[go: up one dir, main page]

Academia.eduAcademia.edu
Entrevista com Frank Lestringant Em 27 de março de 2009, Frank Lestringant, professor da Universidade Paris IV-Sorbonne e especialista em literatura francesa, esteve no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, a convite do Programa de Pós-Graduação em Historia Social da UFRJ (PPGHIS). Na ocasião concedeu a seguinte entrevista. Andrea Daher: Temos o prazer de ter a presença, no Programa de Pós-Graduação em História Social, de Frank Lestringant, que todos conhecem através de sua obra voltada para a literatura do Renascimento francês, notadamente para o corpus de relatos sobre o Brasil, o que fez com que fosse considerado um brasilianista. Aproveitamos a ocasião para tratar, nesta entrevista, de uma questão que nos é cara: a da relação entre os relatos quinhentistas franceses sobre o Brasil1 e a obra de Claude Lévi-Strauss, morto no ano passado. A centralidade dessa discussão remete aos usos contemporâneos desses textos antigos, às relações entre história e Antropologia, e culmina com o reconhecimento da importância da obra do antropólogo francês. Contamos também com a presença, hoje, do antropólogo Marco Antônio Gonçalves, cujo trabalho tem afinidades várias com os temas que serão debatidos a seguir. Frank Lestringant: Gostaria de agradecer o convite e dizer que é um prazer estar de volta a este prédio, a convite do Programa de Pós-Graduação em História Social, em que tive a oportunidade de apresentar a tradução do meu livro O Canibal. Grandeza e decadência,2 há alguns anos. Agora é a ocasião de falar do meu trabalho em torno do corpus francês sobre o Brasil, o que talvez não faça de mim um brasilianista. Não poderia sê-lo, pois não domino a língua portuguesa – por mais que, no século XVI, ela não fosse a mais falada no Brasil... Andréa Daher: Para irmos direto ao centro da discussão de hoje, podemos partir da afirmação de que, no seu relato, Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, editado pela primeira vez em 1578, Jean de Léry construiu uma imagem positiva do selvagem tupinambá, apesar do fato de não o considerar convertível. No mesmo momento, nos Ensaios de Montaigne, encontra-se uma representação do selvagem que prepara, seguramente, o mito de um bom selvagem. Conhecemos ainda o fenômeno longevo de “tupinambização” da representação do índio na França, inaugurado por esses mesmos textos. Sugiro que você fale um pouco da maneira como Lévi-Strauss se colocou em relação a tais representações: de que modo Lévi-Strauss teria recebido as representações do selvagem de Jean de Léry, de Montaigne e, até mesmo, de André Thevet? Frank Lestringant: Tive a oportunidade de encontrar Lévi-Strauss, o que, de fato, não é muito original. Mas tive, sobretudo, a oportunidade de descobrir um paralelismo bastante impressionante entre Jean de Léry e Lévi-Strauss. Escrevi, inclusive, um artigo que intitulei “Léry-Strauss”, publicado em inglês em uma revista americana. Lévi-Strauss gostava bastante de trocadilhos. Eu já havia intitulado um outro de meus artigos “Tristes tropistes”. “Tropistas” refere-se aos protestantes da época de Léry que explicavam a Eucaristia pelos tropos, pela retórica. Andrea Daher: Como dizia Montaigne sobre o seu tempo, “a maior parte das causas das desordens do mundo é gramatical”. Frank Lestringant: E Montaigne acrescenta que foram muitos os debates produzidos pela sílaba hoc: “hoc est corpum meum”. Estas são as palavras sacramentais de Jesus Cristo na Eucaristia, que oferece Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 159 Entrevista com Frank Lestringant o pão, que o come e diz “isto é o meu corpo”; e que pega a taça de vinho, a oferece e diz “isto é o meu sangue”. Como disse Montaigne, uma simples palavra de três letras, H-O-C, produziu uma quantidade de controvérsias e guerras. Quanto ao paralelismo que havia entre Léry e Lévi-Strauss, ele se encontra, por um lado, numa projeção de Lévi-Strauss em Jean de Léry. Ele se reconheceu em Léry. Há uma frase célebre em Tristes trópicos3 em que Lévi-Strauss diz: “Ando pela Avenida Rio Branco onde outrora erguiam-se as aldeias tupinambá, mas carrego no bolso Jean de Léry, breviário do etnólogo”. Assim, Lévi-Strauss desembarcava no Novo Mundo, no Brasil, e o livro de Jean de Léry lhe serviu como uma espécie de entrada nessa realidade brasileira e, em seguida, ameríndia. Léry serviu, na verdade, de iniciação: iniciação ao mundo, um mundo passado, um mundo do passado. Por outro lado, Léry permite a Lévi-Strauss comunicar-se com uma espécie de utopia, ou melhor, com uma ucronia em torno dos índios que teriam escapado à Conquista, à destruição, à assimilação. Lévi-Strauss afirmou: “A leitura de Léry me ajuda a escapar de meu século, a retomar contato com o que eu chamaria de ‘surrealidade’”.4 Trata-se, na verdade, de uma ucronia indígena, já presente em Tristes trópicos e projetada em Jean de Léry. Esta identificação é reforçada pelo fato de que Jean de Léry era um protestante, um calvinista, e, talvez vocês saibam, Léry era um reformado com o sentimento de reviver as tribulações do povo judeu. Os protestantes liam a Bíblia todos os dias e interpretavam o seu cotidiano e a história que então viviam em função dessa leitura. O relato de Léry é crivado de citações bíblicas. Neste sentido, há uma espécie de quiasma: Léry era um protestante que se via como um judeu do Antigo Testamento, um francês cristão que se via como um judeu do Antigo Testamento; e Lévi-Strauss era um judeu que se via como um protestante do século XVI. O que reforça ainda mais essa identificação é o fato de que tanto um quanto o outro viveram no Brasil e escreveram os seus relatos bem depois de regressarem à França. Há um longo intervalo, nos dois casos, entre a experiência de campo, a experiência do Brasil, e a redação do testemunho. E, no caso de Lévi-Strauss, passaram-se muitos anos entre a viagem que ele fez nos anos 1930 e a publicação de Tristes trópicos, em 1955. Entretempo, ele fez outras viagens, umas três ou quatro. Assim, o livro só foi publicado após a Guerra, e após uma longa estada nos Estados Unidos para escapar à perseguição nazista, do Estado francês e do Marechal Pétain. Foi depois de retornar à França, portanto no início dos anos 1950, que ele publicou esse testemunho, essa narrativa retrospectiva, que relata uma experiência já antiga. Com Léry se passa a mesma coisa: o seu relato de viagem surge exatamente 20 anos depois do seu retorno do Brasil, onde esteve entre 1557 e 1558. Quando retorna à França, estouram as Guerras de Religião e, somente em 1578, o livro é publicado. Assim, em ambos os casos, há um atraso, há um