nigredo da identidade pessoal para os espelhos das reflexões impessoais. Essa segunda brancura também não é mera ignorância, uma negligente despreocupação com o mundo e seus caminhos. Em vez disso, aquela casualidade com o mundo e seus caminhos que resulta das realidades psíquicas terem precedência sobre uma percepção mais terrena que busca resolver as dificuldades psíquicas ou fora do mundo ou dentro do mundo. A albedo não prefere nem introversão nem extroversão, uma vez que as diferenças entre alma e coisa não mais importam, ou seja, não são mais imaginadas nos termos materiais da nigredo. Esses dois brancos combinam-se na anima, e esta é uma das razões pelas quais a anima é uma questão psicológica tão complexa. Ela é a Deusa Branca75 e também Cândida/candida, a pequena inocente. Os dois brancos fazem sombra um para o outro, de forma que latente na inocência branca e em sua estupidez sedutora está o anseio de Cândida pela mente branca, enquanto sombrear a sofisticada Deusa Branca significa tanto a nifablepsia76 da pureza quanto a cegueira da imaginação lunática, estar “pirado”, que nos ilude repetidamente para aquela descuidada ignorância que era o material primário. Por causa dessas sombras brancas devemos nos esforçar nesta seção para diferenciar o branco sofisticado de sua queda na condição primária. As transições de cor em nossos humores, preferências e figuras oníricas refletem alterações no material da alma. Na medida em que a psicologia alquímica equacionou mudança de cor com mudança de substância, a albedo não é somente um estado intermediário, mas uma condição em si. Entretanto é difícil falar a partir dessa condição: ou se tem a tendência de senti-la como uma melhora, como saindo da escuridão, congratulando a brancura no simbolismo cristão do batismo e da ressurreição, ou se tem a tendência de senti-la como um 75 Para uma esplêndida fenomenologia, cf. GRAVES, R. Farrar, Straus and Giroux, 2000. 76 Cegueria temporária em consequência do reflexo da luz solar na neve [N.T.]. . Nova York: 114 “ainda-não”, um potencial silencioso (Kandinsky),77 uma ausência, algo que ainda tem que se tornar da cor do próprio fogo (Corbin).78 Tentaremos, contudo, estar num campo intermediário falando do branco como se estivéssemos pisando sua terra. Em muitos contextos psicológicos, quando a palavra terra aparece, ela nos leva para baixo: rituais da terra e vasos de barro, mãe terra e ciências da terra, gravidade e o grave. A psicologia assume que a terra é material. Patricia Berry79 escreveu sobre Geia, Deméter e a mãe arquetípica, comentando que “terra” é aquele mecanismo projetivo através do qual nos descarregamos da matéria, um depósito elemental para o complexo materno moderno. Imaginamos a terra somente com uma imaginação material, aquela falácia naturalista que identifica o elemento Terra com terra natural e solo: para sermos terrenos, devemos ser sujos e ser do solo. A psicologia insiste que a Terra é nosso corpo vermelho, mãe marrom, madona negra. Abra o e lá, em meio aos concretismos de lençóis rochosos, cordilheiras, ervas e canoas, você buscará em vão os caminhos materiais da mente e as qualidades do solo psicológico, as paisagens interiores, as áridas planícies, os pântanos lamacentos, as moitas secretas onde se entrelaçam os amantes verdes, e também as falhas geológicas e ilhas, continentes inteiros da mente, uma geografia imaginal cujo catálogo cobre toda a terra, pois Geia é também uma região da alma - terra branca. Embora a terra moderna naturalista da psicologia seja um elemento de sustentação, ela sustenta principalmente fantasias espirituais heroicas. Até Bachelard mistura terra não apenas com repouso sustentado, mas também com as fantasias da vontade (forjar, cortar, conquistar, trabalhar, ação)80. A silenciosa e indolente materialização da terra, assim como a fantasia que ela precisa de ataque (escavar, arar, remover), insulta Geia, como diz Berry, enterra-a em nossa sujeira, força-a a carregar nossa concretrude deslocada, privando-a de seu próprio céu interno, Urano, suas próprias possibilidades luminosas e celestiais. Como uma deusa, a Terra é também invisível. Ela gera imaterialmente, de forma não natural. Talvez ela sustente mais onde está mais invisível, nos territórios psíquicos do repouso, como o vazio do vaso que é o vaso, ou ainda como a pausa dentro de todos os ritmos, o vazio do tambor,81 fazendo sua vontade com as formas intangíveis das coisas dentro de sua matéria visível. 77 ‘Branco é o símbolo de um mundo muito acima de nós, de silêncio - não um silêncio morto, mas um silêncio pleno de potencialidades.’ ‘É um vazio que enfatiza os começos, algo ainda não nascido’ (Grohmann, W. . Nova York: Harry N. Abrahams, 1958, p. 88). 78 ‘ ’. In: Ottmann, K. (org.). . Putnam, Conn.: Spring Publications, 2005, p. 45-108. Deliberadamente evitei quaisquer discussões alquímicas sobre a neste ensaio, pois isto requereria uma mudança total de perspectiva, de retórica e de imagens. 79 ‘ ’. In: Berry, P. . Putnam, Conn.: Spring Publications, 2008, p. 9-22. 80 Bachelard, G . Dalas: The Dallas Institute Publications, 2002) [Em português: A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes, 1990]. 81 Cf. Miller, D. ‘ ’. In: Hillman, J. (org.). . Dallas: Spring Publications, 1980, p. 92-94 {Em português: Encarando os deuses. São Paulo: 115 As noções grosseiras de terra na psicologia contemporânea revelam seu materialismo; essa psicologia é tão heroica e espiritualizada que a mãe tem que carregar suas bases. Não é de se estranhar que a psicologia moderna não possa abandonar sua filosofia do desenvolvimento, seu concretismo de laboratório e confiança nas medidas, suas explicações redutivas. Ela não encontrou uma outra terra que desse suporte e ainda assim não fosse materialista. Essa outra terra é descrita por Henri Corbin em seu livro . Há uma Terra maravilhosa, um lugar imaginal (ou uma localização no imaginal) cujo “solo é uma pura e muito branca farinha de trigo”.82 Ela tem uma física, uma geografia, climas e fertilidades. Essa também é uma base, a terra que nossas cabeças tocam da mesma forma que nossos pês tocam esta terra aqui. Nossas cabeças estão sempre buscando lá no alto a terra celestial. E o problema das viagens da cabeça não é que sejam viagens ou que sejam cerebrais, mas que elas não têm chão, base. A fim de aterrar esses voos da fantasia e excursões ideativas, a psicologia manda a cabeça para baixo de volta à terra material, insistindo que ela curve-se à madona negra da existência concreta tangível. A psicologia não consegue perceber que as viagens siderais da cabeça estão à procura de um outro chão lá