O
COLISEU
DO SÉCULO XXI
40 DESTRUIÇÃO
PSICANÁLISE, AGRESSIVIDADE
E CULTURA DO
CANCELAMENTO
Marcia Neder
Psicanalista
E
W. Allen
m março deste ano uma amiga me convidou para ir ao cinema
ver “Tár”. Saímos da sala de exibição atônitas, mudas, até uma
de nós comentar, surpresa, que permanecemos sentadas por
quase três horas sem notar. Silêncio de novo. Digeríamos o
impacto daquela obra. Associando flashes de ideias em profusão, pensei em voz alta e levemente irritada: “Por que aquela
referência irônica ao Visconti?” Surpresa, minha amiga perguntou do que eu
estava falando. Da obra prima do Visconti, respondi, “Morte em Veneza” (1971),
filmado a partir da novela de Thomas Mann: por que aquele tom debochado da
protagonista quando se referiu à execução do magnífico adagietto da Quinta
Sinfonia de Mahler?
Sozinha no táxi me entreguei à voragem de imagens e ideias. Cheguei em
casa direto para o computador pesquisar. O filme se introduzira na conversa que
tenho comigo há algum tempo buscando analisar acontecimentos atuais a partir
da crítica freudiana da cultura. Um deles, violência, intolerância, despotismo, cujo
crescendo observo desde a última década do século passado na sociedade e
no meu cotidiano como professora de Universidade Federal, nas relações entre alunos e professores e entre pares. Seria um caso da psicopatologia? Sem
dúvida um caso da análise freudiana da agressividade na cultura. Peter Gay em
seu livro “O Cultivo do Ódio” lembra do prazer que os humanos obtêm com
seus poderes agressivos e que, por isso, cultivam seus ódios. E as sociedades
cultivam o ódio controlando a agressão para que a agressividade humana não
as destrua: “elas puxam as rédeas da violência antes que ela destrua tudo”.
Esta é, em suma, a teoria freudiana da cultura às voltas com a repressão e a
sublimação das pulsões. “Toda cultura, toda classe, todo século constrói seus
próprios álibis para a agressão” (P. Gay).
O historiador francês Jean Delumeau escreveu “A História do Medo no
Ocidente – 1300-1800”, em que chamou a atenção para a agressão e a violência como sendo as características da iconografia do século XVI ao XVIII. Ele
ressalta o “gosto pelo sangue e pelas imagens violentas” dos artistas da época
da Reforma Católica que pintavam imagens como Santa Ágata com os seios
cortados, Santa Martine com o rosto ensanguentado por unhas de ferro, São
Liévin com a língua arrancada e lançada aos cães, São Bartolomeu esfolado,
São Vital enterrado vivo, Santo Erasmo, de quem se desenrolam os intestinos.
Observação do historiador congruente com a teoria freudiana da agressão é o
registro do próximo como fonte de hostilidade. A bíblia da Inquisição, o Malleus
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Maleficarum e os processos de feitiçaria dos séculos XVI
e XVII fazendo eco às afirmações do Malleus mostram a
vizinha como o alvo privilegiado das acusações de feitiçaria.
Delumeau vai além: uma das constantes das civilizações
ocidentais foi a suspeita em relação ao vizinho, que esteve
na origem de tantas denúncias por feitiçaria. Não é difícil
constatar – inclusive não são poucos os filósofos que também falam sobre a natureza agressiva do humano – que a
agressividade atravessa a história da humanidade: se não,
por que nossa história seria uma história de guerras pelo
domínio do outro, do seu território, de sua servidão? O que
muda ao longo da história é a forma que a agressividade
se manifesta e que é proibida ou estimulada. Cada cultura
recompensa ou desvaloriza, legaliza ou proíbe um tipo de
agressividade. Nossa cultura em nossos dias recompensa
e conclama à destruição do outro por seu cancelamento.
Em 26 de julho de 2023, espalhou-se a notícia fresquinha: “Kevin Spacey é considerado inocente de agressão sexual após julgamento em Londres”. Processado por vários
homens, o ator viu a Justiça britânica rejeitar as acusações
considerando-as insustentáveis e concluindo que tudo havia
sido inventado. Juntava-se à Justiça norte-americana que
fizera o mesmo no ano anterior. Essa história começou em
29 de outubro de 2017 com a denúncia do ator Anthony
Rapp. A acusação remete a uma festa privada em 1986
na casa de Kevin Spacey. Segundo Rapp, à época com 14
anos, Spacey, então com 26 anos, o teria carregado, posto
na cama e deitado sobre ele. Rapp conseguiu se livrar e
sair ileso, e 31 anos depois, quando Spacey vivia o auge
de sua bem-sucedida carreira, acusou-o em Nova York de
“agressão sexual”, com pedido de indenização de US$ 40
milhões por danos.
N
o dia seguinte, 30 de outubro de 2017,
Spacey foi ao antigo Twitter (hoje X)
se desculpar, mesmo não se lembrando de algo que supostamente teria
ocorrido três décadas antes: “Honestamente não me lembro desse
encontro, que teria acontecido 30 anos atrás. Mas, se me
comportei como descrito, eu devo a ele sinceras desculpas
do que foi um comportamento de bêbado completamente
inapropriado.” Nessa época, a fúria do movimento MeToo
estava no auge, com sua exigência de confissão pública
dos pecados sexuais. Jogar nossos semelhantes às feras
para serem devorados em coliseus, damnatio ad bestias,
era uma forma legítima de satisfazer nossa agressividade na
Roma Antiga. Alguns milênios nos separam da Antiguidade,
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INTELIGÊNCIA
e nosso apetite pelo sangue do próximo permanece insaciável. Além de se desculpar, Kevin Spacey submeteu-se
a outro mandamento da nova religião: a confissão pública
de sua sexualidade. “Como os mais próximos de mim
sabem, na minha vida tive relacionamentos com homens
e mulheres. Eu amei e tive encontros românticos com
homens e mulheres ao longo da minha vida e decidi agora
viver como um homem gay.” A quem interessa a sexualidade do indivíduo senão ao próprio?
