Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
EDITORIAL
Dossiê Especial
GT Fenomenologia/ANPOF
Prof. Dr. Claudinei Aparecido Freitas Silva
Email: cafsilva@uol.com.br
Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
Emai: kahlmeyermertens@gmail.com
Editores
Nesse segundo número, a Aoristo –
International Journal of Phenomenology,
Hermeneutics and Metaphysics, inicia a
sua edição com um Dossiê Especial:
trata-se do lançamento de textos dos
membros
integrantes
do
GT/Fenomenologia da ANPOF. Tais
escritos, nesse primeiro momento
aqui reunidos, resultam dos trabalhos
apresentados por ocasião do V
Encontro do GT de Fenomenologia da
ANPOF, bem como do II Encontro
Nacional de Fenomenologia e da X
Jornada
de
Metafísica
e
Conhecimento
promovidos
pelo
Programa de Pós-Graduação (Stricto
Sensu) em Filosofia da UNIOESTE,
Campus Toledo, transcorridos nos
dias 06 e 07 de julho de 2017. Tais
eventos, uma vez conjugados,
atestam, inequivocamente, não só a
consolidação
desse
Grupo
de
Trabalho que agrega professores e
pesquisadores das mais diversas
instituições nacionais e internacionais,
mas
perspectivam
um
novo
momento, em especial, para a
pesquisa em fenomenologia na
UNIOESTE.
Iniciada nos idos de 1990, as
pesquisas em fenomenologia nessa
instituição de pesquisa e ensino vem
atualmente dando mostras de pleno
vigor e saúde. Mostra disso é que, no
1
Editorial - Dossiê Especial GT Fenomenologia/ANPOF
Aoristo)))))
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corrente ano, cerca de 20% das
pesquisas do Programa de PósGraduação
em
Filosofia
da
UNIOESTE envolvem, de modo
direto ou não, a temática da
fenomenologia. Esse protagonismo
frente às demais áreas de estudos da
instituição faz com que acorram dos
municípios vizinhos pesquisadores
interessados em desenvolver temas
afetos a este modo de pensar que,
contemporaneamente, constitui uma
sólida tradição no pensamento
filosófico.
Os estudos de fenomenologia na
UNIOESTE, Campus Toledo, chegam
em 2017 plenamente consolidados e,
justamente por isso, o grupo
sustentador dessas pesquisas pode
atrair o V Encontro do GT de
Fenomenologia da ANPOF (além dos
outros concomitantes), o que resultou
na presente edição de trabalhos
proferidos naquela circunstância.
Assim, num rápido registro,
várias
outras
publicações
têm
encampado esse projeto. A primeira,
no formato de livros como as
coletâneas editadas pela Booklink,
Fenomenologia: influxos e dissidências
(2011), Temas em fenomenologia (2012) e
Origens e caminhos da fenomenologia
(2014), bem como a edição eletrônica
referente ao XVI Encontro da
ANPOF, Fenomenologia, Religião e
Psicanálise (2015) organizadas pelo
professor Carlos Diógenes Côrtes
Tourinho (UFF). A segunda, no
formato de periódico como a Revista
Filosofia Moderna e Contemporânea da
UNB, que editou, em 2015, o Dossiê
Fenomenologia
resultante
do
Encontro realizado na UFMG do
GT/Fenomenologia ANPOF, sob a
organização do professor Marcos
Aurélio Fernandes.
Para que o leitor aviste melhor
esse primeiro saldo qualitativo do
evento em Toledo, o Dossiê é
composto por 11 artigos. O texto de
abertura intitula-se (As duas faces da
crítica de Husserl ao naturalismo: dos
problemas de fundamentação teórica aos
perigos para a cultura). Nele, Carlos
Diógenes C. Tourinho aborda a
crítica de Husserl à doutrina do
naturalismo sob dois aspectos
recíprocos:
inicialmente,
o
contrassenso teórico inerente ao
projeto de fundamentação das
ciências na concepção naturalista,
reduzindo o mundo a uma realidade
de fatos naturais; em segundo, os
perigos que esta tendência representa
para a cultura e, em especial, para a
formação da mentalidade do homem
europeu. O segundo artigo (em
versão bilingue), (Um estudo sobre os
universais em Ideias I), Nathalie
Barbosa de La Cadena retoma o
interesse de Husserl pela questão dos
universais.
Isso
se
dá,
particularmente, em Ideias I, onde o
filósofo distingue os universais
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Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 2
Aoristo)))))
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particulares, o ‘X’ noemático, o
idêntico, e universais stricto sensu,
nomes universais atemporais. Isto
posto, a autora refaz, na primeira
seção, o percurso até os universais
destacando o paralelismo entre noese
e noema. Na segunda seção, é
referenciada no âmbito da filosofia da
linguagem a correspondência noéticonoemática. Na terceira e última seção,
é evidenciado como tal estado de
questão move-se apenas na esfera
noemática, para então concluir pela
possibilidade de partindo do ‘X’
noemático alcançar o universal em
sentido estrito. Sávio Passafaro Peres
escreve o terceiro artigo, (Psicologismo
e psicologia em Edmund Husserl), em
que examina a crítica ao psicologismo
de Edmund Husserl para avaliar sua
posição no que diz respeito à
psicologia empírica. O autor mostra,
em primeiro lugar, que Husserl, em
Investigações lógicas, tem como alvo o
psicologismo
lógico
e
uma
determinada forma de psicologismo
epistemológico. Em segundo lugar,
ele avalia que a fundamentação
epistemológica da lógica pura, como
ciência teórica, implica em uma teoria
da subjetividade. Um dos objetivos de
Husserl em Investigações lógicas é
empregar a fenomenologia, entendida
como forma peculiar de psicologia
descritiva, para elaborar uma nova
teoria da subjetividade, por meio de
uma análise descritiva das vivências
envolvidas
na
obtenção
do
conhecimento teórico. Por fim, ele
discute o lugar que a psicologia
empírica passa a ocupar depois da
crítica
ao
psicologismo
em
Investigações lógicas. No quarto artigo,
(Subjetividade
e
afetividade:
o
entrelaçamento de intelecto e sentimento
na ética de Edmund Husserl), Marcelo
Fabri traz à baila o papel do
sentimento na ética fenomenológica a
partir
da
confrontação
entre
moralistas do intelecto e os moralistas
do sentimento, na obra Introdução à
Ética (1920-1924) de Husserl. Fabri
nota que, a despeito da crítica
husserliana ao naturalismo e o
empirismo, há uma forte influência
dos
trabalhos
de
Hume.
A
possibilidade
de
uma
ética
fenomenológica reconhece, na esfera
da moralidade, que os sentimentos se
entrelaçam necessariamente com a
esfera intelectiva, abrindo o problema
de uma discussão sobre o imperativo
categórico que possa acolher tal
entrelaçamento. O quinto artigo,
(Linguagem
e
temporalidade
na
estruturação do Lebenswelt: uma
proposta de investigação), Hélio Salles
Gentil expõe um panorama de
investigação das estruturas do
Lebenswelt, em particular de suas
dimensões temporal e linguística
tendo como pano de fundo a Krisis de
Husserl e as relações essenciais
estabelecidas por Ricœur entre a
experiência humana do tempo e as
narrativas em sua obra Temps et Récit.
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Salles Gentil enfatiza-se, portanto, a
interpretação das narrativas de ficção
como via de acesso privilegiada à
compreensão dessas relações e de
seus modos de participação na
estruturação de um mundo, via a
hermenêutica ricœuriana. No sexto
artigo, (Intuição categorial e evidência,
verdade e ser) Marcos Aurélio
Fernandes descreve os fenômenos da
intuição
categorial,
evidência,
verdade e ser, via a interpretação de
textos de Husserl e Heidegger. Essa
abordagem se dá por meio de quatro
registros: i) a descrição da intuição
como percepção, isto é, como
experiência da evidência da presença
do ente mesmo como autodatidade
originária; ii) ordenamento entre a
evidência e sua correlação com a
verdade e o ser; iii) a crítica da
doutrina tradicional da verdade e a
posição
fenomenológico
ou
hermenêutica da verdade como
aletheia e, por fim, iv) o sentido último
da evidência do ser e para o
relacionamento humano em face
dessa. No sétimo artigo, (Amor e
conhecimento na fenomenologia de Max
Scheler), Daniel Rodrigues Ramos
acentua a mútua pertinência entre
amor e conhecimento, desde o
horizonte da fenomenologia material
de Max Scheler (1874-1928). Para
tanto, essa leitura tem como uma das
abordagens mais emblemáticas a obra
Liebe und Erkenntnis de 1915, do
fenomenólogo alemão. Mas é, em
1923, em Wesen und Formen der
Sympathie, que Scheler descreve o
fenômeno do amor como sendo, em
seus traços fundamentais, isto é, um
modo particular e afetivo de
conhecimento. No oitavo artigo, (A
noção de ego na obra de Sartre), Simeao
Donizeti Sass circunscreve três
trabalhos sartrianos, La Transcendance
de l’ego (1936), L’Être et le néant (1943)
e Cahiers pour une morale (1983). Sass
retrata
que
esse
percurso
corresponde, ao mesmo tempo, a
evolução e a manutenção de algumas
teses enunciadas na primeira obra.
Nesse sentido, ele identifica alguns
dos objetivos da filosofia sartriana,
tanto na moral quanto na política,
revelando o papel central do Ego
nessa discussão, e, por fim,
diagnostica as consequências morais
de uma nova concepção da
consciência, do ego e da reflexão
edificadas por Sartre ao longo de sua
trajetória. O nono artigo intitula-se,
(Afetividade e pessoa na fenomenologia de
Dietrich Von Hildebrand). Nele, os
coautores Tommy Akira Goto e
Marília
Zampieri
da
Silva
circunscrevem, via a obra de Dietrich
von Hildebrand (1889-1977), uma
“fenomenologia da afetividade”.
Hildebrand compreende que é
somente por meio do método
fenomenológico que se torna possível
alcançar
genuinamente
o
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conhecimento
a
priori
das
essências dos
fenômenos
e
assim, chegar
à
verdade
e
a profundidade do fenômeno. Tratase de uma compreensão que se radica
na experiência humana, uma vez que,
para conhecer a sua essência é
imprescindível
descrever
os fenômenos da
vida
consciente. Ora, a pessoa humana é
um ser espiritual que possui três
estruturas
intencionais:
o
entendimento,
a
vontade e
a
afetividade. Ora, é essa estrutura
tríplice que corresponde à estrutura
ontológica
última
do
humano
compondo, pois, “centros operativos”
de vivências. Ericson Savio Falabretti
é quem assina o décimo artigo,
(Engajamento e falatório: das redes sociais
à filosofia). O que Falabretti põe em
jogo são duas perspectivas sobre
política
e
engajamento.
Para
descrever a primeira forma de
engajamento, muito comum nas redes
sociais, ele faz uso do termo
heideggeriano falatório. Esse tipo de
engajamento se caracteriza pela
reprodução do mesmo e pela negação
da diferença. Já a segunda noção de
engajamento, pensada a partir das
obras de Sartre e Merleau-Ponty, em
clara oposição ao falatório, remete a
um exame de três características
fundamentais
do
engajamento
intelectual: práxis, compromisso,
responsabilidade. Adriano Furtado
Holanda e Jennifer da Silva Moreira
fecham o Dossiê com décimo primeiro
artigo
intitulado
(Fenomenologia,
organismo e vida: uma introdução à obra
de Kurt Goldstein). Os autores chamam
a atenção para o fato de Kurt
Goldstein ser, ainda, uma fonte
esquecida, especialmente, no Brasil
em virtude, sobretudo, da ausência
ausência de traduções das suas obras.
No entanto, sua influência está
presente em diversas áreas do
conhecimento, como a Neurologia,
Neuropsicologia,
Psicologia
e
Filosofia. Em face disso é que o artigo
visa apresentar uma introdução à
obra do neurocientista alemão,
subsidiando a partir de escritos como
The Organism: A holistic approach to
biology derived from pathological data in
man e Human Nature in the light of
psychopathology. A partir da análise
dessas obras foram selecionados três
grandes temas a serem explorados
que projetam, sem dúvida, uma
orientação
convergentemente
fenomenológica: a questão
do
método, a teoria do organismo e a
noção de natureza humana.
A segunda seção de nosso
número se inicia com o artigo do
professor italiano Franco Riva. Sob o
título de (1927. Marcel, Heidegger e gli
equivoci storiografici), o autor passa a
limpo a filosofia de Heidegger e a de
Marcel, mostrando o quanto o
pensamento da existência e do ser,
nos dois mencionados pensadores, dá
vez a problemas de interpretação que
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International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
repercutem na história. Em pauta,
está a relação de proximidade e
distância entre os dois filósofos e o
quanto Heidegger, ao contrário do
que se poderia pensar, não é um
pensador do “mistério”.
O também italiano Paolo
Scolari, professor na Universidade
Católica de Milão, contribui com o
artigo (Vita e storia. Nietzsche in Essere
e tempo). Nesse escrito, vemos
explorada a relação de Heidegger e
Nietzsche no âmbito da ontologia
fundamental. Com este, é possível
entrever
o
quanto
Heidegger,
herdeiro da fenomenologia de
Husserl, não é menos beneficiário do
legado da filosofia da vida e do
quanto
tanto
Dilthey
quanto
Nietzsche têm a contribuir para um
pensamento que se faz sob o ponto de
vista da vida. Nesse cenário, a relação
entre vida e história se avulta,
indicando o quanto esses dois
conceitos testemunham o refinamento
da filosofia de Heidegger ao tratar tal
ligação.
Vale lembrar que os dois artigos
supra referidos são publicados
levando em conta o espírito de
oportunidade de celebrar a data dos
90 anos de edição da obra Ser e tempo,
de Heidegger (para qual o presente
veículo
dedicou
seu
número
passado), e também os 90 anos do
Diário Metafísico, de Marcel.
Um
terceiro
italiano
que
colabora é Ramon Caiffa ao sugerir o
seguinte texto francês: (L’infini derrière
la haie”: L’homme comme exigence
ontologique et humilité chez G. Marcel).
Neste, ele busca explicitar, em
primeiro lugar, as motivações que
temos
para
afirmar
que
a
subjetividade requer um esforço para
satisfazer a exigência ontológica que
constitui o seu ser. Isso exigirá, em
primeiro lugar, a explicitação de
certas palavras como exigência
ontológica, recolhimento e humildade.
Para tanto, a fonte recorrente aqui é
Gabriel Marcel, cuja obra será
analisada seja em sua verve
“sistemática”, seja teatral, pois é no
caráter dramático da peça que uma
experiência do absoluto pode, in
primis, ocorrer e, depois, se alimentar.
Yaqui Andrés Martínez Robles
é nosso próximo colaborador; ligado
ao
Instituto
Humanista
de
Psicoterapia Gestalt (IHPG), o
professor mexicano nos oferece:
(Implicaciones
de
uma
prática
Fenomenológico-Existencial no mundo
das terapias psicológicas). Neste artigo,
ele nos apresenta um pouco da
perspectiva que a Escola Mexicana de
Análise e Terapia Existencial tem da
abordagem
fenomenológicoexistencial na prática clínica. Tal
escrito nos dá boa ideia de como a
fenomenologia e a filosofia existencial
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Prof. Dr. Claudinei Aparecido Freitas Silva
Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 6
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
incrementam
as
terapêuticas
psicológicas.
Na
sequência,
Magdalena
Mendonça, filiada à USP, nos traz:
(Existência, liberdade e possibilidade:
considerações sobre a crítica ao
determinismo em Sartre). Com este
trabalho,
desenvolvido
na
proximidade de O existencialismo é um
humanismo e de O ser e o nada, de
Sartre, nossa autora pretende indicar
que, em face do valor singular do
humano, uma concepção ética da
existência humana e um modo de agir
no mundo, podem ser divisados na
filosofia sartriana.
A terceira seção, de Tradução,
dispõe, em versão portuguesa, o texto
de um dos grandes estudiosos da
fenomenologia francesa atual. Tratase de Emmanuel de Saint Aubert,
pesquisador do CNRS, École Normale
Supérieure, Archives Husserl de Paris
que, ao lado de Claude Lefort, é
também
organizador
da
obra
póstuma de Merleau-Ponty. O artigo,
escrito originalmente em francês, e
traduzido especialmente para a
Aoristo - International Journal of
Phenomenology, Hermeneutics and
Metaphysics é assinado com o título
(Introdução à noção de sustentação).
Nele, Saint Aubert discute a
necessidade, o sentido e as questões
antropológicas de uma nova noção de
“sustentação”. Esta reflexão procede
de um duplo contexto, clínico e
filosófico, que interroga a base carnal
do desejo. A partir de uma
fenomenologia em diálogo com a
psicologia, a psicanálise e a filosofia
da educação, a noção de sustentação
aborda os fundamentos mesmos de
nossa abertura ao mundo e ao outro.
A quarta seção contém três
Resenhas. Na primeira, Claudinei
Aparecido de Freitas da Silva
examina a recente edição italiana de Il
mito della relazione: Martin Buber,
Emmanuel Lévinas, Gabriel Marcel
(Roma: Castelvecchi, 2016, 221p).
Trata-se, aqui, de uma coletânea
crítica em que se discute o conceito de
relação a partir do colóquio
protagonizado, especialmente, pelos
três pensadores em pauta nos anos
1960. Ademais, é analisada ainda a
conotação mítica que o tema enseja na
segunda parte do livro por Franco
Riva, organizador da obra.
O segundo trabalho de nossa
seção de resenhas é o de Laura de
Borba Moosburger (USP). Trata-se de
uma acurada recensão do livro A tinta
da melancolia: uma história cultural da
tristeza, de Jean Starobinski. Apoiada
na tradução brasileira da obra, que
veio a lume em 2016, a resenha nos
oferece os contextos próprios a este
ensaio assistemático que se ocupa de
afetos, sentimentos e estados de
ânimos que constituem temas caros às
filosofias da existência. Tal exposição,
no entanto, mais do que uma
apresentação circunstanciada dos
conteúdos da obra em apreço,
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International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
também traz, com sutileza, o acento
crítico de sua autora.
Em sua resenha ao livro Rosmini
y la ética fenomenológica, de Jacob
Buzanga,
a
mexicana
Marisol
Ramírez Patiño traz à baila os termos
da fenomenologia voltada a pensar a
ética.
No trabalho de nossa
articulista, temos uma exposição de
algumas
das
principais
teses
metafísico-morais
de
Antônio
Rosmini, tal como abordadas por J.
Buzanga.
Nesse
esforço
de
caracterização, a resenhista delimita
bem o quanto a temática de uma ética
fenomenológica não deixa de ter
Husserl
como
interlocutor
privilegiado, além de permitir que
reconheçamos
pensadores
como
Brentano, Scheler e Von Hildebrand
como figuras destacadas nesse
cenário de ideias.
A edição fecha com uma
homenagem, (O elogio à historicidade),
dedicada
à
professora
Creusa
Capalbo falecida em 18 de junho
último, no Rio de Janeiro. Nesse breve
registro, In Memoriam, Claudinei
Aparecido de Freitas da Silva retrata
a importância da inteletual como
figura
difusora
no
cenário
fenomenológico do país, chamando a
atenção para um dos conceitos-chave
mais recorrentes de sua produção: a
noção de historicidade.
O número que ora se oferece ao
público
interessado
em
fenomenologia,
hermenêutica
e
filosofias da existência, nutre a
modesta pretensão de incrementar os
estudos dessas matérias, emulando,
inclusive, o saudável intercâmbio
entre os centros de pesquisa e
pesquisadores
(nacionais
e
internacionais) que se aplicam
seriamente
aos
estudos
de
fenomenologia.
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Prof. Dr. Claudinei Aparecido Freitas Silva
Prof. Dr. Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 8
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos
problemas de fundamentação teórica aos perigos para a
cultura
The two faces of Husserl's critical to the naturalism: from
the problems of theoretical foundation to the dangers to
culture
Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho
Universidade Federal Fluminense – UFF 1
RESUMO
O presente artigo aborda a crítica de Husserl à doutrina do naturalismo. Mais precisamente, o
artigo concentra-se em dois pontos principais: o primeiro aborda o contrassenso teórico inerente
ao projeto de fundamentação das ciências na doutrina naturalista, reduzindo o mundo a uma
realidade de fatos naturais; ao passo que o segundo trata dos perigos que esta doutrina
representa para a cultura e, em especial, para a formação da mentalidade do homem europeu. Ao
final, o artigo evidencia a inseparabilidade de tais aspectos da crítica ao naturalismo no itinerário
husserliano.
PALAVRAS CHAVE
Edmund Husserl; Naturalismo; Fundamentos; Cultura; Crise; Humanidade.
ABSTRACT
The present paper approaches the Husserl's critical to the doctrine naturalist. More precisely,
the article focuses on two main points: the first deals with the theoretical misunderstanding
inherent to the project of foundation of the science in the naturalistic doctrine, reducing the
1
Email: cdctourinho@yahoo.com.br.
9
As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação
teórica aos perigos para a cultura
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
world to a reality of natural facts. While the second deals with the dangers that this doctrine
poses for culture and in particular for the formation of the mentality of the European man. In
the end, the article evidences the inseparability of such aspects of the criticism to naturalism
in the Husserlian itinerary.
KEYWORDS
Edmund Husserl; Naturalism; Foundations; Culture; Crisis; Humanity.
INTRODUÇÃO
Um olhar panorâmico sobre o
caminho traçado por Edmund
Husserl na primeira metade do
século XX – das Investigações Lógicas
(1900/1901) à Crise das Ciências
Européias (1936) – permite-nos notar o
quão inseparáveis são as críticas do
autor ao naturalismo, em particular,
ao projeto de fundamentação da
Lógica na Psicologia (inclinação do
último quarto do século XIX que se
convencionou
chamar
de
“psicologismo”), e as denúncias que
se consolidam na década de 30 sobre
os
impactos
produzidos
pela
doutrina naturalista na formação de
mentalidade do homem europeu,
com graves consequências para a
cultura europeia. São, portanto, dois
momentos distintos do itinerário
husserliano, a partir dos quais somos
remetidos
para
dois
aspectos
indissociáveis da crítica de Husserl
ao naturalismo: o primeiro procura
evidenciar o contrassenso teorético
inerente
à
intenção
de
fundamentação da Lógica (e, em
última instância, da própria Filosofia)
na Psicologia, ao passo que o
segundo denuncia os perigos da
doutrina naturalista para a cultura.
Enquanto
o
primeiro
aspecto
encontra-se consolidado no itinerário
husserliano desde a virada do século
XIX para o século XX, ainda no
período dos cursos proferidos em
Halle, o segundo ganha contornos
mais nítidos a partir da década de 20,
especialmente, a partir da série de
artigos publicados para a revista
japonesa Kaizo. Vejamos, então, mais
pormenorizadamente, cada um dos
referidos aspectos da crítica de
Husserl à doutrina do naturalismo,
de modo que possamos, em seguida,
examinar a inseparabilidade de tais
aspectos no itinerário husserliano, ao
longo da primeira metade do século
XX.
1. A CRÍTICA DE HUSSERL AO
NATURALISMO NAS ORIGENS
DA FENOMENOLOGIA
Ao examinar o percurso de
Husserl
nas
origens
da
10
Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 10
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
fenomenologia, em especial, de 1896 a
1911, notamos uma preocupação
renovada do autor em afirmar a tese
segundo a qual toda tentativa de
fundamentação da Matemática, da
Lógica, ou mesmo, da própria
Filosofia, em um pensamento que
tenha como base a doutrina do
naturalismo (para a qual pensar o
mundo
consiste
em
pensa-lo
unicamente como uma realidade de
fatos naturais), se torna uma tentativa
que nos conduz, inevitavelmente, a
um “contrassenso teórico” e, por
conseguinte, a um ceticismo que se
autocontradiz. Afinal de contas, como
nos mostra Husserl desde 1900, em
Prolegômenos à lógica pura, volume
propedêutico das Investigações Lógicas,
ao ignorar a distinção entre o ato
psicológico de pensar e o conteúdo
ideal do pensamento, reduzindo,
indevidamente, tal conteúdo a uma
realidade de fatos naturais (aspirando
algo como uma “física do pensar”),
além de incorrer em problemas de
fundamentos,
o
modo
de
consideração natural confina o
homem – enquanto ente psicofísico –
a uma relação meramente empírica
com o mundo. Neste caso, por mais
êxito que o pensamento obtenha, fica
confinado a inferir, a partir da
observação dos fatos, proposições que
não são senão, como nos diz Husserl,
“generalizações
vagas
da
experiência”(vage Verallgemeinerungen
der Erfahrung) que, como tais, não
perdem o seu cariz episódico ou
contingente, não nos livrando, por
conseguinte, do assédio da dúvida e
do que insiste em não se mostrar
evidentemente
como
tal.
Tais
proposições inferidas da experiência
nos
levariam,
inevitavelmente,
segundo Husserl, uma vez que as
mesmas careceriam de validade
apodítica, a um relativismo cético. Se
afirmarmos, em conformidade com o
pensamento natural, a tese segundo a
qual “todas” as proposições inferidas
pelo pensamento são generalizações
da experiência e, por isso, na medida
em que carecem de validade absoluta,
são
proposições
passíveis
de
questionamento, estaremos supondo,
ao menos, que a própria tese afirmada
é uma “exceção” à regra. Do
contrário, ela própria seria também o
resultado de uma inferência da
experiência, consistindo, portanto, em
uma generalização empírica que,
como tal, é contingente. Eis o que
permanece
desconhecido
pelas
ciências positivas da natureza: o
contrassenso (Widersinn) a que nos
conduz o ceticismo inerente ao
pensamento natural adotado por tais
ciências. Portanto, desde 1900, em
Prolegômenos, passando pelas lições
do
período
de
Göttingen,
especificamente, as lições de 1906 e
11
As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação
teórica aos perigos para a cultura
Aoristo)))))
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1907, até o artigo publicado em 1911,
intitulado “Filosofia como ciência de
rigor”, Husserl não mede esforços em
denunciar o contrassenso teorético
resultante da aceitação do modo de
consideração natural perante o
mundo.
Tomado pelo anseio incansável
de reeditar, no século XX, o projeto de
fundamentação da filosofia como
uma “ciência rigorosa” (strenge
Wissenschaft) – intenção primária que
acompanha e move o itinerário
husserliano por quase quatro décadas
– Husserl não hesita em chamar à
atenção do leitor para os riscos de se
levar adiante o propósito de
fundamentar a filosofia em um
naturalismo, esvaindo-a em uma
realidade de fatos naturais. Mais do
que nunca, tal preocupação visa,
primeiramente,
denunciar
o
contrassenso teórico a que tal
propósito nos conduz, almejando,
assim,
afastar
o
projeto
de
fundamentação da filosofia de um
caminho
que
incorresse
na
naturalização do pensamento. Eis
uma preocupação que se renova em
Husserl, ao longo da primeira década
do século XX, período no qual vigora
um ideal positivista de ciência, cujas
bases repousam justamente na
doutrina do naturalismo. Mas,
se
durante o referido período, é devido a
problemas de fundamentos que
Husserl é levado a denunciar o
contrassenso teórico inerente às
iniciativas psicologistas de se tomar o
conteúdo ideal do pensamento em
termos de uma realidade psicofísica, a
partir deste período, cada vez mais,
nota-se uma preocupação por parte
do autor em denunciar os riscos que a
realização de tal iniciativa naturalista
teria para a formação da mentalidade
do homem europeu. O primeiro sinal
desta nova preocupação já pode ser
notado em “A filosofia como ciência
de rigor” (1911), artigo publicado
para o primeiro número da Revista
Logos, no qual Husserl nos chama à
atenção
para
os
perigos
do
naturalismo
para
a
cultura.
Deparamo-nos com os reflexos de
uma crítica anunciada dez anos antes
em Prolegômenos. Em sua versão
extrema,
conforme
Husserl
já
apontava desde 1896, ainda no
período de Halle, o naturalismo
considera todos os princípios lógicos,
as chamadas “leis do pensamento”
(Gesetze des Denkens), em termos de
leis
naturais
do
pensamento
(incorrendo,
com
isso,
no
contrassenso de confundir o juízo
como ato psicológico de pensar com o
juízo como unidade ideal da lógica).
Tal como Husserl já havia também
denunciado, no período de Göttingen,
nas lições de 1906 e 1907, o
contrassenso cético resultante do
modo de consideração naturalista,
segundo o qual pensar o mundo
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Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 12
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
consiste em pensá-lo unicamente
como uma realidade de fatos naturais,
manter-se-ia “obscuro” para o
próprio cientista natural (de viés
positivista), uma vez que ele mesmo
não se aperceberia do caráter
infundado de sua posição. No
Apêndice A, VIII, do § 33 das lições
de 1906/1907, publicadas sob o título
de Introdução à Lógica e Teoria do
Conhecimento, Husserl chamará este
ceticismo
não
declarado
de
“inconsciente”
(unbewussten
Skeptizismus), chegando mesmo a
compará-lo ao “verme” da dúvida ou
obscuridade (der Wurm des Zweifels
oder der Unklarheit), inapercebido em
todo conhecimento dito “positivo”,
dado como “definitivo” (bestimmten).
Tal ceticismo inconsciente vai, aos
poucos, corroendo e destruindo a
tomada de posição ingênua assumida
pelas ciências da natureza que,
conforme avançam, ignoram, por
completo, os problemas relacionados
à possibilidade do conhecimento,
assumindo, com isso, um realismo
que não se interroga pelo sentido da
objetividade do mundo que tais
ciências consideram, acriticamente,
como dada.
Se até então, para Husserl, esta
tal “cegueira naturalista” estaria
relacionada ao que impede o adepto
do pensamento natural de notar os
problemas de fundamentos nos quais
a sua posição incorre, já a partir do
artigo de 1911, o autor começa a
chamar à atenção do leitor para os
perigos desta dita “ingenuidade”,
afirmando-nos
que:
“...os
contrassensos
teóricos
são
inevitavelmente
seguidos
por
contrassensos
(discordâncias
evidentes) no procedimento atual,
teórico, axiológico, ético” (HUSSERL,
1911, p. 295). A propósito desta nova
preocupação, Husserl afirma-nos
ainda, ao final da introdução do
famoso artigo de 1911, que o
naturalismo dominante na Europa:
“...significa praticamente um perigo
crescente para a nossa cultura”
(HUSSERL, 1911, p. 293). Se em tal
artigo, tais observações não têm
maiores desdobramentos, elas já
indicam, por si só, uma nova
preocupação do autor: além dos
problemas de fundamentos nos quais
o naturalismo incorre, caberá também
alertar para os impactos que tal modo
de consideração do mundo teria para
a formação da mentalidade do
homem
europeu,
com
graves
consequências
para
a
cultura.
Passemos, então, a um exame desse
segundo aspecto da crítica de Husserl
ao naturalismo.
13
As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação
teórica aos perigos para a cultura
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
2. OS PERIGOS DO
NATURALISMO PARA A
CULTURA
Apesar das indicações do artigo
de 1911, pode-se dizer que é a partir
da década de 20 que a nova
preocupação começa a ganhar
contornos mais nítidos. Evidencia-se,
a partir desta década, a preocupação
de Husserl em dar o seu parecer a
respeito da crise da Europa,
propondo-nos, ao mesmo tempo,
uma reforma racional da cultura que
pudesse, em meio à crise, conduzir a
humanidade europeia em direção a
uma
humanitas
autêntica,
inviabilizada, segundo o próprio
autor, por “preconceitos naturalistas”
(naturalistische Vorurteile). Husserl
afirma-nos, logo no primeiro dos
seus artigos publicados pela revista
japonesa
Kaizo
(palavra
cujo
significado é justamente o de
“renovação”), intitulado “Renovação.
Seu problema e seu método”, de
1923, que a Europa está em crise e,
em seu doloroso presente, uma
“renovação” se faz necessária em
meio ao cenário devastador da
guerra. Essa mesma humanidade que
se orgulhava do ideário positivista de
ciência desde o último quarto do
século XIX e, por conseguinte, de ter
alcançado um estágio positivo,
supostamente
“mais
avançado”
numa linha progressiva, começava a
dar sinais de declínio a partir da
Primeira Guerra, revelando, de
acordo Husserl, a sua “ausência de
sentido”. Nos termos do autor: “Se
ela já tinha se tornado vacilante antes
da guerra, desmoronou-se agora
completamente” (HUSSERL, [1923]
1989, p. 4). Daí a formulação
husserliana da questão, em tom de
manifesto, numa referência indireta à
obra O declínio do Ocidente de Oswald
Spengler: “Deveremos considerar a
‘decadência do Ocidente’ como um
factum que se abate sobre nós?”
(HUSSERL, [1923] 1989, p. 4). A
humanidade europeia estaria, com a
guerra, condenada a se desorientar
por um pessimismo fatídico e por um
“realismo”, outrora apenas ingênuo e
agora sem ideais? Husserl perguntanos, então: a racionalidade e a
excelência (de nos colocarmos acima
de nossas metas circunstanciais,
religando-nos à humanidade) não
seria um caminho possível para
remediar essa crise? Certamente, se
esta crise não fosse marcada por uma
perda da crença em tal racionalidade
e excelência. Eis, segundo Husserl,
“...o estatuto de todos aqueles que
são excelentes, a qual os eleva acima
das suas preocupações e infortúnios
individuais” (HUSSERL, [1923] 1989,
p. 3). Se por um lado, a ideia de uma
reforma da cultura implica, ao
menos, tal como Husserl a pensa, na
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Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 14
Aoristo)))))
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retomada desta crença, por outro
lado, o principal obstáculo a ser
superado se encontra na figura dos
homens que, absorvidos pela visão
pessimista,
não
hesitam
em
considerar tal retomada – tanto no
plano individual quanto em nível
social e cultural – como um “objetivo
quimérico” (chimärisch Ziel). Contra a
visão pessimista segundo a qual a
humanidade seria reduzida a uma
“humanidade de fatos” e, portanto, a
uma mera “acidentalidade”, contra a
perda da crença na possibilidade de
uma racionalidade efetiva, Husserl
aposta suas fichas em uma reforma
racional da cultura. Nos termos do
autor, trata-se de reacender: “A
crença que nos preenche – que à
nossa cultura não é permitido se dar
por satisfeita, que ela pode e deve se
tornar reformada através da razão e
da vontade humanas...” (HUSSERL,
[1923] 1989, p. 5). Tomada por
“preconceitos
naturalistas”
(naturalistische
Vorurteile),
tal
humanidade não perceberia a íntima
relação entre tais preconceitos e o
estado de desamparo, bem como de
impotência que, na primeira metade
do século XX, acometeu o homem
europeu em meio ao cenário da
guerra.
É preciso lembrar ainda que,
impulsionados
pelo
ideário
positivista de ciência, alguns dos
principais
círculos
acadêmicos
europeus, desde o último quarto do
século XIX, não hesitaram em
considerar a realidade espiritual nos
moldes
das
ciências
naturais,
considerando a consciência como
uma espécie de “anexo externo” dos
corpos,
considerando,
enfim,
“homens e animais como simples
acontecimentos no espaço, ‘na’
natureza’” (HUSSERL, [1923] 1989, p.
8). Tal inclinação naturalista não
hesitaria, portanto, nos moldes das
ciências positivas, em levar adiante o
projeto de naturalização da “vida do
espírito”, tratando, deste modo, essa
mesma vida espiritual em termos de
uma
realidade
espacializante,
tratando-a em analogia com o
número (a própria temporalidade
vivida como duração na imanência
da vida espiritual seria tomada em
termos de uma grandeza numérica e,
portanto,
tratada
em
termos
espaciais).
Exercendo
um
papel
preponderante na formação da
mentalidade do homem europeu, o
pensamento natural (como alicerce
para
a
visão
positivista)
desconsideraria, enfim, os problemas
metafísicos (as chamadas “questões
supremas e últimas” que ultrapassam
o mundo enquanto universo de
meros fatos) e, em particular, o
problema da distinção e da relação
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As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação
teórica aos perigos para a cultura
Aoristo)))))
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entre os domínios do corpo e do
espírito (foco das atenções dos
filósofos de ascendência judia nas
origens da filosofia contemporânea,
tais como Husserl e Bergson). Daí
Husserl dizer que a intenção de
realizar uma ciência da realidade
espiritual, ao modo de uma
psicologia naturalista, a partir de
procedimentos indutivos, seria um
contrassenso, por todos os problemas
de fundamentos – a confusão entre os
domínios do real e do ideal, do
espaço e do tempo, etc – nos quais tal
intenção incorreria. Ao denunciar tal
contrassenso, a aspiração por uma
reforma racional da cultura deveria
abrir os caminhos obstruídos pelos
preconceitos naturalistas. Por esse
motivo, tal reforma constituir-se-ia,
antes de tudo, como uma aspiração
que visa “reformar a cultura fática”,
reformar uma visão de mundo que
confina os homens a juízos dirigidos
para simples fatos de existência, nos
quais somente se admite como válido
o que for objetivamente verificável.
Só
assim,
superando
tais
preconceitos, essa humanidade seria
recolocada no caminho de uma
racionalidade (que não é senão o
caminho para ideias e ideais
absolutos,
válidos
incondicionalmente)
cuja
responsabilidade seria inerente ao
próprio
caminhar,
unindo
os
indivíduos para além de uma
condição meramente acidental. Se o
artigo de 1923 atesta a preocupação
em denunciar os perigos do
naturalismo para a cultura (algo que
o artigo de 1911 apenas indicava sem
maiores desdobramentos), é a partir
dos anos 30 que tal preocupação se
evidencia.
Em maio de 1935, como
sabemos, Husserl profere a famosa
conferência de Viena, intitulada A
crise da humanidade européia e a
filosofia. Nela, Husserl busca uma
elucidação
das
origens
mais
profundas do adoecimento da vida
espiritual da Europa. A consolidação
de um projeto de naturalização do
espírito – com os seus respectivos
problemas de fundamentos, para os
quais o autor já chamava à atenção
desde a virada do século XIX para o
século XX – fomentou, na formação
da mentalidade europeia, um
esquecimento daquilo que nos
remeteria, segundo Husserl, para o
sentido mais originário da vida
espiritual do homem europeu, para o
que o autor considera a “estrutura
espiritual” (gestige Gestalt) da Europa,
a saber: o surgimento da filosofia,
enquanto uma nova forma cultural,
na qual todas as ciências estariam
incluídas. Esta nova forma cultural
conduz os homens, por meio de um
“novo tipo de posição” (neuartige
Einstellung), a um deslocamento do
olhar de suas metas finitas e
circunstanciais, próprias de suas
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Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 16
Aoristo)))))
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preocupações diárias inerentes a um
“mundo circundante” (Umwelt), para
metas infinitas, transformando-os,
assim, na figura de um novo homem
cuja reflexão – dada a radicalidade de
elevá-lo acima de sua própria
individualidade – faz dele uma
espécie
de
“espectador
desinteressado”
(uninteressierter
Zuschauer), contemplador do mundo
preocupado tão somente em “ver e
descrever adequadamente” (sehen
und adäquat zu beschreiben), conforme
Husserl aponta no § 15 de Meditações
Cartesianas, em 1931. Trata-se da
decisão deste novo homem de
consagrar toda a sua vida futura à
teoria, de dar a ela um caráter
universal, construindo, nos termos de
Husserl, “...conhecimento teórico
sobre conhecimento teórico in
infinitum” (HUSSERL, [1936] 1976, p.
332). Tais metas infinitas seriam,
segundo Husserl, tal como um telos
espiritual desta nova humanidade
(que não é outra coisa senão a razão
filosófica
como
uma
vivência
intelectiva originária que estaria além
das diferentes formas culturais do
povo europeu, conferindo-lhe o
sentido de uma evolução em direção a
um polo eterno). Trata-se, portanto,
não de uma evolução biológica, que
conduz, em graus sucessivos, os
organismos individuais do embrião à
maturidade, do nascimento à morte.
Como
nos
diz
Husserl,
“Essencialmente, não há uma
zoologia dos povos” (HUSSERL,
[1936] 1976, p. 320). Mas, antes sim,
trata-se de uma evolução espiritual
por intermédio da qual o conjunto da
humanidade europeia se unificaria –
não pela simples justaposição
geográfica e cultural das diferentes
nações – mas pelo novo espírito
crítico orientado para tais metas
infinitas. Para Husserl, esta nova
posição – de origem grega, filosófica
e europeia – perante o mundo
assumiria a sua função diretriz,
tornando-se responsável pela “saúde
espiritual” desta tal humanidade.
Afinal, a filosofia como teoria não
liberta somente o investigador, mas
todo aquele que seja formado
filosoficamente. Nos termos do
Husserl, no § 3 de A Crise das Ciências
Européias
e
a
Fenomenologia
Transcendental
(último
grande
testemunho do autor sobre os
contrassensos
produzidos
pelo
naturalismo, de 1936): “À autonomia
teorética
segue-se
a
prática”
(HUSSERL, [1936] 1976, p. 6).
Aos olhos de Husserl, se esta
humanidade mergulhou em uma
profunda crise a partir da Primeira
Guerra,
foi
fundamentalmente
porque ela própria – ao exaltar o
conhecimento
matemático
da
natureza e do mundo em geral,
17
As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação
teórica aos perigos para a cultura
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
estendendo-o ao conhecimento do
espírito, também concebido como
“objetivamente no mundo e como tal
fundado
na
corporalidade”
(HUSSERL, [1936] 1976, p. 341) —
sucumbiu a um esquecimento da
própria filosofia que, desde o seu
surgimento, se tornou responsável
por unir, por relações somente
espirituais, o povo europeu. Ao se
deixar cegar pelo êxito galopante das
ciências positivas, por sua prosperity
(como diria Husserl no § 2 de A Crise
das Ciências Européias), tal orgulho
positivista incorporado por essa
humanidade significou “...um virar
as costas indiferente às questões que
são
as
decisivas
para
uma
humanidade genuína” (HUSSERL,
[1936] 1976, pp. 3/4). Afinal, nos
termos do autor, ainda no § 2 da
referida obra: “Meras ciências de
fatos, fazem meros homens de fatos”
(HUSSERL, [1936] 1976, p. 4).
Tomadas por este esquecimento,
sobretudo, a partir da Primeira
Guerra,
as
nações
europeias
passaram, em um nacionalismo
beligerante sem precedentes, a acirrar
o ódio e a destruição. Porém, como
afirma Husserl, por mais hostilizadas
que estejam entre si, tais nações
conservam um peculiar parentesco
no plano espiritual que as transcende
em suas diferenças nacionais. Nos
termos de Husserl: “É algo como
uma irmandade que nos dá, nesta
esfera, uma consciência pátria” (das
Bewusstsein
einer
Heimatlichkeit)
(HUSSERL, [1936] 1976, p. 320).
Trata-se, portanto, de um solo
espiritual comum – idealizado pela
razão filosófica – no qual a
humanidade
europeia
estaria,
originariamente, radicada. A “perda”
deste solo espiritual (no sentido de
um lhe “dar às costas”) implicaria,
segundo Husserl, na ruína desta
humanidade.
Mas, como Husserl afirmava
desde o artigo de 1923, a Krisis – não
somente
epistemológica,
mas
também espiritual e existencial –
vivida pela Europa resulta da
alienação da humanidade européia a
um naturalismo funesto, para o qual
o homem não é senão um “fato
natural”. Segundo Husserl, os
próprios cientistas do espírito pouco
poderiam auxiliar essa humanidade
em meio a este cenário de crise, uma
vez que não abdicaram, desde o
último quarto do século XIX, de
estender este mesmo objetivismo
naturalista para o domínio das
ciências do espírito. Daí Husserl
dizer, uma vez mais, na conferência
de Viena, em tom de alerta, o que
fora uma das suas principais
preocupações ao longo das primeiras
décadas do século XX: “É um
contrassenso considerar a realidade
do espírito como um anexo real dos
corpos, atribuindo-lhe um ser espaço
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Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 18
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
temporal dentro da natureza”
(HUSSERL, [1936] 1976, p. 342). A
aceitação
de
tal
objetivismo
naturalista
implicaria,
segundo
Husserl, em uma “unilateralidade
ingênua”
(naive
Einseitigkeit):
contraditória
teoreticamente
e
perigosa para a cultura. Para Husserl,
tal visão naturalista do mundo e do
homem, ao relegar à vida espiritual
(criadora de formas culturais) um
sentido meramente “fisiológico”, se
tornou a principal responsável por
restringir esta humanidade a uma
humanidade meramente acidental,
fomentando, junto a ela mesma, a
perda do solo espiritual comum no
qual radica o povo europeu. Para
remediar tal estado de adoecimento
espiritual no qual se encontrava o
homem europeu seria necessário
denunciar,
novamente,
o
contrassenso
teórico
no
qual
inevitavelmente incorreria a doutrina
naturalista, bem como os perigos que
tal doutrina representaria para a
cultura. Husserl não hesita em
convocar essa humanidade a reviver
o que foi esquecido, fazendo renascer
a experiência de uma “racionalidade
efetiva” (wirklichen Rationalität) que,
ao triunfar sobre o naturalismo, uma
vez mais, uniria esta mesma
humanidade europeia, fortalecendo-a
novamente em seu solo espiritual
originário. Afinal, como o próprio
autor nos diz, os verdadeiros
combates do nosso tempo são os
combates entre uma humanidade já
arruinada pela guerra, reduzida ao
solo de suas particularidades, tais
como
nação, raça e
cultura
específicas, e outra que ainda resiste
e luta pela sua “auto-compreensão”
(Selbstverständnis), por uma nova
radicação a este solo espiritual
originário (mantendo a crença no
"ideal de uma filosofia universal”, de
uma philosophia perenis). Perder a
crença na capacidade do homem de
prover à sua existência individual e
geral um sentido racional implica,
para Husserl, em perder a crença
“em si mesmo”. A aceitação de um
solo
meramente
geográfico,
circunscrito a cada uma das nações
europeias, abriria novamente as
portas para um relativismo cético
que, além de incorrer em um
contrassenso teorético, se encontraria
na iminência de impactar gravemente
a cultura. Daí o tom alarmante do
discurso de Husserl, ao final do § 5
de A Crise das Ciências Européias:
“Nós, homens do presente, que
surgimos neste desenvolvimento,
encontramo-nos no grande perigo de
nos afundarmos no dilúvio cético e,
assim, de deixar escapar a nossa
verdade própria” (HUSSERL, [1936]
1976, p. 12). A nova denúncia (cujos
contornos começam a ser notados a
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As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação
teórica aos perigos para a cultura
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
partir da década de 20) mostra uma
face da crítica de Husserl ao
naturalismo, a partir da qual o que se
encontra em jogo não consiste em
evidenciar
tão
somente
o
contrassenso teórico – no âmbito do
debate sobre a fundamentação da
Lógica, da Matemática e mesmo da
própria Filosofia – inerente à
aceitação da doutrina naturalista,
mas mostrar que tal aceitação
reabriria as portas para um
relativismo cético, afastando-nos,
dessa vez, do que há de mais genuíno
no próprio homem (enquanto animal
rationale):
a
manifestação
da
experiência originária de uma
racionalidade efetiva por meio da
qual atribuímos sentido racional ao
mundo e a nossa própria existência.
Passemos,
então,
para
as
considerações finais a respeito da
relação indissociável entre os dois
aspectos da crítica de Husserl à
doutrina naturalista.
CONCLUSÕES
A crítica de Husserl ao
naturalismo apresenta-nos, portanto,
dois aspectos indissociáveis, a partir
dos quais somos, correlativamente,
colocados diante de duas denúncias
cruciais, inseparáveis no itinerário
husserliano: a primeira delas é de
ordem
puramente
teorética
(relacionada
a
problemas
de
fundamentos), ao passo que a
segunda
nos
remete
para
considerações do domínio éticosocial, no cenário da cultura europeia
da primeira metade do século XX.
Conforme vimos, de 1896 a 1911,
Husserl alerta-nos, para a seguinte
implicação da aceitação da posição
naturalista: a de que todo pensamento
que tenha como base a doutrina do
naturalismo incorre, inevitavelmente,
em um contrassenso teórico e, por
conseguinte, em um ceticismo que se
autocontradiz. Já no período de 1923
a 1935, como pudemos acompanhar,
Husserl concentra-se em denunciar os
impactos de tal modo de consideração
sobre a formação da mentalidade do
homem europeu, propondo-nos um
diagnóstico da etiologia da crise que
se instaurou na cultura europeia. Tais
denúncias
encontram-se
indissociavelmente ligadas. Afinal, ao
dar às costas para os problemas de
fundamentos nos quais o naturalismo
e,
sobretudo,
o
projeto
de
naturalização da “vida do espírito”,
incorria, esta mesma humanidade
europeia fomentava uma posição
perante o mundo, na qual ela mesma
ignorava o seu próprio “solo
espiritual”, se afastando, cada vez
mais, do que Husserl considerava o
seu telos originário, esvaindo-se,
enfim, em um objetivismo naturalista.
A ingenuidade teorética de tal
objetivismo converte-se em um
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Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho
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Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
realismo fatídico sem ideais. Em um
mundo reduzido a uma realidade de
fatos naturais, esta humanidade
acidental não tardaria em justificar
suas
decisões
com
base
em
proposições extraídas dos fatos e,
portanto, inferidas a partir da
observação positiva dos mesmos. Tais
proposições
–
enquanto
generalizações da experiência – não
perderiam a sua circunstancialidade.
A
existência
humana
estaria,
portanto, destinada a um desamparo
irreversível, uma vez que, por mais
êxito que o pensamento obtivesse, em
meio à exaltação do objetivismo
naturalista (que somente considera
como válido o que é verificável a
partir da observação sistemática da
regularidade dos fatos), o próprio
pensar – restrito a inferências de
proposições empíricas – não poderia
apreender conteúdos cuja validade
estivesse inteiramente livre do
assédio do que é contingente. Esvaída
em um naturalismo generalizado, a
filosofia estaria na iminência de seu
fim e a humanidade europeia
mergulharia, inevitavelmente, em
uma crise sem precedentes. Apesar de
suas convicções, Husserl parece
pressentir que a crítica ao naturalismo
pode permanecer inaudita por esta
mesma
humanidade
cujo
adoecimento espiritual é manifesto.
Afinal, como ele próprio nos diz, na
mesma conferência de 1935: “...a
situação nunca melhorará enquanto
não se colocar em evidência a
ingenuidade
do
objetivismo...”
(HUSSERL, [1936] 1976, p. 345) e não
nos convencermos do absurdo de
considerar a natureza e o espírito
como
realidades
de
sentido
homogêneo, confundindo, com isso,
os domínios do real e do ideal, do
espaço e do tempo, do que pode ser
tratado em termos de grandeza
numérica e do que somente pode ser
descrito como uma vivência de
duração. Tal ingenuidade naturalista
teria, portanto, um duplo aspecto:
alimentar, sem se aperceber, um
contrassenso teórico, além de renovar
uma posição perante o mundo, cujo
perigo logo se faz notar na própria
cultura. Trata-se, portanto, de uma
ingenuidade
–
dada
a
sua
periculosidade para a própria cultura
– distinta daquela mencionada por
Husserl a propósito da figura do
filósofo
como
“observador
desinteressado” e “contemplador do
mundo”. Se a primeira arruína a
humanidade, reduzindo-a a uma
mera acidentalidade, a segunda é
própria do caminho a ser trilhado
para redimi-la do esquecimento
daquilo que Husserl considera o telos
espiritual do homem europeu. Mais
do que nunca, ao denunciar tais
aspectos da “má ingenuidade”,
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As duas faces da crítica de Husserl ao naturalismo: dos problemas de fundamentação
teórica aos perigos para a cultura
Aoristo)))))
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enquanto
“funcionário
da
humanidade”
(Funktionär
der
Menschheit), observador anônimo do
mundo, a figura do filósofo renasce,
como uma fênix, para redimir esta
humanidade
da
sua
própria
incredulidade em uma “racionalidade
efetiva”, para redimi-la, enfim, do
esquecimento da própria filosofia,
forma cultural a partir da qual se
anuncia, aos olhos de Husserl, não
uma aquisição acidental de uma
humanidade fática (algo como um
mero “delírio histórico fático”), mas,
antes sim, o sentido originário da
vida espiritual, o solo genuíno do
homem europeu.
REFERÊNCIAS
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Erster Band. Prolegomena zur reinen
Logik. Halle a. d. S.: Max Niemeyer, ([1900]
1913).
HUSSERL, E. Einleitung in die Logik und
Erkenntnistheorie – Vorlesungen 1906/07.
Husserliana (Band XXIV). Dordrecht, The
Netherlands:
Martinus
Nijhoff,
([1906/1907] 1984).
HUSSERL, E. Die Idee der Phänomenologie
– Fünf Vorlesungen. Husserliana. Band II.
Netherlands: Martinus Nijhoff, ([1907]
1950).
HUSSERL, E.
Philosophie als strenge Wissenschaft. In:
Logos: Zeitschrift für systematische.
Philosophie / Logos, 1910-1911, 53 Seite
(n), pp. 289-341.
HUSSERL, E. “Erneuerung. Ihr Problem
und ihre Methode (1923)”. In: Aufsätze
und Vorträge (1922-1937). Husserliana.
Band XXVII. Dordrecht / Boston / London:
Kluwer Academic Publishers, ([1923]
1989).
HUSSERL, E. Cartesianische Meditationen
und Pariser Vorträge. Husserliana (Band
I). Den Haag, Netherlands: Martinuos
Nijhoff, ([1931/ 1929] 1973).
HUSSERL, E. “Die Krisis des europäischen
Menschentums und die Philosophie”. In:
Die Krisis der europäischen Wissenschaften
und die transzendentale Phänomenologie.
Husserliana. Band VI. Netherlands:
Martinus Nijhoff, ([1935] 1976).
HUSSERL, E. Die Krisis der europäischen
Wissenschaften und die transzendentale
Phänomenologie. Husserliana. Band VI.
Netherlands: Martinus Nijhoff, ([1936]
1976).
Submetido: 24 de julho 2017
Aceito: 31 de julho 2017
22
Prof. Dr. Carlos Diógenes C. Tourinho
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 22
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
A study about the universals in Ideas I
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena2.
Federal University of Juiz de For a – Brazil.
RESUMO
A questão dos universais permanece tema na filosofia tanto na ontologia como na epistemologia.
Em Husserl, há universais particulares, o ‘X’ noemático, o idêntico, e universais stricto sensu,
nomes universais atemporais. Neste artigo, apresento o tema conforme analisado por Husserl em
Ideias I. Na primeira seção, descrevo a trajetória até os universais destacando o paralelismo entre
noese e noema. Na segunda seção, traço o reflexo para a filosofia da linguagem também afetada
pela correspondência noético-noemática. Na terceira e última seção, mostro como a investigação
sobre os universais move-se apenas na esfera noemática, e concluo defendendo a possibilidade de
partindo do ‘X’ noemático alcançar o universal em sentido estrito.
PALAVRAS CHAVE Husserl, fenomenologia, Ideias, universais.
ABSTRACT
The problem of universals remains a philosophical theme not only in ontology but also in
epistemology. In Husserl, there are particular universals, the noematic ‘X’, the identical, and
universals stricto sensu, atemporal universal names. In this paper, I present the theme as it is
analyzed by Husserl in Ideas I. In the first section, I describe the trajectory to the universals
highlighting the parallelism between noese and noema. In the second section, I draw the
reflection of this problem on the philosophy of language which is also affected by the noeticnoematic correspondence. In the third and last section, I show how the investigation about the
universals moves in the noematic sphere, and conclude defending the possibility of reaching
the universal strict sense departing from the noematic ‘X’.
KEYWORDS
Husserl; phenomenology; Ideas; universals.
2
E-mail: nbcadena@gmail.com
23
A study about the universals in Ideas I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
INTRODUÇÃO
This paper is a study about the
universals in Ideias I. The term, in
German, is ‘Allgemeinheit’ and has
been translated to ‘universality’ in the
English edition of F. Kersten and in
the Spanish edition of J. Gaos. In the
Brazilian-Portuguese edition of M.
Suzuki it has been translated to
‘generalization’. I use the English
translation considering it more
accurate to the meaning given by
Husserl and I hope that at the end of
this paper the reason for this option is
clearer.
Initially, I will highlight a few
relevant
concepts,
the
eidetic
parallelism between noetic and
noematic, the path to §124 entitled
‘The Noetic-Noematic Stratum of
“Logos”,
and
‘Signifying
and
Signification’, where Husserl presents
different definitions of universality.
From this point, I will focus the study
on the idea of universals as
“universals names”, to wit, universals
stricto sensu. In the next section, I will
emphasize how the parallelism
between noetic and noematic also
echos in language and show a few
difficulties and possibilities for
reaching the universals and their
signification. In the third and last
section, I will explain how the path to
the universals is given in the
noematic sphere and how through the
universal given in the lived event, the
noematic ‘X’, it is possible to raise
consciousness to the universal stricto
sensu.
1.
TO THE UNIVERSALS
Husserl defines phenomenology as a
descriptive science (§71), therefore
establishes its object of knowledge
and method. The objects of its
knowledge are the essences of mental
processes [die Erlebnisse] 3 . The
method is neither that of the natural
sciences nor that of other eidetic
descriptive
sciences,
such
as
TRANSLATION NOTE: I would not
translate ‘die Erlebnisse’ to ‘mental
processes’. Das Erlebnis is a
remarkable event that someone has
experienced, or has lived. It refers to
the whole experience of living a
specific event. When you translate to
‘mental processes’, it seems that the
emphasis is on the consciousness acts
(noese), but ‘das Erlebnis’ is not only
about them, it is also about the content
of these acts (noema), and more, is
about the eidetic relation between
them (the noetic-noematic relation).
Therefore, I think the BrazilianPortuguese translation is better; it is
translated to ‘lived’ (vivido) to indicate
an event experienced or lived, in
shorten, a ‘lived event’ that now is
under focus.
24
3
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 24
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
geometry
(§§72-74).
The
phenomenological method is unique
and through reduction (§76) unveils
the
realm
of
transcendental
consciousness as primal category of
“absolute” being. In turn, the doctrine
of categories must set off from this
radical ontological specificity, the
distinction between consciousness
and transcendent, transcendental and
transcendent.
From this distinction the
phenomenological reflection moves
entirely
in
the
transcendental
dimension through acts of reflection
(§77). The object, or the content, of
these acts of reflection is any mental
process,
or
considering
our
4
translation, any lived event . When
the lived event is noticed, when a
reflection is directed to it, it becomes
an object to the Ego, to the
phenomenologist (§78).
The
interest
of
the
phenomenologist is about a very
specific part of the lived event 5 , its
essence. This part is only revealed
when
the
phenomenological
reduction is applied, and the findings
bracketed
become
outstanding
examples of universality of essences.
The path is as follows: at first sight,
See note #1.
From now on, I will adopt the
Brazilian-portuguese translation. ‘Das
Erlebnis’ is translated to ‘the lived
event’. See note #1.
4
5
Um estudo sobre os universais em Ideias I
there is the non-reflecting lived event;
then there is a modification of
consciousness, one becomes aware of
the lived event and starts to reflect on
it; the lived event becomes, then, a
reflected lived event. There are
various reflection acts that cross a
lived event, the immanent eidetic
seizing, the immanent experiencing,
the remembrance of something that
has been perceived, or the expectation
of something that will become
perceived.
These
modifications
belong to each lived event as possible
ideal variations, ideal operations,
reiterable modifications ad infinitum.
Conversely, only through reflexive
acts of experience, can we learn
something about the continuously
flowing and the necessary reference
to the Ego, one and the same self,
precisely because one can “look” at
the whole flowing of lived events
(§§78-80).
This flowing of lived events that
belongs to an Ego reveals a
continuous and endless temporality.
This complex of lived events is given
in this temporality, before, after and
simultaneously, in a continuous
progression of apprehensions, one
after another, and the Ego is given
absolutely and undoubtedly as an
idea, in the Kantian sense (§§81-83).
The lived event given to a pure I
is composed of a noetic dimension,
consciousness acts, and a noematic
dimension, the content of these acts.
25
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Thus, there is a perceiving act and the
perceived as such; a remembering act
and the remembered as such; the
judging act and the judged as such.
Put another way, the lived event is
composed
of
intentionality,
consciousness acts, the noetic, and
what
is
intentioned,
the
correspondent content of these acts,
the noematic. These contents can be
understood as real components of
lived events or non-real – ideal –
components of lived events, which
can be called sense (§§88-89).
The sense is immanently in
the lived event of perceiving, of
remembering and of judging, this is
the idea that phenomenology
intends to reach and describe. To
describe an idea is not to describe
thought, but to describe an essence,
an eidos. The core of the description
is the eidetic as given, to describe
the perception in its noematic
perspective. In other words, the
focus is not on the consciousness
acts as in Logical Investigations. In
Ideas I, what we are trying to
describe are the core of the contents,
the essences. In Husserl’s words:
Everything
which
is
purely
immanent and reduced in the way
peculiar to the mental process,
everything which cannot be
conceived apart from it just as it is
in itself, and which eo ipso passes
over into the Eidos in the eidetic
attitude, is separated by an abyss
from all of Nature and physics and
no less from all psychology – and
even this image, as naturalistic, is
not strong enough to indicate the
difference. (HUA 3, 184).
Therefore, all intentionally lived
events have intentional objects,
namely, their objective sense (§90-91).
The difficulty is in maintaining
attention on the parenthesized
effective object given in the lived
event and not allowing consciousness
to divert to the real object, to the thing
outside. This is because, although
phenomenology admits the existence
of real and transcendent things, it
takes them as components of the
phenomenon, as elements contained
in the reduced phenomenon, not as
objects of knowledge. (Drummond,
1945, p.229)
Even if there are attentional
changes and it is possible to privilege
different aspects of the lived event,
the noematic core remains identical
(§92). It is also possible to admit
changes on the noema, since different
modes of alteration to the lived event
are possible. Although, in the full
noema, the manifold modes gather in
a central core, “meant Objectivity as
Objectivity”. All these changes are
possible because, despite the fact that
the attentional modes are subjective,
the object struck by an Ego-ray is
independent, given only to the Ego,
26
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 26
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
but it is not “subjective” (§93).
Husserl asserts:
It is then a further undertaking of
more precise phenomenological
study to discover what is
prescribed according to eidetic law
precisely by species, and what is so
prescribed by the differentiating
particularities, for noemata of
changing particularities of a fixed
species (e.g., perception). But the
restriction holds throughout: in the
sphere of essences there is nothing
accidental; everything is connected
by eidetic relations, thus especially
noesis and noema. (HUA 3,
193/194)
These attentional modes reach
the noema and do not cause any
alteration on the identical noematic
core. Another way to put it is to say
that the ray of attention does not
separate from the self, it is and
remains a ray of the Ego, and the
“object” is reached, is target, given
only in reference to the Ego, but it is
not “subjective” (§92).
Thus, we can infer that on both
lower-level noeses such as sensitive
perceptions, and on higher-level
noeses such as moral judgments,
composition appears on the noematic
as a central core, something made
conscious, as, under the designation
of sense. A phenomenological study
aims to demonstrate in such species
of noema what is required by the
species itself and what is required by
the particularities of a fixed species.
This is because, in the sphere of
essences, in the study of the central
core of noema, there is no
contingency, it being necessary to
differentiate what is required by the
species from what is demanded by
the particularization (§93).
In other words, in apperceiving
the lived event, reduction reveals the
relation between real – hyletic and
noetic – and non-real or ideal –
noematic. In the example offered by
Husserl, a sensory lived event, the
sensitive perception of a tree is given:
on one side, there is the actual unity
of the lived, the color of the trunk of
the tree, color as sensitive stimulus,
sensation of color; on the other, there
is the unity of the noema, the
continuous unity of a variable
perceptual consciousness, the same
identical color in itself immutable.
The real unity of the lived event is
composed of hyletic and noetic
elements; it is the unity that reveals
the individual as the same, material,
concrete, which allows me to say “I
see the same tree”. The unity of the
ideal is the unity of the noema which
reveals the post-reduction essence
(§97).
There is also a third unity, the
noetic-noematic unity, which binds
that object to a certain essence. In the
post-reduction mode, the eidos of the
noema points to the eidos of the noetic
27
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
consciousness, that is, they are
eidetically interdependent, although
they are independent.
An issue arises: since noematic
“objects” are evidently units brought
to consciousness in the lived event,
but transcendent in relation to it, how
can we elucidate the relation between
the real composition of the lived
event and what is in consciousness as
ideal, as essence? (§102)
The intentional object as such
appears as support to all noematic
characters. All noematic characters
suggested
have
a
universal
phenomenological
scope,
they
constitute the necessary foundations
of all intentional lived events, the
same fundamental genera and species
of characteristics are also found
among all these founded lived events,
and therefore, in general, in all these
intentional lived events.
Corresponding to the noematic
characters, also called modes of being,
there are noetic characters (§103), for
example, certainty corresponds to
perceptual
belief,
possible
to
assumption, plausible to conjecture,
problematic to questioning, doubtful
to doubt, denial to rejection,
affirmation to assent (§§103-108).
Aside from the modifications related
to the sphere of belief, there is a
consciousness
mode
entirely
particular,
neutrality
(§109).
Neutrality is a modification in the
sphere of belief that does not operate,
does not scratch, does not emphasize,
it refrains from operating, abstains
from producing, puts out of action,
parenthesizes, leaves undecided. The
character of position is in suspense.
Belief, conjecture, denial, and other
noetic characters are neutralized and
the correlates are for consciousness,
not in the actual mode, but “mere
thinking of”.
Neutrality and positing are
opposing
attitudes,
yet
complementary (§110). They are
opposing attitudes because positing is
positional, evaluates with reason,
may be correct or not; neutrality or
suspension is not positional, cannot
be evaluated with reason, cannot be
neither correct nor incorrect. In
addition, various positions potentially
included in it can be taken from
effective
consciousness, effective
positions; on the other hand, neutral
consciousness does not contain any
“real”
predicate.
They
are
complementary because all lived
events ideally correspond to a
neutralization mode. Hence, there are
two fundamental possibilities of
realizing consciousness within the
cogito: the effective, positional,
authentic cogito, and the shadow,
non-effective,
non-positional,
inauthentic cogito. It happens that the
effective operation and the neutral
modification correspond and yet they
28
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 28
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
do not share the same essence
because when positional actuality is
neutralized it becomes potentiality
(§§113-114). Put another way, all
perception has its background of
perception and this is a unit of
potential positions. The background
leads to perspective changes and
potential "seizures". Or else, in the
essence of all lived events is outlined
beforehand a set of potential positions
of being.
Hence it is possible to identify
several intentional domains, one can
differentiate incipient or non-effected
acts from actual acts, among these
there are neutrality and positionality,
and among this there are actual and
potential positions. And, even in the
face of so many variables, the
parallelism between noese and noema
remains
under
all
intentional
domains (§115).
Up to this point, Husserl adopts
examples of simple noeses, acts of
perception. From then on, he turns his
attention to noeses of feeling, of
desiring, of willing (§§116-117). It
may seem a deviation in reasoning,
but it is within the framework of
affective consciousness that Husserl
makes an evident passage from
particular to universal.
To these new noetic moments
correspond a new dimension of sense,
new noematic moments: values.
Values are not determining parts of
things, but values of things. That is to
say, in the affective consciousness, the
higher level noema - value - is a core
of sense surrounded by new posited
characters. In other words, things
have no value, but support value, and
consciousness, in turn, consciousness
is of possible value, or else, only
things are supposed to be valuable.
Thus, apprehensions of value relate to
apprehensions of things in the same
way that the new noematic
characterizations
(beauty
and
ugliness, goodness and badness)
relate to modes of belief.
In
affective
consciousness,
positional
affective,
contents
correspond to acts, therefore, to acts
of pleasure, desire, valuation, acts of
will in general, correspond positional
characters. To these positional
characters lies an archontic positing
that unifies in itself and governs all
others, the supreme unity of species,
the universality of essence. Thus the
analogy between universal logic,
universal theory of value, and ethics.
These lead to the constitution of
formal universal formal parallel:
formal logic, formal axiology, and
theory of practice.
This is only possible because
every thesis is subject to an eidetic
law: any thesis, of whatever species
(including
affective),
can
be
transformed into an actual doxic
position. Therefore, any proposition
(including desire) can be transformed
into a doxic proposition. It is as if in
29
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
all
the
positional
characters
(including
valuations)
doxic
modalities were kept. Consequently,
every act or every correlate of act
takes on a logical aspect and can be
explained logically thanks to the
universality of essence. Otherwise, all
acts in general (including acts of
affection and will) are potentially
objectifying.
A new question arises, how can
we promote this unity once lived
events and the acts of consciousness
distend in time (§118)? These lived
events and their acts must be unified
in
syntheses,
synthesized
by
consciousness. Husserl identifies two
types
of
synthesis,
articulated
synthesis and continuous synthesis.
In articulated syntheses, acts are
linked in an act of higher order. In
continuous synthesis, unity belongs
to the same level of ordination; there
is no act of higher order unifying
them.
Considering the articulated
syntheses of lived events, the
possibility is evident of transforming
what one is aware of from many acts
(polythetic) into something that one is
simply conscious of because of a
single act (nomothetic) (§119). Thus
every noese contributes to the
constitution of a total object, or else,
every consciousness in synthetic
unity has a total object. In a simpler
way, a lived event is made up of
multiple
acts
and
each
act
corresponds to a noema. To unify a
lived event is to realize an articulated
synthesis, to identify an act of higher
order and its corresponding synthetic
object, a total object. Or, to intuit a
total object implies a specific act of
consciousness, since the ideal unity of
the object could not be intuited by a
dispersed multiplicity of particular
acts. (Moreland, 2001, p. 44)
A synthesis depends on the
character of the noeses, if all
subtheses are positional, it is
positional; if one is neutral, it is
neutral. Thus, from the positional
noeses, an articulated synthesis is
carried out step by step. Position,
apposition,
presupposition,
postposition
etc.
compose
an
articulated synthesis. It must be
remembered that these noeses are
radiations of an Ego as a source of
original productions (§122). It is an
active Ego. Every thesis begins with a
point of initiation (fiat), a first
spontaneous act,
for
example,
deciding or volunteering. Every act
can begin in this mode of spontaneity,
a creative act, in which the self makes
its entrance as subject of spontaneity
in a new flow of lived events.
This mode of initiation passes
through an eidetic need, a modal
change. This modal change does not
imply losing all that has been
previously apprehended, no synthetic
30
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 30
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
step is abandoned, but the mode of
actuality essentially changes with a
new actual thematic of origin. This is
because to every actual noetic change
corresponds a noematic change.
However, despite the necessary
changes of the noematic mode, the
essence always remains the same.
Having
established
these
premises, Husserl approaches the
subject from another perspective, that
of language.
1. UNIVERSALS AS
THEME OF PHILOSOPHY OF
LANGUAGE AND ITS
DIFFICULTIES
In
dealing
with
affective
consciousness, Husserl had already
stated that any proposition could be
transformed into a doxic proposition
(§117). It is from this "translation" of
non-doxic proposition into doxic
proposition that one can explain the
universality of predicative judgments
and the necessity of formal and
material
noetic
disciplines,
or
noematic and ontological (§118).
These disciplines are developed
from the articulated syntheses that
transform polythetical acts into
nomothetical acts, such as, collecting,
disjunctive, explicating and relating.
The whole series of syntheses
determine the formal-ontological
forms according to the pure forms of
the synthetical objectivities being
constituted in them and, with respect
to the structure of noematic formation
are mirrored in the apophantic
significational forms belonging to
formal logic. Simply put, the
articulated syntheses bind acts in a
unit and to the nomothetic act
corresponds a total object. Therefore,
to the formal-ontological forms noetic structure - a noematic structure
corresponds that, in turn, implies
apophantic forms of signifying the
formal logic. Put differently, every
process of synthesis that affects the
acts and their content, the noeticnoematic
relationship,
has
a
corresponding one in language, that
is, in formal logic understood as
apophantic, as propositional logic.
In logic, this correspondence is
evident by the law of nominalization
(§119) according to which every
proposition and every partial form
distinguishable in the proposition
corresponds to a nominal character.
Nominalization is the logical-formal
counterpart of the transformation of a
polythetical act into a nomothetic act
so that this named unit can serve as
the subject of an affirmation. Husserl
gives as an example the judgment
expressed in 'S is p' where 'S is p' can
be transformed into the subject of an
affirmation, "that 'S is p' is positive."
Husserl draws a parallelism
between all the layers described so far
and the layers of acts of expression,
31
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
logical in the apophantic sense, which
are also affected by the relation
between noese and noema. Hence the
noetic-noematic relationship also has
repercussions on expression and
signification (§124).
This parallelism implies an
amplification of the understanding
about the act of signifying and
signification. Before, they referred
only to the linguistic sphere, the
expression, but Husserl proposes its
extension to be applied in every
noetic-noematic sphere, whether
intertwined with expressive acts or
not.
The example is the following:
we perceive an object already put
nomothetically, "this is white". This
process does not require expression; it
is a perceptive act that does not
depend
on
expression
or
verbalization. If, however, we
verbalize, "this is white", then we
have a new expressive layer superior
to the noematic layer of "meant as
meant". This process applies also to
other acts such as remember and
fantasize.
Thus, we have the following
maxim: anything ‘meant as meant’
considered in the noematic sense of
any act is expressible through logical
significations. Quoting Husserl:
The verbal sound can only be called
an
expression
because
the
signification belonging to it
expresses; expressing inheres in it
originaliter. “Expression” is a
distinctive form which allows for
adapting to every “sense” (to the
noematic “core”) and raises it to the
realm of “Logos”, of the conceptual
and, on that account, the
“universal”. [HUA 3, 257]
In
the
noetic
dimension,
expressing is an act to which all other
acts must conform and combine so
that all acts of noematic sense, and
consequently
the
reference
to
objectivity, are conceptually stamped
on the noematic correlate of the
expression.
In short, on the lived event there
is, on one side, a real dimension that
includes the hyletic and the noetic, on
other side, an ideal dimension, the
noematic (§97). At first, we live the
perception, 'this is white', 'this is a
tree'. Then, we can verbalize this lived
event.
Remembering
that
the
expressive act is also affected by the
noetic-noematic relationship, it is
easily understood that, in its noetic
dimension,
its
expressive
act
combines several other acts, but with
the same noematic signification.
This
layer
of
expression
produced from previous layers brings
up some problems. Once all science is
objectified through "logic" in the
sense of apophantic, in the midst of
expression,
the
problems
of
expression and signification are
32
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 32
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
immediately
presented
to
the
philosopher. Some difficulties are:
how to understand the "expression"
of the "expressed", how expressive
lived events relate to non-expressive
ones and what the intervention of the
expression entails for the latter? What
is the eidetic nexus between the layer
of expressive signification and the
layer of what is expressed?
Despite giving expression to all
other intentionalities, the expressive
layer is not productive, or its
performance in noematic terms is
exhausted in the expression and in
the conceptual form. The expressive
layer is, in essence, perfectly in
accordance with the layer that
receives the expression accepting the
essence of this. For this reason it is
called representation. In further
words, the expression is a spiritual
formation that exerts new intentional
functions in the previous intentional
layer
and
from
it
receives
correspondingly
intentional
functions.
This
correspondence
between the non-expressive layer and
the expressive layer is such that when
the non-expressive layer is positional
or neutral, the expressive layer
follows it entirely in its mode.
It is in this context that Husserl
presents different definitions of
universality [Allgemeinheit].
Of particular importance is the
understanding of the different sorts
of “universality” which make their
appearance there: on the one side,
those which belong to each
expression
and
moment
of
expression, also to the nonselfsufficient “is”, “not”, “and”,
“if”, and so forth; on the other side,
the universality of “universal
names” such as “human being” in
contrast to proper names such as
“Bruno;” again, those which belong
to an essence which, in itself, is
syntactically
formless
in
comparison
to
the
different
universalities of signification just
touched upon. [HUA 3, 259]
In order to understand these
different definitions one has to
understand the different modes of
actuality
(§125),
or
different
modalities of performing the act
considering the layer of signification
(logic) and the lower founding layer
(the expressed). There are two
possible levels of confusion: first, the
relation between the expressive
(logical) layer and the lower layer (the
expressed), in this case the lower
layer may be a confusing unit (and
most often it is), or the adjustment
between the layer of what is
expressed and the layer of logical
expression is not precise; secondly,
the relation between the proposition
expressed and the ones that follow,
when the former ceases to be a theme
and it is overcome by the following,
for example, when we are reading,
33
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
we can articulate and freely effect
each signification and synthetically
connect significations.
The impact of these difficulties
on the method of clarification is
highly relevant, since the need to
move from confused thinking to
completely explicit knowledge and to
clarified and distinctive acts of
thinking is evident. That is to say, all
logical acts (acts of signification) need
to be converted into precise acts by
establishing a full logical distinction.
And, because of the correlation
between the noetic and noematic
dimension, something similar must
also be operated in the founding
lower layer, “everywhere unliving is to
be converted into the living, all confusion
into distinctness, but also all nonintuitiveness into intuitiveness”. [HUA
3, 260] Only when we perform this
work “of conversion” made in the
substractum, does the method of
clarification come into action.
Another difficulty level is the
difference between the complete and
incomplete expression (§126). There is
a unity between what is expressed
and what expresses; however, it
explains that the upper layer that
expresses does not have to extend
through the entire layer of what is
expressed. There does not need to be
a perfect match between what is
expressed and expression. The
expression is complete if it marks all
the synthetic forms and materials of
the lower layer, is incomplete if it
only does it partially.
There is, however, an inevitable
incompleteness that is part of the
essence of expression as such, that is,
of its universality. This implies that it
is contained in the sense of
universality, inherent to the essence
of the expression, that all the
particularities of the expressed can
never be reflected in the expression.
The expression layer is not a copy of
the layer of what is expressed, not all
dimensions of this layer are covered
in the expression. Even in the
particular sense of a term there
remain essential differences as to how
forms and synthetic materials find
expression.
One more difficulty is the need
to complement all significations,
forms
of
signification
and
“syncategorematic”
significations.
The
expressions
alone
are
understandable,
but
still
lack
complement. The question is what
does this need for complement of
significations imply and how does it
affect both layers.
For Husserl, all these points can
be clarified if it is explained “how
statings as the expressions of judging are
related to the expressing of other sorts of
acts.” [HUA 3, 262]. There are
proposition forms structured in a
peculiar
way,
interrogative
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Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 34
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
propositions,
presumptionpropositions, optative propositions,
imperative propositions, etc., but
interpretable dubiously. Questions
arise, do these expressions have a
kind of signification of their own, or
are they actually propositions of
statements?
Thought
over
the
theme
considering
only
the
noetic
dimension is insufficient. It is
necessary to consider the noematic
dimension to which the acts of
signification are directed. This, then,
is the radical problem:
“Is the medium of expressive
signifying,
this
appertinent
medium of the Logos, a specifically
doxic one? In the adaptation of the
signifying to the signified, does it
not coincide with doxic itself
inherent in all positionality?”
[HUA 3, 263]
A doxic expression, to be
faithful and complete, to express
straightforwardly a lived event, for
example, affective, could only
correspond to doxic lived events nonmodalized, that is, could only express
certainties. If I am not sure when I
wish, then it is not correct if in direct
adjustment I say, "May S be p." This is
because expressing is not merely
verbalizing, but signifying, a doxic act
in strong sense that expresses a
certainty of belief.
But, if modalities happen,
"Maybe S can be p", then one can try
to adjust the expression as much as
possible. However, in this case there
is a deviation. Such deviations are
possible because several possibilities
of explanation are the essence of all
objectivity. The expression is not then
adjusted to the original phenomenon,
but directly to the predicative
phenomenon derived from it.
Husserl makes one more
warning; the eidetic clarification of
the idea of doxa is not the same thing
as clarification of statements or
explanations.
2. FROM NOEMATIC ‘X’
TO THE UNIVERSALS
In the above quotation, Husserl
presents different definitions of
universal; the definition that we
intend to deepen is the one of
universals as "universal names". The
investigation of the universals opens
on both sides, noetic and noematic,
but the search for universal names,
strictly universal, occurs in the
noematic dimension. This is because,
to a large extent, what has been taken
by analyzing the acts was entirely
obtained by directing the gaze to the
"meant as meant", and thus, it is
intended to describe noematic
structures. In other words, given
eidetic parallelism between noesis
and noema that permeates all modes
35
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
of consciousness; the investigation of
universality of the noesis is only
complete when accompanied by the
search for the universality of the
noema. The objective is to direct
attention to the universal structure of
the noema. The phenomenological
problem of the reference of
consciousness to objectivity has, first
and foremost, its noematic side.
For Husserl, there is a universal
noematic structure in which a certain
noematic "core" separates from the
mutable "characters" belonging to it
(§129). The relation takes place in the
following way: every noema has a
content, that is, a signifying, and
refers through it to "its" object. That is
to say, an intentional lived event has
"reference to the object," but it is also
"consciousness
of
something."
However, the reference to the object
cannot be the same as the one desired
when
speaking
of
intentional
reference, since each noetic moment
corresponds to a moment of the
noema. So, how to find "the same",
the identity of the noema, its central
point, or else, the support to noematic
properties?
An “objectivity” is part of the
noema, an essence that is immune to
modifications (§130). The goal,
therefore, is the description of the
"object as intended", the “meant
objective something, as it is meant”,
avoiding all "subjective" expressions.
In this description, formal-ontological
expressions are used, such as "object",
"determination", "state of affairs";
material-ontological expressions such
as "physical thing", "bodily figure",
"cause"; determinations such as
"hard", "rough", "colored". All of them
under inverted commas, accordingly
the noematic-modified sense. Thus,
through conceptual explanation and
apprehension we obtain a closed set
of formal or material predicates that
determine the "content" of the
objective core of the noema.
It is important, however, to
point out that these predicates are
predicates of 'something', an identical
intentional object, a pure 'x', the
central noematic moment, a single
object, and such predicates are
unthinkable without this support
(§131). The predicates are oscillating
and variable, but the central point of
the intentional object is the same,
nothing contingent. Hence the object
is brought to consciousness as
identical and yet in different noematic
modes.
To each of the various noemas
correspond acts with different
nucleus, but in such a way that they
come together in a unity of identity,
in a unity in which the "something",
the determinable that is contained in
each
nucleus,
is
brought
to
consciousness as identical. And, just
as separate acts can come together in
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Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 36
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
a "concordant" unity; the "something"
of the separate nucleus is brought to
consciousness as being the same
something, the same 'X', the same
object.
Husserl, then, establishes a
possible difference between this
noematic core and sense. The
intentional object receives two
definitions, first, it is the pure point of
unity, that noematic object purely and
simply given; secondly, is the 'how' of
its determinations, including its
indeterminacy, is a noematic object in
the 'how' of its modes of givenness
(§132). Therefore, sense is a
fundamental part of the noema, but it
is not the core. Every sense has not
only "its object", but different senses
refer to the same object. Therefore,
sense is not a concrete essence of the
noema, but a kind of abstract form
intrinsic to it.
However, there may be a
coincidence between the sense and
the core. Husserl refers to sense in
fullness mode and the full core. If we
detect the sense exactly with the
content of determination in which it is
aimed and if we abstract all the
differences in the manner of being of
the modes of effectuation, then we
have access to a fullness of clarity. In
this case, there would be a
coincidence between the description
of the full core and the description of
the sense in its fullness mode.
Such a description occurs
through
the
formulation
of
propositions, again the parallelism
between noema and noese is present
(§133). The "sense" corresponds to
"matter" and the unity of sense and
thetic character to the "proposition".
There are propositions of a single
member, as in perceptions, and of
more than one member, synthetic
propositions, such as predicative
doxic (judgments). Propositions of
pleasure, desire, command, etc. may
be of one or more members. The task
is, on the one hand, the search for a
systematic and universal doctrine of
the
forms
of
the
senses
(significations), on the other, the
systematic
classification
of
propositions.
To delineate a systematic
doctrine of sense-forms or logical
significations, that is, of predicative
propositions, of judgments, with a
universal scope to mark all possible
kinds of significations in all possible
operations, is a capital task (§134). A
true morphology would constitute
the eidetic and necessary substrate for
a scientific mathesis universalis, for a
general morphology of the senses.
These synthetic forms belong to
a strict formal system and can be
extracted by abstraction and fixed in
conceptual expression. To determine
all these a priori forms and to
dominate in systematic completeness
the configurations of forms, which are
37
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
of an infinite diversity and yet
circumscribed by laws, implies the
idea of a morphology of propositions
or apophatic syntaxes.
Husserl explains that positions
can be doxic modalities, because
when we conjecture or explain or
affirm or deny, even assuming
different forms (“S could be p”, “Is S
p?”, “S is not p”, “S is p”, “S is
certainly, effectively p”), what is
“conjectured”,
or
what
is
“problematic”, or what is “asserted”,
or what is “denied” continue to have
the noematic correlates of these
different modes of expression. In
other words, the form is multiply
determined, however, there is a total
proposition of which a total thesis is
part, including in this a doxic thesis.
That is why every proposition can be
converted into a proposition of
statement, in a proposition on the
modality of the content. Once again
the correspondence between the
noetic and the noematic is present,
between the proposition and the
sense.
Thus every thing of nature is
represented by all senses and
propositions
that
are
variably
fulfilled, that is to say, it is
represented by the multiplicities of
"full cores", by all possible "subjective
modes of appearance”, in which it can
be constituted noematically as
something similar (§135). Put another
way, the unity of the thing contrasts
with the multiplicity of noetic lived,
all agreeing that they are aware of the
identical ‘X’.
Next, Husserl proposes the idea
of constitution of an object. To
constitute an object is to bring an
object to evidence; an object is
constituted in certain nexuses of
consciousness evidencing a unity, the
consciousness of an identical 'X'. It is
in this context that one can ask about
effectiveness: is the identity of the 'X'
intentioned noematically "effective"
identity? How can all those nexus of
consciousness make an effective
object? How does the noetic-noematic
constitution of objectivities occur?
Here, we are under the
jurisdiction of reason that asks about
effectiveness, conjecture, doubt, and
resolves the doubt. When one speaks
of actual, truly existing objects of the
category of being, the statement that
describes it "will be true" or "will be
effective" or "will be rationally
attestable" if it is in correlation with it.
This correlation is not empirical, but
an "ideal" possibility, a possibility of
essence. Simply put, what is being
described is the object as pure X, the
same, the identical, already reduced,
object of articulated synthesis, the
content of a nomothetic act.
Therefore,
the
correspondence
between the actual, existing object,
category of being, and the founded
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Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 38
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
statement, evidenced immediately, is
a possibility of essence.
To answer these questions about
effectiveness, Husserl introduces a
number of key interdependent
concepts,
they
are:
originarily
presentive,
“intuitive”
mode,
evidence, and belonging. A positional
lived event is given in originarily
presentive mode, for example,
perceptive acts such as vision, or in
non-originarily presentive mode such
as
remembering
(§136).
These
differences, however, do not affect the
pure sense of the proposition, for it is
always identical and intuitive as such
by consciousness. The difference is in
how sense, or proposition, requires an
addition of complementary moments,
that is, how sense or proposition is
filled or not filled. Husserl gives an
example: we see a landscape or we
remember a landscape. Considering
the way of filling the sense, in the first
case, we have the intuitive mode,
when the sense of the "object as such"
is brought to consciousness as an
originarily presentive, “in person”,
and in the noema corporeity is
merged into the pure sense. In the
intuitive mode is a mode of living the
sense in which the "object as such" is
brought
to
consciousness
in
originarily presentiveness. The sense
is fulfilled. In the second case, of
remembering, we have the opposite,
the consciousness of memory is not
originarily presentive, the landscape
is not perceived as such, although it
has its own legitimacy.
Husserl focuses on perception.
To any appearing “in person” belongs
a position. The position is motivated
by the appearance, that is, the
position has its originary foundation
of legitimation in the original data of
the appearing. In just the same
manner, the position of essence
originally given in the seeing of
essence belongs to the positionmaterial, to the 'sense'. The position of
essence is founded in the sense that in
its turn is founded on the intuition of
essence in original giving. So,
consciousness is able to intuit the
essence, the universal, from the
experience, from the particular
phenomenon.
Universals
are
transcendent
to
consciousness
although they are intuited and
evidenced
transcendentally.
(Sparrow, 2014, p. 29)
Make evident is to clarify the
unity of a rational position with what
motivates it, is the agreement
between what is understood and the
given (§§137-138). To evidence or
intellectual seeing is a positional,
doxic and adequately presentive
consciousness. It is an act of reason.
We have the evidence derived from
the apodictic view, as in the case of
arithmetic, where the data is
adequate, an evidence of essence, and
the evidence derived from experience
as in the example above, seeing a
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Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
landscape, a weak evidence in which
the
data
is
inadequate,
the
appearance is incomplete, although
the sense remains. In this case, the
task of phenomenology is to bring to
clarity
how
consciousness
of
inadequate data relates to a single
and determinable 'X'.
A position has its legitimation as
a position of its sense if it is rational
and rational character is what
corresponds to it by essence (§139). At
the same time, a proposition has its
legitimation when it is infused with
the noematic character. Remembering
that, considering only the doxical
sphere, all doxic modalities (possible,
believable, problematic, doubtful,
etc.) refer to the original doxa, that is,
they refer to an original rational
character that forms part of the
domain of the original belief that in
turn refers to the original evidence.
Simply put, all lines flow towards the
original belief and its original reason,
which is, the "truth". More than that,
only the original evidence is an
"original" source of legitimacy.
Remembering and empathy, although
motivated, are imperfect evidences
that can lead to original evidence only
in a mediate form. (§§140-141).
Husserl then presents his
definition: “Truth is manifestly the
correlate of the perfect rational
characteristics pertaining to protodoxa, to
certainly of belief.” [HUA 3, 290].
Therefore,
the
sentences
'the
proposition of doxa is true' and 'the
perfect rational character conforms to
the belief' are equivalent. To say that
it is true implies admitting its
rationality.
From eidetic understanding of
truth it is possible to deduce an
explanation of the eidetic correlation
between the idea of true being and
the idea of truth, between the "truly
existent object" and the "object to be
rationally put." To do so, the object
would be given completely with
respect to the determinable 'X', would
leave nothing "open". This is because
the rational thesis must have its basis
in the original given in the full sense,
the 'X' aimed at full determination
and originality. Thus, in principle,
every
"truly
existing"
object
corresponds to the idea of a possible
consciousness, in which the object
itself is originally apprehensible in
perfect suitability.