longe, numa tentativa de atingir a atópica, distante e deslocada terra alba da inspiração anímica. É como se a psicologia não tivesse nem mesmo lido a primeira página da Bíblia, que nos relembra de dois firmamentos, acima e abaixo. O trabalho de Corbin abre uma perspectiva radicalmente diferente com respeito à terra e ao chão: o firmamento acima é um chão arquetípico e angelical da mente. A mente descende de configurações arquetípicas; ela está originalmente em conversa com os anjos e tem essa originalidade angelical possível sempre, de forma que todos os eventos terrestres e materiais podem ser restituídos por um ato de ta’wil (retorno) a seu chão original na terra branca. Se nos aterrarmos no firmamento de cima então tudo fica virado de ponta cabeça, e é precisamente ao virarmos tudo ao contrário (enxergar através, metaforizar, ta’wil) que a matéria grosseira se torna sutil. Para se fazer a terra alba precisamos começar na terra alba. A consciência da anima, consciência anímica, ou a albedo na alquimia, oferece um modo diferente de percepção. Ver, ouvir, atender, tudo muda, das ligações grosseiras da nigredo em direção a uma nova transparência e ressonância. As coisas brilham e falam. Elas são imagens, corpos de sutileza. Elas se direcionam à alma ao exibirem suas almas. Aquilo que aqui está apresentado na linguagem sutil de Corbin e da alquimia pode também ser afirmado na linguagem grosseira de nossa psicologia comum. A fase chamada de branqueamento na alquimia refere-se à emergência da consciência psicológica, da habilidade de escutar psicologicamente e perceber a fantasia criando a realidade ( ). Enquanto a psique estiver lutando com a nigredo, ela estará emocionalmente presa, imersa em materializações, fascinada pelos fatos, oprimida. E sentirá o “material” psíquico principalmente como denso e difícil: ela tem sonhos tão longos; fico confuso ao escutá-lo; esse é um caso difícil; as horas de análise me exaurem, me drenam, me deprimem – um longo mortificatio. A gnosis da nigredo é principalmente diagnóstica e prognóstica. Seu olhar está na materialização das predições, fascinada pelas várias formas de putrefactio que a psicologia clínica chama de “diagnósticos”. (O manual diagnóstico DSM é um catálogo da materia prima entrando em estados de nigredo, como uma das listas de Ruland.) O olho da nigredo procura 82 Cultrix/Pensamento, 1992], sobre o tambor e a magna mater que pode ser tanto quanto . Sobre os ritmos da alquimia, cf. Bachelard. . Op. cit., p. 195. . Princeton: Princeton University Press, 1989, p. 156. 116 pelo que está errado, o caput corvi (cabeça do corvo) dos presságios e profecias. Está preso em questões físicas, quer seja na etiologia (é um problema orgânico, neurológico?), na transferência (tocar ou não tocar?), ou no tratamento (pílulas, trabalho corporal, ou talvez dança-terapia?). Tudo o que é grosseiro lança um manto de fisicalidade sobre o corpo sutil do paciente. O aterramento da mente na terra branca é o que chamei em outros ensaios de a “base poética da mente”; consciência – não o produto da matéria cerebral (hemisfério direito ou esquerdo, pois isto ainda é matéria), da sociedade, da sintaxe ou da evolução - mas um reflexo de imagens, um processo contínuo de poiesis, a geração espontânea de fantasias com forma. Portanto, para a mais profunda compreensão da mente somos obrigados a nos voltar para a poesia. Devemos ir até o povo da lua, os poetas lunáticos que dizem, como o palhaço poético no filme de Marcel Carné, ” [A lua, meu país]. A poesia nos dá nacos de terra branca, pedras lunares que, quando apoderadas pela missão apolônica, mostram-se mortas e sem valor. (Imaginem que o maior feito da busca heroica de nossa era foi capturar e trazer para casa, para a terra real, uma lembrança tangível da lua física! A insanidade do literalismo.) Mas quando pedras lunares são revolvidas em mãos imaginativas emergem ideias, canções, sonhos, danças - essências da mente. Pois essas minas na lua, esses materiais mitopoiéticos, são as sementes primordiais nas quais origina-se a vida da alma. A psicologia platônica diz que as almas originam-se na lua, o que significa exatamente que a vida psicológica começa nos lugares de nossa loucura, onde somos lunáticos. É claro que Hegel insistia que a loucura era necessária para o desenvolvimento da alma. O solo lunar e, portanto, a prata, a brancura e a anima, ganham um lugar favorecido numa psicologia que começa numa base poética da mente, ou seja, numa psicologia imaginal ou arquetípica. A tradição dessa psicologia, tais como os companheiros medievais e renascentistas da alquimia como o Picatrix ou o de Marsilio Ficino, “começa na lua”. A lua, diz Ficino, governa o primeiro ano de vida e todo o ciclo de sete anos daí para frente; a lua é primus inter pares, primeiro entre iguais. Segundo o Picatrix todas as preces aos planetas e todas as influências que deles vêm passam pelo caminho da lua. A lua é uma intercessora, o lugar de aterrissagem entre o espaço sideral dos espíritos e a realidade mundana da perspectiva natural. Aquilo que passa pelo caminho da lua torna-se lunático, ou seja, entra na realidade imaginal. A nossa prece direta a eles e a mensagem planetária literal deles para nós tornamse imagens de fantasia, metafóricas. O sentido disso é o seguinte: que todos os acontecimentos precisam primeiro ser imaginados; que eles começam como imagens; que o próprio ciclo no qual tudo gira, inclusive nós mesmos, é um processo psicológico; que fantasias da alma são a base e a semente de tudo o que pensamos e fazemos, queremos e tememos – essa é a terra alba. A terra alba é um clima e uma geografia, com palácios e pessoas, um lugar ricamente imaginal, não mera sabedoria abstrata. Nos relatos de Corbin a terra celestial está cheia de corpos espirituais; ou, digamos, as sutilezas da alma estão incorporadas no mundus imaginalis por pessoas primordiais, arcontes eternos, essências angelicais que oferecem à consciência humana uma base em princípios hierárquicos, capacitando um ser humano a reconhecer o que é essencial, o que vem primeiro e o que tem valor perene. É um lugar da verdade. Entretanto, sua orientação voltada para a verdade é em direção ao leste, ao invés de para cima ou para baixo, em direção ao oriente, a primeira luz do amanhecer, lampejo de prata, difícil de enxergar e anunciar. 