A dimensão política da arte:
rascunhos sobre um Hélio Oiticica
tardio1
M����� G����2
1. Breve contextualização de/para uma discussão
��losó��co-político-artística
Este trabalho tem como ponto de partida a proposição de que existe uma eventual fase tardia da obra de Hélio Oiticica, o que implicaria assumir determinadas
quebras cronológicas na sua produção. Nesse primeiro momento especulativo as1
Este artigo reúne, em forma de rascunhos, algumas ideias exploradas no Minicurso “Hélio
Oiticica: arte ambiental, arte pública e política da arte” oferecido nos dias 10 e 31/10, 21 e 28/11 de
2016, junto ao Departamento de Filoso��a da Universidade de São Paulo, parte de um estágio de
pesquisa (licença capacitação) fomentado pela Universidade de Brasília e acolhido pelo Grupo
de Pesquisas em Estética Contemporânea, então sob coordenação do Prof. Ricardo Fabbrini.
Aproveito para agradecer aos inscritos e seus comentários/críticas valiosos realizados ao longo
do minicurso e do estágio, especialmente as contribuições trazidas por Vera Pallamin e Paolo
Colosso, com os quais pude discutir de modo mais regular, e sugestões informais dadas por Celso
Favaretto.
2
Professor Associado de Estética & Filoso��a da Arte e da Arquitetura, junto ao Departamento de Teoria e História e ao Programa de Pesquisa e Pós-Graduação da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB).
203
204
Rapsódia 12
sumiremos tal desa��o, mesmo tendo clareza do risco e da fragilidade em construir
tal divisão entre os trabalhos do artista, por serem tais fases ou quebras arti��ciais,
e porque no fundo elas podem ser vistas como um grande projeto, embora se
fazendo no seu próprio percurso3 . A relação que iremos privilegiar nessa direção,
mesmo sabendo dessas di��culdades, será aquela entre um momento tardio e
sua fase imediatamente anterior, a inaugurada mais fortemente por Parangolés
(1964-66).
Ao questionar sua própria postura teórica, Hélio estaria, então, se afastando
daquela busca pela origem do espaço coletivo4 , com características herdadas da
sua produção consolidada com e desenvolvida a partir de Parangolés (a qual
chamarei de fase madura). Estava em questão aí fazer brotar a arte a partir de
uma provocação que o artista elabora para que uma participação do espectador
ganhe lugar. Mas como, propriamente, se daria tal mudança entre tais fases?
Primeiro, minimizando a provocação ou com (quase) nenhuma provocação, ��car
atento ao que pode surgir de uma coletividade dada. A diferença entre as fases,
portanto, seria a de que Oiticica estaria construindo ou rascunhando outro desa��o
criativo: explorar, agora distendendo ou sintetizando, a relação artista-espectador
a ponto de não se pensar na criação de uma relação (de participação, interação,
colaboração, etc.), mas, assumindo-a como dada, pensar no que se cria, política e
artisticamente, desde uma coletividade existente.
Analisar tal dimensão política seria a tarefa da segunda especulação. Propomos, assim, criar uma discussão anacrônica e ��ctícia entre Oiticica e duas ��lósofas
contemporâneas – Chantal Mou�fe e Hilde Hein – que investigam aspectos da dimensão política da arte quando pensada desde sua espacialidade própria enquanto
condição pública imanente à obra ou ao acontecimento artístico, importante
tema nessa fase tardia de Oiticica, como veremos.
Nossa questão, aqui, no seu conjunto e resumidamente, se apresenta da
seguinte forma. Se de um espaço coletivo existente puder brotar, com o mínimo de
3
Por exemplo, cf. FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp,
1992.
4
Cf. GALLY, Miguel. “Gênio coletivo visto a partir das artes espaciais”. In: SILVA, C. et
all. Estética: Coleção Atas XVII Encontro ANPOF (2016). São Paulo: ANPOF, 2017, p. 232-242,
no qual exploro como essa espacialidade passa a existir como ocupação. Esse texto complementa,
portanto, as ideias que estão discutidas agora.
A dimensão política da arte | M����� G����
205
interferências sobre ele, manifestações coletivas com alguma unidade (ou capaz de
ser reconhecida), estaríamos diante, também, daquilo que seria o mínimo exigido
para que manifestações políticas surjam. Ou seja, a adesão ou aversão, a identidade
ou recusa, a grupos, posições, organizações hegemônicas da sociedade exigem
um “estar junto” elementar: uma aproximação necessária para que qualquer
ação política faça sentido (partindo da pressuposição de que não se faz política
sozinho). Grosso modo, Oiticica estaria apontando para uma re��exão sobre a
genealogia da política, mas preocupado em ir além daquela condição criativa
que permite que pessoas se aproximem, que grupos se organizem e em torno do
qual uma coletividade ganhe existência. É esse “para além” que passaria a estar
no centro da sua fase tardia, uma preocupação sobre o que se pode construir
tomando tal coletividade como existente a partir de uma imanência a ela. Para nos
aprofundarmos um pouco, será preciso entrar no pensamento de Oiticica sobre
a emergência do coletivo, para então fazer uma diferença frente à emergência a
partir do coletivo, para daí, então, observarmos como esse existente guarda uma
riqueza política.
