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Entrevista Fernando Bouza* A história de Portugal dos séculos XVI e XVII e, mais amplamente, a história cultural da Europa moderna no que diz respeito às formas de comunicação, de conhecimento e de memória foram os objetos privilegiados pelo trabalho do historiador Fernando Bouza, titular de História Moderna da Universidade Complutense de Madrid. De modo original, forjou as ferramentas necessárias para compreender a mobilização dos media pelos representantes da cultura política do período filipino, como se pode ler em Imagen y propaganda. Capitulos de historia cultural del reinado de Felipe II e em Portugal no tempo dos Filipes. Política, cultura, representações (15801668)1 . Atento, portanto, às formas de expressão, aos procedimentos orais e icônicos aplicados à circulação social de impressos e manuscritos nos séculos XVI e XVII, suas pesquisas resultaram em mais três importantes livros, publicados nos últimos quatro anos: Comunicación, conocimiento y memoria en la España de los siglos XVI y XVII; Corre manuscrito. Una historia cultural del Siglo de Oro e Palabra e imagen en la corte. Cultura oral y visual de la nobleza en el Siglo de Oro.2 De modo geral, o seu trabalho está voltado para a capacidade de mobilização massiva de manuscritos, impressos e imagens pelas autoridades ibéricas, no Antigo Regime. Em seu último livro, você concentra os esforços no sentido de pensar a utilização de formas de oralidade na produção escrita, em particular no interior da racionalidade cortesã, no Século de Ouro, na Espanha. Qual foi o caminho percorrido, através de suas pesquisas, do interesse pelo espaço de comunicação como fundamental para a constituição da própria instituição monárquica até a valorização do silêncio e das formas de oralidade e icônico-visuais? * Entrevista realizada em 2003. TOPOI, v. 4, n. 7, jul.-dez. 2003, pp. 357-361. 3 5 8 • FERNANDO BOUZA Minha abordagem da oralidade cortesã produziu-se a partir de uma dupla perspectiva. Por um lado, os estudos sobre a luta política em Portugal no tempo dos Felipes levaram-me a valorizar algumas expressões culturais que, de fato, eram episódos de luta, como, por exemplo, a paixão antiquária e corográfica desenvolvida por alguns fidalgos portugueses. Em termos gerais, a extraordinária insistência na oralidade por parte da nobleza cortesã dos Áustrias hispânicos pode ser considerada uma forma particular de se enfrentar a ascensão dos letrados próximos ao rei. Se estes haviam aprendido tudo nos livros e em suas regras, os cortesãos de sangue insistiam em algo que, tal como o oral, parecia poder ser adquirido unicamente através da experiência de vida no palácio. Por outro lado, tendo dedicado especial atenção à escrita como forma comunicativa, queria completar o panorama com um estudo que abarcasse monograficamente a oralidade e o icônicovisual. É por isso que o meu último livro3 tem a palavra e a imagem na corte como objetivos prioritários. Quais as dificuldades efetivas encontradas pelo pesquisador neste campo de pesquisa? As dificuldades são grandes porque, é claro, não é possível fazer uma história da oralidade na alta Idade Moderna com fontes específicas. Indiscutivelmente, os testemunhos conservados são muito numerosos e vão desde tratados gerais que explicam como se deve treinar a voz para que possa abarcar desde os registros mais graves aos mais agudos, que nos informam sobre como como era a voz das damas e dos cavaleiros, como servia para identificá-los frente a outros grupos ou como falavam (diante do rei, com iguais, etc.) e guardavem silêncio. As coleções de dicta aurea foram muito úteis e mostraram a autopercepção aristocrática de que a agudeza e o engenho verbais eram circunstanciais com a sua própria existência. Seu trabalho traz à tona uma reflexão sobre a relação entre impresso e manuscrito, apontando para o fato de que o triunfo do impresso fez com que desprezássemos, muitas vezes, as condições de escrita e de circulação de textos manuscritos e suas implicações políticas (particularmente importante para os historiadores dos espaços coloniais da época moderna). Um outro caráter fundamental de suas pequisas, diz respeito à reflexão sobre o arquivo como produTOPOI, v. 4, n. 7, jul.