117 Essa sensibilidade hierárquica para valores, verdades e primeiras coisas, vindo, como de fato vem, via formas personificadas que são essas próprias firmes sutilezas, leva-nos à verdade psicologicamente – nas visões, nos sonhos, nos diálogos de fantasia – e, portanto, ganhamos uma apreensão psicológica da verdade. Somos instruídos pela mente prateada em vez de por uma iluminação espiritual. Essa verdade evoca reflexão e a iluminação dos sentidos, principalmente do ouvido, ou não poderíamos ouvir vozes, as mensagens (anjos), os anjos que não estão somente lá naquela outra terra, mas aqui nesta terra que pode ser branqueada por uma mente que percebe de forma branca, que percebe metaforicamente. Embora a percepção prateada da verdade possa ser polida até uma sofisticação dura e fria, ela é, entretanto, de soslaio, oblíqua, uma verdade poética que inclui uma licença poética – até mesmo a verdade como fantasia e a verdade da fantasia - de forma que ela pode não parecer verdade de modo algum para os olhos da razão somente. Raio (de sol), radiante (brilhante), raio (de uma circunferência, ou um bastão de medir), ratio e racional são primos etimológicos descendentes arquetípicos do Sol. Não podemos apreender os relatos de Corbin sobre a terra lunar com nossas mentes solares, com nossas mãos comuns, assim como nossos ouvidos comuns nada podem tirar de poemas. Eles estão tão distantes da consciência cotidiana, tão longínquos e arcanos (A lua é a substância do arcano, ). Mesmo que a alquimia diga que “terra e lua coincidem na albedo” ( ), elas parecem estar a milhas de distância uma da outra, como a vida e a morte. Como podem elas serem copresentes e como podemos nós sermos reais e imaginais, sãos e lunáticos ao mesmo tempo? A resposta está mais perto do que percebemos: a “pedra cerebral branca” (outro termo para a terra branca e a substância arcana ( ), é uma experiência real todos os dias. Poemas, sonhos, fantasias são coisas delicadas, persistentes, evasivas, que exigem petrificação através de técnicas definidas de fixação (memorização, recordação, descrição). Ao mesmo tempo esses materiais psíquicos diáfanos e brilhantes são densos e impenetráveis: “Tive esse sonho impressionante, mas não pude retê-lo”. “Não consigo enxergar nada nisto, escapa-me”. “Tive isso uma vez, mas não me lembro.” Pequenas coisinhas miúdas, e ainda assim tão difíceis de quebrar - poemas, sonhos, fantasias. E cheias de impacto, chocando-nos, machucando-nos, levando-nos aos rincões mais longínquos da loucura, inesquecíveis, possuídos pela beleza, pela anima, por meros caprichos ou por uma frase poética. A linguagem substancial sobre as coisas que supostamente não têm nenhuma substância mostra o corpo sutil no mundo solar. Essas experiências que tanto incomodam nossa consciência diária são a apreensão na mente da terra branca alvorecendo. O que é este alvorecer? Como é sentido? Precisamente, como sentimento. O que amanhece não é um “novo dia”, mas o dia de um jeito novo. O amanhecer de dedos rosados, como Homero o chamou, toca todas as coisas esteticamente. É como se o mundo tivesse uma nova pele, a imaginação tornada carne. Há uma nuança erótica, um tom afrodítico, prazer. A Deusa da Aurora (Eos) é tanto filha do Sol (Hélio) quanto irmã da Lua (Selene). Ela mantém unidos prata e ouro e está engajada em múltiplas questões do amor. A consciência que nasce agora desperta para o mundo como que num abraço rosado, a terra branca chamando com sorrisos, pois ela é uma amante.83 83 A aurora vem de pequenas maneiras em sonhos: o alvorecer, manhã cedinho, ‘o despertador’, desjejum, abrir as cortinas e naqueles sonhos significativos ‘logo antes de acordar’ ou aqueles que acabam ‘aí eu acordei’. A aurora também aparece no erotismo sexual, não apenas uma manhã de fato, mas em qualquer fluxo amoroso que roseie o horizonte. Segundo os mitos, jovens rapazes (pueri?) estão especialmente sujeitos a serem amantes da Aurora, seduzidos e levados por ela. Sobre a erótica da Aurora, cf. Friedrich, P. Afrodite. [s.l.]: University of 118 A terra branca aparece em sonhos, mas não necessariamente como campos de neve, areias brancas ou cenas celestiais de um azul prateado. O que aparece, em vez disso, é o branqueamento de objetos familiares, comuns e tangíveis: pintar a casa de branco, uma jaqueta branca, coisas prateadas. Quando uma lâmina, uma agulha, um dedal, um prato ou um vestido é prateado, então a prateação está ocorrendo nessas atividades (nosso cortar, manusear, coser, servir) e está ocorrendo por meio dessas atividades. Ou seja, através do cortar, do costurar, do vestir a psique está sendo prateada ou branqueada. As próprias coisas estão se tornando psíquicas; a coisa da psique, e seu pensar (Heidegger), começam a mostrar reflexão: coisas como imagens, imagens-coisas; o Dinglichkeit dos fenômenos psíquicos. Esses recipientes de prata, dos quais o Graal é o exemplo clássico, remetem-nos de volta às etimologias da prata enquanto brilhante, resplandecente, cintilante, oblíquo. Um cálice, uma chávena, uma tigela, um jarro, uma colher ou uma caneca prateados ou brancos apresentam continente, forma e reflexão simultaneamente na mesma imagem. Dar forma é um modo de reflexão, e a reflexão é um modo de reter as coisas colocando-as numa forma definida. Um recipiente prateado é diferente de um pote de barro, de uma caixa de madeira, uma sacola de couro ou uma garrafa de vidro. Cada um permite e não permite determinados tipos de acondicionamento; cada um retrata uma atitude com relação aos conteúdos psíquicos. Quando o cálice é de prata, então o seguramos com mais vivacidade e o nosso modo de agarrá-lo é rápido e entusiasmado - pois prata e branco significam brilhante, vivaz e luminoso. O receptáculo de prata mostra inteligência mental, um entendimento rápido. Mas a prata embacia, preteja, nubla e assim tende a perder os insights que uma vez já brilharam claros. Ao mesmo tempo, a prata, enquanto o precioso metal do dinheiro, valoriza aquilo que contém, ou melhor, ela contém ao dar valor e preciosidade aos eventos. É claro que o recipiente prateado é normalmente imaginado como um cálice para o sangue. A rubedo requer primeiramente uma alma receptiva e uma compreensão ampla, ou então ela flui para o firmamento, enrubescendo o mundo com uma compulsão missionária maníaca, a multiplicatio e a exaltatio como conversão, ganhar dinheiro, fama. Mas também a nigredo requer um vaso de prata. (“Tome o preto que é mais preto que o preto e destile-o em 18 partes num recipiente de prata”).84 Parece que a melhor maneira de conter o mais negro dos pretos aquela patologia irremediável e inerte - é novamente com uma alma prateada, aquela qualidade de compreensão apropriada à mais sagrada das essências, aquela mente iluminada e receptiva que pertence à anima branca. Somente ela pode destilar do maior dos negrores uma gota de possibilidade. A prata também pode aparecer no céu: aeronaves, formas brancas, mísseis. Se o elemento aéreo é o chão, a base e o lugar da vida mental, então a mente está projetando novas direções, criando novas formas, especulações exploratórias. Talvez esteja buscando a lua e não meramente escapando da terra. Se a personalidade acordada pode ou não seguir sua alma noturna nessas direções é uma questão terapêutica, mas tornar-se prateado no reino do ar é um processo tão comum quanto o amanhecer natural, o orvalho, a luz das estrelas e a garganta das cotovias; e o pratear aparece em sonhos assim como na natureza. 