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O coliseu do seculo xxi

O COLISEU DO SÉCULO XXI 40 DESTRUIÇÃO PSICANÁLISE, AGRESSIVIDADE E CULTURA DO CANCELAMENTO Marcia Neder Psicanalista E W. Allen m março deste ano uma amiga me convidou para ir ao cinema ver “Tár”. Saímos da sala de exibição atônitas, mudas, até uma de nós comentar, surpresa, que permanecemos sentadas por quase três horas sem notar. Silêncio de novo. Digeríamos o impacto daquela obra. Associando flashes de ideias em profusão, pensei em voz alta e levemente irritada: “Por que aquela referência irônica ao Visconti?” Surpresa, minha amiga perguntou do que eu estava falando. Da obra prima do Visconti, respondi, “Morte em Veneza” (1971), filmado a partir da novela de Thomas Mann: por que aquele tom debochado da protagonista quando se referiu à execução do magnífico adagietto da Quinta Sinfonia de Mahler? Sozinha no táxi me entreguei à voragem de imagens e ideias. Cheguei em casa direto para o computador pesquisar. O filme se introduzira na conversa que tenho comigo há algum tempo buscando analisar acontecimentos atuais a partir da crítica freudiana da cultura. Um deles, violência, intolerância, despotismo, cujo crescendo observo desde a última década do século passado na sociedade e no meu cotidiano como professora de Universidade Federal, nas relações entre alunos e professores e entre pares. Seria um caso da psicopatologia? Sem dúvida um caso da análise freudiana da agressividade na cultura. Peter Gay em seu livro “O Cultivo do Ódio” lembra do prazer que os humanos obtêm com seus poderes agressivos e que, por isso, cultivam seus ódios. E as sociedades cultivam o ódio controlando a agressão para que a agressividade humana não as destrua: “elas puxam as rédeas da violência antes que ela destrua tudo”. Esta é, em suma, a teoria freudiana da cultura às voltas com a repressão e a sublimação das pulsões. “Toda cultura, toda classe, todo século constrói seus próprios álibis para a agressão” (P. Gay). O historiador francês Jean Delumeau escreveu “A História do Medo no Ocidente – 1300-1800”, em que chamou a atenção para a agressão e a violência como sendo as características da iconografia do século XVI ao XVIII. Ele ressalta o “gosto pelo sangue e pelas imagens violentas” dos artistas da época da Reforma Católica que pintavam imagens como Santa Ágata com os seios cortados, Santa Martine com o rosto ensanguentado por unhas de ferro, São Liévin com a língua arrancada e lançada aos cães, São Bartolomeu esfolado, São Vital enterrado vivo, Santo Erasmo, de quem se desenrolam os intestinos. Observação do historiador congruente com a teoria freudiana da agressão é o registro do próximo como fonte de hostilidade. A bíblia da Inquisição, o Malleus MARÇO 2024 41 I N S I G H T Maleficarum e os processos de feitiçaria dos séculos XVI e XVII fazendo eco às afirmações do Malleus mostram a vizinha como o alvo privilegiado das acusações de feitiçaria. Delumeau vai além: uma das constantes das civilizações ocidentais foi a suspeita em relação ao vizinho, que esteve na origem de tantas denúncias por feitiçaria. Não é difícil constatar – inclusive não são poucos os filósofos que também falam sobre a natureza agressiva do humano – que a agressividade atravessa a história da humanidade: se não, por que nossa história seria uma história de guerras pelo domínio do outro, do seu território, de sua servidão? O que muda ao longo da história é a forma que a agressividade se manifesta e que é proibida ou estimulada. Cada cultura recompensa ou desvaloriza, legaliza ou proíbe um tipo de agressividade. Nossa cultura em nossos dias recompensa e conclama à destruição do outro por seu cancelamento. Em 26 de julho de 2023, espalhou-se a notícia fresquinha: “Kevin Spacey é considerado inocente de agressão sexual após julgamento em Londres”. Processado por vários homens, o ator viu a Justiça britânica rejeitar as acusações considerando-as insustentáveis e concluindo que tudo havia sido inventado. Juntava-se à Justiça norte-americana que fizera o mesmo no ano anterior. Essa história começou em 29 de outubro de 2017 com a denúncia do ator Anthony Rapp. A acusação remete a uma festa privada em 1986 na casa de Kevin Spacey. Segundo Rapp, à época com 14 anos, Spacey, então com 26 anos, o teria carregado, posto na cama e deitado sobre ele. Rapp conseguiu se livrar e sair ileso, e 31 anos depois, quando Spacey vivia o auge de sua bem-sucedida carreira, acusou-o em Nova York de “agressão sexual”, com pedido de indenização de US$ 40 milhões por danos. N o dia seguinte, 30 de outubro de 2017, Spacey foi ao antigo Twitter (hoje X) se desculpar, mesmo não se lembrando de algo que supostamente teria ocorrido três décadas antes: “Honestamente não me lembro desse encontro, que teria acontecido 30 anos atrás. Mas, se me comportei como descrito, eu devo a ele sinceras desculpas do que foi um comportamento de bêbado completamente inapropriado.” Nessa época, a fúria do movimento MeToo estava no auge, com sua exigência de confissão pública dos pecados sexuais. Jogar nossos semelhantes às feras para serem devorados em coliseus, damnatio ad bestias, era uma forma legítima de satisfazer nossa agressividade na Roma Antiga. Alguns milênios nos separam da Antiguidade, 42 DESTRUIÇÃO INTELIGÊNCIA e nosso apetite pelo sangue do próximo permanece insaciável. Além de se desculpar, Kevin Spacey submeteu-se a outro mandamento da nova religião: a confissão pública de sua sexualidade. “Como