2. Hélio Oiticica e a emergência (a partir) do coletivo
Em A invenção de Hélio Oiticica (1992), Favaretto organiza o processo e o percurso criativo do artista com o cuidado de mostrar sua coerência a partir de uma
potência expansiva radical. Ou seja, apesar de diferentes etapas com diferentes
características, algo vai ligando essas partes e projetando-as para uma produção
futura, apontando inclusive para a continuidade de uma última fase, a das manifestações ambientais. Favaretto sugere que essas etapas guardam certa unidade a��rmando serem elas “intensidades progressivas do experimental”5 . Vê, entretanto,
pontos crucias nessa trajetória, como a transição com e a partir de Metaesquemas
(1957-58), considerando-os, tal como o propusera claramente também Oiticica,
como uma evolução da pintura, como estruturas formadas por grá��cos ou por
placas de cor, discutindo com a matriz neoplástica horizontal-vertical6 . Essa seria
5
6
FAVARETTO, op. cit., p. 18.
Para mais detalhes, cf. ibid., p. 51-52.
206
Rapsódia 12
aquela primeira indicação efetiva do salto para o espaço, que se consolidaria com
Bólides, Núcleos e Penetráveis. E entre esse Oiticica, digamos, pré-ambiental e a
fase tardia das Manifestações Ambientais, Parangolés (1964-66) seria um marco
decisivo7 . Tais mudanças explorariam e exprimem uma fonte comum, segundo
Favaretto, modos de “experimentar o experimental”, justamente o que permitiria
especular sobre o que viria, se sua produção não tivesse sido interrompida em 1980.
Assim, a preocupação de Oiticica em manter-se na experimentalidade própria da
atividade criadora garantiria uma prioridade teórica para se analisar sua trajetória
e permitiria uma compreensão coerente desde a saída do Grupo Frente e entrada
no Grupo Concretista, passando por sua aproximação aos Neoconcretistas até
uma experimentalidade sem nome ou rótulos das Manifestações.
Vejamos mais de perto essa fase tardia, lembrando como tais transições, entre
tais fases, podem ser vistas. Revisemo-las brevemente, seguindo ainda o trabalho
seminal de Favaretto. A descoberta da cor-estrutura, que permite a passagem da
cor-tinta sobre a tela para a cor-pura, ou seja, do salto do suporte para o espaço
(da produção da juventude do Grupo Frente passando por Metaesquemas até
Relevos Espaciais, Penetráveis e Bólides). Essa transformação até a visualidade de
estruturas-cor no espaço e no tempo é a condição para, e legitima, Parangolés,
com os quais o espaço torna-se também duração, abertura a movimentos, ações
e gestos. Essa temporalização do espaço, portanto, é a condição para que exista
Parangolés. Percebe-se aí a transição gradual para a etapa madura da produção
do artista, contaminada por sua passagem pelo morro da Mangueira e pela força
criativa/inventiva popular, no samba em toda sua gestualidade e musicalidade,
visto desde sua força mística, nas soluções improvisadas de construção e urbanização, e na criação de uma comunidade/coletividade para além da instituição
(Igreja, Estado, Forças Armadas). É esse mesmo espaço-tempo, agora percebido e
inventado pelo gesto e pela música, que cria e abre novos espaços, a saber, pela
participação movida pelo ritmo, de maneira improvisada com/pelo corpo, que se
mostra dançando, trajando e molejando as capas voadoras e estandartes. Brota
Parangolés. Essa ação participativa vem de uma provocação, de um chamado para
ir junto ao que convida, uma maneira de ampliar o alcance de Penetráveis e Nú7
Cf. ibid., p. 121; Ver também OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro:
Rocco, 1986, p. 78-79: “Parangolé é a formulação de��nitiva...”.
A dimensão política da arte | M����� G����
207
cleos, maximizando essa provocação para que se emerja um ato criativo/trabalho
de arte ou experiência mais visceral, mais inebriante, intensa e libertariamente
coletiva. Instalação e performance são aqui uma mesma coisa, Parangolé é uma
performance coletiva mesmo quando há apenas uma capa e uma pessoa em movimento, porque sua ação é aproximação: criação de um espaço novo a partir
da espacialidade provocada pelo artista e operada pelo espectador, dois espaços
que dão origem a um outro8 . A imagem desse acontecimento e a chegada a essa
coletividade acontece como princípio de criação, vista igualmente na instalação
Eden (1969), que parece anunciar a conclusão dessa fase madura. Mas que seria
sucedida, ainda, por um desfecho inusitado e incerto porque se torna pura reabertura, o que Favaretto já tinha apontado em 1992 com bastante clareza, ainda com
pouco material disponível para sua pesquisa, mas con��ante de que havia uma
coerência interna da busca incessante da experimentalidade em experimentação.
Nessa leitura da obra de Oiticica, Parangolé termina assumindo um lugar de
destaque, mas é essa a última grande transformação de sua trajetória? Será que não
poderíamos, com razão, perguntar: qual é, se há, uma mudança propriamente
advinda com Parango-plays e as Manisfestações Ambientais e urbanas, tais como
Delirium Ambulatorium, Caju, Esquenta pro Carnaval, Contrabólides, Kleemania? Ou seja, será que poderíamos pensar numa produção tardia diferenciada
teoricamente a partir desse conjunto de obras e/ou projetos não ou parcialmente
executados?