longo espaço de tempo entre a experiência e a escrita e, no intervalo, se desenrola uma guerra terrível, até mesmo o extermínio. No caso de Lévi-Strauss é a Shoa, e no de Léry o massacre de São Bartolomeu, as Guerras de Religião. Este seria, então, o ponto de partida: uma relação muito forte, existencial. Mas, ao mesmo tempo, é claro, Lévi-Strauss tem consciência de que ele não é Jean de Léry e de que vive em outra época. Mas ele se compraz ao se projetar nessa França do século XVI. Observa, aliás, que ela está menos afastada, evidentemente, da realidade dos índios do que a Europa do século XX. Questiona, neste sentido, em sua Aula Inaugural no Collège de France: “Como é possível que a etnografia não tenha recebido seu lugar quando ainda era jovem e os fatos guardavam sua riqueza e seu frescor? Pois, em 1558 é que se gostaria de imaginá-la estabelecida, quando Jean de Léry, voltando do Brasil, redigia sua primeira obra, e quando apareciam As singularidades da França Antártica, de André Thevet”.5 Assim, há uma espécie de ilusão, cultivada por ele, de um retorno às fontes, de um mergulho no passado, de uma ucronia, em certo sentido. Como se fosse possível apreender em sua origem, em sua fonte, esse encontro em parte falho – pode-se dizer, até mesmo, amplamente falho – entre o Ocidente e os povos ameríndios. Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 160 Entrevista com Frank Lestringant Logo, essas narrativas de Léry, de Thevet e outras nos servem como uma valiosa fonte de informação, do ponto de vista etnográfico. Mas são também um meio de comunicação com os índios do passado, um meio de remontar ao passado, de abolir de alguma forma a “maldição da história”, digamos, com seus cataclismos, seus massacres, suas guerras, suas destruições e sua negação do outro, enfim, a sua negação. Andrea Daher: Precisamente na citação que você acaba de fazer da Aula Inaugural do Collège de France, Lévi-Strauss fala do “frescor” dessas narrativas. É sem dúvida algo projetado, é uma construção. Mas ele se refere, por exemplo, ao “frescor do olhar” de Jean de Léry. Este seria, para ele, um aspecto singular de Léry: um olhar direto sobre a realidade, pleno de frescor. Esse caráter “direto” do olhar sobre a realidade seria aquele que supostamente rejeita toda convenção letrada ou cultural, rejeita qualquer mediação. E quanto ao “frescor”, ele consistiria numa identificação que reporta ao presente, ao presente de Lévi-Strauss, à sua ideia de “surrealidade”? Frank Lestringant: O “frescor” é, sem dúvida, um pouco ilusório. Mas a sua pergunta toca em algo importante. Lévi-Strauss diz que Léry viu coisas que não têm preço, porque era a primeira vez que eram vistas, e isso foi há 400 anos. É a ideia de “primeira vez”. É o mito do primeiro encontro. Na verdade, poderíamos discutir muito sobre isso, pois nunca houve o “primeiro encontro”. Mas, de todo modo, há a aparência de um primeiro encontro que, na verdade, é baseado no olhar, e isso é muito importante. Na verdade, o olhar de Léry não é de todo ingênuo. Esforcei-me no meu trabalho sobre Jean de Léry – particularmente, no livro que se chama Jean de Léry ou l’invention du sauvage6 – em mostrar como esse olhar foi reconstruído. Léry é um verdadeiro escritor. Lévi-Strauss é também um escritor plenamente consciente de sua arte, de seus meios, de seus procedimentos e do poder da literatura para produzir a ilusão do real. Neste mesmo sentido, encontramos constantemente um procedimento no relato de Léry que, por vezes, é deliberadamente exibido: trata-se de restituir aos olhos do leitor os espetáculos que ele próprio viu. Léry lança mão do que se chama em grego “ékphrasis” (écfrase), que se associa ao conceito grego de “enargeia”. Também se pode falar em “hupotuposis” (hipotipose) que consiste em meios estilísticos, retóricos, pelos quais se associa o leitor à visão direta que é produzida pelo texto: “vejo, assim como você vê”, “você veria, se estivesse lá”, “você teria visto como vi”. É uma operação verdadeiramente literária: a écfrase designa representação de um objeto de arte no interior de um texto; consiste em fazer não com que o texto conte, mas com que mostre. O texto é aproximado da pintura, segundo o adágio de Horácio, o ut pictura poesis. E Léry fez verdadeiras pinturas, o que o distingue inteiramente de Thevet, por exemplo, e de outros viajantes contemporâneos. Ele desenhava, pintava quadros, com recursos literários extremamente conscientes e elaborados. Para tanto, recorre a verbos de percepção, de sensação, faz referência a cores, à luz, a notações auditivas – os ruídos, os sons, o canto dos pássaros, o barulho das árvores, os gritos dos índios durante os combates – e menções na língua tupi. Mostra as plumagens, os arcos e flechas dos índios e muito mais. Na verdade, tem-se uma arte literária definitiva que visa a recriar uma presença desaparecida: Léry cria no seu texto uma ilusão de presença, e essa ilusão funciona tão bem que Lévi-Strauss crê – ou, ao menos, finge crer, pois era demasiadamente inteligente para saber que se tratava de um procedimento literário. Por isso, é preciso ler a Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil para nos deixar impressionar pelas cenas pintadas por Léry. Temos a impressão de ver os índios diante de nós. É um texto excepcional pela forma com que Léry recria o olhar. Neste sentido, é possível se falar em “frescor” do olhar, considerando que temos um olhar produzido por um conjunto de recursos estilísticos (como nos poetas, Ronsard ou d’Aubigné, por exemplo, que lançam mão de procedimentos bastante comparáveis, exceto que se trata de prosa, e não de poesia). Assim, Léry não conta, na verdade, uma história; sua narrativa não é linear, é uma justaposição de quadros que não são comentados, de forma que o leitor é simplesmente posto em presença de. O objetivo de Léry – e ele o enuncia – é o de suscitar uma presença perdida, uma presença do outro, uma presença do índio. Esse esforço talvez seja da mesma ordem que o de Proust, Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 161 Entrevista com Frank Lestringant mas na literatura de viagem serve para evitar a perda, evitar a morte: a morte do outro. Assim, Léry sinaliza a morte do índio, porém restitui, de certo modo, o seu fantasma. Andrea Daher: Justamente, por falar na morte do índio, existe em Jean de Léry, como já se sabe bem, uma condenação do selvagem: ele é condenado teologicamente. Mesmo se a sua representação é positiva, Léry o condena por ser inconvertível. Bem, há uma analogia entre esta condenação e a que LéviStrauss enuncia na forma de dúvida e de culpa em relação à Conquista da América. Em sua