84 Chicago Press, 1978, p. 36-48. Dessa perspectiva mitológico-arquetípica, (atribuído a Tomás de Aquino por , cujo próprio título significa o alvorecer da manhã irá, é claro, estar banhado de um misticismo erótico uma vez que ele representa a conversão de seu autor pela ao amor. Bonus, p. 355. 119 As damas brancas nos sonhos e nas visões do leito dos enfermos (numa camisola prateada, a cabeça na luz ou num manto branco, uma amada morta, o homem com um distintivo ou um instrumento de prata) são figuras da terra branca chamando-nos para uma outra paisagem interior através da música que ressoa, cortando caminhos, abrindo passagens, instruindo, acenando. São “chamados” para além da vida que sinalizam a morte de nosso embutimento no corpo do mundo. De forma que os tememos e ficamos maravilhosamente impressionados quando eles nos conclamam a atravessar as fronteiras. Mas, que fronteiras? Penso que é menos a linha literal e simples entre a vida e a morte, e mais a que desenhamos em torno do amor, separando-o da morte. A dama de branco ou o homem de prata tornam a passagem mais fácil ao levar nosso amor até a morte, uma morte amorosa, levando Eros até Tânatos, de forma a podermos seguir mais facilmente em direção a profundezas desconhecidas, prontos para ir, descer as escadas, rumo à Cidade Branca. Embora a notável fenomenologia de figuras brancas visionárias tenha sido examinada por Aniela Jaffé,85 há algo mais a ser dito sobre os animais brancos. Eles têm sido chamados de bruxos, espíritos, fantasmas e de animais-doutores, mas o que de fato acontece na alma quando um animal branco ou prateado azul-acinzentado aparece? Primeiramente, o animal é agora uma sombra de si mesmo, “morto” ou “psiquezado”. A figura é agora tanto uma presença psíquica quanto uma presença animal. Seu corpo agora é sutil. Segundo, em virtude de sua cor ele pertence à albedo. É um animal da anima, uma animalidade da anima. O animal não é mais uma figura terrestre natural, aquilo que a psicologia chama de “instinto”; mas esse animal, esse instinto, aparecendo de branco, mostra que a terra alba é também um lugar de vida, um lugar vital. Há animalidade na brancura. Há corpo instintivo nas sutilezas prateadas. Um animal esbranquiçado é um animal que reflete a si mesmo; ação animal escutando-se, conhecendo-se. Reflexo e reflexão juntos numa mesma imagem, o desejo que se autorrespeita, o enxofre branqueado até uma consciência infalível e certeira, uma fé animal. Não é de se espantar que esses sejam animais-doutores. São os guias da alma, guias de imagens que podem perceber e sentir seu caminho por entre as imagens. Seu território é a terra branca, a terra de prata onde impera a mente e a voz da inteligência da alma. Eles carregam inteligência, trazem reflexão em suas formas brancas. De maneira que o melhor jeito de mantê-los por perto é tratá-los com a comida que eles necessitam: inteligência, discurso, palavras, ideias. Falar com eles: Doutor Cachorro, Doutora Gata. A fala é sua comida de alma. De todos esses fenômenos - recipientes e instrumentos prateados, mísseis e animais brancos - talvez o evento mais especial da albedo seja o embaraço da consciência. Como estava, a mente é desconcertada pelos paradoxos de seu branqueamento, um paradoxo expresso mesmo nos termos “terra branca”. O livro sobre as cores de Ludwig Wittgenstein, , revela uma mente extraordinária lutando, ao longo dos últimos dezoito meses de sua vida, com o branco/a anima. Podemos ler seus questionamentos e afirmações com um ouvido metafórico, como se estivessem vindo de um velho texto alquímico que falasse do branqueamento da consciência. Mais ainda: como se o branco fosse a cor da psique, e da psicologia. Mas que tipo de proposição é essa, que a mistura com o branco remove a coloração das cores? Do que sei, não pode ser uma proposição da física. Aqui, a tentação de se crer numa fenomenologia, algo intermediário entre a ciência e a lógica, é muito grande (II.3). 85 Jaffé, A. . Dallas: Spring Publications, 1979, p. 79ss. 120 Qual então é a natureza essencial da obscuridade [des Trüben|? Pois coisas transparentes amarelas ou vermelhas não são obscuras; o branco é obscuro (II.4). Não é o branco aquilo que acaba com a escuridão? (II.6). “A mistura do branco oblitera as diferenças entre claro e escuro, luz e sombra”; isto define os conceitos mais precisamente? Sim, acredito que sim (II.9). Se tudo parecesse esbranquiçado sob uma luz específica, não concluiríamos então que a fonte da luz deve ser branca (II.15). A questão é: construir um “corpo branco transparente” é como construir um “biângulo regular”? (III.138). Também não podemos dizer que o branco é essencialmente a propriedade de uma superfície visual. Pois fica subentendido que o branco deve ocorrer como uma luz de alta intensidade ou como a cor da chama ( ). Um corpo que é de fato transparente pode, é claro, nos parecer branco; mas ele não pode parecer branco e transparente (III.146). Mas não deveríamos exprimi-lo dizendo: o branco não é uma cor transparente (III.147). “Transparente” poderia ser comparado a “reflexivo” ( ). De algo que é transparente não dizemos que parece branco (III.153). Dizemos “preto profundo”, mas não “branco profundo” (III.156). Considere que as coisas podem se refletir numa superfície branca lisa de tal forma que seus reflexos parecem estar abaixo da superfície e que de uma certa forma são vistos através dela ( ). O que constitui a diferença decisiva entre o branco e as demais cores? (III.167). O que deveria um pintor pintar se desejasse criar o efeito de um vidro branco e transparente? (III.198). O branco visto através de um vidro colorido aparece com a cor do vidro. Essa é uma regra da transparência. Assim, o branco aparece branco através de um vidro branco, ou seja, através de um vidro sem cor (III.200). Isso posso entender: que uma teoria física (tal como a de Newton) não possa resolver os problemas que agitaram Goethe, mesmo que ele mesmo não os tenha também resolvido (III.206). Por que sinto que um vidro branco pode se tornar preto [...] e não posso aceitar que o amarelo pode ser engolido