Já no dia seguinte à acusação e antes de qualquer julgamento oficial, a Netflix dava o primeiro passo na execução
de Kevin Spacey, que o condenaria à morte pública. Em
31 de outubro a plataforma de streaming anunciou que
encerraria prematuramente a série “House of Cards” da
qual Kevin Spacey era o protagonista celebrado. “House
of Cards” foi um sucesso mundial absoluto desde sua
primeira temporada e pioneira no mundo da produção de
televisão, dando à Netflix seus primeiros prêmios (sete
Emmys e dois Globos de Ouro). Eliminado imediatamente
da série, Kevin Spacey em seguida foi condenado a pagar
à produtora uma multa milionária. Do dia para a noite o
estrelado ator de “Beleza Americana” tornou-se um pária
social assistindo o enterro de sua longa e bem-sucedida
carreira de ator, inicialmente no teatro e, em seguida, na
televisão e no cinema. Ator, diretor, roteirista, produtor
desde os anos 1980, na década seguinte seria aclamado
e premiado com dois Oscar e outros prêmios e honrarias.
Em 2003, foi convidado para assumir a posição de diretor
artístico do Old Vic (Royal Victoria Hall), um dos mais antigos
teatros de Londres, recebendo em 2012 a Ordem do Império Britânico, concedida pelo Príncipe Charles em nome de
sua mãe, a Rainha Elizabeth, por seus serviços ao teatro.
Sua filmografia inclui “Seven, os sete pecados capitais”
(1995); “Os Suspeitos” (1995), que lhe rendeu o Oscar
de melhor ator coadjuvante; “Beleza Americana” (1995),
com Oscar e BAFTA de melhor ator, entre muitos outros
filmes dos quais participou. Quando soube que a Justiça
britânica concluiu que as acusações eram insustentáveis
e inventadas, o ator disse: “Antes que a primeira pergunta
fosse feita ou respondida, perdi meu emprego, perdi minha
reputação, perdi tudo em questão de dias.”
Dois mil anos nos separam da Roma Antiga com seus
jogos na arena do Coliseu, onde multidões se divertiam
assistindo espetáculos de destruição de seres humanos.
Como um símbolo a nos lembrar de nosso prazer pela carne
e pelo sangue do próximo, o Coliseu permanece entre nós
como um monumento ao nosso insaciável desejo agressivo. O sangue e a morte eram elementos essenciais a esses
espetáculos romanos, para dar prazer e divertir as pessoas
assistindo à carnificina. Sêneca escreve: “volto para casa
mais ganancioso, mais ambicioso, mais voluptuoso e ainda
mais cruel e desumano. Isso porque estive entre os seres
humanos”. Das arquibancadas do nosso Coliseu moderno,
não só assistimos o condenado lutando por sua vida como
também participamos da sua perseguição e assassinato
com nossa política de cancelamento. O criminoso da vez
sequer luta, obrigado a assistir, impotente, à turba que se
diverte destruindo sua reputação e, orgulhosa, vomita sua
superioridade virtuosa.
O
filme a que me referi no início, “Tár”,
foi entendido e é apresentado como
um filme sobre o cancelamento. Uma
maestrina tirânica abusa do seu poder
perseguindo e assediando jovens.
Predadora sexual como os homens
denunciados pelo MeToo na área cultural, inclusive na
música clássica, a “maestro” titânica perde o emprego
acusada de assédio e perseguição. Cancelada, vive sua
morte pública. O final do filme puniria com a ridicularização
da outrora deusa da música, “verdadeira catedral diante
da qual se ajoelham leigos e profissionais”. Essa pode
ser a história óbvia do filme. Mas, treinada no método
psicanalítico, aprendi a ouvir na coerência do relato manifesto a nota que desafina, a valorizar o dissonante, que é a
primeira regra do método criado por Freud. Lembro que a
psicanálise não é só uma terapia: ela é também um método
de investigação, além de uma teoria. Gaston Bachelard,
epistemólogo e inicialmente apaixonado pela psicanálise a
ponto de criar uma psicanálise do conhecimento objetivo,
colocava a opinião e o senso comum como o primeiro obs-
INTELIGÊNCIA
táculo epistemológico, aquilo que nos impede de conhecer.
A opinião, as ideias facilmente aceitas não são mais que
projeções nossas sobre a realidade social.
Facilmente se reconhece o que se conhece. O filme
de Todd Field tem como pilares a ambiguidade da trama
e a ambivalência dos personagens. Humanos, demasiado
humanos. A polissemia da palavra Tár, título do filme e
nome da protagonista, era uma pista obrigatória para entrar
nessa história. Tár significa alcatrão, que evoca algo tóxico,
venenoso, inebriante, maléfico, destrutivo, que abrange a
agressividade de que somos feitos. E também remetem
à dimensão extática a que o filme faz referência já na sua
abertura, que alude aos cinco anos vividos pela musicista
entre os índios do Peru, os Shipibo-Konibo quando de seu
PHD em Musicologia pela Universidade de Viena especializando-se em música étnica do vale Ucayali, no Peru.
K. Spacey
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M. Jackson
Tantos aspectos menos visíveis da trama a que o filme
remete me impediam de bater o martelo e interpretá-lo
como um filme sobre a polícia do cancelamento. Do início
ao fim, o que permanece é a agressividade humana, o
desejo de domínio e poder e uma espécie de demonstração dos limites da dupla opressor-oprimido para captar
sua dinâmica. Essa dupla simplória mostra sua impotência
quando tenta enfrentar a complexidade humana, e Todd
Field parece se divertir em mostrá-la nessa época de tantas
certezas e poucas perguntas, que ameaça exterminar o
diálogo das relações.
