1
James Hillman
2
Nota do tradutor
Os ensaios alquímicos de James Hillman são fascinantes. Alguém já disse que ele faz da psicologia o
braço investigativo da poesia. Essa percepção está em cada palavra sua tornada insight psicológico,
carregando a imaginação da sabedoria profunda por meio de uma linguagem ativada, viva.
Escritas ao longo de toda uma vida de trabalho analítico e estudo da alquimia medieval, este livro
reúne as contribuições originais que o autor acrescenta a uma psicologia alquímica.
Publicados esparsamente em revistas e coletâneas internacionais, alguns apresentados originalmente
como palestras ou aulas em diversos lugares, há muito tempo esses ensaios mereciam estar reunidos
num volume consistente. Isto se dá agora, quando o volume finalmente ganhou forma. Cada um deles
passou por uma revisão minuciosa do autor para esta edição completa, o que acrescentou as reflexões
e as novas compreensões trazidas pelos anos. Juntos formam o avanço de uma teoria alquímica da
prática do trabalho analítico.
A alquimia é a arte da transformação; almeja atingir o coração das coisas. Trabalha fundamentalmente
com a ideia da transmutação, como um processo de elevar a matéria de uma dada circunstância a um
nível superior de sua manifestação.
Uma operação sideral. Inegavelmente, trata-se também da elevação do próprio artífice a um nível
superior de consciência.
Portanto, abriga uma metáfora poderosa para o trabalho psicológico.
O que a alquimia dá para a psicologia é um ponto de vista objetivo: ela apresenta fatos e processos da
vida psíquica que não podem nem ser negados, nem expostos de outra forma. Ela apresenta a
possibilidade de escapar do subjetivismo, o excesso de subjetividade, e assim é uma longa e detalhada
demonstração daquilo que
reconheceu e chamou de psique objetiva.
A diferença entre o trabalho de Jung e o de James Hillman com a alquimia, entretanto, é que o primeiro
elaborou, em profundidade e de forma pioneira, um exame consistente daquilo que havia de alquimia
na psicologia profunda, ou vice-versa, entendendo projetivamente os conteúdos psíquicos presentes
nos tratados alquímicos. Fez psicologia da alquimia. Serviu para fundamentar definitivamente suas
teses sobre a alma mais profunda e os níveis coletivos do inconsciente. Jung abriu o campo. Hillman,
por outro lado, já é alquímico em seu próprio texto, e a própria reflexão aqui se constrói com recurso
direto às metáforas alquímicas, reflexão profundamente impregnada das substâncias e processos que
descreve. Hillman nos ensina a raciocinar alquimicamente em psicologia; faz propriamente uma
psicologia alquímica, o título deste livro.
A alquimia pensa por meio de imagens, mas imagina em termos de cores. Ou seja, por meio dos
processos de coloração da alma, com os quais ela própria é tingida e com os quais ela tinge o mundo e
suas experiências. Tingimento na alquimia significa mudança de estado; indica a transmutação. As
cores na alquimia revelam processos na alma: do preto da decomposição (nigredo) ao branco da clara
reflexão (albedo), passando pelas transições de azul e amarelo, para atingir aquele vermelho próprio da
materia almada e das condições pulsantes e vitais da existência (rubedo) - a pedra filosofal. Os ensaios de
Hillman neste livro caminham por todos esses estágios.
Hillman opera aqui uma alquimia de extração paracélsica. Isto quer dizer que, como Jung, trabalha com
um esquema cosmológico tripartite, onde sal, mercúrio e enxofre fundamentam a composição de todas
as coisas visíveis e invisíveis. Essas três substâncias básicas apontam para as três instâncias elementares
por onde a existência se manifesta: corpo, alma e espírito. Como sabemos, é possível fazer alquimia em
todos esses níveis. Uma alquimia puramente física, encarada muitas vezes como uma pré-química, na
qual o estudo das transformações da matéria serve para se entender o funcionamento mais oculto e
íntimo da natureza.
Uma alquimia metafísica, em que as imagens e descrições de seus tratados são vistas como analogias
místicas perfeitas para a busca de um caminho espiritual de elevação ao princípio único universal. E,
finalmente, uma alquimia da alma, caminho aberto por Jung, no qual o que encontramos em meio às
3
bizarrices e proposições extremadas são correlatos precisos dos processos de transformação da psique
profunda exibindo diretamente a vida psicológica.
Comecei a tradução desta obra em 1985. Ela foi sendo feita lentamente ao sabor do aparecimento dos
ensaios individualmente.
Trazer para o português cada capítulo que compõe este livro serviu originalmente para estudo em
grupos preocupados em encontrar uma abordagem ao mesmo tempo mais imaginativamente rica e
mais clinicamente precisa à psicoterapia.
Traduzi-los sempre foi um grande e iniciático desafio. Hillman, além de um teórico extraordinário, é
também um escritor, um artista das palavras intensamente preocupado com a linguagem que carrega
seus insights.
Os textos alquímicos de James Hillman nos forçam a entender a importância da metáfora como
instrumento básico no trabalho com a alma, que é o que nos ensina, logo na abertura do livro, seu
primeiro capítulo. É impossível compreender a alquimia psicologicamente sem essa entrada na
metáfora, o que também é verdade para a poesia e, por que não dizer, para a psique. Aqui aprendemos
que essa ‘poesia da matéria’, como ele enxerga a alquimia, depende da metáfora para ser também uma
psicopoiesis - uma tradição que começou, não se esqueça, com uma famosa tábua esmeralda.
Gustavo Barcellos - Dezembro de 2010
Abreviações utilizadas neste livro:
Bonus = Bonus of Ferrara.
. Londres: J. Elliot & Co., 1894 [Trad. de A.E. White].
Collectanea = Eirenaeus Philalethes [George Starkey).
. Londres: J. Elliot & Co., 1893 [Trad. de A.E. White].
CP = Sigmund Freud.
. 5 vols. Londres: The Hogarth Press/The Institute of Psychoanalysis, 1924-1950 [Trad.
autorizada sob a supervisão de Joan Riviere].
Figulus = Benedictus Figulus.
. Londres: J. Elliot & Co., 1893.
HM =
, Restored and Enlarged. 2 vols. Londres: J. Elliot & Co., 1893 [Trad. de A.E. White].
Jung Letters = C.G. Jung Letters. Vol. 2,1951-1961. Princeton: Princeton University Press, 1976 [Org. de G. Adler - Trad. de J. Hulen].
KY = C.G. Jung. The Psychology of Kundalini Yoga: Notes of the Seminar Given in 1932 by C.G. Jung. Princeton: Princeton University
Press, 1996 [Org. de Sonu Shamdasani].
Lexicon = Martin Ruland, o Velho.
. Londres: J. Elliot & Co., 1893 [Trad. de A.E. White].
MDR = C.G. Jung. Memories, Dreams, Reflections. Nova York: Vintage Books, 1989 [Registradas e organizadas por Aniela Jaffé - Trad. de
R. e C. Winston].
Minerais = Albertus Magnus.
. Oxford: Clarendon Press, 1967 [Trad. de D. Wyckoff].
OC =
. Vol. 1-18. Petrópolis: Vozes [Referidos pelo número do volume e do parágrafo].
Paracelsus =
. 2 vols. Londres: J. Elliot & Co., 1894 [Trad. de A.E. White].
SE =
. 24 vols. Londres: The Hogarth Press/ Institute of Psychoanalysis, 1953-1974 [Org. por J. Strachey).
UE =
. 11 vols. Putnam, Conn.: Spring Publications, 2004-.
4
Prefácio do autor
/.../ com base neste simples sistema de diversas cores
está a investigação variada e infinitamente
diversificada de todas as coisas.
Zósimo de Panópolis {ca. 250)
As páginas seguintes foram escritas para diferentes ocasiões e, exceto pelos capítulos 2, 5 e 6, foram
apresentadas como palestras. Chamei a primeira tentativa de apresentar minha maneira de abordar
esse material, nos anos 1960 no Instituto C.G. Jung de Zurique, de
.
Minha intenção tanto naquele momento quanto agora era oferecer à psicanálise um outro método
para imaginar suas ideias e procedimentos, ao mostrar como a alquimia exibe diretamente a vida
psicológica de um modo ao mesmo tempo mais clinicamente imediato e menos espiritualmente
progressivo.
Palestras na cidade de Nova York e notas para cursos semestrais para estudantes universitários em
1968 (Chicago), 1973 (Yale), 1975 (Syracuse) e 1979 (Dallas) fizeram expandir as fontes e os insights que
elas instigaram, que foram compactados, quando relevantes, nestes capítulos.
Durante todo esse tempo, meu trabalho sempre partiu das extraordinárias conquistas acadêmicas de
C.G. Jung, que abriu o campo para a compreensão psicológica. Embora seguindo suas pegadas, vesti
meus próprios sapatos; ou seja, tento renunciar a uma narrativa grandiosa que encerre a alquimia
numa teoria explanatória, tal como a conjunção de opostos de Jung, ou a realização do Self, evitando a
tentação de fazer sentido por meio da tradução em símbolos universais e em nobre metafísica. Ao
invés, tentei seguir um dos próprios princípios de Jung, ‘ficar com a imagem’ - com as cores, os químicos, os vasos,
o Fogo - imagens da imaginação sensorial que apresentam estados da alma. ‘Ficar com a imagem’ recupera
a antiga máxima grega, ‘salvar os fenômenos’ (sozein ta phainomena), e os fenômenos da alquimia apresentam
um caos. ‘Qualquer outra arte ou ciência são bem razoáveis’, diz um texto básico atribuído a Bonus de Ferrara,1 ‘as
diferentes proposições seguem-se umas às outras em sua ordem lógica; e cada afirmação é explicada e demonstrada pelo que
veio antes. Mas nos livros de nossos sábios, o único método que prevalece é aquele do caos; há, por toda a parte, estudada
obscuridade de expressão; e todos os autores parecem começar, não com os primeiros princípios, mas com aquilo que é bem
estranho e desconhecido dos estudantes. A consequência é que nos debatemos em todos estes trabalhos com pequenos
vislumbres de compreensão somente aqui e ali’ [...].
Obscuridade de expressão é natural da psique. Principal exemplo: nossos sonhos; meros vislumbres.
Salvar os fenômenos da psique conclama um método alquímico do caos, um método que favorece a
beleza surpreendente e a liberdade inventiva da alma, e que fala tanto da psique com psicologia
quanto para a psique com imaginação.
Ao preparar este livro, recebi ajuda e sou grato a Mary Helen Sullivan, ao falecido Gerald Burns, a Stanton Marlan
por valiosas sugestões e por me manter na tarefa, e Klaus Ottman por sua inteligência, gosto e labor.
James Hillman
Thompson, Conn.
Março de 2010
1
Bonus, p. 113-114. Quem foi ‘Bonus’, onde e quando viveu permanece incerto. Cf. Ferguson, J. Bibliotheca
Chemica. 2 vols. Glasgow: James Maclehose and Sons, 1906, vol. 1., p. 115.
5
Sumário
............................................................................................................................................................................................ 1
James Hillman ..................................................................................................................................................................... 2
Psicologia Alquímica............................................................................................................................................................ 2
Nota do tradutor .............................................................................................................................................................3
Abreviações utilizadas neste livro: ..................................................................................................................................4
Prefácio do autor.................................................................................................................................................................. 5
Sumário ............................................................................................................................................................................... 6
1 .......................................................................................................................................................................................... 8
O valor terapêutico da linguagem alquímica: uma introdução aquecida .................................................................................. 8
2 ........................................................................................................................................................................................ 17
Rudimentos ................................................................................................................................................................................. 17
I Fogo .............................................................................................................................................................................17
Fogo dos deuses ......................................................................................................................................................................... 21
Acelerar a natureza .................................................................................................................................................................. 22
II Combustível: Carvão Vegetal e Ar............................................................................................................................24
III Metais .......................................................................................................................................................................26
Resistência ................................................................................................................................................................................ 28
IV Os Vasos ...................................................................................................................................................................29
Vidro......................................................................................................................................................................................... 31
O banho-maria ......................................................................................................................................................................... 32
O Pelicano ................................................................................................................................................................................ 33
O vazio no vaso ........................................................................................................................................................................ 34
V Fornos e fogões ..........................................................................................................................................................36
VI O espírito do Fogo ...................................................................................................................................................38
3 ........................................................................................................................................................................................ 43
O sofrimento do sal ..................................................................................................................................................................... 43
Rumo a uma Psicologia Substancial ......................................................................................................................................... 43
Minas de sal: a extração e a fabricação do sal .......................................................................................................................... 47
Quando e como salgar .............................................................................................................................................................. 52
O fervor do sal .......................................................................................................................................................................... 56
4 ........................................................................................................................................................................................ 63
A sedução do preto ...................................................................................................................................................................... 63
A cor da não cor ....................................................................................................................................................................... 63
A nigredo alquímica.................................................................................................................................................................. 65
Intenções pretas ......................................................................................................................................................................... 66
Mais preto que o preto .............................................................................................................................................................. 69
5 ........................................................................................................................................................................................ 74
O azul alquímico e a unio mentalis ............................................................................................................................................ 74
I Os azuis .......................................................................................................................................................................74
II Animus e anima ........................................................................................................................................................79
6
III Imaginação é realidade.............................................................................................................................................82
IV Unio mentalis ..........................................................................................................................................................88
6 ........................................................................................................................................................................................ 93
A prata e a terra branca ............................................................................................................................................................ 93
Prefacio ..........................................................................................................................................................................93
A prata alquímica: sua natureza e propriedades psicológicas ................................................................................................... 94
A extração da prata ................................................................................................................................................................101
Terra alba, o branqueamento e a anima ................................................................................................................................113
Loucura ..................................................................................................................................................................................140
Pós-escrito ................................................................................................................................................................................148
7 ...................................................................................................................................................................................... 149
O amarelecimento da obra........................................................................................................................................................149
Uma excursão ao enxofre ........................................................................................................................................................151
Entre branco e vermelho..........................................................................................................................................................154
Um caso ..................................................................................................................................................................................159
Também o analista é amarelado.............................................................................................................................................161
Pós-escrito: o amarelo que falta ...............................................................................................................................................164
7
O valor terapêutico
da linguagem alquímica:
uma introdução aquecida
O trabalho alquímico de Jung foi relevante para a psicologia analítica em dois principais
aspectos. Sugiro um terceiro. O primeiro foi muito bem apresentado por David Holt em sua
palestra
.1 Nela, Holt mostra que Jung imaginou seu trabalho teórica e historicamente
substânciado pela alquimia, e que Jung passou uma grande parte de seus anos de maturidade
trabalhando, em suas próprias palavras, ‘uma base alquímica para a psicologia profunda’,2
particularmente o opus da transformação psicológica. Como Holt indica, é para a alquimia que
devemos nos voltar para posicionarmos adequadamente todo o empenho de Jung. Precisamos
da alquimia para compreender nossa teoria.
O segundo aspecto foi profundamente elucidado por Robert Grinnell em seu livro
3
. Ali, Grinnell demonstra incontestáveis paralelos entre os processos
psíquicos de uma paciente italiana moderna e aqueles que acontecem no opus alquímico.
Onde Holt enfatiza a teoria alquímica como background, Grinnell enfatiza a fenomenologia
alquímica na prática. Vemos em Grinnell a continuidade ou ‘arquetipalidade’ de temáticas
alquímicas em estudos de caso.
Desta forma, para trabalhar com a psique em seus níveis mais fundamentais, devemos
imaginá-la como fizeram os alquimistas, pois tanto eles quanto nós estamos engajados com
processos similares, mostrando a nós mesmos em imagens similares. Precisamos da alquimia
para compreender nossos pacientes.
O terceiro ângulo, que agora vou expor, está relacionado com a linguagem alquímica.
Resumidamente, meu ponto de vista é o seguinte: além da teoria geral da transformação
alquímica e além dos paralelos particulares das imagens alquímicas com o processo de
individuação, é a linguagem alquímica que pode ser a mais valiosa para terapia junguiana. A linguagem
alquímica é um tipo de terapia; ela é, em si, terapêutica.
Para falar sobre terapia, precisamos primeiro falar sobre neurose, e aqui sigo a teoria geral de
Jung que diz que a neurose é um ‘desenvolvimento unilateral da personalidade’ (
), o que eu
entendo como o inevitável desenvolvimento unilateral da consciência per se. Penso que Jung
1
2
3
‘
. Palestra proferida na Royal Society of
Medicine, Londres, em 21/11/1974, sob os auspícios do Clube de Psicologia Analítica de Londres.
‘Meu encontro com a alquimia foi decisivo para mim, pois forneceu-me a base histórica que até então me faltava’
(
. Nova York: Vintage Books, 1963, p. 200).
:
. Zurique: Spring, 1973. Cf. tb. seu
. In:
. Fellbach-Oeffingen: Adolf
Bonz Verlag, 1980.
8
quer dizer que a neurose reside nos padrões de organização de nossa personalidade
consciente, em nosso habitual caminho de todos os dias. O que quer que façamos requer
repressão de alguma coisa: faço porque reprimo, ou reprimo porque faço. Como a própria
formulação de Jung afirma: ‘A unilateralidade é uma característica inevitável e necessária do processo
dirigido, pois direção implica unilateralidade’ (
). A neurose pode ser cognitiva, conativa ou
afetiva, introvertida ou extrovertida, pois podemos ser unilaterais em qualquer direção da
personalidade.
A de Jung é uma bela e limitante ideia de neurose, mantendo-a como algo que pode ser
chamado de ‘psicologia do ego’. Eu não iria, não poderia, chamá-la assim por razões que ainda
veremos; mas ao menos a ideia de Jung da unilateralidade protege a neurose de complicadas
explicações em termos de processos socio adaptativos, historicismos desenvolvimentistas,
dinamismos intrapsíquicos, mecanismos de biofeedback e outros jargões. A neurose está
localizada exatamente nos limites da consciência (
). Sou um neurótico por causa do
que acontece aqui e agora, enquanto estou aqui de pé e olho e falo, e não por causa do que
aconteceu antes, ou acontece na sociedade, ou em meus sonhos, fantasias, emoções,
memórias, sintomas. Minha neurose reside em minha mente e na maneira pela qual ela
constrói o mundo e se comporta nele.
Bem, a linguagem é essencial a todo aparato mental de toda personalidade. Então, a
linguagem deve ser um componente essencial de minha neurose. Se sou neurótico, sou
neurótico na linguagem. Consequentemente, a unilateralidade que caracteriza toda neurose
em geral é também encontrada especificamente como uma unilateralidade na linguagem.
Uma implicação importante dessa afirmação é que, para descobrir as características de
qualquer neurose, devo examinar as especificidades de linguagem essenciais a esta, os estilos
de discurso nos quais a neurose está contida. Jung começou nesse caminho com seus estudos
sobre associações de palavras; a semântica diferencial de Charles Osgood e a psicologia de
constructos pessoais de George Kelly poderiam levar-nos além em detalhes e praticidade.
Há muito a apreender com respeito à retórica das neuroses. Pois nós psicólogos escutamos o
estilo do discurso e não apenas os conteúdos deste discurso, e o tom e corpo de sua voz.
A psicologia arquetípica já começou a examinar a linguagem, especialmente os estilos
retóricos do discurso manifesto, seja na hora, nos relatos de sonho, ou em trabalhos escritos,
e dentro das próprias palavras. Mas deixamos tudo isso de lado hoje em dia.
A principal implicação desta proposição de que a unilateralidade da neurose ocorre
essencialmente na unilateralidade da linguagem nos levará mais diretamente à meta desta
introdução.
Para chegar lá rapidamente, deixe-me limpar o terreno em um arranco, um pulo e um salto.
O arranco: uma vez que a linguagem é amplamente social, a unilateralidade da minha
linguagem reflete a linguagem coletiva da sociedade. Então, o pulo: Jung já tinha definido a
linguagem coletiva como ‘dirigida’ (‘processo dirigido’, ‘pensamento dirigido’ ) e eu
tinha atacado isto em várias oportunidades sob seus disfarces de ‘nominalismo’, ‘racionalismo’,
‘linguagem psicológica’, ‘consciência apolônica’ e ‘conceitos diurnos’. Por último, o salto: a linguagem
conceitual, que é nominalista e por isso nega a substância e a fé em suas palavras, é o estilo
9
retórico usual do ‘ego’, especialmente do ‘ego’ dos psicólogos, e é o locus crônico de nossa
neurose coletiva como ela aparece na linguagem.
Você vê que estou afirmando, como fizeram Freud e Jung de outras formas, uma neurose
cultural geral de unilateralidade ocidental. Entretanto, estou localizando essa neurose em
nosso processo dirigido de linguagem, o qual é dirigido a partir de dentro (pois, afinal, quem ou o
que dirige nosso pensamento dirigido?) por suas estruturas sintáticas, gramaticais e
conceituais inerentes, resultando em racionalismo conceitual.
Horrible dictu, essa neurose é reforçada pelo treinamento acadêmico que devemos ter para nos
transformarmos em membros da profissão psicoterapêutica. Por racionalismo conceitual
entendo artigos como este aqui, artigos que explicam eventos em termos conceituais ao invés
de em palavras-objeto, palavras-imagem, palavras-arte. Também me refiro ao nosso habitual
uso de verbos de identidade (tais como ‘é’), os quais inconscientemente substantivam os
mesmos termos que nós conscientemente declaramos ser somente nominais. Portanto, nos
hipostasiamos nossas hipóteses. Desenvolve-se uma divisão entre teoria e prática, ou até
mesmo uma ilusão teórica sobre a prática. Como Jung, afirmamos que nossas declarações
conceituais são somente heurísticas; mas, por causa da linguagem, não podemos evitar uma
substantivação na prática daquilo que nossa teoria afirma ser somente heurístico, somente
hipotético. Simplesmente somos pegos no literalismo de nossa própria linguagem.
Nos falamos em conceitos: o ego e o inconsciente; libido, energia e instinto; opostos,
regressão, função sentimento, compensação e transferência. Quando trabalhamos com esses
termos, curiosamente esquecemos que eles são apenas conceitos, úteis apenas para abarcar
eventos psíquicos que eles inadequadamente descrevem. Sobretudo tendemos a descuidar do
fato de que esses conceitos oprimem nosso trabalho porque chegam carregados com sua
própria história inconsciente.
Então, não apenas como Jung diz, são os conceitos psicológicos ‘irrelevantes na teoria’, mas como
ele também diz, o psicólogo ‘deve desfazer-se da noção comum de que o nome explica o fato psíquico que
ele denota’ (
). Todavia nós, psicólogos, imaginamos esses termos conceituais como
sendo palavras-coisas, pois como Jung continua: ‘A psicologia [...] ainda sofre de uma [...] mentalidade
na qual nenhuma distinção é feita entre palavras e coisas’. O que é essa mentalidade, essa aflição?
Está Jung falando de literalismo, daquela unilateralidade da mente que experimenta a
linguagem apenas singularmente?
Em tal consciência não há ‘como se’ entre a palavra e o que quer que ela esteja descrevendo.
Então os sujeitos em nossas frases tornam-se sujeitos existentes e os objetos tornam-se fatos
objetivamente reais. Então, conceitos tais como o ego, o inconsciente, a função sentimento, a transferência
tornam-se literalmente coisas reais. Substantivos tomam-se substâncias - tanto é que
consideramos esses conceitos capazes de explicar a personalidade e suas neuroses. Mas estou
argumentando que esses mesmos termos conceituais - ego, inconsciente, transferência - são a
neurose.
Da mesma forma que Freud começou pela desliteralizacao da memória do trauma sexual em suas
fantasias, e da mesma forma como Jung começou desliteralizando incesto e libido, precisamos
desliteralizar um bando de outros conceitos substancializados, começando com ‘o ego’ e ‘o inconsciente’.
Pessoalmente, nunca encontrei nenhum deles, exceto em livros de psicologia.
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Penetrar na alquimia - em suas palavras-coisa, palavras-imagem, palavras-arte. Todas as cinco
supostas fontes da alquimia são tecnologias. Cada uma é um trabalho manual que lança mão de
materiais sensoriais. (1) Metalurgia e joalheria: extrair, aquecer, derreter, forjar, temperar; (2) Tecidos e
tingimento: banhar, colorir, secar; (3) Embalsamamento dos mortos: desmembrar, esvaziar, infundir, preservar;
(4) Perfumaria e cosmética: moer, misturar, destilar, evaporar; (5) Farmácia: distinguir, fazer tinturas, dosar,
dissolver, dissecar, pulverizar. A essas fontes tradicionais é preciso acrescentar a preparação e
conservação de comida, os atos diários de transformar materiais crus em alimentos saborosos e nutritivos.
Para uma mente que não separou denotações conceituais de inferências metafóricas, todas
estas atividades manuais e sensoriais carregavam noções sobre a natureza, a vida, a morte e a
alma. Um ferreiro tinha que saber como lidar com o Fogo e controlar o calor; um farmacêutico
deve fazer misturas nas proporções corretas, ou um remédio poderia matar em vez de curar.
(A própria palavra pharmakon significa tanto veneno quanto remédio.)
As matérias básicas da personalidade - sal, enxofre, mercúrio e chumbo - são materiais
concretos; as descrições da alma, aqua pinguis ou aqua ardens, assim como as palavras para os
estados da alma como albedo e nigredo incorporam eventos que podemos tocar e ver. O
trabalho de fazer alma requer ácidos corrosivos, solos pesados, pássaros ascendentes; há reis
transpirantes, cachorros e cadelas, fedores, urina e sangue.
Quão semelhante a linguagem de nossos sonhos é diferente da linguagem com a qual
interpretamos nossos sonhos! Quando a alquimia fala em níveis de calor, ela não usa
números. Ao invés disso, ela se refere ao calor do estrume do cavalo, ao calor da areia, ao
calor do metal tocando o Fogo. Esses calores diferem, além do mais, não somente em níveis,
mas também em qualidade: o calor pode ser lento e brando, ou úmido e pesado, ou súbito e
agudo. Da mesma forma, o calor do estrume do cavalo revela as propriedades materiais
aquecidas do próprio estrume. O calor não pode ser abstraído do calor do corpo que lhe
origina.
As palavras para os vasos alquímicos - as formas da alma nas quais nossa personalidade está sendo
trabalhada – contrastam com os conceitos que utilizamos, conceitos tais como espaço interior
ou objetos internos, ou fantasia, paciência, repressão, supressão, relacionamento. A alquimia
apresenta um arranjo de diferentes qualidades de vaso, diferentes fragilidades, visibilidades e
formas: espiral de condensamento, alambiques de várias cabeças, pelicanos, retortas, panelas
planas abertas. Usa-se cobre, vidro ou argila para conter a substância e cozinha-la.
Finalmente, as palavras para as operações – aquilo que se faz ao trabalhar com a psique – são
também concretas. Aprendemos a evaporar o vapor, a calcinar para queimar paixões em
essências secas. Aprendemos sobre condensamento e congelamento de condições nubladas para
delas pegar gotas duras e limpas. Aprendemos sobre coagulação e fixação, sobre dissolução e
putrefação, sobre mortificação e enegrecimento. Compare essas palavras artesanais da alquimia com
as palavras usadas para as operações da psicoterapia: analisando a transferência, regressão a
serviço do ego, desenvolvimento da função inferior, administrando a raiva, identificação sintônica, demonstrando
hostilidade; melhorar, negar, resistir, identificar... Essa linguagem não é apenas abstrata; ela é
imprecisa. Por causa dessa imprecisão em nosso equipamento, em nossos conceitos para
alcançar os movimentos da alma, acabamos acreditando que a alma e em si um fluxo
inapreensível, quando na verdade a psique sempre se apresenta em comportamentos,
experiencias e imagens bem especificas e sensoriais.
11
Antes que seu pensamento fosse tocado pela alquimia, Jung levantava dúvidas com relação a
linguagem sensorial de que ele tanto gosta. Em 1921, escreve em seu
:
As funções racionais são, por natureza, incapazes de criar símbolos já que produzem apenas
um produto racional necessariamente restrito a um significado único, o que o impede também
de abarcar seu oposto. As funções sensoriais também são inadequadas para a criação de
símbolos porque, pela própria natureza do objeto, elas também estão confinadas a sentidos
únicos que abarcam apenas eles mesmos e negam o outro.4
Entendo que Jung esta afirmando que a percepção sensorial e tão unilateral quanto a
compreensão conceitual, o que implica, portanto, que a linguagem sensorial se aferra a seus
referentes (as coisas e operações concretas da alquimia) de forma que outras conotações não
podem emergir. Aqui, creio, Jung está confundindo o concreto com o literal. A alquimia
afastou Jung do racionalismo sistemático dos Tipos. Podemos agora enxergar, como cita Holt,
quão necessária foi a alquimia para fornecer uma base para sua psicologia profunda, pois a
alquimia abandona inteiramente o literalismo unilateral. Nenhum termo significa apenas
uma coisa. Todo fenômeno alquímico é tanto material quanto psicológico ao mesmo tempo;
do contrário, a alquimia não poderia se enxergar como salvação tanto da alma humana
quanto da natureza material. Ela é toda metafórica (simbólica, no sentido que Jung dava a esta
palavra em 1921). Toda analógica. Toda uma poiesis da mão.
Nossas mentes ainda retêm essa propensão alquímica para transformar tecnologia em
psicologia. A gíria psicoterapêutica revela como de verdade imaginamos muito antes que a
profissão chegue a conceitos sofisticados. A linguagem do trabalho manual, do esforço
técnico, emerge da oficina mecânica de automóveis. Lá, na garagem, abundam metáforas para
nossa vida psíquica: realinhamentos, ligações diretas, ajustar freios, encher o tanque, trocar o
óleo, balancear...
Desde que Jung abriu as portas da alquimia para os psicólogos, tivemos a tendência de
adentrá-la em apenas uma direção: aplicamos nosso pensamento dirigido ao pensamento de
fantasia da alquimia, traduzindo suas imagens em nossos conceitos. Rainha Branca e Rei
Vermelho viraram os princípios feminino e masculino; sua relação sexual incestuosa
transformou-se em união dos opostos; o hermafrodita louco e o uniped, a cabeça dourada com
cabelos prateados, vermelho por dentro e preto por fora - estes viraram representações
paradoxais da meta, exemplos de androginia, símbolos do Self. Você vê o que acontece: a
imagem sensorial desaparece dentro do conceito, precisão em generalização. Até mesmo as
imagens peculiares do Rosarium Philosophorum (
), que provocam contemplação perplexa, é
pedido que sirvam como um manual para uma psicologia geral da transferência.
Podemos entrar pela porta de modo diferente. Podemos tentar traduzir de modo oposto: as
realidades da psicoterapia e a linguagem que usamos para conceber aquelas realidades
colocadas imageticamente dentro das precisas palavras alquímicas - palavras-objeto, palavrasimagem e palavras-arte. O livro de Grinnell faz exatamente isso - e assim as mentes
conceitualmente viciadas acham a leitura difícil. Pesada. É duro e pesado precisamente
porque fala sobre o opus em palavras concretas.
4
. Nova York: Pantheon, 1923, p. 141-142.
12
Podemos também simplesmente não atravessar a porta. Pois se para começar passamos por
cima dos conceitos, não precisamos de traduções. Então falaríamos aos sonhos e dos sonhos
como os próprios sonhos falam. (Por ‘sonho’ aqui entendo também o sonho, ou fantasia,
dentro do comportamento.) Isto me parece acompanhar a máxima de Jung de seguir
sonhando o mito. Para fazê-lo devemos falar em termos de sonho, imageticamente - e
materialmente. Introduzi ‘materialmente’ porque estamos perto do extremo,5 e o extremo da
alquimia é a matéria. E o extremo de nossa prática também - fazer a alma ter importância6
para o paciente, transformar seu sentido do que tem importância. Holt, seguindo Jung, já havia
mostrado que a alquimia é essencialmente uma teoria de redenção do físico, redenção da
matéria.
Se é assim, então esse processo de redenção deve também ter lugar em nosso discurso, no
qual a ausência de matéria e mais severa e, especialmente, porque essa privação está tão
próxima que nós e inconsciente até mesmo quando falamos. Mal podemos esperar que a
terapia - tão dependente do discurso - trabalhe essa massiva maldição da consciência
ocidental, nossas torturas na relação com a matéria, se a ferramenta com a qual trabalhamos,
nosso discurso, não tiver ele mesmo resolvido a maldição. Nosso próprio discurso pode
redimir a matéria se, por um lado, ele desliteralizar (dessubstanciar) nossos conceitos,
distinguindo entre palavras e coisas, e se, por outro lado, ele rematerializar nossos conceitos,
dando a eles corpo, sentido e peso. Nós já fazemos isso inadvertidamente quando falamos
sobre o que os pacientes trazem como ‘material’, quando procuramos pelas ‘bases’ (grounds) de
suas queixas, e também ao tentarmos fazer ‘sentido’ disso tudo.
Repenetrar na alquimia. Sua beleza está justamente na sua linguagem materializada, a qual
ao mesmo tempo nunca podemos tomar literalmente. Eu sei que não sou formado de enxofre
e sal, não estou enterrado em estrume, putrefazendo ou congelando, ficando branco ou verde
ou amarelo, cercado por uma serpente que morde o seu rabo, elevando-me em asas. E todavia
eu sou! Não posso tomar nada disso literalmente, mesmo que seja tudo preciso,
descritivamente verdadeiro. Mesmo quando as palavras são concretas, materiais, físicas,
sabemos de cara que seria um grande erro tomá-las literalmente. A alquimia nos dá uma
linguagem da substância que não pode ser tomada substancialmente, expressões concretas
que não são literais.
Este é o efeito terapêutico da alquimia: ela força a metáfora sobre nós. Somos carregados pela
linguagem para dentro de um como-se, para dentro tanto da materialização da psique quanto
da psiquização da matéria ao pronunciarmos nossas palavras.
Os textos alquímicos são monstruosamente arcanos. Estão compactados de camadas
entrelaçadas de referências e analogias. Parecem deliberadamente afetados, supostamente
para esconder seus segredos da mente comum e das autoridades dogmáticas. Mas há uma
intenção mais profunda, mais psicologica, por trás do obscurantismo da alquimia.
Os sábios nunca davam um nome a qualquer de suas coisas, nem as comparavam com algo, a
menos que houvesse um aspecto que requisesse a contemplação do observador e sua
5
6
‘Extremo’ aqui é a tradução de crunch, que também significa ‘crise’, ‘hora decisiva’ ou ‘trituração’ [N.T.].
Aqui, o autor faz um trocadilho significativo com a palavra matter que significa ‘importar’, ‘ter importância’, mas
que também significa ‘matéria’ (N.T.).
13
meditação (...). Eles não cunhavam exemplos ou descrições, exceto no sentido de apontar por
meio deles sua pedra escondida. Eles não os inventavam para diversão ou entretenimento.7
A própria linguagem tem um efeito psicológico.
A linguagem do homem deve esforçar-se para capturar a densidade de sentido (a pedra escondida)
transmitida pelos signos. É propriamente esse fato que faz dos textos paracélsicos algo tão
difícil de interpretar. Seu vocabulário fantástico não está desenhado para definir características
únicas e singulares dos fenômenos; ao invés, está construído para revelar tanta profundidade de
sentidos quanto possível - suas palavras intencionam reverberar na imaginação com muitos
sentidos.8
A linguagem conceitual, entretanto, não é uma metáfora auto evidente. Ela é muito
contemporânea para ser transparente; estamos vivendo bem imersos nela, e seu mito está
acontecendo em tudo que se refere a nós - então ela não tem um senso metafórico embutido.
Eu certamente não sei, e não posso perceber, que eu não seja verdadeiramente composto de
um ego e um Self, de uma função sentimento e um instinto de poder, de posições depressivas
e ansiedades de castração. Isto soa literalmente real para mim e, a despeito de minha própria
experiencia em usar esses termos, há uma inutilidade assombrosa neles. O nominalismo9 fez
com que desacreditássemos em todas as palavras - o que há em um nome? - pois elas são
somente ‘palavras’, ferramentas; qualquer outra serviria da mesma forma. Elas não tem
substância.
Mas nossa linguagem psicológica se tornou literalmente real para nós, apesar do
nominalismo, porque a psique precisa demonizar e personificar, o que na linguagem torna-se
a necessidade de substancializar. A psique anima o mundo em que habita. A linguagem é
parte dessa atividade de animação (por exemplo, o discurso onomatopeico com o qual supõese que a linguagem ‘começou’). Se a minha linguagem não preencher essa necessidade de
substanciar, a psique vai substanciar de qualquer modo, inesperadamente, endurecendo meus
conceitos em coisas físicas ou metafísicas.
Devo insistir que não estou propondo um cancelamento de nossos conceitos e uma
restituição dos neologismos arcaicos da alquimia como um novo esperanto para nossa prática
e para nossos assuntos. Isso seria apenas tomar a linguagem alquímica literalmente. Eu não
quero dizer: vamos começar a falar de alquimia: o quero dizer e, primeiro vamos falar como
alquimistas, como se estivéssemos falando alquimicamente. Então podemos falar de alquimia como
alquimistas, usando seus velhos termos loucos, porque então não os estaremos usando como
substituições literais para nossos conceitos, meramente trocando um jogo de categorias
conceituais por outro. Assim, não é um retorno literal para a alquimia o que e necessário,
mas uma restauração do modo alquímico de imaginar. Pois nesse modo restauramos a
matéria em nosso discurso - e isto, afinal de contas, é nosso objetivo: a restauração da
matéria imaginativa, não da alquimia literal.
7
8
9
Muhammad Ibn Umail.
Hofmeier, T. (orgs.).
Hannaway, O.
1984, p. 63.
Cf. a discussão sobre nominalismo em meu
vendo a psicologia. Petrópolis: Vozes, 2010].
(Kitab Hall Ar-Rumuz). In: ABT, T.; Madelung, W. &
. Vol. 1. Zurique: Living Human Heritage, 2003, p. 73.
. Baltimore: Johns Hopkins University Press,
. Nova York: Harper and Row, 1975, p. 5-8 [Re14
Eu disse antes que a unilateralidade da neurose é perpetuada em nossa linguagem
psicológica, em seu racionalismo conceitual. Unilateralidade - essa definição geral da neurose agora se torna mais precisa. Ela agora pode ser vista referindo-se a natureza ampla de nossas
ferramentas de compreensão, nossos conceitos, que organizam a psique de acordo com suas
formas. Nossos conceitos estendem sua compreensão sobre imagens concretamente vividas
ao abstrair (literalmente ‘empurrar para longe’) sua matéria. Nós não vemos mais a urna funeral
de barro ou a estufa de ferro com um centro de cerâmica, mas a ‘Grande Mãe’; não mais vemos
o mar além do porto, o cano de esgoto entupido com estrume ou uma madeira de arvore
numa noite de verão, mas ‘o Inconsciente’.
Como podemos ter fé no que fazemos se as palavras que usamos para isso são
desincorporadas de substância? Aqui novamente me junto a Grinnell e Holt, que consideravam
a fé como a chave para todo o opus psicológico e alquímico. Porém, eu localizaria essa fé nas
palavras que expressam, operam, até são essa empreitada. Novamente: conceitos abstratos,
nominações psicológicas que não importam nem tem peso, querendo ou não acrescentam
sempre mais dureza, imobilidade plúmbea e fixação, tornando-se objetos ou ídolos de fé ao
invés de serem seus portadores vivos.
Quando falamos psicologicamente não podemos evitar nos tornarmos rigidamente
metafísicos porque a imaginação física foi esvaziada de nossas palavras. De acordo com Jung,
a neurose está dividindo, e a terapia juntando. Se nossa linguagem conceitual divide
neuroticamente ao abstrair a matéria da imagem e ao falar somente a partir de um lado,
então o ‘como se’ da metáfora é em si mesmo psicoterapia exatamente porque distingue dois
ou mais níveis - sejam palavras e objetos, eventos e significados, conotações e denotações juntando-os na própria palavra. Se a coniunctio é uma metáfora imaginada, então metáforas
são a coniunctio falada.
Em especial, nossa linguagem conceitual separa psique imaterial de matéria sem alma.
Nossos conceitos definiram de tal maneira essas palavras que esquecemos que matéria é um
conceito ‘na mente’, uma fantasia psíquica, e que alma é nossa experiencia de vida entre
coisas e corpos ‘dentro do mundo’.
Quando Jung envelheceu, ele se ocupou cada vez mais com esta divisão em particular matéria e alma, tentando juntá-la sempre com novas formulações: psicoide, sincronicidade, unus
mundus. Mesmo definidas como abrangendo ambos os lados e mesmo que apresentadas
ambígua e simbolicamente, essas palavras (diferentes, por exemplo, das alquímicas ‘pedra
suave’, ‘hermafrodita’ ou ‘Casamento Real’ no Mar dos índios), somente reforçam o efeito de
divisão inerente em tal linguagem unilateral. Pois elas também são conceitos, sem corpo ou
imagem. Então, a psicologia continua neurótica: temos uma psique nominalista sem matéria
(e, portanto, fantasia e imagem não importam ‘realmente, estão ‘somente’ na mente ou devem
magicamente conectar-se com a matéria na sincronicidade), e uma matéria desalmada que
busca sua redenção por meio de terapias corporais, consumo hedonista e marxismo.
Terminamos com uma afirmação cultural sobre a neurose e sua terapia, parecida a que foi
feita por Freud e por Jung.
Nossa neurose e nossa cultura são inseparáveis. Depois da fala dúbia política, dos jargões e
do pentagones, depois do cientificismo sociológico e econômico, do gerenciamento do
discurso pela mídia e de todos os outros abusos - até aqueles de Lacan e Heidegger e as teorias
15
de comunicação realizadas em nome da linguagem - que esgotaram as palavras de seu
sangue, trouxeram para nossos dias uma nova síndrome, mutismo infantil, e nos fizeram na
psicologia perder a fé no poder das palavras, tanto que a terapia deve se voltar para gritos e
gestos: depois disso tudo estou apaixonadamente sugerindo um modo de recuperar a
linguagem retornando ao discurso que importa. Estou também retornando a Confúcio, que
insistia que a terapia da cultura começa com a retificação da linguagem. A alquimia oferece
essa retificação.
16
Rudimentos
I Fogo
Pois tudo o Fogo, aproximando-se, julgará (e condenará).
Heraclito
Reconhecerias o Mestre perfeito? É aquele que entende de regular o Fogo e seus graus.
Nada se provará a ti tão formidável impedimento quanto a ignorância do regime - do
calor e do Fogo.
Thomas Norton
Desejar não é suficiente; de fato, o desejo ignorante se frustra ou se deixa queimar. Para que
o desejo se consuma, para que a opus tenha fruição - na arte, no amor, em qualquer tipo de
prática - aprenda tudo o que puder sobre seu Fogo: sua radiância, sua instabilidade
tremeluzente, seu calor e sua raiva. O Fogo, como um elemento acima e abaixo da razão
humana, requer uma ‘psicanálise do Fogo’ - o próprio título do estudo exemplar de Bachelard.1
A arte do Fogo e a chave da alquimia significam aprender como aquecer, excitar, entusiasmar,
inflamar, inspirar o material a mão, que é também o estado de nossa natureza, de forma a
ativá-la rumo a um estado diferente.
É claro que o laboratório, o forno, os alambiques e as retortas, os cotrabalhadores são
invenções imaginárias tanto quanto fenômenos materializados. Você é o laboratório; você é o
vaso e a coisa sendo cozinhada.2 Assim, também o Fogo é um calor invisível, um calor
psíquico que clama por combustível, lugar arejado e consideração amorosa constante. Como
produzir o calor que pode secar o orvalho encharcado, derreter as opressões plúmbeas e
destilar umas poucas e preciosas gotas de claridade intoxicante?
Na Grécia, nos templos de Asclépio onde os ‘pacientes’ iam para encontrar cura ao sonhar,
eles incubavam por um período de tempo devotando-se a um chocar focado e a
procedimentos corretos de forma a serem abençoados por um sonho benéfico.
1
2
Bachelard, G.
. Boston: Beacon Press, 1964 [Em português:
. São Paulo:
Martins Fontes, 1994 - Trad.de Paulo Neves].
Tanto o corpo metálico quanto o alquimista sofrem e sentem prazer no processo. Não apenas as substâncias se
juntam no alambique, também o alquimista ao mesmo tempo junta-se com a natureza’ (Lindsay, J.
. Londres: Frederick Muller, 1970, p. 294).
17
Na Bíblia, Jonas, abandonado por seus companheiros, teve que permanecer por um tempo na
barriga de uma grande baleia nas profundezas do mar. Naquela escuridão ele gerou calor,
perdeu seus cabelos. Confinamento solitário; internalidade máxima.
Esta é Nekya3 a viagem marítima noturna através do mundo das trevas, também feita por
Ulisses, Enéas e Hercules, e por Eurídice, Inana, Perséfone, Psique, por Orfeu, por Cristo. Quer seja frígido
e horripilante, ou fervente com os calores do inferno, esse mundo das trevas é um território
caracterizado por temperaturas adequadas apenas a demônios, fantasmas, heróis e heroínas,
deusas e sombras que já não pertencem inteiramente ao mundo de cima. Forasteiros.
Marginais. Alquimia. Uma profissão de marginais; aqueles dos extremos. Aqueles que vivem
de seu próprio Fogo, suando-o, autossustentando suas próprias temperaturas que podem
diferir do clima coletivo. Tapas: o ardor do calor interno. Na Índia, o sábio senta-se na neve
do Himalaia e com o calor de seu próprio corpo derrete um lugar para ficar contido por seu
próprio continente.
O Fogo da natureza é tanto celestial, descendo do sol, das estrelas e dos trovões, quanto
ascendendo da terra em fontes termais, gases, gêiseres e vulcões. O alquimista trabalha com
ambos os tipos, os que vêm do além para a esfera humana, os clarões e as febres, manias
explosivas e cegueiras por olharmos para a luz, como também os fogos culinários interiores,
os calores metabólicos do corpo que guisam, digerem e derretem os lombos de prazer.
‘Quanto maior a estatura espiritual de uma pessoa, maior a paixão sexual’, diz o Talmude (Tract. Sukkah).
Como o Fogo que lambe e se junta ao tronco que queima, a paixão gruda-se aos corpos da
vida. “Li/Aderir” (30), descreve o trigrama da filha do meio do
. Como as garras de um
gato, as patas de um leão, o Fogo sulfúrico liga-se ao objeto de seu desejo, ou liga-se ele
mesmo a seu desejo. Calor interno intenso como o momento da fertilidade. A cadela está no
cio (heat): ‘Solo aestu libidinis’, o calor apenas da libido liberta Mithras da pedra.
Se a alquimia é a arte do Fogo, e os alquimistas, ‘artistas do Fogo’, como repetem tantos
textos, então o alquimista deve ‘conhecer’ todos os tipos de Fogo, graus de Fogo, fontes de
Fogo, combustíveis para o Fogo. E o alquimista deve ser capaz de combater Fogo com Fogo,
usando seu próprio Fogo para operar sobre os fogos com os quais está operando. Trabalhar o
Fogo por meio do Fogo. A natureza trabalha a natureza. A alquimia, uma arte da natureza,
uma arte natural que aumenta as temperaturas da natureza. “O tempo da natureza é extremamente
longo, e o modo de sua cocção é uniforme, e seu Fogo é bem lento. O da Arte, por outro lado, é curto; o calor é
controlado pela inteligência do artista, assim o Fogo é também feito mais intenso ou mais brando.”4
Enquanto a ciência mede o calor por graus de temperatura, a alquimia observa os diferentes
tipos de calor, as qualidades do Fogo. O calor aumenta à medida que a obra prossegue,
crescendo através de quatro estágios clássicos. ‘Cada um destes é duas vezes maior que seu precedente’,
diz Mylius.5 Textos diferentes descrevem esses quatro estágios em diferentes imagens, mas as
seguintes ocorrem mais frequentemente: uma galinha choca,6 vagarosa e branda como a
3
4
5
6
Jung, C.G.
.•
Maier (1617), apud
.
. Mineola, N.Y.: Dover, 1995, p. 37.
(1612), apud READ, J.
. Cambridge: MIT
Press, 1966, p. 264.
‘O Fogo deve ser brando, suave e úmido, como aquele de uma galinha chocando seus ovos’ Lexicon, v.
‘
’.
18
carne; o sol em junho; grande e forte Fogo calcinante, queimador e veemente capaz de
derreter o chumbo ou fundir o ferro. Outro texto lista os quatro como agua de banho, banho
de cinzas, banho de areia e chama nua. O Dicionario de Ruland preenche os quatro estágios
com descrições ricas.7 [‘O primeiro grau é muito vagaroso, e é como uma tepidez inativa; é chamado de
calor de um banho morno, do excremento, da digestão, da circulação [[...]] semelhante ao calor gerado por uma
galinha chocando sua cria’. Evidentemente, esse Fogo é gerado por chocar, digerir e manter
dentro do corpo inferior seus intestinos fermentosos e ventre silencioso. As atitudes são
mornas, acanhadas. A vagareza e a limitação da ação são por si mesmas capazes de
desenvolver calor.
“O segundo grau é mais feroz, ainda que seja seguro tocá-lo, e não machuca a mão. Eles o chamam de calor das
cinzas [...]. Cinzas, por causa de sua finura, não produzem muito Ar.” O capítulo 9 adiante discute o
papel do Ar; aqui, podemos notar que esse segundo estágio é alimentado com pouco
combustível. Tem pouca inspiração, nenhuma respiração pesada. Ao invés, uma lentidão
asfixiante, empoeirada, cinzenta, seca. “Não sobrou nada de mim, apenas cinzas”.8 “A cinza sobre um
velho é toda a cinza/Que nos deixaram as rosas já sem viço.9 Esse calor pode ser tocado, manejado, vindo
provavelmente de resíduos peneirados, um calor que se levanta da quentura das reminiscências, misturando
memória e desejo”.10 Leia Eliot, Proust; leia Akhmatova: o calor feroz de cinzas finas, não revolvidas
pelas brisas da fantasia.
Por que feroz? Porque a cinza é a redução máxima, a alma nua, a última verdade, tudo o mais
dissolvido. ‘A cinza é tudo’, disse Zosimo de Panopolis,11 o ‘primeiro alquimista, a autoridade
patronal da disciplina’. O Rosarium Philosophorum (OC 16) diz que a cinza ‘permanece’, e Muhammad
, o alquimista árabe do século X conhecido no Ocidente latino como Zadith
Senior, escreve em sua
: “Cinzas queimadas e a alma são o ouro do sábio”. Feroz? Porque
somos assados em nossa própria natureza básica.
“O terceiro grau queimará a mão, e é comparado a areia fervente ou limaduras de ferro”. Dissecação, uma
condição da alma conhecida na Idade Média como siccitas acedia, a depressão seca da alma
forçada pela resolução da vontade a realizar sua tarefa. O ferro de Marte, raivoso. O tempo no
deserto infinito sob um sol causticante. Esse Fogo ‘queimará a mão’, de forma que não pode ser
manejado. Está fora de controle, fora de alcance. Se o primeiro estágio era mantido no corpo
e o segundo na memória, este é o calor da determinação desesperada, uma fúria isolada que
torna a obra cada vez mais quente.
“O quarto é o grau mais alto e é geralmente o mais destrutivo!...] uma chama viva e produzida da madeira ou do
carvão.” Bernardus de Treviso diz: o quarto está ‘no ferro, ou na chama’.12 Além da óbvia associação do
7
8
9
10
11
12
Lexicon, v. ‘
’. Norton descreve quatorze qualidades quentes do calor de modo crescente
(‘
’. In: HM/2).
Cocteau .
. Nova York: Coward-McCann, 1967, p. 32.
Eliot, T.S.
’.
. Nova York: Harcourt Brace &
Company, 1952, p. 139.
‘
’.
... Op. Cit. p.37.
Berthelot . (org.).
. Paris: Georg Steinheil, 1888,
III.LVI.
Lexicon, v. ‘Ignis’.
19
ferro e da chama com o ferreiro e a forja, há uma implicação do guerreiro-do-espírito no
terceiro e no quarto graus. O santo do deserto, ascetismo; ‘é morte para a alma tornar-se úmida’,
disse Heraclito, para quem o Fogo era o princípio básico. Toda a viscosidade da alma
queimando nas chamas, desaparecendo no Ar fino, e a mundanidade esfumaçada, oleosa e
fedorenta dos desejos sulfúricos foi purificada. É uma mudança do enxofre ‘comum’ ao
‘enxofre claramente ardente’ (ignis clare ardens) ou ‘Fogo extinto’ (ignis extinctus), ‘Enxofre privado de sua
virtude’.13
Os dois fogos mais quentes são recomendados para a operação chamada calcinação: ‘A
redução dos corpos em Cal por queima’.14 Cal = ‘qualquer pó reduzido pela separação de umidade supérflua’.15
A redução da confusão a uma essência, da umidade ou de um sólido a ‘um fino pó’,16 de
lembranças nebulosas a uma imagem pungente, de um bloqueio teimoso a fantasia leve.
Epitome = Epifania. A realização essencial. Momentos na memória ou uma tecedura de
sensações (odores, sabores) desbridadas de associações pessoais, deixando apenas uma cal,
um correlativo objetivo da questão super-determinada. Nenhum relato enfadonho das
circunstâncias, apenas o coração quente da coisa. Nenhuma causalidade. Nenhum contexto
ou condições. A verdade daquilo que é porque simplesmente é - não amalgamada. Redução
máxima por meio do calor. ‘Seu material só pode ser cozinhado em seu próprio sangue’, dizem os textos.
Esses pós trabalham em outros corpos como catalisadores e ativadores, entrando em
misturas, absorvidos e desaparecidos. Ou, como um pigmento em pó que, quando tocado por
uma gota viva de umidade (uma dor cruciante de desgosto, uma onda de volúpia, um jorro de
esperança), pode colorir toda uma cena. O alquimista trabalha com essas essências, essa
natureza tratada, cozinhada, conquistada, não com a natureza crua. O corpo calcinado é
aquele que passou pelo Fogo, um corpo renascido, um corpo sutil, não mais ligado ao que
esteve ligado e que, portanto, pode ser inteiramente absorvido pela obra.
O calor medido em números num termômetro não tem qualidades palpáveis, apenas mais
alto ou mais baixo, mais ou menos. Bidimensional. O calor qualificado por uma galinha
choca, chumbo derretido, pelas estações, cinzas, traz a imaginação do operador diretamente
para uma relação com o Fogo. Além disso, esses calores particularizam o Fogo. A quentura
dada por um banho é sentida de modo diferente que a quentura que irradia de carvão aceso.
Assim como o calor do vento do deserto difere da umidade da selva. A fonte do calor
qualifica o calor, leva para o calor suas virtudes de cinza, água, esterco, chama. Quando a
alquimia usa termos para o Fogo tais como ‘Fogo persa’ (ignis persicus) (uma úlcera torturando
com um calor de Fogo),17 ‘barriga do cavalo’ (venter equi), ou ‘Fogo do leão’ (ignis leonis), ela
estimula uma atenção cuidadosa às imagens, uma prática semelhante a cuidadosa observação
cientifica do termômetro. Termos poéticos tomam a medida da imaginação.
13
14
15
16
17
Ibid., v. ‘
’.
Ibid., v. ‘Combustio.’
Ibid., v. ‘Calx’.
Alchemy. Harmondsworth: Penguin Books, 1957, p. 45.
Lexicon, v. ‘
’.