Moacir dos Anjos, em 20129 , um ano antes da publicação do Conglomerado
Newyorkaises, por exemplo, discute que a ideia que se expressa em Delirium ou
mesmo a prática de deambular associada a Delirium já estava presente de algum
modo antes, até mesmo em Parangolés. Ou seja, ele, de certo modo, propõe
que essa fase tardia do Hélio –embora não chame assim – seja vista de modo
mais borrado e sem uma preocupação em identi��car os limites de uma eventual
nova produção ou etapa. E isso faz muito sentido quando levamos em conta
o modo complexo e não sistemático de criar empreendido por Oiticica. Mas
esse estudo de Moacir dos Anjos não faz referência, ou deixa de lado, a crítica
8
GALLY, op. cit., p. 237.
ANJOS, Moacir dos. “As ruas e as bobagens: anotações sobre o Delirium Ambulatorium
de Hélio Oiticica”. In: Revista Ars, ano 10, n. 20. São Paulo: 2012.
9
208
Rapsódia 12
que vem com Parangoplay e que ajudaria a explorar e especular sobre o Delirium
Ambulatorium em outra direção.
A posição que sustenta uma coerência interna do percurso de Oiticica mesmo
que caracterizando fases distintas, o que torna a interpretação de Favaretto quase
hegemônica e difícil de melhorar, me parece mais ampla e complexa do que aquela
que pretende borrar os limites internos de sua produção, o que vejo como um
efeito colateral da interpretação de Moacir dos Anjos. Em todo caso, seja de
uma perspectiva seja de outra, ��camos ainda com uma inquietação, se levarmos
as palavras e ações de Oiticica à sério. Se “o salto para o espaço”, como vimos,
marca uma diferença na sua produção, e a absorção da performance e do gesto em
Parangolés marca outro ponto de transição, o que dizer de uma crítica estrutural
dirigida a Parangolés pelo próprio Oiticica? É com essa incômoda pergunta que
gostaríamos de introduzir a necessidade de se falar em uma produção tardia de
Oiticica teoricamente diferente daquela de Parangolés.
Esse momento tardio, então, marcado mais especi��camente por sua passagem
por Nova Iorque (1971- 1977) e temporada pós-retorno ao Brasil até 1980, inclui
um material produzido pelo menos desde 1972, que incluía re��exões escritas e
projetos de novas produções a ser realizadas, sobretudo, no Brasil. Essas re��exões
compõem um livro especial nunca editado ou ��nalizado por Hélio: Conglomerados ou Newyorkaises (nova iorquinas), publicado recentemente como material
de trabalho e dos rascunhos de Hélio com o título Conglomerado newyorkaises
(2013)10 . E aí, em um texto digitado (ou seja, passado a limpo por Oiticica), datado de 1972, aparecem indicações curiosas de uma nova etapa que se abria no
texto/ideia “Parangolé Síntese” com aquilo que ele chamou de Parangoplay.
Uma das coisas que mais chamou minha atenção é sua intenção em marcar
uma diferença entre a posição teórica que sustentava Parangolés, com seu tom
carregado de violência, e mesmo intolerância, muitas vezes associado a uma prática
geral da Era dos Manifestos, e uma visão mais moderada, embora claramente
vigorosa e guardando a força transformadora também própria das vanguardas,
mas visivelmente sem aquelas expectativas de grandes rupturas sociais, nem da
ligação da sua arte, necessariamente, com um ativismo político. Assim, essa
10
OITICICA, Hélio. Conglomerado newyorkaises (Org. César O. Filho e Frederico Coelho).
Rio de Janeiro: Ed. Autêntica, 2013.
A dimensão política da arte | M����� G����
209
fase tardia ganha uma importância extra e nos desa��a a entender como seria
essa sua nova produção, agora vista enquanto Parango-plays ou Invenção-play
com suas capas atualizadas. Oiticica diz o seguinte, transcrevendo aqui sem a
formatação/edição pensada por ele:
Parangolé-síntese não é conciliação tese-antítese de con��itos de criação, nem retomada CAPAcondição – extensão concreta do vestir
incorporar – FEITAS PRO VESTIR (não mais como procura de
não condicionamentos sensoriais erigindo experimentalidade nova)
CAPAS FEITAS NO CORPO eram/pertenciam como estado extremo às primeiras premissas de experimentalidade do não condicionado sensorial: o corpo movimentando sobre si mesmo: construirincorporar casulo vazio extensão solta que se reincorpora a cada
vestir
CAPAS D´AGORA: vestimentas-concreções cujo vazio da ‘pequena
totalidade’ é feito pro vestir, que é objeto sensorial mas não se reduz a isso: a contradição não-condicionado/‘naturalismo do fazer’
de antes não aparece: unidades exploráveis sem previsão pensada,
mais abertas sem preocupação com ‘signi��cações corporais’, ‘não
condicionamentos sensoriais’, etc.11
Parangolés é “capa-condição” na medida em precisa ser vestida. A extensão da
capa, ou seja, o que a sucede, é um vestir que cria espaços quebrando condicionamentos sensoriais (comportamentos do tipo padronizados, ou preconceituosos,
etc.). A capa, sozinha, seria um casulo vazio, e que ganha materialidade com o
movimento libertador do corpo, uma participação com signi��cação corporal e
política, e nesse sentido não tão aberto. Surge coletivamente, porque foi provocado pelo artista, pela música que a acompanha, pela expectativa de quem vê
e não participa, etc., mas com implicações pessoais e individuais. É libertador
para quem se deixa levar pela provocação sem expectativas pré-de��nidas quanto
aos gestos e ações. E nesse sentido, pode se transformar numa viagem pessoal,
11
OITICICA, 2013, p. 21.