44 OUTSOURCING
INTELIGÊNCIA
A polícia do cancelamento, essa adaptação ocidental
da polícia da moralidade dos aiatolás do Irã, criminaliza a
relação entre sexo e poder. Somos movidos pelas pulsões
eróticas e pulsões agressivas, nas quais se inclui o desejo
de domínio, que até podem se separar, em casos específicos. Há muito se repete que o poder é afrodisíaco, e não
é preciso remeter o leitor às mais de quinhentas páginas
de “Sexo e Poder: A família no mundo (1900-2000)”, do
sociólogo sueco Göran Therborn, para afirmar o que Freud
mostra em cada página de suas obras. Freud reformulou
sua primeira teoria das pulsões nos anos vinte do século
passado, provocando uma mudança significativa na sua
teoria da cultura. Até então, sua ênfase era posta na
repressão das pulsões eróticas imposta pela cultura. Por
essa época ele descobriu a importância constituinte da
agressividade no psiquismo humano e foi levado a deslocar
seu foco da sexualidade para a agressão. A cultura repousa
na repressão das pulsões eróticas e de morte. Mas a tarefa
civilizadora está ligada à agressividade, que é manifestação
da pulsão de morte, e assim, mais do que reprimir as pulsões eróticas, o essencial do fundamento da cultura passa
a ser neutralizar as pulsões de morte “metamorfoseadas
em agressividade”, como escreve Renato Mezan em seu
“Freud, Pensador da Cultura”. Toda relação contém um
elemento de hostilidade.
Em “Por que a guerra?”, um pequeno texto que reúne
a breve correspondência entre Freud e Einstein, o físico
escreveu a Freud perguntando se algum dia a violência
deixaria de existir. Freud respondeu que não havia a menor
chance de eliminar as tendências agressivas de que somos
dotados: “não há nenhuma perspectiva em se querer abolir
as tendências agressivas dos seres humanos”. Como o
sangue em nosso corpo, nossos impulsos agressivos circulam em cada indivíduo da espécie humana e é bom que
saibamos disso, abandonando qualquer ilusão de sermos
bons e angelicais pela própria natureza. A agressividade nos
constitui e é o fundamento da nossa constituição psíquica.
Essa descoberta tardia o levou a reformular sua teoria das
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relações entre o indivíduo e o social. Inextinguível em nós, a
destrutividade pode ser reprimida, controlada e satisfazer-se
sob formas sublimadas. “A humanidade tem uma arma
realmente eficaz: o riso”. Com sua habilidade de dizer
muito com pouco, Mark Twain exprime nessa metáfora
do riso como arma uma das formas da agressividade se
expressar, diferente de realizá-la, de atuar a violência; há
maneiras socialmente aceitas de satisfazer o prazer que ela
busca. Se a partir dos anos trinta o elemento essencial da
natureza humana é a agressividade, o próximo, o outro já
não é só um possível ajudante ou objeto sexual; ele agora
se revela o alvo da nossa destrutividade. Em “O Mal-Estar
na Cultura”, Freud escreve que o mandamento “Amai-vos
uns aos outros” é uma das coisas “mais antinaturais e
difíceis de realizar e prova de uma idealização da natureza
humana”, explica Mezan em sua conferência Sociopatologia da Vida Cotidiana, no CPFL. Nós não somos capazes
de nos amarmos uns aos outros, mas de “nos armarmos
uns aos outros”; e Freud diz porquê:
“O fragmento de realidade atrás disso tudo (que preferimos negar) é que o ser humano não é uma criatura
terna e necessitada de amor, que quando muito se limitaria a defender-se caso atacado, mas que entre suas
disposições pulsionais deve-se contar uma poderosa
dose de agressividade. Por conseguinte, o próximo não
é para ele somente um possível auxiliar e objeto sexual,
mas também uma tentação para satisfazer sobre ele a
sua agressividade, explorar sua força de trabalho sem
retribuição, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, apropriar-se dos seus bens, humilhá-lo, causar-lhe
sofrimento, martirizá-lo e matá-lo. Homo homini lúpus.”
A
dimensão de prazer é essencial ao
domínio do outro, ao poder: buscamos dominar, machucar, humilhar
o outro porque isso nos dá prazer.
Freud vai além ao afirmar que o
fenômeno psicanalítico por excelência, “o inédito na teoria psicanalítica é a ideia de que a
agressão é basicamente autoagressão”, escreveu Mezan
em “Interfaces da Psicanálise” (p. 366). A questão é: se a
autoagressão é primária, desviar nossa agressividade para
fora é a condição de nossa sobrevivência. Caso contrário,
nos destruiríamos. A cultura indica caminhos para o deslocamento da nossa destrutividade: sublimada, reprimida,
enquadrada nos limites que ela impõe. Aqui se coloca uma
questão que me interessa em particular, já que me pergun-
INTELIGÊNCIA
to sobre o destino de Lydia Tár, e se ela seria um caso em
que sua destrutividade se volta sobre ela: a autoagressão.
Um caso exemplar citado por Mezan é o trabalho de Freud
“sobre aqueles que fracassam ao triunfar”. Diante do êxito
ao alcance da mão e objeto dos mais intensos desejos, a
pessoa fracassa. Uma das motivações para esses atos
autodestrutivos é, para Freud, a culpa. “Se eu chegar lá, eu
vou ter a culpa de ter chegado lá. Culpa em relação ao que,
a quem, são outros quinhentos cruzeiros”, diz Mezan na
Conferência que citei. Voltaremos a essa análise de “Tár”.
"CURA MENTE"
Enquanto os créditos do filme cruzam a tela, nós
ouvimos um íkaro, música mágica e sagrada da medicina
dos povos indígenas da Amazônia e Andes, na voz da
curandeira peruana de 53 anos de origem Shipibo-Konibo,
no Peru, com quem Lydia Tár viveu por cinco anos. Mesmo sem entender a letra desse canto de abertura na voz
de Elisa Vargas Fernández, que se chama “Cura Mente”,
são muitos os sentimentos que a música evoca. Elisa usa
essas canções mágicas como ferramenta principal em seus
rituais de cura para convocar a intervenção dos espíritos
nas sessões de ayahuasca com seus pacientes.