pelo preto? ( ). Frequentemente falamos do branco como não colorido. Por quê? ( ). Estaria isto ligado ao fato de que o branco gradualmente elimina todos os contrastes, enquanto que o vermelho não? ( ). Não estou dizendo aqui aquilo que dizem os psicólogos da Gestalt, que a impressão do branco acontece dessa e daquela maneira. Em vez disso, a questão é precisamente: qual é a impressão do branco, qual o sentido dessa expressão, qual a lógica deste conceito, “branco”? ( ). A lógica do conceito branco é exatamente aquilo com que estamos trabalhando neste ensaio, de forma a mostrar que ela é uma psicológica, “algo intermediário”, e algo tanto transparente quanto obscuro, um estranho terceiro que não pode ser moldado num “biângulo regular.” Essa psicológica também tenta dar conta de sentimentos como os de Wittgenstein, de que “o branco acaba com a escuridão”, “sinto que um vidro branco pode se tornar [pode se manchar, se tingir, se clarear de] preto”, e que “o branco elimina todos os contrastes” [a albedo como 121 alívio]. Além disso, na medida em que a consciência se movimenta da escuridão da perspectiva materialista em direção à terra branca podemos compreender por que Wittgenstein pensa que a abordagem física de Newton não pode responder o tipo de questionamento proposto por Goethe. Apesar do embaraço intelectual, o branqueamento frequentemente aparece primeiro como uma experiência de alívio emocional, uma leveza depois do negror e do desespero plúmbeo, como se algo mais estivesse ali; dentro da miséria, a vibração de um pássaro. As queimadas esfriam; a corrente ida da Kundalini banha a alma amarga e exausta com um orvalho suave. Um humor doce, uma graça dos céus. O simbolismo tradicional fala do branco como a cor do perdão, que aparece depois do preto da penitência. Dizemos: “Acabou, passou!” – já não está tão pesado, tão frenético. “Acho que vou conseguir.” E há um sentimento novo de confiança naquilo que está acontecendo. Para Dante o branco era a cor da fé. Essa fé, no entanto, não é frígida como um credo ou uma âncora de ferro e, ao contrário, parece-se mais com uma doce antecipação de uma nova chance, uma segunda chance e de que podemos prosseguir, pois no final da linha há um porto seguro (a mesma cinza, a mesma areia seca, folha seca, agora uma terra branca). Um porto seguro esbranquiçado deve ser imaginado com uma mente esbranquiçada. Pois a terra alba não é meramente o descanso depois da luta; não é descanso de maneira alguma, pelo menos não no sentido da segurança. De fato, “o branco é movimento, o preto é idêntico ao repouso” (de acordo com aquele mesmo texto do século XII que termina com a famosa “ ”).86 Portanto, a albedo é vivida também como o movimento da realidade psíquica, aquilo que agora chamamos de “psicodinâmica” e “processo” – isso se esses termos não forem literalizados em sistemas nos quais nos paralisamos e com os quais nos contentamos. Pois quando movimento torna-se sistema de movimento, em vez das reais movimentações que faz a psique, então estamos novamente numa nigredo, ou seja, densamente inconscientes. Nossa linguagem (a linguagem da energia psíquica, processo de individuação, desenvolvimento e psicodinâmica) está abafando o movimento real em conceitos sobre o movimento. Ao expressar-se, a nigredo deve usar o tempo passado dos verbos como parte da mortificatio e da putrefactio, enquanto o branco traz os relatos “daquilo que aconteceu” e de como foi que deu nisso, no intuito de mover-se com as imagens reais. O discurso da albedo fala, ao invés, “daquilo que está acontecendo”, esse ou aquele passo: como a psique está se movimentando, e que movimentos, em resposta, fazem paciente e analista. Um outro sentido da virada em direção ao branco é abrigo: menos expostos, menos crus, menos vulneráveis às paixões e às marés. Feridas enfaixadas em panos brancos; o leite, fluindo e coagulando-se87 na mais solidamente putrefacta cultura do queijo. A alma tem agora um tabernáculo; Maria como refúgio. Há alguma estrutura e um lugar para onde seus movimentos podem fluir. A alma encontra-se posta em si mesma e livre da compulsão para “fora”. 86 87 Dronke, P. ‘ ’. Eranos Yearbooks, 41, 1972, p. 74-76. Sobre o leite e a coagulação do branco, cf. Bonus, p. 277-282. A substância coagulada é ‘fêmea’, tendo recebido o ímpeto coagulante do ‘macho’. Um outro nome para ela é a terra (branca) (Von Franz. . Op. cit., p. 10). O coagulante às vezes aparece em sonhos como queijo – a mãe natureza voltando-se para a cultura e diferenciando a conscientização dos sentidos através de fermentação e putrefação. 122 Também percebemos que estamos sossegando, não mais expurgando os intestinos da putrefactio, não mais culpados. As queixas dão lugar a um lembrar tranquilo: as memórias estão presentes, mas não nos aprisionam. O sentimento de pecado é lavado, ablutio. O material suou ganhando umidade, e podemos até encontrar um senso de humor. A mortificação irônica abranda a vergonha. A voz que agora fala no ouvido interno e as palavras que agora dizem as figuras internas da imaginação nos dizem “tudo bem”, “tenha calma”, “deixa estar”, “dê-se uma chance”. A dama de branco traz paz. Ela se senta no jardim com um colo amplo. “A putrefação estende-se e continua mesmo na brancura”, diz Figulus;88 mas, ainda assim, “A matéria, quando levada à brancura, recusa-se a ser corrompida e destruída”.89 Quando, então, cessa finalmente a putrefação? Essa resistência da alma à destruição é alguma vez atingida, e quando é ultrapassada sua própria capacidade de corromper e destruir? É claro que mesmo depois que a brancura estabeleceu-se, a putrefactio estende-se e continua de alguma maneira. Um texto fala de “um vapor branco, que é uma alma que é o próprio branco, sutil, quente e pleno de fogo”.90 Outros textos referem-se a um “fermento branco” e já discutimos a afinidade entre a prata e o enxofre como a tendência de corrupção inerente na prata (pretejar, perder o lustro, embaciar, esquentar rápido, etc.), sua “lepra fleugmática”. Devemos então corrigir nossas noções da terra branca como um lugar de repouso. Algo mais acontece nesses estados de anima, apesar dos sussurros confortantes no ouvido interno. A prata é cobre por dentro, diz Rasis.91 O cobre era com frequência utilizado como uma imitação da prata ( ),92 e a maioria das imitações de ouro eram também amálgamas que continham cobre. Assim, quais são as maneiras com que o cobre “falsifica” a verdadeira prata? É claro, voltamo-nos a Vênus, pois o cobre era seu metal: de cor vermelha, rápido de esquentar, bom para amálgamas, esverdeando com o tempo como sua natureza vegetativa. Von Franz interpreta o cobre como “o próprio homem”, o “microcosmo”, o termo utilizado nos textos que ela comenta.93 Este “próprio homem”, escondido na prata e capaz de falseá-la, deve se referir à propensão humana a todas as coisas venusianas - alegria e beleza no trabalho, sentimentos personalizados, a sensualidade e a paixão na medida em que as transformações ocorrem, o aquecimento, o desejo de conexão para quebrar a solidão do isolamento reflexivo branco. Por dentro da frieza da prata, espreita a sombra demasiado humana do cobre - que também serve para manter a obra subjetivamente importante, afetando-”me”. Do contrário, tudo seria apenas uma questão de símbolos e medidas, como a química - objetiva, acontecendo somente em recipientes de vidro. 