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ENSAIANDO VIDAS COM VIRGINIA WOOLF VIRGINIA WOOLF COMO FILÓSOFA 94 ENSAIANDO VIDAS COM VIRGINIA WOOLF VIRGINIA WOOLF COMO FILÓSOFA REHEARSAL LIVES WITH VIRGINIA WOOLF VIRGINIA WOOLF AS A PHILOSOPHER Pedro Farias Mentor Pedro Farias Mentor é graduando em Filosofia pela Universidade de Brasília (2016 - presente). Integra o Grupo de Pesquisa Anarchai - Metafísica e Política contemporâneas (UnB/CNPq), o Grupo de Leitura da Ciência da Lógica de Hegel (FIL/UnB), o Grupo de estudos e pesquisa em História do Movimento LGBTQI+ no Brasil - enfoque: Saúde Mental e Gênero (PCL/UnB), Grupo e Leitura de Silvia Federici e Grupo Contando Contos. RESUMO ABSTRACT O seguinte ensaio tem como objetivo estimular minimamente uma reflexão da obra de Virginia Woolf enquanto uma produção possível de leitura filosófica a partir da forma escrita ‘ensaio’ e a forma como a autora liga experimentalismo com a temática da vida. O percurso escolhido foi: (I) apresentar a forma “ensaio” como a privilegiada para se aproximar criação e reflexão, (II) a relevância da escrita de biografias como acesso ao passado e liberdade imaginativa e (III) a escrita experimental como forma de dar conta de formas e experiências de vidas diversas. The following essay aims to minimally stimulate a reflection of Virginia Woolf’s work as a possible production of philosophical reading from the written form ‘essay’ and the way the author links experimentalism with the theme of life. The chosen path was: (I) to present the “essay” form as the privileged one to approach creation and reflection, (II) the relevance of writing biographies as access to the past and imaginative freedom and (III) experimental writing as a way of account for different forms and experiences of different lives. Palavras-chave: Filosofia Contemporânea. Modernismo. Literatura. Virginia Woolf. Palavras-chave: Contemporary Modernism. Literature. Virginia Woolf. Philosophy. https://doi.org/10.18830/issn2238-362X.v10.n1.2020.07 É certo que o ensaio aspira à verdade; porém, assim como Saul, que saiu em busca do asno de seu pai e encontrou um reino, o ensaísta capaz de buscar a verdade chegará, ao final de seu caminho, a algo que não buscava: a vida” (LUKÁCS, 2018, pp. 101) INTRODUÇÃO Escrever sobre Virginia Woolf… Ensaiar com Virginia Woolf decerto envolve um comprometimento que vai além de uma exposição fria e “objetiva”. Defendo isso, antes de mais nada, por conta da minha experiência com os escritos de Woolf, especialmente para com os seus romances: em 2014 li A Viagem, Noite e dia e Orlando seguidamente e com surpresa não encontrei a “modernista do fluxo de consciência” que esperava encontrar, contudo me deparei com uma escritora movida pela sensibilidade das descrições líricas, que escrevia (ou seria pintava palavras?) cenários a céu aberto, florestas cheias de mistérios, selvas de pedra e noites insones onde as personagens pareciam delirar nas ruas da Inglaterra no crepúsculo da era vitoriana. Somado a isso, acompanhei com maravilhamento as protagonistas femininas que ora eram desconcertantes inocentes ora petulantemente irônicas; mulheres presas num cotidiano tedioso, desejosas de conhecer lugares jamais sonhados, movidas e assediadas por conflitos internos dilacerantes, tramas que enlevam aventuras amorosas muito diferentes daquelas vivenciadas pelas personagens de Jane Austen e das irmãs Brontë…Woolf ficou marcada em mim como uma romancista movida pela curiosidade em “entrar” no mundo particular de cada uma das personagens, experimentar suas vidas e ensaiar formas de contá-las. De lá para cá, Woolf cresceu em mim, especialmente As Ondas onde me deparei com um quase enredo, esquizofrênico que joga no leitor os pensamentos de cinco amigos ao longo da vida: do nascimento até suas respectivas mortes marcados pelo luto de um amigo: amor, depressão, solidão, esperança, remorso e raiva bailam numa narrativa em terceira pessoa carregada de poesia. Tendo a oportunidade de reencontrá-la, em 2019, em uma disciplina na graduação de Filosofia ministrada pela caríssima Raquel Imanishi Rodrigues, me deparei com uma outra Woolf que não aquela da adolescência: a Virginia Woolf filósofa. Começo falando da minha experiência com seus livros, pois, frequentando as aulas e lendo outros textos de Woolf - que não estritamente ficcional, notei