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Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics EDITORIAL Dossiê Especial GT Fenomenologia/ANPOF Prof. Dr. Claudinei Aparecido Freitas Silva Email: cafsilva@uol.com.br Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Emai: kahlmeyermertens@gmail.com Editores Nesse segundo número, a Aoristo – International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics, inicia a sua edição com um Dossiê Especial: trata-se do lançamento de textos dos membros integrantes do GT/Fenomenologia da ANPOF. Tais escritos, nesse primeiro momento aqui reunidos, resultam dos trabalhos apresentados por ocasião do V Encontro do GT de Fenomenologia da ANPOF, bem como do II Encontro Nacional de Fenomenologia e da X Jornada de Metafísica e Conhecimento promovidos pelo Programa de Pós-Graduação (Stricto Sensu) em Filosofia da UNIOESTE, Campus Toledo, transcorridos nos dias 06 e 07 de julho de 2017. Tais eventos, uma vez conjugados, atestam, inequivocamente, não só a consolidação desse Grupo de Trabalho que agrega professores e pesquisadores das mais diversas instituições nacionais e internacionais, mas perspectivam um novo momento, em especial, para a pesquisa em fenomenologia na UNIOESTE. Iniciada nos idos de 1990, as pesquisas em fenomenologia nessa instituição de pesquisa e ensino vem atualmente dando mostras de pleno vigor e saúde. Mostra disso é que, no 1 Editorial - Dossiê Especial GT Fenomenologia/ANPOF Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics corrente ano, cerca de 20% das pesquisas do Programa de PósGraduação em Filosofia da UNIOESTE envolvem, de modo direto ou não, a temática da fenomenologia. Esse protagonismo frente às demais áreas de estudos da instituição faz com que acorram dos municípios vizinhos pesquisadores interessados em desenvolver temas afetos a este modo de pensar que, contemporaneamente, constitui uma sólida tradição no pensamento filosófico. Os estudos de fenomenologia na UNIOESTE, Campus Toledo, chegam em 2017 plenamente consolidados e, justamente por isso, o grupo sustentador dessas pesquisas pode atrair o V Encontro do GT de Fenomenologia da ANPOF (além dos outros concomitantes), o que resultou na presente edição de trabalhos proferidos naquela circunstância. Assim, num rápido registro, várias outras publicações têm encampado esse projeto. A primeira, no formato de livros como as coletâneas editadas pela Booklink, Fenomenologia: influxos e dissidências (2011), Temas em fenomenologia (2012) e Origens e caminhos da fenomenologia (2014), bem como a edição eletrônica referente ao XVI Encontro da ANPOF, Fenomenologia, Religião e Psicanálise (2015) organizadas pelo professor Carlos Diógenes Côrtes Tourinho (UFF). A segunda, no formato de periódico como a Revista Filosofia Moderna e Contemporânea da UNB, que editou, em 2015, o Dossiê Fenomenologia resultante do Encontro realizado na UFMG do GT/Fenomenologia ANPOF, sob a organização do professor Marcos Aurélio Fernandes. Para que o leitor aviste melhor esse primeiro saldo qualitativo do evento em Toledo, o Dossiê é composto por 11 artigos. O texto de abertura intitula-se (As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação teórica aos perigos para a cultura). Nele, Carlos Diógenes C. Tourinho aborda a crítica de Husserl à doutrina do naturalismo sob dois aspectos recíprocos: inicialmente, o contrassenso teórico inerente ao projeto de fundamentação das ciências na concepção naturalista, reduzindo o mundo a uma realidade de fatos naturais; em segundo, os perigos que esta tendência representa para a cultura e, em especial, para a formação da mentalidade do homem europeu. O segundo artigo (em versão bilingue), (Um estudo sobre os universais em Ideias I), Nathalie Barbosa de La Cadena retoma o interesse de Husserl pela questão dos universais. Isso se dá, particularmente, em Ideias I, onde o filósofo distingue os universais 2 Prof. Dr. Claudinei Aparecido Freitas Silva Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 2 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics particulares, o ‘X’ noemático, o idêntico, e universais stricto sensu, nomes universais atemporais. Isto posto, a autora refaz, na primeira seção, o percurso até os universais destacando o paralelismo entre noese e noema. Na segunda seção, é referenciada no âmbito da filosofia da linguagem a correspondência noéticonoemática. Na terceira e última seção, é evidenciado como tal estado de questão move-se apenas na esfera noemática, para então concluir pela possibilidade de partindo do ‘X’ noemático alcançar o universal em sentido estrito. Sávio Passafaro Peres escreve o terceiro artigo, (Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl), em que examina a crítica ao psicologismo de Edmund Husserl para avaliar sua posição no que diz respeito à psicologia empírica. O autor mostra, em primeiro lugar, que Husserl, em Investigações lógicas, tem como alvo o psicologismo lógico e uma determinada forma de psicologismo epistemológico. Em segundo lugar, ele avalia que a fundamentação epistemológica da lógica pura, como ciência teórica, implica em uma teoria da subjetividade. Um dos objetivos de Husserl em Investigações lógicas é empregar a fenomenologia, entendida como forma peculiar de psicologia descritiva, para elaborar uma nova teoria da subjetividade, por meio de uma análise descritiva das vivências envolvidas na obtenção do conhecimento teórico. Por fim, ele discute o lugar que a psicologia empírica passa a ocupar depois da crítica ao psicologismo em Investigações lógicas. No quarto artigo, (Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de Edmund Husserl), Marcelo Fabri traz à baila o papel do sentimento na ética fenomenológica a partir da confrontação entre moralistas do intelecto e os moralistas do sentimento, na obra Introdução à Ética (1920-1924) de Husserl. Fabri nota que, a despeito da crítica husserliana ao naturalismo e o empirismo, há uma forte influência dos trabalhos de Hume. A possibilidade de uma ética fenomenológica reconhece, na esfera da moralidade, que os sentimentos se entrelaçam necessariamente com a esfera intelectiva, abrindo o problema de uma discussão sobre o imperativo categórico que possa acolher tal entrelaçamento. O quinto artigo, (Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de investigação), Hélio Salles Gentil expõe um panorama de investigação das estruturas do Lebenswelt, em particular de suas dimensões temporal e linguística tendo como pano de fundo a Krisis de Husserl e as relações essenciais estabelecidas por Ricœur entre a experiência humana do tempo e as narrativas em sua obra Temps et Récit. 3 Editorial - Dossiê Especial GT Fenomenologia/ANPOF Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Salles Gentil enfatiza-se, portanto, a interpretação das narrativas de ficção como via de acesso privilegiada à compreensão dessas relações e de seus modos de participação na estruturação de um mundo, via a hermenêutica ricœuriana. No sexto artigo, (Intuição categorial e evidência, verdade e ser) Marcos Aurélio Fernandes descreve os fenômenos da intuição categorial, evidência, verdade e ser, via a interpretação de textos de Husserl e Heidegger. Essa abordagem se dá por meio de quatro registros: i) a descrição da intuição como percepção, isto é, como experiência da evidência da presença do ente mesmo como autodatidade originária; ii) ordenamento entre a evidência e sua correlação com a verdade e o ser; iii) a crítica da doutrina tradicional da verdade e a posição fenomenológico ou hermenêutica da verdade como aletheia e, por fim, iv) o sentido último da evidência do ser e para o relacionamento humano em face dessa. No sétimo artigo, (Amor e conhecimento na fenomenologia de Max Scheler), Daniel Rodrigues Ramos acentua a mútua pertinência entre amor e conhecimento, desde o horizonte da fenomenologia material de Max Scheler (1874-1928). Para tanto, essa leitura tem como uma das abordagens mais emblemáticas a obra Liebe und Erkenntnis de 1915, do fenomenólogo alemão. Mas é, em 1923, em Wesen und Formen der Sympathie, que Scheler descreve o fenômeno do amor como sendo, em seus traços fundamentais, isto é, um modo particular e afetivo de conhecimento. No oitavo artigo, (A noção de ego na obra de Sartre), Simeao Donizeti Sass circunscreve três trabalhos sartrianos, La Transcendance de l’ego (1936), L’Être et le néant (1943) e Cahiers pour une morale (1983). Sass retrata que esse percurso corresponde, ao mesmo tempo, a evolução e a manutenção de algumas teses enunciadas na primeira obra. Nesse sentido, ele identifica alguns dos objetivos da filosofia sartriana, tanto na moral quanto na política, revelando o papel central do Ego nessa discussão, e, por fim, diagnostica as consequências morais de uma nova concepção da consciência, do ego e da reflexão edificadas por Sartre ao longo de sua trajetória. O nono artigo intitula-se, (Afetividade e pessoa na fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand). Nele, os coautores Tommy Akira Goto e Marília Zampieri da Silva circunscrevem, via a obra de Dietrich von Hildebrand (1889-1977), uma “fenomenologia da afetividade”. Hildebrand compreende que é somente por meio do método fenomenológico que se torna possível alcançar genuinamente o 4 Prof. Dr. Claudinei Aparecido Freitas Silva Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 4 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics conhecimento a priori das essências dos fenômenos e assim, chegar à verdade e a profundidade do fenômeno. Tratase de uma compreensão que se radica na experiência humana, uma vez que, para conhecer a sua essência é imprescindível descrever os fenômenos da vida consciente. Ora, a pessoa humana é um ser espiritual que possui três estruturas intencionais: o entendimento, a vontade e a afetividade. Ora, é essa estrutura tríplice que corresponde à estrutura ontológica última do humano compondo, pois, “centros operativos” de vivências. Ericson Savio Falabretti é quem assina o décimo artigo, (Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia). O que Falabretti põe em jogo são duas perspectivas sobre política e engajamento. Para descrever a primeira forma de engajamento, muito comum nas redes sociais, ele faz uso do termo heideggeriano falatório. Esse tipo de engajamento se caracteriza pela reprodução do mesmo e pela negação da diferença. Já a segunda noção de engajamento, pensada a partir das obras de Sartre e Merleau-Ponty, em clara oposição ao falatório, remete a um exame de três características fundamentais do engajamento intelectual: práxis, compromisso, responsabilidade. Adriano Furtado Holanda e Jennifer da Silva Moreira fecham o Dossiê com décimo primeiro artigo intitulado (Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein). Os autores chamam a atenção para o fato de Kurt Goldstein ser, ainda, uma fonte esquecida, especialmente, no Brasil em virtude, sobretudo, da ausência ausência de traduções das suas obras. No entanto, sua influência está presente em diversas áreas do conhecimento, como a Neurologia, Neuropsicologia, Psicologia e Filosofia. Em face disso é que o artigo visa apresentar uma introdução à obra do neurocientista alemão, subsidiando a partir de escritos como The Organism: A holistic approach to biology derived from pathological data in man e Human Nature in the light of psychopathology. A partir da análise dessas obras foram selecionados três grandes temas a serem explorados que projetam, sem dúvida, uma orientação convergentemente fenomenológica: a questão do método, a teoria do organismo e a noção de natureza humana. A segunda seção de nosso número se inicia com o artigo do professor italiano Franco Riva. Sob o título de (1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici), o autor passa a limpo a filosofia de Heidegger e a de Marcel, mostrando o quanto o pensamento da existência e do ser, nos dois mencionados pensadores, dá vez a problemas de interpretação que 5 Editorial - Dossiê Especial GT Fenomenologia/ANPOF Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics repercutem na história. Em pauta, está a relação de proximidade e distância entre os dois filósofos e o quanto Heidegger, ao contrário do que se poderia pensar, não é um pensador do “mistério”. O também italiano Paolo Scolari, professor na Universidade Católica de Milão, contribui com o artigo (Vita e storia. Nietzsche in Essere e tempo). Nesse escrito, vemos explorada a relação de Heidegger e Nietzsche no âmbito da ontologia fundamental. Com este, é possível entrever o quanto Heidegger, herdeiro da fenomenologia de Husserl, não é menos beneficiário do legado da filosofia da vida e do quanto tanto Dilthey quanto Nietzsche têm a contribuir para um pensamento que se faz sob o ponto de vista da vida. Nesse cenário, a relação entre vida e história se avulta, indicando o quanto esses dois conceitos testemunham o refinamento da filosofia de Heidegger ao tratar tal ligação. Vale lembrar que os dois artigos supra referidos são publicados levando em conta o espírito de oportunidade de celebrar a data dos 90 anos de edição da obra Ser e tempo, de Heidegger (para qual o presente veículo dedicou seu número passado), e também os 90 anos do Diário Metafísico, de Marcel. Um terceiro italiano que colabora é Ramon Caiffa ao sugerir o seguinte texto francês: (L’infini derrière la haie”: L’homme comme exigence ontologique et humilité chez G. Marcel). Neste, ele busca explicitar, em primeiro lugar, as motivações que temos para afirmar que a subjetividade requer um esforço para satisfazer a exigência ontológica que constitui o seu ser. Isso exigirá, em primeiro lugar, a explicitação de certas palavras como exigência ontológica, recolhimento e humildade. Para tanto, a fonte recorrente aqui é Gabriel Marcel, cuja obra será analisada seja em sua verve “sistemática”, seja teatral, pois é no caráter dramático da peça que uma experiência do absoluto pode, in primis, ocorrer e, depois, se alimentar. Yaqui Andrés Martínez Robles é nosso próximo colaborador; ligado ao Instituto Humanista de Psicoterapia Gestalt (IHPG), o professor mexicano nos oferece: (Implicaciones de uma prática Fenomenológico-Existencial no mundo das terapias psicológicas). Neste artigo, ele nos apresenta um pouco da perspectiva que a Escola Mexicana de Análise e Terapia Existencial tem da abordagem fenomenológicoexistencial na prática clínica. Tal escrito nos dá boa ideia de como a fenomenologia e a filosofia existencial 6 Prof. Dr. Claudinei Aparecido Freitas Silva Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 6 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics incrementam as terapêuticas psicológicas. Na sequência, Magdalena Mendonça, filiada à USP, nos traz: (Existência, liberdade e possibilidade: considerações sobre a crítica ao determinismo em Sartre). Com este trabalho, desenvolvido na proximidade de O existencialismo é um humanismo e de O ser e o nada, de Sartre, nossa autora pretende indicar que, em face do valor singular do humano, uma concepção ética da existência humana e um modo de agir no mundo, podem ser divisados na filosofia sartriana. A terceira seção, de Tradução, dispõe, em versão portuguesa, o texto de um dos grandes estudiosos da fenomenologia francesa atual. Tratase de Emmanuel de Saint Aubert, pesquisador do CNRS, École Normale Supérieure, Archives Husserl de Paris que, ao lado de Claude Lefort, é também organizador da obra póstuma de Merleau-Ponty. O artigo, escrito originalmente em francês, e traduzido especialmente para a Aoristo - International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics é assinado com o título (Introdução à noção de sustentação). Nele, Saint Aubert discute a necessidade, o sentido e as questões antropológicas de uma nova noção de “sustentação”. Esta reflexão procede de um duplo contexto, clínico e filosófico, que interroga a base carnal do desejo. A partir de uma fenomenologia em diálogo com a psicologia, a psicanálise e a filosofia da educação, a noção de sustentação aborda os fundamentos mesmos de nossa abertura ao mundo e ao outro. A quarta seção contém três Resenhas. Na primeira, Claudinei Aparecido de Freitas da Silva examina a recente edição italiana de Il mito della relazione: Martin Buber, Emmanuel Lévinas, Gabriel Marcel (Roma: Castelvecchi, 2016, 221p). Trata-se, aqui, de uma coletânea crítica em que se discute o conceito de relação a partir do colóquio protagonizado, especialmente, pelos três pensadores em pauta nos anos 1960. Ademais, é analisada ainda a conotação mítica que o tema enseja na segunda parte do livro por Franco Riva, organizador da obra. O segundo trabalho de nossa seção de resenhas é o de Laura de Borba Moosburger (USP). Trata-se de uma acurada recensão do livro A tinta da melancolia: uma história cultural da tristeza, de Jean Starobinski. Apoiada na tradução brasileira da obra, que veio a lume em 2016, a resenha nos oferece os contextos próprios a este ensaio assistemático que se ocupa de afetos, sentimentos e estados de ânimos que constituem temas caros às filosofias da existência. Tal exposição, no entanto, mais do que uma apresentação circunstanciada dos conteúdos da obra em apreço, 7 Editorial - Dossiê Especial GT Fenomenologia/ANPOF Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics também traz, com sutileza, o acento crítico de sua autora. Em sua resenha ao livro Rosmini y la ética fenomenológica, de Jacob Buzanga, a mexicana Marisol Ramírez Patiño traz à baila os termos da fenomenologia voltada a pensar a ética. No trabalho de nossa articulista, temos uma exposição de algumas das principais teses metafísico-morais de Antônio Rosmini, tal como abordadas por J. Buzanga. Nesse esforço de caracterização, a resenhista delimita bem o quanto a temática de uma ética fenomenológica não deixa de ter Husserl como interlocutor privilegiado, além de permitir que reconheçamos pensadores como Brentano, Scheler e Von Hildebrand como figuras destacadas nesse cenário de ideias. A edição fecha com uma homenagem, (O elogio à historicidade), dedicada à professora Creusa Capalbo falecida em 18 de junho último, no Rio de Janeiro. Nesse breve registro, In Memoriam, Claudinei Aparecido de Freitas da Silva retrata a importância da inteletual como figura difusora no cenário fenomenológico do país, chamando a atenção para um dos conceitos-chave mais recorrentes de sua produção: a noção de historicidade. O número que ora se oferece ao público interessado em fenomenologia, hermenêutica e filosofias da existência, nutre a modesta pretensão de incrementar os estudos dessas matérias, emulando, inclusive, o saudável intercâmbio entre os centros de pesquisa e pesquisadores (nacionais e internacionais) que se aplicam seriamente aos estudos de fenomenologia. 8 Prof. Dr. Claudinei Aparecido Freitas Silva Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 8 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação teórica aos perigos para a cultura The two faces of Husserl's critical to the naturalism: from the problems of theoretical foundation to the dangers to culture Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho Universidade Federal Fluminense – UFF 1 RESUMO O presente artigo aborda a crítica de Husserl à doutrina do naturalismo. Mais precisamente, o artigo concentra-se em dois pontos principais: o primeiro aborda o contrassenso teórico inerente ao projeto de fundamentação das ciências na doutrina naturalista, reduzindo o mundo a uma realidade de fatos naturais; ao passo que o segundo trata dos perigos que esta doutrina representa para a cultura e, em especial, para a formação da mentalidade do homem europeu. Ao final, o artigo evidencia a inseparabilidade de tais aspectos da crítica ao naturalismo no itinerário husserliano. PALAVRAS CHAVE Edmund Husserl; Naturalismo; Fundamentos; Cultura; Crise; Humanidade. ABSTRACT The present paper approaches the Husserl's critical to the doctrine naturalist. More precisely, the article focuses on two main points: the first deals with the theoretical misunderstanding inherent to the project of foundation of the science in the naturalistic doctrine, reducing the 1 Email: cdctourinho@yahoo.com.br. 9 As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação teórica aos perigos para a cultura Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics world to a reality of natural facts. While the second deals with the dangers that this doctrine poses for culture and in particular for the formation of the mentality of the European man. In the end, the article evidences the inseparability of such aspects of the criticism to naturalism in the Husserlian itinerary. KEYWORDS Edmund Husserl; Naturalism; Foundations; Culture; Crisis; Humanity. INTRODUÇÃO Um olhar panorâmico sobre o caminho traçado por Edmund Husserl na primeira metade do século XX – das Investigações Lógicas (1900/1901) à Crise das Ciências Européias (1936) – permite-nos notar o quão inseparáveis são as críticas do autor ao naturalismo, em particular, ao projeto de fundamentação da Lógica na Psicologia (inclinação do último quarto do século XIX que se convencionou chamar de “psicologismo”), e as denúncias que se consolidam na década de 30 sobre os impactos produzidos pela doutrina naturalista na formação de mentalidade do homem europeu, com graves consequências para a cultura europeia. São, portanto, dois momentos distintos do itinerário husserliano, a partir dos quais somos remetidos para dois aspectos indissociáveis da crítica de Husserl ao naturalismo: o primeiro procura evidenciar o contrassenso teorético inerente à intenção de fundamentação da Lógica (e, em última instância, da própria Filosofia) na Psicologia, ao passo que o segundo denuncia os perigos da doutrina naturalista para a cultura. Enquanto o primeiro aspecto encontra-se consolidado no itinerário husserliano desde a virada do século XIX para o século XX, ainda no período dos cursos proferidos em Halle, o segundo ganha contornos mais nítidos a partir da década de 20, especialmente, a partir da série de artigos publicados para a revista japonesa Kaizo. Vejamos, então, mais pormenorizadamente, cada um dos referidos aspectos da crítica de Husserl à doutrina do naturalismo, de modo que possamos, em seguida, examinar a inseparabilidade de tais aspectos no itinerário husserliano, ao longo da primeira metade do século XX. 1. A CRÍTICA DE HUSSERL AO NATURALISMO NAS ORIGENS DA FENOMENOLOGIA Ao examinar o percurso de Husserl nas origens da 10 Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 10 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fenomenologia, em especial, de 1896 a 1911, notamos uma preocupação renovada do autor em afirmar a tese segundo a qual toda tentativa de fundamentação da Matemática, da Lógica, ou mesmo, da própria Filosofia, em um pensamento que tenha como base a doutrina do naturalismo (para a qual pensar o mundo consiste em pensa-lo unicamente como uma realidade de fatos naturais), se torna uma tentativa que nos conduz, inevitavelmente, a um “contrassenso teórico” e, por conseguinte, a um ceticismo que se autocontradiz. Afinal de contas, como nos mostra Husserl desde 1900, em Prolegômenos à lógica pura, volume propedêutico das Investigações Lógicas, ao ignorar a distinção entre o ato psicológico de pensar e o conteúdo ideal do pensamento, reduzindo, indevidamente, tal conteúdo a uma realidade de fatos naturais (aspirando algo como uma “física do pensar”), além de incorrer em problemas de fundamentos, o modo de consideração natural confina o homem – enquanto ente psicofísico – a uma relação meramente empírica com o mundo. Neste caso, por mais êxito que o pensamento obtenha, fica confinado a inferir, a partir da observação dos fatos, proposições que não são senão, como nos diz Husserl, “generalizações vagas da experiência”(vage Verallgemeinerungen der Erfahrung) que, como tais, não perdem o seu cariz episódico ou contingente, não nos livrando, por conseguinte, do assédio da dúvida e do que insiste em não se mostrar evidentemente como tal. Tais proposições inferidas da experiência nos levariam, inevitavelmente, segundo Husserl, uma vez que as mesmas careceriam de validade apodítica, a um relativismo cético. Se afirmarmos, em conformidade com o pensamento natural, a tese segundo a qual “todas” as proposições inferidas pelo pensamento são generalizações da experiência e, por isso, na medida em que carecem de validade absoluta, são proposições passíveis de questionamento, estaremos supondo, ao menos, que a própria tese afirmada é uma “exceção” à regra. Do contrário, ela própria seria também o resultado de uma inferência da experiência, consistindo, portanto, em uma generalização empírica que, como tal, é contingente. Eis o que permanece desconhecido pelas ciências positivas da natureza: o contrassenso (Widersinn) a que nos conduz o ceticismo inerente ao pensamento natural adotado por tais ciências. Portanto, desde 1900, em Prolegômenos, passando pelas lições do período de Göttingen, especificamente, as lições de 1906 e 11 As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação teórica aos perigos para a cultura Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics 1907, até o artigo publicado em 1911, intitulado “Filosofia como ciência de rigor”, Husserl não mede esforços em denunciar o contrassenso teorético resultante da aceitação do modo de consideração natural perante o mundo. Tomado pelo anseio incansável de reeditar, no século XX, o projeto de fundamentação da filosofia como uma “ciência rigorosa” (strenge Wissenschaft) – intenção primária que acompanha e move o itinerário husserliano por quase quatro décadas – Husserl não hesita em chamar à atenção do leitor para os riscos de se levar adiante o propósito de fundamentar a filosofia em um naturalismo, esvaindo-a em uma realidade de fatos naturais. Mais do que nunca, tal preocupação visa, primeiramente, denunciar o contrassenso teórico a que tal propósito nos conduz, almejando, assim, afastar o projeto de fundamentação da filosofia de um caminho que incorresse na naturalização do pensamento. Eis uma preocupação que se renova em Husserl, ao longo da primeira década do século XX, período no qual vigora um ideal positivista de ciência, cujas bases repousam justamente na doutrina do naturalismo. Mas, se durante o referido período, é devido a problemas de fundamentos que Husserl é levado a denunciar o contrassenso teórico inerente às iniciativas psicologistas de se tomar o conteúdo ideal do pensamento em termos de uma realidade psicofísica, a partir deste período, cada vez mais, nota-se uma preocupação por parte do autor em denunciar os riscos que a realização de tal iniciativa naturalista teria para a formação da mentalidade do homem europeu. O primeiro sinal desta nova preocupação já pode ser notado em “A filosofia como ciência de rigor” (1911), artigo publicado para o primeiro número da Revista Logos, no qual Husserl nos chama à atenção para os perigos do naturalismo para a cultura. Deparamo-nos com os reflexos de uma crítica anunciada dez anos antes em Prolegômenos. Em sua versão extrema, conforme Husserl já apontava desde 1896, ainda no período de Halle, o naturalismo considera todos os princípios lógicos, as chamadas “leis do pensamento” (Gesetze des Denkens), em termos de leis naturais do pensamento (incorrendo, com isso, no contrassenso de confundir o juízo como ato psicológico de pensar com o juízo como unidade ideal da lógica). Tal como Husserl já havia também denunciado, no período de Göttingen, nas lições de 1906 e 1907, o contrassenso cético resultante do modo de consideração naturalista, segundo o qual pensar o mundo 12 Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 12 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics consiste em pensá-lo unicamente como uma realidade de fatos naturais, manter-se-ia “obscuro” para o próprio cientista natural (de viés positivista), uma vez que ele mesmo não se aperceberia do caráter infundado de sua posição. No Apêndice A, VIII, do § 33 das lições de 1906/1907, publicadas sob o título de Introdução à Lógica e Teoria do Conhecimento, Husserl chamará este ceticismo não declarado de “inconsciente” (unbewussten Skeptizismus), chegando mesmo a compará-lo ao “verme” da dúvida ou obscuridade (der Wurm des Zweifels oder der Unklarheit), inapercebido em todo conhecimento dito “positivo”, dado como “definitivo” (bestimmten). Tal ceticismo inconsciente vai, aos poucos, corroendo e destruindo a tomada de posição ingênua assumida pelas ciências da natureza que, conforme avançam, ignoram, por completo, os problemas relacionados à possibilidade do conhecimento, assumindo, com isso, um realismo que não se interroga pelo sentido da objetividade do mundo que tais ciências consideram, acriticamente, como dada. Se até então, para Husserl, esta tal “cegueira naturalista” estaria relacionada ao que impede o adepto do pensamento natural de notar os problemas de fundamentos nos quais a sua posição incorre, já a partir do artigo de 1911, o autor começa a chamar à atenção do leitor para os perigos desta dita “ingenuidade”, afirmando-nos que: “...os contrassensos teóricos são inevitavelmente seguidos por contrassensos (discordâncias evidentes) no procedimento atual, teórico, axiológico, ético” (HUSSERL, 1911, p. 295). A propósito desta nova preocupação, Husserl afirma-nos ainda, ao final da introdução do famoso artigo de 1911, que o naturalismo dominante na Europa: “...significa praticamente um perigo crescente para a nossa cultura” (HUSSERL, 1911, p. 293). Se em tal artigo, tais observações não têm maiores desdobramentos, elas já indicam, por si só, uma nova preocupação do autor: além dos problemas de fundamentos nos quais o naturalismo incorre, caberá também alertar para os impactos que tal modo de consideração do mundo teria para a formação da mentalidade do homem europeu, com graves consequências para a cultura. Passemos, então, a um exame desse segundo aspecto da crítica de Husserl ao naturalismo. 13 As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação teórica aos perigos para a cultura Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics 2. OS PERIGOS DO NATURALISMO PARA A CULTURA Apesar das indicações do artigo de 1911, pode-se dizer que é a partir da década de 20 que a nova preocupação começa a ganhar contornos mais nítidos. Evidencia-se, a partir desta década, a preocupação de Husserl em dar o seu parecer a respeito da crise da Europa, propondo-nos, ao mesmo tempo, uma reforma racional da cultura que pudesse, em meio à crise, conduzir a humanidade europeia em direção a uma humanitas autêntica, inviabilizada, segundo o próprio autor, por “preconceitos naturalistas” (naturalistische Vorurteile). Husserl afirma-nos, logo no primeiro dos seus artigos publicados pela revista japonesa Kaizo (palavra cujo significado é justamente o de “renovação”), intitulado “Renovação. Seu problema e seu método”, de 1923, que a Europa está em crise e, em seu doloroso presente, uma “renovação” se faz necessária em meio ao cenário devastador da guerra. Essa mesma humanidade que se orgulhava do ideário positivista de ciência desde o último quarto do século XIX e, por conseguinte, de ter alcançado um estágio positivo, supostamente “mais avançado” numa linha progressiva, começava a dar sinais de declínio a partir da Primeira Guerra, revelando, de acordo Husserl, a sua “ausência de sentido”. Nos termos do autor: “Se ela já tinha se tornado vacilante antes da guerra, desmoronou-se agora completamente” (HUSSERL, [1923] 1989, p. 4). Daí a formulação husserliana da questão, em tom de manifesto, numa referência indireta à obra O declínio do Ocidente de Oswald Spengler: “Deveremos considerar a ‘decadência do Ocidente’ como um factum que se abate sobre nós?” (HUSSERL, [1923] 1989, p. 4). A humanidade europeia estaria, com a guerra, condenada a se desorientar por um pessimismo fatídico e por um “realismo”, outrora apenas ingênuo e agora sem ideais? Husserl perguntanos, então: a racionalidade e a excelência (de nos colocarmos acima de nossas metas circunstanciais, religando-nos à humanidade) não seria um caminho possível para remediar essa crise? Certamente, se esta crise não fosse marcada por uma perda da crença em tal racionalidade e excelência. Eis, segundo Husserl, “...o estatuto de todos aqueles que são excelentes, a qual os eleva acima das suas preocupações e infortúnios individuais” (HUSSERL, [1923] 1989, p. 3). Se por um lado, a ideia de uma reforma da cultura implica, ao menos, tal como Husserl a pensa, na 14 Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 14 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics retomada desta crença, por outro lado, o principal obstáculo a ser superado se encontra na figura dos homens que, absorvidos pela visão pessimista, não hesitam em considerar tal retomada – tanto no plano individual quanto em nível social e cultural – como um “objetivo quimérico” (chimärisch Ziel). Contra a visão pessimista segundo a qual a humanidade seria reduzida a uma “humanidade de fatos” e, portanto, a uma mera “acidentalidade”, contra a perda da crença na possibilidade de uma racionalidade efetiva, Husserl aposta suas fichas em uma reforma racional da cultura. Nos termos do autor, trata-se de reacender: “A crença que nos preenche – que à nossa cultura não é permitido se dar por satisfeita, que ela pode e deve se tornar reformada através da razão e da vontade humanas...” (HUSSERL, [1923] 1989, p. 5). Tomada por “preconceitos naturalistas” (naturalistische Vorurteile), tal humanidade não perceberia a íntima relação entre tais preconceitos e o estado de desamparo, bem como de impotência que, na primeira metade do século XX, acometeu o homem europeu em meio ao cenário da guerra. É preciso lembrar ainda que, impulsionados pelo ideário positivista de ciência, alguns dos principais círculos acadêmicos europeus, desde o último quarto do século XIX, não hesitaram em considerar a realidade espiritual nos moldes das ciências naturais, considerando a consciência como uma espécie de “anexo externo” dos corpos, considerando, enfim, “homens e animais como simples acontecimentos no espaço, ‘na’ natureza’” (HUSSERL, [1923] 1989, p. 8). Tal inclinação naturalista não hesitaria, portanto, nos moldes das ciências positivas, em levar adiante o projeto de naturalização da “vida do espírito”, tratando, deste modo, essa mesma vida espiritual em termos de uma realidade espacializante, tratando-a em analogia com o número (a própria temporalidade vivida como duração na imanência da vida espiritual seria tomada em termos de uma grandeza numérica e, portanto, tratada em termos espaciais). Exercendo um papel preponderante na formação da mentalidade do homem europeu, o pensamento natural (como alicerce para a visão positivista) desconsideraria, enfim, os problemas metafísicos (as chamadas “questões supremas e últimas” que ultrapassam o mundo enquanto universo de meros fatos) e, em particular, o problema da distinção e da relação 15 As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação teórica aos perigos para a cultura Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics entre os domínios do corpo e do espírito (foco das atenções dos filósofos de ascendência judia nas origens da filosofia contemporânea, tais como Husserl e Bergson). Daí Husserl dizer que a intenção de realizar uma ciência da realidade espiritual, ao modo de uma psicologia naturalista, a partir de procedimentos indutivos, seria um contrassenso, por todos os problemas de fundamentos – a confusão entre os domínios do real e do ideal, do espaço e do tempo, etc – nos quais tal intenção incorreria. Ao denunciar tal contrassenso, a aspiração por uma reforma racional da cultura deveria abrir os caminhos obstruídos pelos preconceitos naturalistas. Por esse motivo, tal reforma constituir-se-ia, antes de tudo, como uma aspiração que visa “reformar a cultura fática”, reformar uma visão de mundo que confina os homens a juízos dirigidos para simples fatos de existência, nos quais somente se admite como válido o que for objetivamente verificável. Só assim, superando tais preconceitos, essa humanidade seria recolocada no caminho de uma racionalidade (que não é senão o caminho para ideias e ideais absolutos, válidos incondicionalmente) cuja responsabilidade seria inerente ao próprio caminhar, unindo os indivíduos para além de uma condição meramente acidental. Se o artigo de 1923 atesta a preocupação em denunciar os perigos do naturalismo para a cultura (algo que o artigo de 1911 apenas indicava sem maiores desdobramentos), é a partir dos anos 30 que tal preocupação se evidencia. Em maio de 1935, como sabemos, Husserl profere a famosa conferência de Viena, intitulada A crise da humanidade européia e a filosofia. Nela, Husserl busca uma elucidação das origens mais profundas do adoecimento da vida espiritual da Europa. A consolidação de um projeto de naturalização do espírito – com os seus respectivos problemas de fundamentos, para os quais o autor já chamava à atenção desde a virada do século XIX para o século XX – fomentou, na formação da mentalidade europeia, um esquecimento daquilo que nos remeteria, segundo Husserl, para o sentido mais originário da vida espiritual do homem europeu, para o que o autor considera a “estrutura espiritual” (gestige Gestalt) da Europa, a saber: o surgimento da filosofia, enquanto uma nova forma cultural, na qual todas as ciências estariam incluídas. Esta nova forma cultural conduz os homens, por meio de um “novo tipo de posição” (neuartige Einstellung), a um deslocamento do olhar de suas metas finitas e circunstanciais, próprias de suas 16 Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 16 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics preocupações diárias inerentes a um “mundo circundante” (Umwelt), para metas infinitas, transformando-os, assim, na figura de um novo homem cuja reflexão – dada a radicalidade de elevá-lo acima de sua própria individualidade – faz dele uma espécie de “espectador desinteressado” (uninteressierter Zuschauer), contemplador do mundo preocupado tão somente em “ver e descrever adequadamente” (sehen und adäquat zu beschreiben), conforme Husserl aponta no § 15 de Meditações Cartesianas, em 1931. Trata-se da decisão deste novo homem de consagrar toda a sua vida futura à teoria, de dar a ela um caráter universal, construindo, nos termos de Husserl, “...conhecimento teórico sobre conhecimento teórico in infinitum” (HUSSERL, [1936] 1976, p. 332). Tais metas infinitas seriam, segundo Husserl, tal como um telos espiritual desta nova humanidade (que não é outra coisa senão a razão filosófica como uma vivência intelectiva originária que estaria além das diferentes formas culturais do povo europeu, conferindo-lhe o sentido de uma evolução em direção a um polo eterno). Trata-se, portanto, não de uma evolução biológica, que conduz, em graus sucessivos, os organismos individuais do embrião à maturidade, do nascimento à morte. Como nos diz Husserl, “Essencialmente, não há uma zoologia dos povos” (HUSSERL, [1936] 1976, p. 320). Mas, antes sim, trata-se de uma evolução espiritual por intermédio da qual o conjunto da humanidade europeia se unificaria – não pela simples justaposição geográfica e cultural das diferentes nações – mas pelo novo espírito crítico orientado para tais metas infinitas. Para Husserl, esta nova posição – de origem grega, filosófica e europeia – perante o mundo assumiria a sua função diretriz, tornando-se responsável pela “saúde espiritual” desta tal humanidade. Afinal, a filosofia como teoria não liberta somente o investigador, mas todo aquele que seja formado filosoficamente. Nos termos do Husserl, no § 3 de A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental (último grande testemunho do autor sobre os contrassensos produzidos pelo naturalismo, de 1936): “À autonomia teorética segue-se a prática” (HUSSERL, [1936] 1976, p. 6). Aos olhos de Husserl, se esta humanidade mergulhou em uma profunda crise a partir da Primeira Guerra, foi fundamentalmente porque ela própria – ao exaltar o conhecimento matemático da natureza e do mundo em geral, 17 As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação teórica aos perigos para a cultura Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics estendendo-o ao conhecimento do espírito, também concebido como “objetivamente no mundo e como tal fundado na corporalidade” (HUSSERL, [1936] 1976, p. 341) — sucumbiu a um esquecimento da própria filosofia que, desde o seu surgimento, se tornou responsável por unir, por relações somente espirituais, o povo europeu. Ao se deixar cegar pelo êxito galopante das ciências positivas, por sua prosperity (como diria Husserl no § 2 de A Crise das Ciências Européias), tal orgulho positivista incorporado por essa humanidade significou “...um virar as costas indiferente às questões que são as decisivas para uma humanidade genuína” (HUSSERL, [1936] 1976, pp. 3/4). Afinal, nos termos do autor, ainda no § 2 da referida obra: “Meras ciências de fatos, fazem meros homens de fatos” (HUSSERL, [1936] 1976, p. 4). Tomadas por este esquecimento, sobretudo, a partir da Primeira Guerra, as nações europeias passaram, em um nacionalismo beligerante sem precedentes, a acirrar o ódio e a destruição. Porém, como afirma Husserl, por mais hostilizadas que estejam entre si, tais nações conservam um peculiar parentesco no plano espiritual que as transcende em suas diferenças nacionais. Nos termos de Husserl: “É algo como uma irmandade que nos dá, nesta esfera, uma consciência pátria” (das Bewusstsein einer Heimatlichkeit) (HUSSERL, [1936] 1976, p. 320). Trata-se, portanto, de um solo espiritual comum – idealizado pela razão filosófica – no qual a humanidade europeia estaria, originariamente, radicada. A “perda” deste solo espiritual (no sentido de um lhe “dar às costas”) implicaria, segundo Husserl, na ruína desta humanidade. Mas, como Husserl afirmava desde o artigo de 1923, a Krisis – não somente epistemológica, mas também espiritual e existencial – vivida pela Europa resulta da alienação da humanidade européia a um naturalismo funesto, para o qual o homem não é senão um “fato natural”. Segundo Husserl, os próprios cientistas do espírito pouco poderiam auxiliar essa humanidade em meio a este cenário de crise, uma vez que não abdicaram, desde o último quarto do século XIX, de estender este mesmo objetivismo naturalista para o domínio das ciências do espírito. Daí Husserl dizer, uma vez mais, na conferência de Viena, em tom de alerta, o que fora uma das suas principais preocupações ao longo das primeiras décadas do século XX: “É um contrassenso considerar a realidade do espírito como um anexo real dos corpos, atribuindo-lhe um ser espaço 18 Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 18 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics temporal dentro da natureza” (HUSSERL, [1936] 1976, p. 342). A aceitação de tal objetivismo naturalista implicaria, segundo Husserl, em uma “unilateralidade ingênua” (naive Einseitigkeit): contraditória teoreticamente e perigosa para a cultura. Para Husserl, tal visão naturalista do mundo e do homem, ao relegar à vida espiritual (criadora de formas culturais) um sentido meramente “fisiológico”, se tornou a principal responsável por restringir esta humanidade a uma humanidade meramente acidental, fomentando, junto a ela mesma, a perda do solo espiritual comum no qual radica o povo europeu. Para remediar tal estado de adoecimento espiritual no qual se encontrava o homem europeu seria necessário denunciar, novamente, o contrassenso teórico no qual inevitavelmente incorreria a doutrina naturalista, bem como os perigos que tal doutrina representaria para a cultura. Husserl não hesita em convocar essa humanidade a reviver o que foi esquecido, fazendo renascer a experiência de uma “racionalidade efetiva” (wirklichen Rationalität) que, ao triunfar sobre o naturalismo, uma vez mais, uniria esta mesma humanidade europeia, fortalecendo-a novamente em seu solo espiritual originário. Afinal, como o próprio autor nos diz, os verdadeiros combates do nosso tempo são os combates entre uma humanidade já arruinada pela guerra, reduzida ao solo de suas particularidades, tais como nação, raça e cultura específicas, e outra que ainda resiste e luta pela sua “auto-compreensão” (Selbstverständnis), por uma nova radicação a este solo espiritual originário (mantendo a crença no "ideal de uma filosofia universal”, de uma philosophia perenis). Perder a crença na capacidade do homem de prover à sua existência individual e geral um sentido racional implica, para Husserl, em perder a crença “em si mesmo”. A aceitação de um solo meramente geográfico, circunscrito a cada uma das nações europeias, abriria novamente as portas para um relativismo cético que, além de incorrer em um contrassenso teorético, se encontraria na iminência de impactar gravemente a cultura. Daí o tom alarmante do discurso de Husserl, ao final do § 5 de A Crise das Ciências Européias: “Nós, homens do presente, que surgimos neste desenvolvimento, encontramo-nos no grande perigo de nos afundarmos no dilúvio cético e, assim, de deixar escapar a nossa verdade própria” (HUSSERL, [1936] 1976, p. 12). A nova denúncia (cujos contornos começam a ser notados a 19 As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação teórica aos perigos para a cultura Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics partir da década de 20) mostra uma face da crítica de Husserl ao naturalismo, a partir da qual o que se encontra em jogo não consiste em evidenciar tão somente o contrassenso teórico – no âmbito do debate sobre a fundamentação da Lógica, da Matemática e mesmo da própria Filosofia – inerente à aceitação da doutrina naturalista, mas mostrar que tal aceitação reabriria as portas para um relativismo cético, afastando-nos, dessa vez, do que há de mais genuíno no próprio homem (enquanto animal rationale): a manifestação da experiência originária de uma racionalidade efetiva por meio da qual atribuímos sentido racional ao mundo e a nossa própria existência. Passemos, então, para as considerações finais a respeito da relação indissociável entre os dois aspectos da crítica de Husserl à doutrina naturalista. CONCLUSÕES A crítica de Husserl ao naturalismo apresenta-nos, portanto, dois aspectos indissociáveis, a partir dos quais somos, correlativamente, colocados diante de duas denúncias cruciais, inseparáveis no itinerário husserliano: a primeira delas é de ordem puramente teorética (relacionada a problemas de fundamentos), ao passo que a segunda nos remete para considerações do domínio éticosocial, no cenário da cultura europeia da primeira metade do século XX. Conforme vimos, de 1896 a 1911, Husserl alerta-nos, para a seguinte implicação da aceitação da posição naturalista: a de que todo pensamento que tenha como base a doutrina do naturalismo incorre, inevitavelmente, em um contrassenso teórico e, por conseguinte, em um ceticismo que se autocontradiz. Já no período de 1923 a 1935, como pudemos acompanhar, Husserl concentra-se em denunciar os impactos de tal modo de consideração sobre a formação da mentalidade do homem europeu, propondo-nos um diagnóstico da etiologia da crise que se instaurou na cultura europeia. Tais denúncias encontram-se indissociavelmente ligadas. Afinal, ao dar às costas para os problemas de fundamentos nos quais o naturalismo e, sobretudo, o projeto de naturalização da “vida do espírito”, incorria, esta mesma humanidade europeia fomentava uma posição perante o mundo, na qual ela mesma ignorava o seu próprio “solo espiritual”, se afastando, cada vez mais, do que Husserl considerava o seu telos originário, esvaindo-se, enfim, em um objetivismo naturalista. A ingenuidade teorética de tal objetivismo converte-se em um 20 Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 20 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics realismo fatídico sem ideais. Em um mundo reduzido a uma realidade de fatos naturais, esta humanidade acidental não tardaria em justificar suas decisões com base em proposições extraídas dos fatos e, portanto, inferidas a partir da observação positiva dos mesmos. Tais proposições – enquanto generalizações da experiência – não perderiam a sua circunstancialidade. A existência humana estaria, portanto, destinada a um desamparo irreversível, uma vez que, por mais êxito que o pensamento obtivesse, em meio à exaltação do objetivismo naturalista (que somente considera como válido o que é verificável a partir da observação sistemática da regularidade dos fatos), o próprio pensar – restrito a inferências de proposições empíricas – não poderia apreender conteúdos cuja validade estivesse inteiramente livre do assédio do que é contingente. Esvaída em um naturalismo generalizado, a filosofia estaria na iminência de seu fim e a humanidade europeia mergulharia, inevitavelmente, em uma crise sem precedentes. Apesar de suas convicções, Husserl parece pressentir que a crítica ao naturalismo pode permanecer inaudita por esta mesma humanidade cujo adoecimento espiritual é manifesto. Afinal, como ele próprio nos diz, na mesma conferência de 1935: “...a situação nunca melhorará enquanto não se colocar em evidência a ingenuidade do objetivismo...” (HUSSERL, [1936] 1976, p. 345) e não nos convencermos do absurdo de considerar a natureza e o espírito como realidades de sentido homogêneo, confundindo, com isso, os domínios do real e do ideal, do espaço e do tempo, do que pode ser tratado em termos de grandeza numérica e do que somente pode ser descrito como uma vivência de duração. Tal ingenuidade naturalista teria, portanto, um duplo aspecto: alimentar, sem se aperceber, um contrassenso teórico, além de renovar uma posição perante o mundo, cujo perigo logo se faz notar na própria cultura. Trata-se, portanto, de uma ingenuidade – dada a sua periculosidade para a própria cultura – distinta daquela mencionada por Husserl a propósito da figura do filósofo como “observador desinteressado” e “contemplador do mundo”. Se a primeira arruína a humanidade, reduzindo-a a uma mera acidentalidade, a segunda é própria do caminho a ser trilhado para redimi-la do esquecimento daquilo que Husserl considera o telos espiritual do homem europeu. Mais do que nunca, ao denunciar tais aspectos da “má ingenuidade”, 21 As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação teórica aos perigos para a cultura Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics enquanto “funcionário da humanidade” (Funktionär der Menschheit), observador anônimo do mundo, a figura do filósofo renasce, como uma fênix, para redimir esta humanidade da sua própria incredulidade em uma “racionalidade efetiva”, para redimi-la, enfim, do esquecimento da própria filosofia, forma cultural a partir da qual se anuncia, aos olhos de Husserl, não uma aquisição acidental de uma humanidade fática (algo como um mero “delírio histórico fático”), mas, antes sim, o sentido originário da vida espiritual, o solo genuíno do homem europeu. REFERÊNCIAS HUSSERL, E. Logische Untersuchungen. Erster Band. Prolegomena zur reinen Logik. Halle a. d. S.: Max Niemeyer, ([1900] 1913). HUSSERL, E. Einleitung in die Logik und Erkenntnistheorie – Vorlesungen 1906/07. Husserliana (Band XXIV). Dordrecht, The Netherlands: Martinus Nijhoff, ([1906/1907] 1984). HUSSERL, E. Die Idee der Phänomenologie – Fünf Vorlesungen. Husserliana. Band II. Netherlands: Martinus Nijhoff, ([1907] 1950). HUSSERL, E. Philosophie als strenge Wissenschaft. In: Logos: Zeitschrift für systematische. Philosophie / Logos, 1910-1911, 53 Seite (n), pp. 289-341. HUSSERL, E. “Erneuerung. Ihr Problem und ihre Methode (1923)”. In: Aufsätze und Vorträge (1922-1937). Husserliana. Band XXVII. Dordrecht / Boston / London: Kluwer Academic Publishers, ([1923] 1989). HUSSERL, E. Cartesianische Meditationen und Pariser Vorträge. Husserliana (Band I). Den Haag, Netherlands: Martinuos Nijhoff, ([1931/ 1929] 1973). HUSSERL, E. “Die Krisis des europäischen Menschentums und die Philosophie”. In: Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie. Husserliana. Band VI. Netherlands: Martinus Nijhoff, ([1935] 1976). HUSSERL, E. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie. Husserliana. Band VI. Netherlands: Martinus Nijhoff, ([1936] 1976). Submetido: 24 de julho 2017 Aceito: 31 de julho 2017 22 Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 22 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics A study about the universals in Ideas I Um estudo sobre os universais em Ideias I Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena2. Federal University of Juiz de For a – Brazil. RESUMO A questão dos universais permanece tema na filosofia tanto na ontologia como na epistemologia. Em Husserl, há universais particulares, o ‘X’ noemático, o idêntico, e universais stricto sensu, nomes universais atemporais. Neste artigo, apresento o tema conforme analisado por Husserl em Ideias I. Na primeira seção, descrevo a trajetória até os universais destacando o paralelismo entre noese e noema. Na segunda seção, traço o reflexo para a filosofia da linguagem também afetada pela correspondência noético-noemática. Na terceira e última seção, mostro como a investigação sobre os universais move-se apenas na esfera noemática, e concluo defendendo a possibilidade de partindo do ‘X’ noemático alcançar o universal em sentido estrito. PALAVRAS CHAVE Husserl, fenomenologia, Ideias, universais. ABSTRACT The problem of universals remains a philosophical theme not only in ontology but also in epistemology. In Husserl, there are particular universals, the noematic ‘X’, the identical, and universals stricto sensu, atemporal universal names. In this paper, I present the theme as it is analyzed by Husserl in Ideas I. In the first section, I describe the trajectory to the universals highlighting the parallelism between noese and noema. In the second section, I draw the reflection of this problem on the philosophy of language which is also affected by the noeticnoematic correspondence. In the third and last section, I show how the investigation about the universals moves in the noematic sphere, and conclude defending the possibility of reaching the universal strict sense departing from the noematic ‘X’. KEYWORDS Husserl; phenomenology; Ideas; universals. 2 E-mail: nbcadena@gmail.com 23 A study about the universals in Ideas I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics INTRODUÇÃO This paper is a study about the universals in Ideias I. The term, in German, is ‘Allgemeinheit’ and has been translated to ‘universality’ in the English edition of F. Kersten and in the Spanish edition of J. Gaos. In the Brazilian-Portuguese edition of M. Suzuki it has been translated to ‘generalization’. I use the English translation considering it more accurate to the meaning given by Husserl and I hope that at the end of this paper the reason for this option is clearer. Initially, I will highlight a few relevant concepts, the eidetic parallelism between noetic and noematic, the path to §124 entitled ‘The Noetic-Noematic Stratum of “Logos”, and ‘Signifying and Signification’, where Husserl presents different definitions of universality. From this point, I will focus the study on the idea of universals as “universals names”, to wit, universals stricto sensu. In the next section, I will emphasize how the parallelism between noetic and noematic also echos in language and show a few difficulties and possibilities for reaching the universals and their signification. In the third and last section, I will explain how the path to the universals is given in the noematic sphere and how through the universal given in the lived event, the noematic ‘X’, it is possible to raise consciousness to the universal stricto sensu. 1. TO THE UNIVERSALS Husserl defines phenomenology as a descriptive science (§71), therefore establishes its object of knowledge and method. The objects of its knowledge are the essences of mental processes [die Erlebnisse] 3 . The method is neither that of the natural sciences nor that of other eidetic descriptive sciences, such as TRANSLATION NOTE: I would not translate ‘die Erlebnisse’ to ‘mental processes’. Das Erlebnis is a remarkable event that someone has experienced, or has lived. It refers to the whole experience of living a specific event. When you translate to ‘mental processes’, it seems that the emphasis is on the consciousness acts (noese), but ‘das Erlebnis’ is not only about them, it is also about the content of these acts (noema), and more, is about the eidetic relation between them (the noetic-noematic relation). Therefore, I think the BrazilianPortuguese translation is better; it is translated to ‘lived’ (vivido) to indicate an event experienced or lived, in shorten, a ‘lived event’ that now is under focus. 24 3 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 24 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics geometry (§§72-74). The phenomenological method is unique and through reduction (§76) unveils the realm of transcendental consciousness as primal category of “absolute” being. In turn, the doctrine of categories must set off from this radical ontological specificity, the distinction between consciousness and transcendent, transcendental and transcendent. From this distinction the phenomenological reflection moves entirely in the transcendental dimension through acts of reflection (§77). The object, or the content, of these acts of reflection is any mental process, or considering our 4 translation, any lived event . When the lived event is noticed, when a reflection is directed to it, it becomes an object to the Ego, to the phenomenologist (§78). The interest of the phenomenologist is about a very specific part of the lived event 5 , its essence. This part is only revealed when the phenomenological reduction is applied, and the findings bracketed become outstanding examples of universality of essences. The path is as follows: at first sight, See note #1. From now on, I will adopt the Brazilian-portuguese translation. ‘Das Erlebnis’ is translated to ‘the lived event’. See note #1. 4 5 Um estudo sobre os universais em Ideias I there is the non-reflecting lived event; then there is a modification of consciousness, one becomes aware of the lived event and starts to reflect on it; the lived event becomes, then, a reflected lived event. There are various reflection acts that cross a lived event, the immanent eidetic seizing, the immanent experiencing, the remembrance of something that has been perceived, or the expectation of something that will become perceived. These modifications belong to each lived event as possible ideal variations, ideal operations, reiterable modifications ad infinitum. Conversely, only through reflexive acts of experience, can we learn something about the continuously flowing and the necessary reference to the Ego, one and the same self, precisely because one can “look” at the whole flowing of lived events (§§78-80). This flowing of lived events that belongs to an Ego reveals a continuous and endless temporality. This complex of lived events is given in this temporality, before, after and simultaneously, in a continuous progression of apprehensions, one after another, and the Ego is given absolutely and undoubtedly as an idea, in the Kantian sense (§§81-83). The lived event given to a pure I is composed of a noetic dimension, consciousness acts, and a noematic dimension, the content of these acts. 25 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Thus, there is a perceiving act and the perceived as such; a remembering act and the remembered as such; the judging act and the judged as such. Put another way, the lived event is composed of intentionality, consciousness acts, the noetic, and what is intentioned, the correspondent content of these acts, the noematic. These contents can be understood as real components of lived events or non-real – ideal – components of lived events, which can be called sense (§§88-89). The sense is immanently in the lived event of perceiving, of remembering and of judging, this is the idea that phenomenology intends to reach and describe. To describe an idea is not to describe thought, but to describe an essence, an eidos. The core of the description is the eidetic as given, to describe the perception in its noematic perspective. In other words, the focus is not on the consciousness acts as in Logical Investigations. In Ideas I, what we are trying to describe are the core of the contents, the essences. In Husserl’s words: Everything which is purely immanent and reduced in the way peculiar to the mental process, everything which cannot be conceived apart from it just as it is in itself, and which eo ipso passes over into the Eidos in the eidetic attitude, is separated by an abyss from all of Nature and physics and no less from all psychology – and even this image, as naturalistic, is not strong enough to indicate the difference. (HUA 3, 184). Therefore, all intentionally lived events have intentional objects, namely, their objective sense (§90-91). The difficulty is in maintaining attention on the parenthesized effective object given in the lived event and not allowing consciousness to divert to the real object, to the thing outside. This is because, although phenomenology admits the existence of real and transcendent things, it takes them as components of the phenomenon, as elements contained in the reduced phenomenon, not as objects of knowledge. (Drummond, 1945, p.229) Even if there are attentional changes and it is possible to privilege different aspects of the lived event, the noematic core remains identical (§92). It is also possible to admit changes on the noema, since different modes of alteration to the lived event are possible. Although, in the full noema, the manifold modes gather in a central core, “meant Objectivity as Objectivity”. All these changes are possible because, despite the fact that the attentional modes are subjective, the object struck by an Ego-ray is independent, given only to the Ego, 26 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 26 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics but it is not “subjective” (§93). Husserl asserts: It is then a further undertaking of more precise phenomenological study to discover what is prescribed according to eidetic law precisely by species, and what is so prescribed by the differentiating particularities, for noemata of changing particularities of a fixed species (e.g., perception). But the restriction holds throughout: in the sphere of essences there is nothing accidental; everything is connected by eidetic relations, thus especially noesis and noema. (HUA 3, 193/194) These attentional modes reach the noema and do not cause any alteration on the identical noematic core. Another way to put it is to say that the ray of attention does not separate from the self, it is and remains a ray of the Ego, and the “object” is reached, is target, given only in reference to the Ego, but it is not “subjective” (§92). Thus, we can infer that on both lower-level noeses such as sensitive perceptions, and on higher-level noeses such as moral judgments, composition appears on the noematic as a central core, something made conscious, as, under the designation of sense. A phenomenological study aims to demonstrate in such species of noema what is required by the species itself and what is required by the particularities of a fixed species. This is because, in the sphere of essences, in the study of the central core of noema, there is no contingency, it being necessary to differentiate what is required by the species from what is demanded by the particularization (§93). In other words, in apperceiving the lived event, reduction reveals the relation between real – hyletic and noetic – and non-real or ideal – noematic. In the example offered by Husserl, a sensory lived event, the sensitive perception of a tree is given: on one side, there is the actual unity of the lived, the color of the trunk of the tree, color as sensitive stimulus, sensation of color; on the other, there is the unity of the noema, the continuous unity of a variable perceptual consciousness, the same identical color in itself immutable. The real unity of the lived event is composed of hyletic and noetic elements; it is the unity that reveals the individual as the same, material, concrete, which allows me to say “I see the same tree”. The unity of the ideal is the unity of the noema which reveals the post-reduction essence (§97). There is also a third unity, the noetic-noematic unity, which binds that object to a certain essence. In the post-reduction mode, the eidos of the noema points to the eidos of the noetic 27 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics consciousness, that is, they are eidetically interdependent, although they are independent. An issue arises: since noematic “objects” are evidently units brought to consciousness in the lived event, but transcendent in relation to it, how can we elucidate the relation between the real composition of the lived event and what is in consciousness as ideal, as essence? (§102) The intentional object as such appears as support to all noematic characters. All noematic characters suggested have a universal phenomenological scope, they constitute the necessary foundations of all intentional lived events, the same fundamental genera and species of characteristics are also found among all these founded lived events, and therefore, in general, in all these intentional lived events. Corresponding to the noematic characters, also called modes of being, there are noetic characters (§103), for example, certainty corresponds to perceptual belief, possible to assumption, plausible to conjecture, problematic to questioning, doubtful to doubt, denial to rejection, affirmation to assent (§§103-108). Aside from the modifications related to the sphere of belief, there is a consciousness mode entirely particular, neutrality (§109). Neutrality is a modification in the sphere of belief that does not operate, does not scratch, does not emphasize, it refrains from operating, abstains from producing, puts out of action, parenthesizes, leaves undecided. The character of position is in suspense. Belief, conjecture, denial, and other noetic characters are neutralized and the correlates are for consciousness, not in the actual mode, but “mere thinking of”. Neutrality and positing are opposing attitudes, yet complementary (§110). They are opposing attitudes because positing is positional, evaluates with reason, may be correct or not; neutrality or suspension is not positional, cannot be evaluated with reason, cannot be neither correct nor incorrect. In addition, various positions potentially included in it can be taken from effective consciousness, effective positions; on the other hand, neutral consciousness does not contain any “real” predicate. They are complementary because all lived events ideally correspond to a neutralization mode. Hence, there are two fundamental possibilities of realizing consciousness within the cogito: the effective, positional, authentic cogito, and the shadow, non-effective, non-positional, inauthentic cogito. It happens that the effective operation and the neutral modification correspond and yet they 28 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 28 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics do not share the same essence because when positional actuality is neutralized it becomes potentiality (§§113-114). Put another way, all perception has its background of perception and this is a unit of potential positions. The background leads to perspective changes and potential "seizures". Or else, in the essence of all lived events is outlined beforehand a set of potential positions of being. Hence it is possible to identify several intentional domains, one can differentiate incipient or non-effected acts from actual acts, among these there are neutrality and positionality, and among this there are actual and potential positions. And, even in the face of so many variables, the parallelism between noese and noema remains under all intentional domains (§115). Up to this point, Husserl adopts examples of simple noeses, acts of perception. From then on, he turns his attention to noeses of feeling, of desiring, of willing (§§116-117). It may seem a deviation in reasoning, but it is within the framework of affective consciousness that Husserl makes an evident passage from particular to universal. To these new noetic moments correspond a new dimension of sense, new noematic moments: values. Values are not determining parts of things, but values of things. That is to say, in the affective consciousness, the higher level noema - value - is a core of sense surrounded by new posited characters. In other words, things have no value, but support value, and consciousness, in turn, consciousness is of possible value, or else, only things are supposed to be valuable. Thus, apprehensions of value relate to apprehensions of things in the same way that the new noematic characterizations (beauty and ugliness, goodness and badness) relate to modes of belief. In affective consciousness, positional affective, contents correspond to acts, therefore, to acts of pleasure, desire, valuation, acts of will in general, correspond positional characters. To these positional characters lies an archontic positing that unifies in itself and governs all others, the supreme unity of species, the universality of essence. Thus the analogy between universal logic, universal theory of value, and ethics. These lead to the constitution of formal universal formal parallel: formal logic, formal axiology, and theory of practice. This is only possible because every thesis is subject to an eidetic law: any thesis, of whatever species (including affective), can be transformed into an actual doxic position. Therefore, any proposition (including desire) can be transformed into a doxic proposition. It is as if in 29 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics all the positional characters (including valuations) doxic modalities were kept. Consequently, every act or every correlate of act takes on a logical aspect and can be explained logically thanks to the universality of essence. Otherwise, all acts in general (including acts of affection and will) are potentially objectifying. A new question arises, how can we promote this unity once lived events and the acts of consciousness distend in time (§118)? These lived events and their acts must be unified in syntheses, synthesized by consciousness. Husserl identifies two types of synthesis, articulated synthesis and continuous synthesis. In articulated syntheses, acts are linked in an act of higher order. In continuous synthesis, unity belongs to the same level of ordination; there is no act of higher order unifying them. Considering the articulated syntheses of lived events, the possibility is evident of transforming what one is aware of from many acts (polythetic) into something that one is simply conscious of because of a single act (nomothetic) (§119). Thus every noese contributes to the constitution of a total object, or else, every consciousness in synthetic unity has a total object. In a simpler way, a lived event is made up of multiple acts and each act corresponds to a noema. To unify a lived event is to realize an articulated synthesis, to identify an act of higher order and its corresponding synthetic object, a total object. Or, to intuit a total object implies a specific act of consciousness, since the ideal unity of the object could not be intuited by a dispersed multiplicity of particular acts. (Moreland, 2001, p. 44) A synthesis depends on the character of the noeses, if all subtheses are positional, it is positional; if one is neutral, it is neutral. Thus, from the positional noeses, an articulated synthesis is carried out step by step. Position, apposition, presupposition, postposition etc. compose an articulated synthesis. It must be remembered that these noeses are radiations of an Ego as a source of original productions (§122). It is an active Ego. Every thesis begins with a point of initiation (fiat), a first spontaneous act, for example, deciding or volunteering. Every act can begin in this mode of spontaneity, a creative act, in which the self makes its entrance as subject of spontaneity in a new flow of lived events. This mode of initiation passes through an eidetic need, a modal change. This modal change does not imply losing all that has been previously apprehended, no synthetic 30 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 30 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics step is abandoned, but the mode of actuality essentially changes with a new actual thematic of origin. This is because to every actual noetic change corresponds a noematic change. However, despite the necessary changes of the noematic mode, the essence always remains the same. Having established these premises, Husserl approaches the subject from another perspective, that of language. 1. UNIVERSALS AS THEME OF PHILOSOPHY OF LANGUAGE AND ITS DIFFICULTIES In dealing with affective consciousness, Husserl had already stated that any proposition could be transformed into a doxic proposition (§117). It is from this "translation" of non-doxic proposition into doxic proposition that one can explain the universality of predicative judgments and the necessity of formal and material noetic disciplines, or noematic and ontological (§118). These disciplines are developed from the articulated syntheses that transform polythetical acts into nomothetical acts, such as, collecting, disjunctive, explicating and relating. The whole series of syntheses determine the formal-ontological forms according to the pure forms of the synthetical objectivities being constituted in them and, with respect to the structure of noematic formation are mirrored in the apophantic significational forms belonging to formal logic. Simply put, the articulated syntheses bind acts in a unit and to the nomothetic act corresponds a total object. Therefore, to the formal-ontological forms noetic structure - a noematic structure corresponds that, in turn, implies apophantic forms of signifying the formal logic. Put differently, every process of synthesis that affects the acts and their content, the noeticnoematic relationship, has a corresponding one in language, that is, in formal logic understood as apophantic, as propositional logic. In logic, this correspondence is evident by the law of nominalization (§119) according to which every proposition and every partial form distinguishable in the proposition corresponds to a nominal character. Nominalization is the logical-formal counterpart of the transformation of a polythetical act into a nomothetic act so that this named unit can serve as the subject of an affirmation. Husserl gives as an example the judgment expressed in 'S is p' where 'S is p' can be transformed into the subject of an affirmation, "that 'S is p' is positive." Husserl draws a parallelism between all the layers described so far and the layers of acts of expression, 31 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics logical in the apophantic sense, which are also affected by the relation between noese and noema. Hence the noetic-noematic relationship also has repercussions on expression and signification (§124). This parallelism implies an amplification of the understanding about the act of signifying and signification. Before, they referred only to the linguistic sphere, the expression, but Husserl proposes its extension to be applied in every noetic-noematic sphere, whether intertwined with expressive acts or not. The example is the following: we perceive an object already put nomothetically, "this is white". This process does not require expression; it is a perceptive act that does not depend on expression or verbalization. If, however, we verbalize, "this is white", then we have a new expressive layer superior to the noematic layer of "meant as meant". This process applies also to other acts such as remember and fantasize. Thus, we have the following maxim: anything ‘meant as meant’ considered in the noematic sense of any act is expressible through logical significations. Quoting Husserl: The verbal sound can only be called an expression because the signification belonging to it expresses; expressing inheres in it originaliter. “Expression” is a distinctive form which allows for adapting to every “sense” (to the noematic “core”) and raises it to the realm of “Logos”, of the conceptual and, on that account, the “universal”. [HUA 3, 257] In the noetic dimension, expressing is an act to which all other acts must conform and combine so that all acts of noematic sense, and consequently the reference to objectivity, are conceptually stamped on the noematic correlate of the expression. In short, on the lived event there is, on one side, a real dimension that includes the hyletic and the noetic, on other side, an ideal dimension, the noematic (§97). At first, we live the perception, 'this is white', 'this is a tree'. Then, we can verbalize this lived event. Remembering that the expressive act is also affected by the noetic-noematic relationship, it is easily understood that, in its noetic dimension, its expressive act combines several other acts, but with the same noematic signification. This layer of expression produced from previous layers brings up some problems. Once all science is objectified through "logic" in the sense of apophantic, in the midst of expression, the problems of expression and signification are 32 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 32 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics immediately presented to the philosopher. Some difficulties are: how to understand the "expression" of the "expressed", how expressive lived events relate to non-expressive ones and what the intervention of the expression entails for the latter? What is the eidetic nexus between the layer of expressive signification and the layer of what is expressed? Despite giving expression to all other intentionalities, the expressive layer is not productive, or its performance in noematic terms is exhausted in the expression and in the conceptual form. The expressive layer is, in essence, perfectly in accordance with the layer that receives the expression accepting the essence of this. For this reason it is called representation. In further words, the expression is a spiritual formation that exerts new intentional functions in the previous intentional layer and from it receives correspondingly intentional functions. This correspondence between the non-expressive layer and the expressive layer is such that when the non-expressive layer is positional or neutral, the expressive layer follows it entirely in its mode. It is in this context that Husserl presents different definitions of universality [Allgemeinheit]. Of particular importance is the understanding of the different sorts of “universality” which make their appearance there: on the one side, those which belong to each expression and moment of expression, also to the nonselfsufficient “is”, “not”, “and”, “if”, and so forth; on the other side, the universality of “universal names” such as “human being” in contrast to proper names such as “Bruno;” again, those which belong to an essence which, in itself, is syntactically formless in comparison to the different universalities of signification just touched upon. [HUA 3, 259] In order to understand these different definitions one has to understand the different modes of actuality (§125), or different modalities of performing the act considering the layer of signification (logic) and the lower founding layer (the expressed). There are two possible levels of confusion: first, the relation between the expressive (logical) layer and the lower layer (the expressed), in this case the lower layer may be a confusing unit (and most often it is), or the adjustment between the layer of what is expressed and the layer of logical expression is not precise; secondly, the relation between the proposition expressed and the ones that follow, when the former ceases to be a theme and it is overcome by the following, for example, when we are reading, 33 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics we can articulate and freely effect each signification and synthetically connect significations. The impact of these difficulties on the method of clarification is highly relevant, since the need to move from confused thinking to completely explicit knowledge and to clarified and distinctive acts of thinking is evident. That is to say, all logical acts (acts of signification) need to be converted into precise acts by establishing a full logical distinction. And, because of the correlation between the noetic and noematic dimension, something similar must also be operated in the founding lower layer, “everywhere unliving is to be converted into the living, all confusion into distinctness, but also all nonintuitiveness into intuitiveness”. [HUA 3, 260] Only when we perform this work “of conversion” made in the substractum, does the method of clarification come into action. Another difficulty level is the difference between the complete and incomplete expression (§126). There is a unity between what is expressed and what expresses; however, it explains that the upper layer that expresses does not have to extend through the entire layer of what is expressed. There does not need to be a perfect match between what is expressed and expression. The expression is complete if it marks all the synthetic forms and materials of the lower layer, is incomplete if it only does it partially. There is, however, an inevitable incompleteness that is part of the essence of expression as such, that is, of its universality. This implies that it is contained in the sense of universality, inherent to the essence of the expression, that all the particularities of the expressed can never be reflected in the expression. The expression layer is not a copy of the layer of what is expressed, not all dimensions of this layer are covered in the expression. Even in the particular sense of a term there remain essential differences as to how forms and synthetic materials find expression. One more difficulty is the need to complement all significations, forms of signification and “syncategorematic” significations. The expressions alone are understandable, but still lack complement. The question is what does this need for complement of significations imply and how does it affect both layers. For Husserl, all these points can be clarified if it is explained “how statings as the expressions of judging are related to the expressing of other sorts of acts.” [HUA 3, 262]. There are proposition forms structured in a peculiar way, interrogative 34 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 34 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics propositions, presumptionpropositions, optative propositions, imperative propositions, etc., but interpretable dubiously. Questions arise, do these expressions have a kind of signification of their own, or are they actually propositions of statements? Thought over the theme considering only the noetic dimension is insufficient. It is necessary to consider the noematic dimension to which the acts of signification are directed. This, then, is the radical problem: “Is the medium of expressive signifying, this appertinent medium of the Logos, a specifically doxic one? In the adaptation of the signifying to the signified, does it not coincide with doxic itself inherent in all positionality?” [HUA 3, 263] A doxic expression, to be faithful and complete, to express straightforwardly a lived event, for example, affective, could only correspond to doxic lived events nonmodalized, that is, could only express certainties. If I am not sure when I wish, then it is not correct if in direct adjustment I say, "May S be p." This is because expressing is not merely verbalizing, but signifying, a doxic act in strong sense that expresses a certainty of belief. But, if modalities happen, "Maybe S can be p", then one can try to adjust the expression as much as possible. However, in this case there is a deviation. Such deviations are possible because several possibilities of explanation are the essence of all objectivity. The expression is not then adjusted to the original phenomenon, but directly to the predicative phenomenon derived from it. Husserl makes one more warning; the eidetic clarification of the idea of doxa is not the same thing as clarification of statements or explanations. 