210
Rapsódia 12
numa ego-trip, que é um fragmento político, porque se torna também fragmento
do coletivo; e é isso, me parece, que será recusado desde essa postura teórica da
“Invenção Play” como clímax corporal não fragmentado:
Essa retomada de Parangolé-primeiro (1964) repensa o papel mítico da dança propondo-a como clímax corporal, auto-climax ‘não
verbal’, ‘não-display’:
proposição corporal levada a um nível de experimentalidade aberta:
��m do display fragmentado: falar em cosmicidade não deve implicar
em algo extra-concreto mas em assumir o poder de inventar o NÃOFRAGMENTADO = Inventions are extensions of man’s energy (...)
não me interessa na dança o seu estado naturalista de ‘manifestação
humana’ nem reduções a ego-trip (fragmentação neuro-psíquica)
mas liberação inventiva das capacidades de play é INVENÇÃOPLAY (...) PARANGOPLAY12
Oiticica propõe aqui, se entendo suas inquietações (e assumo o risco como
minha especulação), uma associação entre performance e dança que retoma e
supera Parangolé naquilo que ele descreve como “PARANGOLÉ-PLAY” ou
“Parangoplay”. Seria a chegada à condição propriamente pública da atividade
criadora, porque é agora vista espontaneamente na coletividade (“cosmicidade”
e não “ego-trip). Dizer que as invenções são as extensões da energia humana é
provocar a pensar que tal energia humana, do ponto de vista da energia que circula
quando se tem uma coletividade (e individualmente tal energia é mera ego-trip
psíquica), é dizer que ela inventa ou manifesta ações que não são mais individuais
ou fragmentadas. Invenção, nesses termos, sucederia uma coletividade humana
dada.
Trata-se da entrada naquilo que ele chama de Anti-parangolé. Tendo sido
Parangolé anti-arte13 , anti-Parangolé seria “anti-anti-arte” e essa dupla negação
não indicaria uma síntese trivial que rea��rma positivamente a arte. A mudança
12
13
77.
OITICICA, 2013, p. 23.
OITICICA, Hélio. “Posição e programa [1966]”. In: Aspiro ao grande labirinto. 1986, p.
A dimensão política da arte | M����� G����
211
é que a coletividade se torna invisível porque passa a ser tomada como dada,
em sua espontaneidade, tal como existe imersa na vida, ou seja, é tomada como
existente, e como se não nos déssemos conta dela. A emergência da atividade
criadora coletiva das massas populares em sua atividade participativa (Parangolés)
imerge agora (nessa fase tardia com Parango-plays) no cotidiano sem estetizá-lo,
sem sobrevalorizar atos e gestos individuais poetizando-os, ou destacando-os de
algum modo. Ou seja, nas suas palavras, sem “ego trips”, sem viagens psíquicas
individualizadas, mas sim observando tais gestos na nitidez do comum, que se
torna cotidiano de gestos coletivos que supõem aproximação, por exemplo, solidariedade, generosidade, cuidado, acolhimento, etc. Uma espécie de visibilidade
do visível, da coletividade do coletivo, do comum visto no comum (coletivo), uma
imersão diluidora de um exercício de criação coletiva ou de convivência criativa
dentro do comum que é o cotidiano. Uma clara politização da vida ordinária e
coletiva preparada pela fase anterior, ou seja, exercitada por uma politização do
contato espectador-artista.
Com Parangolés haveria um aceitar e fazer convites/provocações para valorizar
uma coletividade mínima que se precisa assumir para uma existência comum tal
como é a vida humana em sociedade e, sobretudo, urbana e nas cidades. Fazer de
conta que esse consenso mínimo não existe ou que não se precisa dele, valoriza
o egoísmo e a mesquinhez humanos implodindo a existência coletiva comum.
Essa crítica foi a preparação para que as re��exões de Parango-play pudessem surgir
para além de Parangolés.
Não se trata de uma fase moralista do artista, essa não existe nunca. Trata-se,
sim, de um Oiticica um pouco mais apaziguado da virulência das vanguardas
históricas, embora marcado por uma preocupação ética. Uma retomada também
da “posição ética”, fazendo referência ao momento ético de Parangolés14 . Só que
agora vendo na totalidade da sociedade não aquilo que precisa ser denunciado
como grande hipocrisia ou fascismo de uma sociedade que se esconde de si para
manter privilégios e abismos sociais, uma denúncia que foi feita com Parangolés. A
totalidade que parece interessa-lo na fase tardia, por outro lado, é a força imanente
da atividade criadora dentro das malhas da vida ordinária, pronta para emergir,
14
OITICICA, op. cit., [1966] 1986, p. 81.
212
Rapsódia 12
sem que sua trans��guração em arte se torne necessária, sendo um exercício político
vinculado à construção de adesões e de relações sociais em escala macro15 .