que a experiência do leitor, as formas de escrita, o tempo e as personagens na sua obra estão ligados nevralgicamente. Logo, escrever sobre sua obra é também escrever sobre a minha experiência, a do tradutor (deixadas na própria translação), a de Virginia, e o espaço entre nós tanto de distância, tão longe que se confunde com o horizonte, quanto de proximidade, que se perde num amálgama de impressões. ENSAIAR Virginia Woolf antes (e depois) de ser conhecida como uma grande romancista escreveu resenhas, biografias, comentários, prefácios e críticas literárias para as mais diversas revistas inglesas do início do século XX. Grande parte dessa produção escrita que começa mais ou menos aos 22 anos e que vai até o fim da sua vida (aos 59 anos) é preenchida pelo estilo ensaístico. Pensar os ensaios dentro da sua Obra é um desafio em, pelo menos, dois sentidos: o primeiro, que é a própria forma ensaio que, no limiar de definição estanque, escapa de um modelo – seja esse modelo o de quantidade de páginas, estilo, temas, referências, e precisão; o segundo são as pluralidades de temas que pulam de escrito em escrito tendendo algumas vezes a se cruzarem e sobreporem na mesma publicação - entre os objetos de reflexão e criação de Woolf podemos exemplificar: a arquitetura, as superlotações das ruas de Londres, a vida doméstica, a literatura escrita por mulheres, os novos artistas, a morte, o patriarcado, as guerras, as biografias, a pintura, as viagens, a moda, as universidades, os nomes esquecidos, o mar, o clima etc. Por conseguinte, dentro dessa grande produção – aqui estendendo além daquilo genericamente classificado como ensaio, transbordando, é claro para os contos, novelas, entrevistas, romances, versos, peças – desponta uma questão muito pertinente: qual relação podemos traçar entre Virginia Woolf e a forma ensaio? E essa questão, é uma questão da escritora? Isso nos proporciona ir além da classificação já tradicional de 9 romances, 30 contos, 5000 escritos não-ficcionais. Pois não apenas os ensaios (I) se sobrepõem quantitativamente aos romances que foram os responsáveis pela sua fama, como (II) os assuntos mudam e confluem na vontade e nas exigências que Woolf pode ter sido submetida na hora de conceber e redigir cada um desses textos – parte da sua produção, de fato, se deu enquanto fonte de renda durante muitas décadas. Porém, uma forma de tentarmos entender os ensaios da Woolf poderia ser desenvolvida a partir de um comentário feito no seu diário: em uma das ENSAIANDO VIDAS COM VIRGINIA WOOLF VIRGINIA WOOLF COMO FILÓSOFA 96 entradas, ela medita sobre uma crítica feita ao seu romance O quarto de Jacob que, segundo um comentador da época, demonstrava a incapacidade da escritora de desenvolver personagens que sobrevivessem e que correspondessem à realidade. Entretanto, segundo escritora, tendo em vista que seu projeto literário jamais passara pelo imperativo da criação de personagens que condissessem com a realidade exigida, e sim pela necessidade de criar uma outra possibilidade de real, sua escrita se faria muito mais como tentativas de responder e atenuar seu anseio de ensaiar a si mesma. Percebemos que parte da discussão sobre o ensaísmo, que se faz presente em lugares como Um quarto só seu, seja no sentido de uma escritura, seja uma subjetividade, também circunda e constitui esses livros “ficcionais”. Elena Gualtieri em Virginia Woolf’s Essay Sketching the Past aponta que há na obra de Woolf uma reflexão e uma interpretação sobre duas tradições de escrita de ensaios. A primeira, a qual ela que se opõe, é a anglo-saxônica, que critica o ensaio por ser falsamente literária ou um tipo de escrita dedicada às artes onde o autor disserta de forma imprecisa os temas. E a segunda, ligada a uma tradição “mais continental” (onde Lukács e Adorno, por exemplo, estariam inseridos), que pensa e reivindica o ensaio como forma filosófica. Para Gualtieri, Virginia Woolf pensa o ensaio como uma forma crítica: há uma possibilidade nessa tipologia de escrita que a interessa tanto para se pensar sua escrita enquanto forma de expressão, que não necessariamente estão dadas na tradição, como para uma apreciação das formas de escritas que são empregadas na literatura. Uma outra forma de entendermos a ligação entre a obra ensaística “dura” - seja lá o que isso possa significar - e as obras fictícias, pode