Na sequência inicial, uma longa entrevista dada por
Lydia Tár ao jornalista Adam Gopnik, da New Yorker, que
interpreta a si mesmo nesse realismo irônico de Field: muita
gente foi ao Google saber “quem é essa Lydia Tár”. De
um lado, Gopnik, personagem da vida real interpretando a
si mesmo, e, de outro, Lydia Tár, personagem da ficção,
que habita exclusivamente o mundo da arte, criatura de
Todd Field. Adam apresenta a musicista mundialmente
conhecida, uma das raras a conquistar os 4 prêmios mais
importantes. Seu currículo é extenso, heterodoxo, e sua formação impecável. Tár é um monstro da música, espécie de
divindade temida e idolatrada e, como seu mentor Leonard
Bernstein, tem uma afinidade particular com Mahler. Já
gravou suas nove sinfonias em sua passagem pelas “Cinco
Grandes” (as maiores orquestras do mundo) e agora, como
regente titular da Filarmônica de Berlim, está prestes a
realizar o seu maior desafio, que é reger a Quinta Sinfonia
de Mahler, a única que falta para completar a gravação de
todas as sinfonias do compositor com a mesma orquestra.
E vai lançar sua autobiografia, “Tár on Tár” (Tár sobre Tár).
O evento foi programado para o ano anterior, mas a apresentação foi adiada por causa da pandemia e acontecerá
agora, quando Lydia está completando 50 anos de idade.
“Obrigado pela presença, ‘maestro’”, agradece Gopnik
ao fim da apresentação. Chegará o momento em que o
mundo da música clássica deixará de usar distinções sexuais
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para diferenciar artistas? Lydia responde: “acho que eu sou
a pessoa errada para responder, já que não leio críticas.
Nunca. Mas acho estranho alguém que se sinta compelido
a substituir ‘maestro’ por ‘maestrina’. Nós não chamamos
as astronautas mulheres de ‘astronetes’. Mas quanto ao
preconceito de gênero eu não tenho do que me queixar”.
As outras também não deveriam ter, continua, e cita nomes
entre os quais o de Marin Alsop (regente contemporânea),
concluindo: nós não somos as pioneiras. “Foram tantas as
mulheres incríveis que nos antecederam. Essas mulheres
foram as verdadeiras desbravadoras.” Recusando-se a
alinhar suas conquistas nas fileiras feministas, Lydia Tár
diz a Adam Gopnik que não enfrentou machismo em sua
carreira nem vê a profissão de maestro hoje como privilégio
masculino, diferentemente da época das que vieram antes.
T
odd Field desafia as expectativas inventando uma história que atribui a uma
mulher o lugar do poder – e do poder que
abusa e assedia. Todd foi questionado e
criticado: misoginia do diretor escolher
uma mulher para o papel de predadora
sexual, já que a realidade mostra, e o MeToo comprova,
que esse é o lugar do homem. Essa escolha de uma mulher para o papel de assediadora provocou ira em Marin
Alsop, por exemplo, a maestrina citada e mundialmente
conhecida. Outra diz que Field faz o personagem principal
ser uma “maestro” titânica e depois a destrói, o que levanta
muitas questões: “Como se ainda fosse complicado para
um diretor homem olhar uma mulher poderosa e reconhecida de forma positiva”. Alsop dirá ao The Sunday Times:
“Fui ofendida como mulher, fui ofendida como regente,
fui ofendida como lésbica. Ter a oportunidade de retratar
uma mulher nesse papel e torná-la uma agressora – para
mim, foi de partir o coração. Acho que todas as mulheres
e todas as feministas deveriam se incomodar com esse
tipo de representação, porque não se trata realmente de
mulheres regentes, não é? É sobre mulheres como líderes
em nossa sociedade. É um filme antimulher”. Poderia ter
se baseado em tantos homens “reais e documentados”,
mas prefere uma mulher e a retrata como aqueles homens.
Quando foi que a destrutividade se tornou estranha à
condição humana, independentemente do seu sexo ou
gênero com o qual se identifica? Na teoria freudiana da
cultura e das pulsões, tanto faz se homem ou mulher,
o psiquismo humano é movido por pulsões “eróticas e
destrutivas, agressivas”. E o filme que Todd Field nos
apresenta é um filme sobre o poder e os humanos, um
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INTELIGÊNCIA
exame do ser humano em sua relação com o poder. “O
poder não tem gênero”, disse Cate Blanchett em uma de
suas entrevistas, repetindo em muitas delas que “Tár” não
é um filme sobre gênero, não é um filme “sobre homens,
mas sobre humanos”. “O filme é um retrato humano”. Ela
pergunta: Por que uma mulher não pode ser representada
como dona de um poder do qual abusa? Há uma auréola
que a santifica? Antes do maestro, o chefe da orquestra era
o primeiro violinista, não? Lydia responde que sim. Lydia,
“maestro”, lésbica, é casada com a primeira violinista da
Filarmônica de Berlim, Sharon (Nina Hoss), e o casal tem
uma filha, Petra (Mila Bogojevic). Sharon, é a primeira violinista, a figura principal da orquestra, diretamente abaixo
do maestro (Konzertmeister ou Spalla). Adiante, quando
Adam Gopnik estiver editando sua entrevista com Lydia,
sua voz lerá em off:
– Sharon é também Spalla da orquestra de Berlim, isso
complica as coisas.
– Lydia: sim, é verdade.
– Adam: o trabalho atrapalha em casa, ou ao contrário...
Fim da cena.
