LEVRERO IDIORRÍTMICO
IDIORRHYTMICAL LEVRERO
Antonio Marcos Pereira
Universidade Federal da Bahia
Salvador – Brasil
Resumo
Nesse ensaio busco explorar algumas ressonâncias entre a noção/o conceito de
“idiorritmia”, formulada por Roland Barthes em seu Como Viver Junto, e a produção
tardia do autor uruguaio Mario Levrero, concentrando a atenção em particular
sobre El discurso vacio e La novela luminosa. A conversação entre os dois, ainda que
tangencial, reforça uma alternativa de leitura distinta da que percebo como uma
padronagem interpretativa que se acomodou em torno da obra de Levrero, e permite
valorizar uma certa operação de deslocamento em seu trabalho, relacionada à política
do cuidado de si que a escrita de tais textos promove.
Palavras-chave: Idiorritmia, escrita de si, Barthes, Levrero.
Abstract
My aim in the following essay is to
explore some ressonances between the
notion/concept of “idiorrhythmy”,
formulated by Roland Barthes in his
How to Live Together and the late works
by the Uruguayan author Mario Levrero,
focussing particularly on El discurso
vacio and La novela luminosa. The
conversation between these two authors,
though somewhat tangential, reinforces
an alternative to the sort of standard
reading of Levrero, and highlights a
certain operation of displacement in his
work, which is related to the politics of
the care of the self that the writing of
such texts promote.
Resumen
Mi objetivo en el siguiente ensayo es
explorar algunas ressonancias entre la
noción/ concepto de “idiorrhytmy”,
formulada por Roland Barthes en su
libro Cómo vivir junto, y las últimas
obras del autor uruguayo Mario
Levrero, centrándose particularmente
en El discurso vacio y La novela
luminosa. La conversación entre estos
dos autores, aunque algo tangencial,
refuerza una alternativa a una especie
de lectura estándar de Levrero, y permite
destacar una determinada operación de
desplazamiento en su obra, relacionada
con la política del cuidado del yo que
la escritura de dichos textos promueve.
Keywords: Idiorrhytmy, Self-writing,
Barthes; Levrero.
Palabras claves: Idiorritmía, escritura
del yo, Barthes, Levrero.
ALEA | Rio de Janeiro | vol. 20/2 | p. 137-146 | mai-ago. 2018
ANTONIO MARCOS PEREIRA | Levrero idiorrítmico
https://dx.doi.org/10.1590/1517-106X/2018202137146
I
O movimento de abertura de Barthes em seu curso “Como viver junto”
sempre me pareceu curioso. Em se tratando de Barthes, a inflexão peculiar
não é de causar estranheza, mas sim desejo de saber como, na deriva que
se sedimenta no curso afinal exposto e publicado, a coisa fixa seu ponto de
partida em uma zona tão fora da curva quanto os monges do Monte Atos,
tradições do monasticismo antigo e afins. Há algo de um legado clássico ao
qual Barthes recorre, aqui e ali, mas discretamente – e aqui há certo vagar,
como se essa deambulação produzisse, fosse necessariamente produzir (e, de
fato, termina por produzir) seu próprio encaminhamento e “progresso”. Seja
como for, o ponto, digamos, argumentativo, que continua estimulando minha
curiosidade, e aqui me confere a oportunidade de dar entrada neste ensaio,
é o abraço da noção de idiorritimia como pontapé inicial para explorar o
“como viver junto”. Haverá o momento de alguma reflexão sobre o coletivo,
sobre arranjos de convivialidade – mas vamos começar pela investigação
do particular, do próprio, do idios. E lá vai Barthes, em plena aventura
etimológica, concluir que “Idiorritmo, quase um pleonasmo, pois o rhythmós
é, por definição, individual: interstícios, fugitividade do código, do modo
como o sujeito se insere no código social (ou natural)”, e que essa definição
remete às “Formas sutis do gênero de vida” (Barthes, 2013, p.16).