20
Figulus avalia graus de calor pela mão.18 “O primeiro grau é aquele que permite que a mão o segure [[...]].
Um segundo grau é aquele que permite que a mão o segure, mas por pouco tempo. Note que é o Fogo que
permite.” O Fogo é o agente, o mestre da obra. Conhecer esse mestre é o mais importante; não
aprendemos sobre ele em livros ou palestras sobre o desejo. A boa cozinheira já queimou
alguns pratos e também sua mão. Aprendemos sobre o calor com chefs, ferreiros, ceramistas,
embalsamadores, curando tabaco, defumando presunto e peixes, assando pizzas, secando
folhas de chá, fermentando cerveja, destilando bourbon. Derreter açúcar por si só requer uma
linguagem sutil de muitos pontos, consistências, graus.
O conhecimento manual das intensidades aplica-se a outras disciplinas. Escrever, por
exemplo: deixe o capítulo sobre a escrivaninha intocado por três dias. Apanhe-o novamente
apenas para descobrir que ele coagulou como fria carne de carneiro. O boxeador deixa de
lado o treinamento por um tempo, e suas pernas perdem sua dança no ringue. O paciente
vem para análise apenas a cada quinze dias, ou fica fora por um mês, e então o calor nunca
aumenta, e as sessões tomam-se preguiçosas, triviais, mornas.
Ao virar as páginas dos velhos tratados de alquimia com suas gravuras, ou as muitas
representações detalhadas do pintor flamengo David Teniers, o Jovem (1610-1690), do alquimista
trabalhando podemos ter uma compreensão errônea de que Fogo é externo. Não, o
alquimista traz sua própria participação calórica; ele está com o Fogo, no Fogo. O velho
senhor no laboratório preparando soluções com seu aparato, ajoelhado ao pé do Fogo, e o
velho senhor da mente, suas mãos no forno de seu próprio corpo, suando sobre a
transformação de sua própria natureza - nossos próprios ácidos e enxofres, nossas próprias
putrefações, nossos próprios sais amargos.
Fogo dos deuses
O Fogo como uma criança sempre faminta, Fogo como uma criança crescendo rápido, jovem
e flamejante, Fogo como uma virgem sempre renovável. Lareira como útero, berço, abraçando
o centro em torno do qual a opus circumambula. Estamos de volta a Hestia19 que se sentava no
meio da casa antiga, do palácio do rei, da prefeitura - não como uma estátua ou uma figura
personificada, mas simplesmente como o Fogo na lareira. Simples assim. O Fogo de Hestia
requer cuidado. Ela é um Fogo domesticado da cultura; uma restrição severa da paixão; uma
quieta, ainda que feroz, quentura da atenção. Esse Fogo é o mistério da própria consciência
focada. Hestia vinha primeiro na declinação da hierarquia divina em orações e, algumas vezes,
em procissões, porque antes de tudo vem a habilidade de atender, de estar atento.
Enxergamos o escuro e enxergamos no escuro por causa de sua luz. Senhora das tarefas,
disciplinadora, intenção pura, dignidade - tais são as demandas que ela coloca para o
trabalhador do Fogo, e a alquimia está entremeada com esse tipo de alertas severos. Outros
deuses, outros fogos. Ou, como disse a respeito do politeísmo o mestre mitógrafo Karl Kerenyi,
não muitos mundos diferentes, mas o mesmo mundo estilizado de acordo com uma
variedade de divindades. Assim, os alquimistas também são filhos de Hefesto, pois sua
ancestralidade volta aos ferreiros e suas forjas; e filhos de sua esposa, Afrodite, por causa de
sua ancestralidade nas artes da joalheria, da perfumaria, da cosmética e do tingimento de
18
19
Figulus, p. 267-26$.
Cf. Hillman, J. ‘Hestia
’. Mythic Figures, 6, p. 1.
21
tecidos; e de Ares/Marte, seu amante, por causa do calor vermelho ígneo cujos emblemas na
taquigrafia alquímica são a espada, a flecha, a faca, a lança, instrumentos que perfuram,
matam e fazem separações; e de Hermes, por causa das sutis transformações e formulações
secretas, das manipulações truculentas, do ímpeto mercantil e das pretensões charlatãs; do
velho Saturno, porque o árduo trabalho começa no chumbo e termina no chumbo, disse Michael
Meier, uma via longissima, um labor de manter o Fogo aceso, retirando cinzas, atento e insone;
ou de Hades por causa de sua linguagem de crueldades e um calor que apodrece assim como
o Fogo infernal da morte seca20 e por causa das origens da alquimia no embalsamamento e a
suposta origem egípcia para a raiz da palavra khem = preto, esta ‘arte negra’, como foi chamada
que, como Hades, opera invisivelmente, às escondidas, longe da visão humana diária.
Ainda assim, entre todos esses está o Fogo de Hestia, e de
/Afrodite, que nos atrai para a
obra com um sentido de prazer e amor, e um prazer sensual com as cores, os cheiros as
texturas das misturas. Alquimia como uma paixão, uma devoção, uma bhakti yoga. “O Fogo é o
Fogo do amor, a vida que escorre da divina Vênus [...] o Fogo de Marte é demasiado colérico, demasiado
abrupto, e muito feroz[...]”.21
Muitos deuses e deusas, incluindo referências a Diana/Artemis e a Lua; os raios de Zeus; Eros; o
vinho e o desmembramento de Dioniso. Mas uma figura em que nos modernos pensamos em
primeiro lugar com relação ao Fogo, Prometeu, está faltando! Prometeu não pertence a devotio
alquimica, e a obra precisa estar sempre alerta com relação ao ‘pecado prometeico’, roubar o
Fogo para uso humano. De acordo com Platão, Prometeu roubou o Fogo de Hefesto (Esquilo diz que
foi de Zeus; Hesíodo diz que foi do Sol). A versão de Platão sugere uma clarificação básica.22
Hefesto trabalha com o Fogo pelo bem da obra; é o amor, diz Platão, que o instiga. Prometeu
quer o Fogo para o ‘bem da humanidade’. O primeiro é estético, até mesmo religioso: o
segundo é ideológico. Mas, de qualquer forma, Prometeu era um Titã e uma dominante do
capitalismo, do nacionalismo e do humanismo ideológicos titânicos da Era Industrial, e da
mutação final da alquimia em química (cf. cap. 9).
Acelerar a natureza
Já que a natureza tem seu próprio calor e trabalha lentamente em sua própria melhoria, o
Fogo do alquimista pretende principalmente ajudar os próprios esforços da natureza. ‘Os
próprios esforços da natureza’ - isto nos dá a chave da apropriação do Fogo por Prometeu e por
alquimistas que buscaram o ouro real e a cura real. Jung reconhece o pecado prometeico
assim como ele aparece no cristianismo, embora não faça a ligação com o mito grego. Há
uma ‘separação de caminhos’, escreve Jung, entre a obra cristã e a alquímica. O alquimista “pode ter
um papel na perfectio, o que lhe confere saúde, riqueza, iluminação e salvação, mas [...] uma vez que não é ele
que deve ser redimido, ele está mais interessado em aperfeiçoar a substância do que a si mesmo.” 23
20
21
22
23
Onians, R.B.
Cambridge University Press, 1951, p. 288 e 258, n. 5.
Pordage . (1607-1681). In:
.
Platão. Simposio 197a. • Protagoras 321e.
Jung, C.G. Oc12,451.
. Cambridge:
22
A visão alquímica mais ampla vai além do humano; ela quer redimir a natureza, alcançar sua
perfeição, e o Fogo é o meio para atingir esse fim. Como um dos quatro elementos que dá
base ao ser do cosmo, o Fogo não pertence nem mesmo aos deuses. O Fogo não pode ser
roubado e tornado disponível para o uso humano mais que a Terra, o Ar e a Água podem ser
usurpados para o benefício de uma espécie apenas. O impulso prometeico e, na medida em
que ele se tornou cristianismo humanamente centrado, dificilmente tem um caráter
ambiental. Qualquer estudante de alquimia, qualquer um que tome emprestado seus tropos
para sua própria arte ou prática, fazendo o trabalho para sua própria natureza, permanece
prometeico, um humanista secular, um cavador de ouro. Se a alquimia está por trás dos
processos naturais que acontecem na psicoterapia profunda, como mostrou Jung e também
nas artes, então essas atividades também devem ter um objetivo para além de Prometeu. O
cultivo da alma de um indivíduo, ou mesmo da coletividade, ainda permanece humano.
Como a alquimia, a psicoterapia profunda é obrigada a estar focada na perfeição da
substância, não do sujeito, ou ela permanece moralmente em falta, como Prometeu, por ter
roubado os deuses, e os praticantes da psicoterapia vão se perceber acorrentados a uma
rocha de humanismo centrado na pessoa.
Como conceber esse serviço à natureza? Como o paradigma alquímico pode avivar uma
prática, uma arte, de forma que a prática, a arte, sirvam a natureza? Muito simples: ao
reconhecer as coisas e as ferramentas, os lugares e as construções como tendo cada um deles
seus espíritos animados; ao reconhecer a anima mundi - que todas as coisas são almadas, que
têm interações próprias, hábitos e prazeres próprios. Tratar as coisas com respeito a suas
propriedades. Alquimia é animismo. Os materiais confiam que possamos melhorá-los. Nada
pode ser usado sem sua cooperação consentida.
Ao tratar os materiais como almados, ao invocar os espíritos dos metais e ao falar de suas
qualidades emocionais, a alquimia encontrou deuses na natureza, e alma, ou animação, no
mundo físico. A devoção à alquimia não era exatamente um ramo do então contemporâneo
humanismo; menos o estudo das obras humanas da cultura e da linguagem, mais um foco no
mistério não humano das coisas, seus potenciais inatos, sua animação. Todos os conselhos
piedosos e as admoestações morais, de que os textos estão repletos, parecem estar lá para
contrabalancear a experimentação desumanizante, talvez demoníaca, com aquilo que está
fora da medida humana. A ciência de hoje, que investiga poderes não humanos semelhantes,
omite contrapesos morais semelhantes.
O Fogo produz e permite efeitos diferentes em substâncias diferentes e em situações
diferentes. Santo Agostinho nota que o Fogo preteja a madeira e embranquece a pedra,
produzindo efeitos contrários em materiais que são mais parecidos do que contrários.24 Cada
coisa incendeia de acordo com seu próprio estilo. Conheça seu Fogo, mas conheça também
seu material. Por exemplo: um marido e uma esposa são parecidos, são um casal. Considerar
entrar no vaso de uma psicoterapia é aumentar o calor de suas dificuldades. O Fogo pode
embranquecê-lo, e pretejá-lo, ou vice-versa, e eles acabam como contrários.
Quando aceleramos a natureza com calor, adaptamos o calor às qualidades da substância.
Mais que isso: o calor que aplicamos externamente por meio do Fogo visa acender e reforçar
24
Agostinho. Cidade de Deus. Livro XXI, 4 [s.n.t.].
23
o calor inclusus dentro da substância. A quantidade e a qualidade do calor são determinadas
pela coisa com a qual estamos trabalhando. Não demais, não de menos. Dosagem. Assim, a
aceleração da natureza não tem fórmula, nenhuma clareza quanto a quantidade de horas,
dias, anos. ‘Quanto tempo vai levar?’, pergunta o paciente ao médico, o cantor a seu instrutor,
o escritor a sua agenda para fazer deste rascunho algo decente para enviar.
Bonus de Ferrara observa: “O tempo necessário para a obra é colocado por Rasis em um ano. Rosino o fixa em
nove meses; outros em sete, outros ainda em quarenta ou oitenta dias. Ainda assim, sabemos que o tempo que
leva uma galinha para chocar seus ovos é sempre o mesmo, então um certo número de dias ou meses, e não mais,
deve ser suficiente para a obra. A dificuldade com relação ao tempo também envolve o segredo do Fogo, que é o
grande mistério da Arte.”25
Uma passagem mais sutil compara a opus com um embrião que requer nove meses para
maturar, cada trimestre governado por um elemento.26 Primeiro a opus é nutrida por Água,
depois por Ar e, finalmente, por Fogo. A transição de Água para Ar, das inundações e
dissoluções para a secagem e o distanciamento é muito conhecida de artesãos em qualquer
trabalho que requeira concentração. Então, a obra é ‘ativada pelo Fogo’. Vive por si mesma. O
desejo ou o ímpeto que impeliu o trabalho se exaure, todas as intenções, expectativas e
ambições queimadas na pura paixão do fazer.
II Combustível: Carvão Vegetal e Ar
Nas florestas e campos da velha Europa e ainda hoje em partes da Ásia Central e da África, e
no Brasil, Japão, Índia e China, carvoeiros juntam seus troncos e galhos para fabricar o
combustível que era essencial a alquimia.27 O naturalista romano Plinio, o Velho (23-79 d.C.),
listou cuidadosamente os tipos de madeira que dão o melhor carvão e para quais propósitos
específicos. O abeto, escreve ele, absorve melhor os foles; é de combustão lenta, portanto se
adequa a ferreiros e suas forjas. Para o ferro, carvão de castanheira; para a prata, de pinheiro.
Para uma mentalidade alquímica, o Fogo mais puro precisa do combustível da substância
mais pura. Aquilo que você ganha do Fogo é somente aquilo que o alimentou. O carvão de
lenha é o combustível mais desejado porque sua matéria foi purificada. Ou morta. É por isso
que ele é preto e tão leve. Tudo aquilo que é supérfluo foi queimado. Ele passou pelo Fogo,
um combustível nascido duas vezes, primeiro como madeira natural, depois como a essência
daquela madeira. Carvão: um opus contra naturam. O carvão também sinaliza em seu tempo de
vida as cores da opus alquímica: torrões pretos, cinza branca, chama amarela, brasas
vermelhas. Algo ainda mais misterioso: até a origem da palavra [charcoal] em inglês é
desconhecida.
Nascido do Fogo e morrendo no Fogo, o carvão é o devoto do Fogo. O serviçal altruísta, seco
de umidade, sem desejos de transformação próprios. Assim ele serve tão bem como limpador,
25
Bonus, 115-116.
26
27
.
Toronto: Inner City, 2000, p. 290.
Estima-se que cem milhões de toneladas de carvão vegetal ainda estão sendo produzidos anualmente. Cf.
.‘
’. Science Review, 160, 2001, p. 383.
24
absorvente, purificador, permitindo que outras coisas atravessem seu corpo poroso sem
participação. Nem reagente ou combinador, nem catalisador, o carvão é o combustível que
não interfere, um doador de energia que não pede nada em troca. Esta é a qualidade da
energia que opera na opus.
Ainda mais leve que o carvão é o Ar do qual o Fogo depende. É o combustível primário, dado
pelos deuses como mostra o Fogo dos relâmpagos. Gravuras de alquimistas junto a seus
fornos e fogões, e de ferreiros junto a suas fornalhas, com frequência mostram um assistente,
chamado ‘soprador’, trabalhando com um fole, mantendo o Fogo com um fluxo constante de
Ar. Há imagens egípcias desses sopradores com seus foles já em 1450 a.C.28 De zarabatanas
indígenas (pequenos tubos de soprar) e foles primitivos as rajadas das fornalhas de fundição,
o Fogo usa o Ar para intensificar o calor. Para extinguir um Fogo, corte sua fonte de Ar.
O que é este ‘Ar’ e como maneja-lo? Bem no começo do pensamento ocidental sobre a
natureza e o cosmo, Anaximenes de Mileto (século VI a.C.) propunha que um Ar Elemental era o
fundamento do cosmo. A ideia de um elemento invisível e transparente que se rarefaz e se
condensa, e do qual o Fogo e a luz dependem, do qual, de fato, toda a vida depende,
continuou a deixar perplexo o pensamento humano que divisou teorias do éter, do flogisto,
anjos aéreos e demônios alados, poderes celestiais e máquinas voadoras, vapores e fantasmas,
a alma como sopro - até a análise química do Ar, durante o Iluminismo, por Priestley e Lavoisier,
e a descoberta do oxigênio (cf. cap. 9). O fascínio pelo Ar, e a imaginação inspirada que dele
vêm, continua nos maravilhosos tratados de Bachelard sobre a poética do Ar e de David Abram
sobre a linguagem, o Ar e o ruach da respiração divina.
O caráter do Ar Elemental também vem da astrologia médica e psicológica, em que o Ar é
um dos elementos fundamentais que compõem o cosmo. Textos antigos de psicologia
apresentados na simbólica da astrologia ensinam que o Ar fornece ao Fogo um resfriamento,
ainda que o Ar incremente seu calor; um distanciamento, de forma que o Fogo não se queime
e se extinga; e jorros de inteligência sagaz, pensamentos elevados e mobilidade de direção,
mesmo enquanto ele cegamente enfurece. O Ar também alimenta o Fogo com invisibilidades
mentais, com espírito e uma visão mais ampla, de longo alcance. Um fluxo constante de
atenção focada aviva o carvão inerte, produzindo quentura e luz.
O Fogo de fato queima o Ar, o bruxuleio da chama é o mesmo oxigênio que queimamos.
Porque estamos vivos, estamos queimando, consumindo o Ar, e portanto gerando o calor
inclusus que sustenta nossos dias. Nossa morte é uma expiração, o balão de Ar esvaziado, o
Fogo extinto. O ato de respirar é nossa primeira participação no cosmo, circulando em nossa
interioridade íntima. O Fogo vive da mente, e o calor sustentável de nosso sangue quente
depende de inspiração, de invenção fantástica, de inteligência ‘brisada’ e retórica ventosa, de
brain-storming, teorias rarefeitas e ideias frescas. A mente, uma fornalha rajante. Uma almasopro de palavras infladas deve continuamente alimentar a obra. O alquimista com seu
soprador e seu fole suga para seu projeto a inspiração do nous do mundo, a mente arquetípica
que se move como o vento por toda a terra. Dos quatro cantos, o sopro de vida do
pensamento tradicional bombeia a obra. E assim encontramos os alquimistas referindo-se
constantemente a outros textos, inalando o pensamento de outros doutores da Arte e
apresentando essa dependência com a máxima ‘um livro abre outro’, tal como pintores leem
28
Read.
. (s.l.]: [s.e.l, p. 79.
25
filósofos, compositores observam arquiteturas, filósofos visitam museus, poetas traduzem
coisas de línguas distantes ou mortas - seus fogos desesperados por novos influxos. Pois o
Fogo deve ter palavras; e os escritores cujas vidas são Ar - Keats, Stevenson, Lawrence - morrem
jovens de consumição;29 não queimados, mas acesos.
III Metais
Embora a alquimia tenha se movido da forja para o laboratório, trabalhar com metais não foi
deixado para trás. Os metais elementais - ferro, chumbo, cobre, mercúrio, estanho ou
antimônio - entravam nos compostos, acrescentando suas naturezas às misturas. Cada um
dos principais metais corresponde a um dos sete corpos planetários que influenciam a alma
por meio de suas exalações, o pneuma, respiração ou inspiração, que dão qualidades especificas à
obra.
A
– ‘assim acima como abaixo’ – significa mais que a simbolização na
terra dos planetas do céu. Correspondência: “congruência; intercurso amigável; adaptação mútua;
conexão; correspondência (escrever cartas). Significa estar em contato, receber mensagens. As coisas
na terra, particularmente os metais na terra, estão em contato com os deuses; eles carregam
mensagens míticas. Há um espírito no ferro, no chumbo, um spiritus rector, um princípio guia
que ensina o artesão. O ferro ensina lentidão; o cobre, quentura rápida; o mercúrio ensina o
inalcançável e a fusibilidade. Esse espírito no metal, seu corpo sutil, e sua sombra, em vez do
mineral enquanto tal, torna-se o foco da alquimia. Portanto, o trabalho alquímico com os
metais e chamado de ‘sofisticação dos metais’. O alquimista tenta extrair qualidades
especificas do metal. Como um refinador tenta soltar o metal de seu minério, o alquimista
tenta perceber uma qualidade no metal - o vigor passional no ferro, digamos, de forma que a
pedra (aquela meta da obra) seja forte, penetrante, intencional. Ao mesmo tempo, a alquimia
alerta para a possessão pelo próprio espírito que está buscando, uma possessão que pode
manter o artífice preso à sombra do ferro: rígido, marcial, sobrecarregado, enferrujado.
O processo é tanto de ‘Refinamento’, ao extrair do refugo a essência, quanto de 'transmutação’, ao
elevar o grau do metal do mais baixo para o mais alto, de chumbo e ferro para prata e ouro,
pois os próprios metais estão repletos de um desejo de retornar à condição mais elevada da
qual caíram. Em cada metal está o desejo adormecido de se transmutar num estado mais
nobre.30 Refinamento e sofisticação almejam a pureza, uma prata que é esterlina, de lei, um
ouro que é 24 quilates. Pureza: a menor quantidade possível de misturas estranhas. Pureza:
inteiramente igual. O metal refinado não está adulterado; o metal sofisticado foi reduzido a
suas qualidades essenciais. Refinamento e sofisticação pela disciplina.
29
30
‘Consumição’ em inglês, consumption, além dos sentidos de consumo, gasto, dispêndio, também significa doença
devastadora, em especial a tuberculose [N.T.].
A alquimia ignora a distinção moderna entre química orgânica e não orgânica. Cf., p. ex., o grande e original
trabalho de Ângelo Sala (1576-1637) sobre açúcar (orgânico) e o sal (inorgânico). Ambas as substâncias
incorporavam princípios paracélsicos semelhantes: o combustível (enxofre), o fluido (mercúrio) e o resistente ao calor
(sal). Para os paracélsicos, e alquimistas como um todo, os metais e seus minérios ‘cresciam’ na Mãe Terra como
plantas. Cf. Gelman, Z.E. ‘
’. Ambix, vol. 41, n. 3,1994, p. 146-160.
26
O ferro impõe sua disciplina. Adentre a forja da raiva, derreta e coagule, renda-se ao martelo e
endureça, seja mergulhado repetidas vezes no fogo e no banho de resfriamento. Esses rigores
ressoam com as fúrias de Marte e seu temperamento colérico, a impaciência, a dureza, a
resistência à maleabilidade, e a necessidade de se manter livre de ferrugem, seco.
A disciplina venusiana do cobre trabalha rumo a uma essência mais sofisticada ao separar secando, queimando - idealizações coletivas, restrições tradicionais, insinuações sentimentais,
de forma a alcançar a beleza essencial do cobre que é revelada pela sutil pátina de sua
superfície. (Vênus como a deusa da pele das coisas - sua sensação, seu brilho.)
Em grego, a palavra ορυχείο refere-se a um canal subterrâneo ou mina; μεταλλωρύχος é aquele
que procura metais, um mineiro; e αναζήτηση significa buscar, inquirir. Um jogo de palavras
adiciona ainda outro significado: μεταλλάσσω significa mudar, alterar - talvez os metais
tenham prazer em alterar-se e aproveitem a disciplina a eles imposta para retirar-lhes o
corpo do minério e a própria fundição. Como na busca alquímica um livro leva a outro,
então, diz Plinio, o Velho, um veio leva a outro.
O adepto provocado pelo metal torna-se um garimpeiro, explorando a fundo o coração
elemental da psique buscando as substâncias fundamentais que subjazem ao
comportamento superficial das coisas. É como se os deuses planetários, em seus esconderijos
metálicos, empurrassem as profundezas para buscar mais fundo, ganhando cada vez mais
conhecimento essencial e habilidade técnica daquilo que os metais fornecem. Eles se tornam
os mestres, os mentores.
A inerente perfeição das substâncias afasta todas as coisas do literal, do indiferenciado e do
apenas natural como dado ou como achado. O ‘apenas natural’ pode ser necessário, mas é
insuficiente, já que os próprios metais pedem por sofisticação. A alma dada pede para ser
trabalhada. A alma, em seu estado natural, é inocente, ignorante e, portanto, perigosa. O fato
de que o próprio material pede para ser refinado, o cru querendo ser cozido, sugere uma base
arquetípica para as ideias de perfeição, progresso, assim como de evolução.
A condição material primária de uma substância esconde sua natureza essencial. Ela nem
mesmo conhece a si mesma, ‘refugo’. Seu trabalho move o material de sua apresentação
primeira ou primária para um momento de revelação quando se torna psicologicamente
inteligível. O praticante busca não somente libertar o metal de seu minério, mas libertar os
sentidos do metal, suas ligações com a inteligibilidade do cosmo. Para o alquimista, o mundo
está assinado pelos deuses, e aprendemos a ler suas assinaturas e ganhar o significado dado
por cada coisa. Aqui, assumimos a inerente inteligibilidade do mundo. Esse conhecimento
inato não reside na mente onisciente de Deus, mas é imanente no mundo das coisas, dando a
cada uma delas seu valor especifico, permitindo que seja compreendida.
Ao lermos o mundo como fazem os animais, adaptamo-nos a ele e podemos ajuda-lo melhor
em seu caminho rumo a suas metas. A alquimia não era apenas a fabricação de ouro para o
benefício do alquimista e seu patrão. Dentro do trabalho estava a visão que queria trazer o
próprio mundo para uma era dourada, preenchendo seu desejo de perfeição, um cultivo de
alma do próprio mundo.
A natureza está constantemente trabalhando para esse fim. Seu próprio calor inclusus, ou calor
inato, vagarosamente transmuta a matéria primária teimosamente resistente. O alquimista,
27
contudo, ao intensificar engenhosamente o calor, podia acelerar os objetivos da própria
natureza. Em seu laboratório, e em seu forno, o adepto acreditava que podia levar a fruição,
no período de uma vida, ou mesmo em menos tempo, o que a natureza por ela mesma leva
séculos para realizar.
Embora a obra seja sempre apresentada como uma opus contra naturam (uma obra contra a
natureza), era, é claro, um seguir a natureza, guiada pela natureza, instruída pelo livro da
natureza que o alquimista diligentemente estudava. Portanto, a melhor afirmação para
resumir a atitude alquímica e de Ostanes, que Jung cita frequentemente: “A natureza se deleita na
natureza; a natureza subjuga a natureza; a natureza governa a natureza.”31
Resistência
A natureza subjuga a natureza por meio do fogo. O calor dissolve a coesão de uma
substância; aquele desejo natural de manter-se como ela é. O calor separa o metal de seu
corpo de minério e pode calcinar o metal numa condição mais trabalhável. No estado apenas
natural, as substâncias resistem a mudança. Elas intencionam permanecer como são e como
tem sido por milhões de eras, enterradas e escondidas. Ainda assim, o impulso inato à
perfeição recebe bem o fogo. Portanto, elas também regozijam em sua submissão, permitindo
serem fundidas, marteladas e extraídas de sua base.
A resistência de qualquer coisa é dada com sua natureza essencial. “O poder ou o esforço, com que
cada coisa se empenha em persistir em seu próprio ser, não é nada além do que a essência dada ou factual da
coisa em questão”, escreveu Spinoza.32 A resistência no trabalho, e ao trabalho, não é pessoal, mas
ontológica. O ser não se move, disse Parmenides, ao que replicou Heraclito, tudo se move. Duas
ontologias divergentes. Ambivalência ontológica. A máxima de Ostanes dá conta da
ambivalência inerente nos metais e em toda a arte alquímica. A máxima de Ostanes sofistica a
própria ideia de ambivalência. De fato a natureza goza seu estado natural e resiste a
mudanças; ainda assim, luta contra sua predileção pela estase, dominando a si mesma e
tornando a mudança possível. A natureza se sofistica, dividindo sua ambivalência em dois
aspectos - o imutável e o mutável. É, portanto, tolo tentar mudar o imutável. Ou, como diz o
alquimista: ‘Não se pode fazer uma vaca leiteira de um rato’.
O que muda e o que não muda? O que permanece o mesmo e o que se toma diferente? Em
termos filosóficos, a existência muda, mas a essência permanece inalterável. O corpo natural
do metal pode se tomar um líquido, um pó, um vapor; pode combinar-se, alterar a cor,
submeter-se aos efeitos de outras substâncias. O corpo sutil, entretanto, persiste em sua
própria inalterabilidade. É preciso calor para dominar a resistência inata de uma substância,
um calor suave o bastante para derreter o que é teimoso, e feroz o suficiente para impedir o
regresso ao estado original. Somente quando a regressão à condição original ‘encontrada’ - a
substância em sua apresentação sintomática - não é mais possível, somente quando ela foi
inteiramente cozinhada, e foi verdadeiramente separada de seu modo de ser histórico e
habitual, pode-se dizer que uma alteração foi alcançada. Então a substância, que a psicologia
31
32
Jung, C.G.OC9/2, 244n.
Ethica, parte III, prop. VII. B. de Spinoza. In:
Nijhoff, 1914.
, J.P.N. (orgs.). Opera. Vol. 2.
: Martinus
28
poderia chamar de um complexo, torna-se menos autônoma e mais maleável e fundível,
tendo perdido sua independência como um objeto intratável que objeciona e resiste.
Somente aí pode o corpo sutil do metal - a dureza do ferro, a quentura rápida do cobre, o
peso do chumbo - juntar-se a obra. ‘Somente coisas separadas podem ser reunidas’, dizem os
alquimistas.
IV Os Vasos
O paradoxo inescapável do fogo - da alquimia, da psique, da vida inteligente - consiste deste
mandamento duplo: Não reprimirás/Não atuarás.
Por um lado, o fogo irá atuar. O fogo se espalha; seu apetite consome tudo o que seja
combustível. Não pode ser guardado. ‘Três coisas não se pode esconder’, diz um provérbio árabe,
um camelo no deserto, alguém apaixonado e o fogo.33 O fogo insiste em ser visível. Não quer ser
reprimido, suas faíscas abafadas, extinguidas. Ele persiste muito tempo após terem morrido
suas chamas.
Por outro lado, o desejo pode não ser lançado diretamente no mundo. A obra se perde no
calor direto, dizem os alquimistas. Não deixe as chamas tocarem o material. O fogo direto
chamusca, enegrece as sementes. O fogo é rápido, e ‘toda a pressa vem do diabo’. ‘Festina lente’,
‘pressa vagarosa’, advertia uma conhecida máxima renascentista.
Não atuar; não segurar. Um paradoxo. É uma negativa dupla, o que sugere uma via negativa,
um cancelamento desliteralizante de ambos os mandamentos. Um escape mercurial da
oscilação exasperante entre eles. Em vez de segurar ou atuar, aja internamente. Cozinhe no
rotundum - como já foi chamado um vaso, referindo-se tanto a um recipiente quanto à
redondeza do crânio.34 Mantenha o calor dentro da cabeça ao esquentar os devaneios da
mente. Imagine, projete, fantasie, pense.
Os vasos tanto contêm quanto separam. Uma das principais operações da obra é a separatio.
Cada substância, cada qualidade, deve ser distinta da massa confusa do material primário, a
confusão original. Embora se mencione constantemente as duas operações de separação e
conjunção como básicas à obra o tempo todo (também chamadas ‘dissolve e coagule’), a separatio
é a mais fundamental. Isto, novamente, porque somente coisas separadas podem ser reunidas.
Qualquer substância mantida num cesto ou num jarro foi separada da pilha principal e
indiferenciada simplesmente em função de um recipiente. A coisa material não é diferente, e
ainda assim foi totalmente diferenciada por sua forma. Sua cerveja numa garrafa, minha
cerveja numa lata, são a mesma e não são a mesma. Água numa jarra é água de jarra, como
água engarrafada, água de mina, água de rio. No momento em que a água escorre da torneira
enchendo este vaso ou aquele jarro ela assumiu uma forma.
33
34
(1946), um filme dirigido por Robert Z. Leonhard, com Claudette Colbert, Walter Pidgeon e Lionel
Barrymore, abre com o seguinte prólogo escrito: ‘Há três coisas que não podemos esconder: o Amor - a fumaça – e um
homem montando um camelo - velho provérbio árabe’.
Jung, C.G.
.
29
Não podemos manejar todo o sofrimento, todo o mal, toda a ignorância, toda a emoção somente aquela parte específica que foi separada e que tomou uma forma reconhecível.
A própria água nos chega numa variedade de condições, de gotas de chuva até os oceanos, do
pântano estagnado à cascata branca. Os vasos que a contêm têm paredes e fundos. Não é
meramente uma questão de estarmos muito molhados ou muito secos, muito gotejantes e
aguados ou muito ressecados e quebradiços, mas que forma tem nossa umidade. A
humanidade dá forma, como os pássaros dão um formato a seus ninhos e animais que vivem
em tocas formam seus túneis. E também damos forma a nossos túmulos e urnas funerárias horrível quando os corpos dos mortos são baixados a uma cova, sem forma.
Tudo aquilo com que lidamos deve estar limitado de alguma maneira. Até os oceanos têm
suas costas.
Se Deus não tivesse nos dado vasos /
Seus outros presentes seriam inúteis.35
Há vasos de todo formato e tamanho, feitos de todo o tipo de material, desde junco de rio e
varas de salgueiro até argila grossa para potes, madeira para barris, metal e vidro para
canecas. Alguns vasos esquentam rápido, mas racham fácil. Alguns são opacos, outros
transparentes; alguns são chatos e abertos para permitir evaporação, outros são fechados
firmemente para intensificar a pressão. Vasos: métodos de conter. Você aguenta o calor? Você é
opaco e denso, aquece devagar, de forma que ninguém pode dizer o que se passa aí dentro?
Às vezes interessa menos o que está dentro do vaso, a natureza da coisa que está sendo
contida, e mais seu formato, sua forma: mal vedado, frágil, quebradiço, sólido, tão cheio que
vasa, vazio, rachado [...] Estou bem, estou em grande forma.
Vasos são o modo como abraçamos os eventos, os estocamos, os estilizamos. Antes das armas
e das ferramentas, o vaso. Cace o mastodonte; cozinhe sua carne; mas a sobra precisa ser
guardada, e a água precisa ser trazida do rio. Seus outros presentes seriam inúteis. Junto às pedras
lascadas e machadinhas de pedra, às pontas de lança e varas de pescar - instrumentos de
matança - há cestos, sacolas, cabaças e potes - instrumentos de conter. Já que os primeiros
duram no tempo, enquanto os segundos decaem e se fragmentam, nosso quadro da vida
humana mais antiga coloca o macho caçador em primeiro plano, e a fêmea coletora, zeladora
e separadora ao fundo.
Vasos apresentam o estilo de uma cultura. Uma imagem conta toda uma história: uma
quitinete barata, uísque tomado num vidro sujo, lascado, de escova de dentes, numa página
de Graham Greene; e latinhas de cerveja, copinhos de plástico, xícaras de café engraçadinhas,
lixeiras de motel. O falatório a respeito de tipos de taças para vinho, sua base, sua
espessura[...] Dize-me qual teu vaso e dir-te-ei quem és.
Que seus vidros para destilação sejam redondos ou ovais [...] Que a altura do pescoço do vaso
seja mais ou menos um palmo, da largura da mão, e que seja claro e espesso (quanto mais espesso
melhor, desde que seja claro e limpo), e que te permita distinguir o que se passa dentro dele [...] O
35
‘If God has not given us a vessel / His other gifts would have been of no avail.’ Esta máxima é atribuída a Alberto Magno,
apud ‘
.’ HM 2, p. 62. Norton acrescenta, ‘e este vaso é de vidro’. ‘Além do mais,
o tamanho e formato de seu vaso deve estar em porporção à quantidade de sua substância, e a todas as outras condições do
experimento.’
30
vidro deve ser forte para impedir que os vapores que ascendem de nosso embrião estourem o vaso.
Que a boca do vaso seja muito cuidadosa e efetivamente fechada por meio de uma grossa camada
de cera. 36
Três observações que tiramos dessa passagem. (1) distinguir o que se passa dentro dele : os insights
devem ser claros, não vagos e nebulosos; (2) os vapores que ascendem de nosso embrião [podem
estourar] o vaso : a semente viva da obra não é viável para a vida, não deve deixar o vaso; e,
enquanto germina, dá vasão a fantasias que buscam escapar para o mundo (em programas e
projetos); (3) que a boca do vaso seja muito cuidadosa e efetivamente fechada : trate a obra em
andamento como um segredo. Conserve sua boca fechada. Observe com cuidado o que, como
e para quem comentar sobre o que está acontecendo dentro.
Dentro? Onde é isto? Dentro do vaso, qualquer que seja o vaso: sempre que houver um foco
contido e separado, uma zona guardada, algo cozinhando. Você não é o vaso, nem há razões
para se acreditar que dentro seja dentro de você - seus relacionamentos pessoais, seus
processos psíquicos, seus sonhos. A interioridade está dentro de todas as coisas - a jardineira
que está sendo preparada, o poema que é o foco de emoções atentas. Preste bem atenção a
essas interioridades; dando atenção estamos envasando, pois é o vidro do vaso que permite
estar atento, e estar atento traz a própria separação e o continente que estão expressos
concretamente pelo vaso de vidro.
O alquimista atento é também aquilo que está sendo observado. Dentro do vaso, formam-se
criaturas, imagens estranhas de materiais excitados, reis e rainhas, homúnculos - figuras em
miniatura com faces e olhos. O alquimista torna-se o sujeito de observações interiores. As
intenções da vontade humana se submetem a uma guiança imagística, um tipo de influência
poética de outros assim que o vaso os traz à vida.
Vidro
Vidro: como o Ar, como a Água, feito de Terra, feito no Fogo. O vidro soprado derrete,
liquefaz-se, brilha, expande-se, assume todo o tipo de forma, tamanho, espessura, radiância e
cor. Suporta o calor. O vidro nos permite ver o que se passa dentro dele, por trás dele. Vidro,
o vaso da revelação interior, capturando e transmutando o vislumbre ou relance em
observação estudada. Dentro dos alambiques de vidro, representados em Splendor solis e em
Trésor des trésor, figuras gloriosas atravessam suas transmutações alquímicas. O vidro guarda
sangue precioso em frasquinhos, rosas num vaso, vinho num decantador.
Ao levar a opus da forja para o forno, o vidro torna a alquimia possível, e psicológica. O vidro
também torna a ciência da química possível no laboratório das observações e
experimentações controladas, in vitro.
O vidro também separa observador de observado. É o material do distanciamento, separando
da vida os eventos por meio de frágil transparência, encerrando-os a cada um em sua própria
casa, como eram às vezes chamados os vasos. Como o vidro claro que a alquimia preferia é
por si mesmo quase invisível, sua invisibilidade permite a visibilidade da opus - mas, somente
quando o vidro tem a forma de um vaso, ou seja, traz continente. Lâminas de vidro, contagotas de vidro, espelhos, não são suficientes para a obra alquímica.
36
Filaleto. ‘
’.
.
31
Os paralelos com a psique são óbvios. Também a psique é invisível; é alcançada apenas na
reflexão, senão a identificamos com seus conteúdos - este sonho, aquele sentimento ou
lembrança. A psique fica parecendo ser apenas aquilo que ela contém. O vidro, como a
psique, é o meio pelo qual enxergamos dentro, enxergamos através. Vidro: a incorporação física
do insight. A ilusão do vidro faz com que conteúdo e continente pareçam o mesmo, e porque
vemos o conteúdo antes de reconhecermos que está guardado pelo vidro, a princípio não
vemos sua forma, sua densidade, suas imperfeições, pois nosso foco está fixado no conteúdo.
Vidro como corpo sutil requer uma sutileza de observação. A sofisticação do material
necessita de sofisticação de insight.
A mentalidade alquímica estava preocupada em notar propriedades. Quais qualidades, quais
atributos são as virtudes, para usarmos os termos de Paracelso, de uma substância? As coisas
naturais podiam ser agrupadas, ou mesmo classificadas, por seus adjetivos: duro, frio, amargo,
invernal; podiam juntar fenômenos dos três reinos - animal, vegetal, mineral. Já que o mundo
é inerentemente inteligível, podemos descobrir o que pertence cada fenômeno por meio do
estudo de suas propriedades, do cuidado com os adjetivos.
O banho-maria
O vaso de vidro é em si envasado. Pode estar sobre um pote de cinzas ou areia, mas de modo
mais frequente está dentro de um recipiente maior cheio de água: o bain marie ou banhomaria.
O calor penetra a coisa que está dentro do vaso de vidro por meio da água. Tanto o fogo
quanto a água cooperam para regular o calor, embora nenhum desses elementos toque a
substância diretamente. Um método engenhoso de indireção, juntando dois inimigos
notórios, Fogo e Água, para servir à opus.37
Quando se encontram, normalmente eles assobiam, esguicham e exalam nuvens de vapor
escaldante; mas o bain marie os protege de matarem-se mutuamente, e protege a substância de
uma guerra elemental. O bain marie aparece na tradição alquímica como uma invenção antiga,
originária do Egito talvez, vinda de uma adepta chamada Maria a Judia,38 idêntica ou
confundida com Maria Profetisa. O bain marie desenvolveu-se supostamente na cozinha de uma
senhora judia, mística, experimentadora, cozinheira. Os cozinheiros de hoje ainda o usam.
Enquanto a água preencher o banho, a substância não queima, nem ferve. O calor do banho
aumenta sempre gradualmente, de forma a soltar e relaxar a resistência teimosa da
substância por meio de um calor suave. Como seu corpo numa banheira aquecida, que
lentamente sobe de temperatura se você acrescenta mais água quente. A quentura que
permeia o vaso de vidro no banho é outra maneira de imaginar atenção simpática,
encorajamento gentil, tolerância abrangente. Fronteiras, nós, restrições vão embora.
Não realize nenhuma operação até que tudo tenha se tornado água. Psicologicamente falando, antes de
podermos fazer qualquer coisa devemos dissolver a atitude original com a qual abordamos
um problema. Os próprios problemas são posições fixas. A palavra problema refere-se, em
37
38
.
. The Jewish Alchemists.
: ‘Maria a Judia’.
32
suas acepções originais, a xadrez, matemática, estratégia de batalha - todas condições
apertadas. Nós nos rendemos e cedemos, e a mente, focada em resoluções, larga sua própria
atitude que busca as resoluções. No banho, força de vontade torna-se lassidão.
Não realize nenhuma operação até que tudo tenha se tornado água: a análise racional deve
esperar que a emoção flua, que os devaneios flutuem, reunidos num tanque, misturando-se,
afundando, encontrando saídas. Discriminações ficam obscuras. Isso e aquilo confundem-se,
misturam-se; certo e errado, e suas culpas, tornam-se flexíveis e empapados; pouco importam,
nenhum fato concreto, nenhuma certeza sólida à qual se apegar. Tudo cede à água quente.
Abrandamo-nos conosco mesmos. Perdemos a pressa de chegar, nenhuma correria. Um
banho não é uma ducha. Nós somos a substância, nosso corpo e nossa mente entram no vaso
da alma, no banho de Maria. Somos o cozinheiro e também aquilo que é cozido, incapazes de
sentir a diferença.
O Pelicano
O vaso tampado serve muito bem para a sublimação (alçar a substância a um nível mais alto)
e para a precipitação (uma substância que está no fundo pode produzir gotas ou líquido no
topo, ou um precipitado fino e branco). Mas, para operações mais sutis, requer-se um vaso
especialmente fechado: o Pelicano.
Esse recipiente de vidro tem um corpo redondo e gordo que sobe para fora de seu corpo
num longo pescoço que se curva para baixo, que torna a se ingressar no corpo, assim
permitindo a circulação da mesma matéria por vários estágios, de baixo para cima e de volta
para baixo.
O Pelicano traz sofisticação a imagem alquímica familiar do Ouroboros, a cobra que morde o
próprio rabo. Também o Pelicano é um comedor de rabo: a ponta final é consumida pela
ponta de cima, a cabeça, mas o processo não para ali na reflexão mental. A cabeça envia seu
produto de volta para baixo, para o corpo, repetidamente. Acontece uma circulação continua.
O que sobe para a cabeça não escapa. A medida que a substância derrete, evapora, lançando
vapores para cima, formam-se ideias nebulosas, a pressão aumenta, giram sentimentos leves e
animadores. Mas essas inspirações e ideias quentes são reprocessadas e lançadas para baixo
por serem muito imaturas, muito cruas, ainda fora do ponto, muito irreais. Ao invés, são
jogadas de volta no vaso para serem alimento novamente. É a opus que precisa ser
alimentada, precisa continuar a todo custo.
Repetição. Iteratio: assim a chamaram. Mas eu já vi isso! Mas eu já fiz isso! A mesma coisa,
repetidamente.
O Pelicano incorpora o sacrifício; ele é um vaso sacrificial. E o instrumento do ritual. Uma
das essências dos rituais e a queixa: De novo? Iteratio, circulatio, morder seu próprio rabo,
comer seu próprio corpo que alimenta seu próprio corpo. O processo é fechado em si
mesmo, vive de si mesmo, alimenta suas próprias imagens, inclusive as imagens de um
produto emergente, de metas, de futuros. O sacrifício é não chegar. Lugar nenhum, utopia
como meta.
Daí o termo Pelicano, já que esse pássaro, de acordo com a tradição, bica seu próprio peito
para verter o sangue com que alimenta sua cria. Cristo foi esse pelicano, nutrindo seus fiéis
33
com seu próprio sangue vivo. O pelicano é, portanto, e ao mesmo tempo, uma ferida, um
ritual repetitivo, um sacrifício e uma humilhação. É um instrumento necessário para
alimentar a opus de dentro dela mesma. O que surge durante a obra pertence à obra, não ao
mundo. Antes que se possa abrir o vaso, seus conteúdos precisam ser inteiramente
psicologizados, refinados, sofisticados; suas concretizações vaporizadas. Mantenha o calor;
tampe o vaso; encontre prazer na repetição. A alma está sendo alimentada por sua ferida.
Agora, algo ainda mais sutil: o Pelicano duplo. As imagens mostram dois pelicanos
interligados, lado a lado ou face a face. O que emerge do corpo do vaso da esquerda flui
através de seu pescoço para o corpo do vaso da direita, e vice-versa, ou seja, os conteúdos
cozidos no vaso da direita fluem através de seu longo pescoço curvado para baixo para o
corpo do vaso da esquerda.
Troca de devaneios, como amantes interligados, reunidos por um imaginar mútuo. Um
modelo de cogeração, companheirismo, afinidade intima. YabiYum. Índios americanos, em
alguns lugares, fumavam seu tabaco em semelhantes rituais parelhados. Por meio de um tubo
em meu nariz, eu inalo o que você exala, e o reverso: enquanto sopro minha fumaça para
fora, você a inspira e põe para dentro. Fertilização cruzada de espíritos.
A alma requer material psíquico. Os resíduos do mundo diário, Tagesreste como Freud os
chamava, podem encher o vaso, mas não o alimentam. Informação e influências nutrem
somente depois de terem sido um pouco fermentadas e cozidas. Pense na alma como uma
vaca com vários estômagos: reflexão como regurgitação. Pepsis era um dos termos usados para
descrever o que se passava dentro do vaso: pepsis, o termo grego para digestão, a
transubstânciação do cru no cozido. Transformar os eventos do dia em experiências, que é
uma das definições de cultivo da alma (soul-making). Os alquimistas alertam a respeito de
material não digerido - comparações, interpretações, teorias e explicações estranhas,
emprestadas. Eles dizem leia, mas também dizem, nada que se encontre nos livros e útil.
Tudo o que e necessário já está dado, se for adequadamente cozido.
O Pelicano oferece uma imagem para a ferida que a obra causa. Sentimos seu custo no
sangue. As coisas precisam ser cozidas em seu próprio sangue, é um conselho frequente.
Sentimos o esgotamento no corpo a respeito daquilo que poderá vir depois, mas que agora é
totalmente desconhecido, a cria do Pelicano, crianças da imaginação, pois a fantasia da
corpo/a coisas até então desconhecidas 39. O Pelicano: vaso da fé psicológica, uma frase usada
por um estudante perspicaz da alquimia, Robert Grinnel,40 para descrever uma atitude ou
devoção que exige nada mais que um render-se, um entregar à obra todas as demandas
pessoais que dela esperamos, para o bem da obra, venha o que vier.
O vazio no vaso
Cada vaso tem sua forma específica. Dentro é o vazio. Cada vaso forma-se em torno desse
vazio. Devido a nossa cultura ocidental ter declarado que A natureza abomina um vácuo, nós
abominamos o vazio. (Empty/vazio), do inglês antigo, significa no lazer, desocupado, ou seja, fora
39
40
‘
/
’. Shakespeare, W.
Grinnel, R. ‘
Archetypal Psychology and Jungian Thought, 1970. (s.l.): [s.e.], p. 15-39.
,
’. Spring: an Annual of
34
do trabalho, não funcional.) Para nós, o vácuo dentro do vaso é apenas isso: vazio. Miramos
os vasos de fora, admirando o esmalte do pote, o talhe do cristal, a trama de um cesto, a alça
de um jarro. Quando avaliamos seu interior, são só medidas: quantos litros? Um quarto?
Quantos gramas?
No budismo, o vazio não é um vácuo, mas uma força positiva.41 O interior forma em torno de
si a forma externa visível. O repouso do vaso chinês (T.S. Eliot)42 42começa dentro; a forma
extraordinária que vemos e o repouso que emana do vazio, sempre esse vazio especifico
habita essa forma especifica.
A cultura afeta a forma dos vasos e, portanto, eles revelam qualidades misteriosas de uma
cultura que suas outras artes e textos escritos podem não expressar tão bem. Formatos
estranhos, formas perfeitas de diferentes dinastias chinesas, potes gregos, etruscos, fenícios,
franceses rococó, as cerâmicas de Picasso, os agrupamentos de quietas garrafas de Morandi.
Barricas e toneis, cântaros e moringas. A garrafa long-neck de cerveja, a velha garrafa de CocaCola, a garrafa de leite com o bojo para um creme amarelo. O futile romano que pode tombar,
a pele de cabra para o vinho, o cantil de metal com formatos diferentes de acordo com o
exército de cada nação. Os vasos expõe o Zeitgeist invisível, o visível formado pelo invisível.
A frenologia ocidental e a medicina romântica expressaram uma ideia semelhante, atribuindo
os contornos e as fendas do crânio humano à forca do cérebro e, dentro desse órgão, o poder
da mente ou da alma. Frenologistas penetravam a natureza interior de uma pessoa
estudando e medindo os inchaços palpáveis do crânio. Eles diziam poder ler os dons e as
deficiências de uma pessoa, o próprio caráter mais profundo, a partir das colinas e vales da
topografia craniana.
Esses modos - orientais e românticos - de se considerar o vazio interior sugerem que cada
vazio tem sua forma individual e está contido de uma maneira particular. Seu vazio não é o
meu vazio, e o dela e também diferente. A forma como uma pessoa contém suas lacunas já e
uma revelação daquilo que está sendo contido. Termos generalistas, diagnósticos simplistas abandono, necessidades, crise de identidade, baixa autoestima, humor depressivo,
dependência, desamparo masoquista - não podem descrever adequadamente, que dirá
compreender, a força do vazio.
Devido a nossa natureza coletiva ocidental abominar um vácuo, corremos para preencher um
vazio com qualquer coisa, com tudo, de comida lixo a autoajuda lixo; de bebida, compras e
novidades em jogos e equipamentos eletrônicos a comiseração de companheiros de alma, ou
simplesmente lagrimas infindáveis.
A alquimia, contudo, sugere que esses sentimentos de vazio são indicações de um vaso se
formando. O vazio está construindo uma forma, uma forma especifica. Talvez vários vasos.
Modos de conter. Modos de medir. Modos de diferenciar. A realidade da psique está abrindo
seu caminho para a vida e reformando nossa vida por meio de sentimentos de vazio.
41
42
Eoyang, E.C. ‘‘
Eliot, T.S. ‘
’. Tamkang Review, 16, n. 1,1985, p. 51-65.
’.
:‘
/
’. [‘O repouso, como um vaso chines que ainda se move / Perpetuamente em seu repouso.’]
35
As vezes o vazio pode ser localizado fisicamente. Bem aqui, em minha barriga; bem atras de
meu coração sinto-me aéreo, tonto. As vezes aparece num sonho quando caímos no espaço,
ou num buraco, numa caverna escura, num saguão enorme e desocupado.
Enquanto não atribuirmos poder formativo ao interior secreto de um vaso, continuaremos a
ler sua função numa única direção. O cântaro contém a agua, o vaso segura as flores, a cesta
guarda as frutas. O vazio interior e meramente um receptáculo; a agua, as flores e as frutas
são o que importa.
Uma leitura contrária diz: o jarro é úmido, o vaso é florido, a cesta é frutada. Os mestres
pintores da Holanda e da França do século XIX mostraram as papoulas, as íris e as rosas, as
peras, as maçãs e as uvas emergindo da concavidade de seus receptáculos,(o vazio como fonte
da beleza. Se você examinar os vasos que contém as flores, os cestos e pratos nos quais estão
as frutas, esses recipientes são cada um deles manifestações de formas, cores e texturas
particulares, e são inerentes aquilo que mostram. Se Deus não tivesse nos dado vasos/Seus
outros presentes seriam inúteis.
V Fornos e fogões
Os vasos contém a substância, mas o próprio fogo precisa ser contido. O calor que abastece
toda a obra e torna a alquimia possível requer um recipiente a altura de sua força de
combustão. O desejo precisa de direção.)
A argila racha, o vidro se quebra, a madeira queima, o metal derrete. Que vaso pode conter a
opus major? Os métodos usados pelos vasos - a terrosidade da argila, a reflexão e a lucidez do
vidro, o naturalismo materialista da madeira, e a dureza disciplinada do metal - acabam
vítimas do grande calor. A alma queima loucamente por ouro; de que outra forma dar conta
da insanidade da alquimia, da loucura, das privações e perseguições miseráveis e da ambição
exaltada daqueles que a perseguem até a morte? O elixir que cura todas as moléstias, que
garante longevidade e imortalidade da alma, assim como fama, fortuna e a companhia de reis
- estas eram as visões do desejo alquímico. Tao excessivas, tão extremas que só podiam vir
dos deuses. Tal era a imaginação de Zosimo, que reconta uma história judaica (Genese
)
como se fosse as origens da alquimia:
Os anjos foram tomados de paixão pelas mulheres. Desceram dos céus e lhes ensinaram todas
as operações da natureza (...) Eles eram os que compunham obras químicas (...] Seu livro e
chamado de Khema, e é deles que a química [kumia] recebeu seu nome.43
A alquimia começa no desejo; o desejo precisa de direção. A supressão ética não pode
controlar o desejo. A essência do fogo é fora-de-controle. Ele vem das regiões celestiais, vem dos
anjos, dos deuses e das entranhas incandescentes da terra.
Daí o aspecto xamânico do ferreiro como mestre do fogo, e o crime do humanismo
prometeico.
Fumus, o forno como resposta ao fogo. O Fumus assume responsabilidade sobre o fogo. O rigor
e a fantasia do fogão deve ser igual às forças do fogo. Deve ser capaz de governar a
43
Patai.
. [s.l.]: [s.e.], p. 56.
36
combustibilidade selvagem do fogo, e um texto chines refere-se ao sacrifício ao fogão (tsao), e
você será capaz de convocar ‘coisas’ (isto e, espíritos) 44. Fumus: a lógica de um sistema forte,
bem construído, cuidadosamente encaixado, duradouro. Regras básicas, tijolos e argamassa,
disciplina de ferro da Igreja, da escola ou da sociedade que mantém o espírito vivo em foco,
concentrado, e capaz de suportar a chama da inspiração, os lampejos e faíscas da paixão que
incendeiam as matas e espalham a intensidade.