os mais próximos de mim sabem, na minha vida tive relacionamentos com homens e mulheres. Eu amei e tive encontros românticos com homens e mulheres ao longo da minha vida e decidi agora viver como um homem gay.” A quem interessa a sexualidade do indivíduo senão ao próprio? Já no dia seguinte à acusação e antes de qualquer julgamento oficial, a Netflix dava o primeiro passo na execução de Kevin Spacey, que o condenaria à morte pública. Em 31 de outubro a plataforma de streaming anunciou que encerraria prematuramente a série “House of Cards” da qual Kevin Spacey era o protagonista celebrado. “House of Cards” foi um sucesso mundial absoluto desde sua primeira temporada e pioneira no mundo da produção de televisão, dando à Netflix seus primeiros prêmios (sete Emmys e dois Globos de Ouro). Eliminado imediatamente da série, Kevin Spacey em seguida foi condenado a pagar à produtora uma multa milionária. Do dia para a noite o estrelado ator de “Beleza Americana” tornou-se um pária social assistindo o enterro de sua longa e bem-sucedida carreira de ator, inicialmente no teatro e, em seguida, na televisão e no cinema. Ator, diretor, roteirista, produtor desde os anos 1980, na década seguinte seria aclamado e premiado com dois Oscar e outros prêmios e honrarias. Em 2003, foi convidado para assumir a posição de diretor artístico do Old Vic (Royal Victoria Hall), um dos mais antigos teatros de Londres, recebendo em 2012 a Ordem do Império Britânico, concedida pelo Príncipe Charles em nome de sua mãe, a Rainha Elizabeth, por seus serviços ao teatro. Sua filmografia inclui “Seven, os sete pecados capitais” (1995); “Os Suspeitos” (1995), que lhe rendeu o Oscar de melhor ator coadjuvante; “Beleza Americana” (1995), com Oscar e BAFTA de melhor ator, entre muitos outros filmes dos quais participou. Quando soube que a Justiça britânica concluiu que as acusações eram insustentáveis e inventadas, o ator disse: “Antes que a primeira pergunta fosse feita ou respondida, perdi meu emprego, perdi minha reputação, perdi tudo em questão de dias.” Dois mil anos nos separam da Roma Antiga com seus jogos na arena do Coliseu, onde multidões se divertiam assistindo espetáculos de destruição de seres humanos. Como um símbolo a nos lembrar de nosso prazer pela carne e pelo sangue do próximo, o Coliseu permanece entre nós como um monumento ao nosso insaciável desejo agressivo. O sangue e a morte eram elementos essenciais a esses espetáculos romanos, para dar prazer e divertir as pessoas assistindo à carnificina. Sêneca escreve: “volto para casa mais ganancioso, mais ambicioso, mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano. Isso porque estive entre os seres humanos”. Das arquibancadas do nosso Coliseu moderno, não só assistimos o condenado lutando por sua vida como também participamos da sua perseguição e assassinato com nossa política de cancelamento. O criminoso da vez sequer luta, obrigado a assistir, impotente, à turba que se diverte destruindo sua reputação e, orgulhosa, vomita sua superioridade virtuosa. O filme a que me referi no início, “Tár”, foi entendido e é apresentado como um filme sobre o cancelamento. Uma maestrina tirânica abusa do seu poder perseguindo e assediando jovens. Predadora sexual como os homens denunciados pelo MeToo na área cultural, inclusive na música clássica, a “maestro” titânica perde o emprego acusada de assédio e perseguição. Cancelada, vive sua morte pública. O final do filme puniria com a ridicularização da outrora deusa da música, “verdadeira catedral diante da qual se ajoelham leigos e profissionais”. Essa pode ser a história óbvia do filme. Mas, treinada no método psicanalítico, aprendi a ouvir na coerência do relato manifesto a nota que desafina, a valorizar o dissonante, que é a primeira regra do método criado por Freud. Lembro que a psicanálise não é só uma terapia: ela é também um método de investigação, além de uma teoria. Gaston Bachelard, epistemólogo e inicialmente apaixonado pela psicanálise a ponto de criar uma psicanálise do conhecimento objetivo, colocava a opinião e o senso comum como o primeiro obs- INTELIGÊNCIA táculo epistemológico, aquilo que nos impede de conhecer. A opinião, as ideias facilmente aceitas não são mais que projeções nossas sobre a realidade social. Facilmente se reconhece o que se conhece. O filme de Todd Field tem como pilares a ambiguidade da trama e a ambivalência dos personagens. Humanos, demasiado humanos. A polissemia da palavra Tár, título do filme e nome da protagonista, era uma pista obrigatória para entrar nessa história. Tár significa alcatrão, que evoca algo tóxico, venenoso, inebriante, maléfico, destrutivo, que abrange a agressividade de que somos feitos. E também remetem à dimensão extática a que o filme faz referência já na sua abertura, que alude aos cinco anos vividos pela musicista entre os índios do Peru, os Shipibo-Konibo quando de seu PHD em Musicologia pela Universidade de Viena especializando-se em música étnica do vale Ucayali, no Peru. K. Spacey I N S I G H T MARÇO 2024 43 I N S I G H T M. Jackson Tantos aspectos menos visíveis da trama a que o filme remete me impediam de bater o martelo e interpretá-lo como um filme sobre a polícia do cancelamento. Do início ao fim, o que permanece é a agressividade humana, o desejo de domínio e poder e uma espécie de demonstração dos limites da dupla opressor-oprimido para captar sua dinâmica. Essa dupla simplória mostra sua impotência quando tenta enfrentar a complexidade humana, e Todd Field parece se divertir em mostrá-la nessa época de tantas certezas e poucas perguntas, que ameaça exterminar o diálogo das relações. 