conclusão da Aula Inaugural de 1960, Lévi-Strauss fala da Antropologia como empreendimento voltado para “renovar” e “expiar” o Renascimento, “para estender o humanismo à medida da humanidade”. A ideia de que é preciso “expiar o Renascimento” corresponde, evidentemente, a uma condenação dos massacres, dos genocídios, da crueldade, de maneira geral. Então, a pergunta é: de que maneira você vê a relação entre as duas condenações? E quais são os tempos fortes, digamos, desse sentimento altamente crítico de LéviStrauss em relação à Historiografia e à Antropologia na França, na sua representação do Renascimento? Frank Lestringant: Você fez bem de lembrar essa fórmula, porque ela é completamente paradoxal e surpreendente. Lévi-Strauss algumas vezes gostava de provocar o leitor ou o ouvinte, expressando-se sob a forma de paradoxo. Isso nos leva a afirmar, inclusive, um parentesco de espírito entre Lévi-Strauss e Montaigne e, em outro nível, entre Lévi-Strauss e Léry. Quanto à Antropologia, lembremos que ele fala da era pós-colonial, da descolonização, do pósGuerra, quando a França pretendia, depois da Espanha, depois de Portugal e depois da Inglaterra, levar a civilização aos bárbaros. Foi isso, finalmente, que fizemos na África, por meios um tanto brutais, muitas vezes como os espanhóis, anteriormente, na América. Assim, sucessivamente, a derrota de 1940, a Guerra, a ocupação, a vergonha da colaboração e, em seguida, o choque causado nas colônias por essas “guerras perdidas”, tudo isso provocou uma crise de consciência muito forte na França, cujo resultado foi a descolonização durante os anos 1960. Lembro-me, na minha juventude, que nos manuais escolares de História e Geografia, de um ano para o outro, a mensagem mudava completamente: falava-se do império francês e, no ano seguinte, falava-se do direito dos povos de disporem de si mesmos. Foi neste momento, em seguida à Guerra e à descolonização, ao longo dos anos 1950 e 1960 (a da Argélia ocorreu em 1962), que Lévi-Strauss observou que a Antropologia pôde enfim se afirmar por ser um empreendimento que renovava e expiava o Renascimento. Fiquei impressionado com esta fórmula provocativa, “expiar o Renascimento”, pois se expia um pecado, um crime, mas expiar um período da história, isso é mesmo muito estranho! E especialmente porque o Renascimento tem, em geral, um valor positivo: pode parecer paradoxal estigmatizar esse período, lembrando que, efetivamente, se cometeram crimes. Quando se fala em Renascimento, se fala em geral da literatura, das artes plásticas, que tiveram seu apogeu nessa época, principalmente na Itália e, obviamente, não se pensa que esse foi um período que viu a destruição dos povos do Novo Mundo, para retomar os termos de Las Casas. Efetivamente, é a mesma Europa que vê os crimes de Cortez, de Pizarro e que vê também as obras-primas de Leonardo da Vinci e Michelangelo. E a ideia, portanto, de Lévi-Strauss, através dessa fórmula provocadora, era a de retornar ao Renascimento, renovando-o, mas mantendo a mensagem humanista. E expiando essa parte do humanismo que corresponde à negação do outro, através da intolerância, dos triunfos e do lucro da Conquista. Este seria um primeiro ponto. Posso ampliar o que você mesma disse, enfim, parafraseá-la sobre a perda e a condenação, retomando a sua ideia de que Lévi-Strauss tem, para com o Renascimento, um pouco da mesma relação de Léry com os índios. De fato, Jean de Léry tem uma atitude profundamente ambivalente, ambígua. Em geral, quando se lê a Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, conservamos apenas a imagem positiva do índio. Como disse há pouco, a impressão que o leitor guarda, uma vez o livro fechado, é essa miragem extraordinária, essa presença extraordinária suscitada pela admiração: Léry, assim como Montaigne, admira verTopoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 162 Entrevista com Frank Lestringant dadeiramente as qualidades, as virtudes dos índios, como o heroísmo, a generosidade, a solidariedade, a caridade, e particularmente o desprezo pela morte. Consequentemente, há uma certa admiração pela humanidade desses índios que é contrabalançada por aquilo que você lembrava, ou seja, uma condenação desses mesmos índios no plano espiritual. Isto significa que Léry duvida que esses índios possam ser convertidos ao cristianismo e salvos, por conseguinte, no plano da eternidade. Por isso, quando lemos a Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, temos a impressão de que Léry finalmente renuncia à conversão dos índios, levando em conta também o fracasso colonial francês, já que os franceses não conseguiram se manter na Guanabara (a colônia de Villegagnon durou apenas cinco anos). Eu diria, usando uma fórmula familiar, que Léry, num certo sentido, “jogou fora o bebê com a água do banho”. Em seu relato, ele dá conta tanto da perda da colônia quanto da dos índios, perdidos do ponto de vista do desígnio divino. Léry afirma que os Tupinambá são “um povo maldito e abandonado por Deus ”. É uma frase extraordinária! Trata-se de uma condenação terrível, mas se o Tupinambá está perdido, por um lado, para a civilização e para cristianização, por outro, encontra-se salvo em seus “aspectos materiais”. Ele é, de certo modo, arrancado à história, mas mantido numa espécie de ucronia. O mesmo se passa com o que se chama “reflexo etnográfico”: o sonho do etnógrafo seria o de manter a sociedade que ele estuda numa espécie de atemporalidade, para preservá-la – aqui estou sendo um tanto polêmico. Neste sentido, o discurso do etnógrafo opõe-se ao do missionário que não hesita em alienar, em transformar, em corromper, eventualmente, a sociedade do outro, a fim de salvá-lo, fazendo-o renunciar aos seus costumes para integrá-lo à força na história. Andrea Daher: Sim. Para retornarmos à primeira questão sobre a representação do selvagem, na entrevista concedida por Lévi-Strauss, em 1994, ele é bastante claro em relação a essas representações partilhadas, digamos, de um selvagem bom. Em Léry, ele não reconhece exatamente a bondade do selvagem – talvez por perceber a condenação de que falávamos. Mas é principalmente através de Montaigne – que exerceu [sobre ele] a sua influência – que esta representação positiva é apropriada. Claro que a representação do bom selvagem, tornada mito no século XVIII, não é uma só peça e Lévi-Strauss mostra-se totalmente consciente disso. Como se dá o reconhecimento desse corps morcelé, desse corpo em pedaços, do bom selvagem, por Lévi-Strauss? Frank Lestringant: Temos de nos fiar no que diz Lévi-Strauss – é difícil, aliás, contradizê-lo, pois era tão astuto que tinha sempre um jeito ardiloso