Direção, objetivo, propósito, concentração, foco. Focus, em latim, lareira. O fogão resistente ao
fogo e dirigido por seu próprio princípio governante: resistir ao fogo. As regras são feitas para
manter o fogo sob controle. Um fogão e construído; ele é um constructo, um sistema
conceituai. Seu desenho tem desígnios para o fogo, designando sua direção e qualidade.
Fornos de teste, fornos de apurar, fornalhas para refinar a prata, fornos para derreter ferro,
para derreter vidro, para fundir chumbo ou estanho e para separar prata de cobre, e para a
produção de mercúrio e resina.45 Boca posterior do fogão, usada para cozimento mais lento;
múltiplas aberturas, múltiplas temperaturas, fornos escondidos, aquecedores, grelhas quentes
de carvão. Alguns fogões alquímicos tinham mais de quarenta lugares diferentes para
cozinhar. Calores múltiplos para materiais múltiplos e operações múltiplas concomitantes. O
fogão: a disciplina da multiplicidade. Saber onde cada coisa tem seu lugar; um lugar para
cada operação e cada coisa em seu lugar. Localizar como a arte da cozinha.
Novamente, Maria a Judia é considerada, ao menos por Zosimo, como a fonte para a mais antiga
descrição da construção de uma fornalha, o que lógica e necessariamente segue sua invenção
do bain marie.46
Tipos de cozimento, múltiplas operações: evaporação numa panela achatada deixa o vapor
dissipar; a destilação produz algumas gotas, de claridade a partir de uma massa confusa; a
sublimação leva um material para cima, longe da sedimentação no fundo do vaso; o
congelamento permite que as questões esfriem e se solidifiquem numa forma definida; a
fermentação encoraja a coisa a enriquecer-se a partir de sua própria obscuridade interna.
Múltiplas operações, múltiplos fogões.47 Fornalha ascendente leva o calor para cima; fornalha
descendente leva o calor para baixo; fornalha de areia circunda o vaso em cinzas, o calor
vindo do fogo de ontem: suave, cinza, seco, queimado, ainda assim caloroso; forno de
reverbero no qual o calor vem das paredes interiores, cozinhando por eco, repetições que
constroem a intensidade; a fornalha de explosão aumenta as chamas por meio de uma
corrente de ar, para liquefazer e derreter minerais; fornalha balão suspende o material num
balão com sua boca projetada para fora do forno. Essas são apenas algumas descrições da
literatura técnica sobre fornos, condensadas no Dicionario de Ruland no verbete Furnus.
44
45
46
47
Waley, A. ‘
’.
, vol. VI, n. 1,1930, p. 2. London
Institution.
Meitzner, B.
’ des Andreas Libavius von 1606.
Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 1995.
PATAI.
. Op. cit., p. 90.
Cf. HILL, C.R. ‘
’. Ambix, 22,1975, p. 101-110, com inúmeras ilustrações.
37
Homens velhos imaginaram para esta Arte/Uma Fornalha especial para cada parte.48 Norton
inventou sua própria fornalha desconhecida dos antigos. Eu a construí]...] com um gasto
considerável [...] Está construída de tal forma que sessenta diferentes operações, para as quais
diversos tipos de calor são necessários, podem ser levadas a cabo ao mesmo tempo, e um
fogo bem pequeno[...] fornece um grau suficiente de calor para todos estes processos.49 Ele
continua descrevendo outros fornos que está construindo, sua engenhosidade, sua economia
de fogo (combustível), seus serviços múltiplos, sua capacidade de regular graus de
intensidade de calor - e quais fornalhas são melhores para quais operações em particular, por
exemplo, purgar e secar para a exaltação.
Se o fogão disciplina o fogo e direciona o calor, ele incorpora regras e advertências que os
alquimistas amam pronunciar. Dificilmente encontramos um texto que não encontre falhas
em outros textos e erros de procedimento, ou que não sucumba a dar avisos, alertas e
admoestações morais. O tratado de Norton insiste em cinco regras ou acordos :
A primeira regra a ser observada é que a mente do estudante esteja em perfeita harmonia com
a obra. O desejo de conhecer esta Arte deve ter um lugar predominante em sua mente; do
contrário, seus esforços resultarão em nada. O segundo acordo e que ele deve conhecer a
diferença entre esta Arte e aqueles que a professam. O terceiro tipo de harmonia e aquela que
deveria existir entre a obra e os instrumentos. O quarto acordo designa a obra o lugar que é
mais adequado para sua execução. O quinto acordo e a simpatia que deveria existir entre sua
obra e a esfera celestial.50
Se fossemos imaginar que as regras para a opus alquímica são igualmente válidas para o
trabalho psicanalítico, então essas cinco regras poderiam ser enunciadas em termos
contemporâneos: (1) Conhecimento da psique em todas as suas vicissitudes, em vez de
conhecimento de si ou do paciente, deve ter lugar predominante na mente do praticante. (2)
O valor do trabalho psicológico não e medido eo ipso pelos exemplos daqueles que praticam a
profissão da psicologia. (3) Já que os conceitos são os instrumentos da pratica psicológica,
eles devem favorecer harmoniosamente as intenções do trabalho. (4) Seu lugar de prática
deve ajustar-se a seu estilo de prática e seus objetivos. (5) A prática expressa uma cosmologia.
Deve haver uma harmonia entre cosmo e clínica, entre sua visão mais ampla de ordem
última do mundo e o trabalho íntimo com o sofrimento das almas.
VI O espírito do Fogo
Mais rudimentar que as ferramentas, as coisas e os procedimentos usados pela alquimia é o
fogo do qual tudo depende – o elemento com o qual este capítulo se iniciou e agora termina.
O fogo é o primeiro princípio, a raiz metafórica. Assim como a obra é governada pelo fogo,
dependente do fogo, também o é o pensamento alquímico sobre a obra. Em consequência
48
49
50
Holmyard. Alchemy. (s.l.]: [s.e.], p. 193.
‘
’. HM 2, p. 62.
50. Ibid p 50-60
38
disso, as características do fogo arquetipicamente propelem a reflexão alquímica numa
direção especifica.51
O pensamento requer uma linguagem. A ideia de que o fogo transforma a matéria não é
apenas uma ideia empírica testemunhada quando uma chama queima um pedaço de
madeira ate uma cinza preta. Essa transformação já estava implícita no termo grego para
matéria, hyle (madeira), que mais tarde recebeu sentidos mais abstratos de potencialidade
aristotélica (capaz de ser transformado) e queda crista (capaz de ser redimido). Assim como a
madeira submete-se ao fogo, a natureza material também submete-se ao espírito pelo qual e
purgada, transformada e elevada.
Qualquer trabalhador do fogo pode facilmente perceber suas características primarias. Ele
sobe. Seu calor domina e altera os materiais. Ele produz luz. Não pode ser tocado
diretamente. Não pode ser saciado. Ascensão, transmutação, iluminação, intangibilidade, insaciabilidade
essas cinco ideias empiricamente testemunhadas no laboratório afetam as formulações dos
textos alquímicos e dos seus comentadores posteriores. Resumindo, o fogo da a alquimia
suas leituras espirituais.
Ascensão: No fogo da obra, ou pegando fogo com sua obra, os alquimistas estão sujeitos ao
desafio do fogo à gravidade, e imaginam seu trabalho apontando para cima de acordo com as
chamas e o calor que tentam controlar. Do mais baixo ao mais alto; do inerte ao ativo; do
pesado ao leve; do pequeno, incerto e sem chama ao intenso e saltitante. Uma escada de
valores e estágios de progresso: da imperfeição à perfeição, saúde, do particular ao universal,
do mortal ao imortal - medicina católica, panaceia, ressurreição, corpo adamantino, ouro,
salvo do fogo do inferno pelo fogo divino, a salamandra que sobrevive ao fogo, a fênix que
renasce das cinzas.
Transmutação: Um fogo interno está em operação em toda à natureza, levantando-a em
estágios do impuro ao puro. Testemunhe as transmutações alcançadas em alguns tipos de
pedra: cristais, gemas preciosas, pepitas de ouro. A evolução está incrustrada no corpo
mineral da terra. Embora o fogo possa calcinar uma substância até um pó cinza,
enegrecendo-a até a morte, o modelo total de melhoria apropria-se dos efeitos rebaixantes e
desintegrativos. Luz no fim do túnel; escuridão antes do amanhecer; Getsêmani e Gólgota
antes da Ressurreição. O fogo altera tudo o que toca: todas as coisas estão sujeitas à sua
onipotência transformadora. Até a água evapora, a pedra derrete em lava e o mais forte ferro
dobra-se diante de sua vontade. A chama do espírito supera toda a resistência material.
Iluminação: O fogo ilumina a escuridão. Por meio dele podemos enxergar no escuro, avançar
no escuro, enfrentar a noite. Ainda assim esse mesmo fogo afia e aprofunda a escuridão. Ao
ficarmos perto de sua luz, perto do fogo (fogueira de acampamento, chama da vela, lampião),
os cantos e sombras do perímetro mais distante tornam-se breu, impenetráveis. Quanto mais
luz, mais escuridão, o que requer cada vez mais iluminação brilhante. Luz e sombra,
contrários que se definem; eventualmente, opostos guerreando-se. Iluminação, uma via
51
A figura paradigmática para essa direção é o químico e médico belga Jan Baptista van Helmont, que via a si mesmo
como um philosophus per ignem, um filosofo pelo fogo. Esse pensador místico, ainda que empírico, mantinha que
Deus se comunica ‘por meio do fogo - o penúltimo meio químico de investigação. O fogo é uma concentração da luz, e em
seu poder destrutivo (...) é uma criação divina’ (Heinecke, B. ‘
,
1579-1644’. Ambix, vol. 42, n. 2,1995, p. 72).
39
longissima, pois a inconsciência aumenta na proporção da luz. Solução do paradoxo? Uma
iluminação epifânica, somente o fogo apocalíptico de um despertar espiritual elimina a
própria escuridão: E a morte e o inferno foram lançados no lago de fogo (
); Onde
está, ó morte, o teu aguilhão? Onde está, ó inferno, a tua vitória? (
).
Intangibilidade: Porque o fogo não pode ser tocado diretamente, precisa ser alcançado
indiretamente, por alusões, palpites, analogias, alegorias, cifras crípticas e símbolos arcanos.
Gnósticos, rosa-cruzes, cabalistas. A arte negra do conhecimento secreto. Qualquer coisa
normalmente perceptível pelo olho comum não é o ouro alquímico; todas as coisas, a própria
mente, devem ser iniciadas, sofisticadas. Somente uma elite, uma casta de sacerdotes,
reclusos e disciplinados, tendo sofrido o mistério longamente, tendo passado por suas
mortificações e orações, pode trabalhar o fogo.
Insaciabilidade: Quando Thomas Norton descreve as qualidades necessárias aos assistentes de
um alquimista, sua descrição de emprego poderia também descrever aquele de uma amaseca. O cuidado com o fogo em muitas culturas indígenas está entre as tarefas das mulheres
e dos velhos. Como um bebê, o fogo quer apenas crescer e seu apetite é insaciável. Precisa de
alimentação constante, ar suficiente, e nada indigesto - galhos úmidos, madeira podre, raízes
sujas de terra, esterco acumulado. À medida que cresce busca pular para fora do berço, andar
por si mesmo, e espalhar suas chamas. A insaciabilidade da alquimia as vezes está disfarçada,
as vezes e ostensiva. Insaciável, a quantidade cada vez maior de termos, a diferenciação dos
apetrechos, tipos de vaso. Insaciável, o apetite de aprendizado: um livro abre outro.
Insaciável, o desejo da meta dourada. Até mesmo os últimos estágios da opus major são
ilimitados: exaltatio, multiplicatio, rotatio. E a alquimia não se deixa ser reduzida a simples
fórmulas e regras normativas, como se, por causa do fogo, a alquimia não pudesse chegar a
um sistema coeso que suas próprias operações de coagulação e conjunção requerem. Como o
espírito, ela vai onde quer, segue seu impulso. Como o espírito, o fogo está numa missão,
acender outros fogos por aí afora, convertendo os dias em combustível para engordar suas
próprias chamas.
Essas cinco ideias principais, tão aparentes a qualquer trabalhador do fogo, formam juntas
uma metafisica alquímica. O impulso ascendente arquetípico do fogo dá a alquimia sua visão
espiritual, traduzindo suas imagens e insights em mensagens para o caminho para cima. O
cristianismo dos principais autores da alquimia não se origina apenas de seu contexto
histórico: o fato de estarem escrevendo numa era fortemente cristã. Sua metafisica redentora
está ainda mais determinada pelo seu contexto arquetípico o ascensionismo espiritual do
fogo elemental. Uma passagem de Aristóteles pode salvar a psicologia alquímica desse
determinismo arquetípico e da leitura espiritual da alquimia. Escreve Aristóteles:
Pois o crescimento do fogo é ilimitado enquanto houver algo a ser queimado, mas em todas as
coisas que são constituídas naturalmente há um limite e uma proporcao tanto para o tamanho
quanto para o crescimento^ e estes pertencem a alma, nao ao fogo, e aos princípios, não a
matéria?52
52
Aristoteles.
:
(
). Oxford: Oxford University Press, 2002, p. 19 (416a).
40
Já que a alma se reconhece em suas imagens, e já que a produção de imagens (poiesis) é a
atividade primária da alma,53 o princípio definitivo que governa o crescimento do fogo são
imagens. Elas são os rudimentos essenciais de toda a obra. Elas são aquilo que o alquimista
vê, cheira e toca com suas mãos - e * o que ele imagina. Manter o foco nelas limita a
especulação metafisica infinita (crescimento do fogo) aquilo que está presente agora. As
descrições da linguagem e das gravuras alquímicas são coagulações que servem para
condensar em apresentações reais a volatilidade da psique engajada. Alquimia: um estudo das
apresentações, pois essas aparições retratam, definem e afetam a alma. Consequentemente, o
impulso espiritual insaciável da alquimia, seu fogo, requer limitações psicológicas, uma
alquimia da alma - como este capítulo rudimentar e este livro como um todo intencionam
apresentar.
53
JUNG, C.G.
.•
. Cf.
. Nova York: Harper &
Row, 1975, p. xvii: ‘(Jung) considerava as imagens de fantasia que atravessam nossos sonhos acordados e nossos
sonhos da noite, e que estão presentes inconscientemente em toda nossa consciência, como os dados primários
de nossa psique. Tudo o que sabemos e sentimos, e cada afirmação que fazemos [...] provem de imagens
psíquicas’.
41
42
O sofrimento do sal
3
Alguns não estão em busca de ouro, mas não há um só homem que não precise de
sal.
Cassiodoro
Rumo a uma Psicologia Substancial
O sal alquímico, como qualquer outra substância alquímica, é um sal metafórico ou
filosófico. Em vários textos alquímicos somos alertados de que esse mineral não é o sal
comum, nosso sal de mesa ou cloreto de sódio. Ainda assim, como poderemos ver, esse sal
alquímico é, de fato, comum a todos nós - e não apenas como o conteúdo fisiológico
necessário ao nosso sangue e nossos fluidos.1
Talvez o epíteto comum, que curiosamente é ligado, dentre todos os nossos comestíveis diários,
somente ao sal, revele que o sal e o substrato daquilo que queremos dizer com “comumente humano”, de
forma que o sal e o princípio arquetípico tanto do sentido do comum quanto do senso
comum, ou bom-senso.
Vocês já podem ver como estaremos trabalhando nesse capítulo: estaremos ativando a
imagem do sal (1) como uma substância psicológica que aparece na alquimia como a palavra
sal (2) como uma operação que libera um resíduo; (3) como uma das várias substâncias físicas
genericamente chamadas de “sais”; e (4) como uma propriedade de outras substâncias.
Principalmente depois de Paracelso, a palavra sal nos textos alquímicos frequentemente
indica a base estável da vida, sua terra, seu chão, seu corpo. Entretanto, o termo também se
refere mais particularmente aos alumes, álcalis, cristalizações, bases, cinzas, sal amoníaco,
potassa, assim como as qualidades sensoriais equivalentes a esses materiais: amargor,
1
A vida animal depende do sal. Cavalos (de acordo com raça, tamanho e localização) precisam de até 40 libras por
ano, vacas de até 80. Humanos consomem cerca de 10 libras (não incluídas as quantidades já presentes nos
alimentos preparados). Cada um de nós contém cerca de oito onças de sal - o suficiente para encher vários
saleiros. [O sal] participa de contrações musculares, incluindo os batimentos cardíacos [...] impulsos nervosos [...]
a digestão. Sem sal o corpo entra em convulsões, paralisias, morte. Ponha células de sangue num fluido sem sal e
elas se rompem (Young, G.
. National Geographic, set./1977, p. 381.) Já que a necessidade
de sal é tão básica, governos apoiaram-se em monopólios do sal e impostos sobre o sal como uma fonte segura de
fundos. Rebeliões motivadas pela taxação do sal emergiram, pois o sal representava a necessidade comum do
povo, de forma que o controle sobre ele era uma injustiça que afetava a própria vida. A derrota dos secessionistas
sulinos em 1865 foi atribuída a uma fome de sal, e um proverbio chines afirma que um homem privado de sal
por uma quinzena ficaria tão fraco a ponto de não poder atar uma galinha (
.
. Baltimore: The Johns Hopkins University :ess, 1978, p. 3-19.) O sal era tão
valioso que era importado de grandes distâncias (por exemplo, da Sicília, via Veneza, para os camponeses dos
vales do Reno na Suíça.) Na África, blocos de sal saariano eram vendidos para omias subsaarianas em troca de pó
de ouro, marfim e escravos. Comida salgada é sinônimo de comida ‘sagrada’ no antigo hebreu (Brudel, F.
- Vol. 1:
. Berkeley: University of California
Press, 1992, p. 209).
43
adstringência, pungência, mordacidade, dissecação e rispidez, ferroadas e dores secas,
agudeza e aspereza.
Essas qualidades da vida humana pertencem à própria substância do caráter. De fato, as
qualidades amargas e mordazes não somente são tão comuns e básicas quanto o sal, mas
também são tão essenciais a incorporação de nossa natureza psíquica quanto o próprio sal o
e para nossos corpos físicos. Nossos momentos mordazes, adstringentes e secos não são
eventuais e acidentais; eles fazem parte de nossa substância e essência.
Essa abordagem psicológica ao sal tem dois principais predecessores: Ernest Jones, seu
,2 e o capítulo ricamente condensado sobre o
sal de C.G. Jung em seu
OC 14/1, 228-340.3 As principais diferenças entre
suas abordagens e a minha estão em nossos diferentes objetivos.
Enquanto eles examinam o sal de uma maneira acadêmica, no intuito de apreender um
significado objetivo dessa substância alquímica, estou tentando levar ao leitor sua
substancialidade como uma experiencia pessoalmente reconhecível. Enquanto Jung faz uma
metapsicologia da alquimia, estou tentando um psicologizar alquímico. Portanto, seu
capítulo sobre o sal, e a amplificação principalmente antropológica de Jones, são backgrounds
indispensáveis mesmo que eles ofereçam menos proximidade experimental ao material.
Pretendo que minha fala sobre o sal tenha nela mesma traços de sal.
Nosso modelo é o microcosmo/macrocosmo e a doutrina das correspondências entre eles.
Um homem, ou uma mulher, e uma disposição menor (kosmos) na qual todas as coisas da
natureza estão representadas proporcionalmente. Não somente o mundo macrocósmico esta
personificado e vivo com qualidades subjetivas que hoje em dia permitimos apenas a seres
humanos, mas o microcosmo do ser humano, por ser um microcosmo da natureza, e também
um objeto mineral e físico, que se constitui de substâncias tais como o sal. A diferença entre
esta substancialidade psicológica e aquela da química, que também sustenta que elementos
minerais e físicos entram na composição de um ser humano, e que o modelo químico não
requer consciência ou alma. Ha um corte radical entre o sujeito consciente e as substâncias
físicas. Enquanto o modelo alquímico sugere: o que está dentro é igual ao que está fora. O
mundo físico tem sua interioridade e subjetividade porque é uma disposição mais ampla da
natureza humana. Para a alquimia, tanto o homem quanto o mundo são almados.
Inteligência, sentido, exibição estão potencialmente presentes em tudo.
O modelo do microcosmo/macrocosmo requer uma responsividade micro/macro. Ele pede
que seja possível sentirmos o mundo da matéria com sensibilidade para as diferenças
qualitativas. Pede para que encontremos em nossas experiências objetivas analogias e
metáforas de processos e substâncias físicas. O modelo micro/macro funciona em duas
direções. Ao dotar o mundo de alma, ele também indica que a natureza humana atravessa
processos naturais objetivamente minerais e metálicos. Nossa vida interior é parte da ordem
natural do mundo; e essa perspectiva nos previne de tomarmo-nos tão pessoalmente e de
identificarmos aquilo que acontece na alma com o ego subjetivo. Assim, os sais pertencem à
própria materialidade da psique. Sal descreve um de nossos materiais, um dos materiais que
portamos, aquilo que é de importância em nós e aquilo que nos importa - ou seja, sal demais,
2
3
Imago 1 (1912). Reimpresso em Jones, E.
- Vol. 2:
. Londres: Hogarth Press, 1951.
Ambos ensaios foram republicados, com uma introdução excelente.
Woodstock, Conn.: Spring Publications, 1995.
.
44
ou pouco demais, ou sal nos lugares errados e horas erradas, ou ainda combinado
erroneamente.
A psicologia alquímica descreve uma miríade de substâncias. O
de William
Johnson, de 1652, e o
de Martin Ruland, de 1612, listam
centenas de palavras referentes a materiais. Essas podem ser reduzidas a um sistema de sete
elementos básicos derivados das sementes metálicas dos deuses planetários tradicionais: todo
o tipo de palavras pode se referir à prata e às suas operações, por exemplo, e cada uma dessas
palavras conota também o princípio planetário da lua numa fase, disfarce ou combinação
específicos. Uma variação do sistema sétuplo é o de três substâncias mais uma quarta, a
“tetrasoma” que, em si mesma, combina quatro dos metais planetários primários (chumbo,
cobre, ferro e estanho, ou antimônio). O sistema triplo, no qual o sal tem um lugar de
importância, deriva-se principalmente de Paracelso,4 o radical filósofo da natureza, médico
religioso e excêntrico suíço que propôs o sistema do enxofre, mercúrio e sal, que era um
modo de imaginar mais sutil e químico que o modelo mais grosseiro e metalúrgico dos sete.
Por causa das complexidades inter-relacionadas dessas substâncias, os modelos alquímicos
são politeístas, ou seja, não se pode falar verdadeiramente de qualquer dos elementos
sozinho. O que quer que seja dito sobre o sal está sempre contaminado, e deve mesmo estar
contaminado, pelos materiais, os vasos e as operações com os quais ele está em interação. Os
materiais psíquicos estão sempre numa interpenetração difusa com outros materiais e não
permanecem simplesmente autoconsistentes, e assim requerem interpretações múltiplas. Na
verdade, essa própria contaminação é parte de sua definição: digamos que a alquimia tem
contornos flexíveis. As diferenças entre seus elementos não podem ser estabelecidas
prontamente e com precisão porque esses elementos também são naturezas vivas elementares.
A técnica de isolamento, tão essencial ao método das ciências naturais modernas, força
arbitrariamente a natureza a sujeitar-se a um tipo de consciência que isola, bem como com
sua epistemologia, que corta, separa, e opõe para conhecer.5
4
5
Embora uma variedade de sais fossem conhecidos pela alquimia na Antiguidade (Theophrastus, Plínio, e depois
Geber e Rasis), somente com Paracelso o sal foi elevado a um dos tria prima, mais fundamental do que os sete
planetas e os quatro temperamentos elementais. Paracelso refundou a alquimia num esquema tripartite ao
introduzir o sal como um novo terceiro termo. Essa posição ‘terceira’ é característica de Paracelso, pois ele
sustentou uma posição contra Aristóteles e os Escolásticos, por um lado, e Galeno, por outro. Como mostra
Walter Pagel (Stevenson, L.G. & Multhauf, R.P. (orgs.). ‘
’. Medicine, Science
and Culture. Baltimore: Johns Hopkins, 1968, p. 57ss.), sua tradição era platônica e neoplatônica,
particularmente ao seguir a cosmoantropologia tripartite de Marsilio Ficino - corpo, alma, espírito - a quem ele
admirava. É em sua defesa de um terceiro princípio que vejo a importância de Paracelso para
como um
ancestral espiritual (Jung, C.G. OC 15, 1-43..
. [s.l.): [s.e.], p. 200 e 220). Ambos lutaram
contra, por um lado, o espiritualismo teológico e, por outro, o materialismo empírico, na busca de sustentar uma
posição intermediária da alma, ou da realidade psíquica. Parte da assim chamada ‘indefinição’ de Paracelso
(Temkin, O. ‘
’. Bull. Hist. Med., 26, 1952, p. 201-217) pode ser atribuída a essa posição
intermediária mercurial. Embora Paracelso normalmente identificasse o enxofre, ao invés do sal, com o
tegumento intermediário, sua defesa do sal e sua própria salinidade (a natureza física, prática, comum,
vernacular, purgativa, aguda na fala, amarga, não combinável de sua personalidade) mostram como essa
substância foi fundamental tanto para sua natureza quanto para sua reflexão. Ele morreu, a propósito, em
Salzburgo. Sobre as três linhas de pensamento, cf. Temkin, O. Galenism. Ithaca: Cornell University Press, 1973,
esp. p. 128-170.
‘Ciencia’, derivado de scire, conhecer ou saber, e cognato de scindere, cortar, dividir, e tem provavelmente a mesma
raiz de cisma [em inglês, no original, schism], divisão [em inglês, no original, shed\, e merda (como separação) [em
inglês, no original, shit\. Cf. Weekley, E.
. Londres: John Murray, 1921.
45
O sal alquímico encontra-se normalmente num tanden com o enxofre, e aquilo que é dito
sobre o sal e normalmente dito de uma perspectiva sulfúrica. Na alquimia paracélsica, por
exemplo, o sal é frequentemente imaginado como a alma (o enxofre como o corpo e o
mercúrio como o espírito que os combina).
A imagem ilustrativa é o ovo, cuja gema (enxofre) - oleosa, fedorenta, pegajosa e vital - e seu
corpo; cuja casca (sal) - fixa, inflamável, dura e fechada - e sua alma; e cuja clara (mercúrio) conectando gema e casca, mutável, escorregadia, volátil, alterando sua forma e consistência é o espírito do ovo. Ou: a casca (sal) pode ser o corpo; a gema (enxofre), a alma.
Cheguei à conclusão de que é melhor considerar cada componente como tendo seu próprio
tipo de corpo, ao invés de insistir que o sal é sempre a alma (ou sempre o corpo)6 numa
equação um para um. Devemos lembrar que uma substância psíquica não significa, e não
pode significar, uma só coisa. Portanto, percebemos que os alquimistas deslocavam “corpo”
para equacioná-lo com isto ou com aquilo, dependendo da tarefa a ser completada. O mesmo
também é verdade para nosso trabalho psíquico hoje: certos problemas tomam corpo ou
gritam por libertar-se do corpo, ou perdem seu corpo, de forma que nenhum aspecto único
de nossa vida psíquica pode firmemente ser chamado de “corpo”. Como já disse várias vezes
, o corpo é o elemento mais enganoso. Quando o corpo está equacionado com o
enxofre, o que se quer dizer é a urgência excitável e palpável, o corpo das paixões e das
vontades geradoras. Quando o corpo é chamado de sal, o que se compreende é o corpo fixo,
consistente e estável que é o continente de qualquer existência, como uma casca externa.
Paradoxalmente, o sal também pode significar o seu núcleo central, pois o sal foi imaginado
por Khunrath como o centro da terra. Talvez a melhor maneira de se entender “corpo” nesse
contexto seja pela ação de uma substância: aquilo que coagula ou dá corpo deve portanto ser
ele mesmo corpo. Às vezes, o enxofre é o agente coagulante; outras vezes, a coagulação é
atribuída ao poder do sal.
O tandem do sal com o enxofre continua nas vidas e nos sonhos modernos. Uma mulher em
análise oscila entre entusiasmos incandescentes por novas pessoas, projetos, lugares; está
pronta para pegar fogo a qualquer momento, impregnando a vida de energia vital com uma
imaginação rica e generosa. Ela também tem momentos de depressão: bebendo solitária,
ensimesmada, embutida, amarga com as lembranças do que se passou, paralisada por horas
sentada numa cadeira quadrada, junto a uma mesa quadrada, sentindo-se para baixo, fisgada
pelo centro da terra. Não há conexão direta entre seu enxofre e seu sal. Eles oscilam em
“variações de humor”. O trabalho terapêutico, de acordo com a fórmula alquímica, não seria
temperar um com o outro, mas tocar ambos com mercúrio, ou seja, libertá-los de seu concretismo
alternado através da reflexão psicológica, cujos primeiros passos seriam enxergar quão
impessoalmente autônomas as variações são e como constelam uma à outra, como o fazem o
enxofre e o sal.
Em um outro caso, um rapaz, encontrando dificuldade em abandonar sua inocência infantil
e a vida valiosa no colo da mãe e dos deuses, primeiro sonha estar caminhando com sua
namorada num deserto de sal; depois sonha estarem juntos degustando uma carne salgada; e
depois, sonha com um homem estranho que tem uma barraquinha na calçada e que entrega
ao sonhador uma bisnaguinha de pão recheada com um tipo de salsicha salgada, ao invés
daquilo que ele tinha pedido - uma bisnaguinha recheada de um tipo de creme doce e
6
Cf. Jung. C.G.
corpo ou terra.
. Sal é também o
, Mercúrio, e portanto o espírito assim como a alma, e o
46
amarelado. O sonhador fica ofendido. Ele queria o sabor e o prazer do enxofre nas coisas
doces e suaves que deslizam para dentro sem esforço algum.7 Mas o estranho homem da rua
(talvez o próprio Mercúrio) entrega-lhe a ferroada amarga do sal que pode trazer lágrimas
aos olhos. Temos agora que explorar a natureza deste sal.
Minas de sal: a extração e a fabricação do sal
Em primeiro lugar: onde encontramos sal? Como extraí-lo, fabricá-lo, prepará-lo? Irineu Filaleto
responde: “Desça em si mesmo, pois você o carrega consigo [...]”. Ele deve ser encontrado no “Sangue do
homem fora do corpo, ou urina do homem [...]. Repare bem que esses corpos que fluem para fora de nossos corpos
são sais e alumes”.8 Assim como há sal no macrocosmo, da mesma forma ele pode ser extraído
de dentro da microcósmica natureza humana. De fato, porque o sal é “o bálsamo natural do corpo
vivo” (
descemos ao componente experimental desse corpo - seu sangue, suor,
lágrimas e urina - para encontrarmos nosso sal. Jung (
) considera o sal alquímico
referindo-se aos sentimentos e a Eros; eu seria ainda mais específico com relação a essa noção
ao dizer que o sal é a base mineral, impessoal e objetiva da experiência pessoal que torna a
experiência possível. Sem sal, nenhum experimentar - meramente um suceder e um rolar de
acontecimentos sem corpo psíquico.9
Portanto, o sal faz-nos sentir e experimentar os eventos, dando a cada um de nós o sentido
do pessoal - minhas lágrimas, meu sangue e suor, meu gosto e meu valor. Toda a opus
alquímica sustenta-se na habilidade de experimentar subjetivamente. Daí estar dito no
: “Aquele que trabalha sem sal jamais levantará corpos mortos”.10 A menos que se trabalhe
com sal, os problemas são todos apenas macrocósmicos e químicos, lá fora, mortos. Essas
experiências intensamente pessoais são, contudo, comum a todos - minhas, e ainda assim
comuns enquanto sangue, urina, sal. Em outras palavras, o sal atua como a base da
subjetividade (“Aquilo que resta no fundo de nossos vasos de destilação é nosso sal - isto é,
nossa terra”).11 Ele torna possível aquilo que a psicologia chama de “experiência sentida”.
Portanto, devemos nos voltar para essa mesma base para extrair nosso sal.
“Experiência sentida” assume um sentido radicalmente alterado à luz do sal alquímico.
Podemos imaginar nossos ferimentos profundos não meramente como feridas a serem
curadas, mas, como minas de sal das quais ganhamos uma essência preciosa e sem as quais a
alma não pode viver. O fato de retornarmos a esses ferimentos profundos, com remorso e
pesar, com arrependimento e vingança, indica uma necessidade psíquica além da mera e
mecânica compulsão à repetição. Em vez disso, a alma tem um impulso para lembrar; ela é
como um animal que retorna ao seu cocho de sal, o local onde se deposita sal para o gado
lamber; a alma lambe suas próprias feridas para retirar delas seu sustento. Fabricamos sal em
nosso sofrimento e, ao mantermos fé neles, ganhamos sal, curando a alma de sua carência de
sal. Disse D.H. Lawrence:
7
8
9
10
11
Um psicanalista clássico provavelmente veria o contraste entre salsicha bisnaguinha cremosa simbolizando uma
oposição entre as genitálias.
Filaleto, I. ‘
’. Collectanea, p. 12-13.
Na culinária comum, o sal é utilizado para ‘contrair’ as fibras da carne.
. Ware,
Hertfordshire: Wordsworth, 2006, p. 269.
HM 1, p. 22.
Ibid.
47
Eu não sou um mecanismo; a reunião de várias partes. E não é porque o mecanismo está
funcionando errado, que estou doente. Estou doente pelas feridas na alma, no eu emocional
profundo, e as feridas da alma tomam tempo, muito tempo, só o tempo pode ajudar e
paciência, e um certo arrependimento dificil [...].12
As substâncias alquímicas oferecem diferenças para os tipos de sofrimentos. Sal, por
exemplo, pode ser distinguido do chumbo, pois o primeiro é cortante, pungente, agudo: ele
queima a si mesmo com perspicácia e dor aguda, amargura corrosiva, ganhando sentido
através da autoacusação e da autopurificação. Ele é depurativo. O chumbo, contudo, e
crônico e denso, um sofrimento pesado, opressivo, obscuro, sem foco especifico, sem sentido.
Ele é constipado. Enquanto o sal diz, “machuca”, o chumbo diz, “não posso”. Enquanto o sal
saboreia os detalhes de sua dor ao lembrar precisamente e com uma agonia penetrante, o
chumbo não consegue enxergar, nada sabe, permanecendo paralisado e mergulhado numa
obliteração geral e abstrata da memória empírica.
A cura dessas condições também varia: sal requer um beliscão, sentir o beliscão do evento
que aflige, que pica; o chumbo parece requerer tempo, aquela paciência da qual Lawrence
fala, espera. Aquilo que resulta da cura do sal é um novo sentido do que aconteceu, uma nova
apreciação de seu valor para a alma. O resultado da cura do chumbo é profundidade, peso,
gravidade, mais inteireza e a habilidade de “suportar”, “carregar”. Os dois também contrastam
em dois gêneros literários de sofrimento: ironia (sal) e tragédia (chumbo).
O primeiro inclina-se na direção da experiência humana comum, enquanto o segundo tende
a proporcionar distância dessa experiência. Claro, na alquimia há “sais plúmbeos”, ou seja,
condições nas quais os aspectos plúmbeos e salgados do sofrimento estão tão combinados
que é difícil de se notar as diferenças: normalmente, aquilo que entorpece e obscurece a
natureza do sal é resultado do chumbo. A tarefa torna-se separar chumbo do sal, humor
negro das lembranças, espírito intoxicado da experiencia subjetiva, o fatídico inescapável
destino dos erros pessoais culpados.
O sal também pode ser extraído daquilo que é estável. Como o princípio da estabilidade, cujo
signo alquímico era o quadrado,13 o sal pode ser extraído das pedras da experiência concreta,
aquelas fixações que marcam nossas vidas com posições definidas. Esses lugares não são
meramente fatos sólidos - meu diploma, minha propriedade, meu acidente de carro, meu
aborto, meu divórcio, minha condecoração militar; esses são também lugares onde o corpo
psíquico e salmourado é guardado. Essas pedras, quando reconhecidas e possuídas,
pertencem à história de minha alma, onde ela foi salgada pelas fixações da experiência,
dando certa cristalização à minha natureza e me poupando de inflamações e volatizações.
12
‘Healing’.
. Ware: Hertfordshire: Wordsworth, 1994, p. 513: ‘I am not a
mechanism, an assembly of various sections. / And it is not because the mechanism is working wrongly, that I am ill. /I am
ill because of wounds to the soul, to the deep emotional self / and the wounds to the soul take a long, long time, only time can
help / and patience, and a certain difficult repentance [...l’.
13
Cf. Silberer, H.
. Nova York: Moffat, Yard and Company, 1917, p. 395-396.
Com relação ao sal como quadrado ou cubo, Silberer faz uma interessante distinção: ‘A cristalização produz a forma
regular; a fixação, a densidade’. O microscópio eletrônico mostra que a estrutura do sal comum como quadrados
de contornos bem definidos ou pequenos cubos achatados. Cf. o alquimista Edward Jorden (1569-1632) em Debus,
A.G.
. Londres: Oldburne Press, 1965, p. 163.
48
Como o sal não é inflamável,14 parece não estar sujeito ao calor: fabricamos sal menos no
ardor do que na recriminação, menos pelo desejo do que pela memória do desejo. “A cinza
sobre um velho é toda a cinza / Que nos deixaram as rosas já sem viço” [“Ash on an old man’s sleeve / Is all
the ash the burnt roses leave”] (Eliot, T.S.
). Como se as cinzas fossem a memória do fogo;
não um carvão apagado, mas a essência inflamável e fixa daquilo que uma vez queimou para
os céus.
Embora não possamos fabricar sal pelo fogo, realmente o fazemos através de dissoluções. O
sal é solúvel. Chorar, sangrar, suar, urinar traz o sal para fora de suas minas interiores. Ele
aparece em nossas umidades, que são o fluir do sal para a superfície. “Durante o trabalho o sal
assume a aparência do sangue” (
). Momentos de dissolução não são apenas colapsos; eles
liberam um sentido de valor pessoal humano das incrustações do hábito. “Eu também sou um ser
humano merecedor de meu sal” - daí de meu sangue, suor e lagrimas.
É curioso o modo como estamos fixados em nossas feridas. A psicologia fala de trauma e
inventou até uma teoria traumática da neurose e a síndrome do stress pós-traumático. Por que
a psicologia volta para a criança ferida para legitimar o desenvolvimento psíquico, e por que
a própria psique necessita olhar para trás? Parece que a alma deve ter sua lembrança
encravada em sinais em seu corpo psíquico para assim saber que ela tem ou é um corpo. A
dor nos envolve imediatamente com corpo, e dor psíquica com corpo psíquico. Estamos
sempre sujeitos à dor, de forma que os eventos que doem, como os traumas da infância, o abuso e
o estupro, forçam nossa subjetividade sobre nós. Na memória, esses eventos parecem ser
mais reais que outros, porque eles trazem consigo a força da realidade subjetiva.
Vistos da perspectiva do sal, os primeiros traumas são momentos de iniciação no sentido de
sermos um “eu” com um interior pessoal subjetivo. Tendemos a nos fixar no que nos foi feito e
em quem o fez: ressentimento, vingança. Mas aquilo que importa psicologicamente é que foi
feito: o golpe, o sangue, traição. Como as cinzas que são esfregadas nas feridas em ritos de
iniciação para purificar e escarificar, a alma está marcada por seu trauma. O sal ainda toca o
corpo no batismo cristão, e ainda é comido no Pessach judaico num ritual de memória do
trauma.15 Um trauma é uma mina de sal; é um lugar fixo para a reflexão sobre a natureza e o
valor de meu ser pessoal, no qual a memória se origina e a história pessoal começa. Esses
eventos traumáticos iniciam na alma um sentido de sua incorporação como um sujeito
vulnerável experimentador.
A história paradigmática do “olhar para trás” é a da mulher de Ló (
). (Ló e sua mulher
foram até mesmo usados como termos alquímicos para o sal - cf. o
.)
Porque a mulher de Ló não parava de olhar para trás, para ver a destruição de Sodoma, da
14
15
Sobre o fogo e o sal, cf. Jung,
. O ‘fogo’ contido no sal é seu poder seco, ou espírito, mesmo que ele mesmo não
seja inflamável. O cloreto de sódio comum só derrete a 800°C. Ainda assim, há um ‘fogo’ escondido no sal, pois
o sal comum de mesa e composto de ‘um metal tão instável que ele incendeia quando exposto à agua; e um gás
letal (cloro)’ (Young, ‘Salt’, p. 381).
O toque do sal e de ervas amargas no Pessach judaico traz de volta a imagem memorial do Mar Vermelho e do
deserto. A imagem não deve ser esquecida, pois ela é parte daquilo que faz esse dia diferente de qualquer outro
dia, ou seja, a memória ajuda a diferenciar e traz significado. O sal inicia a criança mais jovem nas imagens
amargas da alma. Quando, no entanto, a memória se transforma em algo mais que o toque, muito sal, então
‘não esquecer’ literaliza-se na história enquanto fatos. Então ficamos paralisados no passado, ao invés de ligados
na imagem, e o sal não é mais uma lembrança imagística, mas torna-se uma experiência histórica literalizada.
49
qual ambos tinham sido salvos, ela foi transformada num pilar de sal. Comentadores judeus16
dizem que seu amor de mãe fez com que ela se voltasse para trás para ver se suas filhas
casadas seguiam com ela; e comentários cristãos sobre
(Clemente de Alexandria,
) também veem a origem de seu movimento nas lembranças da família
e de familiares, subjetividades pessoais do sentimento. Evidentemente, as fixações familiares
também são minas de sal. As frustrações, as preocupações, as dores do amor do complexo
materno - a noite junto ao álbum de fotografias, as lembranças - são modos de a psique
produzir sal, retornando aos eventos para transformá-los em experiências.
O perigo aqui é sempre a fixação, quer seja nas recordações, nos traumas da infância, ou
numa noção literalizada e personalizada da própria experiência: “Sou aquilo que experimentei, que
vivi”. Paracelso define o sal como o princípio da fixação (
).17 Esse termo, assim como
projeção, condensação, sublimação, reaparece séculos depois na psicanálise, em que Freud o define:
A fixação pode ser descrita dessa forma. Um instinto, ou um componente do instinto, deixa de
acompanhar o resto pelo caminho do desenvolvimento normal antecipado e, em consequência
(...) é deixado para trás num estágio mais infantil.18
Aqui temos
recapitulado na linguagem moderna da psicanálise. A imagem da família
de Ló em sua jornada é agora apresentada como um “caminho do desenvolvimento”. A
parábola torna-se teoria; a história salgada em ciência. Entre essas fontes de sal, a urina tem
um lugar especial.19
De acordo com o modelo do macrocosmo/microcosmo, a urina é o mar (salmoura) humano.
É o microscópico oceano interno, ou as “águas de baixo”. Lendas judaicas20 explicam que o sal
é incluído em todos os sacrifícios como uma lembrança do ato da criação pela separação das
águas de cima das águas de baixo, por elas terem sido separadas, e o sal lembra essas águas
mais baixas e seu choro por terem sido rebaixadas da proximidade de Deus.
Os sais urinários são traços residuais flutuantes na pessoa de baixo. Eles são lembranças
essenciais que denunciam nossa natureza interna, sua cor, cheiro, opacidade. Desordens da
bexiga, bem como sintomas e sonhos urinários, podem referir-se a um despertar para as
águas de baixo, para o fato de que existe vida psíquica na pessoa de baixo
independentemente do que acontece acima, e essa vida é uma necessidade intensa,
flamejante, pessoal, que ninguém pode fazer para você e para a qual devem ser encontrados
tempo, lugar e privacidade.
Um paciente sonha: “Vários químicos serão utilizados para examinar minha urina. Tenho na
minha frente várias garrafas de vidro com diferentes químicos, mas não sei quanto pegar de
cada químico para cada garrafinha e como vou colocar minha urina nelas”. A psicanálise
como uma urinoanálise sugere discriminações muito cuidadosas de resíduos internos,
16
17
18
19
20
Ginzberg, L.
. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1998 [vol. 1, p. 225; vol.
5, p. 241-242. Os mesmos comentários notam que a chuva destrutiva que caiu sobre Sodoma enquanto a mulher
de Ló estava olhando para trás, para o lugar do desejo luxurioso, era uma chuva de enxofre, ou seja, o sal
desejoso de enxofre.
Cf. READ, J.
. Londres: G. Bell and Sons, 1936,
p. 27.
Freud, S. ‘
’. Collected Papers. 4 vols. Londres:
Hogarth Press, 1924- 1925 [vol. 3, p. 453].
Cf. Filaleto. ‘
’, para um pequeno tratado sobre a urina. Para uma receita sobre ‘mijo e vinagre’,
cf. HM 2, p. 74 (‘
’). A urina deve ser coletada de um ‘rapaz não poluído [virgem]’.
Ginzberg.
. Op. cit., vol. 5, p. 18.
50
privados, e distinções claras (vidro) entre eles. É como se tivéssemos que separar os sais
urinários da memória generalizada e do sofrimento generalizado, e examiná-los em suas
particularidades bem específicas. Para o sonhador, a tarefa é dupla: dosagem (quanto pegar) e
foco (capturar o fluxo em percepções estreitamente acuradas). É um exercício em
“particularidade” leachness] - um termo predileto de William James para fazer frente p
pensamento global e ao sentimento de totalidade.
A urina de um menino virgem (entre 8 e 12 anos) era frequentemente mencionada como uma
substância com a qual iniciar o trabalho. Essa “urina de menino” é um dos vários nomes da
materia prima. Refere-se aos sais no oceano microcósmico antes da queda, ou seja, a essência
arquetípica de cada caráter específico antes de ter acumulado resíduos pessoais: o sal não
como resultado dos eventos, mas como anterior aos eventos. A condição virginal não é vazia
ou vaga, mesmo que não manchada pela experiência. Esses sais têm sua própria gravidade e
qualidades específicas - isto é, há um sal a priori em nosso “menino da alma”, que é definido
pelas intensidades fixas que são as urgências e exigências de nossa própria essência
particular. Os sais na urina do menino são esses traços arquetípicos da essência do caráter,
memórias platônicas que são virgens porque são dadas intactas com nossa natureza e só
podem ser abertas pela opus alquímica.
O
afirma tacitamente: “urina puerorum est mercurius”. Claro, há uma legião de
nomes para Mercúrio; quando, entretanto, uma substância é abertamente chamada assim há
um significado imediato para o cultivo da alma (soul-making). Isso significa que as ambições da
fantasia do puer, que a psicologia freudiana atribuiu à fase urinária no desenvolvimento do
menininho, assumem um significado revelatório. Não é meramente um “erotismo urinário”21 –
ou seja, que eu posso fertilizar sexualmente o mundo, ou extinguir o seu fogo, ou iniciar
regatos. A ambição urinária do “menino da alma” é também uma expressão de meu sal, a
essência de mim mesmo, minha base. “Olhe (diz ela], veja meu xixi; isso sou eu.” Ha um
espírito poderoso a ser encontrado no mijo corriqueiro de nosso próprio menino (talvez até
no xixi que ele faz na cama).
Podemos sentir o sal primordial do puer nas dores amargas da ambição que queimam antes
de qualquer realização, e também na sensação de remorso que penetra antes de ter havido
eventos externos dos quais se arrepender. Intensidades flamejantes podem assombrar a
infância antes que as experiências com o mundo se iniciem, e essas mesmas dores salgadas
reaparecem quando o menino da alma é constelado. Na urina puerorum há uma lembrança de
coisas a priori, que encharcam uma ação no mundo com mais sal do que a consciência pueril
pode muitas vezes suportar: culpas monstruosas, esperanças elevadas, até mesmo o suicídio.
Pois o puer aparece não apenas nas asas que voam ou em jogos de amor; ele vem, também,
pungindo com uma memória da beleza e daquilo para o que se está na terra.
A urina puerorum sugere que, com a operação certa, podemos recuperar o aspecto salgado do
puer. O sal para se colocar no rabo dos voos do puer já está lá para começo de conversa, se
conhecermos a operação certa para recuperá-lo. Uma das operações que a alquimia sugere
para a fabricação de sal é a evaporação.
O menino aguado que flutua de um lado para o outro nas marés da emoção e segue os fluxos
com a menor das resistências pode ser fixado pelos sais escondidos em seus próprios tecidos.
Esses sais trazem regularidades, densidades, quadraturas e corpo. Quando as marés são
21
Murray, H.A.
. In: Hillman, J.
. Irving, Texas: Spring Publications, 1979, p. 91ss.
51
expostas à luz do sol e seu movimento é estancado, o sal cristaliza; assim podemos ganhar o
sal pela evaporação do fluxo microcósmico. Para essa operação, os alquimistas utilizavam
uma panela aberta e achatada; todas as coisas expostas à plena luz do dia fazendo com que
toda a pressão ascendente pudesse escapar. O vapor, a névoa e a fumaça ascendiam e se
dissipavam no ar quente. Perdemos o sumo (a exuberância)22 dos sentimentos, o pântano (o
resplendor)23 das esperanças exageradas, os brejos taciturnos da inércia; e, na medida em que as
umidades desaparecem, algo essencial cristaliza-se no ar seco. Portanto, o vaso hermético
fechado seria inadequado. Evaporação significa não tomar os eventos tão profunda ou
intensamente, mas, em vez disso, nivelar os afetos e deixar uma pressão evaporar-se por si
mesma até que ela retorne a si mesma. Evaporação de um sal: esse é o sal comum da mesa do
dia a dia do mundo que é, ao mesmo tempo, nossa própria experiência dele, agora
cristalizada.24
A ideia alquímica de que a urina continha um espírito poderoso, um lumen naturalis (luz da
natureza) mercurial, tornou-se evidente em 1669 quando um alemão, Hennig Brand - chamado de
“o último dos alquimistas” - cozinhou urina misturada com areia produzindo um resíduo
cremoso que queimava.25 O fósforo havia sido descoberto. Etimologicamente, a palavra
significa “que dá luz”. É um epíteto para a estrela da manhã, para Lúcifer e para Hermes. De
fato, urina Puerorum est mercurius.
Quando e como salgar
declara: “O sal é necessário a qualquer solução”.26 Esta parece uma afirmação estranha,
na medida em que vínhamos imaginando o sal como o princípio da fixação, da impertinência
amarga. Soluções, ao contrário, parecem conotar condições fluidas, passivas, receptivas,
permitindo que a amargura se dissolva e a impertinência derreta. Em psicologia alquímica,
contudo, a solutio é uma das pouquíssimas operações básicas e, em função de sua ubiquidade
por toda a opus alquímica, não pode ser definida de um só modo. Evidentemente, uma
solução genuína deve ter a capacidade de estabilizar-se. Deve sustentar uma condição, não
meramente dissolvê-la.
A solutio alquímica não sugere uma solução simplificada dos problemas. Em vez disso, requer
o sal para afetar a matéria em questão de forma prolongada. As minas de sal, sobre as quais
falamos na última seção, são tanto depósitos de sal quanto tentativas de solução. Quando
paramos para pensar e refletir, estamos estabilizando e adicionando sal à solução de forma a
torná-la uma solução genuína. Os problemas parecem não ir embora até que primeiro eles
tenham sido inteiramente recebidos.
22
23
24
25
26
No original, em inglês, a palavra lushness carrega, entre outros, pelo menos esses dois sentidos, com os quais o
autor está jogando; de forma que optamos por incluir, no corpo do texto, entre parênteses, um segundo sentido,
a bem de tornar mais clara a intenção do autor [N.T.].
Aqui também, como o jogo intencional com a palavra (no original em inglês, flush) é o mesmo, adotamos o
mesmo procedimento [N.T.].
Uma vez que existem muitos sais, há muitas operações para produzi-los, sendo a evaporação apenas uma delas. As
outras são calcinação, putrefação, destilação (sal como um subproduto), coagulação.
Asimov, I.
. Nova York: Basic Books, 1962, p. 35-36. Cf. tb. Multhauf, R.P.
. Londres: Oldbourne, 1966, p. 22s.
Alberto Magno.
. Berkeley: University of California Press, 1958, p. 61.
52
A questão aqui é a capacidade de internalizar, de admitir e receber um problema em nossa
natureza mais íntima como nossa natureza íntima. Isso seria salgá-lo. Um problema encontra
sua solução somente quando ele é adequadamente salgado, pois aí ele nos toca pessoalmente,
penetrando naquele ponto em que podemos dizer: “Fiat mihi; tudo bem; eu admito, rendo-me; é
realmente um problema meu; tem que ser”. O gosto dessa experiência é amargo, humilha e dura uma solução durável.
Um segundo uso do sal é para “matar o enxofre”.27 Lembrem-se: o sal é quadrado e azul,28 e
coagula. Quando o enxofre chameja, ele pode ser apagado com uma pitada de sal, a pitada
que mata, quer seja um olhar lacrimoso, um comentário ferino, um toque de bom-senso. O
sal fere e aniquila as reações impulsivas, pois ele relembra a dor experimentada em eventos
similares. O sal nos dá a consciência da repetição; o enxofre, somente a compulsão. Talvez a
famosa sal sapientia (o sal da sabedoria, sabedoria do sal) não seja nada mais grandioso do que
a habilidade do sal de inibir o enxofre.
Assim como há psicologias do enxofre, as quais pregam ação e baseiam-se no desejo, no
impulso e na vontade, examinando eventos psicológicos em termos do comportamento e seu
controle ou reforço, também há psicologias do sal. Essas tendem a literalizar a ideia de que o
sofrimento pessoal é necessário para qualquer solução. Elas insistem no desenvolvimento da
vida interior, na culpa, na penitência e no trabalho, na história subjetiva, sentimentos
pessoais, traumas. A psicologia alquímica corrige esse tipo de literalização ao apresentar o
fator pessoal, que tanto domina as psicologias do sal, como impessoal e comum a todos.
Portanto, quando trabalhamos em nossa correção, nossa melhora, nossa purificação,
percebemos que não é o “eu” o foco de nosso bom trabalho; é o sal. Estamos simplesmente
trabalhando no sal. Dessa forma, na psicologia alquímica, o sal ajuda a manter o trabalho
imune de inflamar-se na inflação egoísta da culpa pessoal. Sou o único responsável; é tudo
culpa minha.
Falta sal particularmente em gente jovem. Um homem jovem e descuidado sonha que visita
Jung em sua casa, que na verdade trata-se de um laboratório sobre uma enorme duna de sal
onde um esguio Jung explica como ele trabalha na fabricação do sal. Outro rapaz, cheio de
promessas e vazio de realizações, sonha com um belo veado que corre saltando para dentro
de um rio, cruza-o, seus chifres altaneiros e, então, colapsa na outra margem,
desesperadamente necessitado de sal. Uma transição do espírito foi realizada, mas somente
pela exaustão pode o sonhador perceber o quanto ele necessita conservar, não apenas seu
espírito saltitante, que ricocheteia abrindo caminhos, mas também as experiências de sua
vida onírica, na qual seu espírito se mostra. A menos que os animais de sua imaginação
sejam salgados, eles podem simplesmente esvair-se em heroísmos espirituais ou voos
estéticos. Sim, pegamos o pássaro colocando sal em seu rabo.
Por que o amor jovem é tão amargo, e os estudos para os exames tão terríveis? Não são eles
rituais do sal, modos de intensificar que engrossam as matérias e cimentam-nas nos lugares?