2. FROM NOEMATIC ‘X’ TO THE UNIVERSALS In the above quotation, Husserl presents different definitions of universal; the definition that we intend to deepen is the one of universals as "universal names". The investigation of the universals opens on both sides, noetic and noematic, but the search for universal names, strictly universal, occurs in the noematic dimension. This is because, to a large extent, what has been taken by analyzing the acts was entirely obtained by directing the gaze to the "meant as meant", and thus, it is intended to describe noematic structures. In other words, given eidetic parallelism between noesis and noema that permeates all modes 35 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics of consciousness; the investigation of universality of the noesis is only complete when accompanied by the search for the universality of the noema. The objective is to direct attention to the universal structure of the noema. The phenomenological problem of the reference of consciousness to objectivity has, first and foremost, its noematic side. For Husserl, there is a universal noematic structure in which a certain noematic "core" separates from the mutable "characters" belonging to it (§129). The relation takes place in the following way: every noema has a content, that is, a signifying, and refers through it to "its" object. That is to say, an intentional lived event has "reference to the object," but it is also "consciousness of something." However, the reference to the object cannot be the same as the one desired when speaking of intentional reference, since each noetic moment corresponds to a moment of the noema. So, how to find "the same", the identity of the noema, its central point, or else, the support to noematic properties? An “objectivity” is part of the noema, an essence that is immune to modifications (§130). The goal, therefore, is the description of the "object as intended", the “meant objective something, as it is meant”, avoiding all "subjective" expressions. In this description, formal-ontological expressions are used, such as "object", "determination", "state of affairs"; material-ontological expressions such as "physical thing", "bodily figure", "cause"; determinations such as "hard", "rough", "colored". All of them under inverted commas, accordingly the noematic-modified sense. Thus, through conceptual explanation and apprehension we obtain a closed set of formal or material predicates that determine the "content" of the objective core of the noema. It is important, however, to point out that these predicates are predicates of 'something', an identical intentional object, a pure 'x', the central noematic moment, a single object, and such predicates are unthinkable without this support (§131). The predicates are oscillating and variable, but the central point of the intentional object is the same, nothing contingent. Hence the object is brought to consciousness as identical and yet in different noematic modes. To each of the various noemas correspond acts with different nucleus, but in such a way that they come together in a unity of identity, in a unity in which the "something", the determinable that is contained in each nucleus, is brought to consciousness as identical. And, just as separate acts can come together in 36 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 36 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics a "concordant" unity; the "something" of the separate nucleus is brought to consciousness as being the same something, the same 'X', the same object. Husserl, then, establishes a possible difference between this noematic core and sense. The intentional object receives two definitions, first, it is the pure point of unity, that noematic object purely and simply given; secondly, is the 'how' of its determinations, including its indeterminacy, is a noematic object in the 'how' of its modes of givenness (§132). Therefore, sense is a fundamental part of the noema, but it is not the core. Every sense has not only "its object", but different senses refer to the same object. Therefore, sense is not a concrete essence of the noema, but a kind of abstract form intrinsic to it. However, there may be a coincidence between the sense and the core. Husserl refers to sense in fullness mode and the full core. If we detect the sense exactly with the content of determination in which it is aimed and if we abstract all the differences in the manner of being of the modes of effectuation, then we have access to a fullness of clarity. In this case, there would be a coincidence between the description of the full core and the description of the sense in its fullness mode. Such a description occurs through the formulation of propositions, again the parallelism between noema and noese is present (§133). The "sense" corresponds to "matter" and the unity of sense and thetic character to the "proposition". There are propositions of a single member, as in perceptions, and of more than one member, synthetic propositions, such as predicative doxic (judgments). Propositions of pleasure, desire, command, etc. may be of one or more members. The task is, on the one hand, the search for a systematic and universal doctrine of the forms of the senses (significations), on the other, the systematic classification of propositions. To delineate a systematic doctrine of sense-forms or logical significations, that is, of predicative propositions, of judgments, with a universal scope to mark all possible kinds of significations in all possible operations, is a capital task (§134). A true morphology would constitute the eidetic and necessary substrate for a scientific mathesis universalis, for a general morphology of the senses. These synthetic forms belong to a strict formal system and can be extracted by abstraction and fixed in conceptual expression. To determine all these a priori forms and to dominate in systematic completeness the configurations of forms, which are 37 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics of an infinite diversity and yet circumscribed by laws, implies the idea of a morphology of propositions or apophatic syntaxes. Husserl explains that positions can be doxic modalities, because when we conjecture or explain or affirm or deny, even assuming different forms (“S could be p”, “Is S p?”, “S is not p”, “S is p”, “S is certainly, effectively p”), what is “conjectured”, or what is “problematic”, or what is “asserted”, or what is “denied” continue to have the noematic correlates of these different modes of expression. In other words, the form is multiply determined, however, there is a total proposition of which a total thesis is part, including in this a doxic thesis. That is why every proposition can be converted into a proposition of statement, in a proposition on the modality of the content. Once again the correspondence between the noetic and the noematic is present, between the proposition and the sense. Thus every thing of nature is represented by all senses and propositions that are variably fulfilled, that is to say, it is represented by the multiplicities of "full cores", by all possible "subjective modes of appearance”, in which it can be constituted noematically as something similar (§135). Put another way, the unity of the thing contrasts with the multiplicity of noetic lived, all agreeing that they are aware of the identical ‘X’. Next, Husserl proposes the idea of constitution of an object. To constitute an object is to bring an object to evidence; an object is constituted in certain nexuses of consciousness evidencing a unity, the consciousness of an identical 'X'. It is in this context that one can ask about effectiveness: is the identity of the 'X' intentioned noematically "effective" identity? How can all those nexus of consciousness make an effective object? How does the noetic-noematic constitution of objectivities occur? Here, we are under the jurisdiction of reason that asks about effectiveness, conjecture, doubt, and resolves the doubt. When one speaks of actual, truly existing objects of the category of being, the statement that describes it "will be true" or "will be effective" or "will be rationally attestable" if it is in correlation with it. This correlation is not empirical, but an "ideal" possibility, a possibility of essence. Simply put, what is being described is the object as pure X, the same, the identical, already reduced, object of articulated synthesis, the content of a nomothetic act. Therefore, the correspondence between the actual, existing object, category of being, and the founded 38 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 38 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics statement, evidenced immediately, is a possibility of essence. To answer these questions about effectiveness, Husserl introduces a number of key interdependent concepts, they are: originarily presentive, “intuitive” mode, evidence, and belonging. A positional lived event is given in originarily presentive mode, for example, perceptive acts such as vision, or in non-originarily presentive mode such as remembering (§136). These differences, however, do not affect the pure sense of the proposition, for it is always identical and intuitive as such by consciousness. The difference is in how sense, or proposition, requires an addition of complementary moments, that is, how sense or proposition is filled or not filled. Husserl gives an example: we see a landscape or we remember a landscape. Considering the way of filling the sense, in the first case, we have the intuitive mode, when the sense of the "object as such" is brought to consciousness as an originarily presentive, “in person”, and in the noema corporeity is merged into the pure sense. In the intuitive mode is a mode of living the sense in which the "object as such" is brought to consciousness in originarily presentiveness. The sense is fulfilled. In the second case, of remembering, we have the opposite, the consciousness of memory is not originarily presentive, the landscape is not perceived as such, although it has its own legitimacy. Husserl focuses on perception. To any appearing “in person” belongs a position. The position is motivated by the appearance, that is, the position has its originary foundation of legitimation in the original data of the appearing. In just the same manner, the position of essence originally given in the seeing of essence belongs to the positionmaterial, to the 'sense'. The position of essence is founded in the sense that in its turn is founded on the intuition of essence in original giving. So, consciousness is able to intuit the essence, the universal, from the experience, from the particular phenomenon. Universals are transcendent to consciousness although they are intuited and evidenced transcendentally. (Sparrow, 2014, p. 29) Make evident is to clarify the unity of a rational position with what motivates it, is the agreement between what is understood and the given (§§137-138). To evidence or intellectual seeing is a positional, doxic and adequately presentive consciousness. It is an act of reason. We have the evidence derived from the apodictic view, as in the case of arithmetic, where the data is adequate, an evidence of essence, and the evidence derived from experience as in the example above, seeing a 39 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics landscape, a weak evidence in which the data is inadequate, the appearance is incomplete, although the sense remains. In this case, the task of phenomenology is to bring to clarity how consciousness of inadequate data relates to a single and determinable 'X'. A position has its legitimation as a position of its sense if it is rational and rational character is what corresponds to it by essence (§139). At the same time, a proposition has its legitimation when it is infused with the noematic character. Remembering that, considering only the doxical sphere, all doxic modalities (possible, believable, problematic, doubtful, etc.) refer to the original doxa, that is, they refer to an original rational character that forms part of the domain of the original belief that in turn refers to the original evidence. Simply put, all lines flow towards the original belief and its original reason, which is, the "truth". More than that, only the original evidence is an "original" source of legitimacy. Remembering and empathy, although motivated, are imperfect evidences that can lead to original evidence only in a mediate form. (§§140-141). Husserl then presents his definition: “Truth is manifestly the correlate of the perfect rational characteristics pertaining to protodoxa, to certainly of belief.” [HUA 3, 290]. Therefore, the sentences 'the proposition of doxa is true' and 'the perfect rational character conforms to the belief' are equivalent. To say that it is true implies admitting its rationality. From eidetic understanding of truth it is possible to deduce an explanation of the eidetic correlation between the idea of true being and the idea of truth, between the "truly existent object" and the "object to be rationally put." To do so, the object would be given completely with respect to the determinable 'X', would leave nothing "open". This is because the rational thesis must have its basis in the original given in the full sense, the 'X' aimed at full determination and originality. Thus, in principle, every "truly existing" object corresponds to the idea of a possible consciousness, in which the object itself is originally apprehensible in perfect suitability. The possibility of apprehending an object is eidetically prescribed by its category, whether perfect or imperfect, whether complete or incomplete, its possibility of complementation or fulfillment (§ 142). The category of the object prescribes the general rules of evidence for each particular object brought to consciousness in multiplicities of concrete lived events, prescribes the rules of how an object 40 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 40 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics can be brought to determinacy of its meaning and mode of giving. The determinations of the objects are given by apoditic evidence, is the case of space objects that are submitted to the forms of pure geometry. The geometry rule system determines all possible motion shapes, but does not trace any real singular stroke. The transcendent cannot give itself adequately, but the idea of something transcendent, its sense, its a priori rules, yes (§ 144). In this sense, the natural sciences seek the determination of things as units put experimentally; phenomenology seeks in the interior of nature the univocal determination in accordance with the idea of natural object. Phenomenology is a new layer of research, noetic and noematic, which underpins natural sciences. Thus, we have the maxim: “what takes place in the Eidos functions as an absolutely insurmountable norm of the fact.” [HUA 3, 301] What matters to phenomenology is to study the continuous unifications of identity in all domains, all studies in transcendental orientation. The configurations of noeses and noemas, systematic and eidetic morphologies, needs and possibilities of essence, forms of unification, eidetic relations and laws of essence, in short, the object of study is always the designation of eidetic nexus and the first step is the noematic 'X'. The essences are conceived as ideal, independently existing, timeless universals that can be manifested in distinct space-time particulars (Smith and McIntyre, 1982, p. 117). For example, among the essences of the natural world we have 'thing', among the essences of the ideal world we have 'value' and among the essences of the formal world we have 'number', which phenomenology encompasses through eidetic laws and reaches from the bond with the noematic 'X'. Therefore, the possibility of the noematic 'X' is not attested only by the originarily presentiveness, but also by the whole chain that starts from it, that is, the open access to different levels of universality that corroborate reciprocally and coherently. Though, from the universal given in the lived event, the noematic 'X', it is possible to trace all the way to the universal in the strict sense understood as abstract nonspatio-temporal property. This is the reason why I considered the translation of 'Allgemeinheit' to universality more accurate then to generality. A general idea is derived from a process of abstraction, admits exception. The universal as intended is the result of phenomenological reduction, admits no contingency, is an abstract property, neither temporal nor spacial, a universal in the strict 41 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics sense. This is the idea of universality presented by Husserl in Ideas I. REFERÊNCIAS HUSSERL, E. Logical Investigations. Volume I and II. Translated by J. N. Findlay. London: Routledge, 2001. HUSSERL, E. Husserliana 3, 1-2. Ideen zu einer reinen Phänomenologie uns phänomenologischen Philosophie. Erstes Buch. Allgemeine Einführung in die reine Phäenomenologie. Ed. Karl Schumann. Den Haag: Martinus Nijhoff, 1976. HUSSERL, E. Ideas pertaining to a pure phenomenology and to a phenomenological philosophy. First book. Translated by F. Kersten. The Hague: Martinus Nijhoff Publishers, 1983. HUSSERL, E. Ideas relativas a una fenomenología pura y una filosofía fenomenológica. Traducción de José Gaos. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993. HUSSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tradução: Márcio Suzuki. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2006. DRUMMOND, J. J. Husserlian intentionality and non-foundational realism: noema and object. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1975. MORELAND, J.P. Universals. Bucks: Acumen Publishing, 2001. SMITH, D. W. and MCINTYRE, R. Husserl and intentionality. A Study of Mind, Meaning and Language. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1982. SPARROW, T. The end of phenomenology. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2014. Submetido: 21 de julho 2017 Aceito: 29 de julho 2017 42 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 42 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Um estudo sobre os universais em Ideias I A study about the universals in Ideas I Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena6. Professoa do Departamento de Filosofia da UFJF. RESUMO A questão dos universais permanece tema na filosofia tanto na ontologia como na epistemologia. Em Husserl, há universais particulares, o ‘X’ noemático, o idêntico, e universais stricto sensu, nomes universais atemporais. Neste artigo, apresento o tema conforme analisado por Husserl em Ideias I. Na primeira seção, descrevo a trajetória até os universais destacando o paralelismo entre noese e noema. Na segunda seção, traço o reflexo para a filosofia da linguagem também afetada pela correspondência noético-noemática. Na terceira e última seção, mostro como a investigação sobre os universais move-se apenas na esfera noemática, e concluo defendendo a possibilidade de partindo do ‘X’ noemático alcançar o universal em sentido estrito. PALAVRAS CHAVE Husserl, fenomenologia, Ideias, universais. ABSTRACT The problem of universals remains a philosophical theme not only in ontology but also in epistemology. In Husserl, there are particular universals, the noematic ‘X’, the identical, and universals stricto sensu, atemporal universal names. In this paper, I present the theme as it is analyzed by Husserl in Ideas I. In the first section, I describe the trajectory to the universals highlighting the parallelism between noese and noema. In the second section, I draw the reflex of this problem to philosophy of language which is also affected by the noetic-noematic correspondence. In the third and last section, I show how the investigation about the universals moves only in the noematic sphere, and conclude defending the possibility of departing from the noematic ‘X’ to reach the universal strict sense. KEYWORDS Husserl, phenomenology, Ideas, universals. 6 E-mail: nbcadena@gmail.com 43 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics INTRODUÇÃO Este artigo é um estudo sobre os universais em Ideias I. O termo, em alemão, é ‘Allgemeinheit’ e foi traduzido como universalidade nas edições, em inglês, de F. Kersten e, em espanhol, de J. Gaos; na edição em português de M. Suzuki, é traduzido como generalidade. Adoto a tradução inglesa por considerá-la mais fiel ao sentido do termo conforme apresentado por Husserl e espero que ao final do artigo fique mais clara a razão desta opção. Inicialmente, apresentarei alguns conceitos relevantes para o raciocínio, destaco o paralelismo de essência entre noético e noemático, e a trajetória até o §124 intitulado ‘A camada noético-noemática do “Logos”. Significar e significação’ onde Husserl destaca duas definições de universalidade. A partir deste ponto, o estudo terá como foco a ideia de universais como “nomes universais”, isto é, universais em sentido estrito. Na seção seguinte, destaco como o paralelismo entre noético e noemático também se reflete na linguagem além das dificuldades e da possibilidade de alcançar os universais e seu significado. Na última seção, explico como a trajetória para os universais se dá na esfera noemática e como a partir do universal dado no vivido, o ‘X’ noemático, é possível elevar a consciência ao universal em sentido estrito. 1. ATÉ OS UNIVERSAIS Husserl define a fenomenologia como ciência descritiva (§71), para tanto estabelece seu objeto de conhecimento e seu método. Seu objeto são as essências dos vividos [der Erlebnisse]. Seu método não é o das ciências naturais nem o de outras ciências descritivas de essências, como a geometria (§§72-74). O método fenomenológico é único e através da redução (§76) descortina o reino da consciência transcendental como protocategoria do ser em geral. Por sua vez, a doutrina das categorias tem de partir obrigatoriamente desta que é a mais radical de todas as diferenciações ontológicas, consciência e transcendente, transcendental e transcendente. Dada esta distinção, a reflexão fenomenológica se move inteiramente na dimensão transcendental através de atos de reflexão (§77). Os objetos destes atos de reflexão são os vividos. Quando o vivido passa a ser notado, quando uma reflexão se dirige a ele, ele se torna, então, objeto para o eu, o fenomenólogo (§78). 44 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 44 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics O interesse do fenomenólogo é sobre uma parte bastante específica deste vivido, a essência. Uma parte que somente é revelada quando aplicada a redução fenomenológica. Quando praticada a redução fenomenológica, as constatações colocadas entre parênteses se convertem em casos exemplares de universalidades de essência. A trajetória é a seguinte: temos o vivido, num primeiro momento, vivido irrefletido; há, então, uma mudança de orientação do sujeito de conhecimento quando apercebe o vivido e passa a refletir sobre ele; o vivido passa, então, a vivido refletido. Diversos são os atos de reflexão que podem “atravessar” este vivido, a apreensão eidética imanente, a experiência imanente, a recordação quando o vivido é um ter-sidopercebido no passado ou a expectativa quando o vivido serápercebido no futuro, são alguns deles. Essas modificações pertencem a cada vivido como variações ideais possíveis, operações ideais, modificações reiteráveis in infinitum. No entanto, unicamente por atos de experiência reflexivos sabemos algo do fluxo de vividos e de sua necessária referência ao eu puro, um único e mesmo eu, justamente porque ele pode “olhar” para todos os vividos do fluxo (§§78-80). Esse fluxo de vividos que pertence a um único eu puro exprime uma temporalidade contínua e infinda. Esse horizonte de vividos se dá, portanto, numa temporalidade, antes, depois e simultaneamente, numa progressão contínua de apreensão em apreensão, em que o eu puro é o dado absoluto e indubitável, uma ideia, no sentido kantiano (§§8183). O vivido dado a um eu puro é composto por uma dimensão noética, os atos de consciência, e seu conteúdo, o noema. Assim temos o ato de perceber e o percebido como tal; o ato de recordar e o recordado como tal; o ato de julgar e o julgado como tal. Posto de outra maneira, o vivido é composto por vividos intencionais, atos de consciência, noéticos, e correlatos intencionais, os componentes desses atos, seus conteúdos, noemáticos. Esses conteúdos, os componentes dos atos de consciência, são, por sua vez, divididos em componentes reais dos vividos e componentes não-reais – ideais – dos vividos, também chamado de sentido (§§88-89). O sentido está contido de maneira imanente no vivido da percepção, da recordação ou do julgamento, esta é a ideia que a fenomenologia pretende alcançar e descrever. Descrever ideia, portanto, não é descrever pensamento, mas descrever essência. O objeto da descrição é o dado eidético, descrever a percepção em enfoque noemático. 45 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Em outras palavras, o foco não está nos atos de consciência, como ocorria nas Investigações Lógicas. Em Ideias I, o que se pretende descrever são as essências. Nas palavras de Husserl: Everything which is purely immanent and reduced in the way peculiar to the mental process, everything which cannot be conceived apart from it just as it is in itself, and which eo ipso passes over into the Eidos in the eidetic attitude, is separated by an abyss from all of Nature and physics and no less from all psychology – and even this image, as naturalistic, is not strong enough to indicate the difference. (HUA 3, 184). Assim, todo vivido intencional possui seu objeto intencional, isto é, seu sentido objetivo (§90-91). A dificuldade está em manter a atenção no objeto efetivo entre parênteses dado no vivido e não permitir que a consciência se desvie para o objeto real, a coisa lá fora. Isto porque, embora a fenomenologia admita, ou considere a coisa real, transcendente, a toma como componente do fenômeno, como elemento contido no fenômeno reduzido. (Drummond, 1945, p.229) Mesmo que haja mudanças atencionais e seja possível privilegiar diferentes aspectos no vivido, o núcleo noemático permanece idêntico (§92). Também é possível admitir mudanças nos noemas, pois é possível se tratar de modulações necessárias da maneira pela qual o idêntico se dá. Mesmo assim, no interior do noema pleno, temos de separar camadas essenciais diferentes, que se agrupam em torno de um núcleo central, o sentido objetivo. Tal é possível porque embora as configurações atencionais sejam eminentemente subjetivas, o objetivo atingido por seu raio de atenção é independente, posto somente em referência ao eu (§93). Nas palavras de Husserl, It is then a further undertaking of more precise phenomenological study to discover what is prescribed according to eidetic law precisely by species, and what is so prescribed by the differentiating particularities, for noemata of changing particularities of a fixed species (e.g., perception). But the restriction holds throughout: in the sphere of essences there is nothing accidental; everything is connected by eidetic relations, thus especially noesis and noema. (HUA 3, 193/194) Essas modificações atencionais atingem o noema sem prejuízo do núcleo noemático idêntico. Consequentemente, o raio de atenção não se separa do eu, mas ele mesmo é e permanece raio do eu. O “objeto” é atingido, é alvo, posto somente em 46 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 46 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics referência ao eu, mas ele mesmo não é “subjetivo” (§92). Assim é possível inferir que, tanto nas noeses de nível mais baixo, como as percepções sensíveis, como nas noeses de nível mais alto, como os julgamentos morais, aparece na composição noemática, como um núcleo central, algo tornado consciente como tal, sob a designação de sentido. Num estudo fenomenológico, cabe constatar em um tipo de noema o que é exigido pelo próprio tipo e o que é exigido pelas particularizações diferenciadoras. Isto porque, na esfera das essências, no estudo no núcleo central do noema, não há contingência, sendo preciso diferenciar o que é exigido pelo tipo e o que é exigido pela particularização (§93). Posto ainda de outro modo, ao aparceber o vivido, a redução revela a relação entre o real – hilético e noético – e o não-real ou ideal – noemático. No exemplo oferecido por Husserl, um vivido sensorial, a percepção sensível de uma árvore, se dá do seguinte modo: de um lado, a unidade real do vivido, a cor do tronco da árvore, cor como estímulo sensível, cor de sensação; de outro, a unidade do noema, a unidade contínua de uma consciência perceptiva variável, a mesma cor idêntica, em si imutável. A unidade real do vivido é composta por elementos hiléticos e noéticos, é a unidade que revela o indivíduo como o mesmo, material, concreto, o que me permite dizer “vejo a mesma árvore”. A unidade do ideal é a unidade do noema que revela a essência pós-redução (§97). Há, ainda, uma terceira unidade, a unidade noético-noemática, que une aquele objeto à determinada essência. No modo pós-redução, o eidos do noema aponta para o eidos da consciência noética, isto é, são eideticamente interdependentes, embora sejam independentes. Surge uma questão: considerando que os “objetos” noemáticos são evidentemente unidades trazidas à consciência no vivido, porém transcendentes em relação a ele, como elucidar a relação entre a composição real do vivido e aquilo que nele se tem consciência como ideal, como essência? (§102) O objeto intencional como tal aparece como suporte dos caracteres noemáticos. Todos os caracteres noemáticos indicados possuem alcance fenomenológico universal, constituem os embasamentos necessários de todos os vividos intencionais, os mesmos gêneros fundamentais e diferenças de caracteres também se encontram em todos esses vividos fundados e, por conseguinte, em todos os vividos intencionais em geral. 47 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Correlativamente aos caracteres noemáticos, chamados também de modos de ser, existem caracteres noéticos (§103), por exemplo, ao certo corresponde a crença perceptiva, ao possível a suposição, ao verossímil a conjectura, ao problemático o questionamento, ao duvidoso a dúvida, ao negado a negação, ao afirmado a afirmação ou assentimento (§§103-108). Ao lado desses, há um vivido de consciência inteiramente particular, a neutralização (§109). A neutralização é uma modificação da esfera de crença que não opera, não risca, não sublinha, ela se abstém de operar, põe entre parênteses, deixa em suspenso. O caráter de posição fica em suspenso. A crença, a conjectura, a negação e demais caracteres noéticos são neutralizados e os correlatos estão ali para a consciência, não no modo efetivo, mas “meramente pensado”. A neutralidade e a postulação são atitudes opostas, mas complementares (§110). São opostas porque a postulação é posicional, avalia pela razão, pode ser correta ou não; a neutralidade ou suspensão não é posicional, não pode ser avaliada pela razão, não pode ser correta ou incorreta. Ademais, da consciência efetiva podem ser tiradas diversas posições nela potencialmente inclusas, posições efetivas; já a consciência neutra não contém em si predicado “real” algum. São complementares porque a todo vivido atual corresponde idealmente uma modificação de neutralização. Deste modo, há duas possibilidades fundamentais na maneira de efetuar a consciência no interior do cogito: o cogito efetivo, posicional, autêntico, e o cogito sombra, inautêntico, nãoefetivamente posicional. Ocorre que a operação efetiva e a modificação neutra se correspondem e, no entanto, não são da mesma essência visto que quando a atualidade posicional é neutralizada se converte em potencialidade (§§113-114). Posto de outro modo, toda percepção tem seu fundo de percepção e este é uma unidade de posições potenciais. O fundo é a designação para mudanças do olhar e “apreensões” potenciais. Ou ainda, na essência de todo vivido está de antemão delineado um conjunto de posições potenciais de ser. Daí ser possível identificar diversos domínios intencionais, podese diferenciar atos incipientes ou nãoefetuados dos atos efetivos, dentre estes temos a neutralidade e posicionalidade entre os quais encontramos a posição atual e potencial. E, mesmo diante de tantas variáveis, o paralelismo entre noese e noema permeia todos os domínios intencionais (§115). 48 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 48 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Até este ponto, Husserl adota exemplos de noeses simples, atos de percepção. A partir de então, volta sua atenção a noeses do sentir, desejar e querer (§§116-117). Pode parecer um desvio no raciocínio, mas é no âmbito da consciência afetiva que Husserl faz uma evidente passagem do particular ao universal. A esses novos momentos noéticos correspondem novos momentos noemáticos, os valores. Os valores não são novas partes determinantes das coisas, mas valores das coisas. É dizer, na consciência afetiva, o noema de nível superior – o valor – é um núcleo de sentido cercado de novos caracteres téticos. De modo mais simples, a coisa não tem valor, mas suporta valor e a consciência, por seu turno, é consciência de valor possível, a coisa é somente suposta como valiosa. Assim, as apreensões de valor se relacionam com as apreensões de coisas do mesmo modo que as novas caracterizações noemáticas (bom, belo etc.) se relacionam com as modalidades de crença. Na consciência afetiva, posicional afetiva, aos atos correspondem conteúdos, portanto, aos atos de prazer, querer, desejar, valorar, atos de vontade em geral, correspondem caracteres téticos. A estes caracteres téticos subjaz uma tese arcôntica que unifica em si e rege todas as outras, a unidade suprema do gênero, a universalidade da essência. Daí a analogia entre a lógica geral, a doutrina geral do valor e a ética. Estas conduzem à constituição de disciplinas universais e formais paralelas: a lógica, a axiologia e a prática. Isto só é possível porque toda tese está submetida a uma lei eidética: toda tese, de qualquer gênero que seja (incluindo afetivo), pode ser transformada em posição dóxica atual. Portanto, qualquer proposição (incluindo desejo) pode ser transformada numa proposição dóxica. É como se em todos os caracteres téticos (incluindo valorativos) estivessem guardadas modalidades dóxicas. Consequentemente, todo ato ou todo correlato de ato abriga um aspecto lógico podendo ser explicitado logicamente graças à universalidade de essência. De outro modo, todos os atos em geral (incluindo atos de afetividade e de vontade) são potencialmente objetivantes. Surge uma nova questão, como promover essa unidade uma vez que os vividos e os atos de consciência se dilatam no tempo (§118)? Esses vividos e seus atos precisam ser unificados em sínteses, sínteses operadas pela consciência. Husserl identifica dois tipos de sínteses, as sínteses articuladas e a síntese contínua. Nas sínteses articuladas, os atos são vinculados em um ato de 49 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ordem superior. Na síntese contínua, a unidade pertence ao mesmo nível de ordenação, não há um ato de ordem superior unificador. Diante das sínteses articuladas dos vividos, fica evidente a possibilidade de transformar aquilo de que se tem consciência por muitos atos (politética) em algo de que se tem consciência simplesmente por um só ato (nomotética) (§119). Assim, toda noese contribui para constituição de um objeto total, ou ainda, toda consciência em unidade sintética possui um objeto total. Posto de modo mais simples, um vivido é constituído de múltiplos atos e a cada ato corresponde um noema. Unificar um vivido é realizar uma síntese articulada, identificar um ato de ordem superior e seu objeto sintético correspondente, um objeto total. Ou ainda, intuir um objeto total implica num ato de consciência específico, pois a unidade ideal do objeto não poderia ser intuída por uma multiplicidade dispersa de atos particulares. (Moreland, 2001, p. 44) Uma síntese depende do caráter das noeses, se todas as subteses são posicionais, ela é posicional; se uma é neutra, ela é neutra. Assim, a partir das noeses posicionais, uma síntese articulada é efetuada passo a passo. Posição, aposição, pressuposição, posposição etc. compõem uma síntese articulada. É preciso lembrar que essas noeses são irradiações do eu puro como uma fonte originária de produções (§122). É um eu ativo. Toda tese começa por um ponto de iniciação (fiat), um ato primeiro, espontâneo, por exemplo, decidir-se ou fazer voluntário. Todo ato pode começar nesse modo da espontaneidade, um ato criador, no qual o eu penso faz sua entrada como sujeito de espontaneidade num novo fluxo de vividos. Esse modo de iniciação passa por uma necessidade de essência, uma alteração modal. Esta alteração modal não implica perder tudo o que foi apreendido anteriormente, não é abandonado nenhum passo sintético, mas o modo de atualidade se altera essencialmente com uma nova atualidade temática originária. Isto porque a cada tipo de modificação noética de atualidade corresponde uma modificação noemática. No entanto, é necessário estar atento, pois, embora o modo de atualização noemático varie necessariamente, sempre permanece a essência. Estabelecidas essas premissas, Husserl aborda o tema sob outra perspectiva, a da linguagem. 50 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 50 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics 2. UNIVERSAIS COMO TEMA DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM E SUAS DIFICULDADES Ao tratar da consciência afetiva, Husserl já havia fixado que qualquer proposição poderia ser transformada numa proposição dóxica (§117). É a partir desta “tradução” da proposição não-dóxica em proposição dóxica que se pode explicar a universalidade do juízo predicativo e a necessidade de disciplinas noéticas formais e materiais, ou noemáticas e ontológicas (§118). Essas disciplinas são desenvolvidas a partir das sínteses articuladas que transformam atos politéticos em atos nomotéticos como a coligação, disjunção, explicitação e relação. Toda série de sínteses determinam as formas formalontológicas segundo as formas puras das objetividades sintéticas nelas constituídas e, no que se refere à estrutura noemática, refletem nas formas apofânticas de significação da lógica formal. De modo mais simples, as sínteses articuladas vinculam atos numa unidade e aos atos nomotéticos corresponde um objeto total. Portanto, às formas formalontológicas – estrutura noética – corresponde uma estrutura noemática que, por sua vez, implica em formas apofânticas de significação da lógica formal. Posto ainda de outro modo, todo processo de síntese que afeta os atos e seu conteúdo, a relação noéticonoemática, tem um correspondente na linguagem, leia-se, na lógica formal entendida como lógica apofântica, proposicional. Na lógica, esta correspondência é evidente pela lei da nominalização (§119) segundo a qual toda proposição e toda forma parcial distinguível na proposição corresponde um caráter nominal. Em outras palavras, nominalização é o correspondente lógico-formal da transformação de um ato politético em um ato nomotético de modo que esta unidade nomeada possa servir de sujeito de uma afirmação. Husserl apresenta como exemplo o julgamento expresso em ‘S é p’ em que ‘S é p’ pode ser transformado em sujeito de uma afirmação, “que ‘S é p’ é positivo”. Husserl traça um paralelismo entre todas as camadas descritas até agora e as camadas de atos de expressão, lógicas no sentido apofântico, as quais também são afetadas pela relação noese e noema. Daí a relação noético-noemática também repercutir na expressão e na significação (§124). Este paralelismo implica numa ampliação da compreensão acerca do ato de significar e da significação. Antes se referiam apenas à esfera 51 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics linguística, a expressão, mas Husserl propõe sua ampliação para serem aplicados em toda esfera noéticonoemática, quer estejam entrelaçados com atos expressivos ou não. O exemplo é o seguinte: percebemos um objeto já posto nomoteticamente, “isto é branco”. Este processo não requer expressão, é um ato perceptivo que não depende de expressão ou verbalização. Se, no entanto, verbalizamos: “Isto é branco”, então temos uma nova camada expressiva superior à camada noemática do “visado como tal”. Este processo se aplica também a outros atos como recordação e imaginação. Assim, temos a seguinte máxima: todo visado no sentido noemático de um ato qualquer é exprimível mediante significações lógicas. Cito Husserl: The verbal sound can only be called an expression because the signification belonging to it expresses; expressing inheres in it originaliter. “Expression” is a distinctive form which allows for adapting to every “sense” (to the noematic “core”) and raises it to the realm of “Logos”, of the conceptual and, on that account, the “universal”. [HUA 3, 257] Na dimensão noética, exprimir indica um ato ao qual todos os demais atos devem se conformar e fundir de modo que todos os atos de sentido noemático e consequentemente a referência à objetividade é conceitualmente estampada no correlato noemático da expressão. Simplificando, no vivido temos, de um lado, sua dimensão real que inclui o hilético e o noético, de outro, sua dimensão ideal, o noemático (§97). Neste primeiro momento, vivemos a percepção, ‘isto é branco’, ‘isto é uma árvore’. Podemos, então, verbalizar essa vivência. Lembrando que o ato expressivo também é atingido pela relação noéticonoemática. Em sua dimensão noética, é um ato expressivo que funde vários outros atos, mas com um mesmo sentido noemático. Essa camada de expressão produzida a partir de camadas anteriores trás problemas difíceis, pois toda ciência se objetiva no meio “lógico” no sentido de apofântico, no meio da expressão, e, portanto, os problemas de expressão e significação são aqueles que de imediato se apresentam ao filósofo. Algumas dificuldades são: como entender a “expressão” do “expresso”, como os vividos expressivos se relacionam com os não-expressivos e o que a intervenção da expressão acarreta para estes últimos? Em outras palavras, qual o nexo eidético entre a camada da significação expressiva e a camada do expresso? 52 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 52 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Há que se estar atento a um ponto: apesar de emprestar expressão a todas as outras intencionalidades, a camada expressiva não é produtiva, ou seu desempenho em termos noemáticos se esgota na expressão e na forma do conceitual. Posto de outro modo, a camada expressiva está, por essência, perfeitamente de acordo com a camada que recebe a expressão acolhendo a essência desta, daí ser chamada de representação. Ou ainda, a expressão é uma formação espiritual que exerce novas funções intencionais na camada intencional anterior e dela recebe correlativamente funções intencionais. Esta correspondência entre a camada não-expressiva e a camada expressiva é tal que, quando a camada não-expressiva é posicional ou neutra, a camada expressiva a acompanha inteiramente em seu modo. É neste contexto que Husserl apresenta diferentes definições de universalidade [Allgemeinheit]. Cito: Of particular importance is the understanding of the different sorts of “universality” which make their appearance there: on the one side, those which belong to each expression and moment of expression, also to the nonselfsufficient “is”, “not”, “and”, “if”, and so forth; on the other side, the universality of “universal names” such as “human being” in contrast to proper names such as “Bruno;” again, those which belong to an essence which, in itself, is syntactically formless in comparison to the different universalities of signification just touched upon. [HUA 3, 259] Para entender essas diferentes definições há que se compreender os diferentes modos de atualidade (§125), ou diferentes modalidades de efetuar o ato, considerando a camada da significação (lógica) e a camada inferior fundante (o expresso). São, portanto, dois níveis de confusão possíveis: primeiro, entre a camada expressiva (lógica) e a camada inferior (o expresso), neste caso, a camada inferior pode ser uma unidade confusa (e na maior parte das vezes o é) ou o ajuste entre a camada expressiva e a camada da expressão lógica não é preciso; segundo, entre as proposições expressas quando sobrevém uma proposição seguinte e a anterior cessa de ser tema, por exemplo, quando estamos lendo, podemos efetuar, articuladamente e em livre atividade, qualquer significação e ligar sinteticamente as significações. O impacto destas dificuldades no método de clarificação é altamente relevante, pois é evidente a necessidade de passar do pensamento confuso ao conhecimento 53 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics propriamente dito e completamente explícito, para a efetuação clara e distinta dos atos de pensar. É dizer, todos os atos lógicos (atos de significação) precisam ser convertidos em atos precisos instaurando uma plena distinção lógica. E, devido a correlação entre a dimensão noética e noemática, é preciso operar algo análogo também na camada inferior fundante “everywhere unlivig is to be converted into the living, all confusion into distinctness, but also all nonintuitiveness into intuitiveness”. [HUA 3, 260] Só quando é efetuada esta distinção no substractum, o método de clarificação entra em ação. Outro nível de dificuldade é a diferença entre a expressão completa e incompleta (§126). Há uma unidade entre o que é expresso e o que exprime, no entanto, explica que a camada superior que exprime não precisa se estender por toda a camada do que é expresso. Em outras palavras, não é preciso haver uma coincidência perfeita entre a expressão e o expresso. Definindo, a expressão é completa se marca todas as formas sintéticas e materiais da camada inferior, é incompleta, se só o faz parcialmente. Há, no entanto, uma incompletude inevitável que faz parte da essência da expressão como tal, isto é, de sua universalidade. Isto implica que está contido no sentido da universalidade inerente à essência da expressão que todas as particularidades do exprimido jamais possam se refletir na expressão. A camada da expressão não é uma cópia da camada do expresso, dimensões inteiras desta camada não são cobertas pela expressão. Mesmo no sentido particular de um termo subsistem diferenças essenciais em relação à maneira como as formas e as matérias sintéticas encontram expressão. Mais uma dificuldade é a necessidade de complementar todas as significações, as significações de forma e sincategorimáticas. As expressões isoladamente são até compreensíveis, mas ainda assim carecem de complemento. A questão é o que significa essa necessidade de complemento e como afeta ambas as camadas. Para Husserl, haverá clareza sobre todos esses pontos se for explicado “how statings as the expressions of judging are related to the expressing of other sorts of acts.” [HUA 3, 262] Há formas de proposições construídas de modo próprio, conjecturas, perguntas, dúvidas, desejos, ordens etc., mas interpretáveis de modo dúbio. Coloca-se a seguinte questão, essas expressões tem uma espécie de significação própria ou, na verdade, são proposições de enunciado? 54 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 54 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Refletir sobre o tema considerando apenas a dimensão noética é insuficiente. Há que se considerar a dimensão noemática a qual os atos de significação estão dirigidos. Eis, portanto, o problema radical: Is the medium of expressive signifying, this appertinent medium of the Logos, a specifically doxic one? In the adaptation of the signifying to the signified, does it not coincide with doxic itself inherent in all positionality? [HUA 3, 263] Uma expressão dóxica para ser fiel e completa, para expressar de maneira direta um vivido, por exemplo, afetivo, só poderia corresponder a vividos dóxicos nãomodalizados, isto é, só poderia expressar certezas. Se não tenho certeza ao desejar, então não é correto se em ajuste direto digo: “Possa S ser p.” Isto porque expressar não é mero verbalizar, mas significar, um ato dóxico em sentido forte que expressa uma certeza de crença. Agora, se surgem modalidades, “Talvez S possa ser p”, então se pode tentar ajustar a expressão o mais possível. Entretanto, neste caso, há um desvio. Tais desvios são possíveis porque é da essência de toda objetividade várias possibilidades de explicação. A expressão não é, então, ajustada ao fenômeno originário, mas diretamente ao fenômeno predicativo dele derivado. Husserl faz ainda um último alerta, a clarificação eidética da ideia de doxa não é a mesma coisa que clarificação dos enunciados ou das explicações. 3. DO ‘X’ NOEMÁTICO AOS UNIVERSAIS Na citação acima, Husserl apresenta diferentes definições de universal, a definição que pretendemos aprofundar é a de universais como “nomes universais”. A investigação sobre os universais abre-se em ambos os lados, noético e noemático, mas a busca pelos nomes universais, universais em sentido estrito, se dá na dimensão noemática. Até porque, em grande medida, aquilo que se tomou por análise dos atos foi inteiramente obtido por direcionamento do olhar para o “visado enquanto tal”, e assim, ali se pretende descrever estruturas noemáticas. Em outras palavras, dado o paralelismo de essência entre noese e noema que perpassa todos os modos de consciência, a investigação sobre a universalidade da noese somente se dá de maneira completa quando acompanhada da busca pela universalidade do noema. Pretende-se direcionar o 55 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics olhar para a estrutura universal do noema. Isto é, o problema fenomenológico da referência da consciência a uma objetividade tem, antes de tudo, seu lado noemático. Para Husserl, há uma estrutura noemática universal na qual certo “núcleo” noemático se separa dos “caracteres” mutáveis a ele pertencentes (§129). A relação se dá da seguinte maneira: todo noema tem um conteúdo, isto é, um sentido, e se refere, por meio dele, a “seu” objeto. Posto de outro modo, o vivido intencional tem “referência ao objeto”, mas também é “consciência de algo”. No entanto, esta referência não pode ser a mesma que a visada quando se fala da referência intencional, pois cada momento noético corresponde um momento do noema. Então, como encontrar “o mesmo”, a identidade do noema, seu ponto central, ou ainda, o suporte para propriedades noemáticas? Do noema faz parte uma “objetividade”, uma essência que é insensível a modificações (§130). O objetivo, portanto, é uma descrição do “objeto visado tal como é visado” evitando todas as expressões “subjetivas”. Nesta descrição se empregam expressões formalontológicas, tais como “objeto”, “propriedade”, “estado de coisas”, expressões material-ontológicas como “coisa”, “figura”, “causa”, determinações como “áspero”, “duro”, “colorido”. Todas entre aspas e, portanto, em seu sentido noemático modificado. Assim, pela explicação e apreensão conceitual obtemos um conjunto fechado de predicados formais ou materiais que determinam o “conteúdo” do núcleo objetivo do noema. É importante, no entanto, ressaltar que esses predicados são predicados de “algo”, um objeto intencional idêntico, um puro ‘x’, o momento noemático central, um objeto único, e tais predicados são impensáveis sem esse suporte (§131). Os predicados são oscilantes e variáveis, mas o ponto central do objeto intencional é o mesmo, nada tem de contingente. Daí o objeto ser trazido à consciência como idêntico e, todavia, em modos noemáticos diferentes. A cada um dos vários noemas correspondem atos com diferentes núcleos, mas de tal modo que, apesar disso, eles se juntam na unidade da identidade, numa unidade na qual o “algo”, o determinável, que está contido em cada núcleo é trazido à consciência como idêntico. E, da mesma maneira que os atos separados podem se juntar numa unidade “concordante”; o “algo” dos núcleos separados é trazido à consciência como sendo o mesmo algo, o mesmo ‘X’, o mesmo objeto. 56 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 56 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Isto posto, Husserl estabelece uma possível diferença entre este núcleo noemático e o sentido. O objeto intencional recebe duas definições, na primeira, é o puro ponto de unidade, esse objeto noemático dado pura e simplesmente; na segunda, é o ‘como’ de suas determinidades, incluindo suas indeterminidades, é um objeto noemático no ‘como’ de seus modos de doação (§132). Portanto, o sentido é parte fundamental do noema, mas não é a parte central. Todo sentido não possui apenas “seu objeto”, mas diferentes sentidos se referem ao mesmo objeto. O sentido não é, portanto, uma essência concreta do noema, mas uma espécie de forma abstrata a ele intrínseca. No entanto, é possível haver uma coincidência entre o sentido e o núcleo. Husserl se refere ao sentido no modo de sua plenitude e o núcleo pleno. Se detectarmos o sentido exatamente com o conteúdo de determinação no qual ele é visado e se abstraímos todas as diferenças na maneira de ser dos modos de efetuação, então temos acesso a uma plenitude de clareza. Neste caso, haveria uma coincidência na descrição do núcleo pleno e do sentido no modo de sua plenitude. Tal descrição se dá através da formulação de proposições, mais uma vez o paralelismo entre noema e noese está presente (§133). O “sentido” corresponde à “matéria” e a unidade de sentido e caráter tético à “proposição”. Há proposições de um só membro, como nas percepções, e de mais de um membro, proposições sintéticas, como as dóxicas predicativas (juízos). As proposições de prazer, de desejo, de comando etc. podem ser de um ou mais membros. A tarefa que se coloca é, de um lado, a busca por uma doutrina sistemática e universal das formas dos sentidos (significações), de outro, a tipificação sistemática das proposições. Delinear uma doutrina sistemática das formas dos sentidos ou das significações lógicas,é dizer, das proposições predicativas, dos juízos, com alcance universal de modo que assinale todos as espécies possíveis de sentido em todas as operações possíveis é tarefa capital (§134). Uma verdadeira morfologia que constituirá o substrato necessário por essência para uma mathesis universalis científica, para uma morfologia geral dos sentidos. Essas formas sintéticas pertencem a um rigoroso sistema formal e podem ser extraídas por abstração e fixadas em expressão conceitual. Determinar todas essas formas a priori e dominar em completude sistemática as configurações de formas, que são de uma diversidade infinita e, no entanto, circunscritas por leis, indica a 57 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ideia de uma morfologia das proposições ou sintaxes apofânticas. Husserl oferece um exemplo: as posições podem ser modalidades dóxicas, pois, quando conjecturamos ou explicamos ou afirmamos ou negamos, mesmo assumindo diferentes formas (“S poderia ser p”, “É S p?”, “S não é p”, “S é, sim p”, “S é certamente, efetivamente p”), o “conjecturado” ou o “algo problemático” ou o “afirmado” ou o “negado” seguem tendo os correlatos noemáticos dessas diferentes modalidades de expressão. Em outras palavras, a forma está multiplamente determinada, no entanto, há uma proposição total da qual faz parte uma tese total, incluindo nesta uma tese dóxica. Daí porque toda proposição poder ser convertida num proposição de enunciado, num juízo sobre da modalidade de um conteúdo. Mais uma vez a correspondência entre o noético e noemático se faz presente, entre a proposição e o sentido. Assim, cada coisa da natureza é representada por todos os sentidos e proposições variavelmente preenchidas, é dizer, ela é representada pelas multiplicidades de “núcleos plenos”, por todos os possíveis “modos de aparição subjetivos”, nos quais ela pode ser constituída noematicamente como algo idêntico (§135). Posto de outro modo, à unidade da coisa se contrapõe a multiplicidade de vividos noéticos, todos concordantes de que são consciência do mesmo. Daí Husserl propor a ideia de constituição de um objeto. Constituir um objeto é trazer um objeto à evidência, um objeto se constitui em certos nexos de consciência evidenciando uma unidade, a consciência de um ‘X’ idêntico. É neste contexto que se pode perguntar sobre a efetividade: a identidade do ‘X’ “visada” noematicamente é identidade efetiva? Como podem ser descritos todos aqueles nexos de consciência que tornam um objeto efetivo? Como se dá a constituição noético-noemática de objetividades? Aqui, estamos sob a jurisdição da razão que pergunta sobre a efetividade, conjectura, duvida e dirime a dúvida. Quando se fala de objetos efetivos, verdadeiramente existentes, da categoria do ser, o enunciado que o descreve “será verdadeiro” ou “será efetivo” ou “será racionalmente atestável” se estiver em correlação com ele [objeto]. Essa correlação não é empírica, mas possibilidade “ideal”, possibilidade de essência. Simplificando, o que está sendo descrito é o objeto como puro X, o mesmo, o idêntico, já reduzido, objeto de síntese articulada, conteúdo de um ato nomotético. Portanto, a correspondência entre o objeto 58 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 58 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics efetivo, existente, categoria do ser, e o enunciado fundado, evidenciado mediatamente, é uma possibilidade de essência. Para responder a essas questões sobre efetividade, Husserl introduz uma série de conceitos chave interdependentes, são eles: doação originária, modo intuitivo, evidência e inerência. Os vividos posicionais se dão em doação originária, por exemplo, atos perceptivos como a visão, ou em doação não originária, por exemplo, atos não perceptivos como a recordação (§136). Essas diferenças, no entanto, não afetam o sentido puro da proposição, pois ele é idêntico e sempre intuível como tal pela consciência. A diferença está na maneira como o mero sentido, ou proposição, requer um acréscimo de momentos complementares, é dizer, como o sentido ou a proposição são preenchidos ou não preenchidos. Husserl oferece um exemplo: vemos uma paisagem ou recordamos uma paisagem. Considerando o modo de preenchimento do sentido, no primeiro caso, temos o modo intuitivo, quando o sentido do “objeto visado como tal” é trazido à consciência como doação originária, em carne e osso, e no noema encontra-se a corporeidade fundida ao sentido puro. Temos, então, que o modo intuitivo é um modo de viver o sentido no qual o “objeto visado como tal” é trazido à consciência, por exemplo, na doação originária. O sentido está preenchido. No segundo caso, da recordação, temos o oposto, a consciência de recordação não é originariamente doadora, a paisagem não é percebida, embora tenha uma legitimidade própria. Husserl se concentra na percepção. A toda aparição de uma coisa em carne e osso é inerente uma posição. A posição é motivada pela aparição, isto é, a posição tem seu fundamento originário de legitimação no dado originário da aparição. Da mesma maneira, a posição de essência dada originariamente na apreensão intuitiva de essência é inerente a sua “matéria posicional”, ao “sentido”. Em outras palavras, a posição de essência é fundada no sentido que por sua vez é fundado na intuição de essência em doação originária. Deste modo, a consciência é capaz de intuir a essência, o universal, a partir da vivência, do fenômeno particular. Deste modo, os universais são transcendentes à consciência embora sejam intuídos e evidenciados transcendentalmente. (Sparrow, 2014, p. 29) Tornar evidente é clarificar a unidade de uma posição racional com aquilo que a motiva, é o acordo entre o que se entende e o dado (§§137138). Evidenciar ou ver com clareza é uma consciência dóxica posicional adequadamente doadora, é ato da razão. Temos a evidência derivada do 59 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ver apodítico, como no caso da aritmética, em que o dado é adequado, uma evidência de essência, e a evidência derivada do ver assertório como no exemplo acima, ver uma paisagem, uma evidência fraca em que o dado é inadequado, a aparição é incompleta, embora o sentido permaneça. Neste caso, é tarefa da fenomenologia trazer à clareza como a consciência inadequada do dado se reporta a um único e mesmo ‘X’ determinável. Uma posição tem sua legitimação como posição de seu sentido se é racional e caráter racional é aquilo que lhe cabe por essência (§139). Paralelamente, uma proposição tem sua legitimação quando está dotada do caráter noemático. Lembrando que, considerando apenas a esfera dóxica, todas as modalidades dóxicas (possível, verossímil, problemático, duvidoso etc.) remetem a doxa originária, isto é, remetem a um caráter racional originário que faz parte do domínio da crença originária que por sua vez remete a evidência originária. Simplificando, todas as linhas correm rumo à crença originária e a sua razão originária, isto é, a “verdade”. Mais do que isso, somente a evidencia originária é fonte “original” de legitimidade, a recordação e a empatia, apesar de motivadas, são evidências imperfeitas que podem terminar numa evidência originária apenas de forma derivada, mediata. (§§140-141). Husserl apresenta então sua definição: “Truth is manifestly the correlate of the perfect rational characteristics pertaining to protodoxa, to certainly of belief.” [HUA 3, 290]. Portanto, as sentenças ‘a proposição de doxa é verdadeira’ e ‘o caráter racional perfeito convém à crença’ são equivalentes. Dizer que é verdadeiro implica em admitir sua racionalidade. Da compreensão eidética de verdade pode-se obter uma explicação da correlação eidética entre a ideia do ser verdadeiro e a ideia de verdade, entre “objeto verdadeiramente existente” e “objeto a ser posto racionalmente”. Para tanto, o objeto seria dado de maneira completa, com respeito ao ‘X’ determinável, não deixaria nada em “aberto”. Isto porque a tese racional deve ter seu fundamento no dado originário no sentido pleno, o ‘X’ visado em plena determinidade e originariedade. Assim, por princípio, todo objeto “verdadeiramente existente” corresponde à ideia de uma consciência possível, na qual o próprio objeto é apreensível originariamente e em perfeita adequação. A possibilidade de apreensão de um objeto está eideticamente prescrita por sua categoria, se perfeita 60 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 60 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ou imperfeita, se completa ou incompleta, sua possibilidade de complementação ou preenchimento (§ 142). A categoria do objeto prescreve as regras gerais de evidência para cada objeto particular trazido à consciência em multiplicidades de vividos concretos, prescreve as regras para o modo como um objeto pode ser trazido à determinidade de seu sentido e modo de se dar. As determinidades dos objetos se dão por evidência apodítica, é o caso, por exemplo, dos objetos espaciais submetidos às formas da geometria pura. O sistema de regras da geometria determina todas as figuras de movimentos possíveis, mas não traça nenhum transcurso singular real. O transcendente não pode se dar adequadamente, mas a ideia de um algo transcendente, seu sentido, suas regras a priori, sim (§ 144). Neste sentido, as ciências naturais buscam a determinação das coisas enquanto unidades postas experimentalmente, a fenomenologia busca no interior da natureza a determinação unívoca em conformidade com a ideia de objeto natural. É uma nova camada de investigação fenomenológica, noética e noemática, que fundamenta as ciências naturais. Assim, temos a máxima: “what takes place in the Eidos functions as an absolutely insurmountable norm of the fact.” [HUA 3, 301] O que interessa a fenomenologia é estudar as unificações contínuas de identidade em todos os domínios, todos os estudos em orientação transcendental. As configurações de noeses e noemas, morfologias sistemáticas e eidéticas, necessidades e possibilidades de essência, formas de unificação, relações eidéticas e lei de essência, simplificando, o objeto de estudo é sempre a designação de nexos eidéticos cujo primeiro passo é o ‘X’ noemático. As essências concebidas como ideal, existentes de maneira independente, universais atemporais que podem ser manifestadas em distintos particulares espaçotemporais (Smith and McIntyre, 1982, p. 117). Por exemplo, dentre as essências do mundo natural temos ‘coisa’, dentre as essências do mundo ideal temos ‘valor’ e dentre as essências do mundo formal temos ‘número’, as quais a fenomenologia abrange mediante leis eidéticas e alcança a partir do vínculo com o ‘X’ noemático. Portanto, a possibilidade do ‘X’ noemático não é atestada apenas pela doação originária, mas também por toda a cadeia que a partir dele se inicia, isto é, o acesso que se abre a diferentes níveis de universalidade que corroboram recíproca e coerentemente. Posto de outro modo, do universal dado no vivido, o ‘X’ noemático, é possível traçar caminho até o universal em sentido estrito 61 Um estudo sobre os universais em Ideias I Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics entendido como propriedade abstrata não espaço-temporal. Daí a opção pela tradução de ‘Allgemeinheit’ como universalidade e não como generalidade. O termo generalidade não faz jus ao pretendido em Ideias I. O geral é derivado de um processo de abstração, admite exceção. O universal pretendido é resultado da redução fenomenológica, não admite qualquer contingência, é propriedade abstrata não espaço temporal, um universal em sentido estrito. REFERÊNCIAS HUSSERL, E. Logical Investigations. Volume I and II. Translated by J. N. Findlay. London: Routledge, 2001. HUSSERL, E. Husserliana 3, 1-2. Ideen zu einer reinen Phänomenologie uns phänomenologischen Philosophie. Erstes Buch. Allgemeine Einführung in die reine Phäenomenologie. Ed. Karl Schumann. Den Haag: Martinus Nijhoff, 1976. HUSSERL, E. Ideas pertaining to a pure phenomenology and to a phenomenological philosophy. First book. Translated by F. Kersten. The Hague: Martinus Nijhoff Publishers, 1983. HUSSERL, E. Ideas relativas a una fenomenología pura y una filosofía fenomenológica. Traducción de José Gaos. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1993. HUSSERL, E. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tradução: Márcio Suzuki. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2006. DRUMMOND, J. J. Husserlian intentionality and non-foundational realism: noema and object. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1975. MORELAND, J.P. Universals. Bucks: Acumen Publishing, 2001. SMITH, D. W. and MCINTYRE, R. Husserl and intentionality. A Study of Mind, Meaning and Language. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1982. SPARROW, T. The end of phenomenology. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2014. Submetido: 21 de julho 2017 Aceito: 29 de julho 2017 62 Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 62 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Psicologismo e psicología em Edmund Husserl Psychologism and psychology in Edmund Husserl Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Universidade Estadual Paulista - UNESP7 RESUMO O objetivo deste trabalho é examinar a crítica ao psicologismo de Edmund Husserl para avaliar sua posição no que diz respeito à psicologia empírica. Procurarei mostrar, em primeiro lugar, que Husserl, em Investigações lógicas, tem como alvo o psicologismo lógico e uma determinada forma de psicologismo epistemológico. Em segundo lugar, buscarei mostrar que a fundamentação epistemológica da lógica pura, como ciência teórica, implica em uma teoria da subjetividade. Um dos objetivos de Husserl em Investigações lógicas é empregar a fenomenologia, entendida como forma peculiar de psicologia descritiva, para elaborar uma nova teoria da subjetividade, por meio de uma análise descritiva das vivências envolvidas na obtenção do conhecimento teórico. Depois irei discutir o lugar que a psicologia empírica passa a ocupar depois da crítica ao psicologismo em Investigações lógicas. PALAVRAS CHAVE Fenomenologia; Husserl; Psicologismo; Psicologia. ABSTRACT The purpose of this paper is to examine Edmund Husserl's critique of psychologism in order to evaluate his position with regard to empirical psychology. I will try to show, first, that Husserl, in Logical Investigations, has as its scope the logical psychologism and a certain form of epistemological psychologism. Second, I will try to show the epistemological foundation of pure logic, as theoretical science, implies a theory of subjectivity. One of Husserl's objectives in Logical Investigations is to use phenomenology, understood as a peculiar form of descriptive psychology, to elaborate a new theory of subjectivity by means of a descriptive analysis of the experiences involved in obtaining theoretical knowledge. Then I will discuss the place that empirical psychology comes to occupy after the critique of psychologism in Logical Investigations.Keywords: Phenomenology; Husserl, psychologism, psychology. 7 Email: savioperes@yahoo.com.br 63 Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics KEYWORDS Phenomenology; Husserl; Psychology; Psychology. INTRODUÇÃO Ao longo deste artigo, irei, em primeiro lugar, mostrar algumas das motivações que levaram Husserl, a partir de Filosofia da Aritmética, a construir, em Investigações lógicas, sua concepção de lógica pura, como ciência teórica de idealidades. Em segundo lugar, observarei alguns traços essenciais da concepção de Husserl de lógica pura. Em terceiro lugar, buscarei mostrar que a fundamentação epistemológica da lógica pura implica em uma determinada concepção de subjetividade, a qual deve ser descritivamente validada. Em quarto lugar, examinarei tipos de psicologismo, mostrando que estes tipos podem ser distinguidos quanto ao âmbito e quanto à forma de psicologia que se encontra em sua base. Depois, irei mostrar a posição de Husserl frente à psicologia empírica, tanto em Investigações lógicas, quanto após a virada transcendental. Defenderei, por fim, que Husserl não rechaça todas as formas de psicologia empírica. Pelo contrário, para ele, a fenomenologia tem como uma de suas funções fornecer a base ontológica para uma construção apropriada da psicologia empírica. 1. FILOSOFIA DA ARITMÉTICA E O PSICOLOGISMO Husserl inicia sua carreira filosófica na segunda metade da década de 1880. Inspirado pelas lições que ele havia tido com Brentano em Viena, ele resolve aplicar o método psicológico-descritivo de seu mestre a fim de clarificar os conceitos fundamentais da aritmética (HUSSERL, 1891). Tratava-se de um tópico bastante discutido na época. O que é a aritmética? Qual a origem de seus conceitos fundamentais? Ela decorre das formas da intuição do tempo, como afirmava Kant? Ou ela pode ser construída de maneira puramente formal, de modo tal que seus juízos nada mais são do que juízos analíticos? Ou teria os conceitos fundamentais da aritmética origem empírica? Tais problemas eram amplamente debatidos na época, em virtude de uma crise, no final do século XIX, referente aos conceitos fundamentais da geometria e da aritmética. Com o surgimento da teoria dos conjuntos e de geometrias 64 Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 64 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics não euclidianas, a fundamentação epistemológica kantiana da geometria e da aritmética começou também a ser questionada. Isso levou a um debate sobre a natureza da matemática e sua relação com o sujeito epistêmico: o que há de especial na subjetividade humana que a torna apta adquirir conhecimento matemático? É neste contexto que se compreende a tese do doutorado de habilitação que Husserl realizou sob a supervisão de um discípulo de Brentano, Karl Stumpf, e cujos resultados se encontram em uma obra de 1891, Filosofia da Aritmética: um estudo lógico e psicológico. Nesta obra, Husserl buscava clarificar os conceitos fundamentais da aritmética empregando o método psicológico de Brentano. Brentano, contra Kant, não aceitava a ideia de conceitos a priori, derivados das categorias do entendimento e das formas da sensibilidade do sujeito transcendental. Para Brentano, todo conceito tem origem empírica, tendo sua gênese na percepção interna ou na percepção externa (STEGMÜLLER, p.30). Ora, se todo conceito tem origem empírica, isso deve ser válido também para os conceitos matemáticos. Seguindo as linhas básicas da psicologia descritiva brentaniana, Husserl, em Filosofia da Aritmética, busca mostrar não só como os conceitos fundamentais da aritmética nascem da intuição, mas também como a aritmética alcança um nível não intuitivo. Filosofia da Aritmética não teve nenhum impacto significativo na época. Contudo, a obra chamou a atenção de, do grande lógico alemão, Gottlob Frege, o qual escreveu em 1894 uma resenha a criticando duramente. Segundo Frege, Husserl havia errado ao introduzir questões psicológicas no âmbito da aritmética. Em particular, Frege criticava Husserl por ter confundido a representação do número com o próprio número. A representação do número, segundo Frege, é algo subjetivo e tem a origem no sujeito, mas o número é algo objetivo, independente da psique humana. Ou seja, buscar na psique humana a origem do número seria tão absurdo quanto buscar na psicologia a origem dos mares: Se um geógrafo fosse ler uma obra sobre oceanografia em que a origem dos mares fosse explicada psicologicamente, ele, sem dúvida, teria a impressão de que o próprio ponto da questão tinha sido perdido de uma maneira muito peculiar. Eu tenho a mesma impressão do presente trabalho. Certamente, o mar é algo real e um número não é, mas isso não o impede de ser algo objetivo; e isso é 65 Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics de grande importância. (FREGE, 1972, p.337) Para Frege, tanto a aritmética quanto a lógica são ciências objetivas, ciências ideais e não ciências reais, como a psicologia. Em virtude disso, Frege defendia uma nova forma de platonismo, na qual as verdades são independentes da psique. A verdade de um enunciado não depende das contingências factuais sujeito psíquico. Da mesma forma, o sentido de enunciados científicos são entidades objetivas, embora nãosensíveis. Nem tudo o que há pertence à realidade interior (psíquica) ou à realidade exterior (física). Há também um terceiro reino: o das idealidades. Lógica e matemática são ciências teóricas que estudam idealidades e não consistem no objeto de estudo da psicologia. Em suma, Frege acusava Husserl daquilo que este mais tarde irá denominar de “psicologismo” (Psychologismus). Não é por acaso que essa resenha tenha abalado Husserl profundamente, servindo-lhe como impulso para sua adesão a uma determinada forma de platonismo lógico. (PORTA, 2013). É o que podemos observar nas Investigações Lógicas, às quais foram publicadas em duas partes, a primeira em 1900 e a segunda em 1901. 2. A IDEIA DE UMA LÓGICA PURA COMO CIÊNCIA TEÓRICA Na primeira parte de Investigações Lógicas, Prolegômenos para uma lógica pura8 , Husserl deixa clara sua mudança de posição com relação à Filosofia da Aritmética, publicada em 1891. Logo no início da obra, Husserl afirma que a lógica, assim como a matemática, é uma ciência teórica ideal. Seu objeto não são conteúdos psíquicos ou vivências, mas sim entidades ideais. Seu objetivo é estabelecer leis lógico-ideais sobre estruturas lógico-ideais. Husserl, portanto, distingue duas esferas do A partir daqui, usarei como base, salvo indicação contrária, as edições de 1900, de Prolegômenos e de 1901, das seis Investigações lógicas, as quais constam respectivamente em Husserl (1975) e Husserl (1984a, 1984b). Usamos a versão de 1900/1901 porque a versão corrigida por Husserl em 1913 ocorre, após a virada transcendental, que se dá em 1906/1907. Na versão de 1913, Husserl busca compatibilizar Investigações Lógicas com a fenomenológica tomada como filosofia transcendental. Essas correções dificultam a compreensão do vínculo entre psicologismo lógico, psicologismo epistemológico e psicologia, tal como Husserl havia compreendido na época. Ao empregar a primeira versão da obra, podemos respeitar melhor o desenvolvimento genético evolutivo do pensamento do autor. As traduções de Investigações lógicas foram feitas em sintonia, salvo algumas exceções, com a edição portuguesa de Investigações lógicas (Husserl, 2012). 8 66 Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 66 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ser: a factual e a ideal. Em virtude de sua defesa de uma esfera de ser ideal, podemos afirmar que Husserl adere a uma determinada forma de platonismo lógico. Para Husserl, toda verdade é uma entidade ideal, atemporal, ainda que ela possa se referir a algo factual-real: “Nenhuma verdade é um fato, isto é, algo determinado no tempo. Uma verdade pode ter como seu significado que algo é, que um estado existe, que uma mudança está ocorrendo”. (Husserl, 1984a. p.87). A lógica pura é uma teoria que versa não sobre os fenômenos psíquicos, mas sobre as formas possíveis de uma teoria em geral. Uma teoria nada mais é do que uma estrutura sistemática de significados ideais objetivos que se refere a um determinado domínio de objetos (1975, p.30). Neste sentido, a lógica, para Husserl, possui um sentido mais amplo que o atual. Para ele, a lógica pura é uma teoria das teorias, uma ciência das ciências. A lógica buscaria as condições de possibilidade e impossibilidade formais de uma teoria. Por exemplo, toda teoria deve respeitar o do princípio de contradição. A validade deste princípio não decorre da constituição empírica do sujeito, como defendem aqueles que afirmam que o seu fundamento se origina do fato de que a espécie homo sapiens evoluiu de tal forma que seus membros se tornaram incapazes biologicamente de crer em dois juízos contraditórios (1975, p.124). Se a explicação biológica fosse correta, os princípios lógicos, como o de contradição, não seriam necessários, mas apenas leis da natureza, e, portanto, na melhor das hipóteses, prováveis. Contudo, o princípio de contradição é, para Husserl, uma condição necessária, sem a qual uma teoria não seria teoria. Toda consciência (humana ou não) capaz de teorizar e produzir teorias deve reconhecer, na luz da evidência, a sua verdade. Os princípios lógicos são dados em evidência apodítica. Eles não se sustentam em nenhum tipo de ciência indutiva, como pretendeu fazer empirismo extremo. Eles não dizem respeito a vivências, mas sim a estruturas ideais, como proposições e teorias. Uma proposição, ou seja, o significado expresso por um juízo declarativo, não pode ser reduzido a um item psíquico, na medida em que todo item psíquico (vivência) é, de acordo com Husserl, algo real na consciência, e, portanto, um evento singular, irrepetível e privado. Se os significados das sentenças científicas fossem representações privadas, o seu acesso intersubjetivo seria impossível de ser explicado. Para que uma teoria seja possível, os significados devem ser objetivos, públicos e 67 Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics intersubjetivamente acessíveis, e não itens subjetivos e privados. Finalmente, em Prolegômenos, Husserl argumenta que a negação ou o não reconhecimento de entidades lógicoideais, como as significações em si, as proposições em si, e as verdades em si (proposições em si verdadeiras), implica o relativismo. 3. VÍNCULO ENTRE LÓGICA PURA E A PSICOLOGIA A concepção da lógica pura, como ciência a priori de entidades ideais, em uma primeira aproximação, não possui nenhuma relação com a psicologia. A lógica pura está para a psicologia assim como a matemática está para a psicologia. A relação entre ambos os domínios apenas entra em cena quando examinamos não propriamente a lógica pura, mas a epistemologia da lógica pura. A peculiaridade das Investigações lógicas está no fato de que Husserl entende que a lógica pura não pode se constituir a partir de uma postulação vazia de entidades lógicos ideais. Ela exige uma epistemologia que a fundamente e esta, por sua vez, implica em uma nova concepção de subjetividade, a qual, como veremos mais adiante, é incompatível com a empirista, que era vastamente difundida no final do século XIX. A concepção empírica de subjetividade e platonismo lógico são mutuamente excludentes. Não é possível defender a lógica pura e, ao mesmo tempo, conceder aos empiristas sua concepção de subjetividade. Por isso, a lógica pura, para ser fundamentada epistemologicamente, exige a refutação de toda forma de psicologia ou de teoria da subjetividade que a inviabilize. Husserl, em Investigações lógicas, opera uma dupla refutação da psicologia empírica. Em primeiro lugar, ele oferece, em Prolegômenos, uma refutação argumentativa. O núcleo desta refutação reside no fato de que a negação da lógica pura implica em relativismo e, portanto, em ceticismo. Daí que toda teoria da subjetividade que seja incompatível com a lógica pura deve ser rejeitada: uma teoria do conhecimento cuja decorrência seja a impossibilidade do conhecimento consiste em contrassenso. Em segundo lugar, Husserl oferece uma refutação descritiva do empirismo (PORTA, 2013. p.55). A teoria empírica do conhecimento repousa em uma má descrição da subjetividade. E a melhor forma de mostrar que ela é fruto de uma má descrição da subjetividade é apresentando uma descrição melhor. É neste ponto que a fenomenologia, que, na ocasião de Investigações lógicas, era concebida como psicologia descritiva, será necessária. Ela é a ferramenta pela 68 Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 68 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics qual Husserl pretende mostrar que uma explicitação adequada da subjetividade é capaz de fundamentar epistemologicamente a lógica pura. (HUSSERL, 1984a, p. 7). 4. VÍNCULO ENTRE PSICOLOGISMO LÓGICO E O PSICOLOGISMO EPISTEMOLÓGICO De forma genérica, podemos dizer que o psicologismo é a redução indevida de um determinado âmbito do conhecimento à psicologia. Ou seja, o termo psicologismo designa a redução de algo que não é psicológico a algo psicológico. Daí que todo psicologismo pressupõe tanto o âmbito que é reduzido quanto uma forma de psicologia a qual esse âmbito é reduzido. No que concerne ao âmbito, podemos falar não só em “psicologismo lógico” (Husserl, 1962, p.22), mas também em psicologismo moral, psicologismo epistemológico, psicologismo semântico. Tomando como critério o âmbito, podemos dizer que Husserl, em Investigações lógicas, não se propõe a refutar todos os tipos possíveis de psicologismo, mas sim apenas dois. O primeiro é o psicologismo lógico. Este consiste simplesmente na afirmação de que o âmbito da lógica coincide com o âmbito da psicologia (HUSSERL, E. 1984a, p. 12). Para tal forma de psicologismo, a lógica tem como domínio os conteúdos, processos ou vivências psíquicas. O segundo é um tipo específico de psicologismo epistemológico. A especificidade deste último não se define pelo domínio o qual é reduzido à psicologia, mas sim pela forma de psicologia à qual a epistemologia é reduzida. A redução da epistemologia à psicologia empírica necessariamente implica em psicologismo. Por outro lado, sua redução à psicologia descritiva ou fenomenologia não implicaria em psicologismo. Dada esta circunstância, Husserl não vê nenhum problema, em 1901, em afirmar que: Uma elucidação suficiente da lógica pura, e, logo, uma elucidação de seus conceitos e teorias essenciais, das suas relações com todas as outras ciências e da maneira como as rege, exige investigações fenomenológicas (i.e., puramente descritivo-psicológicas) e gnosiológicas muito aprofundadas. (HUSSERL, E. 1984a, p. 7) 5.PSICOLOGISMO EPISTEMOLÓGICO E PSICOLOGIA EMPÍRICA 69 Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics No que concerne à forma de psicologia na qual a epistemologia é reduzida, o alvo da crítica de Husserl, em Investigações lógicas, como já mencionamos, é a psicologia empírica. O termo “psicologia empírica” designa nesta obra não um único projeto de psicologia, defendido por um único autor, mas sim toda forma de psicologia que se ocupa apenas de fatos psíquicos. Assim, podemos distinguir várias formas de psicologia empírica, como psicologia empírico-causal, psicofísica, psicologia empíricodescritiva. (HUSSERL, E. 1984a, p.510). Ainda vale observar que a psicologia empírica pode ser ou não intencional. Brentano, por exemplo, realizava uma “psicologia do ponto de vista empírico”, incluindo nesta psicologia o conceito de intencionalidade. O problema da maior parte das teorias do conhecimento baseadas na psicologia empírica pressupunham a validade daquilo que podemos denominar “princípio de factualidade”. Tal pressuposto assume que todo dado intuitivo possui natureza factual. Sua consequência imediata é a impossibilidade de acesso às idealidades em geral, e às essências em particular. E, para Husserl, toda forma de psicologia que negue essências ou que inviabilize o acesso da consciência às essências é inapropriada para a fundamentação epistemológica da lógica pura. Tendo em vista o que foi dito anteriormente, o combate ao psicologismo epistemológico exige identificar não apenas as formas de psicologia assumidamente psicologistas, ou seja, que se proponham explicitamente a fundamentar a lógica. É preciso também combater toda forma de psicologia que se apoie em princípios que tornem inviável uma epistemologia da lógica pura. Por isso, o combate ao psicologismo exige identificar e examinar os pressupostos que regem os vários projetos de psicologia. Se, levados às últimas consequências, tais pressupostos conduzirem ao psicologismo lógico, eles devem ser refutados. Nas Investigações lógicas, Husserl combate, de fato, dois princípios que inviabilizam a epistemologia da lógica pura, princípios estes que estavam na base de várias correntes de psicologia empírica da sua época. O primeiro, como já observamos, é o princípio da factualidade, de acordo com o qual todo dado é um fato, um fato a ser descrito (HUSSERL, 1962), analisado, explicado a partir de regularidades causais, etc. O segundo princípio é o de imanência (HUSSERL, 1975. p 95), de acordo com o qual a consciência tem acesso 70 Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 70 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics imediato apenas aos seus próprios conteúdos psíquicos. Este princípio foi bem expresso por Locke nos Ensaios sobre o entendimento humano (1690/1975), onde ele afirma: “O que quer que seja que a mente perceba em si mesma, e qualquer que seja o objeto imediato da percepção, pensamento, entendimento, eu denomino ideia” (LOCKE, 1690/1975, p.134). Este conceito de ideia, entendido como conteúdo psíquico, corresponde ao conceito de representação9. Uma das O termo inglês “idea” foi traduzido para o alemão pela expressão alemã “Vorstellung”, termo que geralmente vem traduzido ao português como “representação” (PORTA, 2004). Neste sentido, “Vorstellung” designaria uma espécie de objeto intramental, uma cópia do objeto que existe na mente. Há uma dificuldade, relativa à terminologia de Investigações lógicas, que deve ser salientada. Nas Investigações lógicas Husserl afirma que toda vivência intencional possui uma representação em sua base. Como isso é possível, se Husserl busca explicitamente rechaçar o representacionalismo? A resposta é que Husserl, nesta obra, se vale, até a quinta Investigação, da expressão Vorstellung para designar não o conceito clássico de “representação”, mas sim a vivência intencional que está na base de todas as demais vivências e cuja melhor tradução seria “presentação”. Essa dificuldade 9 Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl expressões filosóficas desse princípio é o representacionalismo clássico. De acordo com o representacionalismo clássico, se eu vejo uma maçã, eu não vejo a própria maçã, mas apenas a minha representação mental ou ideia da maçã. Assim, a maçã percebida, dada intuitivamente na percepção, terminológica ocorre, em parte, pelo fato de que Husserl, nas Investigações lógicas, parte da terminologia brentaniana, para, aos poucos, ir se distanciando dela. Portanto, ele não usa o termo “Vorstellung” no sentido do representacionalismo clássico ou do idealismo. Husserl está consciente de que o termo em questão possui diferentes significados, dependendo da tradição filosófica. Por isso, a fim de evitar ambiguidades, ele dedica uma seção da obra inteiramente à clarificação da expressão (HUSSERL, pp.520-527). No final da quinta Investigação e na sexta Investigação, Husserl passa a optar pela expressão “ato objetivante” ao invés de “presentação” (Vorstellung). Desde então, ele afirmará que toda vivência intencional terá um ato objetivante em sua base. Ao longo deste artigo, para evitar tais dificuldades, irei utilizar a expressão “presentação” para traduzir a expressão husserliana “Vorstellung”. Para designar o termo em sentido clássico, empregarei a expressão regular “representação”. 71 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics existiria apenas na minha mente como conteúdo psíquico, ao passo que a maçã real existiria fora de minha mente. Ainda de acordo com tal doutrina, se eu penso no número três, eu estaria pensando na representação do número 3 e não no próprio número três. Contra a concepção de subjetividade fundamentada no princípio de imanência, Husserl apresenta uma concepção intencional da consciência. A peculiaridade da teoria da intencionalidade de Investigações lógicas, com relação à teoria da intencionalidade que Brentano apresenta em Psicologia do ponto de vista empírico, é que o objeto intencional, para o qual a consciência se dirige, é transcendente aos conteúdos psicológicos-descritivos. Do ponto de vista fenomenológico, se eu percebo a maçã, eu percebo a própria maçã, e não uma representação interna da mesma. Tais afirmações se sustentam em uma descrição adequada das vivências. Há uma diferença fenomenológica entre a vivência de perceber uma maçã e a vivência na qual eu tomo consciência de uma maçã através da representação da mesma. No primeiro caso, eu tenho a consciência de um único objeto. No segundo caso, eu tenho a consciência não de um único objeto, mas de dois objetos. Por exemplo, vejo a fotografia da Catedral de Brasília e, através deste objeto, tenho consciência de um outro objeto, a própria Catedral de Brasília. A representação e a percepção são duas vivências descritivamente distintas. Contra o princípio de que a consciência possui acesso apenas a fatos, Husserl busca evidenciar descritivamente que a subjetividade também possui acesso intuitivo às essências. Toda intuição factual pode servir de base para uma ideação, pela qual a essência do fato é colhida. Ao ver esta maçã, eu posso intuir as essências da maçã. E o que vale para a percepção externa, também vale para a percepção interna. Ao perceber internamente uma vivência, eu posso colher as essências desta vivência. Isso permite classificar as vivências em tipos essenciais e estabelecer leis necessárias sobre elas. Neste último sentido, a psicologia descritiva de Investigações lógicas poderia ser melhor designada de psicologia eidético-intencional. O escopo desta última seria o de explicitar os “caracteres de ato em que se efetuam as operações lógicas de presentar, de julgar e de conhecer” (HUSSERL, 1984a, p. 7). E o que as análises eidéticas irão mostrar é que a doação à consciência de estruturas lógicas apriorísticas pressupõe a existência de estruturas apriorísticas na consciência. Ou seja, há uma correspondência formal entre as entidades lógicas e as vivências nas quais elas se manifestam, 72 Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 72 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics intuitivamente ou signitivamente. 10 Um exemplo é que um objeto complexo, como um “estado de coisas”, só pode ser intencionado pela consciência em uma intuição categorial ou uma intenção simbólica categorial. A estrutura de partes e todos da vivência categorial (intuitiva ou significativa) corresponde à estrutura de partes e todos do objeto categorial. (HUSSERL, 1975, p.315, 1984b, p.668, p.669). 6. O PSICOLOGISMO EPISTEMOLÓGICO CONCERNENTE AOS OBJETOS IDEAIS Para Husserl, há um vínculo entre factualidade e imanência psíquica. O princípio de imanência afirma que a consciência tem acesso direto apenas a conteúdos psíquicos. Mas o que caracteriza um conteúdo psíquico? Para Husserl, todo conteúdo psíquico, em sentido estrito, é uma ocorrência factual. Um exemplo é que o estado de coisas, que é um objeto complexo, só pode ser dado em uma intuição categorial ou uma intenção simbólica categorial. A estrutura de partes e todos da vivência categorial corresponde à estrutura de partes e todos do objeto categorial. (HUSSERL, 1975, p.315, 1984b, p.668, p.669). 