de sair das armadilhas que lhe eram colocadas. Mas, sim, é preciso compreender as coisas. “Bom selvagem” é um termo que não convém exatamente ao século XVI e se aplica melhor a um filósofo das Luzes – como Diderot, por exemplo – e menos integralmente a Rousseau. Quanto à diferença entre Jean de Léry e Montaigne, eu diria, para simplificar as coisas, que os Ensaios de Montaigne chegam dois anos depois da publicação da primeira edição do relato de Jean de Léry, de 1578. É provável que Montaigne tenha sido influenciado na sua evocação dos “canibais” que, na verdade, eram os Tupinambá do Rio de Janeiro. Mas, uma grande diferença é que Montaigne laiciza a história universal. Por sua vez, Léry – por mais moderno que seja, inegavelmente – não procede da mesma maneira. Frente ao outro, há também a sua própria presença, numa espécie de “cara a cara” entre o observador e o observado. Léry, com grande inteligência e um senso de reflexibilidade muito agudo, coloca em cena esse “cara a cara” que ora é um olhar cúmplice e amigável, ora uma relação de hostilidade. E por vezes, ambos: entre a hostilidade e a amizade sincera. Por isso, Léry é moderno, por um lado, embora a sua concepção de história fique sujeita à teologia. A história para Léry é marcada por grandes acontecimentos: a Queda, o Pecado Original, que é o ponto de partida da história humana, e, em seguida, a Paixão de Cristo e a Redenção da humanidade. Assim, tudo se dá em função desses dois grandes eventos: um que lança o homem na temporalidade, na história (a história é apenas a história das desgraças humanas); e o outro que resgata a humanidade dessa maldição. Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 163 Entrevista com Frank Lestringant Em relação a este segundo evento, tem-se a impressão de que os índios ficaram um pouco de lado, por mais que a Paixão de Cristo devesse também lhes dizer respeito. Em todo caso, é isso que entende Léry: ou os índios ignoraram, ou chegaram a receber o anúncio, porém esqueceram. Este esquecimento é o sinal de sua culpa e da maldição que sobre eles pesa. Esta é a lição final de Jean de Léry. Assim sendo, a história tem uma origem, um ápice e um termo que será o Apocalipse, o Juízo Final. E Léry pressagia a condenação desses povos, já condenados por toda a eternidade em função do dogma calvinista da dupla predestinação. Vocês sabem que, segundo Calvino, cada um de nós ou é salvo, ou é condenado; ou prometido ao paraíso, ou ao inferno, e isso por toda a eternidade. Portanto, todos somos predestinados: tal é a escolha eterna de Deus e nada pode modificá-la. Léry é indiscutivelmente calvinista. Montaigne é um cristão católico e isso já muda muito as coisas. Finalmente, esse cristão católico é um fideísta, ou seja, ele separa fortemente o que é do domínio da fé e o que é do domínio da razão. E a fé escapa à razão: o conhecimento de Deus nos escapa porque não está à altura do homem. Neste sentido, há uma frase muito forte na “Apologia de Raymond Sébond” [Ensaios, Montagne], no capítulo doze do livro dois, que é comentada por Lévi-Strauss em História de Lince:7 “Não temos nenhuma comunicação com o Ser”. O Ser é Deus, só ele é; nós não somos, estamos. Estamos no movimento, na metamorfose, naquilo que Montaigne chama “passagem” – a passagem de estado em estado. É mais fácil dizê-lo em português do que em francês, pois não temos dois verbos – ser e estar – em francês. Enfim, somos seres transitórios, de passagem, passamos de um estado ao outro, estamos entre a vida e a morte, o nascimento e a morte. Entre o nada, e passando de um para outro. Assim, a visão da história universal por Montaigne não é mais orientada conforme um esquema cristão, como em Jean de Léry, que vê a história a partir da perspectiva do infortúnio inicial ou da desgraça eterna. Em Montaigne estamos numa espécie de ciclo. Essa sua visão da história está bem representada no final do capítulo “Dos carros”, em que evoca a destruição dos impérios Asteca e Inca pelos espanhóis. Jean de Léry, por sua vez, é um teólogo, um pastor que prega (seu relato apresenta esse caráter de pregação, muitas vezes). Ele estava seguro de que a história se dirigia para o Apocalipse e para essa divisão entre aqueles que serão salvos e aqueles que serão condenados. Montaigne devia pensar da mesma forma, embora não o tenha dito, já que não se pronuncia sobre esse tema e arranca, digamos, a história à Providência divina. No capítulo “Dos carros” há uma meditação trágica e bastante grave: como é que crimes como aqueles, cometidos no Novo Mundo, foram possíveis? Mas, nesse mesmo capítulo, ele pronuncia uma só vez o nome de Deus. Terá Deus permitido? Não, foram os homens que produziram esse massacre. A Conquista, a destruição das Índias, é da responsabilidade dos homens. Esta é a diferença fundamental entre Léry e Montaigne. Para pensar a história, Montaigne propõe modelos que são mais mitográficos ou mitológicos, notadamente a Idade de Ouro, a República ideal, a República de Platão em seus avatares modernos, e outros. Portanto, temos formas, modelos, figuras, diria, laicos ou laicizados, profanos, em todo caso, para pensar a história. Para se falar de bom selvagem em Montaigne, me parece, que é no interior dessa história, não mais governada pela Providência, mas pensada através dos mitos, dos mitos antigos ou através dos filósofos antigos, como Platão. O mito platônico da Atlântida, por exemplo, foi descrito no capítulo “Dos canibais”. O paralelo entre a sociedade tupinambá e a sociedade espartana foi sugerido neste mesmo capítulo, em que a condenação à morte do prisioneiro tupinambá é comparada com o sacrifício de Leônidas, rei de Esparta que morreu nas Termópilas, com os 300 hoplitas, tentando bloquear o caminho para centenas de milhares de persas que invadiriam a Grécia. Portanto, estamos em duas configurações bastante diferentes, embora Léry e Montaigne sejam contemporâneos. Mas, finalmente, para Léry, toda a história humana é da alçada de Deus, do juízo de Deus. Evidentemente, Deus não é a causa do mal: ele deixa fazer o mal esperando a punição, no dia do Juízo Final. Para Montaigne, tal como se pode ler nesses dois capítulos sobre a América, “Dos canibais” e “Dos carros”, a história é de responsabilidade humana. Deste ponto de vista, Montaigne é, certamente, mais moderno que Jean de Léry. Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 164 Entrevista com Frank Lestringant Podemos discutir como Montaigne vê esses índios. Ele não foi ao Brasil, ele viu os Tupinambá em Rouen, talvez também em Bordeaux, pois havia índios na França. Mas ele representa a sociedade indígena – e a sua felicidade – através de modelos tradicionais, tais como a Idade do Ouro, que é a primeira das Idades, de acordo com Ovídio, em Metamorfoses. Em Geórgicas, de Virgílio, há também a Idade do Ouro seguida das idades de Prata, de Bronze e de Ferro, cada uma delas em crescente desgraça. A Idade de Ouro é uma época de felicidade perfeita: não há trabalho, nem doença, nem morte, passa-se o tempo a fazer amor e a colher os frutos que caem das árvores. Em seguida, com a Prata, se começa a navegar, a cultivar a terra e as preocupações avançam. Depois, com o Ferro, vêm as guerras. Estamos na Idade do Ferro. Por um lado, Montaigne tem, naturalmente, todos esses modelos em mente, e ele se diverte jogando uns contra os outros. Por outro lado, ele sabe que, na realidade, os Tupinambá não são exatamente pessoas da Idade de Ouro, já que combatem, fazem guerra, comem-se uns aos outros e têm técnicas ainda rudimentares. No capítulo “Dos canibais”, por exemplo, percebe-se que há contradições que Montaigne não resolve: ele deixa ao leitor o cuidado de dar conta da contradição entre os modelos dados a priori, de certa forma, e uma realidade que não encaixa completamente nesses modelos. Há, portanto, um jogo de peças que não se encaixam bem umas nas outras, um jogo deliberado, destinado a suscitar os questionamentos do leitor. Mas é por isso que levamos muito tempo a ler Montaigne: ele deixa o leitor pensar em seu lugar a partir de contradições que ele lhe propõe. Jean de Léry, por sua vez, tende a fechar o sentido. Andrea Daher: Léry é um moralista. Frank Lestringant: Sim, é muito moralista. Há um lado didático na obra de Léry. Andrea Daher: E dogmático. Frank Lestringant: E dogmático, sim: ele é um dogmático calvinista, é claro. Léry tenta convencer e seduzir o seu leitor, fazendo-o partilhar da sua visão, mas não o deixa livre para julgar de outra forma que não a dele. Por sua vez, em Montaigne, o texto termina, em geral, com uma questão, como no capítulo “Dos canibais”: “Quem dentre os homens pode conhecer o desígnio de Deus? Ou quem pode imaginar o que quer o Senhor?”. O capítulo termina assim, com uma brincadeira. E o leitor se pergunta: mas o que ele quis me dizer? Está zombando de mim, ou não? As duas coisas: ele zomba sem zombar, ele ri a sério, isto é, por detrás da brincadeira, há uma questão muito séria e profunda sobre a antropologia: o que é o homem? O que é a diversidade humana? Andrea Daher: Bem, precisamente, falando em Antropologia, há algo muito interessante em toda essa proposição de Lévi-Strauss: a ideia de uma antropologia anterior à Antropologia, anterior à disciplina, enfim, de uma etnografia anterior à Etnografia. Acho que essa ideia é onipresente na obra de Lévi-Strauss. Vimos que ele chega a lastimar que a Etnografia não tenha nascido com Léry, com Montaigne ou Thevet, no século XVI, quando da Aula Inaugural do Collège de France. Entendemos que esse “frescor” era justamente baseado “num olhar ao natural”, supostamente ingênuo. Frank Lestringant: Sim, supostamente ingênuo, ao passo que Léry não é de todo ingênuo! Andrea Daher: Então, em que consiste a proposição de uma antropologia baseada no olhar, “no olhar ao natural”? Ela tem “corpo” na proposta de Lévi-Strauss? Será que pode, de algum modo, se materializar em programas que conhecemos no século XX? É um projeto utópico? Marco Antônio Gonçalves: Você falou sobre a questão de Lévi-Strauss que estabeleceu o mito da origem da Etnografia (e do etnógrafo também). E da relação de Léry com a Antropologia. Acho que esta é uma questão muito interessante, porque não se trata unicamente do “olhar” de Léry, mas da próTopoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 165 Entrevista com Frank Lestringant pria produção de textos, no sentido da Etnografia moderna. Um exemplo disso é a ideia da consciência do etnógrafo de colocar o leitor na realidade descrita. Isso se percebe na construção do texto de Léry, ao dizer “eu vi”, “eu estive lá”, como um sentido do gênero, presente também no texto moderno. Frank Lestringant: Sim, isso foi o que chamei “dimensão reflexiva”, de alguma forma. Poderíamos opor Léry a Thevet – este é um paradigma muito cômodo, pois eles se opõem em muitos aspectos. Thevet fornece informações em estado bruto, com comentários nem sempre pertinentes, mas nunca interroga a sua própria presença frente ao índio. Thevet nunca faz a sua autocrítica, enquanto Léry, por vezes, assume que se engana. Ele escreve, em seu capítulo dezoito – que já comentei longamente –, sobre a hospitalidade dos índios, assumindo que se engana sobre as suas intenções. Narra um episódio em que, por exemplo, ao chegar numa aldeia, os índios começam a arrancar as suas roupas: um leva o seu chapéu, outro a sua casaca, a sua camisa... Então, ele começa a gritar, a se irritar, a perseguir uns e outros e, só depois, percebe que é um jogo, e que é sempre assim. Mais tarde, os índios devolvem as suas roupas e ele entende que é um pouco para se divertirem com ele. Logo, tem consciência de que há um problema de código, de códigos diferentes, e que ele só percebe parte da realidade que está diante dele. Percebe também que, na troca que ocorre entre eles, pode surgir todo tipo de mal-entendido. Lévi-Strauss se dá conta disso, completamente, em Tristes trópicos. Na famosa “lição de escrita”, retoma um desses mal-entendidos. É o episódio em que Léry assume que falhou, quando um índio ameaça matá-lo porque ele havia roubado, matado e comido uma galinha – uma perua, na verdade – que lhe pertencia. Um truchement [intérprete] lhe havia dito que não havia problema, se pagasse depois. Mas o dono da perua se zanga, ameaça-o e o considera como inimigo. Com esse episódio, Léry desenvolve toda uma reflexão sobre a relação com o outro, sobre a “operação etnográfica”: afinal, o que significa ir ao encontro do outro, comer a sua comida, fazer guerra com ele ou tentar convertê-lo? Tudo isso é posto em cena e representado por Léry. É isso que é importante. Há algo que encontramos também na Etnografia e que remete à “dimensão reflexiva”. Segundo Réal Ouellet, a narrativa de viagem é um misto de aventura e de inventário: uma aventura, isto é, uma narrativa de um homem que se desloca e que arrisca a sua vida, por vezes, através de provas, encontros, tribulações, acidentes, doenças etc.; um inventário, isto é, uma lista, um catálogo de curiosidades. Em todo relato de viagem há descrições mais ou menos romanescas e listas de objetos, de plantas, de animais, de minerais ou de costumes e de objetos etnográficos. Porém, há um terceiro aspecto na narrativa de viagem: o comentário. É como uma terceira dimensão, uma dimensão reflexiva, isto é, quando o viajante-escritor