O amor amargo é uma cura do sal, curando a alma terna, com lágrimas, recriminações e,
finalmente, algum tipo de padrão estabilizado. As idas e vindas das brigas dos amantes, entre
paixões violentas e lágrimas apaixonadas, representam estágios da conjunção sal/enxofre. O
27
28
HM 1, p. 154-155. ‘
Debus.
’.
. [s.I.]: [s.e.], p. 163: ‘As cores azuis são próprias dos sais’ (referência a Jorden, E.
. Londres, 1631). Jorden também escreveu provavelmente o primeiro
tratado em inglês sobre histeria.
53
componente de sal, que simplesmente “não deixa passar”, ajuda a preservar o
relacionamento quando o enxofre explodiria tudo, ou deixaria as coisas ficarem pretas.
Assim como o sal macrocósmico conserva carnes, peixes, e vegetais, em salmoura ou
escabeche, também precisamos do sal na ecologia microcósmica para fixar, manter, preservar.
Não conseguimos engolir e digerir tudo o que acontece num dia, ou numa noite - portanto,
precisamos de longas horas fazendo picles dos acontecimentos em jarros de vidro para mais
tarde apreciarmos, oferecermos e consumirmos. Se queremos guardar algo, devemos salga-lo,
salmourá-lo. O impulso decadente da natureza jovem - quanto mais fresca e pura a substância,
mais cedo e mais certamente ela apodrece - é mantido em suspenso. O sal nos dá tempo,
paciência, sobrevivência. Ele tempera a juventude ao remover umidade excessiva, portanto
preservando a alma pela secura. Almas secas são as melhores, disse Heraclito, que Filon
refraseou: “onde a terra é seca, a alma é mais sábia” – sal sapientia. A análise contrai.
“O sal faz com que as coisas engrossem.” Ele atua como “liga e cimento”.29 Aquilo que a psicologia
moderna chama de “integração da personalidade” e “integridade de caráter”, a psicologia
alquímica chama de sal, pois é essa substância sófica que efetua uma adesão interna,
amarrando e ligando os eventos à experiencia, encolhendo as generalidades em
especificidades. O sal dá o sentido do detalhe significativo, cristalizações que acumulam de
importância aquilo que, de outra forma, poderia ter sido uma noite branda de “inúteis horas
tristes se alastrando para frente e para trás” [“waste sad time streching before and after”] (Eliot, T.S.
). Na festa, queremos encontrar alguém com quem conversar significativamente.
Num encontro de família, é geralmente uma rabugenta tia velha, ou um avô, que adiciona o
sal. O fluxo dos acontecimentos de repente se condensa e permanece fixo ao sermos
paralisados por uma penetrante observação salgada.
Há ainda um outro tempo e lugar para o sal: quando a alma precisa de terra. Quando os
sonhos e os eventos não parecem suficientemente reais, quando o mundo tem um sabor
insosso, chato e sem proveito, quando nos sentimos desconfortáveis na comunidade e
perdemos aquele sentido do “eu” - sentindo-nos fracos, alienados, marginais - então a alma
precisa de sal. Às vezes nos confundimos com o remédio e buscamos o enxofre: ação, falsa
extroversão, esforço. Contudo, o movimento em direção ao macrocosmo pode primeiro ter
que se voltar em direção ao microcosmo, de forma que o mundo possa ser experimentado, e
não apenas agregado e atuado como um campo abstrato. O mundo precisa se tornar terra; e
esse movimento, da ideia para uma presença tangível, requer sal.
Ruland.diz: “Nada pode ser tangenciado sem a presença do sal”. Linguagem salgada, inteligência salgada,
preço salgado, pagamento salgado (salário = salarium), valer o próprio sal, uma conta salgada,
uma pitada de sal - tudo isso expressa os valores tangíveis da terra básica, terra do dia a dia
do trabalho, a terra comum que nossas mãos tocam e na qual caminham nossos pés. Essa
linguagem do sal revela cada ser humano como o “sal da terra”: somente aqueles bemnascidos e bem colocados podem sustentar se colocar “acima do sal”.
As minas da experiência comum oferecem esse sal: os provérbios e o hábil know-how físico dos
mais velhos, as cristalizações antigas da lei comum e do discurso comum. Isso tudo são
minas de sal, e podemos derrubar nossas noções pretensiosas e ideias prematuras
temperando-as com bom-senso. O sal dá àquilo que cada um tem em sua cabeça um valor
entre as pessoas: um valor tangível na terra. Contudo, é necessária uma diferenciação entre
29
Oldroyd, D.R. ‘
(citando o alquimista francês Nicolas Le Fèvre (1615-16691).
’. Ambix, 21,1974, p. 148
54
ser comum e ser prático, ou aplicável. Trazer uma imagem para a terra não é vender uma
invenção. Em vez disso, salgar, ou trazer para a terra, nossas especulações aladas significa
expressá-las com um toque comum; tangibilidade de estilo.
Terra também significa um sentido de localização. Há sal na fala local: sotaques, gírias,
dialetos, idiomas. Quer sejam bordões que são epítomes saborosas ou contos mais extensos
que vagueiam pelo país, a fala local torna tangíveis as palavras. A diferença entre dialeto e dialética,
entre gíria e jargão, entre o humor comum e a piada suja, entre o idiomático local e a idiotia
nacional (“televisiones”) é sempre uma questão de sal.
“O sal não é adicionado em porções iguais a todo tipo de comida; essa circunstância deveria ser considerada com
atenção pelo médico” (
). Bem, estamos falando de dosagem. O sal requer
particularização; força-nos a notar o gosto específico de cada evento. Tangibilidade significa
reconhecimento e discriminação de naturezas específicas. Isso traz uma luz nova para a ideia
do comum: evidentemente que não se trata apenas do geral e coletivo; aquilo que é comum,
entretanto, é uma sensibilidade para o particular - a água nesta vila é mais suave e doce do
que a água do outro lado do vale; você não pode usar esse tipo de prego nesse tipo de
madeira; quando a febre se transforma em suor, você tem que tomar ainda mais líquido. A
medicina paracélsica voltava-se para o paciente e tentava fazer percepções diferenciais
precisas; ainda assim também tentava ser uma medicina do e para o povo comum, num
dialeto comum. Pervertemos o sentido de “comum” para dizer todos, ou normal, ou igual;
enquanto, alquimicamente falando, “sal comum” refere-se à percepção precisa das naturezas
inerentes que revelam suas propriedades individuais de forma que podemos entender a
dosagem certa.
Na medida em que nos tornamos salgados, a prudência do sal tende a reverter-se. Onde antes
era necessário voar e proteger experiências, começamos a nos surpreender lentamente
envolvidos em salmouras. Os acontecimentos não nos largam: eles voltam ao sangue de
nosso coração, lançam-se com lágrimas aos nossos olhos, levam-nos a ataques de suor frio
pensando no que fizemos. (Paracelso fala do “mal que há no sal” [
) Não mais a aplicação
consciente do sal; o salgar agora torna-se autonomamente psíquico. A alma impõe sua
tangibilidade sobre nós e nos traz nossa comum e básica suscetibilidade à dor humana.
Talvez seja esse o eros do sal sobre o qual escreve Jung, ou sua sabedoria, ou mesmo a terra
negra e a sombra associadas às vezes ao sal na alquimia. Ou talvez seja para as cinzas e a
terra seca que estamos retornando, a essência da alma tornando-se fixa, intimações de
imortalidade que, a princípio, sentimos como dor pessoal.
Paracelso escreve (
): “Sal corrige e fixa a leprosa Luna, limpando-a de sua negritude”. Portanto, o sal
também é um “corretivo” - e especialmente um corretivo das condições de nigredo lunática,
fixando-as. Um desespero amargo, uma mesquinharia mal-humorada, uma preocupação
corrosiva, uma ignorância teimosa são todos leprosos. Essas condições devoram a si mesmas,
espelham-se contagiosamente. Golpeamo-nos a nós mesmos. Essas condições tornam o poder
reflexivo, que pertence à Luna, borrado, aparecendo em manchas, aqui e ali, rasgos de
brancura que reproduzem a condição leprosamente, em vez de clareá-la. Embora “leproso”
geralmente signifique “impuro” na alquimia, Paracelso parece estar falando de uma doença da
própria reflexão, quando os poderes da lua tornam-se doentes, num estilo hamletiano. Em vez
de terem o corpo de um insight claro, tais reflexões atacam nossa própria incorporação minhas ações, minha natureza, meu eu.
O sal corrige essa doença da reflexão ao fixar precisamente aquilo que está errado. A negritude
refere-se às manchas generalizadas que obscurecem a reflexão, aquelas tentativas
55
introspectivas de enxergar no escuro que somente escurecem ainda mais a mente. O ataque
agudo do sal particulariza o estado mental por meio de uma precisão do sentimento.
Exatamente o que, quando, onde e como deve ser sentido, de forma que “o caos generalizado da
imprecisão do sentimento” [“general mess of imprecision of feeling”] (Eliot, T.S. “
”) pode ser
descoberto, e cada mancha clareada uma a uma. O desastre maior é corrigido pelo sentido
menor que se tem dele. Precisão significa intensidade; doloroso para a doença autodevoradora,
ao mesmo tempo em que a limpa de demasiada reflexão lunar.
Uma mulher sonha com um pequeno e profundo lago de sal, e há sinais para ficar fora da
água. Ela cai no lago e a água é tão densa que não parece líquida. Um comprido pedaço de
sal pega seu braço direito e começa a puxá-la para baixo. Com muito esforço ela se livra dele
e consegue subir de volta agarrando-se em fendas de sal solidificado pelas bordas do lago.
A opinião pública, coletiva, alerta para aquilo que ela enxerga como uma salgada fossa
profunda de depressão. Mas ela cai lá dentro, apesar da opinião prudente e de sua intenção.
Quando ela está dentro desse lago, ele é tão denso e coagulado que a água não flui mais.
Paralisada. (O sal faz com que a matéria se densifique, diz um de nossos textos.) Aqui, esse
engrossar é como o processo de identificação: ela está imersa na densidade de seu sofrimento
que, ao mesmo tempo, é o lugar onde ela pode se tornar mais densa, estável e sólida. Um
pedaço desse lago generalizado de sal, um de seus momentos cristalizados - uma lembrança,
uma culpa, uma pontada amarga de dor - agarra seu braço da ação e a puxa ainda mais para
dentro e para baixo. Desembaraçar-se dele acontece com esforço, especificamente ao
encontrar onde em se agarrar experiências já cristalizadas da memória, em que a umidade
secou. Ela pode realmente encontrar sua saída ao segurar-se naquilo pelo que já passou. Ela
encontra uma saída para fora do lago profundo ao se segurar numa “borda” sólida, ao
“abordar” algo sólido, que está lá sempre que o lago profundo estiver. A saída está na borda,
em sua marginalização. Semelhante cura semelhante: o desembaraço da identificação com o
sal acontece não através de esforços que somente a afundam mais ainda (não pelo braço
direito), mas por pequenas compreensões básicas que podem ser encontradas nas pequenas
falhas (fendas) e depressões de sua experiencia subjetiva solidificada.
O fervor do sal
Nossas considerações procuraram demonstrar a experiência do sal na psicologia alquímica.
Pudemos ver que, como a base da subjetividade, sua natureza é fixar, corrigir, cristalizar e
purificar. Tudo isso ele pode fazer para a própria subjetividade.
Nesta seção final, ocupar-nos-emos mais especificamente dessa purificação da subjetividade,
em que mais claramente emerge a conexão entre sal e virgindade.
Já nos deparamos com sua natureza rígida e quadrada, densa e protetora. Por exemplo: a
analogia do ovo, de Paracelso, onde o sal era a casca; e nos escritos de Joseph Duchesne
(
) onde o sal aparece na matéria dura das coisas, suas raízes, pele e
ossos, aquelas partes que estão coaguladas, grumosas, cimentadas, congeladas.30
Podemos ir além e atribuir a essa substância aquela tendência nos escritos sobre o sal de
concluir com um pensamento coagulado, uma redução a uma ideia básica. A múltipla
natureza dos sais, suas múltiplas origens e efeitos, sua referência a tantas qualidades
30
Debus.
. [s.l.]: [s.e.], p. 94 (apud Duchesne,
. Paris: [s.e.], 1595).
56
diferentes de experiência e materiais químicos (álumes, álcalis, cinzas, etc.)31- tudo isso tende a se
congelar num simples princípio básico. Para Jones essa ideia era “sêmen”; para Jung, “Eros”. A
coisa sobre a qual escrevemos torna-se a coisa com a qual escrevemos, e somos afetados pelo
material com que trabalhamos. Assim como queremos absorver o leitor, cativando e
convencendo, também o material, por ser almado, captura nossa imaginação: perdemos a
volatilização mercurial e a riqueza sulfúrica, e nos reduzimos a repetições, constrangimentos
morais e fixações da expressão à medida que tentamos nos aprofundar de modo acurado em
direção às raízes puras e aos ossos, cristalizando aquela experiência chamada “sal”. Em vez
disso, a importância do sal como valor (expressa acima como o salário) torna-se uma
supervalorização ou do lugar dessa substância dentro da opus alquímica, ou de nossa própria
interpretação: uma ideia supervalorizada devido a uma overdose de sal.
Esse efeito do sal provém de seu próprio fervor, um fervor da fixação, que pode ser
distinguido do fervor do entusiasmo sulfúrico e sua ebulição e agitação maníacas, e também
do fervor do mercúrio e sua volatilização efervescente. O fervor do sal é, ao invés disso,
sagrado, purificador e amargo, inamovivelmente fixo, fanático.
Lembrem que Paracelso (
) mantinha que comemos sal para cuidar e apreciar nossa
natureza salina, e que desejamos o sal em si mesmo. O sal deseja a si mesmo. Seu apetite
funciona em nós e através de nós para ele mesmo. Ele é fixado em si mesmo. Enquanto o
enxofre e o mercúrio são encontrados em outros eventos e, por meio desses outros eventos, o
sal é a experiência de alimentar-se com a experiência. Ao fechar-se a outros princípios ele
pode intensificar sua própria interioridade. Uma mina de sal bem ali no que quer que
chamemos de “meu”.32 Assim in extremis, o sal alimenta-se de sua própria natureza, corrosivo como um detergente - em suas próprias purificações autorreflexivas: recriminações,
arrependimento, cinzas, purificações em busca de uma essência cada vez mais pura. Seu
sofrimento é autoinfringido. Esse é o sal que transforma todos os vermelhos em azuis - azul
nos sentidos de frio, puritano, celestial, exclusivo, leal, lúgubre, mortal (cianureto, cobalto,
azul-escuro, cianídrico).33
Aqui podemos rever aquelas imagens do sal puro que já examinamos: a urina do menino
virgem, cristal branco, cinzas. Também aqui estão presentes as imagens do deserto de sal
como se ele fosse o paraíso: os Campos Elíseos tornam-se um Mar Morto, celestial,
imaculado e estéril, um campo cristalino de autolaceração, aquele sentido de estarmos
suportados pela nobreza de um sofrimento longo, que nega até mesmo o fiat mihi. Pois nada
vem do Grande Lago Salgado quando nos tornamos nós mesmos puramente sal, como a
esposa de Ló. Na medida em que o sal fixa-se e se purifica, o sofrimento torna-se fanatismo.
A intensidade desse fanatismo aparece na linguagem alquímica tanto como amônia, soda
cáustica, álcali, cal branco quanto como sódio, o sal branco do nitrato de potássio, o salitre,
que é um pó destrutivo e explosivo. (Mesmo o sal de mesa é um metal altamente inflamável e
instável - sódio.)
31
32
33
Para um tratado que mostra vários sais e as diferentes operações para cada um deles cf. Steele, R.
‘
’. Isis 12, 1929, p. 10-21. [As práticas de Rasis são relatadas por Ferrara, B.
. Londres: Vincent Stuart, 1963, p. 366-371.]
Outro jogo de linguagem utilizado pelo autor, onde mine, ‘meu’ em inglês, também significa ‘mina’ [N.T.].
Cf. adiante, capítulo 5, O azul alquímico e a unio mentalis.
57
Alguns alquimistas reconheciam como sais qualquer coisa que aparecesse em forma
cristalina. Poderíamos imaginar que um sal se cristaliza para concentrar seu fervor inerente?
Esses sais fanáticos manifestam-se mais em negócios políticos e doutrinários, embora
atitudes semelhantes apareçam também na askesis concreta da esquizofrenia paranoide. A
própria virtude do sal - seu sentido de pé no chão, daquilo que é concretamente comum parece ser uma virtude apenas se combinada com outros elementos. Sozinho, o sal fixa-se em
si mesmo, tentando tornar-se o elixir puro que a alquimia insiste em dizer ser o resultado de
muitas combinações.
A capacidade inerente do sal de cristalizar sua própria essência é aquilo que chamo de a
virgindade inerente do sal. Aqui, por virgindade quero dizer a constante e fechada devoção à
pureza. Acredito que é esse aspecto do sal que está alquimicamente associado ao aspecto frio
e duro da Luna, a rainha como “prostituta”.34 A conexão Luna-sal é longamente discutida por
Jung, que considera sal um outro termo para lua, outra manifestação do princípio mais geral
do “feminino”.35 Na Roma Antiga o sal era, de fato, o campo do feminino virginal, as Vestais.36
Elas preparavam os animais sacrificiais e borrifavam-nos a cada um com sal para torná-los
sagrados. A Vestal (ou seja, uma iniciada e ritualizada) virgem era a amante do sal; ela sabia
como lidar com ele. Aqui está a virgem, não no fervor do fanatismo, mas a virgem como
mediatrix; ela conhece a dosagem certa, uma pitada, um toque, não um estado. Jung cita
Picinellus: “Que a palavra seja borrifada com sal, não inundada nele”.37 A dosagem do sal é uma arte:
deve ser tomada cum grano salis, não com uma ironia amarga e corrosiva, sarcasmo picante ou
dogmas fixos imortais, mas o toque habilidoso que dá o sabor. Até mesmo o sal da sabedoria
(sal sapientia) e o sal do senso comum tornam-se cristalizados e destrutivos quando tomados
sozinhos, em si mesmos, ou imaginados sem riqueza, pois está na própria natureza do sal
literalizar-se e conservar-se num corpo de cristal. Qualquer insight ou experiência
preservados como verdade ou fé tornam-se virginais: fecham-se em si mesmos, tornam-se
intransponíveis, densos e defensivos. Sal demais. Somos todos virgens quando somos
preservados da experiência por uma experiência preservada.
Daí a importância das Virgens Vestais. Semelhante cura semelhante. Sua virgindade
consciente capacitou-as para lidar com o poder purificador do sal. Como iniciadas no culto
do sal, elas devem ter entendido os perigos de seu “fermento corruptor”.38 A sociedade está
sempre ameaçada pelo perigo do fervor do sal - fanatismo, puritanismo, terrorismo - e a
preservação da cultura romana dependeu das Virgens Vestais.39 Isso sugere que uma
compreensão psicológica do poder do sal e sua dosagem é necessária para o corpo humano, o
corpo da alma, e o corpo político. Muito pouco, e os princípios fracassam; demais, e um reino
de terror assola.
Podemos reconhecer quando o princípio da fixação tornou-se uma fixação de princípios.
Então o sal não é capaz de entrar em combustão e soltar-se pela ação do enxofre, ou de ser
34
35
36
. Robert Grinnell (
. Dallas: Spring Publications, 1973) analisa a ‘prostituta’ em
profundidade.
..
Demetrakopoulos, S. ‘Hestia
’. Spring: An Annual of Archetypal Psychology and Jungian Thought.
[s.I.]: [s.e.], 1979, p. 65-68, com notas. Cf. para detalhes sobre a preparação da mola,
. 2 vols. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1996 [vol. 1, p. 318].
37
38
39
Filaleto. ‘
’. Op. cit., p. 22.
Cf. Demetrakopoulos. ‘Hestia
’. Op. cit., p. 68.
58
tocado e manchado pelo mercúrio: nem a vida nem o insight são possíveis, só dedicação,
estéril e pura. A psicologia alquímica protege-se do sal com seu pensamento misto, misturas,
uma pitada disso e uma pitada daquilo. O sal alquímico está sempre cedendo seu corpo ao
enxofre e o mercúrio, ao seu amor pelo espírito e pela alma, fiat mihi - deixe isso acontecer
para mim -, receptiva a outros poderes, tocando-os e em contato com aquilo que ela não é, o
estranho e o irregenerado. Pois a função do sal não é sua própria conservação, mas a
preservação daquilo que ele toca. Imagens da Virgem Maria acolhendo o estrangeiro,
deixando que todas as coisas venham a ela e dando proteção ao dar seu corpo a elas,
quaisquer que sejam suas condições, dando aquele toque que revela seu sabor e abençoa sua
terra - isso apresenta o sal solúvel, Stella Maris. Pois, como disse Arnold de Villanova, “O sal que
pode ser derretido” é o sal desejado.40 “Prepare esse sal até ele ficar doce”.41
Como um exemplo final do fervor do sal, ou daquilo que o alquimista Khunrath42 imagina
como um fogo infernal no meio do sal, talvez uma luz brilhante demais na qual a pureza
queima com uma paixão que consome, deixem-me concluir com um “texto alquímico” de
D.H. Lawrence, de seu romance
, de 1915, do capítulo intitulado “
”.43
A cena se passa entre montes de feno, sob o luar, numa festa de casamento. Imagens de fogo
e obscuridão abundam, e aqueles opostos alquímicos comuns aparecem quando “o fogo
vermelho cintila numa saia de seda branca”. A personagem principal, Ursula, “queria se
largar”.
Ela queria alcançar e estar entre as estrelas brilhantes, queria correr com seus pés e estar além
dos confins dessa terra. Estava louca para se desprender. Era como se um cão estivesse se
contorcendo na coleira, pronto a se lançar na escuridão, depois de uma batalha sem nome.
Ela convida Skrebensky a dançar. “Era o desejo dele e o desejo dela {...] selados num só movimento, e
ainda assim nunca se fundindo, sem nunca deixar que um sobrepujasse o outro.”
Enquanto a dança oscilava solta, Ursula tinha a sensação de uma influência que a espiava de
cima [...]. Algum olhar poderoso, brilhante, fitava-a diretamente [...]. Ela se voltou e viu uma
grande lua branca [...]. E seus seios abriram-se para ela [...]. Ela ali ficou, repleta de lua cheia,
oferecendo- se [...]. Ela queria que a lua a preenchesse, queria mais, mais comunhão com a lua,
consumação.
Skrebensky toma sua mão, envolve Ursula com um grande capote escuro, e se sentam. Ela
desesperadamente deseja livrar- se de suas roupas e escapar em direção à lua, ao “cristalino e
livre luar”. Skrebensky também assume uma qualidade metálica, “um magnetismo obscuro,
impuro. Ele era a escória, as pessoas eram a escória”.
Skrebensky, como uma pedra a pesar sobre ela [...]. Ele estava inerte, e pesava sobre ela [...]. Ah,
pela frieza e total liberdade e brilho da lua. Ah, pela liberdade fria de ser ela mesma [...]. Ela se
sentia como um metal brilhante [...].
E suas mãos cerraram-se “na refulgência orvalhada da lua, como se estivesse louca”. Então,
uma estranha ira lhe assola, e suas mãos parecem lâminas de metal destrutivas. “Deixe-me
40
41
42
43
HM 1, p. 177 (‘
’).
;
.
Lawrence, D.H.
. Londres: Penguin Books, 1995, cap. 11. Outras passagens que exibem metáforas
salinas, lunares e metálicas, e até uma visão química do caráter humano no relacionamento de Ursula e
Skrebensky, aparecem no cap. 15, ‘The Bitterness of Ecstasy’.
59
só”, disse ela. Ela se livra de seu capote escuro e caminha em direção à lua, “branca-prata ela
mesma”.
Eles começam de novo a dançar e uma luta inicia-se entre eles. Ela sente “uma paixão feroz,
branca e fria em seu coração”. E, embora ele avance seu corpo sobre ela, como que para fazêla sentir-se inerte com ele, em seu corpo permanece uma “paixão fria, indomável”. “Ela estava
fria e inamovível como um pilar de sal.”
Para ele, ela parece “fria e sólida e compacta de fulgor como a própria lua”, e ele tem o
impulso de laçá-la e compeli-la a seu desejo.
Eles se encaminham em direção [...] aos grandes montes novos de milho [...] prateados e
presentes sob azul do céu noturno [...] o ar prateado e azulado. Tudo era intangível, o queimar
de fogos frios, luzentes, esbranquiçados como aço. Ele estava com medo da grande
conflagração lunar das pilhas de milho [...]. Ele sabia que morreria.
Ursula torna-se consciente do poder que tem: “uma lascívia repentina toma-lhe conta, de
agarrá-lo e dilacerá-lo e anulá-lo”. Suas mãos estão fortes e firmes como lâminas, e sua face
um raio “brilhante e inspirado”.
Skrebensky novamente puxa-a para perto de si:
E, timidamente, suas mãos aproximam-se dela, do brilho compacto de sal de seu corpo (...]. Se
ao menos ele pudesse enredar seu corpo brilhante, frio, queimando de sal com o ferro suave de
suas próprias mãos [...]. Ele se esforçou [...] com toda sua energia para envolvê-la, para tê-la.
E sempre ela estava queimando, brilhando e firme como o sal, e mortal.
Ele cola sua boca na dela, “embora parecesse estar pondo sua face junto a uma
amedrontadora morte”, e seu beijo era “furioso e cruel, corrosivo como o luar [...]”
frio como a lua e fogoso como um sal feroz. Até que gradualmente seu suave ferro cedeu,
cedeu, e lá estava ela feroz, corrosiva, fervendo de destruição, fervendo como um corrosivo e
cruel sal em torno da última substância de seu ser, destruindo-o, destruindo-o com seu beijo. E
sua alma cristalizou-se num triunfo, e a alma dele fora dissolvida em agonia e aniquilação.
Deixei que D.H. Lawrence apresentasse as figuras e a cena de minha conclusão por diversas
razões. Primeiro: para mostrar novamente as ligações entre a psicologia e a literatura, e para
sugerir sua intercambialidade. Segundo: para testemunhar a presença contínua da
imaginação alquímica - nesse caso, o imaginário de conjunção de sol et luna, como ferro
sulfúrico e sal. (Não acredito que possamos reduzir essas imagens e essa retorica à influência
sobre Lawrence de seu pai, um mineiro, ou do ambiente das minas de sua terra natal.)
Terceiro: para mostrar que as personalidades são compostas de, e carregadas de, substancias
imaginais - sementes metálicas, elementos químicos, minerais impessoais, as naturezas firmes
e persistentes dos deuses aparecendo em nossos desejos. E, quarto: para levantar um véu e
alertar sobre a chamada consciência lunar indiferenciada.
Enquanto o século XX se encerrava, uma lua cheia se levantava. Tanto quanto a iluminação
solar e sua obsessão com claridade, ótica, medida, realeza e categorias de ordens hierárquicas
possuíram a mente ocidental do século XVI até a Revolução Romântica, raios lunares
infiltraram-se no final do século XX: hemisférios cerebrais direitos e cultos da mão esquerda;
ervas e vegetais, velas perfumadas e ritos de cura; medo dos oceanos transbordarem e dos
aquíferos tornarem-se salgados; visões pop de Nossa Senhora; as liberdades de Artemis, o
poder de Diana, política lésbica, a ordenação de mulheres na Igreja; governadoras, senadoras,
generais, CEOs mulheres, historia feminista; passeatas de mães de lágrimas salgadas, a
compaixão como um bálsamo lunar por todas as criaturas, grandes e pequenas. Todas as
60
deusas de uma só vez. “O Feminino” como um fervor do sal; a nova sanidade e a velha
loucura agora indistinguíveis sob o luar.
Muita proximidade da lua pode significar loucura. “O amor queima com as mudanças da lua.” “Ela
chega tão próximo da terra/E faz os homens enlouquecerem./Ah, miséria!” [“She comes so near to
earth/And makes men mad. /O misery/”], diz Robert Duncan (“
”). Observamos essa lua
próxima demais da terra em Ursula, cuja demência e um fanatismo que lida todo o tempo
com a morte: um sal amargo, assertivo, cáustico, estéril, corrosivo. Testemunhamos o corpo
de Ursula virando sal à medida que ela se torna tomada por sua subjetividade. Como a
mulher de Lo, ela está ocupada consigo mesma. Por ser o sal a alma do corpo, ele pode nos
alcançar pela subjetividade corporal. Tornamo-nos pura experiencia corporal e
transformamos o acontecimento do outro apenas num instrumento da experiência. Assim, o
corpo vira sal; ele permanece intocado, sua virgindade preservada, mesmo enquanto está
sendo abraçado, porque nenhuma conjunção está acontecendo, somente a intensa
experiencia da subjetividade.
Ha uma confusão aqui entre o impulso de pureza e o desejo da liberdade. A Virgem Vestal
completamente subjugada; não havia possibilidade de imaginar a liberdade junto com a
pureza.
O resultado dessa confusão é um férvido e solitário purismo, o vestígio de uma virgem sem
seu ritual e isolada de seu culto, ardendo com o eros divino, ainda assim buscando a luz
branca para si mesma, sua devoção à lua envenenada pelo sal da subjetividade. “As pessoas eram
a escória.” O purismo é o sal na alma que não permite recuperação; é também a paixão da
vingança. “Cartago deve ser exterminada”, disse um obsessivo e fanático Cato; seu solo fechado com
sal. Purismo como destruição máxima.
Cada planeta, cada culto, cada perspectiva arquetípica tem seu tipo de terror. Portanto, há
um terror na Lua, na pureza de uma devoção ingênua que seu sal pode exigir. O terror não se
origina somente nesse assim chamado lado escuro, em Lamia, na prostituta de Hécate, ou
Lilith, mas na influência da lua sobre o sal dos mares e sobre nossos fluxos microcósmicos.
Com a análise desse capítulo podemos entender o purismo como a fixação do sal numa
literalização do princípio de preservação.
Devido à relação especial entre Luna e Sal, o purismo é o maior perigo em nossas devoções à
lua. Invocar a lua é convocar o sal44 - e, a menos que tenhamos treino na natureza e no poder
do sal, como tinham os alquimistas e as Virgens Vestais, podemos nos tornar terroristas
involuntários da noite, não importando a nobreza de nossa dedicação. A simplicidade
fanática liberta-nos do poder do outro, mas à custa de destruir o coração da existência do
outro. Podemos ficar de pé, mas ficamos sós, frios e estéreis como a lua.
Ursula não foi treinada em psicologia alquímica, em que se aprende que a lua não é um local
de chegada. Tanto a alquimia quanto a astrologia a consideram como uma estação no
caminho a outros planetas,45 assim como a lua microcósmica, a psique humana, implica
44
45
Um dos nomes para o sal era ‘a lua comum’ (
). A afinidade de sal e
foi experimentada
metalurgicamente no processo da fabricação do ouro: quando se adiciona sal a um compositum de ouro e prata e
depois se expõe ao calor vermelho por um período de tempo, o sal ‘ataca’ a prata, levando-a às paredes do
cadinho para formar o cloreto de prata, deixando o ouro purificado libertar-se. Este processo é comparável ao
‘ataque’ do sol à reflexão lunar leprosa, libertando a luz da inteligência da hipersubjetividade (Forbes, R.J.
. 2. ed. Leiden: Brill, 1971, p. 180).
: ‘Lua representa os seis planetas [...]. Ela é de natureza múltipla’.
61
vários deuses. A lua implica outros; ela não é um soberano rei solar produzindo sua luz toda
importante e autossuficiente a partir de si mesmo. Ela reflete a luz que vem de além dela.
Para uma psicologia alquímica, a devoção à lua estende-se àquilo que ela reflete - uma
variedade de outros poderes.
No uso diário, o sal é um purgativo e um emético. Pode nos livrar de venenos. Na diluição
correta, é medicinal e acelera a cura. Porque purifica, era espargido no chão sagrado e nos
animais sacrificiais pelas vestais romanas. Essa pureza era porcionada de modo preciso,
ritualisticamente, sem contaminação por outros elementos. Principalmente, nada de água. Às
virgens era dada apenas a quantidade de água a ser utilizada a cada dia, e a água era
guardada num jarro irregular (o futile), de forma que não se podia reter nada. A pureza não
pode permitir diluição.
Cada um de nós precisa de uma Virgem Vestal para guiar nossas mãos na distribuição
proporcional de nossa férvida dedicação e das sementes de inerente amargura que
acompanham a dedicação, dando-lhe seu gosto. O mesmo sal que é a sabedoria honesta, a
verdade sincera, o senso comum, a inteligência irônica e o sentimento subjetivo é também o
sal destruidor. A dosagem46 e a arte do sal; um toque da virgem, não demais. E só nosso gosto
individual e o senso comum podem prescrever essa dosagem. Somente nosso sal pode
saborear suas próprias necessidades.
46
Foi Paracelso e sua escola (Debus.
) que ‘trabalhou arduamente para
determinar a dosagem correta de seus remédios’. A preocupação com dosagem derivou-se mais provavelmente da
iatroquimica dos sais minerais e metálicos como remédios específicos. Se os seguidores de Paracelso ensinaram a
arte de dosar os sais, o sal foi o princípio que ensinou os seguidores de Paracelso.
62
A sedução do preto
4
O princípio da arte é o corvo.
C.G.Jung
A cor da não cor
Preto e branco. Essas duas não cores para o olho newtoniano da ciência são, para o olho da
cultura, as primeiras de todas as cores - as verdadeiras cores primárias.
Dois etnologistas da Universidade da California publicaram um estudo sobre as palavras
para cores em noventa e oito línguas.1 A partir daí chegaram a uma conclusão mais ampla e
universal. Eles reportam que todas as línguas tem palavras para preto e branco, escuridão e
luz, obscuro e brilhante. Depois, reportam que se uma língua possui um terceiro termo para
cor, ele é o vermelho, e se existe um quarto e um quinto, são o amarelo ou verde.
Para nós, seu principal achado, e o menos contestado, é a primazia do par preto-branco.
Parece que todas as culturas fazem essa distinção, sugerindo a importância do ritmo diurno2
e, especialmente para a psicologia, sugerindo que o contraste3 é essencial para a consciência.
Entre os povos da região ao sul do Sahara, as três cores primárias - preto-branco-vermelho (e
estou traduzindo expressões metaforicamente mais concretas em nossos termos mais
abstratos para as cores) - formam os próprios princípios governantes do cosmo. Não são
apenas palavras para cores, nomes de tons.
Encontramos uma ideia semelhante nas três gunas da cosmologia indiana: tamas preto, rajas
vermelho e sattva branco entram na composição de todas as coisas. O antropólogo
afirma que essas três cores “fornecem uma classificação primordial da realidade”.4 São
“experiências comuns a toda a humanidade”, são como “forças” arquetípicas, “biológicas,
psicológicas e logicamente anteriores às classificações sociais, quinhões, clãs, totens sexuais e
todo o resto”. Para a cultura, preto e branco, e também vermelho, precedem e determinam o
modo como a vida humana é vivida.
As afirmações de Turner separam a “cultura” da cor da “ciência” da cor. Do ponto de vista
cultural, as cores não são meras qualidades secundárias, redutíveis a sensações físicas nos
sistemas neurológicos do sujeito que percebe. Por um lado, as cores têm a ver com luz,
reflexão, ótica e nervos; por outro, têm algo a ver com o próprio mundo. Elas são o próprio
mundo, e esse mundo não é meramente um mundo colorido em função de acidentes de luz e
química, ou como se fosse decorado por um Deus pintor. As cores apresentam a realidade
1
2
3
4
Berlin, B. & Kay, P.
. Berkeley: University of California Press, 1969.
Cf. adiante para uma apresentação mais completa da escala de Berlin-Kay.
Durand, G.
. Paris: Presses
Universitaire de France, 1963.
O contraste favorece um modo estético de fazer distinções, diferente da lógica severa da oposição e da
contradição, que são frequentemente aplicadas às cores contrastantes, como se o preto e o branco ou o verde e o
vermelho fossem oponentes antagônicos em vez de correlativos radicalmente divergentes.
Turner, V.
. Itaca: Cornell University Press, 1967, p. 90.
63
fenomenal do mundo, o modo como ele se mostra e, como agentes operativos no mundo, são
princípios formativos primários.
De acordo com a imaginação medieval, até mesmo o arco-íris retira suas cores do mundo
fenomenal (ao invés da refração da luz): “Dos céus ele retira a cor ígnea; da água, o púrpura; do ar, o
azul; e da terra, a cor herbosa”.5 Quer a terra retire suas cores de uma luz incolor e invisível nas
alturas, ou componha essa luz através de seus próprios tons elementais (erva verde, água
azul), o arco-íris junta o visível e o invisível. A Torá diz que Deus enviou o arco-íris como um
sinal visível de que o cosmo é sustentado por princípios invisíveis. O arco-íris também afirma
o duplo princípio de que a aparição da beleza se dá passo a passo com a discriminação, o
espectro de tons finamente diferenciados.
Apenas numa visão de mundo fisicamente reduzida, ou seja, uma visão de mundo reduzida à
física e pela física, pode o preto ser chamado de uma não cor, uma ausência de cor, uma
privação da luz. Essa definição privativa do preto ignora o fato de que o preto aparece em
plena luz do dia em pigmentos naturalmente dados e em outros fenômenos, do carvão e da
obsidiana, aos blackberries e olhos de animais.
Além disso, a definição negativa e primitiva do preto promove a moralização do par pretobranco. O preto é então definido como o não branco, e é privado de todas as virtudes
atribuídas ao branco. O contraste se torna oposição, até mesmo contradição, como se o dia
fosse definido como uma não noite, e um blackberry definido como um não whiteberry.
A lei da contradição, quando moralizada, dá vez à nossa mentalidade ocidental corrente, que
se origina nos séculos XVI e XVII, a Era da Luz, o Iluminismo, quando Deus é identificado
com a brancura e a pureza, e o preto com a privatio boni, tornando-se cada vez mais
fortemente a cor do mal. O racismo norte-europeu e norte-americano pode ter sido iniciado
com a moralização dos termos para as cores. Muito antes que algum aventureiro de língua
inglesa tocasse a costa da África Ocidental, os significados do “preto” no século XV incluíam:
“profundamente manchado com sujeira; sujo, imundo; manchado; maligno. atroz, horrível, mau; desastroso,
sinistro, mortífero [...]”.
Quando os primeiros marinheiros de língua inglesa espiaram os nativos no litoral da África
Ocidental chamaram essa gente de “pretos”. Este foi o primeiro termo descritivo que usaram
- não “nus”, não “selvagens”, não “pagãos”, mas “pretos”. Uma vez assim nomeados, esses povos
nativos foram amaldiçoados com todos os significados implícitos nesse termo. O termo
inglês “branco” caracterizando um grupo étnico ocorre primeiramente em 1604, após a
percepção dos africanos como “pretos”. A moralização e a oposição entre branco e preto
continuam até hoje no uso comum da língua inglesa, já que branco equaciona-se com bom,
preto com mau, sujo, imundo, sinistro, o mal. “Branco”, como um termo para os cristãos,
tornou-se firmemente estabelecido no léxico americano já em 1670.6
O desdém pelo preto não é apenas contemporâneo, ocidental e inglês. A cor preta no mundo
grego, e também em línguas africanas, carregou significados contrastantes com branco e
vermelho, e incluiu não apenas a fertilidade da terra e o mistério do mundo das trevas, mas
também doença, sofrimento, trabalho, feitiçaria e má sorte.
5
6
BOYER, C.B.
Jordan, W.D.
Carolina Press, 1968, p. 94.
. Nova York: Thomas Yoseloff, 1959, p. 85.
, 1550-1812. Chapel Hill: University of North
64
O preto, no entanto, não é mais amaldiçoado do que qualquer outra cor. De fato, termos para
cores carregam significados extremamente contrários. Cada um deles equilibra-se com um
conjunto de opostos - o amarelo da luz do sol e da decadência; o verde da esperança e da
inveja; o azul do puritanismo e da lascívia. A maldição do preto aparece apenas quando os
termos para as cores são colocados nos seres humanos - uma maldição de nossa cultura
anglo-americana que pesou na maioria das culturas rotulando-as de brancas, carregando-as
assim com a maldição arquetípica da supremacia branca.
Poderia haver um aspecto arquetípico da escuridão que seria responsável por nosso desdém,
bem como pelo medo, o arrepio fisiológico que ele pode provocar? Será que o olho humano
prefere a luz à escuridão? Será o ser humano heliotrópico, fundamentalmente adaptado à
luz? Será a percepção visual seu sentido preferido, como testemunhamos no embrião onde, a
partir de suas primeiras semanas, o sistema ótico rudimentar começa a se formar antes de
muitos outros?
Se o animal humano tem uma predileção inata pela luz, então a exclusão do preto como um
termo para cor substituindo “escuridão” poderia encontrar justificativa. A exclusão da
escuridão favorece a adaptação ao mundo fenomenal e um funcionamento ótimo nele por
meio de nossos órgãos sensoriais primários, os olhos. Então podemos concluir que a
definição de preto como uma não cor pertence à identidade ocular da consciência humana.
O olho torna-se a pars pro toto para a consciência humana comum, e o preto ameaça o próprio
centro dessa identidade. Esta ameaça, entretanto, é também sua virtude!
A nigredo alquímica
A significação cósmica dessas cores primárias também aparece nos primórdios da ciência
ocidental, ou seja, na tradição da alquimia. Das três, o preto tem uma importância especial,
como a base da obra, e até mesmo entra na formação da palavra “alquimia”. A raiz khem
refere-se ao Egito como a terra preta, ou terra do solo preto, e a arte da alquimia era
chamada de ciência ou arte “negra”. A tradição alquímica ocidental deita suas raízes na techne
egípcia do embalsamamento, do tingimento de tecidos, da joalheria e da cosmética.
Os primeiros quatro termos para as cores - preto, branco, vermelho e amarelo - são também
as cores primárias que abarcam toda a opus alquímica: nigredo, albedo, xanthosis ou citrinitas
e iosis ou rubedo. Esses termos descrevem: (1) os estágios do trabalho, (2) as condições do
material no qual se trabalha, e (3) os estados da psique do artífice, ou alquimista. Cada termo
combina três distintas categorias que nossa consciência moderna mantém separadas: o modo
de trabalho, a coisa na qual se trabalha e a condição do trabalhador. Para nossa
epistemologia, não há nenhuma relação inerente ou necessária entre método, problema e
subjetividade.
Por exemplo, para que alguma substância alquímica entre na fase de nigredo e preteje, as
operações devem ser escuras, e são chamadas, na linguagem alquímica, mortificatio, putrefactio,
calcinatio, e iteratio. Ou seja, o modus operandi é vagaroso, repetitivo, difícil, dissecador, severo,
adstringente, esforçado, coagulante e/ou pulverizante. Enquanto isso, o trabalhador entra no
estado de nigredo: deprimido, confuso, constrangido, angustiado e sujeito a ideias
pessimistas, ou até mesmo paranoides, de doença, fracasso e morte.
O modo alquímico de fazer ciência mantinha a lei das semelhanças entre todos os
participantes em qualquer atividade: o trabalho, o modo de se trabalhar e o trabalhador.
Tudo deve estar conforme; ao passo que podemos ter uma ciência na qual a subjetividade do
65
experimentador pode estar radicalmente separada do desenho experimental e dos materiais
do experimento.
O método alquímico, ao contrário, trata cada problema de acordo tanto com a natureza do
problema quanto com a natureza do alquimista. Esta é a razão pela qual nenhum sistema de
fato abrangente possa ser retirado dos textos alquímicos; as medidas sejam irrelevantes; as
invenções de um alquimista sejam tão estridentemente opostas por outros alquimistas; e é
também a razão pela qual até mesmo os materiais trabalhados sejam tão radicalmente
diferenciados - daí os vários tipos de sal, os vários nomes para o mercúrio, tantos estilos e
formas dos instrumentos.
A radical idiossincrasia é ainda assim a profunda concordância entre método, problema e
subjetividade também é responsável pelo fato de a psicologia profunda encontrar na
alquimia um pano de fundo tão útil para o trabalho em seus laboratórios: os consultórios
onde as condições de nigredo são tão familiares.
Podemos ler essa conformidade entre trabalhador, aquilo que é trabalhado e o modo de
trabalho, de trás para frente, oferecendo insights psicológicos que não podem ser alcançados
por uma ciência cartesiano-newtoniana, que separa trabalhador de trabalho. Com a alquimia
aprendemos que se você, como um trabalhador de qualquer campo em qualquer projeto - da
pesquisa ao casamento, dos negócios à pintura - torna-se exausto, seco, paralisado, deprimido
e confuso, então há indicações de uma fase de nigredo e o material que está encontrando é,
ele mesmo, obscuro e obstinado. Essa “depressão” não significa um fracasso nem da sua
personalidade, nem de seu método. De fato, as próprias dificuldades em seu método e a
escuridão de suas fantasias indicam que você está no lugar certo, fazendo a coisa certa,
exatamente por causa da escuridão.
As leituras otimistas e mais cristianizadas dos textos alquímicos dão à nigredo um lugar
principalmente inicial no trabalho, enfatizando então o progresso para além dela, rumo a
condições melhores, quando então o pretume será ultrapassado e o novo dia da albedo
ressuscitará do ofuscamento e do desespero. Leituras cristianizadas parecem incapazes de
evitar o salvacionismo.7
Mas esta, entretanto, é apenas uma possibilidade de leitura. Os textos deixam bem claro que
a nigredo não é idêntica à materia prima, esta um cesto de condições muito maior. A nigredo
não é o começo, mas um estágio alcançado. O preto é, de fato, uma realização! É uma
condição de algo que foi trabalhado, como o carvão é o resultado do fogo atuando numa
condição ingênua e natural da madeira, como as fezes pretas são o resultado de sangue
digerido, como o fungo escurecido é o resultado da decadência. Embora a depressão, as
fixações e obsessões, e um enegrecimento geral do humor e da visão, possam, a princípio,
trazer uma pessoa para a terapia, essas condições indicam que a alma já está envolvida em
sua opus. A iniciação psicológica começou bem antes da primeira hora de terapia. Jung fala
da nigredo: “É certo que a opus magnum começa neste ponto”.8
Intenções pretas
O que quer o preto alcançar? Por que é uma realização? Deixem-me brevemente listar o que
ocorre no pretejamento, sem me utilizar da linguagem mística de São João da Cruz, Simone Weil e
7
EDINGER, E.F.
. Chicago/LaSalle, III.: Open Court, 1985.
8
66
outros defensores da escuridão religiosa. Primeiro, como uma não cor, o preto extingue o
mundo colorido perceptivo.
Segundo, o pretejamento nega a “luz”, quer seja ela a luz do conhecimento, a ligação com
uma consciência solar como um modo de previsão de longo alcance, ou o sentimento de que
os fenômenos podem ser entendidos. O preto dissolve o significado, e a esperança pelo
significado. Estamos assim cercados de trevas.9
Terceiro, os dois processos mais relevantes para se produzir o pretejamento - putrefação e
mortificação - quebram a coesão interna de qualquer estado fixo. A putrefação, pela decomposição
ou desmembramento; a mortificação, pela moagem, como sementes num pilão são refinadas em
partículas cada vez mais finas e menores. O próprio Newton disse: “Para a produção do preto, os
corpúsculos devem ser menores do que quaisquer outros que exibam cores.”10 Newton disse que a espessura
e a solidez dos materiais com que trabalhou atenuaram-se pela ação do fogo e pela
putrefação, “o dissolvente mais sutil”. A matéria preta era a menos formada e a mais
suscetível à dissolução ou, em nossa linguagem, o caos.
Esse “dissolvente sutil”, quando misturado a outros tons, traz à tona seu obscurecimento e
aprofundamento ou, na linguagem da psicologia alquímica, seu sofrimento. O preto conduz
todas as variedades de brilho às sombras. Seria então a corrupção a intenção do preto?
Uma resposta depende daquilo que entendemos por “sombra”. Certamente essa intenção não
é meramente macular a inocência, manchar aquilo que é natural, este preliminar necessário a
qualquer pensamento alquímico. Portanto, não estamos lidando meramente com a corrupção
da inocência natural. A “sombra” que o preto aflige pertence ao campo mais profundo e
invisível das sombras, o Reino de Hades, que é o “dissolvente sutil” do mundo luminoso por
excelência.
Podemos começar a perceber, ainda que embaçadamente, por que a cor preta está condenada a
ser uma “não cor”. Ela carrega os significados de acaso e de informe. Como um buraco negro,
ela suga e faz desaparecer as estruturas fundamentais de segurança da consciência ocidental.
Ao tornar a cor ausente, o preto impede os fenômenos de apresentarem suas virtudes. A
desconstrução que o preto atua sobre qualquer positividade - experimentada como dúvida,
pensamento negativo, suspeita, destruição, falta de valor - explica por que a nigredo é
necessária para qualquer mudança de paradigma.
O preto quebra o paradigma; ele dissolve o que quer que reconheçamos confiantemente
como real e caro. Sua força negativa retira da consciência suas noções dependentes e
confortantes de bondade. Se o conhecimento é bom, então o preto o confunde com nuvens
de ignorância; se a vida é boa, então o preto representa a morte; se as virtudes morais são
boas, então o preto significa o mal. Se a natureza é concebida como um esplendor
multicolorido, então o preto significa toda a opus contra naturam, traduzindo o grande mundo
fenomenal nas abstrações escritas das letras, números e linhas, substituindo o dado palpável
e visual com as informações de marcas e traços.
Ao desconstruir a presença na ausência, a nigredo torna possível a transformação psicológica.
A transformação vem do efeito dissolvente do preto sobre todas as positividades. “A negação
9
10
Cf. mais adiante sobre sol niger, que radicalmente altera o sentido de ‘cercado de trevas’ [benightedness] para um
tipo de iluminação.
Dobbs, B.J.T.
, or ‘
’. Cambridge: Cambridge
University Press, 1975, p. 224.
67
traz fluidez”11; a energia psíquica ou libido (cuja raiz etimológica significa fluxo, como nos
líquidos) desprende-se de suas coagulações, busca novas metas.
Portanto, cada momento de enegrecimento é um arauto da mudança, de descoberta invisível
e de dissolução das ligações com tudo aquilo que foi tomado como verdade e realidade, fato
sólido ou virtude dogmática. Ele escurece e sofistica o olhar de forma que ele pode enxergar
através. Assim, o preto muitas vezes se torna a cor das vestimentas12 no mundo das trevas, da
gente urbana sofisticada, e dos idosos que já viram muito.
Em função do preto quebrar os paradigmas confortáveis, é a cor preferida daqueles com
tendências espiritualistas e dos reformadores políticos e “marginais” - adolescentes, rebeldes,
piratas, damas da noite, cultistas, ciclistas, satanistas, puritanos, anarquistas, pistoleiros,
padres - todos os “não conformistas” que então caem na armadilha de sua própria identificação
com o preto.
Embora as máximas alquímicas digam que a obra deve se parecer com uma “cabeça de corvo”
em sua negrura, e que esse corvo é o “princípio da arte”, esses dizeres identificam a
profundeza da radicalidade do preto. Eles não intencionam uma radical identidade ou
identificação com o preto. O preto não é, em si, um paradigma, mas aquilo que quebra os
paradigmas.
Esta é a razão de ser colocado como uma fase num processo de cores, e a razão de aparecer a
todo instante na vida e na obra, a fim de desconstruir (solve et coagula) aquilo que se tornou
uma identidade. Aqueles que usam a camisa preta ou a capa preta, o capuz preto e roupas
intimas pretas como sinais de uma identidade radical tornam-se assim nem anarquistas ou
marginais, nem reformadores, mas fundamentalistas. Daí a severidade rígida e o literalismo
monoteísta dos revolucionários.
A psicologia alquímica nos ensina a entender como realizações os períodos infrutiferamente
amargos e secos, as melancolias que parecem não ter fim, as feridas que parecem não sarar,
as opressivas e sádicas mortificações da culpa e a putrefação do amor e das amizades. Estes
são começos por serem fins, dissoluções, desconstruções. Mas não são o começo, como uma
ocorrência única no tempo. Tal seria uma leitura literal do processo alquímico que não e um
modelo unidirecional, progredindo com o tempo. É uma iteratio; o preto se repete para que a
desconstrução continue, como nos mostra, por exemplo, a
no comentário de Jung sobre
o Rosarium alquímico.13
A alma retorna, o rei e a rainha estão unidos - ainda assim, para fora do chão emergem os
pássaros pretos. Seriam esses pássaros a “sedução do preto”, levando a psique de volta ao
conforto protetor das queixas tão familiares, o ninho do status quo ante? “Aquilo com o que
deves ser mais cuidadoso [...] é impedir que as crias do corvo voltem ao ninho depois que o
deixaram”.14
Não quero nem condená-los a este estado negro permanente, nem aliviá-los dele prometendo
a volta do mundo colorido que a alquimia nos apresenta em imagens deslumbrantes. Meu
objetivo não é nenhum destes.
11
12
13
14
Kawai, T.
permissão do autor].
Harvey, J.
, Chicago: University of Chicago Press, 1996.
.
Filaleto, E. ‘
’. HM 2, p. 192.
[ensaio de circulação privada, citado com a
68
Mais preto que o preto
Mobiliza-me uma outra intenção: advertir. E também as advertências pertencem à nigredo,
pois falam com a voz do corvo, prevendo acontecimentos horrendos que podem resultar da
sedução do preto. Lembrem-se de como os colonos do século XIX temiam virar pretos; de
como Joseph Conrad percebeu uma loucura e um horror no coração da escuridão; de como a
peste negra, o guerreiro preto, a camisa preta e o inquisidor de preto assombram a história
europeia; e de muitas das imagens mais horripilantes da infância, desde a chaminé da lareira,
o mágico, a viúva negra, o Rotweiller e o Doberman, até esqueletos em sua danse macabre e o
próprio ceifeiro implacável rastejam-se nos salões da fantasia - todos de preto. Socializar
esses medos nas relações raciais não alcança sua imaginação arquetípica.
Sejamos claros: negro não é a nigredo, embora uma figura num sonho chamada de “preto”,
assim como qualquer fenômeno onírico assim chamado, possa introduzir e representar o
enegrecimento. Mas particularmente numa sociedade racista, precisamos manter bem
distintos, por um lado, os epítetos que arbitrariamente colorem os seres humanos e, por
outro, as forças cósmicas que moldam a alma apesar dos seres humanos.
O que a sociedade civilizada teme é a magia negra: o impulso mágico da atração pelo preto, o
desejo da alma por descer à escuridão, como Perséfone ao Hades.15 Tememos o que mais
desejamos e desejamos o que mais tememos.
A essência desse medo está na própria raiz do preto: ele é implacável, indelével, permanente,
um componente crucial da aqua permanens - aquele sentido de realidade psíquica sublinhando
e subjacente a todas as outras realidades, como uma conscientização da morte. Aí está o
paradoxo trágico do preto.
Ele gruda como alcatrão16 à sua própria fechada negatividade. Assim como ele amaldiçoa as
outras cores ao escurecer seu brilho, também amaldiçoa-se a si mesmo ao tornar-se “mais
preto que o preto”, além do toque de Mercúrio duplex.