Deixando de lado algumas questões de exegese barthesiana, que mesmo
nesse trechinho pedem comentário (por exemplo, a ideia de que “por definição”
seria suficiente para condicionar o uso, que vinda de Barthes parece cortejar
nosso riso, ou a circunscrição das “formas sutis”), acredito que a noção de
“idiorritmo”, tal como aí apresentada, aponta para algumas peculiaridades da
produção tardia de Mario Levrero. A coabitação crítica dos dois, ao que me
consta ainda não faturada, é parte do que quero sugerir aqui, considerando
que esse laço, em que pese alguma anomalia, talvez seja capaz de produzir um
deslocamento rentável no manuseio da produção de Levrero, que leio como
autor investido na invenção de uma poética da idiorritimia, e na negação
de formas canônicas de cuidado (e escrita) de si. Operando a partir de uma
matriz que, na falta de palavra melhor, chamarei de “mística” – mas em uma
versão muito própria e bastante laicizada –, certa fluidez, certo improviso,
certo pathos típico da produção tardia de Levrero afirmam uma possibilidade
de vida.
No que segue, passo por uma exposição de certos aspectos dessa poética,
tentando valorizar a forma da inscrição que ela realiza como uma estratégia
de deslocamento discreto com relação à percepção do “literário” – do que faz
a literatura, do que fazemos com ela. Tal gesto, por sua vez, me parece uma
manifestação antagônica a uma configuração “autoritária” de engajamento,
subsidiária de uma escatologia precisa e dada e portanto advogada de uma
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teleologia do político. Há uma captura específica desse antagonismo nos
textos finais de Levrero, e me ocupo aqui de tentar expor como percebo isso,
e qual o dado afirmativo que encontro neles.
II
Levrero, a partir de meados da década de oitenta, momento em que
produz seus “Apuntes buenaerenses” e o Diario de un canalla, começa a investir
em anotações e diários como estruturantes de sua narrativa, em uma deriva
que já foi descrita como a do afastamento gradual da ficção e aproximação
cada vez mais intensa da autobiografia. Nesse processo, se afasta daquilo que
mais chamava a atenção em sua produção narrativa anterior – uma ficção
marcada por alguma medida de fantástico, ou de certa ficção científica, ou
de kafkianismo – e se aproxima de estratégias narrativas que circundam,
exploram e tematizam o eu. Sai o desvio do real, entra o banal, o cotidiano,
e em especial as vicissitudes da identidade, e os custos de sua sustentação.
É assim que Levrero segue, mais ou menos a partir do momento em que se
muda para Buenos Aires, por volta de 85, até sua morte, em 2004, já tendo
retornado a Montevidéu: são umas oitocentas páginas de texto publicado,
uns vinte anos de anotações em diários meio erráticos. Os livros apresentam
entradas que obedecem em forma à estrutura de datação e sequência, e assim
atendem a certas expectativas que temos com relação ao gênero diário. Em
igual medida, todavia, passam ao largo de expectativas de leitura: elisão quase
total do universo da confissão ou da vida íntima compreendida enquanto
mundo do segredo. O que aparece com mais proeminência, atravessando os
vários projetos, é certo interesse em explorar a transformação de si mesmo
por uma poética da anotação.
Essa passagem parece indicadora de uma espécie de falência da
imaginação, da capacidade inventiva: um escritor abdica de imaginar e começa
a anotar, substituindo em sua literatura a invenção de outros sujeitos, espaços,
situações por uma espécie de contínuo investimento no registro do que lhe
ocorre, e trocando o laboriosamente criado pelo meramente experimentado.
Mas há uma ressonância aqui com problemas barthesianos, indicados no
Preparação do Romance, uma vez que a anotação não é apenas “registro”, e seu
lugar não é o da zona de passividade que habitualmente relegamos ao escrito,
como resultado de uma operação do intelecto e da sensibilidade que finda em
escritura. Há um empenho na escrita como propiciadora de transformação,
de mudança de quem escreve. Mudança matizada, mas inclinada para um
desenvolvimento que serve de ponto de fuga para toda essa produção: Levrero
havia, no início dos anos oitenta, iniciado a escrita de um livro, ao qual
chamaria de La novela luminosa, voltado para a narrativa de um conjunto
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de experiências sui generis. Qualificadas pelo autor como “luminosas”, tais
experiências teriam lugar na fronteira do sobrenatural, todas marcadas por um
momento em que a sensibilidade se tornou mais sutil, mais aguda: momentos
marcados pelo alcance de uma percepção especial.
