Organizadores
Felipe de Araújo Chersoni
Anayara Fantinel Pedroso
Thomaz Jefferson Carvalho
Criminologia periférica
1ª Edição
Foz do Iguaçu
2022
© 2022, CLAEC
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de 14/12/73. Nenhuma parte
deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou
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licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0).
Editoração: Laura Valerio Sena
Diagramação: Laura Valerio Sena
Capa: Gloriana Solís Alpízar
Revisão: Os organizadores
ISBN 978-65-89284-36-9
DOI: 10.23899/9786589284369
Disponível em: https://publicar.claec.org/index.php/editora/catalog/book/84
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Criminologia periférica [livro eletrônico] / organização Felipe de
Araújo Chersoni, Anayara Fantinel Pedroso, Thomaz Jefferson
Carvalho. -- 1. ed. Foz do Iguaçu, PR: CLAEC e-Books, 2022.
PDF.
Vários autores.
Vários colaboradores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-89284-36-9
1. Criminologia 2. Controle Social 3. Periferia. I. Chersoni,
Felipe de Araújo. II. Pedroso, Anayara Fantinel. III. Carvalho,
Thomaz Jefferson.
CDD: 340
Observação: Os textos contidos neste e-book são de responsabilidade exclusiva de
seus respectivos autores, incluindo a adequação técnica e linguística.
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Sumário
Apresentação: Na encruzilhada dos saberes
Felipe de Araújo Chersoni, Anayara Fantinel Pedroso, Thomaz Jefferson Carvalho
“Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve
prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak
Sara de Araújo Pessoa
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A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as
Gabriel Dias, Meire Mathias
24
Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social
Felipe de Araújo Chersoni, Anayara Fantinel Pedroso, Thomaz Jefferson Carvalho
37
A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e
consolidação do autoritarismo
Anayara Fantinel Pedroso
48
A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma
contranarrativa de resistência à apropriação cultural
61
Ana Karolina Matias Emydio, Cristiane Westrup, Fernanda da Rocha Fabiano, Fernanda
da Silva Lima
A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta
na lei antitóxico
72
Matheus Marins, Fernando Henrique da Silva Horita
Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia
feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas
Rafaela Isler da Costa
87
Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova
ferramenta de seletividade estatal
96
Ramison Benedito da Rocha de Souza, Tainá Ariel Vaz Diana Cifuentes, Tatiana Moraes
Cosate
Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica
criminológica da libertação negra
Lídia Piucco Ugioni, Felipe de Araújo Chersoni, Thomaz Jefferson Carvalho
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Criminologia periférica
Apresentação
Apresentação: Na encruzilhada dos saberes
A ideia de uma coletânea de estudos denominada “Criminologia Periférica” surgiu
na perspectiva de ilustrar algumas problemáticas nas quais o pensamento crítico vem
se debruçando, com razão, nos últimos anos: A violência do Estado contra pessoas que
vivem nas periferias do Brasil, entendendo o território brasileiro e latino-americano,
também como uma periferia global.
As vozes que ecoam desses territórios, são ferramentas de enfrentamento a esta
realidade, e esta eclosão ocorre de diversas formas, seja através da música, da arte, dos
movimentos populares e etc. As cidades são vivas! Porém, seus muros são cercas e o
concreto, grandes muralhas, que encurralam as pessoas que não carregam consigo os
privilégios de Gênero, Raça e Classe. Os prédios continuam altos. Contudo, aquilo que
prende o corpo, pode dar liberdade à voz através da manifestação cultural. Muros,
prédios e concretos permitem que a cidade fale, pela perspectiva daqueles que sempre
foram silenciados. (Trans)formando quadros onde a história é (re)escrita, nas ácidas
linhas periféricas. Tão ácidas quanto a própria (sobre)vivência.
O papel da academia nesta realidade é um fator de reflexão, especialmente, com a
chegada, através dos programas de ações afirmativas, de pessoas que carregam uma
bagagem de exclusão, que tornou possível tangenciar também, a partir dessas vivências,
problemáticas que, talvez, antes não fossem comumente tangenciadas, ou, que ao
menos não fossem problematizadas desde as pessoas que carregam o alvo da
brutalidade estatal nas/pelas costas.
A partir desta ideia, a coletânea que o leitor e a leitora têm em mãos, se soma a
tantos outros materiais importantes desenvolvidos durante o longo acúmulo
criminológico crítico, para colaborar na compreensão da nossa realidade, para estar
junto aos movimentos populares, artistas periféricos e demais maiorias que são
minorizadas pelo capitalismo periférico, dependente e racializado. Portanto, algumas
questões são centrais nas reflexões a seguir, como por exemplo, o racismo, esse
entendido como estrutural, as opressões de gênero que se cruzam nesta estrutura
racializada e ao lado de classe constroem um tripé de dominação da nossa gente. Não
estamos falando de recorte e sim de totalidade.
Transitando neste sólido entendimento, a violência contra tais pessoas é o centro
de análise destes escritos, que preocupados em modificar essa realidade, se entrelaçam
entre a distância pesquisador/a, pesquisa, para a compreensão, de que, vindo de onde
viemos, nossos esforços teóricos falam mais que “resultados”. As pesquisas são vivas! e
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Criminologia periférica
Apresentação
podem ser sim, militantes, parceiras dos movimentos e atuantes entre os becos e vielas.
Essa academia é possível!
Esperamos que o/a leitor/a que se debruça nesta obra, tire daqui ferramentas que
se somem em suas lutas diárias, que seja alento entre os vagões de trens e metrôs
(sempre lotados), que seja companheira entre os assentos dos ônibus, que seja aliada
da luta do campesinato, que seja comparsa das manifestações artísticas e que se some,
de alguma forma, à luta da nossa classe trabalhadora!
A esses mesmos leitores deixamos nossos agradecimentos, que se estendem à
equipe da Editora CLAEC. Agradecemos pela paciência e atenção ao projeto.
Boa leitura e um forte abraço dos organizadores!
Felipe de Araújo Chersoni
Anayara Fantinel Pedroso
Thomaz Jefferson Carvalho
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Criminologia periférica
Desenho: Natalya Carrazoni.
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Criminologia periférica
“Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse
Lawyers Speak
DOI: 10.23899/9786589284369.1
“Eu tô só pela destruição!” – Tradução de
entrevista com organizador da greve prisional
nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers
Speak
Sara de Araújo Pessoa*
Introdução
A temática do trabalho prisional é bastante conhecida dos estudiosos da
criminologia crítica, principalmente daqueles que partem da economia política da pena,
encontrando na conjunção cárcere-fábrica explicações para desvelar as funções e
origens da pena de prisão e sua intrínseca relação com o desenvolvimento do
capitalismo.
Diante da relevância teórica da questão, em pesquisa anterior debrucei-me sobre
o trabalho prisional no Brasil na atualidade, a partir de estudo de caso em uma
penitenciária no sul de Santa Catarina. Naquele momento, busquei compreender a
dinâmica do trabalho prisional por meio de inspiração etnográfica, frequentando por
alguns meses a instituição, observando e conversando com seus funcionários,
participando de eventos de incentivo ao trabalho prisional, e também entrevistei
homens privados de liberdade que trabalhavam para uma empresa de esquadrias de
alumínio e como “regalias”, isto é, no próprio funcionamento da penitenciária (na
cozinha, limpeza, etc.) (ARAÚJO PESSOA, 2019).
Na pesquisa, concluí que o trabalho prisional exercia as seguintes funções:
disciplina e controle dos internos; superexploração1 da mão de obra prisional para o
setor privado; superexploração da mão de obra prisional para o setor público.
Professora na Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT). Mestra em Direito pela Universidade
do Extremo Sul Catarinense (UNESC).
E-mail: sara.pessoa@outlook.com
1
Desta vez em coautoria com Araujo Chersoni (2022), desenvolvo melhor a ideia da superexploração a
partir de uma perspectiva da teoria marxista da dependência, ferramenta teórica fundamental para
compreender o avanço da exploração privada sobre os braços que se encontram em situação de cárcere,
fazendo a gestão refinada deste exército de reservas, cumprindo papel histórico assim como as
workhouses (ARAUJO PESSOA; ARAUJO CHERSONI, 2022).
*
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“Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse
Lawyers Speak
DOI: 10.23899/9786589284369.1
Ainda que não seja realidade nacional, muito por falta de infraestrutura para
suportar e organizar2, há um projeto em curso, uma intenção de proletarizar as prisões.
Com isso quero dizer que sob o manto da declarada função ressocializadora da pena,
Estado e capital unem-se para levar empresas às prisões que utilizarão de mão de obra
carcerária. A exemplo disso, cito o decreto nº 9.450 de 2018, que institui a Política
Nacional de Trabalho no âmbito do Sistema Prisional (Pnat). Junto a ele, destaco o
“manual: mão de obra prisional”, lançado em 2021 pelo DEPEN, órgão do Ministério da
Justiça e Segurança Pública, voltado para a inserção da iniciativa privada “[...] no
processo de ressocialização do preso pela inclusão em atividades de trabalho” (DEPEN,
2021, p. 7).
Essas iniciativas inserem-se num aparato técnico-jurídico que permite a
exploração dos trabalhadores privados de liberdade, que contam com pouquíssimos
direitos: A remuneração desses trabalhadores é inferior ao salário mínimo, tendo como
piso 3/4 do salário mínimo vigente3; as empresas são desobrigadas de recolhimento
previdenciário, retenção, repasse e responsabilidade tributária da contribuição para a
Seguridade Social; o trabalho prisional não está sujeito à Consolidação das Leis do
Trabalho; esse trabalho dispensa a necessidade de Carteira de Trabalho e Previdência
Social (CTPS); os trabalhadores do sistema carcerário não fazem jus a férias nem ao
décimo terceiro.
Ressalto que essas reflexões não se colocam contra oportunidades de redução do
sofrimento que a prisão implica invariavelmente, mas trazem os alertas: a política
laboral do sistema penitenciário não tem se destinado à reintegração social como
política de direitos e assistência; se o sistema prisional brasileiro tornar-se enfim um
complexo industrial altamente lucrativo ao setor privado será ainda mais difícil refreálo.
A problemática ganha contornos mais nítidos ao observarmos os EUA, país que
lidera o ranking de encarceramento no mundo, que influencia fortemente as políticas
de segurança pública brasileiras e que tem já consolidado um modelo de exploração da
mão de obra prisional por empresas privadas. Essa exploração faz parte do que ativistas
e estudiosos definem como “complexo-industrial-prisional”, fundamental à
Em seminário online, questionei o professor Luis Carlos Valois sobre a problemática da exploração do
trabalho prisional. Em resposta, ele comentou que as oportunidades de trabalho são tão ínfimas e nossas
prisões não têm a mínima infraestrutura que esta [a exploração da mão de obra prisional] não seria uma
questão para o momento.
3
Em 2021, o STF julgou a ADPF 336 que questionava a constitucionalidade da remuneração inferior ao
salário-mínimo, decidindo que não há violação aos princípios da dignidade humana e isonomia.
2
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compreensão do encarceramento em massa na atualidade, que engloba não apenas o
trabalho prisional, mas também as privatizações das prisões, alianças entre os mundos
militar e corporativo, envolvimento de empresas de produções diversas (alimentação,
tecnologia de segurança, construtoras) no negócio da punição, enfim, “[...] a
transformação dos corpos encarcerados – e eles são, em sua maioria, corpos de pessoas
de cor – em fontes de lucro [...]” (DAVIS, 2018, p. 95).
Buscando alternativas concretas de mudanças que não esperam a boa vontade do
Estado, apresento tradução de entrevista realizada por Jared Ware, escritor e advogado
pelos direitos das pessoas encarceradas nos Estados Unidos, com representante da
organização de direitos humanos Jailhouse Lawyers Speak sobre a greve contra o
complexo-industrial-prisional, articulada por prisioneiros de 17 estados nos EUA em
2018.
As resistências a um cenário de superexploração de mão de obra já consolidado –
tomado também como nova escravidão – alertam para a dimensão do problema a nossa
porta e delineiam caminhos possíveis que contam com articulação intra e extra muros.
É a partir do movimento das pessoas privadas de liberdade junto àqueles que, fora das
grades, lutam pela causa antiprisional, que mudanças podem acontecer. Espero que nos
sirva de inspiração.
“Eu tô pela destruição!”: Entrevista com organizador da greve prisional,
representante da Jailhouse Lawyers Speak
Jared Ware
Pouco mais de uma semana após a incidência mais mortal de violência registrada de
violência carcerária nos Estados Unidos, um quarto de século, uma coalizão de
prisioneiros, incluindo representantes da organização de direitos humanos Jailhouse
Lawyers Speak, anunciou uma greve prisional nacional.
A greve liderada por prisioneiros está marcada para ser lançada em 21 de agosto, que é
o 47º aniversário da morte do organizador da prisão dos Panteras Negras e teórico
político George Jackson. Ela continuará até 9 de setembro, o 47º aniversário da Rebelião
de Ática.
Em 4 de maio, divulguei uma entrevista com prisioneiros da Carolina do Sul, incluindo
vários representantes da Jailhouse Lawyers Speak, na qual discutiram que condições
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dentro do sistema prisional poderiam produzir o tipo de violência que ocorreu em Lee
Correctional [Instituto Correcional de Lee] em 15 de abril. Na ocasião, eles
compartilharam seus pensamentos sobre melhorias imediatas necessárias ao sistema
prisional para aliviar essas condições.
Recentemente, entrevistei outro representante da Jailhouse Lawyers Speak, para pensar
sobre os últimos meses de planejamento interno e organização solidária no exterior.
Perguntei sobre o processo de organizar prisioneiros como classe, escravidão nas
prisões, sua solidariedade com os presos da ICE, diversificação de táticas e o que as
pessoas de fora podem fazer para apoiar a greve.
Devido à ampla repressão contra os organizadores presos e proeminentes prisioneiros
politizados, este representante da Jailhouse Lawyers Speak recebeu o anonimato.
J: Faltam apenas algumas semanas para a greve e há muitas organizações diferentes
tentando se envolver no exterior. Quais são algumas das coisas que eles podem fazer
em solidariedade?
Representante da Jailhouse Lawyers Speak: A primeira coisa é, quando eu estava
conversando com alguns dos camaradas da JLS, falávamos sobre o que esses grupos
podem fazer. De greves passadas, o que aprendemos - por exemplo, quando fizeram
uma [demonstração] há alguns anos em setembro [2016], e então eles fizeram o Millions
For Prisoners [Marcha dos Direitos Humanos] - o que aprendemos é que o lado de fora,
quanto mais pessoas tendem a se levantar, demonstrar de fora, particularmente
demonstrar às prisões, o que fazem é incitar. Incita dentro e é por isso que as prisões
têm um problema com isto.
Portanto, a maior coisa que podemos pedir a qualquer um desses grupos ou
organizações é que realizem algum tipo de evento, particularmente um evento que
possa atrair a atenção das rádios, a atenção da mídia jornalística, qualquer coisa que
possa chegar às celas e às prisões. Quanto mais programas de rádio captam, mais os
prisioneiros podem ouvi-los. Particularmente, os presos que não têm acesso a telefones
ou acesso à Internet podem, pelo menos, acessá-los enquanto ouvem seus rádios ou
podem vê-los na televisão.
Isto é muito, muito importante. É assim que os ataques da Flórida se espalham tão
rapidamente, porque eles conseguiram entrar nos canais. Eles foram capazes de criar
um inferno suficiente para que a mídia pegasse e devolvesse às prisões e às celas que
[agentes da prisão] realmente não queriam que entrasse.
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J: Então o plano é que isso dure de 21 de agosto a 9 de setembro, certo?
JLS: Sim.
J: Então as pessoas deveriam estar fazendo isso agora? Deveriam estar fazendo tudo
durante a greve? Quando deveriam fazer isso?
JLS: Todos os itens acima. Não há uma estratégia direta para isso. Acho que todos nós
ainda estamos sentindo e aprendendo enquanto avançamos, mas penso que todos os
itens acima. Acho que definitivamente antes [da greve].
Como por exemplo, na Carolina do Sul, quando eles realizaram a manifestação em
frente à prisão de Lee County, que ajudou a incitar os caras dentro e informá-los que
havia apoio externo até o ponto em que agora, em Lee County, esses caras estão de uma
forma ou de outra planejando participar. Porque em certas áreas do condado de Lee
você não conseguia nem saber o que estava acontecendo, mas fora [o apoio] ajudou a
conseguir informações. E isso foi antes da data real da greve.
Precisamos de grupos do lado de fora para fazer isso. Outra coisa que eles podem fazer
é tentar contatar organizações ou grupos em suas áreas que geralmente sabem fazer
esse tipo de trabalho na prisão, e muitos desses grupos você verá nas mídias sociais,
facebook, twitter, apenas se conecte com alguns desses organizadores.
O que aprendi é que esses grupos podem ser pequenos em números, e você pode ter
algumas organizações maiores que queiram ajudar a ver o que podem fazer. Essas
organizações maiores que querem ajudar, elas precisam se conectar com as menores
que já estão trabalhando e seguir o exemplo até lá.
J: Uma das coisas que vi recentemente é que a JLS emitiu uma declaração de
solidariedade com aqueles que estão na prisão do ICE. Já houve conexões feitas pelos
organizadores da greve em termos de demandas que referenciam pessoas que estão
em centros de detenção de imigrantes. E a declaração de solidariedade também falou
sobre pessoas que estavam trabalhando no exterior e ocupando escritórios da ICE e
coisas assim.
Você pode expandir um pouco sobre as conexões que todos vocês estão fazendo lá,
entre a sua situação e a situação dos centros de detenção de imigrantes?
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JLS: Quanto à conexão com o ICE e por que estamos solidários, o maior motivo é que
entendemos essas gaiolas. E não apenas isso, mas é tudo o mesmo sistema. E isso é algo
que o JLS vem promovendo desde o primeiro dia. Todo o sistema em si - o sistema
judicial, o sistema de injustiça - é uma grande bola de corrupção, uma grande bola de
lixo [risos]. Apenas sendo direto.
E nós entendemos a natureza exploradora disso. Independentemente do que eles
dizem, é sempre orientado para o lucro, e particularmente esses centros de detenção
do ICE, sabe? Sabemos que esses são definitivamente - você pode realmente olhar para
eles e ser capaz de distinguir isso [com essas instalações de gerência privada] um pouco
melhor às vezes do que você pode [com] algumas dessas instalações mais estaduais e
federais [em execução] . Com a detenção do ICE, você pode olhar diretamente para isso
e saber que estão diretamente disponíveis para ganhos financeiros, e é mais difícil
escondê-lo do que para as estaduais e federais. A pessoa comum pode ver isso.
Mas nós definitivamente sentimos por aqueles que estão nessas gaiolas, naquelas
gaiolas de detenção ICE. Antes de eu ser transferido para a prisão estadual [da prisão
federal], na verdade eu estava enjaulado com alguns dos caras que estavam sendo
transportados para a [prisão] federal do ICE [instalações], e você sempre podia ver o
medo nos olhos desses homens, quando eles estavam sendo transferidos, e não apenas
isso, às vezes você pode ver a tristeza, às vezes você pode ver - como eu estava
explicando para alguns dos outros companheiros quando falávamos sobre isso - às
vezes você pode até ver que alguns desses caras sentem como se estivesem
enfrentando a morte, quando voltam para casa. Então você não pode deixar de perceber
que é algo sobre o qual todos devemos nos preocupar, especialmente quando se sabe o
que está acontecendo.
Mas mais que qualquer coisa, são violações dos direitos humanos, essas instalações. E
mais uma vez, não posso enfatizar que são todos iguais. Está tudo na mesma cadeia, não
há diferença lá. Fora o fato de que existem algumas diferenças óbvias, mas a essência e
a natureza fundamentais do ICE não são diferentes de onde estou agora. É tudo
escravidão.
J: Falando um pouco sobre a escravidão nas prisões, existem várias análises desse
conceito. E uma das coisas que eu acho que cria alguma tensão em torno disso, quando
falamos especificamente sobre o aspecto trabalhista, é essa noção de que existem
essas unidades de “privilégio” ou “personagem” que são realmente as pessoas que têm
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mais trabalho, eu acho. Porque certamente há trabalho que acontece dentro das
prisões que são algumas horas aqui ou ali, limpando, cozinhando ou fazendo outros
trabalhos ao redor da unidade. Mas há pessoas que realmente argumentam incluindo os reformadores da prisão e os abolicionistas da prisão - que as prisões não
são o mesmo que a escravidão, mas são uma forma de controle social.
Qual é a sua análise de tudo isso?
JLS: Bem, acho que ambos estão corretos. É um mecanismo de controle social e também
escravidão.
Eu tenho que dizer isso aqui, de uma perspectiva da diárpora Africana - e tenho que
dizer assim, certo? - porque muitos de nós voltamos aqui, particularmente da JLS, nós
viemos de diferentes perspectivas culturais, mas de uma perspectiva da diáspora
Africana: Sempre fui ensinado e acredito, com base em minha experiência cultural neste
país, que o atual sistema prisional, no que se refere à perspectiva africana, é
diretamente dos dias de plantação.
Eu acho que desde que os africanos saíram desses barcos, aterrissaram aqui, essa
conexão foi claramente definida, mesmo quando eles foram removidos das plantações,
e eles começaram a passar por todo o resto, e a 13ª Emenda [entrou] em vigor... e isso
é por que os africanos da diáspora, em especial, sentem o mesmo quando se trata de
prisões. Nunca tivemos muito problema em identificá-la como escravidão.
Eu me lembro do meu avô e eles, eles estavam falando sobre isso. Prisão é escravidão.
Eles nunca se referiram a ela como prisão ou cadeia, eles se referiam como sendo
forçados a voltar para as plantações novamente. Isso é algo que sempre entendemos. É
claro que, à medida que as coisas evoluíram, o sistema evoluiu, é um pouco mais
sofisticado e você sabe que as pessoas tentaram mudar o modo de falar e houve uma
desconexão.
Percebo que há uma desconexão com muitos dos nossos camaradas brancos. Porque
eu não acho necessariamente que eles veem a conexão lá. “Por que tantos negros veem
do jeito que eles veem, assim?” Isso [vem] mais deles. E eu acho que é por causa dessa
falta de experiência cultural, essa conexão cultural. A continuação [da escravidão], eles
não experimentaram isso. Então eles não veem assim.
Por outro lado, também sabemos - acho que muitas vezes as pessoas pensam que,
quando dizemos que é escravidão, sentimos falta do quadro maior de que também é um
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mecanismo de controle social. Nós também entendemos isso. Entendemos que é um
mecanismo de controle social, entendemos as conexões com o capitalismo,
entendemos como esse empreendimento se espalhou pelo mundo hoje, como é muito
mais do que apenas ser colocado aqui em um prédio, em uma célula. Nós entendemos
tudo isso bem aí. Ninguém está perdendo essa foto também.
Mas acho que fazemos uma grave injustiça quando ignoramos o fato de que ainda é uma
continuação da escravidão.
J: Uma das coisas que temos que entender é que os prisioneiros querem ser capazes
de sair de suas celas. Você vai ouvir isso de ex-prisioneiros, eu ouço isso de exprisioneiros, e muitas vezes são ex-prisioneiros brancos. É como se eles quisessem o
trabalho, porque essa era a oportunidade para eles saírem do isolamento celular, para
sair e fazer alguma coisa, fazer algo com as mãos, trabalhar, alimentar as pessoas, se
comunicar.
Para eles, eles não encaram isso como escravidão, em parte porque olham para a
perspectiva de ficarem alojados naquela cela por 23 horas por dia e não serem capazes
de fazer algo tão mais prejudicial a eles do que a perspectiva de poder trabalhar,
mesmo que não estivessem sendo pagos por isso. Muitas vezes penso nisso como algo
interessante, porque todos conhecemos os horrores do que é a escravidão. Eu acho
que há também essa percepção de que as pessoas têm que chegar, até certo ponto,
que a prisão é tão horrível que as pessoas farão muitas coisas diferentes para
proporcionar algum alívio a essa experiência.
JLS: Eu sei que muitos, muitos, muitos prisioneiros prefeririam estar fora de suas celas,
conseguindo algum espaço para as pernas, conseguindo alguns alongamentos nas
pernas, sendo capazes de passear e ser capaz de falar, se puderem. E quando você lhes
dá a oportunidade de fazer isso, se eles trabalham, obviamente, vão optar por trabalhar.
Porque essa é a oportunidade que eles têm para sair, mas você está se baseando se vai
ou não fazer essa mão-de-obra particular ou não. Toda a sua existência é baseada em
se você vai ou não fazer esse trabalho específico ou não. Assim como essas novas
"unidades de privilégio" que estão voando pelo país agora. Na Flórida, eles têm essas
“unidades baseadas na fé”, “unidades de caráter” e, para estarem nessas chamadas
unidades superiores com privilégios superiores, é obrigatório que você trabalhe. Se
você não conseguir trabalhar, você será removido dessas unidades.
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Então, quando estamos olhando para isso, obviamente, muitas vezes o que encontrei é
que muitos prisioneiros aceitam suas realidades. Eles aceitam esse fato, e muitos deles
racionalizam isso como se “isso não é escravidão”, e eu ouvi dizer agora, de prisioneiros,
que “isso não é escravidão”, você segue o que estou dizendo? Que isso é apenas uma
parte de sua sentença, e é assim que eles a racionalizam. “Você sabe, bem, uma pessoa
normal trabalharia. Uma pessoa normal faria 8 horas”.
Às vezes leva um tempo para tirá-los disso, porque muitas vezes se recusam a sair disso.
Porque se mudarem de ideia, então começarão a se recusar a obedecer, e eles não
querem se recusar a obedecer porque sabem instantaneamente que suas condições
podem ir de mal a pior.
Deixe-me ser honesto. Neste momento, se você fosse trabalhar em uma liberação de
trabalho versus uma prisão de segurança máxima, não acho que tenha muitos
prisioneiros que desistam da chance de ir para uma instalação de liberação de trabalho.
Não importa o quão ruim seja o trabalho, não importa o quão perigoso seja o trabalho,
não importa o quanto o trabalho possa afetar sua saúde futura. Temos empregos aqui
que eu tenho certeza que estão causando tumores de prisioneiros, ou que terão
tumores no futuro, problemas nos pulmões, agentes cancerígenos estão sendo
dispersados por algumas dessas plantas, e eles estão fazendo tudo isso de graça. Mas
eles estão fazendo isso porque querem sair dessas células. É muito melhor do que ficar
nas celas o dia todo e bater com a cabeça na parede. Essas são as consequências de não
trabalhar.
J: Obviamente, isso está sendo feito em um aviso mais curto do que a greve de 2016,
mas há duas coisas que vejo que todos vocês têm trabalhado a seu favor.
Uma delas é que as demandas que todos vocês emitiram são mais abrangentes, e as
pessoas podem olhar para elas a partir de vários caminhos da vida, sejam elas radicais
ou simplesmente se preocupando com outros seres humanos, e ver que essas são
questões de direitos humanos que todos vocês estão organizando.
Acho que o outro aspecto disso é que, em termos daquilo que você está vendo das
ações propostas, você ampliou o escopo dessa vez. Não é apenas sobre o lado do
trabalho - o que você pode controlar, mas você não pode controlar tudo -, mas sobre
outras oportunidades que as pessoas têm de resistir ao complexo industrial prisional
de várias maneiras.
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Criminologia periférica
“Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse
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Eu queria lhe dar uma oportunidade de falar um pouco sobre a estratégia por trás
disso, além de falar sobre algumas dessas demandas e oportunidades para as pessoas
resistirem.
JLS: Bem, o motivo. Quando conversamos pela primeira vez com vários prisioneiros em
vários locais diferentes, eles estavam relatando e nós tentando decidir sobre essas
demandas nacionais. Quando começamos, provavelmente tínhamos umas trinta e
poucas demandas e estávamos tentando encurtar a lista. Tentávamos ser justos com
algo que impactou a todos nós. Foi geral, mas definitivamente impactou a todos nós, e
definitivamente as consideramos dentro dos direitos humanos. Esse é o tipo de linha
de onde viemos.
Uma das coisas que notamos na última greve: muitas pessoas não acharam que tiveram
a oportunidade de participar. Isso foi algo que notamos; Por exemplo, diziam que "nem
todos nós trabalhamos". Alguns de nós, como eu, estávamos trancados durante esse
período. Algumas pessoas estavam fora e trancadas nessas “unidades de bloqueio”4. Eles
não trabalhavam, muitos presos não têm emprego, então como não há trabalho para
eles, não há como participarem ou se sentirem parte de algo que está progredindo.
Tivemos dois ou três caras em nossas chamadas que faziam parte de instalações de
liberação de trabalho ou instalações de pré-lançamento. Eles queriam saber o que
poderiam dizer, porque não há como desistirem de suas posições para uma greve, mas
gostariam de participar.
Outra coisa que notamos desde 9 de setembro [de 2016] - e notamos durante o dia 19
de agosto [de 2017] – é que as prisões aprenderam a posicionar os prisioneiros uns
contra os outros.
Eu acho que no Alabama, eles trouxeram um monte de trabalho para liberar pessoas,
trabalhar em empregos, cozinhas, limpeza e fazer os trabalhos que os [grevistas] se
recusaram a fazer nos complexos em uma ou duas das prisões no Alabama. A mesma
coisa aconteceu na Geórgia; notamos que isso aconteceu na Geórgia em uma ou duas
das prisões naquele local.
Na Carolina do Sul notamos isso. Agora, o que eles fizeram, mais recentemente
notamos, é que essas unidades [privilegiadas], sobre as quais falamos anteriormente,
Do original “lockdown units”, tratam-se de prisões de segurança máxima ou instalações autônomas nas quais os
prisioneiros ficam nas celas 23 horas por dia.
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agora estão posicionadas nos pátios, e em todo o país começamos a vê-las, e elas são
posicionadas como a força de trabalho.
Toco nisso por causa do que acontece quando uma prisão é fechada, mas você ainda
tem trabalhadores. Como esses caras [no bloqueio] ainda podem participar? É por isso
que você vê coisas como o boicote, porque o boicote está no ponto para essas
condições. É o ponto para os caras nesses campos que devem trabalhar para manter
suas posições nessas instalações de trabalho ou de pré-lançamento, mas que querem
mostrar solidariedade com o resto dos prisioneiros que estão nos estaleiros mais
hardcore.
Uma das coisas que decidimos fazer foi boicotar, e acho que o irmão Bennu [Hannibal
Ra-Sun do Free Alabama Movement5] inventou isso ali mesmo através da Redistribute
the Pain. Nós repassamos isso de novo e de novo, e isso pareceu se alinhar e,
especificamente, ainda visava o sistema, e ainda enfraquece a economia, porque no final
do dia nós temos que descobrir como solapar a economia do sistema também. Essa foi
uma das razões pelas quais criamos isso.
Sobre os protestos, alguns dos prisioneiros queriam uma ação mais agressiva. Em
algumas das prisões, vimos ações mais agressivas recentemente em relação a eles.
Queriam que isso estivesse em cima da mesa, além de greves de trabalho. Mais uma vez
nem todo mundo está trabalhando e eles queriam poder participar. Eu acredito que nós
vamos ver protestos em uma ou duas das prisões, talvez três ou quatro. Vamos ver, mas
podemos verificar pelo menos duas prisões agora onde querem protestar.
E então tivemos a greve de fome, e a greve de fome foi feita por caras que estavam na
posição que eu já estive antes, no bloqueio. Eles podem participar recusando-se a
comer naquele dia em particular e mostrar sua solidariedade e resistência. Porque
neste estágio particular entre os dias 21 de agosto e setembro, trata-se de mostrar
solidariedade uns com os outros.
É um lembrete também. É definitivamente um lembrete de nossas posições como
prisioneiros porque, em algum momento no ano passado, nós definitivamente ficamos
fora de sincronia em todo o país. É uma tendência nacional no momento, estamos fora
de sincronia com quem devemos transformar e com nossas posições enquanto
prisioneiros. Este é um grande problema para mim, pessoalmente, e é definitivamente
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Movimento fundado em 2013 contra as degradantes prisões do Alabama.
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um grande problema para os membros da Jailhouse Lawyers Speak, já falamos disso
várias vezes.
Temos que colocar essas pessoas de volta na fila, lembrando o que está acontecendo,
porque essas pessoas realmente nos fazem voltar uns contra os outros de alguma forma
que não é realmente útil a nós, e não é útil para o movimento, nem útil para onde
queremos estar.
Quero dizer, é incrível os relatórios que estamos recebendo sobre o Redistribute the
Pain. É fenomenal. E é triste, porque sei que não poderemos mostrá-lo. Muitas pessoas
não conseguirão ver isso em comparação com as paralisações do trabalho, mas é
simplesmente incrível. Todos estão começando a entender, e eu suspeito e espero que
se torne uma tradição mais forte em um período de tempo, para começar a fazer alguns
sacrifícios econômicos no sistema prisional.
J: Você tocou em construir solidariedade e organizar prisioneiros como uma classe.
Obviamente, a greve começa no dia 21 de agosto, data marcante no mês de agosto e
termina na época da Revolta Ática. O que acontece muitas vezes é que você une as
pessoas e mostra a elas seu poder de realmente fazer algo contra esses sistemas que
todos sentimos em momentos diferentes e, obviamente, para prisioneiros, é uma
coisa constante.
Então fale um pouco sobre o processo de reunir diferentes grupos e o que você está
vendo nesse nível e a importância disso.
JLS: Queríamos realmente dar tempo suficiente para fazer a greve nacional para o
próximo ano, esse era o plano. Mas depois do incidente na Carolina do Sul na Instituição
Correcional do Condado de Lee, havia tanta confusão entre os prisioneiros sobre o que
fazer, tanto conflito. Eu acho que as coisas alcançaram o que gosto de chamar de ápice
no que se refere à violência.
O que as pessoas não reconhecem lá fora é que para nós em todo o país,
particularmente os prisioneiros que estão ativos, isso foi como um momento de levante.