88 89 90 91 92 93 Figulus. . Ibid., 95. Trinick, J. (Signum Atque Signatum): . Londres: Stuart & Watkins, 1967, p. 81 [prefácio com cartas de C.G. Jung e Aniela Jaffé]. Rasis. , Apud Wyckoff. Minerals. Op. cit., p. 175, nota 1. Cf. : ‘O rubro esta oculto na brancura’. Karpenko, V. ‘The Chemistry and Metallurgy of Transmutation’. Ambix, 39, 1992, p. 56-57. Von Franz, M.L. (‘ ’): . Kusnacht: Verlag Stiftung fur Jung’sche Psychologie, 1999, p. 63. 123 Dentro da brancura estão os estágios anteriores. Pois se a brancura emerge do azul, do preto e de um grande calor (“A panaceia branca é aperfeiçoada no terceiro grau do fogo”),94 essas condições anteriores estão lá dentro da própria albedo. Ela precisa nos falar de si mesma como doce, suave e fria exatamente porque está sempre ameaçada por seu próprio cobre vermelho, sua propensão ao enxofre, sua natureza interna quente e negra. É precisamente esta putrefação inerente que distingue a albedo dos estágios primários de brancura (inocência, pureza, ignorância) e defende a alma de seus próprios efeitos corruptores. Portanto, o branqueamento dá à anima uma conscientização de seu poder inato, que vem da sombra que não é lavada e jogada fora, mas que faz parte do corpo psíquico e que se torna suficientemente transparente para quem quiser ver. Isso nos leva aos quatro maiores perigos na transição para o branco: 1) Transição como conversão. Todo o negror foi embora, renascimento, um novo amor, cura como perda da sombra. Como sabem os clínicos, o perigo de um suicídio impulsivo pode ser maior ao se sair da depressão para uma fase ou uma defesa maníaca do que quando nas profundezas da própria melancolia. Portanto, cada branqueamento necessita inspeção clínica. A conversão como regressão à inocência, ao jardim antes da queda é a eterna sedução. Teve que haver matança de cara na saída do Éden para garantir bem que todos eles - Caim, Abel, Set, Adão, Eva e talvez também o Deus bíblico - não seriam tentados a voltar. No jardim, a serpente é a tentadora, mas já no vale do cultivo da alma é o próprio jardim que seduz. Sempre que as brancuras - luzes brancas, damas de branco, cavaleiros brancos, páginas em branco - nos atraírem, mantenhamos o olho clínico. Lembre-se de sua lição de alquimia: a albedo deve sempre ser distinguida da prima materia. E é exatamente aqui que é difícil discernir: o impulso ao branco está muito próximo da fuga do preto. Então a ablutio pode se tornar simplesmente lavagem, e cândida pode significar apenas um peito aberto, uma discussão franca e aberta, cândida. Albation, diz o dicionário inglês, ainda significa empoeirar com um pó fino branco. Aqui o branqueamento converte-se de volta a uma inocência primária e a opus está de volta aonde começou. Bonus de Ferrara mostra um caminho para se lidar com esse perigo. “Quando o Artista vê a alma branca nascer, ele deveria juntá-la a seu corpo no próprio instante, pois nenhuma alma pode ser retida sem seu corpo.” “Agora o corpo não é nada estranho ou novo; apenas aquilo que estava antes escondido torna-se manifesto”.95 E o que é este “corpo”? Diz Bonus: “o corpo é a forma”. E, em outro lugar: “Os Antigos deram o nome de corpo a tudo aquilo que é fixo e resiste a ação do calor”.96 Entendo esse corpo que resiste ao calor e que permanece como é (não se converte) referindose àquelas formas ocultas dentro de cada uma das mudanças emocionais manifestas que levaram à albedo. A ocorrência do branco pode nos fazer sentir que estamos inteiramente num novo lugar porque estamos identificados com a condição esbranquiçada. Se, contudo, o branco estiver fixado em seu próprio corpo de imagens, ou seja, sua atenção fixa nas formas “ocultas” que modelam as experiências (em vez das manifestações dessas experiências), 94 95 96 Figulus. . Cf. Bonus, p. 342, referindo-se a Arnold de Villanova sobre a preparação do elixir branco: ‘Exponha-o a um bom fogo por vinte e quatro horas, a um fogo ainda mais feroz por um outro dia e noite, a um fogo ferocíssimo próprio para derreter, no terceiro dia e noite’. Bonus, p. 256-257. Ibid., p. 261. 124 então estaremos menos sujeitos à conversão. Pois aqui conversão não é nada além da consciência presa em seus próprios fenômenos brancos. Entusiasmado pela anima, inflado de anima, como dizem os junguianos. A alma perdeu seu corpo, a forma ou imagem oculta através da qual ela pode se enxergar.97 Portanto o branqueamento pode simplesmente significar estar inconsciente de uma nova maneira, que é batizada (lavada) pelo nome exaltado de “experiência de conversão”. Não ganhamos uma conscientização da anima (branqueamento) apenas examinando experiências manifestas: relembrando o que aconteceu e como foi sentido. A anima se dá a conhecer por um processo imaginativo: pelo estudo de suas próprias imagens. Esta é uma das razões pelas quais minha versão de psicanálise passa tanto tempo junto aos sonhos (e perde menos tempo com os relatos do que aconteceu) - para despertar a alma para a imaginação pelo estudo de suas imagens. If the study of his images Is the study of man, this image of Saturday, This Italian symbol, this Southern landscape is like A waking, as in images we awake, Within the very object that we seek, Participants of its being. It is, we are.98 A anima desperta em suas imagens - do sábado, da Itália, paisagens - tornando-se o que é em virtude dessas formas, desses corpos. Notem que o “corpo” de que fala Bonus é seu corpo - “nada estranho ou novo”. O branqueamento está presente em qualquer objeto que busquemos se o buscamos como imagem. O corpo da albedo já está lá, a terra branqueada, como o padrão formal que se mostra à anima imaginativa como imagens. Os versos de Wallace Stevens acrescentam a ainda a ideia de que essas formas-imagens são participantes de cada ser, inclusive aquele ser que consideramos nós mesmos. 