The possibility of apprehending
an object is eidetically prescribed by
its category, whether perfect or
imperfect, whether complete or
incomplete,
its
possibility
of
complementation or fulfillment (§
142). The category of the object
prescribes the general rules of
evidence for each particular object
brought
to
consciousness
in
multiplicities of concrete lived events,
prescribes the rules of how an object
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Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 40
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
can be brought to determinacy of its
meaning and mode of giving. The
determinations of the objects are
given by apoditic evidence, is the case
of space objects that are submitted to
the forms of pure geometry. The
geometry rule system determines all
possible motion shapes, but does not
trace any real singular stroke. The
transcendent cannot give itself
adequately, but the idea of something
transcendent, its sense, its a priori
rules, yes (§ 144).
In this sense, the natural
sciences seek the determination of
things as units put experimentally;
phenomenology seeks in the interior
of nature the univocal determination
in accordance with the idea of natural
object. Phenomenology is a new layer
of research, noetic and noematic,
which underpins natural sciences.
Thus, we have the maxim: “what takes
place in the Eidos functions as an
absolutely insurmountable norm of the
fact.” [HUA 3, 301]
What
matters
to
phenomenology is to study the
continuous unifications of identity in
all
domains,
all
studies
in
transcendental
orientation.
The
configurations of noeses and noemas,
systematic and eidetic morphologies,
needs and possibilities of essence,
forms of unification, eidetic relations
and laws of essence, in short, the
object of study is always the
designation of eidetic nexus and the
first step is the noematic 'X'. The
essences are conceived as ideal,
independently
existing,
timeless
universals that can be manifested in
distinct space-time particulars (Smith
and McIntyre, 1982, p. 117). For
example, among the essences of the
natural world we have 'thing', among
the essences of the ideal world we
have 'value' and among the essences
of the formal world we have
'number', which phenomenology
encompasses through eidetic laws
and reaches from the bond with the
noematic 'X'.
Therefore, the possibility of the
noematic 'X' is not attested only by
the originarily presentiveness, but
also by the whole chain that starts
from it, that is, the open access to
different levels of universality that
corroborate
reciprocally
and
coherently.
Though,
from
the
universal given in the lived event, the
noematic 'X', it is possible to trace all
the way to the universal in the strict
sense understood as abstract nonspatio-temporal property. This is the
reason why I considered the
translation of 'Allgemeinheit' to
universality more accurate then to
generality. A general idea is derived
from a process of abstraction, admits
exception. The universal as intended
is the result of phenomenological
reduction, admits no contingency, is
an abstract property, neither temporal
nor spacial, a universal in the strict
41
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
sense. This is the idea of universality
presented by Husserl in Ideas I.
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Madrid: Fondo de Cultura Económica,
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HUSSERL,
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Suzuki. Aparecida, SP: Idéias & Letras,
2006.
DRUMMOND, J. J. Husserlian intentionality
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MORELAND, J.P. Universals. Bucks: Acumen
Publishing, 2001.
SMITH, D. W. and MCINTYRE, R. Husserl
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SPARROW, T. The end of phenomenology.
Edinburgh: Edinburgh University Press,
2014.
Submetido: 21 de julho 2017
Aceito: 29 de julho 2017
42
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 42
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Um estudo sobre os universais em Ideias I
A study about the universals in Ideas I
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena6.
Professoa do Departamento de Filosofia da UFJF.
RESUMO
A questão dos universais permanece tema na filosofia tanto na ontologia como na epistemologia.
Em Husserl, há universais particulares, o ‘X’ noemático, o idêntico, e universais stricto sensu,
nomes universais atemporais. Neste artigo, apresento o tema conforme analisado por Husserl em
Ideias I. Na primeira seção, descrevo a trajetória até os universais destacando o paralelismo entre
noese e noema. Na segunda seção, traço o reflexo para a filosofia da linguagem também afetada
pela correspondência noético-noemática. Na terceira e última seção, mostro como a investigação
sobre os universais move-se apenas na esfera noemática, e concluo defendendo a possibilidade de
partindo do ‘X’ noemático alcançar o universal em sentido estrito.
PALAVRAS CHAVE Husserl, fenomenologia, Ideias, universais.
ABSTRACT
The problem of universals remains a philosophical theme not only in ontology but also in
epistemology. In Husserl, there are particular universals, the noematic ‘X’, the identical, and
universals stricto sensu, atemporal universal names. In this paper, I present the theme as it is
analyzed by Husserl in Ideas I. In the first section, I describe the trajectory to the universals
highlighting the parallelism between noese and noema. In the second section, I draw the
reflex of this problem to philosophy of language which is also affected by the noetic-noematic
correspondence. In the third and last section, I show how the investigation about the
universals moves only in the noematic sphere, and conclude defending the possibility of
departing from the noematic ‘X’ to reach the universal strict sense.
KEYWORDS
Husserl, phenomenology, Ideas, universals.
6
E-mail: nbcadena@gmail.com
43
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
INTRODUÇÃO
Este artigo é um estudo
sobre os universais em Ideias I. O
termo, em alemão, é ‘Allgemeinheit’ e
foi traduzido como universalidade
nas edições, em inglês, de F. Kersten
e, em espanhol, de J. Gaos; na edição
em português de M. Suzuki, é
traduzido como generalidade. Adoto
a tradução inglesa por considerá-la
mais fiel ao sentido do termo
conforme apresentado por Husserl e
espero que ao final do artigo fique
mais clara a razão desta opção.
Inicialmente, apresentarei
alguns conceitos relevantes para o
raciocínio, destaco o paralelismo de
essência entre noético e noemático, e a
trajetória até o §124 intitulado ‘A
camada
noético-noemática
do
“Logos”. Significar e significação’
onde Husserl destaca duas definições
de universalidade. A partir deste
ponto, o estudo terá como foco a ideia
de
universais
como
“nomes
universais”, isto é, universais em
sentido estrito. Na seção seguinte,
destaco como o paralelismo entre
noético e noemático também se reflete
na linguagem além das dificuldades e
da possibilidade de alcançar os
universais e seu significado. Na
última seção, explico como a trajetória
para os universais se dá na esfera
noemática e como a partir do
universal dado no vivido, o ‘X’
noemático, é possível elevar a
consciência ao universal em sentido
estrito.
1.
ATÉ OS UNIVERSAIS
Husserl define a fenomenologia como
ciência descritiva (§71), para tanto
estabelece
seu
objeto
de
conhecimento e seu método. Seu
objeto são as essências dos vividos
[der Erlebnisse]. Seu método não é o
das ciências naturais nem o de outras
ciências descritivas de essências,
como a geometria (§§72-74). O
método fenomenológico é único e
através da redução (§76) descortina o
reino da consciência transcendental
como protocategoria do ser em geral.
Por sua vez, a doutrina das categorias
tem de partir obrigatoriamente desta
que é a mais radical de todas as
diferenciações
ontológicas,
consciência
e
transcendente,
transcendental e transcendente.
Dada esta distinção, a reflexão
fenomenológica se move inteiramente
na dimensão transcendental através
de atos de reflexão (§77). Os objetos
destes atos de reflexão são os vividos.
Quando o vivido passa a ser notado,
quando uma reflexão se dirige a ele,
ele se torna, então, objeto para o eu, o
fenomenólogo
(§78).
44
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 44
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
O interesse do fenomenólogo é
sobre uma parte bastante específica
deste vivido, a essência. Uma parte
que somente é revelada quando
aplicada a redução fenomenológica.
Quando
praticada
a
redução
fenomenológica,
as
constatações
colocadas
entre
parênteses
se
convertem em casos exemplares de
universalidades de essência. A
trajetória é a seguinte: temos o vivido,
num primeiro momento, vivido
irrefletido; há, então, uma mudança
de
orientação
do
sujeito
de
conhecimento quando apercebe o
vivido e passa a refletir sobre ele; o
vivido passa, então, a vivido refletido.
Diversos são os atos de reflexão que
podem “atravessar” este vivido, a
apreensão eidética imanente, a
experiência imanente, a recordação
quando o vivido é um ter-sidopercebido
no
passado
ou
a
expectativa quando o vivido serápercebido no futuro, são alguns deles.
Essas modificações pertencem a cada
vivido
como
variações
ideais
possíveis,
operações
ideais,
modificações reiteráveis in infinitum.
No entanto, unicamente por atos de
experiência reflexivos sabemos algo
do fluxo de vividos e de sua
necessária referência ao eu puro, um
único e mesmo eu, justamente porque
ele pode “olhar” para todos os
vividos do fluxo (§§78-80).
Esse fluxo de vividos que
pertence a um único eu puro exprime
uma temporalidade contínua e
infinda. Esse horizonte de vividos se
dá, portanto, numa temporalidade,
antes, depois e simultaneamente,
numa
progressão
contínua
de
apreensão em apreensão, em que o eu
puro é o dado absoluto e indubitável,
uma ideia, no sentido kantiano (§§8183).
O vivido dado a um eu puro é
composto por uma dimensão noética,
os atos de consciência, e seu
conteúdo, o noema. Assim temos o
ato de perceber e o percebido como
tal; o ato de recordar e o recordado
como tal; o ato de julgar e o julgado
como tal. Posto de outra maneira, o
vivido é composto por vividos
intencionais, atos de consciência,
noéticos, e correlatos intencionais, os
componentes desses atos, seus
conteúdos,
noemáticos.
Esses
conteúdos, os componentes dos atos
de consciência, são, por sua vez,
divididos em componentes reais dos
vividos e componentes não-reais –
ideais – dos vividos, também
chamado de sentido (§§88-89).
O sentido está contido de
maneira imanente no vivido da
percepção, da recordação ou do
julgamento, esta é a ideia que a
fenomenologia pretende alcançar e
descrever. Descrever ideia, portanto,
não é descrever pensamento, mas
descrever essência. O objeto da
descrição é o dado eidético, descrever
a percepção em enfoque noemático.
45
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Em outras palavras, o foco não está
nos atos de consciência, como ocorria
nas Investigações Lógicas. Em Ideias I, o
que se pretende descrever são as
essências. Nas palavras de Husserl:
Everything
which
is
purely
immanent and reduced in the way
peculiar to the mental process,
everything which cannot be
conceived apart from it just as it is
in itself, and which eo ipso passes
over into the Eidos in the eidetic
attitude, is separated by an abyss
from all of Nature and physics and
no less from all psychology – and
even this image, as naturalistic, is
not strong enough to indicate the
difference. (HUA 3, 184).
Assim, todo vivido intencional
possui seu objeto intencional, isto é,
seu sentido objetivo (§90-91). A
dificuldade está em manter a atenção
no objeto efetivo entre parênteses
dado no vivido e não permitir que a
consciência se desvie para o objeto
real, a coisa lá fora. Isto porque,
embora a fenomenologia admita, ou
considere a coisa real, transcendente,
a toma como componente do
fenômeno, como elemento contido no
fenômeno reduzido. (Drummond,
1945, p.229)
Mesmo que haja mudanças
atencionais e seja possível privilegiar
diferentes aspectos no vivido, o
núcleo noemático permanece idêntico
(§92). Também é possível admitir
mudanças nos noemas, pois é
possível se tratar de modulações
necessárias da maneira pela qual o
idêntico se dá. Mesmo assim, no
interior do noema pleno, temos de
separar camadas essenciais diferentes,
que se agrupam em torno de um
núcleo central, o sentido objetivo. Tal
é possível porque embora as
configurações
atencionais
sejam
eminentemente subjetivas, o objetivo
atingido por seu raio de atenção é
independente, posto somente em
referência ao eu (§93). Nas palavras
de Husserl,
It is then a further undertaking of
more precise phenomenological
study to discover what is
prescribed according to eidetic law
precisely by species, and what is so
prescribed by the differentiating
particularities, for noemata of
changing particularities of a fixed
species (e.g., perception). But the
restriction holds throughout: in the
sphere of essences there is nothing
accidental; everything is connected
by eidetic relations, thus especially
noesis and noema. (HUA 3,
193/194)
Essas modificações atencionais
atingem o noema sem prejuízo do
núcleo
noemático
idêntico.
Consequentemente, o raio de atenção
não se separa do eu, mas ele mesmo é
e permanece raio do eu. O “objeto” é
atingido, é alvo, posto somente em
46
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 46
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
referência ao eu, mas ele mesmo não é
“subjetivo” (§92).
Assim é possível inferir que,
tanto nas noeses de nível mais baixo,
como as percepções sensíveis, como
nas noeses de nível mais alto, como os
julgamentos morais, aparece na
composição noemática, como um
núcleo
central,
algo
tornado
consciente como tal, sob a designação
de
sentido.
Num
estudo
fenomenológico, cabe constatar em
um tipo de noema o que é exigido
pelo próprio tipo e o que é exigido
pelas
particularizações
diferenciadoras. Isto porque, na esfera
das essências, no estudo no núcleo
central
do
noema,
não
há
contingência,
sendo
preciso
diferenciar o que é exigido pelo tipo e
o que é exigido pela particularização
(§93).
Posto ainda de outro modo, ao
aparceber o vivido, a redução revela a
relação entre o real – hilético e noético
– e o não-real ou ideal – noemático.
No exemplo oferecido por Husserl,
um vivido sensorial, a percepção
sensível de uma árvore, se dá do
seguinte modo: de um lado, a
unidade real do vivido, a cor do
tronco da árvore, cor como estímulo
sensível, cor de sensação; de outro, a
unidade do noema, a unidade
contínua
de
uma
consciência
perceptiva variável, a mesma cor
idêntica, em si imutável. A unidade
real do vivido é composta por
elementos hiléticos e noéticos, é a
unidade que revela o indivíduo como
o mesmo, material, concreto, o que
me permite dizer “vejo a mesma
árvore”. A unidade do ideal é a
unidade do noema que revela a
essência pós-redução (§97).
Há, ainda, uma terceira unidade,
a unidade noético-noemática, que une
aquele objeto à determinada essência.
No modo pós-redução, o eidos do
noema aponta para o eidos da
consciência noética, isto é, são
eideticamente
interdependentes,
embora sejam independentes.
Surge
uma
questão:
considerando que os “objetos”
noemáticos
são
evidentemente
unidades trazidas à consciência no
vivido, porém transcendentes em
relação a ele, como elucidar a relação
entre a composição real do vivido e
aquilo que nele se tem consciência
como ideal, como essência? (§102)
O objeto intencional como tal
aparece como suporte dos caracteres
noemáticos. Todos os caracteres
noemáticos
indicados
possuem
alcance fenomenológico universal,
constituem
os
embasamentos
necessários de todos os vividos
intencionais, os mesmos gêneros
fundamentais
e
diferenças
de
caracteres também se encontram em
todos esses vividos fundados e, por
conseguinte, em todos os vividos
intencionais
em
geral.
47
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Correlativamente aos caracteres
noemáticos, chamados também de
modos de ser, existem caracteres
noéticos (§103), por exemplo, ao certo
corresponde a crença perceptiva, ao
possível a suposição, ao verossímil a
conjectura,
ao
problemático
o
questionamento, ao duvidoso a
dúvida, ao negado a negação, ao
afirmado
a
afirmação
ou
assentimento (§§103-108). Ao lado
desses, há um vivido de consciência
inteiramente
particular,
a
neutralização (§109). A neutralização
é uma modificação da esfera de
crença que não opera, não risca, não
sublinha, ela se abstém de operar, põe
entre parênteses, deixa em suspenso.
O caráter de posição fica em
suspenso. A crença, a conjectura, a
negação e demais caracteres noéticos
são neutralizados e os correlatos estão
ali para a consciência, não no modo
efetivo, mas “meramente pensado”.
A neutralidade e a postulação
são
atitudes
opostas,
mas
complementares (§110). São opostas
porque a postulação é posicional,
avalia pela razão, pode ser correta ou
não; a neutralidade ou suspensão não
é posicional, não pode ser avaliada
pela razão, não pode ser correta ou
incorreta. Ademais, da consciência
efetiva podem ser tiradas diversas
posições
nela
potencialmente
inclusas, posições efetivas; já a
consciência neutra não contém em si
predicado
“real”
algum.
São
complementares porque a todo vivido
atual corresponde idealmente uma
modificação de neutralização. Deste
modo,
há
duas
possibilidades
fundamentais na maneira de efetuar a
consciência no interior do cogito: o
cogito efetivo, posicional, autêntico, e
o cogito sombra, inautêntico, nãoefetivamente posicional. Ocorre que a
operação efetiva e a modificação
neutra se correspondem e, no entanto,
não são da mesma essência visto que
quando a atualidade posicional é
neutralizada
se
converte
em
potencialidade (§§113-114). Posto de
outro modo, toda percepção tem seu
fundo de percepção e este é uma
unidade de posições potenciais. O
fundo é a designação para mudanças
do olhar e “apreensões” potenciais.
Ou ainda, na essência de todo vivido
está de antemão delineado um
conjunto de posições potenciais de
ser.
Daí ser possível identificar
diversos domínios intencionais, podese diferenciar atos incipientes ou nãoefetuados dos atos efetivos, dentre
estes temos a neutralidade e
posicionalidade entre os quais
encontramos a posição atual e
potencial. E, mesmo diante de tantas
variáveis, o paralelismo entre noese e
noema permeia todos os domínios
intencionais
(§115).
48
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 48
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Até este ponto, Husserl adota
exemplos de noeses simples, atos de
percepção. A partir de então, volta
sua atenção a noeses do sentir, desejar
e querer (§§116-117). Pode parecer um
desvio no raciocínio, mas é no âmbito
da consciência afetiva que Husserl faz
uma evidente passagem do particular
ao universal.
A esses novos momentos
noéticos
correspondem
novos
momentos noemáticos, os valores. Os
valores não são novas partes
determinantes das coisas, mas valores
das coisas. É dizer, na consciência
afetiva, o noema de nível superior – o
valor – é um núcleo de sentido
cercado de novos caracteres téticos.
De modo mais simples, a coisa não
tem valor, mas suporta valor e a
consciência, por seu turno, é
consciência de valor possível, a coisa
é somente suposta como valiosa.
Assim, as apreensões de valor se
relacionam com as apreensões de
coisas do mesmo modo que as novas
caracterizações noemáticas (bom, belo
etc.)
se
relacionam
com
as
modalidades de crença.
Na
consciência
afetiva,
posicional
afetiva,
aos
atos
correspondem conteúdos, portanto,
aos atos de prazer, querer, desejar,
valorar, atos de vontade em geral,
correspondem caracteres téticos. A
estes caracteres téticos subjaz uma
tese arcôntica que unifica em si e rege
todas as outras, a unidade suprema
do gênero, a universalidade da
essência. Daí a analogia entre a lógica
geral, a doutrina geral do valor e a
ética. Estas conduzem à constituição
de disciplinas universais e formais
paralelas: a lógica, a axiologia e a
prática.
Isto só é possível porque toda
tese está submetida a uma lei eidética:
toda tese, de qualquer gênero que seja
(incluindo
afetivo),
pode
ser
transformada em posição dóxica
atual. Portanto, qualquer proposição
(incluindo
desejo)
pode
ser
transformada
numa
proposição
dóxica. É como se em todos os
caracteres
téticos
(incluindo
valorativos) estivessem guardadas
modalidades
dóxicas.
Consequentemente, todo ato ou todo
correlato de ato abriga um aspecto
lógico podendo ser explicitado
logicamente graças à universalidade
de essência. De outro modo, todos os
atos em geral (incluindo atos de
afetividade e de vontade) são
potencialmente objetivantes.
Surge uma nova questão, como
promover essa unidade uma vez que
os vividos e os atos de consciência se
dilatam no tempo (§118)? Esses
vividos e seus atos precisam ser
unificados em sínteses, sínteses
operadas pela consciência. Husserl
identifica dois tipos de sínteses, as
sínteses articuladas e a síntese
contínua. Nas sínteses articuladas, os
atos são vinculados em um ato de
49
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
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ordem superior. Na síntese contínua,
a unidade pertence ao mesmo nível
de ordenação, não há um ato de
ordem superior unificador.
Diante das sínteses articuladas
dos vividos, fica evidente a
possibilidade de transformar aquilo
de que se tem consciência por muitos
atos (politética) em algo de que se tem
consciência simplesmente por um só
ato (nomotética) (§119). Assim, toda
noese contribui para constituição de
um objeto total, ou ainda, toda
consciência em unidade sintética
possui um objeto total. Posto de
modo mais simples, um vivido é
constituído de múltiplos atos e a cada
ato corresponde um noema. Unificar
um vivido é realizar uma síntese
articulada, identificar um ato de
ordem superior e seu objeto sintético
correspondente, um objeto total. Ou
ainda, intuir um objeto total implica
num ato de consciência específico,
pois a unidade ideal do objeto não
poderia ser intuída por uma
multiplicidade dispersa de atos
particulares. (Moreland, 2001, p. 44)
Uma síntese depende do caráter
das noeses, se todas as subteses são
posicionais, ela é posicional; se uma é
neutra, ela é neutra. Assim, a partir
das noeses posicionais, uma síntese
articulada é efetuada passo a passo.
Posição, aposição, pressuposição,
posposição etc. compõem uma síntese
articulada. É preciso lembrar que
essas noeses são irradiações do eu
puro como uma fonte originária de
produções (§122). É um eu ativo.
Toda tese começa por um ponto de
iniciação (fiat), um ato primeiro,
espontâneo, por exemplo, decidir-se
ou fazer voluntário. Todo ato pode
começar
nesse
modo
da
espontaneidade, um ato criador, no
qual o eu penso faz sua entrada como
sujeito de espontaneidade num novo
fluxo de vividos.
Esse modo de iniciação passa
por uma necessidade de essência,
uma alteração modal. Esta alteração
modal não implica perder tudo o que
foi apreendido anteriormente, não é
abandonado nenhum passo sintético,
mas o modo de atualidade se altera
essencialmente com uma nova
atualidade temática originária. Isto
porque a cada tipo de modificação
noética de atualidade corresponde
uma modificação noemática. No
entanto, é necessário estar atento,
pois, embora o modo de atualização
noemático varie necessariamente,
sempre permanece a essência.
Estabelecidas essas premissas,
Husserl aborda o tema sob outra
perspectiva,
a
da
linguagem.
50
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 50
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
2. UNIVERSAIS COMO
TEMA DA FILOSOFIA DA
LINGUAGEM E SUAS
DIFICULDADES
Ao tratar da consciência afetiva,
Husserl já havia fixado que qualquer
proposição poderia ser transformada
numa proposição dóxica (§117). É a
partir desta “tradução” da proposição
não-dóxica em proposição dóxica que
se pode explicar a universalidade do
juízo predicativo e a necessidade de
disciplinas
noéticas
formais
e
materiais,
ou
noemáticas
e
ontológicas (§118).
Essas
disciplinas
são
desenvolvidas a partir das sínteses
articuladas que transformam atos
politéticos em atos nomotéticos como
a coligação, disjunção, explicitação e
relação. Toda série de sínteses
determinam as formas formalontológicas segundo as formas puras
das objetividades sintéticas nelas
constituídas e, no que se refere à
estrutura noemática, refletem nas
formas apofânticas de significação da
lógica formal. De modo mais simples,
as sínteses articuladas vinculam atos
numa unidade e aos atos nomotéticos
corresponde
um
objeto
total.
Portanto,
às
formas
formalontológicas – estrutura noética –
corresponde uma estrutura noemática
que, por sua vez, implica em formas
apofânticas de significação da lógica
formal. Posto ainda de outro modo,
todo processo de síntese que afeta os
atos e seu conteúdo, a relação noéticonoemática, tem um correspondente
na linguagem, leia-se, na lógica
formal entendida como lógica
apofântica, proposicional.
Na lógica, esta correspondência
é evidente pela lei da nominalização
(§119) segundo
a
qual toda
proposição e toda forma parcial
distinguível
na
proposição
corresponde um caráter nominal. Em
outras palavras, nominalização é o
correspondente lógico-formal da
transformação de um ato politético
em um ato nomotético de modo que
esta unidade nomeada possa servir de
sujeito de uma afirmação. Husserl
apresenta
como
exemplo
o
julgamento expresso em ‘S é p’ em
que ‘S é p’ pode ser transformado em
sujeito de uma afirmação, “que ‘S é p’
é positivo”.
Husserl traça um paralelismo
entre todas as camadas descritas até
agora e as camadas de atos de
expressão,
lógicas
no
sentido
apofântico, as quais também são
afetadas pela relação noese e noema.
Daí a relação noético-noemática
também repercutir na expressão e na
significação (§124).
Este paralelismo implica numa
ampliação da compreensão acerca do
ato de significar e da significação.
Antes se referiam apenas à esfera
51
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
linguística, a expressão, mas Husserl
propõe sua ampliação para serem
aplicados em toda esfera noéticonoemática, quer estejam entrelaçados
com atos expressivos ou não.
O exemplo é o seguinte:
percebemos um objeto já posto
nomoteticamente, “isto é branco”.
Este processo não requer expressão, é
um ato perceptivo que não depende
de expressão ou verbalização. Se, no
entanto,
verbalizamos:
“Isto
é
branco”, então temos uma nova
camada expressiva superior à camada
noemática do “visado como tal”. Este
processo se aplica também a outros
atos como recordação e imaginação.
Assim,
temos
a
seguinte
máxima: todo visado no sentido
noemático de um ato qualquer é
exprimível mediante significações
lógicas. Cito Husserl:
The
verbal sound can only be
called an expression because the
signification belonging to it
expresses; expressing inheres in it
originaliter. “Expression” is a
distinctive form which allows for
adapting to every “sense” (to the
noematic “core”) and raises it to the
realm of “Logos”, of the conceptual
and, on that account, the
“universal”. [HUA 3, 257]
Na dimensão noética, exprimir
indica um ato ao qual todos os
demais atos devem se conformar e
fundir de modo que todos os atos de
sentido
noemático
e
consequentemente a referência à
objetividade
é
conceitualmente
estampada no correlato noemático da
expressão.
Simplificando, no vivido temos,
de um lado, sua dimensão real que
inclui o hilético e o noético, de outro,
sua dimensão ideal, o noemático
(§97). Neste primeiro momento,
vivemos a percepção, ‘isto é branco’,
‘isto é uma árvore’. Podemos, então,
verbalizar essa vivência. Lembrando
que o ato expressivo também é
atingido
pela
relação
noéticonoemática. Em sua dimensão noética,
é um ato expressivo que funde vários
outros atos, mas com um mesmo
sentido noemático.
Essa camada de expressão
produzida a partir de camadas
anteriores trás problemas difíceis,
pois toda ciência se objetiva no meio
“lógico” no sentido de apofântico, no
meio da expressão, e, portanto, os
problemas de expressão e significação
são aqueles que de imediato se
apresentam ao filósofo. Algumas
dificuldades são: como entender a
“expressão” do “expresso”, como os
vividos expressivos se relacionam
com os não-expressivos e o que a
intervenção da expressão acarreta
para estes últimos? Em outras
palavras, qual o nexo eidético entre a
camada da significação expressiva e a
camada do expresso?
52
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 52
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Há que se estar atento a um
ponto: apesar de emprestar expressão
a todas as outras intencionalidades, a
camada expressiva não é produtiva,
ou seu desempenho em termos
noemáticos se esgota na expressão e
na forma do conceitual. Posto de
outro modo, a camada expressiva
está, por essência, perfeitamente de
acordo com a camada que recebe a
expressão acolhendo a essência desta,
daí ser chamada de representação. Ou
ainda, a expressão é uma formação
espiritual que exerce novas funções
intencionais na camada intencional
anterior
e
dela
recebe
correlativamente
funções
intencionais. Esta correspondência
entre a camada não-expressiva e a
camada expressiva é tal que, quando
a camada não-expressiva é posicional
ou neutra, a camada expressiva a
acompanha inteiramente em seu
modo.
É neste contexto que Husserl
apresenta diferentes definições de
universalidade [Allgemeinheit]. Cito:
Of particular importance is the
understanding of the different sorts
of “universality” which make their
appearance there: on the one side,
those which belong to each
expression
and
moment
of
expression, also to the nonselfsufficient “is”, “not”, “and”,
“if”, and so forth; on the other side,
the universality of “universal
names” such as “human being” in
contrast to proper names such as
“Bruno;” again, those which belong
to an essence which, in itself, is
syntactically
formless
in
comparison
to
the
different
universalities of signification just
touched upon. [HUA 3, 259]
Para entender essas diferentes
definições há que se compreender os
diferentes modos de atualidade
(§125), ou diferentes modalidades de
efetuar o ato, considerando a camada
da significação (lógica) e a camada
inferior fundante (o expresso). São,
portanto, dois níveis de confusão
possíveis: primeiro, entre a camada
expressiva (lógica) e a camada
inferior (o expresso), neste caso, a
camada inferior pode ser uma
unidade confusa (e na maior parte
das vezes o é) ou o ajuste entre a
camada expressiva e a camada da
expressão lógica não é preciso;
segundo, entre as proposições
expressas quando sobrevém uma
proposição seguinte e a anterior cessa
de ser tema, por exemplo, quando
estamos lendo, podemos efetuar,
articuladamente e em livre atividade,
qualquer
significação
e
ligar
sinteticamente as significações.
O impacto destas dificuldades
no método de clarificação é altamente
relevante, pois é evidente a
necessidade de passar do pensamento
confuso
ao
conhecimento
53
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
propriamente dito e completamente
explícito, para a efetuação clara e
distinta dos atos de pensar. É dizer,
todos os atos lógicos (atos de
significação) precisam ser convertidos
em atos precisos instaurando uma
plena distinção lógica. E, devido a
correlação entre a dimensão noética e
noemática, é preciso operar algo
análogo também na camada inferior
fundante “everywhere unlivig is to be
converted into the living, all confusion
into distinctness, but also all nonintuitiveness into intuitiveness”. [HUA
3, 260] Só quando é efetuada esta
distinção no substractum, o método de
clarificação entra em ação.
Outro nível de dificuldade é a
diferença entre a expressão completa
e incompleta (§126). Há uma unidade
entre o que é expresso e o que
exprime, no entanto, explica que a
camada superior que exprime não
precisa se estender por toda a camada
do que é expresso. Em outras
palavras, não é preciso haver uma
coincidência
perfeita
entre
a
expressão e o expresso. Definindo, a
expressão é completa se marca todas
as formas sintéticas e materiais da
camada inferior, é incompleta, se só o
faz parcialmente.
Há,
no
entanto,
uma
incompletude inevitável que faz parte
da essência da expressão como tal,
isto é, de sua universalidade. Isto
implica que está contido no sentido
da universalidade inerente à essência
da
expressão
que
todas
as
particularidades do exprimido jamais
possam se refletir na expressão. A
camada da expressão não é uma cópia
da camada do expresso, dimensões
inteiras desta camada não são
cobertas pela expressão. Mesmo no
sentido particular de um termo
subsistem diferenças essenciais em
relação à maneira como as formas e as
matérias
sintéticas
encontram
expressão.
Mais uma dificuldade é a
necessidade de complementar todas
as significações, as significações de
forma e sincategorimáticas. As
expressões isoladamente são até
compreensíveis, mas ainda assim
carecem de complemento. A questão
é o que significa essa necessidade de
complemento e como afeta ambas as
camadas.
Para Husserl, haverá clareza
sobre todos esses pontos se for
explicado “how statings as the
expressions of judging are related to the
expressing of other sorts of acts.” [HUA
3, 262] Há formas de proposições
construídas de modo próprio,
conjecturas,
perguntas,
dúvidas,
desejos,
ordens
etc.,
mas
interpretáveis de modo dúbio.
Coloca-se a seguinte questão, essas
expressões tem uma espécie de
significação própria ou, na verdade,
são proposições de enunciado?
54
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 54
Aoristo)))))
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Refletir
sobre
o
tema
considerando apenas a dimensão
noética é insuficiente. Há que se
considerar a dimensão noemática a
qual os atos de significação estão
dirigidos. Eis, portanto, o problema
radical:
Is the medium of expressive
signifying,
this
appertinent
medium of the Logos, a specifically
doxic one? In the adaptation of the
signifying to the signified, does it
not coincide with doxic itself
inherent in all positionality? [HUA
3, 263]
Uma expressão dóxica para ser
fiel e completa, para expressar de
maneira direta um vivido, por
exemplo,
afetivo,
só
poderia
corresponder a vividos dóxicos nãomodalizados, isto é, só poderia
expressar certezas. Se não tenho
certeza ao desejar, então não é correto
se em ajuste direto digo: “Possa S ser
p.” Isto porque expressar não é mero
verbalizar, mas significar, um ato
dóxico em sentido forte que expressa
uma certeza de crença.
Agora, se surgem modalidades,
“Talvez S possa ser p”, então se pode
tentar ajustar a expressão o mais
possível. Entretanto, neste caso, há
um desvio. Tais desvios são possíveis
porque é da essência de toda
objetividade várias possibilidades de
explicação. A expressão não é, então,
ajustada ao fenômeno originário, mas
diretamente ao fenômeno predicativo
dele derivado.
Husserl faz ainda um último
alerta, a clarificação eidética da ideia
de doxa não é a mesma coisa que
clarificação dos enunciados ou das
explicações.
3. DO ‘X’ NOEMÁTICO AOS
UNIVERSAIS
Na citação acima, Husserl
apresenta diferentes definições de
universal,
a
definição
que
pretendemos aprofundar é a de
universais
como
“nomes
universais”. A investigação sobre os
universais abre-se em ambos os
lados, noético e noemático, mas a
busca pelos nomes universais,
universais em sentido estrito, se dá
na dimensão noemática. Até porque,
em grande medida, aquilo que se
tomou por análise dos atos foi
inteiramente
obtido
por
direcionamento do olhar para o
“visado enquanto tal”, e assim, ali se
pretende
descrever
estruturas
noemáticas. Em outras palavras,
dado o paralelismo de essência entre
noese e noema que perpassa todos
os modos de consciência, a
investigação sobre a universalidade
da noese somente se dá de maneira
completa quando acompanhada da
busca pela universalidade do
noema. Pretende-se direcionar o
55
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
olhar para a estrutura universal do
noema. Isto é, o problema
fenomenológico da referência da
consciência a uma objetividade tem,
antes de tudo, seu lado noemático.
Para Husserl, há uma estrutura
noemática universal na qual certo
“núcleo” noemático se separa dos
“caracteres”
mutáveis
a
ele
pertencentes (§129). A relação se dá
da seguinte maneira: todo noema tem
um conteúdo, isto é, um sentido, e se
refere, por meio dele, a “seu” objeto.
Posto de outro modo, o vivido
intencional tem “referência ao
objeto”, mas também é “consciência
de algo”. No entanto, esta referência
não pode ser a mesma que a visada
quando se fala da referência
intencional, pois cada momento
noético corresponde um momento do
noema. Então, como encontrar “o
mesmo”, a identidade do noema, seu
ponto central, ou ainda, o suporte
para propriedades noemáticas?
Do noema faz parte uma
“objetividade”, uma essência que é
insensível a modificações (§130). O
objetivo, portanto, é uma descrição do
“objeto visado tal como é visado”
evitando
todas
as
expressões
“subjetivas”. Nesta descrição se
empregam
expressões
formalontológicas, tais como “objeto”,
“propriedade”, “estado de coisas”,
expressões material-ontológicas como
“coisa”,
“figura”,
“causa”,
determinações
como
“áspero”,
“duro”, “colorido”. Todas entre aspas
e, portanto, em seu sentido noemático
modificado. Assim, pela explicação e
apreensão conceitual obtemos um
conjunto fechado de predicados
formais ou materiais que determinam
o “conteúdo” do núcleo objetivo do
noema.
É importante, no entanto,
ressaltar que esses predicados são
predicados de “algo”, um objeto
intencional idêntico, um puro ‘x’, o
momento noemático central, um
objeto único, e tais predicados são
impensáveis sem esse suporte (§131).
Os predicados são oscilantes e
variáveis, mas o ponto central do
objeto intencional é o mesmo, nada
tem de contingente. Daí o objeto ser
trazido à consciência como idêntico e,
todavia, em modos noemáticos
diferentes.
A cada um dos vários noemas
correspondem atos com diferentes
núcleos, mas de tal modo que, apesar
disso, eles se juntam na unidade da
identidade, numa unidade na qual o
“algo”, o determinável, que está
contido em cada núcleo é trazido à
consciência como idêntico. E, da
mesma maneira que os atos
separados podem se juntar numa
unidade “concordante”; o “algo” dos
núcleos separados é trazido à
consciência como sendo o mesmo
algo, o mesmo ‘X’, o mesmo objeto.
56
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 56
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Isto posto, Husserl estabelece
uma possível diferença entre este
núcleo noemático e o sentido. O
objeto intencional recebe duas
definições, na primeira, é o puro
ponto de unidade, esse objeto
noemático dado pura e simplesmente;
na segunda, é o ‘como’ de suas
determinidades,
incluindo
suas
indeterminidades, é um objeto
noemático no ‘como’ de seus modos
de doação (§132). Portanto, o sentido
é parte fundamental do noema, mas
não é a parte central. Todo sentido
não possui apenas “seu objeto”, mas
diferentes sentidos se referem ao
mesmo objeto. O sentido não é,
portanto, uma essência concreta do
noema, mas uma espécie de forma
abstrata a ele intrínseca.
No entanto, é possível haver
uma coincidência entre o sentido e o
núcleo. Husserl se refere ao sentido
no modo de sua plenitude e o núcleo
pleno. Se detectarmos o sentido
exatamente com o conteúdo de
determinação no qual ele é visado e
se abstraímos todas as diferenças na
maneira de ser dos modos de
efetuação, então temos acesso a uma
plenitude de clareza. Neste caso,
haveria
uma
coincidência
na
descrição do núcleo pleno e do
sentido no modo de sua plenitude.
Tal descrição se dá através da
formulação de proposições, mais uma
vez o paralelismo entre noema e
noese está presente (§133). O
“sentido” corresponde à “matéria” e a
unidade de sentido e caráter tético à
“proposição”. Há proposições de um
só membro, como nas percepções, e
de mais de um membro, proposições
sintéticas,
como
as
dóxicas
predicativas (juízos). As proposições
de prazer, de desejo, de comando etc.
podem ser de um ou mais membros.
A tarefa que se coloca é, de um lado, a
busca por uma doutrina sistemática e
universal das formas dos sentidos
(significações), de outro, a tipificação
sistemática das proposições.
Delinear
uma
doutrina
sistemática das formas dos sentidos
ou das significações lógicas,é dizer,
das proposições predicativas, dos
juízos, com alcance universal de
modo que assinale todos as espécies
possíveis de sentido em todas as
operações possíveis é tarefa capital
(§134). Uma verdadeira morfologia
que constituirá o substrato necessário
por essência para uma mathesis
universalis científica, para uma
morfologia geral dos sentidos.
Essas
formas
sintéticas
pertencem a um rigoroso sistema
formal e podem ser extraídas por
abstração e fixadas em expressão
conceitual. Determinar todas essas
formas a priori e dominar em
completude
sistemática
as
configurações de formas, que são de
uma diversidade infinita e, no
entanto, circunscritas por leis, indica a
57
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
ideia de uma morfologia das
proposições ou sintaxes apofânticas.
Husserl oferece um exemplo: as
posições podem ser modalidades
dóxicas, pois, quando conjecturamos
ou explicamos ou afirmamos ou
negamos,
mesmo
assumindo
diferentes formas (“S poderia ser p”,
“É S p?”, “S não é p”, “S é, sim p”, “S
é certamente, efetivamente p”), o
“conjecturado”
ou
o
“algo
problemático” ou o “afirmado” ou o
“negado” seguem tendo os correlatos
noemáticos
dessas
diferentes
modalidades de expressão. Em outras
palavras, a forma está multiplamente
determinada, no entanto, há uma
proposição total da qual faz parte
uma tese total, incluindo nesta uma
tese dóxica. Daí porque toda
proposição poder ser convertida num
proposição de enunciado, num juízo
sobre da modalidade de um
conteúdo.
Mais
uma
vez
a
correspondência entre o noético e
noemático se faz presente, entre a
proposição e o sentido.
Assim, cada coisa da natureza é
representada por todos os sentidos e
proposições
variavelmente
preenchidas,
é
dizer,
ela
é
representada pelas multiplicidades de
“núcleos plenos”, por todos os
possíveis “modos de aparição
subjetivos”, nos quais ela pode ser
constituída noematicamente como
algo idêntico (§135). Posto de outro
modo, à unidade da coisa se
contrapõe a multiplicidade de vividos
noéticos, todos concordantes de que
são consciência do mesmo.
Daí Husserl propor a ideia de
constituição de um objeto. Constituir
um objeto é trazer um objeto à
evidência, um objeto se constitui em
certos
nexos
de
consciência
evidenciando
uma
unidade,
a
consciência de um ‘X’ idêntico. É
neste contexto que se pode perguntar
sobre a efetividade: a identidade do
‘X’ “visada” noematicamente é
identidade efetiva? Como podem ser
descritos todos aqueles nexos de
consciência que tornam um objeto
efetivo? Como se dá a constituição
noético-noemática de objetividades?
Aqui, estamos sob a jurisdição
da razão que pergunta sobre a
efetividade, conjectura, duvida e
dirime a dúvida. Quando se fala de
objetos efetivos, verdadeiramente
existentes, da categoria do ser, o
enunciado que o descreve “será
verdadeiro” ou “será efetivo” ou
“será racionalmente atestável” se
estiver em correlação com ele [objeto].
Essa correlação não é empírica, mas
possibilidade “ideal”, possibilidade
de essência. Simplificando, o que está
sendo descrito é o objeto como puro
X, o mesmo, o idêntico, já reduzido,
objeto de síntese articulada, conteúdo
de um ato nomotético. Portanto, a
correspondência entre o objeto
58
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 58
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
efetivo, existente, categoria do ser, e o
enunciado fundado, evidenciado
mediatamente, é uma possibilidade
de essência.
Para responder a essas questões
sobre efetividade, Husserl introduz
uma série de conceitos chave
interdependentes, são eles: doação
originária, modo intuitivo, evidência
e inerência. Os vividos posicionais se
dão em doação originária, por
exemplo, atos perceptivos como a
visão, ou em doação não originária,
por exemplo, atos não perceptivos
como a recordação (§136). Essas
diferenças, no entanto, não afetam o
sentido puro da proposição, pois ele é
idêntico e sempre intuível como tal
pela consciência. A diferença está na
maneira como o mero sentido, ou
proposição, requer um acréscimo de
momentos complementares, é dizer,
como o sentido ou a proposição são
preenchidos ou não preenchidos.
Husserl oferece um exemplo: vemos
uma paisagem ou recordamos uma
paisagem. Considerando o modo de
preenchimento do sentido, no
primeiro caso, temos o modo
intuitivo, quando o sentido do “objeto
visado como tal” é trazido à
consciência como doação originária,
em carne e osso, e no noema
encontra-se a corporeidade fundida
ao sentido puro. Temos, então, que o
modo intuitivo é um modo de viver o
sentido no qual o “objeto visado
como tal” é trazido à consciência, por
exemplo, na doação originária. O
sentido está preenchido. No segundo
caso, da recordação, temos o oposto, a
consciência de recordação não é
originariamente doadora, a paisagem
não é percebida, embora tenha uma
legitimidade própria.
Husserl
se
concentra
na
percepção. A toda aparição de uma
coisa em carne e osso é inerente uma
posição. A posição é motivada pela
aparição, isto é, a posição tem seu
fundamento originário de legitimação
no dado originário da aparição. Da
mesma maneira, a posição de essência
dada originariamente na apreensão
intuitiva de essência é inerente a sua
“matéria posicional”, ao “sentido”.
Em outras palavras, a posição de
essência é fundada no sentido que por
sua vez é fundado na intuição de
essência em doação originária. Deste
modo, a consciência é capaz de intuir
a essência, o universal, a partir da
vivência, do fenômeno particular.
Deste modo, os universais são
transcendentes à consciência embora
sejam intuídos e evidenciados
transcendentalmente. (Sparrow, 2014,
p. 29)
Tornar evidente é clarificar a
unidade de uma posição racional com
aquilo que a motiva, é o acordo entre
o que se entende e o dado (§§137138). Evidenciar ou ver com clareza é
uma consciência dóxica posicional
adequadamente doadora, é ato da
razão. Temos a evidência derivada do
59
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
ver apodítico, como no caso da
aritmética, em que o dado é
adequado, uma evidência de essência,
e a evidência derivada do ver
assertório como no exemplo acima,
ver uma paisagem, uma evidência
fraca em que o dado é inadequado, a
aparição é incompleta, embora o
sentido permaneça. Neste caso, é
tarefa da fenomenologia trazer à
clareza
como
a
consciência
inadequada do dado se reporta a um
único e mesmo ‘X’ determinável.
Uma
posição
tem
sua
legitimação como posição de seu
sentido se é racional e caráter racional
é aquilo que lhe cabe por essência
(§139).
Paralelamente,
uma
proposição tem sua legitimação
quando está dotada do caráter
noemático.
Lembrando
que,
considerando apenas a esfera dóxica,
todas as modalidades dóxicas
(possível, verossímil, problemático,
duvidoso etc.) remetem a doxa
originária, isto é, remetem a um
caráter racional originário que faz
parte do domínio da crença originária
que por sua vez remete a evidência
originária. Simplificando, todas as
linhas correm rumo à crença
originária e a sua razão originária,
isto é, a “verdade”. Mais do que isso,
somente a evidencia originária é fonte
“original”
de
legitimidade,
a
recordação e a empatia, apesar de
motivadas, são evidências imperfeitas
que podem terminar numa evidência
originária apenas de forma derivada,
mediata. (§§140-141).
Husserl apresenta então sua
definição: “Truth is manifestly the
correlate of the perfect rational
characteristics pertaining to protodoxa, to
certainly of belief.” [HUA 3, 290].
Portanto, as sentenças ‘a proposição
de doxa é verdadeira’ e ‘o caráter
racional perfeito convém à crença’ são
equivalentes. Dizer que é verdadeiro
implica em admitir sua racionalidade.
Da compreensão eidética de
verdade
pode-se
obter
uma
explicação da correlação eidética
entre a ideia do ser verdadeiro e a
ideia de verdade, entre “objeto
verdadeiramente existente” e “objeto
a ser posto racionalmente”. Para
tanto, o objeto seria dado de maneira
completa, com respeito ao ‘X’
determinável, não deixaria nada em
“aberto”. Isto porque a tese racional
deve ter seu fundamento no dado
originário no sentido pleno, o ‘X’
visado em plena determinidade e
originariedade. Assim, por princípio,
todo
objeto
“verdadeiramente
existente” corresponde à ideia de uma
consciência possível, na qual o
próprio
objeto
é
apreensível
originariamente
e
em
perfeita
adequação.
A possibilidade de apreensão de
um
objeto
está
eideticamente
prescrita por sua categoria, se perfeita
60
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 60
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
ou imperfeita, se completa ou
incompleta, sua possibilidade de
complementação ou preenchimento (§
142). A categoria do objeto prescreve
as regras gerais de evidência para
cada objeto particular trazido à
consciência em multiplicidades de
vividos concretos, prescreve as regras
para o modo como um objeto pode
ser trazido à determinidade de seu
sentido e modo de se dar. As
determinidades dos objetos se dão
por evidência apodítica, é o caso, por
exemplo, dos objetos espaciais
submetidos às formas da geometria
pura. O sistema de regras da
geometria determina todas as figuras
de movimentos possíveis, mas não
traça nenhum transcurso singular
real. O transcendente não pode se dar
adequadamente, mas a ideia de um
algo transcendente, seu sentido, suas
regras a priori, sim (§ 144).
Neste sentido, as ciências
naturais buscam a determinação das
coisas enquanto unidades postas
experimentalmente, a fenomenologia
busca no interior da natureza a
determinação
unívoca
em
conformidade com a ideia de objeto
natural. É uma nova camada de
investigação fenomenológica, noética
e noemática, que fundamenta as
ciências naturais. Assim, temos a
máxima: “what takes place in the Eidos
functions
as
an
absolutely
insurmountable norm of the fact.” [HUA
3, 301] O
que
interessa a
fenomenologia
é
estudar
as
unificações contínuas de identidade
em todos os domínios, todos os
estudos em orientação transcendental.
As configurações de noeses e noemas,
morfologias sistemáticas e eidéticas,
necessidades e possibilidades de
essência, formas de unificação,
relações eidéticas e lei de essência,
simplificando, o objeto de estudo é
sempre a designação de nexos
eidéticos cujo primeiro passo é o ‘X’
noemático. As essências concebidas
como ideal, existentes de maneira
independente, universais atemporais
que podem ser manifestadas em
distintos
particulares
espaçotemporais (Smith and McIntyre, 1982,
p. 117). Por exemplo, dentre as
essências do mundo natural temos
‘coisa’, dentre as essências do mundo
ideal temos ‘valor’ e dentre as
essências do mundo formal temos
‘número’, as quais a fenomenologia
abrange mediante leis eidéticas e
alcança a partir do vínculo com o ‘X’
noemático.
Portanto, a possibilidade do ‘X’
noemático não é atestada apenas pela
doação originária, mas também por
toda a cadeia que a partir dele se
inicia, isto é, o acesso que se abre a
diferentes níveis de universalidade
que
corroboram
recíproca
e
coerentemente. Posto de outro modo,
do universal dado no vivido, o ‘X’
noemático, é possível traçar caminho
até o universal em sentido estrito
61
Um estudo sobre os universais em Ideias I
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
entendido como propriedade abstrata
não espaço-temporal. Daí a opção
pela tradução de ‘Allgemeinheit’ como
universalidade
e
não
como
generalidade. O termo generalidade
não faz jus ao pretendido em Ideias I.
O geral é derivado de um processo de
abstração,
admite
exceção.
O
universal pretendido é resultado da
redução fenomenológica, não admite
qualquer contingência, é propriedade
abstrata não espaço temporal, um
universal em sentido estrito.
REFERÊNCIAS
HUSSERL, E. Logical Investigations. Volume
I and II. Translated by J. N. Findlay.
London: Routledge, 2001.
HUSSERL, E. Husserliana 3, 1-2. Ideen zu
einer
reinen
Phänomenologie
uns
phänomenologischen Philosophie. Erstes
Buch. Allgemeine Einführung in die reine
Phäenomenologie. Ed. Karl Schumann. Den
Haag: Martinus Nijhoff, 1976.
HUSSERL, E. Ideas pertaining to a pure
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philosophy. First book. Translated by F.
Kersten. The Hague: Martinus Nijhoff
Publishers, 1983.
HUSSERL, E. Ideas relativas a una
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fenomenológica. Traducción de José Gaos.
Madrid: Fondo de Cultura Económica,
1993.
HUSSERL,
E.
Ideias
para
uma
fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica: introdução geral à
fenomenologia pura. Tradução: Márcio
Suzuki. Aparecida, SP: Idéias & Letras,
2006.
DRUMMOND, J. J. Husserlian intentionality
and non-foundational realism: noema and
object. Dordrecht: Kluwer Academic
Publishers, 1975.
MORELAND, J.P. Universals. Bucks: Acumen
Publishing, 2001.
SMITH, D. W. and MCINTYRE, R. Husserl
and intentionality. A Study of Mind,
Meaning and Language. Dordrecht: Kluwer
Academic Publishers, 1982.
SPARROW, T. The end of phenomenology.
Edinburgh: Edinburgh University Press,
2014.
Submetido: 21 de julho 2017
Aceito: 29 de julho 2017
62
Profa. Dra. Nathalie Barbosa de La Cadena
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 62
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Psicologismo e psicología em Edmund Husserl
Psychologism and psychology in Edmund Husserl
Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Universidade Estadual Paulista - UNESP7
RESUMO
O objetivo deste trabalho é examinar a crítica ao psicologismo de Edmund Husserl para
avaliar sua posição no que diz respeito à psicologia empírica. Procurarei mostrar, em primeiro
lugar, que Husserl, em Investigações lógicas, tem como alvo o psicologismo lógico e uma
determinada forma de psicologismo epistemológico. Em segundo lugar, buscarei mostrar que
a fundamentação epistemológica da lógica pura, como ciência teórica, implica em uma teoria
da subjetividade. Um dos objetivos de Husserl em Investigações lógicas é empregar a
fenomenologia, entendida como forma peculiar de psicologia descritiva, para elaborar uma
nova teoria da subjetividade, por meio de uma análise descritiva das vivências envolvidas na
obtenção do conhecimento teórico. Depois irei discutir o lugar que a psicologia empírica passa
a ocupar depois da crítica ao psicologismo em Investigações lógicas.
PALAVRAS CHAVE
Fenomenologia; Husserl; Psicologismo; Psicologia.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to examine Edmund Husserl's critique of psychologism in order
to evaluate his position with regard to empirical psychology. I will try to show, first, that
Husserl, in Logical Investigations, has as its scope the logical psychologism and a certain form
of epistemological psychologism. Second, I will try to show the epistemological foundation of
pure logic, as theoretical science, implies a theory of subjectivity. One of Husserl's objectives
in Logical Investigations is to use phenomenology, understood as a peculiar form of
descriptive psychology, to elaborate a new theory of subjectivity by means of a descriptive
analysis of the experiences involved in obtaining theoretical knowledge. Then I will discuss
the place that empirical psychology comes to occupy after the critique of psychologism in
Logical Investigations.Keywords: Phenomenology; Husserl, psychologism, psychology.
7
Email: savioperes@yahoo.com.br
63
Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
KEYWORDS
Phenomenology; Husserl; Psychology; Psychology.
INTRODUÇÃO
Ao longo deste artigo, irei, em
primeiro lugar, mostrar algumas das
motivações que levaram Husserl, a
partir de Filosofia da Aritmética, a
construir, em Investigações lógicas, sua
concepção de lógica pura, como
ciência teórica de idealidades. Em
segundo lugar, observarei alguns
traços essenciais da concepção de
Husserl de lógica pura. Em terceiro
lugar, buscarei mostrar que a
fundamentação epistemológica da
lógica pura implica em uma
determinada
concepção
de
subjetividade, a qual deve ser
descritivamente validada. Em quarto
lugar,
examinarei
tipos
de
psicologismo, mostrando que estes
tipos podem ser distinguidos quanto
ao âmbito e quanto à forma de
psicologia que se encontra em sua
base. Depois, irei mostrar a posição
de Husserl frente à psicologia
empírica, tanto em Investigações
lógicas, quanto após a virada
transcendental. Defenderei, por fim,
que Husserl não rechaça todas as
formas de psicologia empírica. Pelo
contrário, para ele, a fenomenologia
tem como uma de suas funções
fornecer a base ontológica para uma
construção apropriada da psicologia
empírica.
1. FILOSOFIA DA ARITMÉTICA E
O PSICOLOGISMO
Husserl inicia sua carreira
filosófica na segunda metade da
década de 1880. Inspirado pelas lições
que ele havia tido com Brentano em
Viena, ele resolve aplicar o método
psicológico-descritivo de seu mestre a
fim de clarificar os conceitos
fundamentais
da
aritmética
(HUSSERL, 1891). Tratava-se de um
tópico bastante discutido na época. O
que é a aritmética? Qual a origem de
seus conceitos fundamentais? Ela
decorre das formas da intuição do
tempo, como afirmava Kant? Ou ela
pode ser construída de maneira
puramente formal, de modo tal que
seus juízos nada mais são do que
juízos analíticos? Ou teria os conceitos
fundamentais da aritmética origem
empírica?
Tais
problemas
eram
amplamente debatidos na época, em
virtude de uma crise, no final do
século XIX, referente aos conceitos
fundamentais da geometria e da
aritmética. Com o surgimento da
teoria dos conjuntos e de geometrias
64
Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 64
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
não euclidianas, a fundamentação
epistemológica kantiana da geometria
e da aritmética começou também a ser
questionada. Isso levou a um debate
sobre a natureza da matemática e sua
relação com o sujeito epistêmico: o
que há de especial na subjetividade
humana que a torna apta adquirir
conhecimento matemático?
É neste contexto que se
compreende a tese do doutorado de
habilitação que Husserl realizou sob a
supervisão de um discípulo de
Brentano, Karl Stumpf, e cujos
resultados se encontram em uma obra
de 1891, Filosofia da Aritmética: um
estudo lógico e psicológico. Nesta obra,
Husserl
buscava
clarificar
os
conceitos fundamentais da aritmética
empregando o método psicológico de
Brentano. Brentano, contra Kant, não
aceitava a ideia de conceitos a priori,
derivados
das
categorias
do
entendimento e das formas da
sensibilidade
do
sujeito
transcendental. Para Brentano, todo
conceito tem origem empírica, tendo
sua gênese na percepção interna ou
na
percepção
externa
(STEGMÜLLER, p.30). Ora, se todo
conceito tem origem empírica, isso
deve ser válido também para os
conceitos matemáticos.
Seguindo as linhas básicas da
psicologia descritiva brentaniana,
Husserl, em Filosofia da Aritmética,
busca mostrar não só como os
conceitos fundamentais da aritmética
nascem da intuição, mas também
como a aritmética alcança um nível
não intuitivo. Filosofia da Aritmética
não
teve
nenhum
impacto
significativo na época. Contudo, a
obra chamou a atenção de, do grande
lógico alemão, Gottlob Frege, o qual
escreveu em 1894 uma resenha a
criticando duramente. Segundo Frege,
Husserl havia errado ao introduzir
questões psicológicas no âmbito da
aritmética. Em particular, Frege
criticava Husserl por ter confundido a
representação do número com o
próprio número. A representação do
número, segundo Frege, é algo
subjetivo e tem a origem no sujeito,
mas o número é algo objetivo,
independente da psique humana. Ou
seja, buscar na psique humana a
origem do número seria tão absurdo
quanto buscar na psicologia a origem
dos mares:
Se um geógrafo fosse ler uma obra
sobre oceanografia em que a
origem dos mares fosse explicada
psicologicamente, ele, sem dúvida,
teria a impressão de que o próprio
ponto da questão tinha sido
perdido de uma maneira muito
peculiar. Eu tenho a mesma
impressão do presente trabalho.
Certamente, o mar é algo real e um
número não é, mas isso não o
impede de ser algo objetivo; e isso é
65
Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
de grande importância. (FREGE,
1972, p.337)
Para Frege, tanto a aritmética
quanto a lógica são ciências objetivas,
ciências ideais e não ciências reais,
como a psicologia. Em virtude disso,
Frege defendia uma nova forma de
platonismo, na qual as verdades são
independentes da psique. A verdade
de um enunciado não depende das
contingências
factuais
sujeito
psíquico. Da mesma forma, o sentido
de
enunciados
científicos
são
entidades objetivas, embora nãosensíveis. Nem tudo o que há
pertence
à
realidade
interior
(psíquica) ou à realidade exterior
(física). Há também um terceiro reino:
o
das
idealidades.
Lógica
e
matemática são ciências teóricas que
estudam idealidades e não consistem
no objeto de estudo da psicologia.
Em suma, Frege acusava
Husserl daquilo que este mais tarde
irá denominar de “psicologismo”
(Psychologismus). Não é por acaso que
essa resenha tenha abalado Husserl
profundamente, servindo-lhe como
impulso para sua adesão a uma
determinada forma de platonismo
lógico. (PORTA, 2013). É o que
podemos observar nas Investigações
Lógicas, às quais foram publicadas em
duas partes, a primeira em 1900 e a
segunda em 1901.
2. A IDEIA DE UMA LÓGICA
PURA COMO CIÊNCIA
TEÓRICA
Na
primeira
parte
de
Investigações Lógicas, Prolegômenos para
uma lógica pura8 , Husserl deixa clara
sua mudança de posição com relação
à Filosofia da Aritmética, publicada em
1891. Logo no início da obra, Husserl
afirma que a lógica, assim como a
matemática, é uma ciência teórica
ideal. Seu objeto não são conteúdos
psíquicos ou vivências, mas sim
entidades ideais. Seu objetivo é
estabelecer leis lógico-ideais sobre
estruturas lógico-ideais. Husserl,
portanto, distingue duas esferas do
A partir daqui, usarei como base, salvo
indicação contrária, as edições de 1900, de
Prolegômenos e de 1901, das seis Investigações
lógicas, as quais constam respectivamente em
Husserl (1975) e Husserl (1984a, 1984b).
Usamos a versão de 1900/1901 porque a
versão corrigida por Husserl em 1913 ocorre,
após a virada transcendental, que se dá em
1906/1907. Na versão de 1913, Husserl busca
compatibilizar Investigações Lógicas com a
fenomenológica
tomada
como
filosofia
transcendental. Essas correções dificultam a
compreensão do vínculo entre psicologismo
lógico,
psicologismo
epistemológico
e
psicologia,
tal
como
Husserl
havia
compreendido na época. Ao empregar a
primeira versão da obra, podemos respeitar
melhor o desenvolvimento genético evolutivo
do pensamento do autor. As traduções de
Investigações lógicas foram feitas em sintonia,
salvo algumas exceções, com a edição
portuguesa de Investigações lógicas (Husserl,
2012).
8
66
Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 66
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
ser: a factual e a ideal. Em virtude de
sua defesa de uma esfera de ser ideal,
podemos afirmar que Husserl adere a
uma
determinada
forma
de
platonismo lógico. Para Husserl, toda
verdade é uma entidade ideal,
atemporal, ainda que ela possa se
referir a algo factual-real: “Nenhuma
verdade é um fato, isto é, algo
determinado no tempo. Uma verdade
pode ter como seu significado que
algo é, que um estado existe, que uma
mudança está ocorrendo”. (Husserl,
1984a. p.87).
A lógica pura é uma teoria que
versa não sobre os fenômenos
psíquicos, mas sobre as formas
possíveis de uma teoria em geral.
Uma teoria nada mais é do que uma
estrutura sistemática de significados
ideais objetivos que se refere a um
determinado domínio de objetos
(1975, p.30). Neste sentido, a lógica,
para Husserl, possui um sentido mais
amplo que o atual. Para ele, a lógica
pura é uma teoria das teorias, uma
ciência das ciências. A lógica buscaria
as condições de possibilidade e
impossibilidade formais de uma
teoria. Por exemplo, toda teoria deve
respeitar
o
do
princípio
de
contradição.
A
validade
deste
princípio não decorre da constituição
empírica do sujeito, como defendem
aqueles que afirmam que o seu
fundamento se origina do fato de que
a espécie homo sapiens evoluiu de tal
forma que seus membros se tornaram
incapazes biologicamente de crer em
dois juízos contraditórios (1975,
p.124). Se a explicação biológica fosse
correta, os princípios lógicos, como o
de
contradição,
não
seriam
necessários, mas apenas leis da
natureza, e, portanto, na melhor das
hipóteses, prováveis. Contudo, o
princípio de contradição é, para
Husserl, uma condição necessária,
sem a qual uma teoria não seria
teoria. Toda consciência (humana ou
não) capaz de teorizar e produzir
teorias deve reconhecer, na luz da
evidência, a sua verdade.
Os princípios lógicos são dados
em evidência apodítica. Eles não se
sustentam em nenhum tipo de ciência
indutiva, como pretendeu fazer
empirismo extremo. Eles não dizem
respeito a vivências, mas sim a
estruturas ideais, como proposições e
teorias. Uma proposição, ou seja, o
significado expresso por um juízo
declarativo, não pode ser reduzido a
um item psíquico, na medida em que
todo item psíquico (vivência) é, de
acordo com Husserl, algo real na
consciência, e, portanto, um evento
singular, irrepetível e privado. Se os
significados das sentenças científicas
fossem representações privadas, o seu
acesso intersubjetivo seria impossível
de ser explicado. Para que uma teoria
seja possível, os significados devem
ser
objetivos,
públicos
e
67
Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
intersubjetivamente acessíveis, e não
itens
subjetivos
e
privados.
Finalmente, em Prolegômenos, Husserl
argumenta que a negação ou o não
reconhecimento de entidades lógicoideais, como as significações em si, as
proposições em si, e as verdades em
si (proposições em si verdadeiras),
implica o relativismo.
3. VÍNCULO ENTRE LÓGICA
PURA E A PSICOLOGIA
A concepção da lógica pura,
como ciência a priori de entidades
ideais,
em
uma
primeira
aproximação, não possui nenhuma
relação com a psicologia. A lógica
pura está para a psicologia assim
como a matemática está para a
psicologia. A relação entre ambos os
domínios apenas entra em cena
quando
examinamos
não
propriamente a lógica pura, mas a
epistemologia da lógica pura.
A peculiaridade das Investigações
lógicas está no fato de que Husserl
entende que a lógica pura não pode
se constituir a partir de uma
postulação vazia de entidades lógicos
ideais. Ela exige uma epistemologia
que a fundamente e esta, por sua vez,
implica em uma nova concepção de
subjetividade, a qual, como veremos
mais adiante, é incompatível com a
empirista, que era vastamente
difundida no final do século XIX. A
concepção empírica de subjetividade
e platonismo lógico são mutuamente
excludentes. Não é possível defender
a lógica pura e, ao mesmo tempo,
conceder
aos
empiristas
sua
concepção de subjetividade. Por isso,
a lógica pura, para ser fundamentada
epistemologicamente,
exige
a
refutação de toda forma de psicologia
ou de teoria da subjetividade que a
inviabilize.
Husserl, em Investigações lógicas,
opera uma dupla refutação da
psicologia empírica. Em primeiro
lugar, ele oferece, em Prolegômenos,
uma refutação argumentativa. O
núcleo desta refutação reside no fato
de que a negação da lógica pura
implica em relativismo e, portanto,
em ceticismo. Daí que toda teoria da
subjetividade que seja incompatível
com a lógica pura deve ser rejeitada:
uma teoria do conhecimento cuja
decorrência seja a impossibilidade do
conhecimento
consiste
em
contrassenso. Em segundo lugar,
Husserl oferece uma refutação
descritiva do empirismo (PORTA,
2013. p.55). A teoria empírica do
conhecimento repousa em uma má
descrição da subjetividade. E a
melhor forma de mostrar que ela é
fruto de uma má descrição da
subjetividade é apresentando uma
descrição melhor. É neste ponto que a
fenomenologia, que, na ocasião de
Investigações lógicas, era concebida
como psicologia descritiva, será
necessária. Ela é a ferramenta pela
68
Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 68
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
qual Husserl pretende mostrar que
uma explicitação adequada da
subjetividade
é
capaz
de
fundamentar epistemologicamente a
lógica pura. (HUSSERL, 1984a, p. 7).
4. VÍNCULO ENTRE
PSICOLOGISMO LÓGICO E O
PSICOLOGISMO
EPISTEMOLÓGICO
De forma genérica, podemos
dizer que o psicologismo é a redução
indevida de um determinado âmbito
do conhecimento à psicologia. Ou
seja, o termo psicologismo designa a
redução de algo que não é psicológico
a algo psicológico. Daí que todo
psicologismo pressupõe tanto o
âmbito que é reduzido quanto uma
forma de psicologia a qual esse
âmbito é reduzido.
No que concerne ao âmbito,
podemos
falar
não
só
em
“psicologismo lógico” (Husserl, 1962,
p.22), mas também em psicologismo
moral, psicologismo epistemológico,
psicologismo semântico. Tomando
como critério o âmbito, podemos
dizer que Husserl, em Investigações
lógicas, não se propõe a refutar todos
os tipos possíveis de psicologismo,
mas sim apenas dois.
O primeiro é o psicologismo
lógico. Este consiste simplesmente na
afirmação de que o âmbito da lógica
coincide com o âmbito da psicologia
(HUSSERL, E. 1984a, p. 12). Para tal
forma de psicologismo, a lógica tem
como
domínio
os
conteúdos,
processos ou vivências psíquicas. O
segundo é um tipo específico de
psicologismo
epistemológico.
A
especificidade deste último não se
define pelo domínio o qual é
reduzido à psicologia, mas sim pela
forma de psicologia à qual a
epistemologia é reduzida. A redução
da
epistemologia
à
psicologia
empírica necessariamente implica em
psicologismo. Por outro lado, sua
redução à psicologia descritiva ou
fenomenologia não implicaria em
psicologismo.
Dada
esta
circunstância, Husserl não vê nenhum
problema, em 1901, em afirmar que:
Uma elucidação suficiente da lógica
pura, e, logo, uma elucidação de
seus conceitos e teorias essenciais,
das suas relações com todas as
outras ciências e da maneira como
as
rege,
exige
investigações
fenomenológicas (i.e., puramente
descritivo-psicológicas)
e
gnosiológicas muito aprofundadas.
(HUSSERL, E. 1984a, p. 7)
5.PSICOLOGISMO
EPISTEMOLÓGICO E
PSICOLOGIA EMPÍRICA
69
Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
No que concerne à forma de
psicologia na qual a epistemologia é
reduzida, o alvo da crítica de Husserl,
em Investigações lógicas, como já
mencionamos,
é
a
psicologia
empírica. O termo “psicologia
empírica” designa nesta obra não um
único
projeto
de
psicologia,
defendido por um único autor, mas
sim toda forma de psicologia que se
ocupa apenas de fatos psíquicos.
Assim, podemos distinguir várias
formas de psicologia empírica, como
psicologia
empírico-causal,
psicofísica,
psicologia
empíricodescritiva. (HUSSERL, E. 1984a, p.510). Ainda vale observar que a
psicologia empírica pode ser ou não
intencional. Brentano, por exemplo,
realizava uma “psicologia do ponto
de vista empírico”, incluindo nesta
psicologia
o
conceito
de
intencionalidade.
O problema da maior parte das
teorias do conhecimento baseadas na
psicologia empírica pressupunham a
validade daquilo que podemos
denominar
“princípio
de
factualidade”.
Tal
pressuposto
assume que todo dado intuitivo
possui
natureza
factual.
Sua
consequência
imediata
é
a
impossibilidade
de
acesso
às
idealidades em geral, e às essências
em particular. E, para Husserl, toda
forma de psicologia que negue
essências ou que inviabilize o acesso
da consciência às essências é
inapropriada para a fundamentação
epistemológica da lógica pura.
Tendo em vista o que foi dito
anteriormente,
o
combate
ao
psicologismo epistemológico exige
identificar não apenas as formas de
psicologia
assumidamente
psicologistas, ou seja, que se
proponham
explicitamente
a
fundamentar a lógica. É preciso
também combater toda forma de
psicologia que se apoie em princípios
que
tornem
inviável
uma
epistemologia da lógica pura. Por
isso, o combate ao psicologismo exige
identificar
e
examinar
os
pressupostos que regem os vários
projetos de psicologia. Se, levados às
últimas
consequências,
tais
pressupostos
conduzirem
ao
psicologismo lógico, eles devem ser
refutados.
Nas Investigações lógicas, Husserl
combate, de fato, dois princípios que
inviabilizam a epistemologia da
lógica pura, princípios estes que
estavam na base de várias correntes
de psicologia empírica da sua época.
O primeiro, como já observamos, é o
princípio da factualidade, de acordo
com o qual todo dado é um fato, um
fato a ser descrito (HUSSERL, 1962),
analisado, explicado a partir de
regularidades causais, etc. O segundo
princípio
é
o
de
imanência
(HUSSERL, 1975. p 95), de acordo
com o qual a consciência tem acesso
70
Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 70
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
imediato apenas aos seus próprios
conteúdos psíquicos. Este princípio
foi bem expresso por Locke nos
Ensaios sobre o entendimento humano
(1690/1975), onde ele afirma: “O que
quer que seja que a mente perceba em
si mesma, e qualquer que seja o objeto
imediato da percepção, pensamento,
entendimento, eu denomino ideia”
(LOCKE, 1690/1975, p.134). Este
conceito de ideia, entendido como
conteúdo psíquico, corresponde ao
conceito de representação9. Uma das
O termo inglês “idea” foi traduzido
para o alemão pela expressão alemã
“Vorstellung”, termo que geralmente
vem traduzido ao português como
“representação” (PORTA, 2004). Neste
sentido, “Vorstellung” designaria uma
espécie de objeto intramental, uma
cópia do objeto que existe na mente. Há
uma
dificuldade,
relativa
à
terminologia de Investigações lógicas,
que deve ser salientada. Nas
Investigações lógicas Husserl afirma
que toda vivência intencional possui
uma representação em sua base. Como
isso é possível, se Husserl busca
explicitamente
rechaçar
o
representacionalismo? A resposta é
que Husserl, nesta obra, se vale, até a
quinta Investigação, da expressão
Vorstellung para designar não o
conceito clássico de “representação”,
mas sim a vivência intencional que está
na base de todas as demais vivências e
cuja
melhor
tradução
seria
“presentação”.
Essa
dificuldade
9
Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl
expressões filosóficas desse princípio
é o representacionalismo clássico. De
acordo com o representacionalismo
clássico, se eu vejo uma maçã, eu não
vejo a própria maçã, mas apenas a
minha representação mental ou ideia
da maçã. Assim, a maçã percebida,
dada intuitivamente na percepção,
terminológica ocorre, em parte, pelo
fato de que Husserl, nas Investigações
lógicas,
parte
da
terminologia
brentaniana, para, aos poucos, ir se
distanciando dela. Portanto, ele não usa
o termo “Vorstellung” no sentido do
representacionalismo clássico ou do
idealismo. Husserl está consciente de
que o termo em questão possui
diferentes significados, dependendo da
tradição filosófica. Por isso, a fim de
evitar ambiguidades, ele dedica uma
seção da obra inteiramente à
clarificação da expressão (HUSSERL,
pp.520-527). No final da quinta
Investigação e na sexta Investigação,
Husserl passa a optar pela expressão
“ato objetivante” ao invés de
“presentação” (Vorstellung). Desde
então, ele afirmará que toda vivência
intencional terá um ato objetivante em
sua base. Ao longo deste artigo, para
evitar tais dificuldades, irei utilizar a
expressão “presentação” para traduzir
a expressão husserliana “Vorstellung”.
Para designar o termo em sentido
clássico, empregarei a expressão
regular “representação”.
71
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
existiria apenas na minha mente
como conteúdo psíquico, ao passo
que a maçã real existiria fora de
minha mente. Ainda de acordo com
tal doutrina, se eu penso no número
três, eu estaria pensando na
representação do número 3 e não no
próprio número três.
Contra
a
concepção
de
subjetividade
fundamentada
no
princípio de imanência, Husserl
apresenta uma concepção intencional
da consciência. A peculiaridade da
teoria
da
intencionalidade
de
Investigações lógicas, com relação à
teoria da intencionalidade que
Brentano apresenta em Psicologia do
ponto de vista empírico, é que o objeto
intencional, para o qual a consciência
se dirige, é transcendente aos
conteúdos
psicológicos-descritivos.
Do ponto de vista fenomenológico, se
eu percebo a maçã, eu percebo a
própria
maçã,
e
não
uma
representação interna da mesma. Tais
afirmações se sustentam em uma
descrição adequada das vivências. Há
uma diferença fenomenológica entre
a vivência de perceber uma maçã e a
vivência na qual eu tomo consciência
de
uma
maçã
através
da
representação
da
mesma.
No
primeiro caso, eu tenho a consciência
de um único objeto. No segundo caso,
eu tenho a consciência não de um
único objeto, mas de dois objetos. Por
exemplo, vejo a fotografia da Catedral
de Brasília e, através deste objeto,
tenho consciência de um outro objeto,
a própria Catedral de Brasília. A
representação e a percepção são duas
vivências descritivamente distintas.
Contra o princípio de que a
consciência possui acesso apenas a
fatos, Husserl busca evidenciar
descritivamente que a subjetividade
também possui acesso intuitivo às
essências. Toda intuição factual pode
servir de base para uma ideação, pela
qual a essência do fato é colhida. Ao
ver esta maçã, eu posso intuir as
essências da maçã. E o que vale para a
percepção externa, também vale para
a percepção interna. Ao perceber
internamente uma vivência, eu posso
colher as essências desta vivência.
Isso permite classificar as vivências
em tipos essenciais e estabelecer leis
necessárias sobre elas. Neste último
sentido, a psicologia descritiva de
Investigações lógicas poderia ser
melhor designada de psicologia
eidético-intencional. O escopo desta
última seria o de explicitar os
“caracteres de ato em que se efetuam
as operações lógicas de presentar, de
julgar e de conhecer” (HUSSERL,
1984a, p. 7). E o que as análises
eidéticas irão mostrar é que a doação
à consciência de estruturas lógicas
apriorísticas pressupõe a existência de
estruturas
apriorísticas
na
consciência. Ou seja, há uma
correspondência formal entre as
entidades lógicas e as vivências nas
quais
elas
se
manifestam,
72
Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 72
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
intuitivamente ou signitivamente. 10
Um exemplo é que um objeto
complexo, como um “estado de
coisas”, só pode ser intencionado pela
consciência
em
uma
intuição
categorial ou uma intenção simbólica
categorial. A estrutura de partes e
todos da vivência categorial (intuitiva
ou significativa) corresponde à
estrutura de partes e todos do objeto
categorial. (HUSSERL, 1975, p.315,
1984b, p.668, p.669).
6. O PSICOLOGISMO
EPISTEMOLÓGICO
CONCERNENTE AOS
OBJETOS IDEAIS
Para Husserl, há um vínculo
entre factualidade e imanência
psíquica. O princípio de imanência
afirma que a consciência tem acesso
direto apenas a conteúdos psíquicos.
Mas o que caracteriza um conteúdo
psíquico?
Para
Husserl,
todo
conteúdo psíquico, em sentido estrito,
é uma ocorrência factual.
Um exemplo é que o estado de coisas,
que é um objeto complexo, só pode ser
dado em uma intuição categorial ou
uma intenção simbólica categorial. A
estrutura de partes e todos da vivência
categorial corresponde à estrutura de
partes e todos do objeto categorial.
(HUSSERL, 1975, p.315, 1984b, p.668,
p.669).
10
Sob estes últimos termos de
vivência e conteúdo, visa a
Psicologia moderna às ocorrências
reais (Wundt diz com razão:
acontecimentos) que, mudando de
momento para momento, em
múltiplas
ligações
e
interpenetrações, constituem a
unidade real de consciência do
respectivo indivíduo psíquico.
(HUSSERL,1984a,
p.
357;
1901/2012, p.296).
Na medida em que é factual, um
conteúdo é um evento singular e
irrepetível. Tais conteúdos psíquicos,
em
Investigações
lógicas,
são
denominados psicológicos descritivo
ou conteúdos reais (reell). Entidades
reais, seja da realidade interior (reell),
seja da realidade exterior (real), jamais
permanecem idênticas a si próprias
ao longo do tempo. Entidades ideais,
como as verdades, não sofrem a ação
do tempo, permanecendo idênticas a
si próprias. “A verdade ela mesma,
contudo, está acima do tempo; não
faz
sentido
atribuir-lhe
temporalidade, nem dizer que ela
nasce e morre” (HUSSERL, 1984a.
p.87). O princípio contradição não
envelhece, não tem cor, permanece
idêntico a si mesmo. Toda vez que
alguém pensa no teorema no
princípio de contradição, o mesmo
princípio é dado à consciência. Ainda
que
o
princípio
possa
ser
73
Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
representado por meio de um signo
sensível, de natureza factual, o
próprio princípio não é o signo
sensível. Feitos tais esclarecimentos,
devemos agora alertar que aquilo que
havíamos designado de “princípio de
imanência” poderia ser melhor
precisado
como
“princípio
de
imanência psíquica” ou “princípio de
imanência real (reell)”. Tal precisão
deve ser mencionada, pois Husserl, a
partir da virada transcendental, irá
distinguir diferentes conceitos de
imanência e transcendência (BOEHM,
1968).
Em
função
de
sua
atemporalidade (HUSSERL, 1984a.
p.87), entidades ideais não podem ser
parte real do fluxo temporal,
psicológico-descritivo, das vivências.
Se o princípio de imanência fosse
válido, isso significaria que a
consciência só teria acesso à
conteúdos
psicológicos-descritivos,
ou seja, conteúdos factuais. Tal
posição resultaria na completa
impossibilidade de acesso epistêmico
às idealidades, e como consequência,
na
impossibilidade
de
se
fundamentar epistemologicamente a
lógica pura. Contra o princípio de
imanência real, Husserl propõe um
novo modelo de subjetividade, cujo
princípio é a intencionalidade. A
consciência, na medida em que é
intencional, é capaz de transcender
seus próprios conteúdos psicológicosimanentes, apreendendo objetos e
conteúdos transcendentes ao fluxo
psíquico das vivências. Uma vivência
intencional pode ter como objeto
intencional algo que não é uma
vivência. Se eu penso no teorema de
Pitágoras, no princípio de nãocontradição, ou em uma maçã, eu não
estou pensando em vivências, mas
algo as transcende. Apenas vivências
reflexivas tem como objeto uma outra
vivência pertencente ao mesmo fluxo
psíquico.11
7. O PSICOLOGISMO DE
MILL
Uma
das
formas
de
psicologismo epistemológico que
Husserl combate mais duramente é o
de Mill (HUSSERL, 1975, p.71).
Husserl o acusa de reduzir leis lógicas
a leis psicológico-empíricas relativas
ao modo como a mente funciona
(HUSSERL, E. p.72). Em outros
termos, Mill busca fundamentar as
leis lógicas na psicologia genética ou
explicativa. Assim, para Mill, as leis
lógicas seriam leis naturais do pensar.
Por serem leis empíricas, elas nada
Particularmente importante, para essa
concepção, foi a leitura da obra de um membro
da escola de Brentano, Twardowski (1894), Zur
Lehre vom Inhalt und Gegenstand der
Vorstellungen:
eine
psychologische
Untersuchung. Nesta obra, publicada em 1894,
o filósofo distinguia entre conteúdo do ato e o
objeto de um ato. O objeto de um ato seria
transcendente tanto ao conteúdo quanto ao
ato.
11
74
Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 74
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
mais seriam do que leis indutivas e,
portanto, na melhor das hipóteses,
leis
prováveis.
Com
isso,
o
“empirismo extremo” cometeria um
grave erro concernente à natureza das
leis lógicas, na medida em que não as
toma como leis necessárias. Trata-se
da consequência de se considerar que
as leis lógicas são leis naturais
referentes aos fenômenos psíquicos (o
processo de pensar). Ao contrário,
para Husserl, as leis lógicas referemse não ao pensar, mas ao conteúdo
ideal-objetivo da vivência de pensar
(ao juízo em sentido lógico-ideal, à
teoria em sentido lógico ideal, ao
raciocínio em sentido lógico ideal).
8. O PSICOLOGISMO DE
BRENTANO E SUA IDEIA DE
PSICOGNOSE
De acordo com Brentano, o
método filosófico deveria ser o
método psicológico. (BRENTANO,
p.2). Por volta do fim da década de
1880, Brentano passa a distinguir
psicognose (ou psicologia descritiva)
e psicologia genética (ou psicologia
causal), defendendo que é na
primeira que as ciências normativas,
como a ética, a estética e a lógica,
encontrariam
seu
fundamento
(BRENTANO, 2002). Para Brentano, a
psicognose seria capaz de alcançar
leis
necessárias.
A
psicologia
descritiva, no caso, valeria como
método para a fundamentação
epistemológica da lógica como ciência
normativa. Tendo isso em mente,
então devemos perguntar: se, para
Brentano, a lógica é uma ciência
normativa, seria correto acusá-lo de
ter incorrido em psicologismos
lógico?
Husserl sabe que Brentano não
procura fundamentar
a lógica
normativa na psicologia genética,
pois esta não visa normas, mas
apenas leis indutivas e, portanto,
prováveis (BRENTANO, F. 2002, pp.
78, 166). Neste ponto, Brentano e
Husserl parecem estar em perfeita
sintonia. Para Husserl, também a
psicologia
descritiva
seria
o
fundamento epistemológico da lógica.
A diferença entre Husserl e Brentano
se encontra tanto no que cada um
entende por lógica e por psicologia
descritiva. Essa diferença pode ser
detalhada
pelas
seguintes
considerações:
1) Husserl apresenta, nas
Investigações lógicas, três conceitos de
lógica. Ela pode ser entendida como
técnica, como ciência normativa,
como ciência teórica. Husserl aceita as
três concepções, mas estabelece uma
hierarquia entre elas. A lógica como
ciência teórica fundamentaria a lógica
como ciência normativa e esta última
fundamentaria a lógica como técnica
(1975, pp.22-23).
75
Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
2) Brentano rejeita a ideia de
lógica como ciência teórica, que tem
como domínio entidades ideais
(HUEMER, 2004). Para Brentano, um
juízo é um fenômeno psíquico, o qual
seria o portador da verdade. Para
Husserl, é proposição ideal o lugar da
verdade.
3) A rejeição de entidades ideais,
por parte de Brentano, é decorrência
do fato de que sua psicologia
descritiva só aceitava duas formas de
intuição, externa e interna. Ambas
apenas
oferecem
singularidades
factuais. Para Brentano, apenas fatos
são dados. Conceitos, ao contrário,
são produzidos psiquicamente e
encontram sua gênese no sujeito
epistêmico. Os fenômenos psíquicos
colhidos na percepção interna, ainda
que sejam dados em evidência
adequada, possuem natureza factual.
Este é um dos pontos no qual Husserl
se distancia de Brentano. Partindo de
fatos, não podemos alcançar leis
universais e necessárias sobre a
subjetividade. Como afirma Boer
(1978, p.116): “Quando ciências
normativas
são
fundadas
na
psicologia descritiva nós podemos
falar de psicologismo apenas na
medida em que se trata uma
fundação
inadequada
das
leis
lógicas”.
4) A teoria da intencionalidade
de Brentano assume que o objeto é
imanente ao ato. Husserl interpreta a
tese de imanência brentaniana, como
já comentamos, como imanência real
(reell). Em virtude disso, torna-se
inviável a captação de entidades
ideais, uma vez que elas, devido à sua
natureza, devem ser transcendentes
ao fluxo real (reell) de consciência. 12
Em geral, por mais que Brentano
busque leis apodíticas pela psicologia
descritiva, ele seria incapaz de
fundamentá-las, pois estaria preso ao
princípio de factualidade.
9. O PSICOLOGISMO LÓGICO
E O PSICOLOGISMO
TRANSCENDENTAL
Nas Ideias para uma fenomenologia
pura e para uma filosofia fenomenológica
(1950) publicadas em 1913, Husserl
defende a tese universal de que a
redução da teoria do conhecimento a
qualquer forma de psicologia incorre
em
psicologismo,
o
qual
Se Husserl estava correto em sua
crítica ao “objeto imanente” em
Brentano, trata-se de outro problema,
bastante complexo, pois a crítica
fundamenta-se em distinções que
Brentano não havia realizado. Husserl
considera que Brentano assume que o
objeto intencional imanente é parte
real (reell) de um ato. O problema é que
Brentano não faz tal distinção. Para
uma análise mais detalhada deste
problema, ver PERES (2014).
76
12
Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 76
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
necessariamente
conduz
ao
contrassenso. Se o diagnóstico de
Husserl em Ideias é correto, então,
devemos
considerar
que
as
Investigações lógicas, embora não
tenham
incorrido
nem
em
psicologismo lógico, nem em certos
tipos de psicologismo epistemológico,
estavam, não obstante, presas a uma
forma
sutil
de
psicologismo
epistemológico,
decorrente
da
redução da epistemologia à psicologia
descritiva (PORTA, 2013). De fato, na
edição de 1901 das Investigações
lógicas, Husserl não tem o menor
pudor
em
escrever
que:
“Fenomenologia é, no essencial,
psicologia
descritiva.
Como
consequência,
a
crítica
do
conhecimento
é
essencialmente
psicologia, ou ao menos algo que só
no campo da psicologia pode
edificar” (HUSSERL, 1984a, p.21, 22).
A peculiaridade da psicologia
descritiva das Investigações lógicas é
que ela tem como alvo específico
descrever as estruturas essenciais das
vivências lógicas (HUSSERL, E.
1984a, p. 23, 26). Uma vez que a
fenomenologia de Investigações lógicas,
em linhas gerais, buscaria uma
análise da essência da consciência
psíquica, ela poderia ser também
designada, como Husserl mais tarde
iria fazer, de “psicologia a priori” ou
“psicologia
eidético-intuitiva”
(HUSSERL, 1962, p.35).
A psicologia eidética das
Investigações lógicas, por mais que
operasse com essências e não com
fatos, era, ainda assim, uma ciência
“contaminada” pela atitude natural.
Husserl, na ocasião, não se dá conta
dessa contaminação, ainda que ele
tenha declarado, nesta mesma obra, a
neutralidade
metafísica
da
fenomenologia (1984a, p.6), fundada
no “princípio da ausência de
pressupostos” (1984a, p.17).
Assim, o problema da existência
ou inexistência de uma realidade em
si, independente da consciência, não
entraria
em
questão
na
fenomenologia. A fenomenologia, na
medida em que permanecesse uma
ciência
puramente
descritiva,
permaneceria calada frente aos
problemas metafísicos. O ponto a se
observar é que essa neutralidade
metafísica possuía na ocasião, um
alcance limitado. Ao entender que a
fenomenologia era uma forma de
psicologia, Husserl se comprometia,
sem que percebesse, com os
pressupostos metafísicos implicados
no conceito de psicologia. Como
afirma Boer (1978), podemos dizer
que Husserl realiza nas Investigações
uma epoché parcial: a tese de
existência em si do mundo é, por
razões metodológicas, suspensa, mas
a
tese
da
mundanidade
da
consciência
não
é
abordada.
77
Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Após a virada transcendental,
cujo início se dá por volta de 1907,
Husserl passa a considerar, em
Filosofia como ciência de rigor,
publicada em 1911, que ele havia, nas
Investigações
Lógicas,
apenas
combatido a naturalização das ideias,
mas não a naturalização da
consciência. Desde então, Husserl
será explícito ao afirmar que a
psicologia, qualquer que seja a sua
forma, é uma ciência mundana,
realizada a partir do pressuposto de
que existe uma realidade exterior,
subsistente em si e absolutamente
independente
do
sujeito
(HUSSERL,1962). Ao partir deste
pressuposto, sua validade torna-se
restrita a uma determinada região
ontológica:
a
interioridade.
A
epistemologia, ao contrário, na
medida em que é teoria do
conhecimento, não pode fixar o seu
olhar
unilateralmente
na
interioridade. Ela deve lidar com a
correlação essencial entre o objeto do
conhecimento e o sujeito cognoscente.