volta-se para si mesmo, ao retornar da sua viagem, e a comenta, acrescenta observações e reflexões. Léry não cessa de comentar o que disse, o que fez, o que viu, um pouco como Montaigne. É possível definir os Ensaios de Montaigne como um comentário sobre si; trata-se, em todo caso, do gênero “comentário”. Léry também escreve um tipo de comentário viático, um comentário sobre o seu relato de viagem, e seu livro, como o de Montaigne, será progressivamente aumentado. São cinco edições, todas num espaço de trinta e três anos – da primeira, em 1578, à última em 1611 –, constantemente acrescidas. Léry reescreve as frases que não considera bem escritas, as refaz, muda o tempo verbal, a concordância e acrescenta elementos. E acrescenta tanto que, no final das contas, o livro dobra de tamanho. Com Montaigne dá-se o mesmo. Os Ensaios têm, sabemos, três fases: 1580, 1588 e 1595. Andrea Daher: E o exemplar de Bordeaux. Frank Lestringant: Exato. Nos Ensaios de Montaigne, os mesmos capítulos por vezes dobram de volume. Especificamente, o “Dos canibais” e o “Dos carros” foram pouco aumentados, mas alguns capítulos foram consideravelmente modificados por incisos, pelo acréscimo de uma ideia, de um paralelismo. Léry procede um pouco da mesma forma, o que é também muito moderno: um texto que serve como suporte, como modelo de crítica, uma reflexão constantemente atualizada, um texto que nunca é concluído. Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 166 Entrevista com Frank Lestringant Andréa Daher: Quanto aos acréscimos e modificações de Léry, eles também estão relacionados às transformações do que poderíamos chamar de “ideologia calvinista”, que foram muito importantes nas últimas décadas do século XVI. Léry tenta acompanhar esse movimento. Frank Lestringant: Sim. E também à comparação que faz com outros viajantes. Andrea Daher: Então, voltemos ao “frescor” desses relatos ou de uma primeira Antropologia, que você afirma ser amplamente ilusório. Frank Lestringant: Sim, podemos dizer que Lévi-Strauss tem razão em falar de “frescor”, em certa medida, mas isso é da ordem de uma ilusão histórica. É verdade que as pessoas do século XVI viviam em um universo material, e talvez também moral e espiritual, muito mais próximo daquele dos índios do que nós. Havia uma distância cultural menor entre Jean de Léry e um índio da Guanabara do que entre Lévi-Strauss e um índio da Amazônia; isto é óbvio. Porque eram pessoas que viviam em condições difíceis, na ausência total de conforto, viviam no campo, em contato com a natureza, praticavam a caça, a pesca, cultivavam o solo. Essas eram as realidades imediatas para os viajantes. Léry não é um intelectual, é um sapateiro, um trabalhador manual, fazia sapatos. Portanto, ele compreende os gestos simples, o que também inclui os costumes. Léry certamente compreende os mitos muito melhor do que faz hoje um antropólogo que passou pelas universidades, pela Sorbonne, pela École Pratique des Hautes Études. Os homens do século XVI eram confrontados, igualmente, com condições de vida extremamente difíceis. A morte era onipresente. A doença também, portanto. E isso contribuiu, aliás, para a sua idealização do selvagem. Era observável que, no Brasil, as pessoas viviam melhor, eram menos doentes, que viviam mais tempo, provavelmente, do que na França. E nisso há, sem dúvida, uma parte de ilusão, mas não é de todo uma ilusão. Na Europa se vivia muito mal, se morria de fome e se tinha todo tipo de doença; o clima era terrível. O clima da Europa do século XVI era glacial: uma pequena “era glacial”, em que o rio Sena congelava; os rios em geral congelavam, segundo testemunhos que nos chegaram. Enfim, o clima era rigoroso e a natureza era muito hostil. Portanto, definitivamente, a relação estabelecida entre esses universos materiais, essas culturas materiais, determinou também todo o resto, é claro, fazendo com que houvesse uma proximidade muito maior. Além disso, essa palavra “frescor” faz pensar na ingenuidade, na utopia, na ucronia levistraussiana. É um mito de origem, uma gênese – gênese antropológica. De todo modo, o Renascimento também é um mito que Lévi-Strauss conscientemente retoma. O Renascimento nunca foi um “renascimento” – em alguns aspectos e em alguns domínios, sim –, mas foi também um período pavoroso. Andrea Daher: Gostaria de aproveitar a oportunidade da desconstrução do mito do Renascimento para voltar à formulação de Lévi-Strauss, em termos de “expiação” e de “renovação”. Em que medida isso pôde ser proposto por ele, nos anos 1960? Frank Lestringant: Lévi-Strauss fala nos seguintes termos: “[a Antropologia é] um empreendimento que renova e expia o Renascimento, para estender o humanismo à escala da humanidade”. O importante aqui é o que se entende por “homem”. O humanismo do Renascimento calcava-se numa concepção estreita do homem. Tinha por ideal os grandes homens da Antiguidade, como Sócrates, os filósofos, os oradores, e também os guerreiros, como Leônidas. Portanto, era uma imagem do homem fixada pelos Antigos e transmitida aos séculos posteriores por Platão, por Cícero, pelas tragédias gregas, ou ainda pelos historiadores, Heródoto, Tucídides, Tito Lívio e outros. Por isso, essa visão estreita e, numa certa medida, etnocêntrica da humanidade, que nasceu na Grécia e, em seguida, imigrou para Roma, mas que não considera a diversidade de raças, a diversidade formidável de culturas, ou seja, que considera certo tipo de humanidade. Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 167 Entrevista com Frank Lestringant Então, o que Lévi-Strauss propõe é expandir esse humanismo à totalidade da humanidade, portanto, trata-se de uma espécie de humanismo plural – é dessa forma que compreendo a frase. Acho muito bonita a fórmula e muito profunda a observação. Assim, para ele, o humanismo renascentista era estreito, posto que voltado para o passado, como uma espécie de sonho de retorno à Antiguidade. Mas isto é uma ilusão, pois o Renascimento fez outra coisa da Antiguidade, inventou a modernidade: ao pensar em retornar a Roma e a Atenas, os homens do Renascimento, na verdade, inventaram Florença, inventaram a Europa, inventaram o capitalismo. Eis o que se passa, afinal, quando se crê que a história da humanidade é a história das representações humanas ou dos grandes mitos históricos: produz-se uma série de enganos. Portanto, o termo “renascimento” é um tanto ambíguo, pois indica um progresso, mas, ao mesmo tempo, é um retorno. Em Lévi-Strauss há também a nostalgia de um regresso, esse sonho de um retorno. Os homens do Renascimento não acreditavam no progresso, pensavam que o apogeu da cultura, o optimum humano