2) Transição como um “resfriamento prematuro”. O termo vem de uma interpretação de Von Franz de uma passagem que se referia ao medo do “frio da neve”.99 Von Franz o vê como uma inflação na qual “o sentimento, a relação com os outros companheiros, perece e é substituído por uma forma intelectual de relacionamento”.100 Já comentei acima sobre a prata potencial que reside na frieza, e sobre a frieza inata da própria alma em maiores detalhes em outra oportunidade,101 mostrando que a própria palavra psyche é cognata de várias palavras que significam frio e distante. Além disso, a frieza se dá de diferentes maneiras em momentos diferentes. Por exemplo: “A digestão é muitas vezes acelerada pelo frio externo [...]. Pois o frio leva o calor para dentro e aumenta sua ação”, diz Norton em seu Ordinal (HM 2, p. 43). 97 98 99 100 101 Ibid., p. 262: ‘A força do corpo deve prevalecer sobre a força da alma e, em vez do corpo ser carregado para cima com a alma, a alma permanece com o corpo [...]’. Study of Images I. . Nova York Alfred A. Knopf, 1978, p. 233 [Em tradução livre para o português: ‘Se o estudo de suas imagens/É o estudo do homem, esta imagem de sábado,/Este símbolo italiano, essa paisagem sulista são como/Um amanhecer, pois em imagens amanhecemos,/Por dentro do próprio objeto que buscamos,/Participantes de seu ser. Ele é, nós somos’ [N.T.]. . . Londres: Routledge/Kegan Paul, 1966, p. 233. Ibid., p. 234. . Nova York: Harper & Row, 1979, p. 168-171. 125 Uma vez que a frieza é familiar à alma e intrínseca ao branqueamento (como na Kundalini yoga) por que somente agora o medo da neve? Penso que o perigo com relação à obra tem menos a ver com relacionamentos de sentimento do que com uma negação benigna do fogo alquímico que pode acontecer nesse momento. Já que a albedo traz alívio das torturas que instigaram o processo de início, esquecemos que a alma, cujo corpo (suas imagens agora fixas) está mais do que nunca capacitado a suportar o calor, requer agora uma intensidade maior que antes. escreve: “Quando o Alquimista [...] atingiu o final da primeira parte de nosso Magistério na qual é vista a simples cor branca [...] então ele deve iniciar de imediato a segunda parte do trabalho, e esta é o fermento e a fermentação da substância”.102 Fermentação para Bonus quer dizer “ferver ou borbulhar”, o que faz com que a substância-alma “dilate e se eleve, exaltando-a a uma condição mais nobre”.103 O resfriamento prematuro para antes da fermentação. À medida que as coisas melhoram - e afinal a albedo é uma melhora segundo todos os textos há menos urgência. Todo o trabalho pode ir ao freezer, o bebê abandonado na neve. Esquecemos que o ponto mais fundamental da opus não é a resolução da nigredo de nossas neuroses pessoais, mas uma exaltação, uma multiplicação da nobreza rubra da alma até sua realização pletórica, multifacetada, puro-sangue. Portanto, nesse momento, a própria aná- lise, como instrumento do fogo, pode ter que aumentar o calor deliberadamente no sentido de impedir o resfriamento que separa corpo e alma. “Na medida em que a substância é volátil e foge do fogo ela é chamada de alma; quando ela se torna capaz de resistir à ação do fogo, ela é chamada de corpo”.104 Para mantermos o corpo, devemos manter o calor.105 Talvez tenhamos que incitar novas agressões e paixões; chamar as fúrias; forçar confrontos com questões essenciais, as quais a dama de branco prefere deixar quietas. A imaginação ativa, por exemplo, pode agora começar a lutar corpo a corpo com os anjos de nosso destino, anjos que são o coração do fogo. Nesse momento, “suporte terapêutico” significa alimentar o fogo. O fogo é o anjo da guarda e guarda o anjo de resfriar-se. Análise: lugar do fogo. “O Espírito é o Calor”, diz o de Figulus. 3) Transição como calcinação prematura. Esse é o alerta contra a “queima das flores”. “A secagem prematura apenas destrói o germe da vida, atingindo o princípio ativo na cabeça como que com um martelo, deixando-o passivo” ( ). Sim, a opus necessita de calor intenso a fim de secar as umidades pessoais: crises soluçantes, anseios que fluem, doces confusões dopadas. Isso tudo é seco no processo do cultivo da alma. Mas essas condições não podem ser atingidas na cabeça, como se as levássemos ao tintureiro (uma lavagem a seco), chamuscadas causticamente. Pois nelas há um germe tentando florescer. Queimam-se as flores quando os episódios de anima são destruídos com escárnio, com críticas ferinas ou análises abstratas. Um dos cânones de Figulus postula: “Aqueles que [...] usam pó sublimado ou calcinado, ou precipitado, estão iludidos, e erram enormemente” (134). Assim também como estão enganados aqueles que “resolvem o Mercúrio em água limpa” (135). O que é necessário, à medida que a pressão aumenta, o calor se intensifica e a anima infunde a si mesma em tudo, não são razões claras e distintas. Nada de pós secos. Eles matam o germe da vida. Este é um alerta curioso. Embora a calcinação (secar com calor) seja essencial ao branqueamento, esse mesmo processo pode levar a uma “queimadura” analítica. Quando a 102 103 104 105 Bonus, p. 264. Ibid., p. 255-256. Ibid., p. 262. Sugiro que a análise é instigadora do ‘fermento’ porque Bonus diz (p. 256): ‘O fermento do qual falamos é invisível, mas passível de ser apreendido pela mente’. Portanto, o que aumenta o calor e gera o fermento é uma intensificação do trabalho mental, ou seja, exigências mais profundas de compreensão analítica. 126 base terapêutica na umidade, num humor subjacente e permanente, na delicadeza e na astúcia escorregadia mercurial (aqua permanens) é esquecida, então a calcinação escurece tudo com acusações mútuas, desapontamentos, exaustão, frutos de um calor demasiado intenso no momento errado. Estamos de volta na nigredo, cínicos, amargos, queimados. A análise fracassou. Em vez disso, semelhante cura semelhante - mesmo quando o calcinar é a operação principal, as reações ao fervor da anima podem se dar em imagens delicadas, isto é, imagens plenas de sentimento e em especulações reflexivas, mas somente se mantidas no espelho correto. Os espelhos refletem as imagens porque são “úmidos”, como os próprios fervores da anima. Mas a umidade dos espelhos é fria e limitada, contida pelo ato de espelhar. Então, um pouco de espelhamento úmido e humorado ajuda, e as efusões pessoais que começam vazando para todos os lados histericamente poderão atingir, surpreendentemente, um telos mais objetivo: o florescimento da terra branca, um sentido de Flora na matéria, toda a terra viva com ela. 4) Vitrificação. Essa é a repentina solidificação do trabalho de alma em vidro. Diz Bonus: “Se através da calcinação um espírito metálico torna-se vitrificado, não será capaz de nenhuma outra mudança”.106 