“Tár” é um filme sobre o ser humano e sua relação com
o poder. Em uma de suas entrevistas, Todd Field diz que
Sharon detém mais poder do que a própria Lydia, precisamente por isto, por Sharon ser a Konzertmeister nessa que
é uma orquestra democrática: é ela quem elege o maestro
titular. É o que Sharon lembrará a Lydia no momento da
ruptura de seu casamento: foi a ela que Lydia precisou recorrer para conseguir o seu lugar na Filarmônica de Berlim.
Voltemos a Adam, que pede que Lydia fale sobre o poder do maestro, que controla o tempo. Muita gente pensa
que maestro é um metrônomo humano. Lydia concorda:
sim, isso em parte é verdade, controlar o tempo não é
pouca coisa. “O tempo é a questão. O tempo é a peça
fundamental da intepretação. Não podem começar sem
mim. Eu aciono o relógio.” É como “fincar a bandeira na
areia: sigam-me”, diz, assumindo a posição de líder e poder
sobre a orquestra, conquistadora de um território. Quando
esse condutor era Bernstein, “a orquestra era conduzida
em uma viagem extraordinária e prazerosa.”
A Quinta Sinfonia, que será executada e gravada ao vivo,
é um mistério, e para regê-la é preciso decifrar as intenções
de Mahler, diz Tár. A única chave que o compositor deixou
para decifrar o mistério é a dedicatória à nova esposa, Alma.
“Então, se quiser embarcar com Mahler na sua Quinta
Sinfonia, a primeira coisa a fazer é tentar entender aquele
casamento tão complexo.” Para Lydia isso significa que
esta obra não nasceu de uma tragédia dolorosa, nasceu
de um amor jovem: a Quinta, diz Lydia, significa “o amor”.
M
ahler escreveu o adagietto como
uma declaração de amor, uma
carta de amor para Alma, também
compositora, com quem se casou quando compunha a Quinta.
Gustav teria escrito que a amava
tanto e não poderia expressar seu amor em palavras. A
discussão sobre esse quarto movimento é retomada inúmeras vezes. É uma das passagens mais conhecidas e
poderosas da obra de Mahler e costuma ser interpretada
como expressão de profunda melancolia. Em um ensaio
da orquestra, Lydia pede que “esqueçam ‘Morte em Veneza’” por causa da interpretação trágica e sublime dada
por Visconti a esse movimento.
O adagietto foi executado como “uma missa” no funeral de Robert F. Kennedy, em 1968, sob a regência do maestro Leonard Bernstein, de quem ela seria “a protegida”.
Com a duração de 12 minutos, podemos sentir a tragédia
e o pesar. “E é claro que essa interpretação seria muito
válida para Mahler, mais tarde, depois que a carreira dele
ruiu e Alma o trocou pelo Gropius. Mas como eu já disse,
nós estamos lidando com o tempo. E essa obra não nasceu
de uma tragédia dolorosa. Ela nasceu de um amor jovem.”
Lydia e Francesca (Noémie Merlant), sua assistente,
conversam sobre esse casamento “complexo” de Gustav
e Alma, que para Lydia é uma relação de “amor” e para
Francesca uma relação de “poder”, porque Alma era também compositora, e Mahler “insistiu para ela parar. Falou
que só tinha espaço para...”
INTELIGÊNCIA
– Lydia: um babaca na casa?
– Francesca: ...um babaca na casa. Sim.
– Lydia: E ela concordou com essas regras. Ninguém
decidiu por ela. #RegrasDoJogo.
Francesca ri, completando com um ditado francês: “Se
uma mulher tem o direito de subir ao cadafalso, ela também
deve ter o direito de subir ao púlpito. Ok?”.
As duas riem.
Elas estão voltando da Masterclass de Lydia na Juilliard
School, a caminho do aeroporto. Na Juilliard, a “maestro”
ressalta a importância da regência, esperando que os alunos
possam reger música que exija algo deles, “música que as
pessoas conheçam, mas que ouvirão de forma diferente
quando vocês interpretarem para elas”. Pergunta a um
aluno, Max, por que não quer reger uma peça de Bach, e
ele responde que não curte Bach. Ela pergunta se ele já
tocou ou regeu Bach, e Max responde:
K. Conká
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– Sinceramente, como pessoa pan da comunidade
BIPOC, eu diria que a vida misógina de Bach impossibilita,
para mim, levar a música dele a sério.
– Vamos lá. O que você quer dizer com isso?
– Bom, ele não gerou, tipo, uns 20 filhos?
– Sim, é o que está documentado. Além de uma quantidade considerável de música. Mas, me desculpe, não
sei o que as habilidades prodigiosas no leito conjugal têm
a ver com o Si menor. Tudo bem, é a sua escolha. Afinal,
“uma alma escolhe a própria sociedade”. Mas lembre-se
de que o outro lado dessa escolha fecha o canal da percepção da pessoa.
Sem abandonar o tom irônico, Lydia continua argumentando, enquanto caminha para o piano, chamando Max
para se sentar a seu lado. Começa a tocar “O Cravo bem
temperado”, enquanto fala: “Agora isso tudo é insignificante, certo?” E vai mostrando que ali há uma conversa:
pergunta-resposta, que nos leva a outra pergunta. “Existe
humildade em Bach. Ele não finge ter certeza de nada.
Porque ele sabe que é sempre a pergunta o que captura
o ouvinte. Nunca é a resposta, certo? Agora, a grande
pergunta para você é: o que você acha, Max?”
– Você toca muito bem. Mas atualmente compositores
homens, brancos e cis... não é o meu lance.
Segurando a perna dele, que não para de se agitar, ela
diz que “o narcisismo das pequenas diferenças leva a um
conformismo muito entediante”. E completa: “O problema de querer ser um dissidente epistêmico ultrassônico
é que, se o talento de Bach pode ser reduzido ao gênero,
nacionalidade, religião, sexualidade e assim por diante,
então o seu também pode”. O duelo termina com Max
fechando o piano e se levantando, enquanto ela pergunta
aonde ele vai. Virando-se para ela o crítico da misoginia
diz: “Você é uma puta de merda” (You’re a fucking bitch).