Desse livro ele produz alguns capítulos mas depois deles, por conta de
coisas da vida (uma cirurgia, uma mudança), se descola, e ao retomar o projeto
não consegue mais escrever. Essa dificuldade o move e faz emergir sua escritura
diarística: suas anotações serviriam como instrumento de transformação, como
a estratégia que ele desenvolve para convocar o retorno daquela sensibilidade
particular, que julga perdida. A escrita do diário, seu caráter comezinho,
cheio de reiterações e repetições, é a matriz na qual se forja um esquema de
observação de si mesmo e cujo alvo é a transformação de si mesmo.
Seria talvez um caso de “literatura como performance”, ou de uma
exploração das implicações pragmáticas de gestos e posturas que emergem e
se fazem como parte dos afazeres que subsumimos no rótulo de “literatura”.
Aqui teríamos uma instância disso, uma investida em um gesto, o de escritura,
em uma prática, a da escrita cotidiana e do cotidiano, como constitutivas da
“performance” da anotação em Levrero. Em sua forma mais radical, em El
discurso vacio, assumiria a função de uma “autoterapia grafológica”, na qual
a produção de alterações na própria caligrafia resultaria, supostamente, em
mutações na própria identidade: pouco importando o conteúdo, importaria a
capacidade de manter a forma da letra em uma espécie de estado de felicidade
enquanto desenho de letra, potência de legibilidade. A atenção depositada na
caligrafia – na dimensão mais artesanal da letra, e certamente a mais irrelevante
para nosso entendimento habitual da autoria – conduziria à transformação
do que se pode escrever na medida em que transforma quem escreve, em um
fluxo da atenção que repousa sobre a forma na capacidade do conteúdo. Um
trecho, frequentemente citado, cabe ser revisitado aqui:
28 de octubre
Prosigo, tratando de desarollar temas poco interesantes, inaugurando tal vez
una nueva época del aburrimiento como corriente literaria. Hoy comencé, hace
dos renglones, com una letra de tamaño muy grande, la que em el segundo
renglón se redujo bastante. ¿Por qué se redujo? Por que empecé a prestar
atención a la forma de continuar la frase que había comenzado, queriendo
evitar incoherencias. Y la conclusión es que, limitada como es, mi atención
no puede ocuparse de dos cosas distintas. Aquí lo prioritario es la letra y no
el estilo, de modo que las incoherencias están permitidas. Afloja la tensión,
muchacho, y dedícate a tu laboriosa tarea de dibujo. No es fácil olvidarse de
la necesidad de coherencia. Aunque después de todo la conherencia no es
más que una compleja convención social. Sospecho que la frase anterior es
una gran mentira, pero ahora no tengo el derecho de ponerme a analisar esas
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cosas. Otras cosas, tampoco. Debo caligrafiar. Debo permitir que mi yo se
agrande por el mágico influjo de la grafología. Letra grande, yo grande. Letra
chica, yo chico. Letra linda, yo lindo. (LEVRERO, 2009, p. 36)
Uma espécie de magia simpática, alterando o nexo imediato entre o
gesto e o sujeito que o executa: Debo caligrafiar. Debo permitir que mi yo se
agrande por el mágico influjo de la grafología. Letra grande, yo grande. Letra
chica, yo chico. Letra linda, yo lindo. Alejandro Zambra (2013) comenta
esse trecho apontando que aqui não se pretende concretizar o “livro sobre
nada” que ambicionava Flaubert (ou que talvez pudesse ser lido em Prosigo,
tratando de desarollar temas poco interesantes, inaugurando tal vez una nueva
época del aburrimiento como corriente literaria), nem clamar pelo retorno de
um método surrealista de produção literária (o que talvez pudesse ser lido em
las incoherencias están permitidas. [...] No es fácil olvidarse de la necesidad de
coherencia. Aunque después de todo la conherencia no es más que una compleja
convención social). Aqui se trata, diz Zambra, de “indagar a relação entre letra e
personalidade”, de acolher a formulação – algo entre o ridículo, o implausível
e o infantil e no limiar do pensamento mágico – que indica Letra grande, yo
grande. Letra chica, yo chico. Letra linda, yo lindo.