44 OUTSOURCING INTELIGÊNCIA A polícia do cancelamento, essa adaptação ocidental da polícia da moralidade dos aiatolás do Irã, criminaliza a relação entre sexo e poder. Somos movidos pelas pulsões eróticas e pulsões agressivas, nas quais se inclui o desejo de domínio, que até podem se separar, em casos específicos. Há muito se repete que o poder é afrodisíaco, e não é preciso remeter o leitor às mais de quinhentas páginas de “Sexo e Poder: A família no mundo (1900-2000)”, do sociólogo sueco Göran Therborn, para afirmar o que Freud mostra em cada página de suas obras. Freud reformulou sua primeira teoria das pulsões nos anos vinte do século passado, provocando uma mudança significativa na sua teoria da cultura. Até então, sua ênfase era posta na repressão das pulsões eróticas imposta pela cultura. Por essa época ele descobriu a importância constituinte da agressividade no psiquismo humano e foi levado a deslocar seu foco da sexualidade para a agressão. A cultura repousa na repressão das pulsões eróticas e de morte. Mas a tarefa civilizadora está ligada à agressividade, que é manifestação da pulsão de morte, e assim, mais do que reprimir as pulsões eróticas, o essencial do fundamento da cultura passa a ser neutralizar as pulsões de morte “metamorfoseadas em agressividade”, como escreve Renato Mezan em seu “Freud, Pensador da Cultura”. Toda relação contém um elemento de hostilidade. Em “Por que a guerra?”, um pequeno texto que reúne a breve correspondência entre Freud e Einstein, o físico escreveu a Freud perguntando se algum dia a violência deixaria de existir. Freud respondeu que não havia a menor chance de eliminar as tendências agressivas de que somos dotados: “não há nenhuma perspectiva em se querer abolir as tendências agressivas dos seres humanos”. Como o sangue em nosso corpo, nossos impulsos agressivos circulam em cada indivíduo da espécie humana e é bom que saibamos disso, abandonando qualquer ilusão de sermos bons e angelicais pela própria natureza. A agressividade nos constitui e é o fundamento da nossa constituição psíquica. Essa descoberta tardia o levou a reformular sua teoria das I N S I G H T relações entre o indivíduo e o social. Inextinguível em nós, a destrutividade pode ser reprimida, controlada e satisfazer-se sob formas sublimadas. “A humanidade tem uma arma realmente eficaz: o riso”. Com sua habilidade de dizer muito com pouco, Mark Twain exprime nessa metáfora do riso como arma uma das formas da agressividade se expressar, diferente de realizá-la, de atuar a violência; há maneiras socialmente aceitas de satisfazer o prazer que ela busca. Se a partir dos anos trinta o elemento essencial da natureza humana é a agressividade, o próximo, o outro já não é só um possível ajudante ou objeto sexual; ele agora se revela o alvo da nossa destrutividade. Em “O Mal-Estar na Cultura”, Freud escreve que o mandamento “Amai-vos uns aos outros” é uma das coisas “mais antinaturais e difíceis de realizar e prova de uma idealização da natureza humana”, explica Mezan em sua conferência Sociopatologia da Vida Cotidiana, no CPFL. Nós não somos capazes de nos amarmos uns aos outros, mas de “nos armarmos uns aos outros”; e Freud diz porquê: “O fragmento de realidade atrás disso tudo (que preferimos negar) é que o ser humano não é uma criatura terna e necessitada de amor, que quando muito se limitaria a defender-se caso atacado, mas que entre suas disposições pulsionais deve-se contar uma poderosa dose de agressividade. Por conseguinte, o próximo não é para ele somente um possível auxiliar e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer sobre ele a sua agressividade, explorar sua força de trabalho sem retribuição, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, apropriar-se dos seus bens, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, martirizá-lo e matá-lo. Homo homini lúpus.” A dimensão de prazer é essencial ao domínio do outro, ao poder: buscamos dominar, machucar, humilhar o outro porque isso nos dá prazer. Freud vai além ao afirmar que o fenômeno psicanalítico por excelência, “o inédito na teoria psicanalítica é a ideia de que a agressão é basicamente autoagressão”, escreveu Mezan em “Interfaces da Psicanálise” (p. 366). A questão é: se a autoagressão é primária, desviar nossa agressividade para fora é a condição de nossa sobrevivência. Caso contrário, nos destruiríamos. A cultura indica caminhos para o deslocamento da nossa destrutividade: sublimada, reprimida, enquadrada nos limites que ela impõe. Aqui se coloca uma questão que me interessa em particular, já que me pergun- INTELIGÊNCIA to sobre o destino de Lydia Tár, e se ela seria um caso em que sua destrutividade se volta sobre ela: a autoagressão. Um caso exemplar citado por Mezan é o trabalho de Freud “sobre aqueles que fracassam ao triunfar”. Diante do êxito ao alcance da mão e objeto dos mais intensos desejos, a pessoa fracassa. Uma das motivações para esses atos autodestrutivos é, para Freud, a culpa. “Se eu chegar lá, eu vou ter a culpa de ter chegado lá. Culpa em relação ao que, a quem, são outros quinhentos cruzeiros”, diz Mezan na Conferência que citei. Voltaremos a essa análise de “Tár”. "CURA MENTE" Enquanto os créditos do filme cruzam a tela, nós ouvimos um íkaro, música mágica e sagrada da medicina dos povos indígenas da Amazônia e Andes, na