se dar na reflexão que Woolf propõe sobre a natureza e a finalidade da escrita biográfica. Biografia não somente como gênero, mas como uma escrita de vida, uma possibilidade de dar conta literariamente da vida. O quanto da relação de escrever uma vida, narrá-la, construí-la para ser lida enquanto vida, é algo que une as biografias – qualquer uma – com a ficção? Talvez haja algo dentro das elucubrações da escritora, uma preocupação de colocar a literatura como moda de dar conta da existência ao longo da história. VIDAS Se pensarmos sobre as biografias, logo chegaríamos na sua natureza: trazer para nós, como “algo vivo”, uma pessoa que já morreu e/ou que revela coisas proibidas. Em ensaios como “As memórias 97 de Sarah Bernhardt” e “O diário de Lady Elizabeth Holland”, encontramos Woolf preocupada com a arte da biografia: se ela é de fato arte, se há uma técnica ou se podemos fixar regras para contar uma vida, bem como o questionamento se a narrativa ficcional, é enquadrável dentro nas inquietações estimuladas por outras formas literárias, particularmente a forma ‘novela’ e ‘romance’. Não é mero detalhe que Virginia Woolf sempre trabalhara longamente com a inventividade que as formas literárias proporcionam, afinal, as transformações do romance e das formas de relato tem uma relação direta com as mudanças que as próprias vidas relatadas/imaginadas (ensaiadas…) passam. Por isso que em Woolf há uma reflexão sobre o romance moderno e outras formas de escrita: comédias, dramas, romances camponeses são modalidades de entendermos formas de vidas. Nos seus diários, temos longos estudos de como as vivências foram contadas, ocultadas e moldadas ao longo da história, bem como anotações e planos de (re)contar existências a partir de outras perspectivas e moldes. Suas personagens enquanto ethos são modos de ser, uma expressão de como elas aparecem e são inseridas (e se fazem inserir) no espaço público; se no romance tradicional as personagens são construídas como se dão seus aparecimentos pelas palavras e pelos atos, em Woolf encontramos novas configurações em que esses modos de ser performaram palavras e atos em um outro plano, mais experimental e aberto. Esse ensaio-vida não se aparta de duas questões muito importantes para a filósofa: o quanto essas questões se ligam a uma meditação a respeito da sua própria atividade como escritora e sobre a escrita da mulher comparada com a dos homens. Nesse sentido, Um quarto só seu é emblemático porque traça as maneiras como se escreveu e descreveu as mulheres… Trazendo luz não apenas para as vidas desvanecidas da História, mas colocando para jogo como se dá vida a um assunto ou pessoa, seja na resgata das escritoras, seja na vida das pessoas comuns cuja as existências não necessariamente foram relatadas. Por isso ela se empreende no trabalho de resgatar essas vozes apagadas, citando nomes que ainda hoje são desconhecidos. Serão nos interditos de como é o lugar de onde as vidas são ou não são contatadas, que Woolf poderá imaginar o que seriam possibilidades de relatá-las. Observamos que nas suas coletâneas “não ficcionais”, Virginia usa as possibilidades colocadas pelo ensaio para misturar uma série de temas e se colocar de uma série de modos, que não necessariamente são os modos com que ela se REVISTA ESTÉTICA E SEMIÓTICA | Volume 10 |Número 1 coloca nos romances. O romance, o conto, o ensaio, ganham questões específicas na mesma medida em que as questões tomam regimes de escrita específicos. CONFIGURAÇÕES OUTRAS Por isso não podemos ler e passar por Woolf como se fosse uma escritora desinteressada e desprendida – o seu interesse pela vida e como dar forma a vida se liga no modo como a escrita vai além da anotação, aparecendo como uma aguda observação da interseção entre estilos. Vários ensaios/resenhas sobre escritoras já esquecidas e desvalorizadas que vão de dados biográficos, informações de livros, cartas, conversas e até especulações sobre as relações com outras personalidades, uma verdadeira mistura disso que podemos chamar de extrema observação do objeto (como é feito, como a pessoa escreve, por que ela coloca determinada coisa, por que ela se altera em determinada ponto e não outro, etc.), demonstram Woolf cruzando e confundindo propositalmente fabulação e arqueologia: fabricando uma filosofia que não é guiada exclusivamente por um logos descolado de mythos, para usarmos expressões filosoficamente mais clássicas. É dentro dessa imensa observação/especulação que Woolf cria uma visão mais integral do objeto que passa pela sua própria atividade enquanto ensaísta e leitora: uma reconstrução do que poderia ter sido. A imaginação está profundamente ancorado na vida em razão de que o trabalho de ficcionalização, na e da concretude, se estende ao cotidiano das pessoas, seja nas suas leituras e escritas, seja na forma e no conteúdo que pensavam. Orlando é um exemplo disso, dado que se trata de uma biografia de uma pessoa que não apenas muda de corpo ao longo da própria vida, como também apresenta passagem do tempo da História europeia – ora baseando-se em dados “mais factuais”, ora reescrevendo-os de forma fabulosa, acaba tecendo uma terceira possibilidade de escrita – que é biografia mas também não é – e de forma de vida – pois relata uma existência na medida em que escapole todos os seus limites. Em O leitor comum, Virginia Woolf pensa, a partir da sua experiência como leitora educada em casa, sobre como aquilo que pensamos, escrevemos e criamos no mundo. A leitura faz uma ponte necessária entre a criação literária e as formas. É numa combinação de todas essas atividades que criamos esse outro universo literário, ao mesmo tempo em que podemos acessar o passado histórico. Aqui vislumbramos a seriedade da literatura: aquilo que sabemos do que já foi nos chega pela ficção, o modo com que as vidas foram possíveis de serem recebidas. A atividade de escrita compreendida enquanto uma posição temporal está entre esse mundo, que (ainda) não existe, e as miríades de possibilidade no presente. O ato de escrever se enreda no modo como será contatada essa vida no aqui e agora. No caso de Woolf na Inglaterra, começo do século XX, pessoa formada, de classe abastada. Como essa forma de (de)escrever é a sua vida, esta aparece não só como parte de uma vivência pessoal, mas como algo construído e constitutivo, que as gerações futuras poderão acessar – o que talvez seja um dos grandes desafios que a filósofa se lança. Por isso, o carácter tão experimental dos seus romances, que mudam, mudam e mudam a cada publicação – observemos como Mrs Dalloway e Entre Atos são diferentes no conteúdo, na forma, na delicadeza, nos afetos. Essas experimentações são resultantes, é claro, de uma construção narrativa, mas também de imagens do mundo que se fustigam de serem meros exercícios arbitrários, uma forma de restituir e dar inteligibilidade à experiência. Muito mais, são formas de construir entendimentos pela sua obliquidade e de experimentar caminhos, sensações e sentimentos jamais conjugadas tais como Woolf propõe. CONCLUSÃO Em Virginia Woolf, a vida, me parece, se dá em um eterno fluxo em que a escrita tenta capturar incessantemente momentos de beleza e angustia. O exercício de escrita é a tentativa constante de adaptar aquilo que viu, ao mesmo tempo que é interpelado a cada novo encontro. Filósofa do instante, ela poderia ser chamada. Se em Um Quarto Só Seu somos incitados a vasculhar as bibliotecas em busca das mulheres escritoras, talvez agora devêssemos nos perguntar sobre quando a própria Virginia Woolf será elevada ao status de filósofa, com direito a estudos e diálogos ainda não feitos… Ensaiando sua sobrevida. ENSAIANDO VIDAS COM VIRGINIA WOOLF VIRGINIA WOOLF COMO FILÓSOFA 98 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GUALTIERI, Elena. Virginia Woolf’s Essay - Sketching the Past. Londres: Macmillan Press; Nova York: St. Martin’s Press, 2000. 99 _____. Orlando. Trad.: Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. _____. O valor do riso. Trad.: Leonardo Fróes. São Paulo: Cosaic Naify, 2014. LUKÁCS, Georg. “Sobre a forma e a essência do ensaio: carta a Leo Popper”. In: A alma e as formas – ensaios. Trad. Rainer Patriota. Belo Horizonte: Autêntica, 2015, p. 31-53. _____. O quarto de Jacob. Trad.: Lya Luft. São Paulo: Novo Século Editora, 2008. WOOLF, Virginia. Entre Atos. Trad.: Lya Luft. São Paulo: Novo Século Editora, 2008 _____. Um quarto só seu. Trad.: Denise Bottmann. Porto Alegre: L&PM, 2019. _____. Mrs. Dalloway. Trad.: Mario Quintana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. _____. The Commor Reader. Mariner Books, 2002. _____. The Waves. Londres: Penguin, 1992. REVISTA ESTÉTICA E SEMIÓTICA | Volume 10 |Número 1