A busca pelo interior conduz ao
exterior. Conhecer não é copiar o
mundo dentro de si, mas é abrir-se ao
mundo. A vivência de conhecer, na
maior parte dos casos, visa aquilo que
é transcendente à consciência. A
fenomenologia busca as condições de
possibilidade do aparecimento do
mundo. E, todo aparecimento, é
aparecimento de algo para alguém.
Para se colocar o problema
epistemológico
de
maneira
consequente, é preciso primeiro
realizar
a
epoché
universal,
suspendendo a tese da existência de
uma realidade subsistente em si e
independente do sujeito. Se a epoché
universal é efetuada, não só a
realidade exterior é posta entre
parênteses, mas também a realidade
interior. A partir da atitude
transcendental, seria um contrassenso
considerar
o
sujeito
uma
interioridade.
O
conceito
de
interioridade pressupõe a validade do
conceito de exterioridade. Mas esse
último não pode ser dado como ponto
de partida. A exterioridade é
alcançada pelo exame reflexivo sobre
as vivências. Ao refletir encontramos
a intencionalidade, que é justamente a
estrutura básica da consciência,
aquilo que leva a consciência a visar
algo que não é ela própria. A
fenomenologia não é o estudo de uma
interioridade, mas da correlação entre
sujeito e objeto, o que, na
terminologia apropriada a descrever
o transcendental, será a correlação
entre noesis e noema.
Apenas pela epoché universal é
possível evitar a confusão da
consciência psíquica, ou seja, a
consciência vista a partir da atitude
natural,
e
a
consciência
transcendental, cuja apreensão se dá a
partir da atitude transcendentalfenomenológica. Nas Investigações
78
Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 78
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Lógicas, ao pretender fundamentar a
epistemologia na psicologia eidética,
Husserl incorria em uma forma de
“psicologismo transcendental”. Por
“psicologismo
transcendental”
Husserl entenderá, como ele expressa
nas Conferências de Amsterdam e nas
Meditações Cartesianas, toda tentativa
de fundamentar a epistemologia na
psicologia, qualquer que seja sua
forma. O problema da constituição
não pode ser resolvido a partir do
exame do psíquico. Apenas a redução
fenomenológico-transcendental,
ao
neutralizar a tese de existência de um
mundo exterior, independente da
consciência, permite o radicalismo
necessário sobre o qual é possível
formular adequadamente o problema
epistemológico.
10. O PSICOLOGISMO E O
LUGAR DA PSICOLOGIA
Ao contrário do que uma
leitura apressada poderia sugerir,
Husserl, com a crítica ao psicologismo
em Investigações lógicas, não rejeita
toda forma de psicologia. Basta
lembrar, como já explicitamos neste
artigo, que a própria fenomenologia
era entendida como uma forma de
psicologia descritiva. Mas podemos
deduzir daí que a única forma de
psicologia
possível
seria
uma
psicologia descritiva eidética e
intencional?
É
possível
uma
psicologia de empírica? A resposta de
Husserl é afirmativa. Contudo, a nova
psicologia empírica deveria se apoiar
na psicologia descritiva. Ou seja,
Husserl atribui uma dupla tarefa à
psicologia
descritiva-eidéticointencional, por um lado ela dá acesso
às “(...) ‘fontes’ de onde ‘brotam’ os
conceitos fundamentais e as leis
ideais da Lógica pura” (1984a, p.7) e
por outro lado, ela “serve à
preparação da Psicologia como ciência
empírica” (1984a, p.7). Essa mesma
posição é ratificada em 1925, em suas
lições sobre Psicologia fenomenológica,
onde Husserl afirma que as
Investigações Lógicas eram uma obra
não só de teor epistemológico, mas
que
também
forneciam
“uma
psicologia descritiva e analítica ao
interesse da psicologia ela mesma”
(1925/1962, p.27) e ainda:
Você agora pode entender porque
as
Investigações
Lógicas,
este
trabalho direcionado para a psique,
poderia também ser designado por
psicologia descritiva. De fato, o
único propósito que elas buscavam
e tinham que buscar era o
estabelecimento de uma visão
interior que desvelasse as vivências
de pensar escondidas do sujeito
que pensa, e uma descrição
essencial pertencente aos dados
puros das vivências, movendo-se
apenas em uma pura visão interior.
Mas por outro lado, a fim de
79
Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
caracterizar a peculiaridade do
método, o nome fenomenologia foi
escolhido. De fato, um novo
método de se abordar o psíquico
emergia ali. (1962, p.27)
Mas como entender a relação
entre psicologia e a fenomenologia
após a virada transcendental? Qual o
lugar da psicologia de fatos após a
crítica à naturalização da consciência?
Ao contrário do que uma leitura
apressada poderia sugerir, Husserl,
após
a
virada
transcendental,
continua não rejeitando toda forma
de psicologia de fatos. Em Filosofia
como ciência de rigor, ele defende que
caberia
à
psicologia
empírica
investigar a psique integrada à
natureza psicofísica. Em particular, o
objetivo da psicologia seria investigar
as leis que regem o aparecer e o
desaparecer das vivências (HUSSERL,
1911/1965, p. 15). A psicologia de
fatos é possível, desde que não se
apoie
nos
princípios
que
já
comentamos no começo, ou seja, o
princípio de factualidade e o de
imanência. Mas como realizar uma
psicologia de fatos sem partir de tais
princípios?
O primeiro esboço de resposta
encontramos em 1911, também em
Filosofia como ciência de rigor, onde
Husserl afirma que “(...) é mister toda
a verdadeira teoria do conhecimento
ter
a
base
necessária
na
Fenomenologia, que deste modo
constitui o fundamento comum de
toda a Filosofia e Psicologia”.
(HUSSERL, 1911/1965, p. 45).
Husserl, no artigo de Logos,
argumenta que a nova ciência, a
fenomenologia, teria o papel (entre
outros tantos) de fundamentar e clarear
os conceitos da psicologia empírica. Mas
seria essa psicologia empírica a
mesma que ele criticava nas
Investigações lógicas?
Mais uma vez devemos observar
que o termo “psicologia empírica”,
embora o próprio Husserl o
empregue com frequência, é perigoso.
O termo pode remeter a formas de
psicologia realizadas em linha com os
empiristas ingleses. Por essa razão, o
melhor seria dizer que a “psicologia
de fatos” é possível. Afirmar que a
psicologia empírica é possível
significa apenas afirmar que é
possível uma ciência cujo objeto são
os fatos psíquicos e não as essências
psíquicas. A expressão ‘psicologia de
fatos’ seria mais apropriada com a
distinção
que
Husserl
realiza,
sobretudo a partir de Ideias, entre
ciências de fatos e ciências eidéticas
ou ciência de essências. Há uma
importante relação entre as ciências
de fatos e as ciências de essência.
Toda ciência de fatos, para que
obtenha sucesso, deve ser construída
sobre
uma
base
conceitual
apropriada. Essa base conceitual seria
obtida pela ciência de essências
correspondente à região ontológica às
80
Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 80
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
quais os fatos de uma determinada
ciência pertencem (1913/1950, p. 23).
Neste sentido, a psicologia eidética
valeria como uma ontologia regional
da “alma” (Seele), expressão essa que
Husserl utiliza para designar a
consciência
psíquica
em
sua
dimensão mundana e, portanto,
tomada como
uma substância
entremeada com o corpo próprio
(Leib). A clarificação dos conceitos por
elucidação
intuitivo-descritiva
precede a realização de experimentos
que visam encontrar a correlação
entre fatos. Por exemplo, antes de se
realizar experimentos para sobre a
percepção, seria necessário clarificar
conceitualmente, a partir da descrição
eidético-reflexiva, o que é a
percepção.
Para Husserl, não cabe à
fenomenologia a realização da
psicologia de fatos, mas sim a tarefa
de possibilitá-la, oferecendo-lhe sua
base conceitual, pelo exame da
doação originária do fenômeno. A
clarificação dos conceitos básicos da
psicologia
de
fatos
é
um
empreendimento eidético e não
factual. Apenas com uma base
adequada uma ciência pode dar
frutos. Husserl se propõe, em dois
momentos, a realizar, com mais
cuidado, a ontologia regional da
alma: em Ideias II (1952) e em Lições
sobre Psicologia fenomenológica (1962).
Finalmente,
é
preciso
acrescentar que, para Husserl, até
mesmo a psicologia eidética, embora
seja uma ciência válida, não é e não
pode ser epistemologia. Apenas a
filosofia
transcendental
é
epistemologia.
Incorrerá
em
psicologismo epistemológico toda
tentativa de fundamentação da
epistemologia na psicologia eidética,
pois
esta
última
é
um
empreendimento realizado a partir da
atitude natural. Um exemplo deste
tipo de psicologista para Husserl é
Locke. Este, embora tenha aprendido
com Descartes, a procurar “clarificar
o que a subjetividade pode e
efetivamente realiza”, através de um
“autoentendimento
puro
e
sistemático na imanência que se
esconde
do
conhecedor,
exclusivamente
por
meio
da
‘experiência interna’ (HUSSERL, 1962,
p.248), não soube alcançar a
verdadeira
subjetividade
transcendental. E Husserl segue:
Embora Locke tenha sido guiado
por esta grande visão interior,
faltou-lhe a pureza fundamental e
caiu no erro do psicologismo. Na
medida em que a experiência realobjetiva e o conhecimento em geral
foram
sujeitados
ao
questionamento transcendental, foi
absurdo de sua parte pressupor
qualquer tipo de experiência e
conhecimento objetivos – como se o
81
Psicologismo e psicologia em Edmund Husserl
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
próprio sentido e legitimidade de
sua validade objetiva não fossem
parte do problema. Uma psicologia
não poderia ser a fundação da
filosofia transcendental. Mesmo a
psicologia
pura
em
sentido
fenomenológico,
tematicamente
delimitada
pela
redução
psicológico-fenomenológica, ainda
é e sempre será uma ciência
positiva: ela tem o mundo como
sua fundação pré-dada. (HUSSERL,
1962, p.248)
É claro, portanto, que a
psicologia pura é para Husserl uma
ciência mundana e, enquanto tal, é
incapaz de servir de base à
epistemologia.
Mas,
uma
vez
respeitada
sua
delimitação
ontológica, a psicologia eidética,
assim como a psicologia empírica que
ela propicia, possuem plenos direitos.
CONCLUSÕES
Husserl
defende
que
há
condições subjetivas necessárias para
que a consciência seja capaz de
produzir
conhecimento
teórico
(HUSSERL, 1975, p. 238). Essas
condições epistemológicas não devem
ser apenas deduzidas, mas descritas,
a partir da reflexão sobre as vivências
cognitivas. Esta descrição constitui o
núcleo positivo da crítica ao
psicologismo. É por meio da
descrição dos diferentes tipos de
vivências, não em sua singularidade,
mas em sua estrutura essencial e
universal, que surge uma concepção
de
subjetividade
adequada
à
fundamentação da lógica pura.
Enquanto a fenomenologia mostra na
subjetividade as possibilidades do
conhecimento teórico, a lógica pura
examina as condições objetivas
necessárias para que uma teoria seja
uma teoria. A busca é pela relação
entre a subjetividade das vivências e a
objetividade da lógica. E o que
Husserl irá mostrar, em Investigações
lógicas, é que as leis e os conceitos
lógicos, alcançados por intuição
eidética,
estão
essencialmente
vinculados às estruturas universais e
necessárias da subjetividade (intuição
eidética, intuição categorial, vivências
significativas). Tais estruturas são
reveladas por intuições eidéticas
fundadas sobre atos reflexivos.
O fato da lógica possuir leis
necessárias implica que a consciência
destas leis possua uma estrutura
necessária, uma estrutura passível de
ser expressa em leis a priori. Nas
Investigações Lógicas, Husserl defende
que a origem intuitiva dos conceitos
lógicos ocorre a partir de uma
abstração eidética realizada sobre
certas partes não-independentes da
intuição categorial (1984b, p.668,
p.669).
Para Husserl, toda teoria que
tome como válido o princípio de
factualidade e o princípio de
imanência psíquica, não será capaz de
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Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 82
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
fundamentar a lógica como ciência
teórica. A abstração não é uma
produção, por colagem, de materiais
sensíveis, e também não é um extrair
partes de um todo pela fixação da
atenção em uma delas. Abstrair é
alcançar algo que pertence à coisa.
Mas esse algo só é alcançado pelo
subjetivo, o qual não vê apenas
realidades factuais, mas também vê
possibilidades e impossibilidades. Faz
parte da essência de uma casa a
possibilidade de abrigar algo. Uma
casa que, a princípio, não pode
abrigar nenhum ser vivo, não é uma
casa. Captar uma essência é captar as
possibilidades e as impossibilidades
de um objeto de um determinado
tipo.
O empirismo, por estar preso
aos princípios de factualidade e de
imanência, é incapaz de oferecer uma
teoria da abstração satisfatória. E
pode ser refutado tanto por meio de
argumentação, mostrando que ele
conduz ao contrassenso, quanto
descritivamente, mostrando que ele
decorre de uma má descrição,
enviesada
por
preconceitos
infundados.
Dentre
estes
preconceitos, o mais nefasto é o do
naturalismo de Galileu, o qual levou
Hume a tentar fazer na alma o que
Newton fez com a física.
Husserl não combate, em
Investigações lógicas, todas as formas
de psicologismo, na medida em que a
epistemologia é fundamentada na
fenomenologia, a qual é, na ocasião,
concebida como uma psicologia
eidética e intencional. Posteriormente,
após a virada transcendental, ele irá
distinguir entre fenomenologia pura,
realizada a partir da atitude
transcendental,
psicologia
fenomenológica
(ou
psicologia
eidético-intuitiva). Esta última é o
fundamento da verdadeira psicologia
de fatos.
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TWARDOWSKI, K. Zur Lehre vom Inhalt
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84
Prof. Dr. Sávio Passafaro Peres
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 84
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de
intelecto e sentimento na ética de Edmund Husserl.
Subjectivity and affectivity: the interwining of intellect and
feeling in Edmund Husserl’s ethics.
Prof. Dr. Marcelo Fabri13.
Universidade Federal de Santa Maria.
RESUMO
O artigo examina o papel do sentimento na ética fenomenológica a partir da confrontação
entre moralistas do intelecto e os moralistas do sentimento, na obra Introdução à Ética (19201924) de Edmund Husserl. Mesmo sendo um crítico do naturalismo e do empirismo, Husserl
recebe uma notável influência de Hume. O desafio de uma ética fenomenológica poderia, pois,
ser colocado nestes termos: é preciso mostrar que, na esfera da moralidade, os sentimentos se
entrelaçam necessariamente com a esfera intelectiva, abrindo o problema de uma discussão
sobre o imperativo categórico que possa acolher esse entrelaçamento.
PALAVRAS CHAVE
Ética; fenomenologia; sentimento; intelecto; naturalismo.
ABSTRACT
This essay examines the role of feeling in phenomenological ethics from the confrontation
between the moralists of intellect and the moralists of feeling in Edmund Husserl's
Introduction to Ethics (1920-1924). Although he is a critic of naturalism and empiricism,
Husserl receives a notable influence from Hume. The challenge of a phenomenological ethic
could, therefore, be put in the following terms: it’s necessary to show that, in the realm of
morality, feelings necessarily intertwine with the intellective sphere, starting the problem of a
discussion regarding the categorical imperative that can accommodate this entanglement.
KEYWORDS
13
E-mail: fabri.ufsm@gmail.com
Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de
Edmund Husserl.
85
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Ethics; phenomenology; feeling; intellect; naturalism.
INTRODUÇÃO
Husserl referia-se a Hume como
o maior filósofo de língua inglesa. Se,
por um lado, o naturalismo humiano
é incompatível com as teses
fundamentais
da
fenomenologia
transcendental, as análises contidas
no Tratado da Natureza Humana são
sempre evocadas por Husserl com
apreço e reconhecimento. No terreno
da ética, esse reconhecimento se dá de
modo notável, sobretudo no que diz
respeito aos fundamentos emotivos
das virtudes morais, fato que, na
perspectiva husserliana, representa
um contraponto importante em
relação às teorias que vêm no ser
humano um ser naturalmente egoísta
(Hobbes, por exemplo). Pode-se
mesmo dizer que um dos objetivos
centrais da ética fenomenológica seja
o de apresentar argumentos fortes e
certeiros contra essas teorias. A
reflexão de Hume sobre a moral,
embora marcada por uma visão
naturalista incompatível com a
fenomenologia, apresenta-se como
decisiva para enfrentar o debate que
coloca a questão moral sob a forma de
um conflito entre intelecto e
afetividade. Ora, ao invés de acentuar
o caráter egoístico da realidade
humana, Hume confere maior relevo
às virtudes que, em geral, se referem
ao outro ser humano, tais como
cortesia, sociabilidade, gentileza, etc.
e, sendo assim, teve o mérito de
sublinhar o papel do sentimento na
esfera da moralidade. Com efeito, na
perspectiva husserliana, em vez de se
dizer, como faz Hume, que a razão é
simplesmente cognoscitiva e que o
sentimento, por sua vez, é apenas um
fato da natureza psíquica, seria
preciso falar de uma razão na esfera
do sentimento e da vontade.
O desafio, a esse respeito, é
mostrar de que maneira as valorações
ou atos valorativos fazem parte do
sistema de estruturas fundamentais
da consciência de crença. Se, do ponto
e vista da fenomenologia, uma “teoria
do conhecimento” é possível, também
o serão uma “teoria da valoração” e
uma “teoria da vontade”. A condição
para tal fenomenologia é, tanto no
caso da lógica quanto no da ética,
“pôr fora de jogo” tudo aquilo que é
da ordem psicológica e empírica,
conduzindo a discussão para o
âmbito puramente formal da razão.
Estaria Husserl, nesse aspecto,
próximo de Kant (cf. KANT, 2016, p.
44), para quem a representação das
máximas como lei práticas universais
implica uma vontade determinada
apenas segundo a mera forma, e
jamais segundo a matéria? Cumpre
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Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 86
Aoristo)))))
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mostrar que não. Na perspectiva
fenomenológica, a esfera intelectiva e
a esfera emotiva não devem ser
marcadas por uma oposição, e sim
por uma imbricação. Em vez de opor
intelecto e vontade, importa alcançar
os
fundamentos
teóricos
que
ultrapassam qualquer preocupação
com o direcionamento prático do
conhecimento. Ou seja, o desafio é
fazer ver que os fundamentos
teóricos, presentes em qualquer
direcionamento prático, seja nas
ciências
particulares,
seja
nas
situações concretas da vida, assentam
em leis e teorias a priori, das quais
dependem, igualmente, os juízos
lógicos e os juízos éticos (cf.
HUSSERL, 2009a, §21, p. 82-83).
1. IMPORTÂNCIA E LIMITES
DA ÉTICA RACIONALISTA.
A fim de mostrar que a esfera
emotiva e a esfera intelectiva podem
associar-se ou entrelaçar-se, sem
prejuízo para um conceito amplo de
razão, Husserl empreende um exame
paciente e minucioso de alguns
filósofos morais do século XVII. Na
chamada Escola de Cambridge,
pensadores como Cudworth (16171688) e Henry More (1614-1687)
realizaram uma espécie de reativação
do platonismo, opondo-se desta sorte
ao tratamento empirista das questões
morais. Para Husserl, o racionalismo
dessa vertente é claro: propõe-se um
paralelismo entre o ético e o
matemático. Para Cudworth, as
verdades
matemáticas
seriam
independentes de nosso mundo
subjetivo, elas seriam existentes em si
mesmas. O mesmo deveria ocorrer
com respeito aos princípios éticos,
entendidos como algo imutável, não
produzido por nossa mente. Tais
princípios
expressariam
uma
essencialidade imutável, dadas antes
que o mundo e nós mesmos fôssemos
criados (cf. HUSSERL, 2009b, §28, p.
127).
Em sua luta contra o
sensualismo nascente, Cudworth
sublinha o papel do intelecto o qual,
ao conhecer verdades matemáticas e
ideais, pode ser compreendido como
capacidade inata. Ou seja, o intelecto
poderia apropriar-se daquilo que já
possui de antemão, no caso, o supraempírico, o sobre-humano (cf.
HUSSERL, 2009b, §28, p. 127). Mas,
para tanto, é preciso recorrer a Deus
como autoridade máxima a fim de se
garantir
as
capacidades
e
conhecimentos
inatos.
Husserl
denomina esse recurso de uma fuga
para
a
teologia,
ou
ainda,
pseudofundação
da
validade
cognoscitiva (Ibid., p. 128). Ora, a
fenomenologia recusa, por princípio,
essa fuga, sustentando que as leis
Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de
Edmund Husserl.
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Aoristo)))))
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eidéticas pertencem a um reino
infinito, mas imanente, e que a
autoridade, no caso, está na assim
chamada
subjetividade
transcendental (Ibid., p. 129).
Na perspectiva husserliana, na
base de toda vida racional está o eu
humano concreto, aquele que julga,
reflete, percebe, etc. As mudanças
reais desse eu empírico pressupõem o
Eu puro, aquele que “compreende de
maneira evidente” uma verdade
fundada, entendida como “aquilo que
é
compreendido
de
maneira
evidente” (HUSSERL, 2009b, p. 130).
Qual seria, então, a importância de se
retomar o pensamento de Cudworth?
No fato de que ele põe em evidência,
e de um modo notável, a ideia de
uma legalidade ética paralelamente à
legalidade matemática. Em sua
batalha contra o naturalismo, o
teólogo chama a atenção para a
verdade supra-empírica do elemento
matemático e do elemento ético. O ser
humano compreende, desta sorte, que
está ligado e subordinado a uma
legalidade
que
independe
de
qualquer
situação
empírica
e
contingente (Ibid., p. 131). Tudo se
passa como se a violação de uma lei
ética fosse comparável à violação de
uma lei matemática. Mas, no caso da
ética, não há apenas um equívoco,
mas uma situação de “pecado”. O
valor da lei ética surge como um
imperativo geral para a vontade de
um sujeito humano qualquer.
É forçoso, pois, distinguir
(pensa Cudworth), na asserção ética
com valor de lei, não apenas o juízo
teórico geral ali presente, mas
também
e,
principalmente,
o
imperativo. Mas Husserl coloca a
questão incontornável: como fazer a
passagem da pretensão teórica à
obrigação, à prescrição? Como
sustentar que de uma proposição do
tipo “Quem age contra a consciência,
age mal” decorre outra, a saber:
“Cada qual aja segundo a sua
consciência”? (HUSSERL, 2009b, p.
132). O que é preciso esclarecer,
segundo Husserl, é a diferença entre
razão judicativa (que se refere a
predicados de verdade e falsidade) e
razão prática (que se refere a
predicados sobre o que é bom e o que
é mau a partir do dever). Em outros
termos: o que seria uma razão
relacionada
às
motivações
da
vontade?
Husserl se interessa, portanto,
pela explicação do paralelismo entre
verdades
éticas
e
verdades
matemáticas,
indagando
pelo
significado
da
objetividade
incondicionada do ético. O que
significa, então, um julgar teórico
referido às volições e às ações? A ética
racionalista não tem como lutar
contra sua inevitável queda numa
espécie de intelectualismo que deixa
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Prof. Dr. Marcelo Fabri
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Aoristo)))))
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de lado o que mais importa:
compreender a imbricação do teórico
e do prático, da razão judicativa e da
razão volitiva (HUSSERL, 2009b, p.
133). O problema do racionalismo
ético está em sua equivocada
interpretação da relação entre ética do
entendimento e ética do sentimento.
Ele simplesmente opõe uma à outra,
abrindo desta maneira as portas para
uma compreensão empirista e
naturalista
da
ética
(biologia,
psicofísica, psicologia científica, por
exemplo).
Para
mostrar
essa
possibilidade, Husserl retoma o
pensamento de Clarke (1675-1729),
para quem as vontades dos seres
inteligentes devem ser dirigidas pelo
“conhecimento
das
naturais
e
necessárias relações, adequações e
proporções das coisas” (CLARKE,
2013, p. 51). Segundo Clarke, Deus
implantou na natureza uma ordem
pela qual o universo subsiste. Alterar
essa ordem é absurdo. É ela que faz
que as coisas sejam o que são. Agir
com maldade seria como violar essa
ordem, uma vez que “natureza e reta
razão são, aqui, identificadas com
toda seriedade; as verdades éticas
tornam-se verdades simplesmente
materiais” (HUSSERL, 2009b, §30, p.
138-139). Ou seja, agir não eticamente
seria contrapor-se à natureza das
coisas, fazendo que elas se tornem
aquilo que não são.
Mais uma vez, Husserl reage
criticamente. Pois agir de modo não
ético não significa nenhuma violação
concernente à natureza das coisas. As
leis
éticas,
consideradas
fenomenologicamente, são como as
leis lógicas puras, e não leis da
natureza.
“As
possibilidades,
enquanto
possibilidades
puras,
totalmente
desvinculadas
do
empírico, constituem o campo de um
a priori” (HUSSERL, 2009b, §30, p.
142). Há uma infinidade de mundos
possíveis, e o mundo factual é apenas
o único real entre esses mundos. O
que Husserl tem em mente? Sustentar
categoricamente que a natureza não
envolve nenhuma espiritualidade. Ela
é
extranormativa,
extramoral.
Somente a subjetividade humana,
constituinte do mundo, poderia
possuir como correlato um objetovalor. “A natureza é o reino da
incompreensibilidade”
(HUSSERL,
2009b, §22, p. 104). Ou seja, a natureza
não pode receber conceitos que
pertencem ao mundo espiritual
(intencional, motivacional), tais como
aqueles que dizem respeito ao bem e
ao mal, ao belo e ao feio, etc. O
comportamento prático dos seres
humanos não poderia, assim, ser
determinado pela ordem natural das
coisas. Não poderia, igualmente,
determinar-se por uma legislação
formal, desvinculada do empírico.
Husserl pretende reunir o que estava
Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de
Edmund Husserl.
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Aoristo)))))
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separado: intelecto e sentimento, no
interior da razão prática.
Os racionalistas propunham
que
existe
algo
de
justo
objetivamente, acreditavam numa
validade incondicional e supraindividual, ou seja, numa validade
sem vínculo com a pessoa humana.
Assim como na matemática se fala
numa verdade impessoal e universal,
em ética se propõe uma verdade
moral independente do agente em
questão. “Qualquer um” que tome
uma
decisão
poderá
fazê-lo
erradamente ou corretamente, tal
como
num
juízo
matemático.
Conclusão é inevitável: o juízo moral
não pode ser orientado pelo sentir,
pelo âmbito afetivo de uma pessoa
(cf. HUSSERL, 2009b, §32, p. 145).
2. A ÉTICA DO SENTIMENTO E
O PREJUÍZO NATURALISTA.
Ora, tudo de passa de outro
modo na ética do sentimento,
caracterizada pela afirmação de que o
comportamento prático dos seres
humanos é determinado pelo sentir,
pelo qual todos os conceitos éticos
ganham realidade. Nomes tais como
Shaftesbury (1671-1713), Hutcheson
(1694-1746), Hume (1711-1776) são
alguns dos representantes dessa ética.
Seria o caso de se dizer que a
esfera afetiva deve estar presente
quando pensamos matematicamente
ou cientificamente? Não, por certo.
Mas o problema está justamente nisto:
as verdades científicas e matemáticas
não podem dizer o que deve ser na
perspectiva moral. Um tratamento
psicológico pode, então, enfrentar
essa dificuldade. Vejamos o que diz
Shaftesbury, o primeiro moralista
clássico do sentimento, segundo
Husserl. A virtude se relaciona
sempre e necessariamente às afecções,
inclinações e disposições da mente, de
tal modo que o que importa é a
concordância ou harmonia dessas
vivências com o bem da espécie.
Afirma
Shaftesbury:
“Retidão,
integridade ou virtude são atributos de
quem se mantém favoravelmente
disposto a alimentar um sentimento
reto e íntegro não só em relação a si
próprio, mas também para com a
sociedade
e
o
público”
(SHAFTESBURY,
2013,
p.
22.
Sublinhado
pelo
autor).
Os
sentimentos são, pois, comparáveis
àquilo
que,
no
mundo,
é
supostamente o mais “natural”, como
a respiração e a digestão para a vida
humana. O elemento que decide é a
harmonia, a beleza afetiva ligada aos
sentimentos. Nas palavras de Husserl:
“Para Shaftesbury, a moral é uma
estética das inclinações, o sentimento
moral da aprovação é um caso
particular do sentimento estético”
(HUSSERL, 2009b, §33, p. 154.
Sublinhado
pelo
autor).
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Prof. Dr. Marcelo Fabri
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 90
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Ora,
esse
esforço
para
comparar o que acontece no mundo
exterior com a vida psíquica do ser
humano encontrou, em Hume, uma
expressão notável em seu famoso
Tratado da Natureza Humana (17391740). Nos corpos externos existe uma
regularidade. A coesão das partes da
matéria decorre de princípios naturais
e necessários (cf. HUME, 2009, Livro
2, Parte 3, Seção 1, p. 438). O mesmo
deve valer para a sociedade humana.
“Existe um curso geral da natureza
nas ações humanas” (Ibid., p. 439).
Poder-se-ia objetar: nossa conduta é
sempre irregular e incerta, não pode
ser comparada ao que ocorre
naturalmente. Hume insiste na
aproximação. Ao julgarmos sobre
objetos externos não devemos separar
este ato do raciocínio sobre nossas
ações. A união entre motivos e ações
“têm a mesma constância que a união
entre quaisquer operações naturais”
(Ibid., p. 440). Dito de outro modo, a
necessidade é algo comum às ações
da matéria e às operações da mente.
Mas não se deve esquecer que
Hume argumenta como um cético. A
ideia de causa e efeito só se forma em
nós graças a uma crença. Sentimos a
necessidade no que experimentamos
no mundo exterior. Cremos, em
seguida, que os atos da vontade
decorrem da necessidade. Numa tal
cadeia aglutinam-se causas naturais e
ações voluntárias (cf. HUME, 2009,
Livro 2, Parte 3, Seção 1, p. 442).
Conclusão desconcertante: se de fato
pudéssemos agir livremente, teríamos
de suprimir a necessidade, ou seja,
seria admitir que o ser livre vincula-se
a um agir ao acaso (Ibid., Livro 2,
Parte 3, Seção 2, p. 443). Ou seja, não
podemos, segundo Hume, retirar das
ações humanas a necessária conexão
de causa e efeito (Ibid., p. 446). As
ações nunca ocorrem por acaso. Elas
obedecem a uma lógica, a um
encadeamento causal (Ibid., p. 447).
Husserl apenas corrigiria: elas
obedecem
a
uma
causalidade
motivacional.
Em vez da relação de causalidade
entre coisas e homens enquanto
realidades naturais, entra em jogo a
relação de motivação entre pessoas e
coisas, sendo que essas coisas não
são as coisas da natureza existente
em si –aquelas da ciência exata da
natureza [...] – mas as coisas
experimentadas,
pensadas
ou
visadas [...] enquanto objetidades
intencionais
da
consciência
posicional (HUSSERL, 1996, §50, p.
266. Sublinhado pelo autor).
Por que, então, Hume é
importante para a fenomenologia?
Por que ele foi fundo no debate acerca
do conflito entre intelecto e
sentimento no âmbito da moralidade.
Se for verdade que ele conduziu o
ceticismo às mais extremas e radicais
Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de
Edmund Husserl.
91
Aoristo)))))
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consequências (HUSSERL, 2009b, §36,
p. 169), também se pode dizer que ele
toca no elemento vital para a
fenomenologia: o espírito é sempre
afetado. O eu está sempre em meio a
excitações de toda ordem. Pode,
inclusive, ceder a elas ao ser tocado
pela beleza, pelo valor, pelo
sofrimento, etc. Mas o eu em sentido
forte é o ego da liberdade, sempre às
voltas com suas próprias tomadas de
posição. O eu pode determinar-se a si
mesmo. É a ideia de Eu que se
encontra em questão. Eu que impõe a
si mesmo a busca do bem de modo
positivo e ativo. O Eu põe a si mesmo
como Eu ético, que se decide por uma
renovação de si próprio (cf.
HUSSERL, 2009b, §34, p. 158). “O eu
moral se conhece como causa sui da
própria moralidade” (Ibid., p. 159).
Ora, tudo isto não se encontra
numa teoria naturalística do eu
pessoal. Para Hume, a razão não pode
fornecer alguma certeza sobre a
existência dos corpos. É a imaginação
que realiza esta tarefa (cf. HUME,
2009, Livro 1, Parte 4, Seção 2, p. 226).
A mente, compreendida como feixe
de diferentes percepções, unidas por
certas relações, tende a fantasiar a
existência contínua dos objetos
sensíveis (Ibid., p. 242). Para Husserl,
isso significa: é a imaginação que
constrói
as
categorias
que
determinam não apenas a natureza,
mas também o eu pessoal (cf.
HUSSERL, 2009, §36, p. 169). Sendo
assim, não apenas as categorias
objetivas da ciência são ficções, mas
também aquelas da objetividade
prática e axiológica. A crítica ao
naturalismo humiano é clara: “Não há
uma doutrina de valor, nem uma
ciência
moral
que
sejam
verdadeiramente objetivas. Também
elas são ficções” (Ibid.). Assim, o que
motiva o desejar e o querer não é a
razão, mas o sentimento. Por quê?
Porque,
para
Hume,
o
entendimento julga por demonstração
(relações abstratas entre ideias) ou
probabilidade (relações entre objetos
ou experiência). A razão é apenas
descoberta da verdade ou da
falsidade. Já as paixões (como
volições e ações) são realidades
originais, completas em si mesmas (cf.
HUME, 2009, Livro 3, Parte 1, seção 1,
p. 498). Elas não são nem verdadeiras
nem falsas. Não podem nem mesmo
ser contrárias ou conformes à razão.
As ações seriam condenáveis ou
louváveis nelas mesmas, e não por
concordarem com a razão (Ibid.). Há
duas maneiras pelas quais a razão
pode influenciar nossa conduta: a)
despertando
nossa
paixão
(informando-nos, por exemplo, sobre
um objeto); b) dando meios para se
exercer uma paixão (Ibid., p. 499).
A distinção entre o bem e o
mal não será, portanto, feita pela
razão. Para haver tal distinção, já
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Prof. Dr. Marcelo Fabri
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 92
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
deve ter ocorrido uma influência
sobre nossas ações, coisa que a razão
não poderia fazer (cf. HUME, 2009,
Livro 3, Parte 1, seção 1, p. 501). Ou
ainda: a razão, segundo Hume, não
produz deveres e obrigações morais.
Ela pode, apenas, encontrar esses
deveres e essas obrigações. E quanto
às virtudes e os vícios? Eles são
percepções da mente, assim como os
sons e as cores. A retidão e a
desaprovação morais dependem de
nossas percepções. “Nada pode ser
mais real, ou nos interessar mais, que
nossos próprios sentimentos de
prazer e desprazer” (Ibid., p. 509). A
moralidade diz respeito não ao juízo,
mas ao sentimento. Assim:
Ter o sentimento da virtude é
simplesmente sentir uma satisfação
de um determinado tipo pela
contemplação de um caráter. O
próprio
sentimento
(feeling)
constitui
nosso
elogio
ou
admiração. Não vamos além disso
(HUME, 2009, Livro 3, Parte 1,
seção 2, p. 510-511).
3. IMPORTÂNCIA E LIMITES
DA ÉTICA HUMEANA.
Husserl estaria tão distante de
Hume? Afinal, ambos admitem que
toda valoração é um sentir (Gefühl).
Eis uma palavra comum ao
vocabulário de ambos (cf. BIANCHI,
1999, p. 71). Para os moralistas do
sentimento, o entendimento apenas
expõe um estado de coisas objetivo.
Só o sentimento poderia aprovar ou
desaprovar.
O
que
faz
a
especificidade do juízo moral é, pois,
o sentimento. Em Husserl, no entanto,
está em jogo o entrelaçamento de
entendimento e afetividade. Os atos
afetivos são atos fundados, ou seja,
eles pressupõem necessariamente os
chamados atos intelectivos. Pertence à
essência das funções afetivas estarem
entrelaçadas
às
funções
do
entendimento para que possam
constituir a objetividade axiológica
(Wertobjektivität).
Ora, perceber, representar,
julgar, conjecturar, por exemplo, são
atos que podem ser pensados sem
nenhuma participação em nossos
sentimentos, ou seja, são atos sem
valorações,
atos
puramente
intelectivos (cf. HUSSERL, 2009a, p.
334) 14 . Como se fundam os atos
afetivos? Até mesmo o prazer, explica
Husserl, por ser intencional, visa a
alguma coisa. Seja qual for o objeto do
prazer, tal objeto terá de ser
representado, mesmo que seja pela
imaginação. Eis por que “na esfera
afetiva (esfera da razão prática), não
podemos absolutamente, assim parece,
Trata-se da Parte 3 das Lições (19081909), sobre a relação entre razão
teórica e razão axiológica.
93
Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de
Edmund Husserl.
14
Aoristo)))))
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fazer abstração do entendimento enquanto
faculdade objetivante [...]. Um simples
sentimento, um prazer ou um
desprazer, um ato afetivo em geral, não
realiza objetivação” (Ibid., p. 334-335.
Sublinhado pelo autor).
Ora, para Hume o juízo de
valor apenas exerce o que o
sentimento decidiu. Husserl, por sua
vez, pergunta: o que enuncia este
juízo? Na objetivação de um valor,
como funcionam a afetividade e o
entendimento? Trata-se de um
problema que somente uma teoria do
conhecimento
axiológica
poderá
enfrentar (cf. Ibid., p. 336).
Husserl censura Hume por ter
restringido a razão à dimensão
cognoscitiva, vinculada ao falso e ao
verdadeiro, mas não ao sentimento e
à vontade que, no caso, se restringem
ao puramente subjetivo, ou seja, a um
fato de natureza psíquica incapaz de
ser o lugar original da norma (cf.
HUSSERL, 2009b, §36, p.173. Dito de
outro modo, o discurso da razão diz
respeito à demonstração, à conclusão,
à refutação, e isto o torna vazio com
respeito ao sentimento. Para Hume,
com efeito, a razão sozinha não pode
produzir uma ação. Não pode,
igualmente, nem gerar uma volição
nem impedi-la. “Nada pode se opor
ao impulso da paixão, ou retardá-lo,
senão
um
impulso
contrário”
(HUME, 2009, Livro 2, Parte 3, Seção
3, p. 450). A razão se torna, assim,
serva das paixões. Comentando
Hume, Deleuze afirma: “O espírito
não é sujeito, ele é sujeitado”
(DELEUZE, 1980, p. 15). De nossa
parte, perguntamos: estaria Husserl
tão longe de Hume assim? As críticas
ao autor do Tratado são muitas, mas
nem por isso desconstroem a
“verdade” do ensinamento desta
obra.
Se o espírito é um aglomerado
de átomos psíquicos, a psique deve
ser construída a partir desses
elementos inanimados, ou seja, o eu
pensante decorre dessa construção.
Como se vê, a intencionalidade, tal
como descrita pela fenomenologia,
fica esquecida. Na perspectiva
husserliana, esse “positivismo” que
caracteriza o pensar humiano faz da
lei de associação um análogo às leis
da natureza. A ordem espiritual e
motivacional fica esquecida por este
naturalismo (cf. HUSSERL, 2009b,
§36, p.175). No entanto, há uma força,
uma contribuição fundamental que o
Tratado transmite à fenomenologia.
Mesmo em sua interpretação errônea
da intencionalidade afetiva e volitiva,
há, nesta obra, uma análise notável
das vivências enquanto vivências, em
seu fluxo específico, matéria prima de
uma reflexão fenomenológica. Ou
seja, Hume “descobre” que o
sentimento não é algo que conduz ao
erro, pura e simplesmente. Nesse
sentido, ele permite colocar a
94
Prof. Dr. Marcelo Fabri
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 94
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
pergunta
que
tanto
inquietou
Husserl: ao valorar as coisas pelo
sentimento, essas objetidades são
alcançadas? Se o sentimento não é um
ato do intelecto, não é conhecimento
de objetos, como dizer que há uma
relação com uma objetividade? Ora,
Hume
permite
considerar
a
intencionalidade do sentimento a
partir dela mesma, sem que para tal
ela seja medida por um conhecimento
objetivo.
Numa
palavra,
a
fenomenologia
irá
explorar,
justamente, o que fora aberto por
Hume (cf. HUSSERL, 2009 b, § 36,
p.176). O erro deste filósofo foi ter
confiado na maneira naturalística de
explicação da intencionalidade dos
sentimentos.
Ora, as percepções estão
entrelaçadas umas com as outras
graças à associação. A partir daí
surgem novas intencionalidades. Mas,
na
perspectiva
husserliana
a
associação não deve ser explicada
como um tipo de atração e de coesão,
mas
sim
como
causalidade
motivacional. Em vez de uma
passagem mecânica de uma vivência
a outra, deve-se considerar a forma
motivacional (no interior da qual já
opera a intencionalidade) que preside
a essa passagem. “Uma remissão
associativa é unicamente uma
modalidade da intencionalidade”
(HUSSERL, 2009b, §36, p.176). A
esfera afetiva é parte da vida
intencional como um todo, e é por
isso que a racionalidade prática pode
ser aproximada da atividade do
intelecto. “Em todo o sentir encontrase um valorar [...]. Este pode ser um
valorar correto ou incorreto, um valorar
que se adapta ou não se adapta ao
objeto, ou ainda: pode ser um valorar
que põe um valor falso ou
verdadeiro” (Ibid., p. 177. Sublinhado
pelo autor).
A intenção posicional está
presente em todo valorar. Trata-se de
uma lei de essência. No entanto, é
preciso reconhecer que a analogia
proposta é complexa, pois é preciso
explicar como se dá a “verdade”
cognoscitiva
de
uma
asserção
axiológica e prática. Ora, essa
verdade não habita no domínio do
conhecimento, mas sim naquele do
sentimento e da vontade. É preciso
reconhecer que a razão prática e
valorativa recebe do conhecimento
lógico apenas a forma da asserção
teórica e do pensamento. Ou seja, a
razão prática e valorativa existe antes
do pensamento numa espécie de
objetivação pré-teórica (cf. HUSSERL,
2009b, §37, p.181).
Hume faz da causalidade
motivacional uma simples aparência.
A
vida
psíquica
seria
uma
engrenagem de átomos psíquicos
submetida a uma causalidade natural.
O Eu emerge dessa engrenagem (cf.
HUSSERL, 2009b, §37, p. 182).
Subjetividade e afetividade: o entrelaçamento de intelecto e sentimento na ética de
Edmund Husserl.
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Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Voltemos ao Tratado. “A mente é um
espetáculo de teatro, onde diversas
percepções fazem sucessivamente sua
aparição” (HUME, 2009, Livro 1,
Parte 4, Seção 6, p. 285). A ideia de Eu
vem de uma espécie de ficção. Assim
como atribuímos uma identidade à
sucessão de objetos que existiriam
fora de nós, criamos a ficção da
existência contínua das percepções de
nossos sentidos. Nós eliminamos a
descontinuidade
ficticiamente.
Encobrindo
essas
variações,
chegamos à ideia de Eu (Ibid., p. 287).
Husserl reage dizendo que se
trata do espírito se beneficiando de si
mesmo para mostrar que não há
nenhum espírito (cf. HUSSERL,
2009b, §37, p. 183). O eu seria um ser
inanimado composto de elementos
regulados por leis naturais (cf.
HUSSERL, 2009b, §40, p. 192). Mas
esta tese, embora equivocada, ensina
algo precioso: a reação intelectualista
ou racionalista às leis naturalistas é
insuficiente. A vida espiritual não
implica a negação pura e simples da
fundação psicológico-empirista da
moral. Por quê? Sobretudo porque,
para dizer fenomenologicamente, é
em suas múltiplas formações que a
razão deve ser elucidada e clarificada.
Para Husserl o eu é o centro das
afecções e ações, não como um agente
passivo, mas sob a forma de um
“poder”. Descrever o eu é descrever
um “poder pensar”, um “poder
fazer”, um “poder agir”, etc. Os
diferentes atos de um eu não são
apenas dados empíricos do mundo
espaço-temporal. Curiosamente, são
os próprios empiristas que fazem ver
essa verdade! Os racionalistas não se
dão conta daquilo que Hume faz ver
de modo notável: “a infinita
variedade
das
formações
de
consciência” (cf. HUSSERL, 2009b,
§40, p. 193).
Para concluir, digamos que a
leitura husserliana de Hume traz
duas questões importantes para a
uma discussão fenomenológica da
razão prática, sobretudo no que diz
respeito a um acerto de contas com a
ética kantiana. Primeiramente, a
distância em relação a Kant. À tese
segundo a qual “o essencial de todo o
valor moral das ações consiste em a
lei moral determinar imediatamente a
vontade” (KANT, 2016, p. 102) sem a
cooperação dos impulsos sensíveis e
independentemente das inclinações.
Ora, na perspectiva husserliana,
pensar a vontade independentemente
das condições empíricas, ou numa
regulação puramente formal do
valorar e do querer, sem o
pressuposto da matéria desse valorar
e desse querer, seria algo absurdo (cf.
HUSSERL, 2009a, p. 228).
Em segundo lugar, a inevitável
proximidade com Kant. Se o âmbito
da
afetividade
pode
ser
fenomenologicamente explicitado a
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Prof. Dr. Marcelo Fabri
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 96
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
partir de seu entrelaçamento aos atos
de julgar teóricos, o eu que se
descobre implicado na racionalidade
também por suas valorações e seu
querer é aquele que se “descobriu” às
voltas com o imperativo: “Queira e
aja racionalmente”. Mais do que
correção e validade objetiva, é preciso
compreender o que seja um “querer
racional” (cf. HUSSERL, 2009a, p.
244). A discussão lógico-teórica da
esfera afetiva deve conduzir ao
problema “mais central da ética: o
problema do imperativo categórico”
(Ibid., p. 225). Um imperativo que
leva em conta a matéria do valorar e
do querer pode ser chamado
categórico? Eis uma questão que
ficará para outro trabalho.
REFERÊNCIAS
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manoscritti inediti degli anni 1920-1934,
Milano: Franco Angeli, 1999.
CLARKE, S.- Um discurso sobre religião
natural. In: Filosofia Moral Britânica.
Textos do século XVIII. Trad. Álvaro Cabral
(2ª edição), Campinas : UNICAMP, 2013,
pp. 41-85.
DELEUZE, G.- Empirisme et subjectivité,
Paris : PUF, 1980.
HUME, D.- Tratado da Natureza Humana.
Trad. Débora Danowski (2ª edição), São
Paulo: UNESP, 2009.
HUSSERL, E.- Idées directrices pour une
phénoménologie et une philosophie
phénoménologiques pures (Livre second),
Trad. Éliane Escoubas, Paris : PUF, 1996.
HUSSERL, E.- Leçons sur l’éthique et la
téorie de la valeur (1908-1914). Trad. P.
Ducat, P. Lang et C. Lobo, Paris: PUF, 2009
a.
HUSSERL, E.- Introduzione all’etica. Trad.
Nicola Zippel, Roma-Bari: Laterza, 2009 b.
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Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de
investigação
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Linguagem e temporalidade na estruturação do
Lebenswelt: uma proposta de investigação
Language and time in structuration of life-world: a
research project
Prof. Dr. Hélio Salles Gentil
Universidade São Judas Tadeu – USJT 15
RESUMO
O trabalho apresenta uma perspectiva de investigação das estruturas do Lebenswelt, em
particular de suas dimensões temporal e linguística. Faz isto a partir das características desse
mundo destacadas por E. Husserl em sua obra A crise das ciências europeias e a fenomenologia
transcendental e das relações essenciais estabelecidas por Paul Ricœur entre a experiência
humana do tempo e as narrativas em sua obra Temps et Récit. Enfatiza-se a interpretação das
narrativas de ficção como via de acesso privilegiada à compreensão dessas relações e de seus
modos de participação na estruturação de um mundo, considerando-se a elucidação da
natureza e lugar das narrativas históricas e de ficção na existência dos homens levada a cabo
por Ricœur em sua hermenêutica.
PALAVRAS CHAVE
Lebenswelt; Tempo; Narrativa; Husserl; Ricœur.
ABSTRACT
This paper aims to present an way to inquiry the structures of the life-world, specifically on
their temporal and linguistic dimensions. It’s done from the remarkable characteristics of this
world appointed by Edmund Husserl in his work The crisis of European sciences and the
transcendental phenomenology, and from the essential relationships between human time
experience and the narratives established by Paul Ricœur in his work Time and Narrative. The
interpretation of fictional narratives is indicate as a special way to access and to understand
15
Email: prof.heliogentil@usjt.br
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Prof. Dr. Hélio Salles Gentil
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 98
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this relationships and these participation in the structuration of a world, with foundation in
the elucidation of nature and place that historic and fictional narratives has in human
existence, how established by Ricœur in his hermeneutics.
KEYWORDS
Life-world; Time; Narrative; Husserl; Ricœur.
INTRODUÇÃO
O que se apresenta aqui é muito
mais a formulação de uma pergunta e
de um possível caminho para
respondê-la do que uma resposta ou
uma posição definida. De que
maneira
a
linguagem
e
a
temporalidade
participam
na
estruturação do Lebenswelt? Antes,
este “mundo da vida” tem uma
estrutura passível de descrição
fenomenológica? São a linguagem e a
temporalidade
dimensões
constitutivas dessa estrutura? De que
maneira? De que Lebenswelt estamos
falando? É o mundo tal como nos
aparece na experiência cotidiana, na
atitude natural?
Pensando na “matematização
galileana do mundo”, perguntando
por seu sentido e buscando a
reconstrução do pensamento que a
motivou, Husserl escreve no §9 de A
crise das ciências europeias e a
fenomenologia transcendental, obra
daqui em diante referida como Krisis:
“O mundo é pré-cientificamente
dado, na experiência sensível
cotidiana, de modo subjetivorelativo. Cada um de nós tem as
suas aparições, e estas valem para
cada um como aquilo que
efetivamente é. Interiorizamos há
muito,
nas
nossas
relações
recíprocas, esta discrepância entre
as nossas validades de ser. Não
julgamos por isso, todavia, que haja
muitos
mundos.
Cremos
necessariamente no mundo, com as
mesmas coisas que, contudo, nos
aparecem
diversamente.”
(HUSSERL, 2012, p. 17, <20>)
Laurent Perreau (2010) destaca a
primeira frase desse trecho, (“o
mundo é dado pré-cientificamente na
experiência sensível quotidiana de
modo
subjetivo-relativo”)
como
sendo uma definição de Husserl para
o mundo da vida que, ainda que
apareça de forma “bastante súbita”, é
“notável” por sua concisão. Estão aí,
segundo
ele,
as
“quatro
determinações conceituais maiores”
do mundo da vida: é pré-científico, é
intuitivo, é o entorno cotidiano
(Unwelt) e é subjetivo-relativo.
99
Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de
investigação
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Distingue então que de uma
perspectiva ontológica, este mundo
da vida seria a totalidade dos entes
(étants), enquanto que de uma
perspectiva transcendental seria a
“estrutura pré-dada da experiência”,
como “solo” e como “horizonte”
dessa experiência, para destacar que:
“Sob esse título Husserl quis
pensar a “vida” intencional do
sujeito desde sua relação originária
ao fenômeno do mundo. O “mundo
da vida” é, assim, esse mundo que
não cessamos de fazer nosso,
segundo
modalidades
de
apropriação práticas e teóricas
bastante
diversas.
Mais
precisamente, ele representa uma
esfera de experiência pressuposta
por toda atividade teórica e prática:
o “mundo da vida” é, ao mesmo
tempo, o solo pré-dado e o
horizonte persistente de nossa
experiência subjetiva.” (PERREAU,
2010, p.251).
Trata-se, portanto, de acordo
com estas expressões de Perreau
bastante esclarecedoras, de pensar a
“relação originária” com “esse mundo
que não cessamos de fazer nosso”,
“uma
esfera
de
experiência
pressuposta por toda atividade
teórica e prática”, “o solo pré-dado e
o horizonte persistente de nossa
experiência subjetiva”.
No §39 da Krisis Husserl
pergunta pela possibilidade de
tematizar esse mundo da vida,
pressuposto
experiência:
e
pré-dado
a
toda
Como pode, então, o ser pré-dado
do mundo da vida tornar-se um
tema autônomo e universal?
Manifestamente, apenas por uma
alteração total da atitude natural,
uma alteração na qual não mais
vivemos como até aqui como
homens na existência natural na
efetivação constante da validade do
mundo pré-dado, mas, pelo
contrário,
abstemo-nos
permanentemente dessa efetivação.
Só assim podemos alcançar o tema
transformado, de uma nova
espécie, “pré-doação do mundo
como tal”, o mundo pura e
totalmente, de modo exclusivo,
como aquele que e tal como na vida
da nossa consciência tem sentido e
validade de ser, e os adquire em
figuras sempre novas. (HUSSERL,
2012, p. 120-121, <151>)
E continua:
Só assim podemos estudar o que é
o mundo como solo de validade da
vida natural, em tudo o que nele se
propõe
e
dispõe,
e,
correlativamente, o que em última
instância é a vida natural e a sua
subjetividade, ou seja, puramente
como a subjetividade aí funciona
como efetivadora de validade. A
vida que realiza a validade do
mundo, validade própria da vida
natural do mundo, não se deixa
estudar na atitude desta vida
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natural do mundo. Ela necessita,
por isso, de uma alteração total, de
uma epoché universal, de uma espécie
completamente única. 16 (HUSSERL,
2012, p.121, <151>)
Um entorno cotidiano, précientífico, intuitivo e subjetivorelativo, solo e horizonte da
experiência, pré-dado, não seria
próprio a uma única vida, tão
singular quanto essa vida? Pergunta
Blumenberg, esse leitor sui generis de
Husserl:
Se cada um tem e vive sua vida,
por que razão não deveria ter
também cada um seu mundo da
vida? [...] Sob que pressupostos é
possível falar, então, de uma
“teoria DO mundo da vida”,
postulá-la?
(BLUMMENBERG,
2013, p. 11).
Sem considerar a própria noção
de vida, para cuja dificuldade de
determinação conceitual também
chama
a
atenção
longamente
Blumenberg (2013, p. 11-27), seria este
um mundo comum ou compartilhado
como uma crença – como escreveu
Husserl no trecho que citamos acima:
“cremos necessariamente no mundo,
com as mesmas coisas que, contudo,
O anexo XX a este §39 (Husserl, 2012, p.389393, <468> a <472>) vai desenvolver as
características e as condições dessa époche
assim tão específica.
16
nos aparecem diversamente”? Não se
trata, em Husserl, ainda segundo
Blumenberg, de uma “redução
eidética à essência dos mundos da
vida fácticos”, como se poderia ou se
deveria esperar a partir do método
fenomenológico (2013, p. 11). De que
se trata então?
Considerando a Krisis, escreve
François de Gandt que “o mundo da
vida é, de início, o mundo da
experiência, aquele onde vem se
colocar todas as evidências que
podem justificar um enunciado ou
uma teoria, é o lugar de toda
fundamentação” (2008, p. 106). Tratase daquele “solo último de validação
na experiência e na evidência”, no
que mais interessa a Husserl. No
entanto, outras características desse
mundo são reconhecidas por Husserl,
em particular nos parágrafos 34 e 44
dessa obra, assim sintetizadas por De
Gandt:
[...] o mundo da vida é (a)
cotidiano, por oposição ao mundo
do estudioso (savant), é o mundo ao
qual o estudioso retorna uma vez
realizado o seu trabalho; (b)
comum a todos os homens e não
partilhado por alguns especialistas;
(c) subjetivo e relativo, por
oposição à objetividade pretendida
do mundo da ciência; (d) em
movimento
permanente,
por
oposição ao mundo fixo e
perfeitamente determinado da
ciência;
(e)
colorido
de
101
Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de
investigação
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subjetividade, de presença humana,
por oposição a um mundo de coisas
ou
de
objetos
físicos;
(f)
efetivamente experimentado, por
oposição ao mundo dito objetivo,
que
na
realidade
não
é
experimentado e não o pode ser;
(2008, p. 106) (letras entre
parênteses colocadas por nós, no
lugar dos traços – usados por De
Gandt)
Como é possível conciliar com
estas características a ideia de que
este mundo, o mundo da vida, seja o
“solo último de validação na
experiência e na evidência”? As coisas
nos aparecem diversamente – e o
mundo? Como ele nos aparece? Na
atitude natural ele é o solo e o
horizonte de todas as práticas e de
todas as teorias, ele é prévio a estas,
ainda
que
não
tematizado
explicitamente. Quase que não nos
aparece, nesse sentido, na medida em
que não é tematizado, mas é “solo” e
“horizonte” de toda experiência,
prática e teórica. Ao final do longo §9
da Krisis Husserl escreve:
Pertence mesmo às dificuldades
maiores de um modo de pensar
<60> que procura fazer valer por
toda parte a “intuição originária”,
ou seja, o mundo da vida pré e
extra-científico, que compreende
em si toda a vida real (inclusive a
vida do pensar científico) e a
alimenta enquanto fonte das
formações de sentido elaboradas –
uma das dificuldades desse modo
de pensar, digo, é o dever de
escolher a maneira de falar ingênua
da vida, mas também de adaptá-la
como um instrumento ao que
requer
a
evidência
das
demonstrações. (HUSSERL, 2012,
p.47, <59-60>)
E continua, com ênfase:
Revelar-se-á progressivamente e,
por fim, inteiramente, que o único
caminho possível para ultrapassar
a ingenuidade filosófica que reside
na “cientificidade” da filosofia
objetivista tradicional é o correto
retorno à simplicidade ingênua da
vida [Naivität], mas numa reflexão
que se eleva acima dela, revelação
que abrirá as portas à nova
dimensão
já
repetidamente
anunciada.” (idem, ibdem)
Assim, retomando estes pontos,
podemos dizer que, em suma, fazer
valer a “intuição originária” equivale
aqui a fazer valer esse “mundo da
vida pré e extra-científico”, “fonte”
originária de todo conhecimento ou
sentido mais elaborado, onde Husserl
vai buscar o fundamento último que
parece faltar às ciências, retornando
“à simplicidade ingênua da vida”.
Tendo inclusive o “dever de escolher
a maneira de falar ingênua da vida”,
adaptando-a às exigências de uma
demonstração ou mostração de
evidência.
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International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Mas a consciência mais ingênua,
aquela ingenuidade da experiência
primordial, esta que está na relação
primeira como o mundo, não é desde
sempre
formada
histórica
e
socialmente,
sensível
e
linguisticamente
formatada?
Suspender a fé, a convicção no
mundo que se lhe apresenta assim
estruturado,
não
tomar
como
existente tal aparecer do mundo, nos
coloca diante do quê? A visada
prática, empírica, sobre o mundo,
suspendida, desconectada, nos deixa
com a visada de quê? De um mundo
de vida não prática, ou de uma
relação prática entre uma consciência
e um mundo que lhe é correlato? Mas
o mundo da vida considerado
fenomenologicamente está nessa
correlação, na apreensão da relação, e
não em um mundo supostamente
existente em si mesmo.
Então, quando pensamos no
mundo da vida pensamos aqui nessa
correlação entre uma consciência que
visa e um objeto visado, correlação
desde sempre estruturada históricatemporalmente e linguisticamente.
Mas pensar assim seria adotar uma
atitude natural, seria uma visada
empírica e não transcendental? O solo
e o horizonte de uma experiência
subjetiva, experiência originária no
terreno da vida, não estão no
território próprio da vida, esse
pressuposto de todo trabalho teóricocientífico, solo de que partem as
construções teóricas, ponto de partida
e seu horizonte, ponto de referência
de todas as atividades práticas e
teóricas? O mundo da vida é da vida,
e não há vida de uma consciência
pura ou de pura consciência, a vida é
a consciência no mundo e na história,
numa rede de relações concretas que
são apropriadas ou reapropriadas
pela consciência reflexiva, seja em sua
realização mundana, seja em sua
realização
fenomenológica,
apropriação efetuada pelo próprio
sujeito, em sua posição natural ou
transcendental.
Referindo-se a esta obra dos
últimos anos de Husserl, a Krisis,
Jocelyn Benoist assim nomeia o que
considera sua preocupação ou
“nervo”
central:
“Trata-se
de
reencontrar as condições sob as quais
a ciência pode fazer sentido para o
homem, e, para este fim, reconectar os
princípios dessa mesma ciência com
as intuições básicas do “mundo-davida”, esse mundo no qual se
desdobra a atividade prático-histórica
do homem, tendo como fundo um
universo
social
partilhado.”
(BENOIST, 1998, p. 210)
Inúmeras são as dificuldades
desse empreendimento, desde a
fundamentação das ciências em uma
evidência intuitiva presente na
relação originária do homem com o
mundo, evidência e relação de que
elas se afastaram muito em sua
constituição e desenvolvimento, até o
103
Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de
investigação
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caráter enigmático desse próprio
mundo, como já o indica Housset no
título de sua obra, Husserl et l’énigme
du monde (HOUSSET, 2000). Pergunta
Zahavi, depois de reafirmar o
entendimento do mundo da vida
como “ponto de referência” e
“fundamento de sentido” da teoria
científica que o “transcendeu” em sua
idealização e matematização: “Mas o
que é exatamente o mundo da vida?
Infelizmente, não é possível dar uma
resposta simples a essa pergunta. O
conceito husserliano do mundo da
vida é plurissignificativo e o
significado exato da palavra depende
do respectivo contexto.” (ZAHAVI,
2015, p. 186)
Como se sabe, são também
múltiplas
e
controversas
as
interpretações dadas a esse conceito
pelos leitores de Husserl, divergindo,
por exemplo, sobre o lugar da
consciência
pura,
da
intersubjetividade, da linguagem e da
história em sua constituição, com
posições que são também relativas
aos modos de compreender ou definir
o que seja a própria perspectiva
fenomenológica e seus “legítimos”
desdobramentos – o próprio Husserl,
como também se sabe, estava
constantemente
retomando
e
revisando
até
seus
princípios
fundamentais – como o faz nessa
última obra, outra “introdução à
fenomenologia”, que é a Krisis. (Cf.
ZAHAVI, 2015; RICŒUR, 1986;
WALDENFELS, 1997, entre outros)
O
conceito
de
Lebenswelt
permanece, segundo Perreau, “um
dos
mais
equívocos
da
fenomenologia” (2010, p. 252),
constituindo-se para o próprio
Husserl no “enigma dos enigmas”
(apud PERREAU, 2010, p. 252),
envolvendo uma multiplicidade de
questões conexas, com destaque para
as
que
dizem
respeito
à
fundamentação das ciências (KERN,
2008, p.223ss) e à estrutura da
experiência vivida que lhes serve de
base, questões sobre esse mundo que
é simultaneamente solo e horizonte
dessa experiência (PERREAU, 2010, p.
257), relativo à subjetividade e à
intersubjetividade, ao mesmo tempo
“particular”
e
“para
todos”
(BENOIST, 1998, p. 214, p. 216-217).
“Difícil compreender – escreve
Waldenfels (1997, p. 45) – como o
mundo da vida deveria adotar ao
mesmo tempo formas históricas
concretas e oferecer um fundamento
universal mais além da história”.
Benoist nomeia isto como uma
“hesitação” em Husserl:
Há muito tempo já se notou que
tudo se passa como se Husserl, em
sua determinação do Lebenswelt,
hesitasse entre dois polos: de um
lado, um polo-intuitivo-sensível,
tido como mais ou menos portador
de universalidade; de outro, um
polo histórico-cultural, em si
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Prof. Dr. Hélio Salles Gentil
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 104
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mesmo
relativo.
Trata-se
precisamente da teoria do “núcleo
intuitivo”, que circularia de uma a
outra formação histórico-social
determinada. Não se duvida que
Husserl assinale uma dupla
dimensão ao problema: por um
lado, o Lebenswelt enquanto mundo
sensível,
mundo
de
minha
experiência natural, e, por outro,
como mundo determinado por meu
pertencimento social e histórico.
(BENOIST, 1998, p. 218)
acontecimentos, e, por outro, mas
intimamente relacionado a este, com
o desenho de uma identidade para os
sujeitos que vivem e agem nesse
mundo, sujeitos individuais ou
coletivos, uma identidade narrativa
que dá conta da dimensão temporal
de sua existência, dá conta das
transformações inevitáveis – as
“figuras sempre novas” a que nos
referimos antes com Husserl – que
acompanham a passagem do tempo,
escapando à alternativa entre a
Sem pretender resolver de todo
permanência imutável de uma
esse enigma do mundo da vida, a
essência qualquer e a dissolução de
ideia que aqui se propõe pretende
qualquer
identidade
numa
contribuir para seu esclarecimento,
transformação sem limites.
dando continuidade às investigações
Essas configurações ganham
do
“enxerto
hermenêutico
da
expressão materializada não só nas
fenomenologia” levado a cabo por
narrativas que os próprios sujeitos se
Paul Ricœur, enxerto que parece
fazem na vida prática, no desenrolar
permitir considerar entrelaçados os
de sua existência – tecendo-as com os
fios que aqui aparecem tão separados,
elementos recebidos da linguagem e
o sensível e o histórico-cultural, o
da cultura de que participam,
subjetivo e o intersubjetivo, o
incorporando a elas suas ações, os
particular e o universal. Isso fica mais
acontecimentos de seu tempo e suas
evidente
na
consideração
do
transformações,
compartilhando-as
entrelaçamento entre a experiência do
com seus contemporâneos em trocas
tempo e as narrativas que Ricœur
cotidianas de pequenas histórias –
elabora profundamente em Temps et
mas também nas narrativas de ficção
Récit, mostrando como a primeira é
que são produzidas como obras
articulada e trazida à linguagem pelas
literárias, onde se materializam em
segundas, que não só apreendem essa
forma fixada como texto de contorno
experiência
como
também
a
definido e se prestam sobremaneira
configuram, num trabalho que
para a investigação de sua estrutura e
culmina com, por um lado, o desenho
dos seus efeitos, do modo como
de um mundo, um horizonte de
participam da estruturação de um
significações para as ações e os
mundo e como exercem sua mediação
105
Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de
investigação
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
da dimensão temporal da existência.
Como
mostrou
Ricœur
–
e
examinamos e discutimos longamente
em Para uma poética da modernidade
(GENTIL, 2004) e desenvolvemos em
outros momentos (GENTIL, 2009;
2011a ;2011b; 2011c; 2015) – as
narrativas de ficção estruturadas
como obras propõem um mundo, um
mundo possível de ser habitado pelo
leitor, por seus possíveis mais
próprios.
Cada
narrativa,
ao
acompanhar o desenrolar de uma
ação e suas consequências, não só
articula esse desdobramento temporal
próprio às ações como também o faz,
e só o pode fazer, num horizonte de
significações próprio, horizonte que
configura o seu mundo, o mundo
desenhado por aquele texto, por
aquele
conjunto
de
palavras
composto daquela maneira específica,
naquela ordem, com aquele começo e
com aquele fim, o “mundo do texto”.
Embora este seja distinto do “mundo
da ação”, mantém com ele relações de
mediação e modelo, num sentido de
modelo muito próximo do modelo
com que trabalham as ciências
contemporâneas,
construção
idealizada de uma estrutura definida,
que Ricœur explorou na sua
investigação do enunciado metafórico
e seu modo de fazer referência ao
mundo, examinando, entre outros, o
trabalho clássico de Max Black,
Models and Metaphors (RICŒUR,
1975).
Na distinção entre as narrativas
históricas, que buscam narrar o que
aconteceu no passado, e as narrativas
de ficção, que buscam narrar o que
poderia acontecer, destaca-se o
caráter de laboratório da literatura de
ficção 17 , o caráter de “variações
imaginativas” próprio das narrativas
de ficção. Elas investigam, nesse
sentido, possibilidades de ação em
situações diversas, com diferentes
personagens,
com
valores
e
consequências as mais diversas,
construindo nesse trabalho de
imaginação
e
linguagem
algo
próximo dos modelos das ciências,
ainda que sem a preocupação de
corresponder diretamente a alguma
realidade exterior, propondo por si
mesmas um mundo a ser habitado.
“Laboratório e festa dos possíveis”,
na expressão de Ernest Bloch em O
Princípio Esperança, que, além disso,
começa com a consideração de uma
dimensão interessante do mundo da
vida cotidiana, os “sonhos” diurnos,
pequenos desejos configurados em
sonhos ou fantasias (Cf. tradução
brasileira do vol.1 por Nélio Schneider
– Rio de Janeiro, EDUERJ/Contraponto,
2005). Põe-se como um desafio
interessante incorporar à descrição do
mundo da vida estes sonhos,
encontrar-lhes o devido lugar, levando
em consideração a revolução que
significou, para a compreensão do
humano, o lugar dado por Freud aos
sonhos noturnos e às fantasias.
106
17
Prof. Dr. Hélio Salles Gentil
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 106
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Todo um mundo é aí configurado,
ainda que não explicitado como tal,
mas que se faz presente como
horizonte de significações que dá
algum sentido àquelas ações e que
cabe
à
interpretação
desvelar,
explicitar.
Diferentemente
do
horizonte do mundo da vida em sua
abertura ao infinito (HOUSSET, 2000,
p.17), este se apresenta a partir da
estrutura do texto, delimitado por ele
e, portanto mais passível de ser
apreendido de modo inteligível, como
modelo, como construção ideal.18
Num certo sentido – a ser
investigado, tomado aqui como
hipótese e ponto de partida –, a
leitura de narrativas de ficção parece
nos dar uma posição peculiar, de
ruptura com a atitude natural e de
alargamento de nossa visão, posição
que Housset (2000, p. 19-20) atribui à
redução fenomenológica, posição de
poder olhar para a totalidade do
mundo proposto por aquela narrativa
sem estar na atitude natural das
personagens que habitam aquele
mundo e vivem no interior de seu
horizonte, com seu horizonte, sem se
dar conta dele, sem tomá-lo como
objeto de pensamento. Da posição de
leitor pode-se olhar para o próprio
olhar da atitude natural daquele
mundo e para seu horizonte.
A leitura que Ricœur (1984)
empreende de três grandes romances
– Mrs Dalloway, de Virginia Woolf, A
montanha mágica de Thomas Mann,
Em busca do tempo perdido de Marcel
Proust – deixa evidente o imenso
valor em abordá-los como variações
imaginativas, como “experiências
fictícias” do tempo que revelam
18 Um ganho não desprezível, que
muitas dimensões da temporalidade
Ricœur vê também na atenção não só
humana, inacessíveis por outras vias:
ao domínio objetivado da linguagem
as escavações e os subterrâneos do
mas também a todo o conhecimento
instante que o alargam ao infinito, no
produzido pelas inúmeras ciências da
romance de Woolf, as diferentes
linguagem – tornam-se as construções
experiências de eternidade no de
linguísticas
não
só
mediações
Mann, o tempo perdido, a morte e a
significativas para alcançar dimensões
escrita no de Proust, só para indicar
da existência de difícil se não
os caminhos dessa exploração.
impossível acesso por outros caminhos,
Mas essas narrativas de ficção,
como oferecem, essas ciências da
na
concepção
de Ricœur, não se
linguagem, um paradigma diferente do
esgotam nessa proposição de mundos
das ciências naturais, paradigma que
imaginários, e embora não façam
ele considera mais apropriado às
referência direta ao mundo da ação,
ciências ditas do espírito, humanas ou
mantém com este uma relação
sociais. Cf. RICŒUR, 1986; GAGNEBIN,
importante, com ao menos duas
2006; GENTIL, 2014.
107
Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de
investigação
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
dimensões: fazem referência a ele de
modo indireto e participam de sua
constituição, de sua configuração,
pelo lugar de mediação que ocupam
entre um momento e outro, entre o
mundo da ação do autor, dito préfigurado por referência ao mundo
configurado na obra, mundo em que
veio à luz pelo trabalho do autor que
aí vive e age, e o mundo refigurado,
mundo da ação do leitor, que traz o
mundo projetado pelo texto para a
existência pela leitura e ganha,
através desta, um mundo da ação
transformado, refigurado pela fusão
de horizontes entre o mundo do texto
e seu mundo da ação. Esse processo,
esclarecido por Ricœur como sendo o
de uma mimesis desdobrada em três
momentos (RICŒUR, 1983; GENTIL
2004), dá um lugar aos textos de
ficção na constituição do mundo
humano – “mundo da ação” em
Ricœur, “mundo da vida” em Husserl
– e revela o caráter desde sempre
figurado desse mundo: figurado em
linguagem e pela linguagem, ainda
que esta não seja a totalidade desse
mundo, articulado
de alguma
maneira em uma estrutura de
significações, de que as narrativas de
ficção são exemplo e modelo
exploratório.
Mesmo que se possa colocar
questões a essa compreensão do
mundo da vida – enfatizando, por
exemplo, a dimensão da intuição
sensível
em
detrimento
das
mediações simbólicas, ou entendendo
ser a experiência temporal muda e
sem sentido prévio e não uma
experiência
já
estruturada
simbolicamente mesmo antes de ser
trazida à linguagem em forma
narrativa – pode-se tomar como
ponto de partida essa maneira de
compreender as narrativas de ficção e
suas relações com o mundo da ação e,
através da análise e interpretação
crítica de narrativas, com o exame de
todos os fundamentos e pressupostos
envolvidos nessa perspectiva de
interpretação, avaliar o quanto as
estruturas
desses
mundos
imaginários
construídos
linguisticamente – nessas narrativas
em que se experimentam variações
para as ações, dando-lhes algum
sentido em seu desdobramento
temporal – podem revelar das
estruturas do mundo da vida, em seu
desdobramento
temporal
e
articulação
linguística,
como
expressões de sua sedimentação e de
suas possibilidades.
Eis a hipótese central que este
trabalho apresenta: a investigação de
narrativas de ficção específicas,
considerando sua estrutura e sua
função
mimética
tais
como
compreendidas por Paul Ricœur, com
seu lugar de mediação entre dois
momentos ou dois mundos da ação,
contribuirá
para
elucidar
as
dimensões do tempo e da linguagem
próprias ao mundo da vida. Entende108
Prof. Dr. Hélio Salles Gentil
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 108
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International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
se que a crítica dos fundamentos de
tal perspectiva em seu exercício, com
a discussão da validade, dos limites e
do alcance dessa maneira de
compreender as narrativas, ganhará
fôlego e contraste iluminador com o
exame simultâneo das investigações
de Husserl sobre a crise das ciências e
o lugar que aí ocupa o mundo da vida
(KERN, 2008; HUSSERL, 2012;
BENOIST, 1998).
CONCLUSÕES
A investigação de outros tipos
de narrativa a partir destas pode ser o
desdobramento de um trabalho
interdisciplinar de vasto alcance:
como a construção do conhecimento
numa linguagem científica que escapa
à linguagem comum, como destacou
Hannah Arendt, pode vir a participar
da mundo da vida? Como os sujeitos
– individual ou coletivamente –
articulam suas experiências na
narrativa de suas ações e dos
acontecimentos que ocorrem em suas
vidas, na narrativa de sua história de
vida ou da história da coletividade de
que fazem parte? Como essas
narrativas constituem o horizonte de
seu mundo da vida e que implicações
podem ter para sua compreensão
desse horizonte, de si mesmo e de
suas ações? Os trabalhos de Richard
Kearney (2002; 2003) sobre as
histórias e suas implicações para a
compreensão da alteridade revelam a
potencialidade dessa perspectiva.
Evidentemente, a consideração dessas
narrativas pode levar a colocar em
questão e refazer a estrutura básica de
compreensão de seu lugar na
existência estabelecida por Ricœur e
que foi aqui tomada como referência
organizadora. Parece-nos que se abre
assim um caminho muito interessante
para a investigação do “enigma” do
Lebenswelt.
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Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de
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110
Prof. Dr. Hélio Salles Gentil
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 110
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
WALDENFELS, B. De Husserl a Derrida:
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Traducción de Wofgang Wegscheider.
Buenos Aires: Paidós, 1997.
ZAHAVI, D. A Fenomenologia de Husserl.
Trad. Marco Antonio Casanova. Rio de
Janeiro: Viaveritas, 2015.
Submetido: 04 de agosto 2017
Aceito: 15 de agosto 2017
111
Linguagem e temporalidade na estruturação do Lebenswelt: uma proposta de
investigação
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
Categorical intuition and evidence, truth and being
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Universidade de Brasília – UNB 19
RESUMO
Este artigo se propõe a pensar a fenomenologia dos fenômenos: intuição categorial, evidência,
verdade e ser, através da interpretação de textos de Husserl e Heidegger. Num primeiro
momento mostra a intuição em sua maior pregnância, a percepção, como experiência da
evidência da presença do ente mesmo como autodatidade originária. Num segundo momento,
partindo da regionalidade e da universalidade da evidência na vida intencional da consciência,
trata-se da razão, de seu ordenamento para a evidência e de sua correlação com a verdade e o
ser. Num terceiro momento se realiza uma interpretação fenomenológica da doutrina
tradicional da verdade como adequação e se intenta mostrar que esta concepção de verdade é
derivada e se deixa reconduzir à verdade como manifestação do ser do ente. Num quarto
momento discorre-se a respeito de dois significados de ser: ser no significado de serverdadeiro e ser na função da cópula. Por último, tenta-se acenar para a evidência do ser e
para o relacionamento humano em face dela.
PALAVRAS CHAVE
Intuição categorial; Evidência; Verdade; Ser.
ABSTRACT
This article proposes to think the phenomenology of the phenomena: categorial intuition,
evidence, truth and being, through the interpretation of texts of Husserl and Heidegger. In a
first moment shows intuition at his highest pregnance, the perception, as an experience of the
evidence of the presence of the being itself as original self-giveness. In a second moment,
starting of the regionality and universality of the evidence on the intentional life of the
consciousness, one talks about the reason, of its be ordered to evidence and of its correlation
with the truth and with the being. In a third moment is made an phenomenological
interpretation of the doctrine about truth as adequacy and attempts to show that this
conception of truth is derived and leaves be led to the truth as manifestation of the being. In a
fourth moment there is discussion about two meanings of being: being in the meaning of be
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Email: maffernandes69@gmail.com
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Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 112
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International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
true and being in the function of copula. At last, seek to wave to the evidence of being and to
the human relationship with her.
KEYWORDS
Categorial intuition; Evidence; Truth; Being.
INTRODUÇÃO
O escopo da consideração aqui
intentada a respeito da intuição
categorial é mostrar sua conexão com
o sentido do ser como verdade. Tratase de um passo incipiente, porém,
necessário, para se divisar melhor o
horizonte da questão da verdade do
ser e do ser (essência) da verdade.
Esta consideração, assim, tem como
proposta deixar-se encaminhar na via
de pensamento aberta por Heidegger,
a partir da leitura de Brentano e de
Aristóteles 20 . Não obstante, a
Cf. Heidegger, Martin. Unterwegs zur
Sprache. Stuttgart: Neske, 1997, p. 9293 – A caminho da linguagem.
Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes /
EDUSF, 2003, p. 76. Heidegger declara
que o livro de Franz Brentano,
resultante de sua dissertação, “Sobre os
múltiplos significados do ente segundo
Aristóteles” (Von der Manigfachen
Bedeutung
des
Seienden
nach
Aristoteles), publicado em 1862, foi sua
guia através da filosofia grega nos anos
de ginásio. Este livro, evoca de novo a
pergunta:
o
que
é
o
ente?
tí tò ón?). Assim fazendo,
recorda o que repetidas vezes diz o
Estagirita:
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
20
proposta deste artigo não consiste em
realizar
uma
reconstrução
historiográfica deste encaminhamento
de pensamento. O que se propõe é,
antes, re-pensar o pensado deste
pensamento, em busca de um
tratamento da coisa mesma em
questão.
1. INTUIÇÃO, PERCEPÇÃO E
EVIDÊNCIA DA PRESENÇA
DO ENTE MESMO
A verdade está numa íntima
conexão com a evidência e esta, por
(Tò ón légetai pollachōs) – o ente vem à
fala de múltiplos modos (Cf. Metafísica,
1). Brentano toma como ponto de
partida que o ser é um homônimo e
que a multiplicidade dos seus
significados se ordena na quadrúplice
distinção do ser por acidente, do ser
como verdadeiro, do ser das categorias
e do ser em potência e ato. O ser como
verdadeiro tem como falso o não-ser
como falso. Cf. Aristóteles, Metafísica, E
2, 1026 a 34 (Livro V, c. 7). Cf.
Brentano,
Franz.
Sui molteplici
significati dell’essere secondo Aristotele.
Milano: Vita e Pensiero, 1995, p. 13-15.
113
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
sua vez, com a intuição. A intuição se
realiza de modo mais perfeito como
percepção. Esta é a intuição mais
pregnante. Embora na recordação, na
imaginação, na mediação de uma
imagem, também se dê intuição,
nestes atos, esta não alcança a
pregnância que alcança na percepção.
A percepção doa o ente em sua
presença viva e imediata. O que na
percepção acontece não é um
presentificar [Vergegenwärtigen], mas
é, mais do que isto, um atualizar, um
tornar presente [Gegenwärtigen], ou
seja, um presentar [Präsentieren] a
coisa mesma, tal como ela se dá em
carne e osso, em pessoa, em sua
realidade
viva,
doando-se
imediatamente [leibhaftig] 21 . A
percepção, respectivamente, aquilo
que ela doa, mostra a coisa mesma
como ela mesma. Esta mostração da
coisa mesma, nela mesma e como ela
mesma (Ausweisung), é o acontecer do
fenômeno (o mostrar-se a si mesmo a
partir de si mesmo) em sua doação
originária22.
Husserl, E. Logische Untersuchungen
II/2:
Elemente
einer
phänomenologischen Aufklärung der
Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p.
116.
22 Cf. a definição formal de fenômeno
no § 7 de Ser e Tempo. Heidegger,
Martin. Ser e Tempo (7ª Edição).
21
A
percepção
está,
pois,
enraizada
na
experiência
e
compreensão do ser como vigência
(Anwesenheit), mais precisamente,
como presença (Präsenz) 23 . A
percepção é um comportamento
intencional. Este é um relacionamento
significativo e interpretativo com o
que nos vem ao encontro no mundo.
Na percepção, o que nos vem ao
encontro no mundo recebe o caráter
de ser presencial24. Percepção é, pois,
um relacionamento de ser com o ser
enquanto presença. Ela inclui não só a
apreensão do ente enquanto esta ou
aquela coisa – por exemplo, na
percepção natural, isto é, cotidiana,
como esta ou aquela coisa de uso (um
giz, um quadro, etc.). Ela inclui
também uma apreensão do ser do
ente
enquanto
presença.
Na
percepção, o ente se doa em seu ser e
este ser tem o caráter presencial. Uma
coisa, porém, é o ente presente; outra
coisa, a presença do ente, que é o
caráter em que o ser se doa, na
percepção.
O
comportamento
perceptivo, em sua intencionalidade,
transcende, assim, a apreensão do
ente, na direção do ser. Ele tem um
Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes /
EDUSF, 2012, p. 67.
23 Cf. Husserl, Edmund. Formale und
Transzendentale Logik. Halle: Max
Niemeyer, 1929, p. 191.
24 Idem, p. 192.
114
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 114
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
caráter presencial, isto é, ele é um
relacionamento de nosso ser com o
ser enquanto presença. O caráter
presencial
do
comportamento
perceptivo se mostra à medida que o
comportamento do perceber com o
perceptivo tem o sentido de um
presentar (Präsentieren)25. O presentar,
por sua vez, aparece como um
atualizar, no sentido de um tornar
presente (Gegenwärtigen). O atualizar
deixa o vigente (Anwesendes) vir ao
encontro. Ao presentar enquanto
atualizar
corresponde,
correlativamente,
a
vigência
(Anwesenheit) no sentido da presença
(Präsenz) de um ente que nos vem ao
encontro no mundo. Este deixar vir
ao encontro tem o caráter de um
descobrir
(entdecken)
ou
abrir
(erschliessen), enfim, de um desvelar
(enthüllen). Este simples atualizar
(schlichtes Gegenwärtigen) de alguma
coisa na sua presença imediata é o
suporte
de
todos
os
nossos
relacionamentos com o ente e,
respectivamente, com o seu ser. Ele é
tão fundamental e simples que nem
sequer o tematizamos. Nós vivemos
constantemente neste atualizar, que é,
ao mesmo tempo, um contínuo
atualizar do próprio atualizar 26 .
Atualizar quer dizer: vigendo em
uma atualidade deixar vir ao
encontro o ente em sua presença,
Idem, ibidem.
Ibidem.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
25
26
respectivamente, em sua atualidade.
Isso mostra o caráter temporal deste
relacionamento de ser com o ser27. Ser
e tempo guardam, aqui, uma íntima
pertencência.
A
esta
íntima
pertencência se junta também a
verdade, se considerarmos que o
deixar vir ao encontro tem o caráter
de um desvelar, ou seja, de um
descobrir ou de um abrir. Assim, ser e
tempo e verdade estão em íntima
pertencência28.
A percepção, assim como o que
ela dá, se mostra (weist aus). Ela, em
sua pregnância intuitiva, dá o ente, a
coisa mesma em seu ser. Husserl
caracterizou o modo de ser da
evidência. Evidência é autodoação
(Selbstgebung) 29 . Evidência é, na
verdade, o desempenho intencional
da autodoação (intentionale Leistung
der Selbstgebung). Ela é a figura
privilegiada da intencionalidade, quer
dizer, da consciência de alguma coisa,
uma vez que aquilo que vem ao
encontro e se torna objeto desta
consciência, se oferece como o que o
apreendido nele mesmo e como ele
mesmo (Selbsterfassten), como o visto
nele mesmo e como ele mesmo
(Selbstgesehenen). Evidência é um
caráter da consciência em seu serIdem, p. 193.
Aqui, porém, não podemos entrar na
questão de como se dá esta íntima
pertencência.
29 Idem, p. 140.
115
27
28
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
junto (Sein-bei) daquilo de que ela é
consciência.
Ela
é
consciência
originária (urtümliche Bewusstsein):
“eu
apreendo
ele
mesmo,
originalmente, em contraste, por
exemplo, com o apreender numa
imagem, ou com toda outra intenção
prévia, intuitiva ou vazia” 30 .
Evidência tem diversos modos de
originalidade. O modo originário de
autodoação, porém, é a percepção. “O
ser-junto-disso (Dabei-sein) é para
mim como percipiente, em termos de
consciência, meu agora-ser-junto
(Jetzt-dabei-sein): eu mesmo junto do
percebido mesmo”31. Outro modo de
originalidade
é
o
do
claro
relembramento
(klare
Wiedererinnerung),
que
é
uma
consciência reprodutiva, consciência
do objeto mesmo, só que este se doa
como o que foi percebido no passado.
A evidência é, pois, uma vidência
original da coisa mesma. Ela é uma
vidência clara e penetrante (Einsicht)
do que se autodoa. No entanto, a
evidência não precisa se tornar
temática. De início e na maior parte
das vezes nós simplesmente vivemos
nela e, nela vivendo, apreendemos a
autodoação das coisas mesmas.
“Somente vendo, eu posso sacar o
que neste ver pré-jaz propriamente”32.
Idem, p 141.
Ibidem.
32 Idem, p. 142.
No
entanto,
outra
coisa
é,
tematicamente, realizar um explicitar
vidente (sehendes Explizieren) da
essência própria de tal ver (des
Eigenwesens solchen Sehens)33. É o que
buscamos, ao nos ocuparmos com
uma fenomenologia da evidência.
2. RAZÃO E EVIDÊNCIA: A
CORRELAÇÃO DA RAZÃO
COM A VERDADE E O SER
A evidência tem uma função
universal na vida intencional da
consciência. Seu desempenho se
refere a tudo quanto vem ao encontro
da consciência no modo da
autodoação.
Os
conceitos
de
intencionalidade como tal e de
evidência, estão, pois, essencialmente
conectados 34 . Intencionalidade, em
termos de consciência, aparece, com
efeito, basicamente, como a vivência
de um ter a sabença de alguma coisa.
O saber dessa sabença da consciência,
porém, varia de acordo como o modo
do relacionamento da consciência
com aquilo de que ela tem
consciência. Uma certa consciência de
evidência, pois, se insere sempre na
intencionalidade. “Assim a evidência
é
um
modo
universal
da
intencionalidade, que se refere ao
30
31
33
34
Ibidem.
Idem, p. 143.
116
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 116
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
todo da vida da consciência” 35 . A
análise fenomenológica da vida da
consciência em seu caráter de
intencionalidade, com efeito, traz à
evidência a universalidade da
evidência. Heidegger aponta para
essa universalidade: “Evidência é
uma função universal, a princípio,
dos atos que doam objetos, mais
amplamente, de todos os atos
(evidência do querer, do desejo,
evidência do amar e esperar). Ela não
é restrita a enunciados, predicações,
juízos”36.
O
referimento
intencional
apresenta-se como estrutura essencial
pré-formada do ato. Cada estrutura
de referimento intencional em sua
tipicidade tem como correlato um
tipo de objetualidade que se perfila de
modo cada vez diverso. Este
referimento é o que faz a vivência ser
vivência desta objetualidade e não de
uma outra, ou ainda, é o que faz esta
objetualidade ser objetualidade desta
vivência e não de uma outra. Assim,
toda percepção é o perceber de um
percebido, como toda imaginação é o
imaginar de um imaginado e assim
por diante...; e, vice-versa, todo
percebido é o percebido de um
Ibidem.
Heidegger, Martin. Prolegomena zur
Geschichte
des
Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 68.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
35
36
perceber e todo imaginado o é de um
imaginar. Além disso, cada tipo de
referimento constitui, igualmente, um
tipo de ter-em-mira alguma coisa.
Correspondentemente,
cada
vez
segundo o tipo do ter-em-mira, se dá
um tipo de evidência diverso. A
evidência da percepção sensorial é
diversa, com efeito, da evidência dos
sentimentos, por exemplo, do amor,
do ódio, que, por sua vez, é diversa
da evidência dos atos volitivos
(querer, desejar), que é ainda diversa
dos atos racionais (como, por
exemplo, julgar, concluir, demonstrar,
teorizar, conhecer cientificamente
alguma coisa). Não há, pois, apenas
evidências racionais, mas também
evidências afetivas, volitivas, etc.
Assim,
“categorias
da
objetualidade
e
categorias
da
evidência são correlatas. A cada
modo fundamental de objetualidades
(...) pertence um modo fundamental
de ‘experiência’ da evidência”37. Cada
região coisal tem o seu modo próprio
de dar-se à evidência, o seu modo de
tornar-se acessível, e seu modo de
deixar-se
tematizar.