voz da curandeira peruana de 53 anos de origem Shipibo-Konibo, no Peru, com quem Lydia Tár viveu por cinco anos. Mesmo sem entender a letra desse canto de abertura na voz de Elisa Vargas Fernández, que se chama “Cura Mente”, são muitos os sentimentos que a música evoca. Elisa usa essas canções mágicas como ferramenta principal em seus rituais de cura para convocar a intervenção dos espíritos nas sessões de ayahuasca com seus pacientes. Na sequência inicial, uma longa entrevista dada por Lydia Tár ao jornalista Adam Gopnik, da New Yorker, que interpreta a si mesmo nesse realismo irônico de Field: muita gente foi ao Google saber “quem é essa Lydia Tár”. De um lado, Gopnik, personagem da vida real interpretando a si mesmo, e, de outro, Lydia Tár, personagem da ficção, que habita exclusivamente o mundo da arte, criatura de Todd Field. Adam apresenta a musicista mundialmente conhecida, uma das raras a conquistar os 4 prêmios mais importantes. Seu currículo é extenso, heterodoxo, e sua formação impecável. Tár é um monstro da música, espécie de divindade temida e idolatrada e, como seu mentor Leonard Bernstein, tem uma afinidade particular com Mahler. Já gravou suas nove sinfonias em sua passagem pelas “Cinco Grandes” (as maiores orquestras do mundo) e agora, como regente titular da Filarmônica de Berlim, está prestes a realizar o seu maior desafio, que é reger a Quinta Sinfonia de Mahler, a única que falta para completar a gravação de todas as sinfonias do compositor com a mesma orquestra. E vai lançar sua autobiografia, “Tár on Tár” (Tár sobre Tár). O evento foi programado para o ano anterior, mas a apresentação foi adiada por causa da pandemia e acontecerá agora, quando Lydia está completando 50 anos de idade. “Obrigado pela presença, ‘maestro’”, agradece Gopnik ao fim da apresentação. Chegará o momento em que o mundo da música clássica deixará de usar distinções sexuais MARÇO 2024 45 I N S I G H T para diferenciar artistas? Lydia responde: “acho que eu sou a pessoa errada para responder, já que não leio críticas. Nunca. Mas acho estranho alguém que se sinta compelido a substituir ‘maestro’ por ‘maestrina’. Nós não chamamos as astronautas mulheres de ‘astronetes’. Mas quanto ao preconceito de gênero eu não tenho do que me queixar”. As outras também não deveriam ter, continua, e cita nomes entre os quais o de Marin Alsop (regente contemporânea), concluindo: nós não somos as pioneiras. “Foram tantas as mulheres incríveis que nos antecederam. Essas mulheres foram as verdadeiras desbravadoras.” Recusando-se a alinhar suas conquistas nas fileiras feministas, Lydia Tár diz a Adam Gopnik que não enfrentou machismo em sua carreira nem vê a profissão de maestro hoje como privilégio masculino, diferentemente da época das que vieram antes. T odd Field desafia as expectativas inventando uma história que atribui a uma mulher o lugar do poder – e do poder que abusa e assedia. Todd foi questionado e criticado: misoginia do diretor escolher uma mulher para o papel de predadora sexual, já que a realidade mostra, e o MeToo comprova, que esse é o lugar do homem. Essa escolha de uma mulher para o papel de assediadora provocou ira em Marin Alsop, por exemplo, a maestrina citada e mundialmente conhecida. Outra diz que Field faz o personagem principal ser uma “maestro” titânica e depois a destrói, o que levanta muitas questões: “Como se ainda fosse complicado para um diretor homem olhar uma mulher poderosa e reconhecida de forma positiva”. Alsop dirá ao The Sunday Times: “Fui ofendida como mulher, fui ofendida como regente, fui ofendida como lésbica. Ter a oportunidade de retratar uma mulher nesse papel e torná-la uma agressora – para mim, foi de partir o coração. Acho que todas as mulheres e todas as feministas deveriam se incomodar com esse tipo de representação, porque não se trata realmente de mulheres regentes, não é? É sobre mulheres como líderes em nossa sociedade. É um filme antimulher”. Poderia ter se baseado em tantos homens “reais e documentados”, mas prefere uma mulher e a retrata como aqueles homens. Quando foi que a destrutividade se tornou estranha à condição humana, independentemente do seu sexo ou gênero com o qual se identifica? Na teoria freudiana da cultura e das pulsões, tanto faz se homem ou mulher, o psiquismo humano é movido por pulsões “eróticas e destrutivas, agressivas”. E o filme que Todd Field nos apresenta é um filme sobre o poder e os humanos, um 46 DESTRUIÇÃO INTELIGÊNCIA exame do ser humano em sua relação com o poder. “O poder não tem gênero”, disse Cate Blanchett em uma de suas entrevistas, repetindo em muitas delas que “Tár” não é um filme sobre gênero, não é um filme “sobre homens, mas sobre humanos”. “O filme é um retrato humano”. Ela pergunta: Por que uma mulher não pode ser representada como dona de um poder do qual abusa? Há uma auréola que a santifica? Antes do maestro, o chefe da orquestra era o primeiro violinista, não? Lydia responde que sim. Lydia, “maestro”, lésbica, é casada com a primeira violinista da Filarmônica de Berlim, Sharon (Nina Hoss), e o casal tem uma filha, Petra (Mila Bogojevic). Sharon, é a primeira violinista, a figura principal da orquestra, diretamente abaixo do maestro (Konzertmeister ou Spalla). Adiante, quando Adam Gopnik estiver editando sua entrevista com Lydia, sua voz lerá em off: – Sharon é também Spalla da orquestra de Berlim, isso complica as coisas. – Lydia: sim, é verdade. – Adam: o trabalho atrapalha em casa, ou ao contrário... Fim