“E você é um robô. Infelizmente, parece que o arquiteto
de sua alma é a mídia social. Se quiser dançar, você deve
servir o compositor. Você tem que sublimar a si mesmo,
seu ego e, sim, sua identidade”. Todd Field comenta
essa cena da Juilliard falando de sua preocupação com a
extinção da conversa na nossa cultura, a perda da nossa
capacidade de ouvir o outro, de tentar ver o ponto de vista
48 DESTRUIÇÃO
INTELIGÊNCIA
de outra pessoa. Não é o que vemos Lydia mostrar ao
piano com “O Cravo bem temperado”? O debate é uma
dimensão fundamental da civilização ocidental, diz Field,
que acha assustador pensar que ele pode ser extinto.
“Aquela cena na sala de aula é apenas a realidade do
que vivemos.” Max, o robô cuja alma é desenhada pela
mídia social, sacrifica sua individualidade para pertencer
a uma massa. Quando ele fala, não fala em seu nome ou
o que ele pensa e sente: é o grupo “pan da comunidade
BIPOC” que fala por ele, e através dele.
“É MUITO FÁCIL TOMAR O PARTIDO DA MAIORIA” (SÊNECA)
Na Carta VII a Lucílio, “Sobre Multidões”, Sêneca, o
Jovem, recomenda evitar as multidões porque prejudicam
o caráter. Séculos depois, Freud observaria “que os membros de um grupo se comportam de maneira significativamente diferente do que o fariam” se estivessem sozinhos.
Para ele, o fenômeno fundamental da psicologia coletiva é
a falta de liberdade do indivíduo pertencente a um grupo.
Em 2011, em uma entrevista à Folha de S. Paulo, o psicanalista Contardo Calligaris disse: “Eu fui membro do Partido
Comunista, mas hoje seria incapaz. Quando desistimos da
nossa singularidade para descansar no comportamento
de grupo, aí está a origem do mal. O grupo, para mim, é
R. Duarte
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o mal”. (“Comportamento de Grupo está ligado ao Mal,
diz Calligaris”). “O Grupo e o Mal” é o título do seu livro
publicado depois de sua morte. Todo grupo cobra esse
preço: desistir da nossa singularidade para descansar no
comportamento de grupo. Esta é a origem do mal.
U
ma crítica hilária ao indivíduo em
um grupo pode ser vista em “A
vida de Brian”, do Mont Python.
Brian é um herói furioso por se
ver idolatrado como o Messias.
É seguido por todos os lados por
uma multidão da qual faz de tudo para se livrar: foge, se
esconde, se mete em encrencas por isso e acaba descoberto. Cede aos apelos da multidão apenas para tentar
convencer cada um a pensar e agir por si próprio: “Vocês
entenderam tudo errado. Vocês não precisam me seguir.
Vocês não precisam seguir ninguém. Pensem por vocês
próprios. Vocês são todos indivíduos”. A multidão que não
para de crescer grita a uma única voz: “Sim, somos todos
indivíduos”. Brian insiste: “Vocês são todos diferentes”. E
a multidão, de novo a uma só voz responde: “Sim, somos
todos diferentes”. Apenas uma voz isolada discorda: “Eu
não sou”. Todos olham em busca do dissidente. Brian
insiste: “Devem cuidar de vocês próprios”. Em uníssono,
a multidão: “Sim, devemos cuidar de nós próprios”. Brian:
“Exatamente”. E ouve como resposta a multidão implorando ao messias mais palavras, mais ordens. Tenta de
novo: “Não! É só isto! Não deixem os outros mandarem
em vocês”. “O escolhido”, “o messias”: não há maneira
de Brian convencer a massa de que não precisam depender
dele, de que não devem obediência ou servidão a alguém.
“Não sejam escravos bajuladores, não coloquem ninguém,
nem mesmo a mim, nessa posição de salvador com quem
cada um de vocês concorda incondicionalmente. Deixem
de ser crianças, cresçam e pensem por si mesmos”, diz
ele claramente irritado com essa servidão de indivíduos
sedentos de servidão, ávidos para dizer amém a um líder e
bajular qualquer um em quem possam crer ser seu protetor.
A massa apaixonada recusa-se a abandonar essa posição
infantil, identificada a um rebanho de ovelhas que espera
ser tocada por um pastor – ou gado, diríamos hoje.
Em “Psicologia das Massas e Análise do Eu” (1921),
Freud se perguntou o que leva as massas a se sujeitarem a
um líder? É inútil Brian insistir porque a massa se forma pelo
desejo infantil de ser protegido da angústia do desamparo.
A relação do grupo com o líder (qualquer um) repete a relação da criança com o pai. E o essencial é a dependência de
INTELIGÊNCIA
uma figura de autoridade através da qual o grupo alimenta
a ilusão de que ela o protege. A característica de qualquer
grupo é essa: o chefe, o líder, é uma figura substituta do
pai que nutre o desejo do indivíduo de ser por ele amado.
Tornam-se irmãos de seus pares nessa ilusão, e é isso o
que dá a coesão a um grupo. Irmanados por essa crença,
os indivíduos se identificam como uma comunidade ao
preço da perda da sua individualidade. Sua agressividade
é deslocada para os “de fora” e por isso o membro de um
grupo se comporta de um modo muito diferente daquele
que faria se estivesse sozinho: porque o grupo libera nossas
tendências agressivas, projetando-as no “adversário” – o
que não faz parte do grupo.