Correspondentemente,
cada
mostração
teorética
(theoretische
Ausweisung) terá o seu próprio rigor,
de acordo com o tipo de evidência
que aquela região coisal oferece e o
Husserl, Edmund. Formale und
Transzendentale Logik. Halle: Max
Niemeyer, 1929, p. 144.
117
37
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
tipo de acesso que ela requer. Assim,
o acesso aos fenômenos naturais,
praticado pelas ciências da natureza,
é diverso do acesso dos fenômenos
humanos enquanto tais, praticado
pelas ciências humanas (ciências do
espírito ou histórico-sociais). Assim
também, nas ciências positivas, o
rigor da mostração teorética não será
o mesmo, por exemplo, na física, na
antropologia, teologia; e, do mesmo
modo, o rigor da filosofia, ciência
ontológica, não será o mesmo que o
rigor das ciências ôntico-positivas,
objetivas. Assim, há diversas regiões e
categorias de objetos. “Pois, se nós,
com a característica da evidência
como autodoação (ou, falando-se do
lado do sujeito, de autoposse) de um
objeto,
designamos
uma
universalidade referida a todas
objetualidades em igual modo, então,
com isso, não se intenciona que a
estrutura da evidência por toda a
parte seja igual” 38 . Temos, assim, a
regionalidade da evidência, junto com a
sua universalidade.
A intuição e a evidência são as
condições fundamentais do que
chamamos de razão. Intuir é,
simplesmente, ver. Este ver doador
originário, diz Husserl em Ideias I (§§
136-145), é base da Vernunft (Razão),
quer da razão teórica, quer da
38
Ibidem.
axiológica, quer da prática 39 . Com
efeito, o que está em questão em todo
o comportamento intencional racional
é a possibilidade de captação, de
apreensão, do ser, quer no sentido do
ser real, quer no sentido do ser
verdadeiro. É com base nesta doação,
em que o doado se dá em sua
autodatidade, ou melhor, com base na
sua recepção e percepção, que o
comportamento intencional racional
pode fundamentar e demonstrar, por
meio de um mostrar, que se dá no
modo do atestar e documentar, aquilo
que
fora presumido.
Sem o
preenchimento de um sentido,
possibilitado por atos perceptivos, de
visão, o pensar permanece não só
vazio, mas também cego, sem visão,
sem evidência.
A evidência é ato, a saber, ato de
identificação. Melhor ainda: ela é o
preenchimento identificador, em que
vêm à coincidência, o presumido e o
intuído. Há a evidência negativa e há
evidência positiva. A evidência
negativa é a evidência de uma ilusão.
“A
possibilidade
da
ilusão
Cf. Husserl, Edmund. Ideen zu einer
reinen
Phänomenologie
und
phänomenologischen
Philosophie.
Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª
Ed.), p. 282-285 (Ideias para uma
fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias &
Letras, 2006, p. 303-306).
118
39
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 118
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
(Täuschung) pertence à evidência da
experiência e não suspende o seu
caráter fundamental e seu préstimo,
embora o evidente dar-se conta da
ilusão suspenda a experiência em
questão ou a referida evidência
mesma” 40 . Assim, a suspensão ou a
dissolução de uma ilusão, que vem à
expressão na forma de um “agora eu
vejo que isso é uma ilusão”, é ela
mesma uma espécie de evidência, em
que vem à luz a nulidade do
experimentado e a supressão de sua
evidência empírica 41 . A evidência
negativa, portanto, realiza a negação
de uma nulidade. Numa evidência
não negativa, isto é, positiva, o
intuído se mostra como o mesmo que
o presumido. É justamente este
idêntico que é apreendido na
evidência. Na evidência da intuição
mais pregnante, que é a percepção,
dá-se a realização ou o cumprimento
de uma presunção, ou, dito de outro
modo,
o
preenchimento
ou
plenificação de um intencionar vazio.
Aquilo que era apenas presumido ou
intencionado de modo vazio ganha,
então, plenitude pela intuição.
Alcança-se, assim, o conhecimento de
que aquilo que era presumido tinha
um fundamento concreto, seguro,
confiável. Tem-se, assim, a vidência
Husserl, Edmund. Formale und
Transzendentale Logik. Halle: Max
Niemeyer, 1929, p. 139.
41 Idem, p. 140.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
40
clara e penetrante, isto é, a intelecção
de que o presumir é fundado na coisa
mesma em questão42.
Há diversos tipos de evidência.
Há evidência sensível, do individual.
Há evidência de objetos irreais, ideais,
em sentido amplo 43 . Podemos falar,
com efeito, de evidência de realidades
e de evidência de idealidades. Há, por
exemplo, a idealidade do específico,
há idealidade de um juízo, a
idealidade de uma sinfonia, etc.44 Há
atos categoriais. Tais atos se
caracterizam por serem fundados em
atos de percepção sensorial, por
serem intuitivos, isto é, doadores de
objetualidades, enfim, por, neles, a
objetualidade dos atos simples serem
doadas concomitantemente 45 . A
percepção sensorial, assim, serve de
base para a percepção categorial.
Estende-se, assim, a amplitude do
conceito de percepção e de intuição,
uma vez que há, também no nível do
Heidegger, Martin. Prolegomena zur
Geschichte
des
Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 67.
43 Husserl,
Edmund. Formale und
Transzendentale Logik. Halle: Max
Niemeyer, 1929, p. 139.
44 Idem, p. 147.
45 Heidegger, Martin. Prolegomena zur
Geschichte
des
Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 85.
119
42
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
categorial,
uma
doação
de
objetualidade nela mesma. “A
identidade de um ideal e, com isso, de
sua objetualidade, é algo para se ‘ver’
diretamente, em igual originariedade
(e caso se queira apreender a palavra
com
um
sentido
ampliado
correspondente: para se experimentar
diretamente) como a identidade de
um costumeiro objeto de experiência,
por exemplo, de um objeto da
experiência natural ou de um tal da
experiência imanente de quaisquer
dados psíquicos” 46 . Assim, pode-se
ampliar o âmbito da experiência, da
percepção, da intuição, do sensível
para o categorial. Há uma percepção,
por exemplo, de uma melodia. A
mesma melodia é repetidamente
realizada em várias execuções e
apresentações.
Igualmente,
um
mesmo romance é lido repetidamente
em várias leituras. A realização da
leitura de um romance ou da
execução de uma melodia é cada vez
única, individual, e se dá, a cada vez,
hic et nunc (aqui e agora)47. Mas cada
realização é uma realização do
mesmo: leitura do mesmo romance,
execução da mesma melodia. O
mesmo acontece com um juízo. Cada
pronunciamento
do
juízo
é
Husserl, Edmund. Formale und
Transzendentale Logik. Halle: Max
Niemeyer, 1929, p. 139.
47 Idem p. 18.
individual, mas, em cada repetição, é
o mesmo sentido que é trazido à
expressão. Cada expressão linguística
é individual, mas o significado é o
mesmo 48 . Em repetidas experiências
se realiza a consciência do mesmo
(Bewustsein
vom
Demselben),
respectivamente, dá-se, a cada vez,
uma experiência (em sentido amplo)
de uma mesmidade (Selbigkeit). A
identificabilidade (Identifizierbarkeit)
caraterística de todo objeto da
experiência pode ser constatada
também nestes casos. Assim como há
a evidente autoapreensão e autoposse
do individual, na experiência tomada
em seu sentido estrito, usual e
pregnante,
há
também
uma
autoapreensão e uma autoposse do
objeto irreal49.
Cada tipo de ato visa um tipo de
objetualidade, ou melhor, tem em
mira o ente num determinado como
(Wie) de sua datidade (Gegebenheit).
Os atos categoriais, fundados, dão
acesso a um novo tipo de
objetualidade que não é acessível aos
atos simples, fundantes. “Este novo
acessibilizar do objeto simplesmente
doado
designa-se
de
modo
46
48
49
Idem, p. 20.
Idem, p. 139.
120
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 120
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
correlativo aos atos como expressar”
(Ausdrücken)50. A expressão é o modo
de acessibilizar novas objetualidades,
que vêm à luz e se constituem, por
meio dos atos categoriais. Há dois
tipos de atos de intuição categorial:
atos de síntese e atos de ideação. Os
atos de síntese produzem o “estado
de coisas” (Sachverhalt), que é de
natureza ideal. Os atos de ideação
produzem a intuição do universal.
Com outras palavras, atos de síntese
tornam objetivos os estados de coisa
que são enunciados na enunciação.
Os atos de ideação doam um objeto
universal, a saber, a espécie. A
ideação é a intuição do universal
(Anschauung des Allgemeinen). Ela é
doadora de uma nova objetualidade:
a ideia (A palavra latina
“species” é tradução de , o
aspecto de alguma coisa, como
alguma coisa se deixa e se faz ver,
naquilo que ela, a priori, é. O ato da
intuição universal doa aquilo que por
primeiro e de modo simples se deixa
ver nas coisas. As objetualidades que
são doadas na intuição do universal
são doadas atualmente e, nesta
doação, acontece realmente um ver: o
universal é doado mesmo e nós o
captamos, nós o visamos e o vemos,
Heidegger, Martin. Prolegomena zur
Geschichte
des
Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 84.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
50
claro, com um olhar inteligente, com
uma visão intelectiva (Einsicht) 51 . É
graças ao ato de ideação que nós
podemos ver não somente os
vermelhos individuais, mas também
o vermelho como espécie:
Na
medida
em
que
nós
intencionamos (meinen) o vermelho
in specie, se nos manifesta um
objeto vermelho, e neste sentido
nós dirigimos o olhar para ele (que
nós, todavia, não intencionamos).
Ao mesmo tempo neste objeto se
apresenta o momento “vermelho” e
do mesmo modo também aqui nós
podemos de novo dizer que
dirigimos o olhar para ele. Mas
também este momento, este traço
particular
individualmente
determinado,
nós
não
o
intencionamos…
Enquanto
se
manifesta o objeto vermelho e, nele,
o momento “vermelho” salientado,
nós intencionamos muito mais o
único e idêntico vermelho, e nós o
intencionamos em um modo de
consciência de novo gênero, através
do qual justamente se nos torna
objetual a espécie em vez do
individual 52 . Há diversos graus
Husserl, E. Logische Untersuchungen
II/2:
Elemente
einer
phänomenologischen Aufklärung der
Erkenntnis. Tübingen: Max Niemeyer, p.
162.
52
Husserl,
Edmund.
Logische
Untersuchungen II/1: Untersuchungen
zur Phänomenologie und Theorie der
121
51
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
de evidência, isto é, de certeza e
de segurança contra a ilusão. Há
a ideia da evidência apodítica,
evidência pura e absoluta, como
vidência penetrante e clara de
uma
conjuntura
essencial
(Wesenverhalte). Há, em segundo
lugar, a ideia da evidência
assertórica, que é a evidência de
coisas, fatos, estados de coisa
“individuais”. Podemos tomar
como exemplo de evidência
apodítica a que se dá num juízo
necessário (de razão) do tipo
aritmético: “2 + 1 = 1 + 2”.
Temos, aqui, um ato de síntese,
uma síntese judicativa, que dá
acesso a um estado de coisas que
é
apreendido
de
modo
originário 53 . Realiza-se, aqui,
uma
consciência
dóxica
posicional
que
doa
adequadamente o seu objeto (o
estado de coisas), que exclui o
“ser de outro modo” (o que ela
dá acesso não pode ser
Erkenntnis. Tübingen : Max Niemeyer,
1993, p. 106-107.
53 Husserl, Edmund. Ideen zu einer
reinen
Phänomenologie
und
phänomenologischen
Philosophie.
Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª
Ed.), p. 282 (Ideias para uma
fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias &
Letras, 2006, p. 304).
diversamente). Trata-se de um
ato da “razão”54. Como exemplo
da
evidência
assertórica
podemos apresentar a que se dá
num juízo de fato como quando
eu digo: “em Brasília há muitos
Ipês floridos no inverno”. Este é
um exemplo tirado da esfera da
experiência. Dá-se expressão a
um juízo verdadeiro de fato, não
necessário.
Enquanto
no
exemplo da evidência apodítica
trata-se de um dado eidético,
adequado, de um estado-deessência, tornado acessível pela
razão, no exemplo da evidência
assertórica trata-se de uma
“individualidade”
(o
apercebimento de um estado de
coisas
individual),
tornada
acessível
através
da
55
experiência .
Assim, a evidência apodítica se
refere, pois, a verdades de razão
(verités de raison), para usar uma
expressão de Leibniz, enquanto a
evidência assertórica se refere a
verdades de fato (verités de fait). A
vidência
penetrante
e
clara,
intelectiva (Einsicht), se dá no caso da
evidência apodítica, não no caso da
evidência assertórica. Num caso,
temos a apreensão de objetualidades
54
55
Idem, p. 285 (Idem, p. 306).
Ibidem.
122
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 122
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
ideais; noutro, de objetualidades
reais. Isso remete também à diferença
entre evidência adequada e evidência
inadequada.
A
manifestação
(Erscheinung) viva, em carne e osso,
de uma coisa (Ding), é sempre
unilateral, dada em sombreamentos e
nuances (Abschattungen). Ela é
também sempre incompleta, pois
sempre deixa facetas indeterminadas.
É neste sentido que a evidência das
coisas reais, que se tornam acessíveis
na experiência, é inadequada. Daí
segue que “nenhuma posição racional
assentada sobre uma tal aparição
doadora inadequada pode ser
‘definitiva’, ‘insuperável’” 56 . As
posições podem ser, sempre de novo,
“riscadas”. Novas percepções podem
sugerir motivos racionais mais fortes
para novas posições, que tenham
maior peso, propiciando, assim, um
aumento fenomenológico positivo em
sua força motivadora57. Já evidências
adequadas
não
podem
ser
corroboradas ou enfraquecidas e nem
apresentam gradação de peso58.
Há, em terceiro lugar, a
evidência que compõe as duas
evidências anteriores, ou seja, a
intelecção da necessidade do serassim (Sosein) de um estado de coisas
individual a partir de fundamentos
Idem, p. 286-287 (Idem, p. 307-308).
Idem, p. 288 (Idem, p. 308).
58 Ibidem (Idem, p. 309).
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
56
57
essenciais subjacentes ao “individual
posto”59.
A evidência é o ato de
identificação do presumido com o
intuído. Nela, vem à luz que o
presumido e o intuído são o mesmo.
Na evidência enquanto ato de
identificação
atos
signitivos
coincidem com atos em que se doam
objetualidades, sejam estas factuais,
reais, individuais, sejam essenciais,
ideais, específicas.
O fenômeno da evidência nos
conduz ao fenômeno da verdade. Há
uma conexão entre razão, evidência e
verdade60. A fenomenologia da razão
Heidegger, Martin. Prolegomena zur
Geschichte
des
Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 68. Husserl fala, no § 137 de
Ideias I, do “conhecimento da
necessidade do ser assim de uma
individualidade
posta”:
Husserl,
Edmund. Ideen zu einer reinen
Phänomenologie
und
phänomenologischen
Philosophie.
Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª
Ed.), p. 285 (Ideias para uma
fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias &
Letras, 2006, p. 306) (grifo de Husserl).
60 O segundo capítulo da quarta secção
de Ideias I e a terceira das Meditações
Cartesianas
oferecem
bastante
elementos para pensar esta conexão.
Aqui devemos nos contentar com
apenas umas indicações incipientes,
123
59
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
tem como ponto de partida o seu
caráter intencional, isto é, o caráter de
correlação entre razão (como polo
noético) e “ser verdadeiro” ou “ser
efetivo” (como polo noemático).
Temos, assim, uma correlação entre
“ser
racionalmente
atestável”
(vernünftig ausweisbar sein) e ser
verdadeiro (wahrhaft sein) ou ser
efetivo (wirklich sein). Como já foi
aludido, a evidência é condição
fundamental do que chamamos de
razão. O que está em questão na razão,
como
modo
de
consciência
(consciência racional), é um ver
originariamente
doador.
Um
enunciado é racional quando o que
nele é dito se deixa fundar
(begründen),
mostrar
e
atestar
(ausweisen), ou seja, quando se deixa
ver (sehen) diretamente ou evidenciar
(einsehen) mediatamente 61 . O que se
dá como correlato a esta percepção
evidente é o ser, no sentido de ser
verdadeiro ou ser efetivo. A
deixando para outro momento um
desenvolvimento mais aprofundado
desta questão.
61 Cf. Husserl, Edmund. Ideen zu einer
reinen
Phänomenologie
und
phänomenologischen
Philosophie.
Tübingen: Max Niemeyer, 1993 (5ª
Ed.), p. 282 (Ideias para uma
fenomenologia pura e para uma filosofia
fenomenológica. Aparecida-SP: Ideias &
Letras, 2006, p. 303).
consciência
racional
é
uma
consciência que vê, uma consciência
que vive em atos perceptivos, em atos
de visão; é uma consciência intuitiva,
isto é, receptiva de uma doação
originária, onde o que se doa se
oferece em si mesmo em sua
presença, no modo do ser efetivo62. É,
neste sentido, uma consciência tética,
posicional: ela vive numa posição de
ser.
À consciência racional pertence,
a cada vez, uma modalidade dóxica
(de crença) que é correlata a
determinada modalidade de ser 63 .
Assim, enquanto perceptiva, a
consciência racional apreende de
modo certo um ser efetivo. Temos,
assim, a razão originária (Urvernunft)
que, na modalidade dóxica da crença
originária (Urglauben), se relaciona
como a “verdade” (Wahrheit)64. Mas o
modo da crença originária pode se
modificar em um modo de crença
derivada e ter como correlato outros
modos de ser, a saber, o ser possível,
o ser verossímil, o ser problemático, o
ser duvidoso 65 . Temos, assim, a
consciência da possibilidade na
suposição, da verossimilhança na
Cf. Idem, p. 282-285 (Idem, p. 303306).
63 Cf. Idem, p. 214-215 (Idem, p. 235236).
64 Cf. Idem, p. 290 (Idem, p. 310).
65 Cf. Idem, p. 214 (Idem, p. 235).
124
62
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 124
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
assinalar etc. Se nos falta a
evidência da doxa originária, da
certeza da crença, então uma
modalidade dóxica pode ser
evidente, digamos, para o conteúdo
de sentido “S é p”, por exemplo a
conjectura “S poderia ser p”. Essa
evidência modal é manifestamente
equivalente e está necessariamente
ligada a uma evidência dóxica
originária de sentido modificado,
isto é, à evidência ou verdade: “É
conjecturável (verossímil) que S é
p”; mas, por outro lado, também
está ligada à verdade: “Algo fala a
favor de que S é p”; e ainda: “Algo
fala a favor de que S p é
verdadeiro” etc. Em tudo isso se
mostram nexos eidéticos que
precisam
ser
investigados
fenomenologicamente
em
sua
68
origem .
conjectura, do problemático na
problematização, do duvidoso na
dúvida 66 . As modificações das
modalidades de ser são, pois,
correlatas às modificações das
modalidades dóxicas (de crença). As
modalidades de ser são noemáticas,
enquanto as modalidades dóxicas são
noéticas. A modalidade dóxica
originária – o ser certo – tem como
correlato o ser efetivo 67 . A razão
originária, com sua crença originária,
se realiza, vive, pois, numa evidência
originária. A razão originária tem,
então,
como
correlato,
numa
possibilidade ideal, a “verdade”.
Verdade é manifestamente o
correlato racional perfeito da doxa
originária, da certeza da crença. As
expressões “Uma proposição de
doxa originária, por exemplo, uma
proposição de enunciado, é
verdadeira” e “O caráter racional
perfeito convém à crença, ao juízo
correspondente” – são correlatos
equivalentes. Naturalmente, não se
está falando aqui de fato de um
vivido ou daquele que julga,
embora
seja
eideticamente
incontestável que a verdade só
possa ser dada atualmente, numa
consciência de evidência atual, o
mesmo também ocorrendo com a
verdade dessa incontestabilidade,
com a equivalência que se acaba de
Deste modo, dá-se a correlação
intencional (noético-noemática) de
razão e verdade. Na terceira das
Meditações
Cartesianas,
Husserl
investiga a correlação intencional, em
sua problemática constitutiva, entre
razão e verdade, respectivamente, ser
efetivo, efetividade (Wirklichkeit), bem
como entre desrazão (Unvernunft) e
não-verdade (falsidade) e não-ser
(efetivo).
A
razão
aparece,
eideticamente, como forma estrutural,
essencial
e
universal,
da
Ideias para uma fenomenologia pura
e para uma filosofia fenomenológica.
Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006, p.
310-311.
125
68
Cf. Idem, p. 217-218 (Idem, p. 238239).
67 Cf. Idem, p. 216 (Idem, p. 237).
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
66
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
“subjetividade transcendental em
geral” que remete para possibilidades
de confirmação (Bewährung), as quais
remetem, por seu turno, em última
instância, para o tornar evidente
(Evident-machen) e para o ter-naevidência (Evident-haben)69. Evidência,
como já se indicou, quer dizer
autoaparição, ou seja, o apresentar-sea-si-próprio, o dar-se-a-si-próprio de
uma coisa, de um estado-de-coisas, de
uma generalidade, de um valor, etc.
Evidência é, portanto, um modo de
autoaparição,
autoapresentação,
autodoação, no modo definitivo da
coisa mesma aí (Selbst da), do intuível
imediatamente (unmittelbar anschaulich),
do originalmente dado (originaliter
gegeben)70. Ela é, também como já se
indicou, um “fenômeno originário
universal da vida intencional” (ein
allgemeines
Urphänomen
des
intentionalen Lebens) 71 ; é um “traço
fundamental da vida intencional
qualquer que seja ela” (Grundzug des
intentionalen Lebens überhaupt) 72 . Na
perspectiva
da
fenomenologia
Cf. Husserl, Edmund. Cartesianische
Meditationen und Pariser Vortäge.
Haag: Martinus Nijhoff, 1950, p. 92
(Meditações Cartesianas e Conferências
de Paris. Rio de Janeiro: Forense, 2013,
p. 94).
70 Idem, p. 92-93 (Idem, p. 94-95).
71 Idem, p. 92 (Idem, p. 94).
72 Idem, p. 93 (Idem, p. 95).
69
transcendental isso significa: “Cada
consciência em geral ou tem já o
caráter da evidência (ou seja, é
autodoadora a respeito do seu objeto
intencional) ou está, por essência,
ordenada à passagem para a
autodoação, por conseguinte, à
passagem
para
sínteses
de
confirmação, que pertencem, por
essência, ao domínio do eu posso”73.
Quando a consciência-de-algo
tem o seu visado se autodoando
direta e imediatamente, então ela está
na experiência da evidência. Mas a
consciência pode visar algo de modo
vazio, apenas a modo de uma
presunção (ato de presumir). Então
ela precisa de uma confirmação
(Bewährung): se aquilo que ela
presume é e é tal como ela presume
ou não. No entanto, no processo da
confirmação, a resposta pode ser
afirmativa ou negativa. Isto é, pode
dar-se a evidência de que a coisa
mesma (ou o estado-de-coisas, etc.),
não simplesmente não é, ou não é tal
como se presumia. No dizer de
Husserl:
“no
processo
de
confirmação, a confirmação pode
reverter-se no seu negativo, pode
surgir, em vez do próprio visado, um
outro, e seguramente no modo do ele
próprio, com o que a posição do objeto
visado fracassa e este assume, pelo
73
Ibidem (Ibidem).
126
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 126
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
seu lado, o caráter de nulidade” 74 .
Assim, como do mesmo modo já se
aludiu, pode-se ter uma evidência
positiva (de que algo é e é assim como
se presumia) ou uma evidência
negativa (de que algo não é e não é
assim como se presumia). Com outras
palavras “não-ser (Nicht-sein) é
apenas uma modalidade do ser puro
e simples (Modalität des Seins
schlechthin), da certeza de ser
(Seinsgewissheit)” 75 . A evidência tem
como correlatos o ser e não-ser e suas
modificações modais: ser-possível,
ser-provável, ser-duvidoso, etc.
A já indicada universalidade da
evidência requer que se entenda a
razão não só em sentido teórico, mas
também em sentido axiológico e em
sentido prático. Também os atos
afetivos (do sentir) e volitivos (do
querer) têm a sua própria experiência
de evidência. Os atos do sentir têm
como correlatos os valores; os atos do
querer têm como correlato o bem.
Assim, o sentir pode ter ou não ter a
evidência
do
ser-valioso
em
referência àquilo que se sente, o
querer pode ter ou não ter a evidência
do ser-bom em referência àquilo que
se quer. Pode-se dizer – fazendo um
retorno às Ideias I – que todas as
“esferas téticas” têm seu próprio tipo
de evidência e, por conseguinte,
intencional e correlativamente, seu
Ibidem (Ibidem).
Ibidem (Ibidem).
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
74
75
tipo de verdade. Isso vale, portanto,
não só para a razão teórica, dóxica,
que se realiza na esfera da crença,
mas também para a razão doxológica,
que se realiza na esfera da
afetividade, ou, ainda, para a razão
prática, que se realiza na esfera da
vontade. “A verdade ou evidência
‘teórica’ ou ‘doxológica’ tem seus
paralelos na ‘verdade ou evidência
axiológica e prática’, pelo que as
‘verdades’ destas últimas chegam à
expressão e ao conhecimento nas
verdades axiológicas, vale dizer, nas
verdades especificamente lógicas
(apofânticas)”76.
Voltando
às
Meditações
Cartesianas, podemos dizer que, entre
as modalidades de ser, aquela do serefetivo, ou seja, do ser como
efetividade (Wirklichkeit), é correlata
de uma modalidade de crença
originária, privilegiada, a saber, a do
ser certo, que permeia a evidência
originária. Assim, a efetividade
aparece como o correlato da
confirmação evidente. Na crença, nós
tomamos objetos como válidos para
nós (objeto, aqui, tomado em sentido
bem
amplo:
coisas,
vivências,
Ideias para uma fenomenologia pura
e para uma filosofia fenomenológica.
Aparecida-SP: Ideias & Letras, 2006, p.
311 (grifo de Husserl). Husserl, aqui, se
declara devedor de Brentano, que abriu
caminho nesta direção no escrito
intitulado “Da origem do conhecimento
ético”, de 1889.
127
76
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
números,
estados-de-coisa,
leis,
teorias, etc.). A crença é um modo
posicional da consciência (ela põe
algo como válido-para-mim). A
segurança, porém, sobre o ser efetivo
de alguma coisa só se alcança
mediante a “síntese da confirmação
evidente, a qual é autodoadora da
reta ou verdadeira efetividade”77. Só a
evidência “faz com que tenha sentido
para nós o ser efetivo, verdadeiro, a
reta validade de um objeto, seja qual
for a sua forma ou tipo, com todas as
determinações que, para nós, lhe
pertencem sob o título de ser-assim
verdadeiro”78. A verdade é entendida,
aqui, como adequação entre o que se
presume e o que se mostra na
experiência da evidência, ou seja,
como “síntese de confirmação”, que é
operada pela razão, entendida, a
modo de forma estrutural, essencial e
universal,
da
subjetividade
transcendental em geral. Esta, a
subjetividade transcendental, é o
sustentáculo,
a
condição
de
possibilidade,
da
síntese
da
Husserl, Edmund. Cartesianische
Meditationen und Pariser Vortäge.
Haag: Martinus Nijhoff, 1950, p. 95
(Meditações Cartesianas e Conferências
de Paris. Rio de Janeiro: Forense, 2013,
p. 97).
78 Ibidem (Ibidem).
77
confirmação, é o seu “fundamento
transcendental último”79.
3. DA VERDADE COMO
ADEQUAÇÃO À VERDADE
COMO REVELAÇÃO
A verdade aparece como
identificação mostradora (ausweisende
Identifizierung),
realizada
na
plenificação de um intencionar vazio,
na realização ou confirmação de uma
presunção. Preenchimento definitivo
e inteiro quer dizer: adequação
(adaequatio) do presumido (intellectus)
à coisa intuída mesma (res). Temos,
assim, a intepretação fenomenológica
da antiga definição escolástica de
verdade: veritas est adaequatio rei et
intellectus. A adequação acontece no
modo do trazer à coincidência o
presumido e o intuído. É, pois,
identificação. E é identificação
mostradora à medida que, nesta
adequação, acontece a mostração ou
atestação (Ausweisung) do presumido
no intuído. Uma análise da estrutura
intencional do ato da identificação
mostradora ou atestadora ressalta a
intentio e o intentum como dois
momentos correlativos do mesmo
fenômeno. A intentio é o ato mesmo
de trazer à coincidência, o identificar.
O intentum deste ato, isto é, o seu
79
Ibidem (Ibidem).
128
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 130
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
correlato, é o identificado. Surge a
pergunta: o que é o identificado deste
ato de identificar? Resposta: o seridêntico do presumido e do intuído.
Assim, a verdade enquanto ato de
identificação
mostradora
ou
atestadora se realiza como o
identificar de um ser-idêntico que se
dá entre o presumido e o intuído.
A verdade, pois, em seu caráter
intencional, é a identificação do seridêntico. A partir disso pode-se relevar
três momentos constitutivos da
verdade enquanto adequação: o
adequar, o adequado e a condição de
possibilidade da adequação mesma.
Primeiramente, ressalta-se o
intentum da intentio, isto é, o adequado
da adequação: o ser-idêntico de
presumido e intuído. Verdade quer
dizer, aqui, o ser-verdadeiro no modo
do ser-idêntico de presumido e
intuído. Verdade é, assim, o constar
desta identidade. O ser-verdadeiro
consiste na existência, resistência e
consistência dessa identidade. Na
medida que o presumido vem à
coincidência com o intuído, eu sou
dirigido para a coisa mesma, sou
posto ao seu alcance, isto é, ela se me
torna acessível e eu vivo junto dela. E,
neste apreender da coisa mesma
intuída, no viver junto dela, acontece
a experiência da evidência, ou seja, a
evidência é experimentada – a
evidência do ser-idêntico. Uma coisa,
porém, é experimentar o ser-idêntico
em sua evidência, sendo junto da
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
coisa mesma; outra coisa é tematizar a
identidade como tal. Uma coisa é a
apreensão vivente, implícita, do seridêntico na sua evidência. Outra coisa
é a apreensão temática, explícita, da
identidade. Em todo o caso, verdade
quer dizer, aqui, uma mútua relação,
o relacionamento (Verhalt) entre
presumido e intuído, precisamente,
um relacionamento que acontece no
sentido da identidade. Pode-se falar,
assim,
de
um
relacionamento
veritativo (Wahrverhalt). Nele, jaz o
ser-verdadeiro80.
Em segundo lugar, ressalta-se a
intentio do intentum, isto é, não o
conteúdo do ato, mas o ato ele mesmo,
seu modo de realização (Vollzug). O
que está em questão, agora, é a
estrutura de ato da evidência mesma,
enquanto identificação que traz à
coincidência o presumido e o intuído.
Trata-se, pois, da estrutura do adequar,
no sentido de trazer à coincidência o
presumido e intuído. Verdade é,
agora, tomada como caráter do
conhecimento. A evidência é o
conhecimento no sentido pregnante
do termo; ela é a tomada de
conhecimento, a intelecção de que o
presumir está fundado na coisa
mesma. É na evidência que se realiza
Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena
zur
Geschichte
des
Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 70.
129
80
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
a verdade, enquanto concordância
(Übereinstimmung) entre intentio e
intentum, a “adaequatio intellectus et
rei” (Tomás de Aquino: De veritate qu.
I, art. 1) 81 . Verdade pressupõe
evidência. Evidência é preenchimento
identificador
(identifizierende
Erfüllung). E-vidência é, pois, um ver,
em que acontece um sacar, um trazer
para fora e para junto de si, a partir
da coisa originariamente vista, um
estado-de-coisas, uma conjuntura
(identifizierendes Heraussehen eines
Sachverhaltes
aus
der
originar
angeschauten
Sache).
Nesta
identificação, o presumido ele mesmo
resplandece na coisa originariamente
vista 82 . Verdade é identificação
mostradora
(ausweisende
Identifizierung). Identificar é, aqui,
neste sentido, adequar o presumido à
coisa mesma83.
Na história da filosofia a disputa
sobre a verdade oscila pendularmente
entre ambos os polos, isto é, entre
intentio e intentum, entre o conteúdo
do ato e o ato mesmo, entre res e
intellectus. Se a adequação recebe o
seu princípio da res (coisa, estado de
coisa, fato), temos o realismo. Isso
quer dizer: se a adequação recebe seu
Cf. Tomás de Aquino. Verdade e
Conhecimento. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 148.
82 Cf. Idem, p. 67-68.
83 Cf. Idem, p. 69.
81
princípio da coisa, ou seja, se se trata
de uma adaequatio intellectus ad rem,
temos o realismo. Se a adequação
recebe o seu princípio do intellectus
(no sentido do intelligere), ou seja, se
se trata de uma adaequatio rei ad
intellectus, temos o idealismo. Ora
verdade é concebida a partir do serverdadeiro no sentido da conjuntura
da verdade, do relacionamento
veritativo
(Wahrverhalt);
ora
é
concebida a partir do ser-verdadeiro
no sentido da conexão de atos, do
caráter de tomada de conhecimento,
da intelecção. As duas concepções,
porém, de verdade são imperfeitas
(unvollkommen). Em nenhuma das
duas concepções se alcança o sentido
originário de verdade84.
Este sentido, talvez, se nos doe
se nos detemos junto da condição de
possibilidade da adequação em seu
todo. De novo, temos em mira o ente
enquanto intuído, que dá atestação,
que dá ao conhecimento um chão e
um direito, isto é, um fundamento e
uma legitimidade. Trata-se, aqui, do
ente no sentido do ser-verdadeiro.
Verdade é, aqui, o que faz verdadeiro o
conhecimento. Verdade diz, neste
sentido, tanto quanto ser, no ser
sentido de ser-efetivo (Wirklich-Sein).
Verdade é, agora, aquilo pelo que o
verdadeiro é verdadeiro; é, como
84
Cf. Idem, p. 71.
130
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 130
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
diziam os medievais, o “esse
manifestativum”, o ser manifestador, do
ente. Esse ser manifestador dá ao ente
uma inteligibilidade prévia, uma
perceptividade (Wahrgenommenheit) que
é condição de possibilidade do
conhecimento, isto é, tanto do
conhecer quanto do conhecido, tanto
do adequar, quanto do adequado. A
perceptividade
do
ente
(Wahrgenommenheit des Seienden) é
condição
de
possibilidade
do
perceber (wahrnehmen) e do percebido
(das Wahrgenommene) em sua unidade
noético-noemática.
Perceptividade
diz o mesmo que o caráter de
presença viva, atual, “em carne e
osso”,
em
pessoa
(Leibhaft-da,
85
Leibhaftigkeit) .
Aliás, o percebido por excelência
e em sentido primordial é esta
perceptividade do ente enquanto sermanifesto
e
ser-manifestador,
enquanto ser-aberto, des-velado, em
sua presença viva.
Como dizia
Avicena, recordado por Tomás de
Aquino no prólogo do seu “De ente et
essentia”: “ens autem et essentia sunt
quae primo intellectu concipiuntur” (o
ente e a essência são o que por
primeiro
são
concebidos
pelo
Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena
zur
Geschichte
des
Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 53.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
intelecto)86. Aqui o ser-verdadeiro do
ente não é o resultado do
conhecimento; é, antes, sua condição
de
possibilidade
transcendental.
Trata-se,
portanto,
de
uma
determinação do ser como um
“transcendens”, isto é, como o que
sobrepuja toda a determinação
quididativa, em termos de gênero e
espécie. O intelecto é caracterizado,
transcendentalmente, pela abertura
ao ente no seu ser-verdadeiro. Ele é
receptivo a todo o ente, à medida que
todo o ente, enquanto ente, é
inteligível, cognoscível. Esta abertura
da receptividade ao ser do ente e à
sua verdade, isto é, ao seu ser
manifestador, a qual é constitutiva do
ser humano, enquanto o aí (da) em
que se dá a compreensão do ser
(Seinsverständnis),
melhor,
a
autodoação do ser, sua manifestação,
é o que se chama, em Ser e Tempo,
“Dasein” (no sentido de ser a abertura
em que se dá o aí do ser, o seu
advento).
A propósito disso pode-se
evocar a sentença de Aristóteles que
diz:
(he
psychè tà onta pōs estin) - a alma – quer
dizer, a alma intelectiva do homem,
melhor ainda, o Dasein, é, de certo
85
Tommaso. Ente ed essenza. Testo
latino a fronte. Milano: Rusconi, 1995,
p. 76.
131
86
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
modo, todo o ente 87 . É
constitutivo do ser do homem
descobrir
todo
o
ente,
pela
(aísthesis), a percepção, e
pela (nóesis), a intelecção.
Entretanto, convém notar que a
percepção humana, enquanto humana,
é já sempre dirigida pela intelecção
do que percebe. A intuição categorial
atesta que nós já sempre vemos o
visível no invisível, isto é, o sensível
sob a forma do inteligível. Assim,
todo o ente, à medida que pode ser
inteligido,
conhecido
intelectivamente, pode se tornar um
conteúdo da intelecção, da “nóesis”,
ou seja, pode se tornar um “nóema”.
Esta tese remonta, de certa
maneira, à tese ontológica de
Parmênides,
que
diz:
(tò
gar autò noein te ka einai) - pois o
mesmo é pensar e ser88. Pode-se dizer:
o verdadeiro é a identidade de pensar
e ser. Identidade significa, aqui,
coincidência. O pensar coincide com o
ser. Em sua abertura potencial, a alma
intelectiva, isto é, o Dasein no homem,
Aristóteles: De anima, 8, 431 b
21. Apud Heidegger, Martin. Ser e
Tempo (7ª Edição). Petrópolis /
Bragança Paulista: Vozes / EDUSF,
2012, p. 50.
88 Anaximandro, Parmênides, Heráclito.
Os pensadores originários. Petrópolis:
Vozes, 1991, p. 44-45.
87
recobre toda a envergadura do ser,
toda a envergadura do sentido. Isto
possibilita a Tomás de Aquino
encarar a alma intelectiva como um
ente privilegiado, a saber, como o
“ens quod natum est convenire cum omni
ente”, o ente ao qual é nato o convir,
isto é, o convergir com todo o ente
(De veritate, qu. 1, art. 1 c)89. É antes de
tudo neste sentido que o homem é,
como dizia os medievais, um “minor
mundus”, um “microcosmo”.
Em Ser e Tempo, Heidegger usará
o nome “Dasein”, ser-o-aí-do-ser, para
nomear esta abertura transcendental
do pensamento ou do conhecimento
que potencialmente recobre todo o
ente, isto é, não só todo o modo
específico de um ente, mas também
toda a envergadura do sentido de ser
do que quer que seja. Afirmar, porém,
este privilégio do pensamento de
coincidir com tudo o que, de alguma
maneira está sendo, com toda a
envergadura do sentido de ser, não
quer dizer proceder a uma má
subjetivação da totalidade do ente90.
A verdade é o fundamento do
verdadeiro, tanto do verdadeiro do
ente em seu caráter de ser
Cf. Tomás de Aquino. Verdade e
Conhecimento. São Paulo: Martins
Fontes, 1999, p. 146.
90 Cf. Heidegger, Martin. Ser e Tempo
(7ª Edição). Petrópolis / Bragança
Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 50.
132
89
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 132
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
manifestador,
referido
ao
conhecimento, isto é, em seu ser
encontrável e descobrível, assimilável
ao
conhecimento,
quanto
do
verdadeiro do conhecimento, em seu
caráter de ser apreensivo e receptivo,
em seu poder encontrar o que se doa
na intuição, tanto sensível quanto
categorial, tanto individual como
específica, e em seu poder dar uma
formação intencional a isso que ele
encontra, descobre, abre ou desvela,
no enunciado. Pode-se falar, assim,
com os medievais, de uma “veritas in
re” e de uma “veritas in intellectus”. O
verdadeiro no intelecto, porém, se dá
em dois outros níveis, no nível da
“simplex
apprehensio”,
simples
apreensão, o ver simples, e no nível
da “propositio”, a verdade do
enunciado, obra do “intellectus
componente et dividente”. Temos,
assim, uma verdade pré-predicativa e
uma verdade predicativa.
A definição tradicional de
verdade, formulada na idade média,
por sua vez, remete, por rodeios, à
sua origem na grecidade 91 . De
imediato a noção de “adaequatio”,
também
entendida
como
“correspondentia” ou “convenientia”, a
saber, de intelecto e coisa, do
Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena
zur
Geschichte
des
Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 73.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
91
conhecimento com o real, remete à
noção de homōíosis) de
Aristoteles,
presente
no
De
interpretatione I (16a 6s) 92 . As coisas
escritas
(tà
graphómena) – mostram as vozes
articuladas
na
verbalização
–
(tà en te phoné).
Estas, por sua vez, mostram as
afecções
da
alma
–
(pathémata
tes psychés). Estas afecções (Erleidnisse)
da alma, em termos de fenomenologia
da consciência, poder ser ditas como
as “vivências” (Erlebnisse), sendo que
estas são tomadas em sentido
intencional, isto é, como estruturas
noético-noemáticas.
(tà pathémata), neste
caso,
coincide
com
(noémata):
o
múltiplo
pensado do pensar. Destas afecções
na
alma
se
diz
que
são
(homoiómata)
–
semelhanças
das
coisas
(prágmata). São, em certo
sentido, apresentações adequadoras
(angleichende
Darstellungen)
das
93
coisas . Os pensamentos (no sentido
Cf. Aristóteles. Da Interpretação
(Edição Bilingue). São Paulo: Unesp,
2013, p.
93 Cf. Heidegger, Martin. Unterwegs zur
Sprache. Stuttgart: Neske, 1997, p. 244
( A caminho da linguagem. Petrópolis /
Bragança Paulista: Vozes / EDUSF,
2003, p. 194).
133
92
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
do
pensado)
são
(homoiómata)
das
coisas, apresentações adequadoras,
no sentido de dar a conhecer, isto é,
mostrar as coisas tal como elas são.
Entre os pensamentos e as coisas não
há uma igualdade em espécie. No
entanto,
os
pensamentos
são
apresentações
adequadoras
das
coisas, à medida que eles as dão a
conhecer assim como elas são.
“Qualquer conhecimento deve ‘dar’ a
coisa assim como ela é” 94 . A
homōíosis), adequação
ou concordância, quer dizer este
“assim como” que se estabelece entre
os pensamentos (o pensado) e as
coisas, entre intellectus e res.
Assim, o que se dá no
comportamento ou relacionamento
intencional da consciência, no
perceber ou cogitar, as cogitationes no
sentido (noemático) do cogitatum, dito
ainda de outro modo,
os
pensamentos – (tà
pathémata)
–
enquanto
(noémata),
são
(homoiómata)
das
coisas, isto é, apresentações que
mostram as coisas tal como elas são,
naturalmente, à medida que eles dão
a conhecer as coisas, quer dizer, à
Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª
Edição). Petrópolis / Bragança Paulista:
Vozes / EDUSF, 2012, p. 286.
94
medida que acontecem no evento do
conhecimento.
Eles
são
ditos
(homoiómata) à medida
que têm adequação com as coisas.
(tà homoiómata) diz,
pois, o que é adequado, o que tem
adequação - (homōíos
échei) – com as coisas95. Mas, em que
sentido entender a adequação aqui
como na dinâmica do mostrar?
Resposta: no sentido de um “assimcomo”. Quer dizer: o pensar deixa
encontrar o ente que vem ao encontro
assim como ele é. Isso, por sua vez,
diz: o perceber (intelectivo) deixa
encontrar o percebido, o ente mesmo,
tal como este é. Não se trata, aqui, de
uma adequação do psíquico com o
físico, nem se trata de imagens.
O que está em questão aqui é a
experiência do conhecimento no
sentido da mostração ou atestação
(Ausweisgung) e da confirmação
(Bewährung). Vamos supor que eu
diga a um amigo meu que mora no
exterior: “em Brasília há muitos Ipês
floridos no inverno”. Ele vem me
visitar num inverno e verifica, pela
percepção in loco, que este enunciado
é
verdadeiro.
Dá-se-lhe
a
confirmação: verdadeiramente, isto é,
Cf. Heidegger, Martin. Logik: die
Frage
nach
der
Wahrheit
(Gesammtausgabe Band 21). Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1995,
p. 167.
134
95
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 134
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
de fato, “em Brasília há muitos Ipês
floridos no inverno”. O que se visava
no enunciado – este estado de coisas –
é o mesmo que se dá a perceber
naquela percepção. “O enunciado é
um ser para a própria coisa que é”
(Das Aussagen ist ein Sein zum seienden
Ding selbst) 96 . Neste caso, na
confirmação, mostra-se, atesta-se, o
ser-descobridor
do
enunciado.
Importante, aqui, é a realização da
mostração
ou
atestação
(Ausweisungsvollzug). Nela, “o próprio
ente visado mostra-se assim como ele é
em si mesmo, ou seja, que, em si
mesmo, ele é assim como se mostra e
descobre sendo no enunciado” 97 . Na
confirmação (Bewährung) o que se
visa é o ente em si mesmo, não uma
representação do ente. “Confirmação
significa: que o ente se mostra a si
mesmo” 98 . No conhecimento, o
enunciado alcança confirmação. O
conhecimento é um comportamento
intencional, isto é, um dirigir-se para,
um orientar-se para algo, que se tem
em mira. O conhecimento, como
comportamento intencional, se dirige
ao ente mesmo e não a uma
representação sua 99 . Ele visa o ente
Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª
Edição). Petrópolis / Bragança Paulista:
Vozes / EDUSF, 2012, p. 288.
97 Ibidem (grifos de Heidegger).
98 Idem, p. 289.
99 Cf. Heidegger, Martin. Logik: die
Frage
nach
der
Wahrheit
(Gesammtausgabe Band 21). Frankfurt
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
mesmo e não a conteúdos de
consciência. O conhecimento é, pois,
um relacionamento de ser para com o
ser do ente. “Enquanto enunciado e
confirmação, o conhecimento é,
segundo seu sentido ontológico, um
ser que, descobrindo, realiza seu ser
para o próprio ente real” 100 . O
conhecer se realiza, assim, como um
ser-descobridor que visa o ser do ente
real. O ser-descobridor (entdeckendsein) constitui o ser-verdadeiro (a
verdade)
do
enunciado.
“O
enunciado é verdadeiro significa: ele
descobre o em ente em si mesmo”101.
O ser do enunciado consiste
poder mostrar o ser do ente em si
mesmo. O relacionamento intencional
entre (tà pathémata),
respectivamente,
(tà
noémata),
e
(tà
prágmata) se resume neste serdescobridor. No enunciado, este
relacionamento
há
de
ser
compreendido a partir da dinâmica
do falar como dizer, no sentido de
mostrar, do (légein) como
(hermeneúein),
interpretar, no sentido trazer e expor
96
am Main: Vittorio Klostermann, 1995,
p. 100.
100 Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª
Edição). Petrópolis / Bragança Paulista:
Vozes / EDUSF, 2012, p. 289.
101 Ibidem (grifo de Heidegger).
135
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
a mensagem, abrir e dar anúncio, dar
a conhecer 102 . Daí segue que um
estudo a respeito de e na esfera do
enunciado – do (lógos) –
deva
se
chamar
(De interpretatione).
O (lógos), o enunciado, tem a
função
precípua
de
um
apophaínesthai):
deixar e fazer ver aquilo mesmo sobre
o que discorre, a partir daquilo
mesmo sobre o que discorre. O
enunciar é compreendido, aqui, a
partir do dizer e o dizer a partir do
mostrar, como um tornar acessível
aquilo sobre o que discorre. Discorrer
é discorrer sobre alguma coisa. Esta é
sua estrutura intencional. O
(lógos)
enquanto(apóphansis),
isto é, enquanto mostração, revelação,
é expor alguma coisa de alguma
coisa.
Nele
se
cumpre
um
(aletheúein), um serrevelador, um ser-desvelante. “O ‘ser
verdadeiro
do
(lógos)
enquanto
(aletheúein)
diz: retirar de seu velamento o ente
sobre que se fala no (légein)
como
Cf. Heidegger, Martin. Unterwegs zur
Sprache. Stuttgart: Neske, 1997, p. 121122 – A caminho da linguagem.
Petrópolis / Bragança Paulista: Vozes /
EDUSF, 2003, p. 96.
apophaínesthai)
e
deixar e fazer ver o ente como algo
desvelado (alethés), em
suma, des-cobrir”103.
Enquanto
apophaínesthai)
o
(lógos) expõe o expõe o
(phainómenon): o vir à
luz do que irrompe, emerge, aparece.
(phainómenon) remete a
(phaínesthai) – o vir à luz,
desde si mesmo, em si mesmo, por si
mesmo; o que remete a (phós),
luz, tanto no sentido de claridade,
quanto no sentido de fonte de
claridade104. A claridade é o elemento
no qual tudo aparece. Aparecer
significa tanto brilhar, resplandecer,
quanto manifestar-se. Isso nos remete
de volta à questão da evidência
enquanto manifestação, aparecimento
fenomenal, o qual tem o seu próprio
lógos, isto é, sua própria articulação
de sentido, um modo de reunir-se e
de expor-se, enfim, a sua própria
fenomeno-logia.
4. SER COMO VERDADE E
SER
COMO
CÓPULA
102
Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª
Edição). Petrópolis / Bragança Paulista:
Vozes / EDUSF, 2012, p. 72.
104 Cf. Idem, p. 67.
136
103
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 136
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Já se indicou que a razão, a
evidência e a verdade, não se dão
apenas na esfera doxológica, teórica,
mas também se dão na esfera
axiológica (afetiva) e na esfera prática
(volitiva). Tradicionalmente, porém, a
verdade é atribuída ao ato do
enunciar, isto é, os atos predicativos,
relacionantes, que se realizam na
esfera doxológica, teórica. Mas uma
análise intencional da verdade nos
remete de volta à evidência prépredicativa. A fenomenologia se
volta, sem consciência explícita, para
a amplitude do conceito de verdade,
nos gregos (mais precisamente,
Aristóteles), em que também a
percepção como tal e o simples
perceber de algo podem ser
chamados de verdadeiros. A análise
fenomenológica
da
evidência
evidencia, pois, que também atos não
relacionantes,
monoradiantes,
monotéticos, tem igualmente a
possibilidade
de
mostração
e
atestação. A fenomenologia rompe,
assim, com a restrição do conceito de
verdade a atos relacionantes, juízos. A
verdade dos atos relacionantes é
apenas uma determinada espécie de
ser-verdadeiro dos atos objetivantes
do conhecimento como tal. Tudo isso
abre novas possibilidades para se
pensar a conexão de verdade e ser.
Um primeiro conceito de
verdade a toma como o constar da
identidade do presumido e do intuído
– verdade como ser-verdadeiro.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
Verdade vige, assim, como um sentido
de ser: ser no sentido do ser-verdadeiro
(diferente, por exemplo, de ser no
sentido das categorias). Tomemos o
enunciado: “a flor deste ipê é
amarela”. O conteúdo enunciado
deste enunciado é o ser-amarelo da
flor deste ipê – é o estado de coisas
julgado. Nele pode-se distinguir algo
dúplice: ser-amarelo. Esta ênfase no
ser tem em mente: a flor deste ipê é
realmente amarela, ela é de verdade
amarela. Ser vige, aqui, como ser real,
ser efetivo, ser de verdade. O que está
em questão, aqui é: existe a
conjuntura
veritativa,
o
relacionamento de verdade, ou seja,
subsiste a identidade de presumido e
intuído, entre o enunciado e o
percebido em que se cumpre a
confirmação. Ser no sentido do serverdadeiro quer dizer, aqui: o constar
da
verdade,
da
conjuntura
(relacionamento) veritativa (o), o
constar da identidade. O enunciado
quer expressar o ser verdadeiro do
estado de coisas julgado105.
Um outro sentido de ser que
aparece no enunciado é o do ser como
cópula. Toma-se em consideração, de
novo, este algo dúplice: ser-amarelo.
Só que a ênfase, agora, se dá do lado
Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena
zur
Geschichte
des
Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 71-72.
137
105
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
contrário: ser-amarelo. A ênfase em
“amarelo” evoca a fórmula: S é P.
Ressalta-se, agora, o ser-P de S. Neste
caso, o enunciado “a flor deste ipê é
amarela” quer expressar o ser-p de S: o
convir do predicado com o sujeito. Aqui é
intencionado o ser da cópula: “a flor
deste ipê é amarela”. O que se
intenciona não é o subsistir da
conjuntura, do relacionamento da
verdade (Bestand des Sachverhaltes),
mas um momento estrutural do
estado de coisas (Sachverhalt) mesmo.
O estado de coisas consiste, aqui, na
conjuntura,
no
relacionamento
(Verhalt), cuja estrutura formal se
deixa enunciar como S = P. O sentido
de ser, aqui, aparece como fator de
relacionamento do estado de coisas
como tal. Este sentido de ser se
distingue, pois, do sentido de ser
como conjuntura de verdade. Aquele
dirige o olhar para a existência e
subsistência do estado de coisas na
conjuntura da verdade (Bestand und
Stehen
des
Sachverhaltes
im
Wahrverhalt). Trata-se de ser no
sentido da verdade interpretado
como existência da identidade de
presumido e intuído. Isso significa: o
estado de coisas como meramente
presumido é verdadeiro enquanto
demonstrado no estado de coisas
mesmo. A conjuntura de verdade
subsiste, portanto, ela é verdadeira106.
5. A EVIDÊNCIA DO SER
A fenomenologia amplia o
conceito de verdade, bem como o
conceito de ser. O Conceito de
verdade não concerne somente ao
intellectus, mas também à res. O
conceito de ser não concerne somente
à res, mas concerne também ao
intellectus, isto é, ao pensar, ao
conhecer. Enfim, uma interpretação
fenomenológica de ser e verdade faz
aparecer ser como verdade e verdade
como ser.
A intuição categorial abre uma
possibilidade para isso. Há um
perceber sensitivo, há também um
perceber intelectivo. Assim como há
uma intuição sensível, há também
uma intuição categorial. Assim como
há uma apreensão ôntica (do ente), há
também uma apreensão ontológica
(do ser e de suas determinações). Os
gregos
tinham
a
palavra
aísthesis), que quer dizer a
percepção sensitiva com sua intuição
e evidência, e tinham o verbo
(noein) que significava o
perceber intelectivo com sua intuição
e evidência. A (aísthesis) é a
simples percepção sensitiva de
106
Cf. Idem, p. 72-73.
138
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 138
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
alguma coisa. Ela é uma forma de
descobrimento. A visão, por exemplo,
descobre cores; a audição, descobre
sons; o paladar, sabores, etc. Na
percepção e para ela algo se torna
acessível. Cada forma perceptiva
sensorial (sentido) tem a sua
evidência. A evidência visual é
diversa da evidência auditiva, da
evidência tátil, etc. Do mesmo modo,
cada um dos sentidos tem sua
verdade. Esta verdade consiste no seu
ser-descobridor. Deste modo, quando
a visão descobre cores acontece uma
verdade perceptiva visual. Na
medida em que, pelo modo próprio
de descobrir que cada percepção
sensitiva realiza, tornar-se acessível o
ente que lhe corresponde nela e para
ela, pode-se falar de uma verdade da
percepção sensitiva. Por sua vez,
verdadeiro é (noein), o perceber
intelectivo, à medida que desvela,
numa simples apreensão, o ser do
ente em sua simplicidade, bem como
as suas determinações simples 107 .
O(noein) é um perceber
(vernehmen) que se realiza no modo
de um receber (annehmen) o dar-se do
ser mesmo em sua simplicidade e em
suas determinações simples, ele
realiza uma intuição, que tem a sua
própria evidência, aquela ontológica.
O (noein) é, pois, um
Cf. Heidegger, Martin. Ser e Tempo
(7ª Edição). Petrópolis / Bragança
Paulista: Vozes / EDUSF, 2012, p. 64.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
107
relacionamento de ser com o ser, a
saber, um relacionamento que
acontece no modo do ser-desvelantedo-ser. É, assim, o acontecer do
desvelar do ser, que está sempre
vigente no encontro com o ente, quer
no descobrir do ser do ente que não
somos e que nos vem ao encontro
dentro do mundo, quer no abrir-se do
ente que somos. Em todo o caso, este
desvelamento do ser se dá de modo
estruturalmente
prévio,
como
constitutivo, como condição de
possibilidade,
de
todo
o
descobrimento do ente que não
somos, bem como de toda abertura do
ente que somos.
A apreensão do ente enquanto
ente, ou seja, a apreensão do ser e de
suas
determinações
simples
e
originárias, está na base de todo e
qualquer apreensão. A compreensão
do ser é estruturalmente prévia a e a
base de toda compreensão108. Por ser
o mais simples e o mais comum, o ser,
em sua doação, não chama a atenção.
Vivemos sempre na apreensão e
compreensão do ser, embora só muito
raramente é que o tornamos tema de
nosso estudo, de nossa meditação. O
ser é o que há de mais claro. E, no
entanto, tematicamente, nós nos
relacionamos com sua evidência
como o morcego com a luz, segundo
uma famosa passagem de Aristóteles
que
diz:
108
Cf. Idem, p. 28.
139
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
(hósper gàr
tà tōn nykterídōn ómmata pròs tò
phéggos tò meth’ heméran, hoútō kaì tes
hemetéras psychés ho nous pròs tà te
physei phanerótata pántōn) – assim pois
como os olhos do morcego se
comportam em face da luz do dia,
assim também o intelecto que está em
nossa alma se comporta em face
daquelas coisas que por natureza são
as mais manifestas109. Fazendo eco a
Aristóteles, no século XIII, e falando
da luz do ser, Boaventura de
Bagnoregio disse: “Mira igitur est
caecitas intellectus, qui non considerat
illud quod prius videt et sine quo nihil
potest cognoscere” (Admirável, pois, é
a cegueira do intelecto, que não
considera aquilo que por primeiro vê
e sem o que não pode conhecer) 110 .
Assim, quando se trata da evidência
do ser, vemos, mas não vemos que
vemos. Admirável é esta cegueira,
pois não vê que vê o que há de mais
evidente. Conhecemos, aqui, o ser,
Cf. Aristóteles, Metafísica II)
993b 9-11.
110
Boaventura
de
Bagnoregio.
Itinerarium Mentis in Deum, V, n. 4. Cf.
Boaventura de Bagnoregio. Escritos
filosófico-teológicos. Porto Alegre:
EDIPUCRS / USF, 1999, p. 334.
109
mas como que às apalpadelas. O não
verdadeiro, aqui, não consiste
propriamente no falso, mas no
ignorar - (agnoeín = não
perceber). É quando o (noein)
não é “suficiente para um acesso
adequado, puro e simples”111.
O ser é o que nos é mais
próximo. O que se dá ao
(noein) é “a proximidade mais
própria, dentro da qual não há
nenhuma distância” 112 . Nós somos
sempre em face desta proximidade
mais próxima do ser (Dasein).
Estamos no ser. O mistério de ser nos
compreende e nos perpassa. O
desvelamento do ser está sempre
acontecendo em nós e para nós. E, no
entanto, tematicamente, o ser nos é o
mais distante. Em sendo, quer dizer,
em vivendo na abertura da
compreensão e intepretação, bem
como na abertura da linguagem e do
discurso,
apreendemos
e
compreendemos ser, vivemos, pois,
na sua proximidade mais próxima.
Mas, tematicamente, ignoramos o ser.
Heidegger, Martin. Ser e Tempo (7ª
Edição). Petrópolis / Bragança Paulista:
Vozes / EDUSF, 2012, p. 73. Cf.
Aristóteles, Metafísica (IX) 1051 b
25 e 1052 a 2.
112 Heidegger, Martin. Logik: die Frage
nach der Wahrheit (Gesammtausgabe
Band 21). Frankfurt am Main: Vittorio
Klostermann, 1995, p. 180.
140
111
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 140
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Vivemos, assim, no esquecimento do
ser. Vemos, mas não vemos que
vemos aquilo que de modo simples
(schlicht) se nos dá: o ser. Este ver
acontece como um “ver simples”
(schlichtes Sehen), como um simples
apreender (schlichtes Erfassen) da
perceptividade (Wahrgenommenheit)
do que se apresenta, e presente, se
doa no modo de uma datidade viva
(leibhaftig), no modo da presença em
carne e osso, em pessoa 113 .
Simplicidade (Schlichtheit) quer dizer,
aqui,
unigradualidade
(Einstufigkeit)114.
Há, pois, diversos tipos de
experiência de evidência e de
evidência
da
experiência.
A
experiência se dá, aqui, como uma
simples
apreensão:
“significa,
portanto, perceber, captar algo, de
imediato e corpo a corpo, de cabo a
rabo, de tal forma que esse algo,
aquilo que se capta, torne-se trans(per) – parente (aparecente). Trata-se,
pois, da percepção simples, imediata,
da coisa ela mesma: evidência” 115 .
Este ver simples é um acontecer, a
Cf. Heidegger, Martin. Prolegomena
zur
Geschichte
des
Zeitsbegriffs
(Gesammtausgabe Band 20). Frankfurt
am Main: Vittorio Klostermann, 1994
(3ª ed.), p. 64; 101.
114 Cf. Idem, p. 82.
115 Harada, Hermógenes. Fragmentos
de pensamento humano-franciscano.
Org.: Ênio Paulo Giachini. Curitiba: Ed.
Bom Jesus, 2016, p. 127.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
113
saber, o acontecer ôntico-ontológico
fundamental do humano enquanto
abertura do relacionamento de ser
com o ser do ente, com o todo. É “a
própria presença, a própria abertura,
a clareira que é o próprio
experienciar, o próprio vivenciar, o
manifesto,
a
‘aparescência’,
o
phainómenon: o Da-sein ou o ser-nomundo” 116 . Evidência, é, pois,
originariamente, o saltar para fora (ex)
da vidência, que é experiência e que
nos constitui como abertura de
mundo 117 . Esta evidência originária
nós não a temos. Nós a somos. Ela é
constitutiva de nosso ser-no-mundo.
Coincide com a abertura de mundo
que somos nós, com a transcendência
de nossa existência. Neste sentido,
Idem, p. 132.
A palavra “evidência” vem do latim
evidentia:
primordialmente,
a
visibilidade, a possibilidade de ver; por
conseguinte, a clareza. Por sua vez,
evidentia remete ao verbo evideri (ex =
dinâmica de exteriorização; videri =
medial ou passivo de video, portanto,
deixar-se e fazer-se ver, mostrar-se,
aparecer, parecer, ser visto). Sendo
medial, o verbo evideri expressa a
dinâmica de um movimento todo
próprio, a saber, o movimento da evidenciação, ou seja, o movimento que,
a partir de si e em si, na sua autonomia,
se dá como mostrar-se, deixar-se e
fazer-se ver, vir à luz, surgir, e, assim,
como tomar corpo, apresentar-se, ao
mesmo tempo, incandescer, brilhar.
141
116
117
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
não somos nós que a temos, é ela que
nos tem.
A evidentia seria, portanto, a
clareira, o olho da luz, que impregna,
em diferentes modos de presença, o
que se apresenta, em suma, a
condição
da
possibilidade
do
manifestar-se de todo o fenômeno.
Sendo a condição de possibilidade de
toda a visão, isto é, de todo o ver e de
todo o visto, a vidência da evidência
não pode ser vista como isto ou
aquilo, mas ela é a experiência medial
do ver, isto é, de um ver que cresce a
partir de si, em si, por si e para si
mesmo. É a abertura na qual irrompe
uma iluminação, que faz e deixa
surgir o mundo como mundo. A
vidência da evidência é, pois, um ser
no qual o mundo se torna mundo.
Esta é, pois, no fundo, a vidência do
ser-no-mundo,
a
vidência
da
intencionalidade, e, por conseguinte,
a vidência da consciência. Graças a
esta vidência, o homem é o que ele é:
a abertura da revelação do ser. O
acontecer da revelação do ser é a
evidência que nos constitui como esta
abertura, que é sempre temporalhistórica. A revelação do ser é,
originariamente,
o
acontecer
fundamental e único que diz: há ente.
Este acontecer pode ser chamado de
parusia (Ereignis).
A parusia (Ereignis) vige (west)
como a originária (Er-) manifestação e
auto-mostração (-äugnis) do mistério
de ser. O mistério se esconde não por
falta de clareza, mas por excesso. É o
“manifestíssimo por natureza”. O que
tudo
desvela, o
desvelamento
originário, acaba por permanecer
velado para nós. A visibilidade que
tudo torna visível, a perceptividade
que possibilita todo o perceber e todo
o percebido em suas correlações, fica
invisível, permanece imperceptível
para nós, de início e na maior parte
das vezes, à medida que dela nos
esquecemos, que a ignoramos.
Parusia (Ereignis) vige, pois, como a
mira originária (Ur-äugnis), que deixa
e faz aparecer, na coincidência de ser
e pensar, a aberta (Lichtung) da
presença (Da-sein), e que, assim, deixa
e faz o homem morar na verdade de
ser.
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BRENTANO, F. Sui molteplici significati
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Pensiero,
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142
Prof. Dr. Marcos Aurélio Fernandes
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 142
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TOMMASO. Ente ed essenza. Milano:
Rusconi, 1995.
Intuição categorial e evidência, verdade e ser
Submetido: 27 de julho 2017
Aceito: 05 de agosto 2017
143
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max
Scheler
Love and Knowledge in Max Scheler's Phenomenology
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB 118
RESUMO
A discussão parte da indicação de Scheler, presente no seu escrito Liebe und Erkentnnis: é
necessário superar a concepção intelectualista do amor, para compreender genuinamente a
interdependência entre amor e conhecimento. Nesta perspectiva, procura-se mostrar que o
amor não apenas antecipa o conhecimento como motor e via, mas também o consuma,
inserindo-o em esferas ontológicas primordiais, ao ascender a intelecção das essências a grau
mais evidente e a um modo mais originário. No primeiro momento, parte-se do conhecimento,
destacando o ato de ideação como o específico do espírito humano, para chegar ao modo
clarividente do amor conhecer por participação no ser. Em segundo momento, em linhas
gerais, evidencia-se o amor como ato fundamental da estrutura intencional e princípio
generativo da ordem de fins da existência humana. Por isto, é tomado como o ponto de partida
dos atos intelectivos.
PALAVRAS CHAVE
Ideação; Clarividência; Ser; Valores.
ABSTRACT
This study presents a discussion based on Scheller’s suggestion, taken from his essay Liebe
und Erkentnnis: It is necessary to overcome the intellectualist conception of love, in order to
genuinely understand the interdependency between love and knowledge. Based on this
perspective, the study aims to demonstrate that love not only anticipates knowledge as
driving force and pathway, but also consummates it, inserting it in primordial ontological
spheres, by ascending the intellection of essences to a more explicit degree and to a more
118
Email: dr.ramos@ufrb.edu.br.
144
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 144
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
primary mode. On a first moment, it arises from knowledge, emphasizing the act of ideation as
specific to the human spirit, and finally reaches a mode of clairvoyance of love by
participation in being. On a second moment, in general terms, love is evidenced as a
fundamental action of the intentional structure and a generative principle of purpose for the
human existence. For these reasons, it is taken as a starting point of acts on the intellectual
level.
KEYWORDS
Ideation; Clairvoyance; Being; Values.
“Conhecemos a verdade não apenas pela
razão mas também pelo coração”
Pascal, Pensamentos, fragmento 110 (282)
INTRODUÇÃO
A presente reflexão coloca em
discussão a mútua pertinência entre
amor e conhecimento, avistando-a
desde o horizonte da fenomenologia
material de Max Scheler (1874-1928).
O tema que assim se mira, porém, não
é em nada inédito, no sentido que a
discussão, em seu propósito, não
contribui
em
colocar
a
interdependência entre amor e
conhecimento
como
algo
sem
precedentes no debate filosófico.
Antes, por mais que pareça estranho à
ingênua e amplamente difundida
consciência, para a qual o rigor no
tratamento objetos de conhecimento
se mede pela frieza e imparcialidade,
esta interrelação é uma antiga questão
da tradição metafísica, nela inclusa a
época em que o problema do
conhecimento é, fundamentalmente,
uma questão de método. Não
obstante esta longeva história, é uma
questão cujo significado para o núcleo
da experiência do pensar se encontra
esquecido, apesar do predomínio do
vivencialismo dos tempos presentes e,
com isto, de todo entusiasmo com as
possibilidades de valorização dos
aspectos afetivos e emotivos da
experiência
subjetiva.
Ademais,
contra esta pretensão de ineditismo,
situando a questão no âmbito do
horizonte em que ela é discutida nas
linhas abaixo, é preciso lembrar que,
em 1915, pela primeira vez, Scheler
ublica o ensaio intitulado Liebe und
145
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Erkenntnis 119 , no qual esta relação
aparece em modo explícito desde o
título do escrito, sem contar que,
antes desta publicação, a questão já se
encontrava
em
elaboração
no
pensamento do autor. Com efeito,
alguns anos antes do ensaio, aparece
a
primeira
edição
de
sua
fenomenologia do amor e do ódio,
apresentada na obra tardiamente
intitulada Wesen und Formen der
Sympathie (1923) 120 , pela qual se
demonstra o fenômeno do amor como
sendo, em seus traços fundamentais,
um modo particular e afetivo de
conhecimento.
Cfr. M. SCHELER, Liebe und
Erkenntnis, in Schriften zur Soziologie
und Weltanchauunslehre, Gesammelte
Werke (de agora em diante, GW) 6,
Bonn: Bouvier, 2008, p. 77-98.; tr. esp.
Amor y conocimento, in Amor y
conocimento, Madrid: Palavra, 2010, p.
11-48. O escrito é reeditado em 1916 e,
por fim, em 1923 é recolhido como um
capítulo da obra entitulado Moralia, tal
como aparece no volume supracitado
das obras completas de Scheler.
120 A data considera a publicação da
obra pela primeira vez sob este título,
quando aparece na versão ampliada
pelo autor e composição definitiva.
Contudo, se considerada a primeira
edição, sob o título Zur Phänomenologie
und Theorie der Sympathiegefülhe von
Liebe und Haß, a obra remonta à data
de 1913.
119
Neste importante ensaio de
1915, não só se apreende as intuições
essenciais e orientação fundamental
da fenomenologia de Scheler, visto a
centralidade dos atos afetivos na ética
e fenomenologia do conhecimento
para o autor, como também são
descritos os principais tipos históricos
que revelam os traços dos modos
como o amor foi epocalmente
concebido ao longo da história do
pensamento ocidental. Por meio desta
“tipologia”, de modo incisivo, nas
linhas e entrelinhas, o escrito deixa
vir à tona o sério esforço em superar a
compreensão intelectualista do amor,
sem a qual o fenômeno da
interdependência
amor
e
conhecimento
não
pode
ser
originariamente visado. Do lado do
amor, o intelectualismo o limita a um
impulso e motor do conhecimento
que, não obstante sua força motriz,
deve ser abandonado, quando o
conhecimento alcança os estágios
mais plenos da intelecção. Na forma
do
racionalismo
moderno,
o
intelectualismo
não
é
menos
prejudicial à compreensão do sentido
do amor e de sua participação no
conhecer, pois, o aprisiona no reino
dos sentimentos e afecções sensíveis
ao transformá-lo em comoção com a
alegria e o sofrer de outrem,
corrompendo a sua essência. Com
isto, o amor não conhece, apenas
146
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 146
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
sente - por certo, esta extrema
defasagem na compreensão do
sentido do amor é uma das razões do
nítido posicionamento de Scheler em
favor da compreensão medieval, em
especial a agostiniana, para a qual o
amor permanece como ato espiritual e
dignificado com sendo o modo de ser
do divino e de seu conhecimento.
Contudo,
estes
prejuízos
intelectualistas não representam um
perigo de perda da própria essência e
efetivo empobrecimento do amor,
mas também do conhecer. De fato, no
horizonte do conhecer, vê-se que a
razão moderna sempre mais se
encaminha para a realização do ideal
da
funcionalidade,
da
instrumentalidade técnico-científica
do saber e, presa aos moldes da
exatidão e da objetividade, torna-se
refém do cálculo representacional. Na
época moderna, pois, a ausência de
uma autêntica cultura do coração, de
uma vida emocional que ultrapassa
os limites da sensibilidade e da
interioridade do sujeito, é testemunho
de cegueira e surdez da razão em
termos de finura para a apreensão do
sentido de seus objetos121.
Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, in
Schriften aus dem Nachlaβ, Zur Ethik
und Erkenntnislehre, GW 10, Band 1,
Bonn: Bouvier, 2000, p. 364; tr. por.
Ordo amoris, p. 24-25. Diponível em:
<http.www.lusosofia.net>. Acesso em:
26 jul. 2016.
121
Diante desta perigosa disjunção,
portanto,
a
relação
amor
e
conhecimento não é apenas o título de
um ensaio de determinado autor e,
muito menos, uma teoria a mais na
história das ideias, cujo propósito
seria contornar a aridez da razão
moderna, suprindo-lhe as deficiências
com o acréscimo da ordem e leis do
coração. Antes, é a questão da
destinação da humanidade, na
medida em que nela está em jogo a
totalidade e unidade originárias do
espírito humano, pela qual o homem
se eleva com o seu ser-próprio,
relaciona-se com as coisas e com o
mundo, com o divino, podendo
chegar ao ápice de realização das
potencialidades que só ao ser humano
pertencem. Deste modo, é a questão
da profundidade do espírito humano,
atualmente
esquecida
pela
desconsideração de que “vivemos
primeiramente com toda a riqueza do
nosso espírito nas coisas, no mundo”122,
bem como do fato que esta
transcendência do espírito possui
uma acuidade e rigor de atos que não
se limitam ao âmbito dos atos lógicos
e não se restringem ao domínio do
conhecimento e das ciências. Com
efeito, seguindo a intuição pascalina,
pode-se dizer que também onde reina
não a lógica do entendimento, mas a
M. SCHELER Ordo Amoris, p. 366; tr.
por., p. 27. Grifos do Scheler.
122
147
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
do coração 123 , há uma legalidade
independente, tão rigorosa e tão
precisa para os conhecimentos dos
princípios arcaicos e primeiros124, que
seria
uma
grande
cegueira
desconsiderar a imensa riqueza das
conexões objetivas que pertencem em
primeira ordem aos atos intelectuais
do espírito. Amor (e ódio) e
conhecimento, portanto, evocam a
profundidade desta ordem e a
seriedade da necessidade de pensar
originariamente a totalidade unitária
da vida humana, assim como a
densidade do mundo humano e do
sentido das coisas para as quais o
homem tende, na inteireza de seu ser,
mediante o pensamento, intuições,
volições e sentimentos.
Liebe und Erkenntnis, porém, é o
esboço da elaboração muito mais
ampla da questão da relação entre
amor e conhecimento, um projeto que
não veio a ser consumado por
Cfr. B. PASCAL, Pensamentos,
fragmento 423 (Edição de Brunschvicg:
277), São Paulo: Martins Fontes, 2005,
p. 164: “O coração tem razões que a
razão desconhece; sabe-se disso em mil
coisas”. Sobre a interpretação de
Scheler a respeito desta sentença, cfr.
M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 362-63; tr.
por., p. 22-23.
123
Cfr. B. PASCAL, Pensamentos,
fragmento 110 (Edição de Brunschvicg:
282), p. 164.
124
Scheler. Nenhuma outra obra também
não o realizou de modo integral,
permanecendo ali e acolá as intuições
centrais
e
anotações
para
a
explicitação “puramente objetiva e
sistemática da relação da relação
entre amor e o conhecimento”125. Por
isto, a recolocação desta questão,
recolhendo-a desde as principais
intuições do pensamento do autor,
continua sendo necessária. Fazemo-la
ao modo de uma aproximação, em
dois momentos 126 . Primeiramente,
partindo do conhecimento para o
amor. Em segundo momento, invertese a direção do caminho. O último
parece ser mais fundamental, também
para, no ponto final, chegar ao amor
mesmo. No entanto, parte-se do
primeiro,
visto
ser
a
(re)fundamentação do conhecimento
em bases novas e rigorosas uma das
principais tendências que está, desde
o início, a pôr a caminho a reflexão
M. SCHELER, Vom Ewigen im
Menschen, GW 5, Bonn: Bouvier, 2007,
p. 9; trd. por., Do eterno no homem,
Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista:
2015, p. 10.
126 Para o presente dossiê, apresenta-se
apenas o primeiro, reservando a
segunda parte para uma publicação
posterior. O segundo movimento
comparece apenas na forma de esboço
a ser desenvolvido mediante futura
pesquisa.
148
125
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 148
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
fenomenológica em geral. Também,
de modo bem peculiar, no caminho
da reflexão de Scheler.
1. PRIMEIRO MOVIMENTO: DO
CONHECIMENTO AO AMOR
Em um ensaio escrito por Max
Scheler em 1922, ao olhar crítica e
retrospectivamente
para
o
desenvolvimento
do
movimento
fenomenológico nos inícios do século
XX, quanto para a situação da
filosofia alemã naquele tempo
presente, o próprio autor se posiciona
como responsável por ter impelido a
fenomenologia a uma possibilidade
que
teria,
por
consequência,
contribuído
para
o
genuíno
desenvolvimento da impostação e
método de investigação começada
por Husserl. Para tanto, Scheler toma
a sua fenomenologia, juntamente com
a de Heidegger, como formas
prototípicas
do
pensamento
fenomenológico127. Pois, estas teriam
sido as únicas que se apresentaram
como capazes de levar a termo, em
nova cunhagem em relação ao
fundador da fenomenologia, a
exigência de método e investigação
que se configurasse como pesquisa
fundamental e tratamento essencial das
M. SCHELER, Die Deutsche Philosophie
der Gegenwart, GW 7, Bonn: Bouvier,
2005, p. 326.
127
questões filosóficas e nem tanto como
progresso na obtenção de resultados
ou na elaboração de doutrinas e
teoremas.
Paradoxalmente,
este
julgamento
se
deve
ao
reconhecimento, de um lado, da
importância e contribuição de tantas
obras que frutificaram ao longo do
movimento fenomenológico, outras
que foram produzidas por escolas por
ele influenciadas, em inúmeras
direções temáticas de diferentes
disciplinas filosóficas, como também
da pesquisa científica, porém, de
outro lado, de que somente nas dos
três pensadores supracitados poderse-ia
reconhecer
as
linhas
fundamentais apara a construção
sistemática da filosofia em bases
rigorosas, novas e universais. Nas
direções diversas e tendências
internas das obras destes três
pensadores, então, a fenomenologia
teria concretizado, de fato, até aquele
presente momento, a sua vocação de
ser uma filosofia da coisa mesma,
“ciência” originária dos fenômenos a
partir deles mesmos.
Abstraindo
os
fatores
secundários,
na
base
desta
(auto)avaliação está o fato de Scheler
reter a compreensão de que a
fenomenologia, numa estreita linha
de continuidade com as pesquisas
husserlianas, é conhecimento das
essências,
que
se
opera
“independentemente da grandeza e
da quantidade de observações que
149
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
fazemos e das conclusões a que
chegamos indutivamente através da
inteligência”128. Para Scheler, no cerne
da
impostação
fenomenológica,
portanto, encontra-se um ato a priori,
precedente a todo procedimento
dedutivo e empírico das ciências, mas
também à apreensão dos inumeráveis
e casuais dados advindos pelos
sentidos da sensibilidade humana.
Tal ato, nomeado ideação (Ideiren), é
definido por Scheler, em Die Stellung
des Menschen im Kosmos (1928), como
sendo o “co-apreender cada vez as
qualidades essenciais e as formas de
construção do mundo junto a um
exemplo oriundo da região essencial
em questão”129. E digno de nota é o
que se acrescenta, afirmando que este
ato valida um saber, apesar de ser
conquistado a partir de um exemplo,
para “a infinita universalidade de
todas as coisas possíveis que são desta
essência”.
Enfim,
é
um
ato
responsável por operar uma cisão
entre o essencial e o fortuito, o
constante das formas do mundo e o
variável que se apresenta nas
M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, in Späte Schriften,
GW 9, Bonn: Bouvier, 2008, p. 41; tr.
por. A posição do homem no cosmos,
Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003, p. 48. Inclui as duas próximas
citação.
129 Tradução levemente modificada.
128
experiências possíveis das coisas,
distinguindo uma diferença essencial
entre estas duas dimensões, não
obstante a constituição de ambas são
apreendidas
neste
ato
de
conhecimento.
Considerando mais atentamente
os aspectos da definição acima, notase que o acento recai sobre a
necessidade
de
apreensão
de
totalidade(s), seja ao modo de
essências, seja de região, seja ainda de
universalidade infinita. Em qualquer
uma destas formas, é a apreensão de
totalidades que bem define a radical
independência do conhecer em
relação aos aspectos parciais e
múltiplos que se dão nas observações.
Assim, em relação ao significado e a
posição central para a construção de
uma eidologia do conhecimento e
condições de possibilidade do saber
em geral, este ato diz que nenhum
objeto (Gegenstand) do conhecimento
não se constitui, originariamente, pela
representação e, consequentemente,
não se chegam à juízos verdadeiros e
evidências apodíticas idealisticamente
por
deduções
nem
pela
universalização
de
observações
empíricas. Antes, idear significa que
objeto do conhecimento se conforma
pelo e ao longo do ato de apreender,
junto a cada fato ou dado em
particular, uma evidência na forma de
uma totalidade essencial, fontal e
150
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 150
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
prévia à posição de toda e qualquer
realidade. Em uma obra bem mais
recente à citada acima, em Wesen und
Formen der Sympathie (1923) 130 , ao
colocar as bases da apreensão da
evidência e conhecimento do eu de
outrem,
Scheler
descreve
esta
totalidade em forma de esferas do ser:
Nós
dizemos
(em
nossa
terminologia) não outra coisa que o
mundo do tu ou o mundo da
comunidade é uma esfera essencial
de ser existente tão independente
como a esfera do mundo exterior, a
esfera do mundo interior, a esfera
do divino. Para cada genuína
“esfera” do ser é válido, pois, que
esta é dada previamente como uma
totalidade
essencial
enquanto
“fundo” («Hintergrund») da posição
de realidade de todo objeto
possível nela; que, de modo algum,
não se constitui por uma soma de
todos os facta contingentes que nela
figuram. Esta doutrina do prévio
dar-se de determinadas esferas do
ser, a qual se encontra em rigorosa
correlação com classe de atos
determinados em cada caso,
particularmente, para todo possível
humano “saber de algo”, constitui
uma pressuposição universal da
eidologia do conhecimento para a
teoria do conhecimento em geral
[...].131
Cfr. nota 3.
131 M. SCHELER, Wesen und Formen der
Sympathie, GW 7, Bonn: Bouvier, 2009,
130
Cada coisa que o homem venha
saber, então, se dá sempre aparado
por um fundo que lhe dá suporte e
significado, permitindo que os juízos
de realidade do objeto conhecido não
sejam palavras vazias 132 . Este
significado surge mediante a vivência
da realidade, que abre o caminho
para recondução dos dados da
experiência ao todo e essencial. No
caso da esfera do mundo externo,
aquelas qualidades essenciais dos
objetos,
apreendidas
já
pela
percepção natural, não são as
propriedades factuais ou aspectos
contingentes com que as coisas
aparecem,
por
exemplo,
na
pluralidade de cores, formas e
figuras. Ao contrário, elas são a
determinação mesma das coisas como
objetos da experiência cotidiana como
uma presença efetiva, temporal e
espacialmente localizadas no mundo.
Trata-se, pois, de uma experiência
ontológica, em que a coisa é dada
como existente em si mesma, ou
melhor, como algo subsistente.
Porém, em primeiro lugar, esta
determinação
não
é
teoréticocategorial, mas sim uma vivência
originária no âmbito da vida anímica
p. 230-1; tr. esp., Esencia y formas de la
simpatía, Buenos Aires: Losada, 1950,
p. 316-17.
Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 44; tr.por., p. 52.
151
132
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
da realidade efetiva, experimentada
como uma resistência essencial
inerente a todas as coisas e próprias
ao posicionamento delas no mundo.
Portanto, a existência das coisas não
se deve a uma mera constatação
empírica, mas sim a certo tipo de
confronto e reação, oriundos do
direcionamento a partir do núcleo da
estrutura unitária da abertura do
homem em direção ao mundo.Este
movimento tendencial define o
homem como ente espiritual, já que
esta ekstase do modo de ser humano
não se dá por forças instintivas como
no comportamento animal, mas em
virtude do puro modo de ser
humano, independente, pois, dos
impulsos
pulsionais
e
da
exterioridade
do
objeto;
nele,
encaminha-se o homem para a
Sachlichkeit do objeto, a coisalidade da
coisa, a partir de si mesmo e das
próprias “motivações” 133. E, todavia,
trata-se de um direcionamento e
comportamento livre que já está em
ação na dimensão anímica da vida
humana, guiando as forças, impulsos
e ímpetos pulsionais, isto é, também
está ali a operar, neste âmbito
fisiológico e psíquico, justamente
aquilo que caracteriza a manifestação
do espírito: o acontecimento da
gênese do homem enquanto a
elevação de si mesmo até a abertura
de seu mundo. Daí que o
direcionamento pulsional, que na
verdade possui raízes no centro
espiritual-pessoal do homem, deve
chegar à mais simples sensação, para
que haja aquela originária vivência da
realidade das coisas, sem que ainda
nisto
se
formem
imagens
representativas dos objetos e do
mundo. Sem isto, repete-se, o homem
não viveria num mundo povoado de
objetos, mas seria apenas uma espécie
a mais daquelas incluídas em
determinado meio-ambiente, junto
com plantas e animais, vivenciando
de modo muito mais primário a
“resistência” das coisas; vivência
ainda insuficiente para a formação de
objetos e, assim, para posicioná-los
espaço-temporalmente dentro numa
ordenação prévia (o cosmos).
Por conseguinte, anterior a
qualquer
representação
e
134
consciência
, a ideação não se
alcança pela via de uma virada
copernicana à estrutura e princípios
lógicos da consciência transcendental,
pois, de tal modo a redução das coisas
à consciência absoluta representaria
um sério impedimento para a
estruturação e elevação de uma
Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 33; tr.por., p. 38.
Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 43; tr.por., p. 51.
133
134
152
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 152
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
metafísica de cunho fenomenológico
do conhecimento assentada sobre
uma base teorético-essencial 135 .
Consequentemente, impedir-se-ia a
fundação de teorias sobre a realidade
na intuição de essências e garantir um
conhecimento radicalmente a priori136,
fornecendo para as ciências positivas
axiomas que possam orientar a reta
direção para os procedimentos de
observação, indução e dedução
frutíferos137. Para evitar tal desvio, a
concepção de a priori que se requer
não deve ser somente formal no
sentido de possuir a função de
constituir leis do entendimento,
invariáveis e prévias aos dados
cambiantes, materiais da experiência
empírica (como em Kant), mas sim
deve ser da modalidade que valha
para a essência de todos os âmbitos
de objetos, inclusive para essência do
ser real das coisas contingentes, bem
como para a necessária conexão entre
intuição da essência e dos dados
cambiantes que a acompanham. Na
terminologia de Scheler, necessita-se
uma determinação das essências que
funde uma fenomenologia material –
matéria, certamente, não sentido
usual e empírico, mas enquanto
Cfr.
M. SCHELER, Die Deutsche
Philosophie der Gegenwart, p. 311.
136 Cfr.
M. SCHELER, Die Deutsche
Philosophie der Gegenwart, p. 309.
137 Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 41; tr.por., p. 49.
135
aquele concreto que surge, como bem
observa Rombach, das experiências
no cotidiano, do agir, do falar e
comunicar, da ciência e da técnica e
assim por diante 138 . Assim,
fenomenologia
é
conhecimento
material, na medida em que procura
trazer os objetos (enquanto algo que
está dado como exemplo no interior
de qualquer esfera de ser, isto é, como
Gegenstand) para a densidade e
proximidade da intuição de essências,
quanto
mais
amplamente
seja
possível, tanto quanto de modo puro
e sem prejuízos139. Ela deve se voltar
para os objetos de todas as espécies e,
em direção radicalmente diversa à
compressão formal-funcional da ideia
de a priori, conformar-se como
determinação da obejtualidade destes
objetos140, assim como transformá-la,
conquanto se reconfiguram “as
formas de pensamento e intuição, de
amor e de valoração, através da
funcionalização de novas intelecções
essenciais”141.
Cfr. H. ROMBACH, Phänomenologie des
gegenwärtigen
Bewußtsein,
Freiburg/München: Karl Alber, 1980, p.
126.
139
Cfr. M. SCHELER, Die Deutsche
Philosophie der Gegenwart, p. 309.
138
Cfr. M. SCHELER, Die Deutsche
Philosophie der Gegenwart, p. 309.
140
Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 42; tr.por., p. 49.
153
141
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Assim, necessariamente referida
às vivências, a recondução às
essências se dá mediante a experiência
das formas fundamentais dos entes
enquanto estrutura prévia dos dados
concretos da percepção, pois “o logos
da essencialidade se descortina a
partir do mundo concreto e patente
das coisas” 142 . Para que o ato de
ideação alcance a essencialidade das
coisas e ordenação do mundo, é
necessária, portanto, a percepção
interna e externa – no sentido mais
lato,
porém,
fundamental,
de
apreensão
de
uma
totalidade
verdadeira
(Wahr-nenhmung).
Todavia, esta necessidade se revela na
sua força impositiva, na medida em
que se retém o seguinte: nenhum ato
perceptivo, nem mesmo a sensação, é
por princípio cego. Até mesmo a mera
observação de fatos empíricos já
pressupõe a visão da essência daquilo
que se quer observar143, de tal modo
que
um
princípio
puramente
empírico do conhecimento não pode
ser, a fortiori, admitido. Assim, antes
de ser uma forma de uma filosofia
idealista, a ideação é, pelo contrário, a
forma
de
uma
fenomenologia
experiencial144, na medida em que a
intuição das essências é conjunta com
a experiência que possui por correlato
as formas fundamentais ou dos
modos de ser dos entes que, numa
estruturação em diferentes níveis e
camadas, perfazem a complexa
ordem ontológica do cosmos.