da cena. “Tár” é um filme sobre o ser humano e sua relação com o poder. Em uma de suas entrevistas, Todd Field diz que Sharon detém mais poder do que a própria Lydia, precisamente por isto, por Sharon ser a Konzertmeister nessa que é uma orquestra democrática: é ela quem elege o maestro titular. É o que Sharon lembrará a Lydia no momento da ruptura de seu casamento: foi a ela que Lydia precisou recorrer para conseguir o seu lugar na Filarmônica de Berlim. Voltemos a Adam, que pede que Lydia fale sobre o poder do maestro, que controla o tempo. Muita gente pensa que maestro é um metrônomo humano. Lydia concorda: sim, isso em parte é verdade, controlar o tempo não é pouca coisa. “O tempo é a questão. O tempo é a peça fundamental da intepretação. Não podem começar sem mim. Eu aciono o relógio.” É como “fincar a bandeira na areia: sigam-me”, diz, assumindo a posição de líder e poder sobre a orquestra, conquistadora de um território. Quando esse condutor era Bernstein, “a orquestra era conduzida em uma viagem extraordinária e prazerosa.” A Quinta Sinfonia, que será executada e gravada ao vivo, é um mistério, e para regê-la é preciso decifrar as intenções de Mahler, diz Tár. A única chave que o compositor deixou para decifrar o mistério é a dedicatória à nova esposa, Alma. “Então, se quiser embarcar com Mahler na sua Quinta Sinfonia, a primeira coisa a fazer é tentar entender aquele casamento tão complexo.” Para Lydia isso significa que esta obra não nasceu de uma tragédia dolorosa, nasceu de um amor jovem: a Quinta, diz Lydia, significa “o amor”. M ahler escreveu o adagietto como uma declaração de amor, uma carta de amor para Alma, também compositora, com quem se casou quando compunha a Quinta. Gustav teria escrito que a amava tanto e não poderia expressar seu amor em palavras. A discussão sobre esse quarto movimento é retomada inúmeras vezes. É uma das passagens mais conhecidas e poderosas da obra de Mahler e costuma ser interpretada como expressão de profunda melancolia. Em um ensaio da orquestra, Lydia pede que “esqueçam ‘Morte em Veneza’” por causa da interpretação trágica e sublime dada por Visconti a esse movimento. O adagietto foi executado como “uma missa” no funeral de Robert F. Kennedy, em 1968, sob a regência do maestro Leonard Bernstein, de quem ela seria “a protegida”. Com a duração de 12 minutos, podemos sentir a tragédia e o pesar. “E é claro que essa interpretação seria muito válida para Mahler, mais tarde, depois que a carreira dele ruiu e Alma o trocou pelo Gropius. Mas como eu já disse, nós estamos lidando com o tempo. E essa obra não nasceu de uma tragédia dolorosa. Ela nasceu de um amor jovem.” Lydia e Francesca (Noémie Merlant), sua assistente, conversam sobre esse casamento “complexo” de Gustav e Alma, que para Lydia é uma relação de “amor” e para Francesca uma relação de “poder”, porque Alma era também compositora, e Mahler “insistiu para ela parar. Falou que só tinha espaço para...” INTELIGÊNCIA – Lydia: um babaca na casa? – Francesca: ...um babaca na casa. Sim. – Lydia: E ela concordou com essas regras. Ninguém decidiu por ela. #RegrasDoJogo. Francesca ri, completando com um ditado francês: “Se uma mulher tem o direito de subir ao cadafalso, ela também deve ter o direito de subir ao púlpito. Ok?”. As duas riem. Elas estão voltando da Masterclass de Lydia na Juilliard School, a caminho do aeroporto. Na Juilliard, a “maestro” ressalta a importância da regência, esperando que os alunos possam reger música que exija algo deles, “música que as pessoas conheçam, mas que ouvirão de forma diferente quando vocês interpretarem para elas”. Pergunta a um aluno, Max, por que não quer reger uma peça de Bach, e ele responde que não curte Bach. Ela pergunta se ele já tocou ou regeu Bach, e Max responde: K. Conká I N S I G H T MARÇO 2024 47 – Sinceramente, como pessoa pan da comunidade BIPOC, eu diria que a vida misógina de Bach impossibilita, para mim, levar a música dele a sério. – Vamos lá. O que você quer dizer com isso? – Bom, ele não gerou, tipo, uns 20 filhos? – Sim, é o que está documentado. Além de uma quantidade considerável de música. Mas, me desculpe, não sei o que as habilidades prodigiosas no leito conjugal têm a ver com o Si menor. Tudo bem, é a sua escolha. Afinal, “uma alma escolhe a própria sociedade”. Mas lembre-se de que o outro lado dessa escolha fecha o canal da percepção da pessoa. Sem abandonar o tom irônico, Lydia continua argumentando, enquanto caminha para o piano, chamando Max para se sentar a seu lado. Começa a tocar “O Cravo bem temperado”, enquanto fala: “Agora isso tudo é insignificante, certo?” E vai mostrando que ali há uma conversa: pergunta-resposta, que nos leva a outra pergunta. “Existe humildade em Bach. Ele não finge ter certeza de nada. Porque ele sabe que é sempre a pergunta o que captura o ouvinte. Nunca é a resposta, certo? Agora, a grande pergunta para você é: o que você acha, Max?” – Você toca muito bem. Mas atualmente compositores homens, brancos e cis... não é o meu lance. Segurando a perna dele, que não para de se agitar, ela diz que “o narcisismo das pequenas diferenças leva a um conformismo muito entediante”. E completa: “O problema de querer ser um dissidente epistêmico ultrassônico é que, se o talento de Bach pode ser reduzido ao gênero, nacionalidade, religião, sexualidade e assim por diante, então o seu também pode”. O duelo termina com Max fechando o piano e se levantando, enquanto ela pergunta aonde ele vai. Virando-se