10 Sob estes últimos termos de vivência e conteúdo, visa a Psicologia moderna às ocorrências reais (Wundt diz com razão: acontecimentos) que, mudando de momento para momento, em múltiplas ligações e interpenetrações, constituem a unidade real de consciência do respectivo indivíduo psíquico. (HUSSERL,1984a, p. 357; 1901/2012, p.296). Na medida em que é factual, um conteúdo é um evento singular e irrepetível. Tais conteúdos psíquicos, em Investigações lógicas, são denominados psicológicos descritivo ou conteúdos reais (reell). Entidades reais, seja da realidade interior (reell), seja da realidade exterior (real), jamais permanecem idênticas a si próprias ao longo do tempo. Entidades ideais, como as verdades, não sofrem a ação do tempo, permanecendo idênticas a si próprias. “A verdade ela mesma, contudo, está acima do tempo; não faz sentido atribuir-lhe temporalidade, nem dizer que ela nasce e morre” (HUSSERL, 1984a. p.87). O princípio contradição não envelhece, não tem cor, permanece idêntico a si mesmo. Toda vez que alguém pensa no teorema no princípio de contradição, o mesmo princípio é dado à consciência. Ainda que o princípio possa ser 73 Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics representado por meio de um signo sensível, de natureza factual, o próprio princípio não é o signo sensível. Feitos tais esclarecimentos, devemos agora alertar que aquilo que havíamos designado de “princípio de imanência” poderia ser melhor precisado como “princípio de imanência psíquica” ou “princípio de imanência real (reell)”. Tal precisão deve ser mencionada, pois Husserl, a partir da virada transcendental, irá distinguir diferentes conceitos de imanência e transcendência (BOEHM, 1968). Em função de sua atemporalidade (HUSSERL, 1984a. p.87), entidades ideais não podem ser parte real do fluxo temporal, psicológico-descritivo, das vivências. Se o princípio de imanência fosse válido, isso significaria que a consciência só teria acesso à conteúdos psicológicos-descritivos, ou seja, conteúdos factuais. Tal posição resultaria na completa impossibilidade de acesso epistêmico às idealidades, e como consequência, na impossibilidade de se fundamentar epistemologicamente a lógica pura. Contra o princípio de imanência real, Husserl propõe um novo modelo de subjetividade, cujo princípio é a intencionalidade. A consciência, na medida em que é intencional, é capaz de transcender seus próprios conteúdos psicológicosimanentes, apreendendo objetos e conteúdos transcendentes ao fluxo psíquico das vivências. Uma vivência intencional pode ter como objeto intencional algo que não é uma vivência. Se eu penso no teorema de Pitágoras, no princípio de nãocontradição, ou em uma maçã, eu não estou pensando em vivências, mas algo as transcende. Apenas vivências reflexivas tem como objeto uma outra vivência pertencente ao mesmo fluxo psíquico.11 7. O PSICOLOGISMO DE MILL Uma das formas de psicologismo epistemológico que Husserl combate mais duramente é o de Mill (HUSSERL, 1975, p.71). Husserl o acusa de reduzir leis lógicas a leis psicológico-empíricas relativas ao modo como a mente funciona (HUSSERL, E. p.72). Em outros termos, Mill busca fundamentar as leis lógicas na psicologia genética ou explicativa. Assim, para Mill, as leis lógicas seriam leis naturais do pensar. Por serem leis empíricas, elas nada Particularmente importante, para essa concepção, foi a leitura da obra de um membro da escola de Brentano, Twardowski (1894), Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen: eine psychologische Untersuchung. Nesta obra, publicada em 1894, o filósofo distinguia entre conteúdo do ato e o objeto de um ato. O objeto de um ato seria transcendente tanto ao conteúdo quanto ao ato. 11 74 Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 74 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics mais seriam do que leis indutivas e, portanto, na melhor das hipóteses, leis prováveis. Com isso, o “empirismo extremo” cometeria um grave erro concernente à natureza das leis lógicas, na medida em que não as toma como leis necessárias. Trata-se da consequência de se considerar que as leis lógicas são leis naturais referentes aos fenômenos psíquicos (o processo de pensar). Ao contrário, para Husserl, as leis lógicas referemse não ao pensar, mas ao conteúdo ideal-objetivo da vivência de pensar (ao juízo em sentido lógico-ideal, à teoria em sentido lógico ideal, ao raciocínio em sentido lógico ideal). 8. O PSICOLOGISMO DE BRENTANO E SUA IDEIA DE PSICOGNOSE De acordo com Brentano, o método filosófico deveria ser o método psicológico. (BRENTANO, p.2). Por volta do fim da década de 1880, Brentano passa a distinguir psicognose (ou psicologia descritiva) e psicologia genética (ou psicologia causal), defendendo que é na primeira que as ciências normativas, como a ética, a estética e a lógica, encontrariam seu fundamento (BRENTANO, 2002). Para Brentano, a psicognose seria capaz de alcançar leis necessárias. A psicologia descritiva, no caso, valeria como método para a fundamentação epistemológica da lógica como ciência normativa. Tendo isso em mente, então devemos perguntar: se, para Brentano, a lógica é uma ciência normativa, seria correto acusá-lo de ter incorrido em psicologismos lógico? Husserl sabe que Brentano não procura fundamentar a lógica normativa na psicologia genética, pois esta não visa normas, mas apenas leis indutivas e, portanto, prováveis (BRENTANO, F. 2002, pp. 78, 166). Neste ponto, Brentano e Husserl parecem estar em perfeita sintonia. Para Husserl, também a psicologia descritiva seria o fundamento epistemológico da lógica. A diferença entre Husserl e Brentano se encontra tanto no que cada um entende por lógica e por psicologia descritiva. Essa diferença pode ser detalhada pelas seguintes considerações: 1) Husserl apresenta, nas Investigações lógicas, três conceitos de lógica. Ela pode ser entendida como técnica, como ciência normativa, como ciência teórica. Husserl aceita as três concepções, mas estabelece uma hierarquia entre elas. A lógica como ciência teórica fundamentaria a lógica como ciência normativa e esta última fundamentaria a lógica como técnica (1975, pp.22-23). 75 Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics 2) Brentano rejeita a ideia de lógica como ciência teórica, que tem como domínio entidades ideais (HUEMER, 2004). Para Brentano, um juízo é um fenômeno psíquico, o qual seria o portador da verdade. Para Husserl, é proposição ideal o lugar da verdade. 3) A rejeição de entidades ideais, por parte de Brentano, é decorrência do fato de que sua psicologia descritiva só aceitava duas formas de intuição, externa e interna. Ambas apenas oferecem singularidades factuais. Para Brentano, apenas fatos são dados. Conceitos, ao contrário, são produzidos psiquicamente e encontram sua gênese no sujeito epistêmico. Os fenômenos psíquicos colhidos na percepção interna, ainda que sejam dados em evidência adequada, possuem natureza factual. Este é um dos pontos no qual Husserl se distancia de Brentano. Partindo de fatos, não podemos alcançar leis universais e necessárias sobre a subjetividade. Como afirma Boer (1978, p.116): “Quando ciências normativas são fundadas na psicologia descritiva nós podemos falar de psicologismo apenas na medida em que se trata uma fundação inadequada das leis lógicas”. 4) A teoria da intencionalidade de Brentano assume que o objeto é imanente ao ato. Husserl interpreta a tese de imanência brentaniana, como já comentamos, como imanência real (reell). Em virtude disso, torna-se inviável a captação de entidades ideais, uma vez que elas, devido à sua natureza, devem ser transcendentes ao fluxo real (reell) de consciência. 12 Em geral, por mais que Brentano busque leis apodíticas pela psicologia descritiva, ele seria incapaz de fundamentá-las, pois estaria preso ao princípio de factualidade. 9. O PSICOLOGISMO LÓGICO E O PSICOLOGISMO TRANSCENDENTAL Nas Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (1950) publicadas em 1913, Husserl defende a tese universal de que a redução da teoria do conhecimento a qualquer forma de psicologia incorre em psicologismo, o qual Se Husserl estava correto em sua crítica ao “objeto imanente” em Brentano, trata-se de outro problema, bastante complexo, pois a crítica fundamenta-se em distinções que Brentano não havia realizado. Husserl considera que Brentano assume que o objeto intencional imanente é parte real (reell) de um ato. O problema é que Brentano não faz tal distinção. Para uma análise mais detalhada deste problema, ver PERES (2014). 76 12 Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 76 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics necessariamente conduz ao contrassenso. Se o diagnóstico de Husserl em Ideias é correto, então, devemos considerar que as Investigações lógicas, embora não tenham incorrido nem em psicologismo lógico, nem em certos tipos de psicologismo epistemológico, estavam, não obstante, presas a uma forma sutil de psicologismo epistemológico, decorrente da redução da epistemologia à psicologia descritiva (PORTA, 2013). De fato, na edição de 1901 das Investigações lógicas, Husserl não tem o menor pudor em escrever que: “Fenomenologia é, no essencial, psicologia descritiva. Como consequência, a crítica do conhecimento é essencialmente psicologia, ou ao menos algo que só no campo da psicologia pode edificar” (HUSSERL, 1984a, p.21, 22). A peculiaridade da psicologia descritiva das Investigações lógicas é que ela tem como alvo específico descrever as estruturas essenciais das vivências lógicas (HUSSERL, E. 1984a, p. 23, 26). Uma vez que a fenomenologia de Investigações lógicas, em linhas gerais, buscaria uma análise da essência da consciência psíquica, ela poderia ser também designada, como Husserl mais tarde iria fazer, de “psicologia a priori” ou “psicologia eidético-intuitiva” (HUSSERL, 1962, p.35). A psicologia eidética das Investigações lógicas, por mais que operasse com essências e não com fatos, era, ainda assim, uma ciência “contaminada” pela atitude natural. Husserl, na ocasião, não se dá conta dessa contaminação, ainda que ele tenha declarado, nesta mesma obra, a neutralidade metafísica da fenomenologia (1984a, p.6), fundada no “princípio da ausência de pressupostos” (1984a, p.17). Assim, o problema da existência ou inexistência de uma realidade em si, independente da consciência, não entraria em questão na fenomenologia. A fenomenologia, na medida em que permanecesse uma ciência puramente descritiva, permaneceria calada frente aos problemas metafísicos. O ponto a se observar é que essa neutralidade metafísica possuía na ocasião, um alcance limitado. Ao entender que a fenomenologia era uma forma de psicologia, Husserl se comprometia, sem que percebesse, com os pressupostos metafísicos implicados no conceito de psicologia. Como afirma Boer (1978), podemos dizer que Husserl realiza nas Investigações uma epoché parcial: a tese de existência em si do mundo é, por razões metodológicas, suspensa, mas a tese da mundanidade da consciência não é abordada. 77 Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Após a virada transcendental, cujo início se dá por volta de 1907, Husserl passa a considerar, em Filosofia como ciência de rigor, publicada em 1911, que ele havia, nas Investigações Lógicas, apenas combatido a naturalização das ideias, mas não a naturalização da consciência. Desde então, Husserl será explícito ao afirmar que a psicologia, qualquer que seja a sua forma, é uma ciência mundana, realizada a partir do pressuposto de que existe uma realidade exterior, subsistente em si e absolutamente independente do sujeito (HUSSERL,1962). Ao partir deste pressuposto, sua validade torna-se restrita a uma determinada região ontológica: a interioridade. A epistemologia, ao contrário, na medida em que é teoria do conhecimento, não pode fixar o seu olhar unilateralmente na interioridade. Ela deve lidar com a correlação essencial entre o objeto do conhecimento e o sujeito cognoscente. A busca pelo interior conduz ao exterior. Conhecer não é copiar o mundo dentro de si, mas é abrir-se ao mundo. A vivência de conhecer, na maior parte dos casos, visa aquilo que é transcendente à consciência. A fenomenologia busca as condições de possibilidade do aparecimento do mundo. E, todo aparecimento, é aparecimento de algo para alguém. Para se colocar o problema epistemológico de maneira consequente, é preciso primeiro realizar a epoché universal, suspendendo a tese da existência de uma realidade subsistente em si e independente do sujeito. Se a epoché universal é efetuada, não só a realidade exterior é posta entre parênteses, mas também a realidade interior. A partir da atitude transcendental, seria um contrassenso considerar o sujeito uma interioridade. O conceito de interioridade pressupõe a validade do conceito de exterioridade. Mas esse último não pode ser dado como ponto de partida. A exterioridade é alcançada pelo exame reflexivo sobre as vivências. Ao refletir encontramos a intencionalidade, que é justamente a estrutura básica da consciência, aquilo que leva a consciência a visar algo que não é ela própria. A fenomenologia não é o estudo de uma interioridade, mas da correlação entre sujeito e objeto, o que, na terminologia apropriada a descrever o transcendental, será a correlação entre noesis e noema. Apenas pela epoché universal é possível evitar a confusão da consciência psíquica, ou seja, a consciência vista a partir da atitude natural, e a consciência transcendental, cuja apreensão se dá a partir da atitude transcendentalfenomenológica. Nas Investigações 78 Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 78 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Lógicas, ao pretender fundamentar a epistemologia na psicologia eidética, Husserl incorria em uma forma de “psicologismo transcendental”. Por “psicologismo transcendental” Husserl entenderá, como ele expressa nas Conferências de Amsterdam e nas Meditações Cartesianas, toda tentativa de fundamentar a epistemologia na psicologia, qualquer que seja sua forma. O problema da constituição não pode ser resolvido a partir do exame do psíquico. Apenas a redução fenomenológico-transcendental, ao neutralizar a tese de existência de um mundo exterior, independente da consciência, permite o radicalismo necessário sobre o qual é possível formular adequadamente o problema epistemológico. 10. O PSICOLOGISMO E O LUGAR DA PSICOLOGIA Ao contrário do que uma leitura apressada poderia sugerir, Husserl, com a crítica ao psicologismo em Investigações lógicas, não rejeita toda forma de psicologia. Basta lembrar, como já explicitamos neste artigo, que a própria fenomenologia era entendida como uma forma de psicologia descritiva. Mas podemos deduzir daí que a única forma de psicologia possível seria uma psicologia descritiva eidética e intencional? É possível uma psicologia de empírica? A resposta de Husserl é afirmativa. Contudo, a nova psicologia empírica deveria se apoiar na psicologia descritiva. Ou seja, Husserl atribui uma dupla tarefa à psicologia descritiva-eidéticointencional, por um lado ela dá acesso às “(...) ‘fontes’ de onde ‘brotam’ os conceitos fundamentais e as leis ideais da Lógica pura” (1984a, p.7) e por outro lado, ela “serve à preparação da Psicologia como ciência empírica” (1984a, p.7). Essa mesma posição é ratificada em 1925, em suas lições sobre Psicologia fenomenológica, onde Husserl afirma que as Investigações Lógicas eram uma obra não só de teor epistemológico, mas que também forneciam “uma psicologia descritiva e analítica ao interesse da psicologia ela mesma” (1925/1962, p.27) e ainda: Você agora pode entender porque as Investigações Lógicas, este trabalho direcionado para a psique, poderia também ser designado por psicologia descritiva. De fato, o único propósito que elas buscavam e tinham que buscar era o estabelecimento de uma visão interior que desvelasse as vivências de pensar escondidas do sujeito que pensa, e uma descrição essencial pertencente aos dados puros das vivências, movendo-se apenas em uma pura visão interior. Mas por outro lado, a fim de 79 Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics caracterizar a peculiaridade do método, o nome fenomenologia foi escolhido. De fato, um novo método de se abordar o psíquico emergia ali. (1962, p.27) Mas como entender a relação entre psicologia e a fenomenologia após a virada transcendental? Qual o lugar da psicologia de fatos após a crítica à naturalização da consciência? Ao contrário do que uma leitura apressada poderia sugerir, Husserl, após a virada transcendental, continua não rejeitando toda forma de psicologia de fatos. Em Filosofia como ciência de rigor, ele defende que caberia à psicologia empírica investigar a psique integrada à natureza psicofísica. Em particular, o objetivo da psicologia seria investigar as leis que regem o aparecer e o desaparecer das vivências (HUSSERL, 1911/1965, p. 15). A psicologia de fatos é possível, desde que não se apoie nos princípios que já comentamos no começo, ou seja, o princípio de factualidade e o de imanência. Mas como realizar uma psicologia de fatos sem partir de tais princípios? O primeiro esboço de resposta encontramos em 1911, também em Filosofia como ciência de rigor, onde Husserl afirma que “(...) é mister toda a verdadeira teoria do conhecimento ter a base necessária na Fenomenologia, que deste modo constitui o fundamento comum de toda a Filosofia e Psicologia”. (HUSSERL, 1911/1965, p. 45). Husserl, no artigo de Logos, argumenta que a nova ciência, a fenomenologia, teria o papel (entre outros tantos) de fundamentar e clarear os conceitos da psicologia empírica. Mas seria essa psicologia empírica a mesma que ele criticava nas Investigações lógicas? Mais uma vez devemos observar que o termo “psicologia empírica”, embora o próprio Husserl o empregue com frequência, é perigoso. O termo pode remeter a formas de psicologia realizadas em linha com os empiristas ingleses. Por essa razão, o melhor seria dizer que a “psicologia de fatos” é possível. Afirmar que a psicologia empírica é possível significa apenas afirmar que é possível uma ciência cujo objeto são os fatos psíquicos e não as essências psíquicas. A expressão ‘psicologia de fatos’ seria mais apropriada com a distinção que Husserl realiza, sobretudo a partir de Ideias, entre ciências de fatos e ciências eidéticas ou ciência de essências. Há uma importante relação entre as ciências de fatos e as ciências de essência. Toda ciência de fatos, para que obtenha sucesso, deve ser construída sobre uma base conceitual apropriada. Essa base conceitual seria obtida pela ciência de essências correspondente à região ontológica às 80 Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 80 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics quais os fatos de uma determinada ciência pertencem (1913/1950, p. 23). Neste sentido, a psicologia eidética valeria como uma ontologia regional da “alma” (Seele), expressão essa que Husserl utiliza para designar a consciência psíquica em sua dimensão mundana e, portanto, tomada como uma substância entremeada com o corpo próprio (Leib). A clarificação dos conceitos por elucidação intuitivo-descritiva precede a realização de experimentos que visam encontrar a correlação entre fatos. Por exemplo, antes de se realizar experimentos para sobre a percepção, seria necessário clarificar conceitualmente, a partir da descrição eidético-reflexiva, o que é a percepção. Para Husserl, não cabe à fenomenologia a realização da psicologia de fatos, mas sim a tarefa de possibilitá-la, oferecendo-lhe sua base conceitual, pelo exame da doação originária do fenômeno. A clarificação dos conceitos básicos da psicologia de fatos é um empreendimento eidético e não factual. Apenas com uma base adequada uma ciência pode dar frutos. Husserl se propõe, em dois momentos, a realizar, com mais cuidado, a ontologia regional da alma: em Ideias II (1952) e em Lições sobre Psicologia fenomenológica (1962). Finalmente, é preciso acrescentar que, para Husserl, até mesmo a psicologia eidética, embora seja uma ciência válida, não é e não pode ser epistemologia. Apenas a filosofia transcendental é epistemologia. Incorrerá em psicologismo epistemológico toda tentativa de fundamentação da epistemologia na psicologia eidética, pois esta última é um empreendimento realizado a partir da atitude natural. Um exemplo deste tipo de psicologista para Husserl é Locke. Este, embora tenha aprendido com Descartes, a procurar “clarificar o que a subjetividade pode e efetivamente realiza”, através de um “autoentendimento puro e sistemático na imanência que se esconde do conhecedor, exclusivamente por meio da ‘experiência interna’ (HUSSERL, 1962, p.248), não soube alcançar a verdadeira subjetividade transcendental. E Husserl segue: Embora Locke tenha sido guiado por esta grande visão interior, faltou-lhe a pureza fundamental e caiu no erro do psicologismo. Na medida em que a experiência realobjetiva e o conhecimento em geral foram sujeitados ao questionamento transcendental, foi absurdo de sua parte pressupor qualquer tipo de experiência e conhecimento objetivos – como se o 81 Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics próprio sentido e legitimidade de sua validade objetiva não fossem parte do problema. Uma psicologia não poderia ser a fundação da filosofia transcendental. Mesmo a psicologia pura em sentido fenomenológico, tematicamente delimitada pela redução psicológico-fenomenológica, ainda é e sempre será uma ciência positiva: ela tem o mundo como sua fundação pré-dada. (HUSSERL, 1962, p.248) É claro, portanto, que a psicologia pura é para Husserl uma ciência mundana e, enquanto tal, é incapaz de servir de base à epistemologia. Mas, uma vez respeitada sua delimitação ontológica, a psicologia eidética, assim como a psicologia empírica que ela propicia, possuem plenos direitos. CONCLUSÕES Husserl defende que há condições subjetivas necessárias para que a consciência seja capaz de produzir conhecimento teórico (HUSSERL, 1975, p. 238). Essas condições epistemológicas não devem ser apenas deduzidas, mas descritas, a partir da reflexão sobre as vivências cognitivas. Esta descrição constitui o núcleo positivo da crítica ao psicologismo. É por meio da descrição dos diferentes tipos de vivências, não em sua singularidade, mas em sua estrutura essencial e universal, que surge uma concepção de subjetividade adequada à fundamentação da lógica pura. Enquanto a fenomenologia mostra na subjetividade as possibilidades do conhecimento teórico, a lógica pura examina as condições objetivas necessárias para que uma teoria seja uma teoria. A busca é pela relação entre a subjetividade das vivências e a objetividade da lógica. E o que Husserl irá mostrar, em Investigações lógicas, é que as leis e os conceitos lógicos, alcançados por intuição eidética, estão essencialmente vinculados às estruturas universais e necessárias da subjetividade (intuição eidética, intuição categorial, vivências significativas). Tais estruturas são reveladas por intuições eidéticas fundadas sobre atos reflexivos. O fato da lógica possuir leis necessárias implica que a consciência destas leis possua uma estrutura necessária, uma estrutura passível de ser expressa em leis a priori. Nas Investigações Lógicas, Husserl defende que a origem intuitiva dos conceitos lógicos ocorre a partir de uma abstração eidética realizada sobre certas partes não-independentes da intuição categorial (1984b, p.668, p.669). Para Husserl, toda teoria que tome como válido o princípio de factualidade e o princípio de imanência psíquica, não será capaz de 82 Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 82 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fundamentar a lógica como ciência teórica. A abstração não é uma produção, por colagem, de materiais sensíveis, e também não é um extrair partes de um todo pela fixação da atenção em uma delas. Abstrair é alcançar algo que pertence à coisa. Mas esse algo só é alcançado pelo subjetivo, o qual não vê apenas realidades factuais, mas também vê possibilidades e impossibilidades. Faz parte da essência de uma casa a possibilidade de abrigar algo. Uma casa que, a princípio, não pode abrigar nenhum ser vivo, não é uma casa. Captar uma essência é captar as possibilidades e as impossibilidades de um objeto de um determinado tipo. O empirismo, por estar preso aos princípios de factualidade e de imanência, é incapaz de oferecer uma teoria da abstração satisfatória. E pode ser refutado tanto por meio de argumentação, mostrando que ele conduz ao contrassenso, quanto descritivamente, mostrando que ele decorre de uma má descrição, enviesada por preconceitos infundados. Dentre estes preconceitos, o mais nefasto é o do naturalismo de Galileu, o qual levou Hume a tentar fazer na alma o que Newton fez com a física. Husserl não combate, em Investigações lógicas, todas as formas de psicologismo, na medida em que a epistemologia é fundamentada na fenomenologia, a qual é, na ocasião, concebida como uma psicologia eidética e intencional. Posteriormente, após a virada transcendental, ele irá distinguir entre fenomenologia pura, realizada a partir da atitude transcendental, psicologia fenomenológica (ou psicologia eidético-intuitiva). Esta última é o fundamento da verdadeira psicologia de fatos. REFERÊNCIAS BOER, T. The development of Husserl's thought. The Hague; Boston: Nijhoff, 1978. BRENTANO, F. C. Über die Zukunft der Philosophie. Wien, A. Hölder, 1893. 94 Disponível em: < http://archive.org/details/berdiezukunftd er00bren >. Acesso em: 2012/08/02/15:17:16. BRENTANO, F. Descriptive Psychology, New York: Routledge, 2002. FREGE, G. Review of Dr. E. Husserl's Philosophy of Arithmetic. Mind: New Series, v. 81, n. 323, p. 321-337, 1972. HUEMER, W. Husserl's critique of psychologism and his relation to the Brentano school. In A. Chrudzimski & W. Huemer (Eds.), Phenomenology and Analysis: Essays on Central European Philosophy (pp. 199-214): Ontos, 2004. HUSSERL, E.. Philosophie der Arithmetik. Psychologische und logische Untersuchungen. Halle-Saale: C. E. M. Pfeffer, 1891. 83 Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics HUSSERL, E. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. Buch 1, Allgemeine Einführung in die reine Phänomenologie. Den Haag: Nijhoff, 1950. HUSSERL, E. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie; Buch 2, Phänomenologische Untersuchungen zur Konstitution. Den Haag: Nijhoff, 1952. HUSSERL, E.. Phänomenologische Psychologie: Vorlesungen Sommersemester 1925. Haag: Martinus Nijhoff, 1962. HUSSERL, E. Logische Untersuchungen. Bd. 1 Prolegomena zur reinen Logik (Hua 18). (E. Holenstein Ed.). Den Haag: Martinus Nijhoff, 1975. (Trabalho original publicado em 1900). HUSSERL, E.. Logische Untersuchungen, Zweiter Band, erste Teil Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis. (Hua 19/1) (U. Panzer Ed.). The Hague: Nijhoff, 1984a. HUSSERL, E. Logische Untersuchungen. zweiter Band. zweiter Teil. Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis. (Hua 19/2) The Hague: Nijhoff, 1984b. HUSSERL, E. Investigações lógicas. Segundo Volume. Parte I, Investigações para a fenomenologia e a teoria do conhecimento (P. M. S. Alves & C. A. Morujão, Trans. Vol. XIX/I). Lisboa: Forense, 2012. LOCKE, J. An essay concerning human understanding (P. H. Nidditch Ed.). Oxford: Clarendon Press, 1975. (Trabalho original publicado em 1690). PERES, S. P. O problema da transcendência do objeto da percepção e do objeto da física nas Investigações Lógicas de Husserl. Philósophos, v. 19, n. 1, 2014. PORTA, M. A. G. A polêmica em torno ao psicologismo de Bolzano a Heidegger. Síntese-Revista de Filosofia, v. 31, n. 99, p. 107-131, 2004. PORTA, M. A. G. Edmund Husserl: psicologismo, psicologia e fenomenologia São Paulo: Loyola, 2013. STEGMÜLLER, W. Filosofia Contemporânea: introdução crítica. 2. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. TWARDOWSKI, K. Zur Lehre vom Inhalt und Gegenstand der Vorstellungen: eine psychologische Untersuchung. Wien: A. Hölder, 1894. 84 Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 84 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de Edmund Husserl. Subjectivity and affectivity: the interwining of intellect and feeling in Edmund Husserl’s ethics. Prof. Dr. Marcelo Fabri13. Universidade Federal de Santa Maria. RESUMO O artigo examina o papel do sentimento na ética fenomenológica a partir da confrontação entre moralistas do intelecto e os moralistas do sentimento, na obra Introdução à Ética (19201924) de Edmund Husserl. Mesmo sendo um crítico do naturalismo e do empirismo, Husserl recebe uma notável influência de Hume. O desafio de uma ética fenomenológica poderia, pois, ser colocado nestes termos: é preciso mostrar que, na esfera da moralidade, os sentimentos se entrelaçam necessariamente com a esfera intelectiva, abrindo o problema de uma discussão sobre o imperativo categórico que possa acolher esse entrelaçamento. PALAVRAS CHAVE Ética; fenomenologia; sentimento; intelecto; naturalismo. ABSTRACT This essay examines the role of feeling in phenomenological ethics from the confrontation between the moralists of intellect and the moralists of feeling in Edmund Husserl's Introduction to Ethics (1920-1924). Although he is a critic of naturalism and empiricism, Husserl receives a notable influence from Hume. The challenge of a phenomenological ethic could, therefore, be put in the following terms: it’s necessary to show that, in the realm of morality, feelings necessarily intertwine with the intellective sphere, starting the problem of a discussion regarding the categorical imperative that can accommodate this entanglement. KEYWORDS 13 E-mail: fabri.ufsm@gmail.com Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de Edmund Husserl. 85 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Ethics; phenomenology; feeling; intellect; naturalism. INTRODUÇÃO Husserl referia-se a Hume como o maior filósofo de língua inglesa. Se, por um lado, o naturalismo humiano é incompatível com as teses fundamentais da fenomenologia transcendental, as análises contidas no Tratado da Natureza Humana são sempre evocadas por Husserl com apreço e reconhecimento. No terreno da ética, esse reconhecimento se dá de modo notável, sobretudo no que diz respeito aos fundamentos emotivos das virtudes morais, fato que, na perspectiva husserliana, representa um contraponto importante em relação às teorias que vêm no ser humano um ser naturalmente egoísta (Hobbes, por exemplo). Pode-se mesmo dizer que um dos objetivos centrais da ética fenomenológica seja o de apresentar argumentos fortes e certeiros contra essas teorias. A reflexão de Hume sobre a moral, embora marcada por uma visão naturalista incompatível com a fenomenologia, apresenta-se como decisiva para enfrentar o debate que coloca a questão moral sob a forma de um conflito entre intelecto e afetividade. Ora, ao invés de acentuar o caráter egoístico da realidade humana, Hume confere maior relevo às virtudes que, em geral, se referem ao outro ser humano, tais como cortesia, sociabilidade, gentileza, etc. e, sendo assim, teve o mérito de sublinhar o papel do sentimento na esfera da moralidade. Com efeito, na perspectiva husserliana, em vez de se dizer, como faz Hume, que a razão é simplesmente cognoscitiva e que o sentimento, por sua vez, é apenas um fato da natureza psíquica, seria preciso falar de uma razão na esfera do sentimento e da vontade. O desafio, a esse respeito, é mostrar de que maneira as valorações ou atos valorativos fazem parte do sistema de estruturas fundamentais da consciência de crença. Se, do ponto e vista da fenomenologia, uma “teoria do conhecimento” é possível, também o serão uma “teoria da valoração” e uma “teoria da vontade”. A condição para tal fenomenologia é, tanto no caso da lógica quanto no da ética, “pôr fora de jogo” tudo aquilo que é da ordem psicológica e empírica, conduzindo a discussão para o âmbito puramente formal da razão. Estaria Husserl, nesse aspecto, próximo de Kant (cf. KANT, 2016, p. 44), para quem a representação das máximas como lei práticas universais implica uma vontade determinada apenas segundo a mera forma, e jamais segundo a matéria? Cumpre 86 Prof. Dr. Marcelo Fabri Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 86 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics mostrar que não. Na perspectiva fenomenológica, a esfera intelectiva e a esfera emotiva não devem ser marcadas por uma oposição, e sim por uma imbricação. Em vez de opor intelecto e vontade, importa alcançar os fundamentos teóricos que ultrapassam qualquer preocupação com o direcionamento prático do conhecimento. Ou seja, o desafio é fazer ver que os fundamentos teóricos, presentes em qualquer direcionamento prático, seja nas ciências particulares, seja nas situações concretas da vida, assentam em leis e teorias a priori, das quais dependem, igualmente, os juízos lógicos e os juízos éticos (cf. HUSSERL, 2009a, §21, p. 82-83). 1. IMPORTÂNCIA E LIMITES DA ÉTICA RACIONALISTA. A fim de mostrar que a esfera emotiva e a esfera intelectiva podem associar-se ou entrelaçar-se, sem prejuízo para um conceito amplo de razão, Husserl empreende um exame paciente e minucioso de alguns filósofos morais do século XVII. Na chamada Escola de Cambridge, pensadores como Cudworth (16171688) e Henry More (1614-1687) realizaram uma espécie de reativação do platonismo, opondo-se desta sorte ao tratamento empirista das questões morais. Para Husserl, o racionalismo dessa vertente é claro: propõe-se um paralelismo entre o ético e o matemático. Para Cudworth, as verdades matemáticas seriam independentes de nosso mundo subjetivo, elas seriam existentes em si mesmas. O mesmo deveria ocorrer com respeito aos princípios éticos, entendidos como algo imutável, não produzido por nossa mente. Tais princípios expressariam uma essencialidade imutável, dadas antes que o mundo e nós mesmos fôssemos criados (cf. HUSSERL, 2009b, §28, p. 127). Em sua luta contra o sensualismo nascente, Cudworth sublinha o papel do intelecto o qual, ao conhecer verdades matemáticas e ideais, pode ser compreendido como capacidade inata. Ou seja, o intelecto poderia apropriar-se daquilo que já possui de antemão, no caso, o supraempírico, o sobre-humano (cf. HUSSERL, 2009b, §28, p. 127). Mas, para tanto, é preciso recorrer a Deus como autoridade máxima a fim de se garantir as capacidades e conhecimentos inatos. Husserl denomina esse recurso de uma fuga para a teologia, ou ainda, pseudofundação da validade cognoscitiva (Ibid., p. 128). Ora, a fenomenologia recusa, por princípio, essa fuga, sustentando que as leis Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de Edmund Husserl. 87 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics eidéticas pertencem a um reino infinito, mas imanente, e que a autoridade, no caso, está na assim chamada subjetividade transcendental (Ibid., p. 129). Na perspectiva husserliana, na base de toda vida racional está o eu humano concreto, aquele que julga, reflete, percebe, etc. As mudanças reais desse eu empírico pressupõem o Eu puro, aquele que “compreende de maneira evidente” uma verdade fundada, entendida como “aquilo que é compreendido de maneira evidente” (HUSSERL, 2009b, p. 130). Qual seria, então, a importância de se retomar o pensamento de Cudworth? No fato de que ele põe em evidência, e de um modo notável, a ideia de uma legalidade ética paralelamente à legalidade matemática. Em sua batalha contra o naturalismo, o teólogo chama a atenção para a verdade supra-empírica do elemento matemático e do elemento ético. O ser humano compreende, desta sorte, que está ligado e subordinado a uma legalidade que independe de qualquer situação empírica e contingente (Ibid., p. 131). Tudo se passa como se a violação de uma lei ética fosse comparável à violação de uma lei matemática. Mas, no caso da ética, não há apenas um equívoco, mas uma situação de “pecado”. O valor da lei ética surge como um imperativo geral para a vontade de um sujeito humano qualquer. É forçoso, pois, distinguir (pensa Cudworth), na asserção ética com valor de lei, não apenas o juízo teórico geral ali presente, mas também e, principalmente, o imperativo. Mas Husserl coloca a questão incontornável: como fazer a passagem da pretensão teórica à obrigação, à prescrição? Como sustentar que de uma proposição do tipo “Quem age contra a consciência, age mal” decorre outra, a saber: “Cada qual aja segundo a sua consciência”? (HUSSERL, 2009b, p. 132). O que é preciso esclarecer, segundo Husserl, é a diferença entre razão judicativa (que se refere a predicados de verdade e falsidade) e razão prática (que se refere a predicados sobre o que é bom e o que é mau a partir do dever). Em outros termos: o que seria uma razão relacionada às motivações da vontade? Husserl se interessa, portanto, pela explicação do paralelismo entre verdades éticas e verdades matemáticas, indagando pelo significado da objetividade incondicionada do ético. O que significa, então, um julgar teórico referido às volições e às ações? A ética racionalista não tem como lutar contra sua inevitável queda numa espécie de intelectualismo que deixa 88 Prof. Dr. Marcelo Fabri Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 88 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics de lado o que mais importa: compreender a imbricação do teórico e do prático, da razão judicativa e da razão volitiva (HUSSERL, 2009b, p. 133). O problema do racionalismo ético está em sua equivocada interpretação da relação entre ética do entendimento e ética do sentimento. Ele simplesmente opõe uma à outra, abrindo desta maneira as portas para uma compreensão empirista e naturalista da ética (biologia, psicofísica, psicologia científica, por exemplo). Para mostrar essa possibilidade, Husserl retoma o pensamento de Clarke (1675-1729), para quem as vontades dos seres inteligentes devem ser dirigidas pelo “conhecimento das naturais e necessárias relações, adequações e proporções das coisas” (CLARKE, 2013, p. 51). Segundo Clarke, Deus implantou na natureza uma ordem pela qual o universo subsiste. Alterar essa ordem é absurdo. É ela que faz que as coisas sejam o que são. Agir com maldade seria como violar essa ordem, uma vez que “natureza e reta razão são, aqui, identificadas com toda seriedade; as verdades éticas tornam-se verdades simplesmente materiais” (HUSSERL, 2009b, §30, p. 138-139). Ou seja, agir não eticamente seria contrapor-se à natureza das coisas, fazendo que elas se tornem aquilo que não são. Mais uma vez, Husserl reage criticamente. Pois agir de modo não ético não significa nenhuma violação concernente à natureza das coisas. As leis éticas, consideradas fenomenologicamente, são como as leis lógicas puras, e não leis da natureza. “As possibilidades, enquanto possibilidades puras, totalmente desvinculadas do empírico, constituem o campo de um a priori” (HUSSERL, 2009b, §30, p. 142). Há uma infinidade de mundos possíveis, e o mundo factual é apenas o único real entre esses mundos. O que Husserl tem em mente? Sustentar categoricamente que a natureza não envolve nenhuma espiritualidade. Ela é extranormativa, extramoral. Somente a subjetividade humana, constituinte do mundo, poderia possuir como correlato um objetovalor. “A natureza é o reino da incompreensibilidade” (HUSSERL, 2009b, §22, p. 104). Ou seja, a natureza não pode receber conceitos que pertencem ao mundo espiritual (intencional, motivacional), tais como aqueles que dizem respeito ao bem e ao mal, ao belo e ao feio, etc. O comportamento prático dos seres humanos não poderia, assim, ser determinado pela ordem natural das coisas. Não poderia, igualmente, determinar-se por uma legislação formal, desvinculada do empírico. Husserl pretende reunir o que estava Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de Edmund Husserl. 89 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics separado: intelecto e sentimento, no interior da razão prática. Os racionalistas propunham que existe algo de justo objetivamente, acreditavam numa validade incondicional e supraindividual, ou seja, numa validade sem vínculo com a pessoa humana. Assim como na matemática se fala numa verdade impessoal e universal, em ética se propõe uma verdade moral independente do agente em questão. “Qualquer um” que tome uma decisão poderá fazê-lo erradamente ou corretamente, tal como num juízo matemático. Conclusão é inevitável: o juízo moral não pode ser orientado pelo sentir, pelo âmbito afetivo de uma pessoa (cf. HUSSERL, 2009b, §32, p. 145). 2. A ÉTICA DO SENTIMENTO E O PREJUÍZO NATURALISTA. Ora, tudo de passa de outro modo na ética do sentimento, caracterizada pela afirmação de que o comportamento prático dos seres humanos é determinado pelo sentir, pelo qual todos os conceitos éticos ganham realidade. Nomes tais como Shaftesbury (1671-1713), Hutcheson (1694-1746), Hume (1711-1776) são alguns dos representantes dessa ética. Seria o caso de se dizer que a esfera afetiva deve estar presente quando pensamos matematicamente ou cientificamente? Não, por certo. Mas o problema está justamente nisto: as verdades científicas e matemáticas não podem dizer o que deve ser na perspectiva moral. Um tratamento psicológico pode, então, enfrentar essa dificuldade. Vejamos o que diz Shaftesbury, o primeiro moralista clássico do sentimento, segundo Husserl. A virtude se relaciona sempre e necessariamente às afecções, inclinações e disposições da mente, de tal modo que o que importa é a concordância ou harmonia dessas vivências com o bem da espécie. Afirma Shaftesbury: “Retidão, integridade ou virtude são atributos de quem se mantém favoravelmente disposto a alimentar um sentimento reto e íntegro não só em relação a si próprio, mas também para com a sociedade e o público” (SHAFTESBURY, 2013, p. 22. Sublinhado pelo autor). Os sentimentos são, pois, comparáveis àquilo que, no mundo, é supostamente o mais “natural”, como a respiração e a digestão para a vida humana. O elemento que decide é a harmonia, a beleza afetiva ligada aos sentimentos. Nas palavras de Husserl: “Para Shaftesbury, a moral é uma estética das inclinações, o sentimento moral da aprovação é um caso particular do sentimento estético” (HUSSERL, 2009b, §33, p. 154. Sublinhado pelo autor). 90 Prof. Dr. Marcelo Fabri Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 90 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Ora, esse esforço para comparar o que acontece no mundo exterior com a vida psíquica do ser humano encontrou, em Hume, uma expressão notável em seu famoso Tratado da Natureza Humana (17391740). Nos corpos externos existe uma regularidade. A coesão das partes da matéria decorre de princípios naturais e necessários (cf. HUME, 2009, Livro 2, Parte 3, Seção 1, p. 438). O mesmo deve valer para a sociedade humana. “Existe um curso geral da natureza nas ações humanas” (Ibid., p. 439). Poder-se-ia objetar: nossa conduta é sempre irregular e incerta, não pode ser comparada ao que ocorre naturalmente. Hume insiste na aproximação. Ao julgarmos sobre objetos externos não devemos separar este ato do raciocínio sobre nossas ações. A união entre motivos e ações “têm a mesma constância que a união entre quaisquer operações naturais” (Ibid., p. 440). Dito de outro modo, a necessidade é algo comum às ações da matéria e às operações da mente. Mas não se deve esquecer que Hume argumenta como um cético. A ideia de causa e efeito só se forma em nós graças a uma crença. Sentimos a necessidade no que experimentamos no mundo exterior. Cremos, em seguida, que os atos da vontade decorrem da necessidade. Numa tal cadeia aglutinam-se causas naturais e ações voluntárias (cf. HUME, 2009, Livro 2, Parte 3, Seção 1, p. 442). Conclusão desconcertante: se de fato pudéssemos agir livremente, teríamos de suprimir a necessidade, ou seja, seria admitir que o ser livre vincula-se a um agir ao acaso (Ibid., Livro 2, Parte 3, Seção 2, p. 443). Ou seja, não podemos, segundo Hume, retirar das ações humanas a necessária conexão de causa e efeito (Ibid., p. 446). As ações nunca ocorrem por acaso. Elas obedecem a uma lógica, a um encadeamento causal (Ibid., p. 447). Husserl apenas corrigiria: elas obedecem a uma causalidade motivacional. Em vez da relação de causalidade entre coisas e homens enquanto realidades naturais, entra em jogo a relação de motivação entre pessoas e coisas, sendo que essas coisas não são as coisas da natureza existente em si –aquelas da ciência exata da natureza [...] – mas as coisas experimentadas, pensadas ou visadas [...] enquanto objetidades intencionais da consciência posicional (HUSSERL, 1996, §50, p. 266. Sublinhado pelo autor). Por que, então, Hume é importante para a fenomenologia? Por que ele foi fundo no debate acerca do conflito entre intelecto e sentimento no âmbito da moralidade. Se for verdade que ele conduziu o ceticismo às mais extremas e radicais Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de Edmund Husserl. 91 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics consequências (HUSSERL, 2009b, §36, p. 169), também se pode dizer que ele toca no elemento vital para a fenomenologia: o espírito é sempre afetado. O eu está sempre em meio a excitações de toda ordem. Pode, inclusive, ceder a elas ao ser tocado pela beleza, pelo valor, pelo sofrimento, etc. Mas o eu em sentido forte é o ego da liberdade, sempre às voltas com suas próprias tomadas de posição. O eu pode determinar-se a si mesmo. É a ideia de Eu que se encontra em questão. Eu que impõe a si mesmo a busca do bem de modo positivo e ativo. O Eu põe a si mesmo como Eu ético, que se decide por uma renovação de si próprio (cf. HUSSERL, 2009b, §34, p. 158). “O eu moral se conhece como causa sui da própria moralidade” (Ibid., p. 159). Ora, tudo isto não se encontra numa teoria naturalística do eu pessoal. Para Hume, a razão não pode fornecer alguma certeza sobre a existência dos corpos. É a imaginação que realiza esta tarefa (cf. HUME, 2009, Livro 1, Parte 4, Seção 2, p. 226). A mente, compreendida como feixe de diferentes percepções, unidas por certas relações, tende a fantasiar a existência contínua dos objetos sensíveis (Ibid., p. 242). Para Husserl, isso significa: é a imaginação que constrói as categorias que determinam não apenas a natureza, mas também o eu pessoal (cf. HUSSERL, 2009, §36, p. 169). Sendo assim, não apenas as categorias objetivas da ciência são ficções, mas também aquelas da objetividade prática e axiológica. A crítica ao naturalismo humiano é clara: “Não há uma doutrina de valor, nem uma ciência moral que sejam verdadeiramente objetivas. Também elas são ficções” (Ibid.). Assim, o que motiva o desejar e o querer não é a razão, mas o sentimento. Por quê? Porque, para Hume, o entendimento julga por demonstração (relações abstratas entre ideias) ou probabilidade (relações entre objetos ou experiência). A razão é apenas descoberta da verdade ou da falsidade. Já as paixões (como volições e ações) são realidades originais, completas em si mesmas (cf. HUME, 2009, Livro 3, Parte 1, seção 1, p. 498). Elas não são nem verdadeiras nem falsas. Não podem nem mesmo ser contrárias ou conformes à razão. As ações seriam condenáveis ou louváveis nelas mesmas, e não por concordarem com a razão (Ibid.). Há duas maneiras pelas quais a razão pode influenciar nossa conduta: a) despertando nossa paixão (informando-nos, por exemplo, sobre um objeto); b) dando meios para se exercer uma paixão (Ibid., p. 499). A distinção entre o bem e o mal não será, portanto, feita pela razão. Para haver tal distinção, já 92 Prof. Dr. Marcelo Fabri Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 92 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics deve ter ocorrido uma influência sobre nossas ações, coisa que a razão não poderia fazer (cf. HUME, 2009, Livro 3, Parte 1, seção 1, p. 501). Ou ainda: a razão, segundo Hume, não produz deveres e obrigações morais. Ela pode, apenas, encontrar esses deveres e essas obrigações. E quanto às virtudes e os vícios? Eles são percepções da mente, assim como os sons e as cores. A retidão e a desaprovação morais dependem de nossas percepções. “Nada pode ser mais real, ou nos interessar mais, que nossos próprios sentimentos de prazer e desprazer” (Ibid., p. 509). A moralidade diz respeito não ao juízo, mas ao sentimento. Assim: Ter o sentimento da virtude é simplesmente sentir uma satisfação de um determinado tipo pela contemplação de um caráter. O próprio sentimento (feeling) constitui nosso elogio ou admiração. Não vamos além disso (HUME, 2009, Livro 3, Parte 1, seção 2, p. 510-511). 3. IMPORTÂNCIA E LIMITES DA ÉTICA HUMEANA. Husserl estaria tão distante de Hume? Afinal, ambos admitem que toda valoração é um sentir (Gefühl). Eis uma palavra comum ao vocabulário de ambos (cf. BIANCHI, 1999, p. 71). Para os moralistas do sentimento, o entendimento apenas expõe um estado de coisas objetivo. Só o sentimento poderia aprovar ou desaprovar. O que faz a especificidade do juízo moral é, pois, o sentimento. Em Husserl, no entanto, está em jogo o entrelaçamento de entendimento e afetividade. Os atos afetivos são atos fundados, ou seja, eles pressupõem necessariamente os chamados atos intelectivos. Pertence à essência das funções afetivas estarem entrelaçadas às funções do entendimento para que possam constituir a objetividade axiológica (Wertobjektivität). Ora, perceber, representar, julgar, conjecturar, por exemplo, são atos que podem ser pensados sem nenhuma participação em nossos sentimentos, ou seja, são atos sem valorações, atos puramente intelectivos (cf. HUSSERL, 2009a, p. 334) 14 . Como se fundam os atos afetivos? Até mesmo o prazer, explica Husserl, por ser intencional, visa a alguma coisa. Seja qual for o objeto do prazer, tal objeto terá de ser representado, mesmo que seja pela imaginação. Eis por que “na esfera afetiva (esfera da razão prática), não podemos absolutamente, assim parece, Trata-se da Parte 3 das Lições (19081909), sobre a relação entre razão teórica e razão axiológica. 93 Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de Edmund Husserl. 14 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fazer abstração do entendimento enquanto faculdade objetivante [...]. Um simples sentimento, um prazer ou um desprazer, um ato afetivo em geral, não realiza objetivação” (Ibid., p. 334-335. Sublinhado pelo autor). Ora, para Hume o juízo de valor apenas exerce o que o sentimento decidiu. Husserl, por sua vez, pergunta: o que enuncia este juízo? Na objetivação de um valor, como funcionam a afetividade e o entendimento? Trata-se de um problema que somente uma teoria do conhecimento axiológica poderá enfrentar (cf. Ibid., p. 336). Husserl censura Hume por ter restringido a razão à dimensão cognoscitiva, vinculada ao falso e ao verdadeiro, mas não ao sentimento e à vontade que, no caso, se restringem ao puramente subjetivo, ou seja, a um fato de natureza psíquica incapaz de ser o lugar original da norma (cf. HUSSERL, 2009b, §36, p.173. Dito de outro modo, o discurso da razão diz respeito à demonstração, à conclusão, à refutação, e isto o torna vazio com respeito ao sentimento. Para Hume, com efeito, a razão sozinha não pode produzir uma ação. Não pode, igualmente, nem gerar uma volição nem impedi-la. “Nada pode se opor ao impulso da paixão, ou retardá-lo, senão um impulso contrário” (HUME, 2009, Livro 2, Parte 3, Seção 3, p. 450). A razão se torna, assim, serva das paixões. Comentando Hume, Deleuze afirma: “O espírito não é sujeito, ele é sujeitado” (DELEUZE, 1980, p. 15). De nossa parte, perguntamos: estaria Husserl tão longe de Hume assim? As críticas ao autor do Tratado são muitas, mas nem por isso desconstroem a “verdade” do ensinamento desta obra. Se o espírito é um aglomerado de átomos psíquicos, a psique deve ser construída a partir desses elementos inanimados, ou seja, o eu pensante decorre dessa construção. Como se vê, a intencionalidade, tal como descrita pela fenomenologia, fica esquecida. Na perspectiva husserliana, esse “positivismo” que caracteriza o pensar humiano faz da lei de associação um análogo às leis da natureza. A ordem espiritual e motivacional fica esquecida por este naturalismo (cf. HUSSERL, 2009b, §36, p.175). No entanto, há uma força, uma contribuição fundamental que o Tratado transmite à fenomenologia. Mesmo em sua interpretação errônea da intencionalidade afetiva e volitiva, há, nesta obra, uma análise notável das vivências enquanto vivências, em seu fluxo específico, matéria prima de uma reflexão fenomenológica. Ou seja, Hume “descobre” que o sentimento não é algo que conduz ao erro, pura e simplesmente. Nesse sentido, ele permite colocar a 94 Prof. Dr. Marcelo Fabri Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 94 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics pergunta que tanto inquietou Husserl: ao valorar as coisas pelo sentimento, essas objetidades são alcançadas? Se o sentimento não é um ato do intelecto, não é conhecimento de objetos, como dizer que há uma relação com uma objetividade? Ora, Hume permite considerar a intencionalidade do sentimento a partir dela mesma, sem que para tal ela seja medida por um conhecimento objetivo. Numa palavra, a fenomenologia irá explorar, justamente, o que fora aberto por Hume (cf. HUSSERL, 2009 b, § 36, p.176). O erro deste filósofo foi ter confiado na maneira naturalística de explicação da intencionalidade dos sentimentos. Ora, as percepções estão entrelaçadas umas com as outras graças à associação. A partir daí surgem novas intencionalidades. Mas, na perspectiva husserliana a associação não deve ser explicada como um tipo de atração e de coesão, mas sim como causalidade motivacional. Em vez de uma passagem mecânica de uma vivência a outra, deve-se considerar a forma motivacional (no interior da qual já opera a intencionalidade) que preside a essa passagem. “Uma remissão associativa é unicamente uma modalidade da intencionalidade” (HUSSERL, 2009b, §36, p.176). A esfera afetiva é parte da vida intencional como um todo, e é por isso que a racionalidade prática pode ser aproximada da atividade do intelecto. “Em todo o sentir encontrase um valorar [...]. Este pode ser um valorar correto ou incorreto, um valorar que se adapta ou não se adapta ao objeto, ou ainda: pode ser um valorar que põe um valor falso ou verdadeiro” (Ibid., p. 177. Sublinhado pelo autor). A intenção posicional está presente em todo valorar. Trata-se de uma lei de essência. No entanto, é preciso reconhecer que a analogia proposta é complexa, pois é preciso explicar como se dá a “verdade” cognoscitiva de uma asserção axiológica e prática. Ora, essa verdade não habita no domínio do conhecimento, mas sim naquele do sentimento e da vontade. É preciso reconhecer que a razão prática e valorativa recebe do conhecimento lógico apenas a forma da asserção teórica e do pensamento. Ou seja, a razão prática e valorativa existe antes do pensamento numa espécie de objetivação pré-teórica (cf. HUSSERL, 2009b, §37, p.181). Hume faz da causalidade motivacional uma simples aparência. A vida psíquica seria uma engrenagem de átomos psíquicos submetida a uma causalidade natural. O Eu emerge dessa engrenagem (cf. HUSSERL, 2009b, §37, p. 182). Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de Edmund Husserl. 95 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Voltemos ao Tratado. “A mente é um espetáculo de teatro, onde diversas percepções fazem sucessivamente sua aparição” (HUME, 2009, Livro 1, Parte 4, Seção 6, p. 285). A ideia de Eu vem de uma espécie de ficção. Assim como atribuímos uma identidade à sucessão de objetos que existiriam fora de nós, criamos a ficção da existência contínua das percepções de nossos sentidos. Nós eliminamos a descontinuidade ficticiamente. Encobrindo essas variações, chegamos à ideia de Eu (Ibid., p. 287). Husserl reage dizendo que se trata do espírito se beneficiando de si mesmo para mostrar que não há nenhum espírito (cf. HUSSERL, 2009b, §37, p. 183). O eu seria um ser inanimado composto de elementos regulados por leis naturais (cf. HUSSERL, 2009b, §40, p. 192). Mas esta tese, embora equivocada, ensina algo precioso: a reação intelectualista ou racionalista às leis naturalistas é insuficiente. A vida espiritual não implica a negação pura e simples da fundação psicológico-empirista da moral. Por quê? Sobretudo porque, para dizer fenomenologicamente, é em suas múltiplas formações que a razão deve ser elucidada e clarificada. Para Husserl o eu é o centro das afecções e ações, não como um agente passivo, mas sob a forma de um “poder”. Descrever o eu é descrever um “poder pensar”, um “poder fazer”, um “poder agir”, etc. Os diferentes atos de um eu não são apenas dados empíricos do mundo espaço-temporal. Curiosamente, são os próprios empiristas que fazem ver essa verdade! Os racionalistas não se dão conta daquilo que Hume faz ver de modo notável: “a infinita variedade das formações de consciência” (cf. HUSSERL, 2009b, §40, p. 193). Para concluir, digamos que a leitura husserliana de Hume traz duas questões importantes para a uma discussão fenomenológica da razão prática, sobretudo no que diz respeito a um acerto de contas com a ética kantiana. Primeiramente, a distância em relação a Kant. À tese segundo a qual “o essencial de todo o valor moral das ações consiste em a lei moral determinar imediatamente a vontade” (KANT, 2016, p. 102) sem a cooperação dos impulsos sensíveis e independentemente das inclinações. Ora, na perspectiva husserliana, pensar a vontade independentemente das condições empíricas, ou numa regulação puramente formal do valorar e do querer, sem o pressuposto da matéria desse valorar e desse querer, seria algo absurdo (cf. HUSSERL, 2009a, p. 228). Em segundo lugar, a inevitável proximidade com Kant. Se o âmbito da afetividade pode ser fenomenologicamente explicitado a 96 Prof. Dr. Marcelo Fabri Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 96 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics partir de seu entrelaçamento aos atos de julgar teóricos, o eu que se descobre implicado na racionalidade também por suas valorações e seu querer é aquele que se “descobriu” às voltas com o imperativo: “Queira e aja racionalmente”. Mais do que correção e validade objetiva, é preciso compreender o que seja um “querer racional” (cf. HUSSERL, 2009a, p. 244). A discussão lógico-teórica da esfera afetiva deve conduzir ao problema “mais central da ética: o problema do imperativo categórico” (Ibid., p. 225). Um imperativo que leva em conta a matéria do valorar e do querer pode ser chamado categórico? Eis uma questão que ficará para outro trabalho. REFERÊNCIAS BIANCHI, I.A.- Etica husserliana. Studo sui manoscritti inediti degli anni 1920-1934, Milano: Franco Angeli, 1999. CLARKE, S.- Um discurso sobre religião natural. In: Filosofia Moral Britânica. Textos do século XVIII. Trad. Álvaro Cabral (2ª edição), Campinas : UNICAMP, 2013, pp. 41-85. DELEUZE, G.- Empirisme et subjectivité, Paris : PUF, 1980. HUME, D.- Tratado da Natureza Humana. Trad. Débora Danowski (2ª edição), São Paulo: UNESP, 2009. HUSSERL, E.- Idées directrices pour une phénoménologie et une philosophie phénoménologiques pures (Livre second), Trad. Éliane Escoubas, Paris : PUF, 1996. HUSSERL, E.- Leçons sur l’éthique et la téorie de la valeur (1908-1914). Trad. P. Ducat, P. Lang et C. Lobo, Paris: PUF, 2009 a. HUSSERL, E.- Introduzione all’etica. Trad. Nicola Zippel, Roma-Bari: Laterza, 2009 b. 97 Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de investigação Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de investigação Language and time in structuration of life-world: a research project Prof. Dr. Hélio Salles Gentil Universidade São Judas Tadeu – USJT 15 RESUMO O trabalho apresenta uma perspectiva de investigação das estruturas do Lebenswelt, em particular de suas dimensões temporal e linguística. Faz isto a partir das características desse mundo destacadas por E. Husserl em sua obra A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental e das relações essenciais estabelecidas por Paul Ricœur entre a experiência humana do tempo e as narrativas em sua obra Temps et Récit. Enfatiza-se a interpretação das narrativas de ficção como via de acesso privilegiada à compreensão dessas relações e de seus modos de participação na estruturação de um mundo, considerando-se a elucidação da natureza e lugar das narrativas históricas e de ficção na existência dos homens levada a cabo por Ricœur em sua hermenêutica. PALAVRAS CHAVE Lebenswelt; Tempo; Narrativa; Husserl; Ricœur. ABSTRACT This paper aims to present an way to inquiry the structures of the life-world, specifically on their temporal and linguistic dimensions. It’s done from the remarkable characteristics of this world appointed by Edmund Husserl in his work The crisis of European sciences and the transcendental phenomenology, and from the essential relationships between human time experience and the narratives established by Paul Ricœur in his work Time and Narrative. The interpretation of fictional narratives is indicate as a special way to access and to understand 15 Email: prof.heliogentil@usjt.br 98 Prof. Dr. Hélio Salles Gentil Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 98 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics this relationships and these participation in the structuration of a world, with foundation in the elucidation of nature and place that historic and fictional narratives has in human existence, how established by Ricœur in his hermeneutics. KEYWORDS Life-world; Time; Narrative; Husserl; Ricœur. INTRODUÇÃO O que se apresenta aqui é muito mais a formulação de uma pergunta e de um possível caminho para respondê-la do que uma resposta ou uma posição definida. De que maneira a linguagem e a temporalidade participam na estruturação do Lebenswelt? Antes, este “mundo da vida” tem uma estrutura passível de descrição fenomenológica? São a linguagem e a temporalidade dimensões constitutivas dessa estrutura? De que maneira? De que Lebenswelt estamos falando? É o mundo tal como nos aparece na experiência cotidiana, na atitude natural? Pensando na “matematização galileana do mundo”, perguntando por seu sentido e buscando a reconstrução do pensamento que a motivou, Husserl escreve no §9 de A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental, obra daqui em diante referida como Krisis: “O mundo é pré-cientificamente dado, na experiência sensível cotidiana, de modo subjetivorelativo. Cada um de nós tem as suas aparições, e estas valem para cada um como aquilo que efetivamente é. Interiorizamos há muito, nas nossas relações recíprocas, esta discrepância entre as nossas validades de ser. Não julgamos por isso, todavia, que haja muitos mundos. Cremos necessariamente no mundo, com as mesmas coisas que, contudo, nos aparecem diversamente.” (HUSSERL, 2012, p. 17, <20>) Laurent Perreau (2010) destaca a primeira frase desse trecho, (“o mundo é dado pré-cientificamente na experiência sensível quotidiana de modo subjetivo-relativo”) como sendo uma definição de Husserl para o mundo da vida que, ainda que apareça de forma “bastante súbita”, é “notável” por sua concisão. Estão aí, segundo ele, as “quatro determinações conceituais maiores” do mundo da vida: é pré-científico, é intuitivo, é o entorno cotidiano (Unwelt) e é subjetivo-relativo. 99 Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de investigação Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Distingue então que de uma perspectiva ontológica, este mundo da vida seria a totalidade dos entes (étants), enquanto que de uma perspectiva transcendental seria a “estrutura pré-dada da experiência”, como “solo” e como “horizonte” dessa experiência, para destacar que: “Sob esse título Husserl quis pensar a “vida” intencional do sujeito desde sua relação originária ao fenômeno do mundo. O “mundo da vida” é, assim, esse mundo que não cessamos de fazer nosso, segundo modalidades de apropriação práticas e teóricas bastante diversas. Mais precisamente, ele representa uma esfera de experiência pressuposta por toda atividade teórica e prática: o “mundo da vida” é, ao mesmo tempo, o solo pré-dado e o horizonte persistente de nossa experiência subjetiva.” (PERREAU, 2010, p.251). Trata-se, portanto, de acordo com estas expressões de Perreau bastante esclarecedoras, de pensar a “relação originária” com “esse mundo que não cessamos de fazer nosso”, “uma esfera de experiência pressuposta por toda atividade teórica e prática”, “o solo pré-dado e o horizonte persistente de nossa experiência subjetiva”. No §39 da Krisis Husserl pergunta pela possibilidade de tematizar esse mundo da vida, pressuposto experiência: e pré-dado a toda Como pode, então, o ser pré-dado do mundo da vida tornar-se um tema autônomo e universal? Manifestamente, apenas por uma alteração total da atitude natural, uma alteração na qual não mais vivemos como até aqui como homens na existência natural na efetivação constante da validade do mundo pré-dado, mas, pelo contrário, abstemo-nos permanentemente dessa efetivação. Só assim podemos alcançar o tema transformado, de uma nova espécie, “pré-doação do mundo como tal”, o mundo pura e totalmente, de modo exclusivo, como aquele que e tal como na vida da nossa consciência tem sentido e validade de ser, e os adquire em figuras sempre novas. (HUSSERL, 2012, p. 120-121, <151>) E continua: Só assim podemos estudar o que é o mundo como solo de validade da vida natural, em tudo o que nele se propõe e dispõe, e, correlativamente, o que em última instância é a vida natural e a sua subjetividade, ou seja, puramente como a subjetividade aí funciona como efetivadora de validade. A vida que realiza a validade do mundo, validade própria da vida natural do mundo, não se deixa estudar na atitude desta vida 100 Prof. Dr. Hélio Salles Gentil Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 100 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics natural do mundo. Ela necessita, por isso, de uma alteração total, de uma epoché universal, de uma espécie completamente única. 16 (HUSSERL, 2012, p.121, <151>) Um entorno cotidiano, précientífico, intuitivo e subjetivorelativo, solo e horizonte da experiência, pré-dado, não seria próprio a uma única vida, tão singular quanto essa vida? Pergunta Blumenberg, esse leitor sui generis de Husserl: Se cada um tem e vive sua vida, por que razão não deveria ter também cada um seu mundo da vida? [...] Sob que pressupostos é possível falar, então, de uma “teoria DO mundo da vida”, postulá-la? (BLUMMENBERG, 2013, p. 11). Sem considerar a própria noção de vida, para cuja dificuldade de determinação conceitual também chama a atenção longamente Blumenberg (2013, p. 11-27), seria este um mundo comum ou compartilhado como uma crença – como escreveu Husserl no trecho que citamos acima: “cremos necessariamente no mundo, com as mesmas coisas que, contudo, O anexo XX a este §39 (Husserl, 2012, p.389393, <468> a <472>) vai desenvolver as características e as condições dessa époche assim tão específica. 16 nos aparecem diversamente”? Não se trata, em Husserl, ainda segundo Blumenberg, de uma “redução eidética à essência dos mundos da vida fácticos”, como se poderia ou se deveria esperar a partir do método fenomenológico (2013, p. 11). De que se trata então? Considerando a Krisis, escreve François de Gandt que “o mundo da vida é, de início, o mundo da experiência, aquele onde vem se colocar todas as evidências que podem justificar um enunciado ou uma teoria, é o lugar de toda fundamentação” (2008, p. 106). Tratase daquele “solo último de validação na experiência e na evidência”, no que mais interessa a Husserl. No entanto, outras características desse mundo são reconhecidas por Husserl, em particular nos parágrafos 34 e 44 dessa obra, assim sintetizadas por De Gandt: [...] o mundo da vida é (a) cotidiano, por oposição ao mundo do estudioso (savant), é o mundo ao qual o estudioso retorna uma vez realizado o seu trabalho; (b) comum a todos os homens e não partilhado por alguns especialistas; (c) subjetivo e relativo, por oposição à objetividade pretendida do mundo da ciência; (d) em movimento permanente, por oposição ao mundo fixo e perfeitamente determinado da ciência; (e) colorido de 101 Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de investigação Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics subjetividade, de presença humana, por oposição a um mundo de coisas ou de objetos físicos; (f) efetivamente experimentado, por oposição ao mundo dito objetivo, que na realidade não é experimentado e não o pode ser; (2008, p. 106) (letras entre parênteses colocadas por nós, no lugar dos traços – usados por De Gandt) Como é possível conciliar com estas características a ideia de que este mundo, o mundo da vida, seja o “solo último de validação na experiência e na evidência”? As coisas nos aparecem diversamente – e o mundo? Como ele nos aparece? Na atitude natural ele é o solo e o horizonte de todas as práticas e de todas as teorias, ele é prévio a estas, ainda que não tematizado explicitamente. Quase que não nos aparece, nesse sentido, na medida em que não é tematizado, mas é “solo” e “horizonte” de toda experiência, prática e teórica. Ao final do longo §9 da Krisis Husserl escreve: Pertence mesmo às dificuldades maiores de um modo de pensar <60> que procura fazer valer por toda parte a “intuição originária”, ou seja, o mundo da vida pré e extra-científico, que compreende em si toda a vida real (inclusive a vida do pensar científico) e a alimenta enquanto fonte das formações de sentido elaboradas – uma das dificuldades desse modo de pensar, digo, é o dever de escolher a maneira de falar ingênua da vida, mas também de adaptá-la como um instrumento ao que requer a evidência das demonstrações. (HUSSERL, 2012, p.47, <59-60>) E continua, com ênfase: Revelar-se-á progressivamente e, por fim, inteiramente, que o único caminho possível para ultrapassar a ingenuidade filosófica que reside na “cientificidade” da filosofia objetivista tradicional é o correto retorno à simplicidade ingênua da vida [Naivität], mas numa reflexão que se eleva acima dela, revelação que abrirá as portas à nova dimensão já repetidamente anunciada.” (idem, ibdem) Assim, retomando estes pontos, podemos dizer que, em suma, fazer valer a “intuição originária” equivale aqui a fazer valer esse “mundo da vida pré e extra-científico”, “fonte” originária de todo conhecimento ou sentido mais elaborado, onde Husserl vai buscar o fundamento último que parece faltar às ciências, retornando “à simplicidade ingênua da vida”. Tendo inclusive o “dever de escolher a maneira de falar ingênua da vida”, adaptando-a às exigências de uma demonstração ou mostração de evidência. 102 Prof. Dr. Hélio Salles Gentil Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 102 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Mas a consciência mais ingênua, aquela ingenuidade da experiência primordial, esta que está na relação primeira como o mundo, não é desde sempre formada histórica e socialmente, sensível e linguisticamente formatada? Suspender a fé, a convicção no mundo que se lhe apresenta assim estruturado, não tomar como existente tal aparecer do mundo, nos coloca diante do quê? A visada prática, empírica, sobre o mundo, suspendida, desconectada, nos deixa com a visada de quê? De um mundo de vida não prática, ou de uma relação prática entre uma consciência e um mundo que lhe é correlato? Mas o mundo da vida considerado fenomenologicamente está nessa correlação, na apreensão da relação, e não em um mundo supostamente existente em si mesmo. Então, quando pensamos no mundo da vida pensamos aqui nessa correlação entre uma consciência que visa e um objeto visado, correlação desde sempre estruturada históricatemporalmente e linguisticamente. Mas pensar assim seria adotar uma atitude natural, seria uma visada empírica e não transcendental? O solo e o horizonte de uma experiência subjetiva, experiência originária no terreno da vida, não estão no território próprio da vida, esse pressuposto de todo trabalho teóricocientífico, solo de que partem as construções teóricas, ponto de partida e seu horizonte, ponto de referência de todas as atividades práticas e teóricas? O mundo da vida é da vida, e não há vida de uma consciência pura ou de pura consciência, a vida é a consciência no mundo e na história, numa rede de relações concretas que são apropriadas ou reapropriadas pela consciência reflexiva, seja em sua realização mundana, seja em sua realização fenomenológica, apropriação efetuada pelo próprio sujeito, em sua posição natural ou transcendental. Referindo-se a esta obra dos últimos anos de Husserl, a Krisis, Jocelyn Benoist assim nomeia o que considera sua preocupação ou “nervo” central: “Trata-se de reencontrar as condições sob as quais a ciência pode fazer sentido para o homem, e, para este fim, reconectar os princípios dessa mesma ciência com as intuições básicas do “mundo-davida”, esse mundo no qual se desdobra a atividade prático-histórica do homem, tendo como fundo um universo social partilhado.” (BENOIST, 1998, p. 210) Inúmeras são as dificuldades desse empreendimento, desde a fundamentação das ciências em uma evidência intuitiva presente na relação originária do homem com o mundo, evidência e relação de que elas se afastaram muito em sua constituição e desenvolvimento, até o 103 Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de investigação Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics caráter enigmático desse próprio mundo, como já o indica Housset no título de sua obra, Husserl et l’énigme du monde (HOUSSET, 2000). Pergunta Zahavi, depois de reafirmar o entendimento do mundo da vida como “ponto de referência” e “fundamento de sentido” da teoria científica que o “transcendeu” em sua idealização e matematização: “Mas o que é exatamente o mundo da vida? Infelizmente, não é possível dar uma resposta simples a essa pergunta. O conceito husserliano do mundo da vida é plurissignificativo e o significado exato da palavra depende do respectivo contexto.” (ZAHAVI, 2015, p. 186) Como se sabe, são também múltiplas e controversas as interpretações dadas a esse conceito pelos leitores de Husserl, divergindo, por exemplo, sobre o lugar da consciência pura, da intersubjetividade, da linguagem e da história em sua constituição, com posições que são também relativas aos modos de compreender ou definir o que seja a própria perspectiva fenomenológica e seus “legítimos” desdobramentos – o próprio Husserl, como também se sabe, estava constantemente retomando e revisando até seus princípios fundamentais – como o faz nessa última obra, outra “introdução à fenomenologia”, que é a Krisis. (Cf. ZAHAVI, 2015; RICŒUR, 1986; WALDENFELS, 1997, entre outros) O conceito de Lebenswelt permanece, segundo Perreau, “um dos mais equívocos da fenomenologia” (2010, p. 252), constituindo-se para o próprio Husserl no “enigma dos enigmas” (apud PERREAU, 2010, p. 252), envolvendo uma multiplicidade de questões conexas, com destaque para as que dizem respeito à fundamentação das ciências (KERN, 2008, p.223ss) e à estrutura da experiência vivida que lhes serve de base, questões sobre esse mundo que é simultaneamente solo e horizonte dessa experiência (PERREAU, 2010, p. 257), relativo à subjetividade e à intersubjetividade, ao mesmo tempo “particular” e “para todos” (BENOIST, 1998, p. 214, p. 216-217). “Difícil compreender – escreve Waldenfels (1997, p. 45) – como o mundo da vida deveria adotar ao mesmo tempo formas históricas concretas e oferecer um fundamento universal mais além da história”. Benoist nomeia isto como uma “hesitação” em Husserl: Há muito tempo já se notou que tudo se passa como se Husserl, em sua determinação do Lebenswelt, hesitasse entre dois polos: de um lado, um polo-intuitivo-sensível, tido como mais ou menos portador de universalidade; de outro, um polo histórico-cultural, em si 104 Prof. Dr. Hélio Salles Gentil Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 104 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics mesmo relativo. Trata-se precisamente da teoria do “núcleo intuitivo”, que circularia de uma a outra formação histórico-social determinada. Não se duvida que Husserl assinale uma dupla dimensão ao problema: por um lado, o Lebenswelt enquanto mundo sensível, mundo de minha experiência natural, e, por outro, como mundo determinado por meu pertencimento social e histórico. (BENOIST, 1998, p. 218) acontecimentos, e, por outro, mas intimamente relacionado a este, com o desenho de uma identidade para os sujeitos que vivem e agem nesse mundo, sujeitos individuais ou coletivos, uma identidade narrativa que dá conta da dimensão temporal de sua existência, dá conta das transformações inevitáveis – as “figuras sempre novas” a que nos referimos antes com Husserl – que acompanham a passagem do tempo, escapando à alternativa entre a Sem pretender resolver de todo permanência imutável de uma esse enigma do mundo da vida, a essência qualquer e a dissolução de ideia que aqui se propõe pretende qualquer identidade numa contribuir para seu esclarecimento, transformação sem limites. dando continuidade às investigações Essas configurações ganham do “enxerto hermenêutico da expressão materializada não só nas fenomenologia” levado a cabo por narrativas que os próprios sujeitos se Paul Ricœur, enxerto que parece fazem na vida prática, no desenrolar permitir considerar entrelaçados os de sua existência – tecendo-as com os fios que aqui aparecem tão separados, elementos recebidos da linguagem e o sensível e o histórico-cultural, o da cultura de que participam, subjetivo e o intersubjetivo, o incorporando a elas suas ações, os particular e o universal. Isso fica mais acontecimentos de seu tempo e suas evidente na consideração do transformações, compartilhando-as entrelaçamento entre a experiência do com seus contemporâneos em trocas tempo e as narrativas que Ricœur cotidianas de pequenas histórias – elabora profundamente em Temps et mas também nas narrativas de ficção Récit, mostrando como a primeira é que são produzidas como obras articulada e trazida à linguagem pelas literárias, onde se materializam em segundas, que não só apreendem essa forma fixada como texto de contorno experiência como também a definido e se prestam sobremaneira configuram, num trabalho que para a investigação de sua estrutura e culmina com, por um lado, o desenho dos seus efeitos, do modo como de um mundo, um horizonte de participam da estruturação de um significações para as ações e os mundo e como exercem sua mediação 105 Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de investigação Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics da dimensão temporal da existência. Como mostrou Ricœur – e examinamos e discutimos longamente em Para uma poética da modernidade (GENTIL, 2004) e desenvolvemos em outros momentos (GENTIL, 2009; 2011a ;2011b; 2011c; 2015) – as narrativas de ficção estruturadas como obras propõem um mundo, um mundo possível de ser habitado pelo leitor, por seus possíveis mais próprios. Cada narrativa, ao acompanhar o desenrolar de uma ação e suas consequências, não só articula esse desdobramento temporal próprio às ações como também o faz, e só o pode fazer, num horizonte de significações próprio, horizonte que configura o seu mundo, o mundo desenhado por aquele texto, por aquele conjunto de palavras composto daquela maneira específica, naquela ordem, com aquele começo e com aquele fim, o “mundo do texto”. Embora este seja distinto do “mundo da ação”, mantém com ele relações de mediação e modelo, num sentido de modelo muito próximo do modelo com que trabalham as ciências contemporâneas, construção idealizada de uma estrutura definida, que Ricœur explorou na sua investigação do enunciado metafórico e seu modo de fazer referência ao mundo, examinando, entre outros, o trabalho clássico de Max Black, Models and Metaphors (RICŒUR, 1975). Na distinção entre as narrativas históricas, que buscam narrar o que aconteceu no passado, e as narrativas de ficção, que buscam narrar o que poderia acontecer, destaca-se o caráter de laboratório da literatura de ficção 17 , o caráter de “variações imaginativas” próprio das narrativas de ficção. Elas investigam, nesse sentido, possibilidades de ação em situações diversas, com diferentes personagens, com valores e consequências as mais diversas, construindo nesse trabalho de imaginação e linguagem algo próximo dos modelos das ciências, ainda que sem a preocupação de corresponder diretamente a alguma realidade exterior, propondo por si mesmas um mundo a ser habitado. “Laboratório e festa dos possíveis”, na expressão de Ernest Bloch em O Princípio Esperança, que, além disso, começa com a consideração de uma dimensão interessante do mundo da vida cotidiana, os “sonhos” diurnos, pequenos desejos configurados em sonhos ou fantasias (Cf. tradução brasileira do vol.1 por Nélio Schneider – Rio de Janeiro, EDUERJ/Contraponto, 2005). Põe-se como um desafio interessante incorporar à descrição do mundo da vida estes sonhos, encontrar-lhes o devido lugar, levando em consideração a revolução que significou, para a compreensão do humano, o lugar dado por Freud aos sonhos noturnos e às fantasias. 106 17 Prof. Dr. Hélio Salles Gentil Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 106 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Todo um mundo é aí configurado, ainda que não explicitado como tal, mas que se faz presente como horizonte de significações que dá algum sentido àquelas ações e que cabe à interpretação desvelar, explicitar. Diferentemente do horizonte do mundo da vida em sua abertura ao infinito (HOUSSET, 2000, p.17), este se apresenta a partir da estrutura do texto, delimitado por ele e, portanto mais passível de ser apreendido de modo inteligível, como modelo, como construção ideal.18 Num certo sentido – a ser investigado, tomado aqui como hipótese e ponto de partida –, a leitura de narrativas de ficção parece nos dar uma posição peculiar, de ruptura com a atitude natural e de alargamento de nossa visão, posição que Housset (2000, p. 19-20) atribui à redução fenomenológica, posição de poder olhar para a totalidade do mundo proposto por aquela narrativa sem estar na atitude natural das personagens que habitam aquele mundo e vivem no interior de seu horizonte, com seu horizonte, sem se dar conta dele, sem tomá-lo como objeto de pensamento. Da posição de leitor pode-se olhar para o próprio olhar da atitude natural daquele mundo e para seu horizonte. A leitura que Ricœur (1984) empreende de três grandes romances – Mrs Dalloway, de Virginia Woolf, A montanha mágica de Thomas Mann, Em busca do tempo perdido de Marcel Proust – deixa evidente o imenso valor em abordá-los como variações imaginativas, como “experiências fictícias” do tempo que revelam 18 Um ganho não desprezível, que muitas dimensões da temporalidade Ricœur vê também na atenção não só humana, inacessíveis por outras vias: ao domínio objetivado da linguagem as escavações e os subterrâneos do mas também a todo o conhecimento instante que o alargam ao infinito, no produzido pelas inúmeras ciências da romance de Woolf, as diferentes linguagem – tornam-se as construções experiências de eternidade no de linguísticas não só mediações Mann, o tempo perdido, a morte e a significativas para alcançar dimensões escrita no de Proust, só para indicar da existência de difícil se não os caminhos dessa exploração. impossível acesso por outros caminhos, Mas essas narrativas de ficção, como oferecem, essas ciências da na concepção de Ricœur, não se linguagem, um paradigma diferente do esgotam nessa proposição de mundos das ciências naturais, paradigma que imaginários, e embora não façam ele considera mais apropriado às referência direta ao mundo da ação, ciências ditas do espírito, humanas ou mantém com este uma relação sociais. Cf. RICŒUR, 1986; GAGNEBIN, importante, com ao menos duas 2006; GENTIL, 2014. 107 Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de investigação Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics dimensões: fazem referência a ele de modo indireto e participam de sua constituição, de sua configuração, pelo lugar de mediação que ocupam entre um momento e outro, entre o mundo da ação do autor, dito préfigurado por referência ao mundo configurado na obra, mundo em que veio à luz pelo trabalho do autor que aí vive e age, e o mundo refigurado, mundo da ação do leitor, que traz o mundo projetado pelo texto para a existência pela leitura e ganha, através desta, um mundo da ação transformado, refigurado pela fusão de horizontes entre o mundo do texto e seu mundo da ação. Esse processo, esclarecido por Ricœur como sendo o de uma mimesis desdobrada em três momentos (RICŒUR, 1983; GENTIL 2004), dá um lugar aos textos de ficção na constituição do mundo humano – “mundo da ação” em Ricœur, “mundo da vida” em Husserl – e revela o caráter desde sempre figurado desse mundo: figurado em linguagem e pela linguagem, ainda que esta não seja a totalidade desse mundo, articulado de alguma maneira em uma estrutura de significações, de que as narrativas de ficção são exemplo e modelo exploratório. Mesmo que se possa colocar questões a essa compreensão do mundo da vida – enfatizando, por exemplo, a dimensão da intuição sensível em detrimento das mediações simbólicas, ou entendendo ser a experiência temporal muda e sem sentido prévio e não uma experiência já estruturada simbolicamente mesmo antes de ser trazida à linguagem em forma narrativa – pode-se tomar como ponto de partida essa maneira de compreender as narrativas de ficção e suas relações com o mundo da ação e, através da análise e interpretação crítica de narrativas, com o exame de todos os fundamentos e pressupostos envolvidos nessa perspectiva de interpretação, avaliar o quanto as estruturas desses mundos imaginários construídos linguisticamente – nessas narrativas em que se experimentam variações para as ações, dando-lhes algum sentido em seu desdobramento temporal – podem revelar das estruturas do mundo da vida, em seu desdobramento temporal e articulação linguística, como expressões de sua sedimentação e de suas possibilidades. Eis a hipótese central que este trabalho apresenta: a investigação de narrativas de ficção específicas, considerando sua estrutura e sua função mimética tais como compreendidas por Paul Ricœur, com seu lugar de mediação entre dois momentos ou dois mundos da ação, contribuirá para elucidar as dimensões do tempo e da linguagem próprias ao mundo da vida. Entende108 Prof. Dr. Hélio Salles Gentil Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 108 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics se que a crítica dos fundamentos de tal perspectiva em seu exercício, com a discussão da validade, dos limites e do alcance dessa maneira de compreender as narrativas, ganhará fôlego e contraste iluminador com o exame simultâneo das investigações de Husserl sobre a crise das ciências e o lugar que aí ocupa o mundo da vida (KERN, 2008; HUSSERL, 2012; BENOIST, 1998). CONCLUSÕES A investigação de outros tipos de narrativa a partir destas pode ser o desdobramento de um trabalho interdisciplinar de vasto alcance: como a construção do conhecimento numa linguagem científica que escapa à linguagem comum, como destacou Hannah Arendt, pode vir a participar da mundo da vida? Como os sujeitos – individual ou coletivamente – articulam suas experiências na narrativa de suas ações e dos acontecimentos que ocorrem em suas vidas, na narrativa de sua história de vida ou da história da coletividade de que fazem parte? Como essas narrativas constituem o horizonte de seu mundo da vida e que implicações podem ter para sua compreensão desse horizonte, de si mesmo e de suas ações? Os trabalhos de Richard Kearney (2002; 2003) sobre as histórias e suas implicações para a compreensão da alteridade revelam a potencialidade dessa perspectiva. Evidentemente, a consideração dessas narrativas pode levar a colocar em questão e refazer a estrutura básica de compreensão de seu lugar na existência estabelecida por Ricœur e que foi aqui tomada como referência organizadora. Parece-nos que se abre assim um caminho muito interessante para a investigação do “enigma” do Lebenswelt. REFERÊNCIAS BENOIST, J. “O mundo para todos: universalidade e Lebenswelt no último Husserl”. Discurso, n.29, p.209-238, São Paulo, 1998. BENOIST, J. (dir.) Husserl (Les Cahiers d’Histoire de la Philosophie). Paris: Cerf, 2008. De GRANDT, F. “Husserl et la science du monde de l avie” in Majolino, C. et Gandt, F. (ed.) Lectures de la Krisis de Husserl, p.103122. Paris : Vrin, 2008. GAGNEBIN, J. M. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. GENTIL, H. S. Para uma poética da modernidade: a arte do romance em Temps et Récit de Paul Ricœur. São Paulo: Loyola, 2004. GENTIL, H. 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Submetido: 04 de agosto 2017 Aceito: 15 de agosto 2017 111 Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de investigação Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Intuição categorial e evidência, verdade e ser Categorical intuition and evidence, truth and being Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Universidade de Brasília – UNB 19 RESUMO Este artigo se propõe a pensar a fenomenologia dos fenômenos: intuição categorial, evidência, verdade e ser, através da interpretação de textos de Husserl e Heidegger. Num primeiro momento mostra a intuição em sua maior pregnância, a percepção, como experiência da evidência da presença do ente mesmo como autodatidade originária. Num segundo momento, partindo da regionalidade e da universalidade da evidência na vida intencional da consciência, trata-se da razão, de seu ordenamento para a evidência e de sua correlação com a verdade e o ser. Num terceiro momento se realiza uma interpretação fenomenológica da doutrina tradicional da verdade como adequação e se intenta mostrar que esta concepção de verdade é derivada e se deixa reconduzir à verdade como manifestação do ser do ente. Num quarto momento discorre-se a respeito de dois significados de ser: ser no significado de serverdadeiro e ser na função da cópula. Por último, tenta-se acenar para a evidência do ser e para o relacionamento humano em face dela. PALAVRAS CHAVE Intuição categorial; Evidência; Verdade; Ser. ABSTRACT This article proposes to think the phenomenology of the phenomena: categorial intuition, evidence, truth and being, through the interpretation of texts of Husserl and Heidegger. In a first moment shows intuition at his highest pregnance, the perception, as an experience of the evidence of the presence of the being itself as original self-giveness. In a second moment, starting of the regionality and universality of the evidence on the intentional life of the consciousness, one talks about the reason, of its be ordered to evidence and of its correlation with the truth and with the being. In a third moment is made an phenomenological interpretation of the doctrine about truth as adequacy and attempts to show that this conception of truth is derived and leaves be led to the truth as manifestation of the being. In a fourth moment there is discussion about two meanings of being: being in the meaning of be 19 Email: maffernandes69@gmail.com 112 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 112 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics true and being in the function of copula. At last, seek to wave to the evidence of being and to the human relationship with her. KEYWORDS Categorial intuition; Evidence; Truth; Being. INTRODUÇÃO O escopo da consideração aqui intentada a respeito da intuição categorial é mostrar sua conexão com o sentido do ser como verdade. Tratase de um passo incipiente, porém, necessário, para se divisar melhor o horizonte da questão da verdade do ser e do ser (essência) da verdade. Esta consideração, assim, tem como proposta deixar-se encaminhar na via de pensamento aberta por Heidegger, a partir da leitura de Brentano e de Aristóteles 20 . Não obstante, a Cf. Heidegger, Martin. Unterwegs zur Sprache. Stuttgart: Neske, 1997, p. 9293 – A caminho da linguagem. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2003, p. 76. Heidegger declara que o livro de Franz Brentano, resultante de sua dissertação, “Sobre os múltiplos significados do ente segundo Aristóteles” (Von der Manigfachen Bedeutung des Seienden nach Aristoteles), publicado em 1862, foi sua guia através da filosofia grega nos anos de ginásio. Este livro, evoca de novo a pergunta: o que é o ente? tí tò ón?). Assim fazendo, recorda o que repetidas vezes diz o Estagirita:  Intuição categorial e evidência, verdade e ser 20 proposta deste artigo não consiste em realizar uma reconstrução historiográfica deste encaminhamento de pensamento. O que se propõe é, antes, re-pensar o pensado deste pensamento, em busca de um tratamento da coisa mesma em questão. 1. INTUIÇÃO, PERCEPÇÃO E EVIDÊNCIA DA PRESENÇA DO ENTE MESMO A verdade está numa íntima conexão com a evidência e esta, por (Tò ón légetai pollachōs) – o ente vem à fala de múltiplos modos (Cf. Metafísica, 1). Brentano toma como ponto de partida que o ser é um homônimo e que a multiplicidade dos seus significados se ordena na quadrúplice distinção do ser por acidente, do ser como verdadeiro, do ser das categorias e do ser em potência e ato. O ser como verdadeiro tem como falso o não-ser como falso. Cf. Aristóteles, Metafísica, E 2, 1026 a 34 (Livro V, c. 7). Cf. Brentano, Franz. Sui molteplici significati dell’essere secondo Aristotele. Milano: Vita e Pensiero, 1995, p. 13-15. 113 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics sua vez, com a intuição. A intuição se realiza de modo mais perfeito como percepção. Esta é a intuição mais pregnante. Embora na recordação, na imaginação, na mediação de uma imagem, também se dê intuição, nestes atos, esta não alcança a pregnância que alcança na percepção. A percepção doa o ente em sua presença viva e imediata. O que na percepção acontece não é um presentificar [Vergegenwärtigen], mas é, mais do que isto, um atualizar, um tornar presente [Gegenwärtigen], ou seja, um presentar [Präsentieren] a coisa mesma, tal como ela se dá em carne e osso, em pessoa, em sua realidade viva, doando-se imediatamente [leibhaftig] 21 . A percepção, respectivamente, aquilo que ela doa, mostra a coisa mesma como ela mesma. Esta mostração da coisa mesma, nela mesma e como ela mesma (Ausweisung), é o acontecer do fenômeno (o mostrar-se a si mesmo a partir de si mesmo) em sua doação originária22. Husserl, E. Logische Untersuchungen II/2: Elemente einer phänomenologischen Aufklärung der Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p. 116. 22 Cf. a definição formal de fenômeno no § 7 de Ser e Tempo. Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). 21 A percepção está, pois, enraizada na experiência e compreensão do ser como vigência (Anwesenheit), mais precisamente, como presença (Präsenz) 23 . A percepção é um comportamento intencional. Este é um relacionamento significativo e interpretativo com o que nos vem ao encontro no mundo. Na percepção, o que nos vem ao encontro no mundo recebe o caráter de ser presencial24. Percepção é, pois, um relacionamento de ser com o ser enquanto presença. Ela inclui não só a apreensão do ente enquanto esta ou aquela coisa – por exemplo, na percepção natural, isto é, cotidiana, como esta ou aquela coisa de uso (um giz, um quadro, etc.). Ela inclui também uma apreensão do ser do ente enquanto presença. Na percepção, o ente se doa em seu ser e este ser tem o caráter presencial. Uma coisa, porém, é o ente presente; outra coisa, a presença do ente, que é o caráter em que o ser se doa, na percepção. O comportamento perceptivo, em sua intencionalidade, transcende, assim, a apreensão do ente, na direção do ser. Ele tem um Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 67. 23 Cf. Husserl, Edmund. Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, 1929, p. 191. 24 Idem, p. 192. 114 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 114 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics caráter presencial, isto é, ele é um relacionamento de nosso ser com o ser enquanto presença. O caráter presencial do comportamento perceptivo se mostra à medida que o comportamento do perceber com o perceptivo tem o sentido de um presentar (Präsentieren)25. O presentar, por sua vez, aparece como um atualizar, no sentido de um tornar presente (Gegenwärtigen). O atualizar deixa o vigente (Anwesendes) vir ao encontro. Ao presentar enquanto atualizar corresponde, correlativamente, a vigência (Anwesenheit) no sentido da presença (Präsenz) de um ente que nos vem ao encontro no mundo. Este deixar vir ao encontro tem o caráter de um descobrir (entdecken) ou abrir (erschliessen), enfim, de um desvelar (enthüllen). Este simples atualizar (schlichtes Gegenwärtigen) de alguma coisa na sua presença imediata é o suporte de todos os nossos relacionamentos com o ente e, respectivamente, com o seu ser. Ele é tão fundamental e simples que nem sequer o tematizamos. Nós vivemos constantemente neste atualizar, que é, ao mesmo tempo, um contínuo atualizar do próprio atualizar 26 . Atualizar quer dizer: vigendo em uma atualidade deixar vir ao encontro o ente em sua presença, Idem, ibidem. Ibidem. Intuição categorial e evidência, verdade e ser 25 26 respectivamente, em sua atualidade. Isso mostra o caráter temporal deste relacionamento de ser com o ser27. Ser e tempo guardam, aqui, uma íntima pertencência. A esta íntima pertencência se junta também a verdade, se considerarmos que o deixar vir ao encontro tem o caráter de um desvelar, ou seja, de um descobrir ou de um abrir. Assim, ser e tempo e verdade estão em íntima pertencência28. A percepção, assim como o que ela dá, se mostra (weist aus). Ela, em sua pregnância intuitiva, dá o ente, a coisa mesma em seu ser. Husserl caracterizou o modo de ser da evidência. Evidência é autodoação (Selbstgebung) 29 . Evidência é, na verdade, o desempenho intencional da autodoação (intentionale Leistung der Selbstgebung). Ela é a figura privilegiada da intencionalidade, quer dizer, da consciência de alguma coisa, uma vez que aquilo que vem ao encontro e se torna objeto desta consciência, se oferece como o que o apreendido nele mesmo e como ele mesmo (Selbsterfassten), como o visto nele mesmo e como ele mesmo (Selbstgesehenen). Evidência é um caráter da consciência em seu serIdem, p. 193. Aqui, porém, não podemos entrar na questão de como se dá esta íntima pertencência. 29 Idem, p. 140. 115 27 28 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics junto (Sein-bei) daquilo de que ela é consciência. Ela é consciência originária (urtümliche Bewusstsein): “eu apreendo ele mesmo, originalmente, em contraste, por exemplo, com o apreender numa imagem, ou com toda outra intenção prévia, intuitiva ou vazia” 30 . Evidência tem diversos modos de originalidade. O modo originário de autodoação, porém, é a percepção. “O ser-junto-disso (Dabei-sein) é para mim como percipiente, em termos de consciência, meu agora-ser-junto (Jetzt-dabei-sein): eu mesmo junto do percebido mesmo”31. Outro modo de originalidade é o do claro relembramento (klare Wiedererinnerung), que é uma consciência reprodutiva, consciência do objeto mesmo, só que este se doa como o que foi percebido no passado. A evidência é, pois, uma vidência original da coisa mesma. Ela é uma vidência clara e penetrante (Einsicht) do que se autodoa. No entanto, a evidência não precisa se tornar temática. De início e na maior parte das vezes nós simplesmente vivemos nela e, nela vivendo, apreendemos a autodoação das coisas mesmas. “Somente vendo, eu posso sacar o que neste ver pré-jaz propriamente”32. Idem, p 141. Ibidem. 32 Idem, p. 142. No entanto, outra coisa é, tematicamente, realizar um explicitar vidente (sehendes Explizieren) da essência própria de tal ver (des Eigenwesens solchen Sehens)33. É o que buscamos, ao nos ocuparmos com uma fenomenologia da evidência. 2. RAZÃO E EVIDÊNCIA: A CORRELAÇÃO DA RAZÃO COM A VERDADE E O SER A evidência tem uma função universal na vida intencional da consciência. Seu desempenho se refere a tudo quanto vem ao encontro da consciência no modo da autodoação. Os conceitos de intencionalidade como tal e de evidência, estão, pois, essencialmente conectados 34 . Intencionalidade, em termos de consciência, aparece, com efeito, basicamente, como a vivência de um ter a sabença de alguma coisa. O saber dessa sabença da consciência, porém, varia de acordo como o modo do relacionamento da consciência com aquilo de que ela tem consciência. Uma certa consciência de evidência, pois, se insere sempre na intencionalidade. “Assim a evidência é um modo universal da intencionalidade, que se refere ao 30 31 33 34 Ibidem. Idem, p. 143. 116 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 116 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics todo da vida da consciência” 35 . A análise fenomenológica da vida da consciência em seu caráter de intencionalidade, com efeito, traz à evidência a universalidade da evidência. Heidegger aponta para essa universalidade: “Evidência é uma função universal, a princípio, dos atos que doam objetos, mais amplamente, de todos os atos (evidência do querer, do desejo, evidência do amar e esperar). Ela não é restrita a enunciados, predicações, juízos”36. O referimento intencional apresenta-se como estrutura essencial pré-formada do ato. Cada estrutura de referimento intencional em sua tipicidade tem como correlato um tipo de objetualidade que se perfila de modo cada vez diverso. Este referimento é o que faz a vivência ser vivência desta objetualidade e não de uma outra, ou ainda, é o que faz esta objetualidade ser objetualidade desta vivência e não de uma outra. Assim, toda percepção é o perceber de um percebido, como toda imaginação é o imaginar de um imaginado e assim por diante...; e, vice-versa, todo percebido é o percebido de um Ibidem. Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 68. Intuição categorial e evidência, verdade e ser 35 36 perceber e todo imaginado o é de um imaginar. Além disso, cada tipo de referimento constitui, igualmente, um tipo de ter-em-mira alguma coisa. Correspondentemente, cada vez segundo o tipo do ter-em-mira, se dá um tipo de evidência diverso. A evidência da percepção sensorial é diversa, com efeito, da evidência dos sentimentos, por exemplo, do amor, do ódio, que, por sua vez, é diversa da evidência dos atos volitivos (querer, desejar), que é ainda diversa dos atos racionais (como, por exemplo, julgar, concluir, demonstrar, teorizar, conhecer cientificamente alguma coisa). Não há, pois, apenas evidências racionais, mas também evidências afetivas, volitivas, etc. Assim, “categorias da objetualidade e categorias da evidência são correlatas. A cada modo fundamental de objetualidades (...) pertence um modo fundamental de ‘experiência’ da evidência”37. Cada região coisal tem o seu modo próprio de dar-se à evidência, o seu modo de tornar-se acessível, e seu modo de deixar-se tematizar. Correspondentemente, cada mostração teorética (theoretische Ausweisung) terá o seu próprio rigor, de acordo com o tipo de evidência que aquela região coisal oferece e o Husserl, Edmund. Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, 1929, p. 144. 117 37 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics tipo de acesso que ela requer. Assim, o acesso aos fenômenos naturais, praticado pelas ciências da natureza, é diverso do acesso dos fenômenos humanos enquanto tais, praticado pelas ciências humanas (ciências do espírito ou histórico-sociais). Assim também, nas ciências positivas, o rigor da mostração teorética não será o mesmo, por exemplo, na física, na antropologia, teologia; e, do mesmo modo, o rigor da filosofia, ciência ontológica, não será o mesmo que o rigor das ciências ôntico-positivas, objetivas. Assim, há diversas regiões e categorias de objetos. “Pois, se nós, com a característica da evidência como autodoação (ou, falando-se do lado do sujeito, de autoposse) de um objeto, designamos uma universalidade referida a todas objetualidades em igual modo, então, com isso, não se intenciona que a estrutura da evidência por toda a parte seja igual” 38 . Temos, assim, a regionalidade da evidência, junto com a sua universalidade. A intuição e a evidência são as condições fundamentais do que chamamos de razão. Intuir é, simplesmente, ver. Este ver doador originário, diz Husserl em Ideias I (§§ 136-145), é base da Vernunft (Razão), quer da razão teórica, quer da 38 Ibidem. axiológica, quer da prática 39 . Com efeito, o que está em questão em todo o comportamento intencional racional é a possibilidade de captação, de apreensão, do ser, quer no sentido do ser real, quer no sentido do ser verdadeiro. É com base nesta doação, em que o doado se dá em sua autodatidade, ou melhor, com base na sua recepção e percepção, que o comportamento intencional racional pode fundamentar e demonstrar, por meio de um mostrar, que se dá no modo do atestar e documentar, aquilo que fora presumido. Sem o preenchimento de um sentido, possibilitado por atos perceptivos, de visão, o pensar permanece não só vazio, mas também cego, sem visão, sem evidência. A evidência é ato, a saber, ato de identificação. Melhor ainda: ela é o preenchimento identificador, em que vêm à coincidência, o presumido e o intuído. Há a evidência negativa e há evidência positiva. A evidência negativa é a evidência de uma ilusão. “A possibilidade da ilusão Cf. Husserl, Edmund. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª Ed.), p. 282-285 (Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006, p. 303-306). 118 39 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 118 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics (Täuschung) pertence à evidência da experiência e não suspende o seu caráter fundamental e seu préstimo, embora o evidente dar-se conta da ilusão suspenda a experiência em questão ou a referida evidência mesma” 40 . Assim, a suspensão ou a dissolução de uma ilusão, que vem à expressão na forma de um “agora eu vejo que isso é uma ilusão”, é ela mesma uma espécie de evidência, em que vem à luz a nulidade do experimentado e a supressão de sua evidência empírica 41 . A evidência negativa, portanto, realiza a negação de uma nulidade. Numa evidência não negativa, isto é, positiva, o intuído se mostra como o mesmo que o presumido. É justamente este idêntico que é apreendido na evidência. Na evidência da intuição mais pregnante, que é a percepção, dá-se a realização ou o cumprimento de uma presunção, ou, dito de outro modo, o preenchimento ou plenificação de um intencionar vazio. Aquilo que era apenas presumido ou intencionado de modo vazio ganha, então, plenitude pela intuição. Alcança-se, assim, o conhecimento de que aquilo que era presumido tinha um fundamento concreto, seguro, confiável. Tem-se, assim, a vidência Husserl, Edmund. Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, 1929, p. 139. 41 Idem, p. 140. Intuição categorial e evidência, verdade e ser 40 clara e penetrante, isto é, a intelecção de que o presumir é fundado na coisa mesma em questão42. Há diversos tipos de evidência. Há evidência sensível, do individual. Há evidência de objetos irreais, ideais, em sentido amplo 43 . Podemos falar, com efeito, de evidência de realidades e de evidência de idealidades. Há, por exemplo, a idealidade do específico, há idealidade de um juízo, a idealidade de uma sinfonia, etc.44 Há atos categoriais. Tais atos se caracterizam por serem fundados em atos de percepção sensorial, por serem intuitivos, isto é, doadores de objetualidades, enfim, por, neles, a objetualidade dos atos simples serem doadas concomitantemente 45 . A percepção sensorial, assim, serve de base para a percepção categorial. Estende-se, assim, a amplitude do conceito de percepção e de intuição, uma vez que há, também no nível do Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 67. 43 Husserl, Edmund. Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, 1929, p. 139. 44 Idem, p. 147. 45 Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 85. 119 42 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics categorial, uma doação de objetualidade nela mesma. “A identidade de um ideal e, com isso, de sua objetualidade, é algo para se ‘ver’ diretamente, em igual originariedade (e caso se queira apreender a palavra com um sentido ampliado correspondente: para se experimentar diretamente) como a identidade de um costumeiro objeto de experiência, por exemplo, de um objeto da experiência natural ou de um tal da experiência imanente de quaisquer dados psíquicos” 46 . Assim, pode-se ampliar o âmbito da experiência, da percepção, da intuição, do sensível para o categorial. Há uma percepção, por exemplo, de uma melodia. A mesma melodia é repetidamente realizada em várias execuções e apresentações. Igualmente, um mesmo romance é lido repetidamente em várias leituras. A realização da leitura de um romance ou da execução de uma melodia é cada vez única, individual, e se dá, a cada vez, hic et nunc (aqui e agora)47. Mas cada realização é uma realização do mesmo: leitura do mesmo romance, execução da mesma melodia. O mesmo acontece com um juízo. Cada pronunciamento do juízo é Husserl, Edmund. Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, 1929, p. 139. 47 Idem p. 18. individual, mas, em cada repetição, é o mesmo sentido que é trazido à expressão. Cada expressão linguística é individual, mas o significado é o mesmo 48 . Em repetidas experiências se realiza a consciência do mesmo (Bewustsein vom Demselben), respectivamente, dá-se, a cada vez, uma experiência (em sentido amplo) de uma mesmidade (Selbigkeit). A identificabilidade (Identifizierbarkeit) caraterística de todo objeto da experiência pode ser constatada também nestes casos. Assim como há a evidente autoapreensão e autoposse do individual, na experiência tomada em seu sentido estrito, usual e pregnante, há também uma autoapreensão e uma autoposse do objeto irreal49. Cada tipo de ato visa um tipo de objetualidade, ou melhor, tem em mira o ente num determinado como (Wie) de sua datidade (Gegebenheit). Os atos categoriais, fundados, dão acesso a um novo tipo de objetualidade que não é acessível aos atos simples, fundantes. “Este novo acessibilizar do objeto simplesmente doado designa-se de modo 46 48 49 Idem, p. 20. Idem, p. 139. 120 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 120 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics correlativo aos atos como expressar” (Ausdrücken)50. A expressão é o modo de acessibilizar novas objetualidades, que vêm à luz e se constituem, por meio dos atos categoriais. Há dois tipos de atos de intuição categorial: atos de síntese e atos de ideação. Os atos de síntese produzem o “estado de coisas” (Sachverhalt), que é de natureza ideal. Os atos de ideação produzem a intuição do universal. Com outras palavras, atos de síntese tornam objetivos os estados de coisa que são enunciados na enunciação. Os atos de ideação doam um objeto universal, a saber, a espécie. A ideação é a intuição do universal (Anschauung des Allgemeinen). Ela é doadora de uma nova objetualidade: a ideia (A palavra latina “species” é tradução de , o aspecto de alguma coisa, como alguma coisa se deixa e se faz ver, naquilo que ela, a priori, é. O ato da intuição universal doa aquilo que por primeiro e de modo simples se deixa ver nas coisas. As objetualidades que são doadas na intuição do universal são doadas atualmente e, nesta doação, acontece realmente um ver: o universal é doado mesmo e nós o captamos, nós o visamos e o vemos, Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 84. Intuição categorial e evidência, verdade e ser 50 claro, com um olhar inteligente, com uma visão intelectiva (Einsicht) 51 . É graças ao ato de ideação que nós podemos ver não somente os vermelhos individuais, mas também o vermelho como espécie: Na medida em que nós intencionamos (meinen) o vermelho in specie, se nos manifesta um objeto vermelho, e neste sentido nós dirigimos o olhar para ele (que nós, todavia, não intencionamos). Ao mesmo tempo neste objeto se apresenta o momento “vermelho” e do mesmo modo também aqui nós podemos de novo dizer que dirigimos o olhar para ele. Mas também este momento, este traço particular individualmente determinado, nós não o intencionamos… Enquanto se manifesta o objeto vermelho e, nele, o momento “vermelho” salientado, nós intencionamos muito mais o único e idêntico vermelho, e nós o intencionamos em um modo de consciência de novo gênero, através do qual justamente se nos torna objetual a espécie em vez do individual 52 . Há diversos graus Husserl, E. Logische Untersuchungen II/2: Elemente einer phänomenologischen Aufklärung der Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p. 162. 52 Husserl, Edmund. Logische Untersuchungen II/1: Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der 121 51 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics de evidência, isto é, de certeza e de segurança contra a ilusão. Há a ideia da evidência apodítica, evidência pura e absoluta, como vidência penetrante e clara de uma conjuntura essencial (Wesenverhalte). Há, em segundo lugar, a ideia da evidência assertórica, que é a evidência de coisas, fatos, estados de coisa “individuais”. Podemos tomar como exemplo de evidência apodítica a que se dá num juízo necessário (de razão) do tipo aritmético: “2 + 1 = 1 + 2”. Temos, aqui, um ato de síntese, uma síntese judicativa, que dá acesso a um estado de coisas que é apreendido de modo originário 53 . Realiza-se, aqui, uma consciência dóxica posicional que doa adequadamente o seu objeto (o estado de coisas), que exclui o “ser de outro modo” (o que ela dá acesso não pode ser Erkenntnis. Tübingen : Max Niemeyer, 1993, p. 106-107. 53 Husserl, Edmund. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª Ed.), p. 282 (Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006, p. 304). diversamente). Trata-se de um ato da “razão”54. Como exemplo da evidência assertórica podemos apresentar a que se dá num juízo de fato como quando eu digo: “em Brasília há muitos Ipês floridos no inverno”. Este é um exemplo tirado da esfera da experiência. Dá-se expressão a um juízo verdadeiro de fato, não necessário. Enquanto no exemplo da evidência apodítica trata-se de um dado eidético, adequado, de um estado-deessência, tornado acessível pela razão, no exemplo da evidência assertórica trata-se de uma “individualidade” (o apercebimento de um estado de coisas individual), tornada acessível através da 55 experiência . Assim, a evidência apodítica se refere, pois, a verdades de razão (verités de raison), para usar uma expressão de Leibniz, enquanto a evidência assertórica se refere a verdades de fato (verités de fait). A vidência penetrante e clara, intelectiva (Einsicht), se dá no caso da evidência apodítica, não no caso da evidência assertórica. Num caso, temos a apreensão de objetualidades 54 55 Idem, p. 285 (Idem, p. 306). Ibidem. 122 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 122 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ideais; noutro, de objetualidades reais. Isso remete também à diferença entre evidência adequada e evidência inadequada. A manifestação (Erscheinung) viva, em carne e osso, de uma coisa (Ding), é sempre unilateral, dada em sombreamentos e nuances (Abschattungen). Ela é também sempre incompleta, pois sempre deixa facetas indeterminadas. É neste sentido que a evidência das coisas reais, que se tornam acessíveis na experiência, é inadequada. Daí segue que “nenhuma posição racional assentada sobre uma tal aparição doadora inadequada pode ser ‘definitiva’, ‘insuperável’” 56 . As posições podem ser, sempre de novo, “riscadas”. Novas percepções podem sugerir motivos racionais mais fortes para novas posições, que tenham maior peso, propiciando, assim, um aumento fenomenológico positivo em sua força motivadora57. Já evidências adequadas não podem ser corroboradas ou enfraquecidas e nem apresentam gradação de peso58. Há, em terceiro lugar, a evidência que compõe as duas evidências anteriores, ou seja, a intelecção da necessidade do serassim (Sosein) de um estado de coisas individual a partir de fundamentos Idem, p. 286-287 (Idem, p. 307-308). Idem, p. 288 (Idem, p. 308). 58 Ibidem (Idem, p. 309). Intuição categorial e evidência, verdade e ser 56 57 essenciais subjacentes ao “individual posto”59. A evidência é o ato de identificação do presumido com o intuído. Nela, vem à luz que o presumido e o intuído são o mesmo. Na evidência enquanto ato de identificação atos signitivos coincidem com atos em que se doam objetualidades, sejam estas factuais, reais, individuais, sejam essenciais, ideais, específicas. O fenômeno da evidência nos conduz ao fenômeno da verdade. Há uma conexão entre razão, evidência e verdade60. A fenomenologia da razão Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 68. Husserl fala, no § 137 de Ideias I, do “conhecimento da necessidade do ser assim de uma individualidade posta”: Husserl, Edmund. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª Ed.), p. 285 (Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006, p. 306) (grifo de Husserl). 60 O segundo capítulo da quarta secção de Ideias I e a terceira das Meditações Cartesianas oferecem bastante elementos para pensar esta conexão. Aqui devemos nos contentar com apenas umas indicações incipientes, 123 59 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics tem como ponto de partida o seu caráter intencional, isto é, o caráter de correlação entre razão (como polo noético) e “ser verdadeiro” ou “ser efetivo” (como polo noemático). Temos, assim, uma correlação entre “ser racionalmente atestável” (vernünftig ausweisbar sein) e ser verdadeiro (wahrhaft sein) ou ser efetivo (wirklich sein). Como já foi aludido, a evidência é condição fundamental do que chamamos de razão. O que está em questão na razão, como modo de consciência (consciência racional), é um ver originariamente doador. Um enunciado é racional quando o que nele é dito se deixa fundar (begründen), mostrar e atestar (ausweisen), ou seja, quando se deixa ver (sehen) diretamente ou evidenciar (einsehen) mediatamente 61 . O que se dá como correlato a esta percepção evidente é o ser, no sentido de ser verdadeiro ou ser efetivo. A deixando para outro momento um desenvolvimento mais aprofundado desta questão. 61 Cf. Husserl, Edmund. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª Ed.), p. 282 (Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006, p. 303). consciência racional é uma consciência que vê, uma consciência que vive em atos perceptivos, em atos de visão; é uma consciência intuitiva, isto é, receptiva de uma doação originária, onde o que se doa se oferece em si mesmo em sua presença, no modo do ser efetivo62. É, neste sentido, uma consciência tética, posicional: ela vive numa posição de ser. À consciência racional pertence, a cada vez, uma modalidade dóxica (de crença) que é correlata a determinada modalidade de ser 63 . Assim, enquanto perceptiva, a consciência racional apreende de modo certo um ser efetivo. Temos, assim, a razão originária (Urvernunft) que, na modalidade dóxica da crença originária (Urglauben), se relaciona como a “verdade” (Wahrheit)64. Mas o modo da crença originária pode se modificar em um modo de crença derivada e ter como correlato outros modos de ser, a saber, o ser possível, o ser verossímil, o ser problemático, o ser duvidoso 65 . Temos, assim, a consciência da possibilidade na suposição, da verossimilhança na Cf. Idem, p. 282-285 (Idem, p. 303306). 63 Cf. Idem, p. 214-215 (Idem, p. 235236). 64 Cf. Idem, p. 290 (Idem, p. 310). 65 Cf. Idem, p. 214 (Idem, p. 235). 124 62 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 124 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics assinalar etc. Se nos falta a evidência da doxa originária, da certeza da crença, então uma modalidade dóxica pode ser evidente, digamos, para o conteúdo de sentido “S é p”, por exemplo a conjectura “S poderia ser p”. Essa evidência modal é manifestamente equivalente e está necessariamente ligada a uma evidência dóxica originária de sentido modificado, isto é, à evidência ou verdade: “É conjecturável (verossímil) que S é p”; mas, por outro lado, também está ligada à verdade: “Algo fala a favor de que S é p”; e ainda: “Algo fala a favor de que S p é verdadeiro” etc. Em tudo isso se mostram nexos eidéticos que precisam ser investigados fenomenologicamente em sua 68 origem . conjectura, do problemático na problematização, do duvidoso na dúvida 66 . As modificações das modalidades de ser são, pois, correlatas às modificações das modalidades dóxicas (de crença). As modalidades de ser são noemáticas, enquanto as modalidades dóxicas são noéticas. A modalidade dóxica originária – o ser certo – tem como correlato o ser efetivo 67 . A razão originária, com sua crença originária, se realiza, vive, pois, numa evidência originária. A razão originária tem, então, como correlato, numa possibilidade ideal, a “verdade”. Verdade é manifestamente o correlato racional perfeito da doxa originária, da certeza da crença. As expressões “Uma proposição de doxa originária, por exemplo, uma proposição de enunciado, é verdadeira” e “O caráter racional perfeito convém à crença, ao juízo correspondente” – são correlatos equivalentes. Naturalmente, não se está falando aqui de fato de um vivido ou daquele que julga, embora seja eideticamente incontestável que a verdade só possa ser dada atualmente, numa consciência de evidência atual, o mesmo também ocorrendo com a verdade dessa incontestabilidade, com a equivalência que se acaba de Deste modo, dá-se a correlação intencional (noético-noemática) de razão e verdade. Na terceira das Meditações Cartesianas, Husserl investiga a correlação intencional, em sua problemática constitutiva, entre razão e verdade, respectivamente, ser efetivo, efetividade (Wirklichkeit), bem como entre desrazão (Unvernunft) e não-verdade (falsidade) e não-ser (efetivo). A razão aparece, eideticamente, como forma estrutural, essencial e universal, da Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006, p. 310-311. 125 68 Cf. Idem, p. 217-218 (Idem, p. 238239). 67 Cf. Idem, p. 216 (Idem, p. 237). Intuição categorial e evidência, verdade e ser 66 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics “subjetividade transcendental em geral” que remete para possibilidades de confirmação (Bewährung), as quais remetem, por seu turno, em última instância, para o tornar evidente (Evident-machen) e para o ter-naevidência (Evident-haben)69. Evidência, como já se indicou, quer dizer autoaparição, ou seja, o apresentar-sea-si-próprio, o dar-se-a-si-próprio de uma coisa, de um estado-de-coisas, de uma generalidade, de um valor, etc. Evidência é, portanto, um modo de autoaparição, autoapresentação, autodoação, no modo definitivo da coisa mesma aí (Selbst da), do intuível imediatamente (unmittelbar anschaulich), do originalmente dado (originaliter gegeben)70. Ela é, também como já se indicou, um “fenômeno originário universal da vida intencional” (ein allgemeines Urphänomen des intentionalen Lebens) 71 ; é um “traço fundamental da vida intencional qualquer que seja ela” (Grundzug des intentionalen Lebens überhaupt) 72 . Na perspectiva da fenomenologia Cf. Husserl, Edmund. Cartesianische Meditationen und Pariser Vortäge. Haag: Martinus Nijhoff, 1950, p. 92 (Meditações Cartesianas e Conferências de Paris. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 94). 70 Idem, p. 92-93 (Idem, p. 94-95). 71 Idem, p. 92 (Idem, p. 94). 72 Idem, p. 93 (Idem, p. 95). 69 transcendental isso significa: “Cada consciência em geral ou tem já o caráter da evidência (ou seja, é autodoadora a respeito do seu objeto intencional) ou está, por essência, ordenada à passagem para a autodoação, por conseguinte, à passagem para sínteses de confirmação, que pertencem, por essência, ao domínio do eu posso”73. Quando a consciência-de-algo tem o seu visado se autodoando direta e imediatamente, então ela está na experiência da evidência. Mas a consciência pode visar algo de modo vazio, apenas a modo de uma presunção (ato de presumir). Então ela precisa de uma confirmação (Bewährung): se aquilo que ela presume é e é tal como ela presume ou não. No entanto, no processo da confirmação, a resposta pode ser afirmativa ou negativa. Isto é, pode dar-se a evidência de que a coisa mesma (ou o estado-de-coisas, etc.), não simplesmente não é, ou não é tal como se presumia. No dizer de Husserl: “no processo de confirmação, a confirmação pode reverter-se no seu negativo, pode surgir, em vez do próprio visado, um outro, e seguramente no modo do ele próprio, com o que a posição do objeto visado fracassa e este assume, pelo 73 Ibidem (Ibidem). 126 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 126 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics seu lado, o caráter de nulidade” 74 . Assim, como do mesmo modo já se aludiu, pode-se ter uma evidência positiva (de que algo é e é assim como se presumia) ou uma evidência negativa (de que algo não é e não é assim como se presumia). Com outras palavras “não-ser (Nicht-sein) é apenas uma modalidade do ser puro e simples (Modalität des Seins schlechthin), da certeza de ser (Seinsgewissheit)” 75 . A evidência tem como correlatos o ser e não-ser e suas modificações modais: ser-possível, ser-provável, ser-duvidoso, etc. A já indicada universalidade da evidência requer que se entenda a razão não só em sentido teórico, mas também em sentido axiológico e em sentido prático. Também os atos afetivos (do sentir) e volitivos (do querer) têm a sua própria experiência de evidência. Os atos do sentir têm como correlatos os valores; os atos do querer têm como correlato o bem. Assim, o sentir pode ter ou não ter a evidência do ser-valioso em referência àquilo que se sente, o querer pode ter ou não ter a evidência do ser-bom em referência àquilo que se quer. Pode-se dizer – fazendo um retorno às Ideias I – que todas as “esferas téticas” têm seu próprio tipo de evidência e, por conseguinte, intencional e correlativamente, seu Ibidem (Ibidem). Ibidem (Ibidem). Intuição categorial e evidência, verdade e ser 74 75 tipo de verdade. Isso vale, portanto, não só para a razão teórica, dóxica, que se realiza na esfera da crença, mas também para a razão doxológica, que se realiza na esfera da afetividade, ou, ainda, para a razão prática, que se realiza na esfera da vontade. “A verdade ou evidência ‘teórica’ ou ‘doxológica’ tem seus paralelos na ‘verdade ou evidência axiológica e prática’, pelo que as ‘verdades’ destas últimas chegam à expressão e ao conhecimento nas verdades axiológicas, vale dizer, nas verdades especificamente lógicas (apofânticas)”76. Voltando às Meditações Cartesianas, podemos dizer que, entre as modalidades de ser, aquela do serefetivo, ou seja, do ser como efetividade (Wirklichkeit), é correlata de uma modalidade de crença originária, privilegiada, a saber, a do ser certo, que permeia a evidência originária. Assim, a efetividade aparece como o correlato da confirmação evidente. Na crença, nós tomamos objetos como válidos para nós (objeto, aqui, tomado em sentido bem amplo: coisas, vivências, Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006, p. 311 (grifo de Husserl). Husserl, aqui, se declara devedor de Brentano, que abriu caminho nesta direção no escrito intitulado “Da origem do conhecimento ético”, de 1889. 127 76 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics números, estados-de-coisa, leis, teorias, etc.). A crença é um modo posicional da consciência (ela põe algo como válido-para-mim). A segurança, porém, sobre o ser efetivo de alguma coisa só se alcança mediante a “síntese da confirmação evidente, a qual é autodoadora da reta ou verdadeira efetividade”77. Só a evidência “faz com que tenha sentido para nós o ser efetivo, verdadeiro, a reta validade de um objeto, seja qual for a sua forma ou tipo, com todas as determinações que, para nós, lhe pertencem sob o título de ser-assim verdadeiro”78. A verdade é entendida, aqui, como adequação entre o que se presume e o que se mostra na experiência da evidência, ou seja, como “síntese de confirmação”, que é operada pela razão, entendida, a modo de forma estrutural, essencial e universal, da subjetividade transcendental em geral. Esta, a subjetividade transcendental, é o sustentáculo, a condição de possibilidade, da síntese da Husserl, Edmund. Cartesianische Meditationen und Pariser Vortäge. Haag: Martinus Nijhoff, 1950, p. 95 (Meditações Cartesianas e Conferências de Paris. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 97). 78 Ibidem (Ibidem). 77 confirmação, é o seu “fundamento transcendental último”79. 3. DA VERDADE COMO ADEQUAÇÃO À VERDADE COMO REVELAÇÃO A verdade aparece como identificação mostradora (ausweisende Identifizierung), realizada na plenificação de um intencionar vazio, na realização ou confirmação de uma presunção. Preenchimento definitivo e inteiro quer dizer: adequação (adaequatio) do presumido (intellectus) à coisa intuída mesma (res). Temos, assim, a intepretação fenomenológica da antiga definição escolástica de verdade: veritas est adaequatio rei et intellectus. A adequação acontece no modo do trazer à coincidência o presumido e o intuído. É, pois, identificação. E é identificação mostradora à medida que, nesta adequação, acontece a mostração ou atestação (Ausweisung) do presumido no intuído. Uma análise da estrutura intencional do ato da identificação mostradora ou atestadora ressalta a intentio e o intentum como dois momentos correlativos do mesmo fenômeno. A intentio é o ato mesmo de trazer à coincidência, o identificar. O intentum deste ato, isto é, o seu 79 Ibidem (Ibidem). 128 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 130 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics correlato, é o identificado. Surge a pergunta: o que é o identificado deste ato de identificar? Resposta: o seridêntico do presumido e do intuído. Assim, a verdade enquanto ato de identificação mostradora ou atestadora se realiza como o identificar de um ser-idêntico que se dá entre o presumido e o intuído. A verdade, pois, em seu caráter intencional, é a identificação do seridêntico. A partir disso pode-se relevar três momentos constitutivos da verdade enquanto adequação: o adequar, o adequado e a condição de possibilidade da adequação mesma. Primeiramente, ressalta-se o intentum da intentio, isto é, o adequado da adequação: o ser-idêntico de presumido e intuído. Verdade quer dizer, aqui, o ser-verdadeiro no modo do ser-idêntico de presumido e intuído. Verdade é, assim, o constar desta identidade. O ser-verdadeiro consiste na existência, resistência e consistência dessa identidade. Na medida que o presumido vem à coincidência com o intuído, eu sou dirigido para a coisa mesma, sou posto ao seu alcance, isto é, ela se me torna acessível e eu vivo junto dela. E, neste apreender da coisa mesma intuída, no viver junto dela, acontece a experiência da evidência, ou seja, a evidência é experimentada – a evidência do ser-idêntico. Uma coisa, porém, é experimentar o ser-idêntico em sua evidência, sendo junto da Intuição categorial e evidência, verdade e ser coisa mesma; outra coisa é tematizar a identidade como tal. Uma coisa é a apreensão vivente, implícita, do seridêntico na sua evidência. Outra coisa é a apreensão temática, explícita, da identidade. Em todo o caso, verdade quer dizer, aqui, uma mútua relação, o relacionamento (Verhalt) entre presumido e intuído, precisamente, um relacionamento que acontece no sentido da identidade. Pode-se falar, assim, de um relacionamento veritativo (Wahrverhalt). Nele, jaz o ser-verdadeiro80. Em segundo lugar, ressalta-se a intentio do intentum, isto é, não o conteúdo do ato, mas o ato ele mesmo, seu modo de realização (Vollzug). O que está em questão, agora, é a estrutura de ato da evidência mesma, enquanto identificação que traz à coincidência o presumido e o intuído. Trata-se, pois, da estrutura do adequar, no sentido de trazer à coincidência o presumido e intuído. Verdade é, agora, tomada como caráter do conhecimento. A evidência é o conhecimento no sentido pregnante do termo; ela é a tomada de conhecimento, a intelecção de que o presumir está fundado na coisa mesma. É na evidência que se realiza Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 70. 129 80 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics a verdade, enquanto concordância (Übereinstimmung) entre intentio e intentum, a “adaequatio intellectus et rei” (Tomás de Aquino: De veritate qu. I, art. 1) 81 . Verdade pressupõe evidência. Evidência é preenchimento identificador (identifizierende Erfüllung). E-vidência é, pois, um ver, em que acontece um sacar, um trazer para fora e para junto de si, a partir da coisa originariamente vista, um estado-de-coisas, uma conjuntura (identifizierendes Heraussehen eines Sachverhaltes aus der originar angeschauten Sache). Nesta identificação, o presumido ele mesmo resplandece na coisa originariamente vista 82 . Verdade é identificação mostradora (ausweisende Identifizierung). Identificar é, aqui, neste sentido, adequar o presumido à coisa mesma83. Na história da filosofia a disputa sobre a verdade oscila pendularmente entre ambos os polos, isto é, entre intentio e intentum, entre o conteúdo do ato e o ato mesmo, entre res e intellectus. Se a adequação recebe o seu princípio da res (coisa, estado de coisa, fato), temos o realismo. Isso quer dizer: se a adequação recebe seu Cf. Tomás de Aquino. Verdade e Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 148. 82 Cf. Idem, p. 67-68. 83 Cf. Idem, p. 69. 81 princípio da coisa, ou seja, se se trata de uma adaequatio intellectus ad rem, temos o realismo. Se a adequação recebe o seu princípio do intellectus (no sentido do intelligere), ou seja, se se trata de uma adaequatio rei ad intellectus, temos o idealismo. Ora verdade é concebida a partir do serverdadeiro no sentido da conjuntura da verdade, do relacionamento veritativo (Wahrverhalt); ora é concebida a partir do ser-verdadeiro no sentido da conexão de atos, do caráter de tomada de conhecimento, da intelecção. As duas concepções, porém, de verdade são imperfeitas (unvollkommen). Em nenhuma das duas concepções se alcança o sentido originário de verdade84. Este sentido, talvez, se nos doe se nos detemos junto da condição de possibilidade da adequação em seu todo. De novo, temos em mira o ente enquanto intuído, que dá atestação, que dá ao conhecimento um chão e um direito, isto é, um fundamento e uma legitimidade. Trata-se, aqui, do ente no sentido do ser-verdadeiro. Verdade é, aqui, o que faz verdadeiro o conhecimento. Verdade diz, neste sentido, tanto quanto ser, no ser sentido de ser-efetivo (Wirklich-Sein). Verdade é, agora, aquilo pelo que o verdadeiro é verdadeiro; é, como 84 Cf. Idem, p. 71. 130 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 130 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics diziam os medievais, o “esse manifestativum”, o ser manifestador, do ente. Esse ser manifestador dá ao ente uma inteligibilidade prévia, uma perceptividade (Wahrgenommenheit) que é condição de possibilidade do conhecimento, isto é, tanto do conhecer quanto do conhecido, tanto do adequar, quanto do adequado. A perceptividade do ente (Wahrgenommenheit des Seienden) é condição de possibilidade do perceber (wahrnehmen) e do percebido (das Wahrgenommene) em sua unidade noético-noemática. Perceptividade diz o mesmo que o caráter de presença viva, atual, “em carne e osso”, em pessoa (Leibhaft-da, 85 Leibhaftigkeit) . Aliás, o percebido por excelência e em sentido primordial é esta perceptividade do ente enquanto sermanifesto e ser-manifestador, enquanto ser-aberto, des-velado, em sua presença viva. Como dizia Avicena, recordado por Tomás de Aquino no prólogo do seu “De ente et essentia”: “ens autem et essentia sunt quae primo intellectu concipiuntur” (o ente e a essência são o que por primeiro são concebidos pelo Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 53. Intuição categorial e evidência, verdade e ser intelecto)86. Aqui o ser-verdadeiro do ente não é o resultado do conhecimento; é, antes, sua condição de possibilidade transcendental. Trata-se, portanto, de uma determinação do ser como um “transcendens”, isto é, como o que sobrepuja toda a determinação quididativa, em termos de gênero e espécie. O intelecto é caracterizado, transcendentalmente, pela abertura ao ente no seu ser-verdadeiro. Ele é receptivo a todo o ente, à medida que todo o ente, enquanto ente, é inteligível, cognoscível. Esta abertura da receptividade ao ser do ente e à sua verdade, isto é, ao seu ser manifestador, a qual é constitutiva do ser humano, enquanto o aí (da) em que se dá a compreensão do ser (Seinsverständnis), melhor, a autodoação do ser, sua manifestação, é o que se chama, em Ser e Tempo, “Dasein” (no sentido de ser a abertura em que se dá o aí do ser, o seu advento). A propósito disso pode-se evocar a sentença de Aristóteles que diz: (he psychè tà onta pōs estin) - a alma – quer dizer, a alma intelectiva do homem, melhor ainda, o Dasein, é, de certo 85 Tommaso. Ente ed essenza. Testo latino a fronte. Milano: Rusconi, 1995, p. 76. 131 86 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics modo, todo o ente 87 . É constitutivo do ser do homem descobrir todo o ente, pela (aísthesis), a percepção, e pela (nóesis), a intelecção. Entretanto, convém notar que a percepção humana, enquanto humana, é já sempre dirigida pela intelecção do que percebe. A intuição categorial atesta que nós já sempre vemos o visível no invisível, isto é, o sensível sob a forma do inteligível. Assim, todo o ente, à medida que pode ser inteligido, conhecido intelectivamente, pode se tornar um conteúdo da intelecção, da “nóesis”, ou seja, pode se tornar um “nóema”. Esta tese remonta, de certa maneira, à tese ontológica de Parmênides, que diz: (tò gar autò noein te ka einai) - pois o mesmo é pensar e ser88. Pode-se dizer: o verdadeiro é a identidade de pensar e ser. Identidade significa, aqui, coincidência. O pensar coincide com o ser. Em sua abertura potencial, a alma intelectiva, isto é, o Dasein no homem, Aristóteles: De anima, 8, 431 b 21. Apud Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 50. 88 Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Os pensadores originários. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 44-45. 87 recobre toda a envergadura do ser, toda a envergadura do sentido. Isto possibilita a Tomás de Aquino encarar a alma intelectiva como um ente privilegiado, a saber, como o “ens quod natum est convenire cum omni ente”, o ente ao qual é nato o convir, isto é, o convergir com todo o ente (De veritate, qu. 1, art. 1 c)89. É antes de tudo neste sentido que o homem é, como dizia os medievais, um “minor mundus”, um “microcosmo”. Em Ser e Tempo, Heidegger usará o nome “Dasein”, ser-o-aí-do-ser, para nomear esta abertura transcendental do pensamento ou do conhecimento que potencialmente recobre todo o ente, isto é, não só todo o modo específico de um ente, mas também toda a envergadura do sentido de ser do que quer que seja. Afirmar, porém, este privilégio do pensamento de coincidir com tudo o que, de alguma maneira está sendo, com toda a envergadura do sentido de ser, não quer dizer proceder a uma má subjetivação da totalidade do ente90. A verdade é o fundamento do verdadeiro, tanto do verdadeiro do ente em seu caráter de ser Cf. Tomás de Aquino. Verdade e Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 146. 90 Cf. Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 50. 132 89 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 132 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics manifestador, referido ao conhecimento, isto é, em seu ser encontrável e descobrível, assimilável ao conhecimento, quanto do verdadeiro do conhecimento, em seu caráter de ser apreensivo e receptivo, em seu poder encontrar o que se doa na intuição, tanto sensível quanto categorial, tanto individual como específica, e em seu poder dar uma formação intencional a isso que ele encontra, descobre, abre ou desvela, no enunciado. Pode-se falar, assim, com os medievais, de uma “veritas in re” e de uma “veritas in intellectus”. O verdadeiro no intelecto, porém, se dá em dois outros níveis, no nível da “simplex apprehensio”, simples apreensão, o ver simples, e no nível da “propositio”, a verdade do enunciado, obra do “intellectus componente et dividente”. Temos, assim, uma verdade pré-predicativa e uma verdade predicativa. A definição tradicional de verdade, formulada na idade média, por sua vez, remete, por rodeios, à sua origem na grecidade 91 . De imediato a noção de “adaequatio”, também entendida como “correspondentia” ou “convenientia”, a saber, de intelecto e coisa, do Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 73. Intuição categorial e evidência, verdade e ser 91 conhecimento com o real, remete à noção de homōíosis) de Aristoteles, presente no De interpretatione I (16a 6s) 92 . As coisas escritas (tà graphómena) – mostram as vozes articuladas na verbalização – (tà en te phoné). Estas, por sua vez, mostram as afecções da alma – (pathémata tes psychés). Estas afecções (Erleidnisse) da alma, em termos de fenomenologia da consciência, poder ser ditas como as “vivências” (Erlebnisse), sendo que estas são tomadas em sentido intencional, isto é, como estruturas noético-noemáticas. (tà pathémata), neste caso, coincide com (noémata): o múltiplo pensado do pensar. Destas afecções na alma se diz que são (homoiómata) – semelhanças das coisas (prágmata). São, em certo sentido, apresentações adequadoras (angleichende Darstellungen) das 93 coisas . Os pensamentos (no sentido Cf. Aristóteles. Da Interpretação (Edição Bilingue). São Paulo: Unesp, 2013, p. 93 Cf. Heidegger, Martin. Unterwegs zur Sprache. Stuttgart: Neske, 1997, p. 244 ( A caminho da linguagem. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2003, p. 194). 133 92 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics do pensado) são (homoiómata) das coisas, apresentações adequadoras, no sentido de dar a conhecer, isto é, mostrar as coisas tal como elas são. Entre os pensamentos e as coisas não há uma igualdade em espécie. No entanto, os pensamentos são apresentações adequadoras das coisas, à medida que eles as dão a conhecer assim como elas são. “Qualquer conhecimento deve ‘dar’ a coisa assim como ela é” 94 . A homōíosis), adequação ou concordância, quer dizer este “assim como” que se estabelece entre os pensamentos (o pensado) e as coisas, entre intellectus e res. Assim, o que se dá no comportamento ou relacionamento intencional da consciência, no perceber ou cogitar, as cogitationes no sentido (noemático) do cogitatum, dito ainda de outro modo, os pensamentos – (tà pathémata) – enquanto (noémata), são (homoiómata) das coisas, isto é, apresentações que mostram as coisas tal como elas são, naturalmente, à medida que eles dão a conhecer as coisas, quer dizer, à Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 286. 94 medida que acontecem no evento do conhecimento. Eles são ditos (homoiómata) à medida que têm adequação com as coisas. (tà homoiómata) diz, pois, o que é adequado, o que tem adequação - (homōíos échei) – com as coisas95. Mas, em que sentido entender a adequação aqui como na dinâmica do mostrar? Resposta: no sentido de um “assimcomo”. Quer dizer: o pensar deixa encontrar o ente que vem ao encontro assim como ele é. Isso, por sua vez, diz: o perceber (intelectivo) deixa encontrar o percebido, o ente mesmo, tal como este é. Não se trata, aqui, de uma adequação do psíquico com o físico, nem se trata de imagens. O que está em questão aqui é a experiência do conhecimento no sentido da mostração ou atestação (Ausweisgung) e da confirmação (Bewährung). Vamos supor que eu diga a um amigo meu que mora no exterior: “em Brasília há muitos Ipês floridos no inverno”. Ele vem me visitar num inverno e verifica, pela percepção in loco, que este enunciado é verdadeiro. Dá-se-lhe a confirmação: verdadeiramente, isto é, Cf. Heidegger, Martin. Logik: die Frage nach der Wahrheit (Gesammtausgabe Band 21). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995, p. 167. 134 95 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 134 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics de fato, “em Brasília há muitos Ipês floridos no inverno”. O que se visava no enunciado – este estado de coisas – é o mesmo que se dá a perceber naquela percepção. “O enunciado é um ser para a própria coisa que é” (Das Aussagen ist ein Sein zum seienden Ding selbst) 96 . Neste caso, na confirmação, mostra-se, atesta-se, o ser-descobridor do enunciado. Importante, aqui, é a realização da mostração ou atestação (Ausweisungsvollzug). Nela, “o próprio ente visado mostra-se assim como ele é em si mesmo, ou seja, que, em si mesmo, ele é assim como se mostra e descobre sendo no enunciado” 97 . Na confirmação (Bewährung) o que se visa é o ente em si mesmo, não uma representação do ente. “Confirmação significa: que o ente se mostra a si mesmo” 98 . No conhecimento, o enunciado alcança confirmação. O conhecimento é um comportamento intencional, isto é, um dirigir-se para, um orientar-se para algo, que se tem em mira. O conhecimento, como comportamento intencional, se dirige ao ente mesmo e não a uma representação sua 99 . Ele visa o ente Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 288. 97 Ibidem (grifos de Heidegger). 98 Idem, p. 289. 99 Cf. Heidegger, Martin. Logik: die Frage nach der Wahrheit (Gesammtausgabe Band 21). Frankfurt Intuição categorial e evidência, verdade e ser mesmo e não a conteúdos de consciência. O conhecimento é, pois, um relacionamento de ser para com o ser do ente. “Enquanto enunciado e confirmação, o conhecimento é, segundo seu sentido ontológico, um ser que, descobrindo, realiza seu ser para o próprio ente real” 100 . O conhecer se realiza, assim, como um ser-descobridor que visa o ser do ente real. O ser-descobridor (entdeckendsein) constitui o ser-verdadeiro (a verdade) do enunciado. “O enunciado é verdadeiro significa: ele descobre o em ente em si mesmo”101. O ser do enunciado consiste poder mostrar o ser do ente em si mesmo. O relacionamento intencional entre (tà pathémata), respectivamente, (tà noémata), e (tà prágmata) se resume neste serdescobridor. No enunciado, este relacionamento há de ser compreendido a partir da dinâmica do falar como dizer, no sentido de mostrar, do (légein) como (hermeneúein), interpretar, no sentido trazer e expor 96 am Main: Vittorio Klostermann, 1995, p. 100. 100 Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 289. 101 Ibidem (grifo de Heidegger). 135 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics a mensagem, abrir e dar anúncio, dar a conhecer 102 . Daí segue que um estudo a respeito de e na esfera do enunciado – do (lógos) – deva se chamar (De interpretatione). O (lógos), o enunciado, tem a função precípua de um apophaínesthai): deixar e fazer ver aquilo mesmo sobre o que discorre, a partir daquilo mesmo sobre o que discorre. O enunciar é compreendido, aqui, a partir do dizer e o dizer a partir do mostrar, como um tornar acessível aquilo sobre o que discorre. Discorrer é discorrer sobre alguma coisa. Esta é sua estrutura intencional. O  (lógos) enquanto(apóphansis), isto é, enquanto mostração, revelação, é expor alguma coisa de alguma coisa. Nele se cumpre um (aletheúein), um serrevelador, um ser-desvelante. “O ‘ser verdadeiro do  (lógos) enquanto (aletheúein) diz: retirar de seu velamento o ente sobre que se fala no (légein) como Cf. Heidegger, Martin. Unterwegs zur Sprache. Stuttgart: Neske, 1997, p. 121122 – A caminho da linguagem. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2003, p. 96. apophaínesthai) e deixar e fazer ver o ente como algo desvelado (alethés), em suma, des-cobrir”103. Enquanto apophaínesthai) o (lógos) expõe o expõe o (phainómenon): o vir à luz do que irrompe, emerge, aparece. (phainómenon) remete a  (phaínesthai) – o vir à luz, desde si mesmo, em si mesmo, por si mesmo; o que remete a (phós), luz, tanto no sentido de claridade, quanto no sentido de fonte de claridade104. A claridade é o elemento no qual tudo aparece. Aparecer significa tanto brilhar, resplandecer, quanto manifestar-se. Isso nos remete de volta à questão da evidência enquanto manifestação, aparecimento fenomenal, o qual tem o seu próprio lógos, isto é, sua própria articulação de sentido, um modo de reunir-se e de expor-se, enfim, a sua própria fenomeno-logia. 4. SER COMO VERDADE E SER COMO CÓPULA 102 Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 72. 104 Cf. Idem, p. 67. 136 103 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 136 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Já se indicou que a razão, a evidência e a verdade, não se dão apenas na esfera doxológica, teórica, mas também se dão na esfera axiológica (afetiva) e na esfera prática (volitiva). Tradicionalmente, porém, a verdade é atribuída ao ato do enunciar, isto é, os atos predicativos, relacionantes, que se realizam na esfera doxológica, teórica. Mas uma análise intencional da verdade nos remete de volta à evidência prépredicativa. A fenomenologia se volta, sem consciência explícita, para a amplitude do conceito de verdade, nos gregos (mais precisamente, Aristóteles), em que também a percepção como tal e o simples perceber de algo podem ser chamados de verdadeiros. A análise fenomenológica da evidência evidencia, pois, que também atos não relacionantes, monoradiantes, monotéticos, tem igualmente a possibilidade de mostração e atestação. A fenomenologia rompe, assim, com a restrição do conceito de verdade a atos relacionantes, juízos. A verdade dos atos relacionantes é apenas uma determinada espécie de ser-verdadeiro dos atos objetivantes do conhecimento como tal. Tudo isso abre novas possibilidades para se pensar a conexão de verdade e ser. Um primeiro conceito de verdade a toma como o constar da identidade do presumido e do intuído – verdade como ser-verdadeiro. Intuição categorial e evidência, verdade e ser Verdade vige, assim, como um sentido de ser: ser no sentido do ser-verdadeiro (diferente, por exemplo, de ser no sentido das categorias). Tomemos o enunciado: “a flor deste ipê é amarela”. O conteúdo enunciado deste enunciado é o ser-amarelo da flor deste ipê – é o estado de coisas julgado. Nele pode-se distinguir algo dúplice: ser-amarelo. Esta ênfase no ser tem em mente: a flor deste ipê é realmente amarela, ela é de verdade amarela. Ser vige, aqui, como ser real, ser efetivo, ser de verdade. O que está em questão, aqui é: existe a conjuntura veritativa, o relacionamento de verdade, ou seja, subsiste a identidade de presumido e intuído, entre o enunciado e o percebido em que se cumpre a confirmação. Ser no sentido do serverdadeiro quer dizer, aqui: o constar da verdade, da conjuntura (relacionamento) veritativa (o), o constar da identidade. O enunciado quer expressar o ser verdadeiro do estado de coisas julgado105. Um outro sentido de ser que aparece no enunciado é o do ser como cópula. Toma-se em consideração, de novo, este algo dúplice: ser-amarelo. Só que a ênfase, agora, se dá do lado Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 71-72. 137 105 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics contrário: ser-amarelo. A ênfase em “amarelo” evoca a fórmula: S é P. Ressalta-se, agora, o ser-P de S. Neste caso, o enunciado “a flor deste ipê é amarela” quer expressar o ser-p de S: o convir do predicado com o sujeito. Aqui é intencionado o ser da cópula: “a flor deste ipê é amarela”. O que se intenciona não é o subsistir da conjuntura, do relacionamento da verdade (Bestand des Sachverhaltes), mas um momento estrutural do estado de coisas (Sachverhalt) mesmo. O estado de coisas consiste, aqui, na conjuntura, no relacionamento (Verhalt), cuja estrutura formal se deixa enunciar como S = P. O sentido de ser, aqui, aparece como fator de relacionamento do estado de coisas como tal. Este sentido de ser se distingue, pois, do sentido de ser como conjuntura de verdade. Aquele dirige o olhar para a existência e subsistência do estado de coisas na conjuntura da verdade (Bestand und Stehen des Sachverhaltes im Wahrverhalt). Trata-se de ser no sentido da verdade interpretado como existência da identidade de presumido e intuído. Isso significa: o estado de coisas como meramente presumido é verdadeiro enquanto demonstrado no estado de coisas mesmo. A conjuntura de verdade subsiste, portanto, ela é verdadeira106. 5. A EVIDÊNCIA DO SER A fenomenologia amplia o conceito de verdade, bem como o conceito de ser. O Conceito de verdade não concerne somente ao intellectus, mas também à res. O conceito de ser não concerne somente à res, mas concerne também ao intellectus, isto é, ao pensar, ao conhecer. Enfim, uma interpretação fenomenológica de ser e verdade faz aparecer ser como verdade e verdade como ser. A intuição categorial abre uma possibilidade para isso. Há um perceber sensitivo, há também um perceber intelectivo. Assim como há uma intuição sensível, há também uma intuição categorial. Assim como há uma apreensão ôntica (do ente), há também uma apreensão ontológica (do ser e de suas determinações). Os gregos tinham a palavra aísthesis), que quer dizer a percepção sensitiva com sua intuição e evidência, e tinham o verbo (noein) que significava o perceber intelectivo com sua intuição e evidência. A (aísthesis) é a simples percepção sensitiva de 106 Cf. Idem, p. 72-73. 138 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 138 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics alguma coisa. Ela é uma forma de descobrimento. A visão, por exemplo, descobre cores; a audição, descobre sons; o paladar, sabores, etc. Na percepção e para ela algo se torna acessível. Cada forma perceptiva sensorial (sentido) tem a sua evidência. A evidência visual é diversa da evidência auditiva, da evidência tátil, etc. Do mesmo modo, cada um dos sentidos tem sua verdade. Esta verdade consiste no seu ser-descobridor. Deste modo, quando a visão descobre cores acontece uma verdade perceptiva visual. Na medida em que, pelo modo próprio de descobrir que cada percepção sensitiva realiza, tornar-se acessível o ente que lhe corresponde nela e para ela, pode-se falar de uma verdade da percepção sensitiva. Por sua vez, verdadeiro é (noein), o perceber intelectivo, à medida que desvela, numa simples apreensão, o ser do ente em sua simplicidade, bem como as suas determinações simples 107 . O(noein) é um perceber (vernehmen) que se realiza no modo de um receber (annehmen) o dar-se do ser mesmo em sua simplicidade e em suas determinações simples, ele realiza uma intuição, que tem a sua própria evidência, aquela ontológica. O (noein) é, pois, um Cf. Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 64. Intuição categorial e evidência, verdade e ser 107 relacionamento de ser com o ser, a saber, um relacionamento que acontece no modo do ser-desvelantedo-ser. É, assim, o acontecer do desvelar do ser, que está sempre vigente no encontro com o ente, quer no descobrir do ser do ente que não somos e que nos vem ao encontro dentro do mundo, quer no abrir-se do ente que somos. Em todo o caso, este desvelamento do ser se dá de modo estruturalmente prévio, como constitutivo, como condição de possibilidade, de todo o descobrimento do ente que não somos, bem como de toda abertura do ente que somos. A apreensão do ente enquanto ente, ou seja, a apreensão do ser e de suas determinações simples e originárias, está na base de todo e qualquer apreensão. A compreensão do ser é estruturalmente prévia a e a base de toda compreensão108. Por ser o mais simples e o mais comum, o ser, em sua doação, não chama a atenção. Vivemos sempre na apreensão e compreensão do ser, embora só muito raramente é que o tornamos tema de nosso estudo, de nossa meditação. O ser é o que há de mais claro. E, no entanto, tematicamente, nós nos relacionamos com sua evidência como o morcego com a luz, segundo uma famosa passagem de Aristóteles que diz: 108 Cf. Idem, p. 28. 139 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics     (hósper gàr tà tōn nykterídōn ómmata pròs tò phéggos tò meth’ heméran, hoútō kaì tes hemetéras psychés ho nous pròs tà te physei phanerótata pántōn) – assim pois como os olhos do morcego se comportam em face da luz do dia, assim também o intelecto que está em nossa alma se comporta em face daquelas coisas que por natureza são as mais manifestas109. Fazendo eco a Aristóteles, no século XIII, e falando da luz do ser, Boaventura de Bagnoregio disse: “Mira igitur est caecitas intellectus, qui non considerat illud quod prius videt et sine quo nihil potest cognoscere” (Admirável, pois, é a cegueira do intelecto, que não considera aquilo que por primeiro vê e sem o que não pode conhecer) 110 . Assim, quando se trata da evidência do ser, vemos, mas não vemos que vemos. Admirável é esta cegueira, pois não vê que vê o que há de mais evidente. Conhecemos, aqui, o ser, Cf. Aristóteles, Metafísica II) 993b 9-11. 110 Boaventura de Bagnoregio. Itinerarium Mentis in Deum, V, n. 4. Cf. Boaventura de Bagnoregio. Escritos filosófico-teológicos. Porto Alegre: EDIPUCRS / USF, 1999, p. 334. 109 mas como que às apalpadelas. O não verdadeiro, aqui, não consiste propriamente no falso, mas no ignorar - (agnoeín = não perceber). É quando o (noein) não é “suficiente para um acesso adequado, puro e simples”111. O ser é o que nos é mais próximo. O que se dá ao (noein) é “a proximidade mais própria, dentro da qual não há nenhuma distância” 112 . Nós somos sempre em face desta proximidade mais próxima do ser (Dasein). Estamos no ser. O mistério de ser nos compreende e nos perpassa. O desvelamento do ser está sempre acontecendo em nós e para nós. E, no entanto, tematicamente, o ser nos é o mais distante. Em sendo, quer dizer, em vivendo na abertura da compreensão e intepretação, bem como na abertura da linguagem e do discurso, apreendemos e compreendemos ser, vivemos, pois, na sua proximidade mais próxima. Mas, tematicamente, ignoramos o ser. Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª Edição). Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 73. Cf. Aristóteles, Metafísica (IX) 1051 b 25 e 1052 a 2. 112 Heidegger, Martin. Logik: die Frage nach der Wahrheit (Gesammtausgabe Band 21). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995, p. 180. 140 111 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 140 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Vivemos, assim, no esquecimento do ser. Vemos, mas não vemos que vemos aquilo que de modo simples (schlicht) se nos dá: o ser. Este ver acontece como um “ver simples” (schlichtes Sehen), como um simples apreender (schlichtes Erfassen) da perceptividade (Wahrgenommenheit) do que se apresenta, e presente, se doa no modo de uma datidade viva (leibhaftig), no modo da presença em carne e osso, em pessoa 113 . Simplicidade (Schlichtheit) quer dizer, aqui, unigradualidade (Einstufigkeit)114. Há, pois, diversos tipos de experiência de evidência e de evidência da experiência. A experiência se dá, aqui, como uma simples apreensão: “significa, portanto, perceber, captar algo, de imediato e corpo a corpo, de cabo a rabo, de tal forma que esse algo, aquilo que se capta, torne-se trans(per) – parente (aparecente). Trata-se, pois, da percepção simples, imediata, da coisa ela mesma: evidência” 115 . Este ver simples é um acontecer, a Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena zur Geschichte des Zeitsbegriffs (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994 (3ª ed.), p. 64; 101. 114 Cf. Idem, p. 82. 115 Harada, Hermógenes. Fragmentos de pensamento humano-franciscano. Org.: Ênio Paulo Giachini. Curitiba: Ed. Bom Jesus, 2016, p. 127. Intuição categorial e evidência, verdade e ser 113 saber, o acontecer ôntico-ontológico fundamental do humano enquanto abertura do relacionamento de ser com o ser do ente, com o todo. É “a própria presença, a própria abertura, a clareira que é o próprio experienciar, o próprio vivenciar, o manifesto, a ‘aparescência’, o phainómenon: o Da-sein ou o ser-nomundo” 116 . Evidência, é, pois, originariamente, o saltar para fora (ex) da vidência, que é experiência e que nos constitui como abertura de mundo 117 . Esta evidência originária nós não a temos. Nós a somos. Ela é constitutiva de nosso ser-no-mundo. Coincide com a abertura de mundo que somos nós, com a transcendência de nossa existência. Neste sentido, Idem, p. 132. A palavra “evidência” vem do latim evidentia: primordialmente, a visibilidade, a possibilidade de ver; por conseguinte, a clareza. Por sua vez, evidentia remete ao verbo evideri (ex = dinâmica de exteriorização; videri = medial ou passivo de video, portanto, deixar-se e fazer-se ver, mostrar-se, aparecer, parecer, ser visto). Sendo medial, o verbo evideri expressa a dinâmica de um movimento todo próprio, a saber, o movimento da evidenciação, ou seja, o movimento que, a partir de si e em si, na sua autonomia, se dá como mostrar-se, deixar-se e fazer-se ver, vir à luz, surgir, e, assim, como tomar corpo, apresentar-se, ao mesmo tempo, incandescer, brilhar. 141 116 117 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics não somos nós que a temos, é ela que nos tem. A evidentia seria, portanto, a clareira, o olho da luz, que impregna, em diferentes modos de presença, o que se apresenta, em suma, a condição da possibilidade do manifestar-se de todo o fenômeno. Sendo a condição de possibilidade de toda a visão, isto é, de todo o ver e de todo o visto, a vidência da evidência não pode ser vista como isto ou aquilo, mas ela é a experiência medial do ver, isto é, de um ver que cresce a partir de si, em si, por si e para si mesmo. É a abertura na qual irrompe uma iluminação, que faz e deixa surgir o mundo como mundo. A vidência da evidência é, pois, um ser no qual o mundo se torna mundo. Esta é, pois, no fundo, a vidência do ser-no-mundo, a vidência da intencionalidade, e, por conseguinte, a vidência da consciência. Graças a esta vidência, o homem é o que ele é: a abertura da revelação do ser. O acontecer da revelação do ser é a evidência que nos constitui como esta abertura, que é sempre temporalhistórica. A revelação do ser é, originariamente, o acontecer fundamental e único que diz: há ente. Este acontecer pode ser chamado de parusia (Ereignis). A parusia (Ereignis) vige (west) como a originária (Er-) manifestação e auto-mostração (-äugnis) do mistério de ser. O mistério se esconde não por falta de clareza, mas por excesso. É o “manifestíssimo por natureza”. O que tudo desvela, o desvelamento originário, acaba por permanecer velado para nós. A visibilidade que tudo torna visível, a perceptividade que possibilita todo o perceber e todo o percebido em suas correlações, fica invisível, permanece imperceptível para nós, de início e na maior parte das vezes, à medida que dela nos esquecemos, que a ignoramos. Parusia (Ereignis) vige, pois, como a mira originária (Ur-äugnis), que deixa e faz aparecer, na coincidência de ser e pensar, a aberta (Lichtung) da presença (Da-sein), e que, assim, deixa e faz o homem morar na verdade de ser. REFERÊNCIAS ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES, HERÁCLITO. Os pensadores originários. Petrópolis: Vozes, 1991. ARISTOTELE. Metafisica. Milano: Rusconi, 1994. ARISTOTELE. Anima (testo greco a fronte). Milano: Rusconi, 1998. BOAVENTURA DE BAGNOREGIO. Escritos Filosófico-Teológicos. Porto Alegre: EDIPUCRS / USF, 1999. BRENTANO, F. Sui molteplici significati dell'essere secondo Aristotele. Milano: Vita e Pensiero, 1996 142 Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 142 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics HARADA, H. Fragmentos de pensamento humano-franciscano. Curitiba: Bom Jesus, 2016. HEIDEGGER, M. Prolegomena zur Geschichte des Zeitbegriffs (Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994. HEIDEGGER, M. Logik: Die Frage nach der Wahrheit (GA Band 21). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1995. HEIDEGGER, M. Unterwegs zur Sprache. Stuttgart: Neske, 1997. HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2003. HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. 7. ed. Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes / EDUSF, 2012. HUSSERL, E. Formale und Transzendentale Logik. Halle: Max Niemeyer, 1929. HUSSERL, E. Cartesianische Meditationen und Pariser Vortäge. Haag: Martinus Nijhoff, 1950. HUSSERL, E. Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie. 5. ed. Tübingen: Max Niemeyer, 1993. HUSSERL, E. Logische Untersuchungen II/1: Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, 1993. HUSSERL, E. Logische Untersuchungen II/2: Elemente einer phänomenologischen Aufklärung der Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, 1993. HUSSERL, E. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006. TOMÁS AQUINO. Verdade e conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999. TOMMASO. Ente ed essenza. Milano: Rusconi, 1995. Intuição categorial e evidência, verdade e ser Submetido: 27 de julho 2017 Aceito: 05 de agosto 2017 143 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Love and Knowledge in Max Scheler's Phenomenology Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB 118 RESUMO A discussão parte da indicação de Scheler, presente no seu escrito Liebe und Erkentnnis: é necessário superar a concepção intelectualista do amor, para compreender genuinamente a interdependência entre amor e conhecimento. Nesta perspectiva, procura-se mostrar que o amor não apenas antecipa o conhecimento como motor e via, mas também o consuma, inserindo-o em esferas ontológicas primordiais, ao ascender a intelecção das essências a grau mais evidente e a um modo mais originário. No primeiro momento, parte-se do conhecimento, destacando o ato de ideação como o específico do espírito humano, para chegar ao modo clarividente do amor conhecer por participação no ser. Em segundo momento, em linhas gerais, evidencia-se o amor como ato fundamental da estrutura intencional e princípio generativo da ordem de fins da existência humana. Por isto, é tomado como o ponto de partida dos atos intelectivos. PALAVRAS CHAVE Ideação; Clarividência; Ser; Valores. ABSTRACT This study presents a discussion based on Scheller’s suggestion, taken from his essay Liebe und Erkentnnis: It is necessary to overcome the intellectualist conception of love, in order to genuinely understand the interdependency between love and knowledge. Based on this perspective, the study aims to demonstrate that love not only anticipates knowledge as driving force and pathway, but also consummates it, inserting it in primordial ontological spheres, by ascending the intellection of essences to a more explicit degree and to a more 118 Email: dr.ramos@ufrb.edu.br. 144 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 144 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics primary mode. On a first moment, it arises from knowledge, emphasizing the act of ideation as specific to the human spirit, and finally reaches a mode of clairvoyance of love by participation in being. On a second moment, in general terms, love is evidenced as a fundamental action of the intentional structure and a generative principle of purpose for the human existence. For these reasons, it is taken as a starting point of acts on the intellectual level. KEYWORDS Ideation; Clairvoyance; Being; Values. “Conhecemos a verdade não apenas pela razão mas também pelo coração” Pascal, Pensamentos, fragmento 110 (282) INTRODUÇÃO A presente reflexão coloca em discussão a mútua pertinência entre amor e conhecimento, avistando-a desde o horizonte da fenomenologia material de Max Scheler (1874-1928). O tema que assim se mira, porém, não é em nada inédito, no sentido que a discussão, em seu propósito, não contribui em colocar a interdependência entre amor e conhecimento como algo sem precedentes no debate filosófico. Antes, por mais que pareça estranho à ingênua e amplamente difundida consciência, para a qual o rigor no tratamento objetos de conhecimento se mede pela frieza e imparcialidade, esta interrelação é uma antiga questão da tradição metafísica, nela inclusa a época em que o problema do conhecimento é, fundamentalmente, uma questão de método. Não obstante esta longeva história, é uma questão cujo significado para o núcleo da experiência do pensar se encontra esquecido, apesar do predomínio do vivencialismo dos tempos presentes e, com isto, de todo entusiasmo com as possibilidades de valorização dos aspectos afetivos e emotivos da experiência subjetiva. Ademais, contra esta pretensão de ineditismo, situando a questão no âmbito do horizonte em que ela é discutida nas linhas abaixo, é preciso lembrar que, em 1915, pela primeira vez, Scheler ublica o ensaio intitulado Liebe und 145 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Erkenntnis 119 , no qual esta relação aparece em modo explícito desde o título do escrito, sem contar que, antes desta publicação, a questão já se encontrava em elaboração no pensamento do autor. Com efeito, alguns anos antes do ensaio, aparece a primeira edição de sua fenomenologia do amor e do ódio, apresentada na obra tardiamente intitulada Wesen und Formen der Sympathie (1923) 120 , pela qual se demonstra o fenômeno do amor como sendo, em seus traços fundamentais, um modo particular e afetivo de conhecimento. Cfr. M. SCHELER, Liebe und Erkenntnis, in Schriften zur Soziologie und Weltanchauunslehre, Gesammelte Werke (de agora em diante, GW) 6, Bonn: Bouvier, 2008, p. 77-98.; tr. esp. Amor y conocimento, in Amor y conocimento, Madrid: Palavra, 2010, p. 11-48. O escrito é reeditado em 1916 e, por fim, em 1923 é recolhido como um capítulo da obra entitulado Moralia, tal como aparece no volume supracitado das obras completas de Scheler. 120 A data considera a publicação da obra pela primeira vez sob este título, quando aparece na versão ampliada pelo autor e composição definitiva. Contudo, se considerada a primeira edição, sob o título Zur Phänomenologie und Theorie der Sympathiegefülhe von Liebe und Haß, a obra remonta à data de 1913. 119 Neste importante ensaio de 1915, não só se apreende as intuições essenciais e orientação fundamental da fenomenologia de Scheler, visto a centralidade dos atos afetivos na ética e fenomenologia do conhecimento para o autor, como também são descritos os principais tipos históricos que revelam os traços dos modos como o amor foi epocalmente concebido ao longo da história do pensamento ocidental. Por meio desta “tipologia”, de modo incisivo, nas linhas e entrelinhas, o escrito deixa vir à tona o sério esforço em superar a compreensão intelectualista do amor, sem a qual o fenômeno da interdependência amor e conhecimento não pode ser originariamente visado. Do lado do amor, o intelectualismo o limita a um impulso e motor do conhecimento que, não obstante sua força motriz, deve ser abandonado, quando o conhecimento alcança os estágios mais plenos da intelecção. Na forma do racionalismo moderno, o intelectualismo não é menos prejudicial à compreensão do sentido do amor e de sua participação no conhecer, pois, o aprisiona no reino dos sentimentos e afecções sensíveis ao transformá-lo em comoção com a alegria e o sofrer de outrem, corrompendo a sua essência. Com isto, o amor não conhece, apenas 146 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 146 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics sente - por certo, esta extrema defasagem na compreensão do sentido do amor é uma das razões do nítido posicionamento de Scheler em favor da compreensão medieval, em especial a agostiniana, para a qual o amor permanece como ato espiritual e dignificado com sendo o modo de ser do divino e de seu conhecimento. Contudo, estes prejuízos intelectualistas não representam um perigo de perda da própria essência e efetivo empobrecimento do amor, mas também do conhecer. De fato, no horizonte do conhecer, vê-se que a razão moderna sempre mais se encaminha para a realização do ideal da funcionalidade, da instrumentalidade técnico-científica do saber e, presa aos moldes da exatidão e da objetividade, torna-se refém do cálculo representacional. Na época moderna, pois, a ausência de uma autêntica cultura do coração, de uma vida emocional que ultrapassa os limites da sensibilidade e da interioridade do sujeito, é testemunho de cegueira e surdez da razão em termos de finura para a apreensão do sentido de seus objetos121. Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, in Schriften aus dem Nachlaβ, Zur Ethik und Erkenntnislehre, GW 10, Band 1, Bonn: Bouvier, 2000, p. 364; tr. por. Ordo amoris, p. 24-25. Diponível em: <http.www.lusosofia.net>. Acesso em: 26 jul. 2016. 121 Diante desta perigosa disjunção, portanto, a relação amor e conhecimento não é apenas o título de um ensaio de determinado autor e, muito menos, uma teoria a mais na história das ideias, cujo propósito seria contornar a aridez da razão moderna, suprindo-lhe as deficiências com o acréscimo da ordem e leis do coração. Antes, é a questão da destinação da humanidade, na medida em que nela está em jogo a totalidade e unidade originárias do espírito humano, pela qual o homem se eleva com o seu ser-próprio, relaciona-se com as coisas e com o mundo, com o divino, podendo chegar ao ápice de realização das potencialidades que só ao ser humano pertencem. Deste modo, é a questão da profundidade do espírito humano, atualmente esquecida pela desconsideração de que “vivemos primeiramente com toda a riqueza do nosso espírito nas coisas, no mundo”122, bem como do fato que esta transcendência do espírito possui uma acuidade e rigor de atos que não se limitam ao âmbito dos atos lógicos e não se restringem ao domínio do conhecimento e das ciências. Com efeito, seguindo a intuição pascalina, pode-se dizer que também onde reina não a lógica do entendimento, mas a M. SCHELER Ordo Amoris, p. 366; tr. por., p. 27. Grifos do Scheler. 122 147 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics do coração 123 , há uma legalidade independente, tão rigorosa e tão precisa para os conhecimentos dos princípios arcaicos e primeiros124, que seria uma grande cegueira desconsiderar a imensa riqueza das conexões objetivas que pertencem em primeira ordem aos atos intelectuais do espírito. Amor (e ódio) e conhecimento, portanto, evocam a profundidade desta ordem e a seriedade da necessidade de pensar originariamente a totalidade unitária da vida humana, assim como a densidade do mundo humano e do sentido das coisas para as quais o homem tende, na inteireza de seu ser, mediante o pensamento, intuições, volições e sentimentos. Liebe und Erkenntnis, porém, é o esboço da elaboração muito mais ampla da questão da relação entre amor e conhecimento, um projeto que não veio a ser consumado por Cfr. B. PASCAL, Pensamentos, fragmento 423 (Edição de Brunschvicg: 277), São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 164: “O coração tem razões que a razão desconhece; sabe-se disso em mil coisas”. Sobre a interpretação de Scheler a respeito desta sentença, cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 362-63; tr. por., p. 22-23. 123 Cfr. B. PASCAL, Pensamentos, fragmento 110 (Edição de Brunschvicg: 282), p. 164. 124 Scheler. Nenhuma outra obra também não o realizou de modo integral, permanecendo ali e acolá as intuições centrais e anotações para a explicitação “puramente objetiva e sistemática da relação da relação entre amor e o conhecimento”125. Por isto, a recolocação desta questão, recolhendo-a desde as principais intuições do pensamento do autor, continua sendo necessária. Fazemo-la ao modo de uma aproximação, em dois momentos 126 . Primeiramente, partindo do conhecimento para o amor. Em segundo momento, invertese a direção do caminho. O último parece ser mais fundamental, também para, no ponto final, chegar ao amor mesmo. No entanto, parte-se do primeiro, visto ser a (re)fundamentação do conhecimento em bases novas e rigorosas uma das principais tendências que está, desde o início, a pôr a caminho a reflexão M. SCHELER, Vom Ewigen im Menschen, GW 5, Bonn: Bouvier, 2007, p. 9; trd. por., Do eterno no homem, Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: 2015, p. 10. 126 Para o presente dossiê, apresenta-se apenas o primeiro, reservando a segunda parte para uma publicação posterior. O segundo movimento comparece apenas na forma de esboço a ser desenvolvido mediante futura pesquisa. 148 125 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 148 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fenomenológica em geral. Também, de modo bem peculiar, no caminho da reflexão de Scheler. 1. PRIMEIRO MOVIMENTO: DO CONHECIMENTO AO AMOR Em um ensaio escrito por Max Scheler em 1922, ao olhar crítica e retrospectivamente para o desenvolvimento do movimento fenomenológico nos inícios do século XX, quanto para a situação da filosofia alemã naquele tempo presente, o próprio autor se posiciona como responsável por ter impelido a fenomenologia a uma possibilidade que teria, por consequência, contribuído para o genuíno desenvolvimento da impostação e método de investigação começada por Husserl. Para tanto, Scheler toma a sua fenomenologia, juntamente com a de Heidegger, como formas prototípicas do pensamento fenomenológico127. Pois, estas teriam sido as únicas que se apresentaram como capazes de levar a termo, em nova cunhagem em relação ao fundador da fenomenologia, a exigência de método e investigação que se configurasse como pesquisa fundamental e tratamento essencial das M. SCHELER, Die Deutsche Philosophie der Gegenwart, GW 7, Bonn: Bouvier, 2005, p. 326. 127 questões filosóficas e nem tanto como progresso na obtenção de resultados ou na elaboração de doutrinas e teoremas. Paradoxalmente, este julgamento se deve ao reconhecimento, de um lado, da importância e contribuição de tantas obras que frutificaram ao longo do movimento fenomenológico, outras que foram produzidas por escolas por ele influenciadas, em inúmeras direções temáticas de diferentes disciplinas filosóficas, como também da pesquisa científica, porém, de outro lado, de que somente nas dos três pensadores supracitados poderse-ia reconhecer as linhas fundamentais apara a construção sistemática da filosofia em bases rigorosas, novas e universais. Nas direções diversas e tendências internas das obras destes três pensadores, então, a fenomenologia teria concretizado, de fato, até aquele presente momento, a sua vocação de ser uma filosofia da coisa mesma, “ciência” originária dos fenômenos a partir deles mesmos. Abstraindo os fatores secundários, na base desta (auto)avaliação está o fato de Scheler reter a compreensão de que a fenomenologia, numa estreita linha de continuidade com as pesquisas husserlianas, é conhecimento das essências, que se opera “independentemente da grandeza e da quantidade de observações que 149 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fazemos e das conclusões a que chegamos indutivamente através da inteligência”128. Para Scheler, no cerne da impostação fenomenológica, portanto, encontra-se um ato a priori, precedente a todo procedimento dedutivo e empírico das ciências, mas também à apreensão dos inumeráveis e casuais dados advindos pelos sentidos da sensibilidade humana. Tal ato, nomeado ideação (Ideiren), é definido por Scheler, em Die Stellung des Menschen im Kosmos (1928), como sendo o “co-apreender cada vez as qualidades essenciais e as formas de construção do mundo junto a um exemplo oriundo da região essencial em questão”129. E digno de nota é o que se acrescenta, afirmando que este ato valida um saber, apesar de ser conquistado a partir de um exemplo, para “a infinita universalidade de todas as coisas possíveis que são desta essência”. Enfim, é um ato responsável por operar uma cisão entre o essencial e o fortuito, o constante das formas do mundo e o variável que se apresenta nas M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, in Späte Schriften, GW 9, Bonn: Bouvier, 2008, p. 41; tr. por. A posição do homem no cosmos, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p. 48. Inclui as duas próximas citação. 129 Tradução levemente modificada. 