Deste modo, a ruptura com a
existência
casual
das
coisas
provocada pelo ato de ideação,
anunciando a cisão entre existência e
essência, não se dá por uma corte com
o mundo e refúgio no interior da pura
consciência
transcendental,
assumindo o conhecimento das
essências numa perspectiva teoréticoformal, ao modo kantiano, isto é,
determinando-o como dependente de
uma estrutura racional invariável
enquanto condição a priori de uma
experiência possível. Ao contrário, a
ideação já pressupõe a ideia de
homem como um centro de atos
espirituais, dirigindo-se para o fim de
uma tendência pré-representativa
enquanto conteúdo material de uma
experiência
vivida.
Pressupõe,
portanto, a constante determinação
da coisalidade (Dinghaftigkeit) ou
unidade das coisas como um bem145,
M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 42; tr.por., p. 50.
143 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 218; tr. esp., p. 301.
144
142
Cfr. H. ROMBACH, Phänomenologie des
gegenwärtigen Bewußtsein, p. 124.
Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in
der Ethik und die materiale Wertethik,
154
145
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 154
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
isto é, de uma dignidade pertencente
às coisas mesmas, para qual se
dirigem os atos espirituais. E, junto a
isto, é pressuposta também a
emergência do mundo ordenada em
esferas como correlato inseparável e
indissociável do “ato” de tornar-se ele
mesmo. Parafraseando o que afirmou
Merleau-Ponty a respeito da redução
fenomenológica146, a ideação ensina o
paradoxo que, para ver o mundo com
maior claridade e apreendê-lo na
realidade originária, é preciso romper
com a tendência sensual e familiar do
homem de vê-lo somente como
correlato de sua sensibilidade, crendo
falsamente que a resistência que o
mundo oferece consiste naquilo que
aqui e agora se dá de maneira efetiva
e casual. Assim, o ato de ideação é a
suspensão do mundo supostamente
real, supressão de sua realidade
pretensamente imediata, mas que não
GW 2, Bonn: Bouvier, 2000, p. 43; tr. it.
Il formalismo nell’etica e l’etica
materiale dei valori, Milano: San Paolo,
1996, p. 41-42.
Cfr.
M.
MERLEAU-PONTY,
Fenomenologia da percepção, São
Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 10:
“...justamente para ver o mundo e
aprendê-lo como paradoxo, é preciso
romper nossa familiaridade com ele, e
porque essa ruptura só pode ensinarnos o brotamento imotivado do mundo.
O maior ensinamento da redução é a
possibilidade
de
uma
redução
completa”.
146
é senão a soma das aparências e
propriedades observáveis. Suspendêlo, porém, não com a finalidade de
abandoná-lo, mas sim de percebê-lo
desde o dinamismo que o constitui
em sua verdade prévia, que o
descortina desde sua origem e
possibilidade. É que a vivência
originária da realidade do mundo não
vem de depois e por força da
representação, mas antes e por força
do espírito do homem. Por isto,
primeiramente, é preciso dar-se conta
de algo esquecido pelas ciências, a
saber, da condição própria ao homem
de ser o único ente capaz de
comportar-se livre das próprias
pulsões
e,
assim,
dirigir-se
abertamente em direção ao mundo,
abrindo-o constantemente e deixando
aparecer nele os objetos de sua
experiência vivida mediante a
recondução deles às esferas do ser – o
que mostra, assim, tanto uma
aproximação de Scheler à posição de
Heidegger com sua fenomenologia
como ontologia fundamental, que
estabelece o existencial ser-no-mundo
(in-der-Welt-sein) como base unitária
das determinações a priori do modo
de ser humano147, como também um
Cfr. M. HEIDEGGER, Sein und Zeit,
Tübingen: Max Niemeyer, 2006, p.53;
tr. por. Ser e tempo, Petrópolis: Vozes,
2000, p. 90-91.
147
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
155
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
nítido afastamento da de Husserl 148 .
No entanto, o paradoxo é explicado,
em seu cerne, no sentido de uma
desrealização do mundo e, assim,
como sendo um ato negativo contra a
realidade do mundo e inibitório das
Sobre
o
significado
deste
movimento
de
afastamento
e
aproximação,
cfr.
H.
ROMBACH,
Phänomenologie des gegenwärtigen
Bewußtsein, p. 124. Em síntese, o autor
admite uma posição intermediária
entre as duas possibilidades distintas
da fenomenologia, representadas pelo
pensamento de Husserl e Heidegger,
isto
é,
entre
fenomenologia
transcendental
e
fenomenologia
ontológica. Com a fenomenologia de
Scheler, um passo avante foi dado,
porém, este passo não transforma
ainda a ideia da subjetividade
transcendental. Antes, a ideia de uma
“experiência ontológica” seria apenas o
preenchimento da possibilidade aberta
com
Husserl
da
subjetividade
transcendental. A transformação desta
subjetividade
necessitaria
da
concepção da autogênese do ser,
mediante o conceito heideggeriano de
modo de ser, não sendo suficiente a
noção de “esferas do ser”. Não
obstante, dada a emergência do
conceito de mundo enquanto esferas
interdependentes do ser, Scheler
estaria mais perto de Heidegger que de
Husserl.
148
pulsões vitais149: para ver o mundo na
sua própria evidência, na imediação
da experiência concreta que dele se
faz a todo instante, é necessário dizer
um vigoroso não ao ímpeto vital, que
só quer ver o mundo a partir de
certos aspectos das coisas. Por certo,
não se deve tomar esta negatividade
como aniquilação, nem a inibição
como mera repressão. Esta última
apenas evita a animalização do
espírito. E não se trata meramente de
uma
negatividade
meramente
negativa, mas que possui um
significado altamente positivo, pois, é
justamente mediante a desrealização
do mundo que aparece o mais
característico do espírito humano,
com o que se pode adentrar nas
profundezas escuras da essência do
homem 150 . Com efeito, para chegar
à(s) essências(s), quanto mais densa,
mais profunda, mais ampla tanto
possível, também, pois, a realidade
que genuinamente se experimenta
mediante a percepção sensível
também ser suspensa.
Neste sentido, o essencial da
ideação pode ser compreendido como
um ato ascético: “Se a existência é
‘resistência’, este ato ascético de
Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 44-5; tr.por., p.
52-3.
150 Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 42; tr.por., p. 50.
156
149
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 156
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
realização só pode subsistir em meio
à suspenção, em meio a um
desligamento justamente daquele ato
ímpeto vital, em relação ao qual o
mundo aparece antes de tudo como
resistência”151. Então, na passagem da
“resistência”
sensual
para
a
verdadeira resistência da experiência,
no seio desta suspensão já se encontra
um ato de elevação que alça sobre os
dados
meramente
corpóreos.
Todavia, esta elevação ao mais alto
não aniquila a sensibilidade, mas a
reposiciona na sua potencialidade
mais própria, dirige-a para a visão do
essencial. Somente um ascetismo
ressentido, por ser fundamentalmente
cego para as forças e unidades mais
nobre da vida, pode ser um ódio ao
próprio corpo 152 . O ascetismo mais
autêntico, ao contrário, é meio para
uma vida mais vigorosa, disposta a
uma expressão mais pura das funções
vitais. Em síntese, o ascetismo pode
ser amor do homem a si próprio, no
sentido de querer elevar-se sempre
mais alto, rumo à própria essência.
Na base desta compreensão positiva,
o homem é asceta da vida, aquele que
“protesta eternamente contra toda
realidade”153; e isto por graças o ato
de ideação.
Em virtude deste caráter
ascético, este ato, por sua vez, deve se
elevar para acima da resistência e se
conformar um ato que se tende e
aspira a um fim que não é real, mas
não nem por isto irreal, mas fonte de
toda realidade. Ascética, então, é a
inteleção rigorosamente evidente,
válida a a priori para todos os entes,
todas as determinações casuais, que
compreende todos os exemplos
possíveis de entes, portanto, dirigida
para a esfera do absoluto. E seu fim
não é senão o ser ou a essência em sua
expressão mais ab-soluta154, isto é, o
ser em seu fundamento abissal. A
tendência a este fim é inerente ao
próprio ato, na medida em que a
ascese constitui a essência do espírito
humano. Em todo caso, o ideal
ascético contido no ato de ideação não
Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 44; tr.por., p. 53.
153
M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 44; tr.por., p. 52.
151
Cfr. M. SCHELER, Das Ressentiment im
Aufbau der Moralen, in Vom Umsturz
der Werte, GW 3, Bonn: Bouvier, 2007,
p. 87-9; tr. por., O ressentimento na
construção das morais, in Da reviravolta
dos valores, Petrópolis: Vozes, Bragança
Paulista: Universitária São Francisco,
2012, p. 109-111.
152
Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der
Philosophie und der moralischen
Bedingung
des
philosophischen
Erkennens, in Vom Ewigen im Menschen,
GW 5, Bonn: Bouvier, 2007, p. 98; trd.
por., Sobre a essência da filosofia e a
condição moral do conhecimento
filosófico, in Do eterno no homem,
Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista:
2015, p. 131.
157
154
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
deve fazer olvidar que a essência
humana se encontra na trama entre
realidade e ideia, ímpeto vital e
espírito, absoluto e contingente, na
qual os elementos se perfazem em
estreita unidade e tenso equilíbrio.
Ao alcançar este grau mais alto
da intuição das essências, certamente
o conhecimento já é mais o das
ciências positivas, mas sim o
conhecimento das essências que
caracteriza a filosofia. Como afirma
Heidegger, filosofia é metafísica,
desde que a compreensão desta
última palavra se movimente no
essencial, no cerne do conceito 155 ,
despindo-a de sua significação técnica
ou escolar. A ideação, então, não
possui somente o papel devolver às
ciências positivas bases novas e
rigorosas mediante da determinação
de pressupostos mais elevados e
superiores. Também, a ideação
cumpre sua função em relação à
metafísica: reenviá-la constantemente
para o absoluto, pois nenhuma
realidade, mesmo reduzida a causas
empíricas de tipo infinito, pode
Cfr. M. HEIDEGGER, Die Grundbegriffe
der Metaphysik: Welt, Endlichkeit,
Eisamkeit, Frankfut a. M.: Vittorio
Klostermann, 2004, p. 36-37; Os
conceitos fundamentais da metafísica:
mundo, finitude, solidão, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, p. 3031.
155
significar adequadamente a existência
de uma essência absoluta, definida
historicamente como ens a se156. Neste
caso, filosofia, enquanto metafísica, é
anseio por alcançar uma existência
supra-singular a se, melhor, a essência
de um espírito que se doa de maneira
espantosa e evidente como o “abismo
do nada absoluto”157. Então, filosofia
é o conhecimento de uma essência
absoluta não em relação aos entes,
mas na evidência de seu modo
próprio de ser ab-soluto, plenamente
em si e para si. Em todo caso, no
momento, é preciso destacar o fato de
metafísico ser este anseio de elevação ou
tendência para este fim. Como tal, a
metafísica
é
movimento,
que
pressupõe a unidade e a luta tensa
entre os sentidos do corpo e a
intelecção das essências no espírito,
que acabam por conduzir o conhecer
para a visão de sua meta, em
permanente ascese e ascensão ao de
mais alto valor. Apesar de toda a
Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 41; tr.por., p. 49;
Vom Wesen der Philosophie und der
moralischen
Bedingung
des
philosophischen Erkennens, p. 94; trd.
por., p. 125-26.
157 Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der
Philosophie und der moralischen
Bedingung
des
philosophischen
Erkennens, p. 152; trd. por., p. 127.
156
158
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 158
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
brevidade do exposto acima, este
traço eessencial permite afirmar que,
em base do ato de ideação, tal ascese
supõe uma metafísica do amor, como
motor e meta deste ato espiritual
rumo à(s) essência(s) até chegar
àquela da não realidade, porém, de
existência absoluta. Deste modo, o
amor não está incrustado na essência
na filosofia, no phileĩn tò sophón,
somente como via e método para o
conhecimento, mas também seu fim
último e absoluto. O que, de fato,
permite tal afirmação? Consideramos
brevemente três indícios que levam a
concluir a respeito desta pertinência
entre amor e conhecimento.
a) Primeiramente, o amor é
clarividente; é tão vidente como o ato
fundamental do conhecimento, a
intuição das essências, que mantém
os olhos abertos do conhecer às
esferas límpidas e claras do ser junto
a cada ente em particular. Para
explicitar esta clarividência, porém, é
preciso ter em conta os preconceitos
da compreensão cotidiana e da
moderna consciência, que impedem a
apreensão
do
fenômeno
da
clarividência do amor. Para esta nova
consciência,
em
oposição
à
mentalidade
medieval
e
representação cristã, para a qual o
amor é um ato espiritual não
sensível 158 , o amor é um estado de
Em primazia para a mentalidade do
homem medieval, pois, o amor é ato de
158
sentimento 159 . É o sentir-se bem na
comoção de fazer o bem ao outro,
mas também no compadecer-se com
os seus sofrimentos. O amor não é
mais ato e movimento de tipo
espiritual, mas sim, no muito,
movimento e “encontro” de estados
anímicos, porém, enquanto inclinação
para
vivenciar
as
vivências
sentimentais alheias, por exemplo,
reproduzindo-as ou deixando-se
impactar pelas disposições alheias ou,
ainda, interiorizando-as, no esforço
de se transportar para o interior da
alma de outrem, bem como se
voltando para fora, ao se revoltar,
num ímpeto emocional, contra as
injustiças e depredação da dignidade
um deus amante, melhor, o ser da
pessoa divina. Consequentemente, o
amor não é exclusivamente o
movimento radicado no ser de todas as
coisas em direção à divindade, nem o
“impulso” e caminho de passagem para
a apropriação do saber pleno e perfeito
que só de dá pelo conhecimento da
divindade, por exemplo, na teologia de
sentido aristotélico. Cfr. M. SCHELER,
Liebe und Erkenntnis, 83-84; tr. esp., p.
22-23; Das Ressentiment im Aufbau der
Moralen, in Vom Umsturz der Werte, p.
71-74; tr. por., p. 89-94.
159 Cfr. M. SCHELER, Das Ressentiment im
Aufbau der Moralen, in Vom Umsturz
der Werte, p. 73; tr. por., p. 93.
159
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
humana160. Tudo isto se traduz, entre
outras
expressões,
em
comportamentos sociáveis e ações
úteis para a comunidade e para a
ampla efetivação do bem-estar social,
que, no conjunto, descrevem a ideia a
ideia do moderno humanitarismo.
Característico deste novo amor é fato
que ele ama não o homem concreto
em sua singularidade, mas o homem
em geral 161 . Ama-se a todos e a
dignidade ideal de todos os seres
humanos, mas não se ama, na
verdade, a ninguém como pessoa,
dotada de valores singulares. Ele é,
então, a disposição impessoal para
ampliar, em um círculo quanto mais
largo possível, o bem-estar universal,
nem que seja ao grave preço da
uniformização ou homogeneização do
homem em sua essência ou das
condições necessárias para o bemestar social. Este amor, por mais
clarividente que seja do ponto de
vista dos seus princípios racionais
universalistas, é cego. Não é, com
efeito, capaz de ver os valores
positivos e singulares.
A raiz desta cegueira se planta
na compreensão que o amor seria um
fenômeno especificamente humano
tanto na sua proveniência quanto na
sua destinação, isto é, um ato
psicológico que teria por fim somente
outro ser humano como objeto de
amor 162 . O erro desta cega
compreensão se revela por meio do
dado fenomenal que “o amor está
dirigido originariamente a objetos com
um valor”. Para o homem, o amor se
dirige “somente apenas enquanto e
até o ponto em que ele é portador de
valor; contanto ele é capaz de uma
elevação de valor”163. Nesta medida,
esta compreensão racionalista é
privada da clarividência do amor ao
desconsiderar que também se pode
amar originariamente objetos de
múltipla natureza em ampla vastidão.
Ama-se o conhecimento, a arte, a
natureza,
por
exemplos,
não
restritamente a pessoa humana, desde
que em todos estes objetos se
manifeste algo valorosamente digno,
desde eles mesmos. O amor só faz ver
Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 157-59; tr. esp., p.
214-16. A fundamentação contida
nestas páginas serve de base para a
argumentação sinteticamente aduzida
no presente parágrafo.
163 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 157; tr. esp., p. 215.
Inclui a próxima citação.
160
162
Cfr. M. SCHELER, Das Ressentiment im
Aufbau der Moralen, in Vom Umsturz
der Werte, p. 97-100; tr. por., p. 122-25.
161 Cfr. M. SCHELER, Das Ressentiment im
Aufbau der Moralen, in Vom Umsturz
der Werte, p. 96, 101; tr. por., p. 120,
127.
160
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 160
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
mais nitidamente o que neles já está
presente. Poder-se-ia objetar que tal
amor, cujos fins vão muito além da
natureza humana, não seria senão
expressões antropáticas e, por
consequência, não seria nada mais
que a projeção afetiva de vivências
humanas nas coisas e no conjunto do
universo. Ora, esquece-se esta objeção
que, neste caso, já não mais se trata de
amor, mas sim de um egoísmo
provocador de ilusões: na verdade,
ama-se no objeto de amor a imagem e
o reflexo de si mesmo. Daí a
decorrente
emotividade
ou
sentimentalidade que se experimenta
diante de algo supostamente amado.
Tais fenômenos da emotividade e da
sensibilidade, tanto mais exacerbadas,
mostram que, de fato é possível tomar
o amor por uma projeção, na medida
em que lança as próprias vivências
sobre o que se ama, justamente
porque este não se tornou objeto de
amor por sua própria índole,
totalmente estranha à natureza do
amante. O genuíno amor, pelo
contrário, supõe que o que se ama se
mostre em sua absoluta singularidade
e em radical diferença com o amante,
isto é, apareça por ele mesmo como
amável por razão de seus próprios
valores. O amor, portanto, por
princípio, nada possui em comum
com sentimentalidades e emoções,
sobretudo, quando regidas por cegos
impulsos psicossomáticos.
Conforme
a
consciência
cotidiana, por sua vez, o amor é
“paixão”, arrebatamento sensível e
impulsivo, que em nada segue a
razão. Deste modo, o amor seria cego
como o ódio e ambos não veriam com
os “olhos do espírito”. Como se nota,
a compreensão cotidiana, geralmente,
também nasce de uma atitude
racionalista para com o amor e o ódio.
Esta
compreensão
comete,
no
mínimo, dois erros. Primeiramente,
toma a clarividência do amor por
aquela da razão. Mas o amor possui
sua própria visão e evidência que não
se deve medir pela evidência da
razão164. O amor e o ódio tem boa
vista para aquilo que amam ou
odeiam, preferindo (ou desprezando)
isto àquilo. Dizendo junto com Pascal,
o amor é como o espírito de fineza,
capaz de ver coisa num único relance,
descortina o que está diante dos olhos
de toda a gente num único olhar, sem
precisar
manusear,
explicar
e
Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 230-1; tr. esp., p. 208.
Aqui, também se deve recordar a
setença pascalina a respeito da
primazia e autonomia das leis do
coração, que são só suas e cuja
clarividência o entendimento lógicogeométrico não pode apreender e
compreender, conforme já indicado na
nota 6.
161
164
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
demonstrar o que vê 165 . É que a
“essência de uma individualidade de
outrem, que é indescritível e nunca
surge em conceitos (“individuum
ineffabile”), somente no amor ou no ver
por meio dele brota integralmente e
de modo puro”166. Por esta razão, são
só os amantes que possuem uma
aguda mirada no objeto amado, são
eles
que
podem
ver
com
“objetividade” e realismo aquilo que
é só superficialmente visto por
muitos. É claro que o amante pode
ver mais coisas que existem no ser ou
objeto amado, mas, neste caso,
tratam-se de ilusões, idealizações e
todas as formas de degradações
subjetivas do que é real e objetivo.
Mas também em tais situações, o que
se apreende que é o amor precisar ser
vidente, para que o amante possa
perder a sua clarividência, isto é, ser
vítima das próprias inclinações,
interesses egoístas, ideias, valorações
e tudo mais que ofusca a visão.
Também quando o amor não se perde
nas ilusões, mostra-se a limpidez da
visão do amor: o amor genuíno não
deixa de ver as “faltas” concretas da
pessoa ou objeto amado, mas o ama
Cfr. B. Pascal, Pensamentos,
fragmento 512 (Edição de Brunschvicg:
1), p. 235-37.
166 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 163 tr. esp., p. 221.
165
com elas 167 , porque as vê sem
interesse que seja assim ou de outro
modo.
Também erra a compreensão
cotidiana ao confundir a clarividência
do amor com a “cegueira” dos
impulsos sensíveis. São estes, pois,
que, ao acompanhar sempre o amor,
podem limitá-lo ou detê-lo, fazendo-o
“cego”. Por isto, as emoções que vão
junto
ao
amor
não
são
necessariamente cegas; somente o são
quando se entende o amor como
sendo uma “paixão” impulsiva e
sensível168. Nesta confusão, a visão do
Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 160; tr. esp., p. 219.
167
Em si, as paixões não são
sentimentos impulsivos e, assim,
arrebatamentos passageiros. Por isto,
seriam cegas por natureza. Pelo
contrário, são atos duradouros que
provém do centro profundo da alma
humana. Com efeito, grandes amores
necessitam de intensas paixões. Estas
podem ser descritas como um olhar
preferencial sobre o mundo ou uma
visão unilateral, que isola e discerne
determinados valores no objeto amado
ou categorias axiológicas específicas,
prendendo o querer humano a certos
âmbitos e domínios de atividades e
ação. Como tais, as paixões são uma
orientação axiológica especializada que
movimenta por longo tempo, de modo
constante e intenso, a vida impulsiva.
162
168
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017)
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
amor se obscurece, já que são
rebaixados a critérios subjetivos e a
objetivos sensuais os atos primários
do espírito, que fazem possíveis os
objetos, mas também são inerentes ao
amor: o tomar interesse por, ter
atenção à, selecionar (no sentido de
dirigir a atenção à) e preferir. Não
obstante ambos os erros, por virtude
da clarividência, o amor é o ato que
abre os olhos do espírito. Como esta
abertura acontece, porém, somente
poderá ficar mais claro a partir da
segunda consideração. No entanto, é
importante reter que é como ato
vidente do espírito que o amor adere
ao conhecimento.
b) Em segundo lugar, o amor é
ascético como o conhecimento, sabe
alçar-se para acima das realidades
ínferas, subsumindo-as a uma esfera
mais nobre. O termo ascético não se
aplica explicitamente ao amor, tal
como fora aplicado ao conhecimento
por Scheler, no escrito Die Stellung des
Menschen in Kosmos. E, no entanto, no
Sympathiebuch, quando se descreve o
traço fundamental do amor e do ódio,
é claramente expressa a ideia que
estes fenômenos unicamente são
intuídos quando se apreende a ideia
de movimento. No caso do amor, um
movimento ascensional; o ódio,
porém, movimenta-se em direção
oposta:
Em primeiro lugar, o amor e o ódio
não se distinguem como se o ódio
fosse somente o amor à nãoexistência de uma coisa. O ódio é,
muito mais, um ato positivo, na
medida em que é dado de modo
tão bem e igualmente um des-valor
(Unwert), como no ato do amor um
valor (Wert) positivo. Enquanto,
porém, o amor é um movimento, o
qual vai do valor mais baixo ao
valor mais alto e no qual, em cada
caso, relampeja o valor mais alto de
um objeto ou pessoa, o ódio é um
movimento oposto. Com isto, algo
mais é dado, a saber, que o ódio
está dirigido à possível existência
do valor mais baixo (o que, como
tal, é um valor negativo) e à
anulação (Aufhebung) da existência
dos valores mais altos (o que,
novamente, é um valor negativo).
O amor, porém, dirige-se ao pôr
(Setzung) dos possíveis valores
mais altos (o que, em si mesmo,
respectivamente, à conservação dos
valores mais altos, e à anulação
(Aufhebung) dos possíveis valores
mais baixos (o que, em si, é um
valor moral positivo). O ódio,
portanto, não é um puro ‘trancarse’ ao total reino dos valores como
tal; está ligado, muito mais, a um
Porém, também elas são regidas pelo
amor e ódio. Cfr. M. SCHELER, Ordo
Amoris, p. 373; tr. por., p. 36-37.
163
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
positivo dirigir a vista para o
possível valor mais baixo169.
As afirmações acima não só
confirmam a clarividência do amor e
do ódio, mas também demonstram
que o amor é um movimento
intencional do ato que deixa aparecer
o valor mais alto (o nobre; o mais belo
e o mais cognoscível; o mais sagrado);
por sua vez, o ódio deixa aparecer o é
que mais baixo do ponto de vista
valorativo (o mais vil; o menos belo e
menos evidente do ponto de vista do
conhecimento; o mais profano). O
amor
ascende,
enquanto
ódio
descende – cada vez, em âmbitos
diversos, mas o movimento traspassa
o todo da constituição humana:
dimensão vital, psíquica e espiritual.
Este movimento se dá ao modo
de uma anulação (Aufhebung). Anular,
porém, não pode ser entendido
simplesmente como ato de aniquilar.
Há modos diversos de anular e entre
eles
está
o
conduzir
algo,
subsumindo-o a outra dimensão.
Subsumir é entregar, conceder,
submetendo e somando o que foi
entregue àquilo a que foi concedido e,
ao mesmo tempo, levando este último
ao uma posição mais alta. O ódio
Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 155-56; tr. esp., p.
212.
169
nutrido pelo ressentimento, por
exemplo, no âmbito moral, entrega ao
que é vil tudo o que é mais nobre no
homem, não só no interior da
dimensão
vital,
mas
também
redefinindo o equilíbrio tenso entre as
dimensões humanas em favor do que
na constituição do humano é inferior
em dignidade: o espírito em função
do psíquico e este, por sua vez, em
função da sensibilidade. E, nisto,
pode colocar em posição superior os
ditames e prazeres da esfera vital.
Assim, o ódio é uma submissão, que
descende, operando uma inversão
para a direção oposta do “ascetismo”;
em comparação com o conhecimento,
que se dá no âmbito dos atos puros
do eu, ódio estaria para a infundada
colocação das essências a e apreensão
a priori delas sob o jugo da realidade
empírica, dando primazia aos dados
contingentes da sensibilidade. O
amor, porém, entrega o que é mais
baixo ou que já é por si alto em valor,
subsumindo-o no que é mais alto
ainda, proporcionando que a vida
humana alcance o máximo vigor de
suas forças, torne-se mais intensa,
segundo o sentido mais próprio de
ser vida humana. O amor, enquanto
ato espiritual, pode-se dizer, também
é um ato ascético, na medida em que
em realiza esta submissão ascendente.
Por razão deste movimento, não
obstante em filosofia a mera
164
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017)
Aoristo)))))
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ocorrência da mesma palavra em
contextos diversos não demonstre
nenhuma evidência, talvez, também
este tipo de anulação ascendente é
utilizada para descrever o que de há
de mais nuclear no conceito de
ideação:
Aufhebungs
der
Wikrlichkeitscharakters (suspensão do
caráter
de
realidade)
ou
Realitätsmoment selbst (für uns)
aufheben (suspender, para nós, o
momento próprio da realidade do
mundo)170.
Como, porém, se dá este
movimento
ascendente-ascético?
Certamente, tal ascensão não é a
consequência
de
uma
escolha
arbitrária e subjetiva, consumada
depois de uma comparação de valor.
Se assim fosse, não haveria um
genuíno ato de amor, mas uma
determinação referida à vontade do
sujeito ao escolher isto ou aquilo. A
ascensão, que acontece no movimento
do amor, possui seu ponto de partida,
portanto, não da escolha seletiva, mas
de outro fenômeno: a preferência. O
amor acontece, é verdade, mas desde
que o valor da coisa ou pessoa amada
o suscite, porém, depois de ter se
dado um ato de preferência entre
vários objetos dados171. Ora, para que
Cfr. M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 42, 44; tr.por., p.
50, 52.
170
Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 159; tr. esp., p. 217.
171
irrompa o movimento do amor, é
necessário que haja, primeiramente,
um ato de conhecimento afetivo ou
emocional, que apreenda de antemão
não só valor do objeto amado, mas
também algo ainda mais essencial: a
possibilidade deste valor se mostrar
ainda mais sua essência peculiar 172 .
Tal modo afetivo de conhecer define o
ato de preferir, que é como um
distinguir, um “trazer para frente”,
porque antes diversos objetos foram
percebidos distintamente por meio do
valor de cada um. O conhecimento
afetivo, então, jamais é uma
percepção homogênea e indistinta.
Pelo contrário, começa com a
preferência de um valor singular.
Com efeito, quando a atenção é
regida pela preferência, percebem-se
em primeiro plano somente algumas
qualidades sensíveis, como que todas
as demais se escondessem aos
sentidos;
conhece-se
algo
em
detrimento de outras coisas e tanto
mais as pessoas. Enfim, “as direções
de nosso representar e perceber
seguem as direções de nossos atos de
tomar interesse e nosso amor e nosso
ódio” 173 . Amamos aquilo pelo qual
nutrimos grande interesse, porém,
não nos interessamos por nada, se
Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 156; tr. esp., p. 21213.
173 Cfr. M. SCHELER, Libe und Erkenntnis,
96; tr. esp., p. 45.
165
172
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
antes não preferimos o objeto de
nosso interesse. Nada, então, seria
percebido e amado, se não fosse,
primeiramente, preferido. Preferir é,
num relance, saber que algo é por si
mesmo nobre, belo, bom, sagrado,
sem que para isto seja preciso antes
comparar, emitir um juízo e, enfim,
selecionar. Assim, não decorre
necessariamente em escolher, pois
significa, antes de qualquer coisa,
fazer atenção solicitamente ao que se
mostrou por si mesmo como o mais
alto em dignidade de ser amado,
portanto, o mais valoroso, mas de tal
modo que neste fazer atenção se
permita que o valor do objeto amado
se eleve. É essencial ao campo visual
do amor, como também no âmbito
moral 174 , que bens e pessoas se
mostrem
por
si
mediante
configurações axiológicas individuais
e únicas numa série de eventos, cujas
exigências valem senão para aquele
específico e oportuno “momento”
histórico. Isto significa que, em modo
breve, a preferência pressupõe o
relampejar do valor e do “quanto” ele
ainda pode ser mais valoroso
unicamente a partir das próprias
potencialidades axiológicas. Pelo ato
de preferência, então, o espírito abre
os olhos para o relampejar do valor,
dando
início
ao
movimento
ascendente do amor. Fundamental é
que o amor não fixa o olhar no que
vê, mas, por sua natureza ascética,
sempre vê primeiramente no visto a
possiblidade de alcançar a sua
essência axiológica em mais alto grau.
Esta visão não é reação, pois o valor
visto não é um fato meramente
empírico. E, no entanto, o amor abre
os olhos do espírito para o que está aí,
sem se estagnar diante do que está já
presente como que à mão, porque
encontra
este
ser-aí
como
possibilidade de ser alto no próprio
valor. Coisas e pessoas amadas são
visualizadas como promessas de sermais o que já são; o raio do olhar do
movimento do amor, pois, espreita
mais além daquilo que está dado,
vislumbra mais do que possui na
mão 175 . Contudo, este ver e o
movimento que nele é mirado não é
idealização, por exemplo, como a
intenção de melhorar o objeto amado,
com também na atitude “pedagógica”
que tem por meta criar novos valores.
Pois, em tudo isto, por serem modos
de fazer desaparecer o valor anterior
e mais baixo e, assim, fechar os olhos
para o relampejo do (ser mais) valor
dado, representa a posição ad extra de
uma meta e conteúdo axiológico de
Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 351;
tr. por., p. 8.
Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 358;
tr. por., p. 17-18.
166
174
175
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 166
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
ma vontade representadora 176 . Isto
significa substituir, formalmente, o
fim do movimento intencional por
uma posição ou figura ideal do valor,
impondo ao objeto amado o que ele
deve ser. O amor não é nenhum
imperativo categórico e, no entanto,
ele diz benevolentemente: torna-te
aquilo que és. Assim, seria falso
entender essa visão do valor que se
relampeja e movimento nela mirado
tanto do polo da objetividade
empírica quanto da subjetividade
idealista, como também da ligação a
posteriori de um polo ao outro. Pelo
contrário, o movimento ascético do
amor somente aparece se mantida a
unidade de um só movimento a priori
a qualquer uma das compreensões
defasadas acima. Sob a égide desta a
unidade prévia, o
movimento
ascético-ascendente aparece, do lado
do amante, como o incremento ou
aumento da claridade da visão em
termos de intuição e significado do
objeto 177 (ou em termos de
representativos-imagéticos, do ponto
de vista do conhecimento), de outro
lado, do poder-ser-mais-alto do valor,
alcançando
a
sua
“ideal”
178
determinação
e,
com
isto,
apresentando-se como qualidades
positivas do objeto amado179.
Em todo caso, somente no
medium do amor esta unidade é
possível, isto é, somente no interior
do movimento mesmo e ao longo de
seu curso, pois, é nisto que os valores
aparecem rumo à plenificação de sua
essência 180 . A contraprova para
afirmar que o movimento encontra-se
no medium, anterior aos polos
extremos entre valores empiricamente
dados
e
idealisticamente
posicionados é a seguinte: consiste em
não visualizar adequadamente o
fenômeno, ao tomar o movimento do
amor por aquilo que seria somente a
sua consequência, a saber, uma busca
por novos valores. Em síntese, no
primeiro caso, a busca insatisfeita e
carente de valores mais altos, já
empiricamente presentes, porém,
ainda não descobertos, é signo de
plena falta de amor181. Pois, assim, o
movimento do amor não seria senão o
Para a diferença entre fim e meta ou
objetivo, como também a primazia
ontológica do primeiro sobre o
segundo conceito, cfr. M. SCHELER, Der
Formalismus in der Ethik und die
materiale Wertethik, p. 53, 59-61; tr. it.,
p. 54, 62-64.
177 Cfr.
M. SCHELER, Liebe und
Erkenntnis, 96; tr. esp., p. 45.
178
176
Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 164; tr. esp., p. 222.
179 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 156; tr. esp., p. 213.
180 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 160; tr. esp., p. 218.
181 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 160-61; tr. esp., p.
218-19.
167
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
interesse cada vez mais intenso pelos
“méritos” do objeto amado e, ao
mesmo tempo, o interesse cada vez
menor para as “faltas”. Mas isto, na
verdade, é ilusão. Como dito, ama-se
o (objeto) amado por inteiro e
concretamente, sem excluir as suas
“deficiências”. Ademais, se o valor
buscado não for empiricamente
encontrado, a busca cessaria e
instauraria nada menos que a
desilusão. Já em relação ao polo da
idealidade formal, a busca de criar
novos e mais altos valores se
transforma na realização do que foi
imposto como condição do amor 182 :
“tu deves tornar-te isto”, “deves
adquirir este valor”. A imposição de
uma condição não só transforma o
amor em imperativo categórico, como
destrói a sua essência fundamental.
Com efeito, é uma lei fundamental do
amor que não se exija daquilo ou
daquele que se ama que tenha estes
ou aqueles valores, mas sim amá-lo
tal como é, com os valores e
desvalores que possui. Amar sem
porquê e para quê é o que rege o
amor desde sua essência. No sentido
de não impor nenhum dever, de
lançar-se
livremente
de
condicionamentos em direção ao
objeto
amado,
sem
esperar
Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 161-62; tr. esp., p.
219-220.
182
reciprocidade,
recompensa
ou
confirmações de projeções afetivas, o
amor é, em si mesmo, indiferente.
Nesta particular indiferença, por mais
paradoxal que possa parecer, que o
amor prefere e ama o valor que, no
objeto amado, relampeja como um
bem único.
c) Por razão de sua natureza
espiritual e ascética, o amor é puro ato,
não apenas, como o conhecimento,
ato puro de ideação, pois é
correalização. Para compreender esta
afirmação, é necessário perceber que,
até este o presente momento da
reflexão, o amor e o conhecimento se
encontraram, por assim, dizer em
posições
diferentes,
porém,
equiparadas. Aliás, o amor, até então,
foi considerado como via e método do
conhecimento.
Nesta
direção,
enquanto se atém a uma ordem ideal
se realizando conjuntamente com a
consciência,
então,
no
nível
psicofísico, aquela equiparação é
possível, assim como este modo de
consideração do amor. No entanto, se
se supõe outra ordem se realizando,
totalmente independente, portanto,
que se determina a se e pro se, em
síntese, uma ordem espiritual – algo
que já pode ser pressuposto, em
certos limites, pelo conhecimento, isto
é, unicamente enquanto ser-essencial
do ente espiritual, logo, em termos de
puro conteúdo quididativo, mas não
168
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017)
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
quanto ao seu ser-existente, muito
menos quanto à ausência de cisão
entre a essência e a existência deste
suposto objeto de conhecimento 183 –
tal suposição leva a crer uma
essencial inequação entre conhecer e
amar. Com efeito, para tal intelecção é
necessário um grau de ascese, ao qual
não pode chegar o conhecimento, pois
aqui não é preciso somente dizer um
vigoroso não (à existência vivenciada
como resistência), mas também um
forte sim à existência. A existência
afirmada por este sim, pois, é
experimentada pelo e como centro de
atos livres, que é pura atualidade (não
atualidade
pura
de
atos
cognoscitivos). No centro destes atos,
portanto, somente o genuíno amor
pode adentrar, pois só ele é
propriamente no e enquanto o
medium de seu movimento. Por esta
razão, em toda parte, o amante
precede o conhecedor, não só porque
o conhecimento afetivo por valores
antecipa o conhecimento eidético 184 ,
mas, sobretudo, porque há regiões
ontológicas mais plenas ou esferas do
ser enquanto espírito em que somente
o amor pode se instalar. Neste
sentido, poder-se-ia afirmar que o
amor é mais clarividente e ascético
que o conhecimento, pois nestas
regiões se exige outro modo mais
perfeito de vidência e evidência. Tais
afirmações, em primeira linha,
decorrem do seguinte:
Se já o ato não constitui jamais um
objeto, com certeza, tanto menos o
constitui a pessoa que vive na
realização de um tal ato. A única e
exclusiva forma de sua dação
(Gegegenheit),
pela
qual
se
manifesta, é, muito mais, a sua
própria realização de ato (também
ainda a realização-de-ato da sua
reflexão sobre seus atos) – isto é,
sua realização-de-ato, no qual ela
está a viver e, ao mesmo tempo, se
experiencia de maneira vivaz (sich
erlebt, vivencia a si mesma). Ou,
quando se trata de outras pessoas,
[tal forma de dação e manifestação
será] a realização concomitante
(Mitvollzug, correalização) ou a
realização sucessiva (Nachvollzug)
ou,
ainda,
a
pré-realização
(Vorvollzug) de seus atos. Também
em
tal
correalização
e,
respectivamente,
a
realização
sucessiva e a pré-realização dos
atos de uma pessoa não entra nada
de objetivação.185
Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der
Philosophie und der moralischen
Bedingung
des
philosophischen
Erkennens, p. 96-98; trd. por., p. 12830.
183
Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der
Philosophie und der moralischen
Bedingung
des
philosophischen
Erkennens, p. 81; trd. por., p. 107.
184
Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in
der Ethik und die materiale Wertethik,
p. 386; tr. it., p. 478.
169
185
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Aquelas esferas, então, são a da
pessoa, seja a pessoa divina, seja a
humana. Enquanto são o centro do
espírito e na medida em que se
mostram como livre realização de
seus atos, nenhuma objetivação é
possível 186 . Da pessoa humana, por
exemplo, até é possível objetivar tudo
que lhe é corporal e anímico, mas os
atos espirituais e as intenções, pelos
quais seus atos anímicos são guiados,
estes não são passíveis de objetivação.
Com efeito, da pessoa humana se
pode conhecer objetivamente e fazer
imagens representativas do seu corpo
físico, da unidade do seu corpo vivo,
do seu eu (na medida em que o eu
pode se tornar objeto e matéria da
percepção interna, mesmo que tal
matéria seja pura forma 187 ) e da
psique ou alma que lhe corresponde
singularmente. Do ponto de vista da
objetivação, portanto, a pessoa é uma
substância ignota. Até para o amor de
outrem e para a própria pessoa, pois,
a pessoa individual é algo que escapa
a toda e qualquer tentativa de
definitiva apreensão e completa
definição, quanto mais da presunção
do conhecimento absoluto por
objetivação. Então, resta que ela
somente pode ser dada por um ato de
amor e por meio de seus atos de amor
– vez que são centros amorosos por
excelência 188 . Nesta perspectiva, não
se trata de conhecer e amar seus
valores particulares, como por
exemplo,
de
suas
qualidades,
atividades, comportamentos, feitos e
obras, nem a soma de todos os seus
valores presentes e possíveis. E sim a
pessoa mesma como sendo o valor
fundamental.
Como isto seria ainda possível?
Superando a perspectiva de conhecer
por atos puros, para o qual ainda é
indispensável a presença de objetos,
as essências, pelo conhecer por puro
ato, isto é, por exclusiva atualidade e
(co)atuação do ato. Em outras
palavras, pela participação nos atos
da pessoa, o que implica correalizar,
em consumar conjuntamente com ela,
os seus atos de amor 189 . Neste
Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der
Philosophie und der moralischen
Bedingung
des
philosophischen
Erkennens, p. 71-72; trd. por., p. 95.
189 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 166, 168-9, 219-20, ;
tr. esp., p. 225, 229, 303; Die Stellung
des Mensches in Kosmos, p. 39; tr.por., p.
170
188
Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 168-69; tr. esp., p.
228-29; Die Stellung des Mensches in
Kosmos, p. 39; tr.por., p. 45.
187 Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in
der Ethik und die materiale Wertethik,
p. 374-75 tr. it., p. 463.
186
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017)
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
sentido, o conhecer passa ser tomar
parte, antes, durante e depois nos atos
pelos quais a pessoa se dá a si mesma,
pois aqui se encontra numa esfera em
que
a
individualidade
ou
singularidade,
que
é
traço
fundamental do ser-pessoa, se
constitui ao longo do ato em que se
configura um conteúdo particular e
todo próprio da experiência vivida.
Somente assim, isto é, participando
espiritualmente
nos
seus
atos
espirituais (no pensar, querer, sentir,
no todo da pessoa), a pessoa se torna
compreensível, sem ser jamais
objetivada. Espírito, então, no seu
significado mais alto, na sua ação
mais vidente, na vivacidade de sua
capacidade
mais
ascética,
é
(auto)compreensão.
Pois,
“compreender
é,
tanto
como
compreensão de atos, assim como
compreensão de sentido objetivo, a
qual é diferente de toda percepção e
de modo algum fundada na
percepção, o modo fundamental de
participação de um ser, cuja essência
é espírito, no modo singular de ser
(Sosein) de outro espírito” 190 . Nas
esferas mais altas, então, é preciso
abandonar o conhecer objetivante em
favor de outro conhecer que é
participação e compreensão e,
45.
Veja
também as
páginas
referenciadas na nota 57.
190 Cfr. M. SCHELER, Wesen und Formen
der Sympathie, p. 220; tr. esp., p. 303.
portanto, possui leis e objetividade
próprias. Isto somente possível como
amor.
2. SEGUNDO MOVIMENTO:
DO AMOR AO
CONHECIMENTO
Se
amor
precede
o
conhecimento, como ficou acenado
acima, então, o amor é ato
fundamental, isto é, deve conformar
as bases da existência humana mais
profundamente que o conhecimento e
trespassá-la na sua mais imediata
facticidade. Esta diferença essencial já
aparece, por assim dizer, no modus
operandi do ato ascético que próprio a
cada um. O amor nega para elevar o
valor objetivo de cada coisa: o amor
ama encaminhar cada coisa na
direção da perfeição do seu valor, o
que já significa, de antemão, o
conhecimento e a afirmação da
positividade deste valor. O amor só
nega ter o valor como algo dado à
mão e a cegueira humana para o
(poder) ser-mais das coisas e pessoas.
Por isto, a negação que define a
essência do amor é ato edificativo e
construtivo e, ademais, esta ação
edificadora e construtiva é uma
operação no mundo e sobre o
mundo 191 . O amor, pois, edifica o
Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 355;
tr. por., p. 13.
171
191
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
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mundo humano, elevando-o à
máxima possibilidade de expressar o
que é o ethos histórico de um sujeito
individual ou coletivo. Com isto, o
amor é capaz de trazer à fala a
estrutura e o conteúdo da cosmovisão
de um povo; o conhecimento de
mundo e o pensamento de mundo de
seus membros; as regras de vontade e
disposição de entregar-se a certas
coisas e não outras de um indivíduo,
de uma raça, uma nação e
determinados círculos culturais mais
extensos ou mais restritos (por
exemplo, de uma família)192.
De modo diverso é a negação do
conhecimento, que transparece mais
sob a figura de um ato supressivo e
destrutivo, no sentido autêntico e
fenomenológico do termo, que
edificativo.
Com
efeito,
o
conhecimento diz não ao mundo
efetivo, não obstante o faça para
constituí-lo desde um horizonte
prévio, isto é, para deixa-lo surgir
segundo sua lei interna, universal,
liberando sua estrutura arquitetônica
constante e invariável. Por isto, a
negação do conhecimento, numa
tendência contrária ao instinto
animal, é negar o que é real, o
positivamente dado e fortuito. A
negação do conhecimento enquanto
um ato destrutivo, então, visa senão
desentranhar algo fundamental, a
saber, a estrutura essencial de
qualquer mundo possível. Deste
modo, o que há de essencialmente
afirmativo
na
negação
do
conhecimento é que este tem por
meta elevar o espírito até a esfera
“irreal” das essências. E isto é
“totalmente independe de questões
de visão de mundo e de questões
valorativas” 193 .
Assim,
o
conhecimento, para revelar o mais
imediato em si, paradoxalmente, deve
romper com o mais imediato para
cada homem na facticidade de sua
existência,
chegando
só
posteriormente àquilo que, pelo e no
amor, já aparece de modo mais
imediato e concreto, porém, segundo
as regras de preferência e ao modo do
conhecimento
por
valor:
a
transcendência do espírito enquanto
abertura de mundo.
Se, em última instância, o que
entra em questão é a determinação da
essência humana como espírito e o
que o constitui essencialmente desde
a sua abertura, então, no seio desta
inequação “operacional” entre amor e
conhecimento, é preciso ir mais
aquém e ali supor uma diferença de
cunho ontológico pela qual o amor se
Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 357;
tr. por., p. 15.
193
192
M. SCHELER, Die Stellung des
Mensches in Kosmos, p. 44; tr.por., p. 53.
172
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017)
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
impõe como ato fundamental. Deste
modo, o “amar algo” constitui o ato
primeiro em que se fundam todos os
demais, pelos quais um objeto o
espírito apreende um objeto possível
e ao longo dos quais este se torna
pleno de significado 194. Na base dos
atos
intelectivos,
volitivos,
imaginativos, por exemplo, encontrase o movimento do amor (e do ódio) e
a estrutura intencional que mediante
ele configura a existência de cada
homem ou cada povo ou nação. Por
conseguinte, o amor é princípio,
conquanto, do início ao fim, rege a
abertura do existir humano para as
coisas e pessoas. É ato primigênio, no
sentido que é ato generativo do
homem, na medida em que, em base
dos atos amorosos, a sua essência não
se dá a ele mesmo, primeiramente, na
interioridade
enclausurada
da
percepção de si para si mesmo como
ego, mas sim na transcendência de si
em direção ao que lhe rodeia:
(...) o amor foi sempre para nós, ao
mesmo tempo, o acto primigênio,
pelo qual um ente – sem deixar de
ser este ente limitado – se
abandona a si mesmo para,
enquanto ens intentionale, participar
e ter parte no ente, mas de modo
que eles não se tornem quaisquer
partes reais um do outro. Por isso,
chamamos “conhecer” – esta
Cfr. M. SCHELER, Liebe und
Erkenntnis, 95-96; tr. esp., p. 44-45.
194
relação de ser - pressupõe sempre
este ato originário: um abandonarse a si e a seus estados, os
peculiares
“conteúdos
de
consciência”, ou um transcendê-los
para, segundo a possibilidade,
chegar a um contato vivencial com
o mundo. E o que efetivamente
denominamos “real” pressupõe,
antes de mais, um ato do querer
realizador de qualquer sujeito; mas
este ato de vontade pressupõe um
amor que lhe antecipa, lhe faculta
orientação e conteúdo. Portanto, o
amor é sempre o despertador do
conhecimento e do querer – sim, a mãe
do espírito e da própria razão195.
Em
razão
deste
estatuto
fundamental dos atos amorosos,
deve-se partir do amor para conhecer
quem é o homem, compreendê-lo na
sua essência a partir dos atos pelos
quais seu espírito transcende e se
expressa,
assim
como
para
determinar o conhecimento em sua
origem, possibilidades e limites. Não
é, portanto, por meio da crítica das
possibilidades
do
conhecimento
segundo os interesses e os limites da
razão que se deve partir para saber
quem é o homem enquanto o ente
capaz de julgar, querer e comtemplar,
pois estes limites e possibilidades da
razão já foram antecipadas por aquilo
que o amor deseja e prefere conhecer
– e recorde-se segundo o valor que
M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 356; tr.
por., p. 14.
173
195
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
provém das coisas mesmas e não
limites e possibilidades determinadas
a priori pelas vivências humanas,
muito menos ainda pelos conceitos
operativos prévios na forma de
funções do entendimento. Este
primado, então, se deve em razão de
que amor, como ato espiritual e
fundamental, instalar uma ordenação
estrutural na existência humana,
estabelecendo um conjunto de fins e
bens a que o espírito humano se abre.
Deste modo, é o amor que,
primeiramente, está a destinar a
existência de cada ser humano em
conformidade ao modo em que ele
livremente se determina segundo
suas
escolhas,
preferências
e
julgamentos, conformando a sua
personalidade 196 . Por conseguinte, é
também o amor que delimita o seu
posicionamento moral no mundo. Por
fim, em seu primado, o amor
circunscreve o mundo circunjacente
do homem, na medida em que suas,
paixões, preferências e repulsas
definem o que será realmente notado,
percebido e, assim, preencherá
efetivamente
a
totalidade
da
ambiência que o rodeia.
Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 35253; tr. por., p. 3-4, 9-10. Inclui a
argumentação a seguir no presente o
parágrafo.
196
Respeitando o duplo significado
em que o conceito ordo amoris é
empregado na fenomenologia de
Scheler, pode-se dizer que tal
primado do amor possui tanto um
significado normativo quanto fáticodescritivo 197 . Enquanto um conceito
normativo, ordo amoris delimita a
condição de possiblidade do agir
ético. Não se trata, em primeira linha,
de definição de normas que regulem
as preferências e o querer humano,
mas sim de saber que tal
estabelecimento pressupõe o fato que
a vontade, em seu querer, está
previamente
delineada
pelo
(des)conhecimento da ordem de
precedência das coisas amadas e
amáveis e a hierarquia das mesmas.
Se o homem age segundo o amor e o
conhecimento que respeita o valor
intrínseco e particular de cada coisa e
reconhece a hierarquia dos caráteres
amáveis
dentro
da
ordem
estabelecida por estes valores,
relevando-a de modo justo em cada
época e para cada povo, esta é uma
questão central para a ética. No
entanto, deve-se enfatizar que, em
primeira instância, a norma para o
posicionamento moral do homem no
mundo não se fundamentam em leis
uniformes, definidas por princípios
Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 34748; tr. por., p. 2-3.
174
197
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 174
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
abstratos enquanto fatos puros da
razão, mas sim que tem as suas raízes
nas leis essenciais e constantes da
ordem de precedência e preferência
em respeito aos aspectos axiológicos,
porque anteriormente à representação
dos bens últimos e fins formais do
agir humano se encontra a intuição a
priori de uma ordem e hierarquia de
valores,
experimentáveis
como
qualidades
materiais 198 . Neste
sentido, o amor possui um primado
ético em relação ao conhecimento.
A elucidação do componente
ético que inerente à modalidade de
conhecimento próprio à filosofia 199
bem exemplifica tal primeiro modo
de conceber o primado do amor. Ora,
como acenado, filosofia é movimento
ascendente que possui como meta e
objeto
um ser
absoluto. Tal
movimento não é possível se o cerne
da pessoa não tende ao valor e ao ser
absolutos, de tal modo que toda a
esferas
de
ser
relativos
e
contingenciais sejam colocadas em
segundo plano. Deste modo, é pelo
amor que o homem é alçado ao ser
Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in
der Ethik und die materiale Wertethik,
p. 37-38, 39-40; tr. it., p. 35, 38.
199 Cfr. M. SCHELER, Vom Wesen der
Philosophie und der moralischen
Bedingung
des
philosophischen
Erkennens, p. 89-90; trd. por., p. 11820.
198
absoluto, para além de objetos que
existem somente relativamente ao
homem. Todavia, neste movimento,
embora primário, o amor não está só.
Necessita que este amor ao ser
absoluto seja acompanhado pela
humildade, a qual, por meio do
aviltamento do orgulho natural e
“humilhação” do eu natural, faz
perceber que a manutenção dos
essenciais liames entre eu psicofísico e
a restrição do ato cognitivo aos
modos
existenciais
contingentes
representam um aprisionamento do
conhecer ao plano dos dados fortuitos
ou da existência casual e, assim, sério
impedimento para corresponder à
exigência de conhecimento evidente
por essências. Pelo amor humilde,
portanto, se cumpre uma necessária
condição para o conhecimento
filosófico: que o conhecer se aliene do
âmbito psicofísico do conhecimento
com suas conexões categoriais
específicas e se dirija rumo às
essências. Nisto, o amor é força
motora para um segundo ato que
também lhe acompanha, a saber, o
autodomino. Por meio deste, os
impulsos pulsionais são retidos,
quebrando a concupiscência natural e
criando a condição moral para a
perfeita adequação do conhecimento
enquanto plena captação intuitiva da
doação dos conteúdos quididativos
do mundo. Assim, o amor, ao ser
acompanhado da humildade e
autodomínio, é condição de específico
175
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
conhecer, cujo tender para um ser
absoluto, se falta este componente
ético enquanto condição a priori,
dissolve-se e se aniquila no
egocentrismo, no relativismo, no
vitalismo e no antropocentrismo.
Mas o conceito de ordo amoris é
também descritivo e nesta direção
também se deve entender o primado
do amor em relação ao conhecer.
Como tal, o conceito descritivo revela
que “o homem, antes de ser um ens
cogitans ou um ens volens, é um ens
amans” 200 . Nesta perspectiva, não se
trata da estreita ligação dos anseios e
querer humanos que determinam o
agir humano com a regras de
preferência e preterição dos valores
com que as coisas se anunciam no
mundo humano. Antes, diz respeito
às “linhas fundamentais do ânimo”201
do homem, ao “cerne do homem
enquanto ser espiritual”, “a fonte
originária que alimenta secretamente
tudo que deste homem emana”, “o
elemento primigênio” que constitui o
destino do homem e de uma
comunidade, o seu mundo moral e a
composição do seu ambiente natural,
em síntese, “a totalidade do possível
Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 356;
tr. por., p. 15.
201 M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 348; tr.
por., p. 3. Inclui as expressões
apresentas a seguir.
200
de se tornar o que a ele e somente a ele
pode acontecer”. Sob a força destas
expressões, apreende-se que o amor é
a estrutura mais simples da pessoa
humana com os seus fins mais
elementares, a partir do qual o ser
humano existe na unidade e
integralidade de seus atos. Deste
modo, por detrás de toda expressão
cultural, de todas as obras do espírito,
em todas as práticas e costumes,
ações morais, cosmovisões, enfim, de
tudo em que a transcendência do
espírito humano vem à fala enquanto
abertura de mundo e elevação do
homem como ele mesmo deve-se
procurar a estrutura e hierarquia de
fins que é determinado por uma
ordenação do amor.
Entre outras consequências, isto
mostra que, neste plano ontológico e
em virtude dele, os componentes
representativos se assentam sob os
componentes axiológicos 202 . A reta
compreensão do sentido do fluxo dos
sentimentos e dos estados emocionais
da vida anímica, pelos quais se revela
a situação afetiva de um ser humano,
bem mostra esta primazia do dado
axiológico sobre representativo. Os
sentimentos, com efeito, não são o
resultado das representações dos
objetos feitas mediante o pensar e o
Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in
der Ethik und die materiale Wertethik,
p. 54-55; tr. it., p. 56-57.
176
202
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 176
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
perceber, mas da harmonia com as
orientações do amor e ódio com as
coisas experimentadas no mundo,
revelando êxito ou fracasso nestas
experiências 203 . Um homem, por
exemplo, alegra-se porque, no agir e
no querer, toma “posse” de algo que
ama ou se vê afastado ou privado do
que detesta, não, portanto, porque se
faz presente a ele algo que é
representado como agradável. Em
primeira instância, então, os estados
emocionais não são suscitados pela
representação do prazer ou do
desprazer, mas sim pela atenção aos
valores e são relacionados ao dado
fenomênico que as experiências
cotidianas correspondem ou não aos
rumos dados pelo amor e ódio.
Assim, os sentimentos são muito mais
dependentes dos interesses que são
dados
antes
de
quaisquer
representações que das imagens dos
objetos que delas advém. É que “o
interesse codetermina constantemente
o facto da representação do objeto,
enquanto o sentimento de prazer ou
desprazer, produzido pelo objeto,
depende da qualidade daquele
interesse, da natureza do seu amor e
ódio” 204 . Depois, o fato que uma
tendência que possui por fim o
sentimento de prazer, por exemplo,
Cfr. M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 371;
tr. por., p. 34.
204 M. SCHELER, Ordo Amoris, p. 372; tr.
por., p. 35-36.
por um alimento, isto não significa
que o conteúdo mais imediato do fim
não seja o prazer, mas sim o valor
pelo qual este sentimento pode se
constituir 205 , isto é, antes de ser
aprazível, o alimento é algo preferido
ou detestado. Ademais, nem todo
sentimento precisa de um objeto
definido. Como ficariam, pois, os
estados emocionais suscitados pela
angústia, em que nada de externo no
mundo
aparece
como
objeto
representado como causa e algo
especificamente angustiante? Em
todo caso, os sentimentos são apenas
ecos das experiências de mundo,
orientandas em modo primordial
pelos rumos do amor e do ódio; ou
são sinais da relação de conteúdos
representativos com o êxito ou
fracasso nas realizações dos valores
do amor e do ódio, certo, estabelecida
a partir destes últimos. Contudo,
aqui, esta afirmação é apresentada
apenas como indício. É necessário,
pois, demonstrar em maiores detalhes
e precisão que as tendências
originárias,
bem
como
os
orientamentos e os fins a elas
imanentes, dependem muito mais dos
valores pelos quais o homem são
atraídos no amor ou pelos quais o
homem, no ódio, experimenta uma
repulsa e, consequentemente, que o
203
Cfr. M. SCHELER, Der Formalismus in
der Ethik und die materiale Wertethik,
p. 56; tr. it., p. 59.
177
205
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
fluxo das tendências não é regido pela
representação de conteúdo dos
objetos
ao
serem
percebidos,
desejados ou julgados. Antes, tais
tendências que constituem o ordo
amoris de um homem nascem do
centro do eu e, nesta independência
de critérios psicofísicos, são elas a
reger as imagens que o homem faz
das coisas, de tal modo que
adequação ou não destas imagens só
podem ser medidas por critérios
axiológicos. Nisto, o primado fáticodescritivo do amor poderia vir à tona
com maior evidência.
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178
Prof. Dr. Daniel Rodrigues Ramos
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 178
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
amoris,
p.
24-25.
Diponível
em:
<http.www.lusosofia.net>. Acesso em: 26
jul. 2016.
Submetido: 31de julho 2017
Aceito: 09 de agosto 2017
179
Amor e Conhecimento na fenomenologia de Max Scheler
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
A noção de ego na obra de Sartre
The notion of ego in Sartre’s work
Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass206
Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO
O presente ensaio analisará três obras de Sartre, La Transcendance de l’ego (1936), L’Être et le
néant (1943) e Cahiers pour une morale (1983). Tentaremos demonstrar que esse percurso é,
ao mesmo tempo, a evolução e a manutenção de algumas teses enunciadas na primeira obra.
Identificaremos alguns dos objetivos da filosofia sartriana, tanto na moral quanto na política,
revelando o papel central do Ego nessa discussão, e, por fim, identificaremos as consequências
morais de uma nova concepção da consciência, do ego e da reflexão edificadas por Sartre ao
longo de sua trajetória.
PALAVRAS CHAVE
Ego; Espontaneidade; Solidariedade.
ABSTRACT
The given essay will analyze three of Jean Paul Sartre’s Works: La Transcendance de
l’ego (1936), L’Être et le néant (1943) and Cahiers pour une morale (1983). We will
demonstrate that this path is, at the same time, evolution and maintenance of some already
stated thesis of the first piece. We will also identify some objectives of Sartre’s Philosophy,
regarding moral and political issues, revealing the main role of Ego in this discussion. Finally,
we will trace the moral consequences of new concepts of consciousness, Ego, and the
reflection
Sartre
identifies
throughout
his
trajectory.
206
E-mail: simeao78@gmail.com
180
Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 180
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
KEYWORDS
Ego; Spontaneity ; Solidarity.
INTRODUÇÃO
O conceito de ego ocupa um
lugar de destaque na filosofia
ocidental.
Sobretudo a partir do
pensamento moderno, tornou-se tema
obrigatório. O pensamento francês o
tomou como objeto de discussão de
forma aprofundada e até polêmica. A
máxima
“penso,
logo
existo”,
cunhada por Descartes, assumiu ares
de verdade indubitável. O pronome
eu, frequentemente, é subentendido
como presença indispensável na
compreensão da fórmula cartesiana,
ou seja, todo pensamento é fruto de
um ego reflexivo. Fato que leva a crer
que toda atividade de pensamento é
necessariamente
reflexiva.
Retomando uma frase de Alain,
“saber é saber se sabe”, podemos
afirmar que a máxima cartesiana
sintetiza atividade reflexiva.
Outro
lugar
comum
na
interpretação
dessa
máxima
é
identificar consciência e ego. Em
outras palavras, só há ego se ocorre a
reflexão
e
vice-versa.
Por
conseguinte, consciência, ego e
reflexão tornam-se sinônimos.
O
pensamento moderno explorou todas
as perspectivas dessa teoria.
De
Descartes
a
Nietzsche,
tal
conceituação oscilou entre a verdade
e o erro. Outro fator comum nessas
análises foi a identificação entre ego e
consciência moral.
A reflexão
transformava-se em culpa, o exame
de consciência reproduzia o processo
de atribuição de culpa exatamente
porque o termo consciência opunhase a inconsciência. Se a primeira é a
memória do pecado, a segunda surge
como esquecimento de todo erro
cometido. Algumas etiquetas foram
produzidas a partir dos filósofos que
tomaram esse tema como objeto de
suas
reflexões.
Idealismo,
racionalismo, subjetivismo, filosofia
da consciência, moralismo, e tantos
outros rótulos, foram afixados em
filósofos que abordaram o tema em
questão. Defender o cogito como
ponto
de
partida
filosófico
representava
a
assunção
do
cartesianismo oficial.
A fenomenologia lançou novas
luzes sobre essa discussão. Husserl
renovou o cartesianismo recolocandoo no centro do debate epistemológico
e
metodológico
da
filosofia
contemporânea.
A filosofia de
Husserl,
como
toda
corrente
renovadora, foi interpretada de
diversas maneiras, umas mais
ortodoxas, outras menos.
Nosso
objetivo, nesse ensaio, é discutir a
posição de Sartre acerca do debate.
181
A noção de ego na obra de Sartre
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Ele afirma que sua filosofia não usa
conceitos, mas noções. Tal distinção
epistemológica aproxima-o de uma
visão da filosofia que não quer ser
como as ciências naturais, baseada em
leis e normas, mas em uma atitude
compreensiva
e
aproximativa,
herança da fenomenologia que
pretendeu ser uma filosofia rigorosa
sem reeditar o positivismo comtiano.
Daí a diferença que fazemos entre a
noção sartriana e o conceito de ego
forjado ao longo do pensamento
moderno, que ainda persiste no
pensamento contemporâneo. A noção
sartriana de ego é uma tentativa de
repensar a teoria conceitual do ego.
Como veremos, tal tentativa leva
Sartre
para
bem
longe
do
cartesianismo
ortodoxo.
Sem,
contudo, recair e irracionalismos,
preocupação
constante
do
existencialista francês.
Tomaremos como objeto de
análise três obras, A transcendência do
ego (1936), O Ser e o nada (1943) e
Cadernos para uma moral (1983).
Tentaremos demonstrar que esse
percurso é, ao mesmo tempo, a
evolução e a manutenção de algumas
teses enunciadas na primeira obra.
Identificaremos alguns dos objetivos
da filosofia sartriana, tanto na moral
quanto na política, revelando o papel
central do Ego nessa discussão, e, por
fim, identificaremos as consequências
morais de uma nova concepção da
consciência, do ego e da reflexão
edificadas por Sartre ao longo de sua
trajetória.
Devido aos limites do
estudo, não teremos tempo de
abordar as críticas de Sartre a
Husserl. Enunciaremos somente as
suas justificativas, reservaremos a
outro estudo a especificação do
debate entre Husserl e Sartre.
O percurso que escolhemos
revelará três momentos da teoria
sartriana do ego.
O primeiro
abordará
a
sua
condição
transcendente, o segundo a sua
estrutura circular e o terceiro a sua
condição libertária. As duas primeiras
obras enunciadas, foram estudadas de
forma mais ampla e aprofundada, a
terceira, por ser póstuma, ainda não
foi descoberta pelos estudiosos.
Poucas pesquisas abordam suas teses
e um espectro significativo de
intuições importantes ainda solicita
trabalho de elucidação. Um aspecto
importante dessa análise histórica e
conceitual é identificar a continuidade
do projeto enunciado na obra A
transcendência do ego; essa perspectiva,
por si só, já desperta um grande
interesse. Ela rebate uma acusação
muito comum e infundada de que
Sartre é um pensador idealista e, ao
mesmo tempo, dualista. A teoria
sartriana
do
ego,
elucidada
adequadamente,
esclarece
um
equívoco iniciado ainda nos anos 40,
pela interpretação de Merleau-Ponty,
182
Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 182
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
consagrada nas páginas finais de A
Fenomenologia da percepção (1945).
Análise dessas críticas foram feitas
por mim em estudos anteriores;
assim, não voltaremos a eles.
Ao estudarmos atentamente a
reflexão sartriana voltada para o
estudo do ego, identificamos uma
teoria muito bem urdida, que tem
como
um
de
seus
objetivos
fundamentais criticar a chamada
filosofia da intimidade, muito comum
no início do século 20, na França. Um
dos autores mais lembrados nessa
crítica é Bergson. Sartre dedica a ele
vários estudos, em várias obras de
sua produção intelectual.
É
importante deixar claro que ele não
recusa a teoria bergsoniana em sua
totalidade; ele a circunscreve ao plano
daquilo que denomina psíquico. A
perspectiva psíquica da existência
humana, enunciada ao longo de
várias obras de Bergson, para Sartre,
continua válida, assim como sua
teoria das emoções, esboçada na obra
As duas fontes da moral e da religião
(1932). A objeção fundamental feita a
Bergson é de que o eu, oscila entre a
perspectiva dinâmica movente e a de
um ser pleno. Hora ele aparece
definindo a pessoa, e em outros
momentos, inserindo-a no fluxo da
duração. Ou seja, a pessoa seria um
ser total ou movente inacabado, se
ambos os fatos, como isso seria
possível? Além, disso, faltaria a
Bergson, uma visão mais acurada da
relação entre política e sociedade,
entre a tensão constante identificada
na relação de cada pessoa consigo
mesma e com a sociedade que a
circunda. Estabelecer a distinção entre
eu profundo e o eu superficial não
bastaria, segundo Sartre, para evitar
os equívocos do solipsismo. Nem a
teoria do Herói, esboçada nas Duas
fontes resolveria o problema da
existência fática da relação entre seres
humanos em sociedade. Os conflitos
sociais não poderiam ser resolvidos a
partir da instauração de novos
valores inspirados por pessoas
excepcionais. Faltaria uma efetiva
transformação da sociedade. A teoria
bergsoniana
do
eu
profundo/superficial, nesse contexto,
somente explicitaria uma cisão na
pessoa, não a superação dessa cisão.
Assim, o eu seria um fluxo de
emoções, fato que pode ser visto
como uma definição possível da
psique, mas ele não seria a síntese
totalizante
chamada
pessoa,
necessária
correlação
entre
interioridade e exterioridade. Nessa
crítica sartriana da vida interior e da
consequente exclusão da política,
estaria o campo incompleto da teoria
bergsoniana. Ontologia, moral e
política
solicitariam
uma
reorganização, que inexiste na obra
183
A noção de ego na obra de Sartre
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
de Bergson. Mas, não trataremos
desse
debate
nesse
estudo.
Tentaremos elucidar a posição de
Sartre.
Para tanto, é preciso identificar
as principais teses e os ajustes
empreendidos ao longo do percurso.
É preciso também identificar o que
Sartre quer evitar. Na obra A
transcendência recusa-se o solipsismo,
em O Ser e o nada, critica-se a pessoa
desconectada do mundo e nos
Cadernos o ego como coisa em-si,
como retificação da pessoa.
Compreender as críticas ajudanos a esclarecer também os equívocos
das interpretações dos adversários de
Sartre. A conferência O existencialismo
é um humanismo (1946), causou muitos
estragos ao seu pensamento. Não
porque suas teses sejam equivocadas,
mas porque elas não foram
devidamente explicitadas. Por ser
uma conferência idealizada para o
público leigo, Sartre simplificou em
demasia suas articulações conceituais.
Isso foi usado por seus adversários
para classificá-lo como um pensador
sem rigor e ingênuo. As críticas de
Heidegger
a
essa
conferência
reforçaram tais equívocos. Para
aqueles que comparam as teses dessa
conferência com os escritos filosóficos
sistematizados, fica evidente que as
críticas desconhecem os fundamentos
teóricos.
É preciso, sobretudo,
retornar aos textos, trabalho relegado
aos interessados em esclarecer os
equívocos
e
refutar
teses
absolutamente inexistentes em seu
discurso. A mais usual crítica feita a
Sartre é a de ser um defensor do
subjetivismo, da subjetividade isolada
do mundo, hipostasiação do sujeito.
Nada mais equívoco que isso. O
estudo da noção sartriana de ego
revela a fragilidade dessa crítica.
Revela também que ela é uma
caricatura débil do pensamento
existencialista
francês.
Ela
desconsidera os ganhos que a
fenomenologia representou para o
debate. Ignora igualmente que Sartre,
ainda nos anos 30, criticava Husserl
por defender o eu transcendental.
Para Sartre, a consciência é um campo
transcendental impessoal, mas não a
possuidora do ego, tampouco a
produtora de eu transcendental. Para
Sartre, Husserl não se manteve fiel ao
princípio da intencionalidade quando
fez uso do conceito de ego
transcendental. Se fosse possível
construir uma metáfora espacial, seria
admissível afirmar que a consciência
circunscreve o ego, mas, jamais o
contrário. A consciência não existe
porque cada pessoa tem um ego, ela
existe não para produzir o ego, mas
para intencionar o mundo. A
intencionalidade não é fruto do ego.
Ela é a essência da consciência. O ego
é objeto de reflexão para a consciência.
Isso ocorre pelo simples fato de que a
184
Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 184
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
fenomenologia ensinou que é possível
a existência de uma consciência
irrefletida. Esse é o ponto inicial que
deve ser relembrado contra tais
críticas. Se a consciência pode ser
irrefletida ou reflexiva, isso significa
que o inconsciente é uma tese que não
se sustenta. Mas isso significa
também que há ato intencional sem o
a priori da atitude reflexiva. Se essa
explicitação se fizesse presente nas
críticas a Sartre, elas deixariam de
fazer sentido. A atitude irrefletida da
consciência dilui tanto o conceito de
inconsciente quanto a exclusividade
da
reflexão.
Após
esses
esclarecimentos iniciais, retomemos
as teses centrais.
1. A TRANSCENDÊNCIA DO
EGO
Essa obra foi a primeira
publicada por Sartre nos anos 30, ela
foi contemporânea do romance A
Náusea (1938).
As duas obras
guardam profundas relações teóricas
ligadas à noção de intencionalidade
da consciência.
As considerações
finais da Transcendência sintetizam
algumas
intuições
tipicamente
sartrianas. A consciência, um campo
transcendental impessoal, revela-se
como a realidade fundamental de
todo ser humano. Essa consciência,
contudo,
estrutura-se
pela
intencionalidade. Não é porque a
pessoa tem um ego que ela é
consciente, ao contrário, a existência
espontânea dessa pessoa caracterizase pelo ato intencional. O ego passa a
ser um objeto, dentre outros, para a
consciência. Tal tese inválida críticas
de filósofos que insistiram em
apregoar a supervalorização da
subjetividade e a eliminação da
objetividade no pensamento de
Sartre. Contra as teses que defendiam
a existência material de um ego
coisista, inspirados pela psicologia
associacionista ou naturalista, Sartre
esvazia a consciência de todo
conteúdo.
Contra a orientação
transcendental do ego, Sartre situa a
consciência como um dos polos da
relação com o mundo. Tal concepção,
visa abandonar a convicção de que
todas as atividades cogitantes são
acompanhadas necessariamente pelo
ego, como se fossem frutos de sua
atividade. Sartre tenta demonstrar
que o ego é o resultado da atividade
reflexiva da consciência, ele se torna
um objeto para consciência. Além
disso, Sartre descreve o ego como
uma síntese de atos, qualidades e
estados.
Ele insere dois termos
fundamentais nessa exposição: o Je e o
Moi. O Je envolve as ações humanas
em sua relação com o mundo, o Moi
constitui a perspectiva reflexiva
dessas ações. É importante ressaltar,
185
A noção de ego na obra de Sartre
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
contudo, que a condição ativa do ser
humano representa também a
perspectiva “coagulante” que tal
condição envolve. A historicidade das
ações envolve tanto o aspecto
transiente de sua realização quanto a
dimensão
social
dessas
ações.
Exatamente porque todo ser humano
existe no mundo, o sentido de suas
ações não é decifrado ou enunciado
somente por seu autor.
Sartre
imprime à noção de ego um certo
caráter de papel social. É por isso que
o ego envolve a objetividade da ação,
ele é a dimensão em-si da consciência.
Mas ele não pertence somente ao seu
suposto Senhor, ele é a objetividade
da pessoa porque mundano.
Uma segunda consequência
muito relevante da teoria sartriana do
ego, nessa elaboração primeva, é a
sua incipiente teoria das emoções. Da
mesma maneira que não posso dizer
que tenho um ego, não posso dizer
que sou o dono de minhas emoções.
Se a consciência foi purificada de todo
o conteúdo, se ela é um nada de
conteúdo, se toda perspectiva coisista
foi eliminada de sua definição, nada
pode haver na intencionalidade da
consciência que seja a priori dado
como conteúdo. A consciência não
existe como um cofre, nem como um
arquivo. Ela é um movimento, não é
coisa ou o resultado único de um
cérebro, embora não exista fora de um
corpo. Bergson já esclarecia que não
há pensamento sem cérebro, mas que
todo pensamento é muito mais que
atividade cerebral. A consciência
envolve todo o ser humano. Ser
humano, para Sartre, significa existir
na
forma
da
consciência,
espontaneidade que intenciona o
mundo circundante. Esse ser é tanto
corpo quanto consciência, é possível
falar de consciência/corpo em Sartre.
Se a consciência não é um invólucro,
se os atos humanos são uma relação
de mão dupla entre o autor e o
mundo, tudo o que é humano ressoa
esse vai e vem. Assim, o ódio, o amor,
as chamadas emoções, para Sartre,
perdem a sua condição de afecção.
Elas não são coisas que contaminam o
interior do ser humano como
doenças. As emoções são relações
que cada ser humano estabelece com
os outros, no mundo. As emoções se
fazem e se desfazem ao sabor das
situações.
Não sou covarde ou
corajoso, faço-me, construo minha
personalidade sendo aquilo que faço.
Portanto, não tenho ego e não sou
dono de minhas emoções. Assim, a
espontaneidade
da
consciência
revela-se como o modo de ser
fundamental do homem. O ego lhe
dá uma certa consistência advinda
dos juízos sociais. Esse ego, contudo,
não é um caráter imutável, ele pode
ser recusado, contestado, o veremos
futuramente. O ego é um construto
pessoal
e
social.
186
Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 186
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
A terceira característica que
destacamos da Transcendência, é o
aspecto
programático
de
suas
palavras finais. Sartre diz:
E a relação de interdependência
que essa [consciência absoluta]
estabelece entre o eu/moi e o
mundo basta para que o eu/moi
apareça como ‘em perigo’ perante o
mundo,
porque
o
eu/moi
(indiretamente e por meio dos
estados) tira do mundo todo o seu
conteúdo. Não falta mais nada
para fundar filosoficamente uma
moral
e
uma
política
absolutamente positivas (SARTRE,
2003, p. 87)207
Tais afirmações deveriam servir
de
respostas
às
críticas
dos
adversários de Sartre.
Se a
consciência é absoluta, isso se deve ao
fato de que ela é um movimento
incessante do intencionar o mundo.
Isso não significa que o ser humano é
sempre reflexivo. A intencionalidade,
como sabemos, é a essência da
consciência.
Mas
essa
intencionalidade se dá sob dois
modos fundamentais, a vivência e a
reflexão. Na verdade, vivência é
muito mais “comum” que atividade
reflexiva na vida concreta de cada ser
humano. O absoluto da consciência
Todas as traduções das obras de
Sartre são de nossa autoria.
207
não é somente a sua atividade
cogitativa filosófica, como se o ser
humano sempre fosse uma realização
perfeita ou imperfeita do ideal
filosófico. Não vivemos o tempo todo
tentando
descobrir
verdades
indubitáveis. Simplesmente vivemos.
Se tomamos tal vida como objeto de
reflexão, tal o movimento é a
posteriori.
Não há o a priori da
reflexão na filosofia sartriana.
A
filosofia concreta que ela defende
tenta efetivar a verdade da máxima “a
existência precede a essência”, como
muito bem explicitou Heidegger em
sua carta sobre o humanismo, num
sentido bem distinto daquele dado
pelo autor de Sein und Zeit (1927).
Para Sartre, a existência é concretude
histórica, não a forma da interpelação
do Ser.
A moral e a política, que para
Sartre são inseparáveis, somente
podem ser fundamentadas na relação
intrínseca e correlacional entre o
homem e o mundo. Essa relação deve
ser constante e não pode recair
unicamente sobre um dos polos. Não
é o homem que cria o mundo, não é o
mundo que determina absolutamente
cada ser humano. Somos aquilo que
fazemos daquilo que fazem de nós. Esse
“vai e vem”, esse relacionamento
recíproco, não pode ser abandonado
ou esquecido, senão, recaímos nos
dogmatismos e nos determinismos.
187
A noção de ego na obra de Sartre
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Tais críticas valerão também quando
Sartre avaliar as consequências do
freudismo
e
do
materialismo
mecanicista. Pois, nos dois casos, o
homem passa a ser fruto de forças
internas ou externas determinantes e
impessoais. Como se estivéssemos no
plano da física newtoniana. O homem
passa a ser agido, eliminando, assim, a
sua
espontaneidade.
Tais
consequências explicitadas por Sartre
rebatem as interpretações caricaturais
feitas por críticos ao longo das
últimas décadas.
O Ser e o nada
A discussão acerca do
conceito de ego, abordado a longo da
história da filosofia, ganha destaque
na obra O Ser e o nada, tendo como
objetivo avançar e esclarecer alguns
pontos
apresentados
na
Transcendência. Se objetivo, na obra
anterior, era evitar o solipsismo, essa
intenção é aprimorada com a teoria
sartriana
da
pluralidade
das
consciências. A elaboração de uma
ontologia que distingue o ser e o
homem, em outras palavras, o modo
de ser distinto em cada um desses
seres, solicita a abordagem da relação
entre dois seres humanos, entre dois
seres que vivem ao modo do ser parasi.
Sartre erige uma noção para
descrever o modo de ser do para-si
que vive em sociedade, não só
envolto por coisas, mas também por
seres iguais a ele.
Essa noção
denomina-se ser-para-outrem. Essa
noção é flagrantemente negligenciada
pelos críticos de Sartre. O alegado
dualismo não se sustenta diante da
teoria sartriana que situa a necessária
correlação entre o para-si, o em-si e o
ser-para-outrem. Na verdade, Sartre
considera essa última noção uma
estrutura do ser para-si, mas ela
guarda
características
próprias,
dentre as quais, a necessária assunção
da existência fática de outrem.
Retomando a noção existencial de
situação, Sartre pensa a subjetividade
humana a partir da noção de ipseidade.
Tão noção somente existe em
correlação com a situação concreta
mundana. Na Segunda parte de O
Ser e o nada, Capítulo Primeiro, Seção
V, intitulada “O eu/moi e o circuito
de
ipseidade”,
Sartre
afirma
categoricamente que “o ego não
pertence ao domínio do para si”
(SARTRE, 1943, p. 142).
Tal tese desencadeia várias
consequências. Primeira, o ego unifica
as Erlebnisse, as vivências, e pertence
ao em-si, ou seja, o ego aparece como
um existente do mundo, não como da
consciência. Segunda, é a consciência,
em sua ipseidade fundamental, que
permite a aparição do ego como
fenômeno
transcendente
dessa
ipseidade.
Nas
palavras
de
Sartre,
188
Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 188
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Assim, desde quando ela surge, a
consciência, pelo puro movimento
nadificante da reflexão, se faz
pessoal: porque aquilo que confere a
um ser a existência pessoal, não é a
posse de um ego - que é somente o
signo da personalidade - mas é o
fato de existir para si com a
presença a si (SARTRE, 1943, p.
143).
Com esse esclarecimento, fica
evidente que a ipseidade é o
movimento reflexivo que toma como
objeto a presença a si. Isto é: “sem
mundo, nada de ipseidade, nada de
pessoa; sem ipseidade, sem a pessoa,
nada de mundo”, (SARTRE, 1943, p.
144), porque a palavra mundo
somente se faz com a presença do ser
humano, sem ele, aquilo que
chamamos mundo seria a coleção de
objetos em um espaço. A estrutura do
circuito de ipseidade é ilustrada por
Sartre com a descrição de uma pessoa
que sente vergonha de outra por ter
sido
flagrada
praticando
uma
conduta reprovável. A vivência da
vergonha ressalta a experiência de ser
visto. O exemplo dado por Sartre é o
de ver pelo buraco da fechadura uma
cena íntima que se passa em um
quarto
de
hotel.
Nela
compreendemos a passagem do je (eu
irrefletido) ao moi (eu reflexivo). A
presença alienante do para-si surge
nessa experiência cotidiana de ver e
ser visto por outra pessoa. A
alienação da consciência é o tema
central aqui porque ela é vivida como
interferência de outrem em meu ser,
em minha liberdade. Ser visto e
testemunhado como autor de ato
reprovável é ser atingido no âmago
do próprio ser, é ser posto “em
perigo”.
Tal conclusão nos leva a
compreender que a teoria da
alienação da consciência é a prova
existencial da presença de outrem.
Não como um ser que eu instituo,
mas como ser que me testemunha,
interferindo em minha liberdade,
adentrando meu ser. A existência de
outrem ganha estatuto de evidência
por ser constatada em uma situação
passível de ser comprovada por
qualquer pessoa. Essa prova não
exige demonstrações rebuscadas.
Constato a presença de outrem
concretamente por ser visado de fora,
por um ser que não sou e que tem
liberdade própria. Assim, completa-se
a crítica do solipsismo. Um ser
esvaziado de intimidade solipsista
constata a própria existência ao ser
visado e manipulado por outra
pessoa. Existo para outrem mesmo
contra minha vontade.
Essa teoria da pluralidade das
consciências não tem nada de
idealista, subjetivista, dualista ou
metafísica. Ela está fundada na
189
A noção de ego na obra de Sartre
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
facticidade da existência. Essa
consciência
é
uma
totalidade
movente, não fechada ou totalizada e,
nesse sentido, distinta da filosofia
hegeliana. Essa facticidade do mundo
concreto, como relação experienciável
e
sempre
comprovada,
é
o
fundamento existencial de toda
pessoa.
2. CADERNOS PARA UMA
MORAL
Se as duas obras anteriores são
desconhecidas
pelo
público
especializado, dado que a maioria das
críticas filosóficas sequer chegam a
comentar textos literais de Sartre,
reproduzindo, via de regra, opiniões
descoladas da teoria, os Cadernos são
praticamente ignorados. Elaborados
para
serem
desenvolvidos
e
publicados ainda nos anos 40, foram
abandonados posteriormente por
Sartre.
Segundo
o
próprio
existencialista, suas teses ainda não
haviam atingido o grau de concretude
necessária para a exposição de uma
moral existencialista.
Um exemplo lapidar dessa
atitude intelectual que critica Sartre
sem ao menos conhecer os seus
fundamentos filosóficos, é a de
Ricœur, na conferência - A luta por
reconhecimento e a economia do
dom - apresentada na Jornada de
Filosofia da UNESCO (Journée de la
philosophie à l’ UNESCO), em 21 de
novembro de 2002 e publicada sob a
direção de Moufida Goucha, Paris,
UNESCO (Organisation des Nations
Unies pour léducation, la science et la
culture), em 2004. Ele sustenta que a
teoria do reconhecimento de Sartre,
baseada na experiência da vergonha,
era somente negativa. Ela não teria o
aspecto positivo da integração e da
superação do conflito. Ricœur
apresenta, então, como teoria positiva
do reconhecimento, a filosofia de
Marcel Mauss, consagrada na obra
sobre a dádiva. É essa tese que
desejamos
analisar
usando
os
Cadernos para uma moral, escritos por
Sartre nos anos 40.
Curiosamente, nos Cadernos,
Sartre analisa longamente a obra
sobre a dádiva de Marcel Mauss.
Essa análise aborda a amplitude e a
validade do fenômeno das trocas
totais, exemplificado pelo ritual do
Potlatch. Interessa a Sartre avaliar a
ambiguidade -conceito fundamental do
fenômeno da dádiva – com o intuito
de discutir valores morais. Criticando
o utilitarismo e o contratualismo,
Sartre menciona a filosofia de Mauss
como uma possível forma de
constituição
do
fenômeno
da
Solidariedade social.
Essa análise da dádiva nos
Cadernos desautoriza, em parte, a
crítica de Ricœur a Sartre. Mas, esse
190
Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 190
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
não é o tema que desejamos discutir.
Interessa-nos a teoria positiva do
reconhecimento. A questão do
reconhecimento surge na obra O ser e
o nada a partir da análise da figura da
relação entre o senhor escravo. É
evidente que essa relação ressalta o
conflito entre as partes. A intenção da
análise de Sartre, entretanto, visa
elucidar aquilo que ele chama de
pluralidade das consciências. Pensada
em um plano mais amplo, a ontologia
de O Ser e o nada estabelece que a
relação intersubjetiva frequentemente
é determinada pela luta de vida e
morte entre as consciências. A peça
teatral Entre quatro paredes (1944)
retrata figurativamente essa teoria.
Sua tese final tornou-se um ícone do
existencialismo: “o inferno são os
outros”. A pergunta que se coloca é se
essa conclusão encerra o debate
acerca da Moral e da teoria sartriana
da intersubjetividade. Perguntamos:
teria
Sartre
constatado,
inevitavelmente,
que
os
seres
humanos somente podem viver
tentando anular a liberdade alheia?
Resumindo, a existência humana seria
inevitavelmente alienada e alienante?
Seria a luta pelo reconhecimento a
anulação da liberdade do outro parasi?
Estudos
de
obras
posteriores, como O existencialismo é
humanismo e os Cadernos para uma
moral, possibilitam uma interpretação
distinta. Essas obras tentam esboçar a
moral prometida nas últimas páginas
O Ser e o nada. Ocorre que essa moral
foi classificada pelo próprio Sartre
como Idealista, os Cadernos foram
publicados postumamente. A moral
sartriana
jamais
foi
elaborada
definitivamente. Parece, então, que a
relação intersubjetiva é, unicamente, a
do conflito.
Estudo mais aprofundado dos
Cadernos, entretanto, revela a intenção
de Sartre de ultrapassar essa
existência alienada. Esses cadernos
esboçaram
algumas
ideias
fundamentais acerca de uma proposta
moral em bases existencialistas. A
partir da página 430 dos Cadernos é
possível notar que Sartre retoma a
discussão sobre o tema do amor e a
clássica
ambiguidade
do
sadismo/masoquismo. O próprio
Sartre afirma, nessa passagem, que
ele não chegou a tratar na obra O Ser e
o
nada,
do
problema
do
reconhecimento das liberdades, ou
seja, de como uma pessoa poderia
reconhecer a liberdade de outrem sem
tentar aniquilá-la e sem se sentir
invadido.
Nesse momento, ele
aproxima a questão do amor da teoria
da dádiva, tendo como exemplo o
Potlatch.
Essas
experiências
exemplificariam
a
ambiguidade
fundamental
a
toda
moral
191
A noção de ego na obra de Sartre
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
estabelecida entre o desafio e a amizade.
Característica central do Potlatch.
Em seguida, Sartre retoma a
teoria do ego situando-a no âmbito da
liberdade. O ego, enquanto, em-si,
representaria o papel que devo
assumir ou recusar perante outrem.
Em suma, o papel alienante que o
outro exerce sobre minha pessoa
poderia ser concebido de forma
distinta se vivêssemos em uma
sociedade na qual as classes sociais
não fossem organizadas na forma do
conflito. É nesse momento que ele
menciona o exemplo do amor, pois
ele é um projeto que cada pessoa
constrói ao longo de sua existência. O
amor que não é possessivo pois confia
na liberdade do outro para-si. Da
mesma maneira, o ego não se
constitui como um ser transcendente
imposto pelo outro, sendo, ao
contrário, o âmbito da absoluta
Liberdade. Usando a imagem da
magia, Sartre afirma que o ego não
pode existir como um ser escurecido
pelo espírito da coisidade, dado que a
consciência não pode ser o reflexo da
vontade alheia. É nesse momento que
ele critica a noção freudiana de
inconsciente, porque ela seria a
concretização do outro que se impõe a
cada um de nós. Desejo que tem
objeto mas que não tem sujeito, ação
sem autor.