-dez. 2003, pp. 357-361. ENTREVISTA • 359 ção escrita, baseada nos modos antigos de distribuição e organização de catálogos, coleções, corpus documentais, e outras formas de classificação e conservação. De que modo você situaria hoje, em termos de filiações e de prognósticos, esta história política e cultural da produção e da conservação de textos? Sem dúvida, a transmissão manuscrita não decaiu com a aparição da imprensa, porém, mais ainda, parece ter-se especializado no cumprimento de determinadas funções, inclusive em melhores condições que a imprensa. A insistência no manuscrito posterior à imprensa tem a ver, também, com a crise de alguns postulados clássicos da história do livro e da leitura, como por exemplo a noção de autoria individual e o papel outorgado aos leitores. No sistema de cópia manuscrita, frente ao impresso, as possibilidades de reescrita são enormes e, portanto, é necessário reconhecer autorias plurais, posto que os leitores anotam ou copiam determinadas partes do livro que lêem e se transformam, eles próprios, em autores. Mesmo assim, a cópia manuscrita permitia singularizar grupos, burlar a censura – pensada antes de tudo para a mecânica tipográfica –, difundir críticas políticas ou heterodoxias confessionais, o que, indubitavelmente, consiste em interesse crescente. Por exemplo, me parecem fascinantes os manuscritos de textos escriturários para mulheres ou os pequenos escritos sobre papel ou pergaminho de caráter mágico que eram compartilhados tanto pelas elites cortesãs como pelos iletrados. Por ouro lado, os arquivos constituem os lugares menos inocentes que se podem encontrar, pois, de fato, são depósitos que forjam uma memória e, ao mesmo tempo, apagam outra. A idéia do arquivo como lugar de construção de memória, e não unicamente depósito dela, me parece muito eloqüente nesta circunstância. No fundo, encontramos apenas no arquivo o que está nos esperando, o que, há séculos, está disposto com todo cuidado para que encontremos. A atenção dispensada à materialidade dos textos e às suas condições de produção, de ecrita e até mesmo de recepção constitui um modo de abolir as fronteiras disciplinares entre fontes históricas e corpus literários. Deste ponto de vista das fronteiras disciplinares, qual é a contribuição que traz a sua reflexão sobre as formas expressivas e comunicativas numa sociedade de Antigo Regime? TOPOI, v. 4, n. 7, jul.-dez. 2003, pp. 357-361. 3 6 0 • FERNANDO BOUZA Parece-me que esta ruptura das fronteiras se expressa bem na idéia de que agora é necessário escrever uma história cultural da memória. Para criar memória – dos fatos, das pessoas, dos afetos –, recorreu-se à palavra falada, às imagens e aos textos, e a cada um deles de forma independente ou a suas combinações de extraordinária eficácia. Nesse sentido, a reconstrução das práticas orais, visuais ou escritas me interessa como uma forma de conhecer a criação de memória e, aí, a possibilidade de reconhecer o maior número possível de textos, sem importar se provêm de fontes históricas ou literárias, empregando, evidentemente, formas de crítica diferenciadas. Poderíamos dizer, em suma, que os textos são fatos em si mesmos, mais do que fontes que nos falam de fatos. Ainda neste sentido, em que termos deve ser tratada pelo historiador (em particular, o historiador das sociedades «antigas») a questão da oralidade, cara à Antropologia? Pessoalmente, gostaria de considerar a oralidade como uma prática que deve ser historiada em suas circunstâncias de produção, de recepção e de memória, em termos similares aos estudos que têm sido feitos dos textos escritos e, em menor medida, das imagens. Foi o que quis fazer em um livro de 1999, que deverá ser publicado, em breve, sob o título Communication, Knowledge and Memory in Early Modern Spain, pela University of Pennsylvania Press. Como grande conhecedor da história do reinado de Felipe II, dos fenômenos culturais relacionados aos meios de expressão mobilizados pela monarquia e no contexto das relações luso-espanholas, de que modo você situaria o seu trabalho em relação à mais recente historiografia portuguesa? Comecei a trabalhar sobre Portugal dos Felipes há vinte anos e alegro-me em dizer que, no meu entender, as coisas mudaram muito, pois a própria historiografia portuguesa já havia começado a mudar, muito antes, a sua consideração sobre o período. A partir do meu ponto de vista, só posso dizer que tenho uma dívida enorme para com esta historiografia e que, talvez, terei podido ampliar a contribuição aos estudos da Monarquia Hispânica produzidos em meio ao debate internacional, no último quarto de século. Dentro da reconsideração internacional das monarquias composTOPOI, v. 4, n. 7, jul.-dez. 2003, pp. 357-361. ENTREVISTA • 361 tas, a Hispânica tornou-se um capítulo essencial e, nela, o Portugal dos Felipes reúne condições de especial interesse para a análise de sua teoria e de sua prática. Notas Respectivamente publicados em Madrid: Akal, 1998 e em Lisboa: Cosmos, 2000. Respectivamente publicados em Salamanca: Sociedad española de Historia del Libro y Sociedad de Estudios Medievales y Renascentistas, 1999; em Madrid: Marcial Pons, 2001; e em Madrid: Abada Editores, 2003. 3 Palabra e imagen en la corte. Cultura oral y visual de la nobleza en el Siglo de Oro. Madrid: Abada Editores, 2003. 1 2 TOPOI, v. 4, n. 7, jul.-dez. 2003, pp. 357-361.