A partir de sua trajetória, podemos descon��ar que essa força criativa surge de
uma aproximação entre as pessoas, mas gerando invenções coletivas, conviviais e
urbanas que agora precisam ser vistas não como ou pela arte, mas como vida que
guarda a imprevisível força que move, transforma e impulsiona para frente (ou
para trás) essa mesma vida. É o gênio coletivo anônimo, de fato, anônimo, porque
torna-se dado e invisível, mas também para além dos continentes do espectador
e do artista. Hélio está interessado na política da vida, na política da liberdade
criativa espalhada e emergindo do cotidiano coletivo humano. Essa seria minha
aposta especulativa quando penso na dimensão política de sua produção tardia.
3. Diálogos inventados com e partir do pensamento de
Ch. Mou�fe
Chantal Mou�fe, por exemplo, pensando em outra direção, mas com o mesmo
desa��o em mente, concebe a origem da política a partir de sua condição ontológica
agonística16 , para então investigar como uma unidade coletiva surge. Para ela,
organizações hegemônicas da sociedade ganham lugar, como unidade coletiva,
quando há a construção de uma identidade. Tal identidade, em última instância,
pressupõe a diferença na medida em que tal unidade coletiva só se concebe como
idêntica quando se vê distante de outra unidade coletiva hegemônica. Nesses
termos, para Mou�fe, a origem da política, o que ela pensa como “o político”, é baseada num con��ito entre nós-eles sem resolução, e por isso, agonístico. Entretanto,
nesse universo de con��itos constantes, ela concebe um acordo mínimo necessário:
o consenso con��ituoso, o acordo democrático elementar para que a condição
15
Como exemplos, vejo ainda manifestações de sentimentos coletivos que brotam de grandes
eventos, como o carnaval, passeatas, eleições, shows, que guardam uma provocação mínima para
seu acontecimento, certamente, mas da qual não emerge ou sucede necessariamente algo que se
possa antever ou planejar.
16
MOUFFE, Chantal. Sobre o político. Trad. Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes,
2015 [Cf. capítulo 1 (A política e o político), especialmente p. 17 e seguintes].
A dimensão política da arte | M����� G����
213
agonística multipolar do político não recaia na relação amigo/inimigo, nem caminhe para um confronto violento. Haveria, para Mou�fe, um con��ito permanente
nós/eles; nós/eles que se construiria desde identidades, que pressupõem sempre
uma exterioridade, e que nunca podem ser inteiramente determinadas, uma garantia de que as disputas democráticas pela organização hegemônica continuem.
O papel político da arte, nesse contexto, seria o de posicionar-se contra ou
a favor de certa organização social hegemônica, e nesse sentido contribuir para
aquele processo de identi��cação ou promoção de uma unidade coletiva. Essa posição assegura, assim, que a arte jamais poderia ser vista como neutra no universo
das relações políticas no interior de uma sociedade:
Política diz respeito sempre ao que está estabelecido [ao establishment], à reprodução ou à desconstrução de uma hegemonia, a qual
está sempre em relação a uma ordem potencialmente contra-hegemônica.
Desde que a dimensão do político está sempre presente, não se pode
nunca ter uma hegemonia completa, absoluta e inclusiva. Nesse
contexto, práticas artísticas e culturais são absolutamente centrais
enquanto um dos níveis em que identi��cações e formas de identidade são constituídas. Não se pode fazer a distinção entre arte
política e arte não-política, porque toda forma de prática artística
ora contribui para a reprodução de um senso comum dado – e nesse
sentido é política –, ora contribui para sua desconstrução ou crítica.
Toda forma de arte tem uma dimensão política17 .
A discussão que propomos, portanto, é a de que a dimensão política proposta
por Oiticica remete ao surgimento ou à criação de uma coletividade, base para
qualquer compreensão de política, e que tal criação seria artisticamente integrada
à vida ou vitalmente integrada à arte. Essa foi a grande contribuição da fase orientada por Parangolés. Para Mou�fe, a existência da coletividade não bastaria para
dar origem a uma atividade política, porque sem a identidade/exterioridade, tal
17
MOUFFE, Chantal. “Every Form of Art has a Political Dimension” (Interviewed by Rosalyn
Deutsche, B. W. Joseph, and Thomas Keenan). In: Grey Room 02, Winter 2001, p. 98-125, aqui, p.
99-100 (tradução nossa).
214
Rapsódia 12
coletividade não gera ou não é reconhecida dentro daquela disposição agonística.
E aqui teríamos talvez a maior divergência entre tais pensamentos, porque na
postura teórica de Parangolés conseguimos ver uma proximidade com as ideias
de Mou�fe, na medida em que se está pensando em como uma unidade coletiva
surge; mas depois dessa fase madura, ocorreria uma mudança. Isso porque a
coletividade já guardaria uma capacidade de integração e de unidade coletiva com
suas manifestações correspondentes; Oiticica viu e apostou nisso ao propor as
Invenção-plays. Retomemos um pouco.
Na época madura, como vimos, ele estava preocupado em como espaços
de coletividade ganhavam existência desde uma relação artista-espectador, que
reunia dois continentes que precisavam se aproximar em suas espacialidades para
dar origem a uma nova espacialidade, aquela coletiva e comunicacional18 . Sua
preocupação, na fase tardia, entretanto, seria a de, partindo dessa espacialidade
coletiva, investigar que tipo de integração, agregação sem identidade, relações de
empatia, invenções por contágio, poderiam ser experimentas ou manifestadas
como sendo uma espécie de jogos sociais.