Nós meio que reconhecemos, “cara, o que diabos está acontecendo?” E você sentiu as
tensões em torno da nação com prisioneiros e sentiu as organizações de rua, sentiu as
tensões com elas.
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Sabíamos que algo precisava ser feito, e algumas ligações foram feitas entre nós e
começamos a conversar. Obviamente, a JLS já cruzava as linhas nacionais com outras
organizações, pessoas que já estavam construindo redes de solidariedade dentro delas,
e fomos nós que nos unimos sobre o que provavelmente precisava ser feito. Mas desde
a ligação, [em que pedimos mais diretamente que as pessoas se empenhassem] para
juntar mais a classe da prisão, para fazê-la se concentrar em algo melhor.
O mesmo vale para o apoio externo, isso faz com que os prisioneiros também entendam
que há pessoas por aí que esperam que retornemos para entrar na mesma página. É por
isso que temos que saudar os que estão lá agora, que realmente estão de pé por nós e
realmente nos aplaudindo, e realmente nos dizendo “nós temos vocês de volta.” Porque
isso permite que os prisioneiros saibam, isso é maior do que eu, isso é maior que minha
pequena organização, isso aqui é um movimento.
Uma das coisas que temos notado em vários estados diferentes, neste momento posso
dizer que em pelo menos 8 estados diferentes, vimos tréguas feitas por membros de
gangues, organizações de rua como eu gosto de chamá-los. Vimos muitas tréguas, elas
foram feitas através das linhas. Obviamente, ainda temos alguns palpites aqui ou ali,
mas quanto mais chega às prisões sobre 21 de agosto, mais prisioneiros “chegam à
mesa”, mais prisioneiros estão conversando.
Também estou empolgado com o fato de termos mais prisioneiros que geralmente
estão a frente nas ruas, e geralmente são os que estão falando sobre a união nas prisões.
São os que mais tentam trazer os prisioneiros à causa. Eu os vejo trabalhando muito
mais duro, tentando levar essas organizações de rua para à causa para conversar e
acabar com suas diferenças.
Claro, não esperamos que isso acabe com toda a violência nas prisões. Prisões são um
barril de qualquer maneira, da maneira como está estruturado haverá violência. Mas no
nível que vimos nos últimos dois anos, isso é o que precisamos descobrir, como
diminuir, porque começamos a nos concentrar no ângulo errado e na área errada, como
afirmei anteriormente.
Nós também vimos os funcionários da prisão, eles estão muito cientes desses projetos
de unificação que estão acontecendo em todo o país agora. Na verdade, sinto que estão
ficando muito nervosos em ver esses tipos de projetos acontecendo.
Você vê a trégua lá fora [no Missouri], você vê como a trégua, [os funcionários da prisão]
eles não se preocupam com o fato de que ... com o que os prisioneiros estavam
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reclamando, sobre [os funcionários da prisão] estarem tão errados, ou com a destruição
que os prisioneiros causaram.
O que chamou a atenção deles foi a unificação desses prisioneiros. E, particularmente,
essas organizações de rua, porque sabem que esses organizadores de rua são em grande
parte formados por jovens e eles têm muita energia. E a energia às vezes pode se tornar
muito destrutiva. E eu sempre digo, como prisioneiro, que essa energia é ok. Ei, eu tô
pra destruição! Foi isso que o camarada George Jackson disse: "Eu tô pra destruição",
enquanto estivermos destruindo o sistema não estamos destruindo uns aos outros.
Muito do foco da JLS está em promover tréguas entre essas organizações de rua dentro
das prisões. Por causa da taxa que elas cresceram dentro das prisões, isso é algo novo
também, que vem se desenvolvendo nos últimos cinco a seis anos. Elas estiveram lá,
mas não no ritmo que estão agora. Então, nosso foco foi juntá-las e tentar torná-las
mais instruídas, elas precisam ser mais instruídas para esse movimento de resistência
nas prisões, mais educadas sobre por que fazemos o que fazemos e por que isso é
importante. Você pode ter suas diferenças, mas é importante nos unirmos quando
chegar a hora de nos unirmos e é importante não nos matarmos.
Esta foi uma grande preocupação durante o tempo do camarada George Jackson e,
nesse tom, foi uma grande preocupação durante o tempo em que ele estava lidando
com a Nação Ariana e outros grupos racistas, e ele estava tentando dizer a eles:
escutem, nós não somos inimigos, me acompanham? O inimigo é o porco, não somos
inimigos um do outro, ok? Estamos lutando contra o sistema.
De qualquer forma, ele estava lidando com o mesmo elemento, o mesmo problema com
o qual estamos lidando agora em um nível tão grande.
J: Há algo que você queira dizer a outros prisioneiros que talvez ainda não tenham
recebido a ligação?
JLS: Bem, uma das coisas que eu sei é que temos muitas táticas repressivas que vêm
acontecendo em todo o país. E as pessoas realmente não veem isso, mas nós sentimos
isso aqui.
Eu perdi alguns companheiros que foram removidos do lugar, saíram do esconderijo e
não temos mais acesso a eles. Eles foram, por falta de uma palavra melhor, apagados no
momento. E assim, nós sabemos o que está acontecendo, vemos, vemos isso
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acontecendo. Sabemos que existem forças que são um pouco mais pesadas do que o
Estado que também estão trabalhando contra nós, [mais pesadas do que] apenas as
normais com as quais lidamos. Estamos lidando com esse tipo de problema. Também
notamos que as táticas de medo estão funcionando em algumas áreas.
Mas queremos que as pessoas, em especial as pessoas que se preocupam com seus
entes queridos, não os desencorajem de participar, porque parte do desânimo pode vir
também da família e dos amigos. Você sabe, como "e se eles o levarem para longe" ou "e
se você estiver bloqueado e não pudermos mais falar com você ou entrar em contato
com você". Diga-lhes para não desestimular os prisioneiros.
Elas têm que entender que nós é que estamos vivendo isso aqui, e não elas. E a razão
pela qual eu digo isso para a família e amigos de alguns prisioneiros é porque
descobrimos que as pessoas da prisão estão usando familiares e amigos contra os
prisioneiros, e elas estão influenciando-os também. E é triste, mas estamos vendo isso,
essa é outra grande estratégia que estão usando agora.
J: Você tem alguma reflexão sobre todos os exemplos de solidariedade internacional
que você viu relacionados a essa greve, mas também relacionados à greve de 2016 e
aos movimentos de prisioneiros dos EUA em geral?
JLS: Nosso movimento não é apenas um movimento nacional. Estamos testemunhando
que ele cresce além das fronteiras dos EUA. A solidariedade internacional vem
crescendo há alguns anos, como era óbvio em 2016.
Este ano estamos testemunhando uma solidariedade similar internacionalmente. Nosso
objetivo no ano passado foi intencionalmente colocar em prática ações que deveriam
nos impulsionar para as configurações internacionais. Millions For Prisoners, a Marcha
dos Direitos Humanos [um grupo de direitos dos prisioneiros que se transformou em
uma coalizão] iniciou este processo com organizadores de apoio externos, como a
Krystal Rountree, participando de fóruns internacionais de Direitos Humanos.
Esse impulso ainda é muito ativo, pois elaboramos estratégias para que a escravidão nas
prisões fosse levada para Genebra. Também vale a pena notar que agora temos um
patrocinador externo que faz parte do [Comitê para a Eliminação da Discriminação
Racial]. Sabíamos que esse seria um longo processo depois da Marcha dos Millions For
Prisoners, mas nossa resolução continua a mesma. Nossas lutas nos EUA devem se
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tornar parte das conversas internacionais. E julgamentos sérios devem ser feitos por
esses mesmos organismos internacionais.
Referências
ARAÚJO PESSOA, Sara de. Estrutura social e trabalho prisional: sobre as funções (latentes) do trabalho
prisional - um estudo de caso na penitenciária sul de Criciúma - SC. 2019. Dissertação (Mestrado em
Direito) – Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma -SC, 2019.
ARAÚJO PESSOA, Sara de; ARAÚJO CHERSONI, Felipe de. O novo caráter do mais valor: cárcere-fábrica
e a superexploração do trabalhador encarcerado. In: SANTOS, Vinícius Oliveira. A nova (e a antiga)
realidade do mais-valor: diálogos sobre trabalho e capitalismo no século XXI. 1. ed. Foz do Iguaçu:
Editora CLAEC, 2022.
DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2018.
DEPEN (Brasil). Manual: mão de obra prisional. Ministério Justiça e Segurança Pública, Brasília, 2021.
Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/politicas-penitenciarias/politicanacional-de-trabalho-prisional/politica-nacional-detrabalho/cartilha_trabalho_prisional_revisao_gab.pdf>. Acesso em: 22 out. 2022.
WARE, Jared. ‘I’m for disruption’: interview with prison strike organizer from jailhouse lawyers speak.
Shadowproof, [s. l.], 2018. Disponível em: https://shadowproof.com/2018/08/16/im-for-disruptioninterview-with-prison-strike-organizer-from-jailhouse-lawyers-speak/. Acesso em: 22 out. 2022.
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Criminologia periférica
A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as
DOI: 10.23899/9786589284369.2
A política das ruas: uma entrevista com
pixadores/as e grafiteiros/as
Gabriel Dias*
Meire Mathias**
Nota preliminar
Estas são entrevistas realizadas com pixadores/as e grafiteiros/as da região da
cidade de Maringá, interior do Paraná, em 2019. Elas são fruto de uma pesquisa efetuada
no âmbito do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá
(UEM). Do discurso dos entrevistados/as, podemos reter parte da concepção política
destes interventores/as, que vai de encontro com o sistema e as leis que o regem, com
a desigualdade social, e até mesmo com o machismo ainda presente nestes movimentos
culturais. A publicação das entrevistas visa, assim, contribuir com os estudos no campo
destas intervenções urbanas em específico, reiterando a presença de elementos
políticos em suas constituições, sem os quais consideramos inviável prosseguir uma
investigação sobre a pixação e o graffiti. Ademais, optamos por grafar o termo pixação
com “X” e não com “CH”, como consta nos dicionários, pretendendo nos referir a uma
dinâmica estética específica, nascida na cidade de São Paulo e que, posteriormente, se
espalhou por grande parte do Brasil. Essa dinâmica é marcada, inicialmente, por uma
estética composta por letras com formas pontiagudas e monocromáticas, que criam
uma espécie de código, muitas vezes indecifrável.
Entrevista A
Como prefere ser identificado/a: “TOX”
Idade: 31 anos
Sexo: Masculino
Nível Escolar: Ensino Superior Incompleto
Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
E-mail: gbds__@hotmail.com
**
Docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PGC-UEM).
E-mail: meire_mathias@uol.com.br
*
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A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as
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Há quanto tempo se entende enquanto pixador/a e/ou grafiteiro/a: 17 anos.
(1) Qual a motivação que o/a leva a grafitar ou pixar ilegalmente?
TOX: Eu acho que é o seguinte... Eu acho não, comigo não tem achismo não, o bagulho
é na certeza, né? A certeza é que é o seguinte. O movimento hip hop... É um elemento
do movimento hip hop que é totalmente transgressor e eu acredito que cultura
nenhuma precisa de autorização de porra nenhuma pra existir, tá ligado?! E é isso que
me motiva a fazer a parada, justamente a transgressão mesmo, é o ato de tá ali sem ser
convidado, né mano? Acho que isso é muito louco, já ir entrando assim... E querendo ou
não de forma pacífica, né? É uma luta visual, tá ligado?! Então é uma luta pacífica se for
refletir mesmo. Eu acredito nisso. Eu acho que é uma abertura aí pra dar mais
flexibilidade à sociedade. Que existe várias formas de manifestações aí que não
precisam de plataformas, digamos assim, financiadas ou, digamos assim, que geram
uma certa... Um status de visualização na sociedade. Tipo, existem várias plataformas
de cultura que não precisam disso, né mano? E a pixação é uma delas. Na pixação o cara
não precisa ganhar dinheiro pra pixar e não precisa também pedir pra fazer o bagulho.
O cara leva no peito a parada e já era. É a transgressão total. Acho que é isso que me
leva, o que me motiva mesmo. É ser um elemento da cultura hip hop e levar isso aí
vestindo a essência né, a verdadeira camisa que vem lá de trás, que é a luta, né mano?
O protesto. Acho que só de você tá chegando sem ser convidado, entrar num bagulho
sem ser convidado, você já tá protestando algo, você quer estar ali e já era mano. É meio
egoísta, né? Confesso, mano. Porque não é bonito, minha mãe mesmo não gosta, tá
ligado?! (risos). Mas é um protesto tio. É isso, bagulho é transgressor mesmo.
(2) Você entende que de alguma maneira o movimento do graffiti e da pixação
intervêm na sociedade? Se sim, que maneiras são essas? Se não, por que você põe
suas manifestações em público?
TOX: A pixação nada mais é do que o estilo de graffiti brasileiro, né mano? Autêntico,
nacional, que é o tag reto, né? A pixação, autêntico do Brasil. Eu acho a pixação a mais
sincera. Pixação é pixação, né mano? Sempre vai ser feio, sempre vai ser em cima do
prédio, grudado na janela, de baixo da ponte, no esgoto, na puta que pariu... A pixação
é sujeira, né mano? Então eu acredito que dentro da pixação a essência é mais
verdadeira mesmo. Porque não tem como você influenciar a sociedade positivamente,
porque você tá fazendo um vandalismo. É um bagulho que, digamos assim, igual eu falei,
é bem mais egocêntrico, é bem mais pessoal do cara pixar o bagulho. O bagulho é
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desagradável. Eu acho que isso pode influenciar positivamente dentro de uma
quebrada, né mano? As vezes um moleque não tem visão, não tem nada e fala: “Ah vou
querer ser enxergado como pixador”. E aí muitas vezes ele não quer ir pro tráfico. Ele
quer pixar o bagulho. Então já é um fator positivo dentro do negativo, porque a pichação
sempre vai ser criminal, né mano? Felizmente é um crime visual e tal. Agora o graffiti...
o graffiti já tem dois lados da moeda né? O graffiti tem o lado rua e tem o lado, digamos
assim, gourmet, né mano? Que é o lado, sem desmerecer a classe, mas é o lado mais
vendido do bagulho. Então eu acredito que o graffiti ele agrada esteticamente, né
mano? O “desenhinho” tem esse fator, né tio? De agradar. “Ai, olha que lindo aquele
desenho”, entendeu? Dentro da pixação já não. Você não vê um cara chegar e falar: “Ah,
pixa meu muro. Acho maior louco essas letra pontuda aí”. Ninguém chega e fala isso
(risos). Só que se for parar pra pensar mano, a pixação é a essência. O graffiti é um
bagulho que é meio de boy, né mano? De boy que eu digo assim... Não que o cara tenha
a vida ganha, mas o cara tem que correr atrás pra comprar as tintas dele, né mano?
Gastar mais tinta. E muitas vezes só é reconhecido pela burguesia os caras que fazem
os desenhos coloridos. E existem várias outras plataformas de graffiti, né mano? Tipo,
eu mesmo curto letras. Nem curto ficar fazendo desenho não. Curto fazer letra e já não
tenho a mesma visibilidade, mas tem o mesmo impacto. Acho que o impacto é a ação,
né mano? É a transgressão... Acho que nunca vai fugir disso aí mano, tanto dentro do
graffiti quanto no pixo. O fator positivo ou negativo dentro da sociedade depende da
própria sociedade. É o reflexo da sociedade, entendeu? Se a sociedade vê um bagulho
bonito, da hora, que é “mó” cultura, mas ela tem uma visão ruim, uma visão concretada,
digamos assim, um muro de ignorância, ela nunca vai aceitar aquilo ali. É aquele velho
ditado: “É bonito, mas não na minha casa”, tá ligado?! Então eu acho que o reflexo
mesmo vai do berço do cara. Tem cara que pode enxergar mesmo como uma cultura e
querer buscar o que há de positivo dentro daquele movimento. E tem cara que
simplesmente respeita e tal, mas como eu disse antes, não interage. É algo que tá ali,
mas não tem valor nenhum na vida do cara. Eu digo assim que o graffiti nunca vai tirar
um cara do craque, né mano? Você pode escrever lá: “Não fume craque” e fazer um
graffiti ou um pixo em cima de um prédio, e infelizmente o “craqueiro” pode até ver
aquilo ali, mas não vai influenciar em porra nenhuma. Ele vai passar todo dia ali fumando
craque. Só se ele mesmo quiser sair do craque e ver o bagulho ali e falar: “Hoje eu saio
dessa porra”, tá ligado?! Então é isso aí. Os dois lados da moeda, né mano? O lado ação
e o lado reação né? Acho que a resposta da reação não é só do pixador, né? É essa fita
social, né mano? Se o cara tá aberto pra cultura ele vai buscar o que há de melhor em
qualquer tipo de cultura. Agora se o cara tem uma visão enlatada, né mano? Concretada,
tipo um murão de ignorância, o cara vai bater palma ali e vai continuar a rotina robótica
dele. Digamos assim, saltando mendigo na calçada, né mano? Fingindo que não tá
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vendo. Então é um artifício, né? Maquiagem. Pra mim é essa minha visão mesmo, é
maquiagem e a resposta vem de quem tá ali. O movimento mesmo em si não vai mudar
a vida de ninguém, só se o cara quiser mesmo mudar. Eu penso isso.
(3) Como grafiteiro/a e/ou pixador/a, como interventor artístico, qual o papel que
você acredita desempenhar na sociedade? Se não, por que não teria um papel a
desempenhar?
TOX: Bom mano, isso aí é muito louco. Porque dentro do movimento artístico, se eu
dependesse da arte pra viver eu tava morto de fome, tá ligado?! Essa é grande realidade.
O bagulho é cabreiro. Tenho 31 anos, sou microempresário, trabalho com confecção no
ramo de comércio e logicamente que a arte é utilizada nesse trabalho. Mas
artisticamente, e ser reconhecido como artista e viver da arte eu acho um pouco difícil.
Isso aí é pra poucos. Eu acho que é mais uma jogada de marketing do que de talento
hoje em dia, tá ligado?! E eu vejo que o meu papel na sociedade é passar, digamos assim,
quem sou eu, né mano? Mas é poder compartilhar um pouco do que eu aprendi, né
mano? A minha experiência de vida, pra de repente diminuir os erros do futuro da vida
de alguém que tá começando a pixar aí, ou começando a grafitar, né mano? Pelo menos
mostrar pro cara que tipo, tem seus contras, né mano? Tem seu lado ruim. Então acho
que meu papel social, digamos assim, como artista, né mano? É de instruir. Mas aí volta
o que eu disse antes, né mano? Eu aprendi o bagulho na raça. Tive que viver o bagulho.
Não adianta eu falar um bagulho pro cara se o cara achar que aquilo tudo é baboseira e
que ele tem que pá... Ele tem que viver o bagulho! Eu acho complicado, tá ligado?! Na
minha visão. To dando minha visão pessoal pra você, pra depois você analisar isso aí.
Mas como eu disse antes, o fator resposta do cara... Tipo, eu faço o que eu vivi. E a
pessoa tem a opção de acreditar naquilo. Levar a opção dela. Querer viver o que ela
quiser viver, né mano? Então é um barato muito louco. Acredito que meu papel na
sociedade perante, no caso, essa pergunta sua, de visão artística, acho que minha maior
arte, minha maior obra artística que eu consegui até hoje realizar é estar vivo depois de
tanta loucura (risos).
(4) Na sua opinião, o que é graffiti e/ou pixação?
TOX: Tá gravando já? Essa aí é mil grau. O graffiti e a pixação, mano, é uma plataforma
de manifesto total, de expressão. É uma carência que o cara tem. Não adianta o cara
falar que o bagulho não é. O bagulho é uma carência, é um ego. É um bagulho que puxa
o cara, tá ligado?! Motiva o cara. E agora qual é o tamanho do ego do cara é o que diz.
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Tem cara que rasga o documento por causa do graffiti. Tem cara que já não. Tem cara
que já é mais cauteloso, tá ligado?! Então vai de cada um. Vai do tamanho do ego do
cara, né mano? Aí o cara tem que ver o que ele põe em jogo no bagulho. Mas eu acredito
que fora o ego é muito amor, né mano?! É dois polos, né mano? O ego, o ódio de você
estar ali presente na fúria. E o amor de você falar: “Pô, curto pra caralho o bagulho, mas
me prejudica pra porra. E agora, como é que faz? Vou parar? Não paro? Não consigo
parar! Meu Deus, vou pra clínica!” (risos). É tipo uma droga. O bagulho vai muito além.
E é isso. O cara meter a cara no bagulho é pra poucos, mano. É pra poucos. É o néctar
do sentimento. É o movimento hip hop. É um elemento, tá ligado?! É a cultura hip hop.
É a resistência. É um bagulho que tá ali. Não pediu pra entrar. Já tá ali, sem pedir pra
entrar. E eu acredito nisso pra caralho, que é muito pessoal, né mano? Só quem faz
mesmo que vai saber de qual é. A sociedade nunca vai entender, né mano? Muito menos
o cara que ganha tinta pra pintar bagulho de playboy. Só pinta dentro de casa, quadro,
indoor... Mano, isso daí não é graffiti. Começa por aí. Isso aí é comércio, mano, comércio
da arte. Graffiti não ganha dinheiro, graffiti é tiro, porrada e bomba. Pra você estar ali,
você tem que gostar muito da parada, de forma positiva ou negativa. Você tem que estar
ali pela parada. Você vai estar ali ou por ego ou por amor. Um dos dois vai fazer você
chegar naquele local. Sei lá, no meio de uma linha de trem, três horas da manhã no meio
do mato. Só você e os guardas, né mano?! Ou em cima de um prédio. Uma pá de morador
dormindo. Você não saber se é um prédio de um promotor, mas você tá ali, né mano?
Você tá ali. Agora o que te levou a estar ali mano? Você consegue responder pra mim?
Eu não sei. Até hoje eu não sei. É só vivendo. O cara tem que viver. Não tem ideia. É o
movimento hip hop, mano. O bagulho é louco. Tem que estar dentro de verdade pra
saber de qual é. É isso.
(5) Gostaria de mencionar algo que não foi perguntado?
TOX: Gostaria. Gostaria de mencionar algo que não foi perguntando que é muito
importante, mano. Muitas vezes o cara generaliza a pessoa. Tipo: “Ah, esse aí é pixador.
Esse daí é grafiteiro”. As vezes o cara quer medir o potencial do cara só por isso aí,
mano. E a pixação e o graffiti é um esporte, tá ligado?! É um bagulho que o cara faz por
lazer, mano, por bem estar. Então de forma nenhuma... Isso aí serve pra quem tá de fora
e pra quem tá de dentro... A partir do momento que você começa uma inimizade por
causa dessa porra aí, tá tudo errado. Você já não tá entendendo a verdadeira essência
do movimento hip hop. A luta é outra, tá ligado?! E tem que ficar muito esperto, ficar
muito esperto mesmo com o sistema, mano. Porque ele faz de tudo pra te foder. E não
acha que ele não tá vendo não... O bagulho é embaçado. O capitalismo, o sistema, é isso
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aí que é antiarte. Esse daí é o verdadeiro antiarte, tá ligado?! É o que quer te englobar,
te enlatar, sei lá o que ele quer fazer com você... Menos permitir que você faça aquilo
que você realmente quer que você faça, que é ser livre, né mano? Então acredito nisso
aí. Que a gente tem que ser livre pra fazer o bagulho e a nossa luta é contra outros caras.
Nóis tem que parar de lutar entre nóis, tá ligado?! Deixar o ego pra trás aí e fazer a
verdadeira luta que é representar nas ruas aí, independente de opinião alheia, tá
ligado?! Nóis por nóis, igual os caras falam.
Entrevista B
Como prefere ser identificado/a: “MINACOT”
Idade: 21 anos
Sexo: Feminino
Nível Escolar: Ensino Médio Completo
Há quanto tempo se entende enquanto pixador/a e/ou grafiteiro/a: 4 anos.
(1) Qual a motivação que o/a leva a grafitar ou pixar ilegalmente?
MINACOT: É uma forma de protesto. É um ato de mostrar pra sociedade que tem
pessoas insatisfeitas com o que está acontecendo ao nosso redor. Seja na política, na
desigualdade social. É o grito dos excluídos. Um modo da periferia chamar a atenção e
começarem olhar mais pra nóis.
(2) Você entende que de alguma maneira o movimento do graffiti e da pixação
intervêm na sociedade? Se sim, que maneiras são essas? Se não, por que você põe
suas manifestações em público?
MINACOT: Sim, acredito e eu gosto até então. Porque a burguesia, o governo, se
incomodam com isso. Eles se incomodam com tinta na parede, mas não se incomodam
com o irmão que tá na rua passando fome, que tá perdido nas drogas, no tráfico. Pra
eles somos marginais, criminosos... E eu odeio a polícia. A polícia é a que mais mata no
Brasil. Mata preto, favelado, trabalhador, inocente e ninguém se incomoda com isso.
Por que a tinta incomoda?
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(3) Como grafiteiro/a e/ou pixador/a, como interventor artístico, qual o papel que
você acredita desempenhar na sociedade? Se não, por que não teria um papel a
desempenhar?
MINACOT: Meu papel na sociedade... Olha, eu acho que incomodar. Mas antes de tudo
é mostrar que as mulheres podem também. Que elas podem pixar, que elas podem
ocupar e elas podem grafitar. Elas podem e devem fazer tudo o que o homem faz
também. Mostrar que elas têm a capacidade. Não só na pixação, em geral... E claro,
incomodar os burguês, o governo. Alterar a estética burguesa, porque a sociedade é
suja, cruel, machista... Eles querem mostrar que é tudo perfeito, tá ligado?! Mas não
tem... Que que é perfeito? Não tem nada perfeito. Meu povo tá morrendo todo dia,
minhas mulheres morrem todo dia pelas mãos dos homens e ninguém faz nada.
Ninguém se comove. Acha que isso é uma coisa super normal. As tinta na parede
também é uma coisa normal...
(4) Na sua opinião, o que é graffiti e/ou pixação?
MINACOT: A pixação pra mim é o ato de protestar. É transgressão mesmo, tá ligado?!
Total. É pra incomodar. Não quero que deixe você satisfeito, eu quero te incomodar. Eu
quero deixar você insatisfeita com isso. Porque eu tô insatisfeita com a sociedade hoje
em dia. Então eu quero que você também esteja insatisfeito. É... Isso pra mim é a
pixação, entendeu? É como eu disse no começo, mostrar que existe sujeira escondida
no tapete. Voz dos oprimidos, entendeu? Favelado também tem direito, tá ligado?!
Favelado também tem direito de chegar na praça, tá ligado?! Escutar um som, beber um
gole, tá ligado?! E tipo assim, muitos burguês chega nas praças, ocupa a praça, fazem
vários fuzuê, tá ligado?! E a polícia não chega atirando, não mata ninguém. Eles não mata
burguês. Eles não mata playboy. Eles só mata favelado.
(5) Gostaria de mencionar algo que não foi perguntado?
MINACOT: Eu gostaria sim... Eu gostaria de mencionar que as mulheres têm que ocupar
mais os espaços. As mulheres têm que ter mais voz. Eu não falo pras mulheres sair pra
pixar. Eu não quero que as mulheres fazem isso. Não... Pra falar a verdade eu gostaria
sim, gostaria de ver muitas mulheres na pixação. É o que falta, tá ligado?! Tem muito
machismo até dentro da própria pixação que é uma coisa que luta pra não ter, tá ligado?!
Mas eu acredito que, pra mim, eu gostaria que as mulheres ocupassem mais. Elas têm
que estudar mesmo, tá ligado?! Têm que trabalhar. Elas têm que correr atrás do que é
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delas, porque, mano, as mulheres têm que mostrar que elas são capazes de tudo. Cara...
O mundo gira em torno, querendo ou não, de uma buceta. Não sei se eu posso usar esse
linguajar, mas é isso, tá ligado?! A gente veio de uma mulher. Então a gente tem que
respeitar as mulheres e isso não existe. E eu gostaria só de mencionar que vocês têm
que respeitar mais as mulheres, tá ligado?! Não olhar pra gente como uma forma de
objeto. A gente não é o seu objeto. A gente é ser humano também. Assim como o homem
tem o direito de chegar, ir, vir... A gente também tem direito. Por que que só nóis morre?
Entrevista C
Como prefere ser identificado/a: “SPEC”
Idade: 21 anos
Sexo: Masculino
Nível Escolar: Ensino Médio Completo
Há quanto tempo se entende enquanto pixador/a e/ou grafiteiro/a: 5 anos.
(1) Qual a motivação que o/a leva a grafitar ou pixar ilegalmente?
SPEC: A pixação já é ilegal, né mano? E um dos principal fator pra nóis tá pixando, mano,
é a sociedade, o governo. O bagulho já tá tudo errado, né mano? Tipo assim, fere nóis
de várias formas, são várias formas de atingir nóis. E como nóis é um refém do governo
mesmo, tá ligado?! A única forma que nóis pode tentar escapar ali, mano, é a pixação...
Tipo assim, quem apoia essas ideias é uma parte da minoria, né mano? A molecada que
tá vivendo o bagulho na rua. E creio que assim, a pixação é um negócio que faz a pessoa
se identificar, né mano? A pessoa que tá mais envolvida ali, já sabe qual é das ideia... E
tipo assim, também é uma forma de protesto da nossa parte, mas envolvido também
pelo certo. Porque se for ver vários caras da minoria, igual nóis pode viver também,
pode se envolver com ideia de tráfico, pode tá roubando, fazendo um bagulho que vai
ferir a sociedade de outra forma, né mano? Tipo, as vezes a raiva do cara que ele sente
pelo Estado, por uma falta de uma parada que ele precisa ali, aí essa é a nossa parte, né
mano? E já que é ilegalmente, é um crime também, tá ligado?! Mas é nossa forma de
expressão, na pixação, de poder deixar uma marca ali, pra poder chocar alguém de
alguma forma, tá ligado?! Alguém que vê o bagulho. E não é uma forma certa também
porque alguém vai ser atingido ali, né mano? Da mesma forma que a gente tá sendo
atingido por alguém que tá na parte de cima... Por isso é uma forma de crime, né mano?
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O bagulho é identificado como um crime também, porque da mesma forma que a gente
tá sendo atingido por alguém, nóis tá também sujando um bagulho de uma outra pessoa,
o patrimônio público, um negócio que ali também já é do governo e pá. Mas é só uma
forma mesmo de expressar, tá ligado?!
(2) Você entende que de alguma maneira o movimento do graffiti e da pixação
intervêm na sociedade? Se sim, que maneiras são essas? Se não, por que você põe
suas manifestações em público?
SPEC: Ah, a pixação, né mano? Que é o que nóis mais tá atuando. Tipo assim, já atuamos
né? Porque hoje tamo até mais sossegado. Mas é o que mais interfere na sociedade, né
mano? Por não ser um bagulho tão bonito, tão limpo, que todo mundo pode ver, gostar,
querer tirar uma foto ali do lado, tá ligado?! A pixação, mano, é um bagulho que vai tá
sempre ali sujando a parede e vai interferir nas pessoas porque já não é um bagulho
bem feito. A pessoa já vai pensar algum mal da parada que vai tá escrita ali ou de nem
entender o que tá escrito, tá ligado?! E muitas pessoas vão poder passar ali, não
entender de qual é da mensagem, de qual é da brisa da pessoa que pode fazer, mas
alguma galera, alguma minoria vai poder... Vai identificar alguma coisa, vai poder saber
que... Tipo assim, vai meio que elogiar a molecada ali que tá fazendo aquilo ali.
Dependendo se for algum lugar de boa, se não for na casa de alguém, que as vezes vai
tá sujando o barato mesmo, e aí vai ver se vai entender de uma outra forma. Mas o que
eu acho é que o bagulho interfere, mano. Tá interferindo até hoje, né? Porque se a gente
tá podendo trocar essas ideia aqui, tá podendo debater sobre isso... E a pixação não
começou hoje, mas a muito tempo atrás ainda. Várias galeras tão trazendo o bagulho
até hoje. Vai mudando, a galera vai saindo, vai entrando uma novas, e isso sempre vai
interferir nessa parte da sociedade. Nóis tá a par da sociedade, mas também tá
respondendo sobre isso, discutindo as ideias.
(3) Como grafiteiro/a e/ou pixador/a, como interventor artístico, qual o papel que
você acredita desempenhar na sociedade? Se não, por que não teria um papel a
desempenhar?
SPEC: Qual o papel eu desempenho na sociedade? É de poder tentar deixar uma
mensagem, né mano? Deixar de alguma forma ali um barato escrito ali, tá ligado?! É uma
minoria... Nem que seja uma minoria de mil pessoas, dez pessoas, passar e tirar uma
brisa, flagrar o bagulho, identificar alguma coisa, achar da hora, discutir com alguém
que esteja junto ali... Isso aí já faz parte do bagulho, né mano?! E tipo assim, ainda mais
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pelo corre ser cabreiro também, que a maioria das cenas que rolam, poucas vezes a
pessoa pode fazer de dia, num pico cabreiro que ela pretende fazer, na maioria das
vezes assim, né mano? A hora da cena é a noite, quando não tem ninguém. Aquela calada
da noite, aquele breu. Sair sozinho ou com alguém pra fazer o barato, mano... E o
bagulho é bem louco, né velho? E se for pra ver mesmo o bagulho não traz nada de bom,
nem pra nóis, tá ligado?! Nem pra pessoa que é atingida ali, né? Só que tipo assim, é o
intuito da pixação. É ser esse bagulho cabreiro que ninguém entende, né mano? Uma
adrenalina ali muito louca que o cara quer mais, quer fazer um pico, quer catar outro,
tá ligado?! E muitas pessoas nem acha da hora e você não tá nem aí. Você só quer fazer
por sentimento próprio seu mesmo, tá ligado?! E é difícil discutir um barato desse com
qualquer um, porque ninguém tem a mesma visão, assim, que a pessoa que gosta de
fazer isso aí, sair sozinho tarde da noite, as vezes mocado do barraco, correndo vários
riscos ali, né mano? De se foder, as vezes perder a própria vida no bagulho, pular num
telhado de uma casa quebrada, levar um choque num fio aí, subir em alguma árvore
numa escalada... E a pessoa fica sem entender também, né velho? Mas por a pixação ser
assim, esse é o método da pixação, um negócio que todo mundo se pergunta o por que,
né? Já que ninguém gosta, ninguém entende nada e o povo acha que ninguém deveria
fazer isso, acha que tinha que ter outra forma da pessoa tirar uma brisa, curtir a vida de
alguma outra forma. Só que é a minoria isso aí, né mano? Nossa cidade aqui é uma
cidade boa, certinha. Mas vai ver numa quebrada, numa favela. O cara as vezes mora
numa favela e pra sair da favela ali é raridade. O cara conhecer um pouco ali da cidade
que propõem pra ele, mano. O governo não ajuda a molecada que tá na favela. As vezes
um cara que é um pouco mais velho que ele tira a brisa de pixar, de pintar uns bagulho
e é a ideia que chega mais próxima desse piá, que ele vai tá se identificando ali no
bagulho, achar da hora, ver a galera fazendo, né mano? É igual jogar bola. O cara tá
jogando bola sozinho ali e tem uma molecada jogando. Todo mundo vai se
influenciando. No skate, tá ligado?! O cara anda de skate sozinho, tem alguém ali que
vai puxando as energias e os cara já vão fluindo igual, mano. Algo que tá mais próximo,
né mano? O que tiver mais próximo da pessoa é o que ela mais vai acolher, né mano?