Essa inversão no fluxo de causalidade implica em provocação para a
crítica. Não estamos acostumados a contemplar a possibilidade de uma escrita
de si que almeje menos a fixação do sujeito do qual ela se origina e mais sua
transformação pela operação de escrita que a constitui. Nosso encaminhamento
hermenêutico padrão tende a supor uma entidade prévia, origem e causa do
que se dá a ver no texto; e, quando examinamos as poéticas dos gêneros (auto)
biográficos, estamos nos remetendo ao espaço de artifício e invenção que
dá conta da rota entre a suposta vida subjacente ao texto e o que é narrado,
tentando entender como é narrado, e especulando sobre escolhas, opções do
artífice/autor na manipulação de seus recursos. Em Levrero, estamos diante
de algo que participa do domínio da escrita de si, mas que ao mesmo tempo
dirige nosso pensamento para um destino que, embora sempre um pouco
insinuado na reflexão, ainda parece inusitado: é a sugestão de que o ato de
escrever muda quem escreve. Aqui, talvez fosse o caso de pôr em xeque o
entendimento que supõe um espaço prévio de flutuações do espírito em
que se maneja a ideia-mãe que apenas irá se plasmar no escrito. Dar conta
do escrito, parece dizer Levrero, é fazer um negócio consigo mesmo, e se
conduzir a outro lugar.
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III
Considerando que aí se manifesta certa política do conhecimento
da literatura – ou, pelo menos, dessa literatura –, aparece o gesto de anotar
como problema epistemológico, estético, ético. Há uma consideração sobre
a produção de arte especificada nesse projeto que se realiza em nossa leitura
dessas anotações, dessas entradas de um diário que quer abdicar de dizer, quer
acolher o pouco interessante, quer abrir mão mesmo da coerência: tudo em
benefício de uma reforma moral. A anotação – forma miúda e esquecida,
quase sempre privada – ganha o centro do palco aqui: essas narrativas evocam a
possibilidade de um entendimento em que processo e produto não são alijados
um do outro. Isso é o que reza certa tradição, que nos forma inclinando nossos
procedimentos de produção do saber a apagar a própria historicidade, elidir
as pegadas que indicam a passagem e a rota cumprida que resulta, sempre de
maneira pro tempore, no que se apresenta, em um produto. Aqui, processo é
produto: Letra linda, yo lindo.
Ao divulgar esse trabalho pela descrição e análise, subjaz um ímpeto
de disseminação, um desejo de que algum interesse apareça na audiência, e
que esse interesse se traduza em frequentação, comunicação, conversação e
discussão. Isso é meio o feijão com arroz do que fazemos em crítica, e é de tal
forma trivial, que raramente aludimos ao trabalho de propaganda e comércio
de ideias, um dos resultados da investigação literária profissionalizada. Você é
capturado por uma invenção, que mobiliza seu interesse: nela investe tempo
e atenção, e isso em algum momento se volta à tentativa de incrementar o
fluxo de interesse em torno do que lhe mobilizou. Nesse envolvimento, a
obra ao mesmo tempo continua e se transforma: as leituras engendram efeitos
no campo, o caudal interpretativo se avoluma (ou eventualmente deixa de
se avolumar, e se dissipa).
Aludo a isso, à contribuição da crítica nessa descrição sem qualquer
sofisticação, justamente porque a outra coisa que me interessa comentar a
respeito de Levrero é uma evocação desse processo ocorrendo em torno de sua
produção, caracterizado, como qualquer outro dessa natureza, pela reiteração
de certas saliências de leitura que vão trafegando de crítico a crítico.