O
momento
seguinte
da
exposição dos Cadernos aborda um
tema interessante, a conversão, palavra
clássica do pensamento cristão. A
conversão remete ao conceito de
autenticidade, debatido longamente
por Sartre. Para entender essa nova
questão, Sartre inicia afirmando que
outra pessoa “cola em nós uma
etiqueta”, que interiorizamos. Essa
objetivação pode ser de cunho
psíquico ou aparecer na forma do emsi-para-si.
Para entender melhor tais
asserções, devemos relembrar que
uma das teses centrais que Sartre
tenta esclarecer desde o romance A
Náusea é a da contingência da
existência. Tal tese parte do princípio
de que o ser humano não é
absolutamente nenhuma de suas
condutas isoladamente. O autodidata
não é inteligente ou pederasta,
Roquentin não é inseguro ou criativo.
A tese da contingência estabelece que
o ser não é, ele se faz. Essa é uma das
principais contribuições da Ontologia
sartriana ao pensamento filosófico. O
ser humano não pode ser pensado a
partir da ontologia do ser em-si
somente, enquanto ser que é aquilo
que é e nada mais, ele é um ser parasi, ou seja, seu modo de ser é o fazer-se.
Nesse sentido, ser autêntico é renunciar
a ser uma coisa estática. Ser um projeto
é fazer algo e não ser algo. Um
projeto somente pode ser pensado em
situação concreta, sempre podendo
ser modificado. Se o ser humano é
192
Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 192
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
projeto e é fundamentalmente recusa
de ser, ele não é nada, ele é o que não
é, ele é um lançar-se em direção a
seus
projetos,
esse
lançar-se
caracteriza suas ações. Existir é fazerse, tese repetida em O Existencialismo
é um humanismo.
Essa condição
empreendedora serve também para
decifrar os sentimentos, as emoções e
as crenças. A existência humana
autêntica sempre mantém a tensão
entre o projetar e o fazer. Esse
empreendimento é sempre uma
possibilidade. Postular uma amizade
é construí-la cotidianamente através
de condutas. Nunca posso dizer que
sou amigo de alguém ou não, nunca
posso ter total certeza acerca dessa
relação. Esse projeto é uma escolha
intencional de fazer, fato que vale
também para os sentimentos.
A perspectiva da psique, nessa
existência autêntica, se dissolve
enquanto em-si. De um lado, é pura
vivência, de outro, é aquilo que
assumo perante o outro. Meus
sentimentos e minhas emoções não
são afecções, não são coisas que me
afetam, são empreendimentos. Raiva
e amor são juramentos. A teoria
sartriana das emoções situa no plano
da
Liberdade
essas
vivências,
classificando-as como “sentimentos
problemáticos”. Para Sartre, amar é
querer amar. O amor autêntico é
aquele que mantém a tensão, que não
se dá como coisa, mas como
empreendimento situado.
Existir
autenticamente é viver um projeto
aberto, situar-se no plano da
perspectiva. O para-si não é a soma
de suas afecções, ele é o seu ser
colocado em questão (Erlebnis). Um
conjunto movente que perpetuamente
se coloca em questão. Nesse sentido,
ser reflexivo significa querer a
existência e não a sua definição
absoluta. A Autonomia radical é o
Projeto autêntico. Se a reflexão pura
conduz à autenticidade, ela tem um
aspecto negativo e um positivo:
negativo porque é a recusa de
unificação, positivo porque se dá
como síntese, uma espécie de acordo
que estabeleço comigo.
Existir é
tomar-se como tema, como questão.
Nesse sentido, a reflexão é um
projeto.
A existência humana
autêntica é renúncia de ser causa de si
ou em-si-para-si.
Se a existência
precede a essência, ela se constitui a
posteriori, como questão.
Existo
respondendo à questão, decidindo
continuar. A existência autêntica
expressa,
concomitantemente,
autonomia e contingência. Ela aceita
assumir o seu modo de ser
diaspórico. Ela é retomada de si na
contingência.
Em resumo:
o existente é
projeto e a reflexão é o projeto de
assumir esse projeto. A conversão,
193
A noção de ego na obra de Sartre
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
portanto, é renúncia a categoria de
apropriação, ao para-si que quer ser
coisa, capturando-a. Ser não é ter, ser
é fazer-se.
A existência autêntica solicita a
relação solidária entre as pessoas. A
solidariedade supera a busca de ser
que se esgota na apropriação. A
solidariedade, surge, assim, como a face
positiva do reconhecimento. Valor
central da moral existencialista.
Talvez, tenha sido essa a lição que
Sartre aprendeu lendo a obra de
Marcel Mauss. Ricœur poderia inserir
Sartre entre os defensores de uma
teoria positiva do reconhecimento, se
tivesse lido os Cadernos.
CONCLUSÕES
Ao final, é possível constatar
que a teoria sartriana do ego não é a
simples repetição do cartesianismo,
não é uma filosofia da subjetividade
hipostasiada, não é uma filosofia que
afirma o sujeito sem o contraponto da
objetividade, não é uma filosofia
idealista da consciência moral, não é a
defesa do dualismo irreconciliável
entre em-si e para-si, não é a defesa
da teoria negativa do reconhecimento,
não é uma teoria da subjetividade
desconectada da sociabilidade. Enfim,
é uma filosofia muito distinta daquela
que seus opositores tentam esboçar
em caricaturas mal elaboradas.
Retomando as palavras finais de
A transcendência do ego, Sartre
postulou, desde os anos 30, a
elaboração de uma filosofia que
tentava conciliar a moral e a política,
pensando a correlação necessária
entre a interioridade e a exterioridade
do ser humano.
Teoria sofreu
alterações ao longo do tempo. Se
considerarmos as obras posteriores à
primeira redação dos Cadernos, a
grande alteração sentida será a
inclusão
do
Marxismo
e
posteriormente do Estruturalismo
nessa teoria concreta da relação entre
o
homem
e
a
sociedade.
Existencialismo,
Fenomenologia,
Marxismo, Estruturalismo, Psicologia
social, Antropologia, Psicanálise,
Gestalt, e tantas áreas das ciências
humanas, foram sintetizadas na obra
publicada por Sartre ao longo do
século 20. Se quiséssemos encontrar
um tema aglutinador de tantos temas
correlatos, poderíamos intitulá-lo
“questões
de
método”.
Evidentemente,
a
formulação
sartriana recebeu exatamente esse
nome. Esse ensaio, que foi usado
posteriormente como prefácio da
Crítica da razão dialética (1960),
sintetiza o percurso teórico iniciado
em A transcendência do ego.
Fica
evidente – no momento em que Sartre
faz um breve balanço histórico
daquilo que ele chamava de filosofia
concreta – em um dos capítulos de
194
Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 194
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Questões de método, que algumas
intenções haviam sido forjadas desde
a publicação de A náusea. A mais
originária delas, a noção de
contingência, influenciou uma das
teses mais importantes de seu
existencialismo, a formulação da tese
da espontaneidade da consciência.
Essa teoria tem como base dois
princípios elementares: a liberdade e
a ação. Tais princípios jamais foram
denegados ao longo de toda a história
do pensamento sartriano.
Eles
forjaram tanto as teses originais
quanto as apropriações das referidas
teorias elencadas acima. A temática
sartriana pode ser pensada, portanto,
a partir da questão metodológica das
ciências humanas. Nesse contexto,
ação e liberdade devem fazer parte
dessa fundamentação metodológica.
É nesse sentido que surge a
Antropologia sartriana, tentativa de
sintetizar Marxismo e Estruturalismo.
Tal síntese, contudo, também é uma
crítica a aspectos centrais dessas
teorias. A degradação do Marxismo
em dialética da natureza e a
transformação do Estruturalismo na
filosofia da morte do homem
converteram
intuições
profundamente profícuas em dogmas
injustificáveis. Podemos acrescentar a
psicanálise freudiana a esse conjunto
de teorias fundamentais do século 20,
tanto naquilo que ela tem de
instigante quanto os seus desvios
conceituais. Todas essas propostas de
constituição de um método para as
ciências humanas equivocaram-se
quando tentaram reproduzir a
inspiração científica positivista do
século 19.
A necessidade de
encontrar uma causa material única
para explicação de fenômenos sociais
contaminou a metodologia dessas
ciências.
Ao tentar substituir a
filosofia pelas ciências naturais, as
chamadas “ciências do espírito”
foram transformadas em arremedos
de discursos científicos. Literalmente,
o primeiro a morrer foi o homem. Ele
deixou de ser objeto das chamadas
ciências humanas.
Sob muitos
aspectos, tais ciências forjaram o seu
objeto ao invés de descrevê-lo. A
segunda metade do século 20 viu
nascer uma proposta de ciências
humanas que inverteu a relação entre
ciência e objeto. A ciência não era
mais
a
descrição,
análise
e
compreensão dos fenômenos por ela
estudados. Ao contrário, o objeto
surgia do discurso científico. Em
alguns casos, o objeto se tornou o
discurso. O discurso ocupou o lugar
do objeto. Foi nesse contexto que a
célebre frase que afirmava ser o
homem uma invenção recente e
fadada ao desaparecimento, como
desenhos na areia da praia, encontrou
sua formulação. Sob um modo
195
A noção de ego na obra de Sartre
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
distinto do de Sartre, a literatura
passou a ocupar o lugar do discurso
científico, sendo a linguagem e até a
linguística as novas ferramentas
criadoras de um discurso chamado
homem. A filosofia transmutou-se em
retórica.
As
ciências
humanas
passaram a ser uma arqueologia das
estruturas.
Vimos
nascer
na
Psicologia,
no
Marxismo,
na
Psicanálise, na História, na Sociologia
e em todos os campos dos saberes
humanos a voz do inconsciente, a
ciência do inconsciente. O homem
morria para deixar nascer o
inconsciente
estruturado
como
linguagem.
Contra a transformação das
ciências humanas na versão adaptada
do método das ciências naturais,
Sartre
defendeu
a
atitude
compreensiva. Retomando a longa
tradição iniciada por Dilthey, Sartre,
como dissemos, recusou a filosofia
dos conceitos e revalorizou, a noção,
o ensaio, o esboço, a descrição das
perspectivas do fenômeno.
Concluindo, a análise da noção
sartriana de ego revela que o estudo
atento de sua filosofia resguarda
ainda certa atualidade centrada em
noções como: correlação entre
pessoalidade e sociabilidade; entre
solidariedade e moralidade ou na
interdependência entre interioridade
e exterioridade. A Antropologia
sartriana repercute nos dias atuais a
necessidade de afirmar a interconexão
entre a ação e liberdade. Se teorias
como o descolonialismo conservam
algum sentido, é porque a libertação
ainda se faz exigência em nosso
tempo. Essa atualidade necessita
somente ser evidenciada a partir de
uma leitura crítica das interpretações
débeis acerca do existencialismo
sartriano.
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Ser y tiempo de Martin Heidegger (vol. 1).
Barcelona: Herder, 2015.
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Nagel,
1946.
196
Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 196
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
SARTRE, J.-P. La nausée. Paris: Gallimard,
1938.
SARTRE, J.-P. La transcendance de l’ego.
Paris: Gallimard, 1936.
Submetido: 16 de julho 2017
Aceito: 25 de julho 2017
197
A noção de ego na obra de Sartre
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de
Dietrich Von Hildebrand
Affectivity and Person in Phenomenology of Dietrich
Von Hildebrand
Prof. Dr. Tommy Akira Goto
Universidade Federal de Uberlândia – UFU 208
Marília Zampieri da Silva
Universidade Federal de Uberlândia – UFU209
RESUMO
O presente estudo tem o objetivo de apresentar a "fenomenologia da afetividade" elaborada
pelo filósofo Dietrich von Hildebrand (1889-1977), discípulo de Husserl e que produziu
análises filosóficas a partir da denominada "fenomenologia realista", ou seja,
uma filosofia fenomenológica da verdade, mas que mantém o contato existencial com a
realidade, a partir do conhecimento das essências genuínas e do conhecimento a priori. Para o
filósofo somente por meio do método fenomenológico é possível alcançar genuinamente o
conhecimento a priori das essências dos fenômenos e assim, chegar à verdade e
a profundidade do fenômeno. A investigação filosófica de Hildebrand se baseia diretamente
na experiência humana, assim, para conhecer a essência do ser humano é importante analisar
os fenômenos da vida consciente. Hildebrand afirma em sua análise fenomenológica que a
pessoa humana é um ser espiritual e que possui três estruturas intencionais: o entendimento,
a vontade e a afetividade. Essas três estruturas da pessoa humana são, em verdade, a
estrutura ontológica do ser humano e cada uma delas compõem “centros operativos” de
vivências. Assim, esse artigo visa apresentar a vida e o pensamento de Hildebrand,
explicitando a questão da pessoa humana e da afetividade, diante de tantas confusões
conceituais, uma vez que, segundo Hildebrand, a afetividade é a estrutura da pessoa humana
208
Email: prof-tommy@hotmail.com
209
Email: marilia.zampieri@hotmail.com
198
Prof. Dr. Tommy Akira Goto
Marília Zampieri da Silva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 198
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
que melhor expressa a vida interior humana. É por meio da afetividade que é possível
dizer que vivemos algo. Sendo assim, o filósofo exige uma análise radical e rigorosa,
entendendo fenomenologicamente a resposta afetiva possuidora de um caráter ativo e que
expressa a tomada de decisão em relação aos acontecimentos no ser humano.
PALAVRAS CHAVE
Fenomenologia realista; Pessoa humana; Método fenomenológico.
ABSTRACT
The present study aims to present the "phenomenology of affectivity" elaborated by the
philosopher Dietrich von Hildebrand (1889-1977), a disciple of Husserl and who produced
philosophical analyzes from the so-called "realist phenomenology", that is, a
phenomenological philosophy of truth, but which maintains the existential contact with
reality, from the knowledge of genuine essences and a priori knowledge. For the philosopher
only by means of the phenomenological method it is possible to genuinely reach the a priori
knowledge of the essences of the phenomena and thus, to arrive at the truth and the depth of
the phenomenon. Hildebrand's philosophical inquiry is based directly on human experience,
so to know the essence of the human being it is important to analyze the phenomena of
conscious life. Hildebrand states in his phenomenological analysis that the human person is a
spiritual being and has three intentional structures: the understanding, the will and the
affectivity. These three structures of the human person are, in truth, the ontological structure
of the human being and each of them constitute "operational centers" of experiences. This
article aims to present the life and thought of Hildebrand, explaining the human person and
affectivity, in the face of so many conceptual confusions, since, according to Hildebrand,
affectivity is the structure of the human person that best expresses life Human interior. It is
through affection that it is possible to say that we live something. Thus, the philosopher
demands a radical and rigorous analysis, understanding phenomenologically the affective
response possessing an active character and that expresses the decision making regarding the
events in the human being.
KEYWORDS
Realist phenomenology; Human person; Phenomenological method.
INTRODUÇÃO
Podemos dizer que a chamada
“Filosofia da Pessoa” – entendida
como uma filosofia que tem como
centro a reflexão e a análise da
estrutura e do conceito de Pessoa –
ou, o que mais tarde se denominará
de Personalismo, surgiu na Europa no
início do século XX, influenciada pelo
desenvolvimento histórico-filosófico
199
Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
na “noção de eu” ou do “sujeito
transcendental” que vinham desde
Immanuel Kant e Johann G. Fichte
(FERRER, 2002). No entanto, o
alcance de uma definição mais
conceitual de Pessoa é problemática
no contexto do Personalismo em
virtude dos muitos sentidos e
interpretações a que se tem
desdobrado o seu entendimento.
Além disso, o Personalismo é também
compreendido, dentre os vários
sentidos, como uma filosofia que tem
como ponto chave o conceito de
dignidade humana. Esse é um
conceito que principalmente os
fenomenólogos personalistas têm
enfatizado,
porque
falar
de
dignidade, em verdade, significa dar
luz a uma realidade: a pessoa
humana.
Ainda, mesmo possuindo uma
influência filosófica proveniente da
filosofia moderna, tem se atribuído
maior impulso à Filosofia da Pessoa à
escola fenomenológica fundada por
Edmund Husserl (1859-1938). O
método fenomenológico proposto nos
primeiros anos da Fenomenologia a
partir da publicação das Investigações
Lógicas (1900/1901) atraiu diversos
filósofos de interesse realista, uma
vez que essa proposta inicial do
método consistia no “retorno às
coisas mesmas”, era similar às
principais premissas básicas do
realismo filosófico. Ainda, conforme
afirma Burgos (2012), a proposta
fenomenológica
enriqueceu
o
realismo
moderno
com
a
possibilidade
da
análise
da
subjetividade, mesmo que com um
sentido de subjetividade psicológica;
subjetividade essa ausente nas
filosofias realistas tradicionais e
principalmente
na
tradição
escolástica.
Dessa maneira, formou-se então
um grupo de discípulos em torno de
Husserl
que
seguiram
com
entusiasmo
as
propostas
da
Fenomenologia, formando assim o
chamado “Círculo de Gotinga”.
Estiveram
entre
os
principais
discípulos desse círculo os filósofos
Max Scheler, Adolf Reinach, Dietrich
von Hildebrand, Edith Stein, o casal
Theodor Conrad e Hedwig ConradMartius. Max Scheler foi, dentre eles,
o filósofo que mais atribuiu
importância ao conceito de pessoa, ao
mesmo tempo em que Husserl
desenvolvia suas análises do sujeito
transcendental. Scheler, assim como o
grupo de Gotinga, entendia o método
fenomenológico como um método
que possibilitava a explicitação da
estrutura interativa que liga de
maneira intencional as experiências
humanas, a ponto de compreender
que pela experiência era possível
alcançar as próprias coisas.
Scheler chega à pessoa como ser
concreto, o ser humano espiritual,
responsável
pela
unidade
da
diversidade de atos, tais como: julgar,
200
Prof. Dr. Tommy Akira Goto
Marília Zampieri da Silva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 200
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International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
amar, perceber, etc. Em termos gerais,
para
Scheler
a
pessoa
fenomenologicamente descrita, como
comenta Ferrer (2002), está para além
do eu, porque a pessoa vivencia a si
mesma em seus atos como uma
unidade na diversidade de atos,
enquanto o eu é um objeto
copercebido, ou seja, está sempre
referido a um entorno, um eu-mundo.
E, tal como Scheler, tantos outros
filósofos vão centrar seus esforços na
descrição da pessoa, a partir dessa
fenomenologia denominada como
“fenomenologia realista”.
Nosso intuito nesse capítulo é
apresentar a vida, a obra e a
“fenomenologia
da
pessoa”
desenvolvida pelo filósofo Dietrich
von
Hildebrand
(1889-1977)
–
discípulo de Husserl e grande amigo
de Scheler –, pouco conhecido no
ambiente filosófico, fenomenológico
brasileiro, mas que contribuiu de
maneira
decisiva
na
escola
fenomenológica
realista,
principalmente com investigações
sobre a ética, os valores, a
espiritualidade e afetividade. Von
Hildebrand foi mais conhecido no
ambiente teológico cristão, tendo sido
um dos grandes expoentes da
filosofia cristã do século XX. “As
circunstancias adversas que têm
impedido uma maior divulgação da
obra de Hildebrand não pode ocultá-
la, ainda mais, o valor objetivo que
contêm
as
suas
contribuições
filosóficas” (Rovira, 2006, p.22).
1.
DIETRICH
VON
HILDEBRAND: SUA VIDA E
OBRA
Dietrich von Hildebrand nasceu
no dia 12 de outubro de 1889, na
Florência - Itália, em um ambiente
repleto de música, a qual veio
desempenhar um papel importante
em sua vida. Seu pai era Adolf
Hildebrand, um famoso escultor
renomado
e
sua
mãe
Irene
Hildebrand, uma dona de casa,
esposa e mãe que encheu seu filho de
muito amor. Hildebrand foi o sexto e
o único homem dentre os seis filhos,
as outras filhas eram: Eva, Elizabeth,
Irene, Sylvie e Bertel. Desse modo,
seu nascimento foi sentido com muita
alegria, rodeado pelo amor de sua
mãe e suas cinco irmãs, as quais
ansiavam por fazer carinho em seu
irmão caçula e compartilhar com ele
todos os talentos que tinham. Assim,
suas irmãs tiveram grande influência
em seu desenvolvimento pessoal e
artístico, já que toda a família possuía
talentos notáveis, eram: escultores,
pintores ou poetas (HILDEBRAND,
2002).
201
Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Desde criança Dietrich estava
envolto de obras de arte, pinturas,
esculturas, canções antigas e músicas
clássicas. Seus primeiros passos foram
em um campo florescente em uma
colina com uma das mais belas vistas
de Florência. Esse ambiente teve tal
influência na vida de von Hildebrand
que sua primeira conferência pública,
aos 17 anos, versou sobre a estética,
sendo que seguiu escrevendo sobre
esse tema por toda sua vida. Podemos
dizer que Dietrich cresceu em um
ambiente privilegiado, na infância
não frequentou escola, tinha tutores
particulares, entre eles estavam:
Walter Rietzler, Dr. Wuhl, Ludwing
Curtis
e
Alois
Fischer
(HILDEBRAND, 2002).
A convivência de Dietrich com
sua mãe e suas irmãs favoreceu o
desenvolvimento
de
uma
sensibilidade pelo mistério do
feminino, considerando altamente a
personalidade
feminina
e
compreendendo intuitivamente "sua
estrutura espiritual, psicológica e
intelectual". Assim, passou a ter uma
profunda reverência pelo feminino,
levando-o a uma posição contrária da
maioria dos homens de sua época, ou
seja, aquela em que as mulheres são
menos inteligentes do que os homens
e não possuem o mesmo nível
intelectual. Em sua concepção as
mulheres são de grande importância
para o intelecto masculino, pois dizia
frequentemente que havia encontrado
mais mulheres notáveis do que
homens (HILDEBRAND, 2002).
Os fatores que permaneceram ao
longo de toda a vida de Hildebrand
foram: amor, verdade e beleza. No
entanto, como observa Alice von
Hildebrand (2002), uma coisa lhe
faltava enquanto era criança: a
religião. Oficialmente seus pais eram
protestantes,
mas
não
eram
praticantes. Assim Dietrich e suas
irmãs foram batizadas por um
ministro protestante, mas não havia o
significado sobrenatural desse grande
acontecimento, o batismo para eles
era visto apenas como uma tradição
ocidental. No entanto, é possível dizer
que desde menino Dietrich levava o
religioso muito a sério, tinha uma
profunda reverência ao sagrado e
aquilo que transcende infinitamente.
Destaca Hildebrand (2002) que anos
mais tarde Dietrich conheceu a Igreja
Católica por meio de seu amigo
filósofo Max Scheler, se convertendo
então aos 25 anos ao catolicismo.
Em
1906,
aos
17
anos,
Hildebrand chegou à Universidade
de Munique na Alemanha decidido a
estudar Filosofia, decisão esta que
tomou ao encontrar os diálogos de
Platão, descobrindo assim que tinha
um "talento nato" para desvendar
erros
e
equívocos
em
uma
argumentação, assim, colocou sua
alma para desenvolver este dom
(HILDEBRAND,
2002).
Seus
primeiros estudos de filosofia foram
202
Prof. Dr. Tommy Akira Goto
Marília Zampieri da Silva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 202
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
com o filósofo e psicologista Theodor
Lipps, cujas aulas lhe causaram
grande impacto. Uma das coisas que
chamou atenção em Hildebrand foi o
fato de que Lipps tinha uma
personalidade que transparecia a
espiritualidade e "expressava sua
dedicação ao que ele estava
convencido de que era verdade"
(HILDEBRAND, 2002, p. 68).
Podemos afirmar que um dos
estudos de Lipps que teve influência
em Hildebrand, refletindo mais à
frente em sua própria vida e em suas
obras
sobre
ética,
valores
e
afetividade, foi a distinção entre
sensação e sentimento. No entanto,
Hildebrand observou que não havia
harmonia entre a epistemologia e a
ética de Lipps, visto que não havia
conseguido
"libertar-se
do
psicologismo",
o
qual
era
predominante na época entre os
filósofos, e estabelecia o saber
humano apenas como o "reflexo na
consciência" psicológica, ou seja, o ser
humano torna-se prisioneiro de sua
própria consciência de acordo com o
psicologismo (HILDEBRAND, 2002).
Na época, Theodor Lipps
fundou em Munique a “Associação
Acadêmica para a Psicologia”
(Akademischer Verein fur Psychologie),
uma organização composta por
estudantes e membros do conselho da
faculdade, cuja maioria era dos cursos
de Filosofia e que se reuniam
semanalmente. Assim, Hildebrand
tornou-se membro, o que lhe foi algo
de grande valor, visto que nessas
reuniões aprendeu mais do que na
própria universidade. Dietrich ficou
fascinado ao estar em contato estreito
com mentes brilhantes, trocando
ideias e descobrindo que os que ali
estavam
presentes
também
defendiam
a
possibilidade
de
alcançar a certeza do conhecimento e
a objetividade da verdade.
Alice von Hildebrand (2002)
lembra que foi nesse grupo onde
conheceu Heinrich Reinach – o irmão
mais novo de Adolf Reinach, filósofo
que
desempenhou
um
papel
importante em seu desenvolvimento
filosófico – e que logo tornou-se um
grande amigo. Mais tarde em 1907 em
uma das reuniões da Associação, o
jovem
Hildebrand
acabou
conhecendo Adolf Reinach e se
impressionou imediatamente por seu
talento filosófico e altura intelectual,
conectados a uma personalidade
nobre e atraente. Uma das coisas que
percebeu
em
Reinach
foi
a
incondicional sede pela verdade.
Tanto
Hildebrand,
quanto
Reinach compartilhavam da mesma
admiração por Lipps em relação sua
personalidade e estatura moral. No
entanto, Reinach incentivava que
Hildebrand tivesse consciência da
203
Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
limitação da ética de Lipps, devido ao
seu
envolvimento
com
o
psicologismo. Na época em que
Hildebrand conheceu Reinach, estava
se preparando para seguir seus
estudos em Tubinga, permanecendo
assim pouco tempo em Munique,
porém, voltaria a entrar na vida do
jovem filósofo pouco depois. Dietrich
considerou
Reinach
como
seu
verdadeiro
mentor
e
mestre
(HILDEBRAND, 2002).
Outra experiência importante
para
Dietrich,
como
destaca
Hildebrand (2002) foi quando um
grupo de amigos da "Akademischer
Verein fur Psychologie" organizou uma
reunião em um restaurante para
despedir de Moritz Geiger, que estava
saindo de Munique para passar uma
temporada nos Estados Unidos. Essa
foi uma noite decisiva, pois foi assim
que Dietrich conheceu Max Scheler,
que havia chegado recentemente da
Universidade de Jena. Ao começarem
a conversar, como lembrou A.
Hildebrand
(2002),
Scheler
se
encantou diante dos olhos de
Hildebrand, apreciando a amplitude e
profundidade de sua alma. Desse
modo, Dietrich se viu cativado pela
mente e pela personalidade de
Scheler, considerando-o como um
verdadeiro gênio, assim passou a
desempenhar um papel importante
na vida de Dietrich. Assim, além das
aulas de Lipps, decidiu assistir as
conferências de Scheler e um
seminário dirigido por Pfänder
(HILDEBRAND, 2002).
Scheler formulava as ideias de
forma brilhante, elas simplesmente
fluíam de sua alma, sem esforço e isso
foi uma nova experiência para o
jovem Hildebrand. Podemos dizer
que o encontro com Scheler foi "um
dos
grandes
acontecimentos
intelectuais
de
sua
vida"
(HILDEBRAND, 2002, p. 74). A
relação de Hildebrand com Scheler foi
para o jovem estudante uma fonte
sem limites de inspiração, sendo que
é possível dizer que a maior "dívida"
que Hildebrand dizia ter com Scheler
foi que com ele abriu-se o caminho
para a Igreja Católica, mostrando-lhe
ao longo de vários anos e discussões
que a Igreja "recebeu e conservava a
totalidade da Verdade revelada"
(HILDEBRAND, 2002, p. 76). Nas
reuniões realizadas principalmente
em cafés, Scheler foi influenciando e
modificando os pontos de vista
políticos de Hildebrand tanto aos
temas
filosóficos,
quantos
aos
religiosos (A. HILDEBRAND, 2002).
Em 1909 Scheler convenceu
Hildebrand que ele se beneficiaria em
assistir as aulas de Edmund Husserl
na
Universidade
de
Gotinga.
Hildebrand passou a conhecer a
filosofia de Husserl por meio do
primeiro volume das Investigações
Lógicas, gerando consequentemente
um grande entusiasmo; para o
pequeno
jovem
foi
como
204
Prof. Dr. Tommy Akira Goto
Marília Zampieri da Silva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 204
Aoristo)))))
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"experimentar
um
amanhecer".
Assim, deixou Munique para estudar
com o mestre Husserl em pessoa. No
primeiro encontro Husserl recebeu o
novo aluno com afabilidade e
simplicidade, porém, como afirma
Hildebrand (2002), Husserl não
causou a impressão de uma grande
personalidade,
fazendo
Dietrich
sentir claramente a diferença entre a
personalidade de Husserl e a de
Scheler.
Na primeira semana do curso
Hildebrand
não
compareceu,
deixando Husserl ofendido com seu
novo estudante, resultando em uma
discussão filosófica entre eles. No
final da discussão Dietrich tinha
sentimentos mesclados quanto a
Husserl, de um lado este havia lhe
"aberto um novo mundo" com as
Investigações Lógicas, sendo um
pensador claramente mais profundo
que Lipps, mas por outro, a
personalidade de Lipps era mais
atraente. Mesmo assim Hildebrand
assistiu a todas as aulas de Husserl
fielmente (HILDEBRAND, 2002).
Dietrich von Hildebrand ficou
muito decepcionado com Husserl
como professor, porque estava tão
absolvido
por
sua
própria
investigação que não via o ensinar
como algo atrativo, seus cursos eram
mal organizados e a maioria das
coisas
que
dizia
eram
incompreensíveis. Husserl tinha uma
mente brilhante, mas não possuía
talento como professor. Nessa época
Adolf Reinach decidiu fazer sua
qualificação com Husserl e acabou
tornando-se seu assistente. Foi nesse
momento,
como
observa
A.
Hildebrand (2002), que o jovem
Dietrich passou para a fase mais
importante
de
sua
formação
acadêmica. Reinach ministrou um
seminário sobre ética que fascinou
Hildebrand de tal forma que mais
tarde o influenciou em inúmeros
trabalhos. E assim a relação ente
Dietrich e Husserl foi evoluindo de
forma positiva; o pequeno jovem
descobriu traços amáveis e atrativos
em seu mestre, além de seu grande
talento e bondade; por fim, Dietrich
decidiu fazer seu doutorado com
Husserl (HILDEBRAND, 2002).
Os anos de 1910 e 1911 foram
importantes
e
marcaram
decisivamente a formação intelectual
de Hildebrand, principalmente ao
assistir as aulas de Reinach em
Gotinga. Reinach era um professor
qualificado, tinha claridade, precisão
e profundidade no que ensinava.
Dietrich pôde desfrutar de um
autêntico
"banquete
intelectual",
tendo aulas sobre Platão e Descartes;
aulas que lhe causaram impressão pra
toda a vida. Outro evento nessa
época, lembrado por Alice von
205
Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Hildebrand (2002) e que foi
enriquecedor foi a criação da
“Sociedade Filosófica” de Gotinga
(Gottinger philosophische Gesellschaft)
que Hildebrand fundou com Theodor
Conrad; formada por um grupo seleto
dos alunos de Husserl e Reinach que
se reuniam para discutir temas
filosóficos importantes. Pertenciam à
sociedade os principais alunos de
Husserl, tais como: Adolf Reinach,
Conrad e Hedwig Martius, Dietrich
von
Hildebrand,
Moskiewicz,
Alexander Koyré e Jean Hering.
Como comenta Stein (2002) não eram
todos os alunos de Husserl que
pertenciam à sociedade, pode-se dizer
que a sociedade era mais constituída
pelos jovens estudantes que eram
influenciados por Max Scheler.
Nesse mesmo período também
ocorreu uma reunião importante na
casa de Husserl, com a presença do
próprio Hildebrand, de Scheler e
Reinach, que tinha como objetivo
criar o “Boletim de Filosofia e
Investigação
Fenomenológica”
(Jahrbuch
fur
Philosophie
und
phanomenologische). Esta revista iria
publicar contribuições ao pensamento
humano, a partir das investigações
fenomenológicas,
sendo
algo
importante
para
a
filosofia
(HILDEBRAND, 2002).
Um acontecimento interessante
que comenta A. Hildebrand (2002) foi
em 1911 quando os pais de
Hildebrand
acompanharam
seu
Dietrich em uma viagem de férias à
Florência com a companhia de
Reinach. Nessa viagem Dietrich e
Reinach conheceram o mestre de
Husserl, o famoso filósofo Franz
Brentano; filósofo que os integrantes
do círculo de Gotinga respeitavam
muito. É interessante citar, que
quando Hildebrand era criança tinha
cruzado
algumas
vezes
com
Brentano, no período que era
sacerdote, antes de ter abandonado a
Igreja
Católica.
Segundo
as
observações de Dietrich, Brentano
tinha uma personalidade mais
marcante que Husserl, mas o último
era superior a seu mestre como
filósofo (HILDEBRAND, 2002).
Em relação ao doutorado,
Hildebrand
havia
inicialmente
sugerido uma temática sobre "erro e
ilusão", mas Husserl o aconselhou
dizendo se tratar de um projeto
demasiadamente ambicioso para uma
tese de doutorado. Desse modo,
aceitou o conselho e decidiu por um
tema ético, ou seja, "a natureza da
ação moral", tema este aprovado por
Husserl. Assim, pôs-se a escrever e
em um curto intervalo de tempo
havia terminado. No final de 1911
apresentou sua tese a Husserl, quem
lhe sugeriu pequenas mudanças
apesar de ter gostado muito. Ao
concluir a tese, Dietrich foi fazer o
exame oral e defendê-la, o que
ocorreu com muita dificuldade, visto
que os seus avaliadores tinham uma
206
Prof. Dr. Tommy Akira Goto
Marília Zampieri da Silva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 206
Aoristo)))))
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forte antipatia por Husserl e
acabaram estendendo-a ao seu
discípulo. Sua defesa resultou em
uma aprovação, mas não com o
mérito que merecia. No entanto, o
que lhe importava era o que Husserl
pensava dele e o mestre havia
gostado muito (HILDEBRAND, 2002).
Dietrich pouco depois que
recebeu seu doutorado, teve uma
sugestão de seu antigo tutor Alois
Fischer para dar conferências de ética
na Academia de Professores de
Munique. Teve aceitação de muitos e
passou a receber seu primeiro salário
pelos honorários, o que o levou a
conhecer dezessete países em sua
carreira
de
conferencista
(HILDEBRAND, 2002). Depois dessas
conquistas Hildebrand chegou ao
momento em que poderia voltar sua
atenção para algo que lhe preocupava
a meses, o desejo de entrar
decisivamente para a Igreja Católica e
ter sua união com Deus. Estava assim
florescendo a semente da filosofia
cristã que Scheler havia colocado em
sua alma.
Nesse
período
Dietrich
encontrou Siegfried Hamburger, que
havia conhecido em Gotinga em 1910
e começaram a construir uma
amizade que duraria toda a vida.
Seus encontros foram verdadeiros
"banquetes filosóficos", passavam
horas discutindo questões filosóficas
sobre a busca pela verdade.
Hamburger foi naquele momento
para Hildebrand uma pessoa em que
poderia confiar um verdadeiro amigo.
De modo, que a mesma devoção que
Dietrich tinha por Scheler passou a ter
por Hamburger, sendo essa amizade
um dos grandes presentes na vida de
Hildebrand (2002).
O momento mais decisivo e
importante na vida de Hildebrand foi
sua conversão à Igreja Católica, que
ocorreu em 1914. Dietrich viu-se
completamente
apaixonado
pela
Igreja, mas sabia que isso poderia
atrapalhar sua carreira filosófica,
visto que no meio acadêmico não se
falava do sobrenatural, do religioso
tão pouco do "sagrado", de modo que
os professores acadêmicos viviam a
dicotomia entre a fé e suas
investigações intelectuais. Todavia,
Dietrich não se conformou com essas
normas, mesmo que seu desejo era de
"ensinar filosofia e não teologia, mas
iria ser uma filosofia aberta a uma
realidade mais alta, não uma filosofia
separada
sistematicamente
dela"
(HILDEBRAND, 2002, p. 148). O
ardor, o fervor e o amor de
Hildebrand pela Igreja Católica
permaneceram até o último dia de
sua vida, tamanha era a devoção que
deixou claro que se depois de sua
morte
encontrassem
algum
manuscrito seu que fosse contrário ao
207
Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
ensinamento da Igreja era pra ser
queimado (HILDEBRAND, 2002).
A tomada de poder pelos
nazistas em 1933 forçou o casal
Hildebrand a deixar a Alemanha e se
estabelecer em Viena, mas ali também
estava se tornando um ambiente
perigoso. Resolveram então ir para a
França, mas em seguida a invasão dos
alemães em 1940 lhes obrigou a
mudança para a Suíça, porém seus
vistos foram negados. Por fim, o casal
resolveu se dirigir até a Espanha com
a intenção de chegar a Portugal e de
lá viajar até o Brasil e os Estados
Unidos.
Como
descreve
A.
Hildebrand
(2002)
em
1940
conseguiram um visto americano de
imigração que lhes permitiram partir
para os Estados Unidos. Assim,
embarcaram em um navio português
(Serpa Pinto) que se dirigia ao Rio de
Janeiro/Brasil e foram recebidos
amavelmente por um amigo de
Dietrich, o monge beneditino Otto
von Württemberger. Do Rio de
Janeiro foram para São Paulo visitar
os amigos fenomenólogos Heinrich
Reinach e sua esposa que também
saiu da Alemanha após a morte de
Adolf Reinach em 1917. Enfim, no
final de 1940 Dietrich e sua esposa
embarcam definitivamente para os
Estados Unidos e, logo foi nomeado
professor da Universidade Fordham,
uma universidade jesuíta de Nova
Iorque.
Ao longo de sua vida Dietrich
von Hildebrand escreveu muitas
obras filosóficas e obras sobre fé e
moral do catolicismo. Entre as obras
filosóficas estão: “Ética” (Ethik, 1929),
“A metafísica da Comunidade”
(Metaphysik der Gemeinschaft, 1930),
“O que é Filosofia? (Was ist
Philosophie?, 1970); “Estética I”
(Ästhetik I, 1971); “A essência do
Amor” (Das Wesen der Liebe, 1971),
“Estética II” (Ästhetik II, 1977), entre
outras. Também destacam-se seus
escritos filosófico-teológicos, tais
como: “O matrimônio” (Die Ehe,
1929), “Liturgia e Personalidade”
(Liturgie und Persönlichkeit, 1933), “A
Nova
Torre
de
Babel.
As
manifestações da queda do homem
de Deus” (The New Tower of Babel.
Manifestations of Man’s Escape from
God, 1953); “O coração sagrado. Uma
análise da afetividade humana e
divina (The Sacred Heart. Na analysis of
human and divine affectivity, 1965),
entre outros escritos. Os seus escritos
compõem hoje as obras completas
(Gesammelte Werke) compostas de dez
volumes e escritas em alemão, porém
nessas obras não se encontram todos
os escritos do filósofo, principalmente
os escritos em inglês.
Os últimos anos de sua vida
foram difíceis para sua concepção
filosófica e religiosa, pois teve que
enfrentar o progresso religioso que se
desatou no Concílio Vaticano II.
Acabou falecendo em 1977. Como
208
Prof. Dr. Tommy Akira Goto
Marília Zampieri da Silva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 208
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
afirma Sánchez-Migallón (2003, p. 23)
“é justo dizer que Dietrich von
Hildebrand nunca deixou de ser
filósofo: um filósofo de matriz
fenomenológica,
com
um
compromisso decidido com a verdade
das coisas mesmas e com a uma
atenção preocupada pelos problemas
de seu tempo”.
2.
A
FENOMENOLOGIA
REALISTA DE DIETRICH
VON HILDEBRAND
Como vimos Dietrich von
Hildebrand foi um importante
filósofo que pertenceu ao “Círculo
fenomenológico de Gotinga”, ou seja,
um grupo de filósofos que tinham
como
principal
inspiração
metodológica as Investigações Lógicas
de Edmund Husserl. Esse grupo de
filósofos
produziram
análises
fenomenológicas de cunho realistas
que
foram
denominadas
“fenomenologia
realista”.
Essa
fenomenologia realista tenta ser uma
filosofia da verdade, a partir do
estudo das essências objetivamente
necessárias e de suas conexões a
priori, ou como Spiegelberg (1982)
denominou: uma “filosofia universal
das essências”.
Hildebrand
compreendia
a
Fenomenologia de Husserl e mais
propriamente
o
método
fenomenológico como uma filosofia,
metodologicamente rigorosa, que
voltava sua atenção “às coisas
mesmas” (zu den Sachen selbst!) para
chegar ao essencial (essências),
assimilando aquilo que aparece na
intuição imediata. Para o filósofo de
Munique “toda descoberta filosófica
começa com um genuíno admirar-se e
perguntar-se” (Hildebrand, 1969, p.
70), tal como a máxima husserliana e
só a partir dessa base metódica é
possível desenvolver um pensamento
filosófico rigoroso e sistemático.
Para Hildebrand (2000, p. 213) a
“Fenomenologia” é sinônimo de
“análise intuitiva das essências
genuínas”, é a filosofia que permite
“o verdadeiro contato intuitivo com o
objeto dotado de uma essência
genuína”, ou seja, um autêntico
método filosófico. Ainda, na sua
acepção o que a Fenomenologia
inaugura de novo na filosofia é se
constituir puramente como método,
pois se funda e se legitima
“epistemologicamente mediante a
decisiva distinção entre essências
genuínas
e
meras
unidades
morfológicas” (Hildebrand, 2000, p.
214.)
Assim, Hildebrand passa a
conceber o conhecimento filosófico
fundamentalmente intuitivo, a ponto
de defender a necessidade da intuição
essencial contra as acusações de um
209
Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
suposto idealismo. Na obra “O que é
filosofia?”, Hildebrand afirma que “a
fenomenologia
supõe
plena
receptividade de toda a plenitude
existencial e qualitativa própria do
perfume essencial das entidades
espirituais e culturais” (Hildebrand,
2002, p, 215). Nesse sentido, a filosofia
como fenomenológica é, em verdade,
uma filosofia que mantem um contato
existencial com a realidade; uma
análise das essências genuínas, isto é,
o conhecimento a priori. Com o
método fenomenológico é possível
alcançar genuinamente, após análises
sucessivas, o conhecimento a priori de
essências e fatos essenciais; com esse
método é permitido descobrir a
verdade e a profundidade do objeto.
Como o conhecimento filosóficofenomenológico procede em direção
às essências, Hildebrand passa a
descrever “tipos de essência” no
intuito de delimitar o campo de
objetos presentes no conhecimento.
Com isso, considera os “tipos de
essência” como “tipos de unidade”
que se dão nos seres, intrínseca e
altamente
significativa
de
consistência. Esses são três tipos ou
graus, conforme descreve SánchezMigallón (2002): o primeiro tipo são
as unidades casuais, ou seja, unidades
de um conjunto cujos elementos estão
relacionados apenas de maneira
factual e acidentalmente (como por
exemplo, em uma pilha de tijolos); o
segundo tipo é a unidade de "tipo
real", isto é, formas já intrínsecas,
possuidoras de uma qüididade de
sentido consistente (essências, tais
como água, pedra); podemos dizer
que esse tipo possui uma definição
genuína, porém são completamente
dependentes da experiência do
mundo como ele é – contingente e
factual; por fim, o terceiro tipo, de
grau mais elevado de unidade, são as
unidades essencialmente necessárias.
São essências que nos são dadas de
um pleno, tais como: a essência do ser
humano, triângulo, pessoa ou do
amor e que Hildebrand qualifica
como modos de ser "ideal", ou seja,
que são apenas uma natureza
essencialmente necessária e válida,
independentemente de qualquer
posição e circunstâncias existenciais.
No entanto, mesmo que a
posição realista de Hildebrand,
influenciada por Reinach, concebesse
as
essências
intuídas
como
possuidoras de uma subsistência e
validade próprias e independentes do
sujeito que as conhece (Fidalgo, 2011),
o filósofo também via a necessidade
de descrever as vivências do sujeito
que captavam essas essências. Na
vida da pessoa humana a esfera do
conhecimento possui um papel
essencial, já que conhecer é um
contato intencional com o ser, no qual
a pessoa participa do descobrimento
de
sua
própria
natureza.
O
conhecimento
a
priori
é
o
"conhecimento mais digno" para
210
Prof. Dr. Tommy Akira Goto
Marília Zampieri da Silva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 210
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Hildebrand, tendo três características
principais: sua necessidade intrínseca,
sua inteligibilidade incomparável e
sua certeza absoluta (ROVIRA, 2006).
Assim, sem aceitar a virada
transcendental de Husserl, ou seja, a
consciência transcendental – tal como
fez o grupo de Gotinga a partir da
publicação das “Ideias para uma
fenomenologia pura e uma filosofia
fenomenológica”
–,
Hildebrand
manteve a concepção de vivências
atrelada à ideia de consciência
psicológica
(intencional),
assim
continuou a defender a ideia que o
método fenomenológico permitiria
chegar ao entendimento da estrutura
interativa que liga a natureza
intencional de experiências humanas.
Dessa maneira, Hildebrand passou a
descrever de maneira rigorosa e
profunda a estrutura intencional das
vivências, chegando a oferecer uma
“tipologia de vivências” que permitia
mostrar a complexidade e riqueza da
vida subjetiva.
Em um importante capítulo de
sua obra “Ética”, Hildebrand (1997, p.
190) descreve a vida consciente, ou
seja, a intencionalidade que, em sua
acepção significa: “uma relação
racional e consciente entre pessoa e
objeto”. Segundo o fenomenólogo a
intencionalidade é a estrutura mais
importante da vida consciente do ser
humano e se distinguem em:
vivências "intencionais", que apontam
para algo e têm caráter receptivo, são
conscientes e possuem uma relação
com o objeto; e as vivências "nãointencionais", que necessitam de um
propósito, não mantêm uma relação
consciente e significativa com o
objeto.
Ainda, as vivências “nãointencionais” dividem-se em "meros
estados", tais como: o cansaço, o mau
humor e "tendências teológicas" que
são os fenômenos físicos imanentes
das quais não possuímos consciência,
tais como: instintos e impulsos. Em
contrapartida,
as
vivências
“intencionais” se distinguem em
“vivências
receptivas
ou
atos
cognitivos” e “vivências de resposta”,
uma vez que Hildebrand (1997) faz
uma diferenciação no tipo de
intencionalidade, isto é, na direção
intencional das vivências. Assim,
descreve o filósofo sobre as vivências
receptivas:
Os atos cognitivos se caracterizam,
em primeiro lugar, porque são
consciência de algo, isto é, de um
objeto. São, por assim dizer, vazios;
todo o seu conteúdo reclina do lado
do objeto. [...] os atos cognitivos, a
intenção vai, por assim dizer, do
objeto até a nós; o objeto se
manifesta a nosso espírito, nos fala
e nós escutamos. [...] todos os atos
cognitivos
tem
caráter
211
Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
fundamentalmente receptivo, ainda
que os mesmos não sejam
puramente
passivos.
(HILDEBRAND, 1997, p.195).
Para ilustrar os atos cognitivos,
Hildebrand (1997, p. 195) diz:
“quando vemos uma cor vermelha, o
seu conteúdo está do lado do objeto;
não somos vermelhos, mas temos
consciência do vermelho”. Já nas
vivências de respostas “a intenção vai
de nós até o objeto”, ou seja, nas
“respostas nós somos quem falamos;
o conteúdo de nosso ato se dirige ao
objeto; é a nossa resposta ao objeto”.
Assim, por exemplo, ao sentirmos
alegria o conteúdo está no sujeito,
“não estamos vazios, senão ‘cheios’
de alegria” (HILDEBRAND, 1997, p.
195).
Por
fim,
descrevendo
as
vivências de resposta, o filósofo
distinguirá
as
respostas
entre
“respostas teóricas”, pertencentes à
esfera do conhecimento as “respostas
volitivas” que permitem uma postura
frente ao objeto e as “respostas
afetivas” que qualificam e dão
importância ao objeto. São por essas
respostas e principalmente a afetiva
que Hildebrand postulará a sua ética,
porque segundo ele a ética estará
centrada naquilo que tem a
capacidade de obter uma resposta
afetiva e o que tiver essa capacidade
deve ter o caráter de importância.
“Para que um objeto motive nossa
vontade ou qualquer resposta afetiva,
deve estar dotado de algum tipo de
importância, há de destacar-se da
neutralidade
ou
indiferença”
(Hildebrand, 1997, p. 34).
3. A PESSOA HUMANA E A
AFETIVIDADE
Como vimos e de acordo com
Rovira (2006), a fenomenologia de
Hildebrand "aspira a um contato
genuíno com a realidade" (p. 163),
não se reduzindo a simples
fenômenos,
visto
que
toda
investigação filosófica de Hildebrand
é fundamentada pela experiência
humana. O modo de ser de diversos
grupos de objetos é mostrado por
meio de dados da experiência, assim é
fundamental analisar os diversos
fenômenos da vida consciente do ser
humano para conhecer sua essência.
Isso porque, segundo Hildebrand
(1997), a pessoa humana ocupa no
universo um lugar privilegiado, visto
que em virtude das estruturas
objetivas da realidade e da vocação
pela verdade sua dignidade é
mantida.
A análise fenomenológica da
pessoa humana em Hildebrand, tal
como apresenta Rovira (2006) é
dupla: de um lado temos um "mundo
para si", em que a especificidade da
pessoa é apontada frente a outros
seres que se dão na experiência; e de
outro lado, temos a pessoa como um
212
Prof. Dr. Tommy Akira Goto
Marília Zampieri da Silva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 212
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
ser espiritual devido os seus atos e
vivencias. Ainda, segundo essa
análise dois tipos de seres são
revelados
na
experiência:
as
substâncias, que existem e subsistem
por si próprios; e os acidentes, que
para
existirem
precisam
da
substância. Cada ser possui o caráter
substancial realizado de terminado
modo, assim, por exemplo, na matéria
inanimada a substancialidade se
manifesta em uma individualidade
fraca, enquanto nos seres vivos temos
uma individualidade mais completa.
Entretanto, é na pessoa humana que a
individualidade
alcança
sua
expressão máxima, visto que ela se
torna consciente dos atos cognitivos,
afetivos e vontades e sua significativa
relação com o mundo.
Como temos visto os estudos
das vivências, conforme descreve
Hildebrand (2005), apontam que a
pessoa humana é um ser espiritual e
que o ser humano possui três
estruturas intencionais, quais sejam: o
entendimento, a vontade e afetiva.
Essas três estruturas da pessoa
humana são, em verdade, a estrutura
ontológica do ser humano e cada uma
delas compõem “centros operativos”
de vivências.
Apesar das três estruturas –
entendimento, a vontade e a
afetividade – comporem à sua
maneira a subjetividade humana,
para Hildebrand (2005), a afetividade
é a que melhor expressa a vida
interior humana, isso porque por
meio da afetividade é possível dizer
que vivemos algo. Ainda, Hildebrand
diz que apesar das vivências afetivas
terem algo em comum com as
vivências volitivas e se distinguirem
das cognitivas, são também vivências
à parte porque: a) o seu objeto pode
ser real, ou seja, a resposta afetiva se
dirige a algo real e não possível
(quando nos alegramos de algo que
existe); b) as respostas afetivas se dão
plenamente e; c) as respostas afetivas
não são livres de modo pleno e direto
(Sánchez-Migallón, 2002).
Segundo Hildebrand (2005), o
estudo das respostas afetivas é
necessário para compreender a
essência da pessoa, mesmo que a
afetividade tenha sido atribuída por
um caráter irracional. Para o filósofo
isso acontece por três razões: por
reduzir sua parte inferior sem levar
em consideração sua necessidade no
âmbito espiritual (isso acontece nas
ciências psicológicas ao reduzirem a
afetividade aos sentimentos ou
paixões); estudam os afetos separados
dos objetos que o motivam; e pela
falta de crédito da afetividade como
algo autêntico do ser humano
(ROVIRA, 2006).
Hildebrand
(2005)
também
afirma que a afetividade não se reduz
213
Afetividade e Pessoa na Fenomenologia de Dietrich Von Hildebrand
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
às suas formas não espirituais (formas
inferiores de afetos, tais como: as
sensações corporais, sentimentos
psíquicos, as paixões ou sentimentos
poéticos), mas que também tende a
ser um “sentimento espiritual”, no
qual se manifestam de modo pleno as
chamadas "respostas afetivas”. O
amor, por exemplo, ocupa um lugar
central dentro das respostas afetivas,
visto que é uma resposta ao valor da
pessoa em sua integridade. “Assim
como se tornou claro que a
afetividade e a espiritualidade não se
excluem, fica livre o caminho para a
verdadeira essência do amor”
(HILDEBRAND, 2016, p. xx).
Apesar de não abordarmos aqui
toda a complexa descrição que
Hildebrand faz das “respostas
afetivas”, reforçamos que essas
respostas possuem um caráter ativo
no ser humano e que expressam sua
tomada de decisão em relação aos
acontecimentos mundanos, a partir
da forma como se responde
afetivamente a isso. São vivências
afetivas que o ser humano dirige
desde o “coração”, como denominou
Hildebrand (2005) até o valor que
possuem tais acontecimentos. Isso
porque “se uma pessoa que não foi
capaz de captar os valores e
compreendê-los como tal, não seria
uma pessoa real. Sem o valor de
aquisição seria diálogo íntimo
impossível entre sujeito e objeto, e
não haveria pleno significado do
conhecimento”.
REFERÊNCIAS
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Madrid: Biblioteca Palabra, 2012.
FERRER, U. ¿Qué significa ser persona?
Madrid: Biblioteca Palabra, 2002.
HILDEBRAND, A. von. Alma de léon.
Biografia de Dietrich von Hildebrand.
Madrid: Biblioteca Palabra, 2002.
HILDEBRAND, D. von. Ética. Madrid:
Ediciones Encuentro, 1997.
HILDEBRAND, D. von. El caballo de Troya
em la Ciudad de Dios. Madrid: Ediciones
Fax, 1967.
HILDEBRAND, D. von. El corazón. Um
analisis de la afectividad humana y divina.
Madrid: Ediciones Encuentro, 2005. EBook. ISBN: 9788490558096.
HILDEBRAND, D. von. Las formas
espirituales de la afectividad. Madrid:
Ediciones Encuentro, 2016.
HILDEBRAND, D. von. ¿Que és filosofia?
Madrid: Ediciones Encuentro, 2000.
SÁNCHEZ-MIGALLÓN, S. El personalismo
ético de Ditrich von Hildebrand. Madrid:
Ediciones Rialp, 2003.
SPIEGELBERG, H. The Phenomenological
Movement: a historical introduction.
Boston: Martinus Nihjhoff, 1982.
STEIN, E. Vida de una Familia Judía. Em:
Stein, E. Obras completas: Escritos
autobiográficos y cartas. Vol. I. Burgos:
Editorial Monte Carmelo, 2002.
ROVIRA, R. Los tres centros espirituales de
la persona. Introducción a la filosofía de
Dietrich
von
Hildebrand.
Madrid:
Fundación Emmanuel Mounier, 2006.
Submetido: 22 de julho 2017
Aceito: 31 de julho 2017
214
Prof. Dr. Tommy Akira Goto
Marília Zampieri da Silva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 214
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia
Engagement and chattering: from social networks to
philosophy
Prof. Dr. Ericson Falabretti210
Pontifícia Universidade Católica do PR
RESUMO
Nesse trabalho discuto duas perspectivas sobre política e engajamento. Para descrever a primeira
forma de engajamento, muito comum nas redes sociais, faço uso do termo heideggeriano
falatório. Esse tipo de engajamento se caracteriza pela reprodução do mesmo e pela negação da
diferença. Já a segunda noção de engajamento, pensada a partir das obras de Sartre e MerleauPonty, em clara oposição ao falatório, remete a um exame de três características fundamentais do
engajamento intelectual: práxis, compromisso, responsabilidade.
PALAVRAS CHAVE
Engajamento; falatório; redes sociais; liberdade; compromisso.
ABSTRACT
In this paper I discuss two perspectives on politics and engagement. To describe the first form
of engagement, very usual in social networks, I use the heideggerian term chatter. This kind of
engagement is characterized by its reproduction and by the denial of difference. A second
notion of engagement, thought from the works of Sartre and Merleau-Ponty, in clear
opposition to the chattering, refers to an examination of three fundamental characteristics of
intellectual engagement: praxis, commitment, responsibility.
KEYWORDS
Engagement;
210
chatter;
social
networks;
freedom;
commitment.
E-mail: efalabretti@gmail.com
215
Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
INTRODUÇÃO
A internet propiciou uma forma de
comunicação
que
modificou
completamente o modo como
estávamos acostumados a receber,
interpretar
e
transmitir
informações, ideias e crenças. Com
o nascimento das redes sociais, o
privilégio da análise e do comércio
das ideologias, da interpretação das
informações e da intervenção
“intelectual” foi universalizado,
isto
é,
está
disponível
a
praticamente todas as pessoas
conectadas.
Desse
modo,
intolerantes,
fundamentalistas,
homofóbicos, racistas, católicos,
evangélicos,
feministas,
anarquistas, liberais, comunistas e
filósofos – analíticos e ou
continentais – etc descobriram que
são muitos e, o mais importante,
que suas ideias são acolhidas,
“curtidas e compartilhadas” por
incontáveis pessoas. Desse modo,
uma certa analítica dos fatos –
agora dilatada e isenta de
parâmetros acadêmicos e editoriais
– deixou de ser uma ocupação
circunscrita
ao
intelectual
tradicional, seja ele um teórico da
universidade, um cientista, um
escritor independente ou, ainda,
um jornalista. Todavia, essa
democratização
da
analítica,
destruiu a nossa crença ingênua de
que quando tivéssemos acesso um
meio de comunicação universal
adentraríamos num espaço virtual
democrático aberto à diferença e à
pluralidade. De fato, as diferenças
estão presentes nesse mercado de
análise cotidiana, porém, quase
sempre voltadas para a anulação do
outro. Esse alargamento indistinto
do ato de interpretar, propor e
propagar ideologias – separado da
escuta e da leitura crítica – deixou
mais aparente os matizes da nossa
diversidade moral e política e, em
muitos casos, deu publicidade a
ideias, sentimentos e intenções que
jamais deveriam sair das nossas
mentes sombrias. Vivemos, sem
dúvida alguma, em uma época
alargada de razão e desrazão ou,
ainda, na era da (des) razão largada.
Além do mais, independentemente
da
complexidade
dos
fatos,
podemos
expressar
a
nossa
aquiescência
ou
discordância
recorrendo tão somente a sinais do
tipo gutural: curtir, amar, haha, uau,
triste, grr etc. Desse modo, é
preciso, também, prestar atenção as
trocas discursivas que renunciaram
à dialética. O discurso, nesse
comércio barato de sinais, vela a
própria linguagem. Assim, essa
analítica alargada dos fatos fez
nascer o interprete à distância, uma
espécie de intelectual amador que
faz um tipo de filosofia, sociologia e
política sem corpo, sem presença e
216
Prof. Dr. Ericson Falabretti
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 216
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
quase sem linguagem.
Desse
modo, o prejuízo mais evidente é
que para esse novo tipo de
“intelectual” (a) largado nunca foi
tão fácil expressar e propagar a sua
repulsa
ao
diferente
e,
contrariamente, o seu assentimento
ao mesmo, e essa parece ser a lógica
desse tempo de falatório virtual:
fechamento sobre o mesmo. Em
uma apropriação completamente
livre do texto de Heidegger, similar
à critica da analítica dos nossos
tempos, podemos dizer que
compartilhamos e vivemos como
nunca,
aquela
a
existência
inautêntica descrita em Ser e Tempo,
a prática do falatório, os dizeres
dispersos e descompromissados:
O falatório não tem o modo de
ser
que
apresenta
conscientemente algo como algo.
Porque o que e sem solo ou
fundamento já lhe basta para
transformar a abertura em
fechamento. Pois o que foi dito ja
sempre foi compreendido como
algo ‘que diz’, ou seja, que
descobre. O falatório e, pois, por
si mesmo, um fechamento,
devido a sua própria abstenção
de retornar a base e ao
fundamento
do
referencial
(HEIDEGGER, 2002, p. 229).
A marca do “falador” na
internet parece ser essa; troca e
reprodução do mesmo discurso
sempre com o mesmo grupo de
pessoas; o “modo de ser do
discurso do cotidiano”; o repetir e
passar
adiante
uma
causa,
independentemente, em muitos
casos, se ela fomenta violência e
práticas de humilhação. E essa é a
maior consequência do fechamento,
o “falador” é, na maior parte das
vezes, insensível à violência. Isso é
evidente quando, por exemplo, o
falatório faz da violência verbal um
meio para atingir os seus fins, seja
através de práticas de bullying
virtual (cyberbullying) ou, mesmo,
compartilhando discursos de ódio
para justificar a apologia, entre
outras coisas, da posse de armas, da
pena de morte ou, ainda, de
políticas discriminatórias contra
vítimas históricas e sistêmicas:
gays, mulheres, índios, imigrantes e
outras.
Entretanto, a era do falatório,
democratizou a escrita e o
engajamento ao universalizar uma
economia de baixo custo para
propagação de ideias. Nesse
sentido, podemos dizer, num uso
semântico muito lato do termo
intelectual, atualmente não operaria
mais
a
distinção
binária
gramsciniana entre o intelectual
orgânico 211 e o tradicional, mas a
Todo grupo social, nascendo no
terreno originário de uma função
essencial no mundo da produção
econômica, cria para si, ao mesmo
tempo, organicamente, uma ou mais
camadas de intelectuais que lhe dão
homogeneidade e consciência da
217
211
Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
quase indistinção absoluta entre o
intelectual e o não intelectual, entre
o escritor e o falador, chegando a
ponto de não mais podermos nos
opor com clareza à célebre
afirmação de Gramsci: “....todos os
homens são intelectuais, mas nem
todos os homens têm na sociedade
a
função
de
intelectual”
(GRAMSCI, 2006, p. 18). O espectro
da função foi, conforme já
dissemos,
definitivamente,
ampliado, alargado. Mas qual seria
essa função? O que é engajamento?
As categorias da velha filosofia
ainda
podem
explicar
esse
fenômeno? Podemos, a partir da
filosofia, pensar em uma ética para
o sujeito engajado nas redes
sociais?
própria função, não apenas no campo
econômico, mas também no social e
político: o empresário capitalista cria
consigo o técnico da indústria, o
cientista da economia política, o
organizador de uma nova cultura, de
um novo direito, etc., etc. (...) Pode-se
observar
que
os
intelectuais
‘orgânicos’ que cada nova classe cria
consigo
e
elabora
em
seu
desenvolvimento progressivo são, na
maioria dos casos, ‘especializações’
de aspectos parciais da atividade
primitiva do tipo social novo que a
nova classe deu à luz. GRAMSCI.
Cadernos do Cárcere. Vol. 2. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006,
pp. 15-16
Na recente História da
Filosofia, Sartre, sem dúvida
alguma, merece o simbólico título
de intelectual engajado do século
XX. Exageros à parte – não
podemos jamais esquecer de
Gramsci, Edmund Russell, Foucault
entre outros – Sartre parece ter
fixado o estilo e a função do
intelectual
engajado:
um
comentador
de
atualidades
comprometido com o seu tempo,
armado de conceitos e de um
profundo senso histórico, alguém
sempre disposto a se arriscar e
“sujar as mãos”. Além do mais,
juntamente
com
Simone
de
Beauvoir e Merleau-Ponty, Sartre
elegeu o tema do engajamento
como um tópico fundamental da
filosofia existencialista francesa.
Todavia, a primeira consideração
a ser feita se refere que em Sartre e
em Merleau-Ponty não estamos
diante de uma noção única de
engajamento, sobretudo, quando
pensamos nas relações entre
filosofia
e
política,
fundamentalmente, como parece e
deve se realizar este tipo de
engajamento político do filósofo212.
Para compreender e explorar com
mais acuidade a relação entre Sartre
e Merleau-Ponty, o fim da amizade
entre ambos e o problema do
engajamento, o leitor poderá
consultar em português, além de
218
212
Prof. Dr. Ericson Falabretti
Toledo, n˚1, v. 2 (2017)
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Se isso separa Sartre de MerleauPonty, como veremos ainda, o que
os aproxima, como toda a tradição
existencialista, parece ser o fato de
ambos assentar a noção de
engajamento na consideração da
condição existencial do homem. O
que a filosofia existencialista
estabelece
é
que
não
há
engajamento sem liberdade, ou
independente da condição fáctica
do homem. Num primeiro olhar,
essa ligação parece paradoxal. Pois
sou livre, na visão comum do tema,
justamente na medida em que não
estou ligado, não estou preso, não
estou amarrado ou, ainda, não
estou engajado. No entanto, o
paradoxo no viés existencialfenomenológico é apenas aparente.
O engajamento só é possível
porque, em última análise, sou livre
para escolher fazer ou não parte,
por exemplo, de um projeto
político. Como também, vivo
boas teses e dissertações sobre esse
tema, vários artigos, tais como: 1)
CAPALBO, Creusa. Maurice MerleauPonty e o conceito de política. In:
Revista Estudos Filosóficos, Pág. 55 –
62, nº 13/2014, São João del-Rei-MG.
Acesso:
http://www.ufsj.edu.br/revistaestud
osfilosoficos; 2) CHAUÍ, Marilena.
Intelectual engajado: uma figura em
extinção? In: NOVAES, Adauto (Org.).
O silêncio dos intelectuais. São Paulo:
Cia das Letras, 2006.
plenamente a minha liberdade
somente na media em estou
engajado,
por
exemplo,
na
realização de um projeto. A relação
é circular, girando sempre em torno
dessa noção capital de projeto, um
fim que orientamos a nossa
existência. Desse modo, conforme a
onto-antropologia
sartriana,
existimos,
indissociavelmente,
como liberdade e engajamento.
Cabe então, rapidamente, discutir
as implicações políticas e éticas a
partir de uma breve análise da
condição desse sujeito livre e
engajado, conforme estabeleceram
Merleau-Ponty e Sartre.
Influenciado por Husserl e
Heidegger a tese central dos
primeiros escritos de Sartre reside
na distinção entre o Ser – mundo
das coisas – e o Nada – a
consciência. O Ser, de modo geral, é
objetivo, é substância, são as coisas,
o em-si. O nada não é natureza, não
tem substância, não é alma, é
subjetividade pura, é o para-si. Na
segunda parte de O ser e o nada,
Sartre demarca a estrutura do parasi, mostrando que entre a
consciência e as coisas não há mais
integração
e
a
consciência,
enquanto potência de se relativizar
diante das coisas, é sempre um
nada diante de um ser:
A característica da consciência,
ao contrário, é que ela é uma
descompressão
do
ser.
É
impossível, em efeito, de defini-
219
Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
la como coincidência consigo
mesa. Dessa mesa, eu posso
dizer que ela é puramente e
simplesmente essa mesa. Mas da
minha crença, eu posso somente
me limitar a dizer que ela é
crença:
minha
crença
é
consciência
(de)
crença.
(SARTRE, 1997, p. 110).
Ao contrapor a subjetividade
(para-si) ao ser (em-si), Sartre
reencontra o ser bruto do irrefletido
e, de certo modo, reconhece o
sentido do próprio mundo que
havia sido recusado pelo idealismo
transcendental.
Pois
se
a
consciência é nada, ela existe e vive
em ek-stase nas coisas. Nesse caso,
não existe diferença em não ser
nada e estar no mundo.
A analítica da facticidade em
Sartre,
revela
dois
sentidos
indissociáveis do para-si. Primeiro,
a
presença
no
mundo
da
consciência como um fato, como
algo que escapa à própria
liberdade, pois não sou livre de não
estar no mundo. Nesse sentido, a
facticidade é a condição bruta do
existir, pois a consciência surge e
existe em um solo que independe
da sua liberdade e das suas
escolhas. O para-si é sustentado por
uma contingência, uma situação
concreta que ele assume sem jamais
poder suprimi-la. É um fato que o
para-si está no mundo, dirige-se às
coisas e é nada. Portanto, a
facticidade releva-se numa dupla
implicação – estamos no mundo
sem justificativas e, por outro lado,
somos e estamos indubitavelmente
ligados a esse mundo:
Sem a facticidade a consciência
poderia escolher seus laços com
o mundo, do mesmo modo que
as
almas,
na
República,
escolheriam a sua condição: eu
poderia me determinar a nascer
trabalhador ou a nascer burguês.
Todavia, por outro lado, a
facticidade
não
pode
me
constituir como sendo burguês
ou sendo trabalhador. Ela mesma
não é, propriamente falando,
uma resistência de fato, uma vez
que
retomando-a
na
infraestrutura do cogito préreflexivo eu conferiria seu
sentido e a sua resistência.
(SARTRE, 1997, p. 119).
O que caracteriza a facticidade
– a própria realidade humana – é
essa falta ontológica de um lado e,
por outro, essa plenitude de ser.
Para Sartre, como já comentamos
acima, o para-si vive em um
perpétuo ek-stase, na medida que é
em si mesmo um nada orientado
para o ser. Purificado de toda
eiccedade, vazio e sem plenitude,
pois só as coisas são plenas, o parasi é pura negatividade. Por isso
mesmo, o ek-stase é um movimento
de uma só direção, uma fuga para
220
Prof. Dr. Ericson Falabretti
Toledo, n˚1, v. 2 (2017)
Aoristo)))))
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fora de si mesmo que dá acesso ao
mundo e às coisas.
A existência do para-si, indica
Sartre, coincide com a sua condição,
com a sua facticidade, com sua
encarnação e com a sua liberdade.
A facticidade, complementa Sartre,
“(...) não é, senão, uma indicação
que eu me dou a mim mesmo de
ser que eu devo alcançar para ser
aquilo que eu sou” (1997, p. 119). Assim,
a liberdade sartriana somente se
realiza no mundo, ela é escolha de
si mesmo no meio do mundo, pois
ela parte da condição fáctica do
para-si.
Para
Sartre,
resumidamente,
estamos
comprometidos,
engajados
no
mundo, no tempo e na história.
Mas nem todos os homens, diz
Sartre, em uma tese próxima a de
Merleau-Ponty em A dúvida de
Cézanne, sobre a diferença que pesa
sobre o engajamento do pintor e do
escritor, estão comprometidos do
mesmo modo. O engajamento do
intelectual
é
uma
“função”
específica de sua condição de ser
aquele que se comunica com os
outros, aquele que se engaja não
somente no mundo, mas na relação
e na libertação dos outros homens.
Já o pintor, comenta Merleau-Ponty
sobre Cézanne, não tem obrigação
de sustentar uma tese, ele é livre
para se expressar a partir da sua
visão de mundo, para empregar os
seus traços e as suas cores. Uma
pintura, a princípio, não tem uma
dimensão axiológica, como não tem
um dever de verdade.
Como é óbvio que a obra de
Merleau-Ponty
se
encontra
implicada às principais teses da
filosofia de Husserl e Sartre,
também é evidente que há um
desvio entre as duas filosofias.
Como Husserl, a filosofia de
Merleau-Ponty também expressou
um retorno “as coisas mesmas”,
porém nesse caso um retorno ao
irrefletido, ao primeiro contato que
temos com as coisas. Longe da
consideração filosófica racionalista
sobre o mundo exterior, bem como
da perspectiva negativa da escola
empirista sobre a noção de
consciência interior, a filosofa
merleau-pontyana
se
mostra
singular não apenas diante de
Husserl, mas perante toda a
tradição da filosofia. O lugar do
corpo no sistema, o privilégio da
percepção diante da atividade
intelectual e reflexiva não nos
permite apenas entender como são,
ao mesmo tempo, distantes e
próximas
a
fenomenologia
transcendental de Husserl e a
fenomenologia
existencial
de
Merleau-Ponty.
Fomentar
um
pensamento, um método, uma
filosofia que dê conta da existência
integral do homem no mundo
parece ser a marca da filosofia de
Merleau-Ponty. Filosofia que não é
nova especificamente por esse
motivo. Pois a condição existencial
221
Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
fáctica e livre do homem, de
Kierkegaard a Sartre, constituiu a
razão fundadora da filosofia
existencialista. O que é novo em
Merleau-Ponty é o movimento do
pensamento, é a inquietação que
coloca em questão aquilo que
antecede, sustenta e é inatingível
pela racionalidade objetiva. Essa
nova filosofia trabalha, antes de
tudo, a partir da condição
primordial e universal do homem,
sobre o ser bruto, não como um
artesão para lapidá-lo. Pois não é
preciso descortinar, separar ou
descontruir para descobri-lo. Pois o
homem não se esconde atrás de
uma ideia, de um conceito, ele se
mostra no contato direto, na visão
do seu corpo, nas suas escolhas e na
consideração da sua condição
fáctica que nos é constantemente
dada na experiência perceptiva.
Logo nas primeiras linhas do
prefácio da Fenomenologia da
percepção, Merleau-Ponty já nos
alerta sobre essa condição carnal e
existencial do homem no mundo:
A fenomenologia é o estudo das
essências, e todos os problemas,
segundo ela resumem-se em
definir essências: a essência da
percepção,
a
essência
da
consciência, por exemplo. Mas a
fenomenologia é também uma
filosofia que repõe as essências
na existência, e não pensa que se
possa compreender o homem de
outra maneira senão a partir da
facticidade. (MERLEAU-PONTY,
1999, p. 1).
Merleau-Ponty privilegiou o
corpo como o verdadeiro núcleo da
existência. O corpo é o modo de ser
do homem no mundo. Como corpo
não estamos fechados em nós
mesmos, pois o nosso corpo não se
restringe ao alcance dos nossos
membros, ou mesmo as reações
reflexas interiores. Corpo é a forma
carnal da nossa subjetividade, é o
que nos delimita como ser e nos
abre para o mundo; como centro da
nossa experiência perceptiva nos
faz viver e ser-no-mundo. Temos
uma ligação carnal com o mundo e,
por isso mesmo, não há uma
filosofia pura, ou mesmo, uma
subjetividade capaz de ser e existir
independentemente dessa presença
corporal no mundo. Portanto, na
filosofia existencial de MerleauPonty, não encontramos a oposição
do em-si e do para-si do mesmo
modo como promovia Sartre ou,
ainda, um cogito como puro
pensamento, como podemos ler na
filosofia de Descartes. A existência
para Merleau-Ponty não separa o
homem no mundo do homem para
o mundo, mas se situa entre esses
dois últimos, ou seja, na articulação
entre um e outro, pois estamos, ao
mesmo tempo, no mundo e
existimos para o mundo. Noções
222
Prof. Dr. Ericson Falabretti
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 222
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
existencialistas como coisa, mundo,
consciência, facticidade e liberdade
adquiriram com Merleau-Ponty
uma nova significação, a do corpo.
O nosso século, diz
MerleauPonty, apagou a linha divisória
entre o corpo e o espírito e vê a
vida humana como espiritual e
corporal de parte a parte, sempre
apoiada
no
corpo,
sempre
interessada, até nas maneiras mais
carnais, nas relações das pessoas. A
facticidade, a nossa existência
ancorada no mundo como puro
fato, pois estamos no mundo como
o nosso coração está em nosso
corpo, como estabelece MerleauPonty na Fenomenologia da Percepção,
é uma condição pela qual o homem
se encontra previamente lançado
entre as coisas, em situações dadas
e não escolhidas. Se para Sartre a
facticidade, as coisas que estão aí e
todas as determinações são um
entrave à liberdade do homem,
para
Merleau-Ponty
não
há
exterioridade ou olhar estrangeiro
ameaçador,
os
obstáculos
constituem, antes de tudo, uma
motivação 213 para as nossas
Não vou aqui discutir esse
importante conceito que MerleauPonty retoma de Husserl. Todavia, na
Fenomenologia da Percepção, ainda
na primeira parte, a motivação é o
sentido prévio alcançado pela
percepção que envolve e liga os
fenômenos, uma ligação que não
pode ser reduzida às noções de
213
escolhas. O que Sartre entendeu
como obstáculo à liberdade, a
situação, o estar no mundo a partir
de condições pré-determinadas –
históricas e naturais – MerleauPonty interpreta como a motivação
primordial e radical que nos
conduz a fazer escolhas livres.
Sartre, conforme o texto abaixo,
argumenta que o sentido técnico da
liberdade é a autonomia de escolha.
Merleau-Ponty, de certa forma, não
nega essa autonomia, mas não a
admite de modo incondicional
como estabelece Sartre:
É necessário [...] sublinhar com
clareza, contra o senso comum,
que a fórmula “ser livre” não
significa “obter o que se quis”,
mas sim “determinar-se por si
mesmo o querer (no sentido lato
de escolher)”. Em outros termos,
causalidade:
“Um
fenômeno
desencadeia um outro não por uma
eficácia objetiva, como a que une os
acontecimentos da natureza, mas
pelo sentido que ele oferece — há
uma razão de ser que orienta o fluxo
dos
fenômenos
sem
estar
explicitamente posta em nenhum
deles, um tipo de razão operante.
(MERLEAU-PONTY, p. 81, 1999). No
capítulo sobre a liberdade essa
mesma relação é aprofundada. A
motivação não é causa das minhas
escolhas, mas são as minhas escolhas
que conferem à motivação sentido,
nas palavras de Merleau-Ponty,
conferem força.
223
Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
o êxito não importa em absoluto
à liberdade. A discussão que
opõe o senso comum aos
filósofos provém de um malentendido: o conceito empírico e
popular de “liberdade”, produto
de
circunstâncias
históricas
políticas e morais, equivale à
“faculdade de obter os fins
escolhidos”. O conceito técnico e
filosófico de liberdade, o único
que consideramos aqui, significa
somente: autonomia de escolha.
(SARTRE, 1997, p. 595).
Ao contrário de Sartre que
considerava a liberdade como
poder
absoluto
de
escolha,
Merleau-Ponty entende que não há
liberdade senão a partir do nosso
engajamento
existencial
e
primordial, da nossa presença
corporal no mundo. Assim, para
Merleau-Ponty
não
experimentamos
jamais
o
“determinar-se por si mesmo o
querer” em sentido pleno e
absoluto, essa perspectiva sartriana
lega à liberdade dois prejuízos:
tautologia e esterilidade. Em Sartre
a liberdade se realizaria tão
somente a partir de escolhas que
tem como significação fundamental
apenas o próprio ato de escolher,
não importando se esse ato cria ou
não,
modifica
ou
não
absolutamente nada.
Em Merleau-Ponty sempre
escolhemos a partir de um lugar,
contamos com um passado e um
futuro que não nos deixa, pois
conforme
a
sua
teoria
da
temporalidade, presente, passado e
futuro são modalidades – vagas
temporais – de um mesmo
momento,
de
uma
única
temporalidade. Ainda que essas
condições – o espaço, o tempo, a
história, a natureza – não
condicionem absolutamente as
nossas escolhas, elas permanecem
como um fundo – um sedimento –
que nos envolve e fala à vontade e
ao querer. Mesmo não se impondo
como regra ou determinações
absolutas, é, também, a partir desse
sedimento que nos motivamos a
escolher: “Não há determinismo ou
escolha absoluta: jamais sou coisa,
jamais sou consciência nua”.
(MERLEAU-PONTY, 1991, p. 608).
Desse modo, a filosofia merleaupontyana entende a facticidade e a
finitude não como obstáculos à
nossa liberdade, mas como a sua
própria possibilidade. Pois a
liberdade, como podemos ler no
último capítulo da Fenomenologia da
percepção, está ancorada nesse
fundo sedimentado e inacabado –
natural e histórico – que nos
solicita, esperando de nós, das
nossas escolhas, o seu acabamento:
224
Prof. Dr. Ericson Falabretti
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 224
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Na
realidade,
o
projeto
intelectual e a posição dos fins
são o acabamento de um projeto
existencial. Sou eu que dou um
sentido e um porvir à minha
vida, mas isso não quer dizer que
esse sentido e esse porvir sejam
concebidos, eles brotam de meu
presente e de meu passado e, em
particular, de meu modo de
coexistência presente e passado.
(MERLEAU-PONTY, 1999, p.
599).
Para Merleau-Ponty, assim
como para Sartre, um projeto
existencial, portanto, não se esgota
na consciência de um engajamento
intelectual, pois a nossa existência
se realiza na ação (ética e política),
na escolha livre de um fim. É
justamente o engajamento concreto
– a tomada de posição, a
deliberação de correr o risco de
“sujar as mãos” – que nos permite
escapar
aos
prejuízos
da
esterilidade e da tautologia: da
escolha pela escolha, da fala pela
fala, da escrita pela escrita.
Entretanto, de fato, como se realiza
o engajamento concreto? Não há,
certamente, uma fórmula universal
sobre como devemos “sujar as
mãos”, mas podemos pensar o
engajamento a partir de três
condicionantes filosóficos, todos, de
alguma
maneira,
enunciados,
sobretudo, pela filosofia sartriana.
Antes de tudo, o engajamento
se revela como responsabilidade.
Termo e condição muito cara ao
existencialismo. O engajamento
como responsabilidade retoma a
ideia de um pensamento que
assume as consequências políticas e
éticas que ele implica ao ser
elaborado, ao ser enunciado ao ser
escolhido. Na visão sartriana de
responsabilidade, não há escolha
ou ação isolada em si mesmo.
Como estamos comprometidos com
o
outro,
também
somos
responsáveis pelo outro. Como não
me ocupo apenas de mim, também
sou responsável por todos e, do
mesmo modo, se me recuso a não
me ocupar do outro também não
deixo de ser responsável. Pois não
há escolha sem responsabilidade.
Desse modo, a responsabilidade é
uma modalidade inerente a todas
as
nossas
escolhas:
“A
consequência essencial de nossas
observações anteriores é a de que o
homem, estando condenado a ser
livre, carrega nos ombros o peso do
mundo inteiro: é responsável pelo
mundo e por si mesmo enquanto
maneira de ser”. (SARTRE, 1997, p.
678).
A
segunda
característica
intrínseca à noção de engajamento
se relaciona a inevitabilidade da
ação do homem no mundo. De
certo modo, podemos ler aqui uma
resposta de Sartre às criticas de
Merleau-Ponty acerca da sua
225
Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
concepção de liberdade. Falamos
agora de engajamento como práxis.
O engajamento sem práxis é uma
escolha que não almeja nenhum
fim, ou, de modo evidente, uma
fala sem voz, um discurso sem
ideias, simplesmente um falatório
estéril. A práxis enquanto ação
humana, como podemos ler na
Crítica da razão dialética, mantém
uma relação com a realidade e os
fins humanos mediada por três
momentos
indissociáveis:
i)
negação parcial de uma situação
concreta com vistas a atingir um
fim não existente ainda; ii)
revelação das formas para atingir
esse fim; iii) invenção das
possibilidades do agir. Na práxis
não negamos absolutamente o
sedimento ontológico da nossa
situação prévia, seja ele histórico ou
natural. Muito pelo contrário,
somos motivados por esse mesmo
sedimento
a
inventar
as
possibilidades para atingir os fins
que escolhemos. Para Sartre, a
práxis é a condição fáctica e
existencial que dispomos para
projetar fins e transformar a
realidade a partir de uma reflexão
prática acerca das nossas próprias
possibilidades. A práxis é o
exercício concreto e visível da
liberdade
orientado
para
estabelecer as possibilidades de um
projeto
existencial.
As
possibilidades são, segundo Sartre,
“inventadas” e redescobertas a
partir de um projeto prático, da
ação que propõe algo a partir de
uma realidade dada, e só a partir
dessa invenção que podemos falar
em possibilidade, já que só existe
possibilidade em relação a um
projeto a ser alcançado. A práxis,
estabelece Merleau-Ponty, em As
aventuras da dialética, “é
a
vertiginosa liberdade, o poder
mágico que temos de fazer e de
fazer nós mesmo qualquer coisa
(MERLEAU-PONTY, 2006, p. 170).
A práxis, de uma certa
maneira, evidencia a condição e o
compromisso inerentes à atividade
técnica do intelectual. No texto em
Defesa dos intelectuais, Sartre retoma
a condição ambígua do intelectual,
o conflito interno e incontornável
que parece condenar o intelectual a
um jogo de forças. O intelectual
visa, e isso é incontornável, um
saber universal como, também,
produz, quase sempre, um saber
particular voltado a atender
interesses de classes. Se defronta, e
isso é inevitável, com a tensão
nauseante
que
opõe
as
necessidades históricas – o fim
último, o compromisso –
às
contingências cotidianas, o fim
imediato. Voltaire, Vitor Hugo e
Zola, entre outros, são exemplos de
intelectuais que reconheceram essa
incontornável ambiguidade e, por
isso
mesmo,
assumiram
o
226
Prof. Dr. Ericson Falabretti
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 226
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
compromisso de colocar a sua pena
a serviço de causas sociais e
políticas que estavam acima dos
seus interesses privados. Desse
modo, o engajamento intelectual –
o de boa fé nos termos de Sartre – é,
do começo ao fim, revestido de um
compromisso político fundado na
motivação que fazemos parte de
um projeto coletivo. Ou melhor,
que o nosso projeto é também o
projeto de todos, sobretudo porque
reconhecemos
que
não
nos
ocupamos somente de nós mesmos,
mas nos encontramos engajados,
ligados ao outro. A nossa condição
existencial pressupõe essa ligação.
Nas palavras de Merleau-Ponty, é
meu “envolvimento universal” com
o mundo, com as coisas que não
posso recusar. O compromisso
ontológico
deveria,
inevitavelmente, se converter em
um engajamento ético e político,
isto é, em um engajamento que se
realiza concretamente e livremente
quando
assumimos
o
nosso
envolvimento universal:
Em lugar de pensar em minha
dor, olho minhas unhas, ou
almoço, ou me ocupo de política.
Longe de que minha liberdade
seja sempre solitária, ela nunca
está sem cúmplice, e seu poder
de arrancamento perpétuo se
apoia em meu envolvimento
universal no mundo. Minha
liberdade efetiva não está aquém
de meu ser, mas diante de mim,
nas coisas. Não se deve dizer que
eu me escolho continuamente,
sob
pretexto
de
que
continuamente
eu
poderia
recusar aquilo que sou. Não
recusar não é escolher. Só
poderíamos identificar permitir e
fazer subtraindo ao implícito
qualquer valor fenomenal e a
cada instante desdobrando o
mundo diante de nós em uma
transparência
perfeita,
quer
dizer,
destruindo
a
"mundanidade"
do
mundo.
(MERLEAU-PONTY, 1999, p.
607).
Todavia, é preciso escolher
por esse compromisso, assumir a
responsabilidade assentada nessa
ligação primordial que pesa sobre o
nosso ser-no-mundo e, ainda,
inventar os meios – a práxis – para
realizar um projeto que implica a
todos os homens. Assim o
intelectual engajado se assume
livre, compromissado e responsável
diante dos fatos para elaborar um
pensamento, uma filosofia capaz de
promover
rupturas
e
ou
continuidades, seja, por exemplo:
tomando partido contra a ocupação
nazista; se posicionando contra as
práticas de subversão da liberdade
e da democracia impostas pelas
elites financeiras; ou, mesmo,
inventado meios para combater as
injustiças históricas e a violência
contra trabalhadores, mulheres,
negros, imigrantes, refugiados e
índios entre tantos outros. Todavia,
227
Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
o intelectual engajado não pode
jamais perder de vista as condições
ambíguas da práxis, é preciso
mediar as relações contingentes e
necessárias da história, muitas
vezes encobertas, dissimuladas por
fatos e ideologias. Aderir ou não
um partido dos trabalhadores, lutar
ou não contra as políticas
desenvolvimentistas
do
capitalismo, combater ou não
reformas
trabalhistas
e
previdenciárias de inflexão liberal
são, por exemplo, escolhas que
contrapõem interesses imediatos a
um senso de justiça universal
comprometido com todos os
homens. Esse dilema, por exemplo,
vivemos quando temos que
escolher entre lutar para manter
direitos ou permanecer inertes no
conforto do lar. Estamos, agora,
falando do engajamento que se
opõe à inação e à adesão cega –
típico do falatório – a qual a boa-fé
intelectual deve sempre recusar. É
precisamente essa recusa, essa
necessidade, ou pelo menos o modo
como ela deve ser realizada que
parece, de maneira evidente,
colocar em cena natureza do
falatório: apatia disfarçada de
compartilhamentos e postagens,
adesão
sem
compromisso
e
responsabilidade. Também, salta
aos olhos, sobretudo, quando
pensamos nas análises de Sartre, a
incapacidade do falador em
inventar meios para transformar – a
ausência de práxis – a realidade
com vistas a um fim almejado. Se
pensarmos
nas
análises
de
Merleau-Ponty, falta ao falador a
vivência dialética do conflito, a
consciência da boa ambiguidade
que nos faz oscilar entre os
interesses do Eu e do Outro, o
sentimento nauseante da tensão
entre o fim imediato e o fim último.
Todavia, num diagnóstico para os
nossos dias, Sartre, para o bem e ou
para o mal, apenas aparentemente
parece ter subvertido, a exemplo de
Gramsci, a linha divisória entre o
intelectual engajado e o falatório.
Sartre,
mesmo
sem
querer,
antecipou em grande parte as
dificuldades que cercam a analítica
dos fatos cotidianos em nossos dias,
tais como: a diversidade dos
acontecimentos, a fluidez dos
conceitos, o anacronismo das
referências universais. Pois o
intelectual, como diz Sartre no seu
texto Em defesa dos intelectuais (1994,
p. 14): “é alguém e se mete no que
não é de sua conta e que pretende
contestar o conjunto das verdades
recebidas, e das condutas que nelas
se inspiram, em nome de uma
concepção global do homem e da
sociedade – concepção hoje em dia
impossível, portanto abstrata e
falsa, já que as sociedades de
crescimento se definem pela
extrema diversificação dos modos
228
Prof. Dr. Ericson Falabretti
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 228
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
de vida, das funções sociais, dos
problemas concretos”.