em todas as áreas – na filosofia, nas artes, na retórica, na pintura, na música e mesmo nos produtos científicos – já fora alcançado na época de Péricles ou de Augusto e que, portanto, era preciso reencontrar, renovar esse apogeu. Na verdade, como disse, o que aconteceu foi outra coisa. Enfim, a frase é muito rica, porque ela dá conta bastante bem do conceito de Renascimento, talvez com as ilusões e o engano que o termo comporta, mas que Lévi-Strauss percebia perfeitamente, é claro. Há mais uma coisa que poderíamos dizer e que já havia dito em relação a Montaigne: trata-se do paradoxo, das expressões paradoxais de Lévi-Strauss. Vê-se muito bem que ele era alguém que se divertia com as ideias, com o pensamento, e que tomava frequentemente a opinião contrária, às avessas. “Expiar o Renascimento”: dizer uma coisa dessas no Collège de France! O Collège de France é um produto do Renascimento. Foi criado por Francisco I, no início do século XVI, exatamente como símbolo de um novo ensino que rompia com a tradição escolástica. Criou-se o Collège de France contra essa instituição carcomida, ultrapassada e extremamente intolerante que era a Sorbonne. A Sorbonne era a faculdade de teologia medieval que se opunha ferozmente a todos os progressos, que se opunha ao estudo do grego e do hebraico, e que pretendia dizer a verdade em matéria religiosa. Era contra os evangelistas e contra Erasmo; onde se publicou o primeiro Index Librorum Prohibitorum, o primeiro catálogo de livros proibidos. E foi contra a Sorbonne que Francisco I, instigado pelo humanista francês Guillaume Budé, amigo de Erasmo, criou o Collège de France. Budé havia, inclusive, pedido a Erasmo que viesse a Paris, porém Erasmo recusou, pois desconfiava dos parisienses e dos reis da França. Assim, o Collège de France foi criado para restaurar o saber antigo, liberado de todos os entraves da religião. E é neste mesmo Collège de France que Lévi-Strauss evoca a expiação e a renovação do Renascimento, porque sabe muito bem que ele é um produto do próprio Renascimento. O Collège de France é uma instituição liberal – no bom sentido do termo. Ainda hoje é uma instituição estatal (na época era real e os reitores e professores eram regiamente pagos). Mas não fornece nenhum diploma, portanto, todos podem frequentar as aulas, pois é uma instituição absolutamente gratuita e livre. É maravilhosa essa ideia de um saber que se oferece de graça, sem fins lucrativos, de carreira, de aquisição de títulos, ou diplomas. E o Collège de France inaugurou, na França, o estudo de uma série de disciplinas, como o das línguas orientais, do árabe, do aramaico, das línguas semíticas, do grego. E tudo isso trouxe uma verdadeira renovação do conhecimento. Enfim, é nessa instituição, na sua Aula Inaugural, em 1960, que LéviStrauss lança como uma provocação a ideia de expiar e renovar o Renascimento. Isto é formidável! Dito isto, eu diria que ele é fiel de uma outra maneira ao espírito do Renascimento. É que o Renascimento é um período, como ele sabia e como sabemos, extremamente conturbado, de crescente intolerância, quando é perigoso falar, é perigoso escrever. Tanto Montaigne quanto Jean de Léry o sabem muito bem, pois todos aqueles que escreviam o sabiam. É possível, no entanto, que haja formas de linguagem, formas literárias, formas filosóficas que permitam ousar pensar, ousar algumas reflexões sem que haja comprometimento com o que está escrito. Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 168 Entrevista com Frank Lestringant Tive a ocasião de aproximar o capítulo “Dos canibais”, dos Ensaios de Montaigne, do gênero da “declamação”. A “declamação” é um exercício de desenvolvimento oratório sobre um determinado tema. Em geral, servia ao aprendizado dos advogados, aos quais era fornecido um processo imaginário, uma causa a defender. Inicialmente, a “declamação” é uma espécie de processo fictício, de discurso fictício no interior de um processo fictício. E, consequentemente, a “declamação” foi aplicada a temas abstratos, tais como a defesa da filosofia ou até mesmo o elogio da ignorância. Montaigne, por exemplo, faz o elogio da gota, pois sofria desta doença. Há outro elogio, em Montaigne, ainda mais audacioso: o do membro viril, do sexo masculino. É inenarrável! É, ao mesmo tempo, sério e cômico. Ele retoma a ideia da fábula “A revolta das partes do corpo”, narrada por Tito Lívio em História de Roma. Nessa fábula, os membros – os braços e as pernas – se recusam a funcionar, fazem greve. Eles se recusam a trazer comida para o estômago, dizendo que não é justo que toda a alimentação que trazem seja monopolizada por ele. E, de fato, o estômago se explica em sua defesa: é claro que é ele que recebe o alimento, mas se os membros fazem greve e deixam de alimentá-lo, vão acabar morrendo porque do estômago vem o sangue que permite os braços e as pernas agirem. Há uma circulação, uma solidariedade. E Montaigne retoma esta fábula, mas em vez do estômago, ele coloca o membro viril e imagina um processo – que é completamente uma “declamação” –, no qual os membros, as pernas, a boca, os pés, os cabelos etc. acusam o membro viril dizendo algo assim: “quem é esse? Ele faz qualquer coisa, desobedece quando se precisa dele, nunca se faz presente, se esconde, não se manifesta... Enquanto isso, nós, a boca, as mãos etc. fazemos o nosso trabalho quando somos solicitados. Em geral, os membros obedecem. Por quê? É uma vergonha!”. Então Montaigne imagina uma defesa em favor do membro. Apresenta-se como o advogado do membro e argumenta o seguinte: “não é verdade o que dizem, é claro que o membro viril desobedece o tempo todo – isso sabemos muito bem, sobretudo quando envelhecemos –, mas outros membros também desobedecem: muitas vezes, a boca se põe a falar sem ser perguntada; os cabelos ficam em pé quando se está com medo...”