Isso combina com certo modo vetusto de conduzir a crítica, talvez
alojado de maneira mais flagrante nos momentos em que caberia dizer algo
sobre o “modo de ler” que escapasse à nossa lógica costumeira de construção
do argumento em estudos literários, nos quais via de regra a crítica se justifica
enquanto pedagogia, e se faz dizendo o que a obra diz. O que fiz, até agora, foi
basicamente isso: contextualizar, resumir, apontar um sentido que a operação
de escrita em que estou envolvido quer valorizar. Mas o que não para de
me chamar a atenção na construção de um comentário sobre a produção
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de Levrero é que, seguindo ao que parece uma instrução do próprio autor
– lembrando a citação de El discurso vacio: Prosigo, tratando de desarollar
temas poco interesantes, inaugurando tal vez una nueva época del aburrimiento
como corriente literaria –, certa crítica1 parece presa de uma lógica que, para
confirmar o interesse da obra, precisa reafirmar sua capacidade reduzida de
ser interessante enquanto experiência de leitura.
Destacarei apenas um momento de um notável e agudo comentário,
que é quando Reinaldo Laddaga (2013, p.233) resume La novela luminosa
(LEVRERO, 2005) dizendo “Esto nos queda, si es que sustuvimos nuestra
lectura. Y esto, Levrero sabe, no es fácil.” Como assim, “não é fácil”? O drama
crítico manifesto nessa afirmação de Laddaga parece ser que, para mostrar como
Levrero é interessante (no sentido da pegada surpreendente que se constata
nesses seus projetos finais, que levados a sério nutrem reflexão e estimulam
produção crítica), é preciso reafirmar que o que ele escreveu não é interessante
(no sentido de ser uma experiência de leitura tediosa, repetitiva, “sosa”).
Compreende-se: de maneira vulgar, dizemos que, no que tange ao
romance, cortejamos a peripécia, ambicionamos incidentes. Atenuada a
oferta da peripécia, a leitura tende a sugerir o tédio como estado necessário do
leitor, e uma formulação como a que Barthes indica com relação ao Robinson
Crusoé seria excepcional: “Quando os acontecimentos ocorrem na existência
solitária de Robinson em sua ilha […], isso perturba meu prazer de leitor, isso
me aborrece” (BARTHES, 2013, p.164). Na sequência, aparece o que mais
interessa, como ponto de contato ou ressonância entre a idiorritmia aludida
por Barthes e o que julgo realizado por Levrero: “Fantasiar o Viver-Junto
como cotidiano: recusar, rejeitar, vomitar o acontecimento. O acontecimento
é o inimigo do Viver-Junto” (p.164-5).
Pois o que o romance (“novela”) de Levrero nos oferece à guisa de
incidentes são operações à primeira vista demasiado corriqueiras e ordinárias
para merecer literatura, merecer romance. Um velho, lubrico e obsessivo,
recebe uma bolsa que lhe permite abdicar de certos trabalhos e se dedicar
prioritariamente à escrita de um romance. Seu cotidiano, que lemos, é marcado
por horários anômalos (vai dormir às quatro, cinco da manhã, acorda uma, duas
da tarde), pelo uso principalmente lúdico do computador, pela observação de
um conjunto de pombas que se aloja no telhado da casa adjacente ao prédio
onde vive. Há outras coisas, e sua presença na crítica vai variar a depender
do grau de microscopia utilizado ou do argumento almejado: a história de
1 “Certa crítica” é assumidamente vago, e assim deve ser, sob pena de transformar esse ensaio em um
recenseamento de recepção. O que quero dizer aqui é que vejo essa manifestação sedimentada, em
vários graus de espessura, em ensaios coligidos por De Rosso (2013) e Bartalini (2016), e que tomarei
Laddaga como metonímia desse protocolo meio generalizado de leitura que reitera “Lemos, mas não
há nada a ler”, “Lê-se, mas é chato” ou, como indico com mais precisão adiante, “Interessa porque não
pode nos interessar”.