para ela o crítico da misoginia diz: “Você é uma puta de merda” (You’re a fucking bitch). “E você é um robô. Infelizmente, parece que o arquiteto de sua alma é a mídia social. Se quiser dançar, você deve servir o compositor. Você tem que sublimar a si mesmo, seu ego e, sim, sua identidade”. Todd Field comenta essa cena da Juilliard falando de sua preocupação com a extinção da conversa na nossa cultura, a perda da nossa capacidade de ouvir o outro, de tentar ver o ponto de vista 48 DESTRUIÇÃO INTELIGÊNCIA de outra pessoa. Não é o que vemos Lydia mostrar ao piano com “O Cravo bem temperado”? O debate é uma dimensão fundamental da civilização ocidental, diz Field, que acha assustador pensar que ele pode ser extinto. “Aquela cena na sala de aula é apenas a realidade do que vivemos.” Max, o robô cuja alma é desenhada pela mídia social, sacrifica sua individualidade para pertencer a uma massa. Quando ele fala, não fala em seu nome ou o que ele pensa e sente: é o grupo “pan da comunidade BIPOC” que fala por ele, e através dele. “É MUITO FÁCIL TOMAR O PARTIDO DA MAIORIA” (SÊNECA) Na Carta VII a Lucílio, “Sobre Multidões”, Sêneca, o Jovem, recomenda evitar as multidões porque prejudicam o caráter. Séculos depois, Freud observaria “que os membros de um grupo se comportam de maneira significativamente diferente do que o fariam” se estivessem sozinhos. Para ele, o fenômeno fundamental da psicologia coletiva é a falta de liberdade do indivíduo pertencente a um grupo. Em 2011, em uma entrevista à Folha de S. Paulo, o psicanalista Contardo Calligaris disse: “Eu fui membro do Partido Comunista, mas hoje seria incapaz. Quando desistimos da nossa singularidade para descansar no comportamento de grupo, aí está a origem do mal. O grupo, para mim, é R. Duarte I N S I G H T I N S I G H T o mal”. (“Comportamento de Grupo está ligado ao Mal, diz Calligaris”). “O Grupo e o Mal” é o título do seu livro publicado depois de sua morte. Todo grupo cobra esse preço: desistir da nossa singularidade para descansar no comportamento de grupo. Esta é a origem do mal. U ma crítica hilária ao indivíduo em um grupo pode ser vista em “A vida de Brian”, do Mont Python. Brian é um herói furioso por se ver idolatrado como o Messias. É seguido por todos os lados por uma multidão da qual faz de tudo para se livrar: foge, se esconde, se mete em encrencas por isso e acaba descoberto. Cede aos apelos da multidão apenas para tentar convencer cada um a pensar e agir por si próprio: “Vocês entenderam tudo errado. Vocês não precisam me seguir. Vocês não precisam seguir ninguém. Pensem por vocês próprios. Vocês são todos indivíduos”. A multidão que não para de crescer grita a uma única voz: “Sim, somos todos indivíduos”. Brian insiste: “Vocês são todos diferentes”. E a multidão, de novo a uma só voz responde: “Sim, somos todos diferentes”. Apenas uma voz isolada discorda: “Eu não sou”. Todos olham em busca do dissidente. Brian insiste: “Devem cuidar de vocês próprios”. Em uníssono, a multidão: “Sim, devemos cuidar de nós próprios”. Brian: “Exatamente”. E ouve como resposta a multidão implorando ao messias mais palavras, mais ordens. Tenta de novo: “Não! É só isto! Não deixem os outros mandarem em vocês”. “O escolhido”, “o messias”: não há maneira de Brian convencer a massa de que não precisam depender dele, de que não devem obediência ou servidão a alguém. “Não sejam escravos bajuladores, não coloquem ninguém, nem mesmo a mim, nessa posição de salvador com quem cada um de vocês concorda incondicionalmente. Deixem de ser crianças, cresçam e pensem por si mesmos”, diz ele claramente irritado com essa servidão de indivíduos sedentos de servidão, ávidos para dizer amém a um líder e bajular qualquer um em quem possam crer ser seu protetor. A massa apaixonada recusa-se a abandonar essa posição infantil, identificada a um rebanho de ovelhas que espera ser tocada por um pastor – ou gado, diríamos hoje. Em “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921), Freud se perguntou o que leva as massas a se sujeitarem a um líder? É inútil Brian insistir porque a massa se forma pelo desejo infantil de ser protegido da angústia do desamparo. A relação do grupo com o líder (qualquer um) repete a relação da criança com o pai. E o essencial é a dependência de INTELIGÊNCIA uma figura de autoridade através da qual o grupo alimenta a ilusão de que ela o protege. A característica de qualquer grupo é essa: o chefe, o líder, é uma figura substituta do pai que nutre o desejo do indivíduo de ser por ele amado. Tornam-se irmãos de seus pares nessa ilusão, e é isso o que dá a coesão a um grupo. Irmanados por essa crença, os indivíduos se identificam como uma comunidade ao preço da perda da sua individualidade. Sua agressividade é deslocada para os “de fora” e por isso o membro de um grupo se comporta de um modo muito diferente daquele que faria se estivesse sozinho: porque o grupo libera nossas tendências agressivas, projetando-as no “adversário” – o que não faz parte do grupo. O líder mobiliza nosso desejo infantil de proteção da angústia do desamparo, motivo pelo qual criamos nossos deuses e voltamos ao útero, onde não somos um eu, não somos indivíduos. “A infantilização crescente de multidões no mundo inteiro não é casual. Há quem esteja interessado nela e há quem se aproveite dela, seja em busca de poder, seja em busca de dinheiro”, escreve Amós Oz em seu livro sobre o fanatismo, “Mais de uma luz: Fanatismo, fé e convivência no século XXI”. Os que