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Criminologia periferica

2022

Organizadores Felipe de Araújo Chersoni Anayara Fantinel Pedroso Thomaz Jefferson Carvalho Criminologia periférica 1ª Edição Foz do Iguaçu 2022 © 2022, CLAEC Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 5988 de 14/12/73. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida para fins comerciais, sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros. Aplica-se subsidiariamente a licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0). Editoração: Laura Valerio Sena Diagramação: Laura Valerio Sena Capa: Gloriana Solís Alpízar Revisão: Os organizadores ISBN 978-65-89284-36-9 DOI: 10.23899/9786589284369 Disponível em: https://publicar.claec.org/index.php/editora/catalog/book/84 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Criminologia periférica [livro eletrônico] / organização Felipe de Araújo Chersoni, Anayara Fantinel Pedroso, Thomaz Jefferson Carvalho. -- 1. ed. Foz do Iguaçu, PR: CLAEC e-Books, 2022. PDF. Vários autores. Vários colaboradores. Bibliografia. ISBN 978-65-89284-36-9 1. Criminologia 2. Controle Social 3. Periferia. I. Chersoni, Felipe de Araújo. II. Pedroso, Anayara Fantinel. III. Carvalho, Thomaz Jefferson. CDD: 340 Observação: Os textos contidos neste e-book são de responsabilidade exclusiva de seus respectivos autores, incluindo a adequação técnica e linguística. Centro Latino-Americano de Estudos em Cultura – CLAEC Diretoria Executiva Dra. Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo Me. Bruno César Alves Marcelino Diretor-Presidente Diretora Vice-Presidente Dra. Cristiane Dambrós Me. Weldy Saint-Fleur Castillo Diretora Vice-Presidente Diretor Vice-Presidente Editora CLAEC Me. Bruno César Alves Marcelino Ma. Édina de Fatima de Almeida Editor-Chefe Editora-Assistente Dr. Lucas da Silva Martinez Me. Fernando Vieira Cruz Editor-Chefe Adjunto Editora-Assistente Dra. Alessandra Fontes Carvalho da Rocha Kuklinski Pereira Bela. Laura Valerio Sena Editora-Assistente Editor-Assistente Me. Ronaldo Silva Dra. Danielle Ferreira Medeiro da Silva de Araújo Editor-Assistente Bela. Valéria Lago Luzardo Editora-Assistente Editora-Assistente Conselho Editorial Dra. Ahtziri Erendira Molina Roldán Universidad Veracruzana, México Dra. Marie Laure Geoffray Université Sorbonne Nouvelle – Paris III, França Dra. Denise Rosana da Silva Moraes Dra. Ludmila de Lima Brandão Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil Universidade Federal do Mato Grosso, Brasil Dr. Djalma Thürler Dr. Marco Antonio Chávez Aguayo Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidad de Guadalajara, México Dr. Daniel Levine Dr. Marcus Fernando da Silva Praxedes University of Michigan, Estados Unidos Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil Dr. Fabricio Pereira da Silva Dra. Sandra Catalina Valdettaro Universidade Federal Fluminense, Brasil Universidad Nacional de Rosário, Argentina Dr. Francisco Xavier Freire Rodrigues Dra. Susana Dominzaín Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidad de la República, Uruguai Dra. Isabel Cristina Chaves Lopes Dra. Suzana Ferreira Paulino Universidade Federal Fluminense, Brasil Faculdade Integrada de Pernambuco, Brasil Dr. José Serafim Bertoloto Dr. Wilson Enrique Araque Jaramillo Universidade de Cuiabá, Brasil Universidad Andina Simón Bolivar, Equador Sumário Apresentação: Na encruzilhada dos saberes Felipe de Araújo Chersoni, Anayara Fantinel Pedroso, Thomaz Jefferson Carvalho “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak Sara de Araújo Pessoa 5 8 A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as Gabriel Dias, Meire Mathias 24 Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social Felipe de Araújo Chersoni, Anayara Fantinel Pedroso, Thomaz Jefferson Carvalho 37 A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo Anayara Fantinel Pedroso 48 A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural 61 Ana Karolina Matias Emydio, Cristiane Westrup, Fernanda da Rocha Fabiano, Fernanda da Silva Lima A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico 72 Matheus Marins, Fernando Henrique da Silva Horita Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas Rafaela Isler da Costa 87 Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal 96 Ramison Benedito da Rocha de Souza, Tainá Ariel Vaz Diana Cifuentes, Tatiana Moraes Cosate Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra Lídia Piucco Ugioni, Felipe de Araújo Chersoni, Thomaz Jefferson Carvalho 109 Criminologia periférica Apresentação Apresentação: Na encruzilhada dos saberes A ideia de uma coletânea de estudos denominada “Criminologia Periférica” surgiu na perspectiva de ilustrar algumas problemáticas nas quais o pensamento crítico vem se debruçando, com razão, nos últimos anos: A violência do Estado contra pessoas que vivem nas periferias do Brasil, entendendo o território brasileiro e latino-americano, também como uma periferia global. As vozes que ecoam desses territórios, são ferramentas de enfrentamento a esta realidade, e esta eclosão ocorre de diversas formas, seja através da música, da arte, dos movimentos populares e etc. As cidades são vivas! Porém, seus muros são cercas e o concreto, grandes muralhas, que encurralam as pessoas que não carregam consigo os privilégios de Gênero, Raça e Classe. Os prédios continuam altos. Contudo, aquilo que prende o corpo, pode dar liberdade à voz através da manifestação cultural. Muros, prédios e concretos permitem que a cidade fale, pela perspectiva daqueles que sempre foram silenciados. (Trans)formando quadros onde a história é (re)escrita, nas ácidas linhas periféricas. Tão ácidas quanto a própria (sobre)vivência. O papel da academia nesta realidade é um fator de reflexão, especialmente, com a chegada, através dos programas de ações afirmativas, de pessoas que carregam uma bagagem de exclusão, que tornou possível tangenciar também, a partir dessas vivências, problemáticas que, talvez, antes não fossem comumente tangenciadas, ou, que ao menos não fossem problematizadas desde as pessoas que carregam o alvo da brutalidade estatal nas/pelas costas. A partir desta ideia, a coletânea que o leitor e a leitora têm em mãos, se soma a tantos outros materiais importantes desenvolvidos durante o longo acúmulo criminológico crítico, para colaborar na compreensão da nossa realidade, para estar junto aos movimentos populares, artistas periféricos e demais maiorias que são minorizadas pelo capitalismo periférico, dependente e racializado. Portanto, algumas questões são centrais nas reflexões a seguir, como por exemplo, o racismo, esse entendido como estrutural, as opressões de gênero que se cruzam nesta estrutura racializada e ao lado de classe constroem um tripé de dominação da nossa gente. Não estamos falando de recorte e sim de totalidade. Transitando neste sólido entendimento, a violência contra tais pessoas é o centro de análise destes escritos, que preocupados em modificar essa realidade, se entrelaçam entre a distância pesquisador/a, pesquisa, para a compreensão, de que, vindo de onde viemos, nossos esforços teóricos falam mais que “resultados”. As pesquisas são vivas! e 5 Criminologia periférica Apresentação podem ser sim, militantes, parceiras dos movimentos e atuantes entre os becos e vielas. Essa academia é possível! Esperamos que o/a leitor/a que se debruça nesta obra, tire daqui ferramentas que se somem em suas lutas diárias, que seja alento entre os vagões de trens e metrôs (sempre lotados), que seja companheira entre os assentos dos ônibus, que seja aliada da luta do campesinato, que seja comparsa das manifestações artísticas e que se some, de alguma forma, à luta da nossa classe trabalhadora! A esses mesmos leitores deixamos nossos agradecimentos, que se estendem à equipe da Editora CLAEC. Agradecemos pela paciência e atenção ao projeto. Boa leitura e um forte abraço dos organizadores! Felipe de Araújo Chersoni Anayara Fantinel Pedroso Thomaz Jefferson Carvalho 6 Criminologia periférica Desenho: Natalya Carrazoni. 7 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak Sara de Araújo Pessoa* Introdução A temática do trabalho prisional é bastante conhecida dos estudiosos da criminologia crítica, principalmente daqueles que partem da economia política da pena, encontrando na conjunção cárcere-fábrica explicações para desvelar as funções e origens da pena de prisão e sua intrínseca relação com o desenvolvimento do capitalismo. Diante da relevância teórica da questão, em pesquisa anterior debrucei-me sobre o trabalho prisional no Brasil na atualidade, a partir de estudo de caso em uma penitenciária no sul de Santa Catarina. Naquele momento, busquei compreender a dinâmica do trabalho prisional por meio de inspiração etnográfica, frequentando por alguns meses a instituição, observando e conversando com seus funcionários, participando de eventos de incentivo ao trabalho prisional, e também entrevistei homens privados de liberdade que trabalhavam para uma empresa de esquadrias de alumínio e como “regalias”, isto é, no próprio funcionamento da penitenciária (na cozinha, limpeza, etc.) (ARAÚJO PESSOA, 2019). Na pesquisa, concluí que o trabalho prisional exercia as seguintes funções: disciplina e controle dos internos; superexploração1 da mão de obra prisional para o setor privado; superexploração da mão de obra prisional para o setor público. Professora na Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT). Mestra em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). E-mail: sara.pessoa@outlook.com 1 Desta vez em coautoria com Araujo Chersoni (2022), desenvolvo melhor a ideia da superexploração a partir de uma perspectiva da teoria marxista da dependência, ferramenta teórica fundamental para compreender o avanço da exploração privada sobre os braços que se encontram em situação de cárcere, fazendo a gestão refinada deste exército de reservas, cumprindo papel histórico assim como as workhouses (ARAUJO PESSOA; ARAUJO CHERSONI, 2022). * 8 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 Ainda que não seja realidade nacional, muito por falta de infraestrutura para suportar e organizar2, há um projeto em curso, uma intenção de proletarizar as prisões. Com isso quero dizer que sob o manto da declarada função ressocializadora da pena, Estado e capital unem-se para levar empresas às prisões que utilizarão de mão de obra carcerária. A exemplo disso, cito o decreto nº 9.450 de 2018, que institui a Política Nacional de Trabalho no âmbito do Sistema Prisional (Pnat). Junto a ele, destaco o “manual: mão de obra prisional”, lançado em 2021 pelo DEPEN, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, voltado para a inserção da iniciativa privada “[...] no processo de ressocialização do preso pela inclusão em atividades de trabalho” (DEPEN, 2021, p. 7). Essas iniciativas inserem-se num aparato técnico-jurídico que permite a exploração dos trabalhadores privados de liberdade, que contam com pouquíssimos direitos: A remuneração desses trabalhadores é inferior ao salário mínimo, tendo como piso 3/4 do salário mínimo vigente3; as empresas são desobrigadas de recolhimento previdenciário, retenção, repasse e responsabilidade tributária da contribuição para a Seguridade Social; o trabalho prisional não está sujeito à Consolidação das Leis do Trabalho; esse trabalho dispensa a necessidade de Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS); os trabalhadores do sistema carcerário não fazem jus a férias nem ao décimo terceiro. Ressalto que essas reflexões não se colocam contra oportunidades de redução do sofrimento que a prisão implica invariavelmente, mas trazem os alertas: a política laboral do sistema penitenciário não tem se destinado à reintegração social como política de direitos e assistência; se o sistema prisional brasileiro tornar-se enfim um complexo industrial altamente lucrativo ao setor privado será ainda mais difícil refreálo. A problemática ganha contornos mais nítidos ao observarmos os EUA, país que lidera o ranking de encarceramento no mundo, que influencia fortemente as políticas de segurança pública brasileiras e que tem já consolidado um modelo de exploração da mão de obra prisional por empresas privadas. Essa exploração faz parte do que ativistas e estudiosos definem como “complexo-industrial-prisional”, fundamental à Em seminário online, questionei o professor Luis Carlos Valois sobre a problemática da exploração do trabalho prisional. Em resposta, ele comentou que as oportunidades de trabalho são tão ínfimas e nossas prisões não têm a mínima infraestrutura que esta [a exploração da mão de obra prisional] não seria uma questão para o momento. 3 Em 2021, o STF julgou a ADPF 336 que questionava a constitucionalidade da remuneração inferior ao salário-mínimo, decidindo que não há violação aos princípios da dignidade humana e isonomia. 2 9 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 compreensão do encarceramento em massa na atualidade, que engloba não apenas o trabalho prisional, mas também as privatizações das prisões, alianças entre os mundos militar e corporativo, envolvimento de empresas de produções diversas (alimentação, tecnologia de segurança, construtoras) no negócio da punição, enfim, “[...] a transformação dos corpos encarcerados – e eles são, em sua maioria, corpos de pessoas de cor – em fontes de lucro [...]” (DAVIS, 2018, p. 95). Buscando alternativas concretas de mudanças que não esperam a boa vontade do Estado, apresento tradução de entrevista realizada por Jared Ware, escritor e advogado pelos direitos das pessoas encarceradas nos Estados Unidos, com representante da organização de direitos humanos Jailhouse Lawyers Speak sobre a greve contra o complexo-industrial-prisional, articulada por prisioneiros de 17 estados nos EUA em 2018. As resistências a um cenário de superexploração de mão de obra já consolidado – tomado também como nova escravidão – alertam para a dimensão do problema a nossa porta e delineiam caminhos possíveis que contam com articulação intra e extra muros. É a partir do movimento das pessoas privadas de liberdade junto àqueles que, fora das grades, lutam pela causa antiprisional, que mudanças podem acontecer. Espero que nos sirva de inspiração. “Eu tô pela destruição!”: Entrevista com organizador da greve prisional, representante da Jailhouse Lawyers Speak Jared Ware Pouco mais de uma semana após a incidência mais mortal de violência registrada de violência carcerária nos Estados Unidos, um quarto de século, uma coalizão de prisioneiros, incluindo representantes da organização de direitos humanos Jailhouse Lawyers Speak, anunciou uma greve prisional nacional. A greve liderada por prisioneiros está marcada para ser lançada em 21 de agosto, que é o 47º aniversário da morte do organizador da prisão dos Panteras Negras e teórico político George Jackson. Ela continuará até 9 de setembro, o 47º aniversário da Rebelião de Ática. Em 4 de maio, divulguei uma entrevista com prisioneiros da Carolina do Sul, incluindo vários representantes da Jailhouse Lawyers Speak, na qual discutiram que condições 10 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 dentro do sistema prisional poderiam produzir o tipo de violência que ocorreu em Lee Correctional [Instituto Correcional de Lee] em 15 de abril. Na ocasião, eles compartilharam seus pensamentos sobre melhorias imediatas necessárias ao sistema prisional para aliviar essas condições. Recentemente, entrevistei outro representante da Jailhouse Lawyers Speak, para pensar sobre os últimos meses de planejamento interno e organização solidária no exterior. Perguntei sobre o processo de organizar prisioneiros como classe, escravidão nas prisões, sua solidariedade com os presos da ICE, diversificação de táticas e o que as pessoas de fora podem fazer para apoiar a greve. Devido à ampla repressão contra os organizadores presos e proeminentes prisioneiros politizados, este representante da Jailhouse Lawyers Speak recebeu o anonimato. J: Faltam apenas algumas semanas para a greve e há muitas organizações diferentes tentando se envolver no exterior. Quais são algumas das coisas que eles podem fazer em solidariedade? Representante da Jailhouse Lawyers Speak: A primeira coisa é, quando eu estava conversando com alguns dos camaradas da JLS, falávamos sobre o que esses grupos podem fazer. De greves passadas, o que aprendemos - por exemplo, quando fizeram uma [demonstração] há alguns anos em setembro [2016], e então eles fizeram o Millions For Prisoners [Marcha dos Direitos Humanos] - o que aprendemos é que o lado de fora, quanto mais pessoas tendem a se levantar, demonstrar de fora, particularmente demonstrar às prisões, o que fazem é incitar. Incita dentro e é por isso que as prisões têm um problema com isto. Portanto, a maior coisa que podemos pedir a qualquer um desses grupos ou organizações é que realizem algum tipo de evento, particularmente um evento que possa atrair a atenção das rádios, a atenção da mídia jornalística, qualquer coisa que possa chegar às celas e às prisões. Quanto mais programas de rádio captam, mais os prisioneiros podem ouvi-los. Particularmente, os presos que não têm acesso a telefones ou acesso à Internet podem, pelo menos, acessá-los enquanto ouvem seus rádios ou podem vê-los na televisão. Isto é muito, muito importante. É assim que os ataques da Flórida se espalham tão rapidamente, porque eles conseguiram entrar nos canais. Eles foram capazes de criar um inferno suficiente para que a mídia pegasse e devolvesse às prisões e às celas que [agentes da prisão] realmente não queriam que entrasse. 11 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 J: Então o plano é que isso dure de 21 de agosto a 9 de setembro, certo? JLS: Sim. J: Então as pessoas deveriam estar fazendo isso agora? Deveriam estar fazendo tudo durante a greve? Quando deveriam fazer isso? JLS: Todos os itens acima. Não há uma estratégia direta para isso. Acho que todos nós ainda estamos sentindo e aprendendo enquanto avançamos, mas penso que todos os itens acima. Acho que definitivamente antes [da greve]. Como por exemplo, na Carolina do Sul, quando eles realizaram a manifestação em frente à prisão de Lee County, que ajudou a incitar os caras dentro e informá-los que havia apoio externo até o ponto em que agora, em Lee County, esses caras estão de uma forma ou de outra planejando participar. Porque em certas áreas do condado de Lee você não conseguia nem saber o que estava acontecendo, mas fora [o apoio] ajudou a conseguir informações. E isso foi antes da data real da greve. Precisamos de grupos do lado de fora para fazer isso. Outra coisa que eles podem fazer é tentar contatar organizações ou grupos em suas áreas que geralmente sabem fazer esse tipo de trabalho na prisão, e muitos desses grupos você verá nas mídias sociais, facebook, twitter, apenas se conecte com alguns desses organizadores. O que aprendi é que esses grupos podem ser pequenos em números, e você pode ter algumas organizações maiores que queiram ajudar a ver o que podem fazer. Essas organizações maiores que querem ajudar, elas precisam se conectar com as menores que já estão trabalhando e seguir o exemplo até lá. J: Uma das coisas que vi recentemente é que a JLS emitiu uma declaração de solidariedade com aqueles que estão na prisão do ICE. Já houve conexões feitas pelos organizadores da greve em termos de demandas que referenciam pessoas que estão em centros de detenção de imigrantes. E a declaração de solidariedade também falou sobre pessoas que estavam trabalhando no exterior e ocupando escritórios da ICE e coisas assim. Você pode expandir um pouco sobre as conexões que todos vocês estão fazendo lá, entre a sua situação e a situação dos centros de detenção de imigrantes? 