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amor com Chl pouco me ocupará aqui, mas está lá, e é tão radical quanto a
meticulosa descrição de um fantasma (ou, melhor dizendo, da experiência de
vislumbrar o que Levrero supõe ser um fantasma), que também está lá. Há
ainda o lembrete de que aqui, como no caso de El discurso vacio, se escreve
para alcançar um objetivo de transformação de quem escreve. Neste caso, o
problema seria convocar um estado de espírito afim àquele que propiciou
a redação de alguns capítulos de um livro, redigidos muito tempo antes,
chamado La novela luminosa e, instalada a vibração específica que caracteriza
aquela sensibilidade anterior, recuperar a escrita do livro, concluí-la. Esse
problema já está, com matiz ligeiramente distinto, no livro anterior: reconstruir,
escrevendo, a condição – material, moral, disposicional, sensível – de escritura
que foi perdida. Dito de outra maneira: ser a pessoa capaz de escrever aquilo
que escrevia antes. Algo ingênuo: acaso se entra duas vezes no mesmo rio?
Que espécie de recuperação Levrero pode almejar alcançar? O que é, afinal,
esse escrever para conseguir escrever?
Não tenho respostas, em particular porque quero me concentrar em algo
que, creio, nega certa imposição da ideia de que é simples e necessariamente
tedioso o que se lê. Trata-se de um artifício de dobra da narrativa que me
chama a atenção, e que me faz querer ponderar mais, salvo engano ponto
cego da crítica ao romance que já frequentei. Como mencionei, um tema
em La novela luminosa é a observação continuada feita pelo narrador de um
conjunto de pombas que habitam um telhado próximo a seu apartamento:
de tal maneira o tema da pomba é presente no romance que em seu epílogo
são registrados os destinos das pombas, e as capas das edições de Mondadori e
Alfaguara, não à toa, ostentam pombas. Há exploração, apalpada brevemente
por Kamenszain (2016) mas ainda por ser feita mais detalhadamente, da
relação com os animais nesses livros tardios de Levrero. Há o camundongo
e o pardalzinho personagens de Diário de un canalla, o cachorro Pongo e
suas aventuras em El discurso vacio, e as pombas de La novela luminosa, às
quais Levrero atribui relações familiares (uma delas morre, e seu cadáver
continua no telhado, em gradual decomposição: Levrero trata uma das
pombas remanescentes de “A Viúva”), sobre as quais especula e com as quais
de alguma maneira convive. Em um dado momento, após muitas observações
das pombas, se dá conta de que
Esta presencia de pájaros caídos se fue transformando en el tema
principal de lo que estaba escribiendo, caso una crónica minuto a minuto
de los acontecimientos que se producían en el fondo de mi casa. Entendí
que essa epifanía de pájaros tenía un carácter simbólico; lo cierto es que a
veces la realidade objetiva se hace presente com un fuerte carácter simbólico.
Y entendí que de algún modo había provocado esos sucesos por el hecho de
haberme puesto a escribir. (LEVRERO, 2005, p. 197)
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Se antes, em El discurso vacio, o propósito era o de escrever de tal maneira
a provocar uma mutação pessoal, aqui acontece a inversão da ordem causal.
Permanece a potência transformadora da escritura, mas agora é o mundo
das pombas, o universo exterior que se desloca por força e obra da escrita: de
algún modo había provocado esos sucesos por el hecho de haberme puesto a escribir.
Como qualificar isso? Absurdo, que deve ser descartado, ou algo
razoável, que deve ser examinado, e em alguma medida posto à prova? Essas
produções de Levrero reiteram um entendimento do universo que o transforma
em algo acolhedor ao sutil: acolhedor a ponto de permitir que essa matéria
que resumimos chamando de “mundo”, quase sempre tomada como hostil,
cega, infensa ao sensível, seja transformada pela atenção e pela escrita. Ao
desestabilizar um pouco a solidez atribuída por nós ao significante “mundo”,
ao considerar que isso tenha alguma ordem de plausibilidade, mesmo que
interna a um mundo semificcional, Levrero avança em uma metafísica que
de certa forma recupera uma matriz de misticismo hippie, uma sugestão de
revolução interior com impacto exterior.