disseminam e financiam essa infantilização precisam que nos tornemos crianças em busca de um pai protetor. Para Freud, o fundamental da psicologia coletiva é a falta de liberdade do indivíduo que pertence a um grupo. O indivíduo troca sua liberdade por submissão ao poder do líder – o que é sempre o resultado de uma idealização, de uma mitificação, de uma projeção de nossos desejos e fantasias inconscientes. Quando a crença no poder atribuído ao líder desmorona, quando a ilusão com o “mito” se transforma em desilusão, a identificação recíproca dá lugar à agressividade entre os membros. A agressividade que era dirigida para os que não pertenciam ao grupo volta-se para os antigos pares e para a outrora divindade idolatrada, o chefe. “CADA UM PROCURA SEU PRÓPRIO VENENO” (TODD FIELD) Desde seu lançamento no Festival de Veneza, 2022, “Tár” vem conquistando prêmios importantes e o carimbo de obra enigmática e de difícil compreensão. Todd Field trabalhou no roteiro durante dez anos, escreveu-o durante a pandemia “para” Cate Blanchett, que aceitou o papel. Todd o apresentou à produtora como um filme sobre “uma maestro” genial que é atingida pelos abusos de poder. Muitas vezes repete que está mais interessado em abrir perguntas do que em respondê-las. Como um psicanalista, o diretor propõe enigmas, e a ambiguidade da trama deixa espaço para nossa imaginação trabalhar. Apresenta um filme encoberto por uma bruma, uma neblina, sustentan- MARÇO 2024 49 I N S I G H T do uma ambiguidade que aponta para múltiplos sentidos, tanto quanto o tráfego de insinuações, boatos, fragmentos de mensagens trocadas em redes sociais por mãos não identificadas e para destinatários que não sabemos quem são. Seu sonho é que seu filme provoque interpretações individuais e dê “espaço suficiente para qualquer um entrar e ser o cineasta final”. Não tem uma “maneira errada de ler o filme”, cuja “única intenção é inspirar a especulação mais feroz ou supérflua possível”. Afinal, Tár é alcatrão e também anagrama de “arte”. Como os surrealistas, o diretor mistura realidade e criações fantásticas e, com isso, parece afirmar os direitos da arte tão esquecidos pela discussão lembrada por Cate Blanchett em uma entrevista, e na cena da Juilliard School: as proezas do artista na cama teriam o poder de legitimar ou proibir sua arte? Em termos mais simples, o “mau comportamento” do artista deveria cancelar a arte e o artista? A arte tem direito à existência e não pode se destruir reduzida ao panfleto de uma causa, à arma de uma militância que justificaria sua existência. D emitida da Orquestra Sinfônica de Berlim por seu “mau comportamento”, Lydia está em sua velha casa de infância em Staten Island, onde nasceu como Linda Tarr. Lydia Tár é sua própria criação, que ela fará tudo para proteger. Vendo sua expressão ao ouvir Leonard Bernstein compreendemos que seu “cancelamento” não significa seu fim. Ela procurou essa fita cassete entre seus guardados. São os Concertos para Jovens “What Does Music Mean?”. O maestro diz que o verdadeiro significado da música é a maneira como você se sente quando a ouve. A música pode causar todos os tipos de sentimentos, alguns tão profundos e especiais que não podem ser descritos em palavras. Nem sempre podemos nomear o que sentimos; às vezes podemos dizer que sentimos alegria, prazer, tranquilidade, amor, ódio: mas de vez em quando temos sentimentos tão profundos e especiais que não temos palavras para eles. E é aí que a música é tão maravilhosa, porque ela os nomeia para nós. E tudo isso apenas em notas em vez de palavras. Música é movimento, sempre indo a algum lugar. Mudando e mudando e fluindo, de uma nota para outra. A Lydia Tár do começo do filme, entrevistada por Adam Gopnik, disse: quando este condutor era Bernstein, “a orquestra era conduzida em uma viagem extraordinária e prazerosa”. No final do filme, ela está neste ponto: um país da Ásia (Filipinas) para reger a orquestra de videogames de “Monster Hunter”. Uma voz em off precede a execução 50 DESTRUIÇÃO INTELIGÊNCIA do concerto: “Irmãs e irmãos da Quinta Frota, chegou a hora. Vou ser breve na minha despedida – nunca fui muito bom com palavras. Depois de embarcar neste navio não há como voltar atrás. O próximo terreno que seus pés tocarão será o do Novo Mundo”. Uma viagem sem volta para um Novo Mundo seria uma descida aos infernos do cancelamento? Punição ou recriação de si, renascimento? Todd Field explica que a Quinta de Mahler se encaixa na história porque seu primeiro movimento dos cinco que o compõem é sobre a morte, a Marcha Fúnebre. E “Lydia está passando por uma espécie de morte artística, uma morte pessoal e um renascimento potencial”. “É quase como se [a morte] a estivesse assombrando, vindo atrás dela”, disse ele. Tár é alcatrão, e em cada uma das quatro ou cinco vezes em que assisti o filme recolocava minha pergunta em busca de minha suspeita: Tár é tóxica para quem? O veneno de Lydia é essencial à trama: se ela é tóxica para os outros, o que o cancelamento afirma, não é menos tóxica para si, fracassando no momento em que está prestes a realizar o seu sonho de reger a Quinta Sinfonia, completando o ciclo. Sua autodestruição é literalmente figurada por sua queda no pódio. Culpa pelo suicídio de Krista, uma ex-protegida sua que caiu em desgraça, como pretende o tráfico de murmúrios e acusações? O filme não expressa esse juízo. Krista se matou e isso é tudo o que sabemos. Suicídio é um capítulo complexo demais do campo psi para ser