128 experiências possíveis das coisas, distinguindo uma diferença essencial entre estas duas dimensões, não obstante a constituição de ambas são apreendidas neste ato de conhecimento. Considerando mais atentamente os aspectos da definição acima, notase que o acento recai sobre a necessidade de apreensão de totalidade(s), seja ao modo de essências, seja de região, seja ainda de universalidade infinita. Em qualquer uma destas formas, é a apreensão de totalidades que bem define a radical independência do conhecer em relação aos aspectos parciais e múltiplos que se dão nas observações. Assim, em relação ao significado e a posição central para a construção de uma eidologia do conhecimento e condições de possibilidade do saber em geral, este ato diz que nenhum objeto (Gegenstand) do conhecimento não se constitui, originariamente, pela representação e, consequentemente, não se chegam à juízos verdadeiros e evidências apodíticas idealisticamente por deduções nem pela universalização de observações empíricas. Antes, idear significa que objeto do conhecimento se conforma pelo e ao longo do ato de apreender, junto a cada fato ou dado em particular, uma evidência na forma de uma totalidade essencial, fontal e 150 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 150 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics prévia à posição de toda e qualquer realidade. Em uma obra bem mais recente à citada acima, em Wesen und Formen der Sympathie (1923) 130 , ao colocar as bases da apreensão da evidência e conhecimento do eu de outrem, Scheler descreve esta totalidade em forma de esferas do ser: Nós dizemos (em nossa terminologia) não outra coisa que o mundo do tu ou o mundo da comunidade é uma esfera essencial de ser existente tão independente como a esfera do mundo exterior, a esfera do mundo interior, a esfera do divino. Para cada genuína “esfera” do ser é válido, pois, que esta é dada previamente como uma totalidade essencial enquanto “fundo” («Hintergrund») da posição de realidade de todo objeto possível nela; que, de modo algum, não se constitui por uma soma de todos os facta contingentes que nela figuram. Esta doutrina do prévio dar-se de determinadas esferas do ser, a qual se encontra em rigorosa correlação com classe de atos determinados em cada caso, particularmente, para todo possível humano “saber de algo”, constitui uma pressuposição universal da eidologia do conhecimento para a teoria do conhecimento em geral [...].131 Cfr. nota 3. 131 M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, GW 7, Bonn: Bouvier, 2009, 130 Cada coisa que o homem venha saber, então, se dá sempre aparado por um fundo que lhe dá suporte e significado, permitindo que os juízos de realidade do objeto conhecido não sejam palavras vazias 132 . Este significado surge mediante a vivência da realidade, que abre o caminho para recondução dos dados da experiência ao todo e essencial. No caso da esfera do mundo externo, aquelas qualidades essenciais dos objetos, apreendidas já pela percepção natural, não são as propriedades factuais ou aspectos contingentes com que as coisas aparecem, por exemplo, na pluralidade de cores, formas e figuras. Ao contrário, elas são a determinação mesma das coisas como objetos da experiência cotidiana como uma presença efetiva, temporal e espacialmente localizadas no mundo. Trata-se, pois, de uma experiência ontológica, em que a coisa é dada como existente em si mesma, ou melhor, como algo subsistente. Porém, em primeiro lugar, esta determinação não é teoréticocategorial, mas sim uma vivência originária no âmbito da vida anímica p. 230-1; tr. esp., Esencia y formas de la simpatía, Buenos Aires: Losada, 1950, p. 316-17. Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 44; tr.por., p. 52. 151 132 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics da realidade efetiva, experimentada como uma resistência essencial inerente a todas as coisas e próprias ao posicionamento delas no mundo. Portanto, a existência das coisas não se deve a uma mera constatação empírica, mas sim a certo tipo de confronto e reação, oriundos do direcionamento a partir do núcleo da estrutura unitária da abertura do homem em direção ao mundo.Este movimento tendencial define o homem como ente espiritual, já que esta ekstase do modo de ser humano não se dá por forças instintivas como no comportamento animal, mas em virtude do puro modo de ser humano, independente, pois, dos impulsos pulsionais e da exterioridade do objeto; nele, encaminha-se o homem para a Sachlichkeit do objeto, a coisalidade da coisa, a partir de si mesmo e das próprias “motivações” 133. E, todavia, trata-se de um direcionamento e comportamento livre que já está em ação na dimensão anímica da vida humana, guiando as forças, impulsos e ímpetos pulsionais, isto é, também está ali a operar, neste âmbito fisiológico e psíquico, justamente aquilo que caracteriza a manifestação do espírito: o acontecimento da gênese do homem enquanto a elevação de si mesmo até a abertura de seu mundo. Daí que o direcionamento pulsional, que na verdade possui raízes no centro espiritual-pessoal do homem, deve chegar à mais simples sensação, para que haja aquela originária vivência da realidade das coisas, sem que ainda nisto se formem imagens representativas dos objetos e do mundo. Sem isto, repete-se, o homem não viveria num mundo povoado de objetos, mas seria apenas uma espécie a mais daquelas incluídas em determinado meio-ambiente, junto com plantas e animais, vivenciando de modo muito mais primário a “resistência” das coisas; vivência ainda insuficiente para a formação de objetos e, assim, para posicioná-los espaço-temporalmente dentro numa ordenação prévia (o cosmos). Por conseguinte, anterior a qualquer representação e 134 consciência , a ideação não se alcança pela via de uma virada copernicana à estrutura e princípios lógicos da consciência transcendental, pois, de tal modo a redução das coisas à consciência absoluta representaria um sério impedimento para a estruturação e elevação de uma Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 33; tr.por., p. 38. Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 43; tr.por., p. 51. 133 134 152 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 152 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics metafísica de cunho fenomenológico do conhecimento assentada sobre uma base teorético-essencial 135 . Consequentemente, impedir-se-ia a fundação de teorias sobre a realidade na intuição de essências e garantir um conhecimento radicalmente a priori136, fornecendo para as ciências positivas axiomas que possam orientar a reta direção para os procedimentos de observação, indução e dedução frutíferos137. Para evitar tal desvio, a concepção de a priori que se requer não deve ser somente formal no sentido de possuir a função de constituir leis do entendimento, invariáveis e prévias aos dados cambiantes, materiais da experiência empírica (como em Kant), mas sim deve ser da modalidade que valha para a essência de todos os âmbitos de objetos, inclusive para essência do ser real das coisas contingentes, bem como para a necessária conexão entre intuição da essência e dos dados cambiantes que a acompanham. Na terminologia de Scheler, necessita-se uma determinação das essências que funde uma fenomenologia material – matéria, certamente, não sentido usual e empírico, mas enquanto Cfr. M. SCHELER, Die Deutsche Philosophie der Gegenwart, p. 311. 136 Cfr. M. SCHELER, Die Deutsche Philosophie der Gegenwart, p. 309. 137 Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 41; tr.por., p. 49. 135 aquele concreto que surge, como bem observa Rombach, das experiências no cotidiano, do agir, do falar e comunicar, da ciência e da técnica e assim por diante 138 . Assim, fenomenologia é conhecimento material, na medida em que procura trazer os objetos (enquanto algo que está dado como exemplo no interior de qualquer esfera de ser, isto é, como Gegenstand) para a densidade e proximidade da intuição de essências, quanto mais amplamente seja possível, tanto quanto de modo puro e sem prejuízos139. Ela deve se voltar para os objetos de todas as espécies e, em direção radicalmente diversa à compressão formal-funcional da ideia de a priori, conformar-se como determinação da obejtualidade destes objetos140, assim como transformá-la, conquanto se reconfiguram “as formas de pensamento e intuição, de amor e de valoração, através da funcionalização de novas intelecções essenciais”141. Cfr. H. ROMBACH, Phänomenologie des gegenwärtigen Bewußtsein, Freiburg/München: Karl Alber, 1980, p. 126. 139 Cfr. M. SCHELER, Die Deutsche Philosophie der Gegenwart, p. 309. 138 Cfr. M. SCHELER, Die Deutsche Philosophie der Gegenwart, p. 309. 140 Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 42; tr.por., p. 49. 153 141 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Assim, necessariamente referida às vivências, a recondução às essências se dá mediante a experiência das formas fundamentais dos entes enquanto estrutura prévia dos dados concretos da percepção, pois “o logos da essencialidade se descortina a partir do mundo concreto e patente das coisas” 142 . Para que o ato de ideação alcance a essencialidade das coisas e ordenação do mundo, é necessária, portanto, a percepção interna e externa – no sentido mais lato, porém, fundamental, de apreensão de uma totalidade verdadeira (Wahr-nenhmung). Todavia, esta necessidade se revela na sua força impositiva, na medida em que se retém o seguinte: nenhum ato perceptivo, nem mesmo a sensação, é por princípio cego. Até mesmo a mera observação de fatos empíricos já pressupõe a visão da essência daquilo que se quer observar143, de tal modo que um princípio puramente empírico do conhecimento não pode ser, a fortiori, admitido. Assim, antes de ser uma forma de uma filosofia idealista, a ideação é, pelo contrário, a forma de uma fenomenologia experiencial144, na medida em que a intuição das essências é conjunta com a experiência que possui por correlato as formas fundamentais ou dos modos de ser dos entes que, numa estruturação em diferentes níveis e camadas, perfazem a complexa ordem ontológica do cosmos. Deste modo, a ruptura com a existência casual das coisas provocada pelo ato de ideação, anunciando a cisão entre existência e essência, não se dá por uma corte com o mundo e refúgio no interior da pura consciência transcendental, assumindo o conhecimento das essências numa perspectiva teoréticoformal, ao modo kantiano, isto é, determinando-o como dependente de uma estrutura racional invariável enquanto condição a priori de uma experiência possível. Ao contrário, a ideação já pressupõe a ideia de homem como um centro de atos espirituais, dirigindo-se para o fim de uma tendência pré-representativa enquanto conteúdo material de uma experiência vivida. Pressupõe, portanto, a constante determinação da coisalidade (Dinghaftigkeit) ou unidade das coisas como um bem145, M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 42; tr.por., p. 50. 143 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 218; tr. esp., p. 301. 144 142 Cfr. H. ROMBACH, Phänomenologie des gegenwärtigen Bewußtsein, p. 124. Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, 154 145 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 154 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics isto é, de uma dignidade pertencente às coisas mesmas, para qual se dirigem os atos espirituais. E, junto a isto, é pressuposta também a emergência do mundo ordenada em esferas como correlato inseparável e indissociável do “ato” de tornar-se ele mesmo. Parafraseando o que afirmou Merleau-Ponty a respeito da redução fenomenológica146, a ideação ensina o paradoxo que, para ver o mundo com maior claridade e apreendê-lo na realidade originária, é preciso romper com a tendência sensual e familiar do homem de vê-lo somente como correlato de sua sensibilidade, crendo falsamente que a resistência que o mundo oferece consiste naquilo que aqui e agora se dá de maneira efetiva e casual. Assim, o ato de ideação é a suspensão do mundo supostamente real, supressão de sua realidade pretensamente imediata, mas que não GW 2, Bonn: Bouvier, 2000, p. 43; tr. it. Il formalismo nell’etica e l’etica materiale dei valori, Milano: San Paolo, 1996, p. 41-42. Cfr. M. MERLEAU-PONTY, Fenomenologia da percepção, São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 10: “...justamente para ver o mundo e aprendê-lo como paradoxo, é preciso romper nossa familiaridade com ele, e porque essa ruptura só pode ensinarnos o brotamento imotivado do mundo. O maior ensinamento da redução é a possibilidade de uma redução completa”. 146 é senão a soma das aparências e propriedades observáveis. Suspendêlo, porém, não com a finalidade de abandoná-lo, mas sim de percebê-lo desde o dinamismo que o constitui em sua verdade prévia, que o descortina desde sua origem e possibilidade. É que a vivência originária da realidade do mundo não vem de depois e por força da representação, mas antes e por força do espírito do homem. Por isto, primeiramente, é preciso dar-se conta de algo esquecido pelas ciências, a saber, da condição própria ao homem de ser o único ente capaz de comportar-se livre das próprias pulsões e, assim, dirigir-se abertamente em direção ao mundo, abrindo-o constantemente e deixando aparecer nele os objetos de sua experiência vivida mediante a recondução deles às esferas do ser – o que mostra, assim, tanto uma aproximação de Scheler à posição de Heidegger com sua fenomenologia como ontologia fundamental, que estabelece o existencial ser-no-mundo (in-der-Welt-sein) como base unitária das determinações a priori do modo de ser humano147, como também um Cfr. M. HEIDEGGER, Sein und Zeit, Tübingen: Max Niemeyer, 2006, p.53; tr. por. Ser e tempo, Petrópolis: Vozes, 2000, p. 90-91. 147 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler 155 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics nítido afastamento da de Husserl 148 . No entanto, o paradoxo é explicado, em seu cerne, no sentido de uma desrealização do mundo e, assim, como sendo um ato negativo contra a realidade do mundo e inibitório das Sobre o significado deste movimento de afastamento e aproximação, cfr. H. ROMBACH, Phänomenologie des gegenwärtigen Bewußtsein, p. 124. Em síntese, o autor admite uma posição intermediária entre as duas possibilidades distintas da fenomenologia, representadas pelo pensamento de Husserl e Heidegger, isto é, entre fenomenologia transcendental e fenomenologia ontológica. Com a fenomenologia de Scheler, um passo avante foi dado, porém, este passo não transforma ainda a ideia da subjetividade transcendental. Antes, a ideia de uma “experiência ontológica” seria apenas o preenchimento da possibilidade aberta com Husserl da subjetividade transcendental. A transformação desta subjetividade necessitaria da concepção da autogênese do ser, mediante o conceito heideggeriano de modo de ser, não sendo suficiente a noção de “esferas do ser”. Não obstante, dada a emergência do conceito de mundo enquanto esferas interdependentes do ser, Scheler estaria mais perto de Heidegger que de Husserl. 148 pulsões vitais149: para ver o mundo na sua própria evidência, na imediação da experiência concreta que dele se faz a todo instante, é necessário dizer um vigoroso não ao ímpeto vital, que só quer ver o mundo a partir de certos aspectos das coisas. Por certo, não se deve tomar esta negatividade como aniquilação, nem a inibição como mera repressão. Esta última apenas evita a animalização do espírito. E não se trata meramente de uma negatividade meramente negativa, mas que possui um significado altamente positivo, pois, é justamente mediante a desrealização do mundo que aparece o mais característico do espírito humano, com o que se pode adentrar nas profundezas escuras da essência do homem 150 . Com efeito, para chegar à(s) essências(s), quanto mais densa, mais profunda, mais ampla tanto possível, também, pois, a realidade que genuinamente se experimenta mediante a percepção sensível também ser suspensa. Neste sentido, o essencial da ideação pode ser compreendido como um ato ascético: “Se a existência é ‘resistência’, este ato ascético de Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 44-5; tr.por., p. 52-3. 150 Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 42; tr.por., p. 50. 156 149 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 156 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics realização só pode subsistir em meio à suspenção, em meio a um desligamento justamente daquele ato ímpeto vital, em relação ao qual o mundo aparece antes de tudo como resistência”151. Então, na passagem da “resistência” sensual para a verdadeira resistência da experiência, no seio desta suspensão já se encontra um ato de elevação que alça sobre os dados meramente corpóreos. Todavia, esta elevação ao mais alto não aniquila a sensibilidade, mas a reposiciona na sua potencialidade mais própria, dirige-a para a visão do essencial. Somente um ascetismo ressentido, por ser fundamentalmente cego para as forças e unidades mais nobre da vida, pode ser um ódio ao próprio corpo 152 . O ascetismo mais autêntico, ao contrário, é meio para uma vida mais vigorosa, disposta a uma expressão mais pura das funções vitais. Em síntese, o ascetismo pode ser amor do homem a si próprio, no sentido de querer elevar-se sempre mais alto, rumo à própria essência. Na base desta compreensão positiva, o homem é asceta da vida, aquele que “protesta eternamente contra toda realidade”153; e isto por graças o ato de ideação. Em virtude deste caráter ascético, este ato, por sua vez, deve se elevar para acima da resistência e se conformar um ato que se tende e aspira a um fim que não é real, mas não nem por isto irreal, mas fonte de toda realidade. Ascética, então, é a inteleção rigorosamente evidente, válida a a priori para todos os entes, todas as determinações casuais, que compreende todos os exemplos possíveis de entes, portanto, dirigida para a esfera do absoluto. E seu fim não é senão o ser ou a essência em sua expressão mais ab-soluta154, isto é, o ser em seu fundamento abissal. A tendência a este fim é inerente ao próprio ato, na medida em que a ascese constitui a essência do espírito humano. Em todo caso, o ideal ascético contido no ato de ideação não Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 44; tr.por., p. 53. 153 M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 44; tr.por., p. 52. 151 Cfr. M. SCHELER, Das Ressentiment im Aufbau der Moralen, in Vom Umsturz der Werte, GW 3, Bonn: Bouvier, 2007, p. 87-9; tr. por., O ressentimento na construção das morais, in Da reviravolta dos valores, Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: Universitária São Francisco, 2012, p. 109-111. 152 Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der Philosophie und der moralischen Bedingung des philosophischen Erkennens, in Vom Ewigen im Menschen, GW 5, Bonn: Bouvier, 2007, p. 98; trd. por., Sobre a essência da filosofia e a condição moral do conhecimento filosófico, in Do eterno no homem, Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: 2015, p. 131. 157 154 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics deve fazer olvidar que a essência humana se encontra na trama entre realidade e ideia, ímpeto vital e espírito, absoluto e contingente, na qual os elementos se perfazem em estreita unidade e tenso equilíbrio. Ao alcançar este grau mais alto da intuição das essências, certamente o conhecimento já é mais o das ciências positivas, mas sim o conhecimento das essências que caracteriza a filosofia. Como afirma Heidegger, filosofia é metafísica, desde que a compreensão desta última palavra se movimente no essencial, no cerne do conceito 155 , despindo-a de sua significação técnica ou escolar. A ideação, então, não possui somente o papel devolver às ciências positivas bases novas e rigorosas mediante da determinação de pressupostos mais elevados e superiores. Também, a ideação cumpre sua função em relação à metafísica: reenviá-la constantemente para o absoluto, pois nenhuma realidade, mesmo reduzida a causas empíricas de tipo infinito, pode Cfr. M. HEIDEGGER, Die Grundbegriffe der Metaphysik: Welt, Endlichkeit, Eisamkeit, Frankfut a. M.: Vittorio Klostermann, 2004, p. 36-37; Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão, Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 3031. 155 significar adequadamente a existência de uma essência absoluta, definida historicamente como ens a se156. Neste caso, filosofia, enquanto metafísica, é anseio por alcançar uma existência supra-singular a se, melhor, a essência de um espírito que se doa de maneira espantosa e evidente como o “abismo do nada absoluto”157. Então, filosofia é o conhecimento de uma essência absoluta não em relação aos entes, mas na evidência de seu modo próprio de ser ab-soluto, plenamente em si e para si. Em todo caso, no momento, é preciso destacar o fato de metafísico ser este anseio de elevação ou tendência para este fim. Como tal, a metafísica é movimento, que pressupõe a unidade e a luta tensa entre os sentidos do corpo e a intelecção das essências no espírito, que acabam por conduzir o conhecer para a visão de sua meta, em permanente ascese e ascensão ao de mais alto valor. Apesar de toda a Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 41; tr.por., p. 49; Vom Wesen der Philosophie und der moralischen Bedingung des philosophischen Erkennens, p. 94; trd. por., p. 125-26. 157 Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der Philosophie und der moralischen Bedingung des philosophischen Erkennens, p. 152; trd. por., p. 127. 156 158 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 158 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics brevidade do exposto acima, este traço eessencial permite afirmar que, em base do ato de ideação, tal ascese supõe uma metafísica do amor, como motor e meta deste ato espiritual rumo à(s) essência(s) até chegar àquela da não realidade, porém, de existência absoluta. Deste modo, o amor não está incrustado na essência na filosofia, no phileĩn tò sophón, somente como via e método para o conhecimento, mas também seu fim último e absoluto. O que, de fato, permite tal afirmação? Consideramos brevemente três indícios que levam a concluir a respeito desta pertinência entre amor e conhecimento. a) Primeiramente, o amor é clarividente; é tão vidente como o ato fundamental do conhecimento, a intuição das essências, que mantém os olhos abertos do conhecer às esferas límpidas e claras do ser junto a cada ente em particular. Para explicitar esta clarividência, porém, é preciso ter em conta os preconceitos da compreensão cotidiana e da moderna consciência, que impedem a apreensão do fenômeno da clarividência do amor. Para esta nova consciência, em oposição à mentalidade medieval e representação cristã, para a qual o amor é um ato espiritual não sensível 158 , o amor é um estado de Em primazia para a mentalidade do homem medieval, pois, o amor é ato de 158 sentimento 159 . É o sentir-se bem na comoção de fazer o bem ao outro, mas também no compadecer-se com os seus sofrimentos. O amor não é mais ato e movimento de tipo espiritual, mas sim, no muito, movimento e “encontro” de estados anímicos, porém, enquanto inclinação para vivenciar as vivências sentimentais alheias, por exemplo, reproduzindo-as ou deixando-se impactar pelas disposições alheias ou, ainda, interiorizando-as, no esforço de se transportar para o interior da alma de outrem, bem como se voltando para fora, ao se revoltar, num ímpeto emocional, contra as injustiças e depredação da dignidade um deus amante, melhor, o ser da pessoa divina. Consequentemente, o amor não é exclusivamente o movimento radicado no ser de todas as coisas em direção à divindade, nem o “impulso” e caminho de passagem para a apropriação do saber pleno e perfeito que só de dá pelo conhecimento da divindade, por exemplo, na teologia de sentido aristotélico. Cfr. M. SCHELER, Liebe und Erkenntnis, 83-84; tr. esp., p. 22-23; Das Ressentiment im Aufbau der Moralen, in Vom Umsturz der Werte, p. 71-74; tr. por., p. 89-94. 159 Cfr. M. SCHELER, Das Ressentiment im Aufbau der Moralen, in Vom Umsturz der Werte, p. 73; tr. por., p. 93. 159 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics humana160. Tudo isto se traduz, entre outras expressões, em comportamentos sociáveis e ações úteis para a comunidade e para a ampla efetivação do bem-estar social, que, no conjunto, descrevem a ideia a ideia do moderno humanitarismo. Característico deste novo amor é fato que ele ama não o homem concreto em sua singularidade, mas o homem em geral 161 . Ama-se a todos e a dignidade ideal de todos os seres humanos, mas não se ama, na verdade, a ninguém como pessoa, dotada de valores singulares. Ele é, então, a disposição impessoal para ampliar, em um círculo quanto mais largo possível, o bem-estar universal, nem que seja ao grave preço da uniformização ou homogeneização do homem em sua essência ou das condições necessárias para o bemestar social. Este amor, por mais clarividente que seja do ponto de vista dos seus princípios racionais universalistas, é cego. Não é, com efeito, capaz de ver os valores positivos e singulares. A raiz desta cegueira se planta na compreensão que o amor seria um fenômeno especificamente humano tanto na sua proveniência quanto na sua destinação, isto é, um ato psicológico que teria por fim somente outro ser humano como objeto de amor 162 . O erro desta cega compreensão se revela por meio do dado fenomenal que “o amor está dirigido originariamente a objetos com um valor”. Para o homem, o amor se dirige “somente apenas enquanto e até o ponto em que ele é portador de valor; contanto ele é capaz de uma elevação de valor”163. Nesta medida, esta compreensão racionalista é privada da clarividência do amor ao desconsiderar que também se pode amar originariamente objetos de múltipla natureza em ampla vastidão. Ama-se o conhecimento, a arte, a natureza, por exemplos, não restritamente a pessoa humana, desde que em todos estes objetos se manifeste algo valorosamente digno, desde eles mesmos. O amor só faz ver Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 157-59; tr. esp., p. 214-16. A fundamentação contida nestas páginas serve de base para a argumentação sinteticamente aduzida no presente parágrafo. 163 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 157; tr. esp., p. 215. Inclui a próxima citação. 160 162 Cfr. M. SCHELER, Das Ressentiment im Aufbau der Moralen, in Vom Umsturz der Werte, p. 97-100; tr. por., p. 122-25. 161 Cfr. M. SCHELER, Das Ressentiment im Aufbau der Moralen, in Vom Umsturz der Werte, p. 96, 101; tr. por., p. 120, 127. 160 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 160 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics mais nitidamente o que neles já está presente. Poder-se-ia objetar que tal amor, cujos fins vão muito além da natureza humana, não seria senão expressões antropáticas e, por consequência, não seria nada mais que a projeção afetiva de vivências humanas nas coisas e no conjunto do universo. Ora, esquece-se esta objeção que, neste caso, já não mais se trata de amor, mas sim de um egoísmo provocador de ilusões: na verdade, ama-se no objeto de amor a imagem e o reflexo de si mesmo. Daí a decorrente emotividade ou sentimentalidade que se experimenta diante de algo supostamente amado. Tais fenômenos da emotividade e da sensibilidade, tanto mais exacerbadas, mostram que, de fato é possível tomar o amor por uma projeção, na medida em que lança as próprias vivências sobre o que se ama, justamente porque este não se tornou objeto de amor por sua própria índole, totalmente estranha à natureza do amante. O genuíno amor, pelo contrário, supõe que o que se ama se mostre em sua absoluta singularidade e em radical diferença com o amante, isto é, apareça por ele mesmo como amável por razão de seus próprios valores. O amor, portanto, por princípio, nada possui em comum com sentimentalidades e emoções, sobretudo, quando regidas por cegos impulsos psicossomáticos. Conforme a consciência cotidiana, por sua vez, o amor é “paixão”, arrebatamento sensível e impulsivo, que em nada segue a razão. Deste modo, o amor seria cego como o ódio e ambos não veriam com os “olhos do espírito”. Como se nota, a compreensão cotidiana, geralmente, também nasce de uma atitude racionalista para com o amor e o ódio. Esta compreensão comete, no mínimo, dois erros. Primeiramente, toma a clarividência do amor por aquela da razão. Mas o amor possui sua própria visão e evidência que não se deve medir pela evidência da razão164. O amor e o ódio tem boa vista para aquilo que amam ou odeiam, preferindo (ou desprezando) isto àquilo. Dizendo junto com Pascal, o amor é como o espírito de fineza, capaz de ver coisa num único relance, descortina o que está diante dos olhos de toda a gente num único olhar, sem precisar manusear, explicar e Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 230-1; tr. esp., p. 208. Aqui, também se deve recordar a setença pascalina a respeito da primazia e autonomia das leis do coração, que são só suas e cuja clarividência o entendimento lógicogeométrico não pode apreender e compreender, conforme já indicado na nota 6. 161 164 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics demonstrar o que vê 165 . É que a “essência de uma individualidade de outrem, que é indescritível e nunca surge em conceitos (“individuum ineffabile”), somente no amor ou no ver por meio dele brota integralmente e de modo puro”166. Por esta razão, são só os amantes que possuem uma aguda mirada no objeto amado, são eles que podem ver com “objetividade” e realismo aquilo que é só superficialmente visto por muitos. É claro que o amante pode ver mais coisas que existem no ser ou objeto amado, mas, neste caso, tratam-se de ilusões, idealizações e todas as formas de degradações subjetivas do que é real e objetivo. Mas também em tais situações, o que se apreende que é o amor precisar ser vidente, para que o amante possa perder a sua clarividência, isto é, ser vítima das próprias inclinações, interesses egoístas, ideias, valorações e tudo mais que ofusca a visão. Também quando o amor não se perde nas ilusões, mostra-se a limpidez da visão do amor: o amor genuíno não deixa de ver as “faltas” concretas da pessoa ou objeto amado, mas o ama Cfr. B. Pascal, Pensamentos, fragmento 512 (Edição de Brunschvicg: 1), p. 235-37. 166 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 163 tr. esp., p. 221. 165 com elas 167 , porque as vê sem interesse que seja assim ou de outro modo. Também erra a compreensão cotidiana ao confundir a clarividência do amor com a “cegueira” dos impulsos sensíveis. São estes, pois, que, ao acompanhar sempre o amor, podem limitá-lo ou detê-lo, fazendo-o “cego”. Por isto, as emoções que vão junto ao amor não são necessariamente cegas; somente o são quando se entende o amor como sendo uma “paixão” impulsiva e sensível168. Nesta confusão, a visão do Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 160; tr. esp., p. 219. 167 Em si, as paixões não são sentimentos impulsivos e, assim, arrebatamentos passageiros. Por isto, seriam cegas por natureza. Pelo contrário, são atos duradouros que provém do centro profundo da alma humana. Com efeito, grandes amores necessitam de intensas paixões. Estas podem ser descritas como um olhar preferencial sobre o mundo ou uma visão unilateral, que isola e discerne determinados valores no objeto amado ou categorias axiológicas específicas, prendendo o querer humano a certos âmbitos e domínios de atividades e ação. Como tais, as paixões são uma orientação axiológica especializada que movimenta por longo tempo, de modo constante e intenso, a vida impulsiva. 162 168 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics amor se obscurece, já que são rebaixados a critérios subjetivos e a objetivos sensuais os atos primários do espírito, que fazem possíveis os objetos, mas também são inerentes ao amor: o tomar interesse por, ter atenção à, selecionar (no sentido de dirigir a atenção à) e preferir. Não obstante ambos os erros, por virtude da clarividência, o amor é o ato que abre os olhos do espírito. Como esta abertura acontece, porém, somente poderá ficar mais claro a partir da segunda consideração. No entanto, é importante reter que é como ato vidente do espírito que o amor adere ao conhecimento. b) Em segundo lugar, o amor é ascético como o conhecimento, sabe alçar-se para acima das realidades ínferas, subsumindo-as a uma esfera mais nobre. O termo ascético não se aplica explicitamente ao amor, tal como fora aplicado ao conhecimento por Scheler, no escrito Die Stellung des Menschen in Kosmos. E, no entanto, no Sympathiebuch, quando se descreve o traço fundamental do amor e do ódio, é claramente expressa a ideia que estes fenômenos unicamente são intuídos quando se apreende a ideia de movimento. No caso do amor, um movimento ascensional; o ódio, porém, movimenta-se em direção oposta: Em primeiro lugar, o amor e o ódio não se distinguem como se o ódio fosse somente o amor à nãoexistência de uma coisa. O ódio é, muito mais, um ato positivo, na medida em que é dado de modo tão bem e igualmente um des-valor (Unwert), como no ato do amor um valor (Wert) positivo. Enquanto, porém, o amor é um movimento, o qual vai do valor mais baixo ao valor mais alto e no qual, em cada caso, relampeja o valor mais alto de um objeto ou pessoa, o ódio é um movimento oposto. Com isto, algo mais é dado, a saber, que o ódio está dirigido à possível existência do valor mais baixo (o que, como tal, é um valor negativo) e à anulação (Aufhebung) da existência dos valores mais altos (o que, novamente, é um valor negativo). O amor, porém, dirige-se ao pôr (Setzung) dos possíveis valores mais altos (o que, em si mesmo, respectivamente, à conservação dos valores mais altos, e à anulação (Aufhebung) dos possíveis valores mais baixos (o que, em si, é um valor moral positivo). O ódio, portanto, não é um puro ‘trancarse’ ao total reino dos valores como tal; está ligado, muito mais, a um Porém, também elas são regidas pelo amor e ódio. Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 373; tr. por., p. 36-37. 163 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics positivo dirigir a vista para o possível valor mais baixo169. As afirmações acima não só confirmam a clarividência do amor e do ódio, mas também demonstram que o amor é um movimento intencional do ato que deixa aparecer o valor mais alto (o nobre; o mais belo e o mais cognoscível; o mais sagrado); por sua vez, o ódio deixa aparecer o é que mais baixo do ponto de vista valorativo (o mais vil; o menos belo e menos evidente do ponto de vista do conhecimento; o mais profano). O amor ascende, enquanto ódio descende – cada vez, em âmbitos diversos, mas o movimento traspassa o todo da constituição humana: dimensão vital, psíquica e espiritual. Este movimento se dá ao modo de uma anulação (Aufhebung). Anular, porém, não pode ser entendido simplesmente como ato de aniquilar. Há modos diversos de anular e entre eles está o conduzir algo, subsumindo-o a outra dimensão. Subsumir é entregar, conceder, submetendo e somando o que foi entregue àquilo a que foi concedido e, ao mesmo tempo, levando este último ao uma posição mais alta. O ódio Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 155-56; tr. esp., p. 212. 169 nutrido pelo ressentimento, por exemplo, no âmbito moral, entrega ao que é vil tudo o que é mais nobre no homem, não só no interior da dimensão vital, mas também redefinindo o equilíbrio tenso entre as dimensões humanas em favor do que na constituição do humano é inferior em dignidade: o espírito em função do psíquico e este, por sua vez, em função da sensibilidade. E, nisto, pode colocar em posição superior os ditames e prazeres da esfera vital. Assim, o ódio é uma submissão, que descende, operando uma inversão para a direção oposta do “ascetismo”; em comparação com o conhecimento, que se dá no âmbito dos atos puros do eu, ódio estaria para a infundada colocação das essências a e apreensão a priori delas sob o jugo da realidade empírica, dando primazia aos dados contingentes da sensibilidade. O amor, porém, entrega o que é mais baixo ou que já é por si alto em valor, subsumindo-o no que é mais alto ainda, proporcionando que a vida humana alcance o máximo vigor de suas forças, torne-se mais intensa, segundo o sentido mais próprio de ser vida humana. O amor, enquanto ato espiritual, pode-se dizer, também é um ato ascético, na medida em que em realiza esta submissão ascendente. Por razão deste movimento, não obstante em filosofia a mera 164 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ocorrência da mesma palavra em contextos diversos não demonstre nenhuma evidência, talvez, também este tipo de anulação ascendente é utilizada para descrever o que de há de mais nuclear no conceito de ideação: Aufhebungs der Wikrlichkeitscharakters (suspensão do caráter de realidade) ou Realitätsmoment selbst (für uns) aufheben (suspender, para nós, o momento próprio da realidade do mundo)170. Como, porém, se dá este movimento ascendente-ascético? Certamente, tal ascensão não é a consequência de uma escolha arbitrária e subjetiva, consumada depois de uma comparação de valor. Se assim fosse, não haveria um genuíno ato de amor, mas uma determinação referida à vontade do sujeito ao escolher isto ou aquilo. A ascensão, que acontece no movimento do amor, possui seu ponto de partida, portanto, não da escolha seletiva, mas de outro fenômeno: a preferência. O amor acontece, é verdade, mas desde que o valor da coisa ou pessoa amada o suscite, porém, depois de ter se dado um ato de preferência entre vários objetos dados171. Ora, para que Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 42, 44; tr.por., p. 50, 52. 170 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 159; tr. esp., p. 217. 171 irrompa o movimento do amor, é necessário que haja, primeiramente, um ato de conhecimento afetivo ou emocional, que apreenda de antemão não só valor do objeto amado, mas também algo ainda mais essencial: a possibilidade deste valor se mostrar ainda mais sua essência peculiar 172 . Tal modo afetivo de conhecer define o ato de preferir, que é como um distinguir, um “trazer para frente”, porque antes diversos objetos foram percebidos distintamente por meio do valor de cada um. O conhecimento afetivo, então, jamais é uma percepção homogênea e indistinta. Pelo contrário, começa com a preferência de um valor singular. Com efeito, quando a atenção é regida pela preferência, percebem-se em primeiro plano somente algumas qualidades sensíveis, como que todas as demais se escondessem aos sentidos; conhece-se algo em detrimento de outras coisas e tanto mais as pessoas. Enfim, “as direções de nosso representar e perceber seguem as direções de nossos atos de tomar interesse e nosso amor e nosso ódio” 173 . Amamos aquilo pelo qual nutrimos grande interesse, porém, não nos interessamos por nada, se Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 156; tr. esp., p. 21213. 173 Cfr. M. SCHELER, Libe und Erkenntnis, 96; tr. esp., p. 45. 165 172 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics antes não preferimos o objeto de nosso interesse. Nada, então, seria percebido e amado, se não fosse, primeiramente, preferido. Preferir é, num relance, saber que algo é por si mesmo nobre, belo, bom, sagrado, sem que para isto seja preciso antes comparar, emitir um juízo e, enfim, selecionar. Assim, não decorre necessariamente em escolher, pois significa, antes de qualquer coisa, fazer atenção solicitamente ao que se mostrou por si mesmo como o mais alto em dignidade de ser amado, portanto, o mais valoroso, mas de tal modo que neste fazer atenção se permita que o valor do objeto amado se eleve. É essencial ao campo visual do amor, como também no âmbito moral 174 , que bens e pessoas se mostrem por si mediante configurações axiológicas individuais e únicas numa série de eventos, cujas exigências valem senão para aquele específico e oportuno “momento” histórico. Isto significa que, em modo breve, a preferência pressupõe o relampejar do valor e do “quanto” ele ainda pode ser mais valoroso unicamente a partir das próprias potencialidades axiológicas. Pelo ato de preferência, então, o espírito abre os olhos para o relampejar do valor, dando início ao movimento ascendente do amor. Fundamental é que o amor não fixa o olhar no que vê, mas, por sua natureza ascética, sempre vê primeiramente no visto a possiblidade de alcançar a sua essência axiológica em mais alto grau. Esta visão não é reação, pois o valor visto não é um fato meramente empírico. E, no entanto, o amor abre os olhos do espírito para o que está aí, sem se estagnar diante do que está já presente como que à mão, porque encontra este ser-aí como possibilidade de ser alto no próprio valor. Coisas e pessoas amadas são visualizadas como promessas de sermais o que já são; o raio do olhar do movimento do amor, pois, espreita mais além daquilo que está dado, vislumbra mais do que possui na mão 175 . Contudo, este ver e o movimento que nele é mirado não é idealização, por exemplo, como a intenção de melhorar o objeto amado, com também na atitude “pedagógica” que tem por meta criar novos valores. Pois, em tudo isto, por serem modos de fazer desaparecer o valor anterior e mais baixo e, assim, fechar os olhos para o relampejo do (ser mais) valor dado, representa a posição ad extra de uma meta e conteúdo axiológico de Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 351; tr. por., p. 8. Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 358; tr. por., p. 17-18. 166 174 175 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 166 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ma vontade representadora 176 . Isto significa substituir, formalmente, o fim do movimento intencional por uma posição ou figura ideal do valor, impondo ao objeto amado o que ele deve ser. O amor não é nenhum imperativo categórico e, no entanto, ele diz benevolentemente: torna-te aquilo que és. Assim, seria falso entender essa visão do valor que se relampeja e movimento nela mirado tanto do polo da objetividade empírica quanto da subjetividade idealista, como também da ligação a posteriori de um polo ao outro. Pelo contrário, o movimento ascético do amor somente aparece se mantida a unidade de um só movimento a priori a qualquer uma das compreensões defasadas acima. Sob a égide desta a unidade prévia, o movimento ascético-ascendente aparece, do lado do amante, como o incremento ou aumento da claridade da visão em termos de intuição e significado do objeto 177 (ou em termos de representativos-imagéticos, do ponto de vista do conhecimento), de outro lado, do poder-ser-mais-alto do valor, alcançando a sua “ideal” 178 determinação e, com isto, apresentando-se como qualidades positivas do objeto amado179. Em todo caso, somente no medium do amor esta unidade é possível, isto é, somente no interior do movimento mesmo e ao longo de seu curso, pois, é nisto que os valores aparecem rumo à plenificação de sua essência 180 . A contraprova para afirmar que o movimento encontra-se no medium, anterior aos polos extremos entre valores empiricamente dados e idealisticamente posicionados é a seguinte: consiste em não visualizar adequadamente o fenômeno, ao tomar o movimento do amor por aquilo que seria somente a sua consequência, a saber, uma busca por novos valores. Em síntese, no primeiro caso, a busca insatisfeita e carente de valores mais altos, já empiricamente presentes, porém, ainda não descobertos, é signo de plena falta de amor181. Pois, assim, o movimento do amor não seria senão o Para a diferença entre fim e meta ou objetivo, como também a primazia ontológica do primeiro sobre o segundo conceito, cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, p. 53, 59-61; tr. it., p. 54, 62-64. 177 Cfr. M. SCHELER, Liebe und Erkenntnis, 96; tr. esp., p. 45. 178 176 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 164; tr. esp., p. 222. 179 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 156; tr. esp., p. 213. 180 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 160; tr. esp., p. 218. 181 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 160-61; tr. esp., p. 218-19. 167 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics interesse cada vez mais intenso pelos “méritos” do objeto amado e, ao mesmo tempo, o interesse cada vez menor para as “faltas”. Mas isto, na verdade, é ilusão. Como dito, ama-se o (objeto) amado por inteiro e concretamente, sem excluir as suas “deficiências”. Ademais, se o valor buscado não for empiricamente encontrado, a busca cessaria e instauraria nada menos que a desilusão. Já em relação ao polo da idealidade formal, a busca de criar novos e mais altos valores se transforma na realização do que foi imposto como condição do amor 182 : “tu deves tornar-te isto”, “deves adquirir este valor”. A imposição de uma condição não só transforma o amor em imperativo categórico, como destrói a sua essência fundamental. Com efeito, é uma lei fundamental do amor que não se exija daquilo ou daquele que se ama que tenha estes ou aqueles valores, mas sim amá-lo tal como é, com os valores e desvalores que possui. Amar sem porquê e para quê é o que rege o amor desde sua essência. No sentido de não impor nenhum dever, de lançar-se livremente de condicionamentos em direção ao objeto amado, sem esperar Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 161-62; tr. esp., p. 219-220. 182 reciprocidade, recompensa ou confirmações de projeções afetivas, o amor é, em si mesmo, indiferente. Nesta particular indiferença, por mais paradoxal que possa parecer, que o amor prefere e ama o valor que, no objeto amado, relampeja como um bem único. c) Por razão de sua natureza espiritual e ascética, o amor é puro ato, não apenas, como o conhecimento, ato puro de ideação, pois é correalização. Para compreender esta afirmação, é necessário perceber que, até este o presente momento da reflexão, o amor e o conhecimento se encontraram, por assim, dizer em posições diferentes, porém, equiparadas. Aliás, o amor, até então, foi considerado como via e método do conhecimento. Nesta direção, enquanto se atém a uma ordem ideal se realizando conjuntamente com a consciência, então, no nível psicofísico, aquela equiparação é possível, assim como este modo de consideração do amor. No entanto, se se supõe outra ordem se realizando, totalmente independente, portanto, que se determina a se e pro se, em síntese, uma ordem espiritual – algo que já pode ser pressuposto, em certos limites, pelo conhecimento, isto é, unicamente enquanto ser-essencial do ente espiritual, logo, em termos de puro conteúdo quididativo, mas não 168 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics quanto ao seu ser-existente, muito menos quanto à ausência de cisão entre a essência e a existência deste suposto objeto de conhecimento 183 – tal suposição leva a crer uma essencial inequação entre conhecer e amar. Com efeito, para tal intelecção é necessário um grau de ascese, ao qual não pode chegar o conhecimento, pois aqui não é preciso somente dizer um vigoroso não (à existência vivenciada como resistência), mas também um forte sim à existência. A existência afirmada por este sim, pois, é experimentada pelo e como centro de atos livres, que é pura atualidade (não atualidade pura de atos cognoscitivos). No centro destes atos, portanto, somente o genuíno amor pode adentrar, pois só ele é propriamente no e enquanto o medium de seu movimento. Por esta razão, em toda parte, o amante precede o conhecedor, não só porque o conhecimento afetivo por valores antecipa o conhecimento eidético 184 , mas, sobretudo, porque há regiões ontológicas mais plenas ou esferas do ser enquanto espírito em que somente o amor pode se instalar. Neste sentido, poder-se-ia afirmar que o amor é mais clarividente e ascético que o conhecimento, pois nestas regiões se exige outro modo mais perfeito de vidência e evidência. Tais afirmações, em primeira linha, decorrem do seguinte: Se já o ato não constitui jamais um objeto, com certeza, tanto menos o constitui a pessoa que vive na realização de um tal ato. A única e exclusiva forma de sua dação (Gegegenheit), pela qual se manifesta, é, muito mais, a sua própria realização de ato (também ainda a realização-de-ato da sua reflexão sobre seus atos) – isto é, sua realização-de-ato, no qual ela está a viver e, ao mesmo tempo, se experiencia de maneira vivaz (sich erlebt, vivencia a si mesma). Ou, quando se trata de outras pessoas, [tal forma de dação e manifestação será] a realização concomitante (Mitvollzug, correalização) ou a realização sucessiva (Nachvollzug) ou, ainda, a pré-realização (Vorvollzug) de seus atos. Também em tal correalização e, respectivamente, a realização sucessiva e a pré-realização dos atos de uma pessoa não entra nada de objetivação.185 Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der Philosophie und der moralischen Bedingung des philosophischen Erkennens, p. 96-98; trd. por., p. 12830. 183 Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der Philosophie und der moralischen Bedingung des philosophischen Erkennens, p. 81; trd. por., p. 107. 184 Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, p. 386; tr. it., p. 478. 169 185 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Aquelas esferas, então, são a da pessoa, seja a pessoa divina, seja a humana. Enquanto são o centro do espírito e na medida em que se mostram como livre realização de seus atos, nenhuma objetivação é possível 186 . Da pessoa humana, por exemplo, até é possível objetivar tudo que lhe é corporal e anímico, mas os atos espirituais e as intenções, pelos quais seus atos anímicos são guiados, estes não são passíveis de objetivação. Com efeito, da pessoa humana se pode conhecer objetivamente e fazer imagens representativas do seu corpo físico, da unidade do seu corpo vivo, do seu eu (na medida em que o eu pode se tornar objeto e matéria da percepção interna, mesmo que tal matéria seja pura forma 187 ) e da psique ou alma que lhe corresponde singularmente. Do ponto de vista da objetivação, portanto, a pessoa é uma substância ignota. Até para o amor de outrem e para a própria pessoa, pois, a pessoa individual é algo que escapa a toda e qualquer tentativa de definitiva apreensão e completa definição, quanto mais da presunção do conhecimento absoluto por objetivação. Então, resta que ela somente pode ser dada por um ato de amor e por meio de seus atos de amor – vez que são centros amorosos por excelência 188 . Nesta perspectiva, não se trata de conhecer e amar seus valores particulares, como por exemplo, de suas qualidades, atividades, comportamentos, feitos e obras, nem a soma de todos os seus valores presentes e possíveis. E sim a pessoa mesma como sendo o valor fundamental. Como isto seria ainda possível? Superando a perspectiva de conhecer por atos puros, para o qual ainda é indispensável a presença de objetos, as essências, pelo conhecer por puro ato, isto é, por exclusiva atualidade e (co)atuação do ato. Em outras palavras, pela participação nos atos da pessoa, o que implica correalizar, em consumar conjuntamente com ela, os seus atos de amor 189 . Neste Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der Philosophie und der moralischen Bedingung des philosophischen Erkennens, p. 71-72; trd. por., p. 95. 189 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 166, 168-9, 219-20, ; tr. esp., p. 225, 229, 303; Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 39; tr.por., p. 170 188 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 168-69; tr. esp., p. 228-29; Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 39; tr.por., p. 45. 187 Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, p. 374-75 tr. it., p. 463. 186 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics sentido, o conhecer passa ser tomar parte, antes, durante e depois nos atos pelos quais a pessoa se dá a si mesma, pois aqui se encontra numa esfera em que a individualidade ou singularidade, que é traço fundamental do ser-pessoa, se constitui ao longo do ato em que se configura um conteúdo particular e todo próprio da experiência vivida. Somente assim, isto é, participando espiritualmente nos seus atos espirituais (no pensar, querer, sentir, no todo da pessoa), a pessoa se torna compreensível, sem ser jamais objetivada. Espírito, então, no seu significado mais alto, na sua ação mais vidente, na vivacidade de sua capacidade mais ascética, é (auto)compreensão. Pois, “compreender é, tanto como compreensão de atos, assim como compreensão de sentido objetivo, a qual é diferente de toda percepção e de modo algum fundada na percepção, o modo fundamental de participação de um ser, cuja essência é espírito, no modo singular de ser (Sosein) de outro espírito” 190 . Nas esferas mais altas, então, é preciso abandonar o conhecer objetivante em favor de outro conhecer que é participação e compreensão e, 45. Veja também as páginas referenciadas na nota 57. 190 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen der Sympathie, p. 220; tr. esp., p. 303. portanto, possui leis e objetividade próprias. Isto somente possível como amor. 2. SEGUNDO MOVIMENTO: DO AMOR AO CONHECIMENTO Se amor precede o conhecimento, como ficou acenado acima, então, o amor é ato fundamental, isto é, deve conformar as bases da existência humana mais profundamente que o conhecimento e trespassá-la na sua mais imediata facticidade. Esta diferença essencial já aparece, por assim dizer, no modus operandi do ato ascético que próprio a cada um. O amor nega para elevar o valor objetivo de cada coisa: o amor ama encaminhar cada coisa na direção da perfeição do seu valor, o que já significa, de antemão, o conhecimento e a afirmação da positividade deste valor. O amor só nega ter o valor como algo dado à mão e a cegueira humana para o (poder) ser-mais das coisas e pessoas. Por isto, a negação que define a essência do amor é ato edificativo e construtivo e, ademais, esta ação edificadora e construtiva é uma operação no mundo e sobre o mundo 191 . O amor, pois, edifica o Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 355; tr. por., p. 13. 171 191 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics mundo humano, elevando-o à máxima possibilidade de expressar o que é o ethos histórico de um sujeito individual ou coletivo. Com isto, o amor é capaz de trazer à fala a estrutura e o conteúdo da cosmovisão de um povo; o conhecimento de mundo e o pensamento de mundo de seus membros; as regras de vontade e disposição de entregar-se a certas coisas e não outras de um indivíduo, de uma raça, uma nação e determinados círculos culturais mais extensos ou mais restritos (por exemplo, de uma família)192. De modo diverso é a negação do conhecimento, que transparece mais sob a figura de um ato supressivo e destrutivo, no sentido autêntico e fenomenológico do termo, que edificativo. Com efeito, o conhecimento diz não ao mundo efetivo, não obstante o faça para constituí-lo desde um horizonte prévio, isto é, para deixa-lo surgir segundo sua lei interna, universal, liberando sua estrutura arquitetônica constante e invariável. Por isto, a negação do conhecimento, numa tendência contrária ao instinto animal, é negar o que é real, o positivamente dado e fortuito. A negação do conhecimento enquanto um ato destrutivo, então, visa senão desentranhar algo fundamental, a saber, a estrutura essencial de qualquer mundo possível. Deste modo, o que há de essencialmente afirmativo na negação do conhecimento é que este tem por meta elevar o espírito até a esfera “irreal” das essências. E isto é “totalmente independe de questões de visão de mundo e de questões valorativas” 193 . Assim, o conhecimento, para revelar o mais imediato em si, paradoxalmente, deve romper com o mais imediato para cada homem na facticidade de sua existência, chegando só posteriormente àquilo que, pelo e no amor, já aparece de modo mais imediato e concreto, porém, segundo as regras de preferência e ao modo do conhecimento por valor: a transcendência do espírito enquanto abertura de mundo. Se, em última instância, o que entra em questão é a determinação da essência humana como espírito e o que o constitui essencialmente desde a sua abertura, então, no seio desta inequação “operacional” entre amor e conhecimento, é preciso ir mais aquém e ali supor uma diferença de cunho ontológico pela qual o amor se Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 357; tr. por., p. 15. 193 192 M. SCHELER, Die Stellung des Mensches in Kosmos, p. 44; tr.por., p. 53. 172 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics impõe como ato fundamental. Deste modo, o “amar algo” constitui o ato primeiro em que se fundam todos os demais, pelos quais um objeto o espírito apreende um objeto possível e ao longo dos quais este se torna pleno de significado 194. Na base dos atos intelectivos, volitivos, imaginativos, por exemplo, encontrase o movimento do amor (e do ódio) e a estrutura intencional que mediante ele configura a existência de cada homem ou cada povo ou nação. Por conseguinte, o amor é princípio, conquanto, do início ao fim, rege a abertura do existir humano para as coisas e pessoas. É ato primigênio, no sentido que é ato generativo do homem, na medida em que, em base dos atos amorosos, a sua essência não se dá a ele mesmo, primeiramente, na interioridade enclausurada da percepção de si para si mesmo como ego, mas sim na transcendência de si em direção ao que lhe rodeia: (...) o amor foi sempre para nós, ao mesmo tempo, o acto primigênio, pelo qual um ente – sem deixar de ser este ente limitado – se abandona a si mesmo para, enquanto ens intentionale, participar e ter parte no ente, mas de modo que eles não se tornem quaisquer partes reais um do outro. Por isso, chamamos “conhecer” – esta Cfr. M. SCHELER, Liebe und Erkenntnis, 95-96; tr. esp., p. 44-45. 194 relação de ser - pressupõe sempre este ato originário: um abandonarse a si e a seus estados, os peculiares “conteúdos de consciência”, ou um transcendê-los para, segundo a possibilidade, chegar a um contato vivencial com o mundo. E o que efetivamente denominamos “real” pressupõe, antes de mais, um ato do querer realizador de qualquer sujeito; mas este ato de vontade pressupõe um amor que lhe antecipa, lhe faculta orientação e conteúdo. Portanto, o amor é sempre o despertador do conhecimento e do querer – sim, a mãe do espírito e da própria razão195. Em razão deste estatuto fundamental dos atos amorosos, deve-se partir do amor para conhecer quem é o homem, compreendê-lo na sua essência a partir dos atos pelos quais seu espírito transcende e se expressa, assim como para determinar o conhecimento em sua origem, possibilidades e limites. Não é, portanto, por meio da crítica das possibilidades do conhecimento segundo os interesses e os limites da razão que se deve partir para saber quem é o homem enquanto o ente capaz de julgar, querer e comtemplar, pois estes limites e possibilidades da razão já foram antecipadas por aquilo que o amor deseja e prefere conhecer – e recorde-se segundo o valor que M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 356; tr. por., p. 14. 173 195 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics provém das coisas mesmas e não limites e possibilidades determinadas a priori pelas vivências humanas, muito menos ainda pelos conceitos operativos prévios na forma de funções do entendimento. Este primado, então, se deve em razão de que amor, como ato espiritual e fundamental, instalar uma ordenação estrutural na existência humana, estabelecendo um conjunto de fins e bens a que o espírito humano se abre. Deste modo, é o amor que, primeiramente, está a destinar a existência de cada ser humano em conformidade ao modo em que ele livremente se determina segundo suas escolhas, preferências e julgamentos, conformando a sua personalidade 196 . Por conseguinte, é também o amor que delimita o seu posicionamento moral no mundo. Por fim, em seu primado, o amor circunscreve o mundo circunjacente do homem, na medida em que suas, paixões, preferências e repulsas definem o que será realmente notado, percebido e, assim, preencherá efetivamente a totalidade da ambiência que o rodeia. Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 35253; tr. por., p. 3-4, 9-10. Inclui a argumentação a seguir no presente o parágrafo. 196 Respeitando o duplo significado em que o conceito ordo amoris é empregado na fenomenologia de Scheler, pode-se dizer que tal primado do amor possui tanto um significado normativo quanto fáticodescritivo 197 . Enquanto um conceito normativo, ordo amoris delimita a condição de possiblidade do agir ético. Não se trata, em primeira linha, de definição de normas que regulem as preferências e o querer humano, mas sim de saber que tal estabelecimento pressupõe o fato que a vontade, em seu querer, está previamente delineada pelo (des)conhecimento da ordem de precedência das coisas amadas e amáveis e a hierarquia das mesmas. Se o homem age segundo o amor e o conhecimento que respeita o valor intrínseco e particular de cada coisa e reconhece a hierarquia dos caráteres amáveis dentro da ordem estabelecida por estes valores, relevando-a de modo justo em cada época e para cada povo, esta é uma questão central para a ética. No entanto, deve-se enfatizar que, em primeira instância, a norma para o posicionamento moral do homem no mundo não se fundamentam em leis uniformes, definidas por princípios Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 34748; tr. por., p. 2-3. 174 197 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 174 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics abstratos enquanto fatos puros da razão, mas sim que tem as suas raízes nas leis essenciais e constantes da ordem de precedência e preferência em respeito aos aspectos axiológicos, porque anteriormente à representação dos bens últimos e fins formais do agir humano se encontra a intuição a priori de uma ordem e hierarquia de valores, experimentáveis como qualidades materiais 198 . Neste sentido, o amor possui um primado ético em relação ao conhecimento. A elucidação do componente ético que inerente à modalidade de conhecimento próprio à filosofia 199 bem exemplifica tal primeiro modo de conceber o primado do amor. Ora, como acenado, filosofia é movimento ascendente que possui como meta e objeto um ser absoluto. Tal movimento não é possível se o cerne da pessoa não tende ao valor e ao ser absolutos, de tal modo que toda a esferas de ser relativos e contingenciais sejam colocadas em segundo plano. Deste modo, é pelo amor que o homem é alçado ao ser Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, p. 37-38, 39-40; tr. it., p. 35, 38. 199 Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der Philosophie und der moralischen Bedingung des philosophischen Erkennens, p. 89-90; trd. por., p. 11820. 198 absoluto, para além de objetos que existem somente relativamente ao homem. Todavia, neste movimento, embora primário, o amor não está só. Necessita que este amor ao ser absoluto seja acompanhado pela humildade, a qual, por meio do aviltamento do orgulho natural e “humilhação” do eu natural, faz perceber que a manutenção dos essenciais liames entre eu psicofísico e a restrição do ato cognitivo aos modos existenciais contingentes representam um aprisionamento do conhecer ao plano dos dados fortuitos ou da existência casual e, assim, sério impedimento para corresponder à exigência de conhecimento evidente por essências. Pelo amor humilde, portanto, se cumpre uma necessária condição para o conhecimento filosófico: que o conhecer se aliene do âmbito psicofísico do conhecimento com suas conexões categoriais específicas e se dirija rumo às essências. Nisto, o amor é força motora para um segundo ato que também lhe acompanha, a saber, o autodomino. Por meio deste, os impulsos pulsionais são retidos, quebrando a concupiscência natural e criando a condição moral para a perfeita adequação do conhecimento enquanto plena captação intuitiva da doação dos conteúdos quididativos do mundo. Assim, o amor, ao ser acompanhado da humildade e autodomínio, é condição de específico 175 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics conhecer, cujo tender para um ser absoluto, se falta este componente ético enquanto condição a priori, dissolve-se e se aniquila no egocentrismo, no relativismo, no vitalismo e no antropocentrismo. Mas o conceito de ordo amoris é também descritivo e nesta direção também se deve entender o primado do amor em relação ao conhecer. Como tal, o conceito descritivo revela que “o homem, antes de ser um ens cogitans ou um ens volens, é um ens amans” 200 . Nesta perspectiva, não se trata da estreita ligação dos anseios e querer humanos que determinam o agir humano com a regras de preferência e preterição dos valores com que as coisas se anunciam no mundo humano. Antes, diz respeito às “linhas fundamentais do ânimo”201 do homem, ao “cerne do homem enquanto ser espiritual”, “a fonte originária que alimenta secretamente tudo que deste homem emana”, “o elemento primigênio” que constitui o destino do homem e de uma comunidade, o seu mundo moral e a composição do seu ambiente natural, em síntese, “a totalidade do possível Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 356; tr. por., p. 15. 201 M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 348; tr. por., p. 3. Inclui as expressões apresentas a seguir. 200 de se tornar o que a ele e somente a ele pode acontecer”. Sob a força destas expressões, apreende-se que o amor é a estrutura mais simples da pessoa humana com os seus fins mais elementares, a partir do qual o ser humano existe na unidade e integralidade de seus atos. Deste modo, por detrás de toda expressão cultural, de todas as obras do espírito, em todas as práticas e costumes, ações morais, cosmovisões, enfim, de tudo em que a transcendência do espírito humano vem à fala enquanto abertura de mundo e elevação do homem como ele mesmo deve-se procurar a estrutura e hierarquia de fins que é determinado por uma ordenação do amor. Entre outras consequências, isto mostra que, neste plano ontológico e em virtude dele, os componentes representativos se assentam sob os componentes axiológicos 202 . A reta compreensão do sentido do fluxo dos sentimentos e dos estados emocionais da vida anímica, pelos quais se revela a situação afetiva de um ser humano, bem mostra esta primazia do dado axiológico sobre representativo. Os sentimentos, com efeito, não são o resultado das representações dos objetos feitas mediante o pensar e o Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, p. 54-55; tr. it., p. 56-57. 176 202 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 176 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics perceber, mas da harmonia com as orientações do amor e ódio com as coisas experimentadas no mundo, revelando êxito ou fracasso nestas experiências 203 . Um homem, por exemplo, alegra-se porque, no agir e no querer, toma “posse” de algo que ama ou se vê afastado ou privado do que detesta, não, portanto, porque se faz presente a ele algo que é representado como agradável. Em primeira instância, então, os estados emocionais não são suscitados pela representação do prazer ou do desprazer, mas sim pela atenção aos valores e são relacionados ao dado fenomênico que as experiências cotidianas correspondem ou não aos rumos dados pelo amor e ódio. Assim, os sentimentos são muito mais dependentes dos interesses que são dados antes de quaisquer representações que das imagens dos objetos que delas advém. É que “o interesse codetermina constantemente o facto da representação do objeto, enquanto o sentimento de prazer ou desprazer, produzido pelo objeto, depende da qualidade daquele interesse, da natureza do seu amor e ódio” 204 . Depois, o fato que uma tendência que possui por fim o sentimento de prazer, por exemplo, Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 371; tr. por., p. 34. 204 M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 372; tr. por., p. 35-36. por um alimento, isto não significa que o conteúdo mais imediato do fim não seja o prazer, mas sim o valor pelo qual este sentimento pode se constituir 205 , isto é, antes de ser aprazível, o alimento é algo preferido ou detestado. Ademais, nem todo sentimento precisa de um objeto definido. Como ficariam, pois, os estados emocionais suscitados pela angústia, em que nada de externo no mundo aparece como objeto representado como causa e algo especificamente angustiante? Em todo caso, os sentimentos são apenas ecos das experiências de mundo, orientandas em modo primordial pelos rumos do amor e do ódio; ou são sinais da relação de conteúdos representativos com o êxito ou fracasso nas realizações dos valores do amor e do ódio, certo, estabelecida a partir destes últimos. Contudo, aqui, esta afirmação é apresentada apenas como indício. É necessário, pois, demonstrar em maiores detalhes e precisão que as tendências originárias, bem como os orientamentos e os fins a elas imanentes, dependem muito mais dos valores pelos quais o homem são atraídos no amor ou pelos quais o homem, no ódio, experimenta uma repulsa e, consequentemente, que o 203 Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, p. 56; tr. it., p. 59. 177 205 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fluxo das tendências não é regido pela representação de conteúdo dos objetos ao serem percebidos, desejados ou julgados. Antes, tais tendências que constituem o ordo amoris de um homem nascem do centro do eu e, nesta independência de critérios psicofísicos, são elas a reger as imagens que o homem faz das coisas, de tal modo que adequação ou não destas imagens só podem ser medidas por critérios axiológicos. Nisto, o primado fáticodescritivo do amor poderia vir à tona com maior evidência. REFERÊNCIAS HEIDEGGER, M. Grundbegriffe der Metaphysik. Welt – Endlickkeit – Eisamkeit. Frankfurt a. M.: Vittorio Klostermann, 2004; tr. por. Os conceitos fundamentais da metafísica. Mundo – finitude – solidão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. HEIDEGGER, M. 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Ordo 178 Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 178 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics amoris, p. 24-25. Diponível em: <http.www.lusosofia.net>. Acesso em: 26 jul. 2016. Submetido: 31de julho 2017 Aceito: 09 de agosto 2017 179 Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics A noção de ego na obra de Sartre The notion of ego in Sartre’s work Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass206 Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO O presente ensaio analisará três obras de Sartre, La Transcendance de l’ego (1936), L’Être et le néant (1943) e Cahiers pour une morale (1983). Tentaremos demonstrar que esse percurso é, ao mesmo tempo, a evolução e a manutenção de algumas teses enunciadas na primeira obra. Identificaremos alguns dos objetivos da filosofia sartriana, tanto na moral quanto na política, revelando o papel central do Ego nessa discussão, e, por fim, identificaremos as consequências morais de uma nova concepção da consciência, do ego e da reflexão edificadas por Sartre ao longo de sua trajetória. PALAVRAS CHAVE Ego; Espontaneidade; Solidariedade. ABSTRACT The given essay will analyze three of Jean Paul Sartre’s Works: La Transcendance de l’ego (1936), L’Être et le néant (1943) and Cahiers pour une morale (1983). We will demonstrate that this path is, at the same time, evolution and maintenance of some already stated thesis of the first piece. We will also identify some objectives of Sartre’s Philosophy, regarding moral and political issues, revealing the main role of Ego in this discussion. Finally, we will trace the moral consequences of new concepts of consciousness, Ego, and the reflection Sartre identifies throughout his trajectory. 206 E-mail: simeao78@gmail.com 180 Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 180 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics KEYWORDS Ego; Spontaneity ; Solidarity. INTRODUÇÃO O conceito de ego ocupa um lugar de destaque na filosofia ocidental. Sobretudo a partir do pensamento moderno, tornou-se tema obrigatório. O pensamento francês o tomou como objeto de discussão de forma aprofundada e até polêmica. A máxima “penso, logo existo”, cunhada por Descartes, assumiu ares de verdade indubitável. O pronome eu, frequentemente, é subentendido como presença indispensável na compreensão da fórmula cartesiana, ou seja, todo pensamento é fruto de um ego reflexivo. Fato que leva a crer que toda atividade de pensamento é necessariamente reflexiva. Retomando uma frase de Alain, “saber é saber se sabe”, podemos afirmar que a máxima cartesiana sintetiza atividade reflexiva. Outro lugar comum na interpretação dessa máxima é identificar consciência e ego. Em outras palavras, só há ego se ocorre a reflexão e vice-versa. Por conseguinte, consciência, ego e reflexão tornam-se sinônimos. O pensamento moderno explorou todas as perspectivas dessa teoria. De Descartes a Nietzsche, tal conceituação oscilou entre a verdade e o erro. Outro fator comum nessas análises foi a identificação entre ego e consciência moral. A reflexão transformava-se em culpa, o exame de consciência reproduzia o processo de atribuição de culpa exatamente porque o termo consciência opunhase a inconsciência. Se a primeira é a memória do pecado, a segunda surge como esquecimento de todo erro cometido. Algumas etiquetas foram produzidas a partir dos filósofos que tomaram esse tema como objeto de suas reflexões. Idealismo, racionalismo, subjetivismo, filosofia da consciência, moralismo, e tantos outros rótulos, foram afixados em filósofos que abordaram o tema em questão. Defender o cogito como ponto de partida filosófico representava a assunção do cartesianismo oficial. A fenomenologia lançou novas luzes sobre essa discussão. Husserl renovou o cartesianismo recolocandoo no centro do debate epistemológico e metodológico da filosofia contemporânea. A filosofia de Husserl, como toda corrente renovadora, foi interpretada de diversas maneiras, umas mais ortodoxas, outras menos. Nosso objetivo, nesse ensaio, é discutir a posição de Sartre acerca do debate. 181 A noção de ego na obra de Sartre Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Ele afirma que sua filosofia não usa conceitos, mas noções. Tal distinção epistemológica aproxima-o de uma visão da filosofia que não quer ser como as ciências naturais, baseada em leis e normas, mas em uma atitude compreensiva e aproximativa, herança da fenomenologia que pretendeu ser uma filosofia rigorosa sem reeditar o positivismo comtiano. Daí a diferença que fazemos entre a noção sartriana e o conceito de ego forjado ao longo do pensamento moderno, que ainda persiste no pensamento contemporâneo. A noção sartriana de ego é uma tentativa de repensar a teoria conceitual do ego. Como veremos, tal tentativa leva Sartre para bem longe do cartesianismo ortodoxo. Sem, contudo, recair e irracionalismos, preocupação constante do existencialista francês. Tomaremos como objeto de análise três obras, A transcendência do ego (1936), O Ser e o nada (1943) e Cadernos para uma moral (1983). Tentaremos demonstrar que esse percurso é, ao mesmo tempo, a evolução e a manutenção de algumas teses enunciadas na primeira obra. Identificaremos alguns dos objetivos da filosofia sartriana, tanto na moral quanto na política, revelando o papel central do Ego nessa discussão, e, por fim, identificaremos as consequências morais de uma nova concepção da consciência, do ego e da reflexão edificadas por Sartre ao longo de sua trajetória. Devido aos limites do estudo, não teremos tempo de abordar as críticas de Sartre a Husserl. Enunciaremos somente as suas justificativas, reservaremos a outro estudo a especificação do debate entre Husserl e Sartre. O percurso que escolhemos revelará três momentos da teoria sartriana do ego. O primeiro abordará a sua condição transcendente, o segundo a sua estrutura circular e o terceiro a sua condição libertária. As duas primeiras obras enunciadas, foram estudadas de forma mais ampla e aprofundada, a terceira, por ser póstuma, ainda não foi descoberta pelos estudiosos. Poucas pesquisas abordam suas teses e um espectro significativo de intuições importantes ainda solicita trabalho de elucidação. Um aspecto importante dessa análise histórica e conceitual é identificar a continuidade do projeto enunciado na obra A transcendência do ego; essa perspectiva, por si só, já desperta um grande interesse. Ela rebate uma acusação muito comum e infundada de que Sartre é um pensador idealista e, ao mesmo tempo, dualista. A teoria sartriana do ego, elucidada adequadamente, esclarece um equívoco iniciado ainda nos anos 40, pela interpretação de Merleau-Ponty, 182 Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 182 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics consagrada nas páginas finais de A Fenomenologia da percepção (1945). Análise dessas críticas foram feitas por mim em estudos anteriores; assim, não voltaremos a eles. Ao estudarmos atentamente a reflexão sartriana voltada para o estudo do ego, identificamos uma teoria muito bem urdida, que tem como um de seus objetivos fundamentais criticar a chamada filosofia da intimidade, muito comum no início do século 20, na França. Um dos autores mais lembrados nessa crítica é Bergson. Sartre dedica a ele vários estudos, em várias obras de sua produção intelectual. É importante deixar claro que ele não recusa a teoria bergsoniana em sua totalidade; ele a circunscreve ao plano daquilo que denomina psíquico. A perspectiva psíquica da existência humana, enunciada ao longo de várias obras de Bergson, para Sartre, continua válida, assim como sua teoria das emoções, esboçada na obra As duas fontes da moral e da religião (1932). A objeção fundamental feita a Bergson é de que o eu, oscila entre a perspectiva dinâmica movente e a de um ser pleno. Hora ele aparece definindo a pessoa, e em outros momentos, inserindo-a no fluxo da duração. Ou seja, a pessoa seria um ser total ou movente inacabado, se ambos os fatos, como isso seria possível? Além, disso, faltaria a Bergson, uma visão mais acurada da relação entre política e sociedade, entre a tensão constante identificada na relação de cada pessoa consigo mesma e com a sociedade que a circunda. Estabelecer a distinção entre eu profundo e o eu superficial não bastaria, segundo Sartre, para evitar os equívocos do solipsismo. Nem a teoria do Herói, esboçada nas Duas fontes resolveria o problema da existência fática da relação entre seres humanos em sociedade. Os conflitos sociais não poderiam ser resolvidos a partir da instauração de novos valores inspirados por pessoas excepcionais. Faltaria uma efetiva transformação da sociedade. A teoria bergsoniana do eu profundo/superficial, nesse contexto, somente explicitaria uma cisão na pessoa, não a superação dessa cisão. Assim, o eu seria um fluxo de emoções, fato que pode ser visto como uma definição possível da psique, mas ele não seria a síntese totalizante chamada pessoa, necessária correlação entre interioridade e exterioridade. Nessa crítica sartriana da vida interior e da consequente exclusão da política, estaria o campo incompleto da teoria bergsoniana. Ontologia, moral e política solicitariam uma reorganização, que inexiste na obra 183 A noção de ego na obra de Sartre Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics de Bergson. Mas, não trataremos desse debate nesse estudo. Tentaremos elucidar a posição de Sartre. Para tanto, é preciso identificar as principais teses e os ajustes empreendidos ao longo do percurso. É preciso também identificar o que Sartre quer evitar. Na obra A transcendência recusa-se o solipsismo, em O Ser e o nada, critica-se a pessoa desconectada do mundo e nos Cadernos o ego como coisa em-si, como retificação da pessoa. Compreender as críticas ajudanos a esclarecer também os equívocos das interpretações dos adversários de Sartre. A conferência O existencialismo é um humanismo (1946), causou muitos estragos ao seu pensamento. Não porque suas teses sejam equivocadas, mas porque elas não foram devidamente explicitadas. Por ser uma conferência idealizada para o público leigo, Sartre simplificou em demasia suas articulações conceituais. Isso foi usado por seus adversários para classificá-lo como um pensador sem rigor e ingênuo. As críticas de Heidegger a essa conferência reforçaram tais equívocos. Para aqueles que comparam as teses dessa conferência com os escritos filosóficos sistematizados, fica evidente que as críticas desconhecem os fundamentos teóricos. É preciso, sobretudo, retornar aos textos, trabalho relegado aos interessados em esclarecer os equívocos e refutar teses absolutamente inexistentes em seu discurso. A mais usual crítica feita a Sartre é a de ser um defensor do subjetivismo, da subjetividade isolada do mundo, hipostasiação do sujeito. Nada mais equívoco que isso. O estudo da noção sartriana de ego revela a fragilidade dessa crítica. Revela também que ela é uma caricatura débil do pensamento existencialista francês. Ela desconsidera os ganhos que a fenomenologia representou para o debate. Ignora igualmente que Sartre, ainda nos anos 30, criticava Husserl por defender o eu transcendental. Para Sartre, a consciência é um campo transcendental impessoal, mas não a possuidora do ego, tampouco a produtora de eu transcendental. Para Sartre, Husserl não se manteve fiel ao princípio da intencionalidade quando fez uso do conceito de ego transcendental. Se fosse possível construir uma metáfora espacial, seria admissível afirmar que a consciência circunscreve o ego, mas, jamais o contrário. A consciência não existe porque cada pessoa tem um ego, ela existe não para produzir o ego, mas para intencionar o mundo. A intencionalidade não é fruto do ego. Ela é a essência da consciência. O ego é objeto de reflexão para a consciência. Isso ocorre pelo simples fato de que a 184 Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 184 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fenomenologia ensinou que é possível a existência de uma consciência irrefletida. Esse é o ponto inicial que deve ser relembrado contra tais críticas. Se a consciência pode ser irrefletida ou reflexiva, isso significa que o inconsciente é uma tese que não se sustenta. Mas isso significa também que há ato intencional sem o a priori da atitude reflexiva. Se essa explicitação se fizesse presente nas críticas a Sartre, elas deixariam de fazer sentido. A atitude irrefletida da consciência dilui tanto o conceito de inconsciente quanto a exclusividade da reflexão. Após esses esclarecimentos iniciais, retomemos as teses centrais. 1. A TRANSCENDÊNCIA DO EGO Essa obra foi a primeira publicada por Sartre nos anos 30, ela foi contemporânea do romance A Náusea (1938). As duas obras guardam profundas relações teóricas ligadas à noção de intencionalidade da consciência. As considerações finais da Transcendência sintetizam algumas intuições tipicamente sartrianas. A consciência, um campo transcendental impessoal, revela-se como a realidade fundamental de todo ser humano. Essa consciência, contudo, estrutura-se pela intencionalidade. Não é porque a pessoa tem um ego que ela é consciente, ao contrário, a existência espontânea dessa pessoa caracterizase pelo ato intencional. O ego passa a ser um objeto, dentre outros, para a consciência. Tal tese inválida críticas de filósofos que insistiram em apregoar a supervalorização da subjetividade e a eliminação da objetividade no pensamento de Sartre. Contra as teses que defendiam a existência material de um ego coisista, inspirados pela psicologia associacionista ou naturalista, Sartre esvazia a consciência de todo conteúdo. Contra a orientação transcendental do ego, Sartre situa a consciência como um dos polos da relação com o mundo. Tal concepção, visa abandonar a convicção de que todas as atividades cogitantes são acompanhadas necessariamente pelo ego, como se fossem frutos de sua atividade. Sartre tenta demonstrar que o ego é o resultado da atividade reflexiva da consciência, ele se torna um objeto para consciência. Além disso, Sartre descreve o ego como uma síntese de atos, qualidades e estados. Ele insere dois termos fundamentais nessa exposição: o Je e o Moi. O Je envolve as ações humanas em sua relação com o mundo, o Moi constitui a perspectiva reflexiva dessas ações. É importante ressaltar, 185 A noção de ego na obra de Sartre Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics contudo, que a condição ativa do ser humano representa também a perspectiva “coagulante” que tal condição envolve. A historicidade das ações envolve tanto o aspecto transiente de sua realização quanto a dimensão social dessas ações. Exatamente porque todo ser humano existe no mundo, o sentido de suas ações não é decifrado ou enunciado somente por seu autor. Sartre imprime à noção de ego um certo caráter de papel social. É por isso que o ego envolve a objetividade da ação, ele é a dimensão em-si da consciência. Mas ele não pertence somente ao seu suposto Senhor, ele é a objetividade da pessoa porque mundano. Uma segunda consequência muito relevante da teoria sartriana do ego, nessa elaboração primeva, é a sua incipiente teoria das emoções. Da mesma maneira que não posso dizer que tenho um ego, não posso dizer que sou o dono de minhas emoções. Se a consciência foi purificada de todo o conteúdo, se ela é um nada de conteúdo, se toda perspectiva coisista foi eliminada de sua definição, nada pode haver na intencionalidade da consciência que seja a priori dado como conteúdo. A consciência não existe como um cofre, nem como um arquivo. Ela é um movimento, não é coisa ou o resultado único de um cérebro, embora não exista fora de um corpo. Bergson já esclarecia que não há pensamento sem cérebro, mas que todo pensamento é muito mais que atividade cerebral. A consciência envolve todo o ser humano. Ser humano, para Sartre, significa existir na forma da consciência, espontaneidade que intenciona o mundo circundante. Esse ser é tanto corpo quanto consciência, é possível falar de consciência/corpo em Sartre. Se a consciência não é um invólucro, se os atos humanos são uma relação de mão dupla entre o autor e o mundo, tudo o que é humano ressoa esse vai e vem. Assim, o ódio, o amor, as chamadas emoções, para Sartre, perdem a sua condição de afecção. Elas não são coisas que contaminam o interior do ser humano como doenças. As emoções são relações que cada ser humano estabelece com os outros, no mundo. As emoções se fazem e se desfazem ao sabor das situações. Não sou covarde ou corajoso, faço-me, construo minha personalidade sendo aquilo que faço. Portanto, não tenho ego e não sou dono de minhas emoções. Assim, a espontaneidade da consciência revela-se como o modo de ser fundamental do homem. O ego lhe dá uma certa consistência advinda dos juízos sociais. Esse ego, contudo, não é um caráter imutável, ele pode ser recusado, contestado, o veremos futuramente. O ego é um construto pessoal e social. 186 Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 186 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics A terceira característica que destacamos da Transcendência, é o aspecto programático de suas palavras finais. Sartre diz: E a relação de interdependência que essa [consciência absoluta] estabelece entre o eu/moi e o mundo basta para que o eu/moi apareça como ‘em perigo’ perante o mundo, porque o eu/moi (indiretamente e por meio dos estados) tira do mundo todo o seu conteúdo. Não falta mais nada para fundar filosoficamente uma moral e uma política absolutamente positivas (SARTRE, 2003, p. 87)207 Tais afirmações deveriam servir de respostas às críticas dos adversários de Sartre. Se a consciência é absoluta, isso se deve ao fato de que ela é um movimento incessante do intencionar o mundo. Isso não significa que o ser humano é sempre reflexivo. A intencionalidade, como sabemos, é a essência da consciência. Mas essa intencionalidade se dá sob dois modos fundamentais, a vivência e a reflexão. Na verdade, vivência é muito mais “comum” que atividade reflexiva na vida concreta de cada ser humano. O absoluto da consciência Todas as traduções das obras de Sartre são de nossa autoria. 207 não é somente a sua atividade cogitativa filosófica, como se o ser humano sempre fosse uma realização perfeita ou imperfeita do ideal filosófico. Não vivemos o tempo todo tentando descobrir verdades indubitáveis. Simplesmente vivemos. Se tomamos tal vida como objeto de reflexão, tal o movimento é a posteriori. Não há o a priori da reflexão na filosofia sartriana. A filosofia concreta que ela defende tenta efetivar a verdade da máxima “a existência precede a essência”, como muito bem explicitou Heidegger em sua carta sobre o humanismo, num sentido bem distinto daquele dado pelo autor de Sein und Zeit (1927). Para Sartre, a existência é concretude histórica, não a forma da interpelação do Ser. A moral e a política, que para Sartre são inseparáveis, somente podem ser fundamentadas na relação intrínseca e correlacional entre o homem e o mundo. Essa relação deve ser constante e não pode recair unicamente sobre um dos polos. Não é o homem que cria o mundo, não é o mundo que determina absolutamente cada ser humano. Somos aquilo que fazemos daquilo que fazem de nós. Esse “vai e vem”, esse relacionamento recíproco, não pode ser abandonado ou esquecido, senão, recaímos nos dogmatismos e nos determinismos. 