Todavia, se as dificuldades do
intelectual e do falador se
reencontram, o que parece opor
definitivamente o intelectual ao
falador, além da práxis, da abertura
ao diferente, do comprometimento
com a luta pelo oprimido, do
esforço em sempre pensar a
significação histórica dos fatos e
das escolhas é, sobretudo, o
sentimento que somos uma figura
de subjetividade num fundo de
generalizado de vidas, um corpo
próprio imerso num imenso tecido
histórico e natural. Finalmente,
tomando como referência a análise
de Merleau-Ponty sobre a liberdade
no último capítulo da Fenomenologia
da
percepção,
precisaríamos
previamente assumir, no domínio
do
comércio
das
disputas
discursivas, o sentido sobre a nossa
existência que só conhecemos por
meio de uma reflexão radical: “que
a
rigor
exista
uma
intersubjetividade, que cada um de
nós seja simultaneamente um
anônimo
no
sentido
da
individualidade absoluta e um
anônimo
no
sentido
da
generalidade absoluta. (MerleauPonty, p. 601, 1999)
Entretanto, a saída de si
mesmo, o reconhecimento do outro,
esse anonimato que iguala na
existência todas as subjetividades, o
qual estamos todos condenados, é
justamente o que o falador não
parece levar em consideração no
interior das suas intervenções. O
foco de Sartre e de Merleau-Ponty
na experiência engajada, mesmo
considerando as diferenças entre
ambos, nos permite abordar esse
comércio da analítica do cotidiano –
técnica ou amadora – de forma
crítica. Sartre e Merleau-Ponty, de
certo modo, demarcaram, ainda
que de maneira instável, as
condições éticas e políticas mínimas
que devemos prestar atenção
quando
participamos
desse
comércio de ideologias fluídas,
quando adentramos nesse mundo
de (des) razão alargada e
linguagem
econômica:
reponsabilidade, compromisso e
práxis. Não se trata de proibir,
discriminar o falatório ou, mesmo,
defender uma perspectiva elitista
para a função intelectual. Se a
linguagem pertence a todos e não
pertence
a
ninguém
particularmente, a analítica do
cotidiano é um direito universal.
Todavia,
o
domínio
da
responsabilidade, da práxis e do
compromisso nos lembram da
grandeza das nossas escolhas, do
mundo comum sedimentado ao
qual pertencemos indistintamente,
que originalmente acolhe o eu e o
outro, o mesmo e o diferente, e do
qual não podemos escapar se
escolhemos falar, escrever e viver.
229
Engajamento e falatório: das redes sociais à filosofia
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
REFERÊNCIAS
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SARTRE, J-P. Crítica da Razão Dialética.
Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
Submetido: 04 de agosto 2017
Aceito: 10 de agosto 2017
230
Prof. Dr. Ericson Falabretti
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 230
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Fenomenologia, organismo e vida:
uma introdução à obra de Kurt Goldstein
Phenomenology, organism and life:
an introduction to the work of Kurt Goldstein
Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda 214
Universidade Federal do Paraná
Ms. Jennifer da Silva Moreira.
215
Universidade Federal do Paraná
RESUMO
O trabalho de Kurt Goldstein ainda é pouco conhecido no Brasil. Sendo um dos fatores que
dificultam o acesso aos seus escritos a ausência de traduções das suas obras para a língua
portuguesa. No entanto, sua influência está presente em diversas áreas do conhecimento, a
exemplo da Neurologia, Neuropsicologia, Psicologia e Filosofia. Desse modo, com o intuito
de resgatar os fundamentos de conhecimentos e práticas realizadas nos campos
influenciados por ele, esse artigo apresenta uma introdução à sua obra. Foram utilizados
como base os escritos The Organism: A holistic approach to biology derived from
pathological data in man e Human Nature in the light of psychopathology. A partir da
análise dessas obras foram selecionados três grandes temas a serem explorados: a questão
do método para o autor, a teoria do organismo apresentada por ele e a noção de natureza
humana presente em seus trabalhos. Por meio dessa retomada da obra do autor, pretendese apontar para sua “fenomenologia”, além de abrir caminho para novas discussões sobre
sua
influência.
214
215
E-mail: aholanda@yahoo.com
E-mail: jennifer.smoreira@yahoo.com.br
231
Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
PALAVRAS CHAVE
Kurt Goldstein; Organismo; Fenomenologia.
ABSTRACT
Kurt Goldstein´s work is still unknown in Brazil, and one of the factors that hinder access
to his writings is the absence of translations of his works into portuguese. However, its
influence is present in several areas of knowledge, such as Neurology, Neuropsychology,
Psychology and Philosophy. In this way, with the intention of recovering the foundations
of knowledge and practices carried out in those fields, this article presents an introduction
to his work, based in two of his writings: The Organism: A holistic approach to biology
derived from pathological data in man and Human Nature in the light of psychopathology.
From the analysis of these works were selected three major themes to be explored: the
question of the method to the author, the theory of the organism and the notion of human
nature. Through this resumption of the author's work, it is intended to presente his
“phenomenology” and to pave the way for new discussions about his influence.
KEYWORDS
Kurt Goldstein; Organism; Phenomenology.
RESUMEN
El trabajo de Kurt Goldstein permanece poco conocido en Brasil, siendo uno de los factores
que dificultan el acceso a sus escritos, la ausencia de traducciones de sus obras a la lengua
portuguesa. Sin embargo, su influencia está presente en diversas áreas del conocimiento, a
ejemplo de la Neurología, Neuropsicología, Psicología y Filosofía. De este modo, con el
propósito de recuperar los fundamentos de conocimientos y prácticas realizadas en los
campos influenciados por él, este artículo presenta una introducción a su obra. Se
utilizaron como base los escritos The Organism: A holistic approach to biology derived from
pathological data in man y Human Nature in the light of psychopathology. A partir del
análisis de estas obras se seleccionaron tres grandes temas: la cuestión del método para el
autor, la teoría del organismo y la noción de naturaleza humana presente en sus trabajos.
Por medio de esta retomada de la obra del autor, se pretende abrir camino para su
“fenomenologia” y para nuevas discusiones cerca de su influencia.
PALAVRAS CLAVE
Kurt Goldstein; Organismo; Fenomenologia.
232
Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 232
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
INTRODUÇÃO
Os estudos realizados por
Kurt
Goldstein
tiveram
repercussões e contribuíram de
forma intensa tanto para o
desenvolvimento
das
ciências
naturais quanto das ciências do
comportamento.
Ele
buscava
compreender a experiência que era
vivida por seus pacientes, com o
intuito
de
encontrar
novas
possibilidades de atuação e,
consequentemente, de atenuação
do sofrimento dessas pessoas.
Conforme afirma o próprio autor, a
sua maior inclinação era lidar com
pessoas e fornecer algum tipo de
ajuda para aquelas que sofriam
(Goldstein, 1959/1971).
Assim, quando se refere ao
modo como empreendeu seu
trabalho, Goldstein (1940/1951)
declara que, mesmo quando realiza
considerações teóricas, a tendência
do médico é se encaminhar para a
direção da prática. Isso se dá
porque o verdadeiro coração de sua
atividade é a cura. E, segundo o seu
ponto de vista, o caminho que leva
para a cura não consistia mais em
uma preocupação com fenômenos
isolados, uma vez que eles não são
essenciais para a doença. O
elemento essencial da doença é, na
verdade, o choque para a existência
do
organismo,
causado
por
perturbações no seu funcionamento
bem regulado. E, quando a
restauração não é mais uma
possibilidade, o objetivo único do
médico é auxiliar o seu paciente de
modo que ele possa seguir sua
vida, apesar dos seus problemas.
Para que isso ocorra, é necessário
considerar cada sintoma no que diz
respeito
à
sua
significância
funcional para o paciente. Logo, é
preciso que o médico, na condição
de profissional, cuja atuação é
voltada para a área da saúde,
conheça o organismo como um
todo, ou seja, que saiba reconhecer,
de fato, quem é o seu paciente
(passado, presente e projeções para
o futuro) e a mudança que o
organismo todo sofreu por meio do
adoecimento. “O organismo todo, o
humano, torna-se o centro de
interesse”
(GOLDSTEIN,
1940/1951, p. 6).
Outro fator relevante, que diz
respeito ao modo como Goldstein
conduziu seu trabalho, é o fato de
sua obra nos apresentar um
posicionamento crítico com relação
ao modo como as pesquisas
biológicas
estavam
sendo
realizadas. Pois, apesar de estar
inserido em um momento histórico
em que a tradição propunha o
estudo do sistema nervoso por
meio da análise das partes que o
compõe e da observação de
determinadas capacidades dos
pacientes de execução de tarefas,
ele percebeu que era preciso um
outro olhar. Ou seja, uma nova
perspectiva que atentasse para
outros detalhes e, a partir disso,
233
Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
fornecesse abertura para uma
compreensão diferenciada dos
fenômenos presentes nos casos de
lesões cerebrais. Desse modo,
corajosamente, Goldstein supera os
pressupostos da tradição e trilha
um novo caminho, lapidado por ele
juntamente
com
seus
colaboradores, ao alcançar uma
nova
compreensão
do
funcionamento do organismo, de
caráter holístico. Ao definir o que
seria essa abordagem holística, o
autor declara que se trata de uma
observação
mais
global
dos
fenômenos, sejam eles normais ou
patológicos, levando em conta a
atividade do organismo todo
(GOLDSTEIN, 1959/1971).
Spiegelberg (1972) destaca
Goldstein primeiramente como um
biólogo e, depois, um médico, o
qual teve importante papel de
influência no desenvolvimento da
Fenomenologia,
principalmente
durante sua fase francesa e
americana. A prova mais clara
disso foi a inclusão do seu trabalho
principal sobre o organismo na
série de trabalhos fenomenológicos
da
Biblioteca
de
Filosofia
organizada por Merleau-Ponty e
Sartre. Goldstein, mesmo não tendo
nunca dito ser um fenomenólogo,
em uma de suas autobiografias,
publicada em 1966, afirmou ter um
pressentimento
de
que
sua
interpretação
dos
pacientes
proporcionou resultados similares
aos
obtidos
pela
análise
fenomenológica. Em uma conversa
entre ele e Spiegelberg, em 1964,
declarou nunca ter lido os escritos
de Husserl, mas apenas tê-lo
escutado uma vez em Frankfurt
(SPIEGELBERG,
1972).
Cabe
ressaltar que Goldstein afirmou que
o termo “existência” mostraria, aos
seus olhos, um significado diferente
do
aplicado
na
psiquiatria
existencial. Sua proximidade com
personalidades da filosofia – foi
amigo pessoal de Max Scheler e de
Paul Tillich, além de ser primo de
Ernst Cassirer – teve influência na
sua relação com esse conjunto de
conhecimentos.
Entre os estudiosos da
Fenomenologia
proposta
por
Edmund Husserl, que foram
leitores dos trabalhos de Goldstein
e se apropriaram de suas ideias
para o desenvolvimento de suas
reflexões estão Aron Gurwitsch,
Alfred Schütz e Merleau-Ponty
(RIESE,
1968;
GOLDSTEIN
1959/1971).
Cabe, aqui, mencionar que em
uma recente publicação brasileira
voltada para a divulgação de
estudos focados na obra de
Goldstein, Silva (2015) propõe uma
retomada dos estudos acerca do
neuropsiquiatria alemão, visto este
possuir um amplo alcance teórico
no que diz respeito às pesquisas de
caráter biológico e antropológico.
Além disso, aponta que Goldstein
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Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 234
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
traz à tona uma nova forma de
compreensão da natureza humana,
que se dá por meio do estudo da
patologia. O trajeto construído e
trilhado
por
esse
brilhante
neurocientista o levou a uma
perspectiva inédita acerca do
organismo, cujo destaque se dá por
se tratar de uma compreensão
dialética acerca das relações entre o
organismo e o meio, segundo a
qual organismo e mundo se
constituem um todo indivisível.
Este artigo tem por objetivo
apresentar uma introdução às
ideias de Kurt Goldstein, que foram
fundamentadas empiricamente na
observação e descrição de pacientes
com lesões cerebrais, a partir de
duas de suas obras principais. A
primeira delas, reconhecida como
sua obra principal, intitulada – na
versão traduzida para a língua
inglesa, utilizada para a execução
desse trabalho –, The Organism: A
holistic approach to biology derived
from pathological data in man. Esta
obra, segundo Murphy (1968),
representa a condução de uma ideia
até o seu limite. Pois, ao chegar no
momento em que teria que decidir
se a derivação do todo em partes é
possível em algum ponto do
organismo, Goldstein optou pela
alternativa de que não há partes; há
seres vivos, suas funções, seus
propósitos e suas modalidades de
vida.
Já a outra obra utilizada como
referência é o livro Human Nature in
the light of psychopathology, escrita
com o objetivo de dar continuidade
e
aprofundar
as
reflexões
apresentadas
à
primeira
mencionada, principalmente no que
diz respeito à temática da natureza
humana (GOLDSTEIN, 1940/1951).
Como relata o cientista:
Em outro livro meu, A estrutura
do
organismo,
eu
busquei
desenvolver
a
metodologia
básica para o estudo do
comportamento organísmico, e lá
eu fiz uso de fatos obtidos a
partir de minha experiência
principalmente como ilustrações
do método proposto. Aqui, no
entanto, o que eu pretendo
realizar é uma interpretação
sistemática de todos esses fatos
com referência à concepção de
216
natureza
do
homem
(GOLDSTEIN, 1940/1951, p.
VIII).
Ao mencionar o conteúdo
apresentado nessa segunda obra,
Ernest Cassirer (1944/2012) afirma
que, por meio dela, Goldstein
apresentou um apanhado geral de
suas
visões
teóricas.
Assim,
depreende-se que se trata de um
escrito que sintetiza noções e
conceitos elaborados pelo autor
durante os anos anteriores à
Uma vez que não há traduções
das obras de Goldstein para a língua
portuguesa, todas as citações
presentes nesse artigo foram
realizadas por versões dos autores.
235
Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
216
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
publicação
desse
livro
que,
diferente do The Organism, foi
redigido originalmente na língua
inglesa, uma vez que, o autor já
morava nos Estados Unidos no
período em que o trabalho foi
escrito.
1.
GOLDSTEIN
E
A
QUESTÃO DO MÉTODO
De acordo com Goldstein
(1934/1963), o caráter essencial da
obra cujo título original, em
alemão,
é
Der
Aufbau
des
Organismus. Einführung in die
Biologie
unter
besonderer
Berücksichtigung der Erfahrungen am
kranken Menschen, consiste na
clarificação do problema do método
nas pesquisas biológicas e na
elucidação
dos
modos
de
conceitualização
do
material
empírico. Ora, é isso o que a torna o
seu trabalho um diferencial relativo
a outros da área:
A singularidade desse livro está
na aplicação de um novo método
por meio do qual o autor acredita
fazer mais justiça à descrição e
compreensão do comportamento
dos seres vivos normais e
patológicos. O livro tem sua
origem na busca prática do
médico com o objetivo de ajudar
pacientes
sofrendo
de
perturbações severas devido a
lesões no cérebro (GOLDSTEIN,
1934/1963, p. v).
Nesse
escrito,
além
de
apresentar
um
método
de
investigação clínica e a sua
aplicação acompanhada de diversos
exemplos, Goldstein aborda a
forma como ele, a partir desse
trabalho de pesquisa, observação e
análise, realiza reflexões teóricas
sobre o funcionamento do sistema
nervoso que fundaram uma teoria
do
organismo.
Goldstein
(1934/1963)
inicia
sua
obra
comentando uma diferença entre as
publicações científicas realizadas
antes da elaboração de seu livro.
Segundo ele, estudos mais antigos
traziam a impressão de que uma
lesão no córtex seria, geralmente,
seguida da perda de determinadas
funções correspondentes ao local
lesionado; logo, eles transmitiam a
imagem de que determinados
centros do cérebro são responsáveis
pelo controle de certas funções. No
entanto, conforme observa, nas
publicações realizadas em anos
mais próximos ao da sua obra,
percebe que avanços na observação
levaram a um novo modo de olhar,
uma nova perspectiva sobre o
funcionamento do sistema nervoso.
Esses estudos mais recentes
apontavam para o fato de que,
mesmo em casos de danos cerebrais
bastante circunscritos, os distúrbios
eram escassamente confinados a
um tipo único de performance.
Nesses casos, notava-se uma
236
Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 236
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
mudança mais ou menos unitária
que afetava diferentes campos de
forma homogênea expressando-se
por meio de diferentes sintomas.
Logo, tornava-se aparente que a
relação entre as performances
mentais, a exemplo da fala que foi o
objeto de estudo presente durante
toda a sua carreira – lembremos
seus clássicos estudos sobre a afasia
(Goldstein, 1948) – e áreas definidas
do
cérebro,
constituiria
um
problema mais complexo que o
assumido pela teoria da localização.
Apesar de demarcar essa
diferença entre os trabalhos
produzidos, Goldstein (1934/1963)
deixa bastante claro que tal
distinção não se deu devido a uma
maior competência de certos
pesquisadores em relação aos
outros. Ele afirma que tal distinção
ocorreu em função de uma
mudança de metodologia, a qual
possibilitou a emergência de outros
fatos. Assim, ele enfatiza que o
problema da metodologia tem
grande
importância
para
as
pesquisas
psicopatológicas
e
biológicas em geral. Além disso, o
cientista reflete sobre investigações
realizadas a partir de um
pressuposto teórico, as quais têm
como principal objetivo corroborálo, uma vez que essa atitude não
aceita bem nem esses novos fatos
apreendidos por meio de mudanças
metodológicas nem a mudança em
si. Ainda, Goldstein (1934/1963)
declara que quando o investigador
foca sua atenção apenas em certos
fenômenos, ele chega a sintomas
isolados. Isso ocorre porque,
durante
a
observação,
determinados
fenômenos
se
apresentam de modo mais notável,
sendo
então
primeiramente
registrados e causando a impressão
de que são fenômenos dominantes.
No entanto, um exame imparcial e
exaustivo pode revelar que algo
que não atraiu muito a atenção no
início é de extrema importância
para a compreensão da alteração
básica estudada. Tendo em mente
que o aparecimento dos sintomas
depende do método de exame e da
importância dessa constatação, o
autor propõe três postulados
metodológicos, os quais julga serem
adequados
para
pesquisas
biológicas em geral. De acordo com
ele, o procedimento proposto difere
de outros devido ao esforço de
registrar todos os fenômenos,
evitando uma postura previamente
orientada por uma determinada
teoria acerca do objeto estudado.
O
primeiro
postulado
metodológico apresentado por
Goldstein diz respeito a considerar,
inicialmente, todos os fenômenos
que o organismo apresenta, sem
dar preferência a nenhum deles em
especial. Portanto, não se deve
atribuir
maior
ou
menor
importância a nenhum fenômeno.
Apenas sob essas condições a
observação realizada será correta.
Quanto à determinação de quanto
237
Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
um certo sintoma, e não outro, é
essencial
para
entender
as
alterações básicas de uma função,
ela deve ser realizada em
investigações posteriores. Já o
segundo postulado consiste na
descrição correta dos fenômenos
observáveis. Goldstein percebeu
que as análises, com frequência,
tinham como objetivo somente
verificar se o paciente fornecia ou
não a resposta correta para uma
determinada tarefa. E, de acordo
com ele, é preciso realizar análises
profundas não apenas dos efeitos,
mas também das causas dos efeitos,
ou seja, daquilo que levou o
paciente a obter fracasso ou êxito.
Isso porque, “se nós considerarmos
uma reação apenas a partir do
ponto de vista da real solução de
uma tarefa, nós podemos não
reparar o desvio da normalidade
que pode não estar evidente na
solução” (GOLDSTEIN, 1934/1963,
p. 23).
Por fim, o terceiro dos
postulados refere-se ao fato de que
nenhum fenômeno deve ser
considerado sem referência ao
organismo em questão e à situação
em que ele aparece. De acordo com
o autor, trata-se de um postulado
proposto por Hughlings Jackson
décadas antes do período em que a
obra em questão foi elaborada; no
entanto, ele foi completamente
negligenciado. Cabe, aqui ressaltar
que
Canguilhem
(1966/2007)
afirma
que
as
contribuições
científicas de Jackson devem servir
de introdução para as concepções
de Goldstein, principalmente no
que diz respeito à necessidade de
sempre julgar o paciente em relação
à situação à qual ele reage e aos
instrumentos de ação disponíveis
pelo próprio meio. Goldstein ainda
declara que o procedimento
proposto e executado por ele em
suas investigações é primariamente
direcionado para o todo e, dentro
desse quadro de referência busca
realizar a análise do máximo de
performances individuais possível.
Esse exame deve ser feito até que se
chegue ao ponto em que, baseado
nos fatos, seja possível desenvolver
uma teoria que tornará os
fenômenos
em
questão
compreensíveis e que possibilitará a
previsão das reações do organismo,
inclusive em tarefas ainda não
investigadas.
Segundo Luria (1966), o
método
de
Goldstein
torna
impossível repetir a justaposição de
defeitos separados, os quais
tradicionalmente eram enumerados
sem
nenhuma
tentativa
de
encontrar suas fontes comuns.
Assim, especulações livres, sem
fundamento nos dados clínicos
foram excluídas do processo de
análise. O método introduzido por
ele na Neuropsicologia tinha como
característica diferenciar-se tanto da
descrição empírica simples dos
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Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 238
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
dados clínicos, quanto da testagem
psicométrica, que por um certo
período foi considerada um meio
básico
na
psicologia
clínica.
Goldstein clarificou o fato de que
apenas
uma
análise
neuropsicológica
sistemática
e
profunda dos dados clínicos pode
levar o investigador a uma
compreensão do sintoma e dos
processos psicológicos que se dão
em casos de lesões cerebrais locais e
os
mecanismos
fisiológicos
presentes na síndrome toda.
2. A ESTRUTURA
ORGANISMO.
DO
As
reflexões
acerca
do
funcionamento
do
organismo
apresentadas
por
Goldstein
(1934/1963) foram realizadas, em
grande parte, com base na análise
de vários fenômenos normais e
patológicos
observados
em
soldados que sofreram lesões
cerebrais durante a Primeira Guerra
Mundial; esses ferimentos eram
muito adequados para estudos,
visto que ocorreram em pessoas
jovens, com boas condições físicas
gerais. Além disso, ao acompanhar
tais casos, ele e seus colaboradores
tiveram a oportunidade, pouco
comum, de observar pacientes por
um longo período de tempo em
condições ambientais consideradas
favoráveis por ele. Convém notar
ainda que alguns desses soldados
permaneceram
sob
os
seus
cuidados por mais de oito anos.
Tais
condições
foram
de
significativa importância para que
Goldstein pudesse obter uma
compreensão
melhor
do
comportamento quando comparada
com aquela que é possível ser
obtida com pacientes vitimados por
lesões cerebrais devido a outros
fatores; no entanto, o estudo desses
últimos não foi omitido em suas
obras e o levou às mesmas
conclusões
(GOLDSTEIN,
1940/1951).
Goldstein postula que o
organismo constitui uma unidade e
que deve ser compreendido
conforme
sua
organização
qualitativa e seu funcionamento
holístico (Goldstein, 1940/1951).
Assim, o organismo é abordado por
ele a partir de fatos obtidos,
sobretudo, via estudos do sistema
nervoso,
cujo
funcionamento
presta-se especialmente bem para
essa explicação. Pois, o sistema
nervoso, assim como o organismo,
é um aparato que funciona como
um todo, que está sempre em
estado de excitação e nunca em
repouso. Todas as performances
realizadas
mediante
ele
são
expressões de mudanças em sua
condição de perpétua atividade,
causadas por estímulos que chegam
até o organismo. Tais mudanças
sempre dizem respeito ao sistema
inteiro, mas não da mesma maneira
239
Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
ao longo dele (GOLDSTEIN,
1940/1951).
Goldstein (1940/1951) nos
apresenta uma noção importante
para
que
se
entenda
o
funcionamento
do
organismo
normal e, também, do patológico.
Trata-se da afirmação de que a vida
ordenada é possível apenas por
meio da uniformidade; caso
contrário, o mundo mudaria
constantemente e o organismo
também. No entanto, esse não é o
caso, já que o mundo parece
relativamente constante, por mais
que ocorram mudanças nele, e os
organismos também permanecem
mais ou menos os mesmos. Porém,
sabe-se que cada estímulo produz
uma mudança no substrato que
muda a sua excitabilidade, tendo
como resultado um novo estímulo,
igual ao anterior, com um efeito
diferente. O que faz com que apesar
dessa mudança na excitabilidade
por meio da estimulação o
organismo permaneça quase o
mesmo é o processo de equalização.
Esse processo fixa o limiar e, com
isso, cria constância, assegurando
um comportamento ordenado bem
como a existência do organismo. A
equalização demanda o trabalho do
todo do organismo. A vida normal
é ordenada porque esse processo se
dá em relação a todas as tarefas do
organismo como um todo; isso não
ocorre sob condições experimentais
ou patológicas.
Ora, a patologia consiste na
destruição de algumas regiões do
sistema nervoso. Ela faz com que
ele seja dividido em partes e que
funções sejam isoladas do resto do
organismo. Tal separação pode
acontecer em diversas partes do
sistema nervoso, de maneira que os
diferentes sintomas correspondem
ao isolamento de diferentes partes.
Assim, a melhor forma de
compreender a natureza dos
processos em partes é o estudo dos
fenômenos encontrados em pessoas
doentes. Esses processos isolados
dentro do organismo podem ser
determinantes para as reações do
indivíduo enfermo de um modo
anormal. Pois, por mais que
fenômenos isolados possam ocorrer
na vida normal, caso a estimulação
ganhe força anormal ou uma
duração anormal que dificulte o
processo de equalização, eles são
característicos
de
condições
patológicas. E, segundo o autor,
levar em consideração as mudanças
que ocorrem no isolamento pode
ser um modo adaptado para o seu
propósito: entender o organismo
como um todo.
Goldstein (1934/1963) afirma
que a descrição dos déficits
presentes nos indivíduos que
sofreram lesões cerebrais, quando
considerada em relação com as
performances que permanecem
intactas, fornece uma caracterização
e compreensão adequada do
240
Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 240
Aoristo)))))
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organismo lesionado, a qual será
fundamental para a compreensão
do funcionamento do organismo
normal. Com isso, ele declara que
num primeiro momento parecerá,
ao pesquisador, que ele está
lidando com uma alternação entre
performances bem-sucedidas e
fracassos. Tal alternância pode ser
entendida apenas quando o
comportamento total no qual a
performance
aparece
é
considerado. O comportamento
total pode ser dividido em duas
classes
básicas
objetivamente
inteligíveis e, a uma delas
correspondem as performances
eficazes, e à outra as deficientes. O
primeiro tipo de comportamento é
intitulado ordenado e o segundo
desordenado ou catastrófico. Nas
situações ordenadas, as respostas
aparentam
ser
constantes,
adequadas ao organismo e às
respectivas circunstâncias. Nelas, o
indivíduo vivencia uma sensação
de espontaneidade, ajustamento
com o mundo e satisfação, o curso
do comportamento tem uma ordem
definida, um padrão total que
envolve inteiramente os fatores
organísmicos – processos mentais,
somáticos e até mesmo físicoquímicos –, os quais participam de
modo apropriado para a execução
da performance em questão, sendo
que “esse, de fato, é o critério de
uma
condição
normal
do
organismo”
(GOLDSTEIN,
1934/1963, p. 37). Por isso,
comportamento normal e ordenado
são sinônimos.
Já as reações catastróficas,
além de serem consideradas
inadequadas, são desordenadas,
inconstantes e perpassadas por
choque físico e mental. Em tais
situações, o indivíduo se sente
privado de liberdade e hesitante. O
choque vivenciado por ele afeta
tanto ele próprio quanto o mundo
ao seu redor e ele se encontra numa
situação chamada de angústia.
Quando
realiza uma reação
ordenada, o indivíduo prossegue
sem
dificuldade
ou
fadiga,
enquanto
após
uma
reação
catastrófica a sua capacidade de
reação é impedida por um intervalo
de tempo. Dessa maneira, ele falha,
inclusive, na execução de tarefas
que lhe seriam fáceis em outras
circunstâncias.
O
organismo
normal e também o doente
apresenta uma tendência a manter
comportamentos ordenados e a
evitar o choque proporcionado por
reações catastróficas. Porém, como
o comportamento ordenado resulta
do fato de que o organismo é
confrontado com tarefas com as
quais não é capaz de lidar, ele
predominará
no
organismo
lesionado.
Ainda sobre o fato de propor
uma teoria sobre o funcionamento
do organismo a partir da
observação de fenômenos que se
mostram quando o córtex cerebral
241
Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
humano é lesionado, Goldstein
afirma:
A vida normal é determinada
por tantos fatores, sendo esses
fatores entrelaçados de várias e
complicadas formas, que com
muita frequência a reação de um
organismo normal mesmo para
uma estimulação aparentemente
simples é extremamente difícil,
algumas vezes quase impossível,
de analisar e compreender.
Agora, quanto maior for o
defeito no organismo, mais
simples são as respostas aos
estímulos e, assim, mais fácil é
compreender. Além disso, o
comportamento patológico é
particularmente revelador no
que diz respeito à organização
do comportamento. A destruição
de um ou outro substrato do
organismo dá origem a várias
mudanças no comportamento,
mostrando como esses substratos
e formas de comportamento são
inter-relacionados e fornecendo
discernimento
sobre
a
organização do organismo total
(GOLDSTEIN, 1940/1951, p. 3738).
Outro fator mais facilmente
compreendido
por
meio
da
observação de pessoas doentes são
as formas de ajustamento às
condições que se modificam, já que,
para esse organismo, encontrar um
ajustamento para a condição
anormal
produzida
pelo
adoecimento se trata de uma
questão de ser ou não ser. Em razão
disso, essa é uma oportunidade
especialmente
boa
para
a
observação das formas e regras do
ajustamento
(GOLDSTEIN,
1940/1951).
Além
disso,
Goldstein
(1934/1963) afirma que apesar de
suas pesquisas serem destinadas a
uma explanação sistemática dos
eventos que ocorrem no sistema
nervoso, os resultados obtidos se
mostraram
adequados
para
generalização, com o intuito de
chegar
a
uma
teoria
do
funcionamento do organismo todo.
Tal generalização foi considerada
possível por ele porque baseada na
perspectiva de que o sistema
nervoso,
tanto
nos
seres
vertebrados
quanto
nos
invertebrados, incluindo o homem,
é um sistema no qual os gânglios
estão inseridos em vários locais e
que se relaciona com o mundo
exterior por meio dos órgãos dos
sentidos e das partes movíveis do
corpo. Sendo que esse sistema, em
que
as
excitações
ocorrem,
representa um aparato que sempre
funciona como um todo.
Ao apresentar as conclusões
obtidas por meio de seus estudos,
Goldstein (1934/1963) faz uma
crítica à teoria do reflexo. Ele
considera que, por meio de suas
análises, pôde perceber o motivo de
os resultados de investigações do
reflexo
não
oferecerem
fundamentos suficientes para uma
teoria
do
organismo.
Pois,
242
Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 242
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
conforme nos explicita MerleauPonty (1942/2006), ao querer
construir
uma
representação
científica do organismo, a teoria
clássica do reflexo passa a
decompor tanto a excitação quanto
a reação em uma multiplicidade de
processos parciais, exteriores uns
aos outros, de modo que a resposta
é compreendida apenas por meio
de correlações preestabelecidas
entre determinados órgãos ou
sistemas
receptores
e
certos
músculos
efetores.
Como
consequência, o funcionamento do
sistema nervoso passa a ser visto
apenas como o acionamento de um
grande número de circuitos
autônomos. Nesse caso, o estímulo
consiste apenas em uma causa, um
antecedente
constante
e
incondicionado de modo que o
organismo é passivo, visto que se
limita a somente executar aquilo
que lhe é prescrito de acordo com o
local da excitação e pelos circuitos
nervosos que nele se originam.
Os relatos de Goldstein
(1934/1963) nos revelam que o
reflexo assim definido raramente é
observável. No entanto, tanto as
investigações do reflexo quanto as
observações de pacientes com
lesões cerebrais evidenciaram a
relação de cada performance
individual com o organismo todo,
visto que elas trazem à luz a
interdependência e reciprocidade
das
partes.
Nessa
medida,
conforme conduzia investigações
cuidadosas e, quanto mais deixava
de lado o hábito de observar apenas
os
fenômenos
que,
por
determinadas razões teóricas ou
práticas, aparentavam ser mais
importantes, Goldstein verificava
que, sempre que uma mudança é
induzida em uma região, pode-se
observar mudanças que ocorrem
simultaneamente em qualquer
parte do organismo que se possa
testar. Tal constatação, além de sua
importância enquanto descoberta
científica,
fornecia
uma
confirmação adicional da validade
do
segundo
postulado
metodológico proposto por ele
(GOLDSTEIN, 1934/1963).
Para explicar os processos que
ocorrem no sistema como resultado
de um estímulo, Goldstein faz uso
da formação figura-fundo, proposta
pela Escola de Berlim ou Psicologia
da Gestalt, cuja inspiração holística
é um dos alicerces sobre os quais
ele pensa a sua clínica (MANZI
FILHO,
2015).
Ora,
todo
movimento
no
corpo
é
acompanhado por mudanças no
resto dele, “toda reação é uma
‘reação gestáltica’ do todo na forma
de uma configuração figura-fundo”
(GOLDSTEIN, 1934/1963, p. 224).
Logo, quando em resposta a um
estímulo, uma determinada parte
do campo de percepção se torna
proeminente, todo o campo de
percepção se altera para auxiliar a
percepção adequada. Há uma
alteração constante da parte do
243
Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
organismo que é figura e a que é
fundo. Como assevera o cientista:
“Sempre
que
analisamos
a
estrutura dos atos e performances,
nós
encontramos
a
mesma
configuração. Por isso, eu estou
inclinado
a
considerar
essa
configuração da excitação, a relação
figura-fundo, como a forma básica
do sistema nervoso” (GOLDSTEIN,
1934/1963, p. 109-110).
Ao se referir à escolha do
modelo utilizado por Goldstein
para explicar o funcionamento do
sistema nervoso e do organismo,
Riese (1968), afirma que ao estudar
a natureza do funcionamento do
sistema nervoso, Goldstein conclui
que ela é constituída por mudanças
(alternações) constantes que podem
ser compreendidas conforme o
processo de formação figura-fundo.
Essa
forma
de
organização
enquanto relação entre figura e
fundo
foi
emprestada,
por
Goldstein, a partir de experiências
visuais, mais especificamente, da
clássica figura desenhada por
Edgar Rubin para demonstrar esse
tipo de alternação. Nessa figura,
ora o observador vê um vaso
branco em um fundo preto e ora vê
duas faces pretas em um fundo
branco. Assim, em um período em
que o funcionamento do sistema
nervoso era compreendido por uma
perspectiva estática; em que a
existência de centros específicos,
sistemas
e
conexões
eram
incontestáveis,
Goldstein
corajosamente
desafiava
os
conhecimentos
e
postulados
tradicionais na neurologia ao
introduzir um novo olhar –
dinâmico – para o funcionamento
do sistema neuronal.
Perls (1977) declara – de modo
exagerado, talvez, mas anunciando
sua relevância – que o conceito de
organismo como um todo consiste
no centro da teoria da Psicologia da
Gestalt 217 . E Goldstein, um dos
representantes dessa abordagem
segundo ele, foi responsável por
quebrar o conceito rígido do arco
reflexo. Pois, de acordo com
Goldstein,
tanto
os
nervos
sensoriais quanto
os nervos
motores se estendem do organismo
para o meio e, dessa maneira, o
conceito de sensação enquanto um
fenômeno mecânico e passivo é
substituído pela ideia de que o
organismo é ativo e seletivo em seu
sentir.
Convém destacar
que o
movimento gestaltista foi muito mais
amplo e complexo do que a maioria
dos livros de história a Psicologia
conseguem compilar. Normalmente
associada a estudos sobre a
experiência perceptual, os seus
atores (dentre os quais, Goldstein e
Kurt Lewin aparecem de forma
relativamente marginal) buscaram
desenvolver pesquisas nos mais
diversos campos, como linguagem,
raciocínio, dentre outros (HOLANDA,
2009; ANDRADE & HOLANDA,
2011).
244
Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
217
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 244
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
No que diz respeito às
alterações que ocorrem no sistema
como resultado de um estímulo,
Goldstein (1934/1963) declara que
o estado de excitação ocorre tanto
nas partes próximas quanto nas
partes distantes da área estimulada.
A mudança ocorrida nas partes
distantes é necessária não apenas
para o equilíbrio do organismo,
mas também para a execução
precisa
das
performances
requeridas; uma vez que, a precisão
de uma reação em um ponto no
organismo aumenta na medida em
que a relação entre o processo nas
partes próximas (figura) e o
processo no resto do organismo
(fundo) for melhor sucedida.
Segundo
ele,
há
uma
alternância contínua referente a
qual parte do organismo é figura e
qual é fundo. Sendo o primeiro
plano determinado conforme a
tarefa que o organismo precisa
completar em um dado momento,
logo, sua determinação se opera de
acordo com a situação em que o
organismo se encontra e com as
demandas com as quais ele tem que
lidar. As tarefas que o organismo
realiza são definidas pelo que
Goldstein denomina natureza ou
essência do organismo, a qual se
atualiza por meio das mudanças
ambientais que atuam sobre este.
As atualizações da natureza do
organismo são expressas por meio
das suas performances, pois é
mediante elas que melhor lidamos
com as demandas ambientais.
Ao concluir que cada reação
individual se relaciona com o
organismo em sua totalidade,
Goldstein advoga a tese de que as
reações excedem os limites fixados
pela teoria dos reflexos e que o
curso deles é determinado pela
condição do resto do organismo.
Desse modo, o fator que define
uma certa resposta não consiste
apenas no local em que o estímulo
ocorreu – topografia – e nas
propriedades do estímulo. As
investigações realizadas por ele
mostraram que o efeito padrão do
estímulo depende primariamente
de sua significação funcional para o
organismo todo. Para exemplificar
esse fato, o autor nos remete a
situações em que um indivíduo
tolera a dor em prol de um
interesse que ele considere maior.
Nesses casos, que demonstram o
quanto o fator da significância
funcional é importante, a defesa do
organismo contra um ferimento
não é a tarefa mais essencial do
momento para as ações do
organismo.
3. NATUREZA HUMANA:
EXPERIÊNCIAS
PSICOPATOLÓGICAS.
Segundo
Goldstein
(1940/1951), o século XIX tem como
característica mais marcante o
245
Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
aumento
expressivo
do
conhecimento científico em vários
campos, obtido por meio do
método atomístico – procedimento
de dissecação que busca postular
leis a partir das partes estudadas.
Esse
acúmulo
de
dados
proporcionou enriquecimento e
refinamento para a organização do
mundo e, de certa forma,
seguramente, propiciou melhores
condições de vida. No entanto, a
grande especialização das ciências
ocorreu juntamente com uma
acentuada desintegração da vida do
indivíduo. As experiências vividas,
sobretudo na Europa, nas décadas
anteriores a 1940 despertaram uma
grande dúvida quanto ao caráter da
natureza humana. Isso tudo graças
ao
fato
que
determinadas
qualidades foram proclamadas
como virtudes superiores mesmo
estando em completa oposição às
ideias sociais e morais que
constituíram a base da cultura
ocidental durante milhares de anos.
Desse modo, a natureza do homem
se tornou problemática em sua
própria essência e, para Goldstein,
isso, certamente, afetaria toda a
existência da vida humana.
Como consequência dessas
transformações, o interesse em
fenômenos isolados foi diminuído
no período em que Goldstein
realizou suas pesquisas, fato esse
que
significou
um
certo
afastamento dos cientistas em face
da abordagem de cunho atomístico-
mecânica. E, por mais que o
método atomístico fosse o único
procedimento científico legítimo
para a obtenção de fatos, outros
foram criados. Um deles é o
método holístico proposto por
Goldstein, por meio do qual ele
chegou a certas considerações
acerca da natureza humana.
Nesse contexto, ele teoriza
que quando um estudante que
deseja compreender a natureza
humana baseia seus estudos apenas
sobre os resultados de uma
determinada ciência, ele tem
apenas um ponto de partida, já que
nunca poderá chegar a respostas
corretas para as suas questões a
partir do material de um único
domínio. E, tal fato foi levado em
consideração no uso que o autor fez
do
material
patológico
(GOLDSTEIN, 1940/1951). Em
seguida, Goldstein se pergunta
sobre o perigo envolvido no uso de
fenômenos patológicos para a
formulação de ideias relativas à
natureza humana normal e sobre o
porquê
da
utilização
de
observações de seres humanos
alterados
patologicamente.
De
acordo com ele, é preciso
considerar que os fenômenos
patológicos
são
performances
modificadas
de acordo
com
determinadas leis e se tornam
inteligíveis apenas caso se leve em
consideração
as
mudanças
características que a enfermidade
produz. E, buscando lidar apenas
246
Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 246
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
com fenômenos compreensíveis, ele
escolheu um tipo especial de
paciente como base para a sua
discussão. Assim, ao invés de optar
por pessoas mentalmente enfermas,
psicóticos ou neuróticos, ele
escolheu outro tipo de paciente que
fornecesse
material
melhor,
permitindo melhor observação e
melhor compreensão e explanação
das
modificações
do
comportamento.
Trata-se
do
paciente com lesão cerebral.
Goldstein (1934/1963) aponta
que por meio dos estudos
realizados com esses pacientes, ele
chegou à conclusão de que a
tendência básica presente no
organismo doente é utilizar suas
capacidades ainda preservadas da
melhor maneira possível, de modo
a atualizar 218 sua natureza. E, de
acordo com ele, o comportamento
de seus pacientes pode ser
compreendido apenas quando esse
aspecto
era
levado
em
consideração. No entanto, o autor
enfatiza que a vida organísmica
O termo Actualize, presente nos
escritos de Goldstein, corresponde
ao adjetivo actual que geralmente é
traduzido por “real”. Seu sentido, no
entanto, é mais amplo e corresponde
a ser “atual” no espaço e no tempo,
estar
totalmente
ali,
ser
“verdadeiro”, preencher o espaço e o
momento que ocupa. Actualize,
portanto, é sinônimo de atingir tal
estado, de “atualizar”.
218
normal é governada
mesma regra.
por
essa
Nós podemos dizer que um
organismo é governado pela
tendência a atualizar, o máximo
possível,
suas
capacidades
individuais, sua “natureza”, no
mundo. Essa natureza é aquilo
que chamamos de constituição
psicossomática e, na medida em
que é considerada em uma
determinada fase, ela é o padrão
individual, o “caráter” que a
respectiva constituição obteve no
curso da experiência. Essa
tendência a atualizar a “si mesmo”
é o impulso básico, o único impulso
pelo qual a vida do organismo é
determinada 219 (GOLDSTEIN,
1934/1963, p. 196).
No organismo doente, essa
tendência sofre uma mudança
característica. O escopo de vida do
paciente é reduzido de duas
formas. Primeiro, ele é levado a
utilizar
suas
capacidades
preservadas da melhor maneira
possível. Segundo, ele é levado a
manter um certo estado de vida e
não ser perturbado nessa condição.
Por isso, a vida doente é “escassa
de produtividade, desenvolvimento
e progresso e escassa das
peculiaridades características da
vida
organísmica
normal,
especialmente da vida humana”
(GOLDSTEIN, 1934/1963, p. 197).
Desse modo, com frequência, a lei
219
Grifo original do autor.
247
Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
de manutenção do estado existente,
a autopreservação, é considerada a
lei básica da vida. No entanto, de
acordo
com
Goldstein,
tal
conclusão é obtida quando o
pesquisador toma como ponto de
partida experiências realizadas em
condições
anormais
ou
experimentais. Pois, a tendência a
manter o estado existente é
característica em pessoas doente e
revela um decaimento da vida,
enquanto a tendência da vida
normal é direcionada à atividade e
ao progresso. Ele afirma que as
pessoas doentes têm a manutenção
do estado existente como única
forma
de
auto
atualização
remanescente, mas essa não é a
tendência da vida normal, porque
quando
está
sob
condições
adequadas a vida normal busca a
ampliação da atividade. Em
algumas
circunstâncias,
o
organismo normal pode tender
primariamente a evitar catástrofes,
e manter um determinado estado
que possibilite isso. Porém, tal fato
ocorre sob condições inadequadas,
não sendo o comportamento usual,
uma vez que sob condições
adequadas, o organismo normal
procura por novas atividades.
Em
seguida,
Goldstein
(1934/1963) nos explica que o
comportamento
normal
corresponde a uma contínua
mudança de tensão, cujo regente é
o
processo
de
equalização
anteriormente mencionado, e que
assim que o estado de tensão é
atingido, ele possibilita e impele o
organismo a se atualizar por meio
da realização de mais atividades
que correspondam à sua natureza.
Logo, as várias ações realizadas
pelo organismo ocorrem de acordo
com as várias capacidades que
pertencem à sua natureza e a
execução delas se dá conforme os
processos
instrumentais
do
organismo, os quais são os prérequisitos para a sua autoatualização.
A auto-atualização, segundo o
autor, não deve ser considerada um
impulso
especial,
mas
uma
condição especial do organismo em
sua relação com o meio, que
corresponde à sua natureza.
Portanto,
a
atualização
do
organismo diz respeito à adequação
de suas capacidades o meio em que
vive. O organismo é uma unidade,
um todo, que vive em um meio que
sofre variações contínuas de
estímulos, mesmo quando familiar.
Torna-se, então necessário que o
organismo realize compensações e
adaptações,
as
quais
serão
determinadas tanto pelo meio
quanto por sua natureza. Assim,
Goldstein (1934/1963) assume que
há apenas um impulso que
mobiliza o organismo, o impulso
para a auto-atualização. Ele
reconhece que em determinados
momentos a tendência de atualizar
uma certa potencialidade é tão forte
que o organismo é governado por
248
Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 248
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
ela, desse modo uma determinada
potencialidade, a exemplo de sexo e
poder, pode ser considerada
predominante
no
organismo.
Porém,
ela
não
deve
ser
considerada de maior importância
que as outras. Tal julgamento é
realizado apenas quando as
potencialidades são consideradas
fora da vida natural do organismo,
na qual elas estão embutidas nas
atividades como um todo. “O
organismo tem potencialidades
definidas e porque ele as tem, ele
tem necessidade de atualizá-las ou
realizá-las. A realização dessas
necessidades representa a auto
atualização
do
organismo”
(GOLDSTEIN, 1934/1963, p. 204).
Uma forma especial da autoatualização é a necessidade de
completar ações incompletas. Tal
tendência explica muitas das
atividades realizadas pela criança.
Porquanto, em suas inumeráveis
repetições, não estamos lidando
com um impulso sem sentido para
a repetição, mas com a tendência a
completar uma ação a chegar na
perfeição. A força de uma
necessidade é dada na experiência
da imperfeição – seja fome, sede ou
a experiência de estar capacitado
para realizar qualquer performance
que pareça estar dentro das
capacidades do indivíduo – e o
objetivo é a realização da tarefa.
Dessa maneira quanto
mais
próximo o indivíduo, seja ele
criança ou adulto, está da perfeição,
maior é a necessidade de realizar
performances.
Conforme o caminhar da criança
é imperfeito, ela tende a andar e
andar, sem outro objetivo além
de andar. Depois que o seu
caminhar está perfeito, ela usa
esse instrumento para atingir um
ponto especial que atrair sua
atenção, ou seja para completar
outra performance, e assim por
diante (GOLDSTEIN, 1934/1963,
p. 205).
Ao
mencionar
suas
descobertas
acerca
do
funcionamento do organismo, as
quais possibilitaram a ele uma
melhor compreensão da natureza
humana, Goldstein (1959/1971)
afirma que um dos motivos das
falhas no tratamento de pacientes
com lesões cerebrais era a
negligência
com
relação
à
possibilidade
de
sintomas
aparentemente similares poderem
ter origens diferentes. De acordo
com o autor, apenas sabendo disso
seria possível evitar tratamentos
inadequados e obter resultados
melhores. Utilizando um novo
método de investigação, ele relata
ter descoberto que estava lidando
com dois tipos diversos de
sintomas. Em um grupo, os
sintomas ocorriam devido a danos
na capacidade abstrata (mudança
no comportamento) e, no outro,
eles ocorriam em virtude de
possíveis danos no comportamento
249
Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
concreto (danificação das funções
da matéria cerebral).
Conforme nota Goldstein
(1934/1963),
as
perturbações
caracterizadas pela mudança no
comportamento de seus pacientes
consistiam no fracasso sempre que
era necessário transcender a
experiência concreta, imediata. Os
pacientes falhavam sempre que
precisavam se referir às coisas de
modo imaginário. No entanto,
quando o resultado poderia ser
alcançado por meio de material
concreto,
palpável,
seus
desempenhos obtinham sucesso.
Por isso, ele caracteriza a
deficiência apresentada por seus
pacientes como uma falta de
domínio do abstrato, inabilidade
para se dar conta de seus próprios
atos e pensamentos, incapacidade
para fazer uma separação entre o
eu e o mundo e falta de liberdade.
Sendo que todos esses fatos dizem
respeito a uma mesma coisa: a falta
de uma atitude em direção ao
abstrato.
A percepção de concretude
por diferentes pacientes não se
expressaria necessariamente da
mesma forma em uma determinada
tarefa. Aquilo que é concreto para
um
indivíduo
pode
ser
compreendido apenas dentro do
quadro de referência desse paciente
em
particular,
levando
em
consideração sua individualidade
pré-mórbida, suas capacidades
mudadas devido ao adoecimento e
a
situação.
Assim,
o
comportamento concreto pode se
expressar de diferentes formas em
diferentes pacientes com o mesmo
tipo de lesão. Ademais, em
performances concretas, a reação é
determinada diretamente por um
estímulo. O procedimento do
indivíduo é, por conseguinte,
passivo de certa forma, como se não
fosse ele quem teve a iniciativa.
Enquanto
nas
performances
abstratas a ação não é determinada
direta e imediatamente pela
configuração de um estímulo, mas
pela situação em que a pessoa se
encontra.
Nesse
caso,
a
performance se mostra uma forma
totalmente diferente do organismo
chegar a um acordo com o mundo
exterior. Pois, o indivíduo precisa
considerar a situação a partir de
vários aspectos, selecionar qual
deles é essencial e agir de maneira
apropriada para o todo da situação.
Esse procedimento pode ter vários
graus
de
complexidade
(GOLDSTEIN, 1940/1951).
Algumas vezes a situação não
demanda nada além de destacar
uma propriedade de um objeto,
como, por exemplo, quando
somos solicitados a ordenar
objetos de acordo com as suas
cores. No mais alto grau de
complexidade nós temos não
apenas que apreender objetos
por meio de certos tipos
característicos mas que escolher
aspectos para considerar de
250
Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 250
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
acordo com uma certa tarefa que
demanda
uma
organização
conceitual
(GOLDSTEIN,
1940/1951, p. 60).
Porém, segundo Goldstein
(1940/1951), mesmo na forma mais
simples, a abstração é separada do
comportamento concreto, não há
uma transição gradual de um para
o outro. A atitude abstrata não
consiste em um grau mais
complexo
do
comportamento
concreto, ela é uma atividade do
organismo totalmente diferente. E,
por esse motivo, declara que não se
deve
designar
ambos
como
comportamento (comportamento é
um termo que conota atividade real
e é especialmente adequado para a
performance concreta), a abstração
representa melhor uma preparação
para a atividade, ela envolve uma
atitude, uma abordagem interior
que leva à atividade. Logo, convém
referir-se a ela enquanto uma
atitude em direção ao abstrato.
A ação real nunca é abstrata,
ela é sempre concreta. Em situações
concretas a ação é definida
diretamente pelo estímulo; em
situações que envolvem o abstrato a
ação é iniciada depois da
preparação que tem a ver com uma
consideração do todo da situação.
Tais explanações podem fazer
parecer que o comportamento
concreto ocorre em completa
independência da atitude abstrata,
determinado apenas pela situação
externa, mas esse não é o caso. O
comportamento
normal
é
caracterizado pela alternância entre
uma atitude envolvendo o abstrato
e outra envolvendo o concreto. Essa
alternância
ocorre
de
modo
apropriado
à
situação,
à
individualidade e à tarefa para a
qual o organismo está voltado. A
excitação e o curso normal da ação
pressupõem, de alguma forma, a
atitude abstrata. A ação raramente
ocorre pela situação do estímulo em
si. Em geral, o indivíduo tem que se
posicionar,
pelo
menos
na
imaginação,
na
situação
apropriada. O mundo exterior
fornece o impulso e a iniciação de
uma ação demanda a atitude
abstrata. Da mesma forma, durante
um ato concreto, a atitude abstrata
nunca é totalmente excluída. A
performance
concreta
é
fundamentada na atitude abstrata
em sua iniciação e recebe seu
controle regulador durante o seu
curso.
O desvio característico do
comportamento dos pacientes com
lesões cerebrais relatado por
Goldstein (1940/1951) corresponde
a uma mudança no mundo em que
o indivíduo vive. Sua incapacidade
de realizar performances que
demandam uma atitude abstrata
significa não apenas uma restrição
de sua personalidade, mas também
uma restrição do mundo em que ele
vive. Além disso, não ocorre apenas
a diminuição dos conteúdos de seu
251
Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
ambiente e a restrição de suas
capacidades, há também uma
diminuição de sua liberdade de
ação. Por isso, avalia que as
performances correspondentes ao
melhor funcionamento da parte
mais complexa do cérebro são as
mais importantes, já que elas
representam a capacidade mais alta
do organismo. Assim, ele infere que
o
comportamento
abstrato
representa a mais alta capacidade –
na verdade, a capacidade essencial
– do ser humano. E, como
consequência, a fala é uma das
características especiais da natureza
humana, visto que está ligada à
mais elevada capacidade do
homem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Goldstein
foi
um
neurocientista de destaque na
história do conhecimento científico.
Durante toda a sua carreira suas
ações estavam votadas para a
prática. Ele buscou estudar seus
pacientes com o intuito de
compreender
os
processos
vivenciados por eles e propor uma
prática médica que tivesse como
centro as necessidades desses
indivíduos. Seus escritos são
extremamente ricos e forneceram as
bases para o desenvolvimento de
diversos campos, a exemplo da
Neurologia
(SACKS,
1995),
Neuropsicologia (LURIA, 1966),
Psicologia
(LOFFREDO,
1994;
PERLS, 1979; Moreira, 2010) e
Filosofia (SPIEGELBERG, 1972;
NOPPENEY, 2001). Retornar às
suas
obras,
conhecer
o
desenvolvimento de seu trabalho e
os conceitos apresentados por ele
nos
possibilita
acessar
o
pensamento
que
influenciou
pensadores da sua geração e as
subsequentes, além de fornecer
subsídios epistemológicos para um
conjunto de práticas clínicas e
psicoterápicas.
Esse artigo foi escrito com o
objetivo de realizar uma introdução
de seu pensamento – de sua
“fenomenologia” – considerando a
ausência de traduções de seus
livros para a língua portuguesa e a
escassez de trabalhos produzidos
no país voltados para o estudo de
suas ideias. Para isso, duas de suas
obras, consideradas por estudiosos,
a exemplo de Kahlmeyer-Mertens
(2015),
como
seus
trabalhos
principais foram tomadas como
referência.
A
partir
disso,
elementos
considerados
característicos de seus escritos
foram
apresentados
com
a
pretensão de ampliar o acesso às
suas ideias e, de alguma forma,
promover uma retomada de seu
trabalho.
Desse
modo,
concordamos com Sacks (1995, p.
14):
Muito
do
que
Goldstein
registrou, ponderou e descreveu
para nós com cuidado minucioso
252
Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 252
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
e detalhadamente reside no
verdadeiro coração da Medicina
e da Neurologia e pode, talvez,
ser entendido agora – pelo
menos reaplicado e reconciliado
– com as ferramentas mais
poderosas e com os conceitos do
nosso
tempo.
Portanto,
é
apropriado reviver a observação
e os pensamentos desse homem
notável, que viu e descreveu
tanto em seu próprio tempo para
ver quais ressonâncias suas
ideias teriam para nós agora.
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Fenomenologia, organismo e vida: uma introdução à obra de Kurt Goldstein
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Submetido: 29 de agosto 2017
Aceito: 05 de setembro 2017
254
Prof. Dr. Adriano Furtado Holanda
Ms. Jennifer da Silva Moreira
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 254
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
1927 Marcel, Heidegger and historiographical
misconceptions
Prof. Dr. Franco Riva
Università Cattolica del Sacro Cuore di Milano220
RIASSUNTO
Fin troppo abituati a leggere il 1927 di Heidegger (Sein und Zeit) e di Marcel (Journal
Méthaphysique) con gli occhi del dopo e delle filosofie dell’esistenza, non ci si accorge
sempre di una lettura diversa già in corso con gli occhi del prima e di Io e Tu (1923) di
Buber. Il comune racconto polemico e antisartriano rivendica l’Essere più che l’esistere,
ma rischia di fermarsi alla vicinanza, dentro cui si prepara invece un racconto alternativo
che imparenta Marcel più con il principio dialogico (Buber, 1954) e il pensiero dell’altro
(Lévinas,1975). «Accordo fondamentale» con Heidegger per lo Zuspruch des Seins e la
Verità come apertura, «prossimità metafisica», sensibilità comune, influenze. Fanno però
da netto contrasto l’«accordo disaccordo» e le «differenze essenziali» di Marcel per le
aperture bloccate, il filosofare astratto, il «disconoscimento dell’altro» (Ma relation avec
Heidegger, 1957, 1979). E quel «credere di stare davanti al mistero» di Heidegger (Lettera
sull’umanismo, 1947) sembra una svista.
PAROLE CHIAVE
Marcel; Heidegger; Essere; Esistenza; Contrappunti.
ABSTRACT
We are too familiar to consider the year 1927 of Heidegger (Sein und Zeit) and Marcel
(Journal Méthaphisique) by the categories of the “after” and the philosophies of existence
to the point where we can’t no longer feel a different interpretation by the categories of
the “before” and of Buber’s I and You (1923). The common polemical and anti-sartrian
novel claims the Being, rather than the existence, but it liskely to stop at the proximity, in
which we can see an alternative novel, that brings Marcel closer to the dialogic principle
(Buber, 1954) and the thought of the Other (Lévinas, 1975). “A fundamental agreement”
220
E-mail: franco.riva@unicatt.it
255
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
with Heidegger for the Zuspruch des Seins and the Thruth as an openness, “methaphysical
proximity”, shared sensibility, influences. But the Marcel’s “accord-désaccord” and the
“fundamental differences” for the blocked openings, the abstract philosophize, the
“disowning of the Other” marked contrast to there (Ma relation avec Heidegger, 1957,
1979). And also the Heidegger’s “belief to stand in front of the mistery” (Letter on
Humanism, 1947) sounds like an oversight.
KEYWORDS
Marcel; Heidegger; To Be; Existence; Counterpoints.
Con simili asserzioni crediamo di
stare dinanzi al mistero, come se
fosse pacifico che la verità
dell’essere possa essere fatta
poggiare su cause e ragioni
esplicative o, che è lo stesso, sulla
sua inafferrabilità.
Martin
Heidegger,
Lettera
sull’umanismo, 1947
Per quanto concerne lo Zuspruch
des
Seins
c’è
un
accordo
fondamentale tra me e Heidegger,
contro Sartre… questo discorso in
negativo
[mistero]
porta
a
riconoscere che il pensiero in nessun
modo può porsi di fronte all’Essere
come fosse un oggetto.
1. RACCONTI POLEMICI/
RACCONTI ALTERNATIVI
Sein und Zeit di Martin Heidegger e il
Journal Métaphysique di Gabriel Marcel
appaiono entrambi nel 1927. L’anno
entra presto nella storiografia filosofica e
si riflette in L’esistenzialismo è un
umanismo (1946) di Jean-Paul Sartre,
preceduto dai pensieri di Jean Wahl su
soggettitivà e trascendenza (1937).
Dell’esistenzialismo Sartre presenta
Gabriel Marcel, Ma relation avec
Heidegger, 1957
In un testo eccellente, il Giornale
metafisico (1927) di Gabriel Marcel,
viene abbozzato il punto di vista
centrale
e
le
sue
relative
conseguenze.
Martin Buber, Per la storia del
pensiero dialogico, 1954
Ma l’essere qui non è coscienza di
sé, è rapporto con l’altro da sé e
risveglio.
Emmanuel Lévinas, Une nouvelle
rationalité. Sur Gabriel Marcel, 1975.
appunto, in chiave umanistica, le aree
transnazionali
(«atea»:
Heidegger,
Sartre; «cristiana»: Jaspers, Marcel) e
l’unica, famosa, tesi condivisa da tutti,
ossia che l’«esistenza precede l’essenza».
Le reazioni immediate di Heidegger
prima a Wahl (Lettera a Jean Wahl, 1937)
e poi a Sartre (Lettera sull’umanismo,
1947), e quelle di Marcel (La mia relazione
con Heidegger, 1957), ribaltano infine la
prospettiva a favore dell’Essere, e non
dell’esistenza, imparentandoli tra loro.
256
Prof. Dr. Franco Riva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 256
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Seguiti da revisioni interpretative che ne
prendono atto, com’è per Paul Ricoeur.
Fin troppo abituati a leggere il 1927
di Marcel e Heidegger con gli occhi
del
dopo
e
delle
filosofie
Nonostante
la
sensibilità
dell’esistenza, viene meno spontaneo
ontologica comune di Marcel e
pensare che della stessa data era già
Heidegger, che s’incontrano nel 1947
in corso una lettura in senso
in Germania e nel 1956 in Francia, il
contrario, con gli occhi del prima e di
rovesciamento
di
prospettiva
Io e Tu (1923) di Martin Buber.
dall’esistenza all’Essere non equivale
Risentito all’inizio per un sospetto
per nulla a un tirare la barca in secco
quasi di plagio nei suoi confronti,
come fosse il punto d’approdo
Buber realizza infine la felice e
definitivo e pacifico di una vicenda
indipendente consonanza con il
che resta tormentata. Vuoi perché la
Giornale metafisico di Marcel (iniziato
vicinanza nasconde in sé la distanza,
a dire il vero nel 1913) – che entra
vuoi perché un secondo movimento
così di fatto in una contingenza
si affianca e attraversa il primo, più
alternativa e altrettanto fortunata che
reattivo e interno alla filosofia
lo convoca ad altre familiarità, per la
dell’esistenza, sia per discutere
filosofia del dialogo.
solidarietà vecchie (Marcel, Jaspers)
In Per la storia del pensiero dialogico
e nuove (Marcel, Heidegger), sia per
(1954) di Martin Buber, allora, il
annunciare
prossimità
inedite.
Giornale metafisico di Marcel compare
Movimento s’intende dapprima
con l’elogio di averne colto l’essenza.
parallelo e cauto, che irrompe
Buber che in diretto confronto
tuttavia ed esplode proprio quando
condivide tutto sommato i dubbi di
il primo, con i suoi rovesciamenti,
Marcel sul termine «relazione»
sembra
vincere
e
convincere.
privilegiato in Io e Tu. Marcel apre in
Movimento, ancora, che non vede
compenso i cantieri ufficiali su
protagonisti gli equivoci e le
Buber: il volume statunitense per i
etichette, la fortuna e i manuali,
«Living
Philosophers»,
bensì i filosofi stessi, Buber, Marcel,
editorialmente sofferto (1957, 1963,
Ebner, Lévinas. Movimento che
1967); e quello del Centro nazionale
prende in contropiede, sfonda in un
di alti studi ebraici di Bruxelles
nuovo decennio (tra il 1957 e il 1968
(1968), seguito a ruota da Lévinas
circa) e dà luce a parentele in essere
che scrive volentieri su Buber e
con la filosofia del dialogo e l’altro
Marcel congiunti e li considera,
pensiero. Documentando per il 1927
nonostante tutto, la vera famiglia.
di Marcel, nello stesso tempo,
L’etica come filosofia prima; non è
contingenze e tensioni diverse
questione di Essere; l’altro.
rispetto
a
quelle
abusate
Tutta un’altra storia, un altro
dell’esistenzialismo.
movimento. Avvalorati da Marcel
che intravede accordi e disaccordi, a
257
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
partire dalla differenza di stile e
d’intento filosofici tra il proprio
Giornale metafisico ed Essere e tempo di
Heidegger. Marcel stesso pone
dunque il problema di cosa prevale
nella contingenza del 1927, se un
racconto
polemico
e
antiesistenzialistico che lo riavvicina ad
Heidegger in nome dell’Essere o un
racconto alternativo che, dentro
l’accordo, li divarica in nome
dell’altro da sé. Anche se i
documenti del racconto polemico
sono più in vista, se il testo della
conferenza su Heidegger del 1957
resta inedito fino al 1979 (non altri
testi però), e se Marcel è coinvolto
nel racconto alternativo di Buber e
Lévinas come protagonista di cui
narrare nello stesso momento in cui
si coinvolge, vedi fare da apripista
negli omaggi collettivi su Buber.
Ad assorbire come una spugna i
codici della vicinanza e della
distanza che si travasano di continuo
da una parte e dall’altra, nel primo
come nel secondo movimento, nel
racconto polemico come in quello
alternativo, sono le parole dell’Essere
e dell’altro che, pur facendosi ancora
compagnia, cominciano a entrare in
rotta di collisione. Nell’Essere Marcel
e Heidegger convergono, sull’altro
divergono al punto che neppure il
significato del primo termine resta
più lo stesso, come sottolinea
Lévinas spingendo il pedale di «una
nuova razionalità» (LEVINAS, 1975).
I movimenti che investono Marcel e
Heidegger né si arenano tra rifiuti e
rettifiche, né finiscono con la crisi
scontata
del
paradigma
dell’esistenzialismo. Dal loro stesso
interno, con le parole stesse
dell’Essere e dell’altro, spingono
piuttosto verso un racconto diverso
che, non del tutto estraneo alla
narrazione che contesta, una volta
partito non si volta più indietro.
Così, il racconto polemico e
antisartriano che rivendica l’Essere
più che l’esistere, pur condiviso da
Marcel e Heidegger, è attraversato e
lascia spazio a un racconto
alternativo.
2. 1927. CONTINGENZE E
INCIDENTI
Con la pubblicazione di Essere e
tempo di Heidegger e del Giornale
metafisico di Marcel non c’è dubbio
che il 1927 segni una concomitanza
editoriale formidabile per la filosofia
contemporanea, rimarcata da tempo
e in modi diversi. Una contingenza
fortunata che diventa tuttavia, fin
troppo presto, un luogo comune
storiografico della filosofia del 900 e
dell’esistenzialismo in particolare, di
cui segna la prima data significativa
sulla spinta della Kierkegaard
Renaissance e della Lettera ai Romani
di Karl Barth (1919). A distanza di
novant’anni,
è
impossibile
nascondersi tanto i pentimenti per
questo luogo comune, quanto, e
soprattutto, le reazioni di Heidegger
e di Marcel che s’intrecciano fino a
un
certo
punto.
258
Prof. Dr. Franco Riva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 258
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
“filosofi
dell'esistenza”»
(PAREYSON, 1975, pp. 90 ss.).
Sartre in effetti, nel tentativo di
arginare le accuse di anti-umanesimo
e di immoralità, semplifica alquanto
con L’esistenzialismo è un umanismo
(1946) il quadro delle filosofie
dell’esistenza. L’esistenzialismo ha in
comune un solo principio, che
«l'esistenza precede l'essenza, o, se
volete, che bisogna ripartire dalla
soggettività». Per il resto, i cammini
divergono perché «vi sono due
specie di esistenzialisti: gli uni che
sono cristiani, e fra questi metterei
Jaspers
e
Gabriel
Marcel,
quest'ultimo di confessione cattolica;
e gli altri che sono gli esistenzialisti
atei, fra i quali bisogna porre
Heidegger, gli esistenzialisti francesi
e me stesso» (SARTRE, 1986, pp. 4143, 46-51). Soggettività per tutti,
quindi, ma declinata in modo più
radicale e coerente per l’area laica,
«atea», di Heidegger e Sartre
(l’esistenza precede l’essenza, la
morte di Dio, finitezza, essere gettati,
coscienza e nulla), e meno per quella
«cristiana», e in parte cattolica, di
Jaspers e Marcel (paradosso, limite,
male, mistero, trascendenza, corpo).
Forse ricordandosi del saggio di
Marcel che introduce Jaspers in
Francia nel 1933 (cfr. MARCEL,
1945).
In realtà, per moda, periodi e
parentele dell’esistenzialismo non
bisognava certo attendere Sartre che
con il suo intervento agisce semmai
da aggravante. Il 4 dicembre 1937
Jean Wahl organizza un incontro
259
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
Per i pentimenti basta ricordare Paul
Ricoeur e Luigi Pareyson che
coinvolgono direttamente Marcel e
Heidegger. La parabola di Ricoeur è
davvero emblematica perché, dopo
avere insistito sulla scia di Sartre con
ben due libri sulla vicinanza tra
Marcel e Jaspers (RICŒUR, 1948;
RICŒUR,
DUFRENNE,
1947),
privilegia infine quella alternativa tra
Marcel e Heidegger passando non a
caso attraverso un confronto,
metodologico e fenomenologico, tra
Marcel e Husserl intorno al corpo
proprio, «mio» per il primo e
«vissuto» per il secondo (RICŒUR,
1950; RIVA, in DE FREITAS DA
SILVA, RIVA, 2017, pp. 394-397). Nei
Colloqui con Marcel del 1968 Ricoeur
non teme di smentirsi. Ammette di
essere stato, all’inizio, «molto più
sensibile alla sua prossimità con
Jaspers piuttosto che con Heidegger.
Quando invece oggi la tendenza è di
accentuare, in contrasto, distanza e
opposizione rispetto a Jaspers,
peraltro allora intraviste, per mettere
in risalto tutto ciò che avvicina ad
Heidegger, a dispetto di apparenze
contrarie che rimangono comunque
molto forti» (RICŒUR, MARCEL,
1968, pp. 83-84). Pareyson, dal canto
suo, accusa Sartre di essersi
impadronito nel dopoguerra con tale
prepotenza
«del
termine
di
esistenzialismo» che, per inevitabile
«contraccolpo, i veri esistenzialisti,
come Heidegger, Jaspers e Marcel,
non vollero più esser chiamati tali,
accettando tutt'al più il nome di
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
internazionale a Parigi per la Società
francese di Filosofia sugli equivoci
della
«filosofia
dell’esistenza»,
invitati anche Heidegger e Jaspers,
Marcel e Berdajev, Lavelle, Lévinas,
Löwith. Marcel era presente, mentre
Heidegger e Jaspers scrivono due
righe per giustificarsi. Più sbrigativa
la lettera di Jaspers, che liquida il
problema decretando il «non senso»
dell’«esistenzialismo», più articolata
quella di Heidegger che rimanda
piuttosto alla questione dell’Essere
(JASPERS,
1937,
p.
193;
HEIDEGGER, 1937, p. 193). Più che
di esistenzialismi autentici o di
affinità elettive, queste reazioni
secche e tempestive rifiutano come
prioritaria la questione stessa
dell’esistenza. Tutto allora esplode
fin dall’inizio dall’interno stesso di
ciò che si vuole etichettare,
imparentare e datare. Anche se non
si tratta solo di questo, di esistenza o
Essere, di vicinanze o distanze.
3. UN RIFIUTO PROFETICO
Le parole di Heidegger per la
mancata partecipazione all’incontro
di Wahl sulla filosofia dell’esistenza
non lasciano dubbi; e sono un
programma teorico e narrativo: «Vi
ringrazio molto per l'amabile invito
alla vostra conferenza, alla quale io
non posso sfortunatamente assistere
a causa del lavoro del semestre in
corso. Le vostre considerazioni
critiche sul soggetto della “filosofia
dell'esistenza” sono molto istruttive,
devo tuttavia ripetere che le mie
tendenze filosofiche, anche se in
Essere e tempo è questione di
“Esistenza” e di “Kierkegaard”, non
possono essere classificate come
filosofia dell'esistenza. Ma questo
errore di interpretazione sarà
probabilmente difficile da eliminare
per il momento. Sono del tutto
d'accordo con voi nel dire che la
“filosofia dell'esistenza” è esposta al
doppio pericolo di cadere sia nella
teologia, sia nell'astrazione. Ma la
questione che mi preoccupa non è
quella dell'esistenza dell'uomo; è
quella dell'essere nel suo insieme e in
quanto tale» (HEIDEGGER, 1937, p.
193).
Essere e tempo, esistenza e
Kierkegaard,
di
sicuro,
ma
rimettendo al posto che le compete, il
primo, la parola dell’Essere. Le scuse
garbate
di
Heidegger
(«sfortunatamente») per un’assenza
dovuta al semestre di insegnamento,
vengono surclassate da un rifiuto
senza mezzi termini e ribadito
ancora una volta («devo tuttavia
ripetere») di essere collocato in
filosofie dell’esistenza e tematiche
esistenzialistiche, essendo interessato
alla questione dell’Essere nel suo
insieme e in quanto tale. Di modo
che le scuse coprono un rifiuto nove
anni prima di Sartre.
Heidegger non si limita a liquidare
esistenzialismo e dintorni con un
drastico «non senso» come fa
Jaspers, perché sente il bisogno
260
Prof. Dr. Franco Riva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 260
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
polemica, con la Lettera sull’umanismo
che mette in forma argomentativa il
rovesciamento di prospettiva. Perché
non si tratta per nulla del rapporto
dell’uomo con l’Essere, bensì della
«relazione dell’Essere all’essenza
dell’uomo».
Stessa
cosa
per
l’Introduzione
alla
metafisica
(1935/1955) dove, oltre a ribadire che
il vero problema è piuttosto la
comprensione
dell’Essere,
e
dell’uomo in rapporto all’Essere, si
critica la metafisica occidentale che
scambia l’Essere con l’essente, fonte
di tutti gli equivoci e della necessità
di una storia della dimenticanza.
Annunciata fin da Essere e tempo, per
Heidegger è indispensabile una
«distruzione della storia ontologica
dell'ontologia»
al
punto
da
riconoscere che, nell’intervista a «Der
Spiegel» (1966), «tutto il mio lavoro,
nelle lezioni e negli esercizi degli
ultimi
trent'anni,
è
stato
sostanzialmente
soltanto
interpretazione
della
filosofia
occidentale» (HEIDEGGER, 1987, p.
141; cfr. HEIDEGGER, 1980, § 6, p.
37; MARCEL, 1945, pp. 81-110).
Tra Heidegger e Marcel è
sintomatica soprattutto la sintonia
dislocata
sugli
equivoci
dell’esistenzialismo, non priva di
criticità, che emerge in due
conferenze: di Heidegger in Francia
nel 1956 a Cerisy-la-Salle (Che cos’è
questo – La filosofia?), dove è Marcel a
rendergli il pubblico omaggio finale
incontrandolo per la seconda volta; e
di Marcel in Germania l’anno dopo
(Ma relation avec Heidegger), inedita
261
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
d’impugnare in breve la questione.
Soprattutto, di esplicitare che non si
riconosce in generale, né gli interessa
nulla in dettaglio, di quanto espresso
da Wahl nelle note preparatorie,
Soggettività e trascendenza, fatte
circolare in anticipo per prepararsi
all’incontro parigino; e che rimanda
al mittente sia in se stesse che per ciò
che assorbono delle ermeneutiche
circolanti
sulla
filosofia
dell’esistenza.
Soggetto
e
oltrepassamento, radici teologiche
(kierkegaardiane) e versioni laiche
(essere
al
mondo,
situazione,
storicità, colpa), pensieri fascinosi «di
nostalgia e di eco del religioso», la
«filosofia esistenziale», una «teoria
generale dell'esistenza» ma astratta
rispetto alle esistenze concrete, «al
tempo stesso più “esistenziali” e più
veramente filosofiche», di un
Rimbaud, Van Gogh o Nietzsche, il
«pericolo» che ne consegue (WAHL,
1937, pp. 162-163). Con un radar
incredibile e profetico, Heidegger
paventa ben altri pericoli che non
quelli delle filosofie esistenziali,
primo fra tutti il fatto che i tempi per
«eliminare» il madornale «errore di
interpretazione» non saranno certo
rapidi.
Senza che l’impostazione muti di
una virgola, e senza che la profezia
sui tempi lunghi per sbrogliare la
matassa di equivoci venga smentita,
da questo momento in poi Heidegger
esplicita il suo punto di vista, lascia
pagine decisive sulla questione
dell’Essere
e
dell’esistenza,
e
risponde a Sartre nel 1947, in
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
fino al 1979. Nel 1956 in Francia
Heidegger interpreta l’esistenza
come «corrispondenza» con l’Essere,
visto che «rispondere» («antworten»)
significa
in
senso
proprio
«corrispondere» («entsprechen»), e il
rispondere a sua volta, più che
«replica alla domanda», è una
«corrispondenza che corrisponde,
fronteggiandolo,
all'essere
dell'essente» il cui appello viene
eluso (HEIDEGGER, 1981, pp. 33 e
ss., 25 ss.). Nel 1957 in Germania
Marcel indica nell’appello dell’Essere
(«Zuspruch des Seins») un «accordo
fondamentale»
con
Heidegger.
Appello che rappresenta una
«rottura decisiva del cerchio in cui si
muove il pensiero sartriano – non
direi forse il pensiero esistenzialista
in generale» perché, come dice
Heidegger stesso, «non è l’uomo che
decide» del manifestarsi dell’Essere
(MARCEL, 1979, p. 31).
4. OSCILLAZIONI
Accordo
fondamentale
per
l’appello dell’Essere tra Marcel e
Heidegger nella seconda metà degli
anni Cinquanta, dunque, ma con una
discrasia temporale di non poco
conto. Infatti, se Heidegger negli
anni successivi esplicita un rifiuto
assunto nettamente fin dal 1937,
Marcel ammette nella conferenza su
Heidegger del 1957 a Oberhausen (5
aprile), e replicata a Berlino il 14
maggio, di avere «rifiutato l'etichetta
di esistenzialista che genera solo
confusione» da «sette o otto anni
almeno», a ridosso perciò del
fenomeno Sartre e della baraonda
esistenzialista dei secondi anni
Quaranta. Nella stessa conferenza
Marcel polemizza ancora con Sartre
che «aveva proposto una sorta di
classificazione rudimentale, subito
recepita nei manuali per la sua
semplicità, in virtù della quale Sartre
e Heidegger erano i rappresentanti
dell'esistenzialismo ateo, mentre
Jaspers e io eravamo presentati come
i
campioni
dell'esistenzialismo
cristiano». Peccato che – quasi
memoria implicita del «non senso»
di Jaspers – « questa classificazione
non significhi in realtà quasi nulla»
(MARCEL, 1979, p. 31; cfr. p. 25).
Rispetto alla reazione tempestiva di
Heidegger, il rifiuto di Marcel è
spostato in avanti di un decennio
circa, in coincidenza grossomodo con
il primo incontro personale e la
Lettera sull’umanismo. Spostamento in
avanti che si accompagna con un
risultato simile per via del comune
rifiuto finale, ma tenendo conto di un
inizio più altalentante per una serie
di circostanze e di clima culturale
diversi.
A fare da spartiacque della rottura
sono infatti proprio gli anni sartriani
1946-1947, che impilano come in un
albero della cuccagna e degli
equivoci L’esistenzialismo è un
umanismo (1946) di Sartre, il
Congresso internazionale di Roma
sull’esistenzialismo (1946), il volume
parigino sull’Esistenzialismo cristiano
262
Prof. Dr. Franco Riva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 262
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
specializzata, e che non di meno ha
la
tendenza
a
«scolarizzarsi»
perdendo così «il suo carattere e il
suo accento originale» – coinvolti
Kierkegaard, Heidegger, Jaspers e
«qualche filosofo francese» tra cui
Marcel stesso («dont je suis»). Circa
l’esistenzialismo Marcel contesta
molto, ma oscillando e concedendo
un poco. Contesta l’appropriazione
indebita di Sartre, né fondatore né
avanguardia dell’esistenzialismo, il
minor rigore di quello «cristiano»
rispetto a quello «ateo» (MARCEL,
1947, p. 157), che Heidegger si possa
considerare esistenzialista, tanto più
ateo, chiamando in causa la «parte
inedita della sua opera» ben più
importante di quella «pubblicata
finora», e che costringerà «a
verificare le interpretationi parziali e
premature» del suo pensiero.
Bisogna in definitiva evitare ogni uso
generico e vago del termine
esistenzialismo, che va circoscritto
«storicamente»
perché,
come
suggerisce Wahl, «prende senso e
valore» nella reazione a Hegel e
all’idealismo (MARCEL, 1974, p. 158;
cfr. MARCEL, 1968, p. 28). Dentro
contestazioni e oscillazioni, il rifiuto
di Marcel esplode senza mezzi
termini negando per se stesso e per
Heidegger sia l’esistenzialismo sia le
aree
atea
o
cristiana.
Con
l’ammissione di avere in effetti
«usato il termine» esistenzialismo
«ma in maniera provvisoria» e con
l’intento di sbarazzarsene il prima
possibile, nel Testamento filosofico
Marcel trasforma in questo modo le
263
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
dedicato a Marcel (1947), curato da
Etienne
Gilson,
la
Lettera
sull’umanismo (1947) di Heidegger e
altro
ancora
come
numeri
monografici di riviste. A ritroso,
Marcel rilegge se stesso in bilico tra
qualche concessione iniziale a
termini in voga quali esistenzialismo,
ateo, cristiano, e un repentino
cambio di marcia non appena
costatato il montare degli equivoci a
livello internazionale. Se recrimina
con forza contro le etichette nel
momento del rifiuto, Marcel ha non
di meno l’onestà di ammettere le
oscillazioni. Si pente ad esempio di
avere concesso all’editore Plon nel
1947
il
titolo
sartriano
di
Existentialisme chrétien per il volume
collettivo su di lui, confessando
tuttavia nello stesso tempo di avere
utilizzato la formula in un dibattito
del 1945.
Due testi di Marcel del 1947 sono
esemplari per il possibilismo iniziale
(Esistenzialismo e pensiero cristiano in
«Témoignages»; MARCEL, 1947, pp.
157-169; MARCEL, 1946; MARCEL,
1947; MARCEL, 1981) e il definitivo
rifiuto
(Esistenzialismo
cristiano;
GILSON, 1947). Nella seconda parte
di Esistenzialismo e pensiero cristiano
Marcel ripercorre il proprio itinerario
filosofico.
Nella
prima
parte
interviene
invece
sull’esistenzialismo, le sue forme e
Sartre. A parte la polemica scontata,
Marcel ricorda le proprie riserve sul
termine esistenzialismo che in
Francia ha avuto fortuna più nella
pubblicistica che nella letteratura
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
oscillazioni della prima ora in un
anticipo del successivo rifiuto
(MARCEL, 1969, p. 254).
Nel quarto dei Colloqui con Ricoeur
(1968) Marcel, di fronte al suo
tentativo di far sopravvivere almeno
la parola «cristiano», prende tutte le
distanze possibili sottolineando di
aver colto ogni occasione, dal 1949
almeno, per ribadire il rifiuto e
denunciare l’«orrore delle etichette e
degli ismi di ogni sorta», ivi
compreso l’esistenzialismo. Marcel
rigetta Sartre e le sue etichette,
scoperte a Roma nel 1946 senza darvi
troppo peso, ma in termini sempre
più severi come avviene in La mia
relazione con Heidegger (1957) e nel
Testamento filosofico (1969). Quella di
Sartre
è
una
«classificazione
rudimentale» e «falsa», che «non
corrisponde quasi a nulla» e «che
non regge», una «volgarizzazione
imprudente» e «accolta dai manuali
per la sua semplicità» (MARCEL
1957, p. 31; MARCEL 1969, pp. 254255). Marcel scarica, ancora, la
responsabilità
del
titolo
Esistenzialismo
cristiano
parte
sull’editore Plon parte su Louis
Lavelle, con cui si era consultato
dubbioso sentendosi rispondere che,
in fin dei conti, poteva pur fargli una
concessione anche se «non amava
più di lui» l’espressione – pagandola
puntualmente con gravi sottintesi
(RICŒUR, MARCEL, 1968, pp. 7375, cfr. 71-92; cfr. MARCEL, 1971, pp.
228-230).
Di fronte a Ricoeur, Marcel scarta
con decisione sia il termine cristiano
che filosofia cristiana, a meno non si
tratti di una paradossale «negazione
d'una negazione», del fatto cioè di
non potersi non dir tale tutto
sommato, preferendovi di sicuro
«filosofo della soglia», situato sulla
«linea mediana tra credenti e non
credenti», dove si colloca anche
Heidegger (RICŒUR, MARCEL,
1968, pp. 75, 80, 81-82). E Ricœur
prende a sua volta la palla al balzo
per rimarcare appunto che, proprio
questa «posizione della soglia»
(«position du seuil»), permette
«un’altra vicinanza» con Jaspers e,
soprattutto,
con
Heidegger
(RICŒUR, MARCEL, 1968, p. 83; cfr.
pp. 83-84; MARCEL, 1971, p. 145).
D’altra parte è lo stesso Marcel che
riconosce, nel Testamento filosofico, di
essere «più vicino» ad Heidegger
«che a Jaspers» (MARCEL, 1969, pp.
254-255).
5. L’INAFFERABILE, IL
MISTERO
Delle vicinanze e degli incontri
personali tra Marcel e Heidegger è
più facile, ovviamente, parlare dalla
sponda di Marcel che lascia diverse
testimonianze. Anche se, tra citazioni
da L’esistenzialismo è un umanismo di
Sartre e riprese di Essere e Tempo
nella direzione contraria della verità
dell’Essere, nella prima parte della
Lettera sull’umanismo di Heidegger
264
Prof. Dr. Franco Riva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 264
Aoristo)))))
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c’è un’affermazione che potrebbe far
riflettere.
Heidegger inzia con il recupero
dell’essenza dell’agire in quanto
portare a compimento, più che
rivolto all’utilità, reso possibile dal
fatto che qualcosa già è, perché «ciò
che prima di tutto “è”, è l’essere».
Prosegue facendo presente che anche
pensare è agire, e che lo è nel senso
più alto quando mette a fuoco «il
riferimento dell’essere all’uomo». Di
modo che il pensare, per arrivare a se
stesso e alla verità dell’Essere, deve
prima
di
tutto
«liberarsi
dall’interpretazione
tecnica
del
pensiero, i cui inizi risalgono fino a
Platone e Aristotele». La domanda
esistenzialistica di Sartre su «come
ridare senso alla parola umanismo»,
infine, è incontrata da Heidegger
sulla
strada
dell’abbandono
dell’Essere per l’ente, nonché di una
critica del pensiero tecnico e di una
filosofia ridotta a sua volta a «tecnica
della spiegazione». Non senza
precise polemiche contro gli «ismi»
di ogni sorta (come fa Marcel),
umanismo
ed
esistenzialismo
compresi, che tradiscono sempre un
«asservimento
alla
dimensione
pubblica»
e
fuorviante
del
linguaggio (cfr. HEIDEGGER, 1995,
pp. 31-38).
Nel
controluce
di
Sartre,
l’affermazione di Heidegger giunge
presto tra convinzioni e polemiche
che vanno in parallelo. Convinzioni
che il pensiero autentico sia dunque
pensiero dell’Essere e che, anziché
fare perno su di sé, l’uomo debba
«anzitutto
lasciarsi
reclamare
dall’essere». E polemiche contro la
«decadenza del linguaggio» che si
allontana sempre più dalla sua
essenza che «consiste nell’essere la
casa della verità dell’essere». Il
linguaggio infatti non è uno
«strumento del dominio sull’ente»
già ridotto a «reale nel complesso
delle cause e degli effetti», che
s’incontra
«non
solo
agendocalcolando ma anche facendo scienza
e filosofia con le spiegazioni e le
fondazioni». Qui l’affermazione: «di
queste ultime fa parte anche
l’assicurazione che qualcosa è
inspiegabile. Con simili asserzioni
crediamo di stare davanti al mistero,
come se fosse pacifico che la verità
dell’essere
possa
essere
fatta
poggiare su cause e ragioni
esplicative, o che è lo stesso, sulla
sua inafferrabilità» (HEIDEGGER,
1995, p. 39).
Con uno scarto sorprendente e
fulmineo come un soprapensiero
appuntato al volo, Heidegger
capovolge la direzione principale del
discorso che incalza da vicino il
pensiero prensile ed esaustivo di una
scienza calcolante e di una filosofia
quale
tecnica
di
spiegazione.
Difendere un residuo d’inspiegabile
e d’inafferrabile come suo rovescio
non si sottrae per logica e
impostazione a un pensare tecnico,
che anzi guida ancora e viene
trascinato
con
sé
nel
capovolgimento.
Nonostante
il
comprensibile tentativo di salvare
qualcosa e di evitare i pericoli,
265
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
Aoristo)))))
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negare che proprio tutto sia
spiegabile e afferrabile ricalca pur
sempre codici e parole di ciò che si
vuole contestare.
Spiegabile e inspiegabile, afferrabile
e inafferabile, sono facce della stessa
medaglia. Heidegger sfrutta il
contrasto
tra
un
pensiero
calcolante/esplicante
che punta
all’esaustione della realtà e la difesa
di un residuo che impedisce di
portare a fondo il progetto
totalizzante. In questo contrasto già
smorzato si potrebbe avvertire
qualche assonanza con la coppie
epistemologiche di Marcel, in
particolare con la riflessione di primo
(«problema», soluzione) e di secondo
grado («mistero», irrisolvibile) – ma
non è detto che Heidegger vi alluda
direttamente, né che Marcel si
inquadri
entro
dicotomie
strumentali. Heidegger potrebbe
riferirsi pure a un certo clima tardo
ottocentesco, o a Jaspers. Del suo
Umgreifende, che tutto avvolge e resta
perciò inafferrabile, risuonano sia i
limiti del cogliere e dell’afferrare
(greifen), sia l’istanza d’una radicale
ulteriorità. Ma il testo non abilita il
rinvio diretto.
Resta tuttavia pur sempre che
Heidegger, per smarcarsi da un
pensiero
dell’inspiegabile
(«unerklärlich») e dell’inafferrabile
(«Unfasslickheit») che gli sembra
prolungare al contrario il linguaggio
tecnico, usa un termine caratteristico
del lessico filosofico di Marcel, anche
nelle
traduzioni
tedesche:
«Geheimnis» («mistero»). Vale la
pena ripeterne le parole: parlando
d’inspiegabile
supponiamo,
«crediamo di stare davanti al
mistero» («wir meinen vor dem
Geheimnis
zu
stehen»)
(HEIDEGGER, 1976, pp. 318-319) –
avendo però già concesso al pensiero
tecnico che la «verità dell’essere»
possa venire afferrata e spiegata
almeno in parte. Forse Heidegger si
riferisce anche a Marcel, ma non è
detto neppure questo.