abordado aqui. É suficiente diferenciar o desejo eventualmente do suicida de fazer o outro sentir-se culpado por sua morte, da culpa que o outro venha a sentir, e, ainda, do fato de ser ele o culpado. Culpa pela predação sexual das jovens que tentam seduzi-la, interessadas em sua ascensão e colocação profissionais? Ora, Olga (Sophie Kauer), a violoncelista russa, persegue Lydia no banheiro para mostrar seus pés por baixo da porta – único meio de ser identificada na audição que a seguir escolherá o novo membro da orquestra. Lydia, aparentemente caçadora, é a caça que terminará por escolher Olga, caindo em sua armadilha. Culpa por ter frustrado Francesca, sua assistente, impedindo a realização de seu sonho de ser escolhida como regente auxiliar? “Se quiser ser regente, Francesca, precisa aprender a dizer o que pensa”, Lydia lhe dissera. A assistente informa Lydia que Krista se suicidou e Lydia a encarrega de apagar todos os e-mails enviados para e por Krista Taylor. Francesca mente que o fez. Lydia sabe que ela é dissimulada, bajuladora, que só diz o que Lydia quer ouvir, em suma, não confia na assistente. Por isso finge que não consegue ligar o seu computador e dá um jeito de emprestar o de Francesca e ficar a sós com ele, indo direto I N S I G H T aos e-mails. Encontra toda a correspondência com Krista; não apaga os e-mails nem fala nada. Mas não escolhe Francesca como substituta de Sebastian, o regente auxiliar que será substituído. Novamente, a ambiguidade: Sharon diz a Lydia que ela está sendo acusada de demitir Sebastian para colocar Francesca, sua protegida, e a aconselha a não a escolher. Não é possível dizer que houve vingança de Lydia ao preterir sua assistente, mas é clara a vingança de Francesca, que desaparece levando os e-mails, que tornará públicos, motivando a investigação contra Lydia no caso de suicídio de Krista. Cate Blanchett diz que sua personagem Lydia Tár é enigmática, como as pessoas têm dito; mas o de Francesca (Noémie Merlant) é tão enigmática quanto o dela. Autodestruição, ainda, sugerida também por Cate Blanchett em uma de suas entrevistas, quando diz que “Lydia é definitivamente assombrada, seja por alguém, por algo, por seu passado, por suas ações. Sem divulgar o final do filme devo dizer que se trata de alguém que guardou o seu passado numa caixinha e colocou o seu talento ao serviço de uma reinvenção de si própria. Ela tentou mudar e se deixou transformar pela música. Sentimos o medo. Lydia está no topo de seu jogo e sabe que, como pessoa, ela só pode descer. E isso exige muita coragem”. Tóxica para os outros, tóxica para si mesma, Tár, repito, é tecida com o fio da ambiguidade e da ambivalência que caracteriza nossa natureza psíquica. Especialmente quando se trata da análise do poder que Todd Field pretende realizar através de seu “Tár”. Ele diz que o importante é que todas essas pessoas se beneficiam dessa estrutura de poder. Lydia é um ser humano: isso a torna culpada das coisas de que está sendo acusada? Pode ser. E pode não ser. Mas ela é definitivamente culpada de ser um ser humano, diz ele. Então é melhor que seus colegas, outros seres humanos, decidam o que pensam sobre ela, e não o cineasta, conclui. Ao final da entrevista na abertura, Lydia responde a uma moça que a interpela se ela também se emociona quando está regendo. Tár diz que sim e comenta que ao reger “A Sagração da Primavera“ sentiu-se como vítima e autor do crime. “Foi depois de reger aquilo que me convenci de que todos nós somos capazes de matar”. Eis uma maneira clara de apontar a ambivalência humana destruindo o bom-mocismo e o caráter simplório das análises do poder em termos da dualidade opressor-oprimido. Field diz e repete em suas entrevistas que o filme é um exame do poder. Um exame complexo quando o encaramos fora do quadro da rigidez maniqueísta e binária que o resume a dualismos como vítima-algoz, opressor-oprimido e outras que conhecemos. Ele diz que “se você quer real- INTELIGÊNCIA mente falar sobre o poder”, seu longo alcance na história, “o abuso e a cumplicidade do poder, como ele corrompe – todos esses clichês com os quais crescemos –, você tem que encarar a ideia de que não é preto ou branco. Encontrar a verdade de algo requer um pouco mais de rigor”. Examinar o poder exige, pois, considerar as nuances, os detalhes, os matizes e sutilezas que escapam a qualquer polarização. Por isso o filme precisa sustentar a ambiguidade do início ao fim. Ninguém é totalmente bom nem totalmente inocente; a ambivalência, a dualidade pulsional, faz do humano um ser imperfeito. Provocar perguntas em vez de dar respostas ou soluções é um convite ao diálogo, assassinado pelas certezas. Deixo para perguntar a Lydia Tár no meu divã sobre a repetição do número 5 do começo ao fim do filme: das 5 Grandes (orquestras) à Quinta Sinfonia de Mahler, como também o início cantarolado da Quinta de Beethoven, além dos seus 50 anos e muito, mas muito mais 5, inclusive a massagista nº 5 escolhida e o embarque final na Quinta Frota. Finalmente, alcatrão evoca algo tóxico, destrutivo, venenoso, mas também inebriante, que remete ao caráter extático da ayahuasca usada pela curandeira para curar a mente dos que a procuram. É o que diz o íkaro, a música mágica que abre o filme e cujo nome é “Cura Mente”. “Cada um procura o seu próprio veneno”, disse Todd Field. A autora é pós-doutora em Psicologia Clínica marcia@marcianeder.com.br BIBLIOGRAFIA Amos Óz. 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