187 A noção de ego na obra de Sartre Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Tais críticas valerão também quando Sartre avaliar as consequências do freudismo e do materialismo mecanicista. Pois, nos dois casos, o homem passa a ser fruto de forças internas ou externas determinantes e impessoais. Como se estivéssemos no plano da física newtoniana. O homem passa a ser agido, eliminando, assim, a sua espontaneidade. Tais consequências explicitadas por Sartre rebatem as interpretações caricaturais feitas por críticos ao longo das últimas décadas. O Ser e o nada A discussão acerca do conceito de ego, abordado a longo da história da filosofia, ganha destaque na obra O Ser e o nada, tendo como objetivo avançar e esclarecer alguns pontos apresentados na Transcendência. Se objetivo, na obra anterior, era evitar o solipsismo, essa intenção é aprimorada com a teoria sartriana da pluralidade das consciências. A elaboração de uma ontologia que distingue o ser e o homem, em outras palavras, o modo de ser distinto em cada um desses seres, solicita a abordagem da relação entre dois seres humanos, entre dois seres que vivem ao modo do ser parasi. Sartre erige uma noção para descrever o modo de ser do para-si que vive em sociedade, não só envolto por coisas, mas também por seres iguais a ele. Essa noção denomina-se ser-para-outrem. Essa noção é flagrantemente negligenciada pelos críticos de Sartre. O alegado dualismo não se sustenta diante da teoria sartriana que situa a necessária correlação entre o para-si, o em-si e o ser-para-outrem. Na verdade, Sartre considera essa última noção uma estrutura do ser para-si, mas ela guarda características próprias, dentre as quais, a necessária assunção da existência fática de outrem. Retomando a noção existencial de situação, Sartre pensa a subjetividade humana a partir da noção de ipseidade. Tão noção somente existe em correlação com a situação concreta mundana. Na Segunda parte de O Ser e o nada, Capítulo Primeiro, Seção V, intitulada “O eu/moi e o circuito de ipseidade”, Sartre afirma categoricamente que “o ego não pertence ao domínio do para si” (SARTRE, 1943, p. 142). Tal tese desencadeia várias consequências. Primeira, o ego unifica as Erlebnisse, as vivências, e pertence ao em-si, ou seja, o ego aparece como um existente do mundo, não como da consciência. Segunda, é a consciência, em sua ipseidade fundamental, que permite a aparição do ego como fenômeno transcendente dessa ipseidade. Nas palavras de Sartre, 188 Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 188 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Assim, desde quando ela surge, a consciência, pelo puro movimento nadificante da reflexão, se faz pessoal: porque aquilo que confere a um ser a existência pessoal, não é a posse de um ego - que é somente o signo da personalidade - mas é o fato de existir para si com a presença a si (SARTRE, 1943, p. 143). Com esse esclarecimento, fica evidente que a ipseidade é o movimento reflexivo que toma como objeto a presença a si. Isto é: “sem mundo, nada de ipseidade, nada de pessoa; sem ipseidade, sem a pessoa, nada de mundo”, (SARTRE, 1943, p. 144), porque a palavra mundo somente se faz com a presença do ser humano, sem ele, aquilo que chamamos mundo seria a coleção de objetos em um espaço. A estrutura do circuito de ipseidade é ilustrada por Sartre com a descrição de uma pessoa que sente vergonha de outra por ter sido flagrada praticando uma conduta reprovável. A vivência da vergonha ressalta a experiência de ser visto. O exemplo dado por Sartre é o de ver pelo buraco da fechadura uma cena íntima que se passa em um quarto de hotel. Nela compreendemos a passagem do je (eu irrefletido) ao moi (eu reflexivo). A presença alienante do para-si surge nessa experiência cotidiana de ver e ser visto por outra pessoa. A alienação da consciência é o tema central aqui porque ela é vivida como interferência de outrem em meu ser, em minha liberdade. Ser visto e testemunhado como autor de ato reprovável é ser atingido no âmago do próprio ser, é ser posto “em perigo”. Tal conclusão nos leva a compreender que a teoria da alienação da consciência é a prova existencial da presença de outrem. Não como um ser que eu instituo, mas como ser que me testemunha, interferindo em minha liberdade, adentrando meu ser. A existência de outrem ganha estatuto de evidência por ser constatada em uma situação passível de ser comprovada por qualquer pessoa. Essa prova não exige demonstrações rebuscadas. Constato a presença de outrem concretamente por ser visado de fora, por um ser que não sou e que tem liberdade própria. Assim, completa-se a crítica do solipsismo. Um ser esvaziado de intimidade solipsista constata a própria existência ao ser visado e manipulado por outra pessoa. Existo para outrem mesmo contra minha vontade. Essa teoria da pluralidade das consciências não tem nada de idealista, subjetivista, dualista ou metafísica. Ela está fundada na 189 A noção de ego na obra de Sartre Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics facticidade da existência. Essa consciência é uma totalidade movente, não fechada ou totalizada e, nesse sentido, distinta da filosofia hegeliana. Essa facticidade do mundo concreto, como relação experienciável e sempre comprovada, é o fundamento existencial de toda pessoa. 2. CADERNOS PARA UMA MORAL Se as duas obras anteriores são desconhecidas pelo público especializado, dado que a maioria das críticas filosóficas sequer chegam a comentar textos literais de Sartre, reproduzindo, via de regra, opiniões descoladas da teoria, os Cadernos são praticamente ignorados. Elaborados para serem desenvolvidos e publicados ainda nos anos 40, foram abandonados posteriormente por Sartre. Segundo o próprio existencialista, suas teses ainda não haviam atingido o grau de concretude necessária para a exposição de uma moral existencialista. Um exemplo lapidar dessa atitude intelectual que critica Sartre sem ao menos conhecer os seus fundamentos filosóficos, é a de Ricœur, na conferência - A luta por reconhecimento e a economia do dom - apresentada na Jornada de Filosofia da UNESCO (Journée de la philosophie à l’ UNESCO), em 21 de novembro de 2002 e publicada sob a direção de Moufida Goucha, Paris, UNESCO (Organisation des Nations Unies pour léducation, la science et la culture), em 2004. Ele sustenta que a teoria do reconhecimento de Sartre, baseada na experiência da vergonha, era somente negativa. Ela não teria o aspecto positivo da integração e da superação do conflito. Ricœur apresenta, então, como teoria positiva do reconhecimento, a filosofia de Marcel Mauss, consagrada na obra sobre a dádiva. É essa tese que desejamos analisar usando os Cadernos para uma moral, escritos por Sartre nos anos 40. Curiosamente, nos Cadernos, Sartre analisa longamente a obra sobre a dádiva de Marcel Mauss. Essa análise aborda a amplitude e a validade do fenômeno das trocas totais, exemplificado pelo ritual do Potlatch. Interessa a Sartre avaliar a ambiguidade -conceito fundamental do fenômeno da dádiva – com o intuito de discutir valores morais. Criticando o utilitarismo e o contratualismo, Sartre menciona a filosofia de Mauss como uma possível forma de constituição do fenômeno da Solidariedade social. Essa análise da dádiva nos Cadernos desautoriza, em parte, a crítica de Ricœur a Sartre. Mas, esse 190 Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 190 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics não é o tema que desejamos discutir. Interessa-nos a teoria positiva do reconhecimento. A questão do reconhecimento surge na obra O ser e o nada a partir da análise da figura da relação entre o senhor escravo. É evidente que essa relação ressalta o conflito entre as partes. A intenção da análise de Sartre, entretanto, visa elucidar aquilo que ele chama de pluralidade das consciências. Pensada em um plano mais amplo, a ontologia de O Ser e o nada estabelece que a relação intersubjetiva frequentemente é determinada pela luta de vida e morte entre as consciências. A peça teatral Entre quatro paredes (1944) retrata figurativamente essa teoria. Sua tese final tornou-se um ícone do existencialismo: “o inferno são os outros”. A pergunta que se coloca é se essa conclusão encerra o debate acerca da Moral e da teoria sartriana da intersubjetividade. Perguntamos: teria Sartre constatado, inevitavelmente, que os seres humanos somente podem viver tentando anular a liberdade alheia? Resumindo, a existência humana seria inevitavelmente alienada e alienante? Seria a luta pelo reconhecimento a anulação da liberdade do outro parasi? Estudos de obras posteriores, como O existencialismo é humanismo e os Cadernos para uma moral, possibilitam uma interpretação distinta. Essas obras tentam esboçar a moral prometida nas últimas páginas O Ser e o nada. Ocorre que essa moral foi classificada pelo próprio Sartre como Idealista, os Cadernos foram publicados postumamente. A moral sartriana jamais foi elaborada definitivamente. Parece, então, que a relação intersubjetiva é, unicamente, a do conflito. Estudo mais aprofundado dos Cadernos, entretanto, revela a intenção de Sartre de ultrapassar essa existência alienada. Esses cadernos esboçaram algumas ideias fundamentais acerca de uma proposta moral em bases existencialistas. A partir da página 430 dos Cadernos é possível notar que Sartre retoma a discussão sobre o tema do amor e a clássica ambiguidade do sadismo/masoquismo. O próprio Sartre afirma, nessa passagem, que ele não chegou a tratar na obra O Ser e o nada, do problema do reconhecimento das liberdades, ou seja, de como uma pessoa poderia reconhecer a liberdade de outrem sem tentar aniquilá-la e sem se sentir invadido. Nesse momento, ele aproxima a questão do amor da teoria da dádiva, tendo como exemplo o Potlatch. Essas experiências exemplificariam a ambiguidade fundamental a toda moral 191 A noção de ego na obra de Sartre Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics estabelecida entre o desafio e a amizade. Característica central do Potlatch. Em seguida, Sartre retoma a teoria do ego situando-a no âmbito da liberdade. O ego, enquanto, em-si, representaria o papel que devo assumir ou recusar perante outrem. Em suma, o papel alienante que o outro exerce sobre minha pessoa poderia ser concebido de forma distinta se vivêssemos em uma sociedade na qual as classes sociais não fossem organizadas na forma do conflito. É nesse momento que ele menciona o exemplo do amor, pois ele é um projeto que cada pessoa constrói ao longo de sua existência. O amor que não é possessivo pois confia na liberdade do outro para-si. Da mesma maneira, o ego não se constitui como um ser transcendente imposto pelo outro, sendo, ao contrário, o âmbito da absoluta Liberdade. Usando a imagem da magia, Sartre afirma que o ego não pode existir como um ser escurecido pelo espírito da coisidade, dado que a consciência não pode ser o reflexo da vontade alheia. É nesse momento que ele critica a noção freudiana de inconsciente, porque ela seria a concretização do outro que se impõe a cada um de nós. Desejo que tem objeto mas que não tem sujeito, ação sem autor. O momento seguinte da exposição dos Cadernos aborda um tema interessante, a conversão, palavra clássica do pensamento cristão. A conversão remete ao conceito de autenticidade, debatido longamente por Sartre. Para entender essa nova questão, Sartre inicia afirmando que outra pessoa “cola em nós uma etiqueta”, que interiorizamos. Essa objetivação pode ser de cunho psíquico ou aparecer na forma do emsi-para-si. Para entender melhor tais asserções, devemos relembrar que uma das teses centrais que Sartre tenta esclarecer desde o romance A Náusea é a da contingência da existência. Tal tese parte do princípio de que o ser humano não é absolutamente nenhuma de suas condutas isoladamente. O autodidata não é inteligente ou pederasta, Roquentin não é inseguro ou criativo. A tese da contingência estabelece que o ser não é, ele se faz. Essa é uma das principais contribuições da Ontologia sartriana ao pensamento filosófico. O ser humano não pode ser pensado a partir da ontologia do ser em-si somente, enquanto ser que é aquilo que é e nada mais, ele é um ser parasi, ou seja, seu modo de ser é o fazer-se. Nesse sentido, ser autêntico é renunciar a ser uma coisa estática. Ser um projeto é fazer algo e não ser algo. Um projeto somente pode ser pensado em situação concreta, sempre podendo ser modificado. Se o ser humano é 192 Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 192 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics projeto e é fundamentalmente recusa de ser, ele não é nada, ele é o que não é, ele é um lançar-se em direção a seus projetos, esse lançar-se caracteriza suas ações. Existir é fazerse, tese repetida em O Existencialismo é um humanismo. Essa condição empreendedora serve também para decifrar os sentimentos, as emoções e as crenças. A existência humana autêntica sempre mantém a tensão entre o projetar e o fazer. Esse empreendimento é sempre uma possibilidade. Postular uma amizade é construí-la cotidianamente através de condutas. Nunca posso dizer que sou amigo de alguém ou não, nunca posso ter total certeza acerca dessa relação. Esse projeto é uma escolha intencional de fazer, fato que vale também para os sentimentos. A perspectiva da psique, nessa existência autêntica, se dissolve enquanto em-si. De um lado, é pura vivência, de outro, é aquilo que assumo perante o outro. Meus sentimentos e minhas emoções não são afecções, não são coisas que me afetam, são empreendimentos. Raiva e amor são juramentos. A teoria sartriana das emoções situa no plano da Liberdade essas vivências, classificando-as como “sentimentos problemáticos”. Para Sartre, amar é querer amar. O amor autêntico é aquele que mantém a tensão, que não se dá como coisa, mas como empreendimento situado. Existir autenticamente é viver um projeto aberto, situar-se no plano da perspectiva. O para-si não é a soma de suas afecções, ele é o seu ser colocado em questão (Erlebnis). Um conjunto movente que perpetuamente se coloca em questão. Nesse sentido, ser reflexivo significa querer a existência e não a sua definição absoluta. A Autonomia radical é o Projeto autêntico. Se a reflexão pura conduz à autenticidade, ela tem um aspecto negativo e um positivo: negativo porque é a recusa de unificação, positivo porque se dá como síntese, uma espécie de acordo que estabeleço comigo. Existir é tomar-se como tema, como questão. Nesse sentido, a reflexão é um projeto. A existência humana autêntica é renúncia de ser causa de si ou em-si-para-si. Se a existência precede a essência, ela se constitui a posteriori, como questão. Existo respondendo à questão, decidindo continuar. A existência autêntica expressa, concomitantemente, autonomia e contingência. Ela aceita assumir o seu modo de ser diaspórico. Ela é retomada de si na contingência. Em resumo: o existente é projeto e a reflexão é o projeto de assumir esse projeto. A conversão, 193 A noção de ego na obra de Sartre Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics portanto, é renúncia a categoria de apropriação, ao para-si que quer ser coisa, capturando-a. Ser não é ter, ser é fazer-se. A existência autêntica solicita a relação solidária entre as pessoas. A solidariedade supera a busca de ser que se esgota na apropriação. A solidariedade, surge, assim, como a face positiva do reconhecimento. Valor central da moral existencialista. Talvez, tenha sido essa a lição que Sartre aprendeu lendo a obra de Marcel Mauss. Ricœur poderia inserir Sartre entre os defensores de uma teoria positiva do reconhecimento, se tivesse lido os Cadernos. CONCLUSÕES Ao final, é possível constatar que a teoria sartriana do ego não é a simples repetição do cartesianismo, não é uma filosofia da subjetividade hipostasiada, não é uma filosofia que afirma o sujeito sem o contraponto da objetividade, não é uma filosofia idealista da consciência moral, não é a defesa do dualismo irreconciliável entre em-si e para-si, não é a defesa da teoria negativa do reconhecimento, não é uma teoria da subjetividade desconectada da sociabilidade. Enfim, é uma filosofia muito distinta daquela que seus opositores tentam esboçar em caricaturas mal elaboradas. Retomando as palavras finais de A transcendência do ego, Sartre postulou, desde os anos 30, a elaboração de uma filosofia que tentava conciliar a moral e a política, pensando a correlação necessária entre a interioridade e a exterioridade do ser humano. Teoria sofreu alterações ao longo do tempo. Se considerarmos as obras posteriores à primeira redação dos Cadernos, a grande alteração sentida será a inclusão do Marxismo e posteriormente do Estruturalismo nessa teoria concreta da relação entre o homem e a sociedade. Existencialismo, Fenomenologia, Marxismo, Estruturalismo, Psicologia social, Antropologia, Psicanálise, Gestalt, e tantas áreas das ciências humanas, foram sintetizadas na obra publicada por Sartre ao longo do século 20. Se quiséssemos encontrar um tema aglutinador de tantos temas correlatos, poderíamos intitulá-lo “questões de método”. Evidentemente, a formulação sartriana recebeu exatamente esse nome. Esse ensaio, que foi usado posteriormente como prefácio da Crítica da razão dialética (1960), sintetiza o percurso teórico iniciado em A transcendência do ego. Fica evidente – no momento em que Sartre faz um breve balanço histórico daquilo que ele chamava de filosofia concreta – em um dos capítulos de 194 Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 194 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Questões de método, que algumas intenções haviam sido forjadas desde a publicação de A náusea. A mais originária delas, a noção de contingência, influenciou uma das teses mais importantes de seu existencialismo, a formulação da tese da espontaneidade da consciência. Essa teoria tem como base dois princípios elementares: a liberdade e a ação. Tais princípios jamais foram denegados ao longo de toda a história do pensamento sartriano. Eles forjaram tanto as teses originais quanto as apropriações das referidas teorias elencadas acima. A temática sartriana pode ser pensada, portanto, a partir da questão metodológica das ciências humanas. Nesse contexto, ação e liberdade devem fazer parte dessa fundamentação metodológica. É nesse sentido que surge a Antropologia sartriana, tentativa de sintetizar Marxismo e Estruturalismo. Tal síntese, contudo, também é uma crítica a aspectos centrais dessas teorias. A degradação do Marxismo em dialética da natureza e a transformação do Estruturalismo na filosofia da morte do homem converteram intuições profundamente profícuas em dogmas injustificáveis. Podemos acrescentar a psicanálise freudiana a esse conjunto de teorias fundamentais do século 20, tanto naquilo que ela tem de instigante quanto os seus desvios conceituais. Todas essas propostas de constituição de um método para as ciências humanas equivocaram-se quando tentaram reproduzir a inspiração científica positivista do século 19. A necessidade de encontrar uma causa material única para explicação de fenômenos sociais contaminou a metodologia dessas ciências. Ao tentar substituir a filosofia pelas ciências naturais, as chamadas “ciências do espírito” foram transformadas em arremedos de discursos científicos. Literalmente, o primeiro a morrer foi o homem. Ele deixou de ser objeto das chamadas ciências humanas. Sob muitos aspectos, tais ciências forjaram o seu objeto ao invés de descrevê-lo. A segunda metade do século 20 viu nascer uma proposta de ciências humanas que inverteu a relação entre ciência e objeto. A ciência não era mais a descrição, análise e compreensão dos fenômenos por ela estudados. Ao contrário, o objeto surgia do discurso científico. Em alguns casos, o objeto se tornou o discurso. O discurso ocupou o lugar do objeto. Foi nesse contexto que a célebre frase que afirmava ser o homem uma invenção recente e fadada ao desaparecimento, como desenhos na areia da praia, encontrou sua formulação. Sob um modo 195 A noção de ego na obra de Sartre Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics distinto do de Sartre, a literatura passou a ocupar o lugar do discurso científico, sendo a linguagem e até a linguística as novas ferramentas criadoras de um discurso chamado homem. A filosofia transmutou-se em retórica. As ciências humanas passaram a ser uma arqueologia das estruturas. Vimos nascer na Psicologia, no Marxismo, na Psicanálise, na História, na Sociologia e em todos os campos dos saberes humanos a voz do inconsciente, a ciência do inconsciente. O homem morria para deixar nascer o inconsciente estruturado como linguagem. Contra a transformação das ciências humanas na versão adaptada do método das ciências naturais, Sartre defendeu a atitude compreensiva. Retomando a longa tradição iniciada por Dilthey, Sartre, como dissemos, recusou a filosofia dos conceitos e revalorizou, a noção, o ensaio, o esboço, a descrição das perspectivas do fenômeno. Concluindo, a análise da noção sartriana de ego revela que o estudo atento de sua filosofia resguarda ainda certa atualidade centrada em noções como: correlação entre pessoalidade e sociabilidade; entre solidariedade e moralidade ou na interdependência entre interioridade e exterioridade. A Antropologia sartriana repercute nos dias atuais a necessidade de afirmar a interconexão entre a ação e liberdade. Se teorias como o descolonialismo conservam algum sentido, é porque a libertação ainda se faz exigência em nosso tempo. Essa atualidade necessita somente ser evidenciada a partir de uma leitura crítica das interpretações débeis acerca do existencialismo sartriano. REFERÊNCIAS ADRIÁN ESCUDERO, J. Guía de lectura de Ser y tiempo de Martin Heidegger (vol. 1). Barcelona: Herder, 2015. BERGSON, H. Les deux sources de la morale et de la religion. Paris: Félix Alcan, 1932. HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, 1967. HUSSERL, E. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. São Paulo: Ideias & Letras, 2006. MAUSS, M. “Essai sur le don”. Paris, Anée Sociologique, 1923-1924, MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la Perception. Paris: Gallimard, 1945. RICŒUR, P. La lutte pour la reconnaissance et l’économie du don. Paris: Unesco, 2004. SARTRE, J.-P. Cahiers pour une morale, Paris: Gallimard,1983. SARTRE, J.-P. Critique de la raison dialectique. Paris: Gallimard, 1960. SARTRE, J.-P. Huis clos. Paris: Gallimard, 1947. SARTRE, J.-P. L’être et le néant. Paris: Gallimard, 1943. SARTRE, J.-P. L’Existentialisme est um humanisme. Paris: Nagel, 1946. 196 Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 196 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics SARTRE, J.-P. La nausée. Paris: Gallimard, 1938. SARTRE, J.-P. La transcendance de l’ego. Paris: Gallimard, 1936. Submetido: 16 de julho 2017 Aceito: 25 de julho 2017 197 A noção de ego na obra de Sartre Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand Affectivity and Person in Phenomenology of Dietrich Von Hildebrand Prof. Dr. Tommy Akira Goto Universidade Federal de Uberlândia – UFU 208 Marília Zampieri da Silva Universidade Federal de Uberlândia – UFU209 RESUMO O presente estudo tem o objetivo de apresentar a "fenomenologia da afetividade" elaborada pelo filósofo Dietrich von Hildebrand (1889-1977), discípulo de Husserl e que produziu análises filosóficas a partir da denominada "fenomenologia realista", ou seja, uma filosofia fenomenológica da verdade, mas que mantém o contato existencial com a realidade, a partir do conhecimento das essências genuínas e do conhecimento a priori. Para o filósofo somente por meio do método fenomenológico é possível alcançar genuinamente o conhecimento a priori das essências dos fenômenos e assim, chegar à verdade e a profundidade do fenômeno. A investigação filosófica de Hildebrand se baseia diretamente na experiência humana, assim, para conhecer a essência do ser humano é importante analisar os fenômenos da vida consciente. Hildebrand afirma em sua análise fenomenológica que a pessoa humana é um ser espiritual e que possui três estruturas intencionais: o entendimento, a vontade e a afetividade. Essas três estruturas da pessoa humana são, em verdade, a estrutura ontológica do ser humano e cada uma delas compõem “centros operativos” de vivências. Assim, esse artigo visa apresentar a vida e o pensamento de Hildebrand, explicitando a questão da pessoa humana e da afetividade, diante de tantas confusões conceituais, uma vez que, segundo Hildebrand, a afetividade é a estrutura da pessoa humana 208 Email: prof-tommy@hotmail.com 209 Email: marilia.zampieri@hotmail.com 198 Prof. Dr. Tommy Akira Goto Marília Zampieri da Silva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 198 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics que melhor expressa a vida interior humana. É por meio da afetividade que é possível dizer que vivemos algo. Sendo assim, o filósofo exige uma análise radical e rigorosa, entendendo fenomenologicamente a resposta afetiva possuidora de um caráter ativo e que expressa a tomada de decisão em relação aos acontecimentos no ser humano. PALAVRAS CHAVE Fenomenologia realista; Pessoa humana; Método fenomenológico. ABSTRACT The present study aims to present the "phenomenology of affectivity" elaborated by the philosopher Dietrich von Hildebrand (1889-1977), a disciple of Husserl and who produced philosophical analyzes from the so-called "realist phenomenology", that is, a phenomenological philosophy of truth, but which maintains the existential contact with reality, from the knowledge of genuine essences and a priori knowledge. For the philosopher only by means of the phenomenological method it is possible to genuinely reach the a priori knowledge of the essences of the phenomena and thus, to arrive at the truth and the depth of the phenomenon. Hildebrand's philosophical inquiry is based directly on human experience, so to know the essence of the human being it is important to analyze the phenomena of conscious life. Hildebrand states in his phenomenological analysis that the human person is a spiritual being and has three intentional structures: the understanding, the will and the affectivity. These three structures of the human person are, in truth, the ontological structure of the human being and each of them constitute "operational centers" of experiences. This article aims to present the life and thought of Hildebrand, explaining the human person and affectivity, in the face of so many conceptual confusions, since, according to Hildebrand, affectivity is the structure of the human person that best expresses life Human interior. It is through affection that it is possible to say that we live something. Thus, the philosopher demands a radical and rigorous analysis, understanding phenomenologically the affective response possessing an active character and that expresses the decision making regarding the events in the human being. KEYWORDS Realist phenomenology; Human person; Phenomenological method. INTRODUÇÃO Podemos dizer que a chamada “Filosofia da Pessoa” – entendida como uma filosofia que tem como centro a reflexão e a análise da estrutura e do conceito de Pessoa – ou, o que mais tarde se denominará de Personalismo, surgiu na Europa no início do século XX, influenciada pelo desenvolvimento histórico-filosófico 199 Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics na “noção de eu” ou do “sujeito transcendental” que vinham desde Immanuel Kant e Johann G. Fichte (FERRER, 2002). No entanto, o alcance de uma definição mais conceitual de Pessoa é problemática no contexto do Personalismo em virtude dos muitos sentidos e interpretações a que se tem desdobrado o seu entendimento. Além disso, o Personalismo é também compreendido, dentre os vários sentidos, como uma filosofia que tem como ponto chave o conceito de dignidade humana. Esse é um conceito que principalmente os fenomenólogos personalistas têm enfatizado, porque falar de dignidade, em verdade, significa dar luz a uma realidade: a pessoa humana. Ainda, mesmo possuindo uma influência filosófica proveniente da filosofia moderna, tem se atribuído maior impulso à Filosofia da Pessoa à escola fenomenológica fundada por Edmund Husserl (1859-1938). O método fenomenológico proposto nos primeiros anos da Fenomenologia a partir da publicação das Investigações Lógicas (1900/1901) atraiu diversos filósofos de interesse realista, uma vez que essa proposta inicial do método consistia no “retorno às coisas mesmas”, era similar às principais premissas básicas do realismo filosófico. Ainda, conforme afirma Burgos (2012), a proposta fenomenológica enriqueceu o realismo moderno com a possibilidade da análise da subjetividade, mesmo que com um sentido de subjetividade psicológica; subjetividade essa ausente nas filosofias realistas tradicionais e principalmente na tradição escolástica. Dessa maneira, formou-se então um grupo de discípulos em torno de Husserl que seguiram com entusiasmo as propostas da Fenomenologia, formando assim o chamado “Círculo de Gotinga”. Estiveram entre os principais discípulos desse círculo os filósofos Max Scheler, Adolf Reinach, Dietrich von Hildebrand, Edith Stein, o casal Theodor Conrad e Hedwig ConradMartius. Max Scheler foi, dentre eles, o filósofo que mais atribuiu importância ao conceito de pessoa, ao mesmo tempo em que Husserl desenvolvia suas análises do sujeito transcendental. Scheler, assim como o grupo de Gotinga, entendia o método fenomenológico como um método que possibilitava a explicitação da estrutura interativa que liga de maneira intencional as experiências humanas, a ponto de compreender que pela experiência era possível alcançar as próprias coisas. Scheler chega à pessoa como ser concreto, o ser humano espiritual, responsável pela unidade da diversidade de atos, tais como: julgar, 200 Prof. Dr. Tommy Akira Goto Marília Zampieri da Silva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 200 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics amar, perceber, etc. Em termos gerais, para Scheler a pessoa fenomenologicamente descrita, como comenta Ferrer (2002), está para além do eu, porque a pessoa vivencia a si mesma em seus atos como uma unidade na diversidade de atos, enquanto o eu é um objeto copercebido, ou seja, está sempre referido a um entorno, um eu-mundo. E, tal como Scheler, tantos outros filósofos vão centrar seus esforços na descrição da pessoa, a partir dessa fenomenologia denominada como “fenomenologia realista”. Nosso intuito nesse capítulo é apresentar a vida, a obra e a “fenomenologia da pessoa” desenvolvida pelo filósofo Dietrich von Hildebrand (1889-1977) – discípulo de Husserl e grande amigo de Scheler –, pouco conhecido no ambiente filosófico, fenomenológico brasileiro, mas que contribuiu de maneira decisiva na escola fenomenológica realista, principalmente com investigações sobre a ética, os valores, a espiritualidade e afetividade. Von Hildebrand foi mais conhecido no ambiente teológico cristão, tendo sido um dos grandes expoentes da filosofia cristã do século XX. “As circunstancias adversas que têm impedido uma maior divulgação da obra de Hildebrand não pode ocultá- la, ainda mais, o valor objetivo que contêm as suas contribuições filosóficas” (Rovira, 2006, p.22). 1. DIETRICH VON HILDEBRAND: SUA VIDA E OBRA Dietrich von Hildebrand nasceu no dia 12 de outubro de 1889, na Florência - Itália, em um ambiente repleto de música, a qual veio desempenhar um papel importante em sua vida. Seu pai era Adolf Hildebrand, um famoso escultor renomado e sua mãe Irene Hildebrand, uma dona de casa, esposa e mãe que encheu seu filho de muito amor. Hildebrand foi o sexto e o único homem dentre os seis filhos, as outras filhas eram: Eva, Elizabeth, Irene, Sylvie e Bertel. Desse modo, seu nascimento foi sentido com muita alegria, rodeado pelo amor de sua mãe e suas cinco irmãs, as quais ansiavam por fazer carinho em seu irmão caçula e compartilhar com ele todos os talentos que tinham. Assim, suas irmãs tiveram grande influência em seu desenvolvimento pessoal e artístico, já que toda a família possuía talentos notáveis, eram: escultores, pintores ou poetas (HILDEBRAND, 2002). 201 Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Desde criança Dietrich estava envolto de obras de arte, pinturas, esculturas, canções antigas e músicas clássicas. Seus primeiros passos foram em um campo florescente em uma colina com uma das mais belas vistas de Florência. Esse ambiente teve tal influência na vida de von Hildebrand que sua primeira conferência pública, aos 17 anos, versou sobre a estética, sendo que seguiu escrevendo sobre esse tema por toda sua vida. Podemos dizer que Dietrich cresceu em um ambiente privilegiado, na infância não frequentou escola, tinha tutores particulares, entre eles estavam: Walter Rietzler, Dr. Wuhl, Ludwing Curtis e Alois Fischer (HILDEBRAND, 2002). A convivência de Dietrich com sua mãe e suas irmãs favoreceu o desenvolvimento de uma sensibilidade pelo mistério do feminino, considerando altamente a personalidade feminina e compreendendo intuitivamente "sua estrutura espiritual, psicológica e intelectual". Assim, passou a ter uma profunda reverência pelo feminino, levando-o a uma posição contrária da maioria dos homens de sua época, ou seja, aquela em que as mulheres são menos inteligentes do que os homens e não possuem o mesmo nível intelectual. Em sua concepção as mulheres são de grande importância para o intelecto masculino, pois dizia frequentemente que havia encontrado mais mulheres notáveis do que homens (HILDEBRAND, 2002). Os fatores que permaneceram ao longo de toda a vida de Hildebrand foram: amor, verdade e beleza. No entanto, como observa Alice von Hildebrand (2002), uma coisa lhe faltava enquanto era criança: a religião. Oficialmente seus pais eram protestantes, mas não eram praticantes. Assim Dietrich e suas irmãs foram batizadas por um ministro protestante, mas não havia o significado sobrenatural desse grande acontecimento, o batismo para eles era visto apenas como uma tradição ocidental. No entanto, é possível dizer que desde menino Dietrich levava o religioso muito a sério, tinha uma profunda reverência ao sagrado e aquilo que transcende infinitamente. Destaca Hildebrand (2002) que anos mais tarde Dietrich conheceu a Igreja Católica por meio de seu amigo filósofo Max Scheler, se convertendo então aos 25 anos ao catolicismo. Em 1906, aos 17 anos, Hildebrand chegou à Universidade de Munique na Alemanha decidido a estudar Filosofia, decisão esta que tomou ao encontrar os diálogos de Platão, descobrindo assim que tinha um "talento nato" para desvendar erros e equívocos em uma argumentação, assim, colocou sua alma para desenvolver este dom (HILDEBRAND, 2002). Seus primeiros estudos de filosofia foram 202 Prof. Dr. Tommy Akira Goto Marília Zampieri da Silva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 202 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics com o filósofo e psicologista Theodor Lipps, cujas aulas lhe causaram grande impacto. Uma das coisas que chamou atenção em Hildebrand foi o fato de que Lipps tinha uma personalidade que transparecia a espiritualidade e "expressava sua dedicação ao que ele estava convencido de que era verdade" (HILDEBRAND, 2002, p. 68). Podemos afirmar que um dos estudos de Lipps que teve influência em Hildebrand, refletindo mais à frente em sua própria vida e em suas obras sobre ética, valores e afetividade, foi a distinção entre sensação e sentimento. No entanto, Hildebrand observou que não havia harmonia entre a epistemologia e a ética de Lipps, visto que não havia conseguido "libertar-se do psicologismo", o qual era predominante na época entre os filósofos, e estabelecia o saber humano apenas como o "reflexo na consciência" psicológica, ou seja, o ser humano torna-se prisioneiro de sua própria consciência de acordo com o psicologismo (HILDEBRAND, 2002). Na época, Theodor Lipps fundou em Munique a “Associação Acadêmica para a Psicologia” (Akademischer Verein fur Psychologie), uma organização composta por estudantes e membros do conselho da faculdade, cuja maioria era dos cursos de Filosofia e que se reuniam semanalmente. Assim, Hildebrand tornou-se membro, o que lhe foi algo de grande valor, visto que nessas reuniões aprendeu mais do que na própria universidade. Dietrich ficou fascinado ao estar em contato estreito com mentes brilhantes, trocando ideias e descobrindo que os que ali estavam presentes também defendiam a possibilidade de alcançar a certeza do conhecimento e a objetividade da verdade. Alice von Hildebrand (2002) lembra que foi nesse grupo onde conheceu Heinrich Reinach – o irmão mais novo de Adolf Reinach, filósofo que desempenhou um papel importante em seu desenvolvimento filosófico – e que logo tornou-se um grande amigo. Mais tarde em 1907 em uma das reuniões da Associação, o jovem Hildebrand acabou conhecendo Adolf Reinach e se impressionou imediatamente por seu talento filosófico e altura intelectual, conectados a uma personalidade nobre e atraente. Uma das coisas que percebeu em Reinach foi a incondicional sede pela verdade. Tanto Hildebrand, quanto Reinach compartilhavam da mesma admiração por Lipps em relação sua personalidade e estatura moral. No entanto, Reinach incentivava que Hildebrand tivesse consciência da 203 Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics limitação da ética de Lipps, devido ao seu envolvimento com o psicologismo. Na época em que Hildebrand conheceu Reinach, estava se preparando para seguir seus estudos em Tubinga, permanecendo assim pouco tempo em Munique, porém, voltaria a entrar na vida do jovem filósofo pouco depois. Dietrich considerou Reinach como seu verdadeiro mentor e mestre (HILDEBRAND, 2002). Outra experiência importante para Dietrich, como destaca Hildebrand (2002) foi quando um grupo de amigos da "Akademischer Verein fur Psychologie" organizou uma reunião em um restaurante para despedir de Moritz Geiger, que estava saindo de Munique para passar uma temporada nos Estados Unidos. Essa foi uma noite decisiva, pois foi assim que Dietrich conheceu Max Scheler, que havia chegado recentemente da Universidade de Jena. Ao começarem a conversar, como lembrou A. Hildebrand (2002), Scheler se encantou diante dos olhos de Hildebrand, apreciando a amplitude e profundidade de sua alma. Desse modo, Dietrich se viu cativado pela mente e pela personalidade de Scheler, considerando-o como um verdadeiro gênio, assim passou a desempenhar um papel importante na vida de Dietrich. Assim, além das aulas de Lipps, decidiu assistir as conferências de Scheler e um seminário dirigido por Pfänder (HILDEBRAND, 2002). Scheler formulava as ideias de forma brilhante, elas simplesmente fluíam de sua alma, sem esforço e isso foi uma nova experiência para o jovem Hildebrand. Podemos dizer que o encontro com Scheler foi "um dos grandes acontecimentos intelectuais de sua vida" (HILDEBRAND, 2002, p. 74). A relação de Hildebrand com Scheler foi para o jovem estudante uma fonte sem limites de inspiração, sendo que é possível dizer que a maior "dívida" que Hildebrand dizia ter com Scheler foi que com ele abriu-se o caminho para a Igreja Católica, mostrando-lhe ao longo de vários anos e discussões que a Igreja "recebeu e conservava a totalidade da Verdade revelada" (HILDEBRAND, 2002, p. 76). Nas reuniões realizadas principalmente em cafés, Scheler foi influenciando e modificando os pontos de vista políticos de Hildebrand tanto aos temas filosóficos, quantos aos religiosos (A. HILDEBRAND, 2002). Em 1909 Scheler convenceu Hildebrand que ele se beneficiaria em assistir as aulas de Edmund Husserl na Universidade de Gotinga. Hildebrand passou a conhecer a filosofia de Husserl por meio do primeiro volume das Investigações Lógicas, gerando consequentemente um grande entusiasmo; para o pequeno jovem foi como 204 Prof. Dr. Tommy Akira Goto Marília Zampieri da Silva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 204 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics "experimentar um amanhecer". Assim, deixou Munique para estudar com o mestre Husserl em pessoa. No primeiro encontro Husserl recebeu o novo aluno com afabilidade e simplicidade, porém, como afirma Hildebrand (2002), Husserl não causou a impressão de uma grande personalidade, fazendo Dietrich sentir claramente a diferença entre a personalidade de Husserl e a de Scheler. Na primeira semana do curso Hildebrand não compareceu, deixando Husserl ofendido com seu novo estudante, resultando em uma discussão filosófica entre eles. No final da discussão Dietrich tinha sentimentos mesclados quanto a Husserl, de um lado este havia lhe "aberto um novo mundo" com as Investigações Lógicas, sendo um pensador claramente mais profundo que Lipps, mas por outro, a personalidade de Lipps era mais atraente. Mesmo assim Hildebrand assistiu a todas as aulas de Husserl fielmente (HILDEBRAND, 2002). Dietrich von Hildebrand ficou muito decepcionado com Husserl como professor, porque estava tão absolvido por sua própria investigação que não via o ensinar como algo atrativo, seus cursos eram mal organizados e a maioria das coisas que dizia eram incompreensíveis. Husserl tinha uma mente brilhante, mas não possuía talento como professor. Nessa época Adolf Reinach decidiu fazer sua qualificação com Husserl e acabou tornando-se seu assistente. Foi nesse momento, como observa A. Hildebrand (2002), que o jovem Dietrich passou para a fase mais importante de sua formação acadêmica. Reinach ministrou um seminário sobre ética que fascinou Hildebrand de tal forma que mais tarde o influenciou em inúmeros trabalhos. E assim a relação ente Dietrich e Husserl foi evoluindo de forma positiva; o pequeno jovem descobriu traços amáveis e atrativos em seu mestre, além de seu grande talento e bondade; por fim, Dietrich decidiu fazer seu doutorado com Husserl (HILDEBRAND, 2002). Os anos de 1910 e 1911 foram importantes e marcaram decisivamente a formação intelectual de Hildebrand, principalmente ao assistir as aulas de Reinach em Gotinga. Reinach era um professor qualificado, tinha claridade, precisão e profundidade no que ensinava. Dietrich pôde desfrutar de um autêntico "banquete intelectual", tendo aulas sobre Platão e Descartes; aulas que lhe causaram impressão pra toda a vida. Outro evento nessa época, lembrado por Alice von 205 Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Hildebrand (2002) e que foi enriquecedor foi a criação da “Sociedade Filosófica” de Gotinga (Gottinger philosophische Gesellschaft) que Hildebrand fundou com Theodor Conrad; formada por um grupo seleto dos alunos de Husserl e Reinach que se reuniam para discutir temas filosóficos importantes. Pertenciam à sociedade os principais alunos de Husserl, tais como: Adolf Reinach, Conrad e Hedwig Martius, Dietrich von Hildebrand, Moskiewicz, Alexander Koyré e Jean Hering. Como comenta Stein (2002) não eram todos os alunos de Husserl que pertenciam à sociedade, pode-se dizer que a sociedade era mais constituída pelos jovens estudantes que eram influenciados por Max Scheler. Nesse mesmo período também ocorreu uma reunião importante na casa de Husserl, com a presença do próprio Hildebrand, de Scheler e Reinach, que tinha como objetivo criar o “Boletim de Filosofia e Investigação Fenomenológica” (Jahrbuch fur Philosophie und phanomenologische). Esta revista iria publicar contribuições ao pensamento humano, a partir das investigações fenomenológicas, sendo algo importante para a filosofia (HILDEBRAND, 2002). Um acontecimento interessante que comenta A. Hildebrand (2002) foi em 1911 quando os pais de Hildebrand acompanharam seu Dietrich em uma viagem de férias à Florência com a companhia de Reinach. Nessa viagem Dietrich e Reinach conheceram o mestre de Husserl, o famoso filósofo Franz Brentano; filósofo que os integrantes do círculo de Gotinga respeitavam muito. É interessante citar, que quando Hildebrand era criança tinha cruzado algumas vezes com Brentano, no período que era sacerdote, antes de ter abandonado a Igreja Católica. Segundo as observações de Dietrich, Brentano tinha uma personalidade mais marcante que Husserl, mas o último era superior a seu mestre como filósofo (HILDEBRAND, 2002). Em relação ao doutorado, Hildebrand havia inicialmente sugerido uma temática sobre "erro e ilusão", mas Husserl o aconselhou dizendo se tratar de um projeto demasiadamente ambicioso para uma tese de doutorado. Desse modo, aceitou o conselho e decidiu por um tema ético, ou seja, "a natureza da ação moral", tema este aprovado por Husserl. Assim, pôs-se a escrever e em um curto intervalo de tempo havia terminado. No final de 1911 apresentou sua tese a Husserl, quem lhe sugeriu pequenas mudanças apesar de ter gostado muito. Ao concluir a tese, Dietrich foi fazer o exame oral e defendê-la, o que ocorreu com muita dificuldade, visto que os seus avaliadores tinham uma 206 Prof. Dr. Tommy Akira Goto Marília Zampieri da Silva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 206 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics forte antipatia por Husserl e acabaram estendendo-a ao seu discípulo. Sua defesa resultou em uma aprovação, mas não com o mérito que merecia. No entanto, o que lhe importava era o que Husserl pensava dele e o mestre havia gostado muito (HILDEBRAND, 2002). Dietrich pouco depois que recebeu seu doutorado, teve uma sugestão de seu antigo tutor Alois Fischer para dar conferências de ética na Academia de Professores de Munique. Teve aceitação de muitos e passou a receber seu primeiro salário pelos honorários, o que o levou a conhecer dezessete países em sua carreira de conferencista (HILDEBRAND, 2002). Depois dessas conquistas Hildebrand chegou ao momento em que poderia voltar sua atenção para algo que lhe preocupava a meses, o desejo de entrar decisivamente para a Igreja Católica e ter sua união com Deus. Estava assim florescendo a semente da filosofia cristã que Scheler havia colocado em sua alma. Nesse período Dietrich encontrou Siegfried Hamburger, que havia conhecido em Gotinga em 1910 e começaram a construir uma amizade que duraria toda a vida. Seus encontros foram verdadeiros "banquetes filosóficos", passavam horas discutindo questões filosóficas sobre a busca pela verdade. Hamburger foi naquele momento para Hildebrand uma pessoa em que poderia confiar um verdadeiro amigo. De modo, que a mesma devoção que Dietrich tinha por Scheler passou a ter por Hamburger, sendo essa amizade um dos grandes presentes na vida de Hildebrand (2002). O momento mais decisivo e importante na vida de Hildebrand foi sua conversão à Igreja Católica, que ocorreu em 1914. Dietrich viu-se completamente apaixonado pela Igreja, mas sabia que isso poderia atrapalhar sua carreira filosófica, visto que no meio acadêmico não se falava do sobrenatural, do religioso tão pouco do "sagrado", de modo que os professores acadêmicos viviam a dicotomia entre a fé e suas investigações intelectuais. Todavia, Dietrich não se conformou com essas normas, mesmo que seu desejo era de "ensinar filosofia e não teologia, mas iria ser uma filosofia aberta a uma realidade mais alta, não uma filosofia separada sistematicamente dela" (HILDEBRAND, 2002, p. 148). O ardor, o fervor e o amor de Hildebrand pela Igreja Católica permaneceram até o último dia de sua vida, tamanha era a devoção que deixou claro que se depois de sua morte encontrassem algum manuscrito seu que fosse contrário ao 207 Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ensinamento da Igreja era pra ser queimado (HILDEBRAND, 2002). A tomada de poder pelos nazistas em 1933 forçou o casal Hildebrand a deixar a Alemanha e se estabelecer em Viena, mas ali também estava se tornando um ambiente perigoso. Resolveram então ir para a França, mas em seguida a invasão dos alemães em 1940 lhes obrigou a mudança para a Suíça, porém seus vistos foram negados. Por fim, o casal resolveu se dirigir até a Espanha com a intenção de chegar a Portugal e de lá viajar até o Brasil e os Estados Unidos. Como descreve A. Hildebrand (2002) em 1940 conseguiram um visto americano de imigração que lhes permitiram partir para os Estados Unidos. Assim, embarcaram em um navio português (Serpa Pinto) que se dirigia ao Rio de Janeiro/Brasil e foram recebidos amavelmente por um amigo de Dietrich, o monge beneditino Otto von Württemberger. Do Rio de Janeiro foram para São Paulo visitar os amigos fenomenólogos Heinrich Reinach e sua esposa que também saiu da Alemanha após a morte de Adolf Reinach em 1917. Enfim, no final de 1940 Dietrich e sua esposa embarcam definitivamente para os Estados Unidos e, logo foi nomeado professor da Universidade Fordham, uma universidade jesuíta de Nova Iorque. Ao longo de sua vida Dietrich von Hildebrand escreveu muitas obras filosóficas e obras sobre fé e moral do catolicismo. Entre as obras filosóficas estão: “Ética” (Ethik, 1929), “A metafísica da Comunidade” (Metaphysik der Gemeinschaft, 1930), “O que é Filosofia? (Was ist Philosophie?, 1970); “Estética I” (Ästhetik I, 1971); “A essência do Amor” (Das Wesen der Liebe, 1971), “Estética II” (Ästhetik II, 1977), entre outras. Também destacam-se seus escritos filosófico-teológicos, tais como: “O matrimônio” (Die Ehe, 1929), “Liturgia e Personalidade” (Liturgie und Persönlichkeit, 1933), “A Nova Torre de Babel. As manifestações da queda do homem de Deus” (The New Tower of Babel. Manifestations of Man’s Escape from God, 1953); “O coração sagrado. Uma análise da afetividade humana e divina (The Sacred Heart. Na analysis of human and divine affectivity, 1965), entre outros escritos. Os seus escritos compõem hoje as obras completas (Gesammelte Werke) compostas de dez volumes e escritas em alemão, porém nessas obras não se encontram todos os escritos do filósofo, principalmente os escritos em inglês. Os últimos anos de sua vida foram difíceis para sua concepção filosófica e religiosa, pois teve que enfrentar o progresso religioso que se desatou no Concílio Vaticano II. Acabou falecendo em 1977. Como 208 Prof. Dr. Tommy Akira Goto Marília Zampieri da Silva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 208 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics afirma Sánchez-Migallón (2003, p. 23) “é justo dizer que Dietrich von Hildebrand nunca deixou de ser filósofo: um filósofo de matriz fenomenológica, com um compromisso decidido com a verdade das coisas mesmas e com a uma atenção preocupada pelos problemas de seu tempo”. 2. A FENOMENOLOGIA REALISTA DE DIETRICH VON HILDEBRAND Como vimos Dietrich von Hildebrand foi um importante filósofo que pertenceu ao “Círculo fenomenológico de Gotinga”, ou seja, um grupo de filósofos que tinham como principal inspiração metodológica as Investigações Lógicas de Edmund Husserl. Esse grupo de filósofos produziram análises fenomenológicas de cunho realistas que foram denominadas “fenomenologia realista”. Essa fenomenologia realista tenta ser uma filosofia da verdade, a partir do estudo das essências objetivamente necessárias e de suas conexões a priori, ou como Spiegelberg (1982) denominou: uma “filosofia universal das essências”. Hildebrand compreendia a Fenomenologia de Husserl e mais propriamente o método fenomenológico como uma filosofia, metodologicamente rigorosa, que voltava sua atenção “às coisas mesmas” (zu den Sachen selbst!) para chegar ao essencial (essências), assimilando aquilo que aparece na intuição imediata. Para o filósofo de Munique “toda descoberta filosófica começa com um genuíno admirar-se e perguntar-se” (Hildebrand, 1969, p. 70), tal como a máxima husserliana e só a partir dessa base metódica é possível desenvolver um pensamento filosófico rigoroso e sistemático. Para Hildebrand (2000, p. 213) a “Fenomenologia” é sinônimo de “análise intuitiva das essências genuínas”, é a filosofia que permite “o verdadeiro contato intuitivo com o objeto dotado de uma essência genuína”, ou seja, um autêntico método filosófico. Ainda, na sua acepção o que a Fenomenologia inaugura de novo na filosofia é se constituir puramente como método, pois se funda e se legitima “epistemologicamente mediante a decisiva distinção entre essências genuínas e meras unidades morfológicas” (Hildebrand, 2000, p. 214.) Assim, Hildebrand passa a conceber o conhecimento filosófico fundamentalmente intuitivo, a ponto de defender a necessidade da intuição essencial contra as acusações de um 209 Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics suposto idealismo. Na obra “O que é filosofia?”, Hildebrand afirma que “a fenomenologia supõe plena receptividade de toda a plenitude existencial e qualitativa própria do perfume essencial das entidades espirituais e culturais” (Hildebrand, 2002, p, 215). Nesse sentido, a filosofia como fenomenológica é, em verdade, uma filosofia que mantem um contato existencial com a realidade; uma análise das essências genuínas, isto é, o conhecimento a priori. Com o método fenomenológico é possível alcançar genuinamente, após análises sucessivas, o conhecimento a priori de essências e fatos essenciais; com esse método é permitido descobrir a verdade e a profundidade do objeto. Como o conhecimento filosóficofenomenológico procede em direção às essências, Hildebrand passa a descrever “tipos de essência” no intuito de delimitar o campo de objetos presentes no conhecimento. Com isso, considera os “tipos de essência” como “tipos de unidade” que se dão nos seres, intrínseca e altamente significativa de consistência. Esses são três tipos ou graus, conforme descreve SánchezMigallón (2002): o primeiro tipo são as unidades casuais, ou seja, unidades de um conjunto cujos elementos estão relacionados apenas de maneira factual e acidentalmente (como por exemplo, em uma pilha de tijolos); o segundo tipo é a unidade de "tipo real", isto é, formas já intrínsecas, possuidoras de uma qüididade de sentido consistente (essências, tais como água, pedra); podemos dizer que esse tipo possui uma definição genuína, porém são completamente dependentes da experiência do mundo como ele é – contingente e factual; por fim, o terceiro tipo, de grau mais elevado de unidade, são as unidades essencialmente necessárias. São essências que nos são dadas de um pleno, tais como: a essência do ser humano, triângulo, pessoa ou do amor e que Hildebrand qualifica como modos de ser "ideal", ou seja, que são apenas uma natureza essencialmente necessária e válida, independentemente de qualquer posição e circunstâncias existenciais. No entanto, mesmo que a posição realista de Hildebrand, influenciada por Reinach, concebesse as essências intuídas como possuidoras de uma subsistência e validade próprias e independentes do sujeito que as conhece (Fidalgo, 2011), o filósofo também via a necessidade de descrever as vivências do sujeito que captavam essas essências. Na vida da pessoa humana a esfera do conhecimento possui um papel essencial, já que conhecer é um contato intencional com o ser, no qual a pessoa participa do descobrimento de sua própria natureza. O conhecimento a priori é o "conhecimento mais digno" para 210 Prof. Dr. Tommy Akira Goto Marília Zampieri da Silva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 210 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Hildebrand, tendo três características principais: sua necessidade intrínseca, sua inteligibilidade incomparável e sua certeza absoluta (ROVIRA, 2006). Assim, sem aceitar a virada transcendental de Husserl, ou seja, a consciência transcendental – tal como fez o grupo de Gotinga a partir da publicação das “Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica” –, Hildebrand manteve a concepção de vivências atrelada à ideia de consciência psicológica (intencional), assim continuou a defender a ideia que o método fenomenológico permitiria chegar ao entendimento da estrutura interativa que liga a natureza intencional de experiências humanas. Dessa maneira, Hildebrand passou a descrever de maneira rigorosa e profunda a estrutura intencional das vivências, chegando a oferecer uma “tipologia de vivências” que permitia mostrar a complexidade e riqueza da vida subjetiva. Em um importante capítulo de sua obra “Ética”, Hildebrand (1997, p. 190) descreve a vida consciente, ou seja, a intencionalidade que, em sua acepção significa: “uma relação racional e consciente entre pessoa e objeto”. Segundo o fenomenólogo a intencionalidade é a estrutura mais importante da vida consciente do ser humano e se distinguem em: vivências "intencionais", que apontam para algo e têm caráter receptivo, são conscientes e possuem uma relação com o objeto; e as vivências "nãointencionais", que necessitam de um propósito, não mantêm uma relação consciente e significativa com o objeto. Ainda, as vivências “nãointencionais” dividem-se em "meros estados", tais como: o cansaço, o mau humor e "tendências teológicas" que são os fenômenos físicos imanentes das quais não possuímos consciência, tais como: instintos e impulsos. Em contrapartida, as vivências “intencionais” se distinguem em “vivências receptivas ou atos cognitivos” e “vivências de resposta”, uma vez que Hildebrand (1997) faz uma diferenciação no tipo de intencionalidade, isto é, na direção intencional das vivências. Assim, descreve o filósofo sobre as vivências receptivas: Os atos cognitivos se caracterizam, em primeiro lugar, porque são consciência de algo, isto é, de um objeto. São, por assim dizer, vazios; todo o seu conteúdo reclina do lado do objeto. [...] os atos cognitivos, a intenção vai, por assim dizer, do objeto até a nós; o objeto se manifesta a nosso espírito, nos fala e nós escutamos. [...] todos os atos cognitivos tem caráter 211 Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fundamentalmente receptivo, ainda que os mesmos não sejam puramente passivos. (HILDEBRAND, 1997, p.195). Para ilustrar os atos cognitivos, Hildebrand (1997, p. 195) diz: “quando vemos uma cor vermelha, o seu conteúdo está do lado do objeto; não somos vermelhos, mas temos consciência do vermelho”. Já nas vivências de respostas “a intenção vai de nós até o objeto”, ou seja, nas “respostas nós somos quem falamos; o conteúdo de nosso ato se dirige ao objeto; é a nossa resposta ao objeto”. Assim, por exemplo, ao sentirmos alegria o conteúdo está no sujeito, “não estamos vazios, senão ‘cheios’ de alegria” (HILDEBRAND, 1997, p. 195). Por fim, descrevendo as vivências de resposta, o filósofo distinguirá as respostas entre “respostas teóricas”, pertencentes à esfera do conhecimento as “respostas volitivas” que permitem uma postura frente ao objeto e as “respostas afetivas” que qualificam e dão importância ao objeto. São por essas respostas e principalmente a afetiva que Hildebrand postulará a sua ética, porque segundo ele a ética estará centrada naquilo que tem a capacidade de obter uma resposta afetiva e o que tiver essa capacidade deve ter o caráter de importância. “Para que um objeto motive nossa vontade ou qualquer resposta afetiva, deve estar dotado de algum tipo de importância, há de destacar-se da neutralidade ou indiferença” (Hildebrand, 1997, p. 34). 3. A PESSOA HUMANA E A AFETIVIDADE Como vimos e de acordo com Rovira (2006), a fenomenologia de Hildebrand "aspira a um contato genuíno com a realidade" (p. 163), não se reduzindo a simples fenômenos, visto que toda investigação filosófica de Hildebrand é fundamentada pela experiência humana. O modo de ser de diversos grupos de objetos é mostrado por meio de dados da experiência, assim é fundamental analisar os diversos fenômenos da vida consciente do ser humano para conhecer sua essência. Isso porque, segundo Hildebrand (1997), a pessoa humana ocupa no universo um lugar privilegiado, visto que em virtude das estruturas objetivas da realidade e da vocação pela verdade sua dignidade é mantida. A análise fenomenológica da pessoa humana em Hildebrand, tal como apresenta Rovira (2006) é dupla: de um lado temos um "mundo para si", em que a especificidade da pessoa é apontada frente a outros seres que se dão na experiência; e de outro lado, temos a pessoa como um 212 Prof. Dr. Tommy Akira Goto Marília Zampieri da Silva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 212 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ser espiritual devido os seus atos e vivencias. Ainda, segundo essa análise dois tipos de seres são revelados na experiência: as substâncias, que existem e subsistem por si próprios; e os acidentes, que para existirem precisam da substância. Cada ser possui o caráter substancial realizado de terminado modo, assim, por exemplo, na matéria inanimada a substancialidade se manifesta em uma individualidade fraca, enquanto nos seres vivos temos uma individualidade mais completa. Entretanto, é na pessoa humana que a individualidade alcança sua expressão máxima, visto que ela se torna consciente dos atos cognitivos, afetivos e vontades e sua significativa relação com o mundo. Como temos visto os estudos das vivências, conforme descreve Hildebrand (2005), apontam que a pessoa humana é um ser espiritual e que o ser humano possui três estruturas intencionais, quais sejam: o entendimento, a vontade e afetiva. Essas três estruturas da pessoa humana são, em verdade, a estrutura ontológica do ser humano e cada uma delas compõem “centros operativos” de vivências. Apesar das três estruturas – entendimento, a vontade e a afetividade – comporem à sua maneira a subjetividade humana, para Hildebrand (2005), a afetividade é a que melhor expressa a vida interior humana, isso porque por meio da afetividade é possível dizer que vivemos algo. Ainda, Hildebrand diz que apesar das vivências afetivas terem algo em comum com as vivências volitivas e se distinguirem das cognitivas, são também vivências à parte porque: a) o seu objeto pode ser real, ou seja, a resposta afetiva se dirige a algo real e não possível (quando nos alegramos de algo que existe); b) as respostas afetivas se dão plenamente e; c) as respostas afetivas não são livres de modo pleno e direto (Sánchez-Migallón, 2002). Segundo Hildebrand (2005), o estudo das respostas afetivas é necessário para compreender a essência da pessoa, mesmo que a afetividade tenha sido atribuída por um caráter irracional. Para o filósofo isso acontece por três razões: por reduzir sua parte inferior sem levar em consideração sua necessidade no âmbito espiritual (isso acontece nas ciências psicológicas ao reduzirem a afetividade aos sentimentos ou paixões); estudam os afetos separados dos objetos que o motivam; e pela falta de crédito da afetividade como algo autêntico do ser humano (ROVIRA, 2006). Hildebrand (2005) também afirma que a afetividade não se reduz 213 Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics às suas formas não espirituais (formas inferiores de afetos, tais como: as sensações corporais, sentimentos psíquicos, as paixões ou sentimentos poéticos), mas que também tende a ser um “sentimento espiritual”, no qual se manifestam de modo pleno as chamadas "respostas afetivas”. O amor, por exemplo, ocupa um lugar central dentro das respostas afetivas, visto que é uma resposta ao valor da pessoa em sua integridade. “Assim como se tornou claro que a afetividade e a espiritualidade não se excluem, fica livre o caminho para a verdadeira essência do amor” (HILDEBRAND, 2016, p. xx). Apesar de não abordarmos aqui toda a complexa descrição que Hildebrand faz das “respostas afetivas”, reforçamos que essas respostas possuem um caráter ativo no ser humano e que expressam sua tomada de decisão em relação aos acontecimentos mundanos, a partir da forma como se responde afetivamente a isso. São vivências afetivas que o ser humano dirige desde o “coração”, como denominou Hildebrand (2005) até o valor que possuem tais acontecimentos. Isso porque “se uma pessoa que não foi capaz de captar os valores e compreendê-los como tal, não seria uma pessoa real. Sem o valor de aquisição seria diálogo íntimo impossível entre sujeito e objeto, e não haveria pleno significado do conhecimento”. REFERÊNCIAS BURGOS, J. M. Introducción al personalismo. Madrid: Biblioteca Palabra, 2012. FERRER, U. ¿Qué significa ser persona? Madrid: Biblioteca Palabra, 2002. HILDEBRAND, A. von. Alma de léon. Biografia de Dietrich von Hildebrand. Madrid: Biblioteca Palabra, 2002. HILDEBRAND, D. von. Ética. Madrid: Ediciones Encuentro, 1997. HILDEBRAND, D. von. El caballo de Troya em la Ciudad de Dios. Madrid: Ediciones Fax, 1967. HILDEBRAND, D. von. El corazón. Um analisis de la afectividad humana y divina. Madrid: Ediciones Encuentro, 2005. EBook. ISBN: 9788490558096. HILDEBRAND, D. von. Las formas espirituales de la afectividad. Madrid: Ediciones Encuentro, 2016. HILDEBRAND, D. von. ¿Que és filosofia? Madrid: Ediciones Encuentro, 2000. SÁNCHEZ-MIGALLÓN, S. El personalismo ético de Ditrich von Hildebrand. Madrid: Ediciones Rialp, 2003. SPIEGELBERG, H. 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Para descrever a primeira forma de engajamento, muito comum nas redes sociais, faço uso do termo heideggeriano falatório. Esse tipo de engajamento se caracteriza pela reprodução do mesmo e pela negação da diferença. Já a segunda noção de engajamento, pensada a partir das obras de Sartre e MerleauPonty, em clara oposição ao falatório, remete a um exame de três características fundamentais do engajamento intelectual: práxis, compromisso, responsabilidade. PALAVRAS CHAVE Engajamento; falatório; redes sociais; liberdade; compromisso. ABSTRACT In this paper I discuss two perspectives on politics and engagement. To describe the first form of engagement, very usual in social networks, I use the heideggerian term chatter. This kind of engagement is characterized by its reproduction and by the denial of difference. A second notion of engagement, thought from the works of Sartre and Merleau-Ponty, in clear opposition to the chattering, refers to an examination of three fundamental characteristics of intellectual engagement: praxis, commitment, responsibility. KEYWORDS Engagement; 210 chatter; social networks; freedom; commitment. E-mail: efalabretti@gmail.com 215 Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics INTRODUÇÃO A internet propiciou uma forma de comunicação que modificou completamente o modo como estávamos acostumados a receber, interpretar e transmitir informações, ideias e crenças. Com o nascimento das redes sociais, o privilégio da análise e do comércio das ideologias, da interpretação das informações e da intervenção “intelectual” foi universalizado, isto é, está disponível a praticamente todas as pessoas conectadas. Desse modo, intolerantes, fundamentalistas, homofóbicos, racistas, católicos, evangélicos, feministas, anarquistas, liberais, comunistas e filósofos – analíticos e ou continentais – etc descobriram que são muitos e, o mais importante, que suas ideias são acolhidas, “curtidas e compartilhadas” por incontáveis pessoas. Desse modo, uma certa analítica dos fatos – agora dilatada e isenta de parâmetros acadêmicos e editoriais – deixou de ser uma ocupação circunscrita ao intelectual tradicional, seja ele um teórico da universidade, um cientista, um escritor independente ou, ainda, um jornalista. Todavia, essa democratização da analítica, destruiu a nossa crença ingênua de que quando tivéssemos acesso um meio de comunicação universal adentraríamos num espaço virtual democrático aberto à diferença e à pluralidade. De fato, as diferenças estão presentes nesse mercado de análise cotidiana, porém, quase sempre voltadas para a anulação do outro. Esse alargamento indistinto do ato de interpretar, propor e propagar ideologias – separado da escuta e da leitura crítica – deixou mais aparente os matizes da nossa diversidade moral e política e, em muitos casos, deu publicidade a ideias, sentimentos e intenções que jamais deveriam sair das nossas mentes sombrias. Vivemos, sem dúvida alguma, em uma época alargada de razão e desrazão ou, ainda, na era da (des) razão largada. Além do mais, independentemente da complexidade dos fatos, podemos expressar a nossa aquiescência ou discordância recorrendo tão somente a sinais do tipo gutural: curtir, amar, haha, uau, triste, grr etc. Desse modo, é preciso, também, prestar atenção as trocas discursivas que renunciaram à dialética. O discurso, nesse comércio barato de sinais, vela a própria linguagem. Assim, essa analítica alargada dos fatos fez nascer o interprete à distância, uma espécie de intelectual amador que faz um tipo de filosofia, sociologia e política sem corpo, sem presença e 216 Prof. Dr. Ericson Falabretti Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 216 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics quase sem linguagem. Desse modo, o prejuízo mais evidente é que para esse novo tipo de “intelectual” (a) largado nunca foi tão fácil expressar e propagar a sua repulsa ao diferente e, contrariamente, o seu assentimento ao mesmo, e essa parece ser a lógica desse tempo de falatório virtual: fechamento sobre o mesmo. Em uma apropriação completamente livre do texto de Heidegger, similar à critica da analítica dos nossos tempos, podemos dizer que compartilhamos e vivemos como nunca, aquela a existência inautêntica descrita em Ser e Tempo, a prática do falatório, os dizeres dispersos e descompromissados: O falatório não tem o modo de ser que apresenta conscientemente algo como algo. Porque o que e sem solo ou fundamento já lhe basta para transformar a abertura em fechamento. Pois o que foi dito ja sempre foi compreendido como algo ‘que diz’, ou seja, que descobre. O falatório e, pois, por si mesmo, um fechamento, devido a sua própria abstenção de retornar a base e ao fundamento do referencial (HEIDEGGER, 2002, p. 229). A marca do “falador” na internet parece ser essa; troca e reprodução do mesmo discurso sempre com o mesmo grupo de pessoas; o “modo de ser do discurso do cotidiano”; o repetir e passar adiante uma causa, independentemente, em muitos casos, se ela fomenta violência e práticas de humilhação. E essa é a maior consequência do fechamento, o “falador” é, na maior parte das vezes, insensível à violência. Isso é evidente quando, por exemplo, o falatório faz da violência verbal um meio para atingir os seus fins, seja através de práticas de bullying virtual (cyberbullying) ou, mesmo, compartilhando discursos de ódio para justificar a apologia, entre outras coisas, da posse de armas, da pena de morte ou, ainda, de políticas discriminatórias contra vítimas históricas e sistêmicas: gays, mulheres, índios, imigrantes e outras. Entretanto, a era do falatório, democratizou a escrita e o engajamento ao universalizar uma economia de baixo custo para propagação de ideias. Nesse sentido, podemos dizer, num uso semântico muito lato do termo intelectual, atualmente não operaria mais a distinção binária gramsciniana entre o intelectual orgânico 211 e o tradicional, mas a Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da 217 211 Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics quase indistinção absoluta entre o intelectual e o não intelectual, entre o escritor e o falador, chegando a ponto de não mais podermos nos opor com clareza à célebre afirmação de Gramsci: “....todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectual” (GRAMSCI, 2006, p. 18). O espectro da função foi, conforme já dissemos, definitivamente, ampliado, alargado. Mas qual seria essa função? O que é engajamento? As categorias da velha filosofia ainda podem explicar esse fenômeno? Podemos, a partir da filosofia, pensar em uma ética para o sujeito engajado nas redes sociais? própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc., etc. (...) Pode-se observar que os intelectuais ‘orgânicos’ que cada nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progressivo são, na maioria dos casos, ‘especializações’ de aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à luz. GRAMSCI. Cadernos do Cárcere. Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, pp. 15-16 Na recente História da Filosofia, Sartre, sem dúvida alguma, merece o simbólico título de intelectual engajado do século XX. Exageros à parte – não podemos jamais esquecer de Gramsci, Edmund Russell, Foucault entre outros – Sartre parece ter fixado o estilo e a função do intelectual engajado: um comentador de atualidades comprometido com o seu tempo, armado de conceitos e de um profundo senso histórico, alguém sempre disposto a se arriscar e “sujar as mãos”. Além do mais, juntamente com Simone de Beauvoir e Merleau-Ponty, Sartre elegeu o tema do engajamento como um tópico fundamental da filosofia existencialista francesa. Todavia, a primeira consideração a ser feita se refere que em Sartre e em Merleau-Ponty não estamos diante de uma noção única de engajamento, sobretudo, quando pensamos nas relações entre filosofia e política, fundamentalmente, como parece e deve se realizar este tipo de engajamento político do filósofo212. Para compreender e explorar com mais acuidade a relação entre Sartre e Merleau-Ponty, o fim da amizade entre ambos e o problema do engajamento, o leitor poderá consultar em português, além de 218 212 Prof. Dr. Ericson Falabretti Toledo, n˚1, v. 2 (2017) Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Se isso separa Sartre de MerleauPonty, como veremos ainda, o que os aproxima, como toda a tradição existencialista, parece ser o fato de ambos assentar a noção de engajamento na consideração da condição existencial do homem. O que a filosofia existencialista estabelece é que não há engajamento sem liberdade, ou independente da condição fáctica do homem. Num primeiro olhar, essa ligação parece paradoxal. Pois sou livre, na visão comum do tema, justamente na medida em que não estou ligado, não estou preso, não estou amarrado ou, ainda, não estou engajado. No entanto, o paradoxo no viés existencialfenomenológico é apenas aparente. O engajamento só é possível porque, em última análise, sou livre para escolher fazer ou não parte, por exemplo, de um projeto político. Como também, vivo boas teses e dissertações sobre esse tema, vários artigos, tais como: 1) CAPALBO, Creusa. Maurice MerleauPonty e o conceito de política. In: Revista Estudos Filosóficos, Pág. 55 – 62, nº 13/2014, São João del-Rei-MG. Acesso: http://www.ufsj.edu.br/revistaestud osfilosoficos; 2) CHAUÍ, Marilena. Intelectual engajado: uma figura em extinção? In: NOVAES, Adauto (Org.). O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Cia das Letras, 2006. plenamente a minha liberdade somente na media em estou engajado, por exemplo, na realização de um projeto. A relação é circular, girando sempre em torno dessa noção capital de projeto, um fim que orientamos a nossa existência. Desse modo, conforme a onto-antropologia sartriana, existimos, indissociavelmente, como liberdade e engajamento. Cabe então, rapidamente, discutir as implicações políticas e éticas a partir de uma breve análise da condição desse sujeito livre e engajado, conforme estabeleceram Merleau-Ponty e Sartre. Influenciado por Husserl e Heidegger a tese central dos primeiros escritos de Sartre reside na distinção entre o Ser – mundo das coisas – e o Nada – a consciência. O Ser, de modo geral, é objetivo, é substância, são as coisas, o em-si. O nada não é natureza, não tem substância, não é alma, é subjetividade pura, é o para-si. Na segunda parte de O ser e o nada, Sartre demarca a estrutura do parasi, mostrando que entre a consciência e as coisas não há mais integração e a consciência, enquanto potência de se relativizar diante das coisas, é sempre um nada diante de um ser: A característica da consciência, ao contrário, é que ela é uma descompressão do ser. É impossível, em efeito, de defini- 219 Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics la como coincidência consigo mesa. Dessa mesa, eu posso dizer que ela é puramente e simplesmente essa mesa. Mas da minha crença, eu posso somente me limitar a dizer que ela é crença: minha crença é consciência (de) crença. (SARTRE, 1997, p. 110). Ao contrapor a subjetividade (para-si) ao ser (em-si), Sartre reencontra o ser bruto do irrefletido e, de certo modo, reconhece o sentido do próprio mundo que havia sido recusado pelo idealismo transcendental. Pois se a consciência é nada, ela existe e vive em ek-stase nas coisas. Nesse caso, não existe diferença em não ser nada e estar no mundo. A analítica da facticidade em Sartre, revela dois sentidos indissociáveis do para-si. Primeiro, a presença no mundo da consciência como um fato, como algo que escapa à própria liberdade, pois não sou livre de não estar no mundo. Nesse sentido, a facticidade é a condição bruta do existir, pois a consciência surge e existe em um solo que independe da sua liberdade e das suas escolhas. O para-si é sustentado por uma contingência, uma situação concreta que ele assume sem jamais poder suprimi-la. É um fato que o para-si está no mundo, dirige-se às coisas e é nada. Portanto, a facticidade releva-se numa dupla implicação – estamos no mundo sem justificativas e, por outro lado, somos e estamos indubitavelmente ligados a esse mundo: Sem a facticidade a consciência poderia escolher seus laços com o mundo, do mesmo modo que as almas, na República, escolheriam a sua condição: eu poderia me determinar a nascer trabalhador ou a nascer burguês. Todavia, por outro lado, a facticidade não pode me constituir como sendo burguês ou sendo trabalhador. Ela mesma não é, propriamente falando, uma resistência de fato, uma vez que retomando-a na infraestrutura do cogito préreflexivo eu conferiria seu sentido e a sua resistência. (SARTRE, 1997, p. 119). O que caracteriza a facticidade – a própria realidade humana – é essa falta ontológica de um lado e, por outro, essa plenitude de ser. Para Sartre, como já comentamos acima, o para-si vive em um perpétuo ek-stase, na medida que é em si mesmo um nada orientado para o ser. Purificado de toda eiccedade, vazio e sem plenitude, pois só as coisas são plenas, o parasi é pura negatividade. Por isso mesmo, o ek-stase é um movimento de uma só direção, uma fuga para 220 Prof. Dr. Ericson Falabretti Toledo, n˚1, v. 2 (2017) Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fora de si mesmo que dá acesso ao mundo e às coisas. A existência do para-si, indica Sartre, coincide com a sua condição, com a sua facticidade, com sua encarnação e com a sua liberdade. A facticidade, complementa Sartre, “(...) não é, senão, uma indicação que eu me dou a mim mesmo de ser que eu devo alcançar para ser aquilo que eu sou” (1997, p. 119). Assim, a liberdade sartriana somente se realiza no mundo, ela é escolha de si mesmo no meio do mundo, pois ela parte da condição fáctica do para-si. Para Sartre, resumidamente, estamos comprometidos, engajados no mundo, no tempo e na história. Mas nem todos os homens, diz Sartre, em uma tese próxima a de Merleau-Ponty em A dúvida de Cézanne, sobre a diferença que pesa sobre o engajamento do pintor e do escritor, estão comprometidos do mesmo modo. O engajamento do intelectual é uma “função” específica de sua condição de ser aquele que se comunica com os outros, aquele que se engaja não somente no mundo, mas na relação e na libertação dos outros homens. Já o pintor, comenta Merleau-Ponty sobre Cézanne, não tem obrigação de sustentar uma tese, ele é livre para se expressar a partir da sua visão de mundo, para empregar os seus traços e as suas cores. Uma pintura, a princípio, não tem uma dimensão axiológica, como não tem um dever de verdade. Como é óbvio que a obra de Merleau-Ponty se encontra implicada às principais teses da filosofia de Husserl e Sartre, também é evidente que há um desvio entre as duas filosofias. Como Husserl, a filosofia de Merleau-Ponty também expressou um retorno “as coisas mesmas”, porém nesse caso um retorno ao irrefletido, ao primeiro contato que temos com as coisas. Longe da consideração filosófica racionalista sobre o mundo exterior, bem como da perspectiva negativa da escola empirista sobre a noção de consciência interior, a filosofa merleau-pontyana se mostra singular não apenas diante de Husserl, mas perante toda a tradição da filosofia. O lugar do corpo no sistema, o privilégio da percepção diante da atividade intelectual e reflexiva não nos permite apenas entender como são, ao mesmo tempo, distantes e próximas a fenomenologia transcendental de Husserl e a fenomenologia existencial de Merleau-Ponty. Fomentar um pensamento, um método, uma filosofia que dê conta da existência integral do homem no mundo parece ser a marca da filosofia de Merleau-Ponty. Filosofia que não é nova especificamente por esse motivo. Pois a condição existencial 221 Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fáctica e livre do homem, de Kierkegaard a Sartre, constituiu a razão fundadora da filosofia existencialista. O que é novo em Merleau-Ponty é o movimento do pensamento, é a inquietação que coloca em questão aquilo que antecede, sustenta e é inatingível pela racionalidade objetiva. Essa nova filosofia trabalha, antes de tudo, a partir da condição primordial e universal do homem, sobre o ser bruto, não como um artesão para lapidá-lo. Pois não é preciso descortinar, separar ou descontruir para descobri-lo. Pois o homem não se esconde atrás de uma ideia, de um conceito, ele se mostra no contato direto, na visão do seu corpo, nas suas escolhas e na consideração da sua condição fáctica que nos é constantemente dada na experiência perceptiva. Logo nas primeiras linhas do prefácio da Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty já nos alerta sobre essa condição carnal e existencial do homem no mundo: A fenomenologia é o estudo das essências, e todos os problemas, segundo ela resumem-se em definir essências: a essência da percepção, a essência da consciência, por exemplo. Mas a fenomenologia é também uma filosofia que repõe as essências na existência, e não pensa que se possa compreender o homem de outra maneira senão a partir da facticidade. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 1). Merleau-Ponty privilegiou o corpo como o verdadeiro núcleo da existência. O corpo é o modo de ser do homem no mundo. Como corpo não estamos fechados em nós mesmos, pois o nosso corpo não se restringe ao alcance dos nossos membros, ou mesmo as reações reflexas interiores. Corpo é a forma carnal da nossa subjetividade, é o que nos delimita como ser e nos abre para o mundo; como centro da nossa experiência perceptiva nos faz viver e ser-no-mundo. Temos uma ligação carnal com o mundo e, por isso mesmo, não há uma filosofia pura, ou mesmo, uma subjetividade capaz de ser e existir independentemente dessa presença corporal no mundo. Portanto, na filosofia existencial de MerleauPonty, não encontramos a oposição do em-si e do para-si do mesmo modo como promovia Sartre ou, ainda, um cogito como puro pensamento, como podemos ler na filosofia de Descartes. A existência para Merleau-Ponty não separa o homem no mundo do homem para o mundo, mas se situa entre esses dois últimos, ou seja, na articulação entre um e outro, pois estamos, ao mesmo tempo, no mundo e existimos para o mundo. Noções 222 Prof. Dr. Ericson Falabretti Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 222 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics existencialistas como coisa, mundo, consciência, facticidade e liberdade adquiriram com Merleau-Ponty uma nova significação, a do corpo. O nosso século, diz MerleauPonty, apagou a linha divisória entre o corpo e o espírito e vê a vida humana como espiritual e corporal de parte a parte, sempre apoiada no corpo, sempre interessada, até nas maneiras mais carnais, nas relações das pessoas. A facticidade, a nossa existência ancorada no mundo como puro fato, pois estamos no mundo como o nosso coração está em nosso corpo, como estabelece MerleauPonty na Fenomenologia da Percepção, é uma condição pela qual o homem se encontra previamente lançado entre as coisas, em situações dadas e não escolhidas. Se para Sartre a facticidade, as coisas que estão aí e todas as determinações são um entrave à liberdade do homem, para Merleau-Ponty não há exterioridade ou olhar estrangeiro ameaçador, os obstáculos constituem, antes de tudo, uma motivação 213 para as nossas Não vou aqui discutir esse importante conceito que MerleauPonty retoma de Husserl. Todavia, na Fenomenologia da Percepção, ainda na primeira parte, a motivação é o sentido prévio alcançado pela percepção que envolve e liga os fenômenos, uma ligação que não pode ser reduzida às noções de 213 escolhas. O que Sartre entendeu como obstáculo à liberdade, a situação, o estar no mundo a partir de condições pré-determinadas – históricas e naturais – MerleauPonty interpreta como a motivação primordial e radical que nos conduz a fazer escolhas livres. Sartre, conforme o texto abaixo, argumenta que o sentido técnico da liberdade é a autonomia de escolha. Merleau-Ponty, de certa forma, não nega essa autonomia, mas não a admite de modo incondicional como estabelece Sartre: É necessário [...] sublinhar com clareza, contra o senso comum, que a fórmula “ser livre” não significa “obter o que se quis”, mas sim “determinar-se por si mesmo o querer (no sentido lato de escolher)”. Em outros termos, causalidade: “Um fenômeno desencadeia um outro não por uma eficácia objetiva, como a que une os acontecimentos da natureza, mas pelo sentido que ele oferece — há uma razão de ser que orienta o fluxo dos fenômenos sem estar explicitamente posta em nenhum deles, um tipo de razão operante. (MERLEAU-PONTY, p. 81, 1999). No capítulo sobre a liberdade essa mesma relação é aprofundada. A motivação não é causa das minhas escolhas, mas são as minhas escolhas que conferem à motivação sentido, nas palavras de Merleau-Ponty, conferem força. 223 Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics o êxito não importa em absoluto à liberdade. A discussão que opõe o senso comum aos filósofos provém de um malentendido: o conceito empírico e popular de “liberdade”, produto de circunstâncias históricas políticas e morais, equivale à “faculdade de obter os fins escolhidos”. O conceito técnico e filosófico de liberdade, o único que consideramos aqui, significa somente: autonomia de escolha. (SARTRE, 1997, p. 595). Ao contrário de Sartre que considerava a liberdade como poder absoluto de escolha, Merleau-Ponty entende que não há liberdade senão a partir do nosso engajamento existencial e primordial, da nossa presença corporal no mundo. Assim, para Merleau-Ponty não experimentamos jamais o “determinar-se por si mesmo o querer” em sentido pleno e absoluto, essa perspectiva sartriana lega à liberdade dois prejuízos: tautologia e esterilidade. Em Sartre a liberdade se realizaria tão somente a partir de escolhas que tem como significação fundamental apenas o próprio ato de escolher, não importando se esse ato cria ou não, modifica ou não absolutamente nada. Em Merleau-Ponty sempre escolhemos a partir de um lugar, contamos com um passado e um futuro que não nos deixa, pois conforme a sua teoria da temporalidade, presente, passado e futuro são modalidades – vagas temporais – de um mesmo momento, de uma única temporalidade. Ainda que essas condições – o espaço, o tempo, a história, a natureza – não condicionem absolutamente as nossas escolhas, elas permanecem como um fundo – um sedimento – que nos envolve e fala à vontade e ao querer. Mesmo não se impondo como regra ou determinações absolutas, é, também, a partir desse sedimento que nos motivamos a escolher: “Não há determinismo ou escolha absoluta: jamais sou coisa, jamais sou consciência nua”. (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 608). Desse modo, a filosofia merleaupontyana entende a facticidade e a finitude não como obstáculos à nossa liberdade, mas como a sua própria possibilidade. Pois a liberdade, como podemos ler no último capítulo da Fenomenologia da percepção, está ancorada nesse fundo sedimentado e inacabado – natural e histórico – que nos solicita, esperando de nós, das nossas escolhas, o seu acabamento: 224 Prof. Dr. Ericson Falabretti Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 224 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Na realidade, o projeto intelectual e a posição dos fins são o acabamento de um projeto existencial. Sou eu que dou um sentido e um porvir à minha vida, mas isso não quer dizer que esse sentido e esse porvir sejam concebidos, eles brotam de meu presente e de meu passado e, em particular, de meu modo de coexistência presente e passado. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 599). Para Merleau-Ponty, assim como para Sartre, um projeto existencial, portanto, não se esgota na consciência de um engajamento intelectual, pois a nossa existência se realiza na ação (ética e política), na escolha livre de um fim. É justamente o engajamento concreto – a tomada de posição, a deliberação de correr o risco de “sujar as mãos” – que nos permite escapar aos prejuízos da esterilidade e da tautologia: da escolha pela escolha, da fala pela fala, da escrita pela escrita. Entretanto, de fato, como se realiza o engajamento concreto? Não há, certamente, uma fórmula universal sobre como devemos “sujar as mãos”, mas podemos pensar o engajamento a partir de três condicionantes filosóficos, todos, de alguma maneira, enunciados, sobretudo, pela filosofia sartriana. Antes de tudo, o engajamento se revela como responsabilidade. Termo e condição muito cara ao existencialismo. O engajamento como responsabilidade retoma a ideia de um pensamento que assume as consequências políticas e éticas que ele implica ao ser elaborado, ao ser enunciado ao ser escolhido. Na visão sartriana de responsabilidade, não há escolha ou ação isolada em si mesmo. Como estamos comprometidos com o outro, também somos responsáveis pelo outro. Como não me ocupo apenas de mim, também sou responsável por todos e, do mesmo modo, se me recuso a não me ocupar do outro também não deixo de ser responsável. Pois não há escolha sem responsabilidade. Desse modo, a responsabilidade é uma modalidade inerente a todas as nossas escolhas: “A consequência essencial de nossas observações anteriores é a de que o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser”. (SARTRE, 1997, p. 678). A segunda característica intrínseca à noção de engajamento se relaciona a inevitabilidade da ação do homem no mundo. De certo modo, podemos ler aqui uma resposta de Sartre às criticas de Merleau-Ponty acerca da sua 225 Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics concepção de liberdade. Falamos agora de engajamento como práxis. O engajamento sem práxis é uma escolha que não almeja nenhum fim, ou, de modo evidente, uma fala sem voz, um discurso sem ideias, simplesmente um falatório estéril. A práxis enquanto ação humana, como podemos ler na Crítica da razão dialética, mantém uma relação com a realidade e os fins humanos mediada por três momentos indissociáveis: i) negação parcial de uma situação concreta com vistas a atingir um fim não existente ainda; ii) revelação das formas para atingir esse fim; iii) invenção das possibilidades do agir. Na práxis não negamos absolutamente o sedimento ontológico da nossa situação prévia, seja ele histórico ou natural. Muito pelo contrário, somos motivados por esse mesmo sedimento a inventar as possibilidades para atingir os fins que escolhemos. Para Sartre, a práxis é a condição fáctica e existencial que dispomos para projetar fins e transformar a realidade a partir de uma reflexão prática acerca das nossas próprias possibilidades. A práxis é o exercício concreto e visível da liberdade orientado para estabelecer as possibilidades de um projeto existencial. As possibilidades são, segundo Sartre, “inventadas” e redescobertas a partir de um projeto prático, da ação que propõe algo a partir de uma realidade dada, e só a partir dessa invenção que podemos falar em possibilidade, já que só existe possibilidade em relação a um projeto a ser alcançado. A práxis, estabelece Merleau-Ponty, em As aventuras da dialética, “é a vertiginosa liberdade, o poder mágico que temos de fazer e de fazer nós mesmo qualquer coisa (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 170). A práxis, de uma certa maneira, evidencia a condição e o compromisso inerentes à atividade técnica do intelectual. No texto em Defesa dos intelectuais, Sartre retoma a condição ambígua do intelectual, o conflito interno e incontornável que parece condenar o intelectual a um jogo de forças. O intelectual visa, e isso é incontornável, um saber universal como, também, produz, quase sempre, um saber particular voltado a atender interesses de classes. Se defronta, e isso é inevitável, com a tensão nauseante que opõe as necessidades históricas – o fim último, o compromisso – às contingências cotidianas, o fim imediato. Voltaire, Vitor Hugo e Zola, entre outros, são exemplos de intelectuais que reconheceram essa incontornável ambiguidade e, por isso mesmo, assumiram o 226 Prof. Dr. Ericson Falabretti Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 226 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics compromisso de colocar a sua pena a serviço de causas sociais e políticas que estavam acima dos seus interesses privados. Desse modo, o engajamento intelectual – o de boa fé nos termos de Sartre – é, do começo ao fim, revestido de um compromisso político fundado na motivação que fazemos parte de um projeto coletivo. Ou melhor, que o nosso projeto é também o projeto de todos, sobretudo porque reconhecemos que não nos ocupamos somente de nós mesmos, mas nos encontramos engajados, ligados ao outro. A nossa condição existencial pressupõe essa ligação. Nas palavras de Merleau-Ponty, é meu “envolvimento universal” com o mundo, com as coisas que não posso recusar. O compromisso ontológico deveria, inevitavelmente, se converter em um engajamento ético e político, isto é, em um engajamento que se realiza concretamente e livremente quando assumimos o nosso envolvimento universal: Em lugar de pensar em minha dor, olho minhas unhas, ou almoço, ou me ocupo de política. Longe de que minha liberdade seja sempre solitária, ela nunca está sem cúmplice, e seu poder de arrancamento perpétuo se apoia em meu envolvimento universal no mundo. Minha liberdade efetiva não está aquém de meu ser, mas diante de mim, nas coisas. Não se deve dizer que eu me escolho continuamente, sob pretexto de que continuamente eu poderia recusar aquilo que sou. Não recusar não é escolher. Só poderíamos identificar permitir e fazer subtraindo ao implícito qualquer valor fenomenal e a cada instante desdobrando o mundo diante de nós em uma transparência perfeita, quer dizer, destruindo a "mundanidade" do mundo. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 607). Todavia, é preciso escolher por esse compromisso, assumir a responsabilidade assentada nessa ligação primordial que pesa sobre o nosso ser-no-mundo e, ainda, inventar os meios – a práxis – para realizar um projeto que implica a todos os homens. Assim o intelectual engajado se assume livre, compromissado e responsável diante dos fatos para elaborar um pensamento, uma filosofia capaz de promover rupturas e ou continuidades, seja, por exemplo: tomando partido contra a ocupação nazista; se posicionando contra as práticas de subversão da liberdade e da democracia impostas pelas elites financeiras; ou, mesmo, inventado meios para combater as injustiças históricas e a violência contra trabalhadores, mulheres, negros, imigrantes, refugiados e índios entre tantos outros. Todavia, 227 Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics o intelectual engajado não pode jamais perder de vista as condições ambíguas da práxis, é preciso mediar as relações contingentes e necessárias da história, muitas vezes encobertas, dissimuladas por fatos e ideologias. Aderir ou não um partido dos trabalhadores, lutar ou não contra as políticas desenvolvimentistas do capitalismo, combater ou não reformas trabalhistas e previdenciárias de inflexão liberal são, por exemplo, escolhas que contrapõem interesses imediatos a um senso de justiça universal comprometido com todos os homens. Esse dilema, por exemplo, vivemos quando temos que escolher entre lutar para manter direitos ou permanecer inertes no conforto do lar. Estamos, agora, falando do engajamento que se opõe à inação e à adesão cega – típico do falatório – a qual a boa-fé intelectual deve sempre recusar. É precisamente essa recusa, essa necessidade, ou pelo menos o modo como ela deve ser realizada que parece, de maneira evidente, colocar em cena natureza do falatório: apatia disfarçada de compartilhamentos e postagens, adesão sem compromisso e responsabilidade. Também, salta aos olhos, sobretudo, quando pensamos nas análises de Sartre, a incapacidade do falador em inventar meios para transformar – a ausência de práxis – a realidade com vistas a um fim almejado. Se pensarmos nas análises de Merleau-Ponty, falta ao falador a vivência dialética do conflito, a consciência da boa ambiguidade que nos faz oscilar entre os interesses do Eu e do Outro, o sentimento nauseante da tensão entre o fim imediato e o fim último. Todavia, num diagnóstico para os nossos dias, Sartre, para o bem e ou para o mal, apenas aparentemente parece ter subvertido, a exemplo de Gramsci, a linha divisória entre o intelectual engajado e o falatório. Sartre, mesmo sem querer, antecipou em grande parte as dificuldades que cercam a analítica dos fatos cotidianos em nossos dias, tais como: a diversidade dos acontecimentos, a fluidez dos conceitos, o anacronismo das referências universais. Pois o intelectual, como diz Sartre no seu texto Em defesa dos intelectuais (1994, p. 14): “é alguém e se mete no que não é de sua conta e que pretende contestar o conjunto das verdades recebidas, e das condutas que nelas se inspiram, em nome de uma concepção global do homem e da sociedade – concepção hoje em dia impossível, portanto abstrata e falsa, já que as sociedades de crescimento se definem pela extrema diversificação dos modos 228 Prof. Dr. Ericson Falabretti Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 228 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics de vida, das funções sociais, dos problemas concretos”. Todavia, se as dificuldades do intelectual e do falador se reencontram, o que parece opor definitivamente o intelectual ao falador, além da práxis, da abertura ao diferente, do comprometimento com a luta pelo oprimido, do esforço em sempre pensar a significação histórica dos fatos e das escolhas é, sobretudo, o sentimento que somos uma figura de subjetividade num fundo de generalizado de vidas, um corpo próprio imerso num imenso tecido histórico e natural. Finalmente, tomando como referência a análise de Merleau-Ponty sobre a liberdade no último capítulo da Fenomenologia da percepção, precisaríamos previamente assumir, no domínio do comércio das disputas discursivas, o sentido sobre a nossa existência que só conhecemos por meio de uma reflexão radical: “que a rigor exista uma intersubjetividade, que cada um de nós seja simultaneamente um anônimo no sentido da individualidade absoluta e um anônimo no sentido da generalidade absoluta. (MerleauPonty, p. 601, 1999) Entretanto, a saída de si mesmo, o reconhecimento do outro, esse anonimato que iguala na existência todas as subjetividades, o qual estamos todos condenados, é justamente o que o falador não parece levar em consideração no interior das suas intervenções. O foco de Sartre e de Merleau-Ponty na experiência engajada, mesmo considerando as diferenças entre ambos, nos permite abordar esse comércio da analítica do cotidiano – técnica ou amadora – de forma crítica. Sartre e Merleau-Ponty, de certo modo, demarcaram, ainda que de maneira instável, as condições éticas e políticas mínimas que devemos prestar atenção quando participamos desse comércio de ideologias fluídas, quando adentramos nesse mundo de (des) razão alargada e linguagem econômica: reponsabilidade, compromisso e práxis. Não se trata de proibir, discriminar o falatório ou, mesmo, defender uma perspectiva elitista para a função intelectual. Se a linguagem pertence a todos e não pertence a ninguém particularmente, a analítica do cotidiano é um direito universal. Todavia, o domínio da responsabilidade, da práxis e do compromisso nos lembram da grandeza das nossas escolhas, do mundo comum sedimentado ao qual pertencemos indistintamente, que originalmente acolhe o eu e o outro, o mesmo e o diferente, e do qual não podemos escapar se escolhemos falar, escrever e viver. 229 Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics REFERÊNCIAS CAPALBO, C. Maurice Merleau-Ponty e o conceito de política. In: Revista Estudos Filosóficos, Pág. 55 – 62, nº 13/2014, São João del-Rei-MG. Acesso: http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosf ilosoficos. CHAUÍ, M. Intelectual engajado: uma figura em extinção? In: NOVAES, Adauto (Org.). O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Cia das Letras, 2006. GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Vol 2. 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Submetido: 04 de agosto 2017 Aceito: 10 de agosto 2017 230 Prof. Dr. Ericson Falabretti Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 230 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein Phenomenology, organism and life: an introduction to the work of Kurt Goldstein Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda 214 Universidade Federal do Paraná Ms. Jennifer da Silva Moreira. 215 Universidade Federal do Paraná RESUMO O trabalho de Kurt Goldstein ainda é pouco conhecido no Brasil. Sendo um dos fatores que dificultam o acesso aos seus escritos a ausência de traduções das suas obras para a língua portuguesa. No entanto, sua influência está presente em diversas áreas do conhecimento, a exemplo da Neurologia, Neuropsicologia, Psicologia e Filosofia. Desse modo, com o intuito de resgatar os fundamentos de conhecimentos e práticas realizadas nos campos influenciados por ele, esse artigo apresenta uma introdução à sua obra. Foram utilizados como base os escritos The Organism: A holistic approach to biology derived from pathological data in man e Human Nature in the light of psychopathology. A partir da análise dessas obras foram selecionados três grandes temas a serem explorados: a questão do método para o autor, a teoria do organismo apresentada por ele e a noção de natureza humana presente em seus trabalhos. Por meio dessa retomada da obra do autor, pretendese apontar para sua “fenomenologia”, além de abrir caminho para novas discussões sobre sua influência. 214 215 E-mail: aholanda@yahoo.com E-mail: jennifer.smoreira@yahoo.com.br 231 Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics PALAVRAS CHAVE Kurt Goldstein; Organismo; Fenomenologia. ABSTRACT Kurt Goldstein´s work is still unknown in Brazil, and one of the factors that hinder access to his writings is the absence of translations of his works into portuguese. However, its influence is present in several areas of knowledge, such as Neurology, Neuropsychology, Psychology and Philosophy. In this way, with the intention of recovering the foundations of knowledge and practices carried out in those fields, this article presents an introduction to his work, based in two of his writings: The Organism: A holistic approach to biology derived from pathological data in man and Human Nature in the light of psychopathology. From the analysis of these works were selected three major themes to be explored: the question of the method to the author, the theory of the organism and the notion of human nature. Through this resumption of the author's work, it is intended to presente his “phenomenology” and to pave the way for new discussions about his influence. KEYWORDS Kurt Goldstein; Organism; Phenomenology. RESUMEN El trabajo de Kurt Goldstein permanece poco conocido en Brasil, siendo uno de los factores que dificultan el acceso a sus escritos, la ausencia de traducciones de sus obras a la lengua portuguesa. Sin embargo, su influencia está presente en diversas áreas del conocimiento, a ejemplo de la Neurología, Neuropsicología, Psicología y Filosofía. De este modo, con el propósito de recuperar los fundamentos de conocimientos y prácticas realizadas en los campos influenciados por él, este artículo presenta una introducción a su obra. Se utilizaron como base los escritos The Organism: A holistic approach to biology derived from pathological data in man y Human Nature in the light of psychopathology. A partir del análisis de estas obras se seleccionaron tres grandes temas: la cuestión del método para el autor, la teoría del organismo y la noción de naturaleza humana presente en sus trabajos. Por medio de esta retomada de la obra del autor, se pretende abrir camino para su “fenomenologia” y para nuevas discusiones cerca de su influencia. PALAVRAS CLAVE Kurt Goldstein; Organismo; Fenomenologia. 232 Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda Ms. Jennifer da Silva Moreira Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 232 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics INTRODUÇÃO Os estudos realizados por Kurt Goldstein tiveram repercussões e contribuíram de forma intensa tanto para o desenvolvimento das ciências naturais quanto das ciências do comportamento. Ele buscava compreender a experiência que era vivida por seus pacientes, com o intuito de encontrar novas possibilidades de atuação e, consequentemente, de atenuação do sofrimento dessas pessoas. Conforme afirma o próprio autor, a sua maior inclinação era lidar com pessoas e fornecer algum tipo de ajuda para aquelas que sofriam (Goldstein, 1959/1971). Assim, quando se refere ao modo como empreendeu seu trabalho, Goldstein (1940/1951) declara que, mesmo quando realiza considerações teóricas, a tendência do médico é se encaminhar para a direção da prática. Isso se dá porque o verdadeiro coração de sua atividade é a cura. E, segundo o seu ponto de vista, o caminho que leva para a cura não consistia mais em uma preocupação com fenômenos isolados, uma vez que eles não são essenciais para a doença. O elemento essencial da doença é, na verdade, o choque para a existência do organismo, causado por perturbações no seu funcionamento bem regulado. E, quando a restauração não é mais uma possibilidade, o objetivo único do médico é auxiliar o seu paciente de modo que ele possa seguir sua vida, apesar dos seus problemas. Para que isso ocorra, é necessário considerar cada sintoma no que diz respeito à sua significância funcional para o paciente. Logo, é preciso que o médico, na condição de profissional, cuja atuação é voltada para a área da saúde, conheça o organismo como um todo, ou seja, que saiba reconhecer, de fato, quem é o seu paciente (passado, presente e projeções para o futuro) e a mudança que o organismo todo sofreu por meio do adoecimento. “O organismo todo, o humano, torna-se o centro de interesse” (GOLDSTEIN, 1940/1951, p. 6). Outro fator relevante, que diz respeito ao modo como Goldstein conduziu seu trabalho, é o fato de sua obra nos apresentar um posicionamento crítico com relação ao modo como as pesquisas biológicas estavam sendo realizadas. Pois, apesar de estar inserido em um momento histórico em que a tradição propunha o estudo do sistema nervoso por meio da análise das partes que o compõe e da observação de determinadas capacidades dos pacientes de execução de tarefas, ele percebeu que era preciso um outro olhar. Ou seja, uma nova perspectiva que atentasse para outros detalhes e, a partir disso, 233 Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fornecesse abertura para uma compreensão diferenciada dos fenômenos presentes nos casos de lesões cerebrais. Desse modo, corajosamente, Goldstein supera os pressupostos da tradição e trilha um novo caminho, lapidado por ele juntamente com seus colaboradores, ao alcançar uma nova compreensão do funcionamento do organismo, de caráter holístico. Ao definir o que seria essa abordagem holística, o autor declara que se trata de uma observação mais global dos fenômenos, sejam eles normais ou patológicos, levando em conta a atividade do organismo todo (GOLDSTEIN, 1959/1971). Spiegelberg (1972) destaca Goldstein primeiramente como um biólogo e, depois, um médico, o qual teve importante papel de influência no desenvolvimento da Fenomenologia, principalmente durante sua fase francesa e americana. A prova mais clara disso foi a inclusão do seu trabalho principal sobre o organismo na série de trabalhos fenomenológicos da Biblioteca de Filosofia organizada por Merleau-Ponty e Sartre. Goldstein, mesmo não tendo nunca dito ser um fenomenólogo, em uma de suas autobiografias, publicada em 1966, afirmou ter um pressentimento de que sua interpretação dos pacientes proporcionou resultados similares aos obtidos pela análise fenomenológica. Em uma conversa entre ele e Spiegelberg, em 1964, declarou nunca ter lido os escritos de Husserl, mas apenas tê-lo escutado uma vez em Frankfurt (SPIEGELBERG, 1972). Cabe ressaltar que Goldstein afirmou que o termo “existência” mostraria, aos seus olhos, um significado diferente do aplicado na psiquiatria existencial. Sua proximidade com personalidades da filosofia – foi amigo pessoal de Max Scheler e de Paul Tillich, além de ser primo de Ernst Cassirer – teve influência na sua relação com esse conjunto de conhecimentos. Entre os estudiosos da Fenomenologia proposta por Edmund Husserl, que foram leitores dos trabalhos de Goldstein e se apropriaram de suas ideias para o desenvolvimento de suas reflexões estão Aron Gurwitsch, Alfred Schütz e Merleau-Ponty (RIESE, 1968; GOLDSTEIN 1959/1971). Cabe, aqui, mencionar que em uma recente publicação brasileira voltada para a divulgação de estudos focados na obra de Goldstein, Silva (2015) propõe uma retomada dos estudos acerca do neuropsiquiatria alemão, visto este possuir um amplo alcance teórico no que diz respeito às pesquisas de caráter biológico e antropológico. Além disso, aponta que Goldstein 234 Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda Ms. Jennifer da Silva Moreira Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 234 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics traz à tona uma nova forma de compreensão da natureza humana, que se dá por meio do estudo da patologia. O trajeto construído e trilhado por esse brilhante neurocientista o levou a uma perspectiva inédita acerca do organismo, cujo destaque se dá por se tratar de uma compreensão dialética acerca das relações entre o organismo e o meio, segundo a qual organismo e mundo se constituem um todo indivisível. Este artigo tem por objetivo apresentar uma introdução às ideias de Kurt Goldstein, que foram fundamentadas empiricamente na observação e descrição de pacientes com lesões cerebrais, a partir de duas de suas obras principais. A primeira delas, reconhecida como sua obra principal, intitulada – na versão traduzida para a língua inglesa, utilizada para a execução desse trabalho –, The Organism: A holistic approach to biology derived from pathological data in man. Esta obra, segundo Murphy (1968), representa a condução de uma ideia até o seu limite. Pois, ao chegar no momento em que teria que decidir se a derivação do todo em partes é possível em algum ponto do organismo, Goldstein optou pela alternativa de que não há partes; há seres vivos, suas funções, seus propósitos e suas modalidades de vida. Já a outra obra utilizada como referência é o livro Human Nature in the light of psychopathology, escrita com o objetivo de dar continuidade e aprofundar as reflexões apresentadas à primeira mencionada, principalmente no que diz respeito à temática da natureza humana (GOLDSTEIN, 1940/1951). Como relata o cientista: Em outro livro meu, A estrutura do organismo, eu busquei desenvolver a metodologia básica para o estudo do comportamento organísmico, e lá eu fiz uso de fatos obtidos a partir de minha experiência principalmente como ilustrações do método proposto. Aqui, no entanto, o que eu pretendo realizar é uma interpretação sistemática de todos esses fatos com referência à concepção de 216 natureza do homem (GOLDSTEIN, 1940/1951, p. VIII). Ao mencionar o conteúdo apresentado nessa segunda obra, Ernest Cassirer (1944/2012) afirma que, por meio dela, Goldstein apresentou um apanhado geral de suas visões teóricas. Assim, depreende-se que se trata de um escrito que sintetiza noções e conceitos elaborados pelo autor durante os anos anteriores à Uma vez que não há traduções das obras de Goldstein para a língua portuguesa, todas as citações presentes nesse artigo foram realizadas por versões dos autores. 235 Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein 216 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics publicação desse livro que, diferente do The Organism, foi redigido originalmente na língua inglesa, uma vez que, o autor já morava nos Estados Unidos no período em que o trabalho foi escrito. 1. GOLDSTEIN E A QUESTÃO DO MÉTODO De acordo com Goldstein (1934/1963), o caráter essencial da obra cujo título original, em alemão, é Der Aufbau des Organismus. Einführung in die Biologie unter besonderer Berücksichtigung der Erfahrungen am kranken Menschen, consiste na clarificação do problema do método nas pesquisas biológicas e na elucidação dos modos de conceitualização do material empírico. Ora, é isso o que a torna o seu trabalho um diferencial relativo a outros da área: A singularidade desse livro está na aplicação de um novo método por meio do qual o autor acredita fazer mais justiça à descrição e compreensão do comportamento dos seres vivos normais e patológicos. O livro tem sua origem na busca prática do médico com o objetivo de ajudar pacientes sofrendo de perturbações severas devido a lesões no cérebro (GOLDSTEIN, 1934/1963, p. v). Nesse escrito, além de apresentar um método de investigação clínica e a sua aplicação acompanhada de diversos exemplos, Goldstein aborda a forma como ele, a partir desse trabalho de pesquisa, observação e análise, realiza reflexões teóricas sobre o funcionamento do sistema nervoso que fundaram uma teoria do organismo. Goldstein (1934/1963) inicia sua obra comentando uma diferença entre as publicações científicas realizadas antes da elaboração de seu livro. Segundo ele, estudos mais antigos traziam a impressão de que uma lesão no córtex seria, geralmente, seguida da perda de determinadas funções correspondentes ao local lesionado; logo, eles transmitiam a imagem de que determinados centros do cérebro são responsáveis pelo controle de certas funções. No entanto, conforme observa, nas publicações realizadas em anos mais próximos ao da sua obra, percebe que avanços na observação levaram a um novo modo de olhar, uma nova perspectiva sobre o funcionamento do sistema nervoso. Esses estudos mais recentes apontavam para o fato de que, mesmo em casos de danos cerebrais bastante circunscritos, os distúrbios eram escassamente confinados a um tipo único de performance. Nesses casos, notava-se uma 236 Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda Ms. Jennifer da Silva Moreira Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 236 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics mudança mais ou menos unitária que afetava diferentes campos de forma homogênea expressando-se por meio de diferentes sintomas. Logo, tornava-se aparente que a relação entre as performances mentais, a exemplo da fala que foi o objeto de estudo presente durante toda a sua carreira – lembremos seus clássicos estudos sobre a afasia (Goldstein, 1948) – e áreas definidas do cérebro, constituiria um problema mais complexo que o assumido pela teoria da localização. Apesar de demarcar essa diferença entre os trabalhos produzidos, Goldstein (1934/1963) deixa bastante claro que tal distinção não se deu devido a uma maior competência de certos pesquisadores em relação aos outros. Ele afirma que tal distinção ocorreu em função de uma mudança de metodologia, a qual possibilitou a emergência de outros fatos. Assim, ele enfatiza que o problema da metodologia tem grande importância para as pesquisas psicopatológicas e biológicas em geral. Além disso, o cientista reflete sobre investigações realizadas a partir de um pressuposto teórico, as quais têm como principal objetivo corroborálo, uma vez que essa atitude não aceita bem nem esses novos fatos apreendidos por meio de mudanças metodológicas nem a mudança em si. Ainda, Goldstein (1934/1963) declara que quando o investigador foca sua atenção apenas em certos fenômenos, ele chega a sintomas isolados. Isso ocorre porque, durante a observação, determinados fenômenos se apresentam de modo mais notável, sendo então primeiramente registrados e causando a impressão de que são fenômenos dominantes. No entanto, um exame imparcial e exaustivo pode revelar que algo que não atraiu muito a atenção no início é de extrema importância para a compreensão da alteração básica estudada. Tendo em mente que o aparecimento dos sintomas depende do método de exame e da importância dessa constatação, o autor propõe três postulados metodológicos, os quais julga serem adequados para pesquisas biológicas em geral. De acordo com ele, o procedimento proposto difere de outros devido ao esforço de registrar todos os fenômenos, evitando uma postura previamente orientada por uma determinada teoria acerca do objeto estudado. O primeiro postulado metodológico apresentado por Goldstein diz respeito a considerar, inicialmente, todos os fenômenos que o organismo apresenta, sem dar preferência a nenhum deles em especial. Portanto, não se deve atribuir maior ou menor importância a nenhum fenômeno. Apenas sob essas condições a observação realizada será correta. Quanto à determinação de quanto 237 Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics um certo sintoma, e não outro, é essencial para entender as alterações básicas de uma função, ela deve ser realizada em investigações posteriores. Já o segundo postulado consiste na descrição correta dos fenômenos observáveis. Goldstein percebeu que as análises, com frequência, tinham como objetivo somente verificar se o paciente fornecia ou não a resposta correta para uma determinada tarefa. E, de acordo com ele, é preciso realizar análises profundas não apenas dos efeitos, mas também das causas dos efeitos, ou seja, daquilo que levou o paciente a obter fracasso ou êxito. Isso porque, “se nós considerarmos uma reação apenas a partir do ponto de vista da real solução de uma tarefa, nós podemos não reparar o desvio da normalidade que pode não estar evidente na solução” (GOLDSTEIN, 1934/1963, p. 23). Por fim, o terceiro dos postulados refere-se ao fato de que nenhum fenômeno deve ser considerado sem referência ao organismo em questão e à situação em que ele aparece. De acordo com o autor, trata-se de um postulado proposto por Hughlings Jackson décadas antes do período em que a obra em questão foi elaborada; no entanto, ele foi completamente negligenciado. Cabe, aqui ressaltar que Canguilhem (1966/2007) afirma que as contribuições científicas de Jackson devem servir de introdução para as concepções de Goldstein, principalmente no que diz respeito à necessidade de sempre julgar o paciente em relação à situação à qual ele reage e aos instrumentos de ação disponíveis pelo próprio meio. Goldstein ainda declara que o procedimento proposto e executado por ele em suas investigações é primariamente direcionado para o todo e, dentro desse quadro de referência busca realizar a análise do máximo de performances individuais possível. Esse exame deve ser feito até que se chegue ao ponto em que, baseado nos fatos, seja possível desenvolver uma teoria que tornará os fenômenos em questão compreensíveis e que possibilitará a previsão das reações do organismo, inclusive em tarefas ainda não investigadas. Segundo Luria (1966), o método de Goldstein torna impossível repetir a justaposição de defeitos separados, os quais tradicionalmente eram enumerados sem nenhuma tentativa de encontrar suas fontes comuns. Assim, especulações livres, sem fundamento nos dados clínicos foram excluídas do processo de análise. O método introduzido por ele na Neuropsicologia tinha como característica diferenciar-se tanto da descrição empírica simples dos 238 Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda Ms. Jennifer da Silva Moreira Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 238 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics dados clínicos, quanto da testagem psicométrica, que por um certo período foi considerada um meio básico na psicologia clínica. Goldstein clarificou o fato de que apenas uma análise neuropsicológica sistemática e profunda dos dados clínicos pode levar o investigador a uma compreensão do sintoma e dos processos psicológicos que se dão em casos de lesões cerebrais locais e os mecanismos fisiológicos presentes na síndrome toda. 2. A ESTRUTURA ORGANISMO. DO As reflexões acerca do funcionamento do organismo apresentadas por Goldstein (1934/1963) foram realizadas, em grande parte, com base na análise de vários fenômenos normais e patológicos observados em soldados que sofreram lesões cerebrais durante a Primeira Guerra Mundial; esses ferimentos eram muito adequados para estudos, visto que ocorreram em pessoas jovens, com boas condições físicas gerais. Além disso, ao acompanhar tais casos, ele e seus colaboradores tiveram a oportunidade, pouco comum, de observar pacientes por um longo período de tempo em condições ambientais consideradas favoráveis por ele. Convém notar ainda que alguns desses soldados permaneceram sob os seus cuidados por mais de oito anos. Tais condições foram de significativa importância para que Goldstein pudesse obter uma compreensão melhor do comportamento quando comparada com aquela que é possível ser obtida com pacientes vitimados por lesões cerebrais devido a outros fatores; no entanto, o estudo desses últimos não foi omitido em suas obras e o levou às mesmas conclusões (GOLDSTEIN, 1940/1951). Goldstein postula que o organismo constitui uma unidade e que deve ser compreendido conforme sua organização qualitativa e seu funcionamento holístico (Goldstein, 1940/1951). Assim, o organismo é abordado por ele a partir de fatos obtidos, sobretudo, via estudos do sistema nervoso, cujo funcionamento presta-se especialmente bem para essa explicação. Pois, o sistema nervoso, assim como o organismo, é um aparato que funciona como um todo, que está sempre em estado de excitação e nunca em repouso. Todas as performances realizadas mediante ele são expressões de mudanças em sua condição de perpétua atividade, causadas por estímulos que chegam até o organismo. Tais mudanças sempre dizem respeito ao sistema inteiro, mas não da mesma maneira 239 Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ao longo dele (GOLDSTEIN, 1940/1951). Goldstein (1940/1951) nos apresenta uma noção importante para que se entenda o funcionamento do organismo normal e, também, do patológico. Trata-se da afirmação de que a vida ordenada é possível apenas por meio da uniformidade; caso contrário, o mundo mudaria constantemente e o organismo também. No entanto, esse não é o caso, já que o mundo parece relativamente constante, por mais que ocorram mudanças nele, e os organismos também permanecem mais ou menos os mesmos. Porém, sabe-se que cada estímulo produz uma mudança no substrato que muda a sua excitabilidade, tendo como resultado um novo estímulo, igual ao anterior, com um efeito diferente. O que faz com que apesar dessa mudança na excitabilidade por meio da estimulação o organismo permaneça quase o mesmo é o processo de equalização. Esse processo fixa o limiar e, com isso, cria constância, assegurando um comportamento ordenado bem como a existência do organismo. A equalização demanda o trabalho do todo do organismo. A vida normal é ordenada porque esse processo se dá em relação a todas as tarefas do organismo como um todo; isso não ocorre sob condições experimentais ou patológicas. Ora, a patologia consiste na destruição de algumas regiões do sistema nervoso. Ela faz com que ele seja dividido em partes e que funções sejam isoladas do resto do organismo. Tal separação pode acontecer em diversas partes do sistema nervoso, de maneira que os diferentes sintomas correspondem ao isolamento de diferentes partes. Assim, a melhor forma de compreender a natureza dos processos em partes é o estudo dos fenômenos encontrados em pessoas doentes. Esses processos isolados dentro do organismo podem ser determinantes para as reações do indivíduo enfermo de um modo anormal. Pois, por mais que fenômenos isolados possam ocorrer na vida normal, caso a estimulação ganhe força anormal ou uma duração anormal que dificulte o processo de equalização, eles são característicos de condições patológicas. E, segundo o autor, levar em consideração as mudanças que ocorrem no isolamento pode ser um modo adaptado para o seu propósito: entender o organismo como um todo. Goldstein (1934/1963) afirma que a descrição dos déficits presentes nos indivíduos que sofreram lesões cerebrais, quando considerada em relação com as performances que permanecem intactas, fornece uma caracterização e compreensão adequada do 240 Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda Ms. Jennifer da Silva Moreira Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 240 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics organismo lesionado, a qual será fundamental para a compreensão do funcionamento do organismo normal. Com isso, ele declara que num primeiro momento parecerá, ao pesquisador, que ele está lidando com uma alternação entre performances bem-sucedidas e fracassos. Tal alternância pode ser entendida apenas quando o comportamento total no qual a performance aparece é considerado. O comportamento total pode ser dividido em duas classes básicas objetivamente inteligíveis e, a uma delas correspondem as performances eficazes, e à outra as deficientes. O primeiro tipo de comportamento é intitulado ordenado e o segundo desordenado ou catastrófico. Nas situações ordenadas, as respostas aparentam ser constantes, adequadas ao organismo e às respectivas circunstâncias. Nelas, o indivíduo vivencia uma sensação de espontaneidade, ajustamento com o mundo e satisfação, o curso do comportamento tem uma ordem definida, um padrão total que envolve inteiramente os fatores organísmicos – processos mentais, somáticos e até mesmo físicoquímicos –, os quais participam de modo apropriado para a execução da performance em questão, sendo que “esse, de fato, é o critério de uma condição normal do organismo” (GOLDSTEIN, 1934/1963, p. 37). Por isso, comportamento normal e ordenado são sinônimos. Já as reações catastróficas, além de serem consideradas inadequadas, são desordenadas, inconstantes e perpassadas por choque físico e mental. Em tais situações, o indivíduo se sente privado de liberdade e hesitante. O choque vivenciado por ele afeta tanto ele próprio quanto o mundo ao seu redor e ele se encontra numa situação chamada de angústia. Quando realiza uma reação ordenada, o indivíduo prossegue sem dificuldade ou fadiga, enquanto após uma reação catastrófica a sua capacidade de reação é impedida por um intervalo de tempo. Dessa maneira, ele falha, inclusive, na execução de tarefas que lhe seriam fáceis em outras circunstâncias. O organismo normal e também o doente apresenta uma tendência a manter comportamentos ordenados e a evitar o choque proporcionado por reações catastróficas. Porém, como o comportamento ordenado resulta do fato de que o organismo é confrontado com tarefas com as quais não é capaz de lidar, ele predominará no organismo lesionado. Ainda sobre o fato de propor uma teoria sobre o funcionamento do organismo a partir da observação de fenômenos que se mostram quando o córtex cerebral 241 Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics humano é lesionado, Goldstein afirma: A vida normal é determinada por tantos fatores, sendo esses fatores entrelaçados de várias e complicadas formas, que com muita frequência a reação de um organismo normal mesmo para uma estimulação aparentemente simples é extremamente difícil, algumas vezes quase impossível, de analisar e compreender. Agora, quanto maior for o defeito no organismo, mais simples são as respostas aos estímulos e, assim, mais fácil é compreender. Além disso, o comportamento patológico é particularmente revelador no que diz respeito à organização do comportamento. A destruição de um ou outro substrato do organismo dá origem a várias mudanças no comportamento, mostrando como esses substratos e formas de comportamento são inter-relacionados e fornecendo discernimento sobre a organização do organismo total (GOLDSTEIN, 1940/1951, p. 3738). Outro fator mais facilmente compreendido por meio da observação de pessoas doentes são as formas de ajustamento às condições que se modificam, já que, para esse organismo, encontrar um ajustamento para a condição anormal produzida pelo adoecimento se trata de uma questão de ser ou não ser. Em razão disso, essa é uma oportunidade especialmente boa para a observação das formas e regras do ajustamento (GOLDSTEIN, 1940/1951). Além disso, Goldstein (1934/1963) afirma que apesar de suas pesquisas serem destinadas a uma explanação sistemática dos eventos que ocorrem no sistema nervoso, os resultados obtidos se mostraram adequados para generalização, com o intuito de chegar a uma teoria do funcionamento do organismo todo. Tal generalização foi considerada possível por ele porque baseada na perspectiva de que o sistema nervoso, tanto nos seres vertebrados quanto nos invertebrados, incluindo o homem, é um sistema no qual os gânglios estão inseridos em vários locais e que se relaciona com o mundo exterior por meio dos órgãos dos sentidos e das partes movíveis do corpo. Sendo que esse sistema, em que as excitações ocorrem, representa um aparato que sempre funciona como um todo. Ao apresentar as conclusões obtidas por meio de seus estudos, Goldstein (1934/1963) faz uma crítica à teoria do reflexo. Ele considera que, por meio de suas análises, pôde perceber o motivo de os resultados de investigações do reflexo não oferecerem fundamentos suficientes para uma teoria do organismo. Pois, 242 Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda Ms. Jennifer da Silva Moreira Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 242 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics conforme nos explicita MerleauPonty (1942/2006), ao querer construir uma representação científica do organismo, a teoria clássica do reflexo passa a decompor tanto a excitação quanto a reação em uma multiplicidade de processos parciais, exteriores uns aos outros, de modo que a resposta é compreendida apenas por meio de correlações preestabelecidas entre determinados órgãos ou sistemas receptores e certos músculos efetores. Como consequência, o funcionamento do sistema nervoso passa a ser visto apenas como o acionamento de um grande número de circuitos autônomos. Nesse caso, o estímulo consiste apenas em uma causa, um antecedente constante e incondicionado de modo que o organismo é passivo, visto que se limita a somente executar aquilo que lhe é prescrito de acordo com o local da excitação e pelos circuitos nervosos que nele se originam. Os relatos de Goldstein (1934/1963) nos revelam que o reflexo assim definido raramente é observável. No entanto, tanto as investigações do reflexo quanto as observações de pacientes com lesões cerebrais evidenciaram a relação de cada performance individual com o organismo todo, visto que elas trazem à luz a interdependência e reciprocidade das partes. Nessa medida, conforme conduzia investigações cuidadosas e, quanto mais deixava de lado o hábito de observar apenas os fenômenos que, por determinadas razões teóricas ou práticas, aparentavam ser mais importantes, Goldstein verificava que, sempre que uma mudança é induzida em uma região, pode-se observar mudanças que ocorrem simultaneamente em qualquer parte do organismo que se possa testar. Tal constatação, além de sua importância enquanto descoberta científica, fornecia uma confirmação adicional da validade do segundo postulado metodológico proposto por ele (GOLDSTEIN, 1934/1963). Para explicar os processos que ocorrem no sistema como resultado de um estímulo, Goldstein faz uso da formação figura-fundo, proposta pela Escola de Berlim ou Psicologia da Gestalt, cuja inspiração holística é um dos alicerces sobre os quais ele pensa a sua clínica (MANZI FILHO, 2015). Ora, todo movimento no corpo é acompanhado por mudanças no resto dele, “toda reação é uma ‘reação gestáltica’ do todo na forma de uma configuração figura-fundo” (GOLDSTEIN, 1934/1963, p. 224). Logo, quando em resposta a um estímulo, uma determinada parte do campo de percepção se torna proeminente, todo o campo de percepção se altera para auxiliar a percepção adequada. Há uma alteração constante da parte do 243 Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics organismo que é figura e a que é fundo. Como assevera o cientista: “Sempre que analisamos a estrutura dos atos e performances, nós encontramos a mesma configuração. Por isso, eu estou inclinado a considerar essa configuração da excitação, a relação figura-fundo, como a forma básica do sistema nervoso” (GOLDSTEIN, 1934/1963, p. 109-110). Ao se referir à escolha do modelo utilizado por Goldstein para explicar o funcionamento do sistema nervoso e do organismo, Riese (1968), afirma que ao estudar a natureza do funcionamento do sistema nervoso, Goldstein conclui que ela é constituída por mudanças (alternações) constantes que podem ser compreendidas conforme o processo de formação figura-fundo. Essa forma de organização enquanto relação entre figura e fundo foi emprestada, por Goldstein, a partir de experiências visuais, mais especificamente, da clássica figura desenhada por Edgar Rubin para demonstrar esse tipo de alternação. Nessa figura, ora o observador vê um vaso branco em um fundo preto e ora vê duas faces pretas em um fundo branco. Assim, em um período em que o funcionamento do sistema nervoso era compreendido por uma perspectiva estática; em que a existência de centros específicos, sistemas e conexões eram incontestáveis, Goldstein corajosamente desafiava os conhecimentos e postulados tradicionais na neurologia ao introduzir um novo olhar – dinâmico – para o funcionamento do sistema neuronal. Perls (1977) declara – de modo exagerado, talvez, mas anunciando sua relevância – que o conceito de organismo como um todo consiste no centro da teoria da Psicologia da Gestalt 217 . E Goldstein, um dos representantes dessa abordagem segundo ele, foi responsável por quebrar o conceito rígido do arco reflexo. Pois, de acordo com Goldstein, tanto os nervos sensoriais quanto os nervos motores se estendem do organismo para o meio e, dessa maneira, o conceito de sensação enquanto um fenômeno mecânico e passivo é substituído pela ideia de que o organismo é ativo e seletivo em seu sentir. Convém destacar que o movimento gestaltista foi muito mais amplo e complexo do que a maioria dos livros de história a Psicologia conseguem compilar. Normalmente associada a estudos sobre a experiência perceptual, os seus atores (dentre os quais, Goldstein e Kurt Lewin aparecem de forma relativamente marginal) buscaram desenvolver pesquisas nos mais diversos campos, como linguagem, raciocínio, dentre outros (HOLANDA, 2009; ANDRADE & HOLANDA, 2011). 244 Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda Ms. Jennifer da Silva Moreira 217 Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 244 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics No que diz respeito às alterações que ocorrem no sistema como resultado de um estímulo, Goldstein (1934/1963) declara que o estado de excitação ocorre tanto nas partes próximas quanto nas partes distantes da área estimulada. A mudança ocorrida nas partes distantes é necessária não apenas para o equilíbrio do organismo, mas também para a execução precisa das performances requeridas; uma vez que, a precisão de uma reação em um ponto no organismo aumenta na medida em que a relação entre o processo nas partes próximas (figura) e o processo no resto do organismo (fundo) for melhor sucedida. Segundo ele, há uma alternância contínua referente a qual parte do organismo é figura e qual é fundo. Sendo o primeiro plano determinado conforme a tarefa que o organismo precisa completar em um dado momento, logo, sua determinação se opera de acordo com a situação em que o organismo se encontra e com as demandas com as quais ele tem que lidar. As tarefas que o organismo realiza são definidas pelo que Goldstein denomina natureza ou essência do organismo, a qual se atualiza por meio das mudanças ambientais que atuam sobre este. As atualizações da natureza do organismo são expressas por meio das suas performances, pois é mediante elas que melhor lidamos com as demandas ambientais. Ao concluir que cada reação individual se relaciona com o organismo em sua totalidade, Goldstein advoga a tese de que as reações excedem os limites fixados pela teoria dos reflexos e que o curso deles é determinado pela condição do resto do organismo. Desse modo, o fator que define uma certa resposta não consiste apenas no local em que o estímulo ocorreu – topografia – e nas propriedades do estímulo. As investigações realizadas por ele mostraram que o efeito padrão do estímulo depende primariamente de sua significação funcional para o organismo todo. Para exemplificar esse fato, o autor nos remete a situações em que um indivíduo tolera a dor em prol de um interesse que ele considere maior. Nesses casos, que demonstram o quanto o fator da significância funcional é importante, a defesa do organismo contra um ferimento não é a tarefa mais essencial do momento para as ações do organismo. 3. NATUREZA HUMANA: EXPERIÊNCIAS PSICOPATOLÓGICAS. Segundo Goldstein (1940/1951), o século XIX tem como característica mais marcante o 245 Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics aumento expressivo do conhecimento científico em vários campos, obtido por meio do método atomístico – procedimento de dissecação que busca postular leis a partir das partes estudadas. Esse acúmulo de dados proporcionou enriquecimento e refinamento para a organização do mundo e, de certa forma, seguramente, propiciou melhores condições de vida. No entanto, a grande especialização das ciências ocorreu juntamente com uma acentuada desintegração da vida do indivíduo. As experiências vividas, sobretudo na Europa, nas décadas anteriores a 1940 despertaram uma grande dúvida quanto ao caráter da natureza humana. Isso tudo graças ao fato que determinadas qualidades foram proclamadas como virtudes superiores mesmo estando em completa oposição às ideias sociais e morais que constituíram a base da cultura ocidental durante milhares de anos. Desse modo, a natureza do homem se tornou problemática em sua própria essência e, para Goldstein, isso, certamente, afetaria toda a existência da vida humana. Como consequência dessas transformações, o interesse em fenômenos isolados foi diminuído no período em que Goldstein realizou suas pesquisas, fato esse que significou um certo afastamento dos cientistas em face da abordagem de cunho atomístico- mecânica. E, por mais que o método atomístico fosse o único procedimento científico legítimo para a obtenção de fatos, outros foram criados. Um deles é o método holístico proposto por Goldstein, por meio do qual ele chegou a certas considerações acerca da natureza humana. Nesse contexto, ele teoriza que quando um estudante que deseja compreender a natureza humana baseia seus estudos apenas sobre os resultados de uma determinada ciência, ele tem apenas um ponto de partida, já que nunca poderá chegar a respostas corretas para as suas questões a partir do material de um único domínio. E, tal fato foi levado em consideração no uso que o autor fez do material patológico (GOLDSTEIN, 1940/1951). Em seguida, Goldstein se pergunta sobre o perigo envolvido no uso de fenômenos patológicos para a formulação de ideias relativas à natureza humana normal e sobre o porquê da utilização de observações de seres humanos alterados patologicamente. De acordo com ele, é preciso considerar que os fenômenos patológicos são performances modificadas de acordo com determinadas leis e se tornam inteligíveis apenas caso se leve em consideração as mudanças características que a enfermidade produz. E, buscando lidar apenas 246 Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda Ms. Jennifer da Silva Moreira Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 246 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics com fenômenos compreensíveis, ele escolheu um tipo especial de paciente como base para a sua discussão. Assim, ao invés de optar por pessoas mentalmente enfermas, psicóticos ou neuróticos, ele escolheu outro tipo de paciente que fornecesse material melhor, permitindo melhor observação e melhor compreensão e explanação das modificações do comportamento. Trata-se do paciente com lesão cerebral. Goldstein (1934/1963) aponta que por meio dos estudos realizados com esses pacientes, ele chegou à conclusão de que a tendência básica presente no organismo doente é utilizar suas capacidades ainda preservadas da melhor maneira possível, de modo a atualizar 218 sua natureza. E, de acordo com ele, o comportamento de seus pacientes pode ser compreendido apenas quando esse aspecto era levado em consideração. No entanto, o autor enfatiza que a vida organísmica O termo Actualize, presente nos escritos de Goldstein, corresponde ao adjetivo actual que geralmente é traduzido por “real”. Seu sentido, no entanto, é mais amplo e corresponde a ser “atual” no espaço e no tempo, estar totalmente ali, ser “verdadeiro”, preencher o espaço e o momento que ocupa. Actualize, portanto, é sinônimo de atingir tal estado, de “atualizar”. 218 normal é governada mesma regra. por essa Nós podemos dizer que um organismo é governado pela tendência a atualizar, o máximo possível, suas capacidades individuais, sua “natureza”, no mundo. Essa natureza é aquilo que chamamos de constituição psicossomática e, na medida em que é considerada em uma determinada fase, ela é o padrão individual, o “caráter” que a respectiva constituição obteve no curso da experiência. Essa tendência a atualizar a “si mesmo” é o impulso básico, o único impulso pelo qual a vida do organismo é determinada 219 (GOLDSTEIN, 1934/1963, p. 196). No organismo doente, essa tendência sofre uma mudança característica. O escopo de vida do paciente é reduzido de duas formas. Primeiro, ele é levado a utilizar suas capacidades preservadas da melhor maneira possível. Segundo, ele é levado a manter um certo estado de vida e não ser perturbado nessa condição. Por isso, a vida doente é “escassa de produtividade, desenvolvimento e progresso e escassa das peculiaridades características da vida organísmica normal, especialmente da vida humana” (GOLDSTEIN, 1934/1963, p. 197). Desse modo, com frequência, a lei 219 Grifo original do autor. 247 Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics de manutenção do estado existente, a autopreservação, é considerada a lei básica da vida. No entanto, de acordo com Goldstein, tal conclusão é obtida quando o pesquisador toma como ponto de partida experiências realizadas em condições anormais ou experimentais. Pois, a tendência a manter o estado existente é característica em pessoas doente e revela um decaimento da vida, enquanto a tendência da vida normal é direcionada à atividade e ao progresso. Ele afirma que as pessoas doentes têm a manutenção do estado existente como única forma de auto atualização remanescente, mas essa não é a tendência da vida normal, porque quando está sob condições adequadas a vida normal busca a ampliação da atividade. Em algumas circunstâncias, o organismo normal pode tender primariamente a evitar catástrofes, e manter um determinado estado que possibilite isso. Porém, tal fato ocorre sob condições inadequadas, não sendo o comportamento usual, uma vez que sob condições adequadas, o organismo normal procura por novas atividades. Em seguida, Goldstein (1934/1963) nos explica que o comportamento normal corresponde a uma contínua mudança de tensão, cujo regente é o processo de equalização anteriormente mencionado, e que assim que o estado de tensão é atingido, ele possibilita e impele o organismo a se atualizar por meio da realização de mais atividades que correspondam à sua natureza. Logo, as várias ações realizadas pelo organismo ocorrem de acordo com as várias capacidades que pertencem à sua natureza e a execução delas se dá conforme os processos instrumentais do organismo, os quais são os prérequisitos para a sua autoatualização. A auto-atualização, segundo o autor, não deve ser considerada um impulso especial, mas uma condição especial do organismo em sua relação com o meio, que corresponde à sua natureza. Portanto, a atualização do organismo diz respeito à adequação de suas capacidades o meio em que vive. O organismo é uma unidade, um todo, que vive em um meio que sofre variações contínuas de estímulos, mesmo quando familiar. Torna-se, então necessário que o organismo realize compensações e adaptações, as quais serão determinadas tanto pelo meio quanto por sua natureza. Assim, Goldstein (1934/1963) assume que há apenas um impulso que mobiliza o organismo, o impulso para a auto-atualização. Ele reconhece que em determinados momentos a tendência de atualizar uma certa potencialidade é tão forte que o organismo é governado por 248 Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda Ms. Jennifer da Silva Moreira Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 248 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ela, desse modo uma determinada potencialidade, a exemplo de sexo e poder, pode ser considerada predominante no organismo. Porém, ela não deve ser considerada de maior importância que as outras. Tal julgamento é realizado apenas quando as potencialidades são consideradas fora da vida natural do organismo, na qual elas estão embutidas nas atividades como um todo. “O organismo tem potencialidades definidas e porque ele as tem, ele tem necessidade de atualizá-las ou realizá-las. A realização dessas necessidades representa a auto atualização do organismo” (GOLDSTEIN, 1934/1963, p. 204). Uma forma especial da autoatualização é a necessidade de completar ações incompletas. Tal tendência explica muitas das atividades realizadas pela criança. Porquanto, em suas inumeráveis repetições, não estamos lidando com um impulso sem sentido para a repetição, mas com a tendência a completar uma ação a chegar na perfeição. A força de uma necessidade é dada na experiência da imperfeição – seja fome, sede ou a experiência de estar capacitado para realizar qualquer performance que pareça estar dentro das capacidades do indivíduo – e o objetivo é a realização da tarefa. Dessa maneira quanto mais próximo o indivíduo, seja ele criança ou adulto, está da perfeição, maior é a necessidade de realizar performances. Conforme o caminhar da criança é imperfeito, ela tende a andar e andar, sem outro objetivo além de andar. Depois que o seu caminhar está perfeito, ela usa esse instrumento para atingir um ponto especial que atrair sua atenção, ou seja para completar outra performance, e assim por diante (GOLDSTEIN, 1934/1963, p. 205). Ao mencionar suas descobertas acerca do funcionamento do organismo, as quais possibilitaram a ele uma melhor compreensão da natureza humana, Goldstein (1959/1971) afirma que um dos motivos das falhas no tratamento de pacientes com lesões cerebrais era a negligência com relação à possibilidade de sintomas aparentemente similares poderem ter origens diferentes. De acordo com o autor, apenas sabendo disso seria possível evitar tratamentos inadequados e obter resultados melhores. Utilizando um novo método de investigação, ele relata ter descoberto que estava lidando com dois tipos diversos de sintomas. Em um grupo, os sintomas ocorriam devido a danos na capacidade abstrata (mudança no comportamento) e, no outro, eles ocorriam em virtude de possíveis danos no comportamento 249 Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics concreto (danificação das funções da matéria cerebral). Conforme nota Goldstein (1934/1963), as perturbações caracterizadas pela mudança no comportamento de seus pacientes consistiam no fracasso sempre que era necessário transcender a experiência concreta, imediata. Os pacientes falhavam sempre que precisavam se referir às coisas de modo imaginário. No entanto, quando o resultado poderia ser alcançado por meio de material concreto, palpável, seus desempenhos obtinham sucesso. Por isso, ele caracteriza a deficiência apresentada por seus pacientes como uma falta de domínio do abstrato, inabilidade para se dar conta de seus próprios atos e pensamentos, incapacidade para fazer uma separação entre o eu e o mundo e falta de liberdade. Sendo que todos esses fatos dizem respeito a uma mesma coisa: a falta de uma atitude em direção ao abstrato. A percepção de concretude por diferentes pacientes não se expressaria necessariamente da mesma forma em uma determinada tarefa. Aquilo que é concreto para um indivíduo pode ser compreendido apenas dentro do quadro de referência desse paciente em particular, levando em consideração sua individualidade pré-mórbida, suas capacidades mudadas devido ao adoecimento e a situação. Assim, o comportamento concreto pode se expressar de diferentes formas em diferentes pacientes com o mesmo tipo de lesão. Ademais, em performances concretas, a reação é determinada diretamente por um estímulo. O procedimento do indivíduo é, por conseguinte, passivo de certa forma, como se não fosse ele quem teve a iniciativa. Enquanto nas performances abstratas a ação não é determinada direta e imediatamente pela configuração de um estímulo, mas pela situação em que a pessoa se encontra. Nesse caso, a performance se mostra uma forma totalmente diferente do organismo chegar a um acordo com o mundo exterior. Pois, o indivíduo precisa considerar a situação a partir de vários aspectos, selecionar qual deles é essencial e agir de maneira apropriada para o todo da situação. Esse procedimento pode ter vários graus de complexidade (GOLDSTEIN, 1940/1951). Algumas vezes a situação não demanda nada além de destacar uma propriedade de um objeto, como, por exemplo, quando somos solicitados a ordenar objetos de acordo com as suas cores. No mais alto grau de complexidade nós temos não apenas que apreender objetos por meio de certos tipos característicos mas que escolher aspectos para considerar de 250 Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda Ms. Jennifer da Silva Moreira Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 250 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics acordo com uma certa tarefa que demanda uma organização conceitual (GOLDSTEIN, 1940/1951, p. 60). Porém, segundo Goldstein (1940/1951), mesmo na forma mais simples, a abstração é separada do comportamento concreto, não há uma transição gradual de um para o outro. A atitude abstrata não consiste em um grau mais complexo do comportamento concreto, ela é uma atividade do organismo totalmente diferente. E, por esse motivo, declara que não se deve designar ambos como comportamento (comportamento é um termo que conota atividade real e é especialmente adequado para a performance concreta), a abstração representa melhor uma preparação para a atividade, ela envolve uma atitude, uma abordagem interior que leva à atividade. Logo, convém referir-se a ela enquanto uma atitude em direção ao abstrato. A ação real nunca é abstrata, ela é sempre concreta. Em situações concretas a ação é definida diretamente pelo estímulo; em situações que envolvem o abstrato a ação é iniciada depois da preparação que tem a ver com uma consideração do todo da situação. Tais explanações podem fazer parecer que o comportamento concreto ocorre em completa independência da atitude abstrata, determinado apenas pela situação externa, mas esse não é o caso. O comportamento normal é caracterizado pela alternância entre uma atitude envolvendo o abstrato e outra envolvendo o concreto. Essa alternância ocorre de modo apropriado à situação, à individualidade e à tarefa para a qual o organismo está voltado. A excitação e o curso normal da ação pressupõem, de alguma forma, a atitude abstrata. A ação raramente ocorre pela situação do estímulo em si. Em geral, o indivíduo tem que se posicionar, pelo menos na imaginação, na situação apropriada. O mundo exterior fornece o impulso e a iniciação de uma ação demanda a atitude abstrata. Da mesma forma, durante um ato concreto, a atitude abstrata nunca é totalmente excluída. A performance concreta é fundamentada na atitude abstrata em sua iniciação e recebe seu controle regulador durante o seu curso. O desvio característico do comportamento dos pacientes com lesões cerebrais relatado por Goldstein (1940/1951) corresponde a uma mudança no mundo em que o indivíduo vive. Sua incapacidade de realizar performances que demandam uma atitude abstrata significa não apenas uma restrição de sua personalidade, mas também uma restrição do mundo em que ele vive. Além disso, não ocorre apenas a diminuição dos conteúdos de seu 251 Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ambiente e a restrição de suas capacidades, há também uma diminuição de sua liberdade de ação. Por isso, avalia que as performances correspondentes ao melhor funcionamento da parte mais complexa do cérebro são as mais importantes, já que elas representam a capacidade mais alta do organismo. Assim, ele infere que o comportamento abstrato representa a mais alta capacidade – na verdade, a capacidade essencial – do ser humano. E, como consequência, a fala é uma das características especiais da natureza humana, visto que está ligada à mais elevada capacidade do homem. CONSIDERAÇÕES FINAIS Goldstein foi um neurocientista de destaque na história do conhecimento científico. Durante toda a sua carreira suas ações estavam votadas para a prática. Ele buscou estudar seus pacientes com o intuito de compreender os processos vivenciados por eles e propor uma prática médica que tivesse como centro as necessidades desses indivíduos. Seus escritos são extremamente ricos e forneceram as bases para o desenvolvimento de diversos campos, a exemplo da Neurologia (SACKS, 1995), Neuropsicologia (LURIA, 1966), Psicologia (LOFFREDO, 1994; PERLS, 1979; Moreira, 2010) e Filosofia (SPIEGELBERG, 1972; NOPPENEY, 2001). Retornar às suas obras, conhecer o desenvolvimento de seu trabalho e os conceitos apresentados por ele nos possibilita acessar o pensamento que influenciou pensadores da sua geração e as subsequentes, além de fornecer subsídios epistemológicos para um conjunto de práticas clínicas e psicoterápicas. Esse artigo foi escrito com o objetivo de realizar uma introdução de seu pensamento – de sua “fenomenologia” – considerando a ausência de traduções de seus livros para a língua portuguesa e a escassez de trabalhos produzidos no país voltados para o estudo de suas ideias. Para isso, duas de suas obras, consideradas por estudiosos, a exemplo de Kahlmeyer-Mertens (2015), como seus trabalhos principais foram tomadas como referência. A partir disso, elementos considerados característicos de seus escritos foram apresentados com a pretensão de ampliar o acesso às suas ideias e, de alguma forma, promover uma retomada de seu trabalho. Desse modo, concordamos com Sacks (1995, p. 14): Muito do que Goldstein registrou, ponderou e descreveu para nós com cuidado minucioso 252 Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda Ms. Jennifer da Silva Moreira Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 252 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics e detalhadamente reside no verdadeiro coração da Medicina e da Neurologia e pode, talvez, ser entendido agora – pelo menos reaplicado e reconciliado – com as ferramentas mais poderosas e com os conceitos do nosso tempo. Portanto, é apropriado reviver a observação e os pensamentos desse homem notável, que viu e descreveu tanto em seu próprio tempo para ver quais ressonâncias suas ideias teriam para nós agora. REFERÊNCIAS ADRIÁN ESCUDERO, J. Guía de lectura de Ser y tiempo de Martin Heidegger (vol. 1). Barcelona: Herder, 2015. ANDRADE, C. C. & HOLANDA, A. F. Psicologia da Gestalt, Teoria de Campo e Gestalt-Terapia. In: Leticia Azzolin Becker. (Org.). 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Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici 1927 Marcel, Heidegger and historiographical misconceptions Prof. Dr. Franco Riva Università Cattolica del Sacro Cuore di Milano220 RIASSUNTO Fin troppo abituati a leggere il 1927 di Heidegger (Sein und Zeit) e di Marcel (Journal Méthaphysique) con gli occhi del dopo e delle filosofie dell’esistenza, non ci si accorge sempre di una lettura diversa già in corso con gli occhi del prima e di Io e Tu (1923) di Buber. Il comune racconto polemico e antisartriano rivendica l’Essere più che l’esistere, ma rischia di fermarsi alla vicinanza, dentro cui si prepara invece un racconto alternativo che imparenta Marcel più con il principio dialogico (Buber, 1954) e il pensiero dell’altro (Lévinas,1975). «Accordo fondamentale» con Heidegger per lo Zuspruch des Seins e la Verità come apertura, «prossimità metafisica», sensibilità comune, influenze. Fanno però da netto contrasto l’«accordo disaccordo» e le «differenze essenziali» di Marcel per le aperture bloccate, il filosofare astratto, il «disconoscimento dell’altro» (Ma relation avec Heidegger, 1957, 1979). E quel «credere di stare davanti al mistero» di Heidegger (Lettera sull’umanismo, 1947) sembra una svista. PAROLE CHIAVE Marcel; Heidegger; Essere; Esistenza; Contrappunti. ABSTRACT We are too familiar to consider the year 1927 of Heidegger (Sein und Zeit) and Marcel (Journal Méthaphisique) by the categories of the “after” and the philosophies of existence to the point where we can’t no longer feel a different interpretation by the categories of the “before” and of Buber’s I and You (1923). The common polemical and anti-sartrian novel claims the Being, rather than the existence, but it liskely to stop at the proximity, in which we can see an alternative novel, that brings Marcel closer to the dialogic principle (Buber, 1954) and the thought of the Other (Lévinas, 1975). “A fundamental agreement” 220 E-mail: franco.riva@unicatt.it 255 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics with Heidegger for the Zuspruch des Seins and the Thruth as an openness, “methaphysical proximity”, shared sensibility, influences. But the Marcel’s “accord-désaccord” and the “fundamental differences” for the blocked openings, the abstract philosophize, the “disowning of the Other” marked contrast to there (Ma relation avec Heidegger, 1957, 1979). And also the Heidegger’s “belief to stand in front of the mistery” (Letter on Humanism, 1947) sounds like an oversight. KEYWORDS Marcel; Heidegger; To Be; Existence; Counterpoints. Con simili asserzioni crediamo di stare dinanzi al mistero, come se fosse pacifico che la verità dell’essere possa essere fatta poggiare su cause e ragioni esplicative o, che è lo stesso, sulla sua inafferrabilità. Martin Heidegger, Lettera sull’umanismo, 1947 Per quanto concerne lo Zuspruch des Seins c’è un accordo fondamentale tra me e Heidegger, contro Sartre… questo discorso in negativo [mistero] porta a riconoscere che il pensiero in nessun modo può porsi di fronte all’Essere come fosse un oggetto. 1. RACCONTI POLEMICI/ RACCONTI ALTERNATIVI Sein und Zeit di Martin Heidegger e il Journal Métaphysique di Gabriel Marcel appaiono entrambi nel 1927. L’anno entra presto nella storiografia filosofica e si riflette in L’esistenzialismo è un umanismo (1946) di Jean-Paul Sartre, preceduto dai pensieri di Jean Wahl su soggettitivà e trascendenza (1937). Dell’esistenzialismo Sartre presenta Gabriel Marcel, Ma relation avec Heidegger, 1957 In un testo eccellente, il Giornale metafisico (1927) di Gabriel Marcel, viene abbozzato il punto di vista centrale e le sue relative conseguenze. Martin Buber, Per la storia del pensiero dialogico, 1954 Ma l’essere qui non è coscienza di sé, è rapporto con l’altro da sé e risveglio. Emmanuel Lévinas, Une nouvelle rationalité. Sur Gabriel Marcel, 1975. appunto, in chiave umanistica, le aree transnazionali («atea»: Heidegger, Sartre; «cristiana»: Jaspers, Marcel) e l’unica, famosa, tesi condivisa da tutti, ossia che l’«esistenza precede l’essenza». Le reazioni immediate di Heidegger prima a Wahl (Lettera a Jean Wahl, 1937) e poi a Sartre (Lettera sull’umanismo, 1947), e quelle di Marcel (La mia relazione con Heidegger, 1957), ribaltano infine la prospettiva a favore dell’Essere, e non dell’esistenza, imparentandoli tra loro. 256 Prof. Dr. Franco Riva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 256 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Seguiti da revisioni interpretative che ne prendono atto, com’è per Paul Ricoeur. Fin troppo abituati a leggere il 1927 di Marcel e Heidegger con gli occhi del dopo e delle filosofie Nonostante la sensibilità dell’esistenza, viene meno spontaneo ontologica comune di Marcel e pensare che della stessa data era già Heidegger, che s’incontrano nel 1947 in corso una lettura in senso in Germania e nel 1956 in Francia, il contrario, con gli occhi del prima e di rovesciamento di prospettiva Io e Tu (1923) di Martin Buber. dall’esistenza all’Essere non equivale Risentito all’inizio per un sospetto per nulla a un tirare la barca in secco quasi di plagio nei suoi confronti, come fosse il punto d’approdo Buber realizza infine la felice e definitivo e pacifico di una vicenda indipendente consonanza con il che resta tormentata. Vuoi perché la Giornale metafisico di Marcel (iniziato vicinanza nasconde in sé la distanza, a dire il vero nel 1913) – che entra vuoi perché un secondo movimento così di fatto in una contingenza si affianca e attraversa il primo, più alternativa e altrettanto fortunata che reattivo e interno alla filosofia lo convoca ad altre familiarità, per la dell’esistenza, sia per discutere filosofia del dialogo. solidarietà vecchie (Marcel, Jaspers) In Per la storia del pensiero dialogico e nuove (Marcel, Heidegger), sia per (1954) di Martin Buber, allora, il annunciare prossimità inedite. Giornale metafisico di Marcel compare Movimento s’intende dapprima con l’elogio di averne colto l’essenza. parallelo e cauto, che irrompe Buber che in diretto confronto tuttavia ed esplode proprio quando condivide tutto sommato i dubbi di il primo, con i suoi rovesciamenti, Marcel sul termine «relazione» sembra vincere e convincere. privilegiato in Io e Tu. Marcel apre in Movimento, ancora, che non vede compenso i cantieri ufficiali su protagonisti gli equivoci e le Buber: il volume statunitense per i etichette, la fortuna e i manuali, «Living Philosophers», bensì i filosofi stessi, Buber, Marcel, editorialmente sofferto (1957, 1963, Ebner, Lévinas. Movimento che 1967); e quello del Centro nazionale prende in contropiede, sfonda in un di alti studi ebraici di Bruxelles nuovo decennio (tra il 1957 e il 1968 (1968), seguito a ruota da Lévinas circa) e dà luce a parentele in essere che scrive volentieri su Buber e con la filosofia del dialogo e l’altro Marcel congiunti e li considera, pensiero. Documentando per il 1927 nonostante tutto, la vera famiglia. di Marcel, nello stesso tempo, L’etica come filosofia prima; non è contingenze e tensioni diverse questione di Essere; l’altro. rispetto a quelle abusate Tutta un’altra storia, un altro dell’esistenzialismo. movimento. Avvalorati da Marcel che intravede accordi e disaccordi, a 257 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics partire dalla differenza di stile e d’intento filosofici tra il proprio Giornale metafisico ed Essere e tempo di Heidegger. Marcel stesso pone dunque il problema di cosa prevale nella contingenza del 1927, se un racconto polemico e antiesistenzialistico che lo riavvicina ad Heidegger in nome dell’Essere o un racconto alternativo che, dentro l’accordo, li divarica in nome dell’altro da sé. Anche se i documenti del racconto polemico sono più in vista, se il testo della conferenza su Heidegger del 1957 resta inedito fino al 1979 (non altri testi però), e se Marcel è coinvolto nel racconto alternativo di Buber e Lévinas come protagonista di cui narrare nello stesso momento in cui si coinvolge, vedi fare da apripista negli omaggi collettivi su Buber. Ad assorbire come una spugna i codici della vicinanza e della distanza che si travasano di continuo da una parte e dall’altra, nel primo come nel secondo movimento, nel racconto polemico come in quello alternativo, sono le parole dell’Essere e dell’altro che, pur facendosi ancora compagnia, cominciano a entrare in rotta di collisione. Nell’Essere Marcel e Heidegger convergono, sull’altro divergono al punto che neppure il significato del primo termine resta più lo stesso, come sottolinea Lévinas spingendo il pedale di «una nuova razionalità» (LEVINAS, 1975). I movimenti che investono Marcel e Heidegger né si arenano tra rifiuti e rettifiche, né finiscono con la crisi scontata del paradigma dell’esistenzialismo. Dal loro stesso interno, con le parole stesse dell’Essere e dell’altro, spingono piuttosto verso un racconto diverso che, non del tutto estraneo alla narrazione che contesta, una volta partito non si volta più indietro. Così, il racconto polemico e antisartriano che rivendica l’Essere più che l’esistere, pur condiviso da Marcel e Heidegger, è attraversato e lascia spazio a un racconto alternativo. 2. 1927. CONTINGENZE E INCIDENTI Con la pubblicazione di Essere e tempo di Heidegger e del Giornale metafisico di Marcel non c’è dubbio che il 1927 segni una concomitanza editoriale formidabile per la filosofia contemporanea, rimarcata da tempo e in modi diversi. Una contingenza fortunata che diventa tuttavia, fin troppo presto, un luogo comune storiografico della filosofia del 900 e dell’esistenzialismo in particolare, di cui segna la prima data significativa sulla spinta della Kierkegaard Renaissance e della Lettera ai Romani di Karl Barth (1919). A distanza di novant’anni, è impossibile nascondersi tanto i pentimenti per questo luogo comune, quanto, e soprattutto, le reazioni di Heidegger e di Marcel che s’intrecciano fino a un certo punto. 258 Prof. Dr. Franco Riva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 258 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics “filosofi dell'esistenza”» (PAREYSON, 1975, pp. 90 ss.). Sartre in effetti, nel tentativo di arginare le accuse di anti-umanesimo e di immoralità, semplifica alquanto con L’esistenzialismo è un umanismo (1946) il quadro delle filosofie dell’esistenza. L’esistenzialismo ha in comune un solo principio, che «l'esistenza precede l'essenza, o, se volete, che bisogna ripartire dalla soggettività». Per il resto, i cammini divergono perché «vi sono due specie di esistenzialisti: gli uni che sono cristiani, e fra questi metterei Jaspers e Gabriel Marcel, quest'ultimo di confessione cattolica; e gli altri che sono gli esistenzialisti atei, fra i quali bisogna porre Heidegger, gli esistenzialisti francesi e me stesso» (SARTRE, 1986, pp. 4143, 46-51). Soggettività per tutti, quindi, ma declinata in modo più radicale e coerente per l’area laica, «atea», di Heidegger e Sartre (l’esistenza precede l’essenza, la morte di Dio, finitezza, essere gettati, coscienza e nulla), e meno per quella «cristiana», e in parte cattolica, di Jaspers e Marcel (paradosso, limite, male, mistero, trascendenza, corpo). Forse ricordandosi del saggio di Marcel che introduce Jaspers in Francia nel 1933 (cfr. MARCEL, 1945). In realtà, per moda, periodi e parentele dell’esistenzialismo non bisognava certo attendere Sartre che con il suo intervento agisce semmai da aggravante. Il 4 dicembre 1937 Jean Wahl organizza un incontro 259 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici Per i pentimenti basta ricordare Paul Ricoeur e Luigi Pareyson che coinvolgono direttamente Marcel e Heidegger. La parabola di Ricoeur è davvero emblematica perché, dopo avere insistito sulla scia di Sartre con ben due libri sulla vicinanza tra Marcel e Jaspers (RICŒUR, 1948; RICŒUR, DUFRENNE, 1947), privilegia infine quella alternativa tra Marcel e Heidegger passando non a caso attraverso un confronto, metodologico e fenomenologico, tra Marcel e Husserl intorno al corpo proprio, «mio» per il primo e «vissuto» per il secondo (RICŒUR, 1950; RIVA, in DE FREITAS DA SILVA, RIVA, 2017, pp. 394-397). Nei Colloqui con Marcel del 1968 Ricoeur non teme di smentirsi. Ammette di essere stato, all’inizio, «molto più sensibile alla sua prossimità con Jaspers piuttosto che con Heidegger. Quando invece oggi la tendenza è di accentuare, in contrasto, distanza e opposizione rispetto a Jaspers, peraltro allora intraviste, per mettere in risalto tutto ciò che avvicina ad Heidegger, a dispetto di apparenze contrarie che rimangono comunque molto forti» (RICŒUR, MARCEL, 1968, pp. 83-84). Pareyson, dal canto suo, accusa Sartre di essersi impadronito nel dopoguerra con tale prepotenza «del termine di esistenzialismo» che, per inevitabile «contraccolpo, i veri esistenzialisti, come Heidegger, Jaspers e Marcel, non vollero più esser chiamati tali, accettando tutt'al più il nome di Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics internazionale a Parigi per la Società francese di Filosofia sugli equivoci della «filosofia dell’esistenza», invitati anche Heidegger e Jaspers, Marcel e Berdajev, Lavelle, Lévinas, Löwith. Marcel era presente, mentre Heidegger e Jaspers scrivono due righe per giustificarsi. Più sbrigativa la lettera di Jaspers, che liquida il problema decretando il «non senso» dell’«esistenzialismo», più articolata quella di Heidegger che rimanda piuttosto alla questione dell’Essere (JASPERS, 1937, p. 193; HEIDEGGER, 1937, p. 193). Più che di esistenzialismi autentici o di affinità elettive, queste reazioni secche e tempestive rifiutano come prioritaria la questione stessa dell’esistenza. Tutto allora esplode fin dall’inizio dall’interno stesso di ciò che si vuole etichettare, imparentare e datare. Anche se non si tratta solo di questo, di esistenza o Essere, di vicinanze o distanze. 3. UN RIFIUTO PROFETICO Le parole di Heidegger per la mancata partecipazione all’incontro di Wahl sulla filosofia dell’esistenza non lasciano dubbi; e sono un programma teorico e narrativo: «Vi ringrazio molto per l'amabile invito alla vostra conferenza, alla quale io non posso sfortunatamente assistere a causa del lavoro del semestre in corso. Le vostre considerazioni critiche sul soggetto della “filosofia dell'esistenza” sono molto istruttive, devo tuttavia ripetere che le mie tendenze filosofiche, anche se in Essere e tempo è questione di “Esistenza” e di “Kierkegaard”, non possono essere classificate come filosofia dell'esistenza. Ma questo errore di interpretazione sarà probabilmente difficile da eliminare per il momento. Sono del tutto d'accordo con voi nel dire che la “filosofia dell'esistenza” è esposta al doppio pericolo di cadere sia nella teologia, sia nell'astrazione. Ma la questione che mi preoccupa non è quella dell'esistenza dell'uomo; è quella dell'essere nel suo insieme e in quanto tale» (HEIDEGGER, 1937, p. 193). Essere e tempo, esistenza e Kierkegaard, di sicuro, ma rimettendo al posto che le compete, il primo, la parola dell’Essere. Le scuse garbate di Heidegger («sfortunatamente») per un’assenza dovuta al semestre di insegnamento, vengono surclassate da un rifiuto senza mezzi termini e ribadito ancora una volta («devo tuttavia ripetere») di essere collocato in filosofie dell’esistenza e tematiche esistenzialistiche, essendo interessato alla questione dell’Essere nel suo insieme e in quanto tale. Di modo che le scuse coprono un rifiuto nove anni prima di Sartre. Heidegger non si limita a liquidare esistenzialismo e dintorni con un drastico «non senso» come fa Jaspers, perché sente il bisogno 260 Prof. Dr. Franco Riva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 260 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics polemica, con la Lettera sull’umanismo che mette in forma argomentativa il rovesciamento di prospettiva. Perché non si tratta per nulla del rapporto dell’uomo con l’Essere, bensì della «relazione dell’Essere all’essenza dell’uomo». Stessa cosa per l’Introduzione alla metafisica (1935/1955) dove, oltre a ribadire che il vero problema è piuttosto la comprensione dell’Essere, e dell’uomo in rapporto all’Essere, si critica la metafisica occidentale che scambia l’Essere con l’essente, fonte di tutti gli equivoci e della necessità di una storia della dimenticanza. Annunciata fin da Essere e tempo, per Heidegger è indispensabile una «distruzione della storia ontologica dell'ontologia» al punto da riconoscere che, nell’intervista a «Der Spiegel» (1966), «tutto il mio lavoro, nelle lezioni e negli esercizi degli ultimi trent'anni, è stato sostanzialmente soltanto interpretazione della filosofia occidentale» (HEIDEGGER, 1987, p. 141; cfr. HEIDEGGER, 1980, § 6, p. 37; MARCEL, 1945, pp. 81-110). Tra Heidegger e Marcel è sintomatica soprattutto la sintonia dislocata sugli equivoci dell’esistenzialismo, non priva di criticità, che emerge in due conferenze: di Heidegger in Francia nel 1956 a Cerisy-la-Salle (Che cos’è questo – La filosofia?), dove è Marcel a rendergli il pubblico omaggio finale incontrandolo per la seconda volta; e di Marcel in Germania l’anno dopo (Ma relation avec Heidegger), inedita 261 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici d’impugnare in breve la questione. Soprattutto, di esplicitare che non si riconosce in generale, né gli interessa nulla in dettaglio, di quanto espresso da Wahl nelle note preparatorie, Soggettività e trascendenza, fatte circolare in anticipo per prepararsi all’incontro parigino; e che rimanda al mittente sia in se stesse che per ciò che assorbono delle ermeneutiche circolanti sulla filosofia dell’esistenza. Soggetto e oltrepassamento, radici teologiche (kierkegaardiane) e versioni laiche (essere al mondo, situazione, storicità, colpa), pensieri fascinosi «di nostalgia e di eco del religioso», la «filosofia esistenziale», una «teoria generale dell'esistenza» ma astratta rispetto alle esistenze concrete, «al tempo stesso più “esistenziali” e più veramente filosofiche», di un Rimbaud, Van Gogh o Nietzsche, il «pericolo» che ne consegue (WAHL, 1937, pp. 162-163). Con un radar incredibile e profetico, Heidegger paventa ben altri pericoli che non quelli delle filosofie esistenziali, primo fra tutti il fatto che i tempi per «eliminare» il madornale «errore di interpretazione» non saranno certo rapidi. Senza che l’impostazione muti di una virgola, e senza che la profezia sui tempi lunghi per sbrogliare la matassa di equivoci venga smentita, da questo momento in poi Heidegger esplicita il suo punto di vista, lascia pagine decisive sulla questione dell’Essere e dell’esistenza, e risponde a Sartre nel 1947, in Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics fino al 1979. Nel 1956 in Francia Heidegger interpreta l’esistenza come «corrispondenza» con l’Essere, visto che «rispondere» («antworten») significa in senso proprio «corrispondere» («entsprechen»), e il rispondere a sua volta, più che «replica alla domanda», è una «corrispondenza che corrisponde, fronteggiandolo, all'essere dell'essente» il cui appello viene eluso (HEIDEGGER, 1981, pp. 33 e ss., 25 ss.). Nel 1957 in Germania Marcel indica nell’appello dell’Essere («Zuspruch des Seins») un «accordo fondamentale» con Heidegger. Appello che rappresenta una «rottura decisiva del cerchio in cui si muove il pensiero sartriano – non direi forse il pensiero esistenzialista in generale» perché, come dice Heidegger stesso, «non è l’uomo che decide» del manifestarsi dell’Essere (MARCEL, 1979, p. 31). 4. OSCILLAZIONI Accordo fondamentale per l’appello dell’Essere tra Marcel e Heidegger nella seconda metà degli anni Cinquanta, dunque, ma con una discrasia temporale di non poco conto. Infatti, se Heidegger negli anni successivi esplicita un rifiuto assunto nettamente fin dal 1937, Marcel ammette nella conferenza su Heidegger del 1957 a Oberhausen (5 aprile), e replicata a Berlino il 14 maggio, di avere «rifiutato l'etichetta di esistenzialista che genera solo confusione» da «sette o otto anni almeno», a ridosso perciò del fenomeno Sartre e della baraonda esistenzialista dei secondi anni Quaranta. Nella stessa conferenza Marcel polemizza ancora con Sartre che «aveva proposto una sorta di classificazione rudimentale, subito recepita nei manuali per la sua semplicità, in virtù della quale Sartre e Heidegger erano i rappresentanti dell'esistenzialismo ateo, mentre Jaspers e io eravamo presentati come i campioni dell'esistenzialismo cristiano». Peccato che – quasi memoria implicita del «non senso» di Jaspers – « questa classificazione non significhi in realtà quasi nulla» (MARCEL, 1979, p. 31; cfr. p. 25). Rispetto alla reazione tempestiva di Heidegger, il rifiuto di Marcel è spostato in avanti di un decennio circa, in coincidenza grossomodo con il primo incontro personale e la Lettera sull’umanismo. Spostamento in avanti che si accompagna con un risultato simile per via del comune rifiuto finale, ma tenendo conto di un inizio più altalentante per una serie di circostanze e di clima culturale diversi. A fare da spartiacque della rottura sono infatti proprio gli anni sartriani 1946-1947, che impilano come in un albero della cuccagna e degli equivoci L’esistenzialismo è un umanismo (1946) di Sartre, il Congresso internazionale di Roma sull’esistenzialismo (1946), il volume parigino sull’Esistenzialismo cristiano 262 Prof. Dr. Franco Riva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 262 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics specializzata, e che non di meno ha la tendenza a «scolarizzarsi» perdendo così «il suo carattere e il suo accento originale» – coinvolti Kierkegaard, Heidegger, Jaspers e «qualche filosofo francese» tra cui Marcel stesso («dont je suis»). Circa l’esistenzialismo Marcel contesta molto, ma oscillando e concedendo un poco. Contesta l’appropriazione indebita di Sartre, né fondatore né avanguardia dell’esistenzialismo, il minor rigore di quello «cristiano» rispetto a quello «ateo» (MARCEL, 1947, p. 157), che Heidegger si possa considerare esistenzialista, tanto più ateo, chiamando in causa la «parte inedita della sua opera» ben più importante di quella «pubblicata finora», e che costringerà «a verificare le interpretationi parziali e premature» del suo pensiero. Bisogna in definitiva evitare ogni uso generico e vago del termine esistenzialismo, che va circoscritto «storicamente» perché, come suggerisce Wahl, «prende senso e valore» nella reazione a Hegel e all’idealismo (MARCEL, 1974, p. 158; cfr. MARCEL, 1968, p. 28). Dentro contestazioni e oscillazioni, il rifiuto di Marcel esplode senza mezzi termini negando per se stesso e per Heidegger sia l’esistenzialismo sia le aree atea o cristiana. Con l’ammissione di avere in effetti «usato il termine» esistenzialismo «ma in maniera provvisoria» e con l’intento di sbarazzarsene il prima possibile, nel Testamento filosofico Marcel trasforma in questo modo le 263 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici dedicato a Marcel (1947), curato da Etienne Gilson, la Lettera sull’umanismo (1947) di Heidegger e altro ancora come numeri monografici di riviste. A ritroso, Marcel rilegge se stesso in bilico tra qualche concessione iniziale a termini in voga quali esistenzialismo, ateo, cristiano, e un repentino cambio di marcia non appena costatato il montare degli equivoci a livello internazionale. Se recrimina con forza contro le etichette nel momento del rifiuto, Marcel ha non di meno l’onestà di ammettere le oscillazioni. Si pente ad esempio di avere concesso all’editore Plon nel 1947 il titolo sartriano di Existentialisme chrétien per il volume collettivo su di lui, confessando tuttavia nello stesso tempo di avere utilizzato la formula in un dibattito del 1945. Due testi di Marcel del 1947 sono esemplari per il possibilismo iniziale (Esistenzialismo e pensiero cristiano in «Témoignages»; MARCEL, 1947, pp. 157-169; MARCEL, 1946; MARCEL, 1947; MARCEL, 1981) e il definitivo rifiuto (Esistenzialismo cristiano; GILSON, 1947). Nella seconda parte di Esistenzialismo e pensiero cristiano Marcel ripercorre il proprio itinerario filosofico. Nella prima parte interviene invece sull’esistenzialismo, le sue forme e Sartre. A parte la polemica scontata, Marcel ricorda le proprie riserve sul termine esistenzialismo che in Francia ha avuto fortuna più nella pubblicistica che nella letteratura Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics oscillazioni della prima ora in un anticipo del successivo rifiuto (MARCEL, 1969, p. 254). Nel quarto dei Colloqui con Ricoeur (1968) Marcel, di fronte al suo tentativo di far sopravvivere almeno la parola «cristiano», prende tutte le distanze possibili sottolineando di aver colto ogni occasione, dal 1949 almeno, per ribadire il rifiuto e denunciare l’«orrore delle etichette e degli ismi di ogni sorta», ivi compreso l’esistenzialismo. Marcel rigetta Sartre e le sue etichette, scoperte a Roma nel 1946 senza darvi troppo peso, ma in termini sempre più severi come avviene in La mia relazione con Heidegger (1957) e nel Testamento filosofico (1969). Quella di Sartre è una «classificazione rudimentale» e «falsa», che «non corrisponde quasi a nulla» e «che non regge», una «volgarizzazione imprudente» e «accolta dai manuali per la sua semplicità» (MARCEL 1957, p. 31; MARCEL 1969, pp. 254255). Marcel scarica, ancora, la responsabilità del titolo Esistenzialismo cristiano parte sull’editore Plon parte su Louis Lavelle, con cui si era consultato dubbioso sentendosi rispondere che, in fin dei conti, poteva pur fargli una concessione anche se «non amava più di lui» l’espressione – pagandola puntualmente con gravi sottintesi (RICŒUR, MARCEL, 1968, pp. 7375, cfr. 71-92; cfr. MARCEL, 1971, pp. 228-230). Di fronte a Ricoeur, Marcel scarta con decisione sia il termine cristiano che filosofia cristiana, a meno non si tratti di una paradossale «negazione d'una negazione», del fatto cioè di non potersi non dir tale tutto sommato, preferendovi di sicuro «filosofo della soglia», situato sulla «linea mediana tra credenti e non credenti», dove si colloca anche Heidegger (RICŒUR, MARCEL, 1968, pp. 75, 80, 81-82). E Ricœur prende a sua volta la palla al balzo per rimarcare appunto che, proprio questa «posizione della soglia» («position du seuil»), permette «un’altra vicinanza» con Jaspers e, soprattutto, con Heidegger (RICŒUR, MARCEL, 1968, p. 83; cfr. pp. 83-84; MARCEL, 1971, p. 145). D’altra parte è lo stesso Marcel che riconosce, nel Testamento filosofico, di essere «più vicino» ad Heidegger «che a Jaspers» (MARCEL, 1969, pp. 254-255). 