Em outras palavras, a cor necessária à mudança priva-se a si mesma da mudança, tendendo a
se tornar cada vez mais literal, redutiva e severa. De todas as cores alquímicas, o preto é a
mais densamente inflexível e, portanto, o mais opressivo e perigosamente literal estado da
alma. Assim, os médicos temem que condições nigredo de depressão possam levar ao suicídio
literal, que a raiva vingativa gere violência, e que o ódio leve à crueldade doméstica. Daí,
também, o motivo para que os movimentos redutivos e o trabalho com a “sombra” na terapia
se pareçam tão concretos e confinados.17
Claro, como bem o sabem os pintores, há muitas saturações do preto. Parte da obra dos
pintores é a diferenciação dos pretos: pretos que recedem e absorvem, aqueles que
15
Cf. J. Hillman (
. Nova York: HarperCollins, 1979), para um tratamento psicológico
mais completo do reino de Hades.
16
Filaleto. ‘
’. Op. cit., 192: ‘O todo é seco como poeira, com exceção de uma substância que se lança, que de
vez em quando borbulha; tudo apresenta uma imagem de morte eterna. Contudo, é uma visão que alegra o coração [...]’.
17
Bachelard escreve: ‘Qualquer cor sobre a qual medita um poeta das substâncias encontra no preto uma solidez
substancial, uma substancial negação.. J. O preto alimenta as profundezas de toda cor; ele é sua íntima
residência’ Sachelard, G.
. Paris: Corti, 1948, p. 27), Em português: A Terra e os
devaneios do repouso - Ensaio sobre as imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991 - Trad. de Paulo
Neves].
69
umedecem e suavizam, aqueles que delineiam e aguçam, e outros ainda que brilham quase
que com uma refulgência - um sol niger.18
Contudo, a máxima alquímica “mais preto que o preto” afirma uma última radicalidade para
além de todas as variedades e tons diferentes de preto. Aquilo que é mais preto que o preto é
a essência arquetípica da própria escuridão,19 muitas vezes nomeada pela alquimia de noite,
sata, pecado, corvo, caos, tenebrositas, cão preto, morte...
Já que o Mercúrio está escondido e que a albedo é uma graça imprevisível, então o que pode
“curar” a nigredo? O que pode liberar a alma de sua identificação sombria? Esta é a questão
colocada em cada análise, e também colocada durante os momentos de nigredo da vida. A
resposta do alquimista: decapitação.
De acordo com Jung, o espírito negro deve ser degolado, um ato que separa a compreensão
de sua identificação com o sofrimento. Porque “na nigredo o cérebro se obscurece”20, a
decapitação “emancipa a cogitatio”. O negror permanece, mas a distinção entre cabeça e corpo
cria um “dois”, enquanto o sofrimento nos aprisiona na singularidade, no único. A mente
pode começar a reconhecer aquilo que o corpo só sente. A decapitação permite que a mente
liberte-se da identificação com o corpo.
É claro que a decapitação faz sentido como uma operação só como um tratamento para a
nigredo. Ela é, naturalmente, contraindicada - até mesmo redundantemente sem sentido para aquelas condições da alma em que a cabeça está colada de modo muito fraco e
raramente reconhece qualquer coisa que o corpo sinta. E, claro, o “corpo” alquímico refere-se
não meramente a carne física e seus sintomas, mas também a todas as perspectivas imaginais
que estão presas em concretismos habituais.
A decapitação é, portanto, uma separatio - para usar um termo alquímico para o movimento
terapêutico básico de fazer distinções, ou analisar. Apesar da rigidez e da qualidade fixa dos
humores da nigredo e de seus pensamentos repetitivos, a análise separa o material - sonhos,
humores, projeções, sintomas - da identificação literal da mente com esse material. O denso e
opressivo material torna-se imagens que podem ser entretidas pela mente. Imagens mentais
nos emancipam da escravidão à nigredo; embora o material permaneça escuro, a decapitação
permite à mente cogitar a escuridão.
A alquimia nos alerta: “cuidado com o físico no material”. Não é o “material” do sofrimento
que envenena a obra com o desespero, mas o “físico”, ou seja, a mente naturalista substantiva
que nos afasta de uma apreciação imaginativa do material. A psicologia alquímica oferece
exatamente essa apreciação imaginativa.
Os pacientes, e qualquer um de nós em tantos momentos, que são “incapazes de imaginar”
estão muitas vezes enredados na nigredo por traumas passados, e aprisionados pelo “físico
no material”. Esses mesmos pacientes, contudo, podem estar enredados também na nigredo
18
‘Há um preto que é velho e há um preto que é fresco. Preto lustroso e preto monótono, preto na luz do sol e preto na sombra.
Para o preto antigo deve-se usar uma mistura de azul, para o preto monótono uma mistura de branco, para o preto lustroso
deve-se acrescentar goma. O preto como luz solar deve ter reflexos cinza.’ O artista japonês Hokusai, citado pelo pintor
americano Ad Reinhardt. Cf. Hussein, M. & Wilkinson, R.
. Londres: Ashgate Publishing, 2006, p. 239.
19
Marlan, S.
. College Station: Texas A&M University Press, 2005.
20
70
de seus terapeutas que não foram decapitados e cujas cogitações não foram emancipadas da
compreensão redutiva, naturalista21 e historicista daquilo que está acontecendo.
O literalismo é certamente o mais obstinado de todos os nossos concretismos habituais. Por
“literalismo” quero dizer unicidade de significado; identificação de qualquer incorporação
concreta com sua “palavra”, aquela identidade entre palavra e coisa de forma que as palavras
se tornam coisas. A decapitação também liberta a palavra “preto” apenas de significados
nigredo, assim libertando aqueles fenômenos chamados “pretos” (inclusive pessoas) das
fixações indeléveis das projeções de nigredo.
Lembrem-se aqui de que a “palavra” em nossa cultura é escrita em preto, e esta seleção de cor
para a tinta pode ser mais que meramente conveniente e eficiente. O próprio pretume da letra
tingida suporta sua fixação indelével e incita o poder amaldiçoante do literalismo.
Então, talvez as tentativas contemporâneas de múltiplos significados (polissemia), de separar
o significante do significado, de brincar com a ambiguidade do “traço”, tropo, deslocamento,
e a insistência na diferença e, também, a ausência de todas as certezas nas proposições
positivas - esses movimentos desconstrutivos podem ser modos franceses da decapitação do
cogito - libertar a mente da unicidade que eu condeno como literalismo. Todo o esforço
francês assemelha-se a tentativas da alquimia (o obscurantismo arcano da fala
desconstrutivista soa de fato como a linguagem dos alquimistas) no sentido de convidar
Mercurio duplex de volta ao discurso do qual a clareza lógica francesa o expulsou.
Embora eu possa perceber uma intenção alquímica no pensamento francês contemporâneo,
não pratico seu método: ele se interrompe e permanece um exercício de cogito. A lamina da
guilhotina nunca corta totalmente. O cérebro permanece enegrecido, e assim as cogitações
de sua mente são lidas pelos críticos como niilismo, europessimismo, cinismo, teologia negativa e
como a última moda no desespero existencial - e, portanto, o desconstrucionismo torna-se
mais um concretismo habitual do pensamento ocidental.
Ele se interrompe antes que a nigredo se torne azul. Depois do preto vem o azul - não cínico,
mas triste; não duro e esperto, mas lento. Os azuis trazem de volta o corpo com um
sentimento revisto, cabeça e corpo reunidos. Os alquimistas falaram desta fase como a unio
mentalis, que elaborarei no capítulo 5 adiante. O azul dá voz à nigredo, e voz une cabeça e
corpo. A escuridão imaginada como uma luz invisível, como uma sombra azulada, por trás e
dentro de todas as coisas.
O principal concretismo contra o qual este presente capítulo vem lutando é a convenção
newtoniana, sustentada pelo dicionário,22 que exclui o preto do campo das cores porque ele
não é concretamente visível no espectro. Contudo, talvez a culpa não seja realmente de
Newton, mas resulte do literalismo amaldiçoado do preto, seu desejo de estar fora deste
mundo, num submundo de invisibilidades, ou no reino escuro da morte. Talvez o preto não
possa eliminar a maldição de sua própria cabeça, de forma que isso se torna nossa tarefa, de
cada um de nós - decapitar a nigredo, emancipar nossas mentes de uma maneira pósnewtoniana.
21
22
, cf. Hillman, J.
. Nova York: Harper & Row, 1975, p. 84-86.
Oxford English Dictionary, v. Black: ‘Oposto ao branco, sem cor em função da ausência ou completa absorção da luz [...] cor
não distinguível.’
71
O sol niger dissipa a maldição da nigredo porque ele é “mais preto que o preto”. Como mostra
Stanton Marlan,23 podemos estar enegrecidos e ainda assim iluminados. Sol niger – um dos nomes
do objetivo último de todo o empenho alquímico – preteja com uma escuridão “não
assimilável”. Parece ser uma “imagem intolerável”.24 E mesmo assim é uma imagem de sol, um
sol iluminador que pode obscurecer todo o positivismo do mundo diurno, mas não todo
insight. Como a negação da negação, o sol negro erradica ontologicamente o pavor
primordial do não ser, aquele abismo que não preenchemos - ou, o abismo torna-se a base
ilimitada das possibilidades.
A negação concebida como mal teológico, um estágio num processo dialético, ou um poder
maniqueísta, dá uma função positiva à escuridão, aumentando a sedução do preto.
Sucumbimos ao reverso do otimismo solar e descemos a uma negação positivista revelada
como “o horror, o horror”, descemos ao pessimismo, ao cinismo, ao desespero, ao suicídio
como uma resposta racionalmente válida para uma visão nigredo. Mas o sol niger brilha
invisivelmente em cada uma dessas coagulações negativas. Escuridão e translucidez ao mesmo
tempo, uma verdadeira decapitação da mente comum. Daí Filaleto poder falar da “morte eterna
que alegra o coração”.
Esta emancipação da mente significa mais que pensar pensamentos obscuros com um
cérebro enegrecido ou sofrer as obstinadas depressões do corpo. Significa a incorporação da
invisibilidade dentro de todas as percepções, nunca perdendo o olho negro ou ignorando o
desejo da alma por sombreamentos e pesares. Hades nunca longe de seu irmão Zeus. Estar
cercado de trevas e só o começo; ser preto, enxergar preto - é assim que a nigredo
inescapavelmente nos afeta. Mas, enxergar por meio do preto, enxergar o habitual como
mistério, o aparente como ambíguo, transforma fixações concretas em imagens metafóricas.
Esta e a emancipação da nigredo do literalismo. Semelhante cura semelhante; curamos a
nigredo tomando-nos, como dizem os textos, mais pretos que o preto - arquetipicamente
pretos e, portanto, não mais coloridos pelos demasiado humanos preconceitos de cor.
Tornar-se mais preto que o preto também seria estarmos dirigidos para o caos e a tragédia
daquilo que e chamado erroneamente de relações “raciais”, que são mais verdadeiramente
relações de cores, porque são reflexos na esfera humana de processos alquímicos cujas
intenções apenas marginalmente dizem respeito às pessoas. Pois o desejo da alquimia não
era meramente com relação a alma humana; ela buscava a alma do mundo. A alquimia é uma
obra cosmológica; seguir uma psicologia alquímica imediatamente nos leva a trabalhar com o
mundo. A alquimia reanima o denso e o rejeitado, às vezes chamado de “matéria”, e exige uma
descida recorrente naquela escuridão, aquela invisibilidade algumas vezes chamada de Hades.
Ao continuar a encarar o preto como uma não cor, segregando- a da brilhante beleza do
prisma newtoniano, nossa falha cosmologia permanece incapaz de encontrar um lugar para a
nigredo, exceto como fenômenos da “sombra”, tais como o crime, a crueldade, o racismo, o
aprisionamento, a toxicidade e a desordem mental da depressão. Nossa psicologia infectada
pela ciência, além disso, ao localizar fenômenos da nigredo apenas na subjetividade como
humores e fracassos humanos, continua m seu método ilusório que desconecta o trabalho do
trabalhador, e ainda do mundo ecológico sobre o qual se trabalha.
23
24
Marlan, S.
. Op. cit., cap. 4.
Micklem, N.
Jungian Though. [s.L.]: [s.e.], 1979, p. 1-19.
. Spring: An Annual of Archetypal Psychology and
72
Ainda pior é o perigo de nossa epistemologia ocidental perder sua habilidade para corrigir
sua própria brilhante cegueira ao fazer mudanças radicais de paradigmas. A conversão do
preto de uma não cor para uma cor, de negativo para a negação da negação, e portanto não
apenas uma questão de reforma social, com relação à inclusão de povos mais escuros e dos
sombreamentos mais escuros da existência. A inclusão do preto entre as cores torna-se um
modo para a consciência ocidental poder decapitar o fundamentalismo ingênuo de suas
ilusões esperançosamente coloridas.
73
O azul alquímico
5
e a unio mentalis
the soul
vanishes
the soul. vanishes. into the shape of things
Robert Kelly
I Os azuis
As transições do preto para o branco as vezes atravessam uma série de outras cores,1
especialmente os azuis mais escuros, os azuis das contusões, da sobriedade, do autoexame
puritano; os azuis do jazz mais lento, o blues. A cor da prata não era apenas branca, mas azul.
Podemos considerar o azul uma cor de transição, quer resultante do sofrimento da prata (sal
e vinagre), quer resultando em prata.2 De qualquer forma, o azul tem uma afinidade tanto
com o preto quanto com o branco, tanto nigredo quanto albedo. Além disso, contudo, o azul
é uma condição da alma que não está em transição, não está em movimento, mas toda em si
mesma, múltipla, complexa, multitonalizada.3
A alma desaparece como uma substância pesada, plúmbea, carregando meu interior pessoal e
aparece como uma ressonância sombreada, um subtom, uma dimensão a mais nas coisas
como elas são. Wallace Stevens diz em seu extraordinário poema sobre esse tema,
1
2
3
Cf. Ordinal de Norton (
). ‘Os médicos descobriram dezenove cores intermediárias entre o branco e o
preto na urina [...] Magnesia [um termo para o branco] produz um esplendor suave e puro no estágio sutil de
nossa Arte; e aqui observamos todas as cores que foram vistas pelo olho mortal - cem cores, e certamente muitas
mais do que as que foram observadas na urina; e em todas essas cores nossa Pedra deve ser encontrada em todos
os seus estágios sucessivos. Na ordenação de seus experimentos práticos, e ao conceber as diferentes partes do
trabalho em sua própria mente, você deve ter tantas fases, ou estágios, quanto há cores.’
Ruland lista 27 tipos de prata azulada. Norton escreve (
): ‘A prata pode ser facilmente transformada na cor da
lazulita porque [...] a prata, produzida pelo ar, tem uma tendência a ser assimilada pela cor do céu’. É tão forte a
associação do azul com a prata e com o branqueamento que mesmo quando a química moderna duvida do
testemunho alquímico (que retira um pigmento azul da prata tratada com sal, vinagre, etc.), ela assume que os
alquimistas tinham alguma justificativa física desconhecida para nós em suas alegações. (Dorothy Wyckoff aponta
que a prata ‘assim tratada não daria um pigmento azul. Contudo, essa receita, com variações, é encontrada em muitas
coleções antigas, portanto deve ter algum valor’ (Albertus Magnus.
. Oxford: At the Clarendon Press,
1967, p. 192-193n [Wyckoff, D. (org.)]. Mas não estão essas alegações baseadas na fantasia, uma prata sófica de uma
imaginação branca que sabe que o azul pertence à prata, e portanto o enxerga?
Para a rica complexidade do azul, cf. Pastoureau, M. Blue: the History of a Color. Princeton: Princeton University
Press, 2001.. Gass, W.
. Boston: David R. Godine, 1976. Theroux, A. The Primary
Colors. Nova York: Henry Holt, 1994. Esses autores não abordam a alquimia.
74
“
”: “Things as they are! Are changed upon the blue guitar”4. “Alma” move-se de
substantivo para adjetivo e advérbio, tornando-se o qualificador universal, menos algo aqui e
ali, mas um humor ou tom em qualquer lugar. A mente começa a se tornar psicológica,
descobrindo a alma como uma segunda camada (senão a primeira), que dá profundidade
metafórica e valor psíquico para as coisas como elas são.
Portanto, o azul torna-se necessário em nossas explorações do branco, da prata e da albedo.
Para lhes fazer justiça, precisamos primeiro ter ganho olhos azuis.
O trânsito azulado entre o preto e o branco é como aquela tristeza que emerge do desespero
à medida que ele caminha para a reflexão. Aqui, a reflexão vem de, ou nos leva para uma
distância azul, menos um ato concentrado que fazemos e mais algo que se insinua sobre nós
como uma inibição fria, que nos isola. Essa retirada vertical é também como um
esvaziamento, a criação de uma capacidade negativa, ou um escutar profundo – já uma
intimação da prata.
Goethe associa essas mesmas experiências com o azul:5
{O azul} ainda traz consigo um princípio de escuridão (p. 778).
Como matiz ele é poderoso, mas está no lado negativo, e em sua mais elevada pureza e, por assim
dizer, uma negação estimulante [...] um tipo de contradição entre excitação e repouso (p. 779).
Como o céu lá no alto e as montanhas parecem azuis, uma superfície azul parece distanciar-se de
nós (p. 780).
(Ele] nos atrai (p. 781).
O azul nos dá uma impressão de frieza e assim, novamente, lembra-nos das sombras. Já falamos
antes de sua afinidade com o preto (p. 782).
Salas pintadas de puro azul parecem de alguma maneira maiores, mas ao mesmo tempo vazias e
frias (p. 783).
A aparência de objetos vistos por uma lente azul e triste é melancólica (p. 784).
A tristeza não e tudo. Uma dissolução turbulenta da nigredo pode também se mostrar como
blue language, Vamour bleu, o azul do absinto e a “ruína azul” do gin, Barbazul, assassinato azul, as
contusões preto e azuis de
, de David Linch, e os corpos cianóticos da Dietrich em
, no primeiro Picasso, em Schiele, e os pobres famintos de Van Gogh.6 E – nos filmes
azuis [blue movies], como já foi chamada a pornografia.
Os filmes pornográficos são azuis porque estão saturados de depressão e cinismo. Não
meramente o grafismo concreto de uma lição de anatomia, as repetições saturninas
laboriosas, as molestações, os grunhidos e a sujeira, mas também o local onde são assistidos:
espeluncas, quartinhos escuros nas paradas de caminhoneiros; a mirada fixa em meio ao ar
azul esfumaçado.
4
5
6
Stevens, W. ‘
’. The Collected Poems of Wallace Stevens. Nova York: Vintage Books, 1990, p.
165.
.
. Cambridge: MIT Press, 1970. Cf. tb. Kandinsky, W.
. Nova
York: Dover, 1977, p. 38: ‘O azul (...J retrai-se do espectador [...] voltando-se a seu próprio centro (...). Quando afunda
quase até o preto, ecoa uma tristeza que é mais que humana’.
Cf. Gass particularmente para os azuis bizarros e sexuais. Sobre os aspectos cianóticos do azul, cf. as observações
de Jung sobre a fase azul de Picasso (
), que Jung compara com uma Nekya ao reino de
: ‘Adentramos
no mundo inferior. A objetividade e marcada pela morte, expressa na obra prima horripilante das prostitutas adolescentes,
sifilíticas e tuberculosas’.
75
Este é o reino do cão azul alquímico7 (kyanos, azul; kynos, cão); o azul assume uma qualidade
canina: envergonhado e safado ao mesmo tempo. Por que a depressão procura o pornô? Por
causa da excitação? Para que Eros, Priapo e Venus possam aparecer? Ao invés, penso eu, para
manter a depressão, para redirecionar a verticalidade do desejo para baixo e para trás (tipo
cachorrinho), grampeando as asas de eros. Pornografia – uma opus contra naturam, um
contrainstinto da psique, pervertendo o convencionalmente natural, escravizante, torturado;
uma erótica do desespero.
Como o “cão negro”, como Winston Churchill chamou suas depressões desesperadas, o cão azul
também aponta seu nariz para baixo, em contato com a tristeza e os ossos enterrados no
mundo das trevas e suas deusas da decadência e da destruição que têm sempre um cão como
companhia. Ainda assim, os textos dizem que o cão tem “um tom celestial”, e o “velho itifálico”
representando esse cão é “alado” (
). O cão do azul pode ser material em suas
ligações, mas não físico em seus propósitos. Seu nariz aponta para além de sua predileção
pela sujeira, aponta para a terra lunar onde o poder fascinante das imagens possui a mente.
A mente engolida por sua obsessão, sua vergonha e seu desgosto e, deparando-se com a
impotência de sua vontade de suprimir a perseguição de suas fantasias, é forçada a admitir a
realidade psíquica – ainda que a admissão venha por alamedas escuras. Assim, o cão
alquímico, como uma energia instintiva da fase azul, é chamado de “procriador”, aquele que
traz um “logos divino” (
) ou uma inteligência arquetípica (como
[O cão de caça do paraíso] do famoso poema espiritual de Francis Thompson que obstinadamente
busca um propósito), neste caso escondido na sujeira.
De acordo com Kalid (
), esse cão “previne os corpos de se queimarem e do calor do fogo”.
Quanto mais baixo vamos nos submundos lentos, azuis e úmidos de Eros, menos estamos
sujeitos à chama erótica do puer. Portanto, o cão é também portador de doenças
(
). A mente patologizada está mais capacitada a suportar as abluções lunares da
albedo que limpariam todas as manchas. O cão é guardião e mantenedor da fé na condição
humana, sua base na baixeza que não pode ser transcendida.
Assim, quando começam esses tipos de fantasias pornográficas, perversas, horripilantes ou
viciosas, podemos situá-las alquimicamente dentro da terra de ninguém azul entre a nigredo
e a albedo. Procuraremos um pouco de prata no vício. Um espelho de autorreconhecimento
se forma através do horror e da obscenidade. A putrefactio da alma está gerando uma nova
consciência de anima, uma nova base psíquica que precisa incluir experiências subterrâneas
da própria anima: suas afinidades mortais e perversas expressas alquimicamente pela “cadela
lunar” (
), pelo “cão raivoso” (
)8 e pela loucura que vem com a deusa lunar,
9
Diana. O azul-escuro do manto da Madona tem muitos sombreados, e estes lhe dão
profundidade de compreensão, da mesma forma que a mente forjada na lua viveu com Lilith
7
8
9
Para um exame extensivo do cão alquímico erótico num caso particular, cf. GRINNELL, R.
. Dallas: Spring Publications, 1989, p. 101ss.
Sobre a loucura lunar, cf. adiante, cap. 6. Cf. tb. Hillman, J. ‘
’. Animal Presences, 9, p. 150-160.
O cão azul oferece outra leitura do conto de Diana
. O obstinado caçador, atraído por fantasias do corpo
feminino nu, é destruído pelo concretismo de seu desejo, em vez de pelo seu obscuro objeto - a
lunar. O
concretismo pertence ao cão que, diz-se brincando, tem apenas três preocupações: comer, defecar e copular,
equivalentes às fases libidinais oral, anal e fálica de Freud. Para discussões ricas sobre o conto de Acteão, cf. Moore,
T. Artemis
. In: Hillman, J. (org.).
. Dallas: Spring Publications, 1979. Giegerich, W.
. Frankfurt am Main: Peter Lang, 1998, cap. 6.
76
e, portanto, seu pensamento nunca será ingênuo, nunca deixará de esbarrar em sombras
profundas.10 O azul protege o branco da inocência.
A direção vertical, como reafirma Jung (
), está tradicionalmente associada com o
azul.11 As palavras gregas antigas para o azul significavam mar.12 Em
,
o azul referia-se tanto ao mar quanto ao céu,13 da mesma forma que a palavra grega (bathun) e
a latina (altus) tinham conotações de altura e profundidade ao mesmo tempo. A dimensão
vertical como hierarquia ainda está presente em nossa linguagem como o sangue azul da
nobreza, fitas azuis14 e as tantas imagens mitológicas dos “deuses azuis”: Kneph no Egito e os
embrulhos azuis de Odin,15 Jupiter e Juno,16 Krishna e Vishnu, Cristo em sua pregação terrena
como aquele Cristo-azul visto por
.17
10
11
12
13
14
15
16
17
Cf. Jung, C.G.
: ‘E como pode um homem se realizar plenamente se a rainha não interceder por sua alma negra?
Ela compreende a escuridão |... |’. Essa passagem segue-se à discussão de Jung sobre o ‘azul’.
Cf. Cirlot, J.E.
. Londres: Routledge, 1962, p. 52.
. Vol. 1. Nova York: J. Aronson, 1973. p. 307. Irwin, E.
. Toronto: Hakkert, 1974, p. 79-110, v. ‘Kyaneos’.
Dronke, P. ‘
’. Eranos Yearbook, 41, 1972, p. 67. Sobre o céu
azul (claro), cf. o capítulo de Gaston Bachelard ‘
’, no seu
. Dallas: The Dallas Institute Publications, 2002 [Em
português: O ar e os sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990 - Trad, de
Antônio de Pádua Danesi]. O mundo inferior como um lugar aéreo e azul aparece na cosmologia dos índios
Navaho. É azul o mundo seguinte ao mundo mais profundo (vermelho), habitado por pássaros azuis. Cf. Reichard,
G.A.
. 2 vols. Nova York: Pantheon Books, 1950.
, em inglês, sinal de alta distinção, usada especialmente pelos Cavaleiros da Ordem da Jarreteira [N.T.].
Bayley, H.
. Londres: Williams & Norgate, 1912, p. 78-79. Bayley deriva ‘azul’ de
palavras que significam ‘verdade’ - um exemplo curioso de fantasia arquetípica apresentada como etimologia.
Cirlot.
. Op. cit., p. 51.
Dronke. ‘
’, p. 98 (Scivias II,2). Um
azul é desviante, senão herético. A imagem, no
entanto, de fato dá suporte à discussão de Howard Teich (cf. adiante, nota 33) de que o azul representa uma
masculinidade lunar, nem vermelho solar (masculino), nem branco lunar (feminino), mas uma conjunção
anterior ao conhecido par vermelho e branco. Teich argumenta que o azul foi reprimido no simbolismo cristão.
O azul não era uma cor canônica, como eram o violeta, o branco, o verde, e o preto. Será que o azul carrega um
indelével sinal etimológico? Kyanos é cognato do sânscrito cunya, ‘vazio, vago, vão’, cuna-m, ‘ausência, carência’;
do latim cavus, ‘oco’. Caerulus (em latim, céu azul-escuro) é cognato (via o sânscrito Cyama) de escuro,
desaparecido, deixar, ser deixado. Livid (latim para azul) pertence a um grupo de palavras que significam escapar,
contrair, desaparecer, fluir. O próprio germânico Blue pertence a uma ‘grande classe de nomes de cores [...] que
significam [...] marcado, desgastado, maculado’, manchado e colorido no sentido de ‘descolorido’ (Wood, F.A.
. Halle: Niemeyer, 1902, passim). Compare com essas etimologias do azul este
sumário da avaliação de Goethe: ‘[o azul] está na polaridade negativa das cores onde a privação, a sombra, a escuridão, a
fraqueza, o frio, a distância, uma atracão e uma afinidade com os álcalis são encontrados’ (Badt, K.
.
Berkeley: University of California Press, 1965, p. 59).
77
A transição do preto para o branco via o azul18 implica que o azul sempre traz o preto
consigo (Entre os povos africanos, por exemplo, o preto inclui o azul;19 enquanto na tradição
judaico-cristã o azul pertence, ao contrário, ao branco).20
O azul carrega traços da mortiacatio para o branqueamento. Aquilo que antes era a viscosidade
do preto, como piche ou alcatrão, difícil de se livrar, transforma-se nas tradicionalmente
virtudes azuis da constância e fidelidade. A música country americana canta o blues da
deserção e da fidelidade. “Foi-se e me deixou”, “você me fez mal”, “não consigo deixar de te amar”. Posso
estar arruinado e machucado, mas meu coração ainda é fiel. Não dá para deixar para trás e
seguir adiante. O azul lembra, e o preto nele não deixa as coisas irem embora. O aspecto
torturado e sintomático da mortificação - autocritica severa, a pulverização de velhas
estruturas, a decapitação da vontade teimosa, os ratos e a podridão de nosso porão pessoal dá lugar ao luto.
Como até mesmo o mais escuro dos azuis não é preto, então também o mais profundo
desespero não é a mortiacatio, que significa morte da alma. A mortiacatio é mais fechada,
imagens presas compulsivamente no comportamento, visibilidade zero, a psique amarrada
na inércia e na extensão da matéria. Uma mortificatio é um tempo de sintomas. Essas torturas
da psique na physis, inexplicáveis e demasiadamente materializadas, são aliviadas, de acordo
com a sucessão das cores, por um movimento em direção à melancolia, que pode começar
com um arrependimento pesaroso até mesmo com relação a um sintoma perdido: “Era melhor
quando doía fisicamente - agora eu só choro”. Desgraça azul.
Com o aparecimento do azul, o sentimento autorreflexivo torna-se mais preeminente e o
sentimento supremo é o pesaroso lamento. Rimbaud21 equaciona o azul com a vogal “O”;
Kandinski,22 com os sons da flauta, do violoncelo, do baixo e do órgão. Esses lamentos sugerem
a alma, sugerem reflexão e distanciamento através da expressão imagista. Aqui podemos
perceber melhor por que a psicologia arquetípica enfatizou a depressão como a via regia no
cultivo da alma (soul-making). Os exercícios ascéticos que chamamos de “sintomas” (e seus
“tratamentos”), os desesperos culposos e o remorso na medida em que a nigredo declina,
reduzem a velha personalidadeego, mas essa necessária redução é apenas preparatória23 para o
sentido de alma que aparece primeiramente na imaginação obscura da depressão à medida
que ela azula em melancolia.
18
A mistura de preto e branco no azul aparece numa antiga expressão britânica blue skin (‘pele azul’), que era uma
‘pessoa gerada numa mulher negra por um homem branco’. Um dos blue squadron (esquadrão azul) significava ‘a
lick of the tar brush’ (de sangue negro) (‘Lexicon Balatronicum’.
, University Wit and Pickpocket
Eloquence. Londres: C. Chappel, 1811).
19
Zahan, D.
. In: Ottmann, K. (org.).
.
Putnam, Conn.: Spring Publications, 2005, p. 217-218.
20
A associação de azul com branco não aparece apenas no simbolismo mariano, pois o azul tem um papel
espiritual importante no simbolismo místico e no culto judaicos. Cf. Scholem, G.
‘
Tradition’. In: Ottmann, K. (org.). Color Symbolism. Op. cit., p. 1-14.
21
O soneto de Rimbaud ‘Voyelles’ onde o azul equaciona-se com o ‘O’, Omega. ‘Voweils’. Rimbaud Complete. Nova
York: Modern Library, 2002, p. 104.
22
Crohmann, W.
. Nova York: Harry Abrams, 1958, p. 89.
23
‘Os da vestimenta azul’ é uma forma usual persa de chamar os Sufis, para o que ‘várias explicações foram dadas’
(Corbin, H.
. Boulder: Shambala, 1978, p. 157, nota 121). Supostamente, roupas
azuis são ‘apropriadas àqueles que ainda estão nos primeiros estágios da vida mística’. Roupas azul-escuras são usadas
quando ‘a psique inferior [
] foi ultrapassada, como se estivéssemos em luto por ela’.
78
Digamos que o azul é produzido por uma colaboração entre Saturno e Vênus. De acordo com
Giacento Gimma,24 um gemologista do século XVIII, o azul representa Vênus, enquanto o Bode, o
emblema saturnino de Capricórnio, é o animal do azul. O símbolo zodiacal do Capricórnio
estende-se vagarosamente das profundezas para as alturas; uma amplitude e uma paciência
imensas, devoção e obsessão ao mesmo tempo. Enquanto o azul traz a Vênus uma melancolia
mais profunda, e a Saturno uma magnanimidade (outra virtude do azul, segundo Gimma), ele
também diminui a expansão da brancura, pois ele é a cor do repouso (Kandinsky).
Assim, o azul é o fator que retarda o branqueamento. É a ansiedade pensativa da depressão,
que levanta dúvidas profundas e altos princípios, desejando compreender as coisas
fundamentalmente e colocá-las em ordem. Esse efeito do azul no branco pode aparecer nos
sentimentos de serviço, trabalho e obrigação, e na observância disciplinada de regras,
conformidades cívicas como a cruz azul, uniformes azuis, que as figuras personificadas
desses sentimentos podem carregar em público. O efeito ainda pode aparecer nos humores
azuis de uma culpada conscientização. Ha de fato um “aspecto moral do branqueamento”25 –
e penso que este é precisamente o efeito do azul. O branqueamento não implica nem uma
redução da sombra, nem sua conscientização.
A albedo alquímica não é uma inocência sem sombra. Embora o suspiro do desespero possa
virar um suspiro de alívio, a mancha azul permanece. Há agora mais espaço psíquico para a
estatura total e misteriosa da sombra, um céu mais alto e um mar mais profundo. A alma
embranquece à medida que a sombra está livre da repressão e é arejada na vida. Uma gota de
azul na máquina de lavar roupas as torna mais brancas. “A alma desaparece na forma das
coisas”, pois a interioridade privada da alma expande-se, tingindo o mundo com um peso
sério, da mesma forma que os azuis dão profundidade de sombras e formas mais palpáveis
nas pinturas a óleo. De fato, à medida que as sombras azuladas do mundo emergem, a
tristeza é sentida no próprio mundo, como se mantida e embrulhada pelo pesar.
Se o branco alquímico depende do azul, então esse azul depende do preto. A
(em latim, ca. 1150 d.C.), que tanta influência exerceu, afirma: “Quando o preto excede o branco por
um grau, exibe uma cor azul celeste”.26 Evidentemente, os raios de luz e chamas azuis das aspirações
celestiais requerem uma quantidade módica de depressão, uma gota de putrefação. Um grau
de escuridão é a graça salvadora da inspiração. De fato, a graça salvadora do azul-claro de
Maria pode estar numa imperceptível madona negra escondida sob seu manto.
II Animus e anima
Tenho entendido que a noção junguiana do azul como a “função pensamento” refere-se à
antiga associação do azul com as profundidades impessoais do céu e do mar, a sabedoria de
24
25
26
Kuns, G.F.
. Filadelfia/Londres: J.B. Lippincott Company, 1913, p. 31. Um século
antes de Gimma, Cesare Ripa lista em seu dicionário para pintores (Iconologia) estas figuras que deveriam estar
vestidas de azul: Astrologia, Bondade, Poesia, Firmeza e também Inconstância (a prostituta azul de Picasso? Ou ao
menos o lado sombrio do constructo fidelidade-verdade-constância).
. Princeton: Princeton University Press, 1966, p. 243.
Dronke. ‘
’. Op. cit., p. 76. Cf. este paradoxo de Wittgenstein: ‘Num desenho onde um pedaço de
papel branco ganha sua claridade do céu azul, o céu é mais claro que o papel branco. E ainda assim, num outro sentido, o
azul e a cor mais escura e o branco a mais clara’ (Wittgenstein, L.
. Vol. 1. Berkely/Los Angeles:
University of California Press, 1978, p. 2 [
(org.)].
79
Sofia, a filosofia moral e a verdade. Imagens pintadas de azul, diz o neoplatonista cristão
Dioniso, mostram o que “está secreto em sua natureza”.27 O azul é “escuridão tornada
visível”.28 Essa profundidade é uma qualidade da mente, um poder invisível que permeia todas
as coisas, como o ar - e o azul, disse Alberti em sua grande obra renascentista
,29 é a cor
do elemento ar.
Quando os azuis mais escuros aparecem na análise, eu me seguro e me preparo, pois estamos
prontos para os altos e baixos de animus e anima, ou aquilo que às vezes os junguianos
chamam de “o animus da anima”. (você sabia que blue-stocking queria dizer “mulher que tem interesse
intelectual e literário”, coloquialmente uma “sabichona”; que blueism queria dizer “a posse ou a
afetação de conhecimentos numa mulher”; e que a simples palavra blue [azul] já quis dizer “gostar de
literatura”?).30 Esses azuis profundos são inflações do impessoal, do oculto. Eles não parecem
nada elevados, mas aparecem como pensamentos filosóficos graves, julgamentos sobre o
certo e o errado, e o lugar da verdade na análise. Entretanto, aquilo que parece, e até mesmo
é, tão profundo está na verdade longe e desligado das questões à mão. Aquilo de que estamos
falando “parece distanciar-se de nós” e “nos atrai” (Goethe), na maneira sedutora da anima.31
Jung (
) descreve esse estado lunar como um “azulado crepuscular”, uma “aparência
enganadora [...] que magicamente transforma o pequeno no grande e o elevado no baixo [...] em uma unidade
insuspeitada”. O animus da anima pode nublar a precisão analítica com ideias obscuras e
pseudossábias, unificando generalidades. Howard Teich atribui ao próprio Jung uma névoa de
generalização imprecisa com relação ao lugar do azul na obra alquímica. O azul, diz Teich,
significa uma qualidade lunar masculina.32 Os opostos de Jung são uma fórmula muito batida
(Luna = feminino = anima = branco), levando Jung a não notar uma fase crucial: a união dos
semelhantes dentro do componente “masculino” - o masculino solar com o masculino lunar
representados pelo azul. Ignorar o azul negligencia o homem na lua ou a lua no masculino,
que traz sensibilidade, receptividade e compaixão ao enxofre hiperativo do Rei Vermelho. O
rei deve ser completo, regiamente purpúreo de azul, antes de se unir à rainha. Antes da opus
major ou grande conjunção, o masculino ou animus deve ser temperado, deve aprender as cordas
sombrias de uma chave menor.
27
28
29
30
31
32
:
. Mahwah, N.J.: Paulist Press, 1987, p. 189 (337b).
Cirlot.
. Op. cit., p. 51.
Alberti, L.B.
. New Haven: Yale University Press, 1966, p. 50. Para uma mente mais antiga, a qualidade
‘aérea’ do azul podia ser fisicamente demonstrada pelo fato de a tinta azul ser a mais fugitiva das cores, apagandose rapidamente porque não tinha nenhum pigmento nativo, apenas lápis lazúli esmagado grosseiramente trazido
da região de Oxus na Ásia Central. Sobre a história e a tecnologia da tinta azul cf. Badt.
. [s.I.]:
[s.e.], p. 62, 79.
Essas referências podem ser encontradas em Davies, T.L.O.
. Londres: Bell, 1881, p.
68-69.
Para uma fenomenologia completa da
nos escritos de Jung, cf. Hillman, J.
. Putnam, Conn.: Spring Publications, 2007.
Teich, H.
, p. 10 [manuscrito inédito): ‘Embora curiosamente ausente
nos relatos clássicos da alquimia, a cor azul de fato aparece (...] representando um estágio crítico do processo de
transformação que não recebe grande atenção [...] a cor azul significa uma união de aspectos solares e lunares na
psique masculina, pré-requisito da ‘união dos opostos’ final, masculino e feminino’. Cf. a resposta de Jung à
pergunta ‘Por que falta o azul?’ (OC 12, 320).
80
A união dos semelhantes precede a união dos opostos. De acordo com Teich,33 esses
semelhantes são gêmeos, e aparecem como um no unípede azul (
.) e como o
irmão azul na mitologia Navajo. Os gêmeos unidos dividem uma alma e um espírito. São
imaginados como complementos (ambos juntos) em vez de opostos (ou/ou). Estão
emparelhados nas formas que encontramos por todo este capítulo (depressão e libido, celestial e
submundo, paixão e compaixão, fantasia e razão e, particularmente, como anima e animus, ou psique e
logos). A própria psicologia depende dessa complementaridade, essa unio mentalis, se quiser
fazer justiça à anima no animus e ao animus na anima. Então a alma nutre um espírito ativo
e inteligente e o espírito instiga uma alma receptiva e compreensiva.
Ao lembrar-me de que “o animus da anima” é um espírito psíquico tentando iluminar a alma ao
aprofundá-la ou elevá-la às verdades impessoais, estou mais capacitado a viver essas sessões
analíticas lotadas de pensamento. Percebo, graças a Goethe, que essas profundas conversas
azuis de uma “negação estimulante” (pensamentos negativos do animus, julgamentos negativos da anima)
têm intenções que buscam a alma. Um trabalho de distanciamento e de desprendimento
(Goethe) está acontecendo, uma tentativa de reflexão ainda manchada pela nigredo, pois ela
escava muito fundo, força intensamente, desprezando as superfícies imediatas das quais
prata retira sua luz.
Entretanto, as “negativas” que tanto obcecam a reflexão com intuições sombrias e
ruminações estéreis estão alargando o espaço psíquico ao esvaziar a sala (Goethe) de seus
antigos artefatos. Enquanto a alma procura seu caminho para longe da escuridão através de
esforços filosóficos, o branqueamento está acontecendo; o animus está a serviço da anima.
Mesmo a crítica ou o humor negativos, e meu próprio desligamento que sinto durante esses
exercícios, também pertencem a esse caminho azul em direção ao branco. A nigredo não
acaba abruptamente com uma pancada, nem numa choradeira, mas passa
imperceptivelmente à alma-aérea (anima) com um suspiro.
Aqui ajuda-nos lembrar de uma imagem de
contada por Gershom Scholem.34
A chama ascendente é branca, mas abaixo dela, como que seu próprio trono, há uma luz
azul-escura cuja natureza é destrutiva. A chama escuro- azulada atrai as coisas para ela e se
consome, enquanto as chamas brancas continuam brilhando. O azul destrutivo e o branco
pertencem ao mesmo fogo. Como comenta Scholem, em função de sua própria inerência na
nigredo, a chama azul é capaz de consumir a escuridão que ela alimenta.
A transição azul é delicada; as coisas podem dar errado. Tanto a anima quanto o animus (do
grego anemos, corrente de ar, vento) podem nos estourar.35 Quando o elemento ar e a
imaginação longínqua do azul se unem, uma possessão arquetípica pode acontecer.
Os textos nos alertam sobre o vermelho que vem cedo demais, sobre a obra tornando-se
preta, sobre um calor alto demais, sobre a queima das flores, e sobre a vitrificação apática.
Muitos riscos, muitos passos ruinosos. O que pode dar errado com o azul? Cuidado para não
literalizar a imagem ou, como dizem os alquimistas: “Cuidado com o físico no material”. Físico, é
33
34
35
Teich, H. ‘
’. Proceedings of the 7th International Conference on the Study
of Shamanism, set./1990, p. 313-316. São Rafael, Cal., setembro de 1990. Cf. tb., sob o mesmo título, em
Chrysalis: Journal of the Swedenborg Foundation, 6, 1991, p. 157-164.
Scholem. ‘
’. [s.n.t.), p. 41-43.
Onians, R.B.
. Cambridge:
Cambridge University Press, 1951, p. 168-173, sobre a etimologia e o uso antigo de anemos. Cf. tb. Hillman, J.
Anima. Op. cit., p. 91.
81
claro, também significa metafísico - a literalização de ideias aéreas em verdades densas e
dogmáticas. Qualquer azul que se torne puro azul não é o azul verdadeiro.
As conotações que viemos revelando nessa amplificação indicam a importância do azul no
processo alquímico. Se o branco tivesse que ser entendido meramente como um clarear, algo
essencial estaria sendo perdido. Algo deve incorporar à albedo uma ressonância ou uma
fidelidade ao que aconteceu e transmitir o sofrimento com uma outra tonalidade: não como
uma dor opressiva, como decadência e como a memória da depressão, mas como valor. Valor
pertence à fenomenologia da prata (como discutido no capítulo 6 adiante). O
reconhecimento do valor das realidades psíquicas não nasce meramente do alívio da aflição
negra. O azul qualifica o branco com um valor nos modos em que mencionamos e
especialmente por introduzir preocupações morais, intelectuais e divinas, conferindo assim à
mente alvejada uma capacidade para avaliar imagens, uma devoção a elas, e um sentido de
sua verdade, ao invés da mera reflexão sobre seu jogo enquanto fantasias. É o azul que
aprofunda a ideia de reflexão para além da noção simples de espelhamento, reflexo, um
aprofundamento em direção às noções de consideração, ponderação e meditação. A mente
em conjunção com a imaginação afasta-se para longe de si mesma. Esse distanciamento
interno aponta para cima e para baixo, ao mesmo tempo; obscurecido e iluminado, moral,
imoral e amoral.
III Imaginação é realidade36
As cores que introduzem o branco são descritas como Íris e o arco-íris, como várias flores e,
principalmente, como a radiação da cauda do pavão com seus múltiplos olhos.37 Segundo
Paracelso,38 as cores resultam da secura agindo sobre a umidade. Naturalmente acreditamos
que a umidade traz cor, como na mata e nos campos depois da chuva. Mas o pensamento
alquímico não segue o fácil e habitual; o processo alquímico é uma opus contra naturam. Para
Paracelso, portanto, a cor entra mais significativamente quando a profusão libertina da mente
seca e as essências das coisas podem se desnudar. Daí a importância do preto como a
supressão da cor e a ausência de luz. A nigredo chamusca e arruína as falácias simplistas do
naturalismo.
Secar libera a alma do subjetivismo pessoal e, quando a umidade diminui aquela vivacidade
que o sentimento possuía, pode agora passar para a imaginação. O azul é particularmente
importante aqui, pois ele é a cor da imaginação tout court. Baseio essa declaração não apenas
em tudo que vimos explorando: o humor azul que patrocina o delírio, o céu azul que ativa ao
máximo a imaginação mítica, o azul de Maria que é a epítome ocidental da anima e seu
36
37
Avens, R.
. Dallas: Spring Publications, 1979.
‘Tome então da prata, bem purificada de todos os metais [...] depois lacre o óleo da
[...] e coloque-o num
Balneo para putrefazer até que mostre todas as cores, até chegar finalmente no branco cristalino’
(‘
’. Collectanea Chemica. Londres: Stuart & Watkins, 1963, p.
137). · Paracelsus, 1: 83: ‘Quando a dieta do fogo é moderada, a matéria é em muitos graus levada ao pretume.
Depois, quando a secura começa a agir sobre a umidade, várias flores de diferentes cores aparecem
simultaneamente no vidro, da mesma forma que aparecem na cauda do pavão, e de uma maneira que jamais se
viu antes [...]. Depois, essas cores desaparecem, e a matéria largamente começa a se tornar branca [...]’. Cf. Jung,
C.G.
.·
: ‘Peacock’ [‘pavão’], cauda pavonis, etc., passim.
38
82
convite ao imaginar, a rosa azul do romance, um pothos 39 que anseia pelo impossível contra
naturam (e pothos, a flor, era uma espora azul ou um delfínio colocado nos túmulos); também
me refiro ao azul de Wallace Stevens e de Cézanne.
O azul “representa, no trabalho [de Stevens], a imaginação [...] como o romântico ou o imaginativo em
distinção ao realista”.40 E, para Stevens, o azul também era a cor da estabilidade intelectual e da
“razão”. “Tanto o intelecto quanto a imaginação são azuis”,41 da mesma forma que a poesia de Stevens
apresenta tão bem a combinação de imagem e pensamento.42 O aparecimento do azul no
processo de coloração indica aquela porção do espectro em que pensamento e imagem
começam a se fundir, em que as imagens oferecem o meio para os pensamentos enquanto as
reflexões tomam um caminho imaginativo para fora da frustração obscura e confinada da
nigredo em direção ao horizonte mais amplo da mente. O instrumento azul leva a alma de
seu pequeno lamento sonoro ao grande sopro do órgão de Kandinsky, com seu largo, a marcha
espaçosa do filosofar que pode incorporar as feridas de nossa própria história a um sentido
trágico da vida.
Assim como em Stevens, também em Cézanne:43 “Quando ele estava compondo [...] somente a concepção
imaginativa de um visionário ou de um poeta [...] poderia ajudá-lo. Era-lhe impossível começar com algo isolado,
real, visto”.44 Ele baseou seus quadros em “caminhos e contornos sombrios”,45 dos quais “coisas reais”
emergiam como pontos locais. A concepção imaginativa, a sombra visionária, origina e apoia
a coisa real vista na natureza. “A mais profunda cor sombria na pintura de Cézanne, aquela que sustenta
a composição e é mais apropriada para as sombras, é o azul.”46 A “sombra” azul contrasta notadamente
com a noção junguiana de sombra enegrecida pela repressão, pela culpa e pelo moralismo.
“Quando [Cézanne] usou o azul desta forma, ele transcendeu qualquer conotação especial ligada ao modo como
ele era utilizado anteriormente. O azul era agora reconhecido como pertencente a um nível mais profundo da
existência. Expressava a essência das coisas e [...] colocava-as numa posição de distância inatingível”.47
A sombra azul é a base imaginal que permite ao olho enxergar imaginativamente, o evento
como imagem, criando ao mesmo tempo uma distância das coisas reais (Cézanne) do mundo
verde (Stevens), uma distância sentida na nostalgia que o azul traz.
39
Cf. Hillman, J. ‘
’. Senex & Puer, p. 179-192.
Kessler, E.
. New Brunswick, N.J.: Rutgers University Press, 1972, p. 198.
41
Ibid., p. 196: ‘
’, onde Stevens usa mais abertamente o azul como símbolo, é, nas palavras
do próprio poeta, um trabalho de ‘pura imaginação’. A cor é talvez caracterizada como um símbolo para o
pensamento especulativo, ou simplesmente para a mente.
42
‘O poeta, para satisfazer-se plenamente, deve realizar uma poesia que satisfaça tanto a razão quanto a imaginação’ (Stevens,
W.
. Nova York: Vintage Books, 1951, p. 42).
43
‘Cézanne é mencionado na prosa crítica de Stevens bem mais frequentemente do que qualquer outro pintor moderno’ (Baird, J.
. Baltimore: Johns Hopkins University Press. 1968, p.
84). Cf. p. 82-93 a respeito de suas semelhanças; embora Baird enfatize suas preocupações comuns sobre
estrutura, estou sublinhando suas observações comuns sobre o azul e suas implicações para as visões imaginais de
ambos os homens sobre seus trabalhos.
44
Badt. K.
. Op. cit., p. 56.
45
Ibid., capítulo sobre ‘
’. Cf. o soneto de Keats sobre o azul, onde escreve: ‘What strange
powers/Hast thou, as a mere shadow!’
. Nova York: Random House, 1994, p. 240.
46
Ibid., p. 56. O azul de Cézanne provocou comentários tanto de Zola quanto de Rilke, eles próprios homens de
imaginação. Badt.
. Op. cit., p. 56-58.
47
Ibid., p. 82.
40
83
Essa nostalgia, entretanto, não é nem sentimental, nem desejosa – não um azul insípido, azul
bebê, ou azul lavanda. Para Stevens, o azul máximo é real ao máximo, um azul ardente, que se
aproxima do ouro, do vermelho e do fogo, uma aurora, o amanhecer vívido das coisas vivas.
“Quando o céu está assim azul, as coisas cantam em si mesmas”,48 escreve Stevens, que numa carta
explica: “[...] o adjetivo ‘amorista’ significa azul como um mundo metamorfoseado em azul como uma
realidade.”49
O azul, assim, traz uma dupla nostalgia, tanto por aquilo que nunca poderá ser, que foi
perdido e que já foi, a distância como a remoção da alma de seu lar, quanto a nostalgia da
intensidade azul, a visão azulada, o lapis lazuli dos cabelos das deusas e os momentos nos
quais “as coisas cantam em si mesmas”, e a alma está finalmente em casa.
Uma vez que o preto se transforma em azul, a escuridão pode ser penetrada (diferentemente
da nigredo que absorve todos os insights de volta para si mesma, compondo a escuridão com
introspecções literais, impenetráveis).50 A mudança para o azul permite a entrada de ar, de
forma que a nigredo pode meditar sobre si mesma, imaginar-se, reconhecer que este próprio
estado sombrio expressa “a essência das coisas”. Aqui está a consciência imaginal afirmando
sua própria base, capaz de transformar a base do concretismo maciço, como na pintura de
Monet da
:
Um dia, Claude Monet quis que a catedral fosse uma coisa verdadeiramente aérea - aérea em
sua substância, aérea até o coração de sua alvenaria. Então a catedral tomou da névoa azulada
toda a matéria azul que a própria névoa tinha tomado do céu. O quadro de Monet ganha sua
vida desta transferência do azul, esta alquimia do azul.51
Cézanne escreve: “O azul dá às outras cores sua vibração, de forma que devemos sempre colocar uma certa
quantidade de azul num quadro”.52 De seu ponto de vista, o azul seria a cor crucial na paleta do
pavão pois ele transforma as outras cores em possibilidades da imaginação, em
acontecimentos psicológicos, que se tornam vivos em função do azul.
comenta: “a
imaginação do Grande Mistério, onde uma vida essencial e maravilhosa é concebida”, resulta das cores.53 O
48
49
50
51
52
53
‘
’.
. Este azul azulado será amplificado mais adiante,
no cap. 10.
Stevens, H. (org.). Letters of Wallace Stevens. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 1996, p. 783.
Cf. adiante, cap. 10, para uma exposição detalhada da diferença entre uma leitura da
e uma azul do
sintoma apresentado no famoso caso inicial da psicanálise, Anna O.
Bachelard. G.
. Dallas: Dallas Institute Publications, 1988, p. 26.
. Compare com a observação de Kessler sobre o azul de Stevens como ‘aquela faculdade humana que busca
unificar e distinguir as cores na natureza externa’. O Grupo do Cavaleiro Azul, na Alemanha, é um outro exemplo de
uma união entre pensamento e imaginação. ‘[...] o azul era a cor favorita tanto de Kandinsky quanto de Marc |... |’.
‘Pensamos no nome [
] sentados na mesa de um café [...]. Ambos gostávamos do azul e de coisas azuis, Marc de
cavalos azuis, e eu de cavaleiros azuis’ (Relato do próprio Kandinsky, 1930. In: Grohmann.
. [s.n.t.], p.
78). A introversão mística na representação da ‘natureza’, a falta de gosto para o ‘verde’, e a reflexão metafísica
que eles trouxeram para o imaginar, tudo isto está de acordo com a tradição ‘azul’. Conta-se que Duke Ellington
‘detestava o verde’. Kandinsky coloca o verde naquilo que é ‘burguês - autossatisfeito, imóvel, estreito [...]. Na música, o
verde absoluto é representado pelas notas plácidas e medianas de um violino’ (Kandinsky.
. Op. cit., p. 38-39). Para uma perspectiva totalmente diferente, alçando o verde a um
valor espiritual alto, cf. Corbin, H. ‘
’.
. Boulder, Col.: Shambala, 1978.
Na mesma passagem de Böhme (
, citado por Jung,
) encontramos que primeiro
vem um ‘azul-brilhante’, depois várias outras analogias coloridas e então ‘é como o azul no verde, ainda que cada
qual retenha seu azulado e sua radiância’. A tensão azul/verde (discutida mais adiante e na nota 58) também é
observada por Böhme, que os pode ver juntos, ainda que retenham suas diferenças.
84
florescimento total da imaginação mostra-se como a amplitude qualitativa das cores e, assim,
o imaginar é um processo das cores, senão de cores literais, então como a diferenciação
qualitativa de intensidades e matizes que é essencial à unio mentalis.
A inclinação de Jung para a unidade e a síntese blinda-o de uma implicação essencial deste
momento da opus e dos textos que está explicando. Ele escreve (
): “A cauda pavonis
anuncia o fim da obra, exatamente como Íris, seu sinônimo, é a mensageira de Deus. O delicioso jogo das cores
da roda do pavão anuncia a síntese iminente de todas as propriedades e elementos que estão unidos naquele
‘redondo’ da pedra filosofal.”