Ainda mais que a pixação já começou a muito tempo atrás, tá ligado?! A galera não tinha
internet, não tinha nada. E hoje em dia você tira uma brisa rapidinho, vai lá longe, você
viaja no celular, no PC, no que for aí, no video game... Mas a molecada que pixava nas
antigas só tinha isso aí, né mano? Um lugar daquele jeito, as vezes nas antigas não tinha
nem spray. Era só tinta. Jogava nas parede e é isso aí...
(4) Na sua opinião, o que é graffiti e/ou pixação?
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SPEC: Mano, na minha opinião o graffiti e a pixação... Tem um pouco da diferença dos
dois, mas no meu caso aí é mais a pixação, tá ligado?! E pra mim, mano, ela significa só
a rapa mesmo, só a sobra da molecada, tá ligado?! Aqueles que tão na rua sempre no
rolê, fazendo alguma coisa... Os skatistas, os caras que mora na rua, mano. E vários
maluco também que é formado... E várias pessoas que já se identificou de algum meio
nas antiga quando era mais novo, podendo gostar do bagulho até hoje, ter um
sentimento né mano? Mas também vários caras que já tem uma outra vivência mais pra
frente. As vezes o cara sabe até fazer a pixação dele né mano? Entendo as ideias dos
outros ali, sabendo usar o método dele ali, fazer num lugar mais desbaratinado. Mas
mesmo assim mantendo a postura de cada um, né mano? Porque quando é um piá mais
novo o cara não tá nem aí. O cara quer chocar mesmo as ideias, quer deixar o povo em
choque, quer pixar um bagulho que tá lá em cima, deixar a sociedade em choque
mesmo, mano. E na minha opinião a pixação é isso aí. Um negócio bem sujo mesmo. Até
os caras que pixa as vezes nem sabe o que tá pixando, faz porque gosta mesmo do
bagulho, quer deixar... Deixar todo mundo em choque mesmo, mano. Porque nóis vive
na minoria. Ninguém tá nem aí pra nóis, tá ligado?! Ninguém tá aí pra ajudar no bagulho.
Quem tá pra se ajudar é só você mesmo, mano. Mas a pixação se for ver, mano, faz parte
da infância de muita molecada, do jovem, do piá novo que tá no corre pixando. Ou um
cara velho de 40 anos, 50. Tem cara que pixa a muito tempo, só faz isso... Cadeirante,
né mano?! Tem uns par de cara aí que os cara até ajuda o mano a pixar ainda, tá ligado?!
Pra você ver, cada um é um tipo de gosto, né mano? Na minha opinião a pixação é isso
aí mano. Tudo isso aí misturado.
(5) Gostaria de mencionar algo que não foi perguntado?
SPEC: Queria mencionar também que, tipo assim, nóis tá na rua, né mano? Pra fazer
uma arte que fica na rua. Na arte da pixação o espaço é na rua, né mano? E quem cuida
ali da rua, do patrimônio, tudo ali é a polícia, tá ligado?! E sempre que eles tão pra pegar
nóis ali, eles tratam nóis igual uns criminosos. As vezes disposto até a dar um tiro pra
matar alguma coisa, né mano? Porque do nada o que você tá fazendo ali é só jogando
uma tinta num beiral, num bagulho assim, né mano? Tá que pode ser um crime. Todo
mundo reconhecer como vandalismo e tal, não sei o quê, o povo fala... Mas pra nóis que
vive o bagulho, a maioria das pessoas nem quer uma maldade tão grande assim. As vezes
a pessoa tá ali pixando um beiral, uma sacada, a janela tá aberta... Bagulho pode tá
propício pra pessoa roubar um bagulho ali, mas muitos caras só quer chegar ali e jogar
a tinta mesmo. É a brisa da pessoa, tá ligado?! Porque o bagulho é bem exposto assim,
bem feio mesmo, é uma forma de vandalismo. E o policial tá ali pra maltratar todo
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mundo, né mano? As vezes até matar a pessoa ali. Quer fazer um negócio assim e
sempre resolver esses problemas assim. Desde a molecada nova falando sobre a
pixação, tentar fazer o povo entender como que ela é atuada, como é que ela é feita, pro
povo ter uma... Pra que ela seja mais aceita, né mano? Porque o povo quer manipular o
bagulho, não quer mostrar ela. Quer deixar ela sempre de lado pra sempre a ferida
aumentar, né mano? Não quer tentar amenizar as ideias, entender os pixadores,
entender qual é a cultura que o pessoal vive. Assim... Muitas pessoas que fazem
documentários, faz uma entrevista dessa com nóis que tá vivendo o bagulho, é uma
pessoa que teve um início, tá ligado?! E tá aqui querendo mostrar pra alguém né mano?!
Uma minoria tá querendo mostrar pra galera. Agora, não que o bagulho vai pra mídia,
né mano?! Porque a pixação nunca vai pra uma mídia dessas... Mas um negócio de
grande porte, poder fazer uma entrevista com uma galera, tentar mostrar mais a
pixação, que tem vários caras que são artistas, que domina muito pixar, que faz um
negócio diferenciado, as vezes poderia dar chance pra muita galera aí que ta aí na
mínima, morando em qualquer beco de lugar. As vezes valorizar mais como arte
também, né? O trabalho de vários caras que... Não qualquer uma, né mano? Porque tem
várias pixações aí que o cara tá só pra rabiscar mesmo, jogar um bagulho fora ali e já
era. Mas tem vários caras que vem das antiga que os caras respeitam mais o trampo, faz
um bagulho mais da hora. E seria da hora se o povo, a sociedade ao todo ali, entendesse
as ideias e tentasse ser um bagulho mais massa, mano. Porque a pixação vem bem das
antiga e até hoje nunca foi aceita e não vai ser aceita desse jeito nunca, né mano? Ainda
mais com esse governo que nóis tá tendo atualmente... E é isso aí o que eu penso, tá
ligado?! Na minha opinião também, né? Cada um tem um ponto de vista. Mas é isso aí o
que eu tenho pra falar, tá ligado?!
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Criminologia periférica
Foto: Gabriel Dias.
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Criminologia periférica
Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social
DOI: 10.23899/9786589284369.3
Criminologia periférica: um ensaio sobre o
centro do controle social
Felipe de Araújo Chersoni*
Anayara Fantinel Pedroso**
Thomaz Jefferson Carvalho***
“Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo
Quem mata mais ladrão, ganha medalha de prêmio!
O ser humano é descartável no Brasil
Como um modes usado ou Bombril
Cadeia? Guarda o que o sistema não quis
Esconde o que a novela não diz”
(Racionais Mc’s)1
Introdução
Ao trabalhar com as Criminologias Críticas podemos observar que as periferias
urbanas, o proletariado não urbano e os movimentos populares2 centralizam-se no
cerne do controle social. A seletividade genocida estatal sobre os bairros periféricos é
uma das grandes problemáticas a serem enfrentadas nas trincheiras contra o
Mestrando em Direito pela Universidade (comunitária) do Extremo Sul Catarinense (PPGD-Unesc);
Bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Comunitárias (PROSUCCapes); onde é pesquisador vinculado ao Grupo Pensamento Jurídico Crítico Latino Americano, na qual
se subdivide no grupo de Criminologia Crítica Latino Americana - Andradiano (Unesc) (grupo que sedia
minha atual pesquisa); Membro pesquisador Cnpq no núcleo de Estudos em Gênero e Raça - Negra
(Unesc); Membro do eixo de Criminologia e Movimentos Sociais - Instituto de Pesquisa em Direito e
Movimentos Sociais (IPDMS).
E-mail: Felipe_chersoni@hotmail.com
**
Mestranda em Direito e Justiça Social no Programa de Pós-Graduação em Direito e Justiça Social da
Universidade Federal do Rio Grande (PPGDJS/FURG). Bacharela em Direito pela Universidade Federal do
Pampa.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4931636737843628
E-mail: anayarafantinelpedroso@gmail.com
***
Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá.
E-mail: thomaz@carvalhoerodrigues.adv.br
1 Racionais MC’s. “Diário de um detento” Álbum: Sobrevivendo no inferno. 1997. Letra disponível em:
<https://www.letras.mus.br/racionais-mcs/63369/>. Acesso em: 2022.
2
Acerca do controle social frente aos movimentos populares camponês verificar o que Felipe de Araújo
Chersoni (2022) vem denominando de “Criminologia Campesina”.
*
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Criminologia periférica
Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social
DOI: 10.23899/9786589284369.3
punitivismo. Neste sentido, é importante ressaltar a presença de coletivos, movimentos
populares e organizações sociais e culturais nesta luta pela (re)existência.
Pensando a partir desta realidade, este ensaio (assim como os trabalhos a seguir)
busca expor as principais problemáticas relacionadas à seletividade penal e à violência
punitiva perpetrada pelo Estado nas mais diversas formas, mas, especialmente, através
do seu braço armado nos territórios periféricos. E, a partir dessa exposição e da
contribuição de diversos autores/autoras, igualmente preocupados com os rumos
autoritários que o Brasil tem galgado, tornar possível a construção de um movimento
coletivo capaz de unir as teorias criminológicas críticas das situações fáticas e práticas
que guiam as atuações dos controles sociais.
Buscamos, a partir deste ensaio introdutório, desarmar o autoritarismo que se faz
presente e que (re)produz seus reflexos nos territórios periféricos. Desta forma,
buscamos a compreensão de quem são as vítimas da violência punitiva, bem como,
quem são os autores e os motivos que os levam à violação de direitos fundamentais.
Essas análises envolvem diversos a(u)tores da resistência e é por isso que a divisão
desta obra se dá em dois espaços: o primeiro marcado por entrevistas com pessoas de
movimentos sociais, produtores culturais, dentre outros indivíduos engajados na luta
praxiológica e, em um segundo momento, composto por artigos acadêmicos com
pesquisadores/pesquisadoras também envolvidos na luta contra o autoritarismo.
Ambos os capítulos se unem e se completam, de modo a fornecer subsídios iniciais que
apontam os longos caminhos que seguiremos e as lutas que travaremos para o
fortalecimento do Estado Democrático de Direito.
Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social
Primeiramente, é importante ressaltar que o Estado estabelece o Direito Penal
para que sejam atingidas determinadas finalidades. Essas finalidades irão variar
conforme os diferentes teóricos e conforme os diferentes interesses dos Estados. Mas,
sobretudo, serão consideradas enquanto mecanismos responsáveis por realizar o
controle social (BATISTA, 1990). Ocorre que este controle recai apenas sobre
determinados corpos, os periféricos.
Conforme Zaffaroni et al. (2003, p. 41), “O Estado de Direito é concebido como o
que submete todos os habitantes à lei e opõe-se ao Estado de polícia, onde todos os
habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam”. E, diante do atual
contexto, nos territórios favelizados, podemos observar a inexistência de um Estado de
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Criminologia periférica
Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social
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direito diante de uma sobreposição do Estado de polícia, responsável pelo controle
seletivo.
Isso significa que os direitos fundamentais desta população são deixados de lado,
havendo única e exclusivamente a presença do estado policialesco, através das
operações policiais que buscam gerir os pobres utilizando-se do belicismo da
segurança pública, dos genocídios, dos massacres a conta-gotas ocasionados pela
polícia que, na maioria das vezes, acabam sendo naturalizadas. E dentro desta lógica
punitivista, o setor midiático possui um papel fundamental no que diz respeito à
normalização deste Estado, de modo que pode ser considerado enquanto uma agência
do sistema penal, sendo este um elemento basilar para a solidificação deste estado de
polícia (MALAGUTI BATISTA, 2011).
Isso porque através dos setores midiáticos são criados os pânicos morais, de modo
que determinados grupos sociais passam a ser estigmatizados diante da representação
de ameaça aos valores hegemônicos da sociedade na qual estão inseridos (COHEN,
2011). Ou seja, a (sobre)vivência e a produção cultural de determinados grupos sociais
passam a ser considerados enquanto desviantes, sendo estigmatizados pelos
responsáveis pela definição do desvio. E é exatamente no centro desta definição dos
grupos desviantes que são edificadas as cruzadas morais, justapostas a movimentos
repressivos.
As cruzadas morais que atingem os objetivos para os quais são propostos, resultam
na criação de novos cruzados, voltados para a imposição das normativas. Inicia-se
então, a cruzada pela aplicação do disposto na legislação, institucionalizando-a. Ou
seja, o objeto resultante de uma cruzada moral é a aplicação da força policial contra os
grupos sociais estereotipados (BECKER, 2008). E é exatamente esta força que
recorrentemente aplica a coerção física contra grupos periféricos estigmatizados. Essa
aplicação da força, na maioria das vezes é injustificável, visto que, nem sempre são
destinadas para a imposição de regras, sendo fruto da criminalização de grupos sociais
por aqueles que deveriam proteger.
Neste sentido, uma política de terror vem sendo aplicada contra o campesinato
brasileiro (LACERDA, 2022) não diferente disso, as periferias urbanas sofrem com
truculentas e sangrentas intervenções da polícia militar (ARAUJO CHERSONI; DAS
CHAGAS; MUNIZ, 2022), além disso, por conta dos interesses econômicos, sobretudo
estrangeiros, políticas de cerceamento de favelas vêm sendo aplicadas através dos
projetos como as UPP´s (Unidade de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro (MALAGUTI
BATISTA, 2011).
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Criminologia periférica
Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social
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O Estado, enquanto detentor do monopólio da violência, age em patrocinar a
transformação de bairros dentro do próprio país, em bairros-colônias. Resultado
também do racismo fazendo com que esse Estado adote características de colonizador,
frente ao lugar de negro, bairros periféricos colonizados (GONZALEZ; HASENBALG,
1982). Zaffaroni (2003, p. 41) chamaria essa característica de “auto-colonialismo” que
nas palavras de Vera Malaguti Batista (2011) “[...] atualiza a incorporação periférica aos
grandes movimentos da capital. No neocolonialismo, realiza-se um deslocamento
territorial do massacre. É nesse momento que o controle territorial policial alcançou o
máximo de seu esplendor e potência massacradora nas colônias”. A verdade é que em
todos os genocídios estavam presentes as agências executivas do sistema penal”
(MALAGUTI BATISTA, 2011, p. 108-109).
Em números, o Brasil destaca-se no quesito violência, e não esconde o mofo
colonial nas práticas racistas no campo da segurança pública. Segundo o Infopen, na
última atualização em 2019 o Brasil registrava cerca de 748.009 pessoas presas em
unidades prisionais em todo território nacional (INFOPEN, 2019), no entanto, a
pandemia da Covid 19, que deveria ter ensejado práticas de desencarceramento, em
realidade fez o contexto prisional se tornar ainda mais assustador: em junho de 2022 o
jornal O Globo divulgou os dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que apontam que o encarceramento no Brasil
atingiu o trágico número de 919.651 pessoas presas (ABBUD, 2022).
Segundo o anuário brasileiro de Segurança Pública 66,7% desse total, mais de 400
mil pessoas são negras, sendo 19,4% jovens até 24 anos e 24,0% de jovens até 29 anos
(ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA, 2021). Ou seja, prendem-se pessoas negras,
em extrema maioria pobres e jovens. É o sistema penal operando em suas reais
funcionalidades a todo vapor. Quem as prende? É preciso colorir as análises e nomear
a composição dos sistemas que operam a distribuição da justiça: 84,5% dos juízes,
desembargadores e ministros do Judiciário são brancos, 15,4% negros e 0,1 indígenas.
Destes, 64% são homens (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2014).
Isabela Leite e Léo Arcoverde (2017) que se utilizaram do levantamento realizado
pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e de entrevistas com familiares
vítimas do estado, com trabalhadores e pesquisadores da segurança pública apontam
como ano de 2017, por exemplo, 90% das mortes causadas por policiais militares foram
em regiões periféricas da capital paulista.
A exemplo disso, na zona leste da capital paulista, lugar historicamente marcado
pela violência do estado, nesse mesmo ano foram registradas 81 mortes, fora as
subnotificações. Bairros como São Mateus, Guaianazes, Itaim Paulista, Itaquera e
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Tiradentes foram os maiores afetados pelas intervenções policiais (ARCOVERDE; LEITE,
2017).
Durante uma dessas abordagens em seu bairro, na Zona Leste de São Paulo, a mãe
de Abner, Maria José Paula Alves, que na época estava em situação de desemprego,
lembra do ocorrido. “Eles não tinham motivo de mais de 20 balas, mais de vinte tiros.
Gente, no carro do meu filho, até nas rodas (tinha disparos)” (ARCOVERDE; LEITE, 2017).
Há muita contradição, não tem prova, os policiais não têm argumento pra provar
porque fizeram aquilo naquela noite. Eles 'implantaram' arma, não tem exame,
não tem exame balística que prova que meu irmão estava com arma, não tem
pólvora, resíduo no carro porque foi periciado e nem na mão do meu irmão.
Agora eu queria saber do estado porque tirar a vida de um inocente", diz a irmã
de Abner (ARCOVERDE; LEITE, 2017).
A Zona Leste da capital paulista é um exemplo dos bairros-colônias, onde a atuação
do Estado é uma forma concreta da invasão dos colonizadores ou do auto-colonialismo,
sendo a região que concentra mais de um terço da população da cidade e seis das dez
regiões com mais baixos índices de desenvolvimento humano de São Paulo. É na Zona
Leste que ocorreu o maior número das mortes cometidas por PMs na capital entre 2017
e 2018 (ARCOVERDE; LEITE, 2017).
Na mesma reportagem a polícia utiliza de narrativa “técnica”, a partir de uma
fumaça de intelectualidade, instrumentos que invisibilizam a realidade, ao afirmar que
as mortes são proporcionais à violência, demonstrando que em tais bairros são
cometidos maiores números de delitos, mesmo ocorrido em reportagens acerca do
massacre do jacarezinho (ARAÚJO CHERSONI; DAS CHAGAS; MUNIZ, 2022).
O Brasil possui uma polícia militar sedimentada em estruturas pautadas na
Doutrina de Segurança Nacional, portadora de características belicistas,
especialmente, relacionadas ao extermínio dos corpos considerados enquanto inimigos
(CARVALHO, 2016). As próprias metodologias militaristas que são utilizadas na
formação dos policiais militares são baseadas na humilhação, no sofrimento e na
violência, de modo a construir um ethos guerreiro e preparar estes indivíduos para a
guerra. Desta forma, a polícia militar pode ser considerada enquanto um braço
fortemente armado do exército. Ocorre que a atuação ostensiva destes indivíduos
acontece nas ruas (PEDROSO, 2021), mas quando se trata de periferia, estas ruas se
tornam verdadeiros campos de extermínio, onde são reproduzidos os sofrimentos
aprendidos nas formações.
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Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social
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No Rio de Janeiro o batalhão de choque da polícia militar, invade favelas com
carros blindados, o famoso caveirão, entoando músicas de terror, em uma delas a letra
retrata a truculência do Estado frente aos não bons cidadãos laborais considerados
pelas elites vagabundos, como preconiza Leal (2022).
Uma das músicas na qual o Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro
Bope, utiliza nas “operações” nas periferias cariocas chama-se “eu sou a morte”.
Eu sou, eu sou
A morte! A morte!
Que ressurgiu do mar
Eu vejo o inimigo
E ele nem vai me notar
Eu miro na cabeça
Atiro sem errar
Se munição eu não tiver
Pancadaria vai rolar
Bate na cara, espanca até matar
Arranca a cabeça e joga ela no mar
E o interrogatório é muito fácil de fazer
Eu pego o inimigo e dou porrada até morrer 3
A letra da música demonstra nitidamente que as intenções de determinados
grupos não estão relacionadas com o fornecimento da segurança, mas com a retirada
desta através de violações extremas. Ou seja, são indivíduos que estão preparados para
matar, humilhar e exterminar os grupos sociais que são considerados enquanto
inimigos ou inferiores.
Essa política criminal de guerra é resultado, dentre tantos outros fatores, da lógica
neoliberal que, em países dependentes como o Brasil, se adapta de maneira ainda mais
perversa na busca incessante pelo lucro a partir da expansão penal, se associando com
preconceitos raciais e ideologias autoritárias que caracterizam a história do controle
penal brasileiro, tendo como consequência não somente o encarceramento massivo da
população marginalizada, mas também a guerra militarizada contra essa população,
tendo o extermínio como forma de aterrorizar e controlar esses grupos (BATISTA, 2022,
p. 193).
Leal (2021) busca inscrever uma compreensão mais alargada sobre a violência dos
processos punitivos no Brasil contemporâneo desde uma perspectiva sociocultural
Música sem autoria declarada. Letra disponível em: <https://www.letras.com.br/cancoes-de-tfm/eusou-a-morte>. Acesso em: 2022.
3
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baseada na obra de David Garland (Punição na sociedade moderna), que resgata a
genealogia da prisão no sentido de demonstrar que o sistema penal cumpre funções
para além das denunciadas pela matriz teórica marxista, como a de produzir mão-de
obra, ou da matriz foucaultiana, de que as instituições prisionais serviram e ainda
servem para dinamizar e gerenciar a lógica de poder social.
Nesta perspectiva o autor compreende algumas nuances interessantes para
problematizar o atual momento no qual vive-se o Brasil, obviamente que não
dissociando o momento das estruturas históricas de dominação. Em parte, importante
do texto o autor elabora a definição do chamado bons e maus cidadãos para a servidão
do trabalho capitalista, utilizando-se da terminologia de trabalhadores laborais
honestos x vagabundos. Essa distinção vem pautada em uma tríade que forjou uma
cultura/ideologia brasileira, com base na moralidade, religiosidade e trabalho,
utilizando-se de quem foge desse maniqueísmo como instrumento central da violência
estatal (LEAL, 2021).
Já na década de 80, Zaffaroni aponta como o número de mortes operadas pelo
aparato estatal em países reconhecidos como democráticos, faz a América Latina se
constituir em campo muito diferente dos analisados pela criminologia do centro
(ZAFFARONI, 1988). A naturalização da truculência policial e da seletividade do sistema
penal brasileiro é ancorada na memória escravagista, no autoritarismo belicista da
doutrina de segurança nacional e no militarismo que faz parte da segurança pública
brasileira desde a formação do Estado no século XIX.
Essa subjetividade punitiva que ampliou o grande mercado da segurança pública
também produz a segurança do mercado, na medida em que converge com os
interesses neoliberais e opera para manutenção de seus valores e contenção dos grupos
marginalizados e empobrecidos pelos processos de exclusão característicos desse
sistema capitalista. Conforme Vanessa Feletti (2014, p. 135), na nova ordem do mercado
“[...] o sistema penal não disciplina mais corpos para o labor, ele neutraliza (ou
extermina) parte da população e disciplina mentes para o consumo”.
A barbárie vem sendo denunciada por criminólogo/as de todas as matrizes e ao
longo do acúmulo latino-americano ganhou notoriedade, sejam as concepções de Lola
Aniyar de Castro (2005), acerca do direito penal subterrâneo, sejam nas perspectivas da
escola da Ilha de Florianópolis, de um direito penal aparente como aduz Vera Regina
Pereira de Andrade (2016). Fato é que todas essas terminologias apontam pata um único
fim: o corpo negro caído no chão (FLAUZINA, 2006).
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Compreendemos que as ferramentas elaboradas pelas escolas marxistas, também,
somadas às desenvolvidas pelas escolas criminológicas, como, a exemplo da base
culturalista Leal (2021), são aportes interessantes para dar conta, ao menos na teoria,
do atual momento que vive o País.
A dimensão bárbara inscreve-se no fundamento do modo de produção
capitalista desde a sua gênese, mas combinou-se em escala diferencial, ao longo
da explicitação das suas possibilidades, com a dimensão civilizatória de que era
originalmente portador. Quando tais possibilidades se explicitam plenamente –
vale dizer, quando o sistema subsumido planetária e totalmente ao capital chega
à sua curva descendente e objetiva a sua crise estrutural, expressando-se na
efetividade do tardo-capitalismo –, a dimensão civilizatória se esgota e o sistema
se revela como barbárie, torna-se bárbaro. Este é o estágio atual da ordem do
capital (NETTO, 2011, p. 220).
A necessidade da guerra, portanto, é o contexto no qual, diante da profunda crise
social que o capitalismo tardio vem apresentando, é uma decorrência de condições
históricas, que exige como saída uma revolução social mediante perspectivas
organizadas de luta (MENEGAT, 2012, p. 17).
Com base nos ideários de vanguarda dos anos 70, Andrade (2016, p. 259) propõese a formular uma convocatória:
A propor um desafio e uma convocatória latina: interpelemo-nos por resgatar a
utopia dos anos 1970, sobre a base do longo acúmulo criminológico crítico da
modernidade-colonialidade. Estamos sem projeto coletivo, politicamente
instrumental, para o controle social punitivo, num tempo em que o capital tem
um megaprojeto, globalizado. É preciso reativar e ressignificar os dispositivos
de resistência que estão aí, dispersos, em busca da latinidade e da brasilidade
criminológicas.
A este ponto, Vera Regina Pereira de Andrade, nos parece apontar a possíveis
horizontes, que se conectam as perspectivas de Menegat (2012), ao que a autora
denomina como criticismo sem projeto, nessas perspectivas “as Criminologias críticas
latino-americanas e brasileiras têm construído, portanto, um acúmulo argumentativo
sobre os riscos de um “mais” controle penal, quando estamos precisamente diante de
um “ornitorrinco” punitivo (ANDRADE, 2016, p. 275). Como resposta Menegat (2012)
propõe uma revolução social, pois, o momento constante de crise, justamente é a
ausência de um nível elementar de organização social e consciente.
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Criminologia periférica
Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social
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E é justamente no sentido de buscar construir um projeto criminológico coletivo
que leve em consideração a realidade daqueles que estão na mira do punitivismo que
propomos neste e-book pensar em uma Criminologia Periférica, de modo a abarcar
todas as Criminologias que possuam um viés crítico, bem como, todas as formas de
expressão cultural e resistência periférica, a fim de construir a partir de bases
epistemológicas e práticas, uma Criminologia que se debruce no centro do controle
social, ou seja, na periferia e a partir dela, possa propor alternativas ao controle social
punitivo.
Considerações finais
Consideramos que, para que seja possível pensar em alternativas ao controle social
punitivo, é necessário compreender os fatores que influenciam diretamente neste
controle, mas, sobretudo, na violação dos direitos fundamentais das pessoas
periféricas, uma vez que possuem estes direitos violados diversas vezes que variam e se
estendem no tempo e espaço, abarcando desde a instrumentalização genocida de
políticas públicas omissivas nos territórios periféricos; às “abordagens” policias e
“operações” realizadas através de metodologias militaristas de extermínio; até às
prisões e manutenções de cadeias sem as condições básicas para garantir a
sobrevivência.
Ou seja, os corpos periféricos encontram-se na mira do extermínio
diuturnamente, desde que nascem até o momento em que morrem (ou são mortos). E,
compreender as dinâmicas que envolvem essa guerra contra a periferia é de suma
importância para encontrar mecanismos capazes de cessar o autoritarismo. Neste
ensaio, nos detivemos no que diz respeito ao braço armado do Estado, pois os processos
de criminalização primária, de violência e letalidade policial são os momentos centrais
do direcionamento do controle social e, consequentemente, são determinantes para a
consagração do poder punitivo.
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Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social
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Criminologia periférica
Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social
DOI: 10.23899/9786589284369.3
PEDROSO, Anayara Fantinel. A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro”
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A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo
DOI: 10.23899/9786589284369.4
A militarização da polícia como forma de
construção do “ethos guerreiro” e
consolidação do autoritarismo1
Anayara Fantinel Pedroso*
Introdução
Frequentemente podem ser observadas graves violações aos direitos humanos e
fundamentais através do uso da violência quando da atuação policial ostensiva. A análise
de atos violentos é extremamente complexa, pois muitos significados e simbolismos
estão envolvidos. Desta forma, a Criminologia Cultural propõe um estudo
multidimensional para que se torne possível compreender as questões internas,
subculturais e estruturais que envolvem a violência e às reações a ela.
Desta forma, o presente estudo busca questionar qual a influência da militarização
das polícias estaduais para a construção de um ethos guerreiro? E de que forma
contribui para consolidação de um autoritarismo policial? Para responder os
questionamentos, faz-se necessário compreender como se dá o processo de
militarização das polícias e a influência na construção deste ethos de guerreiro, além de
analisar como ocorre a construção e negociação de significados do “ser policial militar”
e a respectiva representação mediada.
O estudo é dividido em três momentos, primeiramente, pretende-se abordar as
questões envolvendo a formação que é dada para os policiais militares dentro desta
subcultura, o que compreende uma análise dos símbolos, das hierarquias e dos
significados produzidos e negociados dentro do grupo. Para que, em um segundo
momento, esta base teórica forneça subsídios para um estudo da possibilidade de
construção de um ethos guerreiro quando da formação dos policiais militares, entrando
na abordagem da Criminologia Cultural da Guerra e nos processos de essencialização
presentes na atuação policial, o que compreende a necessidade de análise do plano
micro da atuação destes. Por fim, busca-se analisar a possibilidade deste ethos guerreiro
Este texto foi publicado nos anais do Sociology of Law 2021: crise sanitária e regulações democráticas
(p. 586-603). Disponível em: <http://svr-net20.unilasalle.edu.br/handle/11690/2807>.
*
Mestranda em Direito e Justiça Social na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Bacharela em
Direito pela Universidade Federal do Pampa.
E-mail: anayarafantinelpedroso@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4931636737843628
1
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A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo
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e da militarização fornecerem subsídios para o crescimento do autoritarismo, bem
como, pensar na possibilidade de desmilitarização como uma possibilidade de
diminuição da violência estatal.
É possível concluir que o processo de formação de policiais militares está baseado
em ideologias que constroem um “ethos guerreiro” e possui serventias identitárias
como a preservação do autoritarismo através das construções de identidade policial
pela militarização. Ressalta-se que esta ideologia busca preparar os guerreiros para a
guerra, onde predominam processos de alterização e, consequentemente, as técnicas
coletivas de neutralização, constituindo um campo aberto para a consolidação da
violência quando da atuação policial ostensiva.
Braço forte, mão armada: a (re)construção da identidade policial pelo
militarismo
Conforme o parágrafo 6º do artigo 144 da Constituição Federal, as Polícias
Militares constituem enquanto forças auxiliares e reserva do Exército, motivo pelo qual
a construção indenitária e formação dos ingressantes são conduzidas por metodologias
militaristas. O Exército brasileiro é o responsável pelas questões envolvendo a
organização, o ensino, a inteligência e a instrução das Polícias Militares. Neste sentido,
há a exigência de que os regulamentos destas estejam de acordo com o disposto no
regimento do Exército (SOARES, 2019).
Isso significa que a Polícia Militar adota um repertório simbólico do Exército
brasileiro, havendo aqui, um atravessamento. Pois, trata-se do fato de uma instituição
atravessar o núcleo essencial de outra. Desta forma, uma se torna referência para a
outra na construção de ideologias e identidades (DE ALBUQUERQUE, 2001) e,
consequentemente, na atuação cotidiana.
Este atravessamento se dá em decorrência da estruturação hierárquica entre
Polícia Militar e Exército, pois existem duas frentes de comando dentro das polícias dos
estados:
Há, portanto, duas cadeias de comando, duas estruturas organizacionais,
convivendo no interior de cada Polícia Militar (PM), em cada estado da
federação. Uma delas vertebra a hierarquia ligando as praças aos oficiais, ao
comandante geral da PM, ao secretário de Segurança e ao governador; a outra
vincula o comandante geral da PM ao comandante do Exército, ao ministro da
Defesa e ao presidente da República. Apesar da autoridade estadual sobre
“orientação e planejamento”, a principal cadeia de comando é a que subordina
as PMs ao Exército. Não é difícil compreender o primeiro efeito da duplicidade
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assimétrica: as PMs estaduais constituem, potencialmente, poderes paralelos
que subvertem o princípio federativo (SOARES, 2019).
Desta forma, a subcultura da Polícia Militar possui significados que são
construídos e negociados no(s) campo(s) do Exército, onde identidades, valores,
hierarquias e imagens são reproduzidos, devendo ser seguidos de maneira rígida desde
a iniciação no grupo até os últimos momentos em que se fizer parte deste.
A partir da entrada do indivíduo na instituição da Polícia Militar, ele será forjado
como militar. Seja através de regras, de costumes, das práticas diárias ou até mesmo do
contato com os policiais mais velhos, haverá a formação do jovem policial. Sendo
introduzidas, na própria subjetividade, as ideologias militares. Ou seja, ao ingressar na
instituição, inicia-se a militarização subjetiva do indivíduo. E, da mesma forma que o
indivíduo é moldado internamente pelo militarismo, ele o externalizará através das
reações, moldando parte da sociedade através da atuação prática (GROTTI; BORDIN,
2020).
Ocorre que a formação destes jovens militares é pautada na violência. Pois, se
delineia em metodologias militaristas, que contribuem para a construção de ideais que
promovem e valorizam questões relacionadas à guerra nas ruas, utilização de
armamento bélico, utilização da força, da virilidade, masculinidade e da superação. Esta
pedagogia busca fortalecer crenças de que o sofrimento funciona enquanto mote para
que os policiais possuam uma vontade bélica de defesa da sociedade (FRANÇA, 2015).
Pois, possuem uma série de treinamentos que se pautam na vivência de tensões e
frustrações por parte dos alunos, especialmente através da utilização de técnicas que
estimulam a ansiedade e o medo (DE ALBUQUERQUE, 2001).
Estas metodologias envolvem, em um primeiro momento, o período em que os
recrutas tornam-se alunos do curso de formação para Policial Militar, onde passam por
diversas experiências a fim de que sejam testados e introduzidos ao ethos militarista.
Este período possui um significado ritualístico, pois demarca a divisão entre dois
mundos: o paisano e o militar (FRANÇA, 2015). Para que se tornem Policiais Militares e
efetuem esta passagem de um mundo para o outro, precisam vencer os períodos
intensos de treinamento, situação que envolve toda uma performance quase que
heroica, especialmente diante das congratulações recebidas ao finalizar os períodos de
adversidades do curso.
Estes períodos de treinamento envolvem a dinâmica da guerra em ambientes
precários. Os alunos devem construir as bases, acampamentos que serão destinados
para o descanso. As atividades são divididas por dias e os alunos em grupos. Algumas
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A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo
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envolvem jogos militares que estimulam o senso de equipe, a coragem e a superação
dos próprios limites enquanto que outras envolvem a simulação da guerra, onde são
criados confrontos bélicos entre os grupos rivais através de armas não letais. Aqueles
que passam a ser considerados enquanto abatidos nestes confrontos, devem pagar
através da punição pública diante dos demais colegas. Estas atividades possibilitam a
demonstração da identidade da Polícia Militar, que passa a ser celebrada longe da
cidade, em meio à selva. Os selváticos são aqueles que conseguem ultrapassar todos os
desafios impostos em meio à selva, tornando-se heróis e guerreiros (DE
ALBUQUERQUE, 2001).
Parte destes treinamentos são calcados no traquejo, termo designado para a
prática de aprender dentro das academias militares diante da dor, do sofrimento, do
rebaixamento. É através do traquejo que a antiga condição de civil é apagada do corpo
dos recrutas e a forma com que se faz esse apagamento é através da dor. Tanto é que
alguns corpos são marcados através de lesões, o que demonstra a identidade do ser
policial que é transmitida através dos atos sádicos, muitas vezes, que reafirmam uma
linha tênue existente entre o sadismo e o traquejo, já que há uma dificuldade na
identificação do momento em que começa o sadismo nessas práticas. O sádico
predomina em uma cultura machista e, especialmente na cultura militarista, sendo o
recruta, o testemunha do poder do oficial, sobre o qual destina através do uso do poder,
faz nascer naquele tal identidade, dando origem ao guerreiro (DE ALBUQUERQUE,
2001).
Há uma negociação simbólica de significados muito grande aqui, tanto no que
tange à construção de uma identidade militarista nos recrutas, delineando a passagem
de um mundo civil para o outro mundo militar, quanto na demonstração e fixação de
hierarquia e poder dentro da subcultura através do próprio traquejo. Além disso, é de
se ressaltar que o fato dos indivíduos passarem por situações de sofrimento como esta
e por situações de simulação de guerra de forma conjunta contribuem para a
construção de laços fraternos entre eles.
Ao cumprirem a missão, denota-se o afastamento dos paisanos, demonstrando a
fixação de uma identidade contrativa típica dos membros do Exército, que distingue os
mundos entre o “nós”, os militares, e o “eles”, os civis. Esta identidade é facilmente
denotada, não apenas no modo de falar e agir, mas também nas demais questões que
identificam a subcultura. Isso porque existem rígidos valores organizacionais que
remetem à hierarquia e, inclusive, a forma de relação interpessoal entre os militares
(LEIRNER, 1997).
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Desta forma, os períodos de formação identitária dos recrutas e transição entre
os dois mundos torna-se visível, pois se divide durante o período entre duas fases: a
fase liminar que ocorre a partir do momento em que os valores inerentes ao espírito
militar forem absorvidos, e vencida esta, estarão prontos para viver a fase de agregação,
sendo este o momento em que serão aceitos ao quadro de membros efetivos da Polícia
Militar (FRANÇA, 2015).
Diante deste quadro, percebe-se que a formação que é destinada aos ingressantes
na Polícia Militar é delineada por metodologias militaristas, que corroboram para que a
PM seja um braço do Exército. Contudo, trata-se de um braço que carrega armamentos
de guerra no policiamento ostensivo.
A serventia identitária da formação militarista enquanto impulsionadora do
ethos guerreiro
Como se pode perceber, há uma carga fluida de significados no que tange à
formação de Policiais Militares, que irão envolver questões relacionadas à resistência,
hierarquia, união e violência. Durante o período em que os alunos se submetem à
sobrevivência nos campos há uma representação mediada do militarismo, onde
circulam valores e significados que são típicos da subcultura e que contribuem para a
construção de uma imagem militarizada do ser policial. As metodologias militaristas
utilizadas nesta formação preparam os ingressantes para a guerra, utilizando-se,
muitas vezes, da humilhação para introduzir ideologias militares na subjetividade dos
alunos.
A metodologia militarista de formação de Policiais Militares utiliza-se de uma
pedagogia do sofrimento como forma de considerar a necessidade e a legitimidade de
utilização de força por parte dos futuros militares na atuação profissional, reafirmando
assim, o ethos guerreiro. Esta pedagogia do sofrimento é naturalizada pelos
coordenadores e instrutores, visto que se trata de uma forma “assimilável” de
estabelecer limites e demonstrar o abismo hierárquico existente. Além disso, a vontade
dos alunos em concluir o curso, diante destes sofrimentos enfrentados, fortalecem os
valores culturais da instituição. Ou seja, consideram-se tais metodologias positivas,
pois corroboram para que os futuros policiais aprendam a suportar privações, sejam
elas físicas ou mentais, hipertrofiando assim, a determinação (FRANÇA, 2015).
E é justamente a hierarquia que irá delimitar como as relações são percebidas e
realizadas dentro daquele grupo. Existem círculos hierárquicos que irão variar
conforme o grau de hierarquia e funcionarão enquanto elo entre os militares, o que
demonstrará a união, a camaradagem e a confiança existente dentro daquele
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determinado círculo. Existem laços orgânicos que ligam os indivíduos pertencentes a
um mesmo grupo devido terem a mesma posição funcional. Contudo, estes laços
fraternos também podem existir entre aqueles indivíduos que não pertençam a um
mesmo círculo, em se tratando de unidades de combate menores (LEIRNER, 1997).
A fraternidade que é criada entre os membros de determinada turma nos
treinamentos é de suma importância quando deixam de ser recrutas, pois será o elo
que manterá os indivíduos da corporação unidos. Sendo, portanto, um grupo que
tiveram os laços fortalecidos na selva, na opressão hierárquica, onde construíram a
fraternidade e cumplicidade. E essa união será levada também para fora da selva. E é
nesta lógica que passam a compreender que a fraternidade possui um preço alto, mas
o da traição é maior. E, tendo noção desta fraternidade existente, poderão oprimir e até
exceder os limites dos regramentos, futuramente, pois confiarão nos laços já
construídos (DE ALBUQUERQUE, 2001).
Urge ressaltar que a forma como as experiências vividas na guerra são capazes de
reformular e fortalecer as relações de afinidade e identidade entre os grupos que a
vivenciam, proporcionando a construção de um significado forte e superior aos
ordenamentos. Aliado a isso, tem-se o senso de masculinidade que predomina entre os
indivíduos que estão na guerra, ganhando ainda mais força a partir do momento em que
a construção do significado se relaciona com atrações emocionais que são próprias da
guerra (FERRELL; HAYWARD; YOUNG, 2019) e das simulações desta, como por exemplo,
os campos de treinamento.
Essa fraternidade que é construída entre os membros de determinada turma
militar, faz nascer o espírito da corporação e demonstra o ethos guerreiro existente
entre aqueles que sobreviveram à selva. Demonstrando assim, que para sobreviver fazse necessário manter este ethos, utilizando-se da agressividade e do próprio poder
militar para que sejam encontradas as soluções para os problemas nos quais
enfrentarem (DE ALBUQUERQUE, 2001).
As ideologias que são apreendidas pelos indivíduos e estes laços que são
construídos entre os integrantes, fortalecem questões relacionadas à identidade e ao
senso de pertencimento ao grupo. Ou seja, não fornecem apenas formas de
compreender o mundo, mas também propósitos capazes de situar o lugar do indivíduo
neste mundo, fortalecendo a identidade e fazendo com que as pessoas compreendam
a necessidade de defender as causas deste grupo, bem como, os companheiros
pertencentes a ele. Além desta certeza identitária e existencial, o grupo é capaz de
fornecer um significado supremo final, no qual são elevados os significados de defender
o considerado sagrado dentro daquele grupo, a ponto de tornar honrosas essas atitudes
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de defesa. Ou seja, os indivíduos são compelidos a viver por um determinado propósito
e morrer por ele, se preciso for (COTTEE; HAYWARD, 2011).
Contudo, muitas vezes o ingresso ou até mesmo a permanência na Polícia Militar
pode estar relacionada a confusões identitárias subjetivas, proporcionadas, em grande
medida, pelo contexto tardo-moderno, mas também, pelos próprios treinamentos
militares em que, diante da humilhação sofrida, aumentam as inseguranças ontológicas.
Desta maneira, os indivíduos encontram na excitação dos confrontos, formas de suprir
determinados vazios existenciais, fortalecendo o self.
Para vivenciar situações que contenham risco e violência, faz-se necessário obter
um autoconhecimento. Isso porque além da força física, faz-se necessário – diante das
atividades a serem praticadas – o uso da inteligência. Além disso, nestes momentos são
vivenciadas grandes emoções, nas quais devem ser superadas. Todas essas situações
contribuem para o surgimento de um lifestyle. Essa busca por excitação está
diretamente ligada com a busca de segurança ontológica. É uma forma de buscar
significado existencial. Isso porque os riscos nos quais a violência se encontra
interligada, têm a capacidade de despertar alguns sentimentos como a adrenalina, o
que a torna excitante (FERRELL; HAYWARD; YOUNG, 2019).
Outra forma de buscar a segurança ontológica é através de processos de
alterização. Pois, diante destas crises de identidade, busca-se formas de reafirmar o
núcleo existencial de si mesmo e dos outros. E isso se dá através da utilização de um
essencialismo capaz de fazer essas reafirmações. Ou seja, há o fortalecimento e
hipervalorização de características do grupo no qual se pertence e uma diminuição dos
grupos que não possuem essas mesmas características através da criação de
estereótipos. Consequentemente este processo de alterização promove a violência a
partir da desumanização (YOUNG, 2003).
Estes processos vão ocorrer de forma seletiva, utilizando-se da rotulação daqueles
contra os quais os empreendedores morais irão se voltar (BECKER, 2008). Ou seja, os
inimigos são previamente escolhidos para que os guerreiros iniciem a batalha. O fato
de construir um inimigo ou considerar que este represente uma ameaça ao grupo e à
sociedade, justificam o poder punitivo e o uso da força, mesmo que se trate de forças
desproporcionais (ZAFFARONI, 2007). Desta forma, esses processos de essencializações
funcionarão como facilitadores da violência, permitindo desumanizações e atuando
enquanto técnicas de neutralização coletivas (FERREL; HAYWARD; YOUNG, 2019).
Esse uso da violência é fruto de uma denominada “febre de guerra”, que possui
bases sólidas no denominado ethos guerreiro. Isso porque há uma necessidade interna
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de valorização de algumas características típicas de quem se enquadra neste perfil,
como a coragem, a força, o enérgico, a autoconfiança, a virilidade, dentre outras. Este
perfil é, normalmente, reverenciado culturalmente em grande parte das sociedades, o
que de certa forma, torna-se um estímulo. Desta forma, percebe-se que os grupos que
possuem o ethos de guerreiro bem fortalecido, sempre exercerão as missões de forma
tranquila, pois carregam orgulho de serem incumbidos de missões que consideram tão
importante para o grupo e para si próprio. Pois, representa a retidão, a pureza
ideológica e, principalmente, a posição assumida enquanto um herói imortal dentro
daquele grupo. E aqui, através desta essencialização, a violência atuará como forma de
combater as frustrações existenciais (COTTEE, HAYWARD, 2011).
O ethos de guerreiro é introduzido aos militares desde o momento em que
ingressam na subcultura, onde são produzidos e negociados significados que vão
envolver o grau hierárquico, a união, a fraternidade, a competitividade, a masculinidade
hipertrofiada, a humilhação, dentre outros simbolismos que vão consolidar no indivíduo
as marcas de um determinado grupo, preparando-o para a guerra nas simulações
diárias de guerra e nos internatos realizados. Os jovens guerreiros são preparados
durante um determinado período para que absorvam esses significados através de uma
intensa convivência com o grupo sob as regras da subcultura, até absorverem por
completo. A partir da absorção, o ethos guerreiro passa a fazer parte de um novo self. O
indivíduo também já é diferente, pois carrega consigo parte dos valores assimilados,
bem como, recordações das humilhações vividas.
A insegurança ontológica, em grande medida proporcionada pelo contexto tardomoderno, torna-se vívida e, juntamente com as lembranças, fornecem um campo
aberto para que processos de autoafirmação identitária aflorem. Aqui, passa haver uma
ambiguidade sentimental, pois ao mesmo tempo em que a insegurança ontológica
corrói os guerreiros, a noção do dever de fornecer a segurança para a sociedade domina
a corrosão. Inicia-se uma guerra interna, onde a insegurança predominará. Em meio a
estas guerras, a farda torna-se uma verdadeira armadura para que esta guerra seja
enfrentada e um importante símbolo para a demonstração do poder – primeiramente
sobre as inseguranças do self – e também, relacionadas ao (super)poder de proteção.
Ethos guerreiro e enlaces autoritários: desmilitarizar é preciso
Desta forma, percebe-se que as Polícias Militares são utilizadas enquanto força
reserva do Exército, onde são transpassados valores, imagens, modelos organizacionais
e identidades. Possuindo uma semelhante ordem hierárquica verticalizada. Ocorre que,
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dentro de um Estado Democrático de Direito a atuação da Polícia deve ser diferente da
atuação do Exército, pois deve buscar a proteção dos direitos e da liberdade dos
indivíduos, promovendo a segurança e não gerando insegurança através da violência
(SOARES, 2019) e de processos essencialistas.
Já que essa influência das metodologias militaristas na construção e negociação
de significados relacionados ao “ser” policial militar implica uma dicotomia existente
nessa formação, pois se está diante de uma corporação em que a missão identitária
seria proteger e servir enquanto que na prática outras identidades se sobrepõem, como
a do guerreiro (DE ALBUQUERQUE, 2001). O que a torna mais propícia para a prática
de atos violentos.
Desmilitarizar significa romper com os laços que interligam as Polícias Militares
ao Exército, o que inclui o fim da utilização de regimentos disciplinares por este
utilizado no âmbito policial. Além disso, implica uma uniformização entre as polícias e,
consequentemente, o fim da divisão de trabalhos. Ou seja, ambas as polícias seriam civis
e buscariam investigar e prevenir de forma ostensiva a prática de delitos. O que não
implicaria em uma unificação - algo que é inviável - mas o fim de uma divisão de
atividades. Além disso, a desmilitarização implica no extermínio de graus diferenciados
de carreiras, o que diminuiria a competitividade desigual entre os ocupantes de postos
diferentes e, consequentemente, todos os elementos que envolvem esta forma de
competição, como o tratamento hostilizado, por exemplo. Implica também no fim da
diferenciação de salários, de graus de prestígio, possibilitando assim, uma igualdade de
oportunidades de ascensão (SOARES, 2019).
É necessário rever o currículo das academias de Polícias Militares, de modo que
as atividades propostas iniciem respeitando os direitos humanos dos recrutas, para que,
futuramente, estes possam respeitar os direitos dos cidadãos (DE ALBUQUERQUE,
2001). Isso porque o tratamento que é destinado aos alunos se delineia na agressividade
e humilhação, na busca de tentar prepará-los para a atuação ostensiva e absorverem a
identidade militarista, contudo as práticas desumanas acabam corroborando para o
aumento das inseguranças ontológicas, tornando estes indivíduos mais propícios para
a prática de atos performativos através da violência e do autoritarismo.
Não deve haver mais espaço para as crenças institucionais que se pautam em uma
perspectiva belicista que considera o sofrimento físico e psíquico enquanto uma
necessidade básica para a formação de policiais que tenham a capacidade de defender
a sociedade. Reforçando assim, o sofrimento enquanto forma de conquista em um
universo majoritariamente masculino (FRANÇA, 2015). Pois, se essas práticas
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permanecerem, os processos de alterização também permanecerão e a violência jamais
será rompida, pois seguirá vertendo nas veias institucionais militaristas.
Contudo, para que seja possível pensar em uma universalidade da segurança
pública é necessário observar a necessidade de alterações políticas e motivos
substantivos. Isso porque, para que haja mudanças na Constituição, é imprescindível
uma ampla adesão política das demandas defendidas. E de cunho substantivo porque
se reconhece a necessidade de que alterações culturais e institucionais devem ser
delineadas por justificativas que demonstrem a real necessidade destas alterações e,
mais do que isso, crie-se condições para que se preserve a equidade (SOARES, 2019).
Fazendo-se necessário, portanto, uma ampla participação popular.
Ocorre que as raízes autoritárias que ainda permeiam a sociedade impossibilitam
uma ampla distinção entre as atividades policiais e militares e, consequentemente,
dificultam a compreensão do que significa desmilitarizar. Desta forma, ressalta-se que
deve ser dever da polícia garantir a segurança interna enquanto ao exército cabe a
incumbência de proteger o Estado contra possíveis problemas externos. Sendo,
portanto, lógico que o treinamento destinado a cada instituição seja diferente, o que
não acontece (DA SILVEIRA, 2013).
Esta forma de organização e distribuição das Polícias Militares em conformidade
com o Exército dificulta a relação com a sociedade civil e torna-se ineficiente para
prevenir o crime (SOARES, 2019). Tanto é que os treinamentos se opõem a lógica da
polícia cidadã (DE ALBUQUERQUE, 2001) e aproximam da lógica de guerra.
É de se ressaltar que houve diversas implementações de cursos relacionados à
Segurança Pública, onde buscou-se proporcionar subsídios para formações críticas
através de parcerias interinstitucionais com universidades, de forma que continuou
havendo uma formação técnica e operacional militarista, mas acrescida de formações
científicas e acadêmicas, necessárias para dar o aporte para a compreensão dos
fenômenos sociais, culturais e históricos. Estas aproximações têm promovido a reflexão
de forma ativa dos indivíduos que passam pela formação, possibilitando assim,
mudanças de hábitos e de comportamentos calcadas na efetivação dos direitos
humanos (SANTOS, 2017).
Ocorre que embora estes cursos buscaram aproximar a formação dos policiais aos
estudos críticos acerca dos direitos humanos e da violência, as alterações
comportamentais proporcionadas podem ser vislumbradas apenas no campo
comportamental individual, não se expandindo às corporações. Isso porque ao atuarem
em conjunto, outros significados são negociados dentro da fraternidade existente no
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grupo, que acabam impossibilitando a insurgência de um indivíduo contra os demais.
Desta forma, o único caminho para romper com o autoritarismo e com a violência
policial ostensiva é através da desmilitarização e do fim da utilização de metodologias
militaristas que estimulem o ethos guerreiro e os processos essencialistas.
Considerações finais
Diante do exposto, vislumbra-se que a Polícia Militar adota um repertório
simbólico do Exército, que se torna referência para a construção de ideologias e
identidades daquela. Desta forma, as metodologias militaristas utilizadas para a
formação de policiais militares baseiam-se na humilhação, no sofrimento e na violência
como formas de introduzir as ideologias militares e autoritárias na subjetividade destes
indivíduos. Estas formações valorizam a virilidade, a força, a masculinidade, a violência,
a utilização de armamento bélico e as guerras. Contribuindo assim, para a construção
de um ethos guerreiro.
O contexto tardo-moderno, bem como, as próprias humilhações que ocorrem na
formação dos policiais proporcionam inseguranças ontológicas nestes indivíduos, que
buscam formas de (re)afirmar o self através de experiências a serem vividas. Muitas
vezes a própria permanência no contexto militarista pode ser a forma encontrada para
buscar a segurança, já que este ambiente proporciona adrenalina, violência e excitação.
Essa segurança ontológica também é buscada através de processos de alterização,
onde os indivíduos buscam a (re)afirmação do núcleo existencial de si e dos outros
através da hipervalorização de características próprias e daqueles que lhes são
semelhantes e diminuição e criação de estereótipos dos diferentes. E,
consequentemente este processo de alterização promove a violência a partir da
desumanização que funcionará enquanto técnica de neutralização coletiva, de modo
que todo o grupo pratique atos violentos. De modo que, alterações comportamentais
individuais não trarão resultados para a diminuição da violência, já que esta trata-se de
um problema estrutural. Sendo, portanto, a desmilitarização, o único caminho possível
para alterações positivas na segurança pública.
Referências
BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Editora SchwarczCompanhia das Letras, 2008.
COTTEE, Simon; HAYWARD, Keith. Terrorist (e) motives: The existential attractions of terrorism.
Studies in Conflict & Terrorism, v. 34, n. 12, p. 963-986, 2011.
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A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo
DOI: 10.23899/9786589284369.4
DA SILVEIRA, Felipe Lazzari. Reflexões sobre a desmilitarização e unificação das polícias brasileiras.
2013.
DE ALBUQUERQUE, Carlos Linhares; MACHADO, Eduardo Paes. O currículo da selva: ensino,
militarismo e ethos guerreiro nas academias brasileiras de polícia. Capítulo Criminológico, v. 29, n. 4,
2001.
FERRELL, Jeff; HAYWARD, Keith; YOUNG, Jock. Criminologia cultural: um convite. Belo Horizonte:
Letramento, 2019.
FRANÇA, Fábio Gomes; DE FARIAS GOMES, Janaína Letícia. " Se não aguentar, corra!": um estudo sobre
a pedagogia do sofrimento em um curso policial militar. Revista brasileira de segurança pública, v. 9,
n. 2, 2015.
GROTTI, Vyctor Hugo Guaita; BORDIN, Marcelo. Hipermilitarização e letalidade policial: uma
abordagem relacional. Revista Direito e Democracia, v. 7, p. 1-13, 2020.
SANTOS, José Vicente Tavares dos. Inovação no ensino policial: história e lições. 2017.
SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2019.
LEIRNER, Piero de Camargo. Meia-volta, volver: um estudo antropológico sobre a hierarquia militar.
Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 71-111, 1997.
YOUNG, Jock. Merton with energy, Katz with structure: The sociology of vindictiveness and the
criminology of transgression. Theoretical Criminology, v. 7, n. 3, p. 389-414, 2003.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
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Foto: Gabriel Dias.
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A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação
cultural
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A musicalidade ancestral das mulheres negras
na cultura brasileira: samba, uma
contranarrativa de resistência à apropriação
cultural
Ana Karolina Matias Emydio*
Cristiane Westrup**
Fernanda da Rocha Fabiano***
Fernanda da Silva Lima****
Introdução
Propomos neste texto trazer uma narrativa sobre a história da samba e a vida de
mulheres negras protagonistas dessa história para além de um gênero musical e, que
situa “a samba” como cultura brasileira fundante. A samba que compõe essa narrativa
subverte o próprio nome “o samba” partindo da compreensão de que mulheres negras
ocupam a centralidade dessa narrativa e segundo o pesquisador Tadeu Kaçula (2021),
“samba” na linguagem ancestral corresponde ao feminino, à identidade, a
Graduanda em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC); Bolsista do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CAPES/CNPq) Direito Constitucional e o
pensamento Jurídico Crítico Latino-Americano. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Gênero e Raça NEGRA.
E-mail: anakarolinaemydio@unesc.net
**
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense
(PPGD/UNESC). Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Gênero e Raça – NEGRA.
E-mail: cristiane.wp79@gmail.com
***
Pós-Graduanda a nível de Especialização em Direito Educacional pelo Centro Sul Brasileiro de
Pesquisa Extensão e Pós-Graduação LTDA (CENSUPEG); Bacharel em Direito pela Universidade do
Extremo Sul Catarinense (UNESC), Integrante vinculada ao Núcleo de Estudos em Gênero e Raça
(NEGRA/UNESC).
E-mail: fer.fabiano@hotmail.com
****
Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito e professora titular da disciplina
de Direitos Humanos da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC. Doutora e Mestre em
Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Coordenadora do Núcleo de Estudos em
Gênero e Raça – (NEGRA/UNESC).
E-mail: felima.sc@gmail.com
*
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A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação
cultural
DOI: 10.23899/9786589284369.5
ancestralidade, a coletividade, a celebração da vida. A samba, “casa de samba” o lugar
de acolhida, da encruzilhada, da práxis comunitária, do candomblé, do batuque, da
congada, do jongo, da umbigada. Mulheres como Tia Ciata, Clementina de Jesus no Rio
de Janeiro, Madrinha Eunice em São Paulo e, tantas mulheres negras que antes delas
como as mulheres negras das irmandades, dos terreiros, e as que vieram depois,
compositoras, cantoras, as guardiãs da cultura e da religião africana através da
oralidade e da vida em comunidade, todo esse legado compõem o berço fundador da
cultura brasileira.
As chamadas tias da samba, como nos ensina Helena Theodoro (2017), numa
linguagem ancestral a tia significa: “aquela que tem os poderes da mãe e que acolhe a
todos os filhos, inclusive os que não saíram de seu ventre”. A família é coletiva em África,
não são os laços de sangue que definem quem são irmãos, no candomblé uma pessoa
se torna irmã/o da/o outra/o, não exatamente pelos laços sanguíneos, nas palavras de
Conceição Evaristo (2017).
Uma contranarrativa das mulheres negras da samba, situando o protagonismo da
cultura e musicalidade de origem eminentemente negra, apropriadas como “cultura
brasileira” pela branquitude. A branquitude segundo Tânia Mara Müller e Lourenço
Cardoso (2017) é definida como um lugar de poder, o pertencimento étnico-racial que
se atribui ao branco. O lugar privilegiado da hierarquia racial, o poder de definir os
“outros” como não brancos.
A luta, a trajetória e contribuições das mulheres negras da samba para o
enfrentamento da estrutura racista, hierarquizada pela sociedade, como forma de
(re)existência, como essas mulheres através da ancestralidade, da musicalidade, e da
vida em comunidade seguem fraturando o poder branco, heteronormativo, masculino.
A expropriação/apropriação da cultura de origem africana transformada em
cultura brasileira pelo Estado e pela indústria musical, como forma de invisibilidade e
apagamento (epistemicídio). A valorização da cultura ocidental, branca, pautada nos
valores eurocêntricos e o mito da democracia racial aprofundam esse epistemicídio
histórico-cultural, do conhecimento, dos costumes e tradições do povo negro.
Uma pequena narrativa sobre a história da samba: mulheres negras,
ancestralidades e conceitos
A samba se traduz como cultura brasileira fundante, com potente manifestação
política e de denúncia. A samba é práxis, é modo de vida, é acolhimento, é a vida em
comunidade, é ancestralidade. Comunidades, terreiros, projetos de samba que mantém
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A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação
cultural
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a memória e a história da samba como uma das mais importantes tradições culturais do
Brasil (MATEUS, 2021).
Hilária Batista de Almeida, ficou conhecida como Tia Ciata, nasceu na Bahia em
1854, falecendo em 1924 com 70 anos de idade. Aos 22 anos, mudou-se para o Rio de
Janeiro no êxodo que ficou conhecido como diáspora baiana. Tia Ciata teve sua vida
dedicada à religião, o candomblé e a música. O batuque, a samba foram preservados
pelo seu legado. A Praça Onze na Pedra do Sal é o marco da chamada Pequena África,
onde se concentrava grande parte da população negra vindas da Bahia e de outros
estados, assim como a população negra que ali já residia, neste local se reuniam as
famílias negras, onde mais tarde se constituiu o berço da samba carioca. Ela acolhia as
famílias que chegavam, em busca de trabalho e moradia (TIA CIATA, 2017).
A história da samba de origem urbana em São Paulo se confunde com a história
das periferias. As rodas, dos terreiros e comunidades da samba, surgiram
principalmente no início do século XX, quando famílias negras deslocadas dos grandes
centros por projetos higienistas do Estado formaram os primeiros grupos
carnavalescos como exemplo o Camisa Verde da Barra Funda (zona oeste da cidade de
São Paulo). Logo foram se formando outros cordões pela cidade. Essas manifestações
culturais representavam e representam verdadeiros quilombos urbanos, símbolo de
existência e (re)sistência. Em 1937, Deolinda Madre (1909-1995), também conhecida por
(Madrinha Eunice) fundou a Escola de Samba Lavapés, ainda em atividade (MATEUS,
2021). A Escola de Samba Lavapés é considerada uma das pioneiras do carnaval de São
Paulo (ACERVO MIS, 2019). Clementina de Jesus (Rainha Quelé), nascida em 1901 na
cidade de Valença no estado do Rio de Janeiro, aprendera desde cedo a cantar o jongo,
curimás e outros cantos africanos que aprendera de sua mãe. Clementina de Jesus
faleceu em 1987 aos 86 anos (CLEMENTINA DE JESUS, 2011). O local conhecido como o
Largo da Banana, hoje Memorial da América Latina (zona oeste da cidade de São Paulo)
é considerado como o ponto zero da samba paulista. Ali se reuniam sambistas que no
local residiam, dessa movimentação rítmica e cultural surgiram outras manifestações
culturais pela cidade (MATEUS, 2021). Clementina de Jesus na sua musicalidade única,
foi influenciada pelo contato com a cultura dos quilombos. Em Valença a tradição dos
quilombos é significativa, como o quilombo São José da Serra, que preserva a tradição
e ancestralidade transmitidas principalmente pela música, pelas rodas, pelas festas. A
voz e sua musicalidade foram descobertas pela indústria musical em 1962, quando a
cantora tinha sessenta anos de idade (CLEMENTINA DE JESUS, 2011). A oralidade
característica de samba, e os diversos ritmos africanos que a compõe está presente
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A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação
cultural
DOI: 10.23899/9786589284369.5
tanto no espaço urbano como no meio rural mais longínquo onde a cultura negra é
transmitida.
Sob um contexto geral da música popular brasileira, que teve sua história
assinalada por compositores homens, sentenciando as mulheres na atuação como
intérpretes e mais tarde musas de samba, colocando-as em um papel secundário.
Mulheres negras não só fizeram história na samba, mas foram as principais
fundadoras/continuadoras dessa manifestação cultural, dessa práxis coletiva e
ancestral como Tia Ciata, Clementina de Jesus, Madrinha Eunice, Dona Ivone Lara entre
outras, mesmo que mulheres negras da samba, renomadas compositoras eram
definidas como apenas “cantoras” (CAVALCANTI, 2019). Podemos enunciar o conceito
de amefricanidade1 de Lélia Gonzalez (2020) no sentido da presença e importância da
história da musicalidade do povo africano, das mulheres negras em especial da samba
como identidade fundante e constitutiva da história e cultura brasileira.
Críticas à apropriação cultural e higienicação da samba e a contranarrativa
das resistências
A apropriação da cultura de origem africana no Brasil demonstra outra faceta do
mito da democracia racial, a mistificação de sua manutenção no tempo. Esta
permanência de traços culturais seria o resultado das “relações benevolentes” entre os
senhores proprietários e os escravizados, onde a música, as danças, a culinária, as
diversas religiões e linguagem de origem africana colocadas como elementos
integrantes da cultura brasileira (brasilidade) seriam a demonstração da ausência de
preconceito e discriminação racial dos “brancos” (NASCIMENTO, 2016, p. 66). Foi
durante o governo de Getúlio Vargas que o Estado nomeou a samba como uma das
principais expressões de identidade nacional, uma “tradição” que desse um sentido
único ao “povo brasileiro”. A partir dessa definição que ocorreu a “nacionalização” e a
“internacionalização” da samba (MATEUS, 2021, p. 234).
No Brasil, as pessoas crescem mergulhadas com a ideia de viver em uma
democracia racial, partindo disso realizam a manutenção de uma sociedade aspirante
ao racismo. As pessoas brancas não se enxergam enquanto brancas, embora gozem de
A formação histórico-cultural do Brasil não como um país formado a partir do imaginário branco e
europeu, mas um Brasil situado em uma América Africana, cuja latinidade (herança colonial ibérica) é
inexistente, uma Améfrica Ladina. Rejeitando assim, o mito da democracia racial (a ideologia do
branqueamento), que mantém negros e indígenas numa condição de subordinação que se substancializa
no silenciamento, apagamento dos saberes e da cultura desses povos.
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privilégios por meio da sua inserção em diferentes níveis hierárquicos (CARDOSO,
2014).
Na sociedade brasileira em diversos espaços a branquitude produz e reproduz a
lógica colonialista que segue inferiorizando a população negra. Isso ocorre por conta
da designação do “lugar do branco” e “lugar do negro”. Os lugares de prestígio,
intelectualidade, que são interpretados como “lugares onde se pensa” ou lugares "onde
se brilha" são automaticamente naturalizados e fortalecidos entre os brancos. A
branquitude busca diariamente ordenar e controlar aqueles que podem ter
protagonismo e destaques (CARDOSO, 2014).
As ações que ocultam as produções intelectuais desenvolvidas por negras e negros
não é inocente, é marcada por traços que visam afirmar uma “inferioridade” que
brancos criaram sobre os negros. A intelectualidade negra tem obstáculos colocados
por espaços predominantemente brancos, por ser entendida como uma “ameaça” aos
privilégios brancos e toda a construção que segue invisibilizando, desumanizando e
silenciando negros e negras (CARDOSO, 2014).
A expropriação/apropriação da cultura negra pelos brancos pensada de forma
conceitual nos mostra que a expropriação pela análise marxista é a usurpação da força
de trabalho alheio pelo capitalista. Sob uma análise das epistemologias negras é a
apropriação ilegal, desumana, dos espaços, territórios, corpos e direitos de negras e de
negros. Uma expropriação da cultura do povo negro é a exploração dos bens culturais,
das/os produtoras/es negras/os sob uma racionalidade capitalista e racista
(MALOMALO, 2017).
Houve uma apropriação da cultura de origem africana, seus ritmos e musicalidade
(axé, samba, samba de roda, lundu, congada, umbigada, jongo entre outros). O
protagonismo do povo negro, da cultura de terreiro foi sendo suprimida, apropriandose seus significados (KERTÉSZ, 2016). A cultura de origem africana no Brasil nomeada
como folclore, num processo de inferiorização e esgotamento de seus elementos
essenciais configura em uma forma de etnocídio/epistemicídio. A predominância de
uma cultura eurocêntrica e branca transformou numa tentativa de reduzir a cultura, o
conhecimento, os costumes do povo negro em folclore, o povo que não tem história
(NASCIMENTO, 2016).
A cultura do povo negro, como um todo, vem sendo expropriada/apropriada pela
branquitude que representa um lugar de poder, onde constantemente busca efetuar
um esvaziamento dos sentidos, da oralidade, da musicalidade, costumes, tradições e,
de produções negras transformando-as em produto de consumo da sociedade
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capitalista. O grande problema é que ao fazer isto, o real significado daqueles elementos
fundantes é alterado e toda a história de luta e resistência do povo negro acaba sendo
desconsiderada, invisibilizada e apagada (WILLIAM, 2019). Nas palavras de Sueli
Carneiro (2005), a racialidade ao determinar o princípio humano no sentido de
brancura, delineando as outras dimensões humanas de forma hierárquica pela distância
ou aproximação desse padrão. Nisso se fundamenta o branco como ideal (ser) em
relação aos outros (não ser) (CARNEIRO, 2005).
A indústria musical dos anos 1950/1960, marcada pelo racismo estrutural
brasileiro, começou a preterir sambistas negros em relação aos sambistas brancos,
dando uma nova “roupagem” ao gênero musical que, a partir desse período, se tornaria
mais “refinado” pelo surgimento do movimento da Bossa Nova, o qual impactou
negativamente a vida e a renda daquelas artistas, mulheres negras que sobreviviam de
cantar samba também como uma manifestação política que denunciava a opressão
vivida por elas (WILLIAM, 2019). Isso demonstra a masculinização do gênero musical,
destacando uma maior visibilidade pela indústria musical aos artistas homens, do que
para as artistas mulheres.
Nas décadas seguintes, anos de 1980/1990 foram assinaladas por outro
movimento de samba oriundos das periferias e regiões metropolitanas de São Paulo,
“os pagodeiros”, assim designados pela mídia musical popularizado em todo o país. Mas,
o que diferencia samba e pagode? Pagode também é corrente nas regiões norte e
nordeste do Brasil, em festas de sanfoneiros, assim como em festas tradicionais de
tocadores de viola caipira no interior do estado de São Paulo e de outros lugares. Então
o pagode é apropriado para designar uma reunião de pessoas que reúnem-se para tocar
samba (gênero musical), sendo também utilizada para outros ritmos (MATEUS, 2021).
Dentro desse contexto musical é importante lembrar o que já nos dizia Lélia
Gonzalez (2020) sobre o racismo, precisamente em relação às mulheres negras. Lélia
pontua que o racismo latino-americano é refinado a ponto de manter a população negra
em condições de exploração através de um sistema ideológico que os domina e nega o
direito de serem sujeitos da sua própria história e cultura, desumanizando-os e
folclorizando-os, ao mesmo tempo em que concede privilégios aqueles que se
enquadram na visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista. Isso tudo é agravado
quando analisamos a categoria de mulheres no samba, pois por um lado são vistas como
as mulatas/musas do Carnaval, por outro são invisibilizadas quando atuaram/atuam
profissionalmente como compositoras/cantoras de samba, mesmo diante de seu
talento incontestável (GONZALEZ, 2020).
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Há uma tendência na historiografia da indústria musical, de destacar a
importância das mulheres negras da samba como personalidades pela sua atuação
enquanto cantoras, ressaltando suas vozes, seus corpos, sua desenvoltura quando
dançam (dançarinas/musas), ou a generosidade e acolhimento quando se fala das tias
baianas. Um universo de saberes ancestrais, de vida em comunidade, de cultura e
musicalidade, vindos das rodas de samba, dos quilombos e da religião africana como os
candomblés, que é visto de forma distorcida e esvaziada de sentidos, estabelecendo
uma relação do ventre da mulher com o ritmo do samba como essenciais para sua
criação, existindo uma evidente disparidade na relação entre compositores e
compositoras. Desse modo, a visibilidade que se dá ao feminino é a capacidade de gerar
o sambista no seu ventre, ou de acolhê-los em suas casas e festas na comunidade e, não
a competência/potência de criação do gênero musical, verdadeiras obras primas
produzidas por essas mulheres. Mas o que existe é o destaque único para os sambistas
homens, em geral parentes ou filhos dessas mulheres, elas criaram a samba e os fizeram
sambistas, mas somente estes homens foram legitimados pela branquitude como os
primeiros “sambistas” (CAVALCANTI, 2019).
Sobre a mulata/musa se exerce um processo de hipersexualização, erotização
folclórica e objetificação sexual a ser consumido pela elite branca racista, afinal, seus
corpos serão super expostos na única noite gloriosa do ano e sua imagem certamente
será destaque nos principais jornais da grande mídia, no dia posterior, ainda que na
semana seguinte ela só seja mais uma, dentre tantas mulheres negras oprimidas. Já para
as mulheres negras que são lidas como a “mãe preta” a mulher negra retinta (em geral
a doméstica), recai os estereótipos de faxineira, cozinheira, lavadeira, etc., aquela que
deve atuar em locais que não tenham contato com o público, fazendo todo o “trabalho
pesado”, onde possa ser explorada economicamente sem expressar as opressões a que
são submetidas (GONZALEZ, 2020). Giovana Xavier, historiadora nos relata que as
mulheres negras foram descritas como “heroínas caladas e pacientes ao longo da
história” pelo olhar branco de muitos “teóricos intelectuais”, que as definiam como
objetos e, colocadas num lugar de servidão tido como naturalizado. Outra ideia racista
é a definição de que mulheres negras são “guerreiras” suprimindo a condição humana
da fragilidade, colocando a dor como um referencial único na vida dessas mulheres (TIA
CIATA, 2017).
Desta forma, Lélia escancara que o corpo negro não é visto enquanto potência
intelectual e, o da mulher negra, muito menos. Ela é tida como uma trabalhadora braçal,
sem qualquer qualificação e que não consegue ascender socialmente, pois não se
esforçou o bastante, ou seja, o discurso da meritocracia, fundado na falsa ideia de uma
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democracia racial, também influencia negativamente a forma como tais mulheres são
vistas (GONZALEZ, 2020). Por isso, não é simples numa sociedade de ideais brancos, ser
resistência, ainda mais quando este corpo é preto e artístico. A mulher negra que fez e
faz história na nossa Améfrica Ladina, ou no país do pretuguês, como diz Lélia Gonzalez
(2020), onde a mãe preta revolucionou os caminhos por onde deixou suas lágrimas e
marcas, onde o samba como revolução, ora apropriado destacou potencialidades no
mundo da música. Mas pergunta-se onde estão as mulheres negras cantoras de samba?
Conforme Grada Kilomba (2019) o racismo em todas as suas facetas busca
controlar o/a sujeito/a negro/a e demonstra a vontade da branquitude em limitar e
restringir a população negra das suas próprias aproximações e interpretações,
direcionando inclusive o seu lugar (o não-lugar). Ocorre um eterno fechamento de
portas porque pela branquitude, a negritude é vista enquanto inferioridade, logo quem
deve ditar e escolher os espaços e formas de ser são as pessoas brancas. Sendo o
racismo o espaço onde acontecem diversos processos simultâneos, de invisibilização,
exclusão e controle, qual a importância de mulheres negras como Jovelina Pérola
Negra? Dona Ivone Lara? Elza Soares? Leci Brandão? São as mulheres negras que
movem as engrenagens da sociedade, quem diz isso é nada mais, nada menos que
Angela Davis! Portanto, diante da potência, o que a trajetória de mulheres negras
sambistas tem a dizer? O que se evidencia que essas mulheres partilham na coletividade
são sua ancestralidade, negritude, afetos, a luta no enfrentamento do racismo, a forma
de revolucionar o mundo e subverter as estruturas por meio da samba. Quem disse que
cantar é coisa de preta? A vida, a voz, a musicalidade dessas mulheres!
Na música de Dona Ivone Lara: Um sorriso negro/Um abraço negro/Traz
felicidade/Negro sem emprego/Fica sem sossego/Negro é a raiz da liberdade/Negro
é uma cor de respeito/Negro é inspiração/Negro é silêncio, é luto/Negro é a
solidão/Negro que já foi escravo/Negro é a voz da verdade/Negro é destino, é
amor/Negro também é saudade. E Leci Brandão? Ela entra em cena sacudindo as
estruturas coloniais do saber2 e rompe com aquilo que Chimamanda (2018) diz ser a
“história única”: Zumbi, o teu grito ecoou/No Quilombo dos Palmares/Como um
pássaro que voou/Tão liberto pelos ares/Um grito de dor e de fé/Ficou registrado na
nossa história/Pela luta, pelo axé/Pela garra, pela glória. O que essas canções têm em
comum? o enfrentamento ao sistema racista, um dar as mãos para a população negra.
Termo desenvolvido por Quijano (2000) para demonstrar as forças coloniais no processo de construção
de conhecimento.
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E para que voz mais potente do que Elza Soares pra falar de feminismo negro, dos
atravessamentos que as mulheres negras sofrem, refletindo mais uma vez a
colonialidade do poder e do saber? Mil nações moldaram a minha cara/Minha voz, uso
pra dizer o que se cala/Ser feliz no vão, no triz/É força que me embala/O meu país é
o meu lugar de fala/Pra que separar?/Pra que desunir?/Porque só gritar?/Porque
nunca ouvir?/Pra que enganar?/Pra que reprimir?/Porque humilhar?/E tanto
mentir?/Pra que negar que ódio é que te abala?/O meu país é meu lugar de fala.
Mulheres negras resistiram e resistem pela ancestralidade e coletividade
presentes na práxis da samba, desde os ritmos mais longínquos do som dos atabaques
vindos dos quilombos, da musicalidade oriunda dos terreiros, dos cantos africanos ao
berço da samba habitando os espaços urbanos onde o povo negro celebra a vida, a vida
em comunidade, o carnaval. A samba como práxis, é o lugar de acolhimento, que tem o
poder de reunir as pessoas trazendo o sentido de coletividade.
A apropriação sobre a cultura africana vem desde a Diáspora Negra quando
arrancados de seu Continente os africanos que aqui chegaram tiveram que abandonar
suas tradições para sobreviver num mundo estranho sob um regime de desumanização.
A apropriação cultural se moldou na pós-abolição em especial nas primeiras décadas
do século XX como uma das faces do mito da democracia racial, a partir do conceito de
brasilidade, onde a cultura do povo negro foi incorporada como cultura brasileira ou
folclorizada até o seu total esvaziamento por um padrão cultural branco. Neste sentido,
a presença das mulheres negras na samba, ora é super exposta pela mídia de massas,
no intuito de folclorizar e objetificar aqueles corpos que são constantemente
hipersexualizados, ora é invisibilizada quando se propõe a cantar, já que é por meio da
música que busca também anunciar as formas de resistência e alianças para enfrentar
a perversidade posta pela branquitude contra os corpos da população negra. Diante de
todo esse cenário, algumas mulheres negras por meio da samba, foram e seguem sendo
resistência/potência a todo o processo de branqueamento, apropriação cultural e
desumanização. É pela música que muitas denúncias são feitas e os gritos de esperança
são dados, ainda que em alguns cenários a branquitude usurpe e/ou suba ao palco do
protagonismo, invisibilizando a produção potente das mulheres negras.
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Criminologia periférica
A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico
DOI: 10.23899/9786589284369.6
A criminologia da seletividade penal quanto a
subjetividade na tipificação da conduta na lei
antitóxico
Matheus Marins*
Fernando Henrique da Silva Horita**
Introdução
Pretende-se demonstrar a desproporcionalidade da pretensão punitiva estatal à
conduta delitiva em questão. O escopo discorrido na pesquisa é a discussão dos
critérios utilizados pelos magistrados frente a seletividade penal, e com isso, quais são
as consequências e quem são os mais afetados por ela. Nesse diapasão, será abordado
e analisado até onde vai a liberdade de discricionariedade dos julgadores para justificar
a conduta típica, frente a discrepância entre o tratamento entre o usuário e o traficante
da seletividade penal ocasionada pelo etiquetamento, isto é, sob a ótica da Labeling
Approach.
Com pesar, o notório fracasso da política de guerra a drogas trouxe consigo
inúmeras consequências à seara penal, social e a todo ordenamento jurídico, sendo um
dos principais responsáveis por causar superlotações nas unidades prisionais brasileira,
a qual ocupa o ranking mundial de uma das maiores populações carcerária, oriunda da
tipificação legal com critérios essencialmente subjetivos que servem para o controle de
classes.
A temática aponta o perigo da liberdade das decisões pautadas em parâmetros
sociais, abrindo assim brechas para julgamentos que se baseiam em estereótipos
marginalizados socialmente, deixando de lado tão somente a fatídica que envolve o
sujeito. A relevância dessa análise está principalmente no risco e consequência que a
Possui graduação em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso. Atualmente é Assessor
Jurídico da Prefeitura Municipal de Alta Floresta.
E-mail: marins_matheus@hotmail.com
**
Doutorando em Filosofia pela Unisinos. Mestre em Teoria do Direito e Teoria do Estado pela UNIVEM.
Especialista em Teoria e Filosofia do Direito pela PUC-MG. Atualmente, é professor de Direito da
Universidade Estadual de Mato Grosso e da Faculdade de Sinop, onde leciona Criminologia.
E-mail: profhorita@outlook.com
*
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subjetividade em tela criou à segurança jurídica que se tornou instável e abriu meios
para a seletividade penal.
Diante desse quadro, o presente trabalho se funda, através do método dedutivo,
em uma tentativa de demonstrar a necessidade imediata de preencher as lacunas legais,
que com elas trazem mazelas à justiça e sociedade, se alastrando cada vez mais como
um mal que se enraíza e que pouco se faz para coibi-lo e tratá-lo de forma eficaz.
Contextualizando o inimigo no direito penal
As penas são aplicadas desde o momento que a sociedade passou a se organizar
para viver socialmente, sendo que a punição era utilizada para aqueles que infringissem
as regras, que até então, não eram ainda as leis, mas sim as convicções morais, religiosas
e de organização, usada como forma de punir o mal causado e dotada de um caráter de
vingança.
Segundo o art. 59 do Código Penal existe um caráter de retribuição pela prática
do crime e de prevenção de outras infrações, seja pelo próprio condenado ou por outras
pessoas, já em relação ao caráter reeducativo da pena, se encontra nas disposições da
Lei de Execução Penal, a pena passe a ter um tríplice aspecto, para Júlio Fabbrini
Mirabete (2001, p. 245):
Passou-se a entender que a pena, por sua natureza, é retributiva, tem seu
aspecto moral, mas sua finalidade é não só a prevenção, mas também um misto
de educação e correção. Para Pellegrino Rossi, Guizot e Cousein, a pena deve
objetivar, simultaneamente, retribuir e prevenir a infração: punitur quia
peccatum ut ne pecceptur. Segundo tal orientação, a pena deve conservar seu
caráter tradicional, porém outras medidas devem ser adotadas em relação aos
autores de crimes, tendo em vista a periculosidade de uns e a inimputabilidade
de outros. Seriam essas as denominadas medidas de segurança.
O Estado continua com a função de punir, entretanto a sanção não tem mais o
objetivo de mostrar o poder soberano do Estado, serve como uma forma de alertar os
cidadãos para não cometer o que é tido como crime, respeitando sempre os limites da
legalidade, humanidade e a ressocialização, em tese. A pena se bastaria para a realização
da justiça, segregando quem chegar a cometer o crime.
Observa-se que a pena é uma forma de retribuição e de afirmação do poder
punitivo do Estado. As penas são podem ser narradas como falhas quando não cumprem
seu papel social, mas quem sofre com as falhas estatais são as classes mais vulneráveis
economicamente, com o endurecimento das penas para condutas simples geralmente
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praticadas em decorrência da falta de um Estado eficiente. Por outro lado, penas como
os crimes de colarinho branco que tem uma sanção mais branda por exemplo,
reforçando a ideia das desigualdades sociais e aplicando severamente penas à conduta
que não são bem vistas aos olhos. No entanto, fica nítido que ocorre a cifra negra quanto
a isso.
Uma das principais críticas em questão se baseia no fato do sistema penal não
conseguir executar o pretendido, pois na hora de exercer suas funções de prevenção
geral e especial não se realizam, não evitam novos delitos, nem ocasiona a segurança
jurídica. Todos esses fatores alegados recaem à Lei de Drogas nº 11.343/2006, pois a
linha tênue para a classificação do traficante ou do usuário se utiliza muitos dos
critérios puramente subjetivos.
Desta feita, o judiciário e a polícia podem usar de forma arbitrária a possibilidade
de relativizar as condições pessoais do agente, como a moradia, condições sociais e os
antecedentes para determinação do agente delituoso, assim teria se criado a
oportunidade de se desenvolver um estereótipo de traficante de entorpecentes,
tornando a conduta do agente como típica as vezes antes mesmo de apurado os reais
fatos.
O Direito penal do inimigo se destaca com Günther Jakobs (2007), a qual essa
proposta se disseminou mundialmente, entranhando-se seu resquício no ordenamento
penal brasileiro. Tal teoria possui objeto em que separa os delinquentes e criminosos
em duas categorias, de um lado o status de cidadão, que, uma vez que infringissem a lei
teriam o direito à um julgamento dentro do ordenamento jurídico normalmente
estabelecido dentro dos conceitos do cidadão médio e assim voltaria a ajustar-se à
sociedade.
Por outro lado, seriam os caracterizados como inimigos do Estado, aqueles que se
manifestam socialmente como adversários do Estado, cabendo assim a eles tratamento
mais pungentes diferenciado dos demais. Assim, na concepção de Günter Jakobs o
ordenamento jurídico deve manter os cidadãos delinquentes cobertos pelo Direito, no
intuito de reingresso social. Seguindo essa:
O Direito Penal conhece dois polos ou tendências em suas regulações. Por um
lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua
conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade,
e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio,
a quem se combate sua periculosidade (JAKOBS, 2007, p. 37).
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Nessa perspectiva, o Estado poderá exercer a punibilidade em duas formas aos
infratores, primeiro sob a ideia de pessoas que delinquem, indivíduos que tenham
cometido erro, no esboço do presente trabalho o enquadramento ao usuário que
mantém o status de cidadão, ou ainda pessoas que devem ser impedidos de atacar o
Estado e o ordenamento jurídico, aplicando a coação, por meio de criação de leis
severas direcionados a pessoas específicas, como traficantes e terrorista, assim
destaca-se:
Com viés extremamente punitivo e sem observância das garantias processuais,
o Direito Penal do Inimigo almeja punir aquele que viola as expectativas sociais
e põe em risco toda a coletividade. O inimigo é aquele que não respeita o Estado
de Direito, praticando condutas criminosas que ameaçam todos os direitos
sociais, como a vida, a segurança pública, a saúde etc. Se assim o for
desrespeitando as leis e a Constituição Federal, o ordenamento jurídico também
não deve ser aplicado a ele de forma a tratá-lo igualmente àquele que respeita
todos os direitos e as garantias individuais (GONZAGA, 2018, p. 21).
O problema trazido por tal perspectiva se monstra nas condições e capacidades
especiais em distinguir entre os que mereciam ser chamados de cidadãos e os que
deveriam ser considerados inimigos, que quando aplicado nos crimes relacionados,
expõe a incapacidade de tal que aponta afiada da espada se direciona com rigidez a
determinados grupos com estereótipos marginalizados, já em outra esfera um
estereótipo mantém-se protegido pelo ordenamento jurídico equilibrado e brando, e
isto não exclusivamente pela conduta, mas por características físicas, sociais, regionais
e econômicas.
Segundo Sérgio Salomão Shecaira (2008) a criminologia tem por objetivo conhecer
a realidade para explicá-la, enquanto o Direito Penal ordena e orienta a realidade
respaldado em um leque de critérios axiológicos. Isto é, se manifesta como um ramo da
Ciência Criminal que desloca seu olhar para a compreensão da realidade criminal,
abarcando os contextos, e quais serão os resultados da questão criminal. Na construção
do entendimento constitucional encontra-se garantias fundamentais que se ventilam
objetivamente na esfera penal/criminal, a qual deveria atuar sem distinção a todos que
sejam dotados de personalidade jurídica, independentemente do tipo penal, entre eles,
o estado de inocência que também foram cristalizados em tratados internacionais,
como a Declaração Universal de Direitos Humanos.
Nesta toada, o Estado Democrático de Direito deveria colocar a presunção de
inocência como pilar defensivo do indivíduo atuante como polo de um processo penal,
que por si só já é uma pena. Assim, até que as provas obtidas diretamente do fato delitivo
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apontem a culpa, o que impõe é a inocência, afastando a culpabilidade do indiciado. Em
consequência, quando criado estereótipos preconceituosos e marginalizados, se
desconstrói a condição de pessoa. A partir dessa rotulação desumanizadora o agente
aparece não somente como perigoso, mas sua cidadania é negada e lhe é imposto o
estigma de inimigo (ZAFFARONI, 2014). Assim, quando taxado como inimigo mitiga as
garantias fundamentais.
Em meio este esta ideia, Günther Jakobs vem firmar que “um indivíduo que não
admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos
benefícios do conceito de pessoa” (JAKOBS, 2007, p.85). É possível pensar que construir
um discurso direcionado para determinada taxação de inimigo, a partir do ilícito em
questão é direcionar a retirada de direito a um público específico. Afirma Raul Eugênio
Zaffaroni (2014, p. 175) que:
O verdadeiro inimigo do direito Penal é o Estado de Polícia, que, por sua
essência, não pode deixar de buscar o absolutismo. Neste embate de pulsões e
contrapulsões não é possível ceder terreno algum, e menos ainda imaginar com
ingenuidade que o inimigo se conformará com um hipotético espaço
compartimentado, porque este não existe, dado que os limites são porosos,
alternam –se de forma permanente e não são controláveis.
A criminologia crítica destaca então que a criminalidade está na sociedade, porém
os danos sociais, econômicos gerados pelos crimes políticos e econômicos, são
superiores àqueles causados pelas pessoas das classes econômicas mais baixas.
Oriundo de uma construção histórica, o estereótipo do criminoso pode ter se
enraizado no sistema de segurança pública, por isso vem sendo fonte de fundamento
em sentença, gerando consequências a determinados grupos e nocivas à sociedade
como todo, Alessandro Baratta (2002, p.197-198) diz:
Enquanto a classe dominante está interessada na contenção do desvio em
limites que não prejudiquem a funcionalidade do sistema econômico-social e os
próprios interesses e, por consequência, na manutenção da própria hegemonia
no processo seletivo de definição e perseguição da criminalidade ,as classes
subalternas, ao contrário, estão interessadas em uma luta radical contra os
comportamentos socialmente negativos, isto é, na superação das condições
próprias do sistema socioeconômico capitalista, às quais a própria sociologia
liberal não raramente tem reportado os fenômenos da “criminalidade”. [...]
Realmente, as classes subalternas são aquelas selecionadas negativamente pelos
mecanismos de criminalização. As estatísticas indicam que, nos países de
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capitalismo avançado, a grande maioria da população carcerária é de extração
proletária.
Diante dessa tradição do estereótipo referente a condutada tida como grave,
perigosa e violenta, se manifesta o tocante à seletividade penal que se resulta em
enrijece uma construção sociocultural que alcança a máquina da jurisdição tornando o
sistema penal seletivo e ilegítimo frente ao tratamento desigual que se presta como
instrumento de controle social seletivo e discriminatório.
Na visão de Alfonso Maíllo (2007, p. 257):
O enfoque do Etiquetamento quer dizer basicamente duas coisas. Em primeiro
lugar, que não existe quase nenhum ato que seja delitivo em si mesmo, mas
delitivo ou desviado é aquilo que se define como tal pela comunidade ou pelos
órgãos do sistema de Administração da Justiça. A chave para que algo seja
delitivo, portanto, não reside tanto em suas características intrínsecas, mas no
etiquetamento que dele se faça. [...]. Em segundo lugar, é provável que sejam
muitas as pessoas que incorram em atos desviados e até delitivos.
Então, comportamento e ação não são iguais, passa a analisar o meio social de
onde delinquente está inserido e a atuação do sistema penal é de que as condutas
criminosas e suas penas são baseadas por diversas causas advindas das desigualdades
sociais que formam antes mesmo da realização da conduta criminal. Em particular,
reflete uma contradição fundamental entre igualde dos sujeitos de direito e
desigualdade substancial dos indivíduos.
O sistema penal possui evidente proteção social indistinta, em um pretenso
Direito Penal igualitário. Sob essa ótica, pode-se concluir que:
[...] o sistema penal é extremamente seletivo no combate ao crime. Desde a
elaboração de normas proibitivas de condutas, até a punição judicial de
criminosos, há uma perversa seleção de agentes que irão sofrer a efetivação da
sanção penal. O status quo que impera no combate à criminalidade é alarmante.
No intuito de manter calma a desinformada sociedade, direciona-se a punição a
determinadas condutas (com doses altíssimas de publicidade) e cria-se a ideia
de que a criminalidade está controlada. Falsa ilusão simbólica, porquanto a mais
perversa e destruidora forma de criminalidade, a de cunho econômico, está a
proliferar-se, sem que os órgãos estatais previnam e combatam tais forma de
delito. A seletividade estrutural do sistema penal – que só pode exercer seu
poder regressivo legal em número insignificante das hipóteses de intervenção
planificadas é a mais elementar demonstração da falsidade da legalidade
processual proclamada pelo discurso jurídico-penal. Os órgãos executivos têm
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“espaço legal” para exercer poder repressivo sobre qualquer habitante, mas
operam quando e contra quem decidem (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 77).
Em atenção a Lei 11.343/2006, tem-se o artigo 28, e nele aponta-se lacunas que
contribuem expressamente para a concretização da seletividade penal frente as
questões políticas e culturais abordadas, os quais se reproduzem nos métodos de
classificação da conduta típica, o artigo em questão gera um campo de subjetividade
que traz como consequência a insegurança jurídica do que ora é crime, ora não. Nestes
termos:
Art. 28 Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer
consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
[...]
§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá
à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em
que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à
conduta e aos antecedentes do agente (BRASIL, 2006).
Isto posto, a atenção volta-se ao parágrafo 2º do respectivo artigo, em que
discrimina a classificação de usuários de drogas, aqui, o principal ponto crítico é os
quesitos subjetivos em que o Magistrado deverá fazer o sopesamento para caracterizar
a conduta se baseando quanto ao local, as condições que se desenvolveu a ação, as
circunstâncias sociais, bem com a conduta e aos antecedentes do agente. Ora, o
preocupante se faz nos amplos critérios de interpretações individuais em que atua as
agências policiais e judiciais que acaba por gerar espaço para utilizar-se de uma
abrangente arbitrariedade das condições pessoais do agente, do local e os antecedentes
para a classificação, Howard Becker aduz:
O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem
o comete e de quem se sente prejudicado por ele. Regras tendem a ser aplicadas
mais a algumas pessoas que a outras. Estudos da delinquência juvenil deixam
isso muito claro. Meninos de áreas de classe médica, quando detidos, não
chegam tão longe no processo legal como os meninos de bairros miseráveis. O
menino de classe média tem menos probabilidade, quando apanhado pela
polícia, de ser levado à delegacia; menos probabilidade, quando levado à
delegacia, de ser autuado; e é extremamente improvável que seja condenado e
sentenciado. Essa variação ocorre ainda que a infração original da norma seja a
mesma nos dois casos (BECKER, 2008, p. 25).
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Dessa forma, o estereótipo marginalizado do traficante de drogas funciona como
o elemento central de enquadramento da conduta típica. Gerando julgamentos de casos
concretos de extremas semelhança tipificadas pela jurisdição de formas de
extremamente discrepante quando se trata de classes abastadas ou não vistas sob a
ótica de “raças” que possuem tendências à marginalidade.
Teoria do labeling approach
Conhecida também como teoria do etiquetamento, tal corrente parte da ideia de
que a criminalidade é uma construção da sociedade, decorrente de processos de
definições e de interação social. Assim, entende-se o crime não como uma realidade
intrínseca, mas sim com a tipificação de
critérios seletivos e discriminatório que em dado momento social foram definidos
como tal. Tem-se, portanto, um paradigma criminológico em crítica ao paradigma
etimológico, que observava o sujeito que comete crime através de suas características
individuais, nessa teoria:
A sociedade define, por meio dos controles sociais informais, o que se entende
por comportamento desviado, isto é, todo comportamento considerado
perigoso, constrangedor, impondo sanções àqueles que se comportarem dessa
forma. Condutas desviantes são aquelas que as pessoas de uma sociedade
rotulam às outras que as praticam. A teoria da rotulação de criminosos cria um
processo de estigmatização para os condenados, funcionando a pena como algo
que acentua as desigualdades. Nessa interação estigmatizante, o sujeito acaba
sofrendo reação da família, de amigos, conhecidos e colegas, acarretando a
marginalização nos diferentes meios sociais (GONZAGA, 2018, p. 57).
Desta feita, extrai-se que a Teoria de Etiquetamento, veio com a contextualização
criminológica ousado, em que propôs a inversão de paradigmas, a importância das
relações no meio social no estudo do comportamento do criminoso alterou o enfoque
do pensamento criminológico, que até então, procurava respostas sobre a origem da
criminalidade pautado nas características intrínsecas de cada indivíduo ao invés do
meio social em que ele estava posto.
Além de entender a conceituação do surgimento do Labelling Approach, se faz
necessário analisar o contexto histórico em que a teoria surge. Aparecendo pela
primeira vez no final da década de 1950 e meados de 1960, no Estados Unidos da
América. Diante deste contexto histórico surge-se o Labelling Approch, um paradigma
que aponta o crime e a criminalidade como construções sociais. Concluindo que a
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corrente surge em meio a lutas por questões sociais dentro e fora dos EUA, cuja defesa
da sociedade surgiu para confrontar o etiológico vendo assim o infrator como
pertencente a uma sociedade, com identidades sociais que refletem em suas atitudes.
Essa teoria aborda uma diferenciação no tratamento de certos criminosos, passando a
ver como inimigo real da população e do Estado, fazendo diferenciações como base
para se aplicar a pena.
É possível afirmar que a subjetividade da Lei que se originou como Guerra as
Drogas se tornou uma das mais visíveis ferramentas para a concretização da
seletividade penal elitista e também para o encarceramento massivo de jovens as
margens da sociedade. Observa-se que o etiquetamento do sistema criminal, é
abarcado pela criminalização primária e secundária, que são realizados pelo legislativo
no momento das realizações as normas penais, e também pela polícia, ministério
público e juízes que exercem esse controle. A grande crítica elencada pelos adeptos e
teóricos da teoria em tela, sobre a temática, tange a finalidade da pena criminal.
Conforme expõe Alessandro Baratta (2002, p. 179):
Esta é chamada a evidenciar o papel desenvolvido pelo direito, e em particular
pelo direito penal, através de norma e de sua aplicação, na produção das
relações sociais, especialmente na circunscrição e marginalização de uma
população criminosa recrutada nos setores socialmente mais débeis do
proletariado.
À vista disso, o instituto penalizador serve como seleção das instâncias do crime,
uma vez que o sistema penal seleciona pessoas visando sua classe social como meio de
segregação. Nesse sentido, Eugênio Raúl Zaffaroni (2015, p. 73) leciona:
[...] ao menos em boa medida, o sistema penal seleciona pessoas ou ações, como
também criminaliza certas pessoas segundo sua classe e posição social. Há uma
clara demonstração de que não somos todos igualmente ‘vulneráveis’ ao sistema
penal, que costuma orientar-se por ‘estereótipos’ que recolhem os caracteres
dos setores marginalizados e humildes, que a criminalização gera fenômenos de
rejeição do etiquetado como também daquele que se solidariza ou contata com
ele, de forma que a segregação se mantém na sociedade livre. A posterior
perseguição por parte das autoridades com rol de suspeitos permanentes,
incrementa a estigmatização social do criminalizado.
Conclui-se com os fatos narrados que o sistema penal brasileiro não efetiva o que
deveria ser sua finalidade de ressocializar, ao contrário, o indivíduo que encara a lâmina
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da justiça punitiva, é lançado em uma realidade precária que o estimula a práticas
socialmente rejeitadas, distanciando ainda mais da realidade socialmente aceitável. A
criminalização é o resultado de fatores sociais vistos oriundo do desvio criminal, que
etiquetam a figura atribuída ao infrator, criminoso ou ainda denominado delinquente,
sujeitos esse que possam realizar condutas em desconformidade com o que impõe o
tipo penal. Nesse diapasão, Sérgio Salomão Shecaira (2008, p. 294) propõe:
A personalidade do agente se referenciará no papel desviado ainda que ele se
defina como não desviado. As dificuldades são ainda mais pronunciadas quando
o agente, embora negue o papel desviado, é, cada vez, identificado por terceiros
pela conduta classificada como desviada. Surgirá uma espécie de subcultura
delinquente facilitadora da imersão do agente em um processo espiral que traga
o desviante cada vez mais para a reincidência.
Desta feita, origina o movimento da Criminologia Crítica como decorrência de
entendimentos trazidos pela teoria do Labeling Approach. A conduta do criminoso e os
efeitos gerados por ela na sociedade é analisado sob um novo viés, voltando-se para o
estudo econômico-político da então tida conduta desviada, trabalhando sob a
perspectiva da conduta socialmente repreendida e qual o processo de criminalização
que a envolve. A Criminologia Crítica vem trazer uma vertente macrossociológico,
apontando pungentemente as desigualdades de classes como reflexos a ser
considerado dentro da seara do crime, desta forma o crime ou a conduta desviada não
é analisada sob a ótica de qualidade do criminoso, mas como uma decorrência direta da
atuação, ou a falta, do sistema penal.
De acordo com Alessandro Baratta (2002, p. 160) expõe:
O deslocamento do interesse cognoscitivo das causas do desvio criminal para os
mecanismos sociais e do desvio, ou seja, para os mecanismos através dos quais
são criadas e aplicadas as definições de desvio e de criminalidade e realizados
os processos de criminalização.
As condutas criminosas já não se baseiam em uma característica ontológica de
comportamentos determinados e de indivíduos específicos, mas sim um status
atribuído a determinados indivíduos. Deste modo, a criminalização com a
estigmatização do indivíduo em conjuntura com as políticas de controle social gera a
produção do desvio, vistas como as ações reiteradas das classes estigmatizadas. Logo,
com o enraizamento dos fatores que estimulam práticas criminosas o resultado obtido
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não será outro senão o elevado indicie de crimes e a reincidência de classes específicas.
O crime então passa a ser analisado como sendo gerado pelo sistema penal, gerado pela
forma de seletividade que descrimina.
Na Labelling Approach, o crime e seu reflexo social são presenciados isoladamente,
isso é, não de dividem, atuando inseparáveis. Em que pese essa perspectiva não
conseguia superar a criminologia liberal, uma vez que se manteve dentro de uma esfera
idealista. Por isso, Raul Eugênio Zaffaroni (1998) entende que essa teoria embora fora
significativa, não foi suficiente para o desenvolvimento do estudo macrossociológico,
sendo assim apenas um ponto de partida para os teóricos buscassem se aprofundar nos
institutos de rotulagem das condutas socialmente desviadas.
O usuário ou traficante à luz do labeling approch
Importante entender na presente discussão qual a figura que vem à mente quando
se pensa em quem são os traficantes? Esta é uma questão que não deveria ser
respondida com facilidade e não deveria ser aceito conceitos instantâneos. Em que
pese, ao abordar a ideia de tráfico, o estereótipo bastante comum para maior parte da
sociedade é a figura de o indivíduo negro, com roupas largas, usando assessórios
extravagantes, portando armamentos e morando em áreas periféricas. Figura esta que
imediatamente, além de equivocadamente, passa a ser visualizada como provável não
pessoa (JAKOBS, 2007), que se demonstra como inimigo do Estado.
Nessa toada, explica Coimbra e Nascimento (2003) que circunstâncias que
possibilitaram a emergência do que nomearam de mito da periculosidade, o que seria
nada mais que a atribuição da periculosidade, condutas desumanas e criminosas à
figura do pobre, representam a concretização do Racismo de Estado, sendo que quando
não forem definitivamente criminosos a figura tem potencial tendência para
manifestar-se como inimigo. Deste modo, com a violência ligada àquilo que se é pobre,
é facilmente imaginar que existem formas de mecanismo especificados a punição e
controle da sociedade hipossuficiente.
Assim, o perfil de usuário que se encontra em situação de carência é facilmente
criminalizado, amargando os reflexos da ineficaz guerra as drogas, vez que:
[...] na construção de Política Pública, no caso específico do crack, vimos que a
pessoa tem vez nem voz, porque na formulação de Políticas Públicas voltadas à
questão de drogas são chamados diversos atores sociais envolvidos na questão
DROGAS: policiais, juristas, políticos, padres, pastores, médicos, psicólogos,
sociólogos, dirigentes de comunidade terapêuticas, representantes de
associações médicas. Ministério da Saúde, secretaria Nacional de Políticas de
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Drogas, mas não são chamados representantes do público-alvo, ou seja, nunca
são consultadas pessoas que fazem o de drogas para discutir qual a melhor
forma de se pensar em políticas públicas que contemplem suas necessidades,
um exemplo de como uma epidemia e a resposta rápida do governo na
formulação de um Plano Emergencial para Ampliação ao Tratamento e
Prevenção em Álcool e Outras Drogas no SUS - PEAD (LOIVA, 2010, p. 164).
O encarceramento em massa é uma grande preocupação no sistema de execução
penal brasileiro, o número de presos em cárcere provisório é exasperado tendo forte
contribuição da Lei Drogas. A relação do tráfico trazida com ela tem levantado grandes
problematizações quanto a conduta típica, vez que a Lei 11.343/2006 não traz critérios
objetivos e específicos para a distinção entre o que é a traficância e o usuário.
Estando esta questão sob a discricionariedade de autoridade policial quem efetua
o primeiro contato com a conduta. Dessa forma, não havendo positivada regra clara e
objetiva que defina como ele deve classificar a questão. De tal modo, distinção que deve
ser feita, conforme previsto em lei, não passa de simbologia, aplicada de forma objetiva.
Devido à falta de critérios objetivos e legais que determine de forma coesa e
imparcial a conduta típica em questão, a subjetividade possa trazer a desumanização e
a criminalização da pobreza, abrindo um vasto campo de subjetividade que rotula e
impõe o estereótipo de inimigo.
O subjetivo conceito de julgamento abre espaço para um Direito Penal pautado
em simbolismos e ilusão, deste modo no entendimento de Raul Eugênio Zaffaroni (1991,
p. 27) “[...] o sistema é constituído para que a legalidade processual não se opere, e sim
apenas exerça seu poder com alto grau de arbitrariedade seletiva”. Uma vez já abordado
o estereótipo do criminoso, resta claro que a seletividade nos casos relacionados ao
juízo do que é uso e do que será tido como tráfico já possui um pré-julgamento sobre a
conduta, gerando o etiquetamente uma forma de direcionamento ao julgamento do
criminoso, isso decorre de conceitos extremamente abstratos previsto no dispositivo
legal.
Segundo Alessandro Baratta (2003, p. 23):
A guerra contra a droga no Brasil não é uma guerra internacional comandada
pelos Estados Unidos e por outros países centrais; não é uma guerra contra um
inimigo externo; é uma guerra contra o inimigo interno; um assunto, como se
viu acima, de segurança nacional e urbana.
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O inimigo se manifesta com a forma e estereótipo das classes sociais em situação
de vulnerabilidade, que não possui as mesmas armas para se defender do poder estatal
punitivo, logo, a violência contra ela acaba tendo legitimidade, enquanto para classes
abastadas ainda se mantém o equilíbrio e segurança jurídica da balança da Justiça.
O juízo de valor nos casos envolvendo drogas não são analisados de forma isoladas,
voltado exclusivamente ao bem jurídico tutelado, ao combate ao antijurídico, abrindo
lacuna a subjetividade por meio da preconização do local de apreensão, circunstâncias
sociais e pessoais do agente. Contudo, a ausência de critérios objetivos descritos em lei
afeta um princípio basilar no ordenamento jurídico pátrio, a segurança jurídica, onde
grupos determinados já sofrem pré-julgamentos que muitas vezes resultam em
condenações com extrema discrepância quando comparado a grupos abastados
economicamente.
É evidente que o Estado está perdendo a guerra as drogas, devendo esse
reconhecimento ser um dos primeiros passos para um enfrentamento eficaz à
problemática. Impõe-se a necessidade de inovar a tutela que deveria ser de controle do
Estado e que se encontra sob o controle de organizações criminosas em que, fruto do
etiquetamento, aqueles que estão no cume do controle não são devidamente punidos e
muitas vezes nem mesmos alcançados pelo ordenamento jurídico. Cessando a ideologia
repressiva da aplicação da pena a determinado grupo pode reduzir ou se demonstrar
mais eficaz ao combate ao tráfico, visando aos reais controladores das redes de tráfico,
retirando o direcionamento único e exclusivamente ao consumidor final, que se
encontra na base.
Destarte, o controle sobre massas e seletividade do sistema, são institutos que
devem ser desconstruídos quanto o assunto é pretensão punitiva estatal, a fim de se
coibir julgamentos pautados em condutas sociais e estereótipos, iniciando maior
eficácia e igualdade voltada realmente e unicamente em tutelar a saúde pública,
direcionando os julgamentos em uma efetiva segurança jurídica.
Conclusão
O objetivo do presente trabalho foi abordar como a política de guerra as drogas se
tornou uma política que realiza a seletividade penal. A subjetividade envolvendo a lei
antitóxico permite o juízo de valores sob aspectos pessoais e íntimos do julgador,
fomentando e efetiva a aplicação de teoria seletiva em que os indivíduos são
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estigmatizados, punindo-se o indivíduo pautado em características pessoais e
estereótipos marginalizado, ao invés de exclusivamente o crime.
Desta forma, fica demonstrado que o Estado é falho. O déficit estatal gera reflexos
diretos nos fatores sociais, e assim o crime organizado atua e ampara determinadas
classes de forma mais organizada e em posição de superioridade em relação ao Estado,
gerando punições a determinados grupos sociais ante mesmo a prática de crime, ou
seja, para alguns são lançados a um sistema punitivo preconceituoso, seletivo e
fracassado, para outros a oportunidade de respeito aos direitos e garantias
fundamentais.
Evidente, portanto, a necessidade de readequação da atuação do Estado em todas
as searas que envolve às classes fragilizada, gerando políticas eficazes desde a base
familiar e chagando até os sistemas punitivos responsáveis por aplicar sanções às
condutas criminosas, garantindo a todos a dignidade humana e um julgamento justo
pautado em segurança jurídica, o qual o fato a ser julgado seja única e exclusivamente
o crime, a conduta típica e não as características pessoais do agente, evitando assim a
criminalização da pobreza.
Referências
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direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
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Criminologia periférica
Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime
de tráfico de drogas
DOI: 10.23899/9786589284369.7
Guerra às mulheres negras e periféricas: A
necessidade de uma criminologia feminista
com viés interseccional na análise do crime de
tráfico de drogas
Rafaela Isler da Costa*
O perfil da mulher encarcerada
Em 2018, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública realizou o levantamento
nacional de informações penitenciárias – Infopen Mulheres. No documento, relatou o
perfil das mulheres encarceradas. Em relação à cor e raça, 62% eram negras. Em relação
à escolaridade, quanto ao ensino médio, apenas 15% haviam concluído e 66% nem
mesmo o cursaram (INFOPEN, 2018).
De acordo com o relatório, é necessário compreender a natureza dos crimes
tentados ou consumados pelas pessoas encarceradas para analisar o fluxo do sistema
de justiça criminal e a seletividade penal. Nesse sentido, será possível compreender qual
aparato punitivo do Estado será voltado para determinados crimes e para o
encarceramento de determinados grupos sociais (INFOPEN, 2018).
O relatório concluiu que 62% das incidências penais nos registros das mulheres
encarceradas ou que aguardavam julgamento eram de crime de tráfico de drogas
(INFOPEN, 2018). Diante do exposto, conclui-se que a maioria das mulheres privadas de
liberdade foram acusadas de envolvimento com tráfico de drogas, são negras e de baixa
escolaridade.
Akotirene (2020) leciona que é necessário analisar o aprisionamento de mulheres
por meio da interseccionalidade, já que nas prisões residem o sexismo e o racismo
institucionais. Além disso, há o comportamento policial, que além de ser racista, julga
Mestranda em Direito e Justiça Social no Mestrado em Direito e Justiça Social
(PPGDJS/FaDir/FURG/RS). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). PósGraduação em Direito Público (LEGALE) Integrante do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos
Humanos (NUPEDH/FURG).do CNPq: DIREITO, GÊNERO E IDENTIDADES PLURAIS (DGIPLUS).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2927053833082820
E-mail: rafaelaislerdacosta@gmail.com
*
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Criminologia periférica
Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime
de tráfico de drogas
DOI: 10.23899/9786589284369.7
as mulheres de camadas sociais estigmatizadas como perigosas, inadequadas e
passíveis de punição.
Tendo em vista as informações divulgadas pelo Ministério da Justiça e da
Segurança Pública no levantamento de informações penitenciárias sobre mulheres,
torna-se necessário discutir o aprisionamento com os marcadores de sexo, raça e
classe social. Tendo em vista de realizar uma análise por meio da criminologia feminista
com viés interseccional, o próximo capítulo analisará de forma suscinta a
criminalização de entorpecentes e seus malefícios para a sociedade.
O crime de tráfico de drogas como forma de punição aos indesejáveis
Tendo em vista que atualmente a maior parte da população carcerária feminina é
negra, com baixa escolaridade e envolvida no tráfico de drogas, torna-se necessário
uma análise da criminologia feminista com viés interseccional e, defender a
descriminalização das drogas, tendo em vista que esta, atualmente tornou-se um meio
de punir os indesejáveis da sociedade, principalmente os pobres, negros e periféricos.
A lei de drogas atual é injusta, usa força e violência para criar desigualdade e
encarcerar pessoas pobres e de minorias étnicas. A “guerra às drogas” persiste há mais
de 30 anos, porém, ao invés de diminuir o consumo de drogas, este aumentou ainda
mais. Diante disso, não há sequer racionalidade em isolar o problema do poder punitivo
(ZAFFARONI, 2013).
Importa destacar que “[...] o mercado das drogas, na ilegalidade, vulnerabiliza
vidas, estabelece uma dinâmica policial e gera insegurança nas comunidades afetadas,
ameaçando instituições e até a democracia” (BORGES. 2019, p. 69). E, além disso, a
proibição criou um “apherteid social”, gerando mais problemas sociais do que a própria
substância (VALOIS, 2016).
É importante destacar que o crime de tráfico de drogas faz parte da estatística de
crimes femininos, representando um alto número de mulheres encarceradas. A maioria
dessas mulheres são meros meios de transporte de drogas para levar aos maridos, não
sendo possível analisar o crime apenas por questões socioeconômicas (MENDES, 2012).
Diante do quadro apresentado, em que o crime de tráfico de drogas está nas
estatísticas como crime que mais encarcera mulheres pobres e negras, faz-se
necessário abordar questões como feminilização da pobreza, para posteriormente
analisar a criminologia feminista com viés interseccional.
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Criminologia periférica
Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime
de tráfico de drogas
DOI: 10.23899/9786589284369.7
A feminilização da pobreza como expressão da desigualdade: conceitos,
divisão sexual do trabalho e relação com o tráfico de drogas
Em 2005, o Instituto de Pesquisa Aplicada divulgou um estudo sobre a feminização
da pobreza, explicando que essa indica o aumento da pobreza das mulheres e a
desigualdade entre homens e mulheres. Diante disso, destacou a importância de avaliar
o fenômeno brasileiro, já que a pobreza e a desigualdade entre homens e mulheres são
inaceitáveis (IPEA, 2005).
Chernicharo e Boiteux (2014) lecionam que a feminização da pobreza é um
processo em que há níveis maiores de pobreza entre as mulheres e que em lares pobres
há maior proporção de chefes femininas. Além disso, afirmam que as mulheres pobres
latino-americana estão em subempregos, já que não acessam os meios formais de
trabalho.
Nesse sentido, Chernicharo e Boiteux (2014) afirmam que a questão
socioeconômica deve ser analisada associada com a condição de gênero, tendo em vista
questões como a divisão sexual e desigual do trabalho do trabalho, em que mulheres
acumulam o trabalho doméstico e do cuidado, de forma que precisam depender de
homem. Dessa forma, a vulnerabilidade social das mulheres aumenta.
De acordo com Hirata e Kergoat (2007), a divisão do trabalho possui 2 princípios
organizadores. O primeiro é o da separação, em que existem trabalhos de homens e de
mulheres. O segundo é o de que o trabalho das mulheres vale menos do que os dos
homens. Dessa forma, por meio do processo de legitimação da ideologia naturalista, as
práticas sociais são reduzidas a papéis sociais sexuados, como se houvesse um destino
natural da espécie (HIRATA; KERGOAT, 2007).
Tendo em vista o exposto, há a feminização da pobreza em decorrência da
desigualdade entre homens e mulheres. As mulheres são impedidas de alcançar o
mercado formal de trabalho e não são remuneradas em suas horas de trabalhos do
cuidado e doméstico não remunerados. Porém, o marcador de raça é ainda mais
agravante quando se trata de mercado de trabalho.
É importante destacar que, conforme Quadrado (2022), o tráfico de drogas
tornou-se um negócio que cada vez mais recruta mulheres. A ascensão do
envolvimento das mulheres com o crime de tráfico de drogas deve ser analisada. A
partir de mudanças não só econômicas, mas também políticas e sociais, nessa
sociedade global neoliberal, que vem aumentando o empobrecimento feminino, com a
precária inclusão da mulher no mercado de trabalho (QUADRADO. 2022).
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Criminologia periférica
Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime
de tráfico de drogas
DOI: 10.23899/9786589284369.7
Diante disso, tendo em vista a pobreza com os marcadores de gênero e raça, e os
dados levantados sobre o perfil das mulheres encarceradas, torna-se possível
relacionar o tráfico de drogas com a pobreza das mulheres negras, que as vitimiza e as
encarcera. Dessa forma, tendo em vista a criminalização dessas mulheres, torna-se
possível realizar uma análise criminologia feminista, com viés interseccional.
As mulheres apagadas ao longo da história da criminologia e a necessidade
de uma criminologia feminista com um viés interseccional na análise do
crime de tráfico de drogas
No Brasil, os trabalhos que descrevem a mulher como vítima ou como autora de
crimes são referenciados em “[...] paradigmas criminológicos conformadores de
categorias totalizantes. Paradigmas estes que, muito pouco, ou nada, se aproximam do
que já produziu a teoria feminista” (MENDES. 2012, p. 12). Diante disso, surge a
criminologia feminista (entre a diversidade de feminismos existes), objetivando estudar
a mulher e o crime, por meio de uma perspectiva de gênero (MENDES, 2012).
A criminologia tem sido uma “[...] ciência sobre homens, de homens, mas que,
pretensamente, se diz para todos” (MENDES. 2012, p. 12). Além disso, há pouca produção
sobre feminismo e gênero na criminologia. Nesse sentido, tem-se a necessidade de
estudar o patriarcado e o poder punitivo ao longo da história (MENDES, 2012).
Mendes adere à posição de que o primeiro discurso criminológico seria a
inquisição, mencionando o livro “Martelo das Feiticerias”, onde mulheres são descritas
como perversas, fracas física e mentalmente, sem fé e maliciosas. Dessa forma,
mulheres eram perigosas e deveriam ser eliminadas. Além de perseguidas, as mulheres
eram controladas e confinadas (MENDES, 2012).
Por meio da caça às bruxas, havia o cerceamento dos corpos, com o consequente
controle pelo estado da capacidade reprodutiva e da sexualidade das mulheres. Nos
séculos XVI e XVII, a caça às bruxas foi justificada pela religião e possuía intenções
misóginas. Além dos limites impostos aos corpos femininos, as mulheres foram
submetidas ao conceito de família patriarcal e proibidas de cultivarem práticas médicas
ou holísticas (FEDERICI, 2019).
Importa destacar que a caça às bruxas, além de seu teor misógino e punitivo, serviu
ainda para o surgimento do capitalismo no mundo moderno. Inúmeras das mulheres
perseguidas eram pobres e os crimes impostos a elas demonstraram que essas não
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tinham mais posses ou direitos consuetudinários. Inclusive, nas acusações das
mulheres chamadas de bruxas, constava a pobreza (FEDERICI, 2019).
As mulheres, acusadas de bruxas, eram punidas pelas autoridades em razão de
desvios das normas sexuais vigentes, dos supostos poderes incontroláveis, por
supostamente investirem contra a propriedade privada, por serem insubordinadas e
por propagarem crenças mágicas (FEDERICI, 2019).
Por meio do poder punitivo da caça às bruxas, mulheres foram eliminadas junto
com suas crenças e práticas compreendidas como improdutivas ou perigosas. As
mulheres tiveram seus direitos retirados, não podendo acessar o conhecimento ou
controlar seus próprios corpos e suas relações com pessoas ou com a natureza
(FEDERICI, 2019).
As mulheres foram demonizadas e novos códigos sociais e éticos foram impostos
em razão disso. Inclusive, mulheres eram punidas por possuírem animais de estimação,
já que esses seriam na verdade o diabo que ajudava as bruxas a cometerem crimes. Além
disso, eram acusadas de crimes como de causar impotência masculina. As mulheres,
portanto, eram vistas como o inimigo e como o mal absoluto (FEDERICI, 2019).
No século IV d. C, os padres possuíam interesse em manter a igreja masculina e
patriarcal, e de impedir que a fraqueza do clero diante das mulheres dissipasse a
propriedade. Dessa forma, o clero passou a demonizar as mulheres, sendo o tema
central da demonologia (iniciada pelo livro misógino “o Martelo das Bruxas”). Desde a
publicação do mencionado livro até o século XIX, a criminologia não abordou
apropriadamente as mulheres (MENDES, 2012).
Quanto ao pensamento criminológico, há o período filosófico de Cesare Beccaria;
e o período jurídico, de Carrara. Porém, em nenhum há reflexão sobre a opressão das
mulheres ou a condição feminina. Inclusive, no século XVIII, as mulheres não gozavam
de igualdade política e, logo após a Revolução Francesa, as mulheres foram recolhidas
ao espaço doméstico (MENDES, 2012).
Apesar do período “iluminado”, os únicos direitos que as mulheres conseguiam,
apenas as tornavam melhores mães e esposas. Dessa forma, uma mulher era “normal”
ou “criminosa”, a depender se era ou não mãe. Em 1876, Lombroso fundou a
criminologia moderna, com o livro publicado “O homem delinquente” (MENDES, 2012).
Lombroso defendia que o criminoso escolhia o crime não por livre arbítrio, mas
por determinismo biológico. Cabe destacar que ele explicava, por meio do atavismo, a
criminalidade nata e a estrutura corporal de um criminoso. Em 1982, Lombroso
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publicou o livro “La Donna Delinquente”, estudando e explicando o que seria a mulher
criminosa (MENDES, 2012).
No livro publicado, descreve-se que a mulher seria obediente ao homem, com
passividade. Porém, as mulheres sofriam de um problema: seriam imorais, sedutoras,
do mal. Logo, se não cometessem o delito, logo seriam prostitutas. Lombroso estudou
o crânio, e o cérebro das mulheres consideradas criminosas (MENDES, 2012).
As mulheres, de acordo com Lombroso, poderiam ser “[...] criminosas natas,
criminosas ocasionais, ofensoras histéricas, criminosas de paixão, suicidas, mulheres
criminosas lunáticas, epiléticas e moralmente insanas” (MENDES. 2012, p. 46). Para
Lombroso, as mulheres seriam inferiores até mesmo para praticar crimes, sendo
destacado características como sexualidade, lascívia e vingança (MENDES, 2012).
Em Lombroso, é possível destacar a maternidade compulsória, já que para ele, a
mulher criminosa abandonaria seus filhos ou induziria as próprias filhas à prostituição.
Mulheres que praticassem o infantícidio poderiam ser afogadas, enterradas vivas ou
queimadas na fogueira. Além disso, o maior exemplo de delinquente feminina seria a
prostituta (MENDES, 2012).
Importa destacar que o sentimento de amor materno seria um importante traço
na análise criminológica, o que perdurou por séculos. Havendo o homícidio de uma
criança, haveria a presunção de culpa da mãe, até que se provasse sua inocência. Porém,
ainda que com provas irrefutáveis, mulheres eram tidas como fofoqueiras e não
confiáveis (MENDES, 2012).
Caso uma mulher fosse bonita e considerada sedutora, já se fazia possível justificar
sua capacidade de cometer delitos. Logo, beleza feminina e delito eram associadas.
Porém, a aparência física também foi uma forma de atenuar a situação caso a mulher
fosse autora de um crime. Mulheres com características físicas e comportamentos
considerados masculinos também eram consideradas criminosas (MENDES, 2012).
Havia ainda o raciocínio de que uma mulher criminosa seria uma mulher que
deseja ser homem. Importa ainda destacar que a criminologia não se dedicou ao estudo
das vítimas (alguns estudos da vitimologia criaram mitos tanto quanto a criminologia).
Como exemplo disso, há algumas afirmações que são difundidas, como se estupradores
seriam homens como mães ou mulheres que os repreendiam (MENDES, 2012).
Nos anos 60 e 70, surgiu o “labeling”, deslocando o foco do delito e do infrator para
análise do controle social. Logo, estuda-se o efeito estigmatizante por meio das normas
abstratas e da reação contra esse delito. Dessa forma, o controle seria seletivo e
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discriminatório. Desde os anos 60, com o pensamento criminológico crítico, passou-se
a registrar o capitalismo determinante ao cárcere (MENDES, 2012).
Nos anos 80, iniciou-se o desenvolvimento feminista na criminologia crítica, em
que o sistema de justiça criminal é interpretado como uma categoria patriarcal e de
gênero. Com a criminologia crítica, estuda-se a justiça criminal sob a interpretação
ideológica do capitalismo e do patriarcado. A justiça criminal não só é ineficaz para as
mulheres em relação à proteção, mas ainda aumenta a violência contra elas (MENDES,
2012).
Ao longo dos anos, mulheres foram aprisionadas em prisões e conventos. Dessa
forma, interessa ao patriarcado custodiar mulheres, as afastando da vida pública. Para
as autoridades religiosas, as mulheres eram mais fracas e precisariam ser guiadas para
casa-conventos, devendo aprender atividades como costura, limpeza e cozinha
(MENDES, 2012).
Mendes defende que a história das mulheres quanto ao poder punitivo não deve
ser uma mera aferição do passado, mas uma forma de pensar novamente tanto o
presente como o futuro. O sistema penal atual disciplina e mantém a subordinação das
mulheres (MENDES, 2012).
Apesar de o direito ter sido opressor de mulheres ao longo da história, Mendes
(2012) defende que é possível torná-lo uma ferramenta de auxílio às mulheres. Logo,
torna-se possível legitimar novas pretensões, reconstruindo a realidade, a partir do
ponto de vista das mulheres. Diante disso, há a possibilidade de ressignificar o direito,
a partir das vivências femininas.
Tendo em vista que o perfil da mulher encarcerada é de mulher negra, pobre, com
baixa escolaridade, por em tese ter praticado o crime de tráfico de drogas, e ainda esse
crime ter relação com a feminilização da pobreza, faz-se necessário analisar o delito
mencionado por meio de uma criminologia feminista, mas com o viés interseccional.
De acordo com Akotirene (2020, p. 28), “[...] iniquidades de gênero nunca atingem
mulheres em intensidades e frequências análogas. Gênero inscreve o corpo
racializado”. Diante disso, tendo em vista que as mulheres negras e pobres são as mais
encarceradas por em tese praticarem o crime de tráfico de drogas, torna-se necessário
analisar o crime em tela por meio de uma criminologia feminista com viés
interseccional, já que mulheres são oprimidas diferentemente.
A interseccionalidade foi pensada pelas feministas negras, as quais tiveram seus
anseios ignoradas pelas mulheres brancas e pelos homens negros (AKOTIRENE, 2020).
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Logo, a interseccionalidade é uma sensibilidade analítica, realizando críticas ao racismo
patriarcal. Nesse sentido, cabe destacar que, conforme Akotirene (2020, p. 19):
Dá instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do
racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado – produtores de avenidas
identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo
cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos
coloniais.
A interseccionalidade permite analisar a interação de todas as interações entre as
opressões que as mulheres sofrem. Como exemplo, cita-se que as mulheres brancas
possuem medo que seus filhos sejam cooptados pelo poder patriarcal, enquanto as
mulheres negras, vítimas de uma necropolítica, sofrem o medo de que seus filhos
morram pelos discursos religiosos, brancos, elitistas de valorização da vida, mas contra
o aborto (AKOTIRENE, 2020).
É possível explicar a interseccionalidade com a divisão sexual do trabalho
cisheteropatriarcal, em que mulheres negras trabalham na casa de mulheres brancas
instruídas e quando chegam em casa, têm o dinheiro tomado por maridos que
reclamam que a comida ainda não ficou pronta (AKOTIRENE, 2020).
Diante do exposto, conclui-se que a criminalização das drogas é apenas uma força
de criminalizar indivíduos indesejáveis na sociedade cisheteropatriarcal capitalista
branca e religiosa. Além disso, a criminalização das drogas é em estatística o crime que
mais encarcera mulheres, sendo reflexo e aumentando a feminilização da pobreza.
Dessa forma, torna-se necessário analisar o crime por meio de uma criminologia
feminista com viés interseccional, ressignificando o poder punitivo para a vivências das
mulheres negras periféricas.
Referências
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaia, 2020. 152p.
[Feminismos Plurais/coordenação de Djamila Ribeiro].
BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 144 p. [Feminismos
Plurais/coordenação de Djamila Ribeiro].
CHERNICHARO, Luciana Peluzio; BOITEUX, Luciana. Encarceramento feminino, seletividade penal e
tráfico de drogas em uma perspectiva feminista critica. In: VI Seminário Nacional de Estudos Prisionais
e III Fórum de Vitimização de Mulheres no Sistema de Justiça Criminal, Universidade Federal do ABC.
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Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime
de tráfico de drogas
DOI: 10.23899/9786589284369.7
Anais... 2014. Disponível em: <http://www.neip.info/upd_blob/0001/1566.pdf>. Acesso em: 12 dez.
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IPEA. A face feminina da pobreza: sobre-representação e feminilização da pobreza no Brasil. Brasília,
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INFOPEN. INFOPEN Mulheres. Levantamento nacional de informações penitenciárias. 2. ed. Brasília,
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FEDERICI, Sílvia. Mulheres e caça às bruxas: da idade média aos dias atuais. 1. ed. São Paulo: Boitempo,
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HIRAT, Helena; KERGOAT, Daniéle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Tradução de
Fátima Murad. Cadernos de Pesquisas, v. 37, n. 132, p. 595-609, set.-dez. 2007. Disponível em:
<https://www.scielo.br/j/cp/a/cCztcWVvvtWGDvFqRmdsBWQ/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em:
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MENDES, Soraia Da Rosa. (RE)Pensando a criminologia: Reflexões sobre um novo paradigma desde a
epistemologia feminista. Tese (Doutorado em Direito, Estado e Constituição) – Universidade de Brasília,
Brasília, 2012.
QUADRADO, Jaqueline. Encarceramento feminino, Seletividade penal e tráfico de drogas. Revista
Gênero, v. 22, n. 2, 2022.
VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2016.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Guerra às Drogas e Letalidade do Sistema Penal. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v.
16, n. 63 (Edição Especial), p. 115-125, out.-dez. 2013. Disponível em:
<https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista63/revista63_115.pdf>. Acesso
em: 13 ago. 2022.
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Criminologia periférica
Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal
DOI: 10.23899/9786589284369.8
Racismo estrutural e punição no Brasil: o
reconhecimento facial como nova ferramenta
de seletividade estatal
Ramison Benedito da Rocha de Souza*
Tainá Ariel Vaz Diana Cifuentes**
Tatiana Moraes Cosate***
Introdução
Tratando-se de direito penal e sistema punitivo, é recorrente associar o tema com
a realidade vivenciada pela população negra no Brasil e o modo pelo qual o sistema
criminal atua tão cotidianamente em suas vidas. Segundo boletim da Rede de
Observatório da Segurança (2021), a cada quatro horas uma pessoa negra é morta em
ações policiais. Destaca-se ainda mais tal cenário, frente aos dados da realidade
carcerária: o número de pretos e pardos é superior a 60%, contra pouco mais de 30%
de pessoas brancas presas no país (INFOPEN, 2019).
Neste contexto, é que se tem a existência de um racismo estrutural como sendo
um sistema de opressão, o qual nega direitos e implica numa série de desvantagens
sociais em decorrência do fator raça – o negro, pobre e periférico – e atribui inúmeras
vantagens a outros – o branco que ocupa os espaços de poder na sociedade (RIBEIRO,
2019).
Por isso, falar sobre racismo é um dos principais pontos de partida para a
compreensão de que um apêndice da organização social atual – isto é, o sistema
Graduando em Direito pelas Faculdades Londrina (FACLON). Membro do grupo de pesquisa em Ciências
Criminais e os Direitos Fundamentais do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC).
E-mail: ramisonsouzars@gmail.com
**
Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Participa do Curso de Formação em
Inclusão e Diversidade em Direito Humanos da USP (2022). Participa do Grupo de Estudos Avançados em
Teorias Críticas e Crítica da Punição do IBCCRIM (2022).
E-mail: tainaariel@gmail.com
***
Professora de Graduação e Pós-graduação em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia.
Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Ciência Jurídica pela
Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Graduada em Direito pela Universidade Norte do
Paraná (UNOPAR).
E-mail: taticosate2014@gmail.com
*
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Criminologia periférica
Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal
DOI: 10.23899/9786589284369.8
criminal, e o direito penal em geral – atuam de modo a controlar as relações sociais e
os conflitos, focalizando sua coercitividade e punição à uma parcela específica da
população. Assim, impende uma análise mais profunda acerca das estruturas que
permeiam e constituem estas relações sociais, sendo imprescindível para compreensão
da atualidade, uma análise de como manifesta-se este “braço” do Estado.
Neste contexto é que se desenvolve o presente artigo. Tendo como parâmetro os
ensinamentos de Georg Rusche e Otto Kirchheimer de que toda estrutura punitivista é
reflexo do modelo econômico adotado, objetiva-se realizar um recorte histórico do
desenvolvimento das estruturas sociais e produtivas, para que se possa elucidar um
modo de punição específico: a vigilância estatal e constante sobre o corpo negro.