Marcel che introduce però Jaspers
in Francia nel 1933 e che lo appaia
subito ad Heidegger, perché «uno
dei punti più rilevanti» della loro
filosofia,
«in
contrapposizione
all’idealismo», è l’«insistenza sul
ruolo
delle
situazioni-limite»
(MARCEL, 1940, p. 301). Marcel (il
«mistero») che trae in inganno, per
così dire, tanto Sartre che Ricoeur
(RICOEUR, 1948) circa il rapporto
privilegiato
con
Jaspers
(il
«paradosso»). Marcel e Jaspers che si
trovano abbinati in L’esistenzialismo è
un umanismo di Sartre, sotto gli occhi
di
Heidegger
mentre
scrive.
Heidegger che è scettico sull’uscita
dal pensiero tecnico per via di
negazione,
d’inspiegabile
e
d’imprendibile, e che vi mescola nel
punto centrale, nella convinzione di
starvi di fronte, la parola marceliana
«mistero». Marcel che incontra
Heidegger per la prima volta nello
stesso
1947
della
Lettera
sull’umanismo e che, provocando il
solito disgusto, gli chiede cosa ne
266
Prof. Dr. Franco Riva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 266
Aoristo)))))
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pensi
di
aree
ed
etichette
dell’esistenzialismo.
A parti invertite, in forse non c’è
una riserva di Marcel che, mentre
parla di Heidegger nel 1957 con La
lettera sull’umanismo a sua volta
sottomano,
sembra
toccare
esattamente
la
questione
dell’inesplicabile e del mistero che
tirano acqua, controvoglia, al mulino
del
pensiero
tecnico.
Senza
apparente motivo nel contesto
discorsivo, Marcel fa infatti presente
che ci si sbaglia di grosso se si crede
che «mistero» significhi negare che
tutto sia spiegabile e afferrabile,
perché questo equivale a scambiare
la forma (negativa) per il contenuto.
Non è certo questo che il mistero
nega (che tutto sia spiegabile), o
afferma (che ci sia un residuo
d’insiegabile), ma piuttosto «che il
pensiero non può in nessun modo
porsi di fronte all’Essere come fosse
un oggetto» (MARCEL, 1979, p. 34).
Se non altro, è difficile ignorare la
coincidenza di espressioni tra
Heidegger («credere di stare davanti
al mistero») e Marcel che avvisa di
uno sfalsamento, perché mistero
vuol dire, al contrario, che «in
nessun modo» è possibile, è
pensabile, di «collocarsi di fronte
all’Essere».
61; MARCEL, 1940, pp. 9, 33;
MARCEL,
1945,
pp.
89-102;
MARCEL, 1951, I, IV, pp. 69, 82-83,
II, IV, pp. 57, 76; MARCEL, 1949, pp.
22-23; MARCEL, 1950, pp. 22-23;
MARCEL, 1979, pp. 12-13, 18-19 ss.),
del rapporto con Heidegger da parte
di Marcel ci sono per contro delle
precise
testimonianze.
La mia
relazione
con
Heidegger
(1957)
documenta l’attenzione costante per
Heidegger, le traduzioni (che Marcel
modifica pure mentre cita) e gli studi
critici, a partire da Essere e tempo e
fino alla Kehre: Holzwege, Einführung
in die Metaphysik, Was ist das-die
Philosophie, Über den Humanismus; e
ancora Vom Wesen der Wahrheit e
Vorträge und Aufsätze (cfr. MARCEL,
1979, pp. 12-13, 33, 28, 30). Di rilievo
è che Marcel discuta le prospettive
critiche non solo con gli interpreti,
vedi Henri Birault, ma con
Heidegger stesso com’è per Alphons
De Wahlens, recensito in Autour de
Heidegger (1945). Ritenuto una
«tappa decisiva» per la diffusione
(MARCEL, 1945, p. 89; DE
WAELHENS, 1942; RIVA, 1987, pp.
279-284), per Marcel come per
Heidegger il suo libro resta
condizionato da una predominante
tonalità antropologica. A Marcel non
sfuggono nemmeno gli scritti di
Ludwig Biswanger, Jean Wahl ed
Emmanuel Lévinas (cfr. MARCEL,
1979, pp. 36, 37, 28; MARCEL, 1945,
6. INCONTRI, DIALOGHI,
pp. 89 ss.; MARCEL- RICŒUR, 1968,
IMPRESSIONI
91).
Insieme alle citazioni disseminate
Sopra tutto, Marcel lascia delle
nelle opere (cfr. MARCEL, 1935, p.
testimonianze preziose degli incontri
267
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
Aoristo)))))
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con Heidegger in Germania, a
Friburgo nel 1947, e in Francia a
Cerisy-la-Salle nel 1956 – Heidegger
relatore con Was ist das-die Philosophie
e Marcel incaricato di rendergli
omaggio –, cui seguì la conferenza,
in Germania e in tedesco, Ma relation
avec Heidegger il 5 aprile 1957 a
Oberhausen e replicata a Berlino il 14
maggio (MARCEL, 1979, p. 25), ma
rimasta inedita fino al 1979.
Nonostante l’ostracismo postbellico
per le compromissioni di Heidegger
con il regime nazista e l’interdizione
all’insegnamento, dell’incontro di
Friburgo nel 1947 prese l’iniziativa
Marcel
superando
non
pochi
scrupoli,
compreso
di
sapere
perfettamente
che
aveva
«mitgemacht (partecipato)» con il
nazismo. Marcel usa il tedesco per
lasciare
«una
certa
indeterminazione» e non andare
subito alla «complicità», lasciando ad
Heidegger il beneficio di tardive
«prese di distanza nei confronti del
nazismo» e di eventuali influenze
negative, tipo la compagna di vita
(MARCEL
1971,
pp.
267-268;
MARCEL
1979,
p.
37).
Personalmente auspicata, Marcel non
gli sconterà tuttavia mai l’assenza di
una confessione chiara ed esplicita di
colpevolezza, se non altro per la
partecipazione attiva con il nazismo
(MARCEL, 1971, p. 268), un «aspetto
particolarmente
allarmante
(bedenklich)» della sua personalità
(MARCEL, 1979, p. 37). Si accodano
l’impressione d’un fastidioso senso
d’orgoglio (MARCEL, 1979, p. 25;
MARCEL 1981, p. 268), il linguaggio
filosofico oscuro e
iniziatico
(MARCEL,
1979,
pp.
26-27;
MARCEL, 1968, p. 92), l’influenza
ossessiva sui discepoli cui Marcel
reagisce con una parodia dei
comportamenti di scuola, anche
heideggeriana, affidata al teatro con
La dimension Florestan (MARCEL,
1979, p. 25), irriconoscibile in
tedesco: Die Wacht am Sein.
Condizionata dall’esistenzialismo e
da Sartre, a Friburgo si trattò di una
«lunga conversazione» (MARCEL,
1979, pp. 25, 28) che puntava diritto
al vero significato della filosofia di
Heidegger nel clima dei dibattiti
sull’esistenzialismo. Difatti, quando
Marcel gli chiede in quale misura
potesse mai accettare le etichette di
Sartre (Heidegger, Sartre atei;
Jaspers, Marcel cristiani), Heidegger
protesta «vivacemente, sostenendo
in particolare di non essere affatto
ateo, ma che il suo pensiero stava
come sospeso tra ateismo e teismo»
(MARCEL, 1971, p. 230). Sullo
sfondo delle loro filosofie, il
colloquio del 1947 tra Marcel e
Heidegger mette in scena la contesa
tra esistenza (uomo, umanismo) ed
Essere, la contestazione di Sartre,
rifiuti e critiche condivise agli «ismi»
e alle letture umanistiche di Essere e
tempo, il problema della traduzione
impossibile di un termine così
centrale come Dasein, Esserci,
suscettibile
di
giostrarsi
tra
268
Prof. Dr. Franco Riva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 268
Aoristo)))))
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insistenze esistenzialistiche (Da) e
rimandi all’Essere (Sein).
In Francia nell’estate del 1955 per
la decade di Cerisy la-Salle, Marcel e
Heidegger si ritrovano a stretto,
contatto con un tempo più disteso,
per alcuni giorni. Tant’è che Marcel
lima un poco le prime impressioni.
L’«orgoglio» resta, senza però
assimilarlo in tutto e per tutto al
«tono
sdegnoso»
dato
al
protagonista, Hans Walter Dolch,
della parodia drammatica. Marcel
intuisce ora trattarsi forse più di
«una specie di semplicità abbastanza
insolita», una sorta di «naivité»,
tipica d’un uomo che «vive in una
profonda solitudine e che quasi non
ha viaggiato» (è la prima volta in
Francia), che odia «la mondanità»
superficiale e mal sopporta non si
prenda sul serio la conversazione
(MARCEL, 1979, pp. 25-26; cfr.
MARCEL, 1971, p. 268). Per il resto, a
Cerisy-la-Salle vengono ripresi i temi
del primo confronto spingendoli più
avanti.
Il
dibattito
sull’esistenzialismo che si placa, la
svolta di Heidegger e i nuovi studi
critici spalancano la porta a un
confronto ancora più libero e diretto
tra filosofie accomunate da una
comune sensibilità per l’Essere.
Tra il 1947 e il 1957 Marcel e
Heidegger condividono un racconto
polemico in nome dell’Essere
anziché dell’esistere, che la critica
recepisce per tempo con particolare
riguardo alla Kehre heideggeriana.
Senza tacere le differenze Gallagher,
per esempio, appaia Marcel e
Heidegger per il rifiuto della
dicotomia soggetto/oggetto con la
critica del pensiero tecnico, per la
difesa della creatività filosofica e per
l’interesse
ontologico
(GALLAGHER, 1962a, pp. 22, 24-27;
cfr.
GALLAGHER,
1962b;
LAPOINTE, 1977). Questo non toglie
che il racconto polemico rischi di
appagarsi dei rovesciamenti e delle
nuove parentele. Senza accorgersi
forse sempre che la prossimità
innegabile intorno all’Essere trova
nell’«altro» una pietra d’inciampo
tale da scavalcarla verso racconti
alternativi e irriducibili.
7. ACCORDI E
DISACCORDI
Heidegger ha il «grande merito»
d’intuire l’«intimo legame tra
l’Essere e il Sacro». È però difficile
credere che il «suo disconoscimento
del prossimo in quanto persona e
dell’intersoggettività»
gli
renda
davvero possibile «accedere alla
sfera in cui questa parentela – se non
proprio questa identità – dell’Essere
e del Sacro trova il suo significato
pieno e arricchente» (MARCEL,
1979, p. 38). Marcel è il primo a
lanciare il campanello d’allarme sul
fermarsi al racconto polemico che lo
riavvicina ad Heidegger in nome
dell’Essere. E chiude La mia relazione
con Heidegger in modo del tutto
paradossale per «sottolineare nello
stesso tempo il mio accordo e il mio
disaccordo» (MARCEL, 1979, p. 38).
269
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
Aoristo)))))
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Il massimo dell’accordo segna il
massimo del disaccordo. Bene il
rapporto tra l’Essere e il sacro, bene
lo Zuspruch des Seins, bene ancora la
polemica contro il linguaggio
economicistico
dei
«valori»
(«idealismo esangue», «fichtismo
anemico») (MARCEL, 1979, pp. 3132). Ma il significato del sacro non si
trova a scapito degli altri, né
dell’appello solo nella dimensione
generale del linguaggio. Dell’Essere
va sentita la presenza (oltre che la
sfuggenza), e dell’appello il dialogo
(oltre che il linguaggio).
Marcel sembra quasi riprendere
quel «credere di trovarsi davanti al
mistero» della Lettera sull’umanismo,
con cui interagisce da vicino, facendo
il controverso ad Heidegger per una
risposta che non resta ora del tutto
ipotetica. Mistero significa che
l’Essere non si lascia in nessun modo
trattare come un oggetto di pensiero,
poco importa in che termini. È
questa impossibilità a guidare le
negazioni, non viceversa, altrimenti
il punto è frainteso (l’inspiegabile e
l’inafferrabile che Heidegger ritiene
riflessi estenuati e capovolti del
pensiero tecnico). Da questo punto di
vista sarebbe al contrario Heidegger
che, nella polemica, resta come
dipendente
dall’impostazione
tecnica e metafisica del pensiero.
Coerente con le intenzioni più
profonde di Essere e tempo, egli
sposta sì il centro d’interesse
dall’ente all’Essere mantenendo
tuttavia ancora un «oggetto» (vero)
d’interrogazione.
Per
Marcel
l’assicurazione ontologica che c’è
dell’Essere
invita
invece
a
un’ermeneutica della presenza, agli
«approcci concreti», fenomenologici
e quotidiani (MARCEL, 1933, pp. 267
ss.). L’Essere (il mistero) non sta
oltre, non è di fronte, non un’isola
felice, un tesoro nascosto quale che
sia, ma lo spazio di una lotta
drammatica e giornaliera tra fedeltà
e tradimento di cui proprio gli altri
sono la porta privilegiata d’ingresso.
Tutto ciò che Marcel dice all’interno
dell’«accordo fondamentale» circa
l’appello
dell’Essere,
o
della
«prossimità
metafisica»
con
Heidegger, precipita e si deposita
piano piano verso un disaccordo
altrettanto
fondamentale.
Confrontandosi con testi precisi di
Heidegger, Marcel contesta al suo
discorso sull’Essere di prendersi in
contropiede da solo con il ricorso a
formule, concettuosità acrobatiche,
grammaticalismi. Senza contestare in
nessun modo che, per un «pensatore
geniale» com’è, tutto questo possa
rispondere
per
davvero
«a
un’esperienza – non saprei come dire
–, spirituale, speculativa, davvero
profonda», Marcel confessa a
Ricoeur di riscontrare comunque
nella sua filosofia un carattere
«troppo grammaticale», che la rende
«sospetta» sotto questo riguardo
(RICŒUR, MARCEL, 1968, pp. 9192; MARCEL, 1979, p. 34; cfr.
MARCEL, 1950; MARCEL, 1951, IV).
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Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 270
Aoristo)))))
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Differenze di scritture e di metodo,
ma anche qualcosa di più. Marcel fa
affiorare il sentore di qualche
dissonanza tra un pensiero per
diversi aspetti così liberante e il
restare
tutto
sommato
come
«prigioniero di categorie che forgia
incessantemente» (MARCEL, 1979, p.
30; MARCEL, 1945, pp. 89-90).
Heidegger è critico della metafisica e
della tecnica ma mantiene «oggetti»
d’interrogazione e una propensione
astratta; in cerca di alternative
espressive e tuttavia spesso criptico e
concettuoso; amante della Lichtung
ma difficilmente comprensibile e
traducibile, «aspetto forse più
inquietante» di una filosofia che
sembra escluderne la possibilità pur
mettendo in conto il pericolo di
manipolarla.
C’è
una
sottile
contraddizione,
«qualcosa
di
singolare nel fatto che un filosofo che
parla tanto spesso di "apertura", di
"rischiaramento" (Lichtung), ecc., si
preoccupi così poco delle condizioni
in cui un pensiero può comunicarsi»
(MARCEL, 1979, p. 30). Al punto da
proporci
delle
«scorciatoie
impraticabili», mentre un pensiero
che
voglia
farsi
capire
è
«verosimilmente tenuto a procedere
per delle vie indirette» che possono
essere «ora delle metafore, ora delle
esperienze
concrete
che
non
insistono su se stesse, ma che
puntano a un aldilà» («Jenseits»)
verso cui la la filosofia di Marcel
«tende irresistibilmente», come ha
colto Prini (MARCEL, 1950, p. 8)
8. SCRIVERE, PENSARE
Accordi
e
disaccordi.
Senza
esagerare la differenza, prende allora
una tonalità più critica quanto
Marcel dice circa la differenza di
scrittura nel 1927 tra il proprio
Giornale metafisico ed Essere e tempo di
Heidegger.
Primo livello. Non c’è dubbio che,
pure con un «immenso giro», le due
opere si avvicinano infine intorno a
ciò che Heidegger chiama «la
necessità di una distruzione della
metafisica, destinata a fare spazio a
qualcosa d’altro, e cioè alla
considerazione dell’Essere al di là
dell’Essente» (MARCEL, 1979, p. 28).
La distruzione, definita in modo
chiaro in Essere e tempo, non è
«demolizione» bensì «decostruzione,
smontaggio
e
scarto
delle
enunciazioni meramente storiche
sulla
storia
della
filosofia».
Distruzione è un invito ad «aprire le
«orecchie», a «liberarsi» per ciò che
«c’interpella in quanto Essere
dell’essente».
Solo
«ascoltando
questo appello accediamo alla
“corrispondenza”»;
e
«“corrispondere” significa dunque:
essere determinati, ma a partire
dall’Essere dell’essente» (MARCEL,
1979, p. 29). Con Essere e tempo
sempre sullo sfondo, di Was ist dasdie Philosophie, la conferenza di
Heidegger a Cerisy-la-Salle nel 1955,
Marcel sottoscrive in pieno la
dialettica
domanda/risposta,
l’«essere in corrispondenza con ciò
verso cui è in cammino la filosofia,
271
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
Aoristo)))))
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ossia l’Essere
dell’essente», il
«prestare orecchi fin dall’inizio a ciò
cui la filosofia ci ha già chiamato»,
che la risposta infine non giunga al
di fuori di questo «colloquio» in cui
il soggetto si trova «esposto a
qualcosa che non viene da lui», e che
lo reclama (MARCEL, 1979, pp. 2829).
Questo non toglie che «niente
assomigli di meno a un Journal
métaphysique che Essere e tempo, opera
che
si
presenta
ben
più
profondamente
elaborata
e
comparabile semmai a certe altre che
segnano i punti cardine della storia
della filosofia, vedi la Critica della
ragion pura o la Fenomenologia dello
Spirito». Storia della filosofia con cui
Heidegger è peraltro in continuo
contatto per scelta esplicita e di
lavoro, dai Presocratici a Kant, da
Hegel a Nietzsche (il di-dietro del
testo, l’autonomia della parola, il
testo-nutrimento). Anche se Marcel
vi ritrova, pure qui, l’incertezza tra
dialogo e monologo in quanto il suo
modo «di concepire la storia della
filosofia è rischioso e presta il fianco
a delle serie critiche», «Willkür
[arbitrio]» compresa (MARCEL,
1979, p. 26). Il diverso manifesto
filosofico si riflette nella scelta di
scrittura («su questo punto nessuna
coincidenza tra il pensiero di
Heidegger e il mio»), che spinge di
nuovo al controverso. Nonostante
tutto, Heidegger «resta senza alcun
dubbio molto più fedele di me alla
tradizione filosofica». Come a dire:
fedele nella polemica, tradizionale
nella distruzione. D’altro canto,
sgombriamo il campo dal confondere
«il rifiuto del sistema», l’abbandono
del progetto sistematico iniziale,
come per Marcel, con l’«adesione a
un puro soggettivismo o tanto meno
a un impressionismo filosofico»
(MARCEL, 1979, pp. 27-28).
Scarti di scrittura e di pensiero.
Storia della filosofia. Dialogo e
monologo. Heidegger molto più
fedele alla tradizione. Marcel rilegge
il
1927
d’origine unendo
e
separando,
congiungendo
e
divaricando. Sottolinea la grandezza
indiscussa
di
Heidegger
per
contrappuntarla con una piccola
vena ironica appena percepibile che
lo lascia immerso nella storia di
quella stessa tradizione che intende
programmaticamente
distruggere.
Vena d’ironia che rispunta più chiara
quando lo paragona a un uomo
selvatico, «a una creatura che è
presso di sé (einheimisch) solo nel
bosco e che è vano sperare di
acclimatare nel mondo delle città» –
tono naif («Ursprünglichkeit») che
contribuisce, almeno in parte, a
quella «specie di attrazione magica
che esercita» il suo «pensiero un po’
dappertutto» nel mondo (MARCEL,
1979, p. 30; cfr. MARCEL, 1945, pp.
89-90).
Diario e saggio. Ironia a parte, in un
modo neanche troppo indiretto
Marcel sta rompendo con il racconto
polemico e antiesistenzialistico che lo
unisce ad Heidegger in nome
272
Prof. Dr. Franco Riva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 272
Aoristo)))))
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dell’Essere perché rifiuta la parola
sostantiva verso cui Heidegger
sembra comunque inclinare, se non
altro nell’impostare la domanda,
anche nella Kehre.
passaggi», la domanda ritorni
proprio in termini sostantivi, come
avviene «nella Lettera sull’umanismo:
“Che cos’è l’Essere? È se stesso”»
(MARCEL, 1979, p. 34).
Le risposte di Heidegger non sono
certo definizioni in senso classico e
sporgono
sul
limite
9. FRAINTENDERE LA
dell’inesprimibile. Pur tuttavia nelle
NEGAZIONE
domande formulate sul «che cosa»
Marcel diffida di domande rivolte
l’Essere tende a restare ancora
all’identità dell’Essere come fosse
l’«oggetto» di una domanda, che è
possibile darvi risposta astraendo da
poi il principio stesso del definire e
tutto. Delle domande sull’Essere e
del sostantivare. Mentre, come
sul nulla dell’Introduzione alla
facendo appunto il controverso a
Metafisica
di
Heidegger,
in
quel «credere di trovarsi davanti al
particolare,
Marcel
coglie
la
mistero» per via dell’inspiegabile e
situazione irreale e sostantiva,
dell’inafferrabile
della
Lettera
sradicata e astratta – dimentica che
sull’umanismo, per Marcel l’Essere
per l’Essere il domandare stesso
«non è cosa su cui si possa
porta con sé un implicito e suppone
discorrere. Parlare di mistero come
ciò che si sta chiedendo, una qualche
ho fatto segna esattamente questa
presenza d’essere, un «fondo di
impossibilità».
Marcel
sembra
realtà», un «dato fondamentale».
comprendere
perfettamente
Perché «è un’illusione pura e
l’obiezione di portarsi dietro, per
semplice immaginarsi che chi pone
semplice negazione, la logica stessa
la domanda possa fare astrazione da
dello spiegare e dell’afferrare. Perché
ogni realtà, o, per usare il termine
continua: «si potrà naturalmente
heideggeriano, da ogni Seiendheit».
obiettare che si tratta ancora di
Wahl lo ritiene uno pseudoparlare dell’Essere negativamente»,
problema; e così per il Nulla, di cui
peccato che questo sia «vero solo
Heidegger sembra ignorare «la
formalmente». La negazione non
critica tanto profonda» di Bergson
riguarda tanto la messa in guardia
(MARCEL, 1979, pp. 33-34). Marcel
contro l’illusione di poter tutto
si rende conto che la domanda
afferrare
e
spiegare,
quanto
d’inizio, la Vorfrage – «Che ne è
«riconoscere che il pensiero non può
dell’Essere?»; «Wie steht es um das
in nessun modo porsi di fronte
Sein?» –, è formulata in modo meno
all’Essere come fosse un oggetto che
sostantivo «contro la tentazione di
è possibile considerare (betrachten) e
domandarsi cosa sia l’Essere». Ma
sottomettere alle stesse operazioni»
questo non toglie che, «in diversi
di cui investiamo gli oggetti e le cose.
273
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
E a Marcel viene da chiedersi di
sfuggita se Aristotele «non avesse in
mente qualcosa di simile» quando,
per svincolarlo dal categoriale e del
sostantivo, «definiva l’Essere come
un Trascendentale». Proprio Marcel
che usa con rammarico il verbo
definire, dato che si tratta di una
posizione (Setzung) e non di una
definizione» (MARCEL, 1979, p. 34).
Il che è veramente sorprendente.
Fraintendere la negazione. Non
«sarà più possibile perdersi in
discorsi
astratti
sui
caratteri
intrinseci dell’Essere – quasi che
l’Essere fosse una cosa sucettibile di
essere opposta ad altre cose che sono
soltanto, ad esempio, sue apparenze
o
manifestazioni».
Perfino
il
«termine
ontologia
è
poco
soddisfacente»,
pericoloso,
e
«l’Essere come tale non è nulla in
fondo su cui si possa dicutere»
(MARCEL, 1979, p. 33). Per Marcel
parlare di mistero dell’Essere non è
l’oggetto rovesciato e in negativo del
sapere e del prendere, non
l’ennesima «sostantivazione», vuoi
perché l’assicurazione dell’Essere
dovrà allontanarsi in progress dal
livello più astratto per andare «verso
affermazioni sempre più concrete»,
vuoi perché «questo mistero come
tale deve essere considerato più
come ineffabile» (MARCEL, 1979, p.
35). Ineffabile non è lo stesso che
inspiegabile e inafferabile che lo
tengono come oggetto.
«Ogni volta che diciamo l’Essere
incombe un pericolo» (MARCEL,
1979, p. 33). Non ha nessun senso
porsi davanti all’Essere o al mistero
perché siamo «abitati» da un’
«esigenza», «realtà», «pienezza»,
difficili da soddisfare per ciò che «la
nostra esperienza porta sempre con
sé d’incompleto, incompiuto e
frammentario»; e che ci costringe «a
protestare vitalmente contro un
mondo
funzionalizzato»
e
tecnicizzato. Non si tratta di «una
storia raccontata da un idiota»
(Shakespeare,
Macbeth).
Questa
esigenza autorizza a «dire che c’è
dell’Essere», ma solo «a partire da
una certa presenza in noi», sebbene
«ricoperta
come
un
nome
dimenticato che ci si sforza di
ricordare». «Intuizione accecata»:
ricordo platonico, a patto di
realizzare bene che «non ci si trova
nella stessa dimensione spirituale»
(MARCEL, 1979, p. 35).
10. IL PIÙ VICINO
Nella Lettera sull’umanismo dove ci
si chiede «cosa sia l’essere», dando
una prima, enigmatica risposta – «è
se stesso» – in contrasto con il tono
sostantivo
della
domanda,
Heidegger lo indica pure come «ilpiù-vicino».
Marcel
commenta
quest’«ultima
formula»
così:
«Heidegger esprime la stessa idea
quando,
nella
stessa
Lettera
sull’umanismo, dice che l’uomo è il
vicino (Nachbar) dell’Essere. Quali
che siano le spiegazioni possibili per
274
Prof. Dr. Franco Riva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 274
Aoristo)))))
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attenuarne la portata, continua qui
una
sostantivazione
spinta
all’estremo nella quale vedrò sempre
una deriva illecita» (MARCEL, 1979,
p. 34).
In Heidegger si scontrano domande
e risposte. A domanda sostantiva
seguono
risposte
evasive
e
antidefinitorie che vanno nelle
direzioni dell’enigma («se stesso») o
della vicinanza («il-più-vicino»),
irrigidite tuttavia nella forma
bloccata e frontale della domanda
che le guida. Se si vuole sfuggire allo
spiegare e all’afferrare della tecnica,
per Marcel bisogna lasciare le
domande sul che cosa, sull’oggetto
ideale. Presenza dell’Essere e
risposte
eversive
avvicinano
Heidegger e Marcel nello stesso
momento in cui il domandare scava
la distanza, perché convoca ancora
l’Essere al tribunale categoriale di un
«che cosa». Opere d’arte come la
veduta di Delft di Vermeer, o il
Quartetto n. 13 di Beethoven, si
possono in effetti considerare delle
«risposte a un certo appello (Anruf)».
D’altra parte, non ha neppure «alcun
senso domandarsi chi lanci questo
appello, perché siamo oltre l’ordine
del chi (die Ordnung des Wer)»
(MARCEL, 1979, pp. 31-32).
Registrare accordi e disaccordi è un
punto di ripartenza, non d’arrivo.
Accanto a quella tra domanda e
risposta,
Marcel
accenna
per
Heidegger a un’altra, più forte
tensione sul versante impervio
dell’essere vicino e della prossimità,
espressioni usate, a soggetti invertiti,
sia per l’Essere («il-più-vicino») che
per l’uomo («il vicino dell’Essere»); e
non è detto resti identico il
significato. Nel caso dell’Essere, «ilpiù-vicino» è pur sempre la risposta
a un «che cosa». Nel caso dell’uomo,
«il vicino dell’Essere» compromette e
smorza in parte la domanda
sostantiva («è») a favore di
un’itineranza radicale cui si è
convocati (il «Pastore dell’Essere»).
La prima tensione
(domande
sostantive e risposte evasive) si fissa
in una «deriva illecita». Con la
seconda (il «vicino») Marcel fa
scoppiare l’incomprensione della
prossimità come struttura alternativa
di pensiero.
Segnalato il problema fin dal 1945,
La mia relazione con Heidegger (1957)
ritorna sulla figura dell’essere-per-la
morte (Sein-zum-Tode) in Essere e
tempo,
bandiera
stessa
dell’accordo/disaccordo tra Marcel e
Heidegger. A parte i dubbi sul
significato esatto dell’espressione,
Marcel osserva (come poi Lévinas)
che Heidegger «non si preoccupa in
fondo che della morte propria (des
eigenen Todes)», in prima persona, e
non della morte d’altri, quando per
lui «la morte dell’essere amato» si
colloca «in primo piano». La figura
solitaria e propria dell’essere per la
morte porta di nuovo all’«assenza di
una vera apertura ad altri» in
Heidegger, che su questo dipende da
posizioni
idealistiche
che,
in
generale,
ha
«senza
dubbio
oltrepassato» (MARCEL, 1979, p. 38,
275
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
cfr. pp. 37-38; MARCEL, 1945, pp.
93-94).
Bisogna intendersi. La questione
dell’essere per la morte (propria) non
viene usata per rapide accuse
moralistiche o per giudizi generici,
anche perché «l’essere al mondo
implica una pluralità» indiscutibile
che impedisce di vedere in Essere e
tempo qualsiasi cosa che «assomigli a
un
solipsismo».
L’assenza
di
un’autentica apertura ad altri
riguanda invece ancora una caparbia
distonia per una filosofia che da un
lato
«parla
così
spesso
di
Erschlossenheit o di Entfernung
quando si tratta della verità», ma
che, dall’altro lato, non si è «in
nessun modo interessata a ciò che si
potrebbe chiamare “l’apertura ad
altri” o, più in concreto, all’amore».
Come
documenta
peraltro
il
tentativo
heideggeriano
di
Biswanger per provare a rendergli
ragione (MARCEL, 1979, pp. 35-36).
11. DIFFERENZE
ESSENZIALI
Di rimbalzo, Marcel richiama gli
approcci concreti all’Essere, mette in
linea diretta «l’apertura ad altri» e
l’«amore» (sfondo anche cristiano),
rimette in gioco il Sacro. Facendo
però deflagrare come una bomba la
contraddizione delle contraddizioni
per una filosofia dell’apertura che, di
fronte
all’altro,
non
prevede
aperture. Mentre del «prossimo»
(Nachbar), il vicino, Heidegger «parla
spesso in quanto neutro», il
«prossimo come persona gli resta
pressoché
estraneo
[étranger]»,
disconosciuto. Si «può temere che
condanni così» proprio l’apertura
(«fenêtre») in quanto apertura, il
«cammino più diretto che può dare
accesso al Sacro» (MARCEL, 1979, p.
38). E questo nonostante il suo
«eroico tentativo» di recuperarlo a
un «Occidente che tende verso una
specie
di
desacralizzazione
collettiva». A tutto vantaggio,
s’intende, «dello sviluppo iperbolico
delle tecniche» su cui potremmo
«incontrarci di nuovo», fatto salvo
che è «molto difficile credere che una
meditazione puramente astratta
sull’Essere e sull’Essente possa
servire a tale recupero» (MARCEL,
1979, pp. 36-37).
La critica del pensiero oggettivante
deve aprirsi all’altro ed evitare
l’astratto. A «noi sono direttamente
accessibili degli esseri», non l’Essere
in sé, esseri che vi partecipano
casomai, «e il filosofo ha il dovere
d’interrogarsi sul senso in cui questo
partecipare deve essere pensato».
Perché «come non siamo in grado di
vedere la luce, ma solo delle
superfici illuminate, così non è e non
può essere l’Essere, parlando in
senso proprio, che è effettivamente
presente».
Accesso
indiretto
all’Essere, approcci concreti, finestra
aperta, gli esseri. Marcel si lamenta
della lingua francese imprecisa e
inadeguata nel merito (MARCEL,
1979, pp. 37-38; cfr. MARCEL, 1950,
276
Prof. Dr. Franco Riva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 276
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
pp. 7-10) e coinvolge nella critica
Lavelle e Maritain. La tradizione del
«che cosa» dunque, ma al contrario e
da una sponda heideggeriana,
sfruttando sia l’interrogare, corretto
se si dirige sul partecipare e non sul
che cosa, sia la metafora della
Lichtung. Si può vedere ciò che
partecipa della luce, non la luce in sé.
Tutto quanto Marcel dice di
Heidegger, del rapporto con lui e del
1927 muove un passo doppio che
articola il racconto polemico e quello
alternativo. Non c’è dubbio che
un’ampia serie di icone verbali di
prossimità vadano nel senso del
racconto polemico nei confronti di
esistenzialismo, Sartre, mode e
manualistica, per riabilitare la
vicinanza in nome dell’Essere
sconvolgendo le parentele: «accordo
fondamentale» sulla verità come
apertura e sullo Zuspruch des Seins
(MARCEL, 1951, I, pp. 82-83;
MARCEL,
1968,
pp.
29-31),
«sensibilità comune», «prossimità
metafisica» (MARCEL, 1968, pp. 9091),
rapporto
preferenziale,
«vicinanza»,
«coincidenza»,
«parentela» e «influenza» (MARCEL,
1979, p. 33).
Nello stesso tempo l’accordo segna
il «disaccordo» con un’altra serie di
icone verbali pari e contrarie a quelle
di
prossimità.
«Accordo
e
disaccordo» con cui Marcel sigilla
intenzionalmente La mia relazione con
Heidegger. Non però come un
escamotage dialettico per salvare
l’uno e l’altro, o fare un po’ di
galateo a buon mercato. Il disaccordo
rompe sul serio, apre una frattura
che non si ricompone. Dalla parte del
«disaccordo»
stanno
allora
«precauzioni» (MARCEL, 1951, I, p.
69),
«distanze»,
«differenze
essenziali» per di più rincarate di
dose: «tutto un insieme» (MARCEL,
1979, pp. 27-28, 35), «opposizione»,
«contestazione»
e
«nessuna
coincidenza». Al punto che Ricoeur,
soddisfatto del dialogo con Marcel
sul racconto polemico che lo
riavvicina ad Heidegger, sente come
il pericolo del racconto alternativo,
l’esigenza
di
«minimizzare
l’opposizione e ridurla» entro
un’ermenutica,
e
suggestiva,
«differenza nel gioco delle metafore:
quelle di Heidegger sono greche, le
vostre
bibliche»
(RICŒUR,
MARCEL, 1968, p. 92). Aletheia per
Heidegger, amore, speranza, dono
per Marcel. Non fosse che anche il
linguaggio esalta disaccordo e
«differenze essenziali».
12. ALTRI, NON
ESTRANEO
Accordo fondamentale, accordo
disaccordo, differenze essenziali.
Il vicino, il prossimo. L’appello
dell’Essere. Apertura cui si partecipa,
prima ancora di aprirsi. Colloquio a cui
si è chiamati, che inizia nella risposta. Il
dativo, più che il nominativo. Non cosa,
non chi – se diventa oggetto, cosa
pensata. Pensieri di un al di là, più che
dell’insistere. Superfici illuminate, non
luce. Sacro, non astratto. Personale, non
277
1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
neutro. Esseri, non Essere. Altri, non
estraneo.
Lasciando sullo sfondo i contesti
discorsivi d’occasione, a rileggere
con attenzione le parole che
mordono l’accordo disaccordo con
Heidegger
si
resta
un
po’
impressionati da altre assonanze che
spiegano come mai, del 1927 di
Marcel, fosse già in corso una lettura
alternativa rispetto al racconto
polemico
contro
Sartre
e
l’esistenzialismo. Per Buber il
significato del Giornale metafisico è
altra cosa, è Io e Tu, è polemica
contro l’Esso e il Neutro, è principio
dialogico, di cui Marcel ha colto «il
punto di vista centrale e le sue
relative
conseguenze»
(BUBER,
1954). Per Lévinas «l’essere qui non è
coscienza di sé, è rapporto con l’altro
da sé e risveglio»; e offre come prova
un passo del Giornale metafisico
ritenuto
«essenziale»
perché
denuncia, senza mezzi termini, il
mito filosofico dell’autarchia, della
sufficienza di sé a se stessi,
dell’essere che insiste su di sé
(LEVINAS,
1975:
inaugura
l’Association Gabriel Marcel a
Parigi).
Resta poco spazio per i racconti
polemici e i loro strascichi che,
proprio
come
l’esistenzialismo
rifiutato, sono ossessionati, sia pure a
parti
invertite,
dalla
coppia
esistenza/Essere. Vi s’intreccia un
racconto alternativo in vista di una
filosofia altra come la si voglia
chiamare, del «dialogo» (Buber), di
una «nuova razionalità» (Lévinas), di
un altro pensiero (RIVA, in BUBER,
LEVINAS, MARCEL, 2016; cfr.
RIVA, in LEVINAS, MARCEL,
RICŒUR, 2008).
Nel 1927 escono Essere e tempo di
Heidegger e il Giornale metafisico di
Marcel.
Contingenza
per
contingenza, colpisce un rincorrersi a
distanza di parole simili («centrale»,
«essenziale») che, a partire dall’altro,
suggeriscono un significato ben
diverso di questa data tanto rispetto
al racconto esistenzialista, quanto a
quello polemico che lo contesta in
nome dell’Essere.
Buber, 1954: Marcel ha colto «il
punto di vista centrale» del principio
dialogico. Marcel, 1957 (1979):
«differenze
essenziali»
con
Heidegger. Levinas 1975: «testo
essenziale».
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1927. Marcel, Heidegger e gli equivoci storiografici
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Submetido: 29 de setembro 2017
Aceito: 02 de outubro 2017
280
Prof. Dr. Franco Riva
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 280
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo
Life and history. Nietzsche in Being and Time
Prof. Dr. Paolo Scolari 221.
Università Cattolica di Milano
RIASSUNTO
Ridare vita alle ombre esangui del passato”, che torna a vivere nel presente facendosi
nuovamente “carne e sangue”. Le citazioni di Dilthey e von Wartenburg delimitano il
campo in cui, per l’Heidegger di Sein und Zeit, si gioca la partita decisiva della storicità del
Dasein. Per affondare il colpo, egli trova la stoccata vincente nelle frecciate che Nietzsche
scaglia contro lo storicismo nella seconda delle Considerazioni inattuali – Vom Nutzen und
Nachtheil der Historie für das Leben –. In lui, Heidegger intravede un autorevole alleato per
instaurare un rapporto autentico con la storia. Essa non dovrà più essere confinata in un
passato museale, tanto grazioso quanto improduttivo per la vita: uscire dalla paralisi della
tradizione vuol dire scrollarsi di dosso il peso del passato e sbloccare il presente e il
futuro. Solo così l’uomo sarà libero e la storicità recupererà il suo senso più elevato, al
servizio della vita. Al di là delle differenze d’intento e di registro ermeneutico-stilistico, la
ricostruzione di un dialogo a distanza tra i passi di Sein und Zeit e le considerazioni
nietzscheane offrirà spunti interessanti per pensare alla storia e al suo rapporto, sempre
in bilico tra il vitale e il patologico, con l’esistenza umana.
PAROLES CHIAVE
Nietzsche; Heidegger; Sein und Zeit; storia; vita.
ABSTRACT
To rivive the dim shadow of the past“, returning to life in the present world in „flesh and
blood“. These quotations from Dilthey and von Wartenburg indicate some landmarks of
Heidegger’s attempt to think historically the Being. In fact, in Sein und Zeit Heidegger drew
inspiration from Nietzsche’s cutting remarks against the burden of Historicism in his
Second Untimely Meditation, Vom Nutzen und Nachtheil der Historie für das Leben. In
Heidegger’s eyes Nietzsche is a masterful precursor of a genuine relation between life and
221
E-mail: scolari_paolo@libero.it
Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo
281
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
history. Normally seen as a glorious but infertile burden, withdrawn in a museum, history
needs to be linked again to life, as a source for the present and above all for the future.
Such attempt can pave the way to a philosophical liberation and bring back history in the
service of life. Despite different styles and goals, Nietzsche and Heidegger can be read once
again in order to make vital the inevitable and necessary relation of life to history, always
risking to be pathological.
KEYWORDS
Nietzsche; Heidegger; Sein und Zeit; history; life.
«Ancora nessuna generazione aveva
visto uno spettacolo sterminato
come quello che oggi mostra la
scienza del divenire universale, la
storia; certo però essa lo mostra con
la pericolosa audacia del suo motto:
fiat veritas pereat vita».F.Nietzsche,
Sull’utilità e il danno della storia per
la vita
«La vita è storica nelle radici stesse
del suo essere e, in quanto
effettivamente esistente, si è già
sempre decisa o per la storicità
autentica o per l’inautentica».
M.Heidegger, Essere e tempo.
INTRODUÇÃO
“Ridare vita alle ombre
esangui del passato”, il quale torna
a vivere nel presente facendosi
nuovamente “carne e sangue”. Le
citazioni dei due amici e studiosi
Wilhelm Dilthey e Paul Yorck von
Wartenburg delimitano il campo
dentro cui, per l’Heidegger di Sein
und Zeit, si gioca la partita decisiva
della storicità del Dasein. Due binari
sui quali scorrono parallele le
riflessioni heideggeriane sul senso
del tempo e della storia. Per
affondare il colpo, Heidegger ha
bisogno però di qualcosa di più
pungente e incisivo. Egli trova la
stoccata vincente nelle irriverenti
frecciate che Nietzsche scaglia
contro lo storicismo nella seconda
delle Considerazioni inattuali. Poche
pagine, quelle di Heidegger, che
celano in realtà un profondo debito
nei confronti di Nietzsche, nel quale
intravede un autorevole alleato per
pensare un rapporto autentico con
la storia. Per entrambi, essa non
sarà più confinata in un passato
museale, tanto grazioso da vedersi
quanto improduttivo per la vita
dell’uomo. Uscire dalla paralisi
della tradizione vuol dire scrollarsi
di dosso lo schiacciante peso del
passato e sbloccare le altre due
dimensioni della temporalità, il
presente e il futuro. Solo così
l’uomo riuscirà a sentirsi davvero
libero e la storicità saprà recuperare
il suo senso più elevato, al servizio
della vita. Al di là della differenze
282
Prof. Dr. Paolo Scolari
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 282
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
d’intento e di registro ermeneuticostilistico, la ricostruzione di un
ipotetico dialogo a distanza tra gli
intensi passi di Sein und Zeit e le
provocanti
considerazioni
nietzscheane
offre
spunti
interessanti per pensare alla storia e
al suo rapporto, sempre in bilico tra
il vitale e il patologico, con
l’esistenza umana.
1.
HEIDEGGER
INTERPRETE
DI
NIETZSCHE
Martin Heidegger, si sa, è
senza dubbio uno dei più famosi e
acuti esegeti di Nietzsche. Fra tutti
coloro che nel Novecento ne hanno
subito il grande fascino, è
sicuramente quello che, nel corso
del proprio itinerario speculativo,
ha
ingaggiato
con
lui
un
ininterrotto e fecondo dialogo,
infarcendo le proprie opere di
continui richiami. Dalla sua tesi di
abilitazione per la libera docenza su
Duns Scoto (1916) passando per
Essere e tempo (1927) – ricostruisce
Franco Volpi –, la presenza di
Nietzsche si fa sempre meno
fugace,
acquisendo
progressivamente uno spessore
teoretico significativo destinato ad
accrescersi progressivamente. È
infatti a partire dagli anni Trenta,
dopo la Kehre, che Nietzsche esce
dallo sfondo e assume nel pensiero
heideggeriano
piena
evidenza
Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo
tematica, diventando d’ora in
avanti un suo costante e decisivo
punto di riferimento. Addirittura,
dal 1936/1937 al 1940, Heidegger
tenne lezione quasi esclusivamente
su di lui, in un confronto serrato
che sfocerà nella monumentale
opera intitolata lapidariamente
Nietzsche. Essa riunisce le ricerche e
i corsi che egli svolse tra il 1936 e il
1946 presso l’Università di Friburgo
e fu pubblicata in due tomi quindici
anni dopo, nel 1961 (cfr. FERRARIS,
1989, pp. 99-100; cfr. VOLPI, 2005,
pp. 83-107; cfr. KAPFERER, 1988,
pp.
193-215;
cfr.
MÜLLERLAUTER, 1998, pp. 17-25).
L’interpretazione
di
Heidegger è diventata a tutti gli
effetti una pietra miliare della
filosofia
contemporanea,
imprescindibile
passaggio
obbligato per chiunque voglia
approcciarsi
al
pensiero
nietzscheano. In quest’opera egli
intesse un profondo dialogo con
Nietzsche,
leggendolo
come
l’ultimo
metafisico
partorito
dall’Occidente. La sua filosofia non
è un’estemporanea voce fuori dal
coro, bensì incarna l’ultimo e più
accecante bagliore della metafisica
occidentale, parabola iniziata oltre
duemila anni fa con Platone e
giunta ora al suo culminante
declino. Una metafisica, agli occhi
di
Heidegger,
destinata
inesorabilmente a implodere, ma
che, prima del proprio tramonto e
283
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
oltrepassamento, si fa udire ancora
una volta nel canto del cigno di
Nietzsche,
sua
estrema
ed
esasperata metamorfosi.
Nella ricostruzione della sua
filosofia, Heidegger individua nella
sentenza “Dio è morto” la parola
terminale
della
metafisica,
spartiacque tra il suo compimento
nel nichilismo e un nuovo inizio del
pensiero. Questa espressione si
declina in «cinque titoli capitali» –
«nichilismo, trasvalutazione di tutti
i valori, volontà di potenza, eterno
ritorno dell’uguale, superuomo» –,
ovvero
cinque
pilastri
che
Heidegger rintraccia all’interno del
corpus nietzscheano e sui quali
edifica la propria impalcatura
teoretica (cfr. HEIDEGGER, 19941,
p. 563-573).
Il
complesso
pensiero
nietzscheano, tuttavia, non può
esaurirsi in questi cinque capisaldi.
Heidegger stesso sembra esserne
consapevole, almeno in un punto.
Vi è infatti un’ulteriore, meno nota
sfaccettatura del suo interesse per
Nietzsche. Per trovarla bisogna
andare a ritroso, risalendo di
qualche anno. C’è una data precisa,
precedente al 1930: è il 1927, anno
in cui pubblica Essere e tempo, nel
quale il suo nome compare con il
contagocce. Tra i pochissimi
riferimenti, il più articolato è
sicuramente quello che riguarda il
giovane Nietzsche, precisamente la
seconda delle sue Considerazioni
inattuali, intitolata Sull’utilità e il
danno della storia per la vita. Le
pagine sono davvero poche, ma si
riesce comunque a percepire fra le
righe
una
sincera
passione.
Heidegger sembra trovare in
Nietzsche un buon compagno di
viaggio e un autorevole punto
d’appoggio per le sue teorie sulla
storicità del Dasein, guardando a lui
– afferma Johann Figl – come
precursore della propria impresa di
fondere la storia nella storicità
dell’Esserci (FIGL, 1981-1982, p.
419)222.
2.
CITAZIONI
NIETZSCHEANE
In Essere e tempo, il nome di
Nietzsche è riportato in tutto tre
volte: le prime due non assumono
particolare rilevanza, essendo per
lo più estemporanee citazioni o
note, mentre nella terza il discorso
si fa più articolato.
Per imbattersi nel primo
rimando bisogna portarsi nella
seconda sezione dell’opera, –
Esserci e temporalità – al § 53 del
primo capitolo, paragrafo in cui
Heidegger
sta
argomentando
«Sulla
seconda
Inattuale
Heidegger tornerà anche dopo Essere
e tempo. Nel semestre invernale
1938-39 le riserva un’esercitazione
che visto l’elevato numero di
partecipanti finisce piuttosto con
l’assumere il carattere di un corso di
lezioni» (BRUSOTTI, 2006, p. 126).
284
Prof. Dr. Paolo Scolari
222
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 284
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
attorno all’essere-per-la-morte. Si
tratta di una brevissima citazione,
estrapolata dal penultimo capitolo
del primo libro di Così parlò
Zarathustra 223 intitolato Della libera
morte, dalla quale si possono
desumere due semplici cose. Da un
lato si capisce che Heidegger ha
sicuramente
letto
l’opera
di
Nietzsche, dall’altro si nota come,
in
questo
frangente,
voglia
utilizzare le parole nietzscheane
quasi per conferire autorità al
discorso che sta facendo circa il
rapporto tra l’esistenza umana e la
morte (cfr. TAMINIAUX, 1989, pp.
63-67).
L’altro richiamo si trova una
decina di pagine dopo, in una nota
alla fine del § 55 del secondo
capitolo della medesima sezione,
nella quale Heidegger, anche se
solo di passaggio, menziona
Nietzsche
come
fondamentale
interprete della coscienza umana,
punto di riferimento per una
riflessione su di essa. Mentre sta
parlando
dei
fondamenti
ontologico-esistenziali
della
coscienza, al termine del paragrafo
«Anticipandosi, l’Esserci si
garantisce dal cadere dietro a se
stesso e alle spalle del poter-essere
già compreso, e dal “divenire troppo
vecchio per le sue vittorie”
(Nietzsche)» (HEIDEGGER, 19942, p.
395); «Certi invecchiano troppo,
anche per le proprie verità e
vittorie» (NIETZSCHE, 2005, p. 81).
223
Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo
appunta in nota le opere di alcuni
autori di fine Ottocento da «tener
presenti» per una riflessione sulla
coscienza – M. Kähler, A. Ritschl,
H.G.
Stoker
–,
«oltre
alle
interpretazioni di Kant, Hegel,
Schopenhauer
e
Nietzsche»,
considerate,
appunto,
basilari
2
(HEIDEGGER, 1994 , pp. 405-406,
nota b). Da ciò si evince la grande
considerazione che Heidegger, in
sintonia con il pensiero europeo dei
primi decenni del Novecento, ha
per la figura di Nietzsche,
affiancato già, dopo nemmeno
trent’anni dalla sua scomparsa
(1900), ai grandi filosofi della
modernità.
3.OSCILLAZIONI
HEIDEGGERIANE
Per
l’ultimo
e
più
argomentato riferimento bisogna
giungere alle pagine finali di Essere
e tempo, al § 76 del capitolo quinto –
Temporalità e storicità –. Qui
Heidegger dimostra di conoscere
un testo del giovane Nietzsche, in
quanto
l’intero
paragrafo
è
costruito attorno ai concetti chiave
della
Seconda
considerazione
inattuale, dedicata alla storia. Egli
intesse un dialogo ravvicinato con
Nietzsche, rileggendolo con le
proprie
lenti
concettuali
e
rintracciando
nell’Inattuale
argomenti che avvalorino le proprie
idee sulla storicità dell’Esserci.
285
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Heidegger concorda con la
tesi
portante
dell’opera
nietzscheana, secondo la quale
l’eccesso di storia è una delle più
gravi malattie che affliggono
l’uomo moderno. Questo, vivendo
continuamente legato al ricordo,
manifesta
una
condizione
patologica
che
lo
porta
all’alienazione
dalla
propria
umanità.
Una
dannosa
sovrabbondanza di storia incarnata
dallo storicismo, corrente che, in
sinergia
con
lo
scientismo
positivistico, nella seconda metà
dell’Ottocento
sta
prendendo
sempre
più
piede.
Anche
Heidegger ritiene che lo storicismo
rischi di soffocare l’autentica
storicità dell’Esserci. «La comparsa
del problema dello “storicismo”»
rappresenta
«una
chiara
indicazione del fatto che la
storiografia tende ad estraniare
l’Esserci
dalla
sua
storicità
autentica». Questa, dopotutto, «non
abbisogna necessariamente della
storiografia» (HEIDEGGER, 19942,
p. 565; cfr. VATTIMO, 1988, pp. 2830).
Facendo diretto riferimento
alla «seconda delle Unzeitgemäẞe
Betrachtungen
(Considerazioni
inattuali, 1874)», Heidegger gioca
con il titolo di quest’opera, che
recita: Sull’utilità e il danno della
storia per la vita. Egli esordisce
elogiando stringatamente l’idea che
sorregge
l’intero
libello
di
Nietzsche, il quale «si è reso conto
dell’essenziale circa “i vantaggi e
gli
svantaggi
del
sapere
storiografico per la vita” e lo ha
esposto in modo chiaro e
persuasivo». Subito dopo ne
ribadisce l’interrogativo, facendolo
suo e rivestendolo del proprio
linguaggio. Si chiede dunque con
Nietzsche se «il sapere storiografico
possa essere o “di vantaggio” o “di
svantaggio”
“per
la
vita”»
dell’uomo, affermando che la
«possibilità»
della
dialettica
utilità/danno «si fonda nel fatto
che la vita è storica nelle radici
stesse del suo essere e che, di
conseguenza,
in
quanto
effettivamente esistente, si è già
sempre decisa o per la storicità
autentica o per l’inautentica»
(HEIDEGGER, 19942, pp. 565-566).
Nel tipico lessico heideggeriano –
autenticità/inautenticità
–,
il
perentorio aut aut di Nietzsche è
qui confermato. Poiché l’essere
umano non può esulare dal vivere
in una condizione di totale storicità,
o la storia serve alla vita, e allora
sarà
autentica,
oppure,
se
l’esistenza diventa succube della
storiografia, sfocerà in qualcosa di
inautentico.
Heidegger continua con
l’analisi delle «tre specie di
storiografia»
individuate
da
Nietzsche: «la monumentale, la
antiquaria e la critica». Nietzsche
espone
nella
prima
parte
dell’Inattuale «tre specie di storia»,
le quali «corrispondono» ad
286
Prof. Dr. Paolo Scolari
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 286
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
altrettanti modelli antropologici: la
«storia monumentale» per l’uomo
che «è attivo e ha aspirazioni», la
«storia antiquaria» per colui che
«preserva e venera», la «storia
critica» per chi «soffre e ha bisogno
di liberazione» (NIETZSCHE, 1998,
p. 16). La prima è tenuta in
considerazione dall’«uomo che
vuole creare cose grandi e ha
bisogno del passato», la seconda è
«coltivata da chi ama perseverare
nel tradizionale e in ciò che è
venerato da gran tempo», la terza,
infine, è una storia che «giudica e
condanna», di grande aiuto a «colui
al quale una sofferenza presente
opprime il petto e che, a ogni costo,
vuol gettar via il peso da sé»
(NIETZSCHE, 1998, p. 23).
Qui, tuttavia, i termini con
cui Heidegger cita Nietzsche sono
altalenanti: l’iniziale vena di
approvazione ed entusiasmo pare
lasciare il posto a una lieve
valutazione di demerito e reticenza.
Nietzsche avrebbe «distinto» i tre
modelli di storia «senza giustificare
esplicitamente la necessità di questa
triplicità e il fondamento della sua
unità». Dopotutto gli interessi dei
due
filosofi
sono
differenti.
Nietzsche dal canto suo vuole
polemizzare bruscamente con lo
storicismo che schiaccia gli uomini
con il peso della storia, Heidegger
desidera invece sottolineare la
storicità dell’essere umano per
aprire
nuove
prospettive
Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo
ontologiche. Per questo motivo
troverà
quella
giustificazione
mancante, che nella divisione
nietzscheana non poteva esserci in
alcun
modo,
marcando
significativamente in corsivo come
«la triplicità della storiografia sia
implicita
nella
storicità
stessa
dell’Esserci». Solo fondando la
triplice divisione della storia sulla
storicità dell’esistenza umana si
arriverà a «comprendere in qual
modo la storiografia autentica
debba costituire l’unità concreta ed
effettiva di queste tre possibilità»
(HEIDEGGER, 19942, p. 566).
Heidegger, in sostanza,
rilegge Nietzsche attraverso le
proprie categorie, secondo la tipica
strategia appropriativa che lo
contraddistingue – come fa notare
Franco Volpi –, cioè mirando non
tanto alla ricostruzione critica del
pensiero nietzscheano quanto alla
radicalizzazione della logica dei
problemi da esso sollevati ai fini del
proprio progetto filosofico. Anche
se, nell’ultima riga del capoverso,
sembra quasi voler recuperare in
extremis il debito nei suoi confronti,
provando a ritirare quanto appena
detto
e
attribuendogli
un’ermeneutica della reticenza. Per
Heidegger, Nietzsche ha intuito e
colto il problema, tanto che, afferma
laconicamente, «l’inizio della sua
Considerazione fa supporre che egli
comprendesse molto di più di
quanto abbia detto». Forse però –
287
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
mette in evidenza Brusotti – solo
per sentirsi autorizzato a trascinare
l’Inattuale verso la propria visione
ontologica, dandole una struttura
più sistematica rispetto a quella
conferitale dallo stesso Nietzsche
(HEIDEGGER, 19942, p. 566; cfr.
VOLPI, 2005, p. 87; cfr. BRUSOTTI,
2006, p. 135).
4. UNA STORIA PER LA
VITA
Il titolo del paragrafo 76 di
Essere e tempo è emblematico e
sembra già portare in grembo
evidenti
accenti
nietzscheani:
«L’origine
esistenziale
della
storiografia (Historie) a partire dalla
storicità dell’Esserci». In questa
intestazione si trovano entrambi i
componenti messi in relazione da
Nietzsche
nella
sua
Seconda
Inattuale: la storia, intesa come
scienza (Historie), e l’uomo – per
Heidegger l’Esserci (Dasein) –.
L’impronta che egli vuole conferire
a questi due elementi è dunque di
chiara matrice nietzscheana. La
scienza storica non ha senso se non
ha l’uomo alla sua origine: «come
ogni scienza», afferma all’inizio del
paragrafo, anche la storia è «un
modo
d’essere
dell’Esserci»
2
(HEIDEGGER, 1994 , pp. 560-561).
Nietzsche espone questa
idea nella Prefazione della Seconda
Inattuale, dove tesse il fil rouge che
attraverserà l’intera opera. Egli
osserva attentamente la «così
potente corrente storica delle ultime
due generazioni, specialmente fra i
Tedeschi».
Il
suo
sentirsi
«inattuale» gli fa avvertire «come
danno, colpa e difetto dell’epoca
qualcosa di cui l’epoca va a buon
diritto fiera», ovvero «la sua
formazione storica». Gli uomini
della modernità «soffrono di una
febbre storica divorante», un «vizio
ipertrofico» che rischia di mandare
in «rovina» un intero «popolo».
Affinché sprigioni tutto il suo
«valore», la storia deve uscire da
una dimensione documentaristicoarchiviale per essere in grado di
rinascere
produttivamente
nell’attualità del presente, stando
sempre in un imprescindibile
rapporto con l’extra-storico, cioè
con la vita. Una relazione a senso
unico, in cui è la «storia» a «servire
la vita», e non viceversa. Se infatti
la vita è succube della storia si
creerà «un’istruzione fiacca e senza
vivificazione», in cui «la vita
intristisce e degenera». Egli è
fermamente convinto che gli
uomini non abbiano bisogno di una
storiografia come mera disciplina
esercitata da un «ozioso raffinato
nel giardino del sapere», né
tantomeno una narrazione storica
che serva quasi da «abbellimento
della vita egoistica». Proprio nella
sua «epoca», invece, essi hanno
sempre più «bisogno di una storia
per la vita» (NIETZSCHE, 1998, pp.
3-4; cfr. FERRARIS, 1989, pp. 31-33).
288
Prof. Dr. Paolo Scolari
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 288
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
Al termine dell’Inattuale, quasi
per concludere così come aveva
iniziato e circoscrivere tutto quanto
detto all’interno di una cornice,
Nietzsche diagnostica questo «male
terribile» di cui «soffre» la civiltà
moderna: una vera e propria
«malattia storica», che si manifesta in
un «eccesso di storia» e il cui
tragico esito è «l’intaccamento della
forza plastica della vita». Un
«sapere storico» che «riempie la
mente» dell’uomo «di un’enorme
quantità di concetti ricavati dalla
conoscenza dei tempi e dei popoli
passati», ma «non dall’intuizione
della vita». Il punto di vista va
invece capovolto. È la vita che
«deve dominare sulla scienza: essa
è il potere più alto e dominante»,
non la storia, e una «conoscenza
storica che non presuppone o
soffoca la vita distrugge nel
contempo se stessa» (NIETZSCHE,
1989, pp. 92, 94, 96).
5.
UNA
ESISTENZIALE
STORIA
Heidegger sembra sposare la
tesi nietzscheana, innestandosi
nella sua prospettiva. Anche per
lui, infatti, la storia deve sempre
avere una provenienza esistenziale
e, a questa «origine», non deve mai
smettere di guardare, pena lo
smarrimento
dell’umanità
dell’umano. È la storia, secondo
Nietzsche, che dipende dalla vita
Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo
dell’uomo, mai viceversa. Essa deve
essere in funzione dell’esistenza, in
quanto,
conferma
Heidegger,
l’Esserci possiede una propria e
imprescindibile dimensione di
storicità che lo fa essere temporale
nel fondamento del suo essere
stesso. La sua indagine, dunque,
verte
a
«mostrare
l’origine
esistenziale della storiografia con
l’intento di rendere ancora più
chiara la storicità dell’Esserci e il
suo radicamento nella temporalità»
(HEIDEGGER, 19942, pp. 560-561;
cfr. FABRIS, 2000, pp. 191-192; cfr.
TAMINIAUX, 1989, pp. 68-75).
Nell’introduzione
all’edizione
italiana di Essere e tempo, Pietro
Chiodi osserva giustamente che la
tesi fondamentale di Heidegger,
influenzato da Dilthey, è che «non
la storiografia fonda la possibilità
della storicità, ma la storicità
originaria e costitutiva dell’Esserci
è il fondamento della storiografia»
(HEIDEGGER, 19942, p. 15).
Poiché, prosegue Heidegger,
«l’essere
dell’Esserci
è
fondamentalmente storico, ogni
scienza sarà coinvolta in questa
storicità». La medesima cosa vale
quindi anche per la «storiografia»,
la quale però «presuppone la
storicità dell’Esserci in un modo
suo proprio e particolare». La storia
infatti, rispetto alle altre scienze, è
l’unica in cui si gioca l’intera
dimensione dell’Esserci: essa non
riguarda un oggetto come tutti gli
289
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
altri, bensì quell’ente che è storico
per la stessa essenza, ovvero
l’Esserci. Il rapporto è gerarchico, di
subordinazione.
Prima
viene
l’Esserci, poi la storiografia. «Il
conoscere storiografico – mette in
evidenza – non è storico soltanto in
quanto comportamento storico
dell’Esserci,
ma
l’apertura
storiografica della storia è in se
stessa radicata nella storicità
dell’Esserci e ciò in conformità alla
sua stessa struttura ontologica»
(HEIDEGGER, 19942, p. 561). Non
c’è la storia da una parte e l’Esserci
dall’altra: l’uomo è storia, e la storia
può esistere solo ed esclusivamente
in quanto si dà già come la sua
dimensione costitutiva.
Per Heidegger, inoltre, la
storia non può ridursi all’attività
scientifica
dello
storico
di
professione: «non si tratta di
“ricavare” il concetto di storiografia
dall’attività scientifica in atto oggi,
oppure di assimilare quello a
questa». In quanto l’«Esserci» stesso
esiste storicamente, la storia può
avere
soltanto
un’«origine
esistenziale», proprio «a partire da
quella storicità» (HEIDEGGER,
19942, p. 561). Anche per Nietzsche,
«pensata come pura scienza, la
storia sarebbe una specie di
chiusura e liquidazione della vita
per l’umanità. L’educazione storica
è invece qualcosa che è salutare e
promette futuro solo al seguito di
una forte corrente vitale nuova, cioè
solo quando viene dominata e
guidata da una forza superiore e
non quando è essa stessa a
dominare e a guidare. La storia, in
quanto è al servizio della vita, è al
servizio di una forza non storica, e
perciò non potrà né dovrà
diventare
mai,
in
questa
subordinazione, pura scienza»
(NIETZSCHE, 1998, pp. 15-16, 31).
6. RICORDARE/ OBLIARE.
IL PESO DEL PASSATO
Per forza di cose, quando si
parla di storia si ha a che fare con il
passato. Ispirandosi al Canto
notturno di un pastore errante
dell’Asia di Giacomo Leopardi,
Nietzsche è ben consapevole che,
spesso, la condizione passata può
arrecare
danni
irreversibili
all’esistenza
umana.
Essa
caratterizza
sì
l’uomo,
differenziandolo dagli animali, ma
gli fa subito pagare il prezzo di
questa superiorità, incastrandolo in
una situazione a dir poco
paradossale. Egli, mentre «si vanta»
attraverso
la
memoria
di
distinguersi dall’animale, per colpa
di questa stessa facoltà vorrebbe
trasformarsi proprio in quell’essere
sopra il quale si era tanto
orgogliosamente elevato. Infatti, se
«il gregge che pascola è attaccato
all’istante e non sa cosa sia ieri e
cosa oggi», l’umano «non può
dimenticare ed è continuamente
legato al passato» (NIETZSCHE,
290
Prof. Dr. Paolo Scolari
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 290
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
1998, p. 6; cfr. COLLI, 1980, p. 49). Il
ricordo, che per la bestia non esiste,
provoca un lancinante dolore
all’uomo, portandolo addirittura a
provare «invidia» per la condizione
animale.
Il peso delle cose passate
grava sulla sua esistenza e lo tiene
imprigionato: «la catena del passato
corre con lui e, per quanto lontano e
rapidamente egli corra», continuerà
ovunque a seguirlo, rendendolo
eternamente
infelice.
Gli
avvenimenti, soprattutto quelli più
tragici, «tornano» quotidianamente
«come spettri» a «turbare» la sua
esistenza: ogni volta che dice «“mi
ricordo”» prova dolore e «invidia
l’animale che subito dimentica».
Mentre «l’animale vive in modo
non storico, l’uomo resiste sotto il
grande e sempre più grande carico
del passato: questo lo schiaccia a
terra e lo piega da parte;
appesantisce il suo passo come un
invisibile e oscuro fardello. Con la
parola “c’era”, lotta, sofferenza e
tedio si avvicinano a lui, per
rammentargli che in fondo la sua
esistenza è qualcosa di imperfetto
che non può essere mai compiuto.
L’esistenza è solo un ininterrotto
essere stato, una cosa che vive del
negare e consumare se stesso, del
contraddire
se
stessa»
(NIETZSCHE, 1998, p. 7; cfr.
MAZZARELLA, 1983, pp. 33-35).
In questa prospettiva, la
storia – afferma Mazzarella – non è
Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo
altro che la creazione di un
orizzonte nell’esistenza umana, una
sottile e delicata linea di confine che
delimita “fin dove” il passato può
irrompere a dare vita al presente
senza annichilirlo (MAZZARELLA,
1983, p. 39). In effetti, quando si
relaziona con il passato la vita
umana oscilla pericolosamente, in
un precario equilibrio. Se «per la
forza di usare il passato per la vita e
di trasformare la storia passata in
storia presente, l’uomo diventa
uomo», avviene anche il contrario,
ovvero che «in un eccesso di storia
l’uomo viene meno».
Per Nietzsche l’uomo non
può vivere continuamente legato al
proprio passato, pena l’esserne
tragicamente schiacciato e condurre
una vita non libera: esso «deve
essere dimenticato, se non vuole
diventare
l’affossatore
del
presente». La più grande «felicità»
per l’uomo risiede proprio nel
«poter dimenticare tutte le cose
passate», ovvero «la capacità di
sentire in modo non storico». E
ancora, «come per la vita di ogni
essere organico ci vuole non
soltanto luce, ma anche oscurità, è
assolutamente impossibile vivere
senza oblio». Se infatti «l’uomo
volesse sentire sempre e solo
storicamente e non riuscisse a
dimenticare, sarebbe simile a colui
che venisse costretto ad astenersi
dal
sonno»
e
andrebbe
inesorabilmente verso la sua rovina
291
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
(NIETZSCHE, 1998, pp. 8, 10-11;
cfr. BRUSOTTI, 2006, pp. 133-135).
7.
APERTURA/POSSIBILITÀ.
RIPENSARE IL PASSATO
Heidegger, d’altro canto,
vuole rivalutare il ruolo del
passato, il quale non può esistere
solamente come peso e condanna,
bensì deve diventare apertura e
possibilità. Poiché il «compito»
della
storiografia
«consiste
nell’apertura dell’ente storico» e
quando si fa storia si ha a che fare
con le cose passate, egli individua il
compito specifico di quest’ultima
nell’«apertura del “passato”». La
storia «è possibile solo se il
“passato” è già da sempre aperto».
Non è una questione meramente
tecnica,
quasi
si
dovesse
intraprendere
una
ricerca
forsennata di documenti storici: «a
prescindere dalla disponibilità o
meno di fonti sufficienti per la rappresentazione storica del passato,
bisogna che, in linea di massima, la
storiografia trovi aperta innanzi a
sé la via d’accesso al passato a cui
deve ritornare» (HEIDEGGER,
19942, pp. 561-562).
La chiave di volta della
questione è l’esistenza dell’uomo.
«Solo in quanto l’essere dell’Esserci
è storico, cioè aperto al suo esserstato in virtù della temporalità
estatico-orizzontale,
la
tematizzazione del “passato” ha via
libera in seno all’esistenza». È
l’essere umano, non la fonte storica,
il garante dell’apertura. L’esistenza
dell’uomo porta in sé questa
dimensione storica che lo fa
sporgere sul proprio trascorso e
che, dunque, permette alla storia di
squarciare il passato. Ciò può
avvenire «perché l’Esserci – e solo
esso –, insiste Heidegger, è
originariamente
storico:
con
l’Esserci effettivo, in quanto esserenel-mondo, c’è anche sempre il
mondanamente-storico»
(HEIDEGGER, 19942, p. 562).
«Resti, monumenti, avanzi tuttora
presenti»: tutto questo sembra
«materiale
storiografico
per
l’accesso al passato». Ma non basta
«la raccolta, la scelta o il vaglio del
materiale a determinare il ritorno al
“passato”». Se alla base di tutto non
si trova «l’esser storico dell’Esserci,
cioè la storicità dell’essenza dello
storiografo» non può darsi la storia.
La storicità dello storico «fonda la
storiografia come scienza fin nei
comportamenti che sembrano più
ovvii
e
di
“mestiere”»
(HEIDEGGER, 19942, pp. 562-563).
Questa apertura esistenziale
dell’essere può avvenire soltanto
dove c’è possibilità. Senza di essa,
in un mondo dove regna la
necessità e tutto è già deciso in
partenza, la storia non potrebbe
darsi in alcun modo. Il Dasein,
dopotutto, è il possibile per
eccellenza: l’esistenza umana deve
292
Prof. Dr. Paolo Scolari
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 292
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
«aver luogo in conformità alla
storicità
autentica
e
alla
corrispondente
apertura
dell’Esserci, cioè in base alla
ripetizione, la quale comprende
l’Esserci nella sua possibilità». Se
l’uomo «è “autenticamente” reale
solo nell’esistenza, la sua “fatticità”
non si costituirà che nel deciso
auto-progettarsi in un poter-essere
che è stato scelto» (HEIDEGGER,
19942, p. 563). Poiché, continua
Heidegger, «l’esistenza è sempre
tale in quanto effettivamente
gettata, la storiografia può aprire la
silenziosa forza del possibile, tanto
più decisamente quanto più
semplicemente e concretamente
comprende
l’esser-essente-statonel-mondo a partire dalla sua
possibilità» (HEIDEGGER, 19942,
pp. 563-564). La storia ci parla
dunque di una «possibilità essentestata effettivamente esistente».
Comprendere il reale valore della
possibilità e vivere all’interno di
«una
storicità
effettiva
ed
autentica» vuol dire innanzitutto
«non degradarla a pallido modello
ultra-temporale», ma aprire la
storia passata «in modo tale che,
nella ripetizione, la “forza” del
possibile irrompa nell’esistenza
effettiva, cioè pervenga a se stessa
nell’ad-venire
dell’esistenza»
(HEIDEGGER, 19942, p. 564).
Sta di fatto che anche
Nietzsche, a dispetto dalla sua
incrollabile fede nella necessità del
Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo
divenire, quando parla di storia
sembra se non altro intuire che in
un mondo senza possibilità non
solo non sarebbe pensabile il
passato, ma nemmeno si potrebbe
vivere il presente e progettare il
futuro. Tutto risulterebbe irrigidito
nell’assoluta necessità e la storia
stessa non avrebbe alcun senso. La
credenza nella possibilità invece,
fosse pure per il ritorno di ciò che è
stato, porterà l’uomo a «dedurre
che la grandezza, la quale un
giorno esistette e fu comunque una
volta possibile, sarà perciò ancora
possibile
un’altra
volta»
(NIETZSCHE, 1998, p. 19).
8.
L’UTILITÀ
STORIA
DELLA
Forte di aver trovato un
buon alleato, Heidegger affonda
nelle sue argomentazioni battendo
la strada percorsa da Nietzsche
nella sua Inattuale. Ponendo in
relazione fra di loro i tre archetipi
di
storicità
–
monumentale,
antiquaria e critica – vuole mettere
in luce sia l’utilità sia il danno che
queste modalità di approcciarsi al
sapere storico hanno nei confronti
della vita umana. Attraverso le
valutazioni dei vantaggi e dei rischi
della storia, tenta quindi di
edificare l’immagine di un uomo
che non si arresti davanti alla
dimensione passata ma che,
mettendola
continuamente
in
293
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
discussione e transitando per il
presente, si proietti su quella
futura.
Dietro le considerazioni di
Heidegger riguardo alla storia
monumentale si può senz’altro
intravedere il movimento di fondo
compiuto da Nietzsche. Secondo
lui, questo tipo di storia è propria
di «un uomo che ha bisogno di
modelli, maestri e consolatori, e che
non può trovarli nel presente».
L’epoca attuale non riesce a offrire
ai suoi abitanti alcun esempio di
virtù, da cercarsi pertanto in un
remoto passato. Per questo uomo la
storia è una vera e propria
«maestra» di vita – annota
Nietzsche citando Polibio –, «che
con il ricordo delle altrui sventure
lo ammonisce a sopportare con
fermezza i mutamenti di fortuna».
La storia monumentale non si
riduce alla «curiosità» di qualche
«viaggiatore» o alla «meticolosità»
di qualche «micrologo» che «si
arrampica sulle piramidi dei grandi
eventi del passato». L’uomo che fa
uso della storia monumentale non
indaga il passato fine a se stesso,
quasi fosse un vanto personale o,
peggio ancora, un modaiolo
tentativo di evasione da una società
decadente:
«non
desidera
incontrare l’ozioso che, desideroso
di distrazioni o di sensazioni,
gironzola come fra i tesori artistici
accumulati in una galleria». Egli si
pone invece alla ricerca di
«incitamenti a imitare e a far
meglio, guardando al passato e
usando la storia come mezzo contro
la rassegnazione» (NIETZSCHE,
1998, pp. 16-17).
Heidegger fa suo il lato
positivo riscontrato da Nietzsche
nella storia monumentale. Essa è
indispensabile
nell’esistenza
autentica dell’uomo, in quanto gli
consente, «nella ripetizione che si
appropria
del
possibile,
di
conservare l’esistenza passata, a cui
si era rivelata la possibilità ora
compresa». «L’Esserci», infatti, si
costituisce
continuamente
attraverso una dimensione storica
e, «in quanto storico, è possibile
solo
sul
fondamento
della
temporalità,
la
quale
si
temporalizza nell’unità estaticoorizzontale delle sue estasi».
Vivendo in quest’orizzonte di
storicità, l’essere umano «esiste
come autenticamente adveniente
nell’apertura
decisa
di
una
possibilità scelta». L’uomo «esiste
storicamente» come possibilità e
sperimenta su di sé quella che
Heidegger
chiama
«situazione
ermeneutica»: quando sceglie e
«decide», esso diventa autentico e
spalanca davanti a sé una
dimensione futura. Un’«apertura
ripetente» del passato, che avviene
«ritornando decisamente su se
stesso e ripetendo». Solo in questo
gioco di rientro e reiterazione
«l’Esserci sarà aperto alle possibilità
“monumentali”
dell’esistenza
294
Prof. Dr. Paolo Scolari
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 294
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
umana”» (HEIDEGGER, 19942, pp.
566-567).
I benefici apportati dalla
storia monumentale fanno da ponte
per l’approdo al secondo modello.
Il trapasso avviene in modo fluido e
graduale, quasi a voler sottolineare
la stretta continuità con il primo:
«in quanto monumentale, la
storiografia autentica è quindi
“antiquaria”» (HEIDEGGER, 19942,
p. 566). In effetti, il secondo
archetipo proposto da Nietzsche ha
molti punti in comune con il primo.
Entrambi
–
attesta
Eugenio
Mazzarella
commentando
la
Seconda Inattuale – garantiscono
all’uomo un rapporto con il
passato,
quale
dimensione
costitutiva alla quale esso non può
rinunciare. Un passato visto come
forma vissuta ma ancora vivente,
alla cui fonte sapientemente
abbeverarsi
per
vivere
e
interpretare
il
presente
(MAZZARELLA, 1983, p. 39).
Per Nietzsche la storia
antiquaria, nello specifico, è propria
di «un uomo che custodisce e
venera, che guarda indietro con
fedeltà e amore, verso il luogo onde
proviene, dove è divenuto. Coltiva
con mano attenta ciò che dura fin
dall’antichità, vuole preservare le
condizioni nelle quali è nato per
coloro che verranno dopo di lui – e
così serve la vita». A questo uomo
non interessano le grandi virtù del
passato da imitare: il suo cuore si
Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo
rivolge invece «a ciò che è piccolo,
limitato, decrepito e invecchiato»,
realtà quotidiane che «ricevono la
loro propria dignità e intangibilità
dal fatto che l’anima dell’uomo
antiquario, che custodisce e venera,
trapassa in queste cose e vi si
prepara un nido familiare». Egli
non va alla ricerca di modelli o di
eroi che lo guidino contro il
destino, bensì ama «la storia della
sua città», la quale «diventa per lui
la storia di se stesso» (NIETZSCHE,
1998, p. 24).
9. IL DANNO
STORIA
DELLA
Con Nietzsche, Heidegger è
consapevole che i vantaggi che la
storia porta con sé possono
rapidamente rovesciarsi nel loro
opposto, ovvero in risvolti negativi
molto dannosi dai quali bisogna
guardarsi.
Per
la
storia
monumentale sarà ovviamente
l’idolatria del passato e per quella
antiquaria un tradizionalismo privo
di anima. Per quella critica, sebbene
resti un po’ implicita e sullo sfondo,
uno sradicamento devitalizzante
che assolutizza per contrasto il
presente.
Il primo insidioso pericolo
appartiene alla storia monumentale
e consiste nell’idolatrare il passato.
L’uomo rischia di impantanarsi
nelle sabbie mobili di un epoca
remota tanto bella quanto sterile
295
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
per
la
sua
vita
presente:
l’emulazione del passato può
portare alla sua mitologizzazione,
facendogli perdere il contatto con la
realtà. In effetti, «finché il passato
deve essere descritto come degno di
imitazione, la storiografia è in
pericolo di essere alquanto falsata,
abbellita nell’interpretazione e in tal
modo avvicinata alla libera, mitica
invenzione» (NIETZSCHE, 1998, p.
21).
Anche la storia antiquaria
non è per nulla esente da pericoli.
Come nella monumentale, si può
sempre incappare nel rischio di
esaltare talmente tanto il passato da
fermarsi lì, appagati e felici, senza
accorgersi della realtà presente: «la
storia antiquaria degenera nel
momento stesso in cui la fresca vita
del presente non la anima e ravviva
più». O, peggio, porta l’uomo a
rigettare completamente il presente
e tutto ciò che di nuovo la storia
propone, alla stregua del comodo
tradizionalismo del “si è sempre
fatto così”. «La storia serve la vita
passata al punto da minare la vita
presente: il senso storico non
conserva più ma mummifica la
vita». Nell’«orizzonte» dell’uomo
antiquario «tutto ciò che è antico e
passato
viene
semplicemente
accettato come venerabile, mentre
tutto quanto non muove incontro
con venerazione a questa antichità,
ossia il nuovo e ciò che diviene, è
rifiutato
e
avversato»
(NIETZSCHE, 1998, pp. 26-27).
Arenarsi
nel
passato
vorrebbe dire avere a che fare con
una storia «capace solo di
conservare, non di generare vita»:
una storia che «sottovaluta sempre
ciò che diviene, ostacola la forte
risoluzione per il nuovo, paralizza
chi agisce». La paura della novità è
sempre dietro l’angolo: meglio non
abbandonare la strada vecchia per
seguire la nuova. È infatti
impensabile, per un uomo che
ragiona in questo modo, «sostituire
un’antichità – che ha generato la
pretesa che debba essere immortale
– con una novità, con qualcosa di
presente». Nietzsche vede l’apice di
questa degenerazione in quella che
chiama un’«abitudine erudita: il
ripugnante spettacolo di una cieca
furia collezionistica, di una raccolta
incessante di tutto ciò che è una
volta esistito. L’uomo si rinchiude
nel tanfo, riesce ad abbassare con la
maniera antiquaria anche un
talento più significativo, un bisogno
più nobile a un’insaziabile curiosità
o meglio a un’avidità di cose
vecchie e di tutto; spesso scende
così in basso che alla fine è contento
di ogni cibo e mangia di gusto
anche la polvere delle quisquilie
bibliografiche» (NIETZSCHE, 1998,
pp.
27-28).
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Prof. Dr. Paolo Scolari
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 296
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
10.
PASSATO/PRESENTE/FU
TURO. PROCESSO ALLA
STORIA
Il terzo modello di storia
individuato da Nietzsche, quella
critica,
non
viene
citato
esplicitamente
da
Heidegger.
Bisogna pertanto leggere fra le
righe e farsi aiutare dalle parole
nietzscheane per scorgere in quale
senso egli utilizzi questo tipo di
storia.
Heidegger
sembra
concordare con Nietzsche nel
sostenere che questo ideale di storia
è
quello
che
si
distacca
maggiormente dai primi due,
consentendo all’uomo di aprire
nuovi orizzonti. Una storia che
parte sicuramente dal passato, ma
che ad esso non si arresta, bensì
esamina criticamente il presente e si
proietta in una prospettiva futura.
Questo modo di fare storia
rispecchia il bisogno che l’uomo ha
«di infrangere e di dissolvere il
passato per poter vivere». Egli lo
conduce «davanti a un tribunale, lo
interroga minuziosamente, e alla
fine
lo
condanna».
Secondo
Nietzsche «ogni passato merita di
essere condannato», proprio perché
non rispetta la vita. Ed è la «vita»
stessa, vittima e carnefice al tempo
stesso, che si trasforma nel giudice
che «pronuncia il giudizio» di
condanna su quel passato che tanto
l’ha tormentata (NIETZSCHE, 1998,
Vita e storia. Nietzsche in Essere e Tempo
p. 28). In questo tribunale
immaginario
esso
«viene
considerato criticamente e si
attaccano con il coltello le sue
radici». Il «rischio» è comunque
alto. Il «processo» è sempre molto
«pericoloso» e mette gli «uomini»
in serio «pericolo». Infatti, anche se
la sentenza recita una condanna a
morte, «non è possibile staccarsi del
tutto dalla catena» del passato:
anche se l’uomo «condanna i suoi
traviamenti e se ne ritiene
affrancato», non riuscirà mai a
«eliminarlo» una volta per tutte.
Egli, dopotutto, «deriva proprio da
quello stesso passato» che vuole a
tutti costi rinnegare (NIETZSCHE,
1998, p. 29).
Heidegger
è
dunque
d’accordo con Nietzsche nel
ritenere che l’uomo non possa
pensare di fermarsi soltanto al
passato. Esso risulta in questo caso
davvero pericoloso, per due motivi.
Innanzitutto non ha a che fare con
la vita, ma si trasforma in una terra
arida e desolata in cui l’esistenza
umana non ha più nulla da dire. In
secondo luogo, è altrettanto
dannoso
quando
diventa
l’orizzonte totalizzante e non riesce
a coinvolgere le altre due sfere della
temporalità umana. Un passato che,
in sostanza, non è in grado né di
aprire al presente né, tantomeno, di
affacciarsi a una dimensione futura.
Gli
autentici
«uomini
storici», invece, sono coloro il cui
297
Aoristo)))))
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«sguardo nel passato infiamma il
loro coraggio a misurarsi ancora
con la vita e li spinge verso il
futuro, accendendo in loro la
speranza che ciò che è giusto possa
ancora venire, che la felicità stia
dietro
il
monte
verso
cui
camminano». Questi esseri umani
sono
consapevoli
che
«la
conoscenza del passato deve essere
desiderata solo per servire il futuro
e il presente, non per indebolire il
presente né per sradicare un futuro
vitalmente forte». Essi non si
fossilizzano
sulla
dimensione
passata, bensì «credono che il senso
dell’esistenza verrà sempre più alla
luce nel corso del suo processo,
guardano
indietro
solo
per
imparare,
in
base
alla
considerazione del processo finora
avvenuto, a capire il presente e a
desiderare più ardentemente il
futuro».
Uomini
che,
paradossalmente,
«non
sanno
affatto quanto poco storicamente,
nonostante tutta la loro storia, essi
pensino e agiscano, e come anche il
loro occuparsi di storia non sia al
servizio della pura conoscenza,
bensì della vita» (NIETZSCHE,
1998, pp. 13, 30-31).
Heidegger parla un altro
linguaggio rispetto a Nietzsche, ma
il sentore è comune, tanto che i due
appaiono straordinariamente sullo
stesso piano. Secondo lui la forza
della storia sta nel suo servire da
discrimine tra una temporalità
autentica e una inautentica. L’uomo
va portato fuori da un ancoraggio
patologico al passato e considerato
come punto d’unione delle tre
dimensioni temporali – futuro,
passato, presente –: «l’Esserci si
temporalizza nell’unità di avvenire,
esser-stato e presente». Poiché vive
nel
presente,
sarà
questa
dimensione, «come attimo, ad
aprire
l’oggi
autentico».
Un
presente non banalizzato, «ma
interpretato
a
partire
dalla
comprensione della possibilità
dell’esistenza
afferrata
–
adveniente-ripetente –, grazie alla
storiografia autentica, la quale
diviene
una
de-presentazione
dell’oggi, cioè una separazione
dolorosa dalla pubblicità deiettiva
dell’oggi». La mentalità del “Si”
vuole considerare questo presente
senza alcuna connessione con il
passato e il futuro. L’uomo che
assolutizza
la
dimensione
dell’attimo
cadrà
nella
banalizzazione del tempo e sarà
costretto
a
crogiolarsi
in
un’esistenza
inautentica.
Al
contrario,
«la
storiografia
monumentale-antiquaria, in quanto
autentica, è necessariamente una
critica
del
“presente”»
(HEIDEGGER, 1994, pp. 566-567):
la storia, se autentica, smaschera la
pretesa insita nell’essere umano di
eternare il proprio oggi. Essa gli
insegna a viverlo in maniera
autentica, ovvero non in modo
totalizzante, bensì in continua e
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Prof. Dr. Paolo Scolari
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Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics
dinamica relazione con il passato e
l’avvenire.
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Submetido: 11de julho 2017
Aceito: 20 de julho 2017
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Aoristo)))))
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“L’infini derrière la haie”.
L’homme comme exigence ontologique et humilité chez
G. Marcel.
"O infinito atrás da sebe".
O homem como exigência ontológica e humildade em G.
Marcel.
Dr. Ramon Caiffa224
L’Institut Catholique de Toulouse
RESUMÉ
On tachera d’exposer, dans ce bref texte, tout d’abord, les motivations qu’on a pour
affirmer que la subjectivité demande un effort pour satisfaire l’exigence ontologique qui
est constitutive de son être. Ceci demandera, d’abord, l’explication de certains mots
comme exigence ontologique, recueillement et humilité. Ensuite, on verra si, et comment,
une telle exigence peut être satisfaite. On s’appuiera, pour faire ceci, sur les réflexions du
philosophe français Gabriel Marcel, qui a avancé, notamment dans Le mystère de l’être et
Homo Viator, des importantes contributions à ce sujet. La philosophie de Gabriel Marcel
sera analysée, non seulement dans sa production « systématique », mais aussi dans celle
théâtrale, car c’est dans le caractère dramatique de la pièce théâtrale qu’une expérience de
l’absolu peut d’abord se produire et ensuite s’alimenter. En effet, dans la conviction que
cette expérience a besoin de la communication indirecte du théâtre et de la poésie, on sera
autorisé à en faire recours. On montrera, alors, en suivant une analyse gnoséologique,
d’abord (I) comment la définition de la subjectivité comme effort est nécessaire et exacte
et puis (II) comment cette exigence ontologique peut être satisfaite.
MOT CLÉS
Être;
224
exister;
exigence
ontologique;
humilité;
recueillement;
fragilité.
E-mail: ramon.caiffa@gmail.com
300
Prof. Dr. Ramon Caiffa
Toledo, n˚1, v. 2 (2017) p. 300
Aoristo)))))
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RESUMO
Neste breve texto, tentaremos explicar, em primeiro lugar, as motivações que temos para
afirmar que a subjetividade requer um esforço para satisfazer a exigência ontológica que
constitui o seu ser. Isso exigirá, em primeiro lugar, a explicitação de certas palavras como
exigência ontológica, recolhimento e humildade. Então, vamos ver se e como, tal requisito
pode ser satisfeito. Para tanto, nos subsidiaremos nas reflexões do filósofo francês Gabriel
Marcel, que realizou importantes contribuições a este respeito, particularmente em o
Mistério do Ser e em Homo Viator. A filosofia de Gabriel Marcel será analisada, não só em
sua produção "sistemática", mas também na produção teatral, pois é no caráter dramático
da peça que uma experiência do absoluto pode, in primis, ocorrer e, depois, se alimentar.
Na verdade, na crença de que essa experiência precisa da comunicação indireta do teatro e
da