O Oiticica tardio diverge das ideias de Mou�fe, e parece mesmo se contrapor
a elas. Por um lado, com Mou�fe, precisa-se do con��ito, mesmo que sublimado e
não violento, e vê-se na integração o risco de uma hegemonia que pode se tornar
homogênea, sem resistência, e por isso a exigência do con��ito permanente. Por
outro lado, com Oiticica tardio, minimiza-se e abre-se mão do con��ito, explorando
como se integra uma coletividade sem que a identidade/exterioridade tenha um
papel preponderante, um desa��o assumido pela arte para a política, que jamais
poderia ser visto, de maneira simplória, seja da perspectiva discursiva, mesmo que
incorporada, seja ainda como mera experiência (estética ou não). Enquanto que
para Mou�fe, a arte teria propriedades discursivas mais evidentes na medida em
que promove ou critica uma unidade coletiva hegemônica, sendo uma ��loso��a da
arte derivada de sua ��loso��a política; para Oiticica, por outro lado, a preocupação
sobre o que se deriva de coletividades é, ao mesmo tempo, política e artística,
fazendo-nos pensar numa ��loso��a com essas duas dimensões simultaneamente,
artístico-política ou político-artística.
18
GALLY, op. cit., p. 238.
A dimensão política da arte | M����� G����
215
A pergunta, portanto, que precisaremos ter em mente daqui em diante é
a seguinte: se na criação de coletividades estiver em investigação uma especulação sobre como adesões/recusas se dão para além da identidade/exterioridade,
como haveria uma integração dessa coletividade? Em primeiro lugar, precisamos
reconhecer que a pergunta parte de uma lógica política do con��ito, porque é
com adesões, partindo do pressuposto da identidade, que uma coletividade surge
se diferenciando de outra unidade coletiva. Entretanto, precisamos ampliar tal
referência proposta por Mou�fe contra seu pressuposto e imaginar que quando há
unidade coletiva, já há integração, e que tal integração pode ou não gerar con��itos,
o que já seria uma condição política. Ou seja, tal integração não implica tampouco
reconhecer como sua base um consenso, porque guarda o risco de, sem uma identidade/exterioridade de��nida, se desintegrar e jamais se integrar novamente. A
fragilidade dessa política que se vê no estar junto da coletividade para além da adesão da identidade é latente, mas mesmo frágil torna-se um exercício importante
para se abrir mão do (consenso) con��ito como único elemento comum entre
unidades coletivas distintas. Em última instância, se questiona um pressuposto
no argumento de Mou�fe, o de que para além do con��ito está o consenso, e o
de que para além do consenso está o con��ito, mas que o espaço comum é uma
pressuposição saudável do consenso con��ituoso, uma espécie de sublimação da
violência e da barbárie. Talvez essa pressuposição seja uma saída importante para
aquelas civilizações que sempre se apoiaram na barbárie para exercer seu domínio,
e que assim consigam repensar suas estratégias (e genealogias) políticas e operem
suas devidas autocríticas de uma perspectiva geopolítica.
Mas aqui, com as provocações do artista brasileiro, está em questão um desvio
frente a essa lógica do con��ito. Isso porque a integração coletiva pensada na fase
tardia de Oiticica, ao abrir mão da relação artista-espectador como dois polos
distintos, defenderia a coletividade como sendo o começo da política e da arte, e
não como os indivíduos se reúnem para dar origem a um espaço comum, partindo
de identidades (que pressupõe consenso ou con��ito, quando se adere ou se recusa
para dar origem a unidades coletivas que disputam os espaços coletivos) ou de
provocações para dar existência a uma unidade coletiva, como se ela não existisse
em algum momento e depois passasse a existir. Essa seria a contribuição ao debate
político que eu acredito haver na obra tardia de Oiticica, na qual se assume,
216
Rapsódia 12
portanto, a coletividade como existente e integral e não mais como algo a criar, e
que dela manifestações necessariamente coletivas surjam. Valorizar tal existência
da coletividade como ponto de partida exige também assumir a primazia do
espaço público que acolhe tal coletividade e estar atento ao que vai surgindo dela.
4. Política da arte e seus espaços
O que se tem, portanto, até aqui, é uma mudança na concepção de política da atividade criadora herdada de Parangolés, porque se presta atenção não mais a como
o coletivo (Parangolés) emerge, mas sim ao que emerge do coletivo (Parangoplays). Ou seja, aos jogos sociais que exigem presença coletiva e espaço público.
Em uma entrevista de 1978, Oiticica reforça e consegue associar mais diretamente
a condição política enquanto obra pública ligada àquilo que emerge do coletivo:
Minhas pesquisas estão muito mais ligadas ao Brasil, porque são trabalhos que tendem ao coletivo, mais que ao individual. A função de
minhas maquetes, anteriormente, era a de uma participação coletiva
planejada. Hoje, elas já nascem como se fossem uma obra pública.