Para tanto, o presente artigo está estruturado em duas partes. Na primeira,
evidencia-se como a institucionalização da punição perpetua-se por meio do atual
direito penal e da justiça criminal, exprimindo uma concepção de que o crime deve ser
combatido perante o indivíduo e suas particularidades, deixando de lado a
imprescindível análise do contexto social, político e econômico em que ele se insere, e
o modo pelo qual desenvolve-se o modo de produção vigente no período, pontos chave
para compreensão dos conflitos existentes. Na sequência, contextualiza-se o
reconhecimento facial, evidenciando o seu conceito e aplicabilidade no contexto da
segurança pública e repressão da violência criminal. Após a análise de seu
funcionamento técnico, aborda-se a questão do viés discriminatório do
reconhecimento facial como mecanismo de perpetuação das práticas racistas.
Racismo e seletividade no Brasil: um breve panorama histórico do
colonialismo à contemporaneidade
Ao tratar de racismo estrutural, importante analisar a organização da estrutura
social que permite sua perpetuação, e inclusive, beneficia-se deste. De certo, ao se
aferir o desenvolvimento do modo de punição no Brasil, revelam-se marcos cruciais
que permitem a compreensão de como se expressa o direito penal e a justiça criminal
na atualidade. Vale dizer, o modelo de punição brasileiro contemporâneo apresenta
particularidades específicas deste período histórico, assim como faz-se possível
verificar em períodos pretéritos.
E na busca pela compreensão da constituição da sociedade brasileira, o advento
do capitalismo e a construção de seu próprio sistema punitivo realçam um viés racista,
desde o período da colonização, com a utilização da mão de obra escrava na produção
de riqueza e lucro, bem como pelos resquícios deixados pela abolição do regime
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Criminologia periférica
Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal
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escravista. E nesse sentido, a punição se manifestará como um aparato de dominação e
controle desta classe.
Perante a análise de momentos históricos decisivos para o desenvolvimento do
modelo de punição atual, resta imprescindível retomar o momento da chegada dos
europeus ao Brasil, em meados do século XVI. Neste período, a Europa estava em
ascensão, abandonando os resquícios remanescentes das estruturas feudalistas – e
consequentemente, de seu modo de produção feudal, que dentre outras facetas,
utilizava-se da servidão como mão-de-obra e a propriedade da terra e dos meios de
produção por parte do senhor feudal.
Com o advento da comercialização e a necessidade de sua expansão, iniciou-se
uma expansão marítimo-comercial, e neste momento, a Coroa portuguesa encontra no
Brasil a possibilidade de exploração de matéria-prima, e associado a este cenário,
passou-se a desenvolver o comércio da população africana, visto a necessidade de
utilização de mão-de-obra, bem como a lucratividade advinda desta comercialização.
Desse modo, é possível verificar que as estruturas embrionárias do que ficará
conhecido como modo de produção capitalista, funda-se no fardo do colonialismo e da
escravidão dos povos originários e africanos, que subjugaram e coisificaram a vida de
mais de 4 milhões de africanos durante três séculos – apenas no Brasil – (IBGE, 2007)
utilizado como forma de acumulação primária de riquezas.
Com a Revolução Industrial e o desenvolvimento de novos modos de produção no
século XVIII, uma série de transformações – tanto sociais quanto econômicas –,
embarcou a Europa no estágio do capitalismo industrial, expandido a necessidade de
industrialização dos demais países periféricos, solidificando novas relações de trabalho,
promovendo o êxodo rural e a expansão da urbanização, bem como, aumentando a
capacidade produtiva das nações em desenvolvimento.
A escravidão deixou de ser o cerne de lucratividade, no caso do Brasil, da Coroa
portuguesa, uma vez que a comercialização de escravos passa a ser proibida na Europa
no início do século XIX, e a necessidade de juntar-se ao desenvolvimento dos demais
Estados Modernos auxiliou a proibição do tráfico de escravos em 1850, seguido da
abolição da escravidão em 1888 por meio da Lei Aurea. De acordo com o economista
João Manuel Cardoso de Mello (1991, p. 87):
O trabalho assalariado se tornara dominante e o Abolicionismo, a princípio um
movimento social amparado apenas nas camadas médias urbanas e que fora
ganhando para si a adesão das classes proprietárias dos estados não-cafeeiros,
na medida em que o café passara a drenar para si escravos de outras regiões,
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recebera, agora, o respaldo do núcleo dominante da economia cafeeira.
Abolicionismo e Imigrantismo tornaram-se uma só e mesma coisa. Em 1888,
extinguia-se a escravidão.
Impende ressaltar que apesar da proibição da escravidão, a população negra, agora
libertada, permaneceu à margem da sociedade. Isto porque, conjuntamente com as
mudanças que ocorriam com relação ao declínio de lucratividade da mão-de-obra
escrava e a transferência da força produtiva para as mãos-de-obra assalariadas,
instaurou-se uma jurisdição de domínio e propriedade da terra apenas por meio de
compra.
Desta forma, sem que fossem realizadas políticas de inserção após séculos de
escravidão e submissão, bem como sem acesso à moradia e à propriedade, e ainda, sem
trabalho, a população negra passou da realidade escravista para a realidade de sujeitos
de direitos e deveres, já marginalizados e deslocados da lógica do trabalho formal, de
modo que a igualdade apresentava-se apenas no papel.
Assim, analisando o modo pelo qual se desenvolveu a punição no Brasil, faz-se
possível aferir sua conexão com aqueles grupos de indivíduos subalternos em meio a
estruturação da organização social, e em seu início, representado pela mão-de-obra
escrava, visto que no período colonial1 o controle social penal ocorria dentro da própria
unidade de produção, impondo-se perante indígenas e negros escravizados. Logo, o
poder punitivo expressava-se em âmbito privado, e perdurou até a institucionalização
do 1° Código Criminal em 18302.
Durante o período colonial, a jurisdição regente era a das Ordenações Filipinas, impostas no período da
União Ibérica, as quais exprimiam normas visando à manutenção da Monarquia e da escravidão, o
controle social frente as revoltas de escravos e a hegemonia da fé católica. Ou seja, o direcionamento do
poder punitivo alinhava-se à conservação das estruturas organizacionais e econômicas da colônia e à
lógica de acumulação de capital europeia, perpetuando um genocídio físico e simbólico dos povos
africanos. Nas décadas que antecederam a Proclamação da República, denota-se o encaminhamento às
concepções de liberdade e igualdade formal, já presentes em quase toda a Europa, assim como o início
do desenvolvimento das concepções do direito contemporâneo e do papel do Estado - como ente
autônomo e dotado de personalidade jurídica - que exerce a função de mediação e controle dos conflitos
sociais e organização da estrutura social como um todo. Decorrente disto, vê-se nascer a primeira
Constituição brasileira, em 1824, a qual concebe o caráter de cidadão aos indivíduos, com exceção das
mulheres e escravos - corolário da estrutura patriarcal vigente, bem como a permanência da legalidade
da escravidão no período do Brasil Imperial. Contudo, as contradições entre o avanço do liberalismo e o
modo de produção escravista passam a escancarar-se, resultando em conflitos políticos e no
recrudescimento da imposição de poder, tanto por parte do imperador, o qual expressa-se pela vontade
do poder moderador, quanto pela perpetuação da punição com base no Código Criminal do Império
outorgado em 1830.
2
As normas presentes em tal Código alinham-se à manutenção do Império, autorizam a aplicação de
penas corporais - até a morte -, e criminalizam os movimentos de revoltas e insurreições - comuns no
1
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Um ano após o advento da Proclamação da República brasileira, outorgou-se um
novo Código Criminal (1890), e este período fora acompanhado de concepções advindas
da teoria positivista criminológica. Nesse sentido, a partir de meados do século XIX,
verifica-se a construção de um direito penal fundado em ideais positivistas, assim como
pela assimilação de ideais advindos do darwinismo social, fundado nas concepções de
hierarquia racial, posicionando os povos europeus como centro da civilização e
evolução, e legitimando a aniquilação cultural e física de diversos povos africanos e
indígenas.
Desse modo, associado a uma ciência criminológica fundada no positivismo, a
punição no Brasil direcionou-se a apreensão de que o crime deveria ser analisado de
modo individual, nas palavras de Cirino, “[...] em síntese, o crime é uma realidade
ontológica pré-constituída em relação ao Sistema de Justiça Criminal, produzido por
defeitos pessoais determinados por causas biopsicológicas e sociais, que precisam ser
identificadas e removidas” (CIRINO, 2021, p. 28).
Neste contexto, interessante destacar o Decreto n. 528/1890, que tratava da ação
de incentivo à imigração de europeus para ocuparem os postos de trabalho, visto a
urgência de implementação de mão-de-obra para o desenvolvimento das forças
produtivas da época, beneficiando também a propagação da ideologia racial dominante
de embranquecimento da população e perpetuação de uma visão de criminalidade e
periculosidade dos povos marginalizados, que consistia majoritariamente na população
negra brasileira.
A lógica do trabalho formal como única possibilidade de produção de valor, e
consequentemente, de percebimento de remuneração em forma de salário pelo
dispêndio de força de trabalho, coloca a população negra em uma posição de
subalternidade, exercendo o papel de sub trabalhador, explorado pela classe dominante
– a qual é possuidora dos meios de produção e da ideologia dominante -, e
consequentemente, tendo acesso a subempregos ou então por meio da produção de
riqueza clandestina – como o tráfico de drogas.
Desse modo, a institucionalização da exclusão dessa população, corroborado pela
construção de um perfil ideal de criminoso, culmina no direcionamento das ciências
criminais – no atual sistema capitalista brasileiro – ao extermínio da população negra e
período em diversas regiões do Brasil -, bem como proíbem a expressão de religião diversa da fé católica
- como as religiões de matrizes africanas -, e ainda, criminalizam a “vadiagem” e “mendicância” - relativa
àqueles indivíduos que não possuíam ocupação laborativa para prover seu sustento -, de modo que a
intensa opressão imposta à população negra desvelou-se por meio da imposição das normas imperiais
de processo penal.
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periférica, tanto por meio da inflação legislativa penal – a qual não demonstra efetivos
índices de diminuição da criminalidade -, e por meio do Código de Processo Penal de
19413 – influenciado pela escola positivista criminologia italiana do período fascista -,
quanto pelo discurso de guerra às drogas, propagando e financiando invasões policiais
à comunidades e favelas, resultando na morte e encarceramento de jovens negros.
Em outras palavras, a reificação dos fenômenos sociais, produzida pela exclusão
de seu significado ideológico ou valor político, habilita o método à determinação causal
de um problema político reduzido a uma expressão física (CIRINO, 2021). Portanto, a
partir do momento em que se tem o delineamento de um sistema penal altamente
seletivo, punitivista e racista, afere-se que o desenvolvimento de teorias das ciências
criminais acríticas promove a perpetuação deste ciclo.
Retoma-se que o direito se expressa pela forma jurídica, na qual se concentra a
regulamentação das relações sociais da sociedade contemporânea, por meio de suas
normas e sistemas auxiliares da justiça – como o poder de polícia, por exemplo. Nesse
sentido, resta evidente que “[...] é justamente o direito penal o que tem a capacidade de
afetar o indivíduo de modo mais direto e brutal” (PACHUKANIS, 2017, p. 167).
Depreende-se que dentro de uma vivência social em que a possibilidade de
acumulação de riqueza – e por conseguinte, de possibilitação de acesso à alimentação,
saúde, educação, lazer entre outros – decorre da assimilação da forma salário como
equivalente ao tempo despendido de força de trabalho, faz-se possível aferir que a
privação de tempo e estigmatização proporcionados pelo processo penal corroboram
e atuam na marginalização desta classe social composta pela população negra,
periférica e proletária. De modo que em meados do século XXI, por meio do
desenvolvimento de novas tecnologias, verifica-se a instrumentalização do aparato
punitivo do Estado, utilizando-se de novas técnicas para perpetuar o genocídio e
encarceramento da população negra na dinâmica social.
Nascido em plena época de exceção ao Estado de Direito, sob a égide formal da Constituição de 1937,
para atender “ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia
mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente”, conforme afirma seu
próprio preâmbulo, e sob influência de direito positivo do regime fascista italiano, o direito processual
penal brasileiro conheceu, fora do Parlamento e pelas mãos práticas de Francisco Campos, sua
reunificação legislativa (CHOUKR, 2017, p. 23).
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Reconhecimento facial: uma nova forma de vigilância estatal proporcionada
pelos avanços tecnológicos
Big data, sociedade digital, inteligência artificial, algoritmos, data mining, training
data, dentre outros, são alguns termos que se tornaram coloquiais nessa nova vivência
digital. E neste contexto, o Direito também passou a ser modulado por essas
transformações tecnológicas com o objetivo de tentar regulamentar essa nova
sociedade digital, a exemplo da proteção de dados e da vigilância estatal. Apoiadas nos
ensinamentos de Foucault e Deleuze, Coutinho e Dal Castel (2022, p. 113) discorrem que,
atualmente, houve uma transição da sociedade disciplinar foucaultiana para uma
sociedade de vigilância digital, onde a tecnologia passou a ser a tônica da genealogia do
exercício do poder de controle. Neste sentido:
Os indivíduos passaram a ser catalogados e rastreados de forma ininterrupta e
voluntária a partir das possibilidades surgidas com o avanço das tecnologias de
caráter eletrônico e digital e a criação artificial de necessidades que conduziram
à submissão voluntária a estas novas formas de vigilância.
O interessante é observar que, neste novo panóptico digital, o olho do poder
continua invisível e ainda mais incisivo, ganhando uma performance, ante imaginável,
com o uso da internet e sobretudo das redes sociais. Assim, as autoras concluem que a
nova vigilância estatal pode ser aduzida numa vigilância algorítmica, caracterizada por
um controle intersubjetivo e voluntário, no qual “[...] o sujeito neoliberal opta por,
voluntariamente, exibir-se, expor-se ao escrutínio alheio, fazendo com que a exposição
transmute-se em produção de valor” (COUTINHO; DAL CASTEL, 2022, p. 116).
De fato, a internet deixou de ser somente uma ferramenta utilizada para aproximar
as pessoas, para se tornar na maior ferramenta utilizada para o cruzamento de dados.
De acordo com Ana Frazão (2020), o capitalismo do século 21 passou a centrar-se na
extração e no uso de dados pessoais: o dado processado tornou-se em informação útil,
é o novo petróleo da sociedade digital.
O raciocínio empregado é simples: uma sociedade econômica de vigilância precisa
de uma economia de dados que se tornaram nos principais atuais recursos econômicos.
Neste contexto, “[...] a economia movida a dados e o capitalismo da vigilância são as
duas faces da mesma moeda pois, quanto maior a importância dos dados, mais
incentivos haverá para o aumento da vigilância e, por conseguinte, maior será a coleta
de dados” (FRAZÃO, 2020, p. 28).
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Sob esta perspectiva, o Poder Público vem intensificando novas técnicas de
vigilância amparadas pelo uso de tecnologias, utilizando-se, para tanto, o argumento
infalível de apelo popular: o aumento de segurança pública. Exatamente neste ponto, é
que se pretende evidenciar a Portaria 793, publicada em 24 de outubro de 2019 pelo
Ministério da Justiça e Segurança Pública destinada a estabelecer ações e recursos para
o enfrentamento da criminalidade violenta. Dentre as estratégias adotadas, o artigo 4º,
§1º, III, “b” prevê o “fomento à implantação de sistemas de videomonitoramento com
soluções de reconhecimento facial, por Optical Character Recognition – OCR, uso de
inteligência artificial ou outros” (BRASIL, 2019).
Primeiramente, informa-se que o reconhecimento facial não é uma técnica nova
utilizada no Brasil. Conforme o Instituto Igarapé (2019), a sua utilização remonta ao ano
de 2011, na cidade de Ilhéus e com atuação na área do transporte público como forma
de fiscalizar e evitar fraudes em gratuidade daquele setor. Após aquele episódio, a
implementação do reconhecimento facial espalhou-se para outros setores, a exemplo
de escolas, controle de fronteiras, sistemas para gestão de benefícios sociais. Porém, o
que se pretende evidenciar é a sua utilização no setor da segurança pública, como
destacado pela Portaria 793/2019.
Mas o que seria o reconhecimento facial? Consiste no “tratamento de informações
da face” (LAPIN, 2021, p. 5), ou, simplesmente, a biometria da face, utilizando-se, para
tanto, dos pontos nodais de uma pessoa. Assim, o procedimento percorre as seguintes
etapas: a imagem de uma pessoa (seja através de fotos ou vídeos) é capturada, rastreada
e, depois, submetida a um software que analisará as métricas e a geometria facial da
pessoa, identificando fatores como a “distância entre os olhos, largura do nariz,
profundidade das órbitas oculares e comprimento da linha da mandíbula são alguns
exemplos de pontos nodais utilizados pela tecnologia” (MAGNO; BEZERRA, 2020, p. 2).
No caso do Brasil, a utilização do reconhecimento facial para a segurança pública
e repercussão penal utiliza a “base nacional de mandado de prisão, base organizada pelo
Conselho Nacional de Justiça, e bases regionais geridas pela própria polícia civil
estadual de pessoas procuradas e desaparecidas” (LAPIN, 2021, p. 33).
Realizada esta assinatura facial, é que se passa para a próxima etapa: a da
comparação. Ou seja, com a tecnologia instalada em espaços público, imagens reais de
pessoas são capturadas e comparadas com aquela assinatura digital, podendo resultar
na identificação de uma pessoa e, desta forma, justificar a sua prisão.
De posse deste conceito, o emprego do reconhecimento facial poderia imprimir
um senso de neutralidade e de segurança ao cumprimento dos mandados de prisão em
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aberto no país e de um efetivo controle e combate à criminalidade violenta, como
preconizado pela Portaria 793/2019. No entanto, a realidade se destoa da prática. A
respeito deste assunto, o Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN), elaborou
um relatório intitulado Vigilância Automatizada: uso de reconhecimento facial pela
Administração Pública no qual aborda um pesquisa empírica a respeito desta tecnologia
de vigilância, apontando cinco pontos críticos decorrentes do reconhecimento facial:
falta de regulamento para o uso do reconhecimento facial na área de segurança pública
e persecução penal; origem e meios de aquisição e uso da tecnologia; conhecimento
técnico das autoridades públicas no manuseio tecnológico; elaboração do relatório de
impacto à proteção de dados pessoais e, por fim, as formas de prestação de contas pelo
uso das tecnologias.
Dentre todos esses aspectos negativos, destaca-se a falta de legislação pertinente
ao assunto. Para uma melhor compreensão dessa problemática, faz-se necessário
elucidar que em 2018, houve a promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados. Logo,
poderia se pensar que há um contrassenso em afirmar a falta de regulamentação legal
nesta área.
No entanto, a aparente contradição cede espaço ao se analisar o artigo 4º, III, a e
d da LGPD que exclui do seu âmbito de aplicação e normatização a utilização de dados
para fins de segurança pública e persecução penal, determinando a elaboração de uma
legislação específica para tanto. A LGPD ainda estabelece que esta norma deverá seguir
os parâmetros estritamente necessários e proporcionais ao atendimento do interesse
público, observando, sempre, os princípios do devido processo legal, da proteção de
dados e dos direitos dos titulares4.
Ademais, esta falta de regulamentação se agrava ao considerar que o
reconhecimento facial lida com dados biométricos de uma pessoa, ou seja, são dados
correlacionados “às características físicas únicas da pessoa” (LAPIN, 2020, p. 05). Neste
mesmo sentido, a LGPD conceitua os dados biométricos como sendo dados sensíveis
(artigo 5º, inciso II), reconhecendo a necessidade de se ter um cuidado ainda maior
quando se tem o manuseio daqueles, em virtude da possibilidade de um manuseio
discriminatório.
Para atender a essa determinação e suprir a lacuna legislativa, em 2019, a Câmara dos Deputados tomou
a iniciativa de criar uma Comissão de Juristas para a elaboração de um anteprojeto de lei para os casos
de tratamento de dados pessoais para segurança pública e persecução penal, sendo que, em 2020, o
anteprojeto foi concluído contendo 12 capítulos e 68 artigos, estando pendente de discussão e votação
no Congresso Nacional.
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A respeito do assunto, Pablo Nunes ao discorrer sobre o uso daquela tecnologia,
evidencia a sua contradição inerente: de um lado, ela representa uma suposta
neutralidade e uma certa eficiência no trabalho policial, reduzindo o “preconceito nas
abordagens, dando a um algoritmo ‘isento’ a tarefa de selecionar os suspeitos” (NUNES,
2019, p. 69). No entanto, alguns argumentos apresentados pelo autor desmoronam esse
lado ingênuo do reconhecimento facial.
O primeiro deles é a falta de acurácia da tecnologia empregada, resultando nos
falsos negativos ou falsos positivos. Os primeiros ocorrem quando o sistema não
localiza a face no banco de dados e, os segundos vão na via oposta e reconhecem a face
de uma pessoa que não esteja no banco de dados. O autor explica que essa falibilidade
decorre do fato de que a leitura do reconhecimento facial não engloba o corpo inteiro,
mas somente os pontos nodais.
O segundo argumento contém estrita ligação com a análise qualitativa do
reconhecimento facial. Neste sentido, Pablo Nunes acompanhou a implementação do
reconhecimento facial nos meses de março a outubro de 2019 em quatro estados: Bahia,
Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraíba, resultando no Relatório Retratos da Violência:
cinco meses de monitoramento, análises e descobertas da Rede de Observatórios da
Segurança, no qual aponta que, no período de análise, foram realizadas 151 prisões,
assim distribuídas: Bahia com 51,7%; Rio de Janeiro com 37, 1%, seguido por Santa
Catarina (7,3%) e Paraíba (3,3%). Aliado a esse dado numérico, o Relatório também se
questionou em saber quem eram as pessoas que foram presas, obtendo algumas
informações preciosas:
No conjunto, em 66 casos havia informações sobre sexo: 87,9% dos suspeitos
foram homens e 12,1%, mulheres. A idade média do grupo foi de 35 anos. Em
relação aos casos em que havia informações sobre raça e cor, ou quando havia
imagens dos abordados (42 casos), 90,5% das pessoas eram negras e 9,5% eram
brancas. No que se refere à motivação para a abordagem, chama a atenção o
grande volume de prisões por tráfico de drogas e por roubo 24,1%, cada uma
(NUNES, 2019, p. 71).
Antes de emitir qualquer nota conclusiva, outros dados podem ser acrescentados
e que permitem uma maior visualização do cenário que se enfrenta. Sob esta
perspectiva, destaca-se o conceito de aprendizado da máquina ou machine learning
que consiste na inserção de dados e na construção de um código. Diante desta visão
simplória é que se tem uma outra assertiva: “os próprios algoritmos – pelo menos no
ponto de partida – são criados por humanos. Neste sentido, são – como outras
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técnicas/tecnologias – construções sociais criadas em determinados contextos”
(HOFFMANN-RIEM, 2021, p. 33). Evidencia-se, portanto, a subjetividade daquele que
realiza o machine learning: o ser humano, o programador.
Corroborando este argumento, Tarcízio da Silva (2020) conclui que a utilização
tecnológica pode representar uma forma de opressão racial em decorrência da
visibilidade ou invisibilidade que branco e negro ocupam numa sociedade: “[...] a
visibilidade ou invisibilidade de brancos e negros são contextuais de acordo com as
vantagens e desvantagens de cada ponto dessa dicotomia nas mídias e tecnologias em
questão” (SILVA, 2020, p. 439). Assim, como exposto anteriormente, verifica-se que há
uma visibilidade acentuada do negro e uma invisibilidade do branco em questões
relacionadas à criminalidade.
Neste contexto, Rosane Leal da Silva e Fernanda dos Santos Rodrigues da Silva
(2019, p. 12) pontuam que o reconhecimento facial reforça o estereótipo de criminoso
lançado sobre o negro, aumentando ainda mais o caráter seletivo do sistema penal. E o
ponto fundamental, para as autoras, é justamente o fato “[...] de que softwares
genéricos de reconhecimento facial tendem a não reconhecer rostos negros com a
mesma capacidade com que reconhecem rostos brancos”. Ou seja, o estereótipo
lançado sobre o negro e o fardo histórico de carregarem indicadores negativos de sua
essência enviesam a machine learning.
Indubitavelmente, neste momento, oportunas são as palavras de Silvio Almeida
(2020, p. 32) a respeito do racismo estrutural:
[...] o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como
fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou
inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a
depender do grupo racial ao qual pertençam.
Portanto, a partir do momento em que se tem o delineamento de um sistema penal
altamente seletivo, punitivista e racista, conclui-se que o reconhecimento facial
perpetua esse ciclo. Nesta vertente, a tecnologia pode ser utilizada como instrumento
de massificação do encarceramento em massa daquelas pessoas que, historicamente,
não conseguiram e não conseguem ser inseridas na sociedade de forma digna e
passaram e continuam a ser rotulados como desocupados, marginais, bandidos e
vagabundos, no qual sua história continua a se escrever no presente mediante
desigualdades sociais, perfazendo a prática de um racismo silencioso e igualmente
perverso (SCHWARCZ, 2018).
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Conclusão
O discurso de combate ao crime voltado para as periferias vem há anos sendo um
mecanismo de seletividade desenvolvida pelo Estado, tendo em vista o auto indicie de
violência estatal sofrida pelo preto, pobre e periférico. Isso ainda é uma herança, como
bem demonstrado, de um país que tem suas raízes moldadas pela escravidão, que hoje
se transformou em um racismo ainda pouco visível para a maioria, porém tão
devastador e bélico como antes.
Isso tudo leva a sociedade a refletir que a luta dos movimentos negros está longe
de acabar, tendo em vista que conforme a sociedade muda, novos desafios surgem,
principalmente na era da revolução tecnológica, que proporciona novos mecanismos
para o desenvolvimento de uma política que revela-se na concretude e resultado da
construção de uma cultura ultra punitivista, seletiva e racista, indicando o aumento do
índice de violência policial contra população periférica, bem como o crescimento
vertiginoso de encarceramento da população negra.
A sociedade muda, e o racismo também, cabe a todos, principalmente operadores
do Direito, em busca de uma sociedade mais justa, observar de forma crítica essas novas
faces do racismo contemporâneo.
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NUNES, Pablo. Novas ferramentas, velhas práticas: reconhecimento facial e policiamento no Brasil. In:
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Criminologia periférica
Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra
DOI: 10.23899/9786589284369.9
Uma análise do racismo colonial nas religiões
afro-brasileiras sob a ótica criminológica da
libertação negra1
Lídia Piucco Ugion*
Felipe de Araújo Chersoni**
Thomaz Jefferson Carvalho***
Texto completo pode ser acessado na RELACult - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e
Sociedade, com o título “Com a nossa lei não há, levando ao mundo inteiro, a bandeira de Oxalá”: Uma
análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica crítica”. Aqui trata-se
de uma versão reduzida da pesquisa que se encontra em andamento.
*
Mestranda em Direito no PPGD - UNESC, pela linha de pesquisa Direito, Sociedade e Estado. Pósgraduanda em Direito Processual Penal pela Damásio Educacional. Graduada em Direito pela
Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC); Bolsista do Artigo 171 na modalidade de Iniciação
Científica (Bolsas UNIEDU/Estado de Santa Catarina) na linha de Republicanismo e Instituições Políticas
orientada pelo Prof Dr. Mauricio da Cunha Savino Filó, no período de abril de 2020 a junho de 2021;
Integrante e Pesquisadora do projeto de extensão do direito Projeto Amora (PEDIC/Direito/UNESC) de
junho de 2019 a setembro de 2021. Integrante da Liga Acadêmica de Sexualidade e Estudos de Gênero
(LASEG/UNESC) desde agosto de 2019.
E-mail: lidiappiucco@gmail.com
**
Mestrando em Direito pela Universidade (comunitária) do Extremo Sul Catarinense (PPGD-Unesc);
Bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Comunitárias (PROSUCCapes); onde é pesquisador vinculado ao Grupo pensamento jurídico crítico latino-americano, na qual se
subdivide no grupo de Criminologia Crítica Latino Americana - Andradiano (Unesc) (grupo que sedia
minha atual pesquisa); Membro pesquisador Cnpq no núcleo de Estudos em Gênero e Raça - Negra
(Unesc); Membro do eixo de Criminologia e Movimentos Sociais - Instituto de Pesquisa em Direito e
Movimentos Sociais (IPDMS). Atuou na Advocacia Popular.
E-mail: felipe_chersoni@hotmail.com
***
Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Mestre em Ciências Jurídicas pela UniCesumar Universidade Cesumar. Pós-graduado lato sensu em Direito Eletrônico pela Universidade Estácio de Sá,
Pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho pela Universidade Castelo Branco, Pós-graduado lato
sensu em Metodologia do Ensino Superior pela UNOPAR - Universidade Norte do Paraná, campus
Londrina/PR e graduado em Direito pela UNOPAR - Universidade Norte do Paraná, campus
Arapongas/PR. Possui experiência no magistério superior nas áreas de Direitos Humanos, Direito
Constitucional, Administrativo, Direito Internacional Público, Estágio Supervisionado em Trabalho e
Civil, Teoria Geral do Estado e da Constituição e Direito e processo do Trabalho, Direito Empresarial.
Pesquisa na área de Direitos Humanos.
E-mail: thomaz@carvalhoerodrigues.adv.br
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Criminologia periférica
Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra
DOI: 10.23899/9786589284369.9
Introdução
A umbanda2 é mística. Tem seus fundamentos e seus credos. A experiência que
trago nesta introdução é de filha de casa de santo. A caridade e o amor são a maior lição
que a religião traz para com seus filhos e a sociedade, apesar da intolerância sofrida por
seus fiéis. Quando estou dentro da terreira, a áurea de fazer o bem, de conversar e ser
acolhida pelas entidades me faz sentir a forma como este chamado foi importante,
desde a evolução espiritual, até mesmo para com a visão de mundo que temos.
É pensando nisso que reflito sobre a intolerância neste escrito. Pensar de forma
decolonial, antirracista, em prol da religião que muda o mundo e ainda assim sofre com
o eurocentrismo da ciência e da religião católica. Quando entendemos que as religiões
de matrizes afro, e aqui especificamente a umbanda, estão a margem, as
subalternizadas após a colonização europeia e a colonialidade expressa pela cultura
difundida através da demonização de tudo que não é europeu, não é branco.
Como filha de santo, percebo como estas violências foram mitigadas por meio da
positivação de leis ordinárias e até mesmo de dispositivos constitucionais; mas, o que
vejo na prática, são racismos velados e intolerantes que ficam no limiar entre o aceite
forçado e a necessidade de não se provar como uma pessoa preconceituosa.
Exemplifico, aqui, em duas situações: quando ando com a guia de proteção com a cor
de minha guia de cabeça, muitas pessoas têm necessidade de questionar desde o que é
até sentir medo de eu estar fazendo ‘macumba’, ou seja, fazendo mal a alguém. Em outra
situação, podemos citar o desfile da campeã do desfile das escolas de samba do Rio de
Janeiro em 2022, a Grande Rio, que trouxe Exú, ora Orixá, ou, na umbanda, catiço,
abridor de caminhos, com a repercussão de que era representação do demônio, e que,
assim, o estado estaria condenado e o país também a inúmeras tragédias.
É com estas representações que pensaremos a partir da criminologia, por meio
das encruzilhadas dos saberes (RODRIGUES JUNIOR, 2018; GÓES, 2021), de forma
Um dos pontos básicos para compreender Umbanda é entender que ela tem sua própria cosmogonia e
androgenesia – explicações sobre o surgimento do universo e da humanidade. Entretanto, sabemos que
esta religião apresenta grande diversidade de pensamento e práticas. Sendo assim, é possível que dentro
da Umbanda Sagrada, segundo doutrina expressa por Rubens Saraceni e seus discípulos, encontre-se
uma explicação relacionada a muitos universos coexistentes, dimensões paralelas etc. Já outras, como a
Umbanda Esotérica, segundo orientada pelo Caboclo Mirim, possui bases na teosofia e forte influência
de filosofias orientais, especialmente a hinduísta. Outras visões mais tradicionalistas podem tomar como
verdades os mitos da criação iorubás ou mesmo tomar emprestada a mitologia judaico-cristã para
explicar o surgimento da vida, seus objetivos e consequências (NÓS DA UMBANDA, 2016, s/p.).
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decolonial, como as religiões de matriz africana são vistas e demonizadas, por meio de
uma ótica ainda colonialista e europeia, de desprezo dos saberes não tradicionais. Nesta
senda, deverá ser analisado criticamente como os direitos humanos, numa perspectiva
colonial e atual, não conseguem abranger os saberes e defender os integrantes de
religiões de matriz africana dos preconceitos sofridos, utilizando da criminologia como
mecanismo de libertação para compreender a fundo essas intolerâncias e suas punições
correlatas.
Assim, o objetivo deste trabalho é, em suma, ir de encontro a decolonialidade e dar
suporte aos saberes das margens, com apoio da criminologia crítica, de forma a
entender o fenômeno de criminalização das religiões de matriz africana e afrobrasileira, e como a teoria vigente de direitos humanos é incisiva em desconsiderar os
saberes negros. A justificativa para o presente trabalho se incide em que, no Brasil,
existe ainda um preconceito velado em relação a pessoas de religiões africanas e/ou
afro-brasileiras, desde o batuque até a umbanda. De forma a demonstrar este racismo,
religiões brancas como o espiritismo não recebem tais distratos e preconceitos, por
razão principal em serem considerados vertentes cristã e branca, diferentemente das
outras religiões citadas.
É por esta senda que deve ser debatido o tema. Urge a necessidade de debater os
malefícios desta demonização e da criminalização desde o período colonial e
escravocrata do culto e saudação dos Orixás e falangeiros3 no Brasil, e como isto vem
sendo propagado e replicado até o Brasil República no século XXI. A metodologia de
pesquisa utilizada para que possamos compreender e chegar aos resultados propostos
será qualitativa, com etapa bibliográfica, fazendo análise documental e bibliográfica das
evidências já existentes, para que assim, possamos chegar ao objetivo final.
Por estes motivos e do aquilombamento mais que necessário entre os negros até
mesmo não racializados, mas simpatizantes das religiões citadas, devemos discutir,
debater e mudar a visão desencorajadora destas religiões. Os preconceitos ficam
escondidos, mas nada muda. Precisamos mudar e é pra já.
Após compreender o objetivo do trabalho tese central que nos guia é a superação
do positivismo desde uma construção teórica negra e periférica, “nós falando por nós e
teorizando nós” para, desde os saberes periféricos contribuir para a construção de uma
Importante ressaltar a diferença entre Orixá e Falangeiro, sendo os Orixás mais próximos ao iorubá e
culto antigo, muito expresso, no Brasil, em cultos como o candomblé, o batuque e a nação, sendo a
representação mais próxima ao divino. Quando pensamos em Falangeiros, estes foram pessoas que
evoluíram espiritualmente e que, por conta do trabalho feito em terra vibrar fortemente na linha de um
determinado Orixá, acaba se tornando seu falangeiro e sua representação na Umbanda.
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criminologia crítica enraizada nos saberes populares, uma teoria que se constrói a
partir de vivências e assim possa dar respostas reais aos problemas nas quais a
criminologia se propõe a enfrentar, tomando como exemplo, neste texto, o caso da
intolerância religiosa que tem nos seus nefastos efeitos, os genocídios, culturais,
epistêmicos e de vidas humanas, e buscando na vivência de terreiro a construção
epistêmica de uma criminologia da libertação negra, tese trabalhada por Luciano Góes
em texto denominado de Ebó Criminológico: Malandragem Epistêmica nos cruzos da
criminologia da libertação negra publicado no ano de 2021 e que aqui nos esforçamos
para dar continuidade a esta ideia4.
Sendo assim o texto se divide em quatro subtópico, no primeiro deles Positivismos
criminológicos e genocídios: a construção do negro como inimigo nos esforçamos a
buscar, em como a construção de um inimigo a ser combatido pela burguesia,
encontrou no tripé, racismo científico, técnica jurídica e dogmática a perfeita simbiose
que justifica os genocídios promovidos por uma criminologia que ainda era pautada no
racismo e no colonialismo.
No segundo subtópico denominado de Colonialismo e religiosidade: os saberes
populares na mira do positivismo acadêmico demonstramos a simbiose entre o
colonialismo e o genocídio epistêmico, que aqui cruza-se com os preceitos científicos
burgueses que a partir da “demonização” dos saberes populares que os colocam como
inferiores cunhou uma pretensa neutralidade acadêmica, o tópico inova-se em pensar
este contexto dentro do campo criminológico, porém buscando em referenciais
diversos reconstruir, dentro dos limites de um artigo ensaístico essa parte da história
de opressões.
Dentro deste tópico maior, destaca-se o item denominado de A criminalização de
terreiro e os açoites em corpos aliados: pensando em um estudo de caso que é um relato
de experiencia evidenciando os efeitos práticos do racismo religioso no cotidiano de
Este texto é fruto não somente de uma pesquisa coletiva maior, que tem como horizonte a construção
de uma possível criminologia popular, que vem dando vida a uma dissertação de mestrado, mas também
é fruto de encontros. Aqui cruza-se ao menos dois grupos de pesquisa e perspectivas que desde
discordâncias internas se encontram. As perspectivas trabalhadas pelo grupo Andradiano de
Criminologia, que partem de uma possível reconstrução de uma “nova” economia política da pena, se
cruzam com os contundentes estudos do Negra – Núcleo de Estudos em Gênero e Raça, que coloca,
assertivamente o racismo como estrutura de dominação. Esse encontro também é interestadual pois
conta com os estudos sobre Direitos Humanos desenvolvidos na Universidade Estácio de Sá – Rio de
Janeiro. Esse encontro tem compromisso com uma agenda de pesquisas que não somente se limita a
dialogar com a academia, mas que parte do protagonismo dos movimentos populares, das formas de luta
através dos saberes religiosos e demais saberes para uma possível epistemologia da libertação negra essa
que é vista, por nós como parte da totalidade dentro das estruturas de dominação.
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uma umbandista e partir disto, construir possíveis maneiras de uma reconstrução
teórica a partir da vivência e escrevivencia.
O tópico de encerramento deste escrito Criminologia da libertação negra: aportes
decoloniais para uma criminologia de terreiro é um esforço em continuar a empreitada
iniciada por Luciano Góes que foi debatido no V Congresso Brasileiro de
Pesquisadores(as) Negros(as) da Região Sul (COPENE-Sul)5, realizado pela Universidade
do Extremo sul catarinense a partir da pergunta realizada por um dos autores deste
texto. A criminologia de terreiro se coloca como esforço para, dentro da criminologia
da libertação negra, ser um mecanismo de enfrentamento ao genocídio epistêmico.
Portanto este tópico que encerra o escrito, parte de uma criminologia da libertação,
porém, buscando em referenciais populares a construção de uma libertação que tenha
o povo negro como protagonista de luta e de construção teórica.
Em tópicos conclusivos evidenciou-se a necessidade de buscar na pluralidade de
saberes populares, o protagonismo necessário para que se construa uma teoria da
libertação que parta das populações periféricas negras como práxis de mudanças
radicais na sociedade. Além de buscar nessa rebeldia coletiva uma criminologia
preocupada com essa mudança radical, que se construa com o protagonismo popular
para que supere os genocídios e finalmente vença o positivismo criminológico na
prática.
Colonialismo e religiosidade: os saberes populares na mira do positivismo
acadêmico
Clóvis Moura bem teorizou que as religiões, para as pessoas escravizadas, não
eram apenas devoção, para este povo, vítima do sequestro colonial, era uma forma de
luta e libertação. Dessa forma, na visão dos colonizadores, delinquir tal expressão
religiosa era também, uma forma de evitar uma possível revolução (CLÓVIS MOURA,
1966). Os processos envolvendo essa suposta abolição veio eivado de imenso discurso
contra as religiões do povo escravizado, criar este inimigo era um fator crucial, pois o
medo da elite agrária e europeia era uma revolta que tomasse os mesmos contornos
5 O V Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as) da Região Sul (COPENE-Sul), foi um evento
virtual que ocorreu de 26 a 28 de outubro de 2021. O tema do V COPENE - SUL, foi intitulado “ANO
PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO”: O Direito à Cidade e as populações negras no Sul
do Brasil. O evento visou congregar pesquisadores/as, movimentos negros e/ou outros coletivos, negras
e negros em movimento de diversos saberes para debater, analisar e refletir a construção do Direito à
Cidade e, consequentemente, a condição de cidadania e de humanidade, das populações negras
residentes e atuantes no Sul do Brasil que lutam pelo direito de existir e reexistir.
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que a revolução do Haiti, exemplo vivo da tomada do poder pelo povo das mãos dos
colonizadores (QUEIROZ, 2022).
Esses processos que moldaram os rumos das instituições da violência policial até
os dias atuais, antes de ser institucionalizada pelos discursos de direitos humanos
ocidental, eram práticas de silenciamento epistêmico e cultural, o racismo que tinha
como plano de fundo a violência era vitimado em diferentes perspectivas (CLÓVIS
MOURA, 1966).
A narrativa construída de que o Brasil era uma sociedade em pleno
desenvolvimento humano e que a abolição era uma amostra disso, em verdade, foi
contestada por diversos autores, e demonstrada que essa construção teórica e retórica
era uma grande falácia.
Clóvis Moura no clássico Rebeliões da Senzala aponta que um dos fatores que
levaram a suposta abolição, além de todo o apelo desenvolvimentista capitalista, que via
nos escravizados libertos um mercado consumidor, de ao menos, produtos básicos, era
a união. Através da capoeira, do compartilhamento do fumo e das práticas religiosas
essas pessoas construíam laços de contestação de toda essa ordem posta e assim
constituíram práxis de libertação desde os costumes e usos (CLÓVIS MOURA, 1990).
Essa união se tornou a resistência dos quilombos, uma unidade de consolidação
de uma ideia, a rebelião e a luta pela liberdade. Obviamente que essa era uma retórica
a ser escondida pela burguesia racista, que via nessas resistências, um impasse para os
projetos “desenvolvimentistas” brasileiros. Nas palavras de Clóvis Moura “Em Minas
Gerais, Mato Grosso, Goiás, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Maranhão, onde quer que o
trabalho escravo se estratificava, ali estava o quilombo, o mocambo de negros fugidos,
oferecendo resistência. Lutando” (CLÓVIS MOURA, 1990, p. 87).
Para consolidar essa base de resistência, eram necessários alguns pontos de
convergências estratégicas, pois para organizar essas revoltas, era necessária muita
inteligência entre as lideranças. A religião se colocava como aliada dessa organização e
dessa conjuntura começou-se a aflorar diversos pensadores, estrategistas, artistas e
poetas, que contavam em seus escritos e cantos a vozes da resistência (CLÓVIS
MOURA, 1990).
Abdias do Nascimento (1978) sistematiza algumas concepções de genocídios, que
facilita a compreensão da ideia de genocídio epistêmicos utilizando os positivismos
criminológicos para tanto. “O crescimento da consciência negra é desencorajado pela
recusa da sociedade em conceder ao cidadão negro a oportunidade de realizar sua
integra identidade” (NASCIMENTO, 1978, p. 80). Mais à frente o autor convoca a
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categoria de “mito da democracia racial” para compreender como esse silenciamento
das vozes negras é fruto de uma pretensa democracia racial, e até os dias atuais atua
silenciosamente cerceando vozes de resistência, dentro e fora da academia.
A Europa por sua vez calcada na ideia de modernidade, modificou as formas de
punição, abolindo os suplícios públicos, com base em uma ideia totalmente
embranquecida de direitos humanos, institucionalizaram-se a barbárie, e essa ideia, é
tão nefasta para o povo negro ao ponto de colocar as próprias práticas religiosas contra
essa pretensão moderna de direitos humanos, que em verdade, era um discurso
desenvolvimentista colonizador. Essa fase inaugurou as prisões modernas. Pois a
modernidade não aceitava mais a barbárie, pública, então a grande ideia foi estruturar
gigantescos estabelecimentos penais, rodeado de muros e distantes das cidades,
resumidamente surgiu o sistema penal (GÓES, 2016).
O positivismo, ou os positivismos, para além de discursos foram práticas que
legitimou e legitima um turbilhão de acontecimentos que comumente resultam em um
corpo negro caído no chão (FLAUZINA, 2006). Essa ideia que teve como pai a figura e
os escritos de Lombroso foi propulsora de uma criminologia, inclusive acadêmica, tida
como hegemônica que culminou em diversos processos genocidas. Pensemos no
genocídio epistêmico e cultural para desenvolver o pensamento deste tópico. O
genocídio epistêmico é o próprio apagamento de toda pluralidade de saberes não
eurocêntrica, que se legitima por supostos métodos científicos, que por vezes provouse ser falsos, como no caso do positivismo criminológico (GÓES, 2016).
Esse apagamento cultural justificado por um discurso metódico justificou o
silenciamento da união e possíveis revoluções patrocinadas pelas revoltas das pessoas
escravizadas, e não somente isso, colocou esse movimento como inimigo a ser
combatido, transportando não somente uma cientificidade não brasileira como
hegemônica, como religiões hegemônicas que patrocinaram apartheids (ZAFFARONI,
1988).
Como consequência ao positivismo criminológico ter sido consolidado
mundialmente como uma ciência, sobrou mais uma vez para as populações negras a
conta do desenvolvimento. Foi Rosa Del Olmo que se debruçou a nos contar essa
história que se materializou no livro A América latina e sua criminologia que fica
evidente como olhar para os países “industrializados” foram um modelo para o
surgimento do que se chama de “prevenção e repressão ao delito''. Importamos então
as casas de correção, como forma de solucionar o “problema” da situação dos cárceres
e as quantidades já extraordinárias de pessoas em cumprimento de pena existentes. A
modernidade pugnava por maneiras “humanas” de punição (DEL OLMO, 2004).
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No primeiro congresso de antropologia criminal, que aconteceu na cidade de
Roma em 1985, a criminologia surgiu como “a ciência do estudo do delinquente”, e não
demorou a essa ideia rapidamente se difundir no Brasil. E para a autora, essa suposta
ciência não demoraria a justificar a repressão aos movimentos de resistência, servindo
como resposta aos que ousavam “atrapalhar” o desenvolvimento das forças produtivas
do grande capital (DEL OLMO, 2004, p. 171).
Rosa Del Olmo foi pioneira em desvelar como a introjeção da América Latina no
processo de produção capitalista foi desigual, desde um olhar criminológico crítico, a
absorção a antropologia criminal deveria ser uniforme em nossos solos, tentando
especificar de forma total os processos de delinquência e desvio, incorporando nesta
ciência as especificidades dos povos indígenas e colocando Argentina e Brasil como a
vanguarda dos estudos da personalidade criminosa, ou seja, fomos berço da aplicação
de uma ciência racista e classista que se utilizou de uma fumaça de intelectualidade
como ferramenta de sequestro e introjeção da modernidade em nossos solos (DEL
OLMO, 2004, p. 171).
Zaffaroni (1988, p. 134) aponta que:
La criminología positivista se ocupó largamente de los "crímenes de las
muchedumbres", que HIPÓLITOTAYNE ejemplificaba con crímenes cometidos
durante la Revolución francesa, en tanto que otros autores recogían su
casuística de la Comuna de París, de cuyos líderes varios "científicos" trazaron
"cuadros patológicos". Hubo quienes —entre ellos, SIGHELE— establecieron la
diferencia entre la multitud "sana " que sufría el efecto de los "degenerados " que
la utilizaban y los "degenerados " mismos, mientras que el inefable LE BON
desarrollaba su tesis de la neutralización de la racionalidad del hombre en las
muchedumbres. La literatura recogió esta imagen y EMILIO ZOLA relataba
horrendas escenas de huelgas tumultuarias en su Germinal, que culminan con
la castración de un cadáver y la exhibición triunfal de los testículos en una pica.
Mientras que la superioridad blanca nordeuropea de las clases hegemónicas y
de los trabajadores disciplinados de Europa frente a la inferioridad de las
restantes ' 'razas " de Europa y del mundo y de las masas indisciplinadas y de sus
dirigentes, eran cuestiones que no admitían discusión en la "ciencia" de los
"superiores " centrales, en nuestro margen latinoamericano las élites criollas
tampoco lo discutían, identificándose con los sectores hegemónicos centrales y
considerando inferior a la inmensa mayoría de la población latinoamericana, con
variables arguméntales de detalle en cuanto a sus consecuencias políticas a
corto plazo.
A burguesia colocou na mira dessa pretensa ciência todas o pluralismo de saberes
que atenta contra essa lógica hegemônica. A resistência popular, passou a ser calada,
pois, dentro dos muros acadêmicos e fora deles, tudo que se referia a cultura negra
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popular passou a ser criminalizada, a exemplo disso, temos as próprias criminalizações
da capoeira, do fumo e da religião, através do controle social formal e informal,
domínios que se atravessam e se complementam (SAAD, 2009).
Assim, a demonização das religiões de matriz africana não foi sem propósito, mas
um estratagema branco de dominação e, sobretudo, neutralização da resistência negra,
que tem nos terreiros sua incorporação, refazendo passos das insurgências negras tão
temidas por sociedades racistas (GÓES, 2021). A exemplo desses controles sociais que
passou a jogar as práticas ancestrais cada vez mais as margens "científicas" e sociais. Os
primeiros registros de criminalização dos saberes populares foi a criminalização do
curandeirismo, essas práticas eram consideradas crimes contra a saúde pública. Após
o Estado novo esses dispositivos passaram por modificações, que ainda sim, na prática
implicava sansões apenas a um grupo social, os negros (OLIVEIRA et al., 2015).
Associados a disseminação do saber médico legal, fruto do positivismo
criminológico, a psicologia passou a associar as religiões de matriz afro-brasileiras a
problemas mentais, muito porque, é tradição de tais religiões o transe. Esse transe
passou a ser visto como anormalidade psíquica por esses saberes, disseminando mais
ainda o controle social informal a tais pessoas.
A criminalização da maconha também passou por diversos estudos médicos legais,
e contou com o apoio da própria psicologia e época, culminando em uma lei de drogas
que representa a criminalização da pobreza até os dias atuais (SAAD, 2009). Para
despachar seus carregos (necropolítica, genocídio, presunção de periculosidade e
epistemicídio), a insurgência negra rompe os aprisionamentos colonialistas com
saberes forjados nas rodas cosmo-filosóficas diaspóricas, abrindo “novos” caminhos ao
que é primordial para redimensionar os cruzos, transformar sentidos e subverter
lógicas racistas, pois ali reside o dínamo da desordem, Exú, o movimento em deidade,
o princípio de tudo e sem o qual nada é realizado, é senhor dos caminhos de nossa
libertação (GÓES, 2021).
Invocar Exú é cantar para que a estratégia racista suba, se dissipe no ar, como a
fumaça resultante do fogo que tacamos nas plantations do saber epistemicida (SIMAS;
RUFINO, 2018), incrustado no racismo religioso que integra o sistema de controle racial
informal, que manipula a gramática de violência inscrita em nossos corpos igualmente
simbolizados (GÓES, 2021).
Todos esses acontecimentos estavam sob, não somente a ótica da pretensa ciência
hegemônica que de fato é racista, como também ancoradas em um discurso de direitos
humanos, que assim como o direito penal em si, é seletiva. Ao ler a forma com que
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Joaquin Herrera Flores aborda a temática dos direitos humanos a partir da ideia de sua
(re)invenção, torna-se impossível não abrir novos olhares e questionamentos quanto ao
entendimento da temática de direitos humanos, especialmente no que se refere ao
campo da segurança pública, o controle social e o próprio direito penal e seus discursos
pautados nos Direitos Humanos.
O autor desmistifica conceitos criados pela dogmática neoliberal, aproxima os
debates políticos e populares ao direito e denuncia a burocratização do método de
minimização das lutas pela afirmação dos direitos humanos em uma perspectiva latinoamericana (HERRERA FLORES, 2009). É com esta perspectiva que seguiremos o
trabalho, encaminhando-se para um relato pessoal com a criminalização da religião.
A criminalização de terreiro e os açoites em corpos aliados: pensando em um estudo
de caso
Peço licença de forma a falar minha experiência de pessoa negra (parda) e de
religião de matriz afro-brasileira, sendo umbandista mesmo há pouco tempo, mas
aprendendo cada dia mais sobre o universo da religião e fora dela.
Quando falamos que a umbanda tem fundamento e é preciso preparar, seus
fundamentos vão além do que se imagina. Pregar a caridade e o amor é a essência, mas
prova-se todo dia o amor à religião a cada cena, cada vivência de intolerância religiosa
que passamos quando andamos pela rua guiados; quando ouvimos que a Pomba Gira
destruiu mais um casamento; quando nos acusam de amarrações amorosas e
“macumba” (de forma pejorativa) para conseguirmos o que necessitamos e trabalhamos
profundamente para conseguir.
Pregar a caridade é um elemento fundamental para a religião, mas estamos para a
caridade, assim como a intolerância está para cruzar a sorte de um umbandista. Desde
meu amací, ou seja, uma forma de batismo (de uma forma mais simplificada em palavras)
com ervas, muito mudou e a postura de mundo de quem adentra as portas de uma casa
de santo muda.
Oportunidades vêm de encontro e muitas coisas saem de nossa vida. Nossas
escolhas de ações mudam. É por este motivo que abro meu Orí neste texto e clamo por
uma teoria crítica de direitos humanos em que não haja distinção dos nossos saberes
ancestrais para com os saberes eurocêntricos.
Quando digo que minha religião cura, não quer dizer que a religião embranquecida
não cura, ou que desacredito da ciência, mas que tenho fé na força de meu Pai Maior e
que o bem prevalecerá dentro das quatro paredes de minha casa de fé e irá reverberar
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a tudo e todos ao redor. Quando digo que a religião da umbanda é o último respiro,
muitas vezes, para alguém tomar fôlego e seguir, quer dizer que acredito na nossa
caridade e amor de forma a mudar o mundo. Pessoas não mudam a umbanda, mas a
umbanda muda pessoas.
Quando dizemos que queremos paz para nossos cultos, é apenas isso. Não
queremos casas cheias de filhos e filhas, mas queremos a paz de poder cultuar nossas
entidades sem andar na rua e sermos xingados ou tentar nos exorcizar em outras
celebrações ecumênicas. Queremos andar na rua e fazer as entregas para quem
necessita sem ter que ouvir das entidades que o trabalho foi vandalizado.
A umbanda é para todos, mas nem todos são para a umbanda. Se você não é de
umbanda, não é bom se aproximar. Intolerantes, não se aproximem, não mexam com o
sagrado umbandista. Nós não somos seus alvos de forma a descontar frustrações e
raivas do desconhecido. Seu preconceito mata. Seu pré-conceito mata. Mata os nossos.
Mata nós. Mata todo dia um pouquinho e vai escalando.
E é nesse sentido que propomos alternativas criminológicas. As religiões de matriz
afro-brasileiras como suporte e centro de uma libertação negra para uma não
criminalização. Minha proximidade com a criminologia me faz afirmar que o que
precisamos não é de punições maiores e extremas a quem nos fere. Não precisamos de
mais uma lei em que positive determinadas condutas produzidas por uma ignorância
que perdura há séculos e que foram plantadas por pessoas que nos odeiam pela cor da
pele.
Precisamos de uma alternativa para além das atuais, em que se preza por infligir
uma pena em relação a uma pessoa e, desta forma, encarcera-la o máximo possível
como forma a pagar por seus erros, ao invés de compreender as raízes do problema e
aprender para possíveis atitudes no futuro.
É, sem dúvida, imprescindível dizer que este passo com relação as religiões
brasileiras, nos leva a uma abordagem em que a equidade racial possa ser possível e
debatida, assim como a intolerância religiosa e a ignorância causada pelo medo do
desconhecido, especialmente no contexto histórico-cultural em que estamos inseridos.
Atualmente, o preconceito vem em ondas, onde o próprio representante mor da nação
desfere e destila discursos de ódio, levando a população a um conforto onde se possa
ser abertamente preconceituoso ou intolerante com os diferentes e sabe-se que tudo
irá ficar bem. Um dos motivos deste avanço de retrocesso é o domínio absurdo de
religiões cristãs em que se prega o ódio aos diferentes, associando a uma onda
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conservadora, pregadora da família, da boa moral e dos bons costumes, que despreza
religiões afro-brasileiras e as condena ao inferno cristão.
O resultado desses avanços resulta em ataques a terreiros de fé, conservadores
que se acham ao direito de simplesmente julgar a fé alheia e impor conceitos de sua
própria fé, acusar de fazer o mal e por isso julgar ser motivo mais que suficiente para
que possa desprezar e violentar representações de outros fiéis.
Precisamos nos libertar das amarras do positivismo e eurocentrismo para
compreender novas e antigas diferentes cosmovisões do mundo. Precisamos
descolonizar tudo e já!
Criminologia da libertação negra: aportes decoloniais para uma criminologia
de terreiro
As teorias da libertação, que partem de uma construção popular, utilizando dos
ideais das religiões latino americanas, em sua escrita de maior vanguarda, nos leva a
refletir acerca de como. Mesmo as teóricas que se colocam como críticas retornam ao
centro se perdermos de vista a necessária contundência, isso leva-se em consideração
de que, o projeto acadêmico colonial, como já posto, epistemologicamente apagam os
escritos dos povos oprimidos. Essa direção ao centro, para o autor, é a morte social e
filosófica dessa crítica, que se coloca como decolonial e pós-moderna (DUSSEL, 1977).
Esses apontamentos fizeram florescer diversas teorias que, não só pretendiam ter um
olhar para as classes oprimidas, como também, teorizar com as vivências advindas das
mesmas.
Partimos então de uma Criminologia da libertação (ANIYAR DE CASTRO, 2005),
cuja práxis de liberdade depende urgentemente de um projeto criminológico popular,
não que somente teorize essas classes, mas que compreendam que elas também
produzem conhecimento, e que este deve ser comprometido com o desmantelamento
do sistema penal formal e informal/subterrâneo (ANIYAR DE CASTRO, 2005),
compreendendo os limites da Criminologia crítica ao voltar-se majoritariamente sobre
o sistema penal formal e suas funções latentes (ANDRADE, 2003). Nesse sentido, nos
juntamos à Ana Flauzina (2016, p. 95):
É bem verdade que falo como visitante do clube criminológico. Juro que paguei
as mensalidades devidas, aprendi os ensinamentos essenciais, me vali das
estratégias disponíveis. Mas não seria capaz de pegar a carteira de membro
permanente. Para mim, esse sempre foi um caminho, dos muitos possíveis, para
se dar conta do recado de sobreviver ao genocídio. Esse que se vulgariza com a
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velocidade nas bocas dos teóricos do campo. Intelectuais dessa tal “esquerda
acadêmica sensível e iluminada” que ignoram convenientemente seu papel
estratégico no avanço dos equipamentos.
Retornemos a Lola Aniyar de Castro, pois, para nosso entendimento a autora foi
fundamental para o desmantelamento e denúncia de uma lógica subterrânea de
punição, que mais que seletiva é violenta.
Em apresentação a edição brasileira do livro Criminologia da Libertação, Lola
Aniyar de Castro enfaticamente aponta que o livro continua, mais do que nunca, atual.
Porque “[...] o livro aborda os momentos preparatórios, às vezes muito dolorosos, do
que é hoje a prática dos controles formais e informais da dominação” (CASTRO, 2005,
p. 13). Pioneira em desvelar em como os controles sociais, encontra na via penal, a partir
do suporte do Estado com substrato do mercado financeiro, maneiras e formas de
manter a hegemonia do capital através da violência. O controle social subterrâneo que
através a coerção, medo e truculência legítima a acumulação de riquezas e
concentração de terras. É na América Latina que o controle social se transforma em
robustas formas de opressão, tanto de maneira informal, subterrânea como escreve
Lola, como na esfera formal, legitimando a barbárie através da burocratização
legislativa e dogmática (CASTRO, 2005).
A autora, em nossa análise, também é precursora em problematizar as entrelinhas
da dependência Latino Americana e o poder punitivo. Tomando essa característica
como base para compreender como o Estado age de forma simbiótica com a hegemonia
financeira. As características de penetração do capital financeiro também se
materializam através do Estado-político-punitivo.
Em uma das várias passagens que a autora aborda essa simbiose, ela compreende
que para Hulsman nos países de centro do mundo “[...] a legitimação do sistema
sociopolítico não depende do sistema penal” (CASTRO, 2005, p. 146); podendo ser
utilizados de outros mecanismos, como por exemplo, políticas sociais. Na
especificidade a América Latina “periferia do capitalismo selvagem” embora não se
adote teorias de cunho voluntaristas. “O sistema penal é aqui um suporte fundamental
do processo de dominação, tanto em sua vertente ideológica como fática” (CASTRO,
2005, p. 146).
Os movimentos populares, também se destacam na obra analisada, destacando as
formas de criminalização dos mesmos. O poder punitivo utiliza-se de diversas formas
de criminalizar a resistência ao sistema, a autora exemplifica isso através do “combate
ao narcotráfico”. Para a professora Lola fica cristalina a ideia de que o discurso do
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combate ao tráfico de drogas, em verdade, é uma das ferramentas de criminalização
dos movimentos populares, visto que, é disseminada na mídia dominante, sobretudo
estrangeira, o discurso de que os grupos radicais de esquerda são responsáveis ou
beneficiários direitos do narcotráfico (CASTRO, 2005).
Foi Rosa Del Olmo que se debruçou a nos contar essa história que se materializou
no livro a América latina e sua criminologia fica evidente como olhar para os países
“industrializados” foram um modelo para o surgimento do que se chama de “prevenção
e repressão ao delito''. Importamos então as casas de correção, como forma de
solucionar o “problema” da situação dos cárceres e as quantidades já extraordinárias de
pessoas em cumprimento de pena existentes. A modernidade pugnava por maneiras
“humanas” de punição (DEL OLMO, 2004, p. 166-168).
No primeiro congresso de antropologia criminal que aconteceu na cidade de Roma
em 1985 a criminologia surgiu como “a ciência do estudo do delinquente” e não
demorou a essa ideia rapidamente se difundir no Brasil. E para a autora essa suposta
ciência não demoraria a justificar a repressão aos movimentos de resistência, servindo
como resposta aos que ousavam “atrapalhar” o desenvolvimento das forças produtivas
do grande capital (DEL OLMO, 2004, p. 171).
A professora Del Olmo foi pioneira em desvelar como a introjeção da América
Latina no processo de produção capitalista foi desigual, desde um olhar criminológico
crítico, a absorção a antropologia criminal deveria ser uniforme em nossos solos,
tentando especificar de forma total os processos de delinquência e desvio,
incorporando nesta ciência as especificidades dos povos indígenas e colocando
Argentina e Brasil como a vanguarda dos estudos da personalidade criminosa, ou seja,
fomos berço da aplicação de uma ciência racista e classista que se utilizou de uma
fumaça de intelectualidade como ferramenta de sequestro e introjeção da modernidade
em nossos solos (DEL OLMO, 2004).
Em importante reconstrução da criminologia da libertação, Leal (2017) contesta a
efetiva participação do Brasil na construção dessa criminologia. Isso diz muito sobre o
trabalho em que desenvolvemos aqui, pois, o autor demonstra em sua investigação a
dois importantes periódicos latinos de criminologia, que a construção da brasilidade
criminológica necessita estar aliada as utopias de transformação social, pois essas
utopias guiam os horizontes das teorias críticas latinas (LEAL, 2017).
Pode-se se dizer que esse resgate passa pelos processos de tomada de
consciência, tanto da criminologia enquanto locus de transformação, quanto, da
própria população sobre a ideia de que somos um território marginal e subalternizado.
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É necessário, pois então, descer das “torres de marfim” de uma academia dita crítica,
essa ideia é a construção teórica alvos das críticas de Ana Flauzina (LEAL, 2017).
No V Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as) da Região Sul
(COPENE-Sul), realizado pela Universidade do Extremo sul catarinense, na mesa de
abertura que contou com palestras de Luciano GÓES, Thula Pires e Flávia Medeiros,
com mediação e organização da professora Fernanda da Silva Lima. O tema da
criminologia da libertação foi levantado, em pergunta realizada por um dos
participantes ao professor Luciano Góes que de forma contundente demonstrou que a
teoria da libertação só estaria completa se abrangesse as religiões de matriz afrobrasileiras (GÓES, 2022).
Nesta linha o professor apresentou a ideia desenvolvida no texto Ebó
Criminológico: Malandragem Epistêmica nos Cruzos da Criminologia da Libertação
Negra. Que além da contundente crítica abolicionista arrancando o racismo das
entrelinhas e desmascarando o controle repressivo que tem em suas raízes a
segregação da população negra, o autor demonstra como o racismo religioso faz parte
de uma teoria que tem como pretensão a crítica.
Nesses cruzamentos são necessários buscar nas religiões de matrizes africanas os
fundamentos de uma libertação que só é capaz dentro do verdadeiro contexto racial
brasileiro, buscando nessas raízes os fundadores desta nação, que são o povo que veio
sequestrados do continente africano e que trazem na malandragem epistêmica a
construção de uma criminologia que liberta o povo preto das amarras raciais burguesas.
Conclusão
Chegamos à conclusão de que o Brasil foi forjado por uma ideia supostamente
iluminista de libertação, na qual em primeiro momento passava-se por um
desenvolvimento industrial e uma modernização em suas práticas sociais, que em
verdade, resultou em uma massificação da subalternização, sobretudo das pessoas
negras.
Dentro deste pretenso ideário desenvolvimentista burguês, o transplante de uma
cientificidade que se coloca como “neutra” e o patrocínio de uma migração branca, com
a pretensa justificativa de necessidade de uma mão de obra técnica foi fundamental
para a construção de um genocídio epistêmico.
Esse genocídio foi responsável pela destruição dos saberes tradicionais de nossos
povos, pelos processos de branqueamento da população brasileira, tanto em termos
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físicos como em termos culturais e dentro dessa estrutura patrocinou a construção de
uma teoria eminentemente técnica que nega qualquer preceito de popularidade.
Neste sentido a criminologia nadou nesta maré e em seu início foi fruto desse
iluminismo que em verdade cunhou uma institucionalização da tortura através do
direito penal clássico, dogmático e tecnicista. Diversos estudiosos que mencionamos,
como o caso de Lola Aniyar de Castro, demonstraram que o desmantelamento dessas
estruturas passa pela superação do controle social informal.
Na reconstrução dessa linha teórica e política, Jackson da Silva Leal apontou que
eram necessários descermos das torres de marfim da academia para adentrarmos a
concretude dos acontecimentos sociais e promover uma tomada de consciência em
busca da transformação radical da sociedade através de uma criminologia engajada na
luta. Essa crítica foi feita por Ana Flauzina quando a autora coloca que a pretensa
esquerda acadêmica necessita ser realmente fiel aos preceitos de mudança radical da
sociedade.
O professor Luciano Góes denunciou o racismo religioso dessa academia que se
diz crítica apontando os caminhos possíveis para uma criminologia da libertação negra,
que passa sobretudo pelo desmantelamento desse preconceito, para assim, buscarmos
uma criminologia malandra epistêmica de terreiro.
Desta forma apontamos para esse desmantelamento para que possamos buscar
uma criminologia crítica brasileira e popular que supere o genocídio em suas mais
variadas formas e seja uma ferramenta de construção teórica e práxis desde
perspectivas populares, vivencias e lutas. Conclui-se, portanto, que se necessita de uma
criminologia engajada a partir da teorização epistêmica das ruas, que se cruzam com
todos os esforços teóricos já produzidos pela academia, para que assim somados,
tomemos os movimentos de libertação como protagonistas para que a libertação negra
seja um horizonte possível.
Referências
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Advogado, 2003. 250 p.
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Foto: Felipe Chersoni.
Editora CLAEC
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