O líder mobiliza nosso desejo infantil de proteção da
angústia do desamparo, motivo pelo qual criamos nossos
deuses e voltamos ao útero, onde não somos um eu, não
somos indivíduos. “A infantilização crescente de multidões
no mundo inteiro não é casual. Há quem esteja interessado
nela e há quem se aproveite dela, seja em busca de poder,
seja em busca de dinheiro”, escreve Amós Oz em seu livro
sobre o fanatismo, “Mais de uma luz: Fanatismo, fé e convivência no século XXI”. Os que disseminam e financiam
essa infantilização precisam que nos tornemos crianças em
busca de um pai protetor. Para Freud, o fundamental da
psicologia coletiva é a falta de liberdade do indivíduo que
pertence a um grupo. O indivíduo troca sua liberdade por
submissão ao poder do líder – o que é sempre o resultado
de uma idealização, de uma mitificação, de uma projeção de
nossos desejos e fantasias inconscientes. Quando a crença
no poder atribuído ao líder desmorona, quando a ilusão
com o “mito” se transforma em desilusão, a identificação
recíproca dá lugar à agressividade entre os membros. A
agressividade que era dirigida para os que não pertenciam
ao grupo volta-se para os antigos pares e para a outrora
divindade idolatrada, o chefe.
“CADA UM PROCURA SEU PRÓPRIO VENENO” (TODD FIELD)
Desde seu lançamento no Festival de Veneza, 2022,
“Tár” vem conquistando prêmios importantes e o carimbo
de obra enigmática e de difícil compreensão. Todd Field
trabalhou no roteiro durante dez anos, escreveu-o durante
a pandemia “para” Cate Blanchett, que aceitou o papel.
Todd o apresentou à produtora como um filme sobre “uma
maestro” genial que é atingida pelos abusos de poder.
Muitas vezes repete que está mais interessado em abrir
perguntas do que em respondê-las. Como um psicanalista,
o diretor propõe enigmas, e a ambiguidade da trama deixa
espaço para nossa imaginação trabalhar. Apresenta um
filme encoberto por uma bruma, uma neblina, sustentan-
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do uma ambiguidade que aponta para múltiplos sentidos,
tanto quanto o tráfego de insinuações, boatos, fragmentos
de mensagens trocadas em redes sociais por mãos não
identificadas e para destinatários que não sabemos quem
são. Seu sonho é que seu filme provoque interpretações
individuais e dê “espaço suficiente para qualquer um entrar
e ser o cineasta final”. Não tem uma “maneira errada de
ler o filme”, cuja “única intenção é inspirar a especulação
mais feroz ou supérflua possível”. Afinal, Tár é alcatrão
e também anagrama de “arte”. Como os surrealistas,
o diretor mistura realidade e criações fantásticas e, com
isso, parece afirmar os direitos da arte tão esquecidos pela
discussão lembrada por Cate Blanchett em uma entrevista,
e na cena da Juilliard School: as proezas do artista na cama
teriam o poder de legitimar ou proibir sua arte? Em termos
mais simples, o “mau comportamento” do artista deveria
cancelar a arte e o artista? A arte tem direito à existência
e não pode se destruir reduzida ao panfleto de uma causa,
à arma de uma militância que justificaria sua existência.
D
emitida da Orquestra Sinfônica de
Berlim por seu “mau comportamento”, Lydia está em sua velha casa de
infância em Staten Island, onde nasceu como Linda Tarr. Lydia Tár é sua
própria criação, que ela fará tudo para
proteger. Vendo sua expressão ao ouvir Leonard Bernstein
compreendemos que seu “cancelamento” não significa
seu fim. Ela procurou essa fita cassete entre seus guardados. São os Concertos para Jovens “What Does Music
Mean?”. O maestro diz que o verdadeiro significado da
música é a maneira como você se sente quando a ouve. A
música pode causar todos os tipos de sentimentos, alguns
tão profundos e especiais que não podem ser descritos em
palavras. Nem sempre podemos nomear o que sentimos;
às vezes podemos dizer que sentimos alegria, prazer, tranquilidade, amor, ódio: mas de vez em quando temos sentimentos tão profundos e especiais que não temos palavras
para eles. E é aí que a música é tão maravilhosa, porque ela
os nomeia para nós. E tudo isso apenas em notas em vez
de palavras. Música é movimento, sempre indo a algum
lugar. Mudando e mudando e fluindo, de uma nota para
outra. A Lydia Tár do começo do filme, entrevistada por
Adam Gopnik, disse: quando este condutor era Bernstein,
“a orquestra era conduzida em uma viagem extraordinária e
prazerosa”. No final do filme, ela está neste ponto: um país
da Ásia (Filipinas) para reger a orquestra de videogames de
“Monster Hunter”. Uma voz em off precede a execução
50 DESTRUIÇÃO
INTELIGÊNCIA
do concerto: “Irmãs e irmãos da Quinta Frota, chegou a
hora. Vou ser breve na minha despedida – nunca fui muito
bom com palavras. Depois de embarcar neste navio não
há como voltar atrás. O próximo terreno que seus pés
tocarão será o do Novo Mundo”. Uma viagem sem volta
para um Novo Mundo seria uma descida aos infernos do
cancelamento? Punição ou recriação de si, renascimento?
Todd Field explica que a Quinta de Mahler se encaixa
na história porque seu primeiro movimento dos cinco que
o compõem é sobre a morte, a Marcha Fúnebre. E “Lydia
está passando por uma espécie de morte artística, uma
morte pessoal e um renascimento potencial”. “É quase
como se [a morte] a estivesse assombrando, vindo atrás
dela”, disse ele.
Tár é alcatrão, e em cada uma das quatro ou cinco vezes
em que assisti o filme recolocava minha pergunta em busca
de minha suspeita: Tár é tóxica para quem? O veneno de
Lydia é essencial à trama: se ela é tóxica para os outros,
o que o cancelamento afirma, não é menos tóxica para si,
fracassando no momento em que está prestes a realizar o
seu sonho de reger a Quinta Sinfonia, completando o ciclo.
Sua autodestruição é literalmente figurada por sua queda
no pódio. Culpa pelo suicídio de Krista, uma ex-protegida
sua que caiu em desgraça, como pretende o tráfico de
murmúrios e acusações? O filme não expressa esse juízo.