Isso tem mais a ver com a realidade brasileira, do que com a própria
arquitetura.19
Dizer que a obra já nasce como pública porque está ligada mais ao Brasil ou
à realidade brasileira, e que tendem ao coletivo mais do que a uma participação
(da coletividade), exigiria que investigássemos melhor como ele entende essa obra
pública para além da arquitetura, que é uma arte pública por excelência. O ponto
central, entretanto, e inicial, me parece, seria lembrar que as experiências com
e a partir de Parangolés remetem à criação de uma espacialidade coletiva, algo
ligado diretamente se não aos usos, pelo menos ao sentido de arquitetura. E na
fase tardia, tal coletividade, quando tomada como existente, faz brotar obras ou
invenções, e em algum sentido são necessariamente públicas, porque nascem da
coletividade.
19
215.
OITICICA, Hélio. “Entrevista ao Jornal do Brasil” (8.3.1978) In: FAVARETTO, op. cit., p.
A dimensão política da arte | M����� G����
217
Entrevistando Oiticica, Heloisa Buarque de Holanda e Carlos Alberto M.
Pereira, perguntam:
– Hélio, desde a década de 50 você vem fazendo experiências de
ruptura diante dos códigos estabelecidos da arte. Você considera isso
uma atuação política? Como, e em que nível?
– Bom, eu acho que sempre é uma atuação política, mas não num
nível de ativismo político (...) A meu ver, a arte sempre tem um
caráter político, principalmente quando é uma coisa altamente experimental, que propõe mudar. Uma proposta de mudança das
coisas, sempre tem um caráter político [a favor de Mou�fe, porque
se a arte propõe mudar, vai contra a organização social vigente ou
hegemônica]. Mas eu não acho que, automaticamente, haja um
ativismo político só porque é arte. Pode ser arte e não ter nenhum
ativismo político [por exemplo, se esse experimental pode ser uma
relação com a história da arte e talvez assim não proponha mudar
algo socialmente, mas sim conceitualmente]20
Sua política da atividade criadora estaria, aqui, para além do ativismo político,
mas também para além daquilo que parece sugerir a pergunta dos entrevistadores,
ou seja, para além da crítica política dos movimentos artísticos quando relacionados conceitual ou formalmente entre si. No adendo a essa mesma entrevista, feito
para criticar todo tipo de patrulha, ��ca mais claro sua compreensão de política e
de transformação:
(...) só sei é que tudo o que foi feito até hoje [1979] quanto ao assunto
envolvendo artistas e/ou programas culturais determinados têm
provado ser o maior corta barato e da maior esterilidade criativa [...]
porque castram o dom que só o artista tem como prioritário: aquele
de gerar soluções próprias para o que deva fazer ou não: quando digo
artista digo aquele que cria não importa em que ramo ou condição.
20
OITICICA, Hélio. “Entrevista a Heloisa Buarque de Holanda e Carlos Alberto M. Pereira”
(1979). In: Patrulhas ideológicas. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1980 (grifos e comentários entre
colchetes nossos).
218
Rapsódia 12
A transformação estaria ligada, portanto, mais a “gerar soluções próprias (...)
não importa em que ramo ou condição”, ou seja, não exclusivamente dentro
do interior do mundo da arte. Que o artista a tenha como prioritária coloca-o
mais próximo dessa atividade, embora tal política da atividade criativa, nessa
imersão no cotidiano, seja acessível a todos. Sua preocupação em teorizar tal capacidade transformativa andava em paralelo com suas soluções para levar adiante
o programa ambiental e, acredito, sem nenhum compromisso além daquele da
inventividade, concordando aqui com Favaretto, mas agora explorada a partir de
uma emergência desde o coletivo. Em outra entrevista dessa mesma época, dada a
Ligia Pape (1978), vemos algo nesse sentido:
L. Pape – Esse problema [o da importação da imagem] seria resolvido
em um processo de assimilação antropofágico. Alguns artistas estão
dizendo que a arte acabou, e você, como vê isso?
H. Oiticica – Eu não gosto é dessa relação de arte e real, essa dicotomia, que para mim já não existe mais, há muito tempo, aliás nunca
existiu. Isso de falar “fui da arte para o real”, como se fossem duas
realidades, não tem sentido, estou sempre ouvindo isso: o real e a
arte. Sartre de��niu isso da melhor maneira. Antes havia a separação
entre o coletivo e a arte, agora, há uma emergência do coletivo, ele
emerge, mas a gente faz parte dele. Antes havia uma separação entre esse coletivo e a arte. Agora, nesta fase de transição, em que o
coletivo emerge, nós também fazemos parte do processo. Algumas
pessoas continuam na posição anterior, em que o artista estava separado do coletivo. Isto é um processo social, ético, todos fazendo
parte de um mesmo processo. Estamos sem dúvida numa fase de
transição. Então, fazem essa dicotomia, principalmente os artistas
plásticos. Quanto ao problema da arte ter acabado, eu sinto hoje,
aqui, um clima de julgamento. Realmente, quanto à pintura e à
escultura, elas não são mais o que eram, mas isso é parte do meu
passado. Para mim esses meios já foram superados, mesmo. Mas aí é
um problema especí��co. Hoje eu não tenho nada a fazer no espaço
de uma galeria de arte, por exemplo. Mas poderia ter. Agora, galeria
A dimensão política da arte | M����� G����
219
como se concebe no Brasil ainda é uma coisa para expor quadros e
esculturas”21 .
O momento de transição seria esse no qual todos estão envolvidos, numa
coletividade abrangente que inclui artista, espectador e todos, e se existe desse
modo, a arte não poderia surgir como antes, promovendo uma espacialidade
coletiva. Mas sim, nas práticas coletivas que vinculam a uma coletividade práticas que sustentam sua existência, não com ��m especí��co, mas como resultado
espontâneo de se estar junto por não haver outro modo de estar vivo para seres
humanos. Essa poderia ser uma compreensão mais abrangente de arte pública,
numa clara ampliação da posição de Hilde Hein22 , para a qual a arte é sempre
arte pública porque abre espaços de debate, promove espaços de debate sem se
preocupar em promover consensos, nem recusar/aderir a uma organização hegemônica da sociedade. Nesses termos, a arte seria política também porque criaria
espaços de discussão. Sabemos, entretanto, que a ��loso��a da arte de Oiticica não
comportaria tal redução da arte a discurso. Por outro lado, para Hein, a principal
preocupação era reforçar que arte tinha abandonado sua dimensão privada ligada
ao modernismo, à contemplação (e seus “esteticismos” lembrando Oiticica) e
que seus espaços de exibição tradicionais precisavam ser repensados, o que Oiticica fazia desde Parangolés, quando sua performance não entrou no prédio do
MAM-RJ e aconteceu no pilotis com muita música, se transformando em mais
uma lenda urbana. Essas ideias foram discutidas por ela em meados dos anos 1990
quando se iniciou, grosso modo, uma de��nição do que hoje se tem como arte
pública, mas sua prática, antes da de��nição, era mais do que a da arte pública,
era a da busca por manifestações públicas sem autoria, no limite mesmo da sua
compreensão, o que acredito Oiticica ter feito sobretudo na sua fase tardia.
21
PAPE, Ligia. “Fala, Hélio [Entrevista]”. In: Revista ARS, v. 5, n. 10. São Paulo: 2007, p. 18.
HEIN, Hilde. “O que é arte pública”. Trad. Tiago Mendes e Miguel Gally. In: Cadernos
de Estética Aplicada – VISO, n. 22, Jan-Jun, 2018.
22
220
Rapsódia 12
5. Considerações ��nais
Pretendeu-se, com este artigo, numa primeira versão, fazer pensar sobre a possibilidade de um pensamento tardio do artista Hélio Oiticica vinculado a seus
projetos, obras e re��exões compreendidos entre 1971-1980. O principal argumento
sustentado foi o de que pode ter havido uma mudança teórica na sua compreensão
da gênese do político, não mais ligada àquelas ideias sustentadas por Parangolés e
sua fase correspondente. A criação de manifestações sociais com uma unidade a
partir de uma coletividade dada sem ou com o mínimo de provocação, nos fez
pôr lado a lado, de uma maneira inicial, seu pensamento artístico-político e as
ideias das ��lósofas contemporâneas Chantal Mou�fe e Hilde Hein. Enquanto a
primeira pensa a arte como tendo que se identi��car com uma promoção ou recusa
de uma organização hegemônica da sociedade e, nesse sentido, deixa a arte como
refém de sua ��loso��a política, Oiticica explora como a arte pode re��etir e fazer
ver uma integralidade imanente à unidade coletiva, sendo ela mesma uma gênese
do político em suas manifestações coletivas. Guardando uma política própria,
a arte, teria pensando Oiticica, seria necessariamente pública, mas discordando
da posição de Hein que vê nessa dimensão pública a chance e a construção de
promoção de debates. Oiticica, segundo nossas especulações, portanto, estaria
propondo repensar a atividade criadora nas artes visuais aproximando-a da cotidianidade, para além da dicotomia espectador-artista, e vendo na emergência, a
partir de uma coletividade existente, de manifestações e invenções de jogos sociais,
o que apontaria, ao mesmo tempo, uma política artística e a uma arte política.
Referências bibliográ��cas
ANJOS, Moacir dos. “As ruas e as bobagens: anotações sobre o Delirium Ambulatorium de Hélio Oiticica”. In: Revista Ars, ano 10, n. 20. São Paulo: 2012.
FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 1992.
GALLY, Miguel. “Gênio coletivo visto a partir das artes espaciais”. In: SILVA,
C. et all. Estética: Coleção Atas XVII Encontro ANPOF (2016). São Paulo:
ANPOF, 2017, p. 232-242.
A dimensão política da arte | M����� G����
221
HEIN, Hilde. “O que é arte pública”. Trad. Tiago Mendes e Miguel Gally. In:
Cadernos de Estética Aplicada – VISO, n. 22, Jan-Jun, 2018.
MOUFFE, Chantal. “Every Form of Art has a Political Dimension” (Interviewed
by Rosalyn Deutsche, B. W. Joseph, and Thomas Keenan). In: Grey Room 02,
Winter 2001, p. 98-125.
___. Sobre o político. Trad. Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
___. Conglomerado newyorkaises (Org. César O. Filho e Frederico Coelho). Rio
de Janeiro: Ed. Autêntica, 2013.
___. “Entrevista a Heloisa Buarque de Holanda e Carlos Alberto M. Pereira”
(1979). In: Patrulhas ideológicas. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1980.
PAPE, Ligia. “Fala, Hélio [Entrevista]”. In: Revista ARS, v. 5, n. 10. São Paulo:
2007.