12 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 JLS: Quanto à conexão com o ICE e por que estamos solidários, o maior motivo é que entendemos essas gaiolas. E não apenas isso, mas é tudo o mesmo sistema. E isso é algo que o JLS vem promovendo desde o primeiro dia. Todo o sistema em si - o sistema judicial, o sistema de injustiça - é uma grande bola de corrupção, uma grande bola de lixo [risos]. Apenas sendo direto. E nós entendemos a natureza exploradora disso. Independentemente do que eles dizem, é sempre orientado para o lucro, e particularmente esses centros de detenção do ICE, sabe? Sabemos que esses são definitivamente - você pode realmente olhar para eles e ser capaz de distinguir isso [com essas instalações de gerência privada] um pouco melhor às vezes do que você pode [com] algumas dessas instalações mais estaduais e federais [em execução] . Com a detenção do ICE, você pode olhar diretamente para isso e saber que estão diretamente disponíveis para ganhos financeiros, e é mais difícil escondê-lo do que para as estaduais e federais. A pessoa comum pode ver isso. Mas nós definitivamente sentimos por aqueles que estão nessas gaiolas, naquelas gaiolas de detenção ICE. Antes de eu ser transferido para a prisão estadual [da prisão federal], na verdade eu estava enjaulado com alguns dos caras que estavam sendo transportados para a [prisão] federal do ICE [instalações], e você sempre podia ver o medo nos olhos desses homens, quando eles estavam sendo transferidos, e não apenas isso, às vezes você pode ver a tristeza, às vezes você pode ver - como eu estava explicando para alguns dos outros companheiros quando falávamos sobre isso - às vezes você pode até ver que alguns desses caras sentem como se estivesem enfrentando a morte, quando voltam para casa. Então você não pode deixar de perceber que é algo sobre o qual todos devemos nos preocupar, especialmente quando se sabe o que está acontecendo. Mas mais que qualquer coisa, são violações dos direitos humanos, essas instalações. E mais uma vez, não posso enfatizar que são todos iguais. Está tudo na mesma cadeia, não há diferença lá. Fora o fato de que existem algumas diferenças óbvias, mas a essência e a natureza fundamentais do ICE não são diferentes de onde estou agora. É tudo escravidão. J: Falando um pouco sobre a escravidão nas prisões, existem várias análises desse conceito. E uma das coisas que eu acho que cria alguma tensão em torno disso, quando falamos especificamente sobre o aspecto trabalhista, é essa noção de que existem essas unidades de “privilégio” ou “personagem” que são realmente as pessoas que têm 13 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 mais trabalho, eu acho. Porque certamente há trabalho que acontece dentro das prisões que são algumas horas aqui ou ali, limpando, cozinhando ou fazendo outros trabalhos ao redor da unidade. Mas há pessoas que realmente argumentam incluindo os reformadores da prisão e os abolicionistas da prisão - que as prisões não são o mesmo que a escravidão, mas são uma forma de controle social. Qual é a sua análise de tudo isso? JLS: Bem, acho que ambos estão corretos. É um mecanismo de controle social e também escravidão. Eu tenho que dizer isso aqui, de uma perspectiva da diárpora Africana - e tenho que dizer assim, certo? - porque muitos de nós voltamos aqui, particularmente da JLS, nós viemos de diferentes perspectivas culturais, mas de uma perspectiva da diáspora Africana: Sempre fui ensinado e acredito, com base em minha experiência cultural neste país, que o atual sistema prisional, no que se refere à perspectiva africana, é diretamente dos dias de plantação. Eu acho que desde que os africanos saíram desses barcos, aterrissaram aqui, essa conexão foi claramente definida, mesmo quando eles foram removidos das plantações, e eles começaram a passar por todo o resto, e a 13ª Emenda [entrou] em vigor... e isso é por que os africanos da diáspora, em especial, sentem o mesmo quando se trata de prisões. Nunca tivemos muito problema em identificá-la como escravidão. Eu me lembro do meu avô e eles, eles estavam falando sobre isso. Prisão é escravidão. Eles nunca se referiram a ela como prisão ou cadeia, eles se referiam como sendo forçados a voltar para as plantações novamente. Isso é algo que sempre entendemos. É claro que, à medida que as coisas evoluíram, o sistema evoluiu, é um pouco mais sofisticado e você sabe que as pessoas tentaram mudar o modo de falar e houve uma desconexão. Percebo que há uma desconexão com muitos dos nossos camaradas brancos. Porque eu não acho necessariamente que eles veem a conexão lá. “Por que tantos negros veem do jeito que eles veem, assim?” Isso [vem] mais deles. E eu acho que é por causa dessa falta de experiência cultural, essa conexão cultural. A continuação [da escravidão], eles não experimentaram isso. Então eles não veem assim. Por outro lado, também sabemos - acho que muitas vezes as pessoas pensam que, quando dizemos que é escravidão, sentimos falta do quadro maior de que também é um 14 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 mecanismo de controle social. Nós também entendemos isso. Entendemos que é um mecanismo de controle social, entendemos as conexões com o capitalismo, entendemos como esse empreendimento se espalhou pelo mundo hoje, como é muito mais do que apenas ser colocado aqui em um prédio, em uma célula. Nós entendemos tudo isso bem aí. Ninguém está perdendo essa foto também. Mas acho que fazemos uma grave injustiça quando ignoramos o fato de que ainda é uma continuação da escravidão. J: Uma das coisas que temos que entender é que os prisioneiros querem ser capazes de sair de suas celas. Você vai ouvir isso de ex-prisioneiros, eu ouço isso de exprisioneiros, e muitas vezes são ex-prisioneiros brancos. É como se eles quisessem o trabalho, porque essa era a oportunidade para eles saírem do isolamento celular, para sair e fazer alguma coisa, fazer algo com as mãos, trabalhar, alimentar as pessoas, se comunicar. Para eles, eles não encaram isso como escravidão, em parte porque olham para a perspectiva de ficarem alojados naquela cela por 23 horas por dia e não serem capazes de fazer algo tão mais prejudicial a eles do que a perspectiva de poder trabalhar, mesmo que não estivessem sendo pagos por isso. Muitas vezes penso nisso como algo interessante, porque todos conhecemos os horrores do que é a escravidão. Eu acho que há também essa percepção de que as pessoas têm que chegar, até certo ponto, que a prisão é tão horrível que as pessoas farão muitas coisas diferentes para proporcionar algum alívio a essa experiência. JLS: Eu sei que muitos, muitos, muitos prisioneiros prefeririam estar fora de suas celas, conseguindo algum espaço para as pernas, conseguindo alguns alongamentos nas pernas, sendo capazes de passear e ser capaz de falar, se puderem. E quando você lhes dá a oportunidade de fazer isso, se eles trabalham, obviamente, vão optar por trabalhar. Porque essa é a oportunidade que eles têm para sair, mas você está se baseando se vai ou não fazer essa mão-de-obra particular ou não. Toda a sua existência é baseada em se você vai ou não fazer esse trabalho específico ou não. Assim como essas novas "unidades de privilégio" que estão voando pelo país agora. Na Flórida, eles têm essas “unidades baseadas na fé”, “unidades de caráter” e, para estarem nessas chamadas unidades superiores com privilégios superiores, é obrigatório que você trabalhe. Se você não conseguir trabalhar, você será removido dessas unidades. 15 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 Então, quando estamos olhando para isso, obviamente, muitas vezes o que encontrei é que muitos prisioneiros aceitam suas realidades. Eles aceitam esse fato, e muitos deles racionalizam isso como se “isso não é escravidão”, e eu ouvi dizer agora, de prisioneiros, que “isso não é escravidão”, você segue o que estou dizendo? Que isso é apenas uma parte de sua sentença, e é assim que eles a racionalizam. “Você sabe, bem, uma pessoa normal trabalharia. Uma pessoa normal faria 8 horas”. Às vezes leva um tempo para tirá-los disso, porque muitas vezes se recusam a sair disso. Porque se mudarem de ideia, então começarão a se recusar a obedecer, e eles não querem se recusar a obedecer porque sabem instantaneamente que suas condições podem ir de mal a pior. Deixe-me ser honesto. Neste momento, se você fosse trabalhar em uma liberação de trabalho versus uma prisão de segurança máxima, não acho que tenha muitos prisioneiros que desistam da chance de ir para uma instalação de liberação de trabalho. Não importa o quão ruim seja o trabalho, não importa o quão perigoso seja o trabalho, não importa o quanto o trabalho possa afetar sua saúde futura. Temos empregos aqui que eu tenho certeza que estão causando tumores de prisioneiros, ou que terão tumores no futuro, problemas nos pulmões, agentes cancerígenos estão sendo dispersados por algumas dessas plantas, e eles estão fazendo tudo isso de graça. Mas eles estão fazendo isso porque querem sair dessas células. É muito melhor do que ficar nas celas o dia todo e bater com a cabeça na parede. Essas são as consequências de não trabalhar. J: Obviamente, isso está sendo feito em um aviso mais curto do que a greve de 2016, mas há duas coisas que vejo que todos vocês têm trabalhado a seu favor. Uma delas é que as demandas que todos vocês emitiram são mais abrangentes, e as pessoas podem olhar para elas a partir de vários caminhos da vida, sejam elas radicais ou simplesmente se preocupando com outros seres humanos, e ver que essas são questões de direitos humanos que todos vocês estão organizando. Acho que o outro aspecto disso é que, em termos daquilo que você está vendo das ações propostas, você ampliou o escopo dessa vez. Não é apenas sobre o lado do trabalho - o que você pode controlar, mas você não pode controlar tudo -, mas sobre outras oportunidades que as pessoas têm de resistir ao complexo industrial prisional de várias maneiras. 16 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 Eu queria lhe dar uma oportunidade de falar um pouco sobre a estratégia por trás disso, além de falar sobre algumas dessas demandas e oportunidades para as pessoas resistirem. JLS: Bem, o motivo. Quando conversamos pela primeira vez com vários prisioneiros em vários locais diferentes, eles estavam relatando e nós tentando decidir sobre essas demandas nacionais. Quando começamos, provavelmente tínhamos umas trinta e poucas demandas e estávamos tentando encurtar a lista. Tentávamos ser justos com algo que impactou a todos nós. Foi geral, mas definitivamente impactou a todos nós, e definitivamente as consideramos dentro dos direitos humanos. Esse é o tipo de linha de onde viemos. Uma das coisas que notamos na última greve: muitas pessoas não acharam que tiveram a oportunidade de participar. Isso foi algo que notamos; Por exemplo, diziam que "nem todos nós trabalhamos". Alguns de nós, como eu, estávamos trancados durante esse período. Algumas pessoas estavam fora e trancadas nessas “unidades de bloqueio”4. Eles não trabalhavam, muitos presos não têm emprego, então como não há trabalho para eles, não há como participarem ou se sentirem parte de algo que está progredindo. Tivemos dois ou três caras em nossas chamadas que faziam parte de instalações de liberação de trabalho ou instalações de pré-lançamento. Eles queriam saber o que poderiam dizer, porque não há como desistirem de suas posições para uma greve, mas gostariam de participar. Outra coisa que notamos desde 9 de setembro [de 2016] - e notamos durante o dia 19 de agosto [de 2017] – é que as prisões aprenderam a posicionar os prisioneiros uns contra os outros. Eu acho que no Alabama, eles trouxeram um monte de trabalho para liberar pessoas, trabalhar em empregos, cozinhas, limpeza e fazer os trabalhos que os [grevistas] se recusaram a fazer nos complexos em uma ou duas das prisões no Alabama. A mesma coisa aconteceu na Geórgia; notamos que isso aconteceu na Geórgia em uma ou duas das prisões naquele local. Na Carolina do Sul notamos isso. Agora, o que eles fizeram, mais recentemente notamos, é que essas unidades [privilegiadas], sobre as quais falamos anteriormente, Do original “lockdown units”, tratam-se de prisões de segurança máxima ou instalações autônomas nas quais os prisioneiros ficam nas celas 23 horas por dia. 4 17 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 agora estão posicionadas nos pátios, e em todo o país começamos a vê-las, e elas são posicionadas como a força de trabalho. Toco nisso por causa do que acontece quando uma prisão é fechada, mas você ainda tem trabalhadores. Como esses caras [no bloqueio] ainda podem participar? É por isso que você vê coisas como o boicote, porque o boicote está no ponto para essas condições. É o ponto para os caras nesses campos que devem trabalhar para manter suas posições nessas instalações de trabalho ou de pré-lançamento, mas que querem mostrar solidariedade com o resto dos prisioneiros que estão nos estaleiros mais hardcore. Uma das coisas que decidimos fazer foi boicotar, e acho que o irmão Bennu [Hannibal Ra-Sun do Free Alabama Movement5] inventou isso ali mesmo através da Redistribute the Pain. Nós repassamos isso de novo e de novo, e isso pareceu se alinhar e, especificamente, ainda visava o sistema, e ainda enfraquece a economia, porque no final do dia nós temos que descobrir como solapar a economia do sistema também. Essa foi uma das razões pelas quais criamos isso. Sobre os protestos, alguns dos prisioneiros queriam uma ação mais agressiva. Em algumas das prisões, vimos ações mais agressivas recentemente em relação a eles. Queriam que isso estivesse em cima da mesa, além de greves de trabalho. Mais uma vez nem todo mundo está trabalhando e eles queriam poder participar. Eu acredito que nós vamos ver protestos em uma ou duas das prisões, talvez três ou quatro. Vamos ver, mas podemos verificar pelo menos duas prisões agora onde querem protestar. E então tivemos a greve de fome, e a greve de fome foi feita por caras que estavam na posição que eu já estive antes, no bloqueio. Eles podem participar recusando-se a comer naquele dia em particular e mostrar sua solidariedade e resistência. Porque neste estágio particular entre os dias 21 de agosto e setembro, trata-se de mostrar solidariedade uns com os outros. É um lembrete também. É definitivamente um lembrete de nossas posições como prisioneiros porque, em algum momento no ano passado, nós definitivamente ficamos fora de sincronia em todo o país. É uma tendência nacional no momento, estamos fora de sincronia com quem devemos transformar e com nossas posições enquanto prisioneiros. Este é um grande problema para mim, pessoalmente, e é definitivamente 5 Movimento fundado em 2013 contra as degradantes prisões do Alabama. 18 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 um grande problema para os membros da Jailhouse Lawyers Speak, já falamos disso várias vezes. Temos que colocar essas pessoas de volta na fila, lembrando o que está acontecendo, porque essas pessoas realmente nos fazem voltar uns contra os outros de alguma forma que não é realmente útil a nós, e não é útil para o movimento, nem útil para onde queremos estar. Quero dizer, é incrível os relatórios que estamos recebendo sobre o Redistribute the Pain. É fenomenal. E é triste, porque sei que não poderemos mostrá-lo. Muitas pessoas não conseguirão ver isso em comparação com as paralisações do trabalho, mas é simplesmente incrível. Todos estão começando a entender, e eu suspeito e espero que se torne uma tradição mais forte em um período de tempo, para começar a fazer alguns sacrifícios econômicos no sistema prisional. J: Você tocou em construir solidariedade e organizar prisioneiros como uma classe. Obviamente, a greve começa no dia 21 de agosto, data marcante no mês de agosto e termina na época da Revolta Ática. O que acontece muitas vezes é que você une as pessoas e mostra a elas seu poder de realmente fazer algo contra esses sistemas que todos sentimos em momentos diferentes e, obviamente, para prisioneiros, é uma coisa constante. Então fale um pouco sobre o processo de reunir diferentes grupos e o que você está vendo nesse nível e a importância disso. JLS: Queríamos realmente dar tempo suficiente para fazer a greve nacional para o próximo ano, esse era o plano. Mas depois do incidente na Carolina do Sul na Instituição Correcional do Condado de Lee, havia tanta confusão entre os prisioneiros sobre o que fazer, tanto conflito. Eu acho que as coisas alcançaram o que gosto de chamar de ápice no que se refere à violência. O que as pessoas não reconhecem lá fora é que para nós em todo o país, particularmente os prisioneiros que estão ativos, isso foi como um momento de levante. Nós meio que reconhecemos, “cara, o que diabos está acontecendo?” E você sentiu as tensões em torno da nação com prisioneiros e sentiu as organizações de rua, sentiu as tensões com elas. 19 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 Sabíamos que algo precisava ser feito, e algumas ligações foram feitas entre nós e começamos a conversar. Obviamente, a JLS já cruzava as linhas nacionais com outras organizações, pessoas que já estavam construindo redes de solidariedade dentro delas, e fomos nós que nos unimos sobre o que provavelmente precisava ser feito. Mas desde a ligação, [em que pedimos mais diretamente que as pessoas se empenhassem] para juntar mais a classe da prisão, para fazê-la se concentrar em algo melhor. O mesmo vale para o apoio externo, isso faz com que os prisioneiros também entendam que há pessoas por aí que esperam que retornemos para entrar na mesma página. É por isso que temos que saudar os que estão lá agora, que realmente estão de pé por nós e realmente nos aplaudindo, e realmente nos dizendo “nós temos vocês de volta.” Porque isso permite que os prisioneiros saibam, isso é maior do que eu, isso é maior