Em vez de uma mensageira de Deus (uma afirmação que Jung toma irrefletidamente de Khunrath
(
), Íris é uma mensageira de muitos deuses e, portanto, não indica nem a integração
de todas as cores, como escreve Jung, nem “a chegada de Deus” (
). De fato, os
parágrafos seguintes (
.) referem-se a um autor (Penotus) que “atribui ao coniungium
(casamento) os ‘dii mortui’ (deuses mortos), supostamente porque eles necessitam da
ressurreição”. Essas passagens também se referem às fases governadas por Marte e Vênus, e por
Juno cujo pássaro é o pavão.
Em vez de uma insistência sobre a unidade e uma amplificação com os significados cristãos
da ressurreição (
), o texto indica a ressurreição dos deuses mortos no que está
culturalmente reprimido, e que aparecem numa apresentação diferenciada de múltiplas cores
tanto no arco-íris quanto no leque de muitos olhos do pavão. A mensagem da Íris é simples:
sua substância vaporosa a proclama, uma substância que é apenas e totalmente aparência.
Mire com os olhos do coração54 para seu corpo brilhante e verás os deuses no poder e na
beleza das cores. Sua infinitude realiza-se na variedade infinita de sombras e tons que
compõem o mundo.
Quando as cores brilham na cauda do pavão também brilham os olhos através dos quais elas
são percebidas. A visão imaginativa precede a própria brancura, pois de outra forma a terra
branca não poderia ser percebida como a transfiguração da natureza pela imaginação. Pois
essa nova percepção, a percepção também das cores, passa por uma transubstanciação que
desemboca num sentido místico ou pictórico das cores enquanto substâncias. São as faces da
luz que revelam a qualidade básica da natureza: suas infinitas e sutis intensidades múltiplas.
As cores deixam de ser fenômenos da luz para se tornarem fenômenos essenciais em si
mesmas.55 A luz, como uma abstração newtoniana generalizada, transforma-se na
apresentação das cores e secundária a elas, de forma que a terra alba não seja um branco
puro no sentido literal, mas um campo de flores (multi flores),56 uma cauda de pavão, um manto
de várias cores.
54
55
56
Cf. Hillman, J.
. Putnam, Conn.: Spring Publications, 2004, p. 3-7.
Novamente, o motto deste livro, de Zósimo: [...] com base neste simples sistema de diversas cores está a variegada e
infinitamente diversificada investigação de todas as coisas.
As muitas flores aparecem na terra branca de Corbin. Ele fala dessa ‘botânica sagrada’ que dá à consciência
alvejada realidade sensual e conteúdo específico (ao invés de um mero campo nevado ou uma luz branca). Em
nosso contexto ocidental de
, as flores são uma aparição como Flora, o florescer da imaginação como
formas vivas enraizadas. Diz Corbin: ‘As flores fazem o papel da prima materia para a meditação alquímica. Isto significa
reconstituir mentalmente o Paraíso, fazer companhia a seres celestiais’ (
. Princeton: Princeton University Press, 1977, p. 3132). Von Franz cita uma variedade de passagens esplêndidas sobre as muitas flores (
. Op.cit., p.
391-395, referindo-se a Jung), que ela interpreta como ‘componentes de nossa totalidade psíquica, o Self’, e
‘indicam o brotar do relacionamento psíquico’ como ‘relacionamentos humanos’ (p. 395). A redução das flores
85
A transubstanciação anunciada pelo pavão alquímico reverte a história da filosofia. (As visões
de cor de Newton e Locke, de Berkeley e Hume, pertencem ao subjetivismo concentrado da
nigredo e sua negação e rejeição dos fenômenos naturais.) A cor pode agora tornar-se uma
qualidade primária novamente, a própria coisa como phainoumenon à mostra, o coração na
matéria, anterior a abstrações tais como magnitude, número, figura e movimento. Quando a
cor existe, o mundo existe como o enxergamos - não apenas verde como a sensopercepção
naturalista acredita, mas verde por causa de suas sombras azuis.57 Mesmo nas simplicidades
da roda colorida do jardim da infância, o verde é secundário ao azul, que é primário. O
mundo natural depende da primazia do imaginal que confere implicações profundas e
multiniveladas aos dados sensoriais. Por causa do azul, o mundo verde produz metáforas,
analogias, instruções inteligíveis, fornecendo reservatórios de beleza e insight. O mundo é
como o vemos em nossos sonhos e poemas, visões e pinturas, um mundo que é
verdadeiramente um cosmo, adornado cosmeticamente, um evento estético para os sentidos,
pois eles se tornaram instrumentos do imaginar.
O multi flores e os diversos olhos na cauda do pavão sugerem que a visão colorida é uma visão
múltipla. Devemos ser capazes de enxergar policromaticamente, polimorficamente, politemporalmente,
politeisticamente antes que a terra alba apareça. O movimento de um universo monocêntrico para
um cosmo de perspectivas complexas começa com o azul uma vez que ele “dá às outras
cores”, como diz Cézanne, “sua vibração”. Então as cores alquímicas desaparecem e são
substituídas por um lustro branco e brilhante. Aqui, podemos ficar tão encantados pelo novo
brilho da mente a ponto de tomarmos o branco literalmente, como se o branco significasse
apenas e literalmente uma coisa - a brancura - portanto, esquecendo-nos da multiplicidade
que tornou possível a brancura.58 A multiplicidade deve já ter sido construída na mente como
57
58
ao personalístico ‘nosso’ ignora o próprio material que ela reuniu, em que ela afirma: ‘Na alquimia grega flores e
brotos são imagens para espíritos e almas’ (p. 392). É com os ‘seres celestiais’ - as figuras imaginais - que ocorre
agora o relacionamento psíquico. Somos testemunhas de seu florescimento e somos seus jardineiros.
A persistente oposição entre verde e azul, tida como um princípio pelo grupo de pintores do Cavaleiro Azul, e
superenfatizada como uma oposição entre a natureza e a imaginação em Stevens (Kessler.
.
Op. cit., p. 185 - que conta 163 menções a essas duas cores na obra de Stevens), precisa de novas reflexões. Azul e
Verde eram os nomes de facções rivais no circo romano, e a rivalidade das cores continuou por pelo menos mais
mil anos nos choques reais entre partidos durante as disputas políticas e ideológicas no Império Bizantino
(Cameron, A.
. Oxford: Clarendon Press, 1976). Os próprios
estudiosos se dividem a respeito; alguns (por exemplo, Gregório, Magno) atribuem o azul as altas classes que
ocupavam posições mais ortodoxas e imperiais, e outros (por exemplo, Villari) pensam exatamente o contrário. A
diferença das opiniões acadêmicas confirma o poder de divisão das cores estudadas. Outra fantasia persistente
também atesta a problemática do azul e do verde. É dito que muitas culturas antigas e ‘primitivas’ e suas
linguagens não conheciam o azul como nós o conhecemos, não podiam nem mesmo ‘ver’ o azul como o fazemos
em função da evolução cultural e da importância crescente da discriminação cortical. Um mundo apenas verde,
separado do azul, sugere uma fantasia arquetípica (ocidental?) de paraíso e do selvagem feliz. Um cosmo sem
nostalgia, depressão ou perversão, sem afastamento enganoso ou distanciamento misterioso, tudo dado, nada
implícito. A confusão linguística entre azul e verde afirma uma fusão de natureza e imaginação, como no japonês
onde o termo aoi pode significar tanto azul quanto verde e, em outra língua imagística, o irlandês, onde gorm e
glas podiam significar tanto azul quanto verde (Toinbin, C. ‘Prefácio’. In Lovely Blueness. Dublin: The Chester
Beatty Library, 2001). Cf. tb. Theroux.
. Op. cit., p. 56-60.
Cf.
para um exemplo do esquecimento da multiplicidade. Jung diz: ‘O omnes colores (todas as cores)
vem acentuado muitas vezes no texto, e com isso se quer indicar a totalidade. Todas as cores se reúnem então
para, por exemplo, formar o branco (
), que, para muitos alquimistas, era o clímax do trabalho. Em todo
caso, a prima pars operis (primeira parte da obra) está concluída com isso, ao mesmo tempo que a multiplicidade
separada, que indica a confusão do caos, foi conduzida à unidade do branqueamento, e surgiu ex omnibus unum
86
as vibrações, os sombreamentos e as sutilezas de Cézanne que não somente estão lá nas coisas,
mas que estão lá nos olhos da mente através dos quais as coisas são vistas como imagens. É
como se entrássemos no mundo sem preconceitos, fascinados pelos fenômenos em que tudo
é dado e nada é garantido.
Experimentar dessa maneira é recuperar a inocência - daí o lustro branco e brilhante. Ruskin o
chamou de “a inocência do olho [...] um tipo de percepção infantil dessas manchas rasas de
cor, meramente enquanto tais, sem a consciência do que elas significam”.59 A atenção muda
do significado da percepção para a própria percepção. Notamos e somos afetados pelas
qualidades sensoriais - O que está aí? De que forma está aí? O que está fazendo aí? E o que
está fazendo para mim? - ao invés de Como foi parar aí? Por quê? Para que serve?
Estamos chegando à essência da unio mentalis: a transformação da imaginação, e uma
mudança radical na própria ideia de imaginação. Depois do desespero do azul e do desejo do
azul, a virtuosidade inventiva dessa força saturou tanto nossos corações e nossas visões com
um sentido de vida que vem do céu ou do inferno, a imaginação tendo se tornado um poder
tão pervasivo, que ela não pode mais ser confinada a uma função mental ou concebida como
uma capacidade psicológica entre outras. De fato, a imaginação não pode mais pertencer à
psicologia humana, mas como a graça deve-se reconhecer nela uma atribuição arquetípica,
algo que desce às nossas vidas de um reino imaginal. O dom da imaginação em qualquer
pessoa humana é primeiramente um dom do azul além, onde as próprias cores se originam,
tanto quanto o arco-íris descende de algum lugar imaginado, e não podemos achar onde ele
toca a terra.
As cores são apresentações primárias de uma diferenciação arquetípica, cada cor uma
celebração da sensualidade do cosmo, cada sombra e tom tingindo a psique com um
conjunto de humores ligando-a ao mundo com afinidades específicas. Estas se tornam nosso
gosto, nossas aversões e delícias.
Em reconhecimento ao poder das cores, aqueles dedicados à transcendência que favorecem
abstrações sem cor, pureza matemática, uma via negativa espiritual é uma metafísica do
vazio, atacam as cores concebendo-as como meras aparências, apenas derivadas do efeito da
luz no sistema ótico. Marcham para o topo das montanhas desviando os olhos.60 O caminho
espiritual afasta-se da alquimia que favorece o palpável, o oleoso e o vívido. A alquimia
mergulha nas questões coloridas te mundo; seus devotos são discípulos da cor.
Como uma graça arquetípica concedida pelo cosmo, as cores doam sua força imaginativa à
nossa criatividade. Do contrário, como dar conta das obras-primas azuis nas artes? Gershwin,
por exemplo, ou Miles Davis? Seria apenas uma convenção chamar sua música de blues? Ou o
poder arquetípico do azul afirma sua realidade imaginal por meio destas obras-primas? O
azul tornou a música azul [blue] como faz nossas almas entristecerem. O presente específico
59
60
(a partir de muitos o um). De um ponto de vista moral, isto significa simultaneamente a multiplicidade psíquica da
desunião original, o caos interior das partes da alma que colidem entre si, os rebanhos de animais de Orígenes
que se tornaram o vir unus (o homem uno)’. Essa interpretação identifica totalidade com unidade, ao passo que
totalidade também pode significar tudo enquanto tudo (ou seja, cada um e todos). Além disso, a interpretação
moral de Jung não apenas enxerga os vários como ‘desunidade’ e chaos, mas coloca o homem acima do animal. Ha
em Jung, entretanto, citações de outras passagens que contradizem sua própria perspectiva, por exemplo,
Khunrath,
): ‘na hora da coniunctio aparecerao a negrura e a cabeça do corvo e todas as cores do mundo.
Apud Gombrich, E.H.
. Princeton: Princeton University Press, 1961, p. 296.
Cf. ‘
’. In: Moore, T. (org.)
. Nova York: HarperCollins,
1989, p. 114-121.
87
do azul é para nossa mente, de forma que sua visão seja um insight [visão interior], sua visão
seja visionária, e a metáfora sua terra firme. A aparição do azul no mundo traz um
sombreamento primordial a toda existência, começando o mundo de novo para e a partir da
imaginação, como no próprio início do mundo quando a face do profundo criou o céu e os
oceanos à sua semelhança.
IV Unio mentalis
Esta pesquisa, essas imagens, e as figuras que convocamos - Cézanne, Stevens, Monet, Rimbaud,
Kandinsky, Kelly, Wakoski, Bachelard, Jung, Picasso, Marc - nos revelam algo sobre a natureza da unio
mentalis. Jung, ampliando
, considera a unio mentalis como a união do julgamento
racional com a fantasia estética (logos e psyche) (
), libertando a alma do corpo
(
), anterior a uma reunião com o corpo (physis, física, mundo,
)
(
.). Essa unio mentalis - a primeira meta da opus - como união de logos e psyche, não é
nada mais que a própria psicologia, uma psicologia que tem fé (
) em si mesma, e
que indica e ativa a albedo que se segue ao azul. Essa psicologia, que nos dá um “fundamento
interior” (
) e uma “segurança interior” (
), Jung também descreve como
esse in anima (
) - estar na alma.
Sim, o azul pode ativar. Apesar do distanciamento reflexivo frio do azul em Goethe, a unio
mentalis é espirituosa, animada; animus na anima. Um vento sopra através dele. Uma
) relata que, na medida em que o material cresce e floresce com muitas
cores, o verde de Vênus torna-se como um jacinto, “ou seja, azul” (
). Essa é uma fase
de Marte (
). Um Marte azul? Essa imagem paradoxal sugere tanto um Marte
mais pensativo quanto uma qualidade marcial no azul, uma atividade corada da própria
mente. Pois, sob a égide de Marte, o arco-íris e a cauda do pavão resplandecem.
A afirmação de Dorneus, “a cor azul depois do amarelo” [itálicos meus], pareceria reverter a
progressão padrão das cores na qual o azul precede o amarelo, assim como o amarelo
precede o vermelho. A unio mentalis, entretanto, deve ser reafirmada antes do avermelhamento,
do contrário a passagem ao vermelho poderia omitir a obscuridade, o mistério e os valores
que o azul trouxe para a albedo. O amarelo precisa ser contaminado psiquicamente pelo azul
que está escondido dentro dele e que, como explica Dorneus, “conduzirá até à total negrura ou
putrefação após um tempo muito longo” (
). Resumindo, progressão simples através
de estágios definidos não é psicologia alquímica; uma mente psicológica sofreu a unio mentalis,
quando sombras negras perseguem cada fase e cada tonalidade, principalmente por meio do
azul.
Uma mente casualmente reunida despedaça-se facilmente, de forma que desprezar os azuis
como nostálgicos demais, tristes demais, complicados e sutis demais permite que a mente se
divida contra si mesma. Sem a ponte azul da metáfora, caímos num pensamento preto e
branco: ou/ou, fato/fantasia, bom/mau... Crucificados pelos opostos. Esticados pela lógica da
contradição. Assim, a unio mentalis não é nem uma progressão do preto para o branco, nem
uma síntese de preto e branco. Ao contrário, é uma descida da mente daquela cruz, uma
possibilidade sempre presente de poeiesis de uma mente refazendo-se a partir do tecido azul
que está por baixo e pode solapar as oposições.
88
A natureza da unio mentalis alcançada pode ser depreendida dos relatos daqueles que
convocamos. Eles sugerem que a unio mentalis é a interpenetração de ideia e humor, de mundo
percebido e mundo imaginal,61 um estado mental que não está mais preocupado com as
diferenças precisas entre coisas e ideias, entre tempo e atemporalidade, nostalgia e profecia,
aparência e realidade, ou entre o intelecto que constrói teorias e a alma que inventa
fantasias. Colorimos essa unio mentalis de “azul”, pois o azul que temos encontrado transfigura
as aparências em realidades imaginais e imagina o próprio pensamento de uma forma nova.
O azul é preparatório e incorporado ao branco, indicando que o branco se torna terra, ou
seja, fixo e real. Quando o olho se torna azul, ou seja, capaz de enxergar através das ideias e
enxergá-las como formas imaginativas, então as imagens se tornam a base da realidade.
A “tintura” azul resplandecente (testemunhada separadamente no capítulo 10 adiante) não
transcende totalmente o azul do humor e da loucura porque aquela ocorrência azulada é
preparada, de acordo com Dorneus (
), por uma experiência do mundo das trevas,
também chamada “vinho” (
).
O vinho tem uma relação vernacular com embriaguez azul (blue drunkenness), blue noses e blue
laws de proibição62 e, na outra ponta do espectro, o vinho é o portador da embriaguez divina
nos estados místicos de Rumi e Kabir. Aqui, devemos imediatamente lembrar Heráclito dizendo
que Dioniso e Hades são um só, de forma que a unio mentalis traz consigo obscuridade (Hades),
desarranja a mente habitual e sugere um mistério dionisíaco.
Uma lente azul permite-nos enxergar dentro do mais desconcertante dos cultos antigos e da
experiência dionisíaca. O vinho oferece a verdade e a teatralidade, tanto pesar quanto alegria,
ou, em termos diagnósticos horríveis, “depressão e libido”, que Stephen Diggs entende como
sendo o segredo do jazz ao declarar Dioniso o Deus da “
”.63 Albert Murray
explica:
A função fundamental do músico de blues (também chamado de músico de jazz) [...] não é
apenas de mandar a tristeza [blues] embora [...] mas também de evocar um ambiente de folia
dionisíaca no processo.64 O deus na doença cura a doença; semelhante cura semelhante; livrese da tristeza por meio da tristeza.
61
62
63
64
Mundo percebido e mundo imaginal aparecem juntos no fenômeno das penas do pássaro azul. Uma coloração
azul vívida não é um pigmento, não é uma tintura, mas uma reflexão da luz que salta do opaco esmaecido das
penas físicas pretas. O azul que vemos não está ali materialmente, é puro reflexo, tanto quanto o azul do céu.
Enquanto penas vermelhas e amarelas (e, parcialmente, também penas verdes) recebem sua coloração da
pigmentação, uma pena azul é um fenômeno da estrutura e da luz. Cf. Portmann, A. ‘
’.
. Basileia: F. Reinhardt, 1942, p. 102-110.
Blue nose, em inglês, designa coloquialmente uma pessoa puritana; blue laws, também em inglês, refere-se a leis
puritanas muito severas outrora em vigor na Nova Inglaterra, Estados Unidos [N.T.].
Diccs, S.
. Spring: a Journal of Archetype and Culture, 61, 1977), p. 40s. Dois poemas eróticos
mais longos são caracterizados tanto pela depressão quanto pela libido:
, de Robert Kelly (
.
Boston: David. R. Godine, 1979, p. 181) e
, de Diane Wakoski (
. Vol. 9. Nova
York: Doubleday, 1968, p. 9). You paint my body blue [Você pinta meu corpo de azul], diz Wakoski, I cannot shake you
out of the sheets [Não consigo te arrancar dos lençóis]. Perda, rejeição, alma machucada - e desejo sério. Kelly encontra
uma solução no último verso de seu poema repleto de lembranças sexuais, dizendo: Deep inside the image there is
time for everything (Há tempo para tudo bem dentro da imagem]. A imaginação é capaz de conter ambas, depressão e
libido, em virtude do distanciamento azul.
Murray, A.
. Nova York: Da Capo Press, 2000, p. 17.
89
Esses autores mantêm Hades e o mundo das trevas por perto e junto. Por causa do blues estar
baseado no mais dissonante dos intervalos (o trítono), já foi conhecido como o
e, em algum momento, foi até ilegal. Além disso, “o que é mais idiossincrático no blues é o
achatamento [...] perdendo a altura do som”, “como que dizendo, volte à terra”.65
Com relação à consciência que esses mistérios trazem, sabemos o que nos disseram Dodds,
Otto e Kerényi - a natureza está viva. A presença de Deus permeia a existência comunitária
como uma grave sombra que concede uma alegre vibração a todas as coisas ou, como Goethe
descreveu o azul, “um tipo de contradição entre excitação e repouso”.66 A unio mentalis implica
uma embriaguez divina67 que inclui o que a mente nigredo normal considera patológico.
Não posso chamar diretamente Dioniso de “azul”, apesar do fato de seu cabelo e seus olhos, no
a ele dedicado, serem kyaneos. Ele vê com olhos azuis e, para enxergá-lo, nossos
olhos têm que ter a mesma cor. Posso, contudo, conectar esse Senhor das almas e do vinho
com a exposição de Kessler acima a respeito do azul de Cézanne: aquela “profundidade de
significado”, aquele “nível mais profundo da existência” que tanto segura o mundo como
comunidade “coexistindo” e ainda assim numa “posição de distância inatingível”.
“Os tibetanos dizem que as deusas têm cabelos de lápis lazuli”.68 Quando os mitos dizem que
os deuses têm cabelos e corpos azuis, eles têm! Os deuses vivem num lugar azul da metáfora,
e não são descritos numa linguagem naturalista, mas com uma “distorção” teatral. “A
divindade nos escolta gentilmente, a princípio com azul”, escreve Hölderlin.69 A fala mítica deve
estar cheia de hipérbole; os deuses vivem nas alturas e nas profundezas. Para representá-los
corretamente necessitamos da paleta expressionista, não da impressionista. Essa mudança
para a percepção mítica ocorre precisamente com a unio mentalis. Agora “imaginamos” a
natureza da realidade, e o azul-escuro torna-se a cor certa para expressar os cabelos de
Dioniso, pois é o matiz natural e razoável para o cabelo deste deus nesse hino, o mais realista
dos retratos, uma verdade poética (como defenderia Vico).
Uma dessas representações que nutrem a imaginação alquímica é o unípede, explicado por
Jung (
), com pranchas). Essa figura de uma só perna tem um pé azul; noutra
representação, roupas íntimas azuis; uma terceira mostra o pé azul com uma ponta preta.
Essa figura singular mostra nitidamente o poder da imaginação louca de ultrapassar a falácia
naturalista de um ponto de vista bípede e pedestre. O unípede também insiste que seu azul
ainda retém sua mancha preta.
E essa mancha? Um resquício da nigredo, da qual neste contexto comenta Jung: “os conteúdos
psíquicos se separam do aprisionamento no corpo” (
). Não do corpo, mas de sua ligação com
o corpo; uma libertação da literalização do corpo, dos eventos corporais como apenas corpo.
Não um estado sem corpo, mas um sentido diferente de corpo junto com a mente,
65
Diggs. ‘
’. |s.n.t.], p. 36.
Compare com as duas naturezas contrastantes do elemento Terra em Bachelard: atividade energética e repouso
(
. Dallas: The Dallas Institute Publications, 2002.
. Dallas: The
Dallas Institute Publications. [s.n.t.)). [Em português: A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da
intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991 - Trad. de Paulo Neves.. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a
imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes, 1990 - Trad. de Paulo Neves].
67
Sobre a embriaguez divina, cf. Miller, D.L. Christs. Nova York: The Seabury Press, 1981.
68
‘
’. No Nature: New and Selected Poems. Nova York: Pantheon Books, 1992, p. 78.
69
‘
’ (‘
’. In: HÖLDERLIN, F.
,
Dokumente. Vol. 12. Munique: Luchterhand Literaturverlag, 2004, p. 44 [SATTLER, D.E. (org.)].
66
90
preenchido de mente (e mente com um pensamento incorporado). O pé azul único sobre o
qual o corpo se apoia permite-o ser carne e mistério ao mesmo tempo.
Essa carne vestida de azul nos leva de volta ao tema anterior do cão azul. Há muito tempo,
um “gnóstico” herético, Justino, imaginou que o Deus criador não era ninguém mais que
Príapo,70 uma ideia rigorosamente vilipendiada por um dos Padres da Igreja Antiga, Hipólito de
Roma, como contrária aos Santos Decretos, portanto herética, portanto pagã.71 Mas a
discussão de Scholem do arco-íris como um sinal de Jeová da aliança divina entre o céu e a
terra diz: “A palavra hebraica para arco, keshet, denota, na literatura hebraica, não apenas arcoíris, mas, na literatura rabínica, também pênis”.72 Além disso, o termo brith, ou aliança, que o
arco-íris significa, também se aplica à circuncisão. As cores do arco-íris encontram sua
localização concentrada na sefirah Yesod, o falo místico, chamada de base ou fundação
naquelas imagens do corpo humano que representam a árvore cósmica da Kabbalah que se
estende do céu até a terra. Os genitais transmitem a força do que está acima para o que está
abaixo, e este abaixo - a última sefirah, Shekhina, a alma do mundo - é puro azul.73
Ao traduzir essas referências esotéricas nas obsessões perversas do cão azul, descobrimos
isto: Hades Invisível aparece no mundo como Dioniso.74 Há um impulso divino (isto é, invisível,
insondável) que busca entrar na vida comum.
Quer conhecer a alma no sentido bíblico. Conhecimento carnal, conhecimento íntimo,
conhecimento das intimidades. (Daí as inúmeras imagens de copulação que aparecem por
toda a alquimia.) A alma anseia por essa copulação, e canta esse anseio no blues, azulando
sua própria carne, puxando o divino para baixo, para o corpo comum. (Daí o humor
libidinoso do blues.)
Aquele quartinho escuro nas paradas de caminhoneiros, o denso fascínio75 de imagens
tremeluzentes, é também um mundo de alma, um receptáculo da penetração divina. Há
sementes divinas em todas as coisas, pedaços do corpo despedaçado de Dioniso vibrando em
toda a criação.76 Portanto, é claro que o pornô é espalhafatoso, e o jazz é para baixo e sujo,
terreno como um cachorro, não importa a altura em que voe o pássaro nas notas do
trumpete ou nas linhas da cocaína. A carne vestida de azul não significa embrulhar impulsos
em constrições protetoras puritanas de autocontrole voluntarioso. Mais liberalmente, aquele
unípede significa manter-se em pé como um eixo estático no frontão do realismo imaginal,
uma compreensão dada com o cão azul quando a fantasia é extremamente concreta e o
mundano extremamente fantástico. Isto também é uma unio mentalis.
70
71
72
73
74
75
76
Grant, R.M.
. Nova York: Harper and Row, 1966, p. 19.
Hipólito. ‘
’. In: Roberts, A.; Donaldson, J. & Cleveland Coxe, A. (orgs.).
. Vol.
5. Búfalo, N.Y.: Christian Literature Publishing, 1886.
Scholem. ‘
’. [s.n.t.], p. 37.
Ibid. p. 40.
Sobre a identidade
/Dioniso, cf. Hillman, J.
. Nova York: Harper & Row, 1979, p.
44, 171, 177, e passim. A fonte e Heraclito, D. 15: ‘Mas Hades e Dioniso é o mesmo, a quem deliram e festejam
nas Leneias’.
Glare, P.G.W. Oxford Latin Dictionary. Oxford: Clarendon Press, 1982: fascinum, o pênis; fascinosus, lúbrico;
fascinatio, rogar uma maldição, enfeitiçar.
A noção mitológica de que Dioniso desmembrado como força vital está presente promiscuamente em todas as
coisas e discutida em Hillman, J. ‘
’. Mythic Figures, 1, p. 15-30.
91
O alquimista trabalha com uma máxima prevalente, “solve et coagula” (dissolver e coagular). As
literalizações azuis devem ser dissolvidas a fim de que o poder arquetípico não se coagule
numa visão metafísica monocular.77 Não é o corpo ou as pedras que precisam se tornar azuis,
mas a mente. Se a mente não continua sua prática laboriosa e astuta de solve - dissolvendo o
literal em sua fantasia - ela pode ser possuída por um aspecto singular da imaginação
arquetípica azul, por exemplo: o manifesto e os atos demonstrativos de Yves Klein; o
levantamento persistente de William Gass da linguagem erótica azul, como se guiado pelo cão
azul; o psicologizar estreito de Howard Teich do azul num componente da personalidade
masculina.
De todos aqueles que permitiram ao azul inundar seu trabalho, talvez somente Stevens e
Cézanne mantiveram a complexidade da cor. Eles continuaram até o fim dissolvendo e
coagulando e dissolvendo de novo as múltiplas tonalidades do azul, nunca deixando a unio
mentalis fixar-se numa mente ou humor simples.
Uma unio mentalis é uma mente que pode manter quietamente tudo aquilo que o azul evoca,
percebendo que a mente moveu-se para uma sensibilidade poética, dissolveu sua obsessão
conceitual em linguagem. “Resumindo, a cor azul é em parte um artefato puramente
linguístico”.78
Os primeiros termos para “azul” em grego e latim foram “tomados da poesia pela prosa”,79 da
recitação oral, do canto da garganta, como o blues hoje em dia carrega a tradição poética
expressa a imaginação do pensamento do coração. Se a poesia e a fonte do azul mais
profundo, então tivemos que mencionar figuras como Stevens e Cézanne para melhor
compreendermos o processo de coloração da alma e a psicologia da unio mentalis. Termos nos
voltado a um poeta e um pintor também nos conta quem são os alquimistas de nosso tempo.
Os poetas e os pintores, e as figuras em nós que são poetas e pintores, são os que estão
lutando pela continuidade do problema: a transubstanciação da perspectiva material em alma através
da ars. Artífice agora como artesão. O laboratório alquímico está em seu trabalho com as
palavras80 e as tintas,81 e a psicologia continua sua tradição de aprender com a alquimia ao
aprender com eles. Eles ainda nos contam algo mais sobre a terra branca: se a base imaginal
for percebida primeiro por um método artístico, então a própria natureza dessa terra deve
ser estética - o caminho é a meta. Chegamos à terra branca quando nossa maneira de fazer
psicologia é estética. Uma psicologia estética, uma psicologia cuja musa é a anima, já está se
movimentando, hesitantemente, mas certamente se movendo, naquele lugar branco.
77
78
79
80
81
A complexidade exasperante do azul - que ele recede, deprime e exalta-com frequência força sobre seus devotos
uma redução monocromática que idealiza um componente específico, muito famoso, a ‘revolução azul’ de Yves
Klein.
Theroux.
. [s.n.t.], p. 59.
Rowe, C. ‘
’. Color Symbolism: Six Excerpts from Eranos.
Dallas: Spring Publications, 1977, p. 351.
Cf. o ensaio que examina Freud como alquimista de Randolph Severson, ‘
’. Dragonflies, vol.
1, n. 2, 1979), p. 91-121. Kucler, P.
. Einseideln: Daimon Verlag,
2002, que termina com a frase: ‘[A matéria] é transformada em imaginação’.
John Constable, o pintor de paisagens inglês, citava esta frase como seu motto (ou um motto alquímico): ‘Todo o
objetivo e a dificuldade da arte (na verdade, de todas as belas-artes) é unir imaginação com natureza’ (Gombrich.
. [s.n.t.], p. 386).
92
A prata e a
6
terra branca
Prefacio
Permitam-me apresentar o mais clara e racionalmente possível aquilo com que estarei
trabalhando neste estranho capítulo. Ele tem origem em duas grandes ideias. A primeira vem
de Hegel que disse que, na insanidade, a alma almeja restaurar sua perfeita harmonia interna.
Para Hegel, a insanidade é um estágio essencial no desenvolvimento da alma, e um estágio que
a alma intencionalmente desempenha.1 A insanidade e essencial ao cultivo da alma (soulmaking).
A segunda grande ideia vem da alquimia. No cultivo de alma alquímico o ouro é
necessariamente precedido pela prata. Isto significa que o ouro vem da prata, o vermelho
vem do branco, o sol vem da lua, uma consciência mais clara vem da loucura. O cultivo de
alma alquímico propõe que a ideia final do sol em conjunção com a lua não significa nada
mais e nada menos do que uma condição do ser na qual o brilho e o despertar solar e a
loucura lunar estão magnificamente unificados. O mysterium conjunctionis é uma loucura
iluminada.
Prossigamos então no sentido de colocarmos as proposições hegeliana e alquímica juntas mas não tão depressa, principalmente não antes de examinarmos algo do que está implícito
nessas palavras alquímicas: prata, Luna, branqueamento. Isto, o aspecto albedo da alquimia, tem
sido notavelmente negligenciado em nossa febre solar e nossa corrida do ouro. Qualquer
descrição mais comum da alquimia dirá que ela é a arte da fabricação do ouro (quer seja
físico ou “sófico”), e que os alquimistas têm como meta transformar, através de devoção,
magias e técnicas, os metais básicos em ouro nobre. E embora todos esses mesmos relatos
concordem que a prata é a penúltima grande fase e a própria parceira do ouro, há
extraordinariamente muito pouco escrito sobre ela. (Os termos “prata”, “albedo”, “brancura” e
“Luna” (lua) têm significação semelhante.)
Essa lacuna pode ser atribuída a uma tendência masculina presente em toda a alquimia e à
repressão daquilo que é tão simples e indiferenciadamente (portanto monoteisticamente)
chamado de “o feminino”, uma vez que no simbolismo genérico a prata carrega um sinal
feminino (embora nem sempre).2 Eu não aceito essa explicação feminista para a lacuna com
relação à prata; acho que tem mais a ver com a natureza arquetípica da prata, da Luna e da
brancura. Acredito ainda mais que nossa investigação dirá não apenas mais sobre a rejeição
1
2
Hegel.
125ss.
Figulus, p. 285: ‘A prata é masculina’.
. Oxford: Oxford University Press, 1971, p.
93
geral da prata, mas também algo mais fundamental sobre a rejeição do “feminino” daí
originária.
Certamente não preciso aqui pôr à prova o valor da alquimia para a psicologia, o que já foi
muito bem provado por Jung3 na primeira metade do século XX, e por Von Franz e Edinger desde
então. Mas talvez eu realmente tenha que enfatizar a relevância especial da alquimia para a
psicopatologia.4 Pois, afinal, não é a alquimia um prolongado testemunho de homens loucos
trabalhando em si mesmos?
A prata alquímica: sua natureza e propriedades psicológicas
A prata é o metal da Lua, a semente da Lua na Terra.5 Outros metais são o cobre, como a
semente de Vênus, e o chumbo, como a semente de Saturno. Os metais eram imaginados como
vapores úmidos coagulados, como um gás condensado, cujo espírito podia ser liberado pelas
operações adequadas. Porque os metais eram inerentemente úmidos, ou seja, incorporando
fleuma, eles tinham uma tendência fleumática para serem passivos ou inertes, necessitando
de fogo. A resistência às mudanças é dada com as sementes de nossa natureza, e somente um
calor intenso pode mover a natureza humana de sua inércia inata.
Ao considerar os metais como sementes, a alquimia prendeu-se menos à distinção entre os
reinos vegetal e mineral (orgânico e inorgânico). Sementes são forças vivas; um metal como a
prata é uma vis naturalis com uma intencionalidade codificada, uma capacidade de
movimentar-se, formar corpos, entrar em combinações, assumir uma história, ramificar-se.
Mas, através de todas essas tais atividades e transmutações, ela permanece fiel a seu próprio
“sangue”. Esses corpos minerais não eram matéria morta a ser carregada por aí, mas sementes
vitais, incorporações de alma; não fatos objetivos, mas fatores subjetivos. A visão alquímica
incorporava em suas premissas teóricas aquilo que a moderna ciência natural agora postula
como novo: o observador e o observado não são independentes um do outro.
O fato de os espíritos planetários estarem na Terra como metais lembra-nos que os deuses
estão dentro do mundo, enterrados nas profundezas dos assuntos terrenos, debaixo de
nossos pés quando caminhamos. Caminhamos sobre suas cabeças e ombros, eles nos
suportam, embora através de nossas fantasias humanas possamos imaginá-los localizando-os
numa órbita celestial. Apesar de estarem aqui mesmo em nosso chão, eles somente se tornam
manifestos quando os procuramos lá fora.
3
4
5
Jung considerava a alquimia o paradigma e o suporte fundamental para sua psicologia (cf.
). Um
bom terço da obra escrita de Jung está direta ou tangencialmente relacionada com a alquimia,
proporcionalmente muito mais do que aquilo que ele escreveu sobre tipologia, psiquiatria, experimentos de
associação, sabedoria oriental ou parapsicologia.
Cf. Grinnell, R.
. Dallas: Spring Publicaions, 1973.
Sobre ‘como os metais são produzidos nos intestinos da terra’ cf. Sendivogius. ‘
’, HM 2, p.
90s. Outras fontes:
, especialmente o livro 3: ‘
’. - Dibner, B.
. Norwalk, Conn.: Burndy Library, 1958. O
foi traduzido para o inglês
em 1912 por um engenheiro de minas (junto com sua mulher), Herbert Hoover, filho de um ferreiro de um
vilarejo, e mais tarde seria presidente dos Estados Unidos. Um alquimista na Casa Branca! Sobre a relação dos
deuses planetários com os metais (voltando a tempos babilônicos ou quem sabe sumérios), cf. Partington, J.R.
‘
’. Ambix, 1, 1937, p. 61-64. Sobre a história dos metais em geral, cf.
Aitchison, L.
. 2 vols. Nova York: Interscience, 1960). Sobre a prata: Forbes, R.J.
. Leiden: Brill, 1950.
94
É precisamente isto que a palavra “metal” significa: “procurar”. Homero usa o verbo metallao, que
se traduz “procurar”. Metalleia significa a procura dos metais, enquanto metallon, como uma mina ou
pedreira, significa um lugar de cuidadosa busca, pesquisa, escrutínio.6 A ideia de um planeta
como um metal - e não somente um corpo celestial ou um Deus personificado - induz a
atividade de buscar profundamente na natureza pelo deus absconditus. A metalurgia não está
somente nos primórdios da ciência física empírica, mas também nos primórdios da pesquisa
teórica. Os metais agem como sementes forçando a mente a agitar-se em investigações.
Como diz Plínio o Velho (
96): “Sempre que se encontrar um veio, outro não está longe de
se buscar”. E é o garimpeiro que incorpora a visão prospectiva das escavações psicológicas:
olhar para a frente, ir mais adiante, procurar por ainda outros veios.
Em várias línguas, bem diversas entre si, as palavras para prata convergem sobre uma ideia
de brancura: o egípcio hd significa branco; o hebraico keseph significa metal branco brilhante;
a raiz radj tanto do grego argyros quanto do latim argentum significa branco, brilhante, radiante,
cintilante. O grego argos, além de ter em sua raiz os sentidos de branco e cintilação, também
denota rapidez, como cães de caça. Na própria palavra para a prata estão os cães de
Ártemis/Diana, a deusa da Lua, sua evasividade e perigo, e é uma convenção alquímica utilizar
intercambialmente branco, prata e lua – e também Diana. A faísca, o brilho e a rapidez da
prata aparecem no Argo, o barco dos argonautas de Jasão, aquela embarcação necessária para
a viagem em busca do Tosão de Ouro no Reino do Sol. Aqui também, uma conjunção
alquímica apresentada como uma configuração mítica, confirma nossa tese: o caminho para
o ouro é via a prata.
Resumindo, pratear é branquear, o estágio da albedo na obra, e a lunificação do material
refere-se a qualquer processo - lustro, calcinação, coagulação - que possa fazer surgir uma
condição branca e brilhante de alma no material. A transmutação para a prata significa
limpar e purificar, o que ao mesmo tempo significa tornar-se mais essencial e durável. Essas
mudanças qualitativas referem-se particularmente ao fazer brilhar ou trazer à luz o caráter
lunar da alma, incluindo até mesmo seus “azuis”.
A cor da prata não era apenas branca, mas azul. Ruland lista vinte e sete tipos de prata
azulada. Norton escreve: “A prata pode facilmente ser convertida na cor do lazulite porque [...] a
prata produzida pelo ar tem uma tendência a ser assimilada pela cor do céu”.7
Precisamos aqui brevemente distinguir entre o branco como um nome para a materia prima
(ethesia alba, magnesia alba, o leite da virgem, etc.), quando branco refere-se à inocência não
trabalhada, um sono de Endimião8 com sonhos de marshmallow, doce, virgindade tímida e daí
por diante, e aquele branco da albedo, um resfriamento que resulta de violentas torturas, da
6
7
8
Liddell, H.G. & Scott, R.
. Oxford: Clarendon Press, 1996, v. μεταλλαω, μεταλλεια, μεταλλον,
HM 2, p. 45. A assimilação da prata (branco) pela cor do céu é comparável a este paradoxo de Wittgenstein: ‘Num
quadro onde um pedaço de papel branco toma sua leveza do céu azul, o céu é mais leve que o papel azul. E, num outro
sentido, o azul é a cor mais escura e o branco a mais clara’ (
. Vol. 1. Berkeley: University of California
Press, 1978, p. 2). É tão forte a associação do azul com a prata que mesmo quando a química moderna duvida
do testemunho alquímico (retirando um pigmento azul da prata tratada com sal, vinagre, etc.), a mente moderna
entende que os alquimistas tinham uma justificativa física, desconhecida para nós, para seus achados. Mas seus
achados não estão, ao invés, baseados na fantasia - uma prata sófica da imaginação embranquecida que sabe que
o azul pertence ao prateamento, e que portanto o enxerga? Cf. a nota de Dorothy Wyckoff à sua tradução do
(Minerals, p. 192-193).
Cf.
.
. In: Stroud, J. & Thomas, G. Images of the
Untouched: Virginity in Psyche, Myth and Community. Dallas: Spring Publications, 1982.
95
paciência de um longo sofrimento, de um intenso calor. Todos os brancos não são o mesmo
branco,9 e somente o branco da albedo refere-se à prata alquímica como um estado da
consciência que provém não da alma assim como ela está dada, mas do trabalho feito nela.
O corpo da Lua consiste de Ar. Sua terra não é nossa terra, pois “ela fora inteiramente permeada de
éter”, diz Plutarco.10 Trazer o metal da lua ao nosso alcance mental significa ser capaz de
agarrar-se e permanecer junto às sutis invisibilidades do ar. “Os minerais têm sua raiz no Ar
[...]”.11 Enquanto a psicologia contemporânea imagina o elemento fértil como terra, a
psicologia alquímica considera o ar como o princípio nutriente. Se o fogo é o segredo da arte
e princípio sagrado da obra, então o ar é o que a nutre e a terra, o que a extingue. Para
Paracelso “somente pelo ar todas as coisas são nutridas” e a terra “provê um término para o elemento
do fogo (crescimento)”.12 A terra limita, fixa, para. Mas o materialismo moderno elevou a terra
e esvaziou o ar até a insubstancialidade.13 A psicologia contemporânea influenciada pela terra
avisa dos perigos do ar: inflação, o puer, delirante; porém nunca percebe a idiotice enlameada
presente em seu próprio ponto de vista ou a poeira seca assentando em suas páginas.
Se a terra da lua é etérea, devemos imaginar o metal da lua como um corpo aéreo sutil que
nutre os fogos do espírito e as paixões da alma pela contínua geração de imagens, de
fantasias. Imagine esse metal então como um ar branco intangível, um corpo branco
prateado, etéreo como o globo da lua cheia flutuando, suspenso na receptividade do
firmamento azul-escuro, uma mente dura, fria e brilhante no seu máximo, cujos efeitos são
tanto nutritivos quanto dessecantes e adstringentes.14 Pois essa frieza e secura é precisamente
aquilo no que o fogo se regozija e de que se alimenta.
Ao contrastarmos a prata com seus metais companheiros podemos discernir melhor suas
propriedades naturais. Como o cobre, a prata é condutiva, embora não seja vermelha. Como
o ouro ela é densa, nobre, preciosa e bela, porém mais dura e menos maleável. Como o
estanho e o chumbo ela é acinzentada ou branca e pode se tornar útil, mas diferentemente
deles ela tem lustro, pode ser polida e refletir. E como mercúrio em sua primeira aparição, a
prata coagula-se num estado mais firme e estável, não dispersivo ou fragmentário. Essas
comparações indicam que a prata é um condutor frio e branco, não um condutor quente e
vermelho, pois ela tem um “corpo frígido e úmido”;15 indicam também que ela tem uma certa
rigidez ou inflexibilidade inata; que ela enobrece o útil ao poder ser polida, polimento este
9
Essa distinção crucial entre o branco ingênuo e o sofisticado é ampliada em meu ensaio ‘
’
[Spring, 1986. Dallas: Spring Publications]. Muhammad Ibn Umail dá uma quantidade de nomes para a
‘brancura intensa’, que e chamada de ‘A segunda brancura’ (Book of the Explanations of the Symbols [Kitab
Hall ar-Rumuz). In: ABT, T.; Madelung, W. & Hofmeier, T.
. Vol. 1. Zurique: Living
Human Heritage Publications, 2003, p. 9.
10
‘
’. Moralia, XII, 1951. Cambridge, Mass.: Harvard University
Press.
11
Citado de E.A. Hitchcock de um tratado não especificado em seu
. Los
Angeles: Philosophical Research Society, 1976, p. 41.
12
Paracelsus, 2, p. 266.
13
Sobre a importância do ar para o trabalho psicoterapêutico com a
(alma), cf. Hillman, J. Anima:
. Putnam, Conn.: Spring Publications, 2007, p. 143-145 [Em português: Anima:
anatomia de uma noção personificada. São Paulo: Cultrix, 1990 - Trad. de Gustavo Barcellos e Lucia Rosenberg] e
mais adiante o capítulo 9, ‘
’.
14
Lexicon, p. 41.
15
Filaleto. ‘
’.
. Cf. tb. Figulus,
’
’.
96
em virtude do qual ela reflete; que ela não flui facilmente, mas que tende para a estabilidade
e a magnificência da autoconsistência.
A equação Luna = prata16, tão frequentemente usada na alquimia, não é uma identidade
verdadeira. A prata corresponde a Luna somente em alguns aspectos. Não se trata da lua de
Lilith, a lua da noite e dos mortos, e certamente não se trata da pequenina crescente, a
menininha virgem nos começos. A prata também não é a flutuante lua das marés, do sangue
e da vegetação, caminhando através de fases, mudando com a passagem do tempo; também
não a amargura salgada da lua e seu senso comum. Em suma, a prata apresenta o brilho total
da lua, sua completude ou elevação. É o metal de uma Grande Luz, para usar o modo
tradicional de falar, um princípio arquetípico de imensa potência equivalente à opus major da
Primeira Grande Conjunção, a anima realizada como uma imaginação tão sólida, uma alma
tão encarnada, que a reflexão de suas imagens embranquecem a terra da consciência
mundana.
Repetidamente o ouro e a prata são mencionados de uma só vez e juntos, os dois metais
perfeitos, o rei e a rainha. A sutil diferença entre eles faz-se notar, por exemplo, nesses
adjetivos: o ouro “verdadeiro” e a prata “fina”.17 O ouro nos envolve com a verdade, e tudo o
que a verdade estabelece com seu poder, um reino eterno, físico ou metafísico, moral e
espiritual. A prata nos envolve com valor estético, discriminação, apreciação, refinamento,
que é também um fim (finis) em si mesmo.
Revendo as propriedades da prata: ela é dura e seca tendo sido purificada tanto da
viscosidade do enxofre quanto de sua própria umidade fleumática e viscosa (
)ou seja, a prata filosófica nem se adere às suas reflexões, nem é passivamente conduzida por
suas imagens. A psique da prata é “dura e seca”; brilhante. A prata tilinta, e revela sua
verdadeira natureza ao ressoar quando tocada. Mais que isto, sua verdade está em seu soar, o
estampido da verdade, aquela resposta estética instantânea dos sentidos aos estímulos que
afetam o corpo psíquico que é “frígido e úmido”.
O corpo da prata não queima nem inflama outras coisas, e talvez por causa de sua “fria”
condutividade, a “a prata é o que há de melhor para manter unidos metais fundidos”
(Minerals, 3, p.
2.1). A psique fria e prateada, embora aparentemente “não relacionada”, pode estabelecer relações
entre as questões mais ardentes e mantê-las unidas, ainda que sem fundi-las num falso
compromisso (amálgama). Ela media, ligando facções derretidas através de seu próprio
distanciamento. A prata enrijece o ouro, pois o ouro, segundo Alberto Magno, não pode ser
moldado em filamentos ou folhas a menos que amalgamado com a prata. Ouro não amalgamado
não “suporta os golpes do martelo” (
). Uma liga verdadeira não é nem muito úmida
16
17
Cf. Holmyard, E.J. (org.).
. Londres: J.M. Dent & Sons, 1928, p. 16.. Lexicon, p. 209.. Paracelsus
1: 8-9, para outros três exemplos onde
e prata são sinônimos.
Geoghecan, D. ‘
’; ‘
’. Ambix 6, 1957, p. 14.
A raiz médio-oriental da palavra prata (kaspu) deriva-se de ‘refinar’, assim como o árabe (sarif = prata pura) tem na
raiz o sentido de ‘metal refinado’. Cf.
. Leiden: Brill, 1971, p. 247.
Devemos lembrar aqui que refinamento e pureza não são a mesma coisa. Refinamento alquímico significava
uma ‘sofisticação’ do metal, sua transmutação num poder diferenciado e sutil. Enquanto nossas noções de
refinamento hoje em dia tendem a significar uma percentagem cada vez maior da mesma coisa, singularidade e
concentração. A noção alquímica é mais estética a moderna, mais quantitativa e simplificada.
97
(maleável), nem muito seca (rígida) e, como diz Alberto, o martelo quebra facilmente as ligas pobres,
em função de sua mistura “gaguejante”.
A prata é necessária para a opus da fabricação do ouro, pois, evidentemente, é a dura mente
lunar, sólida na realização de suas formas imaginativas, que permite ao ouro ser moldado em
formas específicas. Devemos lembrar que o ouro alquímico é um elixir vermelho. Ele é ativo e
encarnado, um remédio universal, um poder multiplicador no mundo, um rei-filósofo, da
mesma forma que essa ambição universal própria do ouro aparece nas ambições mundanas
do alquimista de fabricar ouro. O ouro não é um estado espiritual transcendente de
consciência, uma santidade mística da luz, da verdade e da perfeição somente, mas, em vez
disso, essas mesmas virtudes moldadas e definidas em formas precisas, para o que a prata é
necessária. Além dessas propriedades, a prata reflete. “Um espelho”, diz Albertus, é fabricado
pela umidade que é solidificada e então é capaz de ser bem polida; e ele recebe imagens
porque é úmido, e as retém porque é sólido ou limitado (terminatum); pois ele não as reteria
dessa forma se a umidade não estivesse incorporada e regida por um limite.18
Se a prata reflete porque é tanto receptiva (úmida) quanto sólida, então receptividade sólida
é o tipo de consciência que serve para refletir. Reparem como para refletir é necessário ter
incorporado ou digerido sua própria umidade e estar limitado por seus próprios limites. Não
é possível refletir se você facilmente flui; e não se pode refletir tudo, mas apenas aquilo que
se pode receber e ao que se está solidamente presente dentro dos limites de nossas próprias
fronteiras. Refletir não é uma receptividade vazia; refletir requer foco.
O ar, continua Albertus, “não retém tais imagens, embora as receba [...] por não ter limite algum, ele
não as focaliza em um lugar ou em uma forma [...] mas atua somente como um meio através
do qual as imagens passam, e não como um limite restritivo que as dê existência”.19 A mente
aérea não consegue fixar e reproduzir até mesmo suas próprias imagens. Elas apenas
atravessam e nós mesmos somos somente um meio, a menos que estejamos fixados por um
sentido de limitação. Quando estamos envolvidos num projeto delimitado dentro de um
contexto limitado (um prazo, por exemplo) somos mais capazes de imaginar do que quando
permanecemos em puras possibilidades; tal imaginar não é especulativo, um refletir que
realmente imagina qualquer coisa, pois não tem término, sem um fim fixo ou um foco. Para
que a mente reflita imagens é necessário um caso específico, ou um evento específico
naquele caso, que traz uma especulação verdadeira com mais solidez do que as generalidades
derivadas de tantos exemplos. Essas são meramente ar, refletindo nada especificamente.
Precisão e foco pertencem ao refletir da prata; são inerentes ao próprio metal do imaginar.
Não podemos formar uma imagem sem sermos precisos, e aquilo que não é preciso, não é
limitado ou focado, não é uma imagem.
A prata serve ainda a mais um propósito que não podemos esquecer. Ela tem “o poder de
revolver o enxofre inerente ao mercúrio” (“
”, HM 1, p. 255).
diz:
“O mercúrio só pode ser animado pelo fermento branco da prata”.20 Surpreendentemente esse
frio metal da lua anima e ativa ambos os elementos fundamentais, enxofre e mercúrio. Isso
não significa então que a opus inteira requer fermento mental, a animação do pensamento e
da reflexão, a intervenção ativa da imaginação, e que talvez até mesmo a loucura enquanto
um estado de prata ativada é a prata trabalhando sobre o mercúrio, vivificando, animando
18
19
20
Cf. Norton, T. ‘
’.
: ‘A causa de um espelho é umidade fixa; e por esta razão ele também é
homogêneo, porque o ar não recebe nenhuma impressão, e é incapaz de conter-se a si próprio’.
Figulus, p. 281.
98
Mercúrio, o Deus e o guia de toda a opus, revolvendo um fermento branco através do qual
ele se torna lunático?
Como Luna é o recipiente de todas as influências planetárias21 e como o branco contém
todas as cores, então a prata incorpora todos os metais e fases anteriores em seu corpo.
Diferentemente da lua, contudo, a prata não é um lugar de origem. Geralmente ela não é um
dos vários nomes para a materia prima:22 ela não é dada, mas precisa ser preparada, ou seja,
preparada através do opus contra naturam, preparação na qual a negrura é essencial. “Sua
substância nunca será branca se primeiro ela não tiver sido preta. É através da putrefação e
decadência que ela atinge o corpo glorificado de sua ressurreição”.23
“O enxofre queima a prata quando é espargido sobre ela depois de derretido, e o
enegrecimento da prata mostra que ela é queimada pelo enxofre” (
). Embora a
prata derretida seja pouco afetada pelo enxofre, quando a superfície da prata sólida é tratada
com enxofre fundido, ele “queima” a prata deixando-a preta, um efeito que não ocorre
quando o enxofre fundido é aplicado à madeira, à pedra ou ao ouro. Esses curiosos eventos
empíricos sugerem que somente a prata fria e endurecida é sujeita aos impulsos sulfúricos,
enquanto a prata que se entrega a suas próprias intenções acaloradas permanece não
manchada.
Alberto argumenta que o enxofre afeta a prata dessa maneira por causa de sua inata afinidade.
Como poderia ser caracterizada esta afinidade? A prata retém em seu corpo uma pequena
quantidade de umidade sulfúrica. Avicenna24 considerava a prata constituindo-se de “enxofre
branco” (junto com “puro mercúrio”), e Bonus diz que “a prata sofre de uma lepra fleugmática,
pois ela contém uma quantidade de enxofre combustível”.25 Imaginemos que a mente lunar
reflexiva, apesar de suas propriedades estáveis e adstringentes, retém uma afinidade com as
paixões ardentes. (Afinal, como disse Rasis, a prata manifesta é cobre [venusiana] por dentro,
assim como o cobre manifesto é prata [lunar] por dentro).26 Essa suscetibilidade da prata ao
enxofre fundido deriva-se de uma quantidade inata de enxofre combustível, seu próprio
estado de desejo oleoso, como uma professorinha adstringente que cai em pecado apesar de
seu brilhantismo e de seu “corpo frio e úmido”, como Hefesto saltando para cima da fria Atená,
como a própria Perséfone, puramente modesta e ainda assim sujeita a ser envelopada pela
paixão copulatória do negro Hades, como se dentro de Perséfone existisse a umidade secreta
da afinidade com o Inferno.
21
22
23
24
25
26
Cf. Paracelsus 1, p. 8-9. Sendivogius, em ‘
’ (HM, 2, p. 98), nota que ‘as virtudes dos planetas
descendem, mas não ascendem’ e uma vez que ‘a última estampa é ocupada pela lua’ é este princípio que recebe
e passa abaixo as influências dos outros. A psique prateada por natureza reflete imagens do universo politeísta;
ela é por natureza politeísta e infere a priori os outros planetas e seus metais. A prata refinada, sofisticada, não
pode significar prata pura, exclusiva ou simples; ela não pode ser definida, exceto em termos de uma
multiplicidade de virtudes completamente misturada, que tenha descido sobre ela e cujas luzes ela reflete. Seu
corpo recebeu o delas, como a lua recebe seus raios invisíveis. Portanto, uma consciência que reflita essa prata
nunca será capaz de permanecer sozinha, ou de conceber, ou de imaginar num estilo unívoco, isolante,
monoteísta.
A exceção que confirma a regra está no léxico de Ruland: o octagésimo primeiro epíteto para a prima materia é
‘prata’ (Lexicon, p. 225).
Filaleto. ‘
’. HM, 2, p. 255.
Cf. Holmyard, EJ.Alchemy. Harmondsworth: Penguin Books, 1957, p. 94.
Bonus, p. 272.
Rasis.
. Apud Minerals, 3, p. 1,8.
99
A frieza da imagem, seja da lua ou do submundo das trevas, e o distanciamento frio com o
qual enxergamos através da imagem, pode ser capturada, como que por algo proveniente de
fora, pelo calor inclusus ou calor inato do amor escondido dentro dela. Então haverá dentro de
cada momento da prata - fantasia criativa, pensamentos e ideias, reflexões - uma propensão a
queimar-se com o enxofre. Talvez quanto menos ativado esse calor do amor inato dentro do
imaginar (isto é, quanto menos manifesto o cobre ou mais úmido e viscoso o enxofre), mais a
prata da psique está sujeita a chamuscar sua pele externa, pelo que entendo a exteriorização
e a literalização do enxofre inato em desejos que não mais podem se enxergar como imagens
(o pretejamento da prata). Daí a importância de reconhecermos, como estamos fazendo neste
capítulo, tudo aquilo que a prata implica. Estaremos ativando-a de forma que ela não
empreteje, de forma que nossas imagens não se queimem por sua inata vitalidade.
Mas tal paixão é também curiosamente fleugmática. A “lepra fleugmática” (lepra como um
termo técnico para imperfeição), que pode tornar a prata manchada ou negra (isto é, uma
consciência esporádica ou intermitente; reflexões que não iluminam, mas, ao contrário,
envenenam, corroem, enegrecem), parece ser causada por flegma, uma palavra grega que
significa inflamação mórbida, e que também veio com o tempo a se referir a um
temperamento não temperamental, passivo, monótono.
Portanto, a afinidade da prata com o enxofre indica que a mente pode ser inflamada pelo
impulso quente para a ação, quando sua habilidade reflexiva torna-se instantaneamente
obscurecida, e essa propensão para responder ao chamado do enxofre fundido, mesmo na
mais sólida e coagulada prata, dá-se porque a prata fleumaticamente supura dentro de sua
própria natureza. Ela é engomada pelo fétido flegma de sua própria atividade mental que não
lhe sai da cabeça, lá se coagula, gruda em si mesma, autoenvenena-se.
Evidentemente há muito mais na prata do que podemos perceber ao olhar sua superfície
clara e branca: uma fantasia passiva, uma viscosidade ou preguiça mental acompanha o
próprio brilho da mente.27 Daí as longas horas desperdiçadas (“não consigo continuar”), a
lepra fleugmática que acompanha a atividade intelectual. Há inércia e monotonia mesmo no
meio de um pensamento soberano. Daí também a necessidade da fantasia passiva
(fleugmática) junto da imaginação ativa. Ativo e passivo, fantasia e imaginação são
inseparavelmente coincidentes na natureza da prata. Parece que essa mórbida inflamação
dentro da prata necessita de ociosidade como uma companhia legítima da vida da mente. Do
ponto de vista de uma psicologia alquímica, a ociosidade é o flegma da prata, sua lepra
necessária, de forma que a sociologia do lazer origina-se das sementes dos metais tanto no
homem quanto no mundo. A classe ociosa, considerada estéril e cruel, como a nobreza ou a
elite intelectual e acadêmica, ou ainda aqueles que vivem de sua prata como dinheiro (rentiers),
representa, no corpo público, o componente de prata, inclusive sua indolência fleugmática.
Sem essa prata tanto veloz quanto preguiçosa, sem esse esbranquiçado corpo aéreo, não há
ouro. “Nenhum ouro é gerado, exceto se ele primeiro tiver sido prata”.28 E não há conjunção: o
27
28
Há um curioso trocadilho fonético em grego que sublinha uma contradição inerente à prata: argos enquanto
brilhante, brilho, ágil, veloz, relacionado etimologicamente com branco, prata, etc., e àrgos como inútil,
preguiçoso, inativo, cru, não trabalhado, vagaroso, indolente, vagabundo, relacionado etimologicamente com
‘não trabalhar a terra’. Os vários significados etimológicos e associativos de argos estão discutidos em maior
profundidade em Irwin, E.
(Toronto: Hakkert, 1974, p. 215-218). Também interessante
é o fato de que o vento invisível, o próprio ar, era considerado ‘branco’, isto é, ‘prateado’ (argestes). Ibid., p. 169173.
Figulus, p. 277.
100
poder do ouro permanece charlatão, um vermelho sem branco, sangue sem mente, actus sem
potência, verdade sem sutileza, “atos sem imagens” (ein Tun ohne Bild), como alertou Rilke.29
Ou como insistiu Keats, a Verdade e a Beleza subsistem juntas. O incansável alerta dos
alquimistas de que “nosso ouro não é o ouro comum” era um aviso sobre o esquecimento da
prata. Precisamos primeiro estabelecer o corpo aéreo da reflexão imaginal antes de podermos
compreender o ouro como imagem e não entendê-lo como o metal natural.
Se o processo alquímico é testemunho da fabricação do ouro, primeiro precisamos perceber
a mente alvejada de imagens cintilantes, mantendo o sentido estético da prata de forma que
o ouro possa se tornar ouro “filosófico”, a verdade possa emergir da beleza, os fatos
significarem imagens em vez do meramente reino literal das energias, heróis e brilho solares.
É a mente lunar dentro do ouro que imagina o ouro de dentro e é seu chão primordial,
restringindo seu multiplicatio com frieza, capacitando o ouro a reconhecer que ele e todo o
seu poder são mantidos para a realização de imagens psíquicas. Somente aqueles feitos que
se originam na prata, que incorporam a reflexão das imagens e espelham essa reflexão,
podem justamente ser chamados de ouro verdadeiro.
A extração da prata
A alquimia geralmente mostra onde podemos encontrar as substâncias de que precisamos. O
enxofre, por exemplo, diz o beneditino inglês Kramer (HM 2, p. 154), é encontrado “Em todas as
coisas deste mundo - metais, ervas, árvores, animais, pedras são sua mina”. Podemos obter enxofre de
tudo aquilo que chama a nossa atenção, que chameja. Ele vem do mundo natural e de nossa
mundanidade. Ele pode ser extraído de qualquer compulsão, fascínio ou atração no
macrocosmo. O sal, como vimos acima, é extraído de nosso mundo interno microcósmico.
“Mergulhe em si mesmo, pois você o carrega consigo”, diz Irineu Filaleto.30 Lágrimas, suor,
sêmen, e especialmente sangue e urina. Reavemos o sal de nossa subjetividade interior e ele
nos remete de volta à sua origem através dos resíduos e sabores da experiência.
De onde então vem a prata? Lembremos primeiramente que essa extração dos metais é uma
operação metafórica. Beedictus Figulus diz: “Meu filho, compreenda aqui a Luna Metaphorica, não a
literal [...]”.31 O autor de
escreve: “[...] tudo isso deve ser compreendido com um grão de
sal. Você precisa compreender que [...] falei metaforicamente; se você tomar minhas palavras no sentido literal,
não colherá nenhum fruto, apenas despesas”.32 Portanto, somos obrigados a descobrir modos
psicológicos de extrair a prata, extraindo-a de condições da psique nas quais ela está
enterrada, ou com as quais ela está amalgamada. Uma mina de prata psicológica pode
frequentemente ser localizada naquele lugar que chamei de “meu”, um lugar de apropriação
egóica no qual se imagina não haver nada de mais profundo, nenhuma reflexão escondida,
nenhuma fantasia metafórica oculta. O trabalho com a prata nos transporta de donos de
minas para trabalhadores de minas (mineiros), em direção às profundezas de nossa mente,
libertando o metal brilhante de sua mina silenciosa.
29
30
31
32
Duineser Elegien LX. In:
Collectanea, p. 12.
Figulus, p. 304.
.
. 12 vols. Frankfurt am Main: Insel Verlag, 1975, vol. 2, p. 718.
101
1)
A Antiguidade, ou seja, Lucrécio, Strabo, Diodoro, consideravam a prata como o resultado de um
fogo da floresta, um holocausto.33 Um gigantesco fogo assola uma floresta, carbonizando a mata,
dizimando a natureza e, depois dessa ruína, um regato fino de prata emerge. A prata, inferem eles,
origina-se em grandes desastres psíquicos. Ela resulta de uma queimada. Nós a reivindicamos
depois que os caramanchões de madeira do naturalismo protetor tenham sido totalmente
enegrecidos.
2) A segunda e mais comum discussão a respeito da extração da prata na alquimia medieval e
renascentista refere-se conjuntamente ao chumbo. Assim como os dois planetas Lua e Saturno estão
frequentemente relacionados – como começo e fim, como ambos frios e ligados à morte,
associados a cachorros e veneno, como suporte da mens – também, como diz Forbes, “a história da
extração da prata está inseparavelmente ligada à do chumbo”.34
De acordo com Alberto Magno, o chumbo protege a prata de ser queimada,35 embora o método
para extraí-la de minas mistas de prata e chumbo fosse através de repetida calcinação (calor
seco), apagando o amálgama quente num líquido ácido (sal amoníaco ou vinagre), e de
destilação seguida de nova calcinação.
A proteção do chumbo e a libertação da prata do meio do chumbo, como uma pomba
branca, indica a natureza nobre e preciosa atribuída à prata.36 Uma brancura com asas de
pomba pode emergir de um estado plúmbeo que parece envelopá-la por completo. O coração
vagaroso e pesado do chumbo oculta uma pomba de prata (às vezes magnésia). Para extraí-la,
necessitamos de calor seco e vinagre. A prata não aparece facilmente e “uma tonelada de
chumbo fundido normalmente contém apenas algumas onças de prata”.37
A libertação da pomba não a separa de seu peso, a gravitas do espírito. Ela carrega chumbo
para sua prata. Imagine o chumbo tornando-se alado, móvel, aéreo, pairando sobre as
operações com atenção séria (como uma pomba de asas abertas permanece suspensa sobre uma cena em
ícones medievais). O espírito não mais aprisionado apenas na imanência, imerso em lutas
laboriosas com o grosseiro e denso.
Chumbo, como o metal de Saturno - frio, pesado, denso -, não era utilizado amplamente antes
de tempos romanos. Como a prata, não era tecnicamente tão prático quanto o ferro e o
cobre, de forma que ambos, chumbo e prata, como Saturno e Lua, eram mais espirituais,
religiosos e místicos do que os planetas e metais mais mundanos como Marte (ferro), Vênus
(cobre) e Júpiter (estanho). Típico da abordagem romana era o uso prático encontrado para o
chumbo e a prata, encanamentos e utensílios para a vida diária. Objetos decorativos de prata,
por exemplo, eram a ostentação da alta sociedade. Plínio dá detalhes.38
Vincent de Beauvais, na Idade Média, considerava o chumbo uma prata desvalorizada.39 A prata
que havia “decaído”, ou envelhecido, ou perdido sua natureza e pureza, tornava-se chumbo. A
implicação é clara: estados plúmbeos são reflexões psíquicas “decadentes” ou “perdidas”, a
pomba solidificada, enterrada em idiotice e monotonia; os estados plúmbeos são tão duros
33
34
35
36
37
38
39
Forbes.
Ibid., p. 197.
Minerals, 3, p. 1,8.
OC 12, fig. 178.
Aitchison.
Plínio.
Forbes.
. Op. cit., p. 201.
. Op. cit., vol. 1, p. 46.
, 33, p. 49-54.
. Op. cit., p. 204.
102
de se levar (“pesado como chumbo”) em parte porque sentimos a prata oprimida dentro deles
que não consegue encontrar seu caminho para a liberdade; e quando a prata era extraída, o
que restava era uma nova materia prima, um chumbo mais pesado e escuro - plumbagina
(grafita).
Embora possamos extrair um momento de prata de nosso corpo plúmbeo, essas extrações
criam uma condição até mais pesada e mais densa.
A depressão é o preço da prata. Desde a Problemata de Aristóteles, a melancolia tem sido a doença
dos pensadores. Quanto mais reflexão branca, mais carga de chumbo; ao produzirmos a
prata, aumentamos o chumbo. Com certeza isto é muito conhecido: um insight pode ser
brilhante nele mesmo, mas não deixa marcas no humor cinza no qual ele se originou. Temos
a sensação de envenenamento por chumbo (saturnismo), o estado de ter sido engolido pelo
chumbo, perdidos na mina de chumbo - tudo é tão longo e lento. Para que, então, sentimos,
essas reflexões da prata, esse pingo de luz, se o peso da depressão não nos deixa? A verdade,
contudo, é que a depressão é a mina. Este é o chumbo necessário para a prata, mesmo que a
prata não seja nem útil nem funcional para alterar o chumbo. Extraímos a prata do chumbo,
mas não para acabar com o chumbo, pois isso fecharia a mina.
Seria demasiado estreito perceber a pomba apenas como um emblema do ascencionismo
cristão, ou seja, o bem está somente acima e toda a sublimação em direção ao alto. Wallace
Stevens escreve sobre “a pomba na barriga”,40 invocando um espírito santo adejando nas
entranhas do profundo, sinalizando sensibilidades tremendas. A pomba na barriga estimula a
vida das imagens cujas ânsias de nascer e espasmos de morte não simultâneos, análogos, até
mesmo indistinguíveis.
Aqui precisamos lembrar o curioso fato metalúrgico de que a prata corrompe-se com o Ar.
Ela embacia. Ela converte-se com os cloretos na água da chuva, de forma que é naturalmente
mais encontrada em minas argentíferas de chumbo. É muito raro que a prata possa ser
encontrada pura sob a terra, em regiões montanhosas. A prata preteja com o ar e não pode
sempre brilhar como o ouro. A prata requer polimento, atenção, esfregões; a prata requer
cuidado. Uma vez que sua exposição a faz perder o brilho, ela fica melhor quando está
guardada, escondida, protegida. Ela é coberta de preto pelo silêncio e pelo embotamento, e
por esconder-se invisivelmente no chumbo.
Talvez seja essa a razão de não encontrarmos muito sobre ela diretamente nos textos da
alquimia. Ela aparece quase sempre em conjunto com o ouro: “O que está oculto no ouro
está manifesto na prata, e o que está manifesto no ouro está oculto na prata”.41 A prata
manifesta tem as qualidades brilhantes e preciosas do ouro, e, quando tentamos imaginar a
natureza da prata utilizando uma consciência solar, a prata se torna imediatamente oculta, o
que então a deprime num amálgama com o chumbo.
3) O terceiro lugar de onde extraímos nossa prata, além das ruínas de nossas paixões e do desespero
plúmbeo, é o cérebro. Figulus fala da Luna Cerebrum.42 Muitos tratados, inclusive alguns de Paracelso,
localizam a lua ou o metal da prata junto com o cérebro. O cérebro é o órgão da prata, assim como
o coração é o órgão do ouro.
40
41
42
Rasis.
Figulus, p. 24.
. Noya York: Alfred A. Knopf, 1978, p. 366.
. Apud Minerals, p. 175n.
103
Cérebro aqui, é claro, significa o cérebro metafórico, o cérebro sutil, o cérebro do corpo de
fantasia como também os corpos das fantasias cerebrais. Em outras palavras, as fantasias,
qualquer que seja sua natureza, contêm prata. Esse cérebro prateado apresenta-se nas
descrições de fantasias prateadas. Por exemplo: “O reinado da Lua dura apenas três semanas,
mas, antes de seu término, a substância exibe uma grande variedade de formas; ela se tornará
líquida, e novamente coagular-se-á cem vezes por dia; às vezes ela terá a aparência de olhos
de peixe, e depois de novo de pequeninas árvores prateadas com galhos e folhas. Sempre que
olhar para ela terás motivo de assombro, especialmente quando a vir toda dividida em belos,
porém diminutos grãos de prata [...]. Essa é a
”.43
Essas formas e padrões, essas variadas filigranas são modos de encontrar a prata: em
pedacinhos e grãos e nas centelhas dançantes das reflexões, fragmentos de sonhos e fantasias
espalhafatosas, brotos de pensamentos e ideias que se ramificam, cem vezes por dia, as
conexões entrelaçadas, marcadas pelos “ahas” e “uhs” interiores, nossa consciência ressonando
em nossa garganta à medida que a mente branca emerge em sua noite.
Ruland diz em seu dicionário: “A prata é encontrada em massas conglomeradas que parecem algo como
brotos distribuídos nos galhos de uma árvore [...]. Outras vezes ela assume a forma de pequenos bastões, ou
outras figuras similares. Agrícola testemunha que viu exemplos perfeitos de instrumentos metálicos, tais como pás
e pequenos martelos, tirados da mina. Eu mesmo enxerguei figuras ou imagens naturais de pequenos peixes, leões,
lobos, etc.”44 Agrícola, o metalúrgico, viu a prata na natureza nas próprias formas de pás e
martelos que eram seu interesse. A prata aparece nas formas da fantasia; ela pode ser extraída
das figurações projetadas ou imaginadas de nosso cérebro. (Maomé, a propósito, também
considerava a prata o metal das imagens: os amuletos muçulmanos eram proibidos em
qualquer outro metal que não fosse prata.)45 A prata como o metal do imaginar indica que
imaginar propriamente pode ser o modo de extrair prata e branquear o cérebro.
4) Um quarto modo de extrair a prata é extraí-la do complexo monetário.46 Desde os tempos
romanos, a prata tem sido o metal do dinheiro, de forma que a própria palavra “prata”, argent em
francês, significa genericamente dinheiro. O acasalamento alquímico curiosamente constante da
prata com o ouro repete-se em hábitos monetários, pois o valor da prata está ligado intimamente
com o do ouro. Durante os tempos clássicos (Péricles), a relação era de 10: 1; ainda hoje, embora a
prata seja economicamente mais valiosa que o ouro, como uma commodity, ela é consumida mais
rapidamente do que é produzida e é industrialmente mais necessária. À prata flutua mais em
relação ao preço do ouro do que de acordo com seu próprio valor.
A decadência do valor da prata em relação ao ouro durante o terceiro século foi considerada
um sintoma, senão uma causa contributiva, do declínio de Roma. Bem no final do Império
(397-422 A.D.), a razão entre eles caiu de 1:1 para 1:18 em apenas 25 anos. Mas o colapso total
dos valores da prata aconteceu durante o apogeu do materialismo ocidental, entre 1870 e
1930, uma desvalorização da prata que não pode ser justificada completamente em termos
das novas minas e dos novos métodos de extração.
Extrair prata do complexo monetário é extraordinariamente difícil (como foi frequentemente
discutido em seminários por
). Sempre que o valor da prata decai, mais
43
44
45
46
‘
’. HM, 2, p. 193.
Lexicon, p. 40, v. ‘argentum’
Cirlot, J.E.
. Nova York: Philosophical Library, 1971, p. 216.
Mais sobre o ‘complexo monetário’, cf. Hillman, J. ‘
’. Animal Presences, UE 9, p. 58-75.
‘
’. City and Soul, UE 2, p. 355-366.
104
materialista parece ser a cultura na qual a prata é utilizada como dinheiro. À medida que os
valores vão se tornando materializados, é necessário mais prata para garantir um valor.
Quanto mais materialistas forem os valores de uma pessoa, menos prata filosófica será
encontrada, ou seja, menos a pessoa será capaz de refletir sobre o dinheiro enquanto algo
além “daquilo que ele pode comprar”. À medida que o dinheiro se torna apenas um item para
troca, sem valor em si ou estímulo para reflexão, seu valor é inteiramente externo: o que você
pode conseguir com ele. O principal valor do dinheiro será então materializar-se em outra
coisa.
A questão monetária - qual o valor intrínseco da moeda, o que o apoia - não é apenas uma
questão monetária. É também filosófica na medida em que ela levanta a questão das relações
e referentes internos e externos: as moedas referem-se apenas a seu valor de troca, ou
carregam valores internos por e em si mesmas, como concretizações, lembrança das ideias de
valor e de bem? Os psicoterapeutas em geral não encararam as questões mais profundas do
dinheiro e assumiram a noção de troca sem perceber o que assim estão perpetuando na alma
do paciente e na alma da comunidade. Quando um analista interpreta dinheiro num sonho
como um equivalente de energia - muito dinheiro significa muita energia, e dinheiro nas
mãos, energia disponível - a prata está sendo desvalorizada ainda mais. Pois essa perspectiva
é puramente funcional e utilitária. O dinheiro em si não tem nenhum suporte, exceto como
um registro de algo egocentricamente desejado: energia.
Essa visão do dinheiro não propicia nenhuma reflexão psíquica, nenhuma prata pode ser
extraída daí, e o sonho poderia perfeitamente ter sido com um carro, um cavalo ou um motor
de popa como símbolos de energia equivalentes. Em vez de valor, o dinheiro passa a
significar poder: o que você pode fazer com ele, comprar com ele; valioso somente ao ser
colocado em uso, gastar e possuir, o que reforça ainda mais a inflação do indivíduo e da
sociedade. Preciso insistir que os psicólogos profissionais, apesar de sua devoção ao Self, à
alma e ao processo de individuação, reforçam o tipo mais crasso de materialismo quando
apreendem do mundo diário e “apenas-natural” os significados que atribuem às imagens?
A noção utilitária e materialista do dinheiro contrasta com a moeda de prata grega. A moeda
foi inventada na Ásia Menor; foram os gregos que substituíram o dinheiro utilitário - torrões,
barras e espetos de metal - pelas maravilhosamente trabalhadas moedas de prata mostrando
as cabeças e os animais dos deuses e testemunhando o orgulho local. Uma barra de prata é
como um dime47 contemporâneo nos Estados Unidos. Mas uma moeda grega de prata referese a um lugar específico, sua cultura e seu deus. As moedas gregas eram a um só tempo “um
verdadeiro espelho da religião, da economia e da história gregas, assim como do amor grego pela beleza”,48 uma
alegria estética, um padrão de valor, e um tributo aos deuses do lugar - tudo isso ao mesmo
tempo. Nenhuma distinção aqui entre comércio e piedade, e a prata era a substância dessa
valorização do comércio pelos deuses.
O dinheiro perdeu há muito esse suporte da prata. Não é mais um instrumento de reflexão,
mas, ao contrário, tornou-se o paradigma da antirreflexão. A desculpa definitiva que damos
quando não queremos ir mais além ou mais profundamente em alguma coisa é que “custa
muito”. Isto por si só paralisa a conversa e o pensamento. O que queremos dizer em última
análise com a palavra “realista” é dinheiro. Realmente a realidade real passou a equacionar-se
47
48
Dime: moeda de prata de dez centavos; a décima parte de um dólar [N.T.]
Lanckoronski, L. & Lanckoronska, M.
Ernst Heimeran, 1958, p. 8-9.
. Munique:
105
com dinheiro. O literalismo máximo é a falácia econômica, com o que quero dizer considerar
o dinheiro como algo totalmente fora da psique.
Extrair prata do dinheiro significa simplesmente lembrar o valor psíquico, o valor para a
alma, nas questões do dinheiro. Uma discussão por dinheiro é uma briga da prata ansiedades com dinheiro à medida que ficamos velhos; brigas conjugais a respeito dos gastos
do lar; heranças, seguros, indenizações; honorários analíticos - tudo isso pode se tornar um
espelho valioso a refletir onde a alma está enrolada na matéria. Aqui nos é oferecida uma
chance de caminharmos pelos níveis material e quantitativo em direção a um insight
espelhado, podendo enxergar nossa face sombria e a face do deus específico que suporta a
moeda em questão. A cada vez que tomamos o dinheiro em seus próprios termos ao darmos
uma desculpa econômica - “Estou fazendo isto pelo dinheiro” - estamos de volta com Nero e
Diocleciano, desvalorizando a prata, a traição do valor enquanto valor de troca somente. Não
poderia haver nenhuma traição de Cristo pela prata se ela não tivesse sido rebaixada,
desvalorizada. A alma é vendida não para o demônio por dinheiro, mas para o próprio
dinheiro quando ele se torna a medida de valor em vez da afirmação do valor.
5) Comparável com o vermelho (ouro) e o branco (prata) da alquimia são as duas correntes que
circulam pela fisiologia psíquica da kundalini yoga, o vermelho pingala e o branco ida. De acordo
com o relato biográfico de Gopi Krishna,49 a experiência de ida leva a um branqueamento do mundo
perceptivo e às sensações internas da prata percorrendo o corpo entregue à frieza. 50 Há uma
conexão definida entre o canal ida lunar, a prata, a brancura e a frieza: a prata é “fria”, diz Figulus.51
Por que não extraí-la de nossas condições frias?
Aqui são relevantes as antigas noções do submundo das trevas como um lugar de
refrigeração, e os sentidos etimológicos de “psique” como fresco, resfriar, frio.52
“
”, o ensaio de Plutarco, afirma que “a frieza é o que junta”,53 e porque a frieza
expressa o elemento adstringente e o planeta Terra (assim como o calor expressa o Fogo e o
Sol), é da natureza do frio enrijecer. Segundo Francis Bacon, a terra mais interna é fria, passiva e
estática.54
A fantasia de Bacon é arquetípica (ou seja, tanto amplamente disseminada quanto válida): de
que a profundeza fria das coisas é um lugar de morte, um submundo onde a existência da luz
49
50
51
52
53
54
Copi Krishna. Kundalini: The Evolutionary Energy in Man. Berkeley: Shambala, 1971, p. 66-67. 72-73, 136-148
[com uma ‘Introdução’ de F. Speigelberg e um comentário psicológico de J. Hillman].
Gopi Krishna descreve a experiencia ida nos seguintes termos: ‘o nervo lunar’, ‘corrente fria imaginária’, ‘um som como
um filamento nervoso estalando e instantaneamente um traço prateado passou ziguezagueando pela espinha dorsal,
exatamente como o movimento sinuoso de uma serpente branca’, ‘um esplendor brilhante e prateado’, ‘brilho prateado’,
‘brilho leitoso’, ‘neve recém-caída’. Esta passagem é especialmente relevante: ‘parecia como que se uma fina camada de
uma poeira rala pousava entre mim e os objetos percebidos [...]. A poeira estava na tela consciente que refletia a imagem dos
objetos. Parecia que os objetos vistos eram enxergados através de algo esbranquiçado, o que dava a impressão de que uma fina
camada uniforme de giz havia sido derrubada sobre eles [...]. A camada estendia-se entre mim e o céu, os galhos e folhas das
árvores, a grama verde, as casas, as ruas pavimentadas, as vestimentas e as faces dos homens, dando a tudo uma aparência
branca de giz, precisamente como se o centro consciente em mim [...] estivesse então operando através de algo branco, um
intermediário branco, que necessitasse de refinamento e clareza maiores [...]’ (Ibid, p. 140-141). Cf. o meu comentário,
ibid. p. 156.
Figulus, p. 304.
Cf. Hillman, J.
. Nova York: Harper & Row, 1979, p. 168-171.
.
Rees, G. ‘
’. Ambix, 26, 1979, p. 202-211.
106
do sol e de calor reduz-se à essência psíquica, seres puramente imagens. Uma das conotações
de ida é a “não existência”,55 e a transição para a prata, como no caso de
, é uma
experiência arrepiantemente mortal.
Sonhos com neve poderiam ser colocados dentro desse contexto. Eles podem estar se
referindo menos a sentimentos congelados e relacionamentos gelados, e mais à recém-caída
neve da experiência ida, ou à aparição do enxofre branco e do mercúrio branco, o pó de giz
com aparência de magnésia que começa a cobrir os objetos com um novo lustro, por um
lado criando uma sensação do remoto e da irrealidade da vida comum do dia a dia e, por
outro, congelando e firmando a realidade psíquica na terra branca. O fortalecimento da
fantasia em obstinado fato psíquico requer resfriamento. A alquimia fala do congelamento
como uma das grandes operações. A frieza aqui não é amarga, mas aliviante, como se a
psique voltasse a si, perdendo um pouco de seus volteios aéreos, sua atração pelas chamas,
suas ligações suculentas, tornando-se mais firme e sólida, alcançando seu tipo de terra ao
tornar-se fria. A frieza então é um modo de aprofundamento pela adstringência, secando,
dando uma base e enrijecendo a mente, solidificando a prata, desenvolvendo sua estabilidade
e passividade de forma que ela pode melhor receber sua própria matéria no espelho frio da
reflexão. Aquelas pessoas introvertidas, esquizoides e intuitivas (chamadas, nas descrições
clínicas, de frias, distantes e apartadas) são as pessoas para as quais as formas e reflexões da
mente carregam a maior convicção.
Por que então não nos voltarmos para nossas condições mais frias a fim de extrair a prata?
Estou pensando especificamente no ódio, que é um dado da realidade psíquica tão natural ao
nosso submundo das trevas individual como era o frígido Rio Estige (e esse nome significa
odioso, ódio) ao submundo mitológico e aos deuses.56 O palácio dessa deusa de ódio era
sustentado por pilares de prata (Hesíodo,
), e jamais uma água foi mais fria.
Talvez nossos ódios não sejam apenas pessoais, mas necessidades da prata, estabilizando a
mente com princípios, dando suportes determinados para seu espelhar. Pois se no amor nada
enxergamos, no ódio cada frase do outro salta aos olhos com detalhes cruéis. Talvez odiar
pertença à fabricação da prata, e seja um requisito para a conjunção com o ouro, em que a
visão da perfeição embeleza todas as coisas com um brilho dourado.
Talvez a conjunção também signifique uma conjunção das sombras do ouro e da prata amor dourado temperado por um ódio que esfria o otimismo do coração com percepções
adstringentes como um vidro prateado e frio dentro da mente. O trabalho com a prata pole o
ódio. A natureza salgada pessoal do odiar e sua compulsão sulfúrica tornam-se “translúcidas”,
de forma que o objeto pessoal do ódio e os sentimentos pessoais resolvem sua estreiteza de
foco na face de uma imagem, como uma amedrontadora máscara japonesa, tibetana ou grega.
Enrijecer a mente, não o coração, pois a coragem e a fé que o ouro traz ganha um valor
verdadeiro somente quando estão casados com essas profundezas frias de insight terreno que
o ódio tão bem provê.
6) A prata também pode ser obtida do lado oculto da lua, a face da psique que está voltada para
longe da vida na terra em direção aos confins longínquos das influências planetárias. Estou agora
falando de um aspecto da Luna que se vira de costas para a terra e que não participa das atividades
do dia. Ainda assim esse lugar é tradicionalmente habitado por almas penadas e almas mortas,
daimones, vultos e fantasmas cuja presença é sentida quando nossa consciência está como a prata
55
56
Krishna. Kundalini, p. 157. - Bharati, A.
Cf. Hillman, J.
. Londres: Rider and Company, 1965, p. 173-177.
. Op. cit., p. 57-59.
107
pretejada, uma escuridão dada primordialmente e não meramente enegrecida pela exposição aos
eventos. Sentimos essa prata pretejada como premonições e presságios, humores venenosos e
fantasias lunáticas que baixam em nós, como se baixassem da lua, sem relação com o mundo do
dia. Há prata nessas condições abstraídas, fantasmagóricas, apartadas, espectrais e readquirimos
nosso metal reflexivo ao escavarmos nossas assombrações e pressentimentos supersticiosos em
busca de imagens psíquicas e pepitas de ideias.
Segundo o ensaio de Plutarco sobre a face na esfera da lua, nossa personalidade composta corpo, alma, espírito – sofre pelo menos duas mortes ou separações.57 A primeira, que Plutarco
chama de a morte de Deméter, ocorre na terra e separa alma e espírito do corpo, rápida e
violentamente: morte natural. A segunda morte acontece na lua. Essa morte pertence a
Perséfone. Ela separa a mente (nous) da alma, delicada e vagarosamente, resultando em almas
sem mente e mentes sem alma. Essas almas na lua tornam-se, por assim dizer, fantasias livres
flutuantes, desincorporadas e insensatas, totalmente imagens ou eidola (945a). São conduzidas
pelo “elemento afetivo destruído pelo delírio” (945b). Entretanto, essas almas lunáticas
alienadas podem ser ordenadas pela lua, diz Plutarco, se permanecerem lá naquele lugar e
naquela condição, pois em tempo receberão nova luz, podendo retornar às atividades
terrenas e corpos humanos numa condição sã.
A mitologia de Plutarco sobre a vida após a morte é também uma psicologia da loucura, pois
descreve a condição de almas desencarnadas e insensatas sob a influência de “Perséfone
contraterrestre” (944c), esperando seu retorno à luz. Essas são as almas que “piraram” ou que
“perderam sua cabeça” - ou que a cabeça as perdeu – que separamos alojando-as em asilos
para lunáticos, um lugar à parte, como o lado oculto da lua, onde os deuses dominantes do
lugar realmente parecem ser Hécate, Lilith e Perséfone. No manicômio, a morte de Perséfone,
separando mente de alma, ocorre antes da morte de Deméter. Pode-se esperar suicídio num
manicômio.
Segundo Plutarco, as almas nessa condição de prata empretejada (como a estou chamando),
imagens sem reflexo de si mesmas como imagens - totalmente no escuro e ainda assim
psíquicas - não podem esperar pacientemente em sua loucura. Levadas por uma crença
delirante nos afetos (944/), elas desejam entrar muito rapidamente em corpos, dando lugar a
várias condições monstruosas como Títio e Tifão, sempre confundindo o oráculo de Delfo
(945d), ou seja, confundindo a habilidade das imagens de lançar para frente sua inerente
inteligência como insights providenciais, estabelecendo limites, medidas e padrões para o
comportamento humano. Evidentemente para Plutarco a incorporação de uma fantasia (eidolon)
de uma maneira insensata leva a uma incorporação precipitada (“actingout”), uma entrada
direta da alma no mundo sem ter sido ordenada pela lua. A prolongada familiaridade com a
escuridão lunar, ou prata pretejada, permite a incorporação correta que não pode acontecer
até que a alma sucumba inteiramente à Luna. Sucumbir a seu lado escuro abre-nos às luzes
mais pálidas das influências planetárias, os múltiplos raios demasiado tênues para serem
notados na luz monocular do sol. Então a alma pode entrar no mundo consciente de si
mesma enquanto imagem. É essa prata do imaginal que sustenta o espelho reflexivo através
do qual nos reconhecemos como imagens. Retornamos ao mundo com os eidola do imaginal,
que se tornou real somente quando estávamos na lua, delirantes, iludidos, demoníacos, sem
acesso a Deméter.
57
Plutarco. ‘
’. [s.n.t.], 943a até o final.
108
Especulo (a prata também é trabalhada na especulação: speculum = espelho; species =
semelhança, aparição, imagem, moeda) que é precisamente essa prata do lado remoto da lua
que provê o suporte para a mente de forma que ela possa reconhecer nas questões terrenas
as influências planetárias, a presença dos deuses que dão ao mundo sua inerente
inteligibilidade. Na lua, na loucura, a alma “ganha tensão e força, assim como instrumentos
cortantes ganham seu corte e, qualquer imprecisão e difusibilidade que ainda tenham, são
fortalecidos e tornam-se firmes e translúcidos” (943d). Sem a prata suficiente acreditamos
erroneamente que os afetos são mais reais e confiáveis que as imagens. É necessário uma
estadia com Perséfone para enrijecer a flacidez da sentimentalidade da alma, para amolar o
fio da faca da mente. E sem prata suficiente erroneamente acreditamos - porque não
ousamos especular, porque desvalorizamos a prata, porque não queremos ser frios, porque
tememos o corpo aéreo - que as imagens são dadas pelos objetos imaginados; enquanto elas
aparecem somente num vidro prateado, para nós, refletindo a nós mesmos como imagens.
Para a fotografia, a prata é o metal essencial para fixar a luz de forma a tirar uma foto. Para a
psicologia, sem prata, sem imagem; sem imagem, sem reflexão.
7) O último lugar para a extração da prata é ainda mais complexo e sutil do que nossa decocção do
dinheiro ou da lua. Esse lugar tem a ver com som. O dicionário de alquimia de Ruland de 1612 diz
que a prata é particularmente ressonante: ela ressoa, ressona, re-soa. Estamos agora nos movendo
das formas prateadas da fantasia em direção a seus sons prateados - formas como sons. Por
exemplo, o modo de construção dos mais antigos instrumentos musicais, assim como as formas
das letras hebraicas e árabes, foi supostamente derivado das variadas formas da lua.58 Os padrões
de nossa fala e as estruturas de tons musicais são assim legendariamente atribuídos à lua. A prata
também se conecta com eloquência no simbolismo cristão, especialmente a eloquência dos
evangelistas que realizam o que está dito no
: “As palavras do Senhor são palavras puras, como
prata refinada [...]”. Pr 10,20: “Prata escolhida é língua do justo [...]”. Ainda é um clichê falar de
sopranos de voz prateada e de oradores com língua de prata.
, o mais
renomado orador da história americana, fez seu mais renomado discurso em defesa da prata.
Na peça de Shakespeare sobre os dois lunáticos e aluados amantes, Romeu diz (na cena do
balcão do Ato II): “Que doce som de prata faz a língua/dos amantes à noite, tal qual música/ langorosa que
ouvido atento escuta”. No Ato V, quando entram os músicos desfilando sua inteligência, a
resposta do Primeiro Músico à pergunta, “Por que música de notas argentinas?” tem duplo sentido,
pois “a prata tem um som doce” e “os músicos tocam por prata” - novamente nosso tema da prata e do
dinheiro. Quero me dirigir aqui à garganta e, para tanto, evoco uma espantosa passagem de
William Faulkner que conecta lua, prata, dinheiro, negror e garganta. Em
[Desça,
Moisés/, a história “
” [“Pantalão Negro”] dá ao “luar” um novo significado, pois já
não é simplesmente aquela bebida sem cor feita secretamente pela luz da lua; é uma prata
líquida fria que o negro maluco da história derrama em sua garganta repetidamente
enquanto caminha em direção a um desfecho lunático de assassinato por causa de um
bocado de dinheiro. A cena se passa sob o luar, a personagem movimenta-se pelo ar prateado
quase sólido, com sua garganta solidamente cheia do prateado, cintilante, arrepiante, gélido
ar líquido da bebida.
A curiosa ênfase que Faulkner coloca na solidez desse espírito, a substancialidade do ar na
garganta que produz a loucura aparece num outro contexto radicalmente diferente: o chakra
vishudda da
. Esse é um dos sete centros do corpo sutil ou imaginal. Vishudda está
58
Cirlot.
109
na garganta; é representado por um elefante branco; seu elemento é o éter e se refere à
palavra, à voz na fala e na música.59 Aqui o ar torna-se essência (éter); ganha peso e as
palavras podem sustentar exércitos. Encontramos aqui a solidez resistente da mente, onde o
que dizemos e cantamos tem a densidade e a durabilidade de um elefante.
Jung fala a respeito do chakra vishudda: “O poder do elefante é emprestado às realidades psíquicas”.60 “Os
fatos psíquicos são a realidade em vishudda”.61 Somente em vishudda “confiamos na certeza da realidade
psíquica”.62 Palavras, conceitos, ideias, o logos interior que fala conosco em nossos grunhidos e
zunidos semiconscientes, as vozes do espírito, os esboços da mente ao alcançarem lá embaixo
o coração e lá em cima a testa - tudo isso no centro da garganta torna-se extrema e
maciçamente real, ainda que branco, sem nuanças ou matizes. Nada é tão pesado ou pesa
mais do que aquilo que soa de nós, assim como o tom e a intensidade de nossa voz real - um
som áspero e irritante, uma voz embargada, um tom monótono anasalado - revelam a forma
de nossa alma.
Se a prata pode ser extraída da garganta, temos também que aprender a escutar com a prata,
branquejar nossos ouvidos de forma a sintonizarmos com as ressonâncias. Essa é a arte de
ouvir musicalmente, deixar a palavra ressoar, assim como o Segundo Músico brinca com o
som de prata da música do Primeiro Músico, duplicando o sentido, apanhando uma inflexão
adicional nas palavras. Extrair a prata de nossas próprias sílabas: Silben como silbern. Afinal, o
que é a psicoterapia senão a arte da escuta, e da fala?
Parece que estamos abrindo uma psicologia do vishudda, e não somente uma psicologia
originada no muladhara (sexo, família, sociedade), svadhisthana (a batalha heroica com o dragão das águas
inconscientes), manipura (fúrias e energias, as gestalts mais profundas da emoção pessoal), ou anahata
(sentimentos). Como parte de seu empreendimento politeísta, a psicologia arquetípica senta-se
no lombo de vários animais, tinge suas abstrações com cores diferentes e trabalha nas minas
de vários metais, não apenas o chumbo depressivo de Saturno e o mercúrio de Hermes.
Imaginem! As palavras não somente como anjos com suas trombetas de prata, mas
descendentes do mamute; palavras como presas de elefante, abrindo seu caminho em nossa
mente, desgrenhadas, erguendo-se acima de nossas ações frenéticas, bem perto da jugular.
A prata através da qual ouvimos a sonoridade nas palavras implica que elas são universos em
si mesmas e não necessitam de referências para serem autenticadas. As palavras ressoam suas
próprias profundidades de reflexão - alusões, aliterações, etimologias, trocadilhos, os disfarces
da retórica. Essas ressonâncias nas palavras são cantares de anjos até então sufocados pelas
regras de ouro da lógica, das referências objetivas e definições. Estamos no reino das vozes,
na demência: a mente ressoando a si mesma, ressoando suas profundezas, escutando sua
natureza essencial como um coro de vozes, de vozes discordantes, antifônicas, sensíveis - as
almas mortas falando em nós, fantasmas pendurados balançando na árvore genealógica, os
ainda não nascidos agrupados na lua, todos ressoando, falando com nossas vozes e escutando
as deles, alucinatórios.
Esses fantasmas, e suas vozes, são o modo de mentalização da prata; a mente que espelha a
mente. A prata nos dá pausa, aquela nobreza específica da mente da qual Hamlet fala em seu
59
60
61
62
O navio veloz e prateado dos Argonautas ‘tinha, nos relatos mais antigos, o dom da fala’ (Kerényi, K.
. Londres: Thames and Hudson, 1959, p. 252).
KY, p. 56.
Ibid
KY, p. 46.
110
exemplar solilóquio reflexivo (
). “O tom nativo da resolução” (ouro sozinho?) que leva a
“aventuras de grande vigor e força” são “ceifados pela sombra pálida do pensamento” e “perdem o nome
da ação”. Esta hesitação de anima traz imediatamente sua personificação, Ofélia, ao palco. A trágica
disjunção entre eles demonstra a impossível coniunctio (“não mais casamentos”) de dois lunáticos,
de duas loucuras, cada uma distanciando-se da outra, voltando-se para outro caminho.
Alucinatório, lunático, demente: “Pois vishudda significa exatamente aquilo que eu disse: um
reconhecimento total das essências ou substâncias psíquicas como essências fundamentais do mundo, e não por
causa de especulação, mas por causa dos fatos, como experiência”.63 Essas “essências psíquicas”, que são os
fundamentos do mundo, tornam-se experiências quando a mente está prateada, e as imagens
vividamente gravadas. Da perspectiva de outros centros e outros deuses tais experiências
serão chamadas de lunáticas.
Para recuperar a prata, quero dizer, estar convencido do valor da reflexão, do sentido da
beleza psíquica, da clareza, em resumo, estar com a mente sã ou sadia, devemos ouvir todas
as coisas reverberarem como palavras e expulsar de todas as palavras sua escuridão exterior
(aquela escuridão que vem de sua referência a um corpo externo, um movimento que
desincorpora a palavra de sua própria substancialidade, seu corpo de ar, sua voz nativa). Ao
escutarmos as próprias palavras, permitimos que elas soem cada vez mais claramente, como
se o ouvido alvejado pudesse ativamente livrar a fala de seus literalismos.
Esse é um ouvido para a retórica, para o ritmo, o som, a respiração e para o silêncio; um
ouvido que evoca as essências psíquicas, um chamado do elefante, suas trombetas, de forma
que tudo lido ou dito importa para a alma, pois traz consigo matéria psíquica. Para
remodelarmos com graça nossa linguagem psicológica, nossos livros, palestras e horas de
análise teríamos que calcinar e lustrar nossos ouvidos.
Escutar as palavras: elas brilham em sua própria prata. Em última análise, o espelho é mais
sólido e real do que o mundo que ele supostamente reflete, a imagem mais brilhante que o
objeto, todas as coisas ressoando. “O próprio mundo torna-se um reflexo da psique”.64 “Ele [o elefante]
está corroborando essa coisa que julgamos ser a mais aérea, a mais irreal e a mais volátil, ou
seja, o pensamento humano. É como se o elefante estivesse então fazendo dos conceitos uma
realidade”.65 No caminho para o vishuddha “deveríamos até mesmo admitir que todos os nossos
fatos psíquicos nada têm a ver com fatos materiais. Por exemplo, a raiva que você sente por
alguém ou por alguma coisa, não importando o quanto ela esteja justificada, não é causada
por essas coisas externas. Ela é um fenômeno em si mesma”.66
Essas fases lunáticas são minas de prata. Quando adentramos a mina, cai sobre nós a
maldição de ficarmos lunáticos. Jung fala da experiência do vishudda como “um tipo muito
perigoso de aventura”.67 Esses lugares, ou fases, não requerem a extração no calor da paixão, ou
com o sentimento do coração. Eles são fornalhas sem calor e martelo, onde a prata se separa
63
. O uso de Jung no plural (‘essências ou substâncias’) é comparável à pomba prateada ‘como uma imagem de
pluralidade’ análoga ao simbolismo tradicional da Igreja onde a imagem da pomba apresenta a ‘multidão dos
virtuosos’ (
. Princeton; Princeton University Press, 1966, p. 238-239).
Evidentemente, a
na alquimia e a
nas descrições de Jung resistem a unificações, até mesmo
definições. Cf. Hillman, J.
. Op. cit.
64
65
66
67
KY, p. 55.
KY, p. 49.
KY, p. 50.
111
do minério e escorre cristalina como um espelho, alvejando toda a terra. Nem holocausto,
nem filigranas da fantasia, nem depressão; a prata extraída apenas do chumbo; agora
simplesmente o estalar do metal frio que ressoa um evento de volta com outra ressonância,
estranhamente paranoide ou despersonalizado. Subitamente metafórico. “Aquilo que
realmente importa numa metáfora é a profundidade psíquica na qual as coisas do mundo,
quer sejam reais ou imaginadas, são transmutadas pelo calor gelado da imaginação. O
processo de transmutação envolvido pode ser descrito como um movimento semântico”.68 Os
significados mudam; as palavras transformam-se em coisas, as coisas em palavras.
Os críticos literários falam de voz, de implicações, de sugestões, de teor (e o termo técnico para
elefante no vishudda chakra é “veículo”).69 Estamos na garganta da metáfora - não meramente
metáfora como uma figura de linguagem e um problema semântico, mas como uma visão
ontológica com uma base psíquica no corpo sutil da consciência vishudda e uma base
alquímica na prata. “A metáfora é o trabalho de sonho (dreamwork) da linguagem”, assim começa o
ensaio de
;70 e Nelson Goodman71 termina o seu assim: “Na metáfora os símbolos
enluaram”. As metáforas são linguagem psicológica - e toda a alquimia é metafórica, a luna
metaphorica de que falou Benedictus Figulus - tornando sutil tudo aquilo que alguma vez
julgamos ser apenas fato empírico, quer sejam eventos no mundo, nossa própria carne, ou até
mesmo os minerais elementares na terra. A alquimia transmuta o mundo para o sonho, o que
ela faz no laboratório de sua linguagem.72
Por isso a prata é tão essencial a esse trabalho, e tão secreta, e aqui começam as reclamações.
A prata está escondida porque está enterrada ao longo de toda a obra alquímica, dentro de
cada palavra, como a ressonância metafórica que transfere tudo o que é dito ou feito para
um nível psíquico. A prata é necessária desde o princípio, ou então não conseguimos ouvir
corretamente as instruções. “Jogue fora os livros”, dizem os alquimistas, querendo dizer “descartem
o literal”, de forma a ouvir o espírito na letra.
Entretanto, se a prata é o mineral que dá a base para uma consciência metafórica, então uma
psicologia que se firme, como faz a alquimia, numa ontologia metafórica - tudo está em
movimento semântico - terá que comportar a patologia da loucura. Ouvir o mundo falar,
considerar que as emoções não são “nossas”, permanecer no lado escuro da lua e transmutar
a matéria em sonho - e especialmente aquele movimento semântico rumo ao significado
acasalado sempre com frieza e dureza - convidam despersonalização e paranoia.
Essas patologias poderiam nos levar a imaginar que a prata é pura reflexão, suprema
subjetividade. Mas, num universo alquímico, os metais estão nas coisas assim como em nós
mesmos, de forma que as coisas refletem e ressoam com subjetividade tanto quanto nós que
somos corpos minerais, mesmo enquanto o mundo “objetivo” respira e deseja. A palavra
“subjetividade” não se aplica, pois o que é subjetividade sem um sujeito? Numa psicologia do
vishudda que fala a partir da garganta há somente essências psíquicas, ressonâncias que não
pertencem a ninguém ou que pertencem ao minério da prata.
68
Wheelwright, P. Metaphor and Reality, Bloomington: Indiana University Press, 1962, p. 71.
, cf. Richards, I.A.
. Oxford University Press, 1936, p. 100.
70
‘
’. In: Sacks, S. (org.). On Metaphor. [s.1.]: University of Chicago Press, 1979, p. 29.
71
‘
’. In: Sacks, S. (org.). On Metaphor. [s.l.]: University of Chicago Press, 1979, p. 175.
72
Cf. o ensaio de Randolph Severson que revê Freud como alquimista
(‘
’. Dragonflies: Studies in Imaginal
Psychology, vol. 1, n. 2, 1979), que conclui com a seguinte frase: ‘A matéria é transformada em imaginação’.
69
112
Então o que é a reflexão quando não há nenhum sujeito refletido, nem emoção, nem objeto
externo, nenhum fato? A própria ideia de reflexão transmuta-se de testemunha de um
fenômeno, um espelhar de algo outro, para uma ressonância do próprio fenômeno, uma
metáfora sem um referente ou, melhor dizendo, uma imagem. E essas imagens ou corpos
sutis não refletem uma luz emprestada, posterior, mais fraca. A prata não vem depois do
ouro, mas, ao contrário, precede-o. De forma que as imagens têm sua própria dureza, seu
brilho e soada inatos. Elas não são reflexos do mundo mas são a luz através da qual vemos o
mundo. A psique vem para cada momento do mundo a partir da lua - não apenas uma vez
no nascimento, numa mitologia da criação, mas no nascimento a cada dia, agora mesmo.
Essa luz, através da qual o mundo reflete-se em nós, é a luz da prata, escondida como a lua à
luz do sol; escondida, pois é branca e rápida, embora a cada momento esteja dando o valor
diferenciado de alma a cada coisa específica que a luz do sol mostra como a mesma, pois o
sol brilha magnânimo sobre todas as coisas por igual; essa é a luz da prata que a obra
alquímica luta por reconstituir e refinar.
Terra alba, o branqueamento e a anima
Albedo é um outro termo alquímico para Luna e para prata. No simbolismo alquímico das
cores o branco é o principal estágio entre o preto e o vermelho, uma transição da alma entre
o desespero e a paixão, entre o vazio e a completude, o abandono e o reino. Albedo é também
a primeira meta da obra, que vem depois que a nigredo dividiu o mundo entre mente e
matéria, e antes que a rubedo restitua o corpo sutil a seu mantenedor carnal. Por causa dos
alertas alquímicos sobre o “enrubescimento que vem depressa demais” e sobre os corvos pretos
arrastando-se de volta ao ninho, a albatio ou “branqueamento” é essencial, por um lado para
retardar o enrubescimento e, por outro, para retirar o negror (nigredo) de sua inércia. Como
um estado intermediário, a albedo é chamada de noiva, Maria (como intercessora), lua,
amanhecer e pomba. Como um estado intermediário está intimamente ligada àquilo que ela
junta, mas, ainda assim, mantém-se distinta. Portanto, ela corresponde àquele reino do meio e
àquela atitude mediadora à qual nos referimos como “realidade psíquica”,73 de forma que as
descrições da albedo e da terra branca nos ensinam algo sobre a natureza da realidade
psíquica e as operações da albatio nos ensinam como a realidade se torna psíquica e a psique
se torna real.
Mas muito cuidado aqui! Há pelo menos dois tipos de branco: “condições que amiúde iguais
parecem/embora difiram por completo” [“conditions which often look alikelyet differ completely”], como diz
T.S. Eliot em “
”. Há, como mencionado acima, um branco original, a Luna primária
ou leite da virgem, virgem pura, fumaça, nuvem, o carneiro, cuspe da lua, urina do bezerro
branco, verão, umidades brancas, barrela, xarope - todos nomes para o material primário,74
todos nomes para aquelas primeiras e repetitivas misérias da alma: as nostalgias xaropentas e
beijos superávidos, amor de carneirinho, a boca de desejos salivantes (a fase oral de Freud), os
dias sob as nuvens, o verão, o remorso da consciência introspectiva, a fumaça que não vira
fogo e nem se dissipa e, sobretudo, aquela inocência psíquica do eu, do mundo e dos outros
que a psicologia renomeou de “inconsciente”. Esse branco primário é pré-preto. Aparece em
figuras de linguagem, em comportamentos e em sonhos, quer aqueles feitos à noite ou os
feitos por publicitários: o sorriso branco do creme dental, os removedores de manchas, os
73
74
Lexicon, v. ‘
’.
113
milkshakes e os sorvetes, calças de flanela branca, estações de esqui, consciência-de-aspirina,
“jes’ fine, jes’ fine”.
O branco primário é imaculado (sem manchas ou marcas), inocente (sem mágoas,
inofensivo), ignorante (que não sabe, desatento), ilibado, puro e limpo. Essa condição não
pode ser a terra alba porque não há terra para ser branqueada. Então o trabalho começa com
essas condições brancas originais, enegrecendo-as ao chamuscá-las, feri-las, amaldiçoá-las,
apodrecendo a inocência da alma, corrompendo-a e deprimindo-a na nigredo que
reconhecemos por seu fedor, seu impulso cego e pelo desespero de uma mente
desperdiçando-se na matéria, perdida em suas matérias e questões introspectivas, suas
justificativas materialistas para o que deu errado.
Nosso branco, o segundo branco ou albedo, emerge desse preto, uma terra branca que vem de
uma terra chamuscada, como a prata vem do fogo da floresta. Há uma recuperação da
inocência, embora não em sua forma prístina. Aqui inocência não é a mera ou pura
inexperiência, mas, ao contrário, aquela condição em que não estamos identificados com a
experiência.
A virgindade retorna como impessoalidade. Ou, digamos, a memória retorna como imagem,
aquela noite junto ao álbum de fotografias e você não é a pessoa lá nas fotos e talvez nem
mesmo a pessoa que vira as páginas. Experiência e experimentador não mais importam uma
vez que “as imagens que ainda assim/ imagens frescas produzem” libertam-nos da nigredo da
identidade pessoal para os espelhos das reflexões impessoais.
Essa segunda brancura também não é mera ignorância, uma negligente despreocupação com
o mundo e seus caminhos. Em vez disso, aquela casualidade com o mundo e seus caminhos
que resulta das realidades psíquicas terem precedência sobre uma percepção mais terrena
que busca resolver as dificuldades psíquicas ou fora do mundo ou dentro do mundo. A
albedo não prefere nem introversão nem extroversão, uma vez que as diferenças entre alma e
coisa não mais importam, ou seja, não são mais imaginadas nos termos materiais da nigredo.
Esses dois brancos combinam-se na anima, e esta é uma das razões pelas quais a anima é
uma questão psicológica tão complexa. Ela é a Deusa Branca75 e também Cândida/candida, a
pequena inocente. Os dois brancos fazem sombra um para o outro, de forma que latente na
inocência branca e em sua estupidez sedutora está o anseio de Cândida pela mente branca,
enquanto sombrear a sofisticada Deusa Branca significa tanto a nifablepsia76 da pureza quanto a
cegueira da imaginação lunática, estar “pirado”, que nos ilude repetidamente para aquela
descuidada ignorância que era o material primário. Por causa dessas sombras brancas
devemos nos esforçar nesta seção para diferenciar o branco sofisticado de sua queda na
condição primária.
As transições de cor em nossos humores, preferências e figuras oníricas refletem alterações
no material da alma. Na medida em que a psicologia alquímica equacionou mudança de cor
com mudança de substância, a albedo não é somente um estado intermediário, mas uma
condição em si. Entretanto é difícil falar a partir dessa condição: ou se tem a tendência de
senti-la como uma melhora, como saindo da escuridão, congratulando a brancura no
simbolismo cristão do batismo e da ressurreição, ou se tem a tendência de senti-la como um
75
Para uma esplêndida fenomenologia, cf. GRAVES, R.
Farrar, Straus and Giroux, 2000.
76
Cegueria temporária em consequência do reflexo da luz solar na neve [N.T.].
. Nova York:
114
“ainda-não”, um potencial silencioso (Kandinsky),77 uma ausência, algo que ainda tem que se
tornar da cor do próprio fogo (Corbin).78 Tentaremos, contudo, estar num campo intermediário
falando do branco como se estivéssemos pisando sua terra.
Em muitos contextos psicológicos, quando a palavra terra aparece, ela nos leva para baixo:
rituais da terra e vasos de barro, mãe terra e ciências da terra, gravidade e o grave. A
psicologia assume que a terra é material. Patricia Berry79 escreveu sobre Geia, Deméter e a mãe
arquetípica, comentando que “terra” é aquele mecanismo projetivo através do qual nos
descarregamos da matéria, um depósito elemental para o complexo materno moderno.
Imaginamos a terra somente com uma imaginação material, aquela falácia naturalista que
identifica o elemento Terra com terra natural e solo: para sermos terrenos, devemos ser sujos
e ser do solo. A psicologia insiste que a Terra é nosso corpo vermelho, mãe marrom, madona
negra. Abra o
e lá, em meio aos concretismos de lençóis rochosos,
cordilheiras, ervas e canoas, você buscará em vão os caminhos materiais da mente e as
qualidades do solo psicológico, as paisagens interiores, as áridas planícies, os pântanos
lamacentos, as moitas secretas onde se entrelaçam os amantes verdes, e também as falhas
geológicas e ilhas, continentes inteiros da mente, uma geografia imaginal cujo catálogo cobre
toda a terra, pois Geia é também uma região da alma - terra branca.
Embora a terra moderna naturalista da psicologia seja um elemento de sustentação, ela
sustenta principalmente fantasias espirituais heroicas. Até Bachelard mistura terra não apenas
com repouso sustentado, mas também com as fantasias da vontade (forjar, cortar, conquistar,
trabalhar, ação)80. A silenciosa e indolente materialização da terra, assim como a fantasia que
ela precisa de ataque (escavar, arar, remover), insulta Geia, como diz Berry, enterra-a em nossa
sujeira, força-a a carregar nossa concretrude deslocada, privando-a de seu próprio céu
interno, Urano, suas próprias possibilidades luminosas e celestiais.
Como uma deusa, a Terra é também invisível. Ela gera imaterialmente, de forma não natural.
Talvez ela sustente mais onde está mais invisível, nos territórios psíquicos do repouso, como
o vazio do vaso que é o vaso, ou ainda como a pausa dentro de todos os ritmos, o vazio do
tambor,81 fazendo sua vontade com as formas intangíveis das coisas dentro de sua matéria
visível.
77
‘Branco é o símbolo de um mundo muito acima de nós, de silêncio - não um silêncio morto, mas um silêncio
pleno de potencialidades.’ ‘É um vazio que enfatiza os começos, algo ainda não nascido’ (Grohmann, W.
. Nova York: Harry N. Abrahams, 1958, p. 88).
78
‘
’. In: Ottmann, K. (org.).
.
Putnam, Conn.: Spring Publications, 2005, p. 45-108. Deliberadamente evitei quaisquer discussões alquímicas
sobre a
neste ensaio, pois isto requereria uma mudança total de perspectiva, de retórica e de imagens.
79
‘
’. In: Berry, P.
. Putnam, Conn.:
Spring Publications, 2008, p. 9-22.
80
Bachelard, G
. Dalas: The Dallas Institute Publications,
2002) [Em português: A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. São Paulo:
Martins Fontes, 1990].
81
Cf. Miller, D. ‘
’. In: Hillman, J. (org.).
. Dallas: Spring Publications, 1980, p. 92-94 {Em português: Encarando os deuses. São Paulo:
115
As noções grosseiras de terra na psicologia contemporânea revelam seu materialismo; essa
psicologia é tão heroica e espiritualizada que a mãe tem que carregar suas bases. Não é de se
estranhar que a psicologia moderna não possa abandonar sua filosofia do desenvolvimento,
seu concretismo de laboratório e confiança nas medidas, suas explicações redutivas. Ela não
encontrou uma outra terra que desse suporte e ainda assim não fosse materialista.
Essa outra terra é descrita por Henri Corbin em seu livro
. Há uma
Terra maravilhosa, um lugar imaginal (ou uma localização no imaginal) cujo “solo é uma pura e
muito branca farinha de trigo”.82 Ela tem uma física, uma geografia, climas e fertilidades. Essa
também é uma base, a terra que nossas cabeças tocam da mesma forma que nossos pês
tocam esta terra aqui. Nossas cabeças estão sempre buscando lá no alto a terra celestial. E o
problema das viagens da cabeça não é que sejam viagens ou que sejam cerebrais, mas que
elas não têm chão, base. A fim de aterrar esses voos da fantasia e excursões ideativas, a
psicologia manda a cabeça para baixo de volta à terra material, insistindo que ela curve-se à
madona negra da existência concreta tangível. A psicologia não consegue perceber que as
viagens siderais da cabeça estão à procura de um outro chão lá longe, numa tentativa de
atingir a atópica, distante e deslocada terra alba da inspiração anímica. É como se a
psicologia não tivesse nem mesmo lido a primeira página da Bíblia, que nos relembra de dois
firmamentos, acima e abaixo.
O trabalho de Corbin abre uma perspectiva radicalmente diferente com respeito à terra e ao
chão: o firmamento acima é um chão arquetípico e angelical da mente. A mente descende de
configurações arquetípicas; ela está originalmente em conversa com os anjos e tem essa
originalidade angelical possível sempre, de forma que todos os eventos terrestres e materiais
podem ser restituídos por um ato de ta’wil (retorno) a seu chão original na terra branca. Se
nos aterrarmos no firmamento de cima então tudo fica virado de ponta cabeça, e é
precisamente ao virarmos tudo ao contrário (enxergar através, metaforizar, ta’wil) que a
matéria grosseira se torna sutil. Para se fazer a terra alba precisamos começar na terra alba. A
consciência da anima, consciência anímica, ou a albedo na alquimia, oferece um modo diferente
de percepção. Ver, ouvir, atender, tudo muda, das ligações grosseiras da nigredo em direção a
uma nova transparência e ressonância. As coisas brilham e falam. Elas são imagens, corpos
de sutileza. Elas se direcionam à alma ao exibirem suas almas.
Aquilo que aqui está apresentado na linguagem sutil de Corbin e da alquimia pode também
ser afirmado na linguagem grosseira de nossa psicologia comum. A fase chamada de
branqueamento na alquimia refere-se à emergência da consciência psicológica, da habilidade
de escutar psicologicamente e perceber a fantasia criando a realidade (
).
Enquanto a psique estiver lutando com a nigredo, ela estará emocionalmente presa, imersa
em materializações, fascinada pelos fatos, oprimida. E sentirá o “material” psíquico
principalmente como denso e difícil: ela tem sonhos tão longos; fico confuso ao escutá-lo;
esse é um caso difícil; as horas de análise me exaurem, me drenam, me deprimem – um longo
mortificatio. A gnosis da nigredo é principalmente diagnóstica e prognóstica. Seu olhar está na
materialização das predições, fascinada pelas várias formas de putrefactio que a psicologia
clínica chama de “diagnósticos”. (O manual diagnóstico DSM é um catálogo da materia prima
entrando em estados de nigredo, como uma das listas de Ruland.) O olho da nigredo procura
82
Cultrix/Pensamento, 1992], sobre o tambor e a magna mater que pode ser tanto
quanto
. Sobre os
ritmos da alquimia, cf. Bachelard.
. Op. cit., p. 195.
. Princeton: Princeton University Press, 1989, p. 156.
116
pelo que está errado, o caput corvi (cabeça do corvo) dos presságios e profecias. Está preso em
questões físicas, quer seja na etiologia (é um problema orgânico, neurológico?), na
transferência (tocar ou não tocar?), ou no tratamento (pílulas, trabalho corporal, ou talvez
dança-terapia?). Tudo o que é grosseiro lança um manto de fisicalidade sobre o corpo sutil do
paciente.
O aterramento da mente na terra branca é o que chamei em outros ensaios de a “base poética
da mente”; consciência – não o produto da matéria cerebral (hemisfério direito ou esquerdo, pois isto
ainda é matéria), da sociedade, da sintaxe ou da evolução - mas um reflexo de imagens, um
processo contínuo de poiesis, a geração espontânea de fantasias com forma. Portanto, para a
mais profunda compreensão da mente somos obrigados a nos voltar para a poesia. Devemos
ir até o povo da lua, os poetas lunáticos que dizem, como o palhaço poético no filme de Marcel
Carné,
” [A lua, meu país]. A poesia nos dá nacos de terra
branca, pedras lunares que, quando apoderadas pela missão apolônica, mostram-se mortas e
sem valor. (Imaginem que o maior feito da busca heroica de nossa era foi capturar e trazer
para casa, para a terra real, uma lembrança tangível da lua física! A insanidade do
literalismo.) Mas quando pedras lunares são revolvidas em mãos imaginativas emergem ideias,
canções, sonhos, danças - essências da mente. Pois essas minas na lua, esses materiais
mitopoiéticos, são as sementes primordiais nas quais origina-se a vida da alma. A psicologia
platônica diz que as almas originam-se na lua, o que significa exatamente que a vida
psicológica começa nos lugares de nossa loucura, onde somos lunáticos. É claro que Hegel
insistia que a loucura era necessária para o desenvolvimento da alma.
O solo lunar e, portanto, a prata, a brancura e a anima, ganham um lugar favorecido numa
psicologia que começa numa base poética da mente, ou seja, numa psicologia imaginal ou
arquetípica. A tradição dessa psicologia, tais como os companheiros medievais e
renascentistas da alquimia como o Picatrix ou o
de Marsilio Ficino, “começa na lua”. A lua,
diz Ficino, governa o primeiro ano de vida e todo o ciclo de sete anos daí para frente; a lua é
primus inter pares, primeiro entre iguais. Segundo o Picatrix todas as preces aos planetas e todas as
influências que deles vêm passam pelo caminho da lua. A lua é uma intercessora, o lugar de
aterrissagem entre o espaço sideral dos espíritos e a realidade mundana da perspectiva
natural. Aquilo que passa pelo caminho da lua torna-se lunático, ou seja, entra na realidade
imaginal. A nossa prece direta a eles e a mensagem planetária literal deles para nós tornamse imagens de fantasia, metafóricas. O sentido disso é o seguinte: que todos os
acontecimentos precisam primeiro ser imaginados; que eles começam como imagens; que o
próprio ciclo no qual tudo gira, inclusive nós mesmos, é um processo psicológico; que
fantasias da alma são a base e a semente de tudo o que pensamos e fazemos, queremos e
tememos – essa é a terra alba.
A terra alba é um clima e uma geografia, com palácios e pessoas, um lugar ricamente
imaginal, não mera sabedoria abstrata. Nos relatos de Corbin a terra celestial está cheia de
corpos espirituais; ou, digamos, as sutilezas da alma estão incorporadas no mundus imaginalis
por pessoas primordiais, arcontes eternos, essências angelicais que oferecem à consciência
humana uma base em princípios hierárquicos, capacitando um ser humano a reconhecer o
que é essencial, o que vem primeiro e o que tem valor perene. É um lugar da verdade.
Entretanto, sua orientação voltada para a verdade é em direção ao leste, ao invés de para
cima ou para baixo, em direção ao oriente, a primeira luz do amanhecer, lampejo de prata,
difícil de enxergar e anunciar.
117
Essa sensibilidade hierárquica para valores, verdades e primeiras coisas, vindo, como de fato
vem, via formas personificadas que são essas próprias firmes sutilezas, leva-nos à verdade
psicologicamente – nas visões, nos sonhos, nos diálogos de fantasia – e, portanto, ganhamos
uma apreensão psicológica da verdade. Somos instruídos pela mente prateada em vez de por
uma iluminação espiritual. Essa verdade evoca reflexão e a iluminação dos sentidos,
principalmente do ouvido, ou não poderíamos ouvir vozes, as mensagens (anjos), os anjos que
não estão somente lá naquela outra terra, mas aqui nesta terra que pode ser branqueada por
uma mente que percebe de forma branca, que percebe metaforicamente. Embora a percepção
prateada da verdade possa ser polida até uma sofisticação dura e fria, ela é, entretanto, de
soslaio, oblíqua, uma verdade poética que inclui uma licença poética – até mesmo a verdade
como fantasia e a verdade da fantasia - de forma que ela pode não parecer verdade de modo
algum para os olhos da razão somente. Raio (de sol), radiante (brilhante), raio (de uma
circunferência, ou um bastão de medir), ratio e racional são primos etimológicos descendentes
arquetípicos do Sol.
Não podemos apreender os relatos de Corbin sobre a terra lunar com nossas mentes solares,
com nossas mãos comuns, assim como nossos ouvidos comuns nada podem tirar de poemas.
Eles estão tão distantes da consciência cotidiana, tão longínquos e arcanos (A lua é a substância
do arcano,
). Mesmo que a alquimia diga que “terra e lua coincidem na albedo”
(
), elas parecem estar a milhas de distância uma da outra, como a vida e a morte.
Como podem elas serem copresentes e como podemos nós sermos reais e imaginais, sãos e
lunáticos ao mesmo tempo? A resposta está mais perto do que percebemos: a “pedra cerebral
branca” (outro termo para a terra branca e a substância arcana (
), é uma
experiência real todos os dias. Poemas, sonhos, fantasias são coisas delicadas, persistentes,
evasivas, que exigem petrificação através de técnicas definidas de fixação (memorização,
recordação, descrição). Ao mesmo tempo esses materiais psíquicos diáfanos e brilhantes são
densos e impenetráveis: “Tive esse sonho impressionante, mas não pude retê-lo”. “Não consigo enxergar nada
nisto, escapa-me”. “Tive isso uma vez, mas não me lembro.” Pequenas coisinhas miúdas, e ainda assim
tão difíceis de quebrar - poemas, sonhos, fantasias. E cheias de impacto, chocando-nos,
machucando-nos, levando-nos aos rincões mais longínquos da loucura, inesquecíveis,
possuídos pela beleza, pela anima, por meros caprichos ou por uma frase poética. A
linguagem substancial sobre as coisas que supostamente não têm nenhuma substância
mostra o corpo sutil no mundo solar. Essas experiências que tanto incomodam nossa
consciência diária são a apreensão na mente da terra branca alvorecendo.
O que é este alvorecer? Como é sentido? Precisamente, como sentimento. O que amanhece
não é um “novo dia”, mas o dia de um jeito novo. O amanhecer de dedos rosados, como
Homero o chamou, toca todas as coisas esteticamente. É como se o mundo tivesse uma nova
pele, a imaginação tornada carne. Há uma nuança erótica, um tom afrodítico, prazer. A Deusa
da Aurora (Eos) é tanto filha do Sol (Hélio) quanto irmã da Lua (Selene). Ela mantém unidos
prata e ouro e está engajada em múltiplas questões do amor. A consciência que nasce agora
desperta para o mundo como que num abraço rosado, a terra branca chamando com
sorrisos, pois ela é uma amante.83
83
A aurora vem de pequenas maneiras em sonhos: o alvorecer, manhã cedinho, ‘o despertador’, desjejum, abrir as
cortinas e naqueles sonhos significativos ‘logo antes de acordar’ ou aqueles que acabam ‘aí eu acordei’. A aurora
também aparece no erotismo sexual, não apenas uma manhã de fato, mas em qualquer fluxo amoroso que roseie
o horizonte. Segundo os mitos, jovens rapazes (pueri?) estão especialmente sujeitos a serem amantes da Aurora,
seduzidos e levados por ela. Sobre a erótica da Aurora, cf. Friedrich, P.
Afrodite. [s.l.]: University of
118
A terra branca aparece em sonhos, mas não necessariamente como campos de neve, areias
brancas ou cenas celestiais de um azul prateado. O que aparece, em vez disso, é o
branqueamento de objetos familiares, comuns e tangíveis: pintar a casa de branco, uma
jaqueta branca, coisas prateadas. Quando uma lâmina, uma agulha, um dedal, um prato ou
um vestido é prateado, então a prateação está ocorrendo nessas atividades (nosso cortar,
manusear, coser, servir) e está ocorrendo por meio dessas atividades. Ou seja, através do
cortar, do costurar, do vestir a psique está sendo prateada ou branqueada. As próprias coisas
estão se tornando psíquicas; a coisa da psique, e seu pensar (Heidegger), começam a mostrar
reflexão: coisas como imagens, imagens-coisas; o Dinglichkeit dos fenômenos psíquicos.
Esses recipientes de prata, dos quais o Graal é o exemplo clássico, remetem-nos de volta às
etimologias da prata enquanto brilhante, resplandecente, cintilante, oblíquo. Um cálice, uma
chávena, uma tigela, um jarro, uma colher ou uma caneca prateados ou brancos apresentam
continente, forma e reflexão simultaneamente na mesma imagem. Dar forma é um modo de
reflexão, e a reflexão é um modo de reter as coisas colocando-as numa forma definida.
Um recipiente prateado é diferente de um pote de barro, de uma caixa de madeira, uma
sacola de couro ou uma garrafa de vidro. Cada um permite e não permite determinados tipos
de acondicionamento; cada um retrata uma atitude com relação aos conteúdos psíquicos.
Quando o cálice é de prata, então o seguramos com mais vivacidade e o nosso modo de
agarrá-lo é rápido e entusiasmado - pois prata e branco significam brilhante, vivaz e
luminoso. O receptáculo de prata mostra inteligência mental, um entendimento rápido. Mas
a prata embacia, preteja, nubla e assim tende a perder os insights que uma vez já brilharam
claros. Ao mesmo tempo, a prata, enquanto o precioso metal do dinheiro, valoriza aquilo que
contém, ou melhor, ela contém ao dar valor e preciosidade aos eventos.
É claro que o recipiente prateado é normalmente imaginado como um cálice para o sangue.
A rubedo requer primeiramente uma alma receptiva e uma compreensão ampla, ou então ela
flui para o firmamento, enrubescendo o mundo com uma compulsão missionária maníaca, a
multiplicatio e a exaltatio como conversão, ganhar dinheiro, fama. Mas também a nigredo
requer um vaso de prata. (“Tome o preto que é mais preto que o preto e destile-o em 18
partes num recipiente de prata”).84 Parece que a melhor maneira de conter o mais negro dos
pretos aquela patologia irremediável e inerte - é novamente com uma alma prateada, aquela
qualidade de compreensão apropriada à mais sagrada das essências, aquela mente iluminada
e receptiva que pertence à anima branca. Somente ela pode destilar do maior dos negrores
uma gota de possibilidade.
A prata também pode aparecer no céu: aeronaves, formas brancas, mísseis. Se o elemento
aéreo é o chão, a base e o lugar da vida mental, então a mente está projetando novas direções,
criando novas formas, especulações exploratórias. Talvez esteja buscando a lua e não
meramente escapando da terra. Se a personalidade acordada pode ou não seguir sua alma
noturna nessas direções é uma questão terapêutica, mas tornar-se prateado no reino do ar é
um processo tão comum quanto o amanhecer natural, o orvalho, a luz das estrelas e a
garganta das cotovias; e o pratear aparece em sonhos assim como na natureza.
84
Chicago Press, 1978, p. 36-48. Dessa perspectiva mitológico-arquetípica,
(atribuído a Tomás de
Aquino por
, cujo próprio título significa o alvorecer da manhã irá, é claro, estar banhado de
um misticismo erótico uma vez que ele representa a conversão de seu autor pela
ao amor.
Bonus, p. 355.
119
As damas brancas nos sonhos e nas visões do leito dos enfermos (numa camisola prateada, a
cabeça na luz ou num manto branco, uma amada morta, o homem com um distintivo ou um
instrumento de prata) são figuras da terra branca chamando-nos para uma outra paisagem
interior através da música que ressoa, cortando caminhos, abrindo passagens, instruindo,
acenando. São “chamados” para além da vida que sinalizam a morte de nosso embutimento
no corpo do mundo. De forma que os tememos e ficamos maravilhosamente impressionados
quando eles nos conclamam a atravessar as fronteiras. Mas, que fronteiras? Penso que é
menos a linha literal e simples entre a vida e a morte, e mais a que desenhamos em torno do
amor, separando-o da morte. A dama de branco ou o homem de prata tornam a passagem
mais fácil ao levar nosso amor até a morte, uma morte amorosa, levando Eros até Tânatos, de
forma a podermos seguir mais facilmente em direção a profundezas desconhecidas, prontos
para ir, descer as escadas, rumo à Cidade Branca.
Embora a notável fenomenologia de figuras brancas visionárias tenha sido examinada por
Aniela Jaffé,85 há algo mais a ser dito sobre os animais brancos. Eles têm sido chamados de
bruxos, espíritos, fantasmas e de animais-doutores, mas o que de fato acontece na alma
quando um animal branco ou prateado azul-acinzentado aparece?
Primeiramente, o animal é agora uma sombra de si mesmo, “morto” ou “psiquezado”. A figura é
agora tanto uma presença psíquica quanto uma presença animal. Seu corpo agora é sutil.
Segundo, em virtude de sua cor ele pertence à albedo. É um animal da anima, uma
animalidade da anima. O animal não é mais uma figura terrestre natural, aquilo que a
psicologia chama de “instinto”; mas esse animal, esse instinto, aparecendo de branco, mostra
que a terra alba é também um lugar de vida, um lugar vital. Há animalidade na brancura. Há
corpo instintivo nas sutilezas prateadas.
Um animal esbranquiçado é um animal que reflete a si mesmo; ação animal escutando-se,
conhecendo-se. Reflexo e reflexão juntos numa mesma imagem, o desejo que se autorrespeita,
o enxofre branqueado até uma consciência infalível e certeira, uma fé animal. Não é de se
espantar que esses sejam animais-doutores. São os guias da alma, guias de imagens que
podem perceber e sentir seu caminho por entre as imagens. Seu território é a terra branca, a
terra de prata onde impera a mente e a voz da inteligência da alma. Eles carregam
inteligência, trazem reflexão em suas formas brancas. De maneira que o melhor jeito de
mantê-los por perto é tratá-los com a comida que eles necessitam: inteligência, discurso,
palavras, ideias. Falar com eles: Doutor Cachorro, Doutora Gata. A fala é sua comida de alma.
De todos esses fenômenos - recipientes e instrumentos prateados, mísseis e animais brancos
- talvez o evento mais especial da albedo seja o embaraço da consciência. Como estava, a
mente é desconcertada pelos paradoxos de seu branqueamento, um paradoxo expresso
mesmo nos termos “terra branca”. O livro sobre as cores de Ludwig Wittgenstein,
,
revela uma mente extraordinária lutando, ao longo dos últimos dezoito meses de sua vida,
com o branco/a anima. Podemos ler seus questionamentos e afirmações com um ouvido
metafórico, como se estivessem vindo de um velho texto alquímico que falasse do
branqueamento da consciência. Mais ainda: como se o branco fosse a cor da psique, e da
psicologia.
Mas que tipo de proposição é essa, que a mistura com o branco remove a coloração das cores?
Do que sei, não pode ser uma proposição da física. Aqui, a tentação de se crer numa
fenomenologia, algo intermediário entre a ciência e a lógica, é muito grande (II.3).
85
Jaffé, A.
. Dallas: Spring Publications, 1979, p. 79ss.
120
Qual então é a natureza essencial da obscuridade [des Trüben|? Pois coisas transparentes amarelas
ou vermelhas não são obscuras; o branco é obscuro (II.4).
Não é o branco aquilo que acaba com a escuridão? (II.6).
“A mistura do branco oblitera as diferenças entre claro e escuro, luz e sombra”; isto define os
conceitos mais precisamente? Sim, acredito que sim (II.9).
Se tudo parecesse esbranquiçado sob uma luz específica, não concluiríamos então que a fonte
da luz deve ser branca (II.15).
A questão é: construir um “corpo branco transparente” é como construir um “biângulo
regular”? (III.138).
Também não podemos dizer que o branco é essencialmente a propriedade de uma superfície visual. Pois fica subentendido que o branco deve ocorrer como uma luz de alta intensidade ou
como a cor da chama (
).
Um corpo que é de fato transparente pode, é claro, nos parecer branco; mas ele não pode
parecer branco e transparente (III.146).
Mas não deveríamos exprimi-lo dizendo: o branco não é uma cor transparente (III.147).
“Transparente” poderia ser comparado a “reflexivo” (
).
De algo que é transparente não dizemos que parece branco (III.153).
Dizemos “preto profundo”, mas não “branco profundo” (III.156).
Considere que as coisas podem se refletir numa superfície branca lisa de tal forma que seus
reflexos parecem estar abaixo da superfície e que de uma certa forma são vistos através dela
(
).
O que constitui a diferença decisiva entre o branco e as demais cores? (III.167).
O que deveria um pintor pintar se desejasse criar o efeito de um vidro branco e transparente?
(III.198).
O branco visto através de um vidro colorido aparece com a cor do vidro. Essa é uma regra da
transparência. Assim, o branco aparece branco através de um vidro branco, ou seja, através de
um vidro sem cor (III.200).
Isso posso entender: que uma teoria física (tal como a de Newton) não possa resolver os
problemas que agitaram Goethe, mesmo que ele mesmo não os tenha também resolvido (III.206).
Por que sinto que um vidro branco pode se tornar preto [...] e não posso aceitar que o amarelo
pode ser engolido pelo preto? (
).
Frequentemente falamos do branco como não colorido. Por quê? (
).
Estaria isto ligado ao fato de que o branco gradualmente elimina todos os contrastes, enquanto
que o vermelho não? (
).
Não estou dizendo aqui aquilo que dizem os psicólogos da Gestalt, que a impressão do branco
acontece dessa e daquela maneira. Em vez disso, a questão é precisamente: qual é a impressão
do branco, qual o sentido dessa expressão, qual a lógica deste conceito, “branco”? (
).
A lógica do conceito branco é exatamente aquilo com que estamos trabalhando neste ensaio,
de forma a mostrar que ela é uma psicológica, “algo intermediário”, e algo tanto transparente
quanto obscuro, um estranho terceiro que não pode ser moldado num “biângulo regular.”
Essa psicológica também tenta dar conta de sentimentos como os de Wittgenstein, de que “o
branco acaba com a escuridão”, “sinto que um vidro branco pode se tornar [pode se manchar,
se tingir, se clarear de] preto”, e que “o branco elimina todos os contrastes” [a albedo como
121
alívio]. Além disso, na medida em que a consciência se movimenta da escuridão da
perspectiva materialista em direção à terra branca podemos compreender por que Wittgenstein
pensa que a abordagem física de Newton não pode responder o tipo de questionamento
proposto por Goethe.
Apesar do embaraço intelectual, o branqueamento frequentemente aparece primeiro como
uma experiência de alívio emocional, uma leveza depois do negror e do desespero plúmbeo,
como se algo mais estivesse ali; dentro da miséria, a vibração de um pássaro. As queimadas
esfriam; a corrente ida da Kundalini banha a alma amarga e exausta com um orvalho suave.
Um humor doce, uma graça dos céus. O simbolismo tradicional fala do branco como a cor
do perdão, que aparece depois do preto da penitência. Dizemos: “Acabou, passou!” – já não
está tão pesado, tão frenético. “Acho que vou conseguir.” E há um sentimento novo de
confiança naquilo que está acontecendo. Para Dante o branco era a cor da fé. Essa fé, no
entanto, não é frígida como um credo ou uma âncora de ferro e, ao contrário, parece-se mais
com uma doce antecipação de uma nova chance, uma segunda chance e de que podemos
prosseguir, pois no final da linha há um porto seguro (a mesma cinza, a mesma areia seca,
folha seca, agora uma terra branca).
Um porto seguro esbranquiçado deve ser imaginado com uma mente esbranquiçada. Pois a
terra alba não é meramente o descanso depois da luta; não é descanso de maneira alguma,
pelo menos não no sentido da segurança. De fato, “o branco é movimento, o preto é idêntico ao
repouso” (de acordo com aquele mesmo texto do século XII que termina com a famosa
“
”).86 Portanto, a albedo é vivida também como o movimento da realidade
psíquica, aquilo que agora chamamos de “psicodinâmica” e “processo” – isso se esses termos
não forem literalizados em sistemas nos quais nos paralisamos e com os quais nos
contentamos. Pois quando movimento torna-se sistema de movimento, em vez das reais
movimentações que faz a psique, então estamos novamente numa nigredo, ou seja,
densamente inconscientes. Nossa linguagem (a linguagem da energia psíquica, processo de
individuação, desenvolvimento e psicodinâmica) está abafando o movimento real em conceitos sobre
o movimento. Ao expressar-se, a nigredo deve usar o tempo passado dos verbos como parte
da mortificatio e da putrefactio, enquanto o branco traz os relatos “daquilo que aconteceu” e de
como foi que deu nisso, no intuito de mover-se com as imagens reais. O discurso da albedo
fala, ao invés, “daquilo que está acontecendo”, esse ou aquele passo: como a psique está se
movimentando, e que movimentos, em resposta, fazem paciente e analista.
Um outro sentido da virada em direção ao branco é abrigo: menos expostos, menos crus,
menos vulneráveis às paixões e às marés. Feridas enfaixadas em panos brancos; o leite,
fluindo e coagulando-se87 na mais solidamente putrefacta cultura do queijo. A alma tem agora
um tabernáculo; Maria como refúgio. Há alguma estrutura e um lugar para onde seus
movimentos podem fluir. A alma encontra-se posta em si mesma e livre da compulsão para
“fora”.
86
87
Dronke, P. ‘
’. Eranos Yearbooks, 41, 1972, p. 74-76.
Sobre o leite e a coagulação do branco, cf. Bonus, p. 277-282. A substância coagulada é ‘fêmea’, tendo recebido o
ímpeto coagulante do ‘macho’. Um outro nome para ela é a terra (branca) (Von Franz.
. Op. cit., p.
10). O coagulante às vezes aparece em sonhos como queijo – a mãe natureza voltando-se para a cultura e
diferenciando a conscientização dos sentidos através de fermentação e putrefação.
122
Também percebemos que estamos sossegando, não mais expurgando os intestinos da
putrefactio, não mais culpados. As queixas dão lugar a um lembrar tranquilo: as memórias
estão presentes, mas não nos aprisionam. O sentimento de pecado é lavado, ablutio. O
material suou ganhando umidade, e podemos até encontrar um senso de humor. A
mortificação irônica abranda a vergonha. A voz que agora fala no ouvido interno e as
palavras que agora dizem as figuras internas da imaginação nos dizem “tudo bem”, “tenha
calma”, “deixa estar”, “dê-se uma chance”. A dama de branco traz paz. Ela se senta no jardim
com um colo amplo.
“A putrefação estende-se e continua mesmo na brancura”, diz Figulus;88 mas, ainda assim, “A matéria,
quando levada à brancura, recusa-se a ser corrompida e destruída”.89 Quando, então, cessa finalmente a
putrefação? Essa resistência da alma à destruição é alguma vez atingida, e quando é
ultrapassada sua própria capacidade de corromper e destruir? É claro que mesmo depois que
a brancura estabeleceu-se, a putrefactio estende-se e continua de alguma maneira. Um texto
fala de “um vapor branco, que é uma alma que é o próprio branco, sutil, quente e pleno de fogo”.90 Outros
textos referem-se a um “fermento branco” e já discutimos a afinidade entre a prata e o enxofre
como a tendência de corrupção inerente na prata (pretejar, perder o lustro, embaciar,
esquentar rápido, etc.), sua “lepra fleugmática”.
Devemos então corrigir nossas noções da terra branca como um lugar de repouso. Algo mais
acontece nesses estados de anima, apesar dos sussurros confortantes no ouvido interno. A
prata é cobre por dentro, diz Rasis.91 O cobre era com frequência utilizado como uma imitação
da prata (
),92 e a maioria das imitações de ouro eram também amálgamas que
continham cobre. Assim, quais são as maneiras com que o cobre “falsifica” a verdadeira
prata? É claro, voltamo-nos a Vênus, pois o cobre era seu metal: de cor vermelha, rápido de
esquentar, bom para amálgamas, esverdeando com o tempo como sua natureza vegetativa.
Von Franz interpreta o cobre como “o próprio homem”, o “microcosmo”, o termo utilizado nos
textos que ela comenta.93 Este “próprio homem”, escondido na prata e capaz de falseá-la, deve
se referir à propensão humana a todas as coisas venusianas - alegria e beleza no trabalho,
sentimentos personalizados, a sensualidade e a paixão na medida em que as transformações
ocorrem, o aquecimento, o desejo de conexão para quebrar a solidão do isolamento reflexivo
branco. Por dentro da frieza da prata, espreita a sombra demasiado humana do cobre - que
também serve para manter a obra subjetivamente importante, afetando-”me”. Do contrário,
tudo seria apenas uma questão de símbolos e medidas, como a química - objetiva,
acontecendo somente em recipientes de vidro.
88
89
90
91
92
93
Figulus.
.
Ibid., 95.
Trinick, J.
(Signum Atque Signatum):
. Londres: Stuart &
Watkins, 1967, p. 81 [prefácio com cartas de C.G. Jung e Aniela Jaffé].
Rasis.
, Apud Wyckoff. Minerals. Op. cit., p. 175, nota 1. Cf.
: ‘O rubro esta oculto na
brancura’.
Karpenko, V. ‘The Chemistry and Metallurgy of Transmutation’. Ambix, 39, 1992, p. 56-57.
Von Franz, M.L.
(‘
’):
. Kusnacht: Verlag Stiftung fur Jung’sche Psychologie, 1999, p. 63.
123
Dentro da brancura estão os estágios anteriores. Pois se a brancura emerge do azul, do preto
e de um grande calor (“A panaceia branca é aperfeiçoada no terceiro grau do fogo”),94 essas condições
anteriores estão lá dentro da própria albedo. Ela precisa nos falar de si mesma como doce,
suave e fria exatamente porque está sempre ameaçada por seu próprio cobre vermelho, sua
propensão ao enxofre, sua natureza interna quente e negra. É precisamente esta putrefação
inerente que distingue a albedo dos estágios primários de brancura (inocência, pureza,
ignorância) e defende a alma de seus próprios efeitos corruptores. Portanto, o
branqueamento dá à anima uma conscientização de seu poder inato, que vem da sombra que
não é lavada e jogada fora, mas que faz parte do corpo psíquico e que se torna
suficientemente transparente para quem quiser ver.
Isso nos leva aos quatro maiores perigos na transição para o branco:
1)
Transição como conversão. Todo o negror foi embora, renascimento, um novo amor, cura como
perda da sombra. Como sabem os clínicos, o perigo de um suicídio impulsivo pode ser maior ao se
sair da depressão para uma fase ou uma defesa maníaca do que quando nas profundezas da
própria melancolia. Portanto, cada branqueamento necessita inspeção clínica. A conversão como
regressão à inocência, ao jardim antes da queda é a eterna sedução. Teve que haver matança de
cara na saída do Éden para garantir bem que todos eles - Caim, Abel, Set, Adão, Eva e talvez
também o Deus bíblico - não seriam tentados a voltar. No jardim, a serpente é a tentadora, mas já
no vale do cultivo da alma é o próprio jardim que seduz. Sempre que as brancuras - luzes brancas,
damas de branco, cavaleiros brancos, páginas em branco - nos atraírem, mantenhamos o olho
clínico. Lembre-se de sua lição de alquimia: a albedo deve sempre ser distinguida da prima materia.
E é exatamente aqui que é difícil discernir: o impulso ao branco está muito próximo da fuga
do preto. Então a ablutio pode se tornar simplesmente lavagem, e cândida pode significar
apenas um peito aberto, uma discussão franca e aberta, cândida. Albation, diz o dicionário
inglês, ainda significa empoeirar com um pó fino branco. Aqui o branqueamento converte-se
de volta a uma inocência primária e a opus está de volta aonde começou.
Bonus de Ferrara mostra um caminho para se lidar com esse perigo. “Quando o Artista vê a alma
branca nascer, ele deveria juntá-la a seu corpo no próprio instante, pois nenhuma alma pode ser retida sem seu
corpo.” “Agora o corpo não é nada estranho ou novo; apenas aquilo que estava antes escondido torna-se
manifesto”.95 E o que é este “corpo”? Diz Bonus: “o corpo é a forma”. E, em outro lugar: “Os Antigos
deram o nome de corpo a tudo aquilo que é fixo e resiste a ação do calor”.96
Entendo esse corpo que resiste ao calor e que permanece como é (não se converte) referindose àquelas formas ocultas dentro de cada uma das mudanças emocionais manifestas que
levaram à albedo. A ocorrência do branco pode nos fazer sentir que estamos inteiramente
num novo lugar porque estamos identificados com a condição esbranquiçada.
Se, contudo, o branco estiver fixado em seu próprio corpo de imagens, ou seja, sua atenção
fixa nas formas “ocultas” que modelam as experiências (em vez das manifestações dessas experiências),
94
95
96
Figulus.
. Cf. Bonus, p. 342, referindo-se a Arnold de Villanova sobre a preparação do elixir branco:
‘Exponha-o a um bom fogo por vinte e quatro horas, a um fogo ainda mais feroz por um outro dia e noite, a um fogo
ferocíssimo próprio para derreter, no terceiro dia e noite’.
Bonus, p. 256-257.
Ibid., p. 261.
124
então estaremos menos sujeitos à conversão. Pois aqui conversão não é nada além da
consciência presa em seus próprios fenômenos brancos. Entusiasmado pela anima, inflado de
anima, como dizem os junguianos. A alma perdeu seu corpo, a forma ou imagem oculta
através da qual ela pode se enxergar.97 Portanto o branqueamento pode simplesmente
significar estar inconsciente de uma nova maneira, que é batizada (lavada) pelo nome
exaltado de “experiência de conversão”.
Não ganhamos uma conscientização da anima (branqueamento) apenas examinando
experiências manifestas: relembrando o que aconteceu e como foi sentido. A anima se dá a
conhecer por um processo imaginativo: pelo estudo de suas próprias imagens. Esta é uma
das razões pelas quais minha versão de psicanálise passa tanto tempo junto aos sonhos (e
perde menos tempo com os relatos do que aconteceu) - para despertar a alma para a
imaginação pelo estudo de suas imagens.
If the study of his images
Is the study of man, this image of Saturday,
This Italian symbol, this Southern landscape is like
A waking, as in images we awake,
Within the very object that we seek,
Participants of its being. It is, we are.98
A anima desperta em suas imagens - do sábado, da Itália, paisagens - tornando-se o que é em
virtude dessas formas, desses corpos. Notem que o “corpo” de que fala Bonus é seu corpo - “nada
estranho ou novo”. O branqueamento está presente em qualquer objeto que busquemos se o
buscamos como imagem.
O corpo da albedo já está lá, a terra branqueada, como o padrão formal que se mostra à
anima imaginativa como imagens. Os versos de Wallace Stevens acrescentam a
ainda a
ideia de que essas formas-imagens são participantes de cada ser, inclusive aquele ser que
consideramos nós mesmos.
2) Transição como um “resfriamento prematuro”. O termo vem de uma interpretação de Von Franz de uma
passagem que se referia ao medo do “frio da neve”.99 Von Franz o vê como uma inflação na qual “o
sentimento, a relação com os outros companheiros, perece e é substituído por uma forma intelectual de
relacionamento”.100 Já comentei acima sobre a prata potencial que reside na frieza, e sobre a frieza
inata da própria alma em maiores detalhes em outra oportunidade,101 mostrando que a própria
palavra psyche é cognata de várias palavras que significam frio e distante. Além disso, a frieza se dá
de diferentes maneiras em momentos diferentes. Por exemplo: “A digestão é muitas vezes acelerada
pelo frio externo [...]. Pois o frio leva o calor para dentro e aumenta sua ação”, diz Norton em seu Ordinal
(HM 2, p. 43).
97
98
99
100
101
Ibid., p. 262: ‘A força do corpo deve prevalecer sobre a força da alma e, em vez do corpo ser carregado para cima com a
alma, a alma permanece com o corpo [...]’.
Study of Images I.
. Nova York Alfred A. Knopf, 1978, p. 233 [Em tradução livre
para o português: ‘Se o estudo de suas imagens/É o estudo do homem, esta imagem de sábado,/Este símbolo italiano, essa
paisagem sulista são como/Um amanhecer, pois em imagens amanhecemos,/Por dentro do próprio objeto que
buscamos,/Participantes de seu ser. Ele é, nós somos’ [N.T.].
.
. Londres: Routledge/Kegan Paul, 1966, p. 233.
Ibid., p. 234.
. Nova York: Harper & Row, 1979, p. 168-171.
125
Uma vez que a frieza é familiar à alma e intrínseca ao branqueamento (como na Kundalini
yoga) por que somente agora o medo da neve? Penso que o perigo com relação à obra tem
menos a ver com relacionamentos de sentimento do que com uma negação benigna do fogo
alquímico que pode acontecer nesse momento. Já que a albedo traz alívio das torturas que
instigaram o processo de início, esquecemos que a alma, cujo corpo (suas imagens agora
fixas) está mais do que nunca capacitado a suportar o calor, requer agora uma intensidade
maior que antes.
escreve: “Quando o Alquimista [...] atingiu o final da primeira parte de
nosso Magistério na qual é vista a simples cor branca [...] então ele deve iniciar de imediato a segunda parte do
trabalho, e esta é o fermento e a fermentação da substância”.102 Fermentação para Bonus quer dizer
“ferver ou borbulhar”, o que faz com que a substância-alma “dilate e se eleve, exaltando-a a
uma condição mais nobre”.103 O resfriamento prematuro para antes da fermentação. À
medida que as coisas melhoram - e afinal a albedo é uma melhora segundo todos os textos há menos urgência. Todo o trabalho pode ir ao freezer, o bebê abandonado na neve.
Esquecemos que o ponto mais fundamental da opus não é a resolução da nigredo de nossas
neuroses pessoais, mas uma exaltação, uma multiplicação da nobreza rubra da alma até sua
realização pletórica, multifacetada, puro-sangue. Portanto, nesse momento, a própria aná- lise,
como instrumento do fogo, pode ter que aumentar o calor deliberadamente no sentido de
impedir o resfriamento que separa corpo e alma. “Na medida em que a substância é volátil e
foge do fogo ela é chamada de alma; quando ela se torna capaz de resistir à ação do fogo, ela
é chamada de corpo”.104 Para mantermos o corpo, devemos manter o calor.105 Talvez tenhamos
que incitar novas agressões e paixões; chamar as fúrias; forçar confrontos com questões
essenciais, as quais a dama de branco prefere deixar quietas. A imaginação ativa, por exemplo,
pode agora começar a lutar corpo a corpo com os anjos de nosso destino, anjos que são o
coração do fogo. Nesse momento, “suporte terapêutico” significa alimentar o fogo. O fogo é o
anjo da guarda e guarda o anjo de resfriar-se. Análise: lugar do fogo. “O Espírito é o Calor”, diz o
de Figulus.
3) Transição como calcinação prematura. Esse é o alerta contra a “queima das flores”. “A secagem
prematura apenas destrói o germe da vida, atingindo o princípio ativo na cabeça como que com um martelo,
deixando-o passivo” (
). Sim, a opus necessita de calor intenso a fim de secar as umidades
pessoais: crises soluçantes, anseios que fluem, doces confusões dopadas. Isso tudo é seco no
processo do cultivo da alma. Mas essas condições não podem ser atingidas na cabeça, como se as
levássemos ao tintureiro (uma lavagem a seco), chamuscadas causticamente. Pois nelas há um
germe tentando florescer. Queimam-se as flores quando os episódios de anima são destruídos com
escárnio, com críticas ferinas ou análises abstratas. Um dos cânones de Figulus postula: “Aqueles que
[...] usam pó sublimado ou calcinado, ou precipitado, estão iludidos, e erram enormemente” (134). Assim
também como estão enganados aqueles que “resolvem o Mercúrio em água limpa” (135). O que é
necessário, à medida que a pressão aumenta, o calor se intensifica e a anima infunde a si mesma
em tudo, não são razões claras e distintas. Nada de pós secos. Eles matam o germe da vida.
Este é um alerta curioso. Embora a calcinação (secar com calor) seja essencial ao
branqueamento, esse mesmo processo pode levar a uma “queimadura” analítica. Quando a
102
103
104
105
Bonus, p. 264.
Ibid., p. 255-256.
Ibid., p. 262.
Sugiro que a análise é instigadora do ‘fermento’ porque Bonus diz (p. 256): ‘O fermento do qual falamos é invisível,
mas passível de ser apreendido pela mente’. Portanto, o que aumenta o calor e gera o fermento é uma intensificação
do trabalho mental, ou seja, exigências mais profundas de compreensão analítica.
126
base terapêutica na umidade, num humor subjacente e permanente, na delicadeza e na
astúcia escorregadia mercurial (aqua permanens) é esquecida, então a calcinação escurece tudo
com acusações mútuas, desapontamentos, exaustão, frutos de um calor demasiado intenso no
momento errado. Estamos de volta na nigredo, cínicos, amargos, queimados. A análise
fracassou.
Em vez disso, semelhante cura semelhante - mesmo quando o calcinar é a operação principal,
as reações ao fervor da anima podem se dar em imagens delicadas, isto é, imagens plenas de
sentimento e em especulações reflexivas, mas somente se mantidas no espelho correto. Os
espelhos refletem as imagens porque são “úmidos”, como os próprios fervores da anima. Mas
a umidade dos espelhos é fria e limitada, contida pelo ato de espelhar. Então, um pouco de
espelhamento úmido e humorado ajuda, e as efusões pessoais que começam vazando para
todos os lados histericamente poderão atingir, surpreendentemente, um telos mais objetivo: o
florescimento da terra branca, um sentido de Flora na matéria, toda a terra viva com ela.
4) Vitrificação. Essa é a repentina solidificação do trabalho de alma em vidro. Diz Bonus: “Se através
da calcinação um espírito metálico torna-se vitrificado, não será capaz de nenhuma outra mudança”.106
Diferentemente dos metais frios, continua ele, “nos quais podemos entalhar ou estampar qualquer
imagem [...] e ele reterá essa imagem; mas o vidro não faz nada disso”. Materiais vitrificados perderam
seu “humor metálico” e não podem mais amalgamar-se com as perspectivas de outros metais.
Encontramos daí vários perigos específicos. A alma vitrificada não pode mais receber uma
imagem. Ela não pode imaginar e, portanto, não pode se movimentar. Aquilo que isola, então,
é a falta de receptividade imaginativa. (As conjunções acontecem quando corpos sutis se juntam, ou seja,
quando as fantasias se abrem umas para as outras, recebem umas às outras107.) Aqui o isolamento resulta
especificamente do fato da alma ter perdido insight sobre si mesma como uma imagem num
processo “metálico”. Na psicologia alquímica o “humor metálico” pode se referir à percepção de
que todos os eventos pessoais são produzidos objetivamente pelos metais básicos.
Aquilo que acontece na alma não somos nós que fazemos, mas se refere à germinação em nós
dos deuses na terra, os sete metais da psique objetiva ou alma do mundo. A vitrificação nos fecha
para essa conscientização; ficamos vidrados em nossa individualidade pessoal.
A vitrificação “pode acontecer a qualquer momento desde o meio do
Lua (até) o
Vênus”
(
). É um perigo no processo da anima. À medida que a doçura da albedo passa a um
amor venusiano pela vida, um enverdecimento de cobre do material (
), o calor pode
elevar-se para além da capacidade do material. Ele vidra, fixa, petrifica. A intensidade do
processo psíquico, fundido pelo desejo, cria uma idée fixe, uma obsessão globular ou um ídolo
envidraçado. “Esteja atento ao perigo da vitrificação; um fogo demasiadamente feroz deixaria
sua substância insolúvel e impediria a granulação” (
). Não podemos mais
libertar a psique da forma na qual sua paixão está moldada; não podemos mais lidar com ela
por partes, gradativamente.
A prateação como granulação necessita um comentário especial. Durante o
Lua,
enquanto a substância coagula nas várias formas da prata, dissolvendo e coagulando “cem
vezes por dia”, então “você a vê toda dividida em belos, porém muito diminutos grãos de prata, como os raios do
106
107
Não encontrei a referência em Bonus. ‘
’ (HM, 2, p. 194) declara que a substância vitrificada
torna-se ‘não suscetível a nenhuma outra mudança’.
Cf. López Pedraza, R.
. Einsieden: Daimon Verlag, 2003, cap. 4, para uma compreensão das
uniões eróticas baseadas na atração e na mistura de fantasias.
127
Sol [...]. Essa é a
”(
). A vitrificação impede a particularização da
consciência, a pequenez do insight, a precisão analítica que divide a reflexão. Não o largo
espelho a refletir amplas vistas e perspectivas inteiras simultaneamente, mas, em vez disso,
uma consciência granulada, granulosa, arenosa que apanha “grãos muito diminutos”, cada
brilho, pequenas intensidades, “cem vezes por dia”.
A passagem de
(
) continua: “Não irrite muito o espírito – ele está mais
corpóreo que antes e, se você o sublima para o topo do vaso, dificilmente ele retornará [...]. A lei é a da
suavidade, não da violência, ou tudo elevar-se-á para o topo do vaso e será consumido ou
vitrificado arruinando todo o trabalho”.
Temos a tendência de esquecer que o trabalho com a psique (cultivo de alma) de fato torna o
espírito mais incorporado. Esquecemos que aquilo que acontece na mente ganha cada vez
mais realidade substancial. Se essas recém-formadas realidades psíquicas elevam-se para o
topo, elas tendem a levar uma vida própria, distantes nas alturas, em comportamentos
“vidrados e não suscetíveis a nenhuma outra mudança”. Evidentemente que o corpo ganho
através do trabalho deve ser substancializado na parte de baixo do vaso, como o corpo das
próprias imagens, em vez de ser sublimado em duras verdades, valores reais, pessoas factuais
e projetos quentes. Inflações ideativas, alturas, voos podem ser vitrificações que, nesse
momento de substancialização da anima, ameaçam “arruinar todo o trabalho”.
O vidro é uma analogia ideal para a realidade psíquica: ele espelha, aquece e esfria de acordo
com seu conteúdo, torna-se transparente, apresenta-se como seus conteúdos, embora não seja
tocado por eles, e lhes dá forma de acordo com o seu formato. É o material par excellence para
a obra. Ele tanto contém como permite enxergar através, ou enxergar através dos eventos é
uma maneira de contê-los, como conter eventos é uma maneira de enxergá-los como imagens
e processos psíquicos. Mas o vidro não é, ele mesmo, a substância da opus e, quando ele assim
se torna, ocorreu a vitrificação. Quando o vaso torna-se o foco do trabalho, quando tomamos
a própria psique substancialmente, quando literalizamos continente ou enxergar-através,
então estamos vitrificando. A psicologia como sujeito de si mesma, em vez de um modo de
enxergar através, refletir, dar forma e conter outras substâncias é simplesmente uma
vitrificação, uma consciência fixa e vidrada sem humor, sem imaginação, sem insight. A
psique tornou-se Psicologia. O paradoxo aqui é que enxergar-através, como um ato que torna
cada substância transparente, coloca-as num vidro, e portanto pode vitrificar o ato de
enxergar-através. Quando um insight coagula-se numa verdade (por causa de muito calor, porque
está compelido por Vênus, porque elevou-se para o topo), isto é vitrificação.
Vamos agora examinar três versões alquímicas do branqueamento para entendermos melhor
o que acontece nesse processo. A primeira é uma afirmação de Maria, a Judia:
Se o dois não se torna um, isto é, se o volátil não se combina com o fixo, nada acontecerá. Se o
um não embranquece e o dois não se torna três, com o enxofre branco que branqueia (nada do
esperado acontecerá) [...].108
Somos informados que nada acontece na alma a menos que seus estados gasosos se tornem
sólidos, e suas certezas se tornem móveis. Todos os voos dispersos e as soberbas arrogâncias
108
Hopkins, A.J.
. Columbia University Press, 1934, p. 99. Mais sobre Maria a Judia
(Maria Hebraea) e o uso das assim chamadas tábuas de multiplicação das bruxas nos escritos cabalísticos, cf.
Scholem, G.
. Putnam, Conn.: Spring Publications, 2008.
128
do espírito necessitam fixação. Ao mesmo tempo, aquelas certezas que sentimos
inquestionáveis precisam encontrar asas e decolar. Volatizar o fixo é perceber que as coisas
como elas são não são como são. Nada acontece até que possamos enxergar através do fixo
como fantasia e coagular a fantasia em formas e limites. O pré-requisito para o
branqueamento é simplesmente essa incorporação do espírito e essa inspiração do corpo. Até
que ocorra essa ação simultânea, não sentimos a realidade psíqu