Diferentemente dos metais frios, continua ele, “nos quais podemos entalhar ou estampar qualquer imagem [...] e ele reterá essa imagem; mas o vidro não faz nada disso”. Materiais vitrificados perderam seu “humor metálico” e não podem mais amalgamar-se com as perspectivas de outros metais. Encontramos daí vários perigos específicos. A alma vitrificada não pode mais receber uma imagem. Ela não pode imaginar e, portanto, não pode se movimentar. Aquilo que isola, então, é a falta de receptividade imaginativa. (As conjunções acontecem quando corpos sutis se juntam, ou seja, quando as fantasias se abrem umas para as outras, recebem umas às outras107.) Aqui o isolamento resulta especificamente do fato da alma ter perdido insight sobre si mesma como uma imagem num processo “metálico”. Na psicologia alquímica o “humor metálico” pode se referir à percepção de que todos os eventos pessoais são produzidos objetivamente pelos metais básicos. Aquilo que acontece na alma não somos nós que fazemos, mas se refere à germinação em nós dos deuses na terra, os sete metais da psique objetiva ou alma do mundo. A vitrificação nos fecha para essa conscientização; ficamos vidrados em nossa individualidade pessoal. A vitrificação “pode acontecer a qualquer momento desde o meio do Lua (até) o Vênus” ( ). É um perigo no processo da anima. À medida que a doçura da albedo passa a um amor venusiano pela vida, um enverdecimento de cobre do material ( ), o calor pode elevar-se para além da capacidade do material. Ele vidra, fixa, petrifica. A intensidade do processo psíquico, fundido pelo desejo, cria uma idée fixe, uma obsessão globular ou um ídolo envidraçado. “Esteja atento ao perigo da vitrificação; um fogo demasiadamente feroz deixaria sua substância insolúvel e impediria a granulação” ( ). Não podemos mais libertar a psique da forma na qual sua paixão está moldada; não podemos mais lidar com ela por partes, gradativamente. A prateação como granulação necessita um comentário especial. Durante o Lua, enquanto a substância coagula nas várias formas da prata, dissolvendo e coagulando “cem vezes por dia”, então “você a vê toda dividida em belos, porém muito diminutos grãos de prata, como os raios do 106 107 Não encontrei a referência em Bonus. ‘ ’ (HM, 2, p. 194) declara que a substância vitrificada torna-se ‘não suscetível a nenhuma outra mudança’. Cf. López Pedraza, R. . Einsieden: Daimon Verlag, 2003, cap. 4, para uma compreensão das uniões eróticas baseadas na atração e na mistura de fantasias. 127 Sol [...]. Essa é a ”( ). A vitrificação impede a particularização da consciência, a pequenez do insight, a precisão analítica que divide a reflexão. Não o largo espelho a refletir amplas vistas e perspectivas inteiras simultaneamente, mas, em vez disso, uma consciência granulada, granulosa, arenosa que apanha “grãos muito diminutos”, cada brilho, pequenas intensidades, “cem vezes por dia”. A passagem de ( ) continua: “Não irrite muito o espírito – ele está mais corpóreo que antes e, se você o sublima para o topo do vaso, dificilmente ele retornará [...]. A lei é a da suavidade, não da violência, ou tudo elevar-se-á para o topo do vaso e será consumido ou vitrificado arruinando todo o trabalho”. Temos a tendência de esquecer que o trabalho com a psique (cultivo de alma) de fato torna o espírito mais incorporado. Esquecemos que aquilo que acontece na mente ganha cada vez mais realidade substancial. Se essas recém-formadas realidades psíquicas elevam-se para o topo, elas tendem a levar uma vida própria, distantes nas alturas, em comportamentos “vidrados e não suscetíveis a nenhuma outra mudança”. Evidentemente que o corpo ganho através do trabalho deve ser substancializado na parte de baixo do vaso, como o corpo das próprias imagens, em vez de ser sublimado em duras verdades, valores reais, pessoas factuais e projetos quentes. Inflações ideativas, alturas, voos podem ser vitrificações que, nesse momento de substancialização da anima, ameaçam “arruinar todo o trabalho”. O vidro é uma analogia ideal para a realidade psíquica: ele espelha, aquece e esfria de acordo com seu conteúdo, torna-se transparente, apresenta-se como seus conteúdos, embora não seja tocado por eles, e lhes dá forma de acordo com o seu formato. É o material par excellence para a obra. Ele tanto contém como permite enxergar através, ou enxergar através dos eventos é uma maneira de contê-los, como conter eventos é uma maneira de enxergá-los como imagens e processos psíquicos. Mas o vidro não é, ele mesmo, a substância da opus e, quando ele assim se torna, ocorreu a vitrificação. Quando o vaso torna-se o foco do trabalho, quando tomamos a própria psique substancialmente, quando literalizamos continente ou enxergar-através, então estamos vitrificando. A psicologia como sujeito de si mesma, em vez de um modo de enxergar através, refletir, dar forma e conter outras substâncias é simplesmente uma vitrificação, uma consciência fixa e vidrada sem humor, sem imaginação, sem insight. A psique tornou-se Psicologia. O paradoxo aqui é que enxergar-através, como um ato que torna cada substância transparente, coloca-as num vidro, e portanto pode vitrificar o ato de enxergar-através. Quando um insight coagula-se numa verdade (por causa de muito calor, porque está compelido por Vênus, porque elevou-se para o topo), isto é vitrificação. Vamos agora examinar três versões alquímicas do branqueamento para entendermos melhor o que acontece nesse processo. A primeira é uma afirmação de Maria, a Judia: Se o dois não se torna um, isto é, se o volátil não se combina com o fixo, nada acontecerá. Se o um não embranquece e o dois não se torna três, com o enxofre branco que branqueia (nada do esperado acontecerá) [...].108 Somos informados que nada acontece na alma a menos que seus estados gasosos se tornem sólidos, e suas certezas se tornem móveis. Todos os voos dispersos e as soberbas arrogâncias 108 Hopkins, A.J. . Columbia University Press, 1934, p. 99. Mais sobre Maria a Judia (Maria Hebraea) e o uso das assim chamadas tábuas de multiplicação das bruxas nos escritos cabalísticos, cf. Scholem, G. . Putnam, Conn.: Spring Publications, 2008. 128 do espírito necessitam fixação. Ao mesmo tempo, aquelas certezas que sentimos inquestionáveis precisam encontrar asas e decolar. Volatizar o fixo é perceber que as coisas como elas são não são como são. Nada acontece até que possamos enxergar através do fixo como fantasia e coagular a fantasia em formas e limites. O pré-requisito para o branqueamento é simplesmente essa incorporação do espírito e essa inspiração do corpo. Até que ocorra essa ação simultânea, não sentimos a realidade psíqu