5. L’INAFFERABILE, IL MISTERO Delle vicinanze e degli incontri personali tra Marcel e Heidegger è più facile, ovviamente, parlare dalla sponda di Marcel che lascia diverse testimonianze. Anche se, tra citazioni da L’esistenzialismo è un umanismo di Sartre e riprese di Essere e Tempo nella direzione contraria della verità dell’Essere, nella prima parte della Lettera sull’umanismo di Heidegger 264 Prof. Dr. Franco Riva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 264 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics c’è un’affermazione che potrebbe far riflettere. Heidegger inzia con il recupero dell’essenza dell’agire in quanto portare a compimento, più che rivolto all’utilità, reso possibile dal fatto che qualcosa già è, perché «ciò che prima di tutto “è”, è l’essere». Prosegue facendo presente che anche pensare è agire, e che lo è nel senso più alto quando mette a fuoco «il riferimento dell’essere all’uomo». Di modo che il pensare, per arrivare a se stesso e alla verità dell’Essere, deve prima di tutto «liberarsi dall’interpretazione tecnica del pensiero, i cui inizi risalgono fino a Platone e Aristotele». La domanda esistenzialistica di Sartre su «come ridare senso alla parola umanismo», infine, è incontrata da Heidegger sulla strada dell’abbandono dell’Essere per l’ente, nonché di una critica del pensiero tecnico e di una filosofia ridotta a sua volta a «tecnica della spiegazione». Non senza precise polemiche contro gli «ismi» di ogni sorta (come fa Marcel), umanismo ed esistenzialismo compresi, che tradiscono sempre un «asservimento alla dimensione pubblica» e fuorviante del linguaggio (cfr. HEIDEGGER, 1995, pp. 31-38). Nel controluce di Sartre, l’affermazione di Heidegger giunge presto tra convinzioni e polemiche che vanno in parallelo. Convinzioni che il pensiero autentico sia dunque pensiero dell’Essere e che, anziché fare perno su di sé, l’uomo debba «anzitutto lasciarsi reclamare dall’essere». E polemiche contro la «decadenza del linguaggio» che si allontana sempre più dalla sua essenza che «consiste nell’essere la casa della verità dell’essere». Il linguaggio infatti non è uno «strumento del dominio sull’ente» già ridotto a «reale nel complesso delle cause e degli effetti», che s’incontra «non solo agendocalcolando ma anche facendo scienza e filosofia con le spiegazioni e le fondazioni». Qui l’affermazione: «di queste ultime fa parte anche l’assicurazione che qualcosa è inspiegabile. Con simili asserzioni crediamo di stare davanti al mistero, come se fosse pacifico che la verità dell’essere possa essere fatta poggiare su cause e ragioni esplicative, o che è lo stesso, sulla sua inafferrabilità» (HEIDEGGER, 1995, p. 39). Con uno scarto sorprendente e fulmineo come un soprapensiero appuntato al volo, Heidegger capovolge la direzione principale del discorso che incalza da vicino il pensiero prensile ed esaustivo di una scienza calcolante e di una filosofia quale tecnica di spiegazione. Difendere un residuo d’inspiegabile e d’inafferrabile come suo rovescio non si sottrae per logica e impostazione a un pensare tecnico, che anzi guida ancora e viene trascinato con sé nel capovolgimento. Nonostante il comprensibile tentativo di salvare qualcosa e di evitare i pericoli, 265 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics negare che proprio tutto sia spiegabile e afferrabile ricalca pur sempre codici e parole di ciò che si vuole contestare. Spiegabile e inspiegabile, afferrabile e inafferabile, sono facce della stessa medaglia. Heidegger sfrutta il contrasto tra un pensiero calcolante/esplicante che punta all’esaustione della realtà e la difesa di un residuo che impedisce di portare a fondo il progetto totalizzante. In questo contrasto già smorzato si potrebbe avvertire qualche assonanza con la coppie epistemologiche di Marcel, in particolare con la riflessione di primo («problema», soluzione) e di secondo grado («mistero», irrisolvibile) – ma non è detto che Heidegger vi alluda direttamente, né che Marcel si inquadri entro dicotomie strumentali. Heidegger potrebbe riferirsi pure a un certo clima tardo ottocentesco, o a Jaspers. Del suo Umgreifende, che tutto avvolge e resta perciò inafferrabile, risuonano sia i limiti del cogliere e dell’afferrare (greifen), sia l’istanza d’una radicale ulteriorità. Ma il testo non abilita il rinvio diretto. Resta tuttavia pur sempre che Heidegger, per smarcarsi da un pensiero dell’inspiegabile («unerklärlich») e dell’inafferrabile («Unfasslickheit») che gli sembra prolungare al contrario il linguaggio tecnico, usa un termine caratteristico del lessico filosofico di Marcel, anche nelle traduzioni tedesche: «Geheimnis» («mistero»). Vale la pena ripeterne le parole: parlando d’inspiegabile supponiamo, «crediamo di stare davanti al mistero» («wir meinen vor dem Geheimnis zu stehen») (HEIDEGGER, 1976, pp. 318-319) – avendo però già concesso al pensiero tecnico che la «verità dell’essere» possa venire afferrata e spiegata almeno in parte. Forse Heidegger si riferisce anche a Marcel, ma non è detto neppure questo. Marcel che introduce però Jaspers in Francia nel 1933 e che lo appaia subito ad Heidegger, perché «uno dei punti più rilevanti» della loro filosofia, «in contrapposizione all’idealismo», è l’«insistenza sul ruolo delle situazioni-limite» (MARCEL, 1940, p. 301). Marcel (il «mistero») che trae in inganno, per così dire, tanto Sartre che Ricoeur (RICOEUR, 1948) circa il rapporto privilegiato con Jaspers (il «paradosso»). Marcel e Jaspers che si trovano abbinati in L’esistenzialismo è un umanismo di Sartre, sotto gli occhi di Heidegger mentre scrive. Heidegger che è scettico sull’uscita dal pensiero tecnico per via di negazione, d’inspiegabile e d’imprendibile, e che vi mescola nel punto centrale, nella convinzione di starvi di fronte, la parola marceliana «mistero». Marcel che incontra Heidegger per la prima volta nello stesso 1947 della Lettera sull’umanismo e che, provocando il solito disgusto, gli chiede cosa ne 266 Prof. Dr. Franco Riva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 266 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics pensi di aree ed etichette dell’esistenzialismo. A parti invertite, in forse non c’è una riserva di Marcel che, mentre parla di Heidegger nel 1957 con La lettera sull’umanismo a sua volta sottomano, sembra toccare esattamente la questione dell’inesplicabile e del mistero che tirano acqua, controvoglia, al mulino del pensiero tecnico. Senza apparente motivo nel contesto discorsivo, Marcel fa infatti presente che ci si sbaglia di grosso se si crede che «mistero» significhi negare che tutto sia spiegabile e afferrabile, perché questo equivale a scambiare la forma (negativa) per il contenuto. Non è certo questo che il mistero nega (che tutto sia spiegabile), o afferma (che ci sia un residuo d’insiegabile), ma piuttosto «che il pensiero non può in nessun modo porsi di fronte all’Essere come fosse un oggetto» (MARCEL, 1979, p. 34). Se non altro, è difficile ignorare la coincidenza di espressioni tra Heidegger («credere di stare davanti al mistero») e Marcel che avvisa di uno sfalsamento, perché mistero vuol dire, al contrario, che «in nessun modo» è possibile, è pensabile, di «collocarsi di fronte all’Essere». 61; MARCEL, 1940, pp. 9, 33; MARCEL, 1945, pp. 89-102; MARCEL, 1951, I, IV, pp. 69, 82-83, II, IV, pp. 57, 76; MARCEL, 1949, pp. 22-23; MARCEL, 1950, pp. 22-23; MARCEL, 1979, pp. 12-13, 18-19 ss.), del rapporto con Heidegger da parte di Marcel ci sono per contro delle precise testimonianze. La mia relazione con Heidegger (1957) documenta l’attenzione costante per Heidegger, le traduzioni (che Marcel modifica pure mentre cita) e gli studi critici, a partire da Essere e tempo e fino alla Kehre: Holzwege, Einführung in die Metaphysik, Was ist das-die Philosophie, Über den Humanismus; e ancora Vom Wesen der Wahrheit e Vorträge und Aufsätze (cfr. MARCEL, 1979, pp. 12-13, 33, 28, 30). Di rilievo è che Marcel discuta le prospettive critiche non solo con gli interpreti, vedi Henri Birault, ma con Heidegger stesso com’è per Alphons De Wahlens, recensito in Autour de Heidegger (1945). Ritenuto una «tappa decisiva» per la diffusione (MARCEL, 1945, p. 89; DE WAELHENS, 1942; RIVA, 1987, pp. 279-284), per Marcel come per Heidegger il suo libro resta condizionato da una predominante tonalità antropologica. A Marcel non sfuggono nemmeno gli scritti di Ludwig Biswanger, Jean Wahl ed Emmanuel Lévinas (cfr. MARCEL, 1979, pp. 36, 37, 28; MARCEL, 1945, 6. INCONTRI, DIALOGHI, pp. 89 ss.; MARCEL- RICŒUR, 1968, IMPRESSIONI 91). Insieme alle citazioni disseminate Sopra tutto, Marcel lascia delle nelle opere (cfr. MARCEL, 1935, p. testimonianze preziose degli incontri 267 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics con Heidegger in Germania, a Friburgo nel 1947, e in Francia a Cerisy-la-Salle nel 1956 – Heidegger relatore con Was ist das-die Philosophie e Marcel incaricato di rendergli omaggio –, cui seguì la conferenza, in Germania e in tedesco, Ma relation avec Heidegger il 5 aprile 1957 a Oberhausen e replicata a Berlino il 14 maggio (MARCEL, 1979, p. 25), ma rimasta inedita fino al 1979. Nonostante l’ostracismo postbellico per le compromissioni di Heidegger con il regime nazista e l’interdizione all’insegnamento, dell’incontro di Friburgo nel 1947 prese l’iniziativa Marcel superando non pochi scrupoli, compreso di sapere perfettamente che aveva «mitgemacht (partecipato)» con il nazismo. Marcel usa il tedesco per lasciare «una certa indeterminazione» e non andare subito alla «complicità», lasciando ad Heidegger il beneficio di tardive «prese di distanza nei confronti del nazismo» e di eventuali influenze negative, tipo la compagna di vita (MARCEL 1971, pp. 267-268; MARCEL 1979, p. 37). Personalmente auspicata, Marcel non gli sconterà tuttavia mai l’assenza di una confessione chiara ed esplicita di colpevolezza, se non altro per la partecipazione attiva con il nazismo (MARCEL, 1971, p. 268), un «aspetto particolarmente allarmante (bedenklich)» della sua personalità (MARCEL, 1979, p. 37). Si accodano l’impressione d’un fastidioso senso d’orgoglio (MARCEL, 1979, p. 25; MARCEL 1981, p. 268), il linguaggio filosofico oscuro e iniziatico (MARCEL, 1979, pp. 26-27; MARCEL, 1968, p. 92), l’influenza ossessiva sui discepoli cui Marcel reagisce con una parodia dei comportamenti di scuola, anche heideggeriana, affidata al teatro con La dimension Florestan (MARCEL, 1979, p. 25), irriconoscibile in tedesco: Die Wacht am Sein. Condizionata dall’esistenzialismo e da Sartre, a Friburgo si trattò di una «lunga conversazione» (MARCEL, 1979, pp. 25, 28) che puntava diritto al vero significato della filosofia di Heidegger nel clima dei dibattiti sull’esistenzialismo. Difatti, quando Marcel gli chiede in quale misura potesse mai accettare le etichette di Sartre (Heidegger, Sartre atei; Jaspers, Marcel cristiani), Heidegger protesta «vivacemente, sostenendo in particolare di non essere affatto ateo, ma che il suo pensiero stava come sospeso tra ateismo e teismo» (MARCEL, 1971, p. 230). Sullo sfondo delle loro filosofie, il colloquio del 1947 tra Marcel e Heidegger mette in scena la contesa tra esistenza (uomo, umanismo) ed Essere, la contestazione di Sartre, rifiuti e critiche condivise agli «ismi» e alle letture umanistiche di Essere e tempo, il problema della traduzione impossibile di un termine così centrale come Dasein, Esserci, suscettibile di giostrarsi tra 268 Prof. Dr. Franco Riva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 268 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics insistenze esistenzialistiche (Da) e rimandi all’Essere (Sein). In Francia nell’estate del 1955 per la decade di Cerisy la-Salle, Marcel e Heidegger si ritrovano a stretto, contatto con un tempo più disteso, per alcuni giorni. Tant’è che Marcel lima un poco le prime impressioni. L’«orgoglio» resta, senza però assimilarlo in tutto e per tutto al «tono sdegnoso» dato al protagonista, Hans Walter Dolch, della parodia drammatica. Marcel intuisce ora trattarsi forse più di «una specie di semplicità abbastanza insolita», una sorta di «naivité», tipica d’un uomo che «vive in una profonda solitudine e che quasi non ha viaggiato» (è la prima volta in Francia), che odia «la mondanità» superficiale e mal sopporta non si prenda sul serio la conversazione (MARCEL, 1979, pp. 25-26; cfr. MARCEL, 1971, p. 268). Per il resto, a Cerisy-la-Salle vengono ripresi i temi del primo confronto spingendoli più avanti. Il dibattito sull’esistenzialismo che si placa, la svolta di Heidegger e i nuovi studi critici spalancano la porta a un confronto ancora più libero e diretto tra filosofie accomunate da una comune sensibilità per l’Essere. Tra il 1947 e il 1957 Marcel e Heidegger condividono un racconto polemico in nome dell’Essere anziché dell’esistere, che la critica recepisce per tempo con particolare riguardo alla Kehre heideggeriana. Senza tacere le differenze Gallagher, per esempio, appaia Marcel e Heidegger per il rifiuto della dicotomia soggetto/oggetto con la critica del pensiero tecnico, per la difesa della creatività filosofica e per l’interesse ontologico (GALLAGHER, 1962a, pp. 22, 24-27; cfr. GALLAGHER, 1962b; LAPOINTE, 1977). Questo non toglie che il racconto polemico rischi di appagarsi dei rovesciamenti e delle nuove parentele. Senza accorgersi forse sempre che la prossimità innegabile intorno all’Essere trova nell’«altro» una pietra d’inciampo tale da scavalcarla verso racconti alternativi e irriducibili. 7. ACCORDI E DISACCORDI Heidegger ha il «grande merito» d’intuire l’«intimo legame tra l’Essere e il Sacro». È però difficile credere che il «suo disconoscimento del prossimo in quanto persona e dell’intersoggettività» gli renda davvero possibile «accedere alla sfera in cui questa parentela – se non proprio questa identità – dell’Essere e del Sacro trova il suo significato pieno e arricchente» (MARCEL, 1979, p. 38). Marcel è il primo a lanciare il campanello d’allarme sul fermarsi al racconto polemico che lo riavvicina ad Heidegger in nome dell’Essere. E chiude La mia relazione con Heidegger in modo del tutto paradossale per «sottolineare nello stesso tempo il mio accordo e il mio disaccordo» (MARCEL, 1979, p. 38). 269 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Il massimo dell’accordo segna il massimo del disaccordo. Bene il rapporto tra l’Essere e il sacro, bene lo Zuspruch des Seins, bene ancora la polemica contro il linguaggio economicistico dei «valori» («idealismo esangue», «fichtismo anemico») (MARCEL, 1979, pp. 3132). Ma il significato del sacro non si trova a scapito degli altri, né dell’appello solo nella dimensione generale del linguaggio. Dell’Essere va sentita la presenza (oltre che la sfuggenza), e dell’appello il dialogo (oltre che il linguaggio). Marcel sembra quasi riprendere quel «credere di trovarsi davanti al mistero» della Lettera sull’umanismo, con cui interagisce da vicino, facendo il controverso ad Heidegger per una risposta che non resta ora del tutto ipotetica. Mistero significa che l’Essere non si lascia in nessun modo trattare come un oggetto di pensiero, poco importa in che termini. È questa impossibilità a guidare le negazioni, non viceversa, altrimenti il punto è frainteso (l’inspiegabile e l’inafferrabile che Heidegger ritiene riflessi estenuati e capovolti del pensiero tecnico). Da questo punto di vista sarebbe al contrario Heidegger che, nella polemica, resta come dipendente dall’impostazione tecnica e metafisica del pensiero. Coerente con le intenzioni più profonde di Essere e tempo, egli sposta sì il centro d’interesse dall’ente all’Essere mantenendo tuttavia ancora un «oggetto» (vero) d’interrogazione. Per Marcel l’assicurazione ontologica che c’è dell’Essere invita invece a un’ermeneutica della presenza, agli «approcci concreti», fenomenologici e quotidiani (MARCEL, 1933, pp. 267 ss.). L’Essere (il mistero) non sta oltre, non è di fronte, non un’isola felice, un tesoro nascosto quale che sia, ma lo spazio di una lotta drammatica e giornaliera tra fedeltà e tradimento di cui proprio gli altri sono la porta privilegiata d’ingresso. Tutto ciò che Marcel dice all’interno dell’«accordo fondamentale» circa l’appello dell’Essere, o della «prossimità metafisica» con Heidegger, precipita e si deposita piano piano verso un disaccordo altrettanto fondamentale. Confrontandosi con testi precisi di Heidegger, Marcel contesta al suo discorso sull’Essere di prendersi in contropiede da solo con il ricorso a formule, concettuosità acrobatiche, grammaticalismi. Senza contestare in nessun modo che, per un «pensatore geniale» com’è, tutto questo possa rispondere per davvero «a un’esperienza – non saprei come dire –, spirituale, speculativa, davvero profonda», Marcel confessa a Ricoeur di riscontrare comunque nella sua filosofia un carattere «troppo grammaticale», che la rende «sospetta» sotto questo riguardo (RICŒUR, MARCEL, 1968, pp. 9192; MARCEL, 1979, p. 34; cfr. MARCEL, 1950; MARCEL, 1951, IV). 270 Prof. Dr. Franco Riva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 270 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Differenze di scritture e di metodo, ma anche qualcosa di più. Marcel fa affiorare il sentore di qualche dissonanza tra un pensiero per diversi aspetti così liberante e il restare tutto sommato come «prigioniero di categorie che forgia incessantemente» (MARCEL, 1979, p. 30; MARCEL, 1945, pp. 89-90). Heidegger è critico della metafisica e della tecnica ma mantiene «oggetti» d’interrogazione e una propensione astratta; in cerca di alternative espressive e tuttavia spesso criptico e concettuoso; amante della Lichtung ma difficilmente comprensibile e traducibile, «aspetto forse più inquietante» di una filosofia che sembra escluderne la possibilità pur mettendo in conto il pericolo di manipolarla. C’è una sottile contraddizione, «qualcosa di singolare nel fatto che un filosofo che parla tanto spesso di "apertura", di "rischiaramento" (Lichtung), ecc., si preoccupi così poco delle condizioni in cui un pensiero può comunicarsi» (MARCEL, 1979, p. 30). Al punto da proporci delle «scorciatoie impraticabili», mentre un pensiero che voglia farsi capire è «verosimilmente tenuto a procedere per delle vie indirette» che possono essere «ora delle metafore, ora delle esperienze concrete che non insistono su se stesse, ma che puntano a un aldilà» («Jenseits») verso cui la la filosofia di Marcel «tende irresistibilmente», come ha colto Prini (MARCEL, 1950, p. 8) 8. SCRIVERE, PENSARE Accordi e disaccordi. Senza esagerare la differenza, prende allora una tonalità più critica quanto Marcel dice circa la differenza di scrittura nel 1927 tra il proprio Giornale metafisico ed Essere e tempo di Heidegger. Primo livello. Non c’è dubbio che, pure con un «immenso giro», le due opere si avvicinano infine intorno a ciò che Heidegger chiama «la necessità di una distruzione della metafisica, destinata a fare spazio a qualcosa d’altro, e cioè alla considerazione dell’Essere al di là dell’Essente» (MARCEL, 1979, p. 28). La distruzione, definita in modo chiaro in Essere e tempo, non è «demolizione» bensì «decostruzione, smontaggio e scarto delle enunciazioni meramente storiche sulla storia della filosofia». Distruzione è un invito ad «aprire le «orecchie», a «liberarsi» per ciò che «c’interpella in quanto Essere dell’essente». Solo «ascoltando questo appello accediamo alla “corrispondenza”»; e «“corrispondere” significa dunque: essere determinati, ma a partire dall’Essere dell’essente» (MARCEL, 1979, p. 29). Con Essere e tempo sempre sullo sfondo, di Was ist dasdie Philosophie, la conferenza di Heidegger a Cerisy-la-Salle nel 1955, Marcel sottoscrive in pieno la dialettica domanda/risposta, l’«essere in corrispondenza con ciò verso cui è in cammino la filosofia, 271 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics ossia l’Essere dell’essente», il «prestare orecchi fin dall’inizio a ciò cui la filosofia ci ha già chiamato», che la risposta infine non giunga al di fuori di questo «colloquio» in cui il soggetto si trova «esposto a qualcosa che non viene da lui», e che lo reclama (MARCEL, 1979, pp. 2829). Questo non toglie che «niente assomigli di meno a un Journal métaphysique che Essere e tempo, opera che si presenta ben più profondamente elaborata e comparabile semmai a certe altre che segnano i punti cardine della storia della filosofia, vedi la Critica della ragion pura o la Fenomenologia dello Spirito». Storia della filosofia con cui Heidegger è peraltro in continuo contatto per scelta esplicita e di lavoro, dai Presocratici a Kant, da Hegel a Nietzsche (il di-dietro del testo, l’autonomia della parola, il testo-nutrimento). Anche se Marcel vi ritrova, pure qui, l’incertezza tra dialogo e monologo in quanto il suo modo «di concepire la storia della filosofia è rischioso e presta il fianco a delle serie critiche», «Willkür [arbitrio]» compresa (MARCEL, 1979, p. 26). Il diverso manifesto filosofico si riflette nella scelta di scrittura («su questo punto nessuna coincidenza tra il pensiero di Heidegger e il mio»), che spinge di nuovo al controverso. Nonostante tutto, Heidegger «resta senza alcun dubbio molto più fedele di me alla tradizione filosofica». Come a dire: fedele nella polemica, tradizionale nella distruzione. D’altro canto, sgombriamo il campo dal confondere «il rifiuto del sistema», l’abbandono del progetto sistematico iniziale, come per Marcel, con l’«adesione a un puro soggettivismo o tanto meno a un impressionismo filosofico» (MARCEL, 1979, pp. 27-28). Scarti di scrittura e di pensiero. Storia della filosofia. Dialogo e monologo. Heidegger molto più fedele alla tradizione. Marcel rilegge il 1927 d’origine unendo e separando, congiungendo e divaricando. Sottolinea la grandezza indiscussa di Heidegger per contrappuntarla con una piccola vena ironica appena percepibile che lo lascia immerso nella storia di quella stessa tradizione che intende programmaticamente distruggere. Vena d’ironia che rispunta più chiara quando lo paragona a un uomo selvatico, «a una creatura che è presso di sé (einheimisch) solo nel bosco e che è vano sperare di acclimatare nel mondo delle città» – tono naif («Ursprünglichkeit») che contribuisce, almeno in parte, a quella «specie di attrazione magica che esercita» il suo «pensiero un po’ dappertutto» nel mondo (MARCEL, 1979, p. 30; cfr. MARCEL, 1945, pp. 89-90). Diario e saggio. Ironia a parte, in un modo neanche troppo indiretto Marcel sta rompendo con il racconto polemico e antiesistenzialistico che lo unisce ad Heidegger in nome 272 Prof. Dr. Franco Riva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 272 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics dell’Essere perché rifiuta la parola sostantiva verso cui Heidegger sembra comunque inclinare, se non altro nell’impostare la domanda, anche nella Kehre. passaggi», la domanda ritorni proprio in termini sostantivi, come avviene «nella Lettera sull’umanismo: “Che cos’è l’Essere? È se stesso”» (MARCEL, 1979, p. 34). Le risposte di Heidegger non sono certo definizioni in senso classico e sporgono sul limite 9. FRAINTENDERE LA dell’inesprimibile. Pur tuttavia nelle NEGAZIONE domande formulate sul «che cosa» Marcel diffida di domande rivolte l’Essere tende a restare ancora all’identità dell’Essere come fosse l’«oggetto» di una domanda, che è possibile darvi risposta astraendo da poi il principio stesso del definire e tutto. Delle domande sull’Essere e del sostantivare. Mentre, come sul nulla dell’Introduzione alla facendo appunto il controverso a Metafisica di Heidegger, in quel «credere di trovarsi davanti al particolare, Marcel coglie la mistero» per via dell’inspiegabile e situazione irreale e sostantiva, dell’inafferrabile della Lettera sradicata e astratta – dimentica che sull’umanismo, per Marcel l’Essere per l’Essere il domandare stesso «non è cosa su cui si possa porta con sé un implicito e suppone discorrere. Parlare di mistero come ciò che si sta chiedendo, una qualche ho fatto segna esattamente questa presenza d’essere, un «fondo di impossibilità». Marcel sembra realtà», un «dato fondamentale». comprendere perfettamente Perché «è un’illusione pura e l’obiezione di portarsi dietro, per semplice immaginarsi che chi pone semplice negazione, la logica stessa la domanda possa fare astrazione da dello spiegare e dell’afferrare. Perché ogni realtà, o, per usare il termine continua: «si potrà naturalmente heideggeriano, da ogni Seiendheit». obiettare che si tratta ancora di Wahl lo ritiene uno pseudoparlare dell’Essere negativamente», problema; e così per il Nulla, di cui peccato che questo sia «vero solo Heidegger sembra ignorare «la formalmente». La negazione non critica tanto profonda» di Bergson riguarda tanto la messa in guardia (MARCEL, 1979, pp. 33-34). Marcel contro l’illusione di poter tutto si rende conto che la domanda afferrare e spiegare, quanto d’inizio, la Vorfrage – «Che ne è «riconoscere che il pensiero non può dell’Essere?»; «Wie steht es um das in nessun modo porsi di fronte Sein?» –, è formulata in modo meno all’Essere come fosse un oggetto che sostantivo «contro la tentazione di è possibile considerare (betrachten) e domandarsi cosa sia l’Essere». Ma sottomettere alle stesse operazioni» questo non toglie che, «in diversi di cui investiamo gli oggetti e le cose. 273 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics E a Marcel viene da chiedersi di sfuggita se Aristotele «non avesse in mente qualcosa di simile» quando, per svincolarlo dal categoriale e del sostantivo, «definiva l’Essere come un Trascendentale». Proprio Marcel che usa con rammarico il verbo definire, dato che si tratta di una posizione (Setzung) e non di una definizione» (MARCEL, 1979, p. 34). Il che è veramente sorprendente. Fraintendere la negazione. Non «sarà più possibile perdersi in discorsi astratti sui caratteri intrinseci dell’Essere – quasi che l’Essere fosse una cosa sucettibile di essere opposta ad altre cose che sono soltanto, ad esempio, sue apparenze o manifestazioni». Perfino il «termine ontologia è poco soddisfacente», pericoloso, e «l’Essere come tale non è nulla in fondo su cui si possa dicutere» (MARCEL, 1979, p. 33). Per Marcel parlare di mistero dell’Essere non è l’oggetto rovesciato e in negativo del sapere e del prendere, non l’ennesima «sostantivazione», vuoi perché l’assicurazione dell’Essere dovrà allontanarsi in progress dal livello più astratto per andare «verso affermazioni sempre più concrete», vuoi perché «questo mistero come tale deve essere considerato più come ineffabile» (MARCEL, 1979, p. 35). Ineffabile non è lo stesso che inspiegabile e inafferabile che lo tengono come oggetto. «Ogni volta che diciamo l’Essere incombe un pericolo» (MARCEL, 1979, p. 33). Non ha nessun senso porsi davanti all’Essere o al mistero perché siamo «abitati» da un’ «esigenza», «realtà», «pienezza», difficili da soddisfare per ciò che «la nostra esperienza porta sempre con sé d’incompleto, incompiuto e frammentario»; e che ci costringe «a protestare vitalmente contro un mondo funzionalizzato» e tecnicizzato. Non si tratta di «una storia raccontata da un idiota» (Shakespeare, Macbeth). Questa esigenza autorizza a «dire che c’è dell’Essere», ma solo «a partire da una certa presenza in noi», sebbene «ricoperta come un nome dimenticato che ci si sforza di ricordare». «Intuizione accecata»: ricordo platonico, a patto di realizzare bene che «non ci si trova nella stessa dimensione spirituale» (MARCEL, 1979, p. 35). 10. IL PIÙ VICINO Nella Lettera sull’umanismo dove ci si chiede «cosa sia l’essere», dando una prima, enigmatica risposta – «è se stesso» – in contrasto con il tono sostantivo della domanda, Heidegger lo indica pure come «ilpiù-vicino». Marcel commenta quest’«ultima formula» così: «Heidegger esprime la stessa idea quando, nella stessa Lettera sull’umanismo, dice che l’uomo è il vicino (Nachbar) dell’Essere. Quali che siano le spiegazioni possibili per 274 Prof. Dr. Franco Riva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 274 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics attenuarne la portata, continua qui una sostantivazione spinta all’estremo nella quale vedrò sempre una deriva illecita» (MARCEL, 1979, p. 34). In Heidegger si scontrano domande e risposte. A domanda sostantiva seguono risposte evasive e antidefinitorie che vanno nelle direzioni dell’enigma («se stesso») o della vicinanza («il-più-vicino»), irrigidite tuttavia nella forma bloccata e frontale della domanda che le guida. Se si vuole sfuggire allo spiegare e all’afferrare della tecnica, per Marcel bisogna lasciare le domande sul che cosa, sull’oggetto ideale. Presenza dell’Essere e risposte eversive avvicinano Heidegger e Marcel nello stesso momento in cui il domandare scava la distanza, perché convoca ancora l’Essere al tribunale categoriale di un «che cosa». Opere d’arte come la veduta di Delft di Vermeer, o il Quartetto n. 13 di Beethoven, si possono in effetti considerare delle «risposte a un certo appello (Anruf)». D’altra parte, non ha neppure «alcun senso domandarsi chi lanci questo appello, perché siamo oltre l’ordine del chi (die Ordnung des Wer)» (MARCEL, 1979, pp. 31-32). Registrare accordi e disaccordi è un punto di ripartenza, non d’arrivo. Accanto a quella tra domanda e risposta, Marcel accenna per Heidegger a un’altra, più forte tensione sul versante impervio dell’essere vicino e della prossimità, espressioni usate, a soggetti invertiti, sia per l’Essere («il-più-vicino») che per l’uomo («il vicino dell’Essere»); e non è detto resti identico il significato. Nel caso dell’Essere, «ilpiù-vicino» è pur sempre la risposta a un «che cosa». Nel caso dell’uomo, «il vicino dell’Essere» compromette e smorza in parte la domanda sostantiva («è») a favore di un’itineranza radicale cui si è convocati (il «Pastore dell’Essere»). La prima tensione (domande sostantive e risposte evasive) si fissa in una «deriva illecita». Con la seconda (il «vicino») Marcel fa scoppiare l’incomprensione della prossimità come struttura alternativa di pensiero. Segnalato il problema fin dal 1945, La mia relazione con Heidegger (1957) ritorna sulla figura dell’essere-per-la morte (Sein-zum-Tode) in Essere e tempo, bandiera stessa dell’accordo/disaccordo tra Marcel e Heidegger. A parte i dubbi sul significato esatto dell’espressione, Marcel osserva (come poi Lévinas) che Heidegger «non si preoccupa in fondo che della morte propria (des eigenen Todes)», in prima persona, e non della morte d’altri, quando per lui «la morte dell’essere amato» si colloca «in primo piano». La figura solitaria e propria dell’essere per la morte porta di nuovo all’«assenza di una vera apertura ad altri» in Heidegger, che su questo dipende da posizioni idealistiche che, in generale, ha «senza dubbio oltrepassato» (MARCEL, 1979, p. 38, 275 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics cfr. pp. 37-38; MARCEL, 1945, pp. 93-94). Bisogna intendersi. La questione dell’essere per la morte (propria) non viene usata per rapide accuse moralistiche o per giudizi generici, anche perché «l’essere al mondo implica una pluralità» indiscutibile che impedisce di vedere in Essere e tempo qualsiasi cosa che «assomigli a un solipsismo». L’assenza di un’autentica apertura ad altri riguanda invece ancora una caparbia distonia per una filosofia che da un lato «parla così spesso di Erschlossenheit o di Entfernung quando si tratta della verità», ma che, dall’altro lato, non si è «in nessun modo interessata a ciò che si potrebbe chiamare “l’apertura ad altri” o, più in concreto, all’amore». Come documenta peraltro il tentativo heideggeriano di Biswanger per provare a rendergli ragione (MARCEL, 1979, pp. 35-36). 11. DIFFERENZE ESSENZIALI Di rimbalzo, Marcel richiama gli approcci concreti all’Essere, mette in linea diretta «l’apertura ad altri» e l’«amore» (sfondo anche cristiano), rimette in gioco il Sacro. Facendo però deflagrare come una bomba la contraddizione delle contraddizioni per una filosofia dell’apertura che, di fronte all’altro, non prevede aperture. Mentre del «prossimo» (Nachbar), il vicino, Heidegger «parla spesso in quanto neutro», il «prossimo come persona gli resta pressoché estraneo [étranger]», disconosciuto. Si «può temere che condanni così» proprio l’apertura («fenêtre») in quanto apertura, il «cammino più diretto che può dare accesso al Sacro» (MARCEL, 1979, p. 38). E questo nonostante il suo «eroico tentativo» di recuperarlo a un «Occidente che tende verso una specie di desacralizzazione collettiva». A tutto vantaggio, s’intende, «dello sviluppo iperbolico delle tecniche» su cui potremmo «incontrarci di nuovo», fatto salvo che è «molto difficile credere che una meditazione puramente astratta sull’Essere e sull’Essente possa servire a tale recupero» (MARCEL, 1979, pp. 36-37). La critica del pensiero oggettivante deve aprirsi all’altro ed evitare l’astratto. A «noi sono direttamente accessibili degli esseri», non l’Essere in sé, esseri che vi partecipano casomai, «e il filosofo ha il dovere d’interrogarsi sul senso in cui questo partecipare deve essere pensato». Perché «come non siamo in grado di vedere la luce, ma solo delle superfici illuminate, così non è e non può essere l’Essere, parlando in senso proprio, che è effettivamente presente». Accesso indiretto all’Essere, approcci concreti, finestra aperta, gli esseri. Marcel si lamenta della lingua francese imprecisa e inadeguata nel merito (MARCEL, 1979, pp. 37-38; cfr. MARCEL, 1950, 276 Prof. Dr. Franco Riva Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 276 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics pp. 7-10) e coinvolge nella critica Lavelle e Maritain. La tradizione del «che cosa» dunque, ma al contrario e da una sponda heideggeriana, sfruttando sia l’interrogare, corretto se si dirige sul partecipare e non sul che cosa, sia la metafora della Lichtung. Si può vedere ciò che partecipa della luce, non la luce in sé. Tutto quanto Marcel dice di Heidegger, del rapporto con lui e del 1927 muove un passo doppio che articola il racconto polemico e quello alternativo. Non c’è dubbio che un’ampia serie di icone verbali di prossimità vadano nel senso del racconto polemico nei confronti di esistenzialismo, Sartre, mode e manualistica, per riabilitare la vicinanza in nome dell’Essere sconvolgendo le parentele: «accordo fondamentale» sulla verità come apertura e sullo Zuspruch des Seins (MARCEL, 1951, I, pp. 82-83; MARCEL, 1968, pp. 29-31), «sensibilità comune», «prossimità metafisica» (MARCEL, 1968, pp. 9091), rapporto preferenziale, «vicinanza», «coincidenza», «parentela» e «influenza» (MARCEL, 1979, p. 33). Nello stesso tempo l’accordo segna il «disaccordo» con un’altra serie di icone verbali pari e contrarie a quelle di prossimità. «Accordo e disaccordo» con cui Marcel sigilla intenzionalmente La mia relazione con Heidegger. Non però come un escamotage dialettico per salvare l’uno e l’altro, o fare un po’ di galateo a buon mercato. Il disaccordo rompe sul serio, apre una frattura che non si ricompone. Dalla parte del «disaccordo» stanno allora «precauzioni» (MARCEL, 1951, I, p. 69), «distanze», «differenze essenziali» per di più rincarate di dose: «tutto un insieme» (MARCEL, 1979, pp. 27-28, 35), «opposizione», «contestazione» e «nessuna coincidenza». Al punto che Ricoeur, soddisfatto del dialogo con Marcel sul racconto polemico che lo riavvicina ad Heidegger, sente come il pericolo del racconto alternativo, l’esigenza di «minimizzare l’opposizione e ridurla» entro un’ermenutica, e suggestiva, «differenza nel gioco delle metafore: quelle di Heidegger sono greche, le vostre bibliche» (RICŒUR, MARCEL, 1968, p. 92). Aletheia per Heidegger, amore, speranza, dono per Marcel. Non fosse che anche il linguaggio esalta disaccordo e «differenze essenziali». 12. ALTRI, NON ESTRANEO Accordo fondamentale, accordo disaccordo, differenze essenziali. Il vicino, il prossimo. L’appello dell’Essere. Apertura cui si partecipa, prima ancora di aprirsi. Colloquio a cui si è chiamati, che inizia nella risposta. Il dativo, più che il nominativo. Non cosa, non chi – se diventa oggetto, cosa pensata. Pensieri di un al di là, più che dell’insistere. Superfici illuminate, non luce. Sacro, non astratto. Personale, non 277 1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics neutro. Esseri, non Essere. Altri, non estraneo. Lasciando sullo sfondo i contesti discorsivi d’occasione, a rileggere con attenzione le parole che mordono l’accordo disaccordo con Heidegger si resta un po’ impressionati da altre assonanze che spiegano come mai, del 1927 di Marcel, fosse già in corso una lettura alternativa rispetto al racconto polemico contro Sartre e l’esistenzialismo. Per Buber il significato del Giornale metafisico è altra cosa, è Io e Tu, è polemica contro l’Esso e il Neutro, è principio dialogico, di cui Marcel ha colto «il punto di vista centrale e le sue relative conseguenze» (BUBER, 1954). Per Lévinas «l’essere qui non è coscienza di sé, è rapporto con l’altro da sé e risveglio»; e offre come prova un passo del Giornale metafisico ritenuto «essenziale» perché denuncia, senza mezzi termini, il mito filosofico dell’autarchia, della sufficienza di sé a se stessi, dell’essere che insiste su di sé (LEVINAS, 1975: inaugura l’Association Gabriel Marcel a Parigi). Resta poco spazio per i racconti polemici e i loro strascichi che, proprio come l’esistenzialismo rifiutato, sono ossessionati, sia pure a parti invertite, dalla coppia esistenza/Essere. Vi s’intreccia un racconto alternativo in vista di una filosofia altra come la si voglia chiamare, del «dialogo» (Buber), di una «nuova razionalità» (Lévinas), di un altro pensiero (RIVA, in BUBER, LEVINAS, MARCEL, 2016; cfr. RIVA, in LEVINAS, MARCEL, RICŒUR, 2008). Nel 1927 escono Essere e tempo di Heidegger e il Giornale metafisico di Marcel. Contingenza per contingenza, colpisce un rincorrersi a distanza di parole simili («centrale», «essenziale») che, a partire dall’altro, suggeriscono un significato ben diverso di questa data tanto rispetto al racconto esistenzialista, quanto a quello polemico che lo contesta in nome dell’Essere. Buber, 1954: Marcel ha colto «il punto di vista centrale» del principio dialogico. Marcel, 1957 (1979): «differenze essenziali» con Heidegger. Levinas 1975: «testo essenziale». REFERÊNCIAS BUBER, M. Per la storia del principio dialogico (1954), in Il principio dialogico e altri saggi, a cura di POMA A. Cinisello B: Paoline, 1997. 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Università Cattolica di Milano RIASSUNTO Ridare vita alle ombre esangui del passato”, che torna a vivere nel presente facendosi nuovamente “carne e sangue”. Le citazioni di Dilthey e von Wartenburg delimitano il campo in cui, per l’Heidegger di Sein und Zeit, si gioca la partita decisiva della storicità del Dasein. Per affondare il colpo, egli trova la stoccata vincente nelle frecciate che Nietzsche scaglia contro lo storicismo nella seconda delle Considerazioni inattuali – Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben –. In lui, Heidegger intravede un autorevole alleato per instaurare un rapporto autentico con la storia. Essa non dovrà più essere confinata in un passato museale, tanto grazioso quanto improduttivo per la vita: uscire dalla paralisi della tradizione vuol dire scrollarsi di dosso il peso del passato e sbloccare il presente e il futuro. Solo così l’uomo sarà libero e la storicità recupererà il suo senso più elevato, al servizio della vita. Al di là delle differenze d’intento e di registro ermeneutico-stilistico, la ricostruzione di un dialogo a distanza tra i passi di Sein und Zeit e le considerazioni nietzscheane offrirà spunti interessanti per pensare alla storia e al suo rapporto, sempre in bilico tra il vitale e il patologico, con l’esistenza umana. PAROLES CHIAVE Nietzsche; Heidegger; Sein und Zeit; storia; vita. ABSTRACT To rivive the dim shadow of the past“, returning to life in the present world in „flesh and blood“. These quotations from Dilthey and von Wartenburg indicate some landmarks of Heidegger’s attempt to think historically the Being. In fact, in Sein und Zeit Heidegger drew inspiration from Nietzsche’s cutting remarks against the burden of Historicism in his Second Untimely Meditation, Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben. In Heidegger’s eyes Nietzsche is a masterful precursor of a genuine relation between life and 221 E-mail: scolari_paolo@libero.it Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo 281 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics history. Normally seen as a glorious but infertile burden, withdrawn in a museum, history needs to be linked again to life, as a source for the present and above all for the future. Such attempt can pave the way to a philosophical liberation and bring back history in the service of life. Despite different styles and goals, Nietzsche and Heidegger can be read once again in order to make vital the inevitable and necessary relation of life to history, always risking to be pathological. KEYWORDS Nietzsche; Heidegger; Sein und Zeit; history; life. «Ancora nessuna generazione aveva visto uno spettacolo sterminato come quello che oggi mostra la scienza del divenire universale, la storia; certo però essa lo mostra con la pericolosa audacia del suo motto: fiat veritas pereat vita».F.Nietzsche, Sull’utilità e il danno della storia per la vita «La vita è storica nelle radici stesse del suo essere e, in quanto effettivamente esistente, si è già sempre decisa o per la storicità autentica o per l’inautentica». M.Heidegger, Essere e tempo. INTRODUÇÃO “Ridare vita alle ombre esangui del passato”, il quale torna a vivere nel presente facendosi nuovamente “carne e sangue”. Le citazioni dei due amici e studiosi Wilhelm Dilthey e Paul Yorck von Wartenburg delimitano il campo dentro cui, per l’Heidegger di Sein und Zeit, si gioca la partita decisiva della storicità del Dasein. Due binari sui quali scorrono parallele le riflessioni heideggeriane sul senso del tempo e della storia. Per affondare il colpo, Heidegger ha bisogno però di qualcosa di più pungente e incisivo. Egli trova la stoccata vincente nelle irriverenti frecciate che Nietzsche scaglia contro lo storicismo nella seconda delle Considerazioni inattuali. Poche pagine, quelle di Heidegger, che celano in realtà un profondo debito nei confronti di Nietzsche, nel quale intravede un autorevole alleato per pensare un rapporto autentico con la storia. Per entrambi, essa non sarà più confinata in un passato museale, tanto grazioso da vedersi quanto improduttivo per la vita dell’uomo. Uscire dalla paralisi della tradizione vuol dire scrollarsi di dosso lo schiacciante peso del passato e sbloccare le altre due dimensioni della temporalità, il presente e il futuro. Solo così l’uomo riuscirà a sentirsi davvero libero e la storicità saprà recuperare il suo senso più elevato, al servizio della vita. Al di là della differenze 282 Prof. Dr. Paolo Scolari Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 282 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics d’intento e di registro ermeneuticostilistico, la ricostruzione di un ipotetico dialogo a distanza tra gli intensi passi di Sein und Zeit e le provocanti considerazioni nietzscheane offre spunti interessanti per pensare alla storia e al suo rapporto, sempre in bilico tra il vitale e il patologico, con l’esistenza umana. 1. HEIDEGGER INTERPRETE DI NIETZSCHE Martin Heidegger, si sa, è senza dubbio uno dei più famosi e acuti esegeti di Nietzsche. Fra tutti coloro che nel Novecento ne hanno subito il grande fascino, è sicuramente quello che, nel corso del proprio itinerario speculativo, ha ingaggiato con lui un ininterrotto e fecondo dialogo, infarcendo le proprie opere di continui richiami. Dalla sua tesi di abilitazione per la libera docenza su Duns Scoto (1916) passando per Essere e tempo (1927) – ricostruisce Franco Volpi –, la presenza di Nietzsche si fa sempre meno fugace, acquisendo progressivamente uno spessore teoretico significativo destinato ad accrescersi progressivamente. È infatti a partire dagli anni Trenta, dopo la Kehre, che Nietzsche esce dallo sfondo e assume nel pensiero heideggeriano piena evidenza Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo tematica, diventando d’ora in avanti un suo costante e decisivo punto di riferimento. Addirittura, dal 1936/1937 al 1940, Heidegger tenne lezione quasi esclusivamente su di lui, in un confronto serrato che sfocerà nella monumentale opera intitolata lapidariamente Nietzsche. Essa riunisce le ricerche e i corsi che egli svolse tra il 1936 e il 1946 presso l’Università di Friburgo e fu pubblicata in due tomi quindici anni dopo, nel 1961 (cfr. FERRARIS, 1989, pp. 99-100; cfr. VOLPI, 2005, pp. 83-107; cfr. KAPFERER, 1988, pp. 193-215; cfr. MÜLLERLAUTER, 1998, pp. 17-25). L’interpretazione di Heidegger è diventata a tutti gli effetti una pietra miliare della filosofia contemporanea, imprescindibile passaggio obbligato per chiunque voglia approcciarsi al pensiero nietzscheano. In quest’opera egli intesse un profondo dialogo con Nietzsche, leggendolo come l’ultimo metafisico partorito dall’Occidente. La sua filosofia non è un’estemporanea voce fuori dal coro, bensì incarna l’ultimo e più accecante bagliore della metafisica occidentale, parabola iniziata oltre duemila anni fa con Platone e giunta ora al suo culminante declino. Una metafisica, agli occhi di Heidegger, destinata inesorabilmente a implodere, ma che, prima del proprio tramonto e 283 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics oltrepassamento, si fa udire ancora una volta nel canto del cigno di Nietzsche, sua estrema ed esasperata metamorfosi. Nella ricostruzione della sua filosofia, Heidegger individua nella sentenza “Dio è morto” la parola terminale della metafisica, spartiacque tra il suo compimento nel nichilismo e un nuovo inizio del pensiero. Questa espressione si declina in «cinque titoli capitali» – «nichilismo, trasvalutazione di tutti i valori, volontà di potenza, eterno ritorno dell’uguale, superuomo» –, ovvero cinque pilastri che Heidegger rintraccia all’interno del corpus nietzscheano e sui quali edifica la propria impalcatura teoretica (cfr. HEIDEGGER, 19941, p. 563-573). Il complesso pensiero nietzscheano, tuttavia, non può esaurirsi in questi cinque capisaldi. Heidegger stesso sembra esserne consapevole, almeno in un punto. Vi è infatti un’ulteriore, meno nota sfaccettatura del suo interesse per Nietzsche. Per trovarla bisogna andare a ritroso, risalendo di qualche anno. C’è una data precisa, precedente al 1930: è il 1927, anno in cui pubblica Essere e tempo, nel quale il suo nome compare con il contagocce. Tra i pochissimi riferimenti, il più articolato è sicuramente quello che riguarda il giovane Nietzsche, precisamente la seconda delle sue Considerazioni inattuali, intitolata Sull’utilità e il danno della storia per la vita. Le pagine sono davvero poche, ma si riesce comunque a percepire fra le righe una sincera passione. Heidegger sembra trovare in Nietzsche un buon compagno di viaggio e un autorevole punto d’appoggio per le sue teorie sulla storicità del Dasein, guardando a lui – afferma Johann Figl – come precursore della propria impresa di fondere la storia nella storicità dell’Esserci (FIGL, 1981-1982, p. 419)222. 2. CITAZIONI NIETZSCHEANE In Essere e tempo, il nome di Nietzsche è riportato in tutto tre volte: le prime due non assumono particolare rilevanza, essendo per lo più estemporanee citazioni o note, mentre nella terza il discorso si fa più articolato. Per imbattersi nel primo rimando bisogna portarsi nella seconda sezione dell’opera, – Esserci e temporalità – al § 53 del primo capitolo, paragrafo in cui Heidegger sta argomentando «Sulla seconda Inattuale Heidegger tornerà anche dopo Essere e tempo. Nel semestre invernale 1938-39 le riserva un’esercitazione che visto l’elevato numero di partecipanti finisce piuttosto con l’assumere il carattere di un corso di lezioni» (BRUSOTTI, 2006, p. 126). 284 Prof. Dr. Paolo Scolari 222 Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 284 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics attorno all’essere-per-la-morte. Si tratta di una brevissima citazione, estrapolata dal penultimo capitolo del primo libro di Così parlò Zarathustra 223 intitolato Della libera morte, dalla quale si possono desumere due semplici cose. Da un lato si capisce che Heidegger ha sicuramente letto l’opera di Nietzsche, dall’altro si nota come, in questo frangente, voglia utilizzare le parole nietzscheane quasi per conferire autorità al discorso che sta facendo circa il rapporto tra l’esistenza umana e la morte (cfr. TAMINIAUX, 1989, pp. 63-67). L’altro richiamo si trova una decina di pagine dopo, in una nota alla fine del § 55 del secondo capitolo della medesima sezione, nella quale Heidegger, anche se solo di passaggio, menziona Nietzsche come fondamentale interprete della coscienza umana, punto di riferimento per una riflessione su di essa. Mentre sta parlando dei fondamenti ontologico-esistenziali della coscienza, al termine del paragrafo «Anticipandosi, l’Esserci si garantisce dal cadere dietro a se stesso e alle spalle del poter-essere già compreso, e dal “divenire troppo vecchio per le sue vittorie” (Nietzsche)» (HEIDEGGER, 19942, p. 395); «Certi invecchiano troppo, anche per le proprie verità e vittorie» (NIETZSCHE, 2005, p. 81). 223 Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo appunta in nota le opere di alcuni autori di fine Ottocento da «tener presenti» per una riflessione sulla coscienza – M. Kähler, A. Ritschl, H.G. Stoker –, «oltre alle interpretazioni di Kant, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche», considerate, appunto, basilari 2 (HEIDEGGER, 1994 , pp. 405-406, nota b). Da ciò si evince la grande considerazione che Heidegger, in sintonia con il pensiero europeo dei primi decenni del Novecento, ha per la figura di Nietzsche, affiancato già, dopo nemmeno trent’anni dalla sua scomparsa (1900), ai grandi filosofi della modernità. 3.OSCILLAZIONI HEIDEGGERIANE Per l’ultimo e più argomentato riferimento bisogna giungere alle pagine finali di Essere e tempo, al § 76 del capitolo quinto – Temporalità e storicità –. Qui Heidegger dimostra di conoscere un testo del giovane Nietzsche, in quanto l’intero paragrafo è costruito attorno ai concetti chiave della Seconda considerazione inattuale, dedicata alla storia. Egli intesse un dialogo ravvicinato con Nietzsche, rileggendolo con le proprie lenti concettuali e rintracciando nell’Inattuale argomenti che avvalorino le proprie idee sulla storicità dell’Esserci. 285 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Heidegger concorda con la tesi portante dell’opera nietzscheana, secondo la quale l’eccesso di storia è una delle più gravi malattie che affliggono l’uomo moderno. Questo, vivendo continuamente legato al ricordo, manifesta una condizione patologica che lo porta all’alienazione dalla propria umanità. Una dannosa sovrabbondanza di storia incarnata dallo storicismo, corrente che, in sinergia con lo scientismo positivistico, nella seconda metà dell’Ottocento sta prendendo sempre più piede. Anche Heidegger ritiene che lo storicismo rischi di soffocare l’autentica storicità dell’Esserci. «La comparsa del problema dello “storicismo”» rappresenta «una chiara indicazione del fatto che la storiografia tende ad estraniare l’Esserci dalla sua storicità autentica». Questa, dopotutto, «non abbisogna necessariamente della storiografia» (HEIDEGGER, 19942, p. 565; cfr. VATTIMO, 1988, pp. 2830). Facendo diretto riferimento alla «seconda delle Unzeitgemäẞe Betrachtungen (Considerazioni inattuali, 1874)», Heidegger gioca con il titolo di quest’opera, che recita: Sull’utilità e il danno della storia per la vita. Egli esordisce elogiando stringatamente l’idea che sorregge l’intero libello di Nietzsche, il quale «si è reso conto dell’essenziale circa “i vantaggi e gli svantaggi del sapere storiografico per la vita” e lo ha esposto in modo chiaro e persuasivo». Subito dopo ne ribadisce l’interrogativo, facendolo suo e rivestendolo del proprio linguaggio. Si chiede dunque con Nietzsche se «il sapere storiografico possa essere o “di vantaggio” o “di svantaggio” “per la vita”» dell’uomo, affermando che la «possibilità» della dialettica utilità/danno «si fonda nel fatto che la vita è storica nelle radici stesse del suo essere e che, di conseguenza, in quanto effettivamente esistente, si è già sempre decisa o per la storicità autentica o per l’inautentica» (HEIDEGGER, 19942, pp. 565-566). Nel tipico lessico heideggeriano – autenticità/inautenticità –, il perentorio aut aut di Nietzsche è qui confermato. Poiché l’essere umano non può esulare dal vivere in una condizione di totale storicità, o la storia serve alla vita, e allora sarà autentica, oppure, se l’esistenza diventa succube della storiografia, sfocerà in qualcosa di inautentico. Heidegger continua con l’analisi delle «tre specie di storiografia» individuate da Nietzsche: «la monumentale, la antiquaria e la critica». Nietzsche espone nella prima parte dell’Inattuale «tre specie di storia», le quali «corrispondono» ad 286 Prof. Dr. Paolo Scolari Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 286 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics altrettanti modelli antropologici: la «storia monumentale» per l’uomo che «è attivo e ha aspirazioni», la «storia antiquaria» per colui che «preserva e venera», la «storia critica» per chi «soffre e ha bisogno di liberazione» (NIETZSCHE, 1998, p. 16). La prima è tenuta in considerazione dall’«uomo che vuole creare cose grandi e ha bisogno del passato», la seconda è «coltivata da chi ama perseverare nel tradizionale e in ciò che è venerato da gran tempo», la terza, infine, è una storia che «giudica e condanna», di grande aiuto a «colui al quale una sofferenza presente opprime il petto e che, a ogni costo, vuol gettar via il peso da sé» (NIETZSCHE, 1998, p. 23). Qui, tuttavia, i termini con cui Heidegger cita Nietzsche sono altalenanti: l’iniziale vena di approvazione ed entusiasmo pare lasciare il posto a una lieve valutazione di demerito e reticenza. Nietzsche avrebbe «distinto» i tre modelli di storia «senza giustificare esplicitamente la necessità di questa triplicità e il fondamento della sua unità». Dopotutto gli interessi dei due filosofi sono differenti. Nietzsche dal canto suo vuole polemizzare bruscamente con lo storicismo che schiaccia gli uomini con il peso della storia, Heidegger desidera invece sottolineare la storicità dell’essere umano per aprire nuove prospettive Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo ontologiche. Per questo motivo troverà quella giustificazione mancante, che nella divisione nietzscheana non poteva esserci in alcun modo, marcando significativamente in corsivo come «la triplicità della storiografia sia implicita nella storicità stessa dell’Esserci». Solo fondando la triplice divisione della storia sulla storicità dell’esistenza umana si arriverà a «comprendere in qual modo la storiografia autentica debba costituire l’unità concreta ed effettiva di queste tre possibilità» (HEIDEGGER, 19942, p. 566). Heidegger, in sostanza, rilegge Nietzsche attraverso le proprie categorie, secondo la tipica strategia appropriativa che lo contraddistingue – come fa notare Franco Volpi –, cioè mirando non tanto alla ricostruzione critica del pensiero nietzscheano quanto alla radicalizzazione della logica dei problemi da esso sollevati ai fini del proprio progetto filosofico. Anche se, nell’ultima riga del capoverso, sembra quasi voler recuperare in extremis il debito nei suoi confronti, provando a ritirare quanto appena detto e attribuendogli un’ermeneutica della reticenza. Per Heidegger, Nietzsche ha intuito e colto il problema, tanto che, afferma laconicamente, «l’inizio della sua Considerazione fa supporre che egli comprendesse molto di più di quanto abbia detto». Forse però – 287 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics mette in evidenza Brusotti – solo per sentirsi autorizzato a trascinare l’Inattuale verso la propria visione ontologica, dandole una struttura più sistematica rispetto a quella conferitale dallo stesso Nietzsche (HEIDEGGER, 19942, p. 566; cfr. VOLPI, 2005, p. 87; cfr. BRUSOTTI, 2006, p. 135). 4. UNA STORIA PER LA VITA Il titolo del paragrafo 76 di Essere e tempo è emblematico e sembra già portare in grembo evidenti accenti nietzscheani: «L’origine esistenziale della storiografia (Historie) a partire dalla storicità dell’Esserci». In questa intestazione si trovano entrambi i componenti messi in relazione da Nietzsche nella sua Seconda Inattuale: la storia, intesa come scienza (Historie), e l’uomo – per Heidegger l’Esserci (Dasein) –. L’impronta che egli vuole conferire a questi due elementi è dunque di chiara matrice nietzscheana. La scienza storica non ha senso se non ha l’uomo alla sua origine: «come ogni scienza», afferma all’inizio del paragrafo, anche la storia è «un modo d’essere dell’Esserci» 2 (HEIDEGGER, 1994 , pp. 560-561). Nietzsche espone questa idea nella Prefazione della Seconda Inattuale, dove tesse il fil rouge che attraverserà l’intera opera. Egli osserva attentamente la «così potente corrente storica delle ultime due generazioni, specialmente fra i Tedeschi». Il suo sentirsi «inattuale» gli fa avvertire «come danno, colpa e difetto dell’epoca qualcosa di cui l’epoca va a buon diritto fiera», ovvero «la sua formazione storica». Gli uomini della modernità «soffrono di una febbre storica divorante», un «vizio ipertrofico» che rischia di mandare in «rovina» un intero «popolo». Affinché sprigioni tutto il suo «valore», la storia deve uscire da una dimensione documentaristicoarchiviale per essere in grado di rinascere produttivamente nell’attualità del presente, stando sempre in un imprescindibile rapporto con l’extra-storico, cioè con la vita. Una relazione a senso unico, in cui è la «storia» a «servire la vita», e non viceversa. Se infatti la vita è succube della storia si creerà «un’istruzione fiacca e senza vivificazione», in cui «la vita intristisce e degenera». Egli è fermamente convinto che gli uomini non abbiano bisogno di una storiografia come mera disciplina esercitata da un «ozioso raffinato nel giardino del sapere», né tantomeno una narrazione storica che serva quasi da «abbellimento della vita egoistica». Proprio nella sua «epoca», invece, essi hanno sempre più «bisogno di una storia per la vita» (NIETZSCHE, 1998, pp. 3-4; cfr. FERRARIS, 1989, pp. 31-33). 288 Prof. Dr. Paolo Scolari Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 288 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics Al termine dell’Inattuale, quasi per concludere così come aveva iniziato e circoscrivere tutto quanto detto all’interno di una cornice, Nietzsche diagnostica questo «male terribile» di cui «soffre» la civiltà moderna: una vera e propria «malattia storica», che si manifesta in un «eccesso di storia» e il cui tragico esito è «l’intaccamento della forza plastica della vita». Un «sapere storico» che «riempie la mente» dell’uomo «di un’enorme quantità di concetti ricavati dalla conoscenza dei tempi e dei popoli passati», ma «non dall’intuizione della vita». Il punto di vista va invece capovolto. È la vita che «deve dominare sulla scienza: essa è il potere più alto e dominante», non la storia, e una «conoscenza storica che non presuppone o soffoca la vita distrugge nel contempo se stessa» (NIETZSCHE, 1989, pp. 92, 94, 96). 5. UNA ESISTENZIALE STORIA Heidegger sembra sposare la tesi nietzscheana, innestandosi nella sua prospettiva. Anche per lui, infatti, la storia deve sempre avere una provenienza esistenziale e, a questa «origine», non deve mai smettere di guardare, pena lo smarrimento dell’umanità dell’umano. È la storia, secondo Nietzsche, che dipende dalla vita Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo dell’uomo, mai viceversa. Essa deve essere in funzione dell’esistenza, in quanto, conferma Heidegger, l’Esserci possiede una propria e imprescindibile dimensione di storicità che lo fa essere temporale nel fondamento del suo essere stesso. La sua indagine, dunque, verte a «mostrare l’origine esistenziale della storiografia con l’intento di rendere ancora più chiara la storicità dell’Esserci e il suo radicamento nella temporalità» (HEIDEGGER, 19942, pp. 560-561; cfr. FABRIS, 2000, pp. 191-192; cfr. TAMINIAUX, 1989, pp. 68-75). Nell’introduzione all’edizione italiana di Essere e tempo, Pietro Chiodi osserva giustamente che la tesi fondamentale di Heidegger, influenzato da Dilthey, è che «non la storiografia fonda la possibilità della storicità, ma la storicità originaria e costitutiva dell’Esserci è il fondamento della storiografia» (HEIDEGGER, 19942, p. 15). Poiché, prosegue Heidegger, «l’essere dell’Esserci è fondamentalmente storico, ogni scienza sarà coinvolta in questa storicità». La medesima cosa vale quindi anche per la «storiografia», la quale però «presuppone la storicità dell’Esserci in un modo suo proprio e particolare». La storia infatti, rispetto alle altre scienze, è l’unica in cui si gioca l’intera dimensione dell’Esserci: essa non riguarda un oggetto come tutti gli 289 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics altri, bensì quell’ente che è storico per la stessa essenza, ovvero l’Esserci. Il rapporto è gerarchico, di subordinazione. Prima viene l’Esserci, poi la storiografia. «Il conoscere storiografico – mette in evidenza – non è storico soltanto in quanto comportamento storico dell’Esserci, ma l’apertura storiografica della storia è in se stessa radicata nella storicità dell’Esserci e ciò in conformità alla sua stessa struttura ontologica» (HEIDEGGER, 19942, p. 561). Non c’è la storia da una parte e l’Esserci dall’altra: l’uomo è storia, e la storia può esistere solo ed esclusivamente in quanto si dà già come la sua dimensione costitutiva. Per Heidegger, inoltre, la storia non può ridursi all’attività scientifica dello storico di professione: «non si tratta di “ricavare” il concetto di storiografia dall’attività scientifica in atto oggi, oppure di assimilare quello a questa». In quanto l’«Esserci» stesso esiste storicamente, la storia può avere soltanto un’«origine esistenziale», proprio «a partire da quella storicità» (HEIDEGGER, 19942, p. 561). Anche per Nietzsche, «pensata come pura scienza, la storia sarebbe una specie di chiusura e liquidazione della vita per l’umanità. L’educazione storica è invece qualcosa che è salutare e promette futuro solo al seguito di una forte corrente vitale nuova, cioè solo quando viene dominata e guidata da una forza superiore e non quando è essa stessa a dominare e a guidare. La storia, in quanto è al servizio della vita, è al servizio di una forza non storica, e perciò non potrà né dovrà diventare mai, in questa subordinazione, pura scienza» (NIETZSCHE, 1998, pp. 15-16, 31). 6. RICORDARE/ OBLIARE. IL PESO DEL PASSATO Per forza di cose, quando si parla di storia si ha a che fare con il passato. Ispirandosi al Canto notturno di un pastore errante dell’Asia di Giacomo Leopardi, Nietzsche è ben consapevole che, spesso, la condizione passata può arrecare danni irreversibili all’esistenza umana. Essa caratterizza sì l’uomo, differenziandolo dagli animali, ma gli fa subito pagare il prezzo di questa superiorità, incastrandolo in una situazione a dir poco paradossale. Egli, mentre «si vanta» attraverso la memoria di distinguersi dall’animale, per colpa di questa stessa facoltà vorrebbe trasformarsi proprio in quell’essere sopra il quale si era tanto orgogliosamente elevato. Infatti, se «il gregge che pascola è attaccato all’istante e non sa cosa sia ieri e cosa oggi», l’umano «non può dimenticare ed è continuamente legato al passato» (NIETZSCHE, 290 Prof. Dr. Paolo Scolari Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 290 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics 1998, p. 6; cfr. COLLI, 1980, p. 49). Il ricordo, che per la bestia non esiste, provoca un lancinante dolore all’uomo, portandolo addirittura a provare «invidia» per la condizione animale. Il peso delle cose passate grava sulla sua esistenza e lo tiene imprigionato: «la catena del passato corre con lui e, per quanto lontano e rapidamente egli corra», continuerà ovunque a seguirlo, rendendolo eternamente infelice. Gli avvenimenti, soprattutto quelli più tragici, «tornano» quotidianamente «come spettri» a «turbare» la sua esistenza: ogni volta che dice «“mi ricordo”» prova dolore e «invidia l’animale che subito dimentica». Mentre «l’animale vive in modo non storico, l’uomo resiste sotto il grande e sempre più grande carico del passato: questo lo schiaccia a terra e lo piega da parte; appesantisce il suo passo come un invisibile e oscuro fardello. Con la parola “c’era”, lotta, sofferenza e tedio si avvicinano a lui, per rammentargli che in fondo la sua esistenza è qualcosa di imperfetto che non può essere mai compiuto. L’esistenza è solo un ininterrotto essere stato, una cosa che vive del negare e consumare se stesso, del contraddire se stessa» (NIETZSCHE, 1998, p. 7; cfr. MAZZARELLA, 1983, pp. 33-35). In questa prospettiva, la storia – afferma Mazzarella – non è Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo altro che la creazione di un orizzonte nell’esistenza umana, una sottile e delicata linea di confine che delimita “fin dove” il passato può irrompere a dare vita al presente senza annichilirlo (MAZZARELLA, 1983, p. 39). In effetti, quando si relaziona con il passato la vita umana oscilla pericolosamente, in un precario equilibrio. Se «per la forza di usare il passato per la vita e di trasformare la storia passata in storia presente, l’uomo diventa uomo», avviene anche il contrario, ovvero che «in un eccesso di storia l’uomo viene meno». Per Nietzsche l’uomo non può vivere continuamente legato al proprio passato, pena l’esserne tragicamente schiacciato e condurre una vita non libera: esso «deve essere dimenticato, se non vuole diventare l’affossatore del presente». La più grande «felicità» per l’uomo risiede proprio nel «poter dimenticare tutte le cose passate», ovvero «la capacità di sentire in modo non storico». E ancora, «come per la vita di ogni essere organico ci vuole non soltanto luce, ma anche oscurità, è assolutamente impossibile vivere senza oblio». Se infatti «l’uomo volesse sentire sempre e solo storicamente e non riuscisse a dimenticare, sarebbe simile a colui che venisse costretto ad astenersi dal sonno» e andrebbe inesorabilmente verso la sua rovina 291 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics (NIETZSCHE, 1998, pp. 8, 10-11; cfr. BRUSOTTI, 2006, pp. 133-135). 7. APERTURA/POSSIBILITÀ. RIPENSARE IL PASSATO Heidegger, d’altro canto, vuole rivalutare il ruolo del passato, il quale non può esistere solamente come peso e condanna, bensì deve diventare apertura e possibilità. Poiché il «compito» della storiografia «consiste nell’apertura dell’ente storico» e quando si fa storia si ha a che fare con le cose passate, egli individua il compito specifico di quest’ultima nell’«apertura del “passato”». La storia «è possibile solo se il “passato” è già da sempre aperto». Non è una questione meramente tecnica, quasi si dovesse intraprendere una ricerca forsennata di documenti storici: «a prescindere dalla disponibilità o meno di fonti sufficienti per la rappresentazione storica del passato, bisogna che, in linea di massima, la storiografia trovi aperta innanzi a sé la via d’accesso al passato a cui deve ritornare» (HEIDEGGER, 19942, pp. 561-562). La chiave di volta della questione è l’esistenza dell’uomo. «Solo in quanto l’essere dell’Esserci è storico, cioè aperto al suo esserstato in virtù della temporalità estatico-orizzontale, la tematizzazione del “passato” ha via libera in seno all’esistenza». È l’essere umano, non la fonte storica, il garante dell’apertura. L’esistenza dell’uomo porta in sé questa dimensione storica che lo fa sporgere sul proprio trascorso e che, dunque, permette alla storia di squarciare il passato. Ciò può avvenire «perché l’Esserci – e solo esso –, insiste Heidegger, è originariamente storico: con l’Esserci effettivo, in quanto esserenel-mondo, c’è anche sempre il mondanamente-storico» (HEIDEGGER, 19942, p. 562). «Resti, monumenti, avanzi tuttora presenti»: tutto questo sembra «materiale storiografico per l’accesso al passato». Ma non basta «la raccolta, la scelta o il vaglio del materiale a determinare il ritorno al “passato”». Se alla base di tutto non si trova «l’esser storico dell’Esserci, cioè la storicità dell’essenza dello storiografo» non può darsi la storia. La storicità dello storico «fonda la storiografia come scienza fin nei comportamenti che sembrano più ovvii e di “mestiere”» (HEIDEGGER, 19942, pp. 562-563). Questa apertura esistenziale dell’essere può avvenire soltanto dove c’è possibilità. Senza di essa, in un mondo dove regna la necessità e tutto è già deciso in partenza, la storia non potrebbe darsi in alcun modo. Il Dasein, dopotutto, è il possibile per eccellenza: l’esistenza umana deve 292 Prof. Dr. Paolo Scolari Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 292 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics «aver luogo in conformità alla storicità autentica e alla corrispondente apertura dell’Esserci, cioè in base alla ripetizione, la quale comprende l’Esserci nella sua possibilità». Se l’uomo «è “autenticamente” reale solo nell’esistenza, la sua “fatticità” non si costituirà che nel deciso auto-progettarsi in un poter-essere che è stato scelto» (HEIDEGGER, 19942, p. 563). Poiché, continua Heidegger, «l’esistenza è sempre tale in quanto effettivamente gettata, la storiografia può aprire la silenziosa forza del possibile, tanto più decisamente quanto più semplicemente e concretamente comprende l’esser-essente-statonel-mondo a partire dalla sua possibilità» (HEIDEGGER, 19942, pp. 563-564). La storia ci parla dunque di una «possibilità essentestata effettivamente esistente». Comprendere il reale valore della possibilità e vivere all’interno di «una storicità effettiva ed autentica» vuol dire innanzitutto «non degradarla a pallido modello ultra-temporale», ma aprire la storia passata «in modo tale che, nella ripetizione, la “forza” del possibile irrompa nell’esistenza effettiva, cioè pervenga a se stessa nell’ad-venire dell’esistenza» (HEIDEGGER, 19942, p. 564). Sta di fatto che anche Nietzsche, a dispetto dalla sua incrollabile fede nella necessità del Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo divenire, quando parla di storia sembra se non altro intuire che in un mondo senza possibilità non solo non sarebbe pensabile il passato, ma nemmeno si potrebbe vivere il presente e progettare il futuro. Tutto risulterebbe irrigidito nell’assoluta necessità e la storia stessa non avrebbe alcun senso. La credenza nella possibilità invece, fosse pure per il ritorno di ciò che è stato, porterà l’uomo a «dedurre che la grandezza, la quale un giorno esistette e fu comunque una volta possibile, sarà perciò ancora possibile un’altra volta» (NIETZSCHE, 1998, p. 19). 8. L’UTILITÀ STORIA DELLA Forte di aver trovato un buon alleato, Heidegger affonda nelle sue argomentazioni battendo la strada percorsa da Nietzsche nella sua Inattuale. Ponendo in relazione fra di loro i tre archetipi di storicità – monumentale, antiquaria e critica – vuole mettere in luce sia l’utilità sia il danno che queste modalità di approcciarsi al sapere storico hanno nei confronti della vita umana. Attraverso le valutazioni dei vantaggi e dei rischi della storia, tenta quindi di edificare l’immagine di un uomo che non si arresti davanti alla dimensione passata ma che, mettendola continuamente in 293 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics discussione e transitando per il presente, si proietti su quella futura. Dietro le considerazioni di Heidegger riguardo alla storia monumentale si può senz’altro intravedere il movimento di fondo compiuto da Nietzsche. Secondo lui, questo tipo di storia è propria di «un uomo che ha bisogno di modelli, maestri e consolatori, e che non può trovarli nel presente». L’epoca attuale non riesce a offrire ai suoi abitanti alcun esempio di virtù, da cercarsi pertanto in un remoto passato. Per questo uomo la storia è una vera e propria «maestra» di vita – annota Nietzsche citando Polibio –, «che con il ricordo delle altrui sventure lo ammonisce a sopportare con fermezza i mutamenti di fortuna». La storia monumentale non si riduce alla «curiosità» di qualche «viaggiatore» o alla «meticolosità» di qualche «micrologo» che «si arrampica sulle piramidi dei grandi eventi del passato». L’uomo che fa uso della storia monumentale non indaga il passato fine a se stesso, quasi fosse un vanto personale o, peggio ancora, un modaiolo tentativo di evasione da una società decadente: «non desidera incontrare l’ozioso che, desideroso di distrazioni o di sensazioni, gironzola come fra i tesori artistici accumulati in una galleria». Egli si pone invece alla ricerca di «incitamenti a imitare e a far meglio, guardando al passato e usando la storia come mezzo contro la rassegnazione» (NIETZSCHE, 1998, pp. 16-17). Heidegger fa suo il lato positivo riscontrato da Nietzsche nella storia monumentale. Essa è indispensabile nell’esistenza autentica dell’uomo, in quanto gli consente, «nella ripetizione che si appropria del possibile, di conservare l’esistenza passata, a cui si era rivelata la possibilità ora compresa». «L’Esserci», infatti, si costituisce continuamente attraverso una dimensione storica e, «in quanto storico, è possibile solo sul fondamento della temporalità, la quale si temporalizza nell’unità estaticoorizzontale delle sue estasi». Vivendo in quest’orizzonte di storicità, l’essere umano «esiste come autenticamente adveniente nell’apertura decisa di una possibilità scelta». L’uomo «esiste storicamente» come possibilità e sperimenta su di sé quella che Heidegger chiama «situazione ermeneutica»: quando sceglie e «decide», esso diventa autentico e spalanca davanti a sé una dimensione futura. Un’«apertura ripetente» del passato, che avviene «ritornando decisamente su se stesso e ripetendo». Solo in questo gioco di rientro e reiterazione «l’Esserci sarà aperto alle possibilità “monumentali” dell’esistenza 294 Prof. Dr. Paolo Scolari Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 294 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics umana”» (HEIDEGGER, 19942, pp. 566-567). I benefici apportati dalla storia monumentale fanno da ponte per l’approdo al secondo modello. Il trapasso avviene in modo fluido e graduale, quasi a voler sottolineare la stretta continuità con il primo: «in quanto monumentale, la storiografia autentica è quindi “antiquaria”» (HEIDEGGER, 19942, p. 566). In effetti, il secondo archetipo proposto da Nietzsche ha molti punti in comune con il primo. Entrambi – attesta Eugenio Mazzarella commentando la Seconda Inattuale – garantiscono all’uomo un rapporto con il passato, quale dimensione costitutiva alla quale esso non può rinunciare. Un passato visto come forma vissuta ma ancora vivente, alla cui fonte sapientemente abbeverarsi per vivere e interpretare il presente (MAZZARELLA, 1983, p. 39). Per Nietzsche la storia antiquaria, nello specifico, è propria di «un uomo che custodisce e venera, che guarda indietro con fedeltà e amore, verso il luogo onde proviene, dove è divenuto. Coltiva con mano attenta ciò che dura fin dall’antichità, vuole preservare le condizioni nelle quali è nato per coloro che verranno dopo di lui – e così serve la vita». A questo uomo non interessano le grandi virtù del passato da imitare: il suo cuore si Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo rivolge invece «a ciò che è piccolo, limitato, decrepito e invecchiato», realtà quotidiane che «ricevono la loro propria dignità e intangibilità dal fatto che l’anima dell’uomo antiquario, che custodisce e venera, trapassa in queste cose e vi si prepara un nido familiare». Egli non va alla ricerca di modelli o di eroi che lo guidino contro il destino, bensì ama «la storia della sua città», la quale «diventa per lui la storia di se stesso» (NIETZSCHE, 1998, p. 24). 9. IL DANNO STORIA DELLA Con Nietzsche, Heidegger è consapevole che i vantaggi che la storia porta con sé possono rapidamente rovesciarsi nel loro opposto, ovvero in risvolti negativi molto dannosi dai quali bisogna guardarsi. Per la storia monumentale sarà ovviamente l’idolatria del passato e per quella antiquaria un tradizionalismo privo di anima. Per quella critica, sebbene resti un po’ implicita e sullo sfondo, uno sradicamento devitalizzante che assolutizza per contrasto il presente. Il primo insidioso pericolo appartiene alla storia monumentale e consiste nell’idolatrare il passato. L’uomo rischia di impantanarsi nelle sabbie mobili di un epoca remota tanto bella quanto sterile 295 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics per la sua vita presente: l’emulazione del passato può portare alla sua mitologizzazione, facendogli perdere il contatto con la realtà. In effetti, «finché il passato deve essere descritto come degno di imitazione, la storiografia è in pericolo di essere alquanto falsata, abbellita nell’interpretazione e in tal modo avvicinata alla libera, mitica invenzione» (NIETZSCHE, 1998, p. 21). Anche la storia antiquaria non è per nulla esente da pericoli. Come nella monumentale, si può sempre incappare nel rischio di esaltare talmente tanto il passato da fermarsi lì, appagati e felici, senza accorgersi della realtà presente: «la storia antiquaria degenera nel momento stesso in cui la fresca vita del presente non la anima e ravviva più». O, peggio, porta l’uomo a rigettare completamente il presente e tutto ciò che di nuovo la storia propone, alla stregua del comodo tradizionalismo del “si è sempre fatto così”. «La storia serve la vita passata al punto da minare la vita presente: il senso storico non conserva più ma mummifica la vita». Nell’«orizzonte» dell’uomo antiquario «tutto ciò che è antico e passato viene semplicemente accettato come venerabile, mentre tutto quanto non muove incontro con venerazione a questa antichità, ossia il nuovo e ciò che diviene, è rifiutato e avversato» (NIETZSCHE, 1998, pp. 26-27). Arenarsi nel passato vorrebbe dire avere a che fare con una storia «capace solo di conservare, non di generare vita»: una storia che «sottovaluta sempre ciò che diviene, ostacola la forte risoluzione per il nuovo, paralizza chi agisce». La paura della novità è sempre dietro l’angolo: meglio non abbandonare la strada vecchia per seguire la nuova. È infatti impensabile, per un uomo che ragiona in questo modo, «sostituire un’antichità – che ha generato la pretesa che debba essere immortale – con una novità, con qualcosa di presente». Nietzsche vede l’apice di questa degenerazione in quella che chiama un’«abitudine erudita: il ripugnante spettacolo di una cieca furia collezionistica, di una raccolta incessante di tutto ciò che è una volta esistito. L’uomo si rinchiude nel tanfo, riesce ad abbassare con la maniera antiquaria anche un talento più significativo, un bisogno più nobile a un’insaziabile curiosità o meglio a un’avidità di cose vecchie e di tutto; spesso scende così in basso che alla fine è contento di ogni cibo e mangia di gusto anche la polvere delle quisquilie bibliografiche» (NIETZSCHE, 1998, pp. 27-28). 296 Prof. Dr. Paolo Scolari Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 296 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics 10. PASSATO/PRESENTE/FU TURO. PROCESSO ALLA STORIA Il terzo modello di storia individuato da Nietzsche, quella critica, non viene citato esplicitamente da Heidegger. Bisogna pertanto leggere fra le righe e farsi aiutare dalle parole nietzscheane per scorgere in quale senso egli utilizzi questo tipo di storia. Heidegger sembra concordare con Nietzsche nel sostenere che questo ideale di storia è quello che si distacca maggiormente dai primi due, consentendo all’uomo di aprire nuovi orizzonti. Una storia che parte sicuramente dal passato, ma che ad esso non si arresta, bensì esamina criticamente il presente e si proietta in una prospettiva futura. Questo modo di fare storia rispecchia il bisogno che l’uomo ha «di infrangere e di dissolvere il passato per poter vivere». Egli lo conduce «davanti a un tribunale, lo interroga minuziosamente, e alla fine lo condanna». Secondo Nietzsche «ogni passato merita di essere condannato», proprio perché non rispetta la vita. Ed è la «vita» stessa, vittima e carnefice al tempo stesso, che si trasforma nel giudice che «pronuncia il giudizio» di condanna su quel passato che tanto l’ha tormentata (NIETZSCHE, 1998, Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo p. 28). In questo tribunale immaginario esso «viene considerato criticamente e si attaccano con il coltello le sue radici». Il «rischio» è comunque alto. Il «processo» è sempre molto «pericoloso» e mette gli «uomini» in serio «pericolo». Infatti, anche se la sentenza recita una condanna a morte, «non è possibile staccarsi del tutto dalla catena» del passato: anche se l’uomo «condanna i suoi traviamenti e se ne ritiene affrancato», non riuscirà mai a «eliminarlo» una volta per tutte. Egli, dopotutto, «deriva proprio da quello stesso passato» che vuole a tutti costi rinnegare (NIETZSCHE, 1998, p. 29). Heidegger è dunque d’accordo con Nietzsche nel ritenere che l’uomo non possa pensare di fermarsi soltanto al passato. Esso risulta in questo caso davvero pericoloso, per due motivi. Innanzitutto non ha a che fare con la vita, ma si trasforma in una terra arida e desolata in cui l’esistenza umana non ha più nulla da dire. In secondo luogo, è altrettanto dannoso quando diventa l’orizzonte totalizzante e non riesce a coinvolgere le altre due sfere della temporalità umana. Un passato che, in sostanza, non è in grado né di aprire al presente né, tantomeno, di affacciarsi a una dimensione futura. Gli autentici «uomini storici», invece, sono coloro il cui 297 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics «sguardo nel passato infiamma il loro coraggio a misurarsi ancora con la vita e li spinge verso il futuro, accendendo in loro la speranza che ciò che è giusto possa ancora venire, che la felicità stia dietro il monte verso cui camminano». Questi esseri umani sono consapevoli che «la conoscenza del passato deve essere desiderata solo per servire il futuro e il presente, non per indebolire il presente né per sradicare un futuro vitalmente forte». Essi non si fossilizzano sulla dimensione passata, bensì «credono che il senso dell’esistenza verrà sempre più alla luce nel corso del suo processo, guardano indietro solo per imparare, in base alla considerazione del processo finora avvenuto, a capire il presente e a desiderare più ardentemente il futuro». Uomini che, paradossalmente, «non sanno affatto quanto poco storicamente, nonostante tutta la loro storia, essi pensino e agiscano, e come anche il loro occuparsi di storia non sia al servizio della pura conoscenza, bensì della vita» (NIETZSCHE, 1998, pp. 13, 30-31). Heidegger parla un altro linguaggio rispetto a Nietzsche, ma il sentore è comune, tanto che i due appaiono straordinariamente sullo stesso piano. Secondo lui la forza della storia sta nel suo servire da discrimine tra una temporalità autentica e una inautentica. L’uomo va portato fuori da un ancoraggio patologico al passato e considerato come punto d’unione delle tre dimensioni temporali – futuro, passato, presente –: «l’Esserci si temporalizza nell’unità di avvenire, esser-stato e presente». Poiché vive nel presente, sarà questa dimensione, «come attimo, ad aprire l’oggi autentico». Un presente non banalizzato, «ma interpretato a partire dalla comprensione della possibilità dell’esistenza afferrata – adveniente-ripetente –, grazie alla storiografia autentica, la quale diviene una de-presentazione dell’oggi, cioè una separazione dolorosa dalla pubblicità deiettiva dell’oggi». La mentalità del “Si” vuole considerare questo presente senza alcuna connessione con il passato e il futuro. L’uomo che assolutizza la dimensione dell’attimo cadrà nella banalizzazione del tempo e sarà costretto a crogiolarsi in un’esistenza inautentica. Al contrario, «la storiografia monumentale-antiquaria, in quanto autentica, è necessariamente una critica del “presente”» (HEIDEGGER, 1994, pp. 566-567): la storia, se autentica, smaschera la pretesa insita nell’essere umano di eternare il proprio oggi. Essa gli insegna a viverlo in maniera autentica, ovvero non in modo totalizzante, bensì in continua e 298 Prof. Dr. Paolo Scolari Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 298 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics dinamica relazione con il passato e l’avvenire. REFERENCES BRUSOTTI, M. Heidegger su storia monumentale e ripetizione. La seconda Considerazione inattuale di Nietzsche in Essere e tempo, in AA.VV., Metafisica e nichilismo. Löwith e Heidegger interpreti di Nietzsche. Bologna: Pendragon, 2006, pp. 125-147. COLLI, G. Scritti su Nietzsche, Piccola Biblioteca Adelphi, Milano 1980. FABRIS, A. Essere e tempo di Heidegger. Introduzione alla lettura, Carocci, Roma 2000. FERRARIS, M. 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Ceci demandera, d’abord, l’explication de certains mots comme exigence ontologique, recueillement et humilité. Ensuite, on verra si, et comment, une telle exigence peut être satisfaite. On s’appuiera, pour faire ceci, sur les réflexions du philosophe français Gabriel Marcel, qui a avancé, notamment dans Le mystère de l’être et Homo Viator, des importantes contributions à ce sujet. La philosophie de Gabriel Marcel sera analysée, non seulement dans sa production « systématique », mais aussi dans celle théâtrale, car c’est dans le caractère dramatique de la pièce théâtrale qu’une expérience de l’absolu peut d’abord se produire et ensuite s’alimenter. En effet, dans la conviction que cette expérience a besoin de la communication indirecte du théâtre et de la poésie, on sera autorisé à en faire recours. On montrera, alors, en suivant une analyse gnoséologique, d’abord (I) comment la définition de la subjectivité comme effort est nécessaire et exacte et puis (II) comment cette exigence ontologique peut être satisfaite. MOT CLÉS Être; 224 exister; exigence ontologique; humilité; recueillement; fragilité. E-mail: ramon.caiffa@gmail.com 300 Prof. Dr. Ramon Caiffa Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 300 Aoristo))))) International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics RESUMO Neste breve texto, tentaremos explicar, em primeiro lugar, as motivações que temos para afirmar que a subjetividade requer um esforço para satisfazer a exigência ontológica que constitui o seu ser. Isso exigirá, em primeiro lugar, a explicitação de certas palavras como exigência ontológica, recolhimento e humildade. Então, vamos ver se e como, tal requisito pode ser satisfeito. Para tanto, nos subsidiaremos nas reflexões do filósofo francês Gabriel Marcel, que realizou importantes contribuições a este respeito, particularmente em o Mistério do Ser e em Homo Viator. A filosofia de Gabriel Marcel será analisada, não só em sua produção "sistemática", mas também na produção teatral, pois é no caráter dramático da peça que uma experiência do absoluto pode, in primis, ocorrer e, depois, se alimentar. Na verdade, na crença de que essa experiência precisa da comunicação indireta do teatro e da