Krista se matou e isso é tudo o que sabemos. Suicídio é um
capítulo complexo demais do campo psi para ser abordado
aqui. É suficiente diferenciar o desejo eventualmente do
suicida de fazer o outro sentir-se culpado por sua morte,
da culpa que o outro venha a sentir, e, ainda, do fato de ser
ele o culpado. Culpa pela predação sexual das jovens que
tentam seduzi-la, interessadas em sua ascensão e colocação profissionais? Ora, Olga (Sophie Kauer), a violoncelista
russa, persegue Lydia no banheiro para mostrar seus pés
por baixo da porta – único meio de ser identificada na audição que a seguir escolherá o novo membro da orquestra.
Lydia, aparentemente caçadora, é a caça que terminará por
escolher Olga, caindo em sua armadilha.
Culpa por ter frustrado Francesca, sua assistente,
impedindo a realização de seu sonho de ser escolhida
como regente auxiliar? “Se quiser ser regente, Francesca,
precisa aprender a dizer o que pensa”, Lydia lhe dissera. A
assistente informa Lydia que Krista se suicidou e Lydia a
encarrega de apagar todos os e-mails enviados para e por
Krista Taylor. Francesca mente que o fez. Lydia sabe que
ela é dissimulada, bajuladora, que só diz o que Lydia quer
ouvir, em suma, não confia na assistente. Por isso finge
que não consegue ligar o seu computador e dá um jeito de
emprestar o de Francesca e ficar a sós com ele, indo direto
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aos e-mails. Encontra toda a correspondência com Krista;
não apaga os e-mails nem fala nada. Mas não escolhe
Francesca como substituta de Sebastian, o regente auxiliar
que será substituído. Novamente, a ambiguidade: Sharon
diz a Lydia que ela está sendo acusada de demitir Sebastian
para colocar Francesca, sua protegida, e a aconselha a não
a escolher. Não é possível dizer que houve vingança de
Lydia ao preterir sua assistente, mas é clara a vingança de
Francesca, que desaparece levando os e-mails, que tornará
públicos, motivando a investigação contra Lydia no caso de
suicídio de Krista. Cate Blanchett diz que sua personagem
Lydia Tár é enigmática, como as pessoas têm dito; mas o
de Francesca (Noémie Merlant) é tão enigmática quanto
o dela. Autodestruição, ainda, sugerida também por Cate
Blanchett em uma de suas entrevistas, quando diz que
“Lydia é definitivamente assombrada, seja por alguém, por
algo, por seu passado, por suas ações. Sem divulgar o final
do filme devo dizer que se trata de alguém que guardou
o seu passado numa caixinha e colocou o seu talento ao
serviço de uma reinvenção de si própria. Ela tentou mudar
e se deixou transformar pela música. Sentimos o medo.
Lydia está no topo de seu jogo e sabe que, como pessoa,
ela só pode descer. E isso exige muita coragem”.
Tóxica para os outros, tóxica para si mesma, Tár, repito,
é tecida com o fio da ambiguidade e da ambivalência que
caracteriza nossa natureza psíquica. Especialmente quando se trata da análise do poder que Todd Field pretende
realizar através de seu “Tár”. Ele diz que o importante é
que todas essas pessoas se beneficiam dessa estrutura
de poder. Lydia é um ser humano: isso a torna culpada
das coisas de que está sendo acusada? Pode ser. E pode
não ser. Mas ela é definitivamente culpada de ser um ser
humano, diz ele. Então é melhor que seus colegas, outros
seres humanos, decidam o que pensam sobre ela, e não
o cineasta, conclui.
Ao final da entrevista na abertura, Lydia responde a uma
moça que a interpela se ela também se emociona quando
está regendo. Tár diz que sim e comenta que ao reger “A
Sagração da Primavera“ sentiu-se como vítima e autor do
crime. “Foi depois de reger aquilo que me convenci de
que todos nós somos capazes de matar”. Eis uma maneira
clara de apontar a ambivalência humana destruindo o bom-mocismo e o caráter simplório das análises do poder em
termos da dualidade opressor-oprimido.
Field diz e repete em suas entrevistas que o filme é um
exame do poder. Um exame complexo quando o encaramos fora do quadro da rigidez maniqueísta e binária que o
resume a dualismos como vítima-algoz, opressor-oprimido
e outras que conhecemos. Ele diz que “se você quer real-
INTELIGÊNCIA
mente falar sobre o poder”, seu longo alcance na história,
“o abuso e a cumplicidade do poder, como ele corrompe
– todos esses clichês com os quais crescemos –, você
tem que encarar a ideia de que não é preto ou branco. Encontrar a verdade de algo requer um pouco mais de rigor”.
Examinar o poder exige, pois, considerar as nuances, os
detalhes, os matizes e sutilezas que escapam a qualquer
polarização. Por isso o filme precisa sustentar a ambiguidade do início ao fim. Ninguém é totalmente bom nem
totalmente inocente; a ambivalência, a dualidade pulsional,
faz do humano um ser imperfeito. Provocar perguntas em
vez de dar respostas ou soluções é um convite ao diálogo,
assassinado pelas certezas.
Deixo para perguntar a Lydia Tár no meu divã sobre a
repetição do número 5 do começo ao fim do filme: das 5
Grandes (orquestras) à Quinta Sinfonia de Mahler, como
também o início cantarolado da Quinta de Beethoven, além
dos seus 50 anos e muito, mas muito mais 5, inclusive a
massagista nº 5 escolhida e o embarque final na Quinta
Frota. Finalmente, alcatrão evoca algo tóxico, destrutivo,
venenoso, mas também inebriante, que remete ao caráter
extático da ayahuasca usada pela curandeira para curar a
mente dos que a procuram. É o que diz o íkaro, a música
mágica que abre o filme e cujo nome é “Cura Mente”.
“Cada um procura o seu próprio veneno”, disse Todd
Field.
A autora é pós-doutora em Psicologia Clínica
marcia@marcianeder.com.br
BIBLIOGRAFIA
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