Acabei de escrever o trecho acima e faço uma pausa, por acreditar ser
necessário redescrever o já dito, ou matizá-lo, para em primeiro lugar afastar
o discurso um pouco de sua aparente breguice, e na sequência descolar o que
ambiciono comunicar desse evangelho aparentemente imortal que sugere que
a literatura torna as pessoas melhores. Nada mais longe daqui, creio: não quero
dizer que o livro me tornou melhor, que tendo lido La novela luminosa me
tornei, eu, uma pessoa “luminosa”, boa, sã (que “a literatura me salvou”). Há
uma forma que me parece ainda pior: a que sugere que devem ler o livro pois
assim se tornarão também melhores – o que quereria dizer algo como “mais
parecidos comigo”, “mais próximos de minha visão de mundo e de minha
sensibilidade”. O que queria dizer é que, de maneira paralela à mudança
de mundo que Levrero atribuiu à escrita, indicando que a certa altura sua
investida torna patente que lo cierto es que a veces la realidade objetiva se hace
presente com un fuerte carácter simbólico, a leitura desses textos engendrou
uma convivência particular que me deslocou.
Assim, malgrado a suposta falência do projeto tantas vezes declarada
por Levrero em seus livros, dou aqui testemunho de uma ordem, modesta, de
sucesso. Se o narrador não se transformou o suficiente a ponto de recuperar
o acesso à versão específica de disponibilidade existencial que ele chama de
“luminosa”, algo dessa perseguição se depositou em mim – não como solução
ou resposta, mas como continuidade do problema da construção de uma
disponibilidade moral particular, ou de uma forma específica da atenção,
que é forjada em ressonância a uma prática de escrita de muito baixo teor de
protagonismo na cultura, bastante débil enquanto argumento, quase delirante
em suas hipóteses de fundo a respeito de fluxos causais.
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O que “prega”, essa alternativa? Uma forma discretíssima de inscrição e
exposição, uma estetização do cotidiano privada de qualquer espetacularidade,
uma vez que fruto de uma investida consistente da atenção no mínimo. Talvez
uma forma da idiorritmia como conquista e preâmbulo para o “viver junto”,
a negação do modo autoritário, capturado por Barthes (2013, p.19) na mãe
que arrasta o filho e que ele configura como “a disritmia, a heterorritmia”. A
ordem dramática e política que me parece seguidamente reencenada nesse
trecho final da produção de Levrero funciona, como diz Laddaga (2013,
p.235), tal qual “la luminosidad difusa que impregna un ámbito frágil y
entreaberto”.
Referências bibliográficas
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Varlotta Levrero y su literatura. Saenz Peña: EDUNTREF, 2016.
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Cursos e seminários no College de France, 1976-1977. São Paulo: Martins Fontes,
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KAMENSZAIN, Tamara. Una intimidad inofensiva. Buenos Aires: Eterna Cadencia,
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LADDAGA, Reinaldo. “Un autor visita su casa. Sobre La novela luminosa de Mario
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Ensayos sobre la obra de Levrero. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2013.
LEVRERO, Mario. La novela luminosa. Montevideo: Alfaguara, 2005.
LEVRERO, Mario. El discurso vacío. Barcelona: Debolsillo, 2009.
ZAMBRA, Alejandro. “Cuaderno, archivo, libro”. Revista Chilena de Literatura
Número 83, Abril 2013: 243-252
Antonio Marcos Pereira fez o doutorado em Estudos Linguísticos na Universidade
Federal de Minas Gerais e é professor de Literatura Brasileira na Universidade Federal
da Bahia.
E-mail: antoniomarcospereira@gmail.com
Recebido em: 14/09/2017
Aceito em: 30/11/2017
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