. Menciona o estômago, a indigestão, e até mesmo coisas mais impróprias. E tudo termina com um elogio: é normal que se perdoe o membro viril por sua rebelião, já que é graças a ele que o gênero humano pode se perpetuar; é graças a ele que o homem é eterno. Parece anedótico, mas não é exatamente. O capítulo “Dos canibais” contém o mesmo exercício. Não se trata somente de um exercício retórico, mas o que chamaria uma experiência de pensamento: uma ideia – paradoxal, de saída – é tomada e seguida até as suas consequências mais extremas para ver no que dá. Percebe-se que dá em coisas totalmente surpreendentes e audaciosas. E isso é próprio da “declamação”: o sujeito que escreve não subscreve necessariamente o que escreveu. No final do capítulo, Montaigne narra o seu encontro com três índios em Rouen, quando lhes pergunta o que eles pensam sobre o que veem. Eles respondem estarem escandalizados com o rei, Carlos IX – que tem doze anos –, por ser uma criança a comandar adultos. É a ordem natural invertida. Dizem também estarem chocados com os pobres que morrem de fome às portas dos ricos, sem que os ricos se ocupem deles. E os índios se espantam que os pobres não peguem os ricos “pela garganta” e não coloquem fogo em suas casas. De modo que Montaigne não diz o que deveria dizer ele mesmo, são os canibais que dizem: ele delega de alguma forma a sua voz para os selvagens. Como afirma Kirsten Mahlke, eles representam o papel do bufão, do bobo da corte que está nu diante de todos, que mostra o “traseiro”, para dizer coisas que um filósofo francês não poderia dizer. Assim, novamente, o canibal é útil. Andrea Daher: Mas creio que nesse episódio a figura central é a do truchement, o intérprete. Já escrevi muito sobre o selvagem dotado de palavra em relatos como o de Jean de Léry e Claude d’Abbeville. Com certeza, em Montaigne, o selvagem também é dotado de fala. Mas, no caso, Montaigne se mostra muito incomodado pelo intérprete, certo de que a tradução que faz não é fiável. Há, sobretudo, o lapso final, quando Montaigne afirma que os selvagens que encontrara em Rouen haviam dito três coisas: as Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 169 Entrevista com Frank Lestringant duas primeiras foram as que você narrou, sobre o rei criança e sobre a pobreza, e a terceira coisa Montaigne afirma tê-la esquecido! Bem, sabemos que os procedimentos de escrita permitem perfeitamente que se omitam os esquecimentos. Montaigne talvez indicie essa “terceira coisa” como uma palavra perdida, uma busca da origem perdida, lugar da pura oralidade, esquecida. Mas, no centro do episódio, há sempre o constrangimento do papel do intérprete, mal desempenhado, impedindo a realização plena da oralidade. Talvez essa figura seja mais importante, emblematicamente, neste caso, do que a do selvagem dotado de palavra. Afinal, é o intérprete, apesar da sua incompetência – ou por conta dela – que permite certo efeito de presença, de realidade da cena. Frank Lestringant: Sim, podemos dar múltiplos sentidos à palavra do intérprete. Eu havia interpretado inicialmente como o fato de destacar a dificuldade de comunicação; isso resulta efetivamente numa espécie de efeito de presença, num efeito de realidade. A partir do momento em que Montaigne afirma ter esquecido uma das três coisas, o leitor não pode mais duvidar um só instante da realidade do diálogo. Isto é muito forte, porque se ele tivesse narrado as três coisas que disseram, então poderíamos pensar: “será que isso é verdade? Será que é falso?” Não saberíamos. Mas, a partir do momento em que Montaigne diz ter esquecido uma das três coisas que disseram, então acreditamos no que diz. Isto é fabuloso! Tive uma discussão com Michel de Certeau sobre isso; era assim que ele interpretava também essa passagem. O efeito de real é uma falha, efetivamente, uma falha de comunicação e é por isso que, como você diz, o intérprete é importante entre um e outro. É essa falha que confirma a comunicação, o que é completamente paradoxal: falta algo de essencial que faz com que haja algo a mais. Há uma segunda forma de interpretar esta passagem, proposta por um colega americano, George Hoffman, que é discutível, mas muito interessante. Ele considera que a terceira questão que Montaigne diz esquecer seria a questão religiosa. Isto porque a primeira questão é a política; a segunda, a social, e a terceira seria a questão religiosa... Andrea Daher: Sobre a qual Montaigne talvez quisesse, intencionalmente, se calar... Frank Lestringant: Sobre a qual ele não quer dizer nada, é claro, porque é uma questão muito séria e muito perigosa. E, seja o que for, a questão esquecida nos faz falar, de qualquer jeito... Enfim, creio que esse processo da “declamação” encontra-se também em Lévi-Strauss, em Tristes trópicos, por exemplo, na famosa passagem da “lição de escrita”, criticada por Derrida. Creio que seja uma “declamação”, pois segue um paradoxo inicial, no qual Lévi-Strauss não acredita totalmente – afinal, é aberrante dizer que a escrita só trazia desgraça. Ele toma o contrapé de uma verdade reconhecida, de uma verdade outrora reconhecida. Andrea Daher: Mas, como você mesmo sugere, era, em parte, uma provocação... Frank Lestringant: Sim, é uma provocação, mas o jogo tem um valor heurístico, não é um jogo gratuito. A cada vez que li a “lição de escrita”, fui marcado pelo riso de Lévi-Strauss. Nas fotografias, eu via um homem sério, severo, mas de jeito nenhum: era alguém engraçado, que provocava e era muito irônico, embora houvesse nele uma certa melancolia. Notadamente no final de Mitológicas,8 ele evoca uma terra sem homens, uma terra que continua a girar em espaços infinitos, uma terra em que a humanidade se apagou, como uma imagem ao mesmo tempo serena e terrível. Mas lembrar o seu riso e a sua ironia é prestar-lhe uma homenagem final: esse não era um homem triste. Tradução: Aldilene Marinho Cesar Revisão técnica e edição: Andrea Daher Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 170 Entrevista com Frank Lestringant Notas LÉRY, Jean de. Histoire d’un voyage fait en la terre du Bresil. Genebra: A Chuppin, 1578 [1a edição]; THEVET, André. Les singularitez de la France Antarctique, autrement nommée Amerique... A Anvers, Chez les heritiers de Maurice de la Porte, 15571558. Traduções brasileiras dos anos 1940 foram reeditadas na década de 1980, porém diferem em muitas passagens dos textos originais: LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980; THEVET, André. Singularidades da França Antártica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987. 2 LESTRINGANT, Frank. O Canibal. Grandeza e decadência. Brasília: Editora UnB, 1997. Tradução brasileira. 3 LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Tradução brasileira. 4 Entrevista de Claude Lévi-Strauss a Dominique-Antoine Grisoni, publicada em introdução a LÉRY, Jean de. Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil. Paris: LGF, Bibliothèque Classique, 1994. 5 Claude Lévi-Strauss. Centième anniversaire. Lettre. Hors série, no 2, novembro, 2008. 6 LESTRINGANT, Frank. Jean de Léry ou l’invention du sauvage. Essai sur l’ Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil. Paris: Honoré Champion, 2005. 7 LÉVI-STRAUSS, Claude. História de Lince. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Tradução brasileira. 8 LÉVI-STRAUSS, Claude. Mitológicas. São Paulo: Cosacnaify, 2004-2009, 4 volumes. Tradução brasileira. 1 Topoi, v. 11, n. 20, jan.-jun. 2010, p. 159-171. 171