que minha pequena organização, isso aqui é um movimento. Uma das coisas que temos notado em vários estados diferentes, neste momento posso dizer que em pelo menos 8 estados diferentes, vimos tréguas feitas por membros de gangues, organizações de rua como eu gosto de chamá-los. Vimos muitas tréguas, elas foram feitas através das linhas. Obviamente, ainda temos alguns palpites aqui ou ali, mas quanto mais chega às prisões sobre 21 de agosto, mais prisioneiros “chegam à mesa”, mais prisioneiros estão conversando. Também estou empolgado com o fato de termos mais prisioneiros que geralmente estão a frente nas ruas, e geralmente são os que estão falando sobre a união nas prisões. São os que mais tentam trazer os prisioneiros à causa. Eu os vejo trabalhando muito mais duro, tentando levar essas organizações de rua para à causa para conversar e acabar com suas diferenças. Claro, não esperamos que isso acabe com toda a violência nas prisões. Prisões são um barril de qualquer maneira, da maneira como está estruturado haverá violência. Mas no nível que vimos nos últimos dois anos, isso é o que precisamos descobrir, como diminuir, porque começamos a nos concentrar no ângulo errado e na área errada, como afirmei anteriormente. Nós também vimos os funcionários da prisão, eles estão muito cientes desses projetos de unificação que estão acontecendo em todo o país agora. Na verdade, sinto que estão ficando muito nervosos em ver esses tipos de projetos acontecendo. Você vê a trégua lá fora [no Missouri], você vê como a trégua, [os funcionários da prisão] eles não se preocupam com o fato de que ... com o que os prisioneiros estavam 20 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 reclamando, sobre [os funcionários da prisão] estarem tão errados, ou com a destruição que os prisioneiros causaram. O que chamou a atenção deles foi a unificação desses prisioneiros. E, particularmente, essas organizações de rua, porque sabem que esses organizadores de rua são em grande parte formados por jovens e eles têm muita energia. E a energia às vezes pode se tornar muito destrutiva. E eu sempre digo, como prisioneiro, que essa energia é ok. Ei, eu tô pra destruição! Foi isso que o camarada George Jackson disse: "Eu tô pra destruição", enquanto estivermos destruindo o sistema não estamos destruindo uns aos outros. Muito do foco da JLS está em promover tréguas entre essas organizações de rua dentro das prisões. Por causa da taxa que elas cresceram dentro das prisões, isso é algo novo também, que vem se desenvolvendo nos últimos cinco a seis anos. Elas estiveram lá, mas não no ritmo que estão agora. Então, nosso foco foi juntá-las e tentar torná-las mais instruídas, elas precisam ser mais instruídas para esse movimento de resistência nas prisões, mais educadas sobre por que fazemos o que fazemos e por que isso é importante. Você pode ter suas diferenças, mas é importante nos unirmos quando chegar a hora de nos unirmos e é importante não nos matarmos. Esta foi uma grande preocupação durante o tempo do camarada George Jackson e, nesse tom, foi uma grande preocupação durante o tempo em que ele estava lidando com a Nação Ariana e outros grupos racistas, e ele estava tentando dizer a eles: escutem, nós não somos inimigos, me acompanham? O inimigo é o porco, não somos inimigos um do outro, ok? Estamos lutando contra o sistema. De qualquer forma, ele estava lidando com o mesmo elemento, o mesmo problema com o qual estamos lidando agora em um nível tão grande. J: Há algo que você queira dizer a outros prisioneiros que talvez ainda não tenham recebido a ligação? JLS: Bem, uma das coisas que eu sei é que temos muitas táticas repressivas que vêm acontecendo em todo o país. E as pessoas realmente não veem isso, mas nós sentimos isso aqui. Eu perdi alguns companheiros que foram removidos do lugar, saíram do esconderijo e não temos mais acesso a eles. Eles foram, por falta de uma palavra melhor, apagados no momento. E assim, nós sabemos o que está acontecendo, vemos, vemos isso 21 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 acontecendo. Sabemos que existem forças que são um pouco mais pesadas do que o Estado que também estão trabalhando contra nós, [mais pesadas do que] apenas as normais com as quais lidamos. Estamos lidando com esse tipo de problema. Também notamos que as táticas de medo estão funcionando em algumas áreas. Mas queremos que as pessoas, em especial as pessoas que se preocupam com seus entes queridos, não os desencorajem de participar, porque parte do desânimo pode vir também da família e dos amigos. Você sabe, como "e se eles o levarem para longe" ou "e se você estiver bloqueado e não pudermos mais falar com você ou entrar em contato com você". Diga-lhes para não desestimular os prisioneiros. Elas têm que entender que nós é que estamos vivendo isso aqui, e não elas. E a razão pela qual eu digo isso para a família e amigos de alguns prisioneiros é porque descobrimos que as pessoas da prisão estão usando familiares e amigos contra os prisioneiros, e elas estão influenciando-os também. E é triste, mas estamos vendo isso, essa é outra grande estratégia que estão usando agora. J: Você tem alguma reflexão sobre todos os exemplos de solidariedade internacional que você viu relacionados a essa greve, mas também relacionados à greve de 2016 e aos movimentos de prisioneiros dos EUA em geral? JLS: Nosso movimento não é apenas um movimento nacional. Estamos testemunhando que ele cresce além das fronteiras dos EUA. A solidariedade internacional vem crescendo há alguns anos, como era óbvio em 2016. Este ano estamos testemunhando uma solidariedade similar internacionalmente. Nosso objetivo no ano passado foi intencionalmente colocar em prática ações que deveriam nos impulsionar para as configurações internacionais. Millions For Prisoners, a Marcha dos Direitos Humanos [um grupo de direitos dos prisioneiros que se transformou em uma coalizão] iniciou este processo com organizadores de apoio externos, como a Krystal Rountree, participando de fóruns internacionais de Direitos Humanos. Esse impulso ainda é muito ativo, pois elaboramos estratégias para que a escravidão nas prisões fosse levada para Genebra. Também vale a pena notar que agora temos um patrocinador externo que faz parte do [Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial]. Sabíamos que esse seria um longo processo depois da Marcha dos Millions For Prisoners, mas nossa resolução continua a mesma. Nossas lutas nos EUA devem se 22 Criminologia periférica “Eu tô só pela destruição!” – Tradução de entrevista com organizador da greve prisional nos EUA, representante da Jailhouse Lawyers Speak DOI: 10.23899/9786589284369.1 tornar parte das conversas internacionais. E julgamentos sérios devem ser feitos por esses mesmos organismos internacionais. Referências ARAÚJO PESSOA, Sara de. Estrutura social e trabalho prisional: sobre as funções (latentes) do trabalho prisional - um estudo de caso na penitenciária sul de Criciúma - SC. 2019. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade do Extremo Sul Catarinense, Criciúma -SC, 2019. ARAÚJO PESSOA, Sara de; ARAÚJO CHERSONI, Felipe de. O novo caráter do mais valor: cárcere-fábrica e a superexploração do trabalhador encarcerado. In: SANTOS, Vinícius Oliveira. A nova (e a antiga) realidade do mais-valor: diálogos sobre trabalho e capitalismo no século XXI. 1. ed. Foz do Iguaçu: Editora CLAEC, 2022. DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2018. DEPEN (Brasil). Manual: mão de obra prisional. Ministério Justiça e Segurança Pública, Brasília, 2021. Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-br/assuntos/politicas-penitenciarias/politicanacional-de-trabalho-prisional/politica-nacional-detrabalho/cartilha_trabalho_prisional_revisao_gab.pdf>. Acesso em: 22 out. 2022. WARE, Jared. ‘I’m for disruption’: interview with prison strike organizer from jailhouse lawyers speak. Shadowproof, [s. l.], 2018. Disponível em: https://shadowproof.com/2018/08/16/im-for-disruptioninterview-with-prison-strike-organizer-from-jailhouse-lawyers-speak/. Acesso em: 22 out. 2022. 23 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as Gabriel Dias* Meire Mathias** Nota preliminar Estas são entrevistas realizadas com pixadores/as e grafiteiros/as da região da cidade de Maringá, interior do Paraná, em 2019. Elas são fruto de uma pesquisa efetuada no âmbito do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Do discurso dos entrevistados/as, podemos reter parte da concepção política destes interventores/as, que vai de encontro com o sistema e as leis que o regem, com a desigualdade social, e até mesmo com o machismo ainda presente nestes movimentos culturais. A publicação das entrevistas visa, assim, contribuir com os estudos no campo destas intervenções urbanas em específico, reiterando a presença de elementos políticos em suas constituições, sem os quais consideramos inviável prosseguir uma investigação sobre a pixação e o graffiti. Ademais, optamos por grafar o termo pixação com “X” e não com “CH”, como consta nos dicionários, pretendendo nos referir a uma dinâmica estética específica, nascida na cidade de São Paulo e que, posteriormente, se espalhou por grande parte do Brasil. Essa dinâmica é marcada, inicialmente, por uma estética composta por letras com formas pontiagudas e monocromáticas, que criam uma espécie de código, muitas vezes indecifrável. Entrevista A Como prefere ser identificado/a: “TOX” Idade: 31 anos Sexo: Masculino Nível Escolar: Ensino Superior Incompleto Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). E-mail: gbds__@hotmail.com ** Docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PGC-UEM). E-mail: meire_mathias@uol.com.br * 24 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 Há quanto tempo se entende enquanto pixador/a e/ou grafiteiro/a: 17 anos. (1) Qual a motivação que o/a leva a grafitar ou pixar ilegalmente? TOX: Eu acho que é o seguinte... Eu acho não, comigo não tem achismo não, o bagulho é na certeza, né? A certeza é que é o seguinte. O movimento hip hop... É um elemento do movimento hip hop que é totalmente transgressor e eu acredito que cultura nenhuma precisa de autorização de porra nenhuma pra existir, tá ligado?! E é isso que me motiva a fazer a parada, justamente a transgressão mesmo, é o ato de tá ali sem ser convidado, né mano? Acho que isso é muito louco, já ir entrando assim... E querendo ou não de forma pacífica, né? É uma luta visual, tá ligado?! Então é uma luta pacífica se for refletir mesmo. Eu acredito nisso. Eu acho que é uma abertura aí pra dar mais flexibilidade à sociedade. Que existe várias formas de manifestações aí que não precisam de plataformas, digamos assim, financiadas ou, digamos assim, que geram uma certa... Um status de visualização na sociedade. Tipo, existem várias plataformas de cultura que não precisam disso, né mano? E a pixação é uma delas. Na pixação o cara não precisa ganhar dinheiro pra pixar e não precisa também pedir pra fazer o bagulho. O cara leva no peito a parada e já era. É a transgressão total. Acho que é isso que me leva, o que me motiva mesmo. É ser um elemento da cultura hip hop e levar isso aí vestindo a essência né, a verdadeira camisa que vem lá de trás, que é a luta, né mano? O protesto. Acho que só de você tá chegando sem ser convidado, entrar num bagulho sem ser convidado, você já tá protestando algo, você quer estar ali e já era mano. É meio egoísta, né? Confesso, mano. Porque não é bonito, minha mãe mesmo não gosta, tá ligado?! (risos). Mas é um protesto tio. É isso, bagulho é transgressor mesmo. (2) Você entende que de alguma maneira o movimento do graffiti e da pixação intervêm na sociedade? Se sim, que maneiras são essas? Se não, por que você põe suas manifestações em público? TOX: A pixação nada mais é do que o estilo de graffiti brasileiro, né mano? Autêntico, nacional, que é o tag reto, né? A pixação, autêntico do Brasil. Eu acho a pixação a mais sincera. Pixação é pixação, né mano? Sempre vai ser feio, sempre vai ser em cima do prédio, grudado na janela, de baixo da ponte, no esgoto, na puta que pariu... A pixação é sujeira, né mano? Então eu acredito que dentro da pixação a essência é mais verdadeira mesmo. Porque não tem como você influenciar a sociedade positivamente, porque você tá fazendo um vandalismo. É um bagulho que, digamos assim, igual eu falei, é bem mais egocêntrico, é bem mais pessoal do cara pixar o bagulho. O bagulho é 25 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 desagradável. Eu acho que isso pode influenciar positivamente dentro de uma quebrada, né mano? As vezes um moleque não tem visão, não tem nada e fala: “Ah vou querer ser enxergado como pixador”. E aí muitas vezes ele não quer ir pro tráfico. Ele quer pixar o bagulho. Então já é um fator positivo dentro do negativo, porque a pichação sempre vai ser criminal, né mano? Felizmente é um crime visual e tal. Agora o graffiti... o graffiti já tem dois lados da moeda né? O graffiti tem o lado rua e tem o lado, digamos assim, gourmet, né mano? Que é o lado, sem desmerecer a classe, mas é o lado mais vendido do bagulho. Então eu acredito que o graffiti ele agrada esteticamente, né mano? O “desenhinho” tem esse fator, né tio? De agradar. “Ai, olha que lindo aquele desenho”, entendeu? Dentro da pixação já não. Você não vê um cara chegar e falar: “Ah, pixa meu muro. Acho maior louco essas letra pontuda aí”. Ninguém chega e fala isso (risos). Só que se for parar pra pensar mano, a pixação é a essência. O graffiti é um bagulho que é meio de boy, né mano? De boy que eu digo assim... Não que o cara tenha a vida ganha, mas o cara tem que correr atrás pra comprar as tintas dele, né mano? Gastar mais tinta. E muitas vezes só é reconhecido pela burguesia os caras que fazem os desenhos coloridos. E existem várias outras plataformas de graffiti, né mano? Tipo, eu mesmo curto letras. Nem curto ficar fazendo desenho não. Curto fazer letra e já não tenho a mesma visibilidade, mas tem o mesmo impacto. Acho que o impacto é a ação, né mano? É a transgressão... Acho que nunca vai fugir disso aí mano, tanto dentro do graffiti quanto no pixo. O fator positivo ou negativo dentro da sociedade depende da própria sociedade. É o reflexo da sociedade, entendeu? Se a sociedade vê um bagulho bonito, da hora, que é “mó” cultura, mas ela tem uma visão ruim, uma visão concretada, digamos assim, um muro de ignorância, ela nunca vai aceitar aquilo ali. É aquele velho ditado: “É bonito, mas não na minha casa”, tá ligado?! Então eu acho que o reflexo mesmo vai do berço do cara. Tem cara que pode enxergar mesmo como uma cultura e querer buscar o que há de positivo dentro daquele movimento. E tem cara que simplesmente respeita e tal, mas como eu disse antes, não interage. É algo que tá ali, mas não tem valor nenhum na vida do cara. Eu digo assim que o graffiti nunca vai tirar um cara do craque, né mano? Você pode escrever lá: “Não fume craque” e fazer um graffiti ou um pixo em cima de um prédio, e infelizmente o “craqueiro” pode até ver aquilo ali, mas não vai influenciar em porra nenhuma. Ele vai passar todo dia ali fumando craque. Só se ele mesmo quiser sair do craque e ver o bagulho ali e falar: “Hoje eu saio dessa porra”, tá ligado?! Então é isso aí. Os dois lados da moeda, né mano? O lado ação e o lado reação né? Acho que a resposta da reação não é só do pixador, né? É essa fita social, né mano? Se o cara tá aberto pra cultura ele vai buscar o que há de melhor em qualquer tipo de cultura. Agora se o cara tem uma visão enlatada, né mano? Concretada, tipo um murão de ignorância, o cara vai bater palma ali e vai continuar a rotina robótica dele. Digamos assim, saltando mendigo na calçada, né mano? Fingindo que não tá 26 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 vendo. Então é um artifício, né? Maquiagem. Pra mim é essa minha visão mesmo, é maquiagem e a resposta vem de quem tá ali. O movimento mesmo em si não vai mudar a vida de ninguém, só se o cara quiser mesmo mudar. Eu penso isso. (3) Como grafiteiro/a e/ou pixador/a, como interventor artístico, qual o papel que você acredita desempenhar na sociedade? Se não, por que não teria um papel a desempenhar? TOX: Bom mano, isso aí é muito louco. Porque dentro do movimento artístico, se eu dependesse da arte pra viver eu tava morto de fome, tá ligado?! Essa é grande realidade. O bagulho é cabreiro. Tenho 31 anos, sou microempresário, trabalho com confecção no ramo de comércio e logicamente que a arte é utilizada nesse trabalho. Mas artisticamente, e ser reconhecido como artista e viver da arte eu acho um pouco difícil. Isso aí é pra poucos. Eu acho que é mais uma jogada de marketing do que de talento hoje em dia, tá ligado?! E eu vejo que o meu papel na sociedade é passar, digamos assim, quem sou eu, né mano? Mas é poder compartilhar um pouco do que eu aprendi, né mano? A minha experiência de vida, pra de repente diminuir os erros do futuro da vida de alguém que tá começando a pixar aí, ou começando a grafitar, né mano? Pelo menos mostrar pro cara que tipo, tem seus contras, né mano? Tem seu lado ruim. Então acho que meu papel social, digamos assim, como artista, né mano? É de instruir. Mas aí volta o que eu disse antes, né mano? Eu aprendi o bagulho na raça. Tive que viver o bagulho. Não adianta eu falar um bagulho pro cara se o cara achar que aquilo tudo é baboseira e que ele tem que pá... Ele tem que viver o bagulho! Eu acho complicado, tá ligado?! Na minha visão. To dando minha visão pessoal pra você, pra depois você analisar isso aí. Mas como eu disse antes, o fator resposta do cara... Tipo, eu faço o que eu vivi. E a pessoa tem a opção de acreditar naquilo. Levar a opção dela. Querer viver o que ela quiser viver, né mano? Então é um barato muito louco. Acredito que meu papel na sociedade perante, no caso, essa pergunta sua, de visão artística, acho que minha maior arte, minha maior obra artística que eu consegui até hoje realizar é estar vivo depois de tanta loucura (risos). (4) Na sua opinião, o que é graffiti e/ou pixação? TOX: Tá gravando já? Essa aí é mil grau. O graffiti e a pixação, mano, é uma plataforma de manifesto total, de expressão. É uma carência que o cara tem. Não adianta o cara falar que o bagulho não é. O bagulho é uma carência, é um ego. É um bagulho que puxa o cara, tá ligado?! Motiva o cara. E agora qual é o tamanho do ego do cara é o que diz. 27 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 Tem cara que rasga o documento por causa do graffiti. Tem cara que já não. Tem cara que já é mais cauteloso, tá ligado?! Então vai de cada um. Vai do tamanho do ego do cara, né mano? Aí o cara tem que ver o que ele põe em jogo no bagulho. Mas eu acredito que fora o ego é muito amor, né mano?! É dois polos, né mano? O ego, o ódio de você estar ali presente na fúria. E o amor de você falar: “Pô, curto pra caralho o bagulho, mas me prejudica pra porra. E agora, como é que faz? Vou parar? Não paro? Não consigo parar! Meu Deus, vou pra clínica!” (risos). É tipo uma droga. O bagulho vai muito além. E é isso. O cara meter a cara no bagulho é pra poucos, mano. É pra poucos. É o néctar do sentimento. É o movimento hip hop. É um elemento, tá ligado?! É a cultura hip hop. É a resistência. É um bagulho que tá ali. Não pediu pra entrar. Já tá ali, sem pedir pra entrar. E eu acredito nisso pra caralho, que é muito pessoal, né mano? Só quem faz mesmo que vai saber de qual é. A sociedade nunca vai entender, né mano? Muito menos o cara que ganha tinta pra pintar bagulho de playboy. Só pinta dentro de casa, quadro, indoor... Mano, isso daí não é graffiti. Começa por aí. Isso aí é comércio, mano, comércio da arte. Graffiti não ganha dinheiro, graffiti é tiro, porrada e bomba. Pra você estar ali, você tem que gostar muito da parada, de forma positiva ou negativa. Você tem que estar ali pela parada. Você vai estar ali ou por ego ou por amor. Um dos dois vai fazer você chegar naquele local. Sei lá, no meio de uma linha de trem, três horas da manhã no meio do mato. Só você e os guardas, né mano?! Ou em cima de um prédio. Uma pá de morador dormindo. Você não saber se é um prédio de um promotor, mas você tá ali, né mano? Você tá ali. Agora o que te levou a estar ali mano? Você consegue responder pra mim? Eu não sei. Até hoje eu não sei. É só vivendo. O cara tem que viver. Não tem ideia. É o movimento hip hop, mano. O bagulho é louco. Tem que estar dentro de verdade pra saber de qual é. É isso. (5) Gostaria de mencionar algo que não foi perguntado? TOX: Gostaria. Gostaria de mencionar algo que não foi perguntando que é muito importante, mano. Muitas vezes o cara generaliza a pessoa. Tipo: “Ah, esse aí é pixador. Esse daí é grafiteiro”. As vezes o cara quer medir o potencial do cara só por isso aí, mano. E a pixação e o graffiti é um esporte, tá ligado?! É um bagulho que o cara faz por lazer, mano, por bem estar. Então de forma nenhuma... Isso aí serve pra quem tá de fora e pra quem tá de dentro... A partir do momento que você começa uma inimizade por causa dessa porra aí, tá tudo errado. Você já não tá entendendo a verdadeira essência do movimento hip hop. A luta é outra, tá ligado?! E tem que ficar muito esperto, ficar muito esperto mesmo com o sistema, mano. Porque ele faz de tudo pra te foder. E não acha que ele não tá vendo não... O bagulho é embaçado. O capitalismo, o sistema, é isso 28 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 aí que é antiarte. Esse daí é o verdadeiro antiarte, tá ligado?! É o que quer te englobar, te enlatar, sei lá o que ele quer fazer com você... Menos permitir que você faça aquilo que você realmente quer que você faça, que é ser livre, né mano? Então acredito nisso aí. Que a gente tem que ser livre pra fazer o bagulho e a nossa luta é contra outros caras. Nóis tem que parar de lutar entre nóis, tá ligado?! Deixar o ego pra trás aí e fazer a verdadeira luta que é representar nas ruas aí, independente de opinião alheia, tá ligado?! Nóis por nóis, igual os caras falam. Entrevista B Como prefere ser identificado/a: “MINACOT” Idade: 21 anos Sexo: Feminino Nível Escolar: Ensino Médio Completo Há quanto tempo se entende enquanto pixador/a e/ou grafiteiro/a: 4 anos. (1) Qual a motivação que o/a leva a grafitar ou pixar ilegalmente? MINACOT: É uma forma de protesto. É um ato de mostrar pra sociedade que tem pessoas insatisfeitas com o que está acontecendo ao nosso redor. Seja na política, na desigualdade social. É o grito dos excluídos. Um modo da periferia chamar a atenção e começarem olhar mais pra nóis. (2) Você entende que de alguma maneira o movimento do graffiti e da pixação intervêm na sociedade? Se sim, que maneiras são essas? Se não, por que você põe suas manifestações em público? MINACOT: Sim, acredito e eu gosto até então. Porque a burguesia, o governo, se incomodam com isso. Eles se incomodam com tinta na parede, mas não se incomodam com o irmão que tá na rua passando fome, que tá perdido nas drogas, no tráfico. Pra eles somos marginais, criminosos... E eu odeio a polícia. A polícia é a que mais mata no Brasil. Mata preto, favelado, trabalhador, inocente e ninguém se incomoda com isso. Por que a tinta incomoda? 29 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 (3) Como grafiteiro/a e/ou pixador/a, como interventor artístico, qual o papel que você acredita desempenhar na sociedade? Se não, por que não teria um papel a desempenhar? MINACOT: Meu papel na sociedade... Olha, eu acho que incomodar. Mas antes de tudo é mostrar que as mulheres podem também. Que elas podem pixar, que elas podem ocupar e elas podem grafitar. Elas podem e devem fazer tudo o que o homem faz também. Mostrar que elas têm a capacidade. Não só na pixação, em geral... E claro, incomodar os burguês, o governo. Alterar a estética burguesa, porque a sociedade é suja, cruel, machista... Eles querem mostrar que é tudo perfeito, tá ligado?! Mas não tem... Que que é perfeito? Não tem nada perfeito. Meu povo tá morrendo todo dia, minhas mulheres morrem todo dia pelas mãos dos homens e ninguém faz nada. Ninguém se comove. Acha que isso é uma coisa super normal. As tinta na parede também é uma coisa normal... (4) Na sua opinião, o que é graffiti e/ou pixação? MINACOT: A pixação pra mim é o ato de protestar. É transgressão mesmo, tá ligado?! Total. É pra incomodar. Não quero que deixe você satisfeito, eu quero te incomodar. Eu quero deixar você insatisfeita com isso. Porque eu tô insatisfeita com a sociedade hoje em dia. Então eu quero que você também esteja insatisfeito. É... Isso pra mim é a pixação, entendeu? É como eu disse no começo, mostrar que existe sujeira escondida no tapete. Voz dos oprimidos, entendeu? Favelado também tem direito, tá ligado?! Favelado também tem direito de chegar na praça, tá ligado?! Escutar um som, beber um gole, tá ligado?! E tipo assim, muitos burguês chega nas praças, ocupa a praça, fazem vários fuzuê, tá ligado?! E a polícia não chega atirando, não mata ninguém. Eles não mata burguês. Eles não mata playboy. Eles só mata favelado. (5) Gostaria de mencionar algo que não foi perguntado? MINACOT: Eu gostaria sim... Eu gostaria de mencionar que as mulheres têm que ocupar mais os espaços. As mulheres têm que ter mais voz. Eu não falo pras mulheres sair pra pixar. Eu não quero que as mulheres fazem isso. Não... Pra falar a verdade eu gostaria sim, gostaria de ver muitas mulheres na pixação. É o que falta, tá ligado?! Tem muito machismo até dentro da própria pixação que é uma coisa que luta pra não ter, tá ligado?! Mas eu acredito que, pra mim, eu gostaria que as mulheres ocupassem mais. Elas têm que estudar mesmo, tá ligado?! Têm que trabalhar. Elas têm que correr atrás do que é 30 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 delas, porque, mano, as mulheres têm que mostrar que elas são capazes de tudo. Cara... O mundo gira em torno, querendo ou não, de uma buceta. Não sei se eu posso usar esse linguajar, mas é isso, tá ligado?! A gente veio de uma mulher. Então a gente tem que respeitar as mulheres e isso não existe. E eu gostaria só de mencionar que vocês têm que respeitar mais as mulheres, tá ligado?! Não olhar pra gente como uma forma de objeto. A gente não é o seu objeto. A gente é ser humano também. Assim como o homem tem o direito de chegar, ir, vir... A gente também tem direito. Por que que só nóis morre? Entrevista C Como prefere ser identificado/a: “SPEC” Idade: 21 anos Sexo: Masculino Nível Escolar: Ensino Médio Completo Há quanto tempo se entende enquanto pixador/a e/ou grafiteiro/a: 5 anos. (1) Qual a motivação que o/a leva a grafitar ou pixar ilegalmente? SPEC: A pixação já é ilegal, né mano? E um dos principal fator pra nóis tá pixando, mano, é a sociedade, o governo. O bagulho já tá tudo errado, né mano? Tipo assim, fere nóis de várias formas, são várias formas de atingir nóis. E como nóis é um refém do governo mesmo, tá ligado?! A única forma que nóis pode tentar escapar ali, mano, é a pixação... Tipo assim, quem apoia essas ideias é uma parte da minoria, né mano? A molecada que tá vivendo o bagulho na rua. E creio que assim, a pixação é um negócio que faz a pessoa se identificar, né mano? A pessoa que tá mais envolvida ali, já sabe qual é das ideia... E tipo assim, também é uma forma de protesto da nossa parte, mas envolvido também pelo certo. Porque se for ver vários caras da minoria, igual nóis pode viver também, pode se envolver com ideia de tráfico, pode tá roubando, fazendo um bagulho que vai ferir a sociedade de outra forma, né mano? Tipo, as vezes a raiva do cara que ele sente pelo Estado, por uma falta de uma parada que ele precisa ali, aí essa é a nossa parte, né mano? E já que é ilegalmente, é um crime também, tá ligado?! Mas é nossa forma de expressão, na pixação, de poder deixar uma marca ali, pra poder chocar alguém de alguma forma, tá ligado?! Alguém que vê o bagulho. E não é uma forma certa também porque alguém vai ser atingido ali, né mano? Da mesma forma que a gente tá sendo atingido por alguém que tá na parte de cima... Por isso é uma forma de crime, né mano? 31 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 O bagulho é identificado como um crime também, porque da mesma forma que a gente tá sendo atingido por alguém, nóis tá também sujando um bagulho de uma outra pessoa, o patrimônio público, um negócio que ali também já é do governo e pá. Mas é só uma forma mesmo de expressar, tá ligado?! (2) Você entende que de alguma maneira o movimento do graffiti e da pixação intervêm na sociedade? Se sim, que maneiras são essas? Se não, por que você põe suas manifestações em público? SPEC: Ah, a pixação, né mano? Que é o que nóis mais tá atuando. Tipo assim, já atuamos né? Porque hoje tamo até mais sossegado. Mas é o que mais interfere na sociedade, né mano? Por não ser um bagulho tão bonito, tão limpo, que todo mundo pode ver, gostar, querer tirar uma foto ali do lado, tá ligado?! A pixação, mano, é um bagulho que vai tá sempre ali sujando a parede e vai interferir nas pessoas porque já não é um bagulho bem feito. A pessoa já vai pensar algum mal da parada que vai tá escrita ali ou de nem entender o que tá escrito, tá ligado?! E muitas pessoas vão poder passar ali, não entender de qual é da mensagem, de qual é da brisa da pessoa que pode fazer, mas alguma galera, alguma minoria vai poder... Vai identificar alguma coisa, vai poder saber que... Tipo assim, vai meio que elogiar a molecada ali que tá fazendo aquilo ali. Dependendo se for algum lugar de boa, se não for na casa de alguém, que as vezes vai tá sujando o barato mesmo, e aí vai ver se vai entender de uma outra forma. Mas o que eu acho é que o bagulho interfere, mano. Tá interferindo até hoje, né? Porque se a gente tá podendo trocar essas ideia aqui, tá podendo debater sobre isso... E a pixação não começou hoje, mas a muito tempo atrás ainda. Várias galeras tão trazendo o bagulho até hoje. Vai mudando, a galera vai saindo, vai entrando uma novas, e isso sempre vai interferir nessa parte da sociedade. Nóis tá a par da sociedade, mas também tá respondendo sobre isso, discutindo as ideias. (3) Como grafiteiro/a e/ou pixador/a, como interventor artístico, qual o papel que você acredita desempenhar na sociedade? Se não, por que não teria um papel a desempenhar? SPEC: Qual o papel eu desempenho na sociedade? É de poder tentar deixar uma mensagem, né mano? Deixar de alguma forma ali um barato escrito ali, tá ligado?! É uma minoria... Nem que seja uma minoria de mil pessoas, dez pessoas, passar e tirar uma brisa, flagrar o bagulho, identificar alguma coisa, achar da hora, discutir com alguém que esteja junto ali... Isso aí já faz parte do bagulho, né mano?! E tipo assim, ainda mais 32 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 pelo corre ser cabreiro também, que a maioria das cenas que rolam, poucas vezes a pessoa pode fazer de dia, num pico cabreiro que ela pretende fazer, na maioria das vezes assim, né mano? A hora da cena é a noite, quando não tem ninguém. Aquela calada da noite, aquele breu. Sair sozinho ou com alguém pra fazer o barato, mano... E o bagulho é bem louco, né velho? E se for pra ver mesmo o bagulho não traz nada de bom, nem pra nóis, tá ligado?! Nem pra pessoa que é atingida ali, né? Só que tipo assim, é o intuito da pixação. É ser esse bagulho cabreiro que ninguém entende, né mano? Uma adrenalina ali muito louca que o cara quer mais, quer fazer um pico, quer catar outro, tá ligado?! E muitas pessoas nem acha da hora e você não tá nem aí. Você só quer fazer por sentimento próprio seu mesmo, tá ligado?! E é difícil discutir um barato desse com qualquer um, porque ninguém tem a mesma visão, assim, que a pessoa que gosta de fazer isso aí, sair sozinho tarde da noite, as vezes mocado do barraco, correndo vários riscos ali, né mano? De se foder, as vezes perder a própria vida no bagulho, pular num telhado de uma casa quebrada, levar um choque num fio aí, subir em alguma árvore numa escalada... E a pessoa fica sem entender também, né velho? Mas por a pixação ser assim, esse é o método da pixação, um negócio que todo mundo se pergunta o por que, né? Já que ninguém gosta, ninguém entende nada e o povo acha que ninguém deveria fazer isso, acha que tinha que ter outra forma da pessoa tirar uma brisa, curtir a vida de alguma outra forma. Só que é a minoria isso aí, né mano? Nossa cidade aqui é uma cidade boa, certinha. Mas vai ver numa quebrada, numa favela. O cara as vezes mora numa favela e pra sair da favela ali é raridade. O cara conhecer um pouco ali da cidade que propõem pra ele, mano. O governo não ajuda a molecada que tá na favela. As vezes um cara que é um pouco mais velho que ele tira a brisa de pixar, de pintar uns bagulho e é a ideia que chega mais próxima desse piá, que ele vai tá se identificando ali no bagulho, achar da hora, ver a galera fazendo, né mano? É igual jogar bola. O cara tá jogando bola sozinho ali e tem uma molecada jogando. Todo mundo vai se influenciando. No skate, tá ligado?! O cara anda de skate sozinho, tem alguém ali que vai puxando as energias e os cara já vão fluindo igual, mano. Algo que tá mais próximo, né mano? O que tiver mais próximo da pessoa é o que ela mais vai acolher, né mano? Ainda mais que a pixação já começou a muito tempo atrás, tá ligado?! A galera não tinha internet, não tinha nada. E hoje em dia você tira uma brisa rapidinho, vai lá longe, você viaja no celular, no PC, no que for aí, no video game... Mas a molecada que pixava nas antigas só tinha isso aí, né mano? Um lugar daquele jeito, as vezes nas antigas não tinha nem spray. Era só tinta. Jogava nas parede e é isso aí... (4) Na sua opinião, o que é graffiti e/ou pixação? 33 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 SPEC: Mano, na minha opinião o graffiti e a pixação... Tem um pouco da diferença dos dois, mas no meu caso aí é mais a pixação, tá ligado?! E pra mim, mano, ela significa só a rapa mesmo, só a sobra da molecada, tá ligado?! Aqueles que tão na rua sempre no rolê, fazendo alguma coisa... Os skatistas, os caras que mora na rua, mano. E vários maluco também que é formado... E várias pessoas que já se identificou de algum meio nas antiga quando era mais novo, podendo gostar do bagulho até hoje, ter um sentimento né mano? Mas também vários caras que já tem uma outra vivência mais pra frente. As vezes o cara sabe até fazer a pixação dele né mano? Entendo as ideias dos outros ali, sabendo usar o método dele ali, fazer num lugar mais desbaratinado. Mas mesmo assim mantendo a postura de cada um, né mano? Porque quando é um piá mais novo o cara não tá nem aí. O cara quer chocar mesmo as ideias, quer deixar o povo em choque, quer pixar um bagulho que tá lá em cima, deixar a sociedade em choque mesmo, mano. E na minha opinião a pixação é isso aí. Um negócio bem sujo mesmo. Até os caras que pixa as vezes nem sabe o que tá pixando, faz porque gosta mesmo do bagulho, quer deixar... Deixar todo mundo em choque mesmo, mano. Porque nóis vive na minoria. Ninguém tá nem aí pra nóis, tá ligado?! Ninguém tá aí pra ajudar no bagulho. Quem tá pra se ajudar é só você mesmo, mano. Mas a pixação se for ver, mano, faz parte da infância de muita molecada, do jovem, do piá novo que tá no corre pixando. Ou um cara velho de 40 anos, 50. Tem cara que pixa a muito tempo, só faz isso... Cadeirante, né mano?! Tem uns par de cara aí que os cara até ajuda o mano a pixar ainda, tá ligado?! Pra você ver, cada um é um tipo de gosto, né mano? Na minha opinião a pixação é isso aí mano. Tudo isso aí misturado. (5) Gostaria de mencionar algo que não foi perguntado? SPEC: Queria mencionar também que, tipo assim, nóis tá na rua, né mano? Pra fazer uma arte que fica na rua. Na arte da pixação o espaço é na rua, né mano? E quem cuida ali da rua, do patrimônio, tudo ali é a polícia, tá ligado?! E sempre que eles tão pra pegar nóis ali, eles tratam nóis igual uns criminosos. As vezes disposto até a dar um tiro pra matar alguma coisa, né mano? Porque do nada o que você tá fazendo ali é só jogando uma tinta num beiral, num bagulho assim, né mano? Tá que pode ser um crime. Todo mundo reconhecer como vandalismo e tal, não sei o quê, o povo fala... Mas pra nóis que vive o bagulho, a maioria das pessoas nem quer uma maldade tão grande assim. As vezes a pessoa tá ali pixando um beiral, uma sacada, a janela tá aberta... Bagulho pode tá propício pra pessoa roubar um bagulho ali, mas muitos caras só quer chegar ali e jogar a tinta mesmo. É a brisa da pessoa, tá ligado?! Porque o bagulho é bem exposto assim, bem feio mesmo, é uma forma de vandalismo. E o policial tá ali pra maltratar todo 34 Criminologia periférica A política das ruas: uma entrevista com pixadores/as e grafiteiros/as DOI: 10.23899/9786589284369.2 mundo, né mano? As vezes até matar a pessoa ali. Quer fazer um negócio assim e sempre resolver esses problemas assim. Desde a molecada nova falando sobre a pixação, tentar fazer o povo entender como que ela é atuada, como é que ela é feita, pro povo ter uma... Pra que ela seja mais aceita, né mano? Porque o povo quer manipular o bagulho, não quer mostrar ela. Quer deixar ela sempre de lado pra sempre a ferida aumentar, né mano? Não quer tentar amenizar as ideias, entender os pixadores, entender qual é a cultura que o pessoal vive. Assim... Muitas pessoas que fazem documentários, faz uma entrevista dessa com nóis que tá vivendo o bagulho, é uma pessoa que teve um início, tá ligado?! E tá aqui querendo mostrar pra alguém né mano?! Uma minoria tá querendo mostrar pra galera. Agora, não que o bagulho vai pra mídia, né mano?! Porque a pixação nunca vai pra uma mídia dessas... Mas um negócio de grande porte, poder fazer uma entrevista com uma galera, tentar mostrar mais a pixação, que tem vários caras que são artistas, que domina muito pixar, que faz um negócio diferenciado, as vezes poderia dar chance pra muita galera aí que ta aí na mínima, morando em qualquer beco de lugar. As vezes valorizar mais como arte também, né? O trabalho de vários caras que... Não qualquer uma, né mano? Porque tem várias pixações aí que o cara tá só pra rabiscar mesmo, jogar um bagulho fora ali e já era. Mas tem vários caras que vem das antiga que os caras respeitam mais o trampo, faz um bagulho mais da hora. E seria da hora se o povo, a sociedade ao todo ali, entendesse as ideias e tentasse ser um bagulho mais massa, mano. Porque a pixação vem bem das antiga e até hoje nunca foi aceita e não vai ser aceita desse jeito nunca, né mano? Ainda mais com esse governo que nóis tá tendo atualmente... E é isso aí o que eu penso, tá ligado?! Na minha opinião também, né? Cada um tem um ponto de vista. Mas é isso aí o que eu tenho pra falar, tá ligado?! 35 Criminologia periférica Foto: Gabriel Dias. 36 Criminologia periférica Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social DOI: 10.23899/9786589284369.3 Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social Felipe de Araújo Chersoni* Anayara Fantinel Pedroso** Thomaz Jefferson Carvalho*** “Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo Quem mata mais ladrão, ganha medalha de prêmio! O ser humano é descartável no Brasil Como um modes usado ou Bombril Cadeia? Guarda o que o sistema não quis Esconde o que a novela não diz” (Racionais Mc’s)1 Introdução Ao trabalhar com as Criminologias Críticas podemos observar que as periferias urbanas, o proletariado não urbano e os movimentos populares2 centralizam-se no cerne do controle social. A seletividade genocida estatal sobre os bairros periféricos é uma das grandes problemáticas a serem enfrentadas nas trincheiras contra o Mestrando em Direito pela Universidade (comunitária) do Extremo Sul Catarinense (PPGD-Unesc); Bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Comunitárias (PROSUCCapes); onde é pesquisador vinculado ao Grupo Pensamento Jurídico Crítico Latino Americano, na qual se subdivide no grupo de Criminologia Crítica Latino Americana - Andradiano (Unesc) (grupo que sedia minha atual pesquisa); Membro pesquisador Cnpq no núcleo de Estudos em Gênero e Raça - Negra (Unesc); Membro do eixo de Criminologia e Movimentos Sociais - Instituto de Pesquisa em Direito e Movimentos Sociais (IPDMS). E-mail: Felipe_chersoni@hotmail.com ** Mestranda em Direito e Justiça Social no Programa de Pós-Graduação em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande (PPGDJS/FURG). Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Pampa. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4931636737843628 E-mail: anayarafantinelpedroso@gmail.com *** Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá. E-mail: thomaz@carvalhoerodrigues.adv.br 1 Racionais MC’s. “Diário de um detento” Álbum: Sobrevivendo no inferno. 1997. Letra disponível em: <https://www.letras.mus.br/racionais-mcs/63369/>. Acesso em: 2022. 2 Acerca do controle social frente aos movimentos populares camponês verificar o que Felipe de Araújo Chersoni (2022) vem denominando de “Criminologia Campesina”. * 37 Criminologia periférica Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social DOI: 10.23899/9786589284369.3 punitivismo. Neste sentido, é importante ressaltar a presença de coletivos, movimentos populares e organizações sociais e culturais nesta luta pela (re)existência. Pensando a partir desta realidade, este ensaio (assim como os trabalhos a seguir) busca expor as principais problemáticas relacionadas à seletividade penal e à violência punitiva perpetrada pelo Estado nas mais diversas formas, mas, especialmente, através do seu braço armado nos territórios periféricos. E, a partir dessa exposição e da contribuição de diversos autores/autoras, igualmente preocupados com os rumos autoritários que o Brasil tem galgado, tornar possível a construção de um movimento coletivo capaz de unir as teorias criminológicas críticas das situações fáticas e práticas que guiam as atuações dos controles sociais. Buscamos, a partir deste ensaio introdutório, desarmar o autoritarismo que se faz presente e que (re)produz seus reflexos nos territórios periféricos. Desta forma, buscamos a compreensão de quem são as vítimas da violência punitiva, bem como, quem são os autores e os motivos que os levam à violação de direitos fundamentais. Essas análises envolvem diversos a(u)tores da resistência e é por isso que a divisão desta obra se dá em dois espaços: o primeiro marcado por entrevistas com pessoas de movimentos sociais, produtores culturais, dentre outros indivíduos engajados na luta praxiológica e, em um segundo momento, composto por artigos acadêmicos com pesquisadores/pesquisadoras também envolvidos na luta contra o autoritarismo. Ambos os capítulos se unem e se completam, de modo a fornecer subsídios iniciais que apontam os longos caminhos que seguiremos e as lutas que travaremos para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social Primeiramente, é importante ressaltar que o Estado estabelece o Direito Penal para que sejam atingidas determinadas finalidades. Essas finalidades irão variar conforme os diferentes teóricos e conforme os diferentes interesses dos Estados. Mas, sobretudo, serão consideradas enquanto mecanismos responsáveis por realizar o controle social (BATISTA, 1990). Ocorre que este controle recai apenas sobre determinados corpos, os periféricos. Conforme Zaffaroni et al. (2003, p. 41), “O Estado de Direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e opõe-se ao Estado de polícia, onde todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam”. E, diante do atual contexto, nos territórios favelizados, podemos observar a inexistência de um Estado de 38 Criminologia periférica Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social DOI: 10.23899/9786589284369.3 direito diante de uma sobreposição do Estado de polícia, responsável pelo controle seletivo. Isso significa que os direitos fundamentais desta população são deixados de lado, havendo única e exclusivamente a presença do estado policialesco, através das operações policiais que buscam gerir os pobres utilizando-se do belicismo da segurança pública, dos genocídios, dos massacres a conta-gotas ocasionados pela polícia que, na maioria das vezes, acabam sendo naturalizadas. E dentro desta lógica punitivista, o setor midiático possui um papel fundamental no que diz respeito à normalização deste Estado, de modo que pode ser considerado enquanto uma agência do sistema penal, sendo este um elemento basilar para a solidificação deste estado de polícia (MALAGUTI BATISTA, 2011). Isso porque através dos setores midiáticos são criados os pânicos morais, de modo que determinados grupos sociais passam a ser estigmatizados diante da representação de ameaça aos valores hegemônicos da sociedade na qual estão inseridos (COHEN, 2011). Ou seja, a (sobre)vivência e a produção cultural de determinados grupos sociais passam a ser considerados enquanto desviantes, sendo estigmatizados pelos responsáveis pela definição do desvio. E é exatamente no centro desta definição dos grupos desviantes que são edificadas as cruzadas morais, justapostas a movimentos repressivos. As cruzadas morais que atingem os objetivos para os quais são propostos, resultam na criação de novos cruzados, voltados para a imposição das normativas. Inicia-se então, a cruzada pela aplicação do disposto na legislação, institucionalizando-a. Ou seja, o objeto resultante de uma cruzada moral é a aplicação da força policial contra os grupos sociais estereotipados (BECKER, 2008). E é exatamente esta força que recorrentemente aplica a coerção física contra grupos periféricos estigmatizados. Essa aplicação da força, na maioria das vezes é injustificável, visto que, nem sempre são destinadas para a imposição de regras, sendo fruto da criminalização de grupos sociais por aqueles que deveriam proteger. Neste sentido, uma política de terror vem sendo aplicada contra o campesinato brasileiro (LACERDA, 2022) não diferente disso, as periferias urbanas sofrem com truculentas e sangrentas intervenções da polícia militar (ARAUJO CHERSONI; DAS CHAGAS; MUNIZ, 2022), além disso, por conta dos interesses econômicos, sobretudo estrangeiros, políticas de cerceamento de favelas vêm sendo aplicadas através dos projetos como as UPP´s (Unidade de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro (MALAGUTI BATISTA, 2011). 39 Criminologia periférica Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social DOI: 10.23899/9786589284369.3 O Estado, enquanto detentor do monopólio da violência, age em patrocinar a transformação de bairros dentro do próprio país, em bairros-colônias. Resultado também do racismo fazendo com que esse Estado adote características de colonizador, frente ao lugar de negro, bairros periféricos colonizados (GONZALEZ; HASENBALG, 1982). Zaffaroni (2003, p. 41) chamaria essa característica de “auto-colonialismo” que nas palavras de Vera Malaguti Batista (2011) “[...] atualiza a incorporação periférica aos grandes movimentos da capital. No neocolonialismo, realiza-se um deslocamento territorial do massacre. É nesse momento que o controle territorial policial alcançou o máximo de seu esplendor e potência massacradora nas colônias”. A verdade é que em todos os genocídios estavam presentes as agências executivas do sistema penal” (MALAGUTI BATISTA, 2011, p. 108-109). Em números, o Brasil destaca-se no quesito violência, e não esconde o mofo colonial nas práticas racistas no campo da segurança pública. Segundo o Infopen, na última atualização em 2019 o Brasil registrava cerca de 748.009 pessoas presas em unidades prisionais em todo território nacional (INFOPEN, 2019), no entanto, a pandemia da Covid 19, que deveria ter ensejado práticas de desencarceramento, em realidade fez o contexto prisional se tornar ainda mais assustador: em junho de 2022 o jornal O Globo divulgou os dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que apontam que o encarceramento no Brasil atingiu o trágico número de 919.651 pessoas presas (ABBUD, 2022). Segundo o anuário brasileiro de Segurança Pública 66,7% desse total, mais de 400 mil pessoas são negras, sendo 19,4% jovens até 24 anos e 24,0% de jovens até 29 anos (ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA, 2021). Ou seja, prendem-se pessoas negras, em extrema maioria pobres e jovens. É o sistema penal operando em suas reais funcionalidades a todo vapor. Quem as prende? É preciso colorir as análises e nomear a composição dos sistemas que operam a distribuição da justiça: 84,5% dos juízes, desembargadores e ministros do Judiciário são brancos, 15,4% negros e 0,1 indígenas. Destes, 64% são homens (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2014). Isabela Leite e Léo Arcoverde (2017) que se utilizaram do levantamento realizado pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e de entrevistas com familiares vítimas do estado, com trabalhadores e pesquisadores da segurança pública apontam como ano de 2017, por exemplo, 90% das mortes causadas por policiais militares foram em regiões periféricas da capital paulista. A exemplo disso, na zona leste da capital paulista, lugar historicamente marcado pela violência do estado, nesse mesmo ano foram registradas 81 mortes, fora as subnotificações. Bairros como São Mateus, Guaianazes, Itaim Paulista, Itaquera e 40 Criminologia periférica Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social DOI: 10.23899/9786589284369.3 Tiradentes foram os maiores afetados pelas intervenções policiais (ARCOVERDE; LEITE, 2017). Durante uma dessas abordagens em seu bairro, na Zona Leste de São Paulo, a mãe de Abner, Maria José Paula Alves, que na época estava em situação de desemprego, lembra do ocorrido. “Eles não tinham motivo de mais de 20 balas, mais de vinte tiros. Gente, no carro do meu filho, até nas rodas (tinha disparos)” (ARCOVERDE; LEITE, 2017). Há muita contradição, não tem prova, os policiais não têm argumento pra provar porque fizeram aquilo naquela noite. Eles 'implantaram' arma, não tem exame, não tem exame balística que prova que meu irmão estava com arma, não tem pólvora, resíduo no carro porque foi periciado e nem na mão do meu irmão. Agora eu queria saber do estado porque tirar a vida de um inocente", diz a irmã de Abner (ARCOVERDE; LEITE, 2017). A Zona Leste da capital paulista é um exemplo dos bairros-colônias, onde a atuação do Estado é uma forma concreta da invasão dos colonizadores ou do auto-colonialismo, sendo a região que concentra mais de um terço da população da cidade e seis das dez regiões com mais baixos índices de desenvolvimento humano de São Paulo. É na Zona Leste que ocorreu o maior número das mortes cometidas por PMs na capital entre 2017 e 2018 (ARCOVERDE; LEITE, 2017). Na mesma reportagem a polícia utiliza de narrativa “técnica”, a partir de uma fumaça de intelectualidade, instrumentos que invisibilizam a realidade, ao afirmar que as mortes são proporcionais à violência, demonstrando que em tais bairros são cometidos maiores números de delitos, mesmo ocorrido em reportagens acerca do massacre do jacarezinho (ARAÚJO CHERSONI; DAS CHAGAS; MUNIZ, 2022). O Brasil possui uma polícia militar sedimentada em estruturas pautadas na Doutrina de Segurança Nacional, portadora de características belicistas, especialmente, relacionadas ao extermínio dos corpos considerados enquanto inimigos (CARVALHO, 2016). As próprias metodologias militaristas que são utilizadas na formação dos policiais militares são baseadas na humilhação, no sofrimento e na violência, de modo a construir um ethos guerreiro e preparar estes indivíduos para a guerra. Desta forma, a polícia militar pode ser considerada enquanto um braço fortemente armado do exército. Ocorre que a atuação ostensiva destes indivíduos acontece nas ruas (PEDROSO, 2021), mas quando se trata de periferia, estas ruas se tornam verdadeiros campos de extermínio, onde são reproduzidos os sofrimentos aprendidos nas formações. 41 Criminologia periférica Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social DOI: 10.23899/9786589284369.3 No Rio de Janeiro o batalhão de choque da polícia militar, invade favelas com carros blindados, o famoso caveirão, entoando músicas de terror, em uma delas a letra retrata a truculência do Estado frente aos não bons cidadãos laborais considerados pelas elites vagabundos, como preconiza Leal (2022). Uma das músicas na qual o Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro Bope, utiliza nas “operações” nas periferias cariocas chama-se “eu sou a morte”. Eu sou, eu sou A morte! A morte! Que ressurgiu do mar Eu vejo o inimigo E ele nem vai me notar Eu miro na cabeça Atiro sem errar Se munição eu não tiver Pancadaria vai rolar Bate na cara, espanca até matar Arranca a cabeça e joga ela no mar E o interrogatório é muito fácil de fazer Eu pego o inimigo e dou porrada até morrer 3 A letra da música demonstra nitidamente que as intenções de determinados grupos não estão relacionadas com o fornecimento da segurança, mas com a retirada desta através de violações extremas. Ou seja, são indivíduos que estão preparados para matar, humilhar e exterminar os grupos sociais que são considerados enquanto inimigos ou inferiores. Essa política criminal de guerra é resultado, dentre tantos outros fatores, da lógica neoliberal que, em países dependentes como o Brasil, se adapta de maneira ainda mais perversa na busca incessante pelo lucro a partir da expansão penal, se associando com preconceitos raciais e ideologias autoritárias que caracterizam a história do controle penal brasileiro, tendo como consequência não somente o encarceramento massivo da população marginalizada, mas também a guerra militarizada contra essa população, tendo o extermínio como forma de aterrorizar e controlar esses grupos (BATISTA, 2022, p. 193). Leal (2021) busca inscrever uma compreensão mais alargada sobre a violência dos processos punitivos no Brasil contemporâneo desde uma perspectiva sociocultural Música sem autoria declarada. Letra disponível em: <https://www.letras.com.br/cancoes-de-tfm/eusou-a-morte>. Acesso em: 2022. 3 42 Criminologia periférica Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social DOI: 10.23899/9786589284369.3 baseada na obra de David Garland (Punição na sociedade moderna), que resgata a genealogia da prisão no sentido de demonstrar que o sistema penal cumpre funções para além das denunciadas pela matriz teórica marxista, como a de produzir mão-de obra, ou da matriz foucaultiana, de que as instituições prisionais serviram e ainda servem para dinamizar e gerenciar a lógica de poder social. Nesta perspectiva o autor compreende algumas nuances interessantes para problematizar o atual momento no qual vive-se o Brasil, obviamente que não dissociando o momento das estruturas históricas de dominação. Em parte, importante do texto o autor elabora a definição do chamado bons e maus cidadãos para a servidão do trabalho capitalista, utilizando-se da terminologia de trabalhadores laborais honestos x vagabundos. Essa distinção vem pautada em uma tríade que forjou uma cultura/ideologia brasileira, com base na moralidade, religiosidade e trabalho, utilizando-se de quem foge desse maniqueísmo como instrumento central da violência estatal (LEAL, 2021). Já na década de 80, Zaffaroni aponta como o número de mortes operadas pelo aparato estatal em países reconhecidos como democráticos, faz a América Latina se constituir em campo muito diferente dos analisados pela criminologia do centro (ZAFFARONI, 1988). A naturalização da truculência policial e da seletividade do sistema penal brasileiro é ancorada na memória escravagista, no autoritarismo belicista da doutrina de segurança nacional e no militarismo que faz parte da segurança pública brasileira desde a formação do Estado no século XIX. Essa subjetividade punitiva que ampliou o grande mercado da segurança pública também produz a segurança do mercado, na medida em que converge com os interesses neoliberais e opera para manutenção de seus valores e contenção dos grupos marginalizados e empobrecidos pelos processos de exclusão característicos desse sistema capitalista. Conforme Vanessa Feletti (2014, p. 135), na nova ordem do mercado “[...] o sistema penal não disciplina mais corpos para o labor, ele neutraliza (ou extermina) parte da população e disciplina mentes para o consumo”. A barbárie vem sendo denunciada por criminólogo/as de todas as matrizes e ao longo do acúmulo latino-americano ganhou notoriedade, sejam as concepções de Lola Aniyar de Castro (2005), acerca do direito penal subterrâneo, sejam nas perspectivas da escola da Ilha de Florianópolis, de um direito penal aparente como aduz Vera Regina Pereira de Andrade (2016). Fato é que todas essas terminologias apontam pata um único fim: o corpo negro caído no chão (FLAUZINA, 2006). 43 Criminologia periférica Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social DOI: 10.23899/9786589284369.3 Compreendemos que as ferramentas elaboradas pelas escolas marxistas, também, somadas às desenvolvidas pelas escolas criminológicas, como, a exemplo da base culturalista Leal (2021), são aportes interessantes para dar conta, ao menos na teoria, do atual momento que vive o País. A dimensão bárbara inscreve-se no fundamento do modo de produção capitalista desde a sua gênese, mas combinou-se em escala diferencial, ao longo da explicitação das suas possibilidades, com a dimensão civilizatória de que era originalmente portador. Quando tais possibilidades se explicitam plenamente – vale dizer, quando o sistema subsumido planetária e totalmente ao capital chega à sua curva descendente e objetiva a sua crise estrutural, expressando-se na efetividade do tardo-capitalismo –, a dimensão civilizatória se esgota e o sistema se revela como barbárie, torna-se bárbaro. Este é o estágio atual da ordem do capital (NETTO, 2011, p. 220). A necessidade da guerra, portanto, é o contexto no qual, diante da profunda crise social que o capitalismo tardio vem apresentando, é uma decorrência de condições históricas, que exige como saída uma revolução social mediante perspectivas organizadas de luta (MENEGAT, 2012, p. 17). Com base nos ideários de vanguarda dos anos 70, Andrade (2016, p. 259) propõese a formular uma convocatória: A propor um desafio e uma convocatória latina: interpelemo-nos por resgatar a utopia dos anos 1970, sobre a base do longo acúmulo criminológico crítico da modernidade-colonialidade. Estamos sem projeto coletivo, politicamente instrumental, para o controle social punitivo, num tempo em que o capital tem um megaprojeto, globalizado. É preciso reativar e ressignificar os dispositivos de resistência que estão aí, dispersos, em busca da latinidade e da brasilidade criminológicas. A este ponto, Vera Regina Pereira de Andrade, nos parece apontar a possíveis horizontes, que se conectam as perspectivas de Menegat (2012), ao que a autora denomina como criticismo sem projeto, nessas perspectivas “as Criminologias críticas latino-americanas e brasileiras têm construído, portanto, um acúmulo argumentativo sobre os riscos de um “mais” controle penal, quando estamos precisamente diante de um “ornitorrinco” punitivo (ANDRADE, 2016, p. 275). Como resposta Menegat (2012) propõe uma revolução social, pois, o momento constante de crise, justamente é a ausência de um nível elementar de organização social e consciente. 44 Criminologia periférica Criminologia periférica: um ensaio sobre o centro do controle social DOI: 10.23899/9786589284369.3 E é justamente no sentido de buscar construir um projeto criminológico coletivo que leve em consideração a realidade daqueles que estão na mira do punitivismo que propomos neste e-book pensar em uma Criminologia Periférica, de modo a abarcar todas as Criminologias que possuam um viés crítico, bem como, todas as formas de expressão cultural e resistência periférica, a fim de construir a partir de bases epistemológicas e práticas, uma Criminologia que se debruce no centro do controle social, ou seja, na periferia e a partir dela, possa propor alternativas ao controle social punitivo. Considerações finais Consideramos que, para que seja possível pensar em alternativas ao controle social punitivo, é necessário compreender os fatores que influenciam diretamente neste controle, mas, sobretudo, na violação dos direitos fundamentais das pessoas periféricas, uma vez que possuem estes direitos violados diversas vezes que variam e se estendem no tempo e espaço, abarcando desde a instrumentalização genocida de políticas públicas omissivas nos territórios periféricos; às “abordagens” policias e “operações” realizadas através de metodologias militaristas de extermínio; até às prisões e manutenções de cadeias sem as condições básicas para garantir a sobrevivência. Ou seja, os corpos periféricos encontram-se na mira do extermínio diuturnamente, desde que nascem até o momento em que morrem (ou são mortos). E, compreender as dinâmicas que envolvem essa guerra contra a periferia é de suma importância para encontrar mecanismos capazes de cessar o autoritarismo. Neste ensaio, nos detivemos no que diz respeito ao braço armado do Estado, pois os processos de criminalização primária, de violência e letalidade policial são os momentos centrais do direcionamento do controle social e, consequentemente, são determinantes para a consagração do poder punitivo. Referências ABBUD, Bruno. Pandemia pode ter levado Brasil a ter recorde histórico de 919.651 presos. O Globo, [S. l.], p. 12-26, 5 jun. 2022. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2022/06/pandemia-pode-ter-levado-brasil-a-terrecorde-historico-de-919651-presos.ghtml>. Acesso em: 6 set. 2022. ARCOVERDE, Léo; LEITE, Isabela. Letalidade policial cresce 10% durante a pandemia na cidade de SP; crimes e prisões registram queda. Portal G1, São Paulo, 29 jul. 2020. 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E de que forma contribui para consolidação de um autoritarismo policial? Para responder os questionamentos, faz-se necessário compreender como se dá o processo de militarização das polícias e a influência na construção deste ethos de guerreiro, além de analisar como ocorre a construção e negociação de significados do “ser policial militar” e a respectiva representação mediada. O estudo é dividido em três momentos, primeiramente, pretende-se abordar as questões envolvendo a formação que é dada para os policiais militares dentro desta subcultura, o que compreende uma análise dos símbolos, das hierarquias e dos significados produzidos e negociados dentro do grupo. Para que, em um segundo momento, esta base teórica forneça subsídios para um estudo da possibilidade de construção de um ethos guerreiro quando da formação dos policiais militares, entrando na abordagem da Criminologia Cultural da Guerra e nos processos de essencialização presentes na atuação policial, o que compreende a necessidade de análise do plano micro da atuação destes. Por fim, busca-se analisar a possibilidade deste ethos guerreiro Este texto foi publicado nos anais do Sociology of Law 2021: crise sanitária e regulações democráticas (p. 586-603). Disponível em: <http://svr-net20.unilasalle.edu.br/handle/11690/2807>. * Mestranda em Direito e Justiça Social na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Bacharela em Direito pela Universidade Federal do Pampa. E-mail: anayarafantinelpedroso@gmail.com Lattes: http://lattes.cnpq.br/4931636737843628 1 48 Criminologia periférica A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo DOI: 10.23899/9786589284369.4 e da militarização fornecerem subsídios para o crescimento do autoritarismo, bem como, pensar na possibilidade de desmilitarização como uma possibilidade de diminuição da violência estatal. É possível concluir que o processo de formação de policiais militares está baseado em ideologias que constroem um “ethos guerreiro” e possui serventias identitárias como a preservação do autoritarismo através das construções de identidade policial pela militarização. Ressalta-se que esta ideologia busca preparar os guerreiros para a guerra, onde predominam processos de alterização e, consequentemente, as técnicas coletivas de neutralização, constituindo um campo aberto para a consolidação da violência quando da atuação policial ostensiva. Braço forte, mão armada: a (re)construção da identidade policial pelo militarismo Conforme o parágrafo 6º do artigo 144 da Constituição Federal, as Polícias Militares constituem enquanto forças auxiliares e reserva do Exército, motivo pelo qual a construção indenitária e formação dos ingressantes são conduzidas por metodologias militaristas. O Exército brasileiro é o responsável pelas questões envolvendo a organização, o ensino, a inteligência e a instrução das Polícias Militares. Neste sentido, há a exigência de que os regulamentos destas estejam de acordo com o disposto no regimento do Exército (SOARES, 2019). Isso significa que a Polícia Militar adota um repertório simbólico do Exército brasileiro, havendo aqui, um atravessamento. Pois, trata-se do fato de uma instituição atravessar o núcleo essencial de outra. Desta forma, uma se torna referência para a outra na construção de ideologias e identidades (DE ALBUQUERQUE, 2001) e, consequentemente, na atuação cotidiana. Este atravessamento se dá em decorrência da estruturação hierárquica entre Polícia Militar e Exército, pois existem duas frentes de comando dentro das polícias dos estados: Há, portanto, duas cadeias de comando, duas estruturas organizacionais, convivendo no interior de cada Polícia Militar (PM), em cada estado da federação. Uma delas vertebra a hierarquia ligando as praças aos oficiais, ao comandante geral da PM, ao secretário de Segurança e ao governador; a outra vincula o comandante geral da PM ao comandante do Exército, ao ministro da Defesa e ao presidente da República. Apesar da autoridade estadual sobre “orientação e planejamento”, a principal cadeia de comando é a que subordina as PMs ao Exército. Não é difícil compreender o primeiro efeito da duplicidade 49 Criminologia periférica A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo DOI: 10.23899/9786589284369.4 assimétrica: as PMs estaduais constituem, potencialmente, poderes paralelos que subvertem o princípio federativo (SOARES, 2019). Desta forma, a subcultura da Polícia Militar possui significados que são construídos e negociados no(s) campo(s) do Exército, onde identidades, valores, hierarquias e imagens são reproduzidos, devendo ser seguidos de maneira rígida desde a iniciação no grupo até os últimos momentos em que se fizer parte deste. A partir da entrada do indivíduo na instituição da Polícia Militar, ele será forjado como militar. Seja através de regras, de costumes, das práticas diárias ou até mesmo do contato com os policiais mais velhos, haverá a formação do jovem policial. Sendo introduzidas, na própria subjetividade, as ideologias militares. Ou seja, ao ingressar na instituição, inicia-se a militarização subjetiva do indivíduo. E, da mesma forma que o indivíduo é moldado internamente pelo militarismo, ele o externalizará através das reações, moldando parte da sociedade através da atuação prática (GROTTI; BORDIN, 2020). Ocorre que a formação destes jovens militares é pautada na violência. Pois, se delineia em metodologias militaristas, que contribuem para a construção de ideais que promovem e valorizam questões relacionadas à guerra nas ruas, utilização de armamento bélico, utilização da força, da virilidade, masculinidade e da superação. Esta pedagogia busca fortalecer crenças de que o sofrimento funciona enquanto mote para que os policiais possuam uma vontade bélica de defesa da sociedade (FRANÇA, 2015). Pois, possuem uma série de treinamentos que se pautam na vivência de tensões e frustrações por parte dos alunos, especialmente através da utilização de técnicas que estimulam a ansiedade e o medo (DE ALBUQUERQUE, 2001). Estas metodologias envolvem, em um primeiro momento, o período em que os recrutas tornam-se alunos do curso de formação para Policial Militar, onde passam por diversas experiências a fim de que sejam testados e introduzidos ao ethos militarista. Este período possui um significado ritualístico, pois demarca a divisão entre dois mundos: o paisano e o militar (FRANÇA, 2015). Para que se tornem Policiais Militares e efetuem esta passagem de um mundo para o outro, precisam vencer os períodos intensos de treinamento, situação que envolve toda uma performance quase que heroica, especialmente diante das congratulações recebidas ao finalizar os períodos de adversidades do curso. Estes períodos de treinamento envolvem a dinâmica da guerra em ambientes precários. Os alunos devem construir as bases, acampamentos que serão destinados para o descanso. As atividades são divididas por dias e os alunos em grupos. Algumas 50 Criminologia periférica A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo DOI: 10.23899/9786589284369.4 envolvem jogos militares que estimulam o senso de equipe, a coragem e a superação dos próprios limites enquanto que outras envolvem a simulação da guerra, onde são criados confrontos bélicos entre os grupos rivais através de armas não letais. Aqueles que passam a ser considerados enquanto abatidos nestes confrontos, devem pagar através da punição pública diante dos demais colegas. Estas atividades possibilitam a demonstração da identidade da Polícia Militar, que passa a ser celebrada longe da cidade, em meio à selva. Os selváticos são aqueles que conseguem ultrapassar todos os desafios impostos em meio à selva, tornando-se heróis e guerreiros (DE ALBUQUERQUE, 2001). Parte destes treinamentos são calcados no traquejo, termo designado para a prática de aprender dentro das academias militares diante da dor, do sofrimento, do rebaixamento. É através do traquejo que a antiga condição de civil é apagada do corpo dos recrutas e a forma com que se faz esse apagamento é através da dor. Tanto é que alguns corpos são marcados através de lesões, o que demonstra a identidade do ser policial que é transmitida através dos atos sádicos, muitas vezes, que reafirmam uma linha tênue existente entre o sadismo e o traquejo, já que há uma dificuldade na identificação do momento em que começa o sadismo nessas práticas. O sádico predomina em uma cultura machista e, especialmente na cultura militarista, sendo o recruta, o testemunha do poder do oficial, sobre o qual destina através do uso do poder, faz nascer naquele tal identidade, dando origem ao guerreiro (DE ALBUQUERQUE, 2001). Há uma negociação simbólica de significados muito grande aqui, tanto no que tange à construção de uma identidade militarista nos recrutas, delineando a passagem de um mundo civil para o outro mundo militar, quanto na demonstração e fixação de hierarquia e poder dentro da subcultura através do próprio traquejo. Além disso, é de se ressaltar que o fato dos indivíduos passarem por situações de sofrimento como esta e por situações de simulação de guerra de forma conjunta contribuem para a construção de laços fraternos entre eles. Ao cumprirem a missão, denota-se o afastamento dos paisanos, demonstrando a fixação de uma identidade contrativa típica dos membros do Exército, que distingue os mundos entre o “nós”, os militares, e o “eles”, os civis. Esta identidade é facilmente denotada, não apenas no modo de falar e agir, mas também nas demais questões que identificam a subcultura. Isso porque existem rígidos valores organizacionais que remetem à hierarquia e, inclusive, a forma de relação interpessoal entre os militares (LEIRNER, 1997). 51 Criminologia periférica A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo DOI: 10.23899/9786589284369.4 Desta forma, os períodos de formação identitária dos recrutas e transição entre os dois mundos torna-se visível, pois se divide durante o período entre duas fases: a fase liminar que ocorre a partir do momento em que os valores inerentes ao espírito militar forem absorvidos, e vencida esta, estarão prontos para viver a fase de agregação, sendo este o momento em que serão aceitos ao quadro de membros efetivos da Polícia Militar (FRANÇA, 2015). Diante deste quadro, percebe-se que a formação que é destinada aos ingressantes na Polícia Militar é delineada por metodologias militaristas, que corroboram para que a PM seja um braço do Exército. Contudo, trata-se de um braço que carrega armamentos de guerra no policiamento ostensivo. A serventia identitária da formação militarista enquanto impulsionadora do ethos guerreiro Como se pode perceber, há uma carga fluida de significados no que tange à formação de Policiais Militares, que irão envolver questões relacionadas à resistência, hierarquia, união e violência. Durante o período em que os alunos se submetem à sobrevivência nos campos há uma representação mediada do militarismo, onde circulam valores e significados que são típicos da subcultura e que contribuem para a construção de uma imagem militarizada do ser policial. As metodologias militaristas utilizadas nesta formação preparam os ingressantes para a guerra, utilizando-se, muitas vezes, da humilhação para introduzir ideologias militares na subjetividade dos alunos. A metodologia militarista de formação de Policiais Militares utiliza-se de uma pedagogia do sofrimento como forma de considerar a necessidade e a legitimidade de utilização de força por parte dos futuros militares na atuação profissional, reafirmando assim, o ethos guerreiro. Esta pedagogia do sofrimento é naturalizada pelos coordenadores e instrutores, visto que se trata de uma forma “assimilável” de estabelecer limites e demonstrar o abismo hierárquico existente. Além disso, a vontade dos alunos em concluir o curso, diante destes sofrimentos enfrentados, fortalecem os valores culturais da instituição. Ou seja, consideram-se tais metodologias positivas, pois corroboram para que os futuros policiais aprendam a suportar privações, sejam elas físicas ou mentais, hipertrofiando assim, a determinação (FRANÇA, 2015). E é justamente a hierarquia que irá delimitar como as relações são percebidas e realizadas dentro daquele grupo. Existem círculos hierárquicos que irão variar conforme o grau de hierarquia e funcionarão enquanto elo entre os militares, o que demonstrará a união, a camaradagem e a confiança existente dentro daquele 52 Criminologia periférica A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo DOI: 10.23899/9786589284369.4 determinado círculo. Existem laços orgânicos que ligam os indivíduos pertencentes a um mesmo grupo devido terem a mesma posição funcional. Contudo, estes laços fraternos também podem existir entre aqueles indivíduos que não pertençam a um mesmo círculo, em se tratando de unidades de combate menores (LEIRNER, 1997). A fraternidade que é criada entre os membros de determinada turma nos treinamentos é de suma importância quando deixam de ser recrutas, pois será o elo que manterá os indivíduos da corporação unidos. Sendo, portanto, um grupo que tiveram os laços fortalecidos na selva, na opressão hierárquica, onde construíram a fraternidade e cumplicidade. E essa união será levada também para fora da selva. E é nesta lógica que passam a compreender que a fraternidade possui um preço alto, mas o da traição é maior. E, tendo noção desta fraternidade existente, poderão oprimir e até exceder os limites dos regramentos, futuramente, pois confiarão nos laços já construídos (DE ALBUQUERQUE, 2001). Urge ressaltar que a forma como as experiências vividas na guerra são capazes de reformular e fortalecer as relações de afinidade e identidade entre os grupos que a vivenciam, proporcionando a construção de um significado forte e superior aos ordenamentos. Aliado a isso, tem-se o senso de masculinidade que predomina entre os indivíduos que estão na guerra, ganhando ainda mais força a partir do momento em que a construção do significado se relaciona com atrações emocionais que são próprias da guerra (FERRELL; HAYWARD; YOUNG, 2019) e das simulações desta, como por exemplo, os campos de treinamento. Essa fraternidade que é construída entre os membros de determinada turma militar, faz nascer o espírito da corporação e demonstra o ethos guerreiro existente entre aqueles que sobreviveram à selva. Demonstrando assim, que para sobreviver fazse necessário manter este ethos, utilizando-se da agressividade e do próprio poder militar para que sejam encontradas as soluções para os problemas nos quais enfrentarem (DE ALBUQUERQUE, 2001). As ideologias que são apreendidas pelos indivíduos e estes laços que são construídos entre os integrantes, fortalecem questões relacionadas à identidade e ao senso de pertencimento ao grupo. Ou seja, não fornecem apenas formas de compreender o mundo, mas também propósitos capazes de situar o lugar do indivíduo neste mundo, fortalecendo a identidade e fazendo com que as pessoas compreendam a necessidade de defender as causas deste grupo, bem como, os companheiros pertencentes a ele. Além desta certeza identitária e existencial, o grupo é capaz de fornecer um significado supremo final, no qual são elevados os significados de defender o considerado sagrado dentro daquele grupo, a ponto de tornar honrosas essas atitudes 53 Criminologia periférica A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo DOI: 10.23899/9786589284369.4 de defesa. Ou seja, os indivíduos são compelidos a viver por um determinado propósito e morrer por ele, se preciso for (COTTEE; HAYWARD, 2011). Contudo, muitas vezes o ingresso ou até mesmo a permanência na Polícia Militar pode estar relacionada a confusões identitárias subjetivas, proporcionadas, em grande medida, pelo contexto tardo-moderno, mas também, pelos próprios treinamentos militares em que, diante da humilhação sofrida, aumentam as inseguranças ontológicas. Desta maneira, os indivíduos encontram na excitação dos confrontos, formas de suprir determinados vazios existenciais, fortalecendo o self. Para vivenciar situações que contenham risco e violência, faz-se necessário obter um autoconhecimento. Isso porque além da força física, faz-se necessário – diante das atividades a serem praticadas – o uso da inteligência. Além disso, nestes momentos são vivenciadas grandes emoções, nas quais devem ser superadas. Todas essas situações contribuem para o surgimento de um lifestyle. Essa busca por excitação está diretamente ligada com a busca de segurança ontológica. É uma forma de buscar significado existencial. Isso porque os riscos nos quais a violência se encontra interligada, têm a capacidade de despertar alguns sentimentos como a adrenalina, o que a torna excitante (FERRELL; HAYWARD; YOUNG, 2019). Outra forma de buscar a segurança ontológica é através de processos de alterização. Pois, diante destas crises de identidade, busca-se formas de reafirmar o núcleo existencial de si mesmo e dos outros. E isso se dá através da utilização de um essencialismo capaz de fazer essas reafirmações. Ou seja, há o fortalecimento e hipervalorização de características do grupo no qual se pertence e uma diminuição dos grupos que não possuem essas mesmas características através da criação de estereótipos. Consequentemente este processo de alterização promove a violência a partir da desumanização (YOUNG, 2003). Estes processos vão ocorrer de forma seletiva, utilizando-se da rotulação daqueles contra os quais os empreendedores morais irão se voltar (BECKER, 2008). Ou seja, os inimigos são previamente escolhidos para que os guerreiros iniciem a batalha. O fato de construir um inimigo ou considerar que este represente uma ameaça ao grupo e à sociedade, justificam o poder punitivo e o uso da força, mesmo que se trate de forças desproporcionais (ZAFFARONI, 2007). Desta forma, esses processos de essencializações funcionarão como facilitadores da violência, permitindo desumanizações e atuando enquanto técnicas de neutralização coletivas (FERREL; HAYWARD; YOUNG, 2019). Esse uso da violência é fruto de uma denominada “febre de guerra”, que possui bases sólidas no denominado ethos guerreiro. Isso porque há uma necessidade interna 54 Criminologia periférica A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo DOI: 10.23899/9786589284369.4 de valorização de algumas características típicas de quem se enquadra neste perfil, como a coragem, a força, o enérgico, a autoconfiança, a virilidade, dentre outras. Este perfil é, normalmente, reverenciado culturalmente em grande parte das sociedades, o que de certa forma, torna-se um estímulo. Desta forma, percebe-se que os grupos que possuem o ethos de guerreiro bem fortalecido, sempre exercerão as missões de forma tranquila, pois carregam orgulho de serem incumbidos de missões que consideram tão importante para o grupo e para si próprio. Pois, representa a retidão, a pureza ideológica e, principalmente, a posição assumida enquanto um herói imortal dentro daquele grupo. E aqui, através desta essencialização, a violência atuará como forma de combater as frustrações existenciais (COTTEE, HAYWARD, 2011). O ethos de guerreiro é introduzido aos militares desde o momento em que ingressam na subcultura, onde são produzidos e negociados significados que vão envolver o grau hierárquico, a união, a fraternidade, a competitividade, a masculinidade hipertrofiada, a humilhação, dentre outros simbolismos que vão consolidar no indivíduo as marcas de um determinado grupo, preparando-o para a guerra nas simulações diárias de guerra e nos internatos realizados. Os jovens guerreiros são preparados durante um determinado período para que absorvam esses significados através de uma intensa convivência com o grupo sob as regras da subcultura, até absorverem por completo. A partir da absorção, o ethos guerreiro passa a fazer parte de um novo self. O indivíduo também já é diferente, pois carrega consigo parte dos valores assimilados, bem como, recordações das humilhações vividas. A insegurança ontológica, em grande medida proporcionada pelo contexto tardomoderno, torna-se vívida e, juntamente com as lembranças, fornecem um campo aberto para que processos de autoafirmação identitária aflorem. Aqui, passa haver uma ambiguidade sentimental, pois ao mesmo tempo em que a insegurança ontológica corrói os guerreiros, a noção do dever de fornecer a segurança para a sociedade domina a corrosão. Inicia-se uma guerra interna, onde a insegurança predominará. Em meio a estas guerras, a farda torna-se uma verdadeira armadura para que esta guerra seja enfrentada e um importante símbolo para a demonstração do poder – primeiramente sobre as inseguranças do self – e também, relacionadas ao (super)poder de proteção. Ethos guerreiro e enlaces autoritários: desmilitarizar é preciso Desta forma, percebe-se que as Polícias Militares são utilizadas enquanto força reserva do Exército, onde são transpassados valores, imagens, modelos organizacionais e identidades. Possuindo uma semelhante ordem hierárquica verticalizada. Ocorre que, 55 Criminologia periférica A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo DOI: 10.23899/9786589284369.4 dentro de um Estado Democrático de Direito a atuação da Polícia deve ser diferente da atuação do Exército, pois deve buscar a proteção dos direitos e da liberdade dos indivíduos, promovendo a segurança e não gerando insegurança através da violência (SOARES, 2019) e de processos essencialistas. Já que essa influência das metodologias militaristas na construção e negociação de significados relacionados ao “ser” policial militar implica uma dicotomia existente nessa formação, pois se está diante de uma corporação em que a missão identitária seria proteger e servir enquanto que na prática outras identidades se sobrepõem, como a do guerreiro (DE ALBUQUERQUE, 2001). O que a torna mais propícia para a prática de atos violentos. Desmilitarizar significa romper com os laços que interligam as Polícias Militares ao Exército, o que inclui o fim da utilização de regimentos disciplinares por este utilizado no âmbito policial. Além disso, implica uma uniformização entre as polícias e, consequentemente, o fim da divisão de trabalhos. Ou seja, ambas as polícias seriam civis e buscariam investigar e prevenir de forma ostensiva a prática de delitos. O que não implicaria em uma unificação - algo que é inviável - mas o fim de uma divisão de atividades. Além disso, a desmilitarização implica no extermínio de graus diferenciados de carreiras, o que diminuiria a competitividade desigual entre os ocupantes de postos diferentes e, consequentemente, todos os elementos que envolvem esta forma de competição, como o tratamento hostilizado, por exemplo. Implica também no fim da diferenciação de salários, de graus de prestígio, possibilitando assim, uma igualdade de oportunidades de ascensão (SOARES, 2019). É necessário rever o currículo das academias de Polícias Militares, de modo que as atividades propostas iniciem respeitando os direitos humanos dos recrutas, para que, futuramente, estes possam respeitar os direitos dos cidadãos (DE ALBUQUERQUE, 2001). Isso porque o tratamento que é destinado aos alunos se delineia na agressividade e humilhação, na busca de tentar prepará-los para a atuação ostensiva e absorverem a identidade militarista, contudo as práticas desumanas acabam corroborando para o aumento das inseguranças ontológicas, tornando estes indivíduos mais propícios para a prática de atos performativos através da violência e do autoritarismo. Não deve haver mais espaço para as crenças institucionais que se pautam em uma perspectiva belicista que considera o sofrimento físico e psíquico enquanto uma necessidade básica para a formação de policiais que tenham a capacidade de defender a sociedade. Reforçando assim, o sofrimento enquanto forma de conquista em um universo majoritariamente masculino (FRANÇA, 2015). Pois, se essas práticas 56 Criminologia periférica A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo DOI: 10.23899/9786589284369.4 permanecerem, os processos de alterização também permanecerão e a violência jamais será rompida, pois seguirá vertendo nas veias institucionais militaristas. Contudo, para que seja possível pensar em uma universalidade da segurança pública é necessário observar a necessidade de alterações políticas e motivos substantivos. Isso porque, para que haja mudanças na Constituição, é imprescindível uma ampla adesão política das demandas defendidas. E de cunho substantivo porque se reconhece a necessidade de que alterações culturais e institucionais devem ser delineadas por justificativas que demonstrem a real necessidade destas alterações e, mais do que isso, crie-se condições para que se preserve a equidade (SOARES, 2019). Fazendo-se necessário, portanto, uma ampla participação popular. Ocorre que as raízes autoritárias que ainda permeiam a sociedade impossibilitam uma ampla distinção entre as atividades policiais e militares e, consequentemente, dificultam a compreensão do que significa desmilitarizar. Desta forma, ressalta-se que deve ser dever da polícia garantir a segurança interna enquanto ao exército cabe a incumbência de proteger o Estado contra possíveis problemas externos. Sendo, portanto, lógico que o treinamento destinado a cada instituição seja diferente, o que não acontece (DA SILVEIRA, 2013). Esta forma de organização e distribuição das Polícias Militares em conformidade com o Exército dificulta a relação com a sociedade civil e torna-se ineficiente para prevenir o crime (SOARES, 2019). Tanto é que os treinamentos se opõem a lógica da polícia cidadã (DE ALBUQUERQUE, 2001) e aproximam da lógica de guerra. É de se ressaltar que houve diversas implementações de cursos relacionados à Segurança Pública, onde buscou-se proporcionar subsídios para formações críticas através de parcerias interinstitucionais com universidades, de forma que continuou havendo uma formação técnica e operacional militarista, mas acrescida de formações científicas e acadêmicas, necessárias para dar o aporte para a compreensão dos fenômenos sociais, culturais e históricos. Estas aproximações têm promovido a reflexão de forma ativa dos indivíduos que passam pela formação, possibilitando assim, mudanças de hábitos e de comportamentos calcadas na efetivação dos direitos humanos (SANTOS, 2017). Ocorre que embora estes cursos buscaram aproximar a formação dos policiais aos estudos críticos acerca dos direitos humanos e da violência, as alterações comportamentais proporcionadas podem ser vislumbradas apenas no campo comportamental individual, não se expandindo às corporações. Isso porque ao atuarem em conjunto, outros significados são negociados dentro da fraternidade existente no 57 Criminologia periférica A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo DOI: 10.23899/9786589284369.4 grupo, que acabam impossibilitando a insurgência de um indivíduo contra os demais. Desta forma, o único caminho para romper com o autoritarismo e com a violência policial ostensiva é através da desmilitarização e do fim da utilização de metodologias militaristas que estimulem o ethos guerreiro e os processos essencialistas. Considerações finais Diante do exposto, vislumbra-se que a Polícia Militar adota um repertório simbólico do Exército, que se torna referência para a construção de ideologias e identidades daquela. Desta forma, as metodologias militaristas utilizadas para a formação de policiais militares baseiam-se na humilhação, no sofrimento e na violência como formas de introduzir as ideologias militares e autoritárias na subjetividade destes indivíduos. Estas formações valorizam a virilidade, a força, a masculinidade, a violência, a utilização de armamento bélico e as guerras. Contribuindo assim, para a construção de um ethos guerreiro. O contexto tardo-moderno, bem como, as próprias humilhações que ocorrem na formação dos policiais proporcionam inseguranças ontológicas nestes indivíduos, que buscam formas de (re)afirmar o self através de experiências a serem vividas. Muitas vezes a própria permanência no contexto militarista pode ser a forma encontrada para buscar a segurança, já que este ambiente proporciona adrenalina, violência e excitação. Essa segurança ontológica também é buscada através de processos de alterização, onde os indivíduos buscam a (re)afirmação do núcleo existencial de si e dos outros através da hipervalorização de características próprias e daqueles que lhes são semelhantes e diminuição e criação de estereótipos dos diferentes. E, consequentemente este processo de alterização promove a violência a partir da desumanização que funcionará enquanto técnica de neutralização coletiva, de modo que todo o grupo pratique atos violentos. De modo que, alterações comportamentais individuais não trarão resultados para a diminuição da violência, já que esta trata-se de um problema estrutural. Sendo, portanto, a desmilitarização, o único caminho possível para alterações positivas na segurança pública. Referências BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Editora SchwarczCompanhia das Letras, 2008. COTTEE, Simon; HAYWARD, Keith. Terrorist (e) motives: The existential attractions of terrorism. Studies in Conflict & Terrorism, v. 34, n. 12, p. 963-986, 2011. 58 Criminologia periférica A militarização da polícia como forma de construção do “ethos guerreiro” e consolidação do autoritarismo DOI: 10.23899/9786589284369.4 DA SILVEIRA, Felipe Lazzari. Reflexões sobre a desmilitarização e unificação das polícias brasileiras. 2013. DE ALBUQUERQUE, Carlos Linhares; MACHADO, Eduardo Paes. O currículo da selva: ensino, militarismo e ethos guerreiro nas academias brasileiras de polícia. Capítulo Criminológico, v. 29, n. 4, 2001. FERRELL, Jeff; HAYWARD, Keith; YOUNG, Jock. Criminologia cultural: um convite. Belo Horizonte: Letramento, 2019. FRANÇA, Fábio Gomes; DE FARIAS GOMES, Janaína Letícia. " Se não aguentar, corra!": um estudo sobre a pedagogia do sofrimento em um curso policial militar. Revista brasileira de segurança pública, v. 9, n. 2, 2015. GROTTI, Vyctor Hugo Guaita; BORDIN, Marcelo. Hipermilitarização e letalidade policial: uma abordagem relacional. Revista Direito e Democracia, v. 7, p. 1-13, 2020. SANTOS, José Vicente Tavares dos. Inovação no ensino policial: história e lições. 2017. SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar: segurança pública e direitos humanos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019. LEIRNER, Piero de Camargo. Meia-volta, volver: um estudo antropológico sobre a hierarquia militar. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 71-111, 1997. YOUNG, Jock. Merton with energy, Katz with structure: The sociology of vindictiveness and the criminology of transgression. Theoretical Criminology, v. 7, n. 3, p. 389-414, 2003. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 59 Criminologia periférica Foto: Gabriel Dias. 60 Criminologia periférica A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural DOI: 10.23899/9786589284369.5 A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural Ana Karolina Matias Emydio* Cristiane Westrup** Fernanda da Rocha Fabiano*** Fernanda da Silva Lima**** Introdução Propomos neste texto trazer uma narrativa sobre a história da samba e a vida de mulheres negras protagonistas dessa história para além de um gênero musical e, que situa “a samba” como cultura brasileira fundante. A samba que compõe essa narrativa subverte o próprio nome “o samba” partindo da compreensão de que mulheres negras ocupam a centralidade dessa narrativa e segundo o pesquisador Tadeu Kaçula (2021), “samba” na linguagem ancestral corresponde ao feminino, à identidade, a Graduanda em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC); Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CAPES/CNPq) Direito Constitucional e o pensamento Jurídico Crítico Latino-Americano. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Gênero e Raça NEGRA. E-mail: anakarolinaemydio@unesc.net ** Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (PPGD/UNESC). Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Gênero e Raça – NEGRA. E-mail: cristiane.wp79@gmail.com *** Pós-Graduanda a nível de Especialização em Direito Educacional pelo Centro Sul Brasileiro de Pesquisa Extensão e Pós-Graduação LTDA (CENSUPEG); Bacharel em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Integrante vinculada ao Núcleo de Estudos em Gênero e Raça (NEGRA/UNESC). E-mail: fer.fabiano@hotmail.com **** Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito e professora titular da disciplina de Direitos Humanos da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC. Doutora e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Coordenadora do Núcleo de Estudos em Gênero e Raça – (NEGRA/UNESC). E-mail: felima.sc@gmail.com * 61 Criminologia periférica A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural DOI: 10.23899/9786589284369.5 ancestralidade, a coletividade, a celebração da vida. A samba, “casa de samba” o lugar de acolhida, da encruzilhada, da práxis comunitária, do candomblé, do batuque, da congada, do jongo, da umbigada. Mulheres como Tia Ciata, Clementina de Jesus no Rio de Janeiro, Madrinha Eunice em São Paulo e, tantas mulheres negras que antes delas como as mulheres negras das irmandades, dos terreiros, e as que vieram depois, compositoras, cantoras, as guardiãs da cultura e da religião africana através da oralidade e da vida em comunidade, todo esse legado compõem o berço fundador da cultura brasileira. As chamadas tias da samba, como nos ensina Helena Theodoro (2017), numa linguagem ancestral a tia significa: “aquela que tem os poderes da mãe e que acolhe a todos os filhos, inclusive os que não saíram de seu ventre”. A família é coletiva em África, não são os laços de sangue que definem quem são irmãos, no candomblé uma pessoa se torna irmã/o da/o outra/o, não exatamente pelos laços sanguíneos, nas palavras de Conceição Evaristo (2017). Uma contranarrativa das mulheres negras da samba, situando o protagonismo da cultura e musicalidade de origem eminentemente negra, apropriadas como “cultura brasileira” pela branquitude. A branquitude segundo Tânia Mara Müller e Lourenço Cardoso (2017) é definida como um lugar de poder, o pertencimento étnico-racial que se atribui ao branco. O lugar privilegiado da hierarquia racial, o poder de definir os “outros” como não brancos. A luta, a trajetória e contribuições das mulheres negras da samba para o enfrentamento da estrutura racista, hierarquizada pela sociedade, como forma de (re)existência, como essas mulheres através da ancestralidade, da musicalidade, e da vida em comunidade seguem fraturando o poder branco, heteronormativo, masculino. A expropriação/apropriação da cultura de origem africana transformada em cultura brasileira pelo Estado e pela indústria musical, como forma de invisibilidade e apagamento (epistemicídio). A valorização da cultura ocidental, branca, pautada nos valores eurocêntricos e o mito da democracia racial aprofundam esse epistemicídio histórico-cultural, do conhecimento, dos costumes e tradições do povo negro. Uma pequena narrativa sobre a história da samba: mulheres negras, ancestralidades e conceitos A samba se traduz como cultura brasileira fundante, com potente manifestação política e de denúncia. A samba é práxis, é modo de vida, é acolhimento, é a vida em comunidade, é ancestralidade. Comunidades, terreiros, projetos de samba que mantém 62 Criminologia periférica A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural DOI: 10.23899/9786589284369.5 a memória e a história da samba como uma das mais importantes tradições culturais do Brasil (MATEUS, 2021). Hilária Batista de Almeida, ficou conhecida como Tia Ciata, nasceu na Bahia em 1854, falecendo em 1924 com 70 anos de idade. Aos 22 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro no êxodo que ficou conhecido como diáspora baiana. Tia Ciata teve sua vida dedicada à religião, o candomblé e a música. O batuque, a samba foram preservados pelo seu legado. A Praça Onze na Pedra do Sal é o marco da chamada Pequena África, onde se concentrava grande parte da população negra vindas da Bahia e de outros estados, assim como a população negra que ali já residia, neste local se reuniam as famílias negras, onde mais tarde se constituiu o berço da samba carioca. Ela acolhia as famílias que chegavam, em busca de trabalho e moradia (TIA CIATA, 2017). A história da samba de origem urbana em São Paulo se confunde com a história das periferias. As rodas, dos terreiros e comunidades da samba, surgiram principalmente no início do século XX, quando famílias negras deslocadas dos grandes centros por projetos higienistas do Estado formaram os primeiros grupos carnavalescos como exemplo o Camisa Verde da Barra Funda (zona oeste da cidade de São Paulo). Logo foram se formando outros cordões pela cidade. Essas manifestações culturais representavam e representam verdadeiros quilombos urbanos, símbolo de existência e (re)sistência. Em 1937, Deolinda Madre (1909-1995), também conhecida por (Madrinha Eunice) fundou a Escola de Samba Lavapés, ainda em atividade (MATEUS, 2021). A Escola de Samba Lavapés é considerada uma das pioneiras do carnaval de São Paulo (ACERVO MIS, 2019). Clementina de Jesus (Rainha Quelé), nascida em 1901 na cidade de Valença no estado do Rio de Janeiro, aprendera desde cedo a cantar o jongo, curimás e outros cantos africanos que aprendera de sua mãe. Clementina de Jesus faleceu em 1987 aos 86 anos (CLEMENTINA DE JESUS, 2011). O local conhecido como o Largo da Banana, hoje Memorial da América Latina (zona oeste da cidade de São Paulo) é considerado como o ponto zero da samba paulista. Ali se reuniam sambistas que no local residiam, dessa movimentação rítmica e cultural surgiram outras manifestações culturais pela cidade (MATEUS, 2021). Clementina de Jesus na sua musicalidade única, foi influenciada pelo contato com a cultura dos quilombos. Em Valença a tradição dos quilombos é significativa, como o quilombo São José da Serra, que preserva a tradição e ancestralidade transmitidas principalmente pela música, pelas rodas, pelas festas. A voz e sua musicalidade foram descobertas pela indústria musical em 1962, quando a cantora tinha sessenta anos de idade (CLEMENTINA DE JESUS, 2011). A oralidade característica de samba, e os diversos ritmos africanos que a compõe está presente 63 Criminologia periférica A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural DOI: 10.23899/9786589284369.5 tanto no espaço urbano como no meio rural mais longínquo onde a cultura negra é transmitida. Sob um contexto geral da música popular brasileira, que teve sua história assinalada por compositores homens, sentenciando as mulheres na atuação como intérpretes e mais tarde musas de samba, colocando-as em um papel secundário. Mulheres negras não só fizeram história na samba, mas foram as principais fundadoras/continuadoras dessa manifestação cultural, dessa práxis coletiva e ancestral como Tia Ciata, Clementina de Jesus, Madrinha Eunice, Dona Ivone Lara entre outras, mesmo que mulheres negras da samba, renomadas compositoras eram definidas como apenas “cantoras” (CAVALCANTI, 2019). Podemos enunciar o conceito de amefricanidade1 de Lélia Gonzalez (2020) no sentido da presença e importância da história da musicalidade do povo africano, das mulheres negras em especial da samba como identidade fundante e constitutiva da história e cultura brasileira. Críticas à apropriação cultural e higienicação da samba e a contranarrativa das resistências A apropriação da cultura de origem africana no Brasil demonstra outra faceta do mito da democracia racial, a mistificação de sua manutenção no tempo. Esta permanência de traços culturais seria o resultado das “relações benevolentes” entre os senhores proprietários e os escravizados, onde a música, as danças, a culinária, as diversas religiões e linguagem de origem africana colocadas como elementos integrantes da cultura brasileira (brasilidade) seriam a demonstração da ausência de preconceito e discriminação racial dos “brancos” (NASCIMENTO, 2016, p. 66). Foi durante o governo de Getúlio Vargas que o Estado nomeou a samba como uma das principais expressões de identidade nacional, uma “tradição” que desse um sentido único ao “povo brasileiro”. A partir dessa definição que ocorreu a “nacionalização” e a “internacionalização” da samba (MATEUS, 2021, p. 234). No Brasil, as pessoas crescem mergulhadas com a ideia de viver em uma democracia racial, partindo disso realizam a manutenção de uma sociedade aspirante ao racismo. As pessoas brancas não se enxergam enquanto brancas, embora gozem de A formação histórico-cultural do Brasil não como um país formado a partir do imaginário branco e europeu, mas um Brasil situado em uma América Africana, cuja latinidade (herança colonial ibérica) é inexistente, uma Améfrica Ladina. Rejeitando assim, o mito da democracia racial (a ideologia do branqueamento), que mantém negros e indígenas numa condição de subordinação que se substancializa no silenciamento, apagamento dos saberes e da cultura desses povos. 1 64 Criminologia periférica A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural DOI: 10.23899/9786589284369.5 privilégios por meio da sua inserção em diferentes níveis hierárquicos (CARDOSO, 2014). Na sociedade brasileira em diversos espaços a branquitude produz e reproduz a lógica colonialista que segue inferiorizando a população negra. Isso ocorre por conta da designação do “lugar do branco” e “lugar do negro”. Os lugares de prestígio, intelectualidade, que são interpretados como “lugares onde se pensa” ou lugares "onde se brilha" são automaticamente naturalizados e fortalecidos entre os brancos. A branquitude busca diariamente ordenar e controlar aqueles que podem ter protagonismo e destaques (CARDOSO, 2014). As ações que ocultam as produções intelectuais desenvolvidas por negras e negros não é inocente, é marcada por traços que visam afirmar uma “inferioridade” que brancos criaram sobre os negros. A intelectualidade negra tem obstáculos colocados por espaços predominantemente brancos, por ser entendida como uma “ameaça” aos privilégios brancos e toda a construção que segue invisibilizando, desumanizando e silenciando negros e negras (CARDOSO, 2014). A expropriação/apropriação da cultura negra pelos brancos pensada de forma conceitual nos mostra que a expropriação pela análise marxista é a usurpação da força de trabalho alheio pelo capitalista. Sob uma análise das epistemologias negras é a apropriação ilegal, desumana, dos espaços, territórios, corpos e direitos de negras e de negros. Uma expropriação da cultura do povo negro é a exploração dos bens culturais, das/os produtoras/es negras/os sob uma racionalidade capitalista e racista (MALOMALO, 2017). Houve uma apropriação da cultura de origem africana, seus ritmos e musicalidade (axé, samba, samba de roda, lundu, congada, umbigada, jongo entre outros). O protagonismo do povo negro, da cultura de terreiro foi sendo suprimida, apropriandose seus significados (KERTÉSZ, 2016). A cultura de origem africana no Brasil nomeada como folclore, num processo de inferiorização e esgotamento de seus elementos essenciais configura em uma forma de etnocídio/epistemicídio. A predominância de uma cultura eurocêntrica e branca transformou numa tentativa de reduzir a cultura, o conhecimento, os costumes do povo negro em folclore, o povo que não tem história (NASCIMENTO, 2016). A cultura do povo negro, como um todo, vem sendo expropriada/apropriada pela branquitude que representa um lugar de poder, onde constantemente busca efetuar um esvaziamento dos sentidos, da oralidade, da musicalidade, costumes, tradições e, de produções negras transformando-as em produto de consumo da sociedade 65 Criminologia periférica A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural DOI: 10.23899/9786589284369.5 capitalista. O grande problema é que ao fazer isto, o real significado daqueles elementos fundantes é alterado e toda a história de luta e resistência do povo negro acaba sendo desconsiderada, invisibilizada e apagada (WILLIAM, 2019). Nas palavras de Sueli Carneiro (2005), a racialidade ao determinar o princípio humano no sentido de brancura, delineando as outras dimensões humanas de forma hierárquica pela distância ou aproximação desse padrão. Nisso se fundamenta o branco como ideal (ser) em relação aos outros (não ser) (CARNEIRO, 2005). A indústria musical dos anos 1950/1960, marcada pelo racismo estrutural brasileiro, começou a preterir sambistas negros em relação aos sambistas brancos, dando uma nova “roupagem” ao gênero musical que, a partir desse período, se tornaria mais “refinado” pelo surgimento do movimento da Bossa Nova, o qual impactou negativamente a vida e a renda daquelas artistas, mulheres negras que sobreviviam de cantar samba também como uma manifestação política que denunciava a opressão vivida por elas (WILLIAM, 2019). Isso demonstra a masculinização do gênero musical, destacando uma maior visibilidade pela indústria musical aos artistas homens, do que para as artistas mulheres. Nas décadas seguintes, anos de 1980/1990 foram assinaladas por outro movimento de samba oriundos das periferias e regiões metropolitanas de São Paulo, “os pagodeiros”, assim designados pela mídia musical popularizado em todo o país. Mas, o que diferencia samba e pagode? Pagode também é corrente nas regiões norte e nordeste do Brasil, em festas de sanfoneiros, assim como em festas tradicionais de tocadores de viola caipira no interior do estado de São Paulo e de outros lugares. Então o pagode é apropriado para designar uma reunião de pessoas que reúnem-se para tocar samba (gênero musical), sendo também utilizada para outros ritmos (MATEUS, 2021). Dentro desse contexto musical é importante lembrar o que já nos dizia Lélia Gonzalez (2020) sobre o racismo, precisamente em relação às mulheres negras. Lélia pontua que o racismo latino-americano é refinado a ponto de manter a população negra em condições de exploração através de um sistema ideológico que os domina e nega o direito de serem sujeitos da sua própria história e cultura, desumanizando-os e folclorizando-os, ao mesmo tempo em que concede privilégios aqueles que se enquadram na visão de mundo eurocêntrica e neocolonialista. Isso tudo é agravado quando analisamos a categoria de mulheres no samba, pois por um lado são vistas como as mulatas/musas do Carnaval, por outro são invisibilizadas quando atuaram/atuam profissionalmente como compositoras/cantoras de samba, mesmo diante de seu talento incontestável (GONZALEZ, 2020). 66 Criminologia periférica A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural DOI: 10.23899/9786589284369.5 Há uma tendência na historiografia da indústria musical, de destacar a importância das mulheres negras da samba como personalidades pela sua atuação enquanto cantoras, ressaltando suas vozes, seus corpos, sua desenvoltura quando dançam (dançarinas/musas), ou a generosidade e acolhimento quando se fala das tias baianas. Um universo de saberes ancestrais, de vida em comunidade, de cultura e musicalidade, vindos das rodas de samba, dos quilombos e da religião africana como os candomblés, que é visto de forma distorcida e esvaziada de sentidos, estabelecendo uma relação do ventre da mulher com o ritmo do samba como essenciais para sua criação, existindo uma evidente disparidade na relação entre compositores e compositoras. Desse modo, a visibilidade que se dá ao feminino é a capacidade de gerar o sambista no seu ventre, ou de acolhê-los em suas casas e festas na comunidade e, não a competência/potência de criação do gênero musical, verdadeiras obras primas produzidas por essas mulheres. Mas o que existe é o destaque único para os sambistas homens, em geral parentes ou filhos dessas mulheres, elas criaram a samba e os fizeram sambistas, mas somente estes homens foram legitimados pela branquitude como os primeiros “sambistas” (CAVALCANTI, 2019). Sobre a mulata/musa se exerce um processo de hipersexualização, erotização folclórica e objetificação sexual a ser consumido pela elite branca racista, afinal, seus corpos serão super expostos na única noite gloriosa do ano e sua imagem certamente será destaque nos principais jornais da grande mídia, no dia posterior, ainda que na semana seguinte ela só seja mais uma, dentre tantas mulheres negras oprimidas. Já para as mulheres negras que são lidas como a “mãe preta” a mulher negra retinta (em geral a doméstica), recai os estereótipos de faxineira, cozinheira, lavadeira, etc., aquela que deve atuar em locais que não tenham contato com o público, fazendo todo o “trabalho pesado”, onde possa ser explorada economicamente sem expressar as opressões a que são submetidas (GONZALEZ, 2020). Giovana Xavier, historiadora nos relata que as mulheres negras foram descritas como “heroínas caladas e pacientes ao longo da história” pelo olhar branco de muitos “teóricos intelectuais”, que as definiam como objetos e, colocadas num lugar de servidão tido como naturalizado. Outra ideia racista é a definição de que mulheres negras são “guerreiras” suprimindo a condição humana da fragilidade, colocando a dor como um referencial único na vida dessas mulheres (TIA CIATA, 2017). Desta forma, Lélia escancara que o corpo negro não é visto enquanto potência intelectual e, o da mulher negra, muito menos. Ela é tida como uma trabalhadora braçal, sem qualquer qualificação e que não consegue ascender socialmente, pois não se esforçou o bastante, ou seja, o discurso da meritocracia, fundado na falsa ideia de uma 67 Criminologia periférica A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural DOI: 10.23899/9786589284369.5 democracia racial, também influencia negativamente a forma como tais mulheres são vistas (GONZALEZ, 2020). Por isso, não é simples numa sociedade de ideais brancos, ser resistência, ainda mais quando este corpo é preto e artístico. A mulher negra que fez e faz história na nossa Améfrica Ladina, ou no país do pretuguês, como diz Lélia Gonzalez (2020), onde a mãe preta revolucionou os caminhos por onde deixou suas lágrimas e marcas, onde o samba como revolução, ora apropriado destacou potencialidades no mundo da música. Mas pergunta-se onde estão as mulheres negras cantoras de samba? Conforme Grada Kilomba (2019) o racismo em todas as suas facetas busca controlar o/a sujeito/a negro/a e demonstra a vontade da branquitude em limitar e restringir a população negra das suas próprias aproximações e interpretações, direcionando inclusive o seu lugar (o não-lugar). Ocorre um eterno fechamento de portas porque pela branquitude, a negritude é vista enquanto inferioridade, logo quem deve ditar e escolher os espaços e formas de ser são as pessoas brancas. Sendo o racismo o espaço onde acontecem diversos processos simultâneos, de invisibilização, exclusão e controle, qual a importância de mulheres negras como Jovelina Pérola Negra? Dona Ivone Lara? Elza Soares? Leci Brandão? São as mulheres negras que movem as engrenagens da sociedade, quem diz isso é nada mais, nada menos que Angela Davis! Portanto, diante da potência, o que a trajetória de mulheres negras sambistas tem a dizer? O que se evidencia que essas mulheres partilham na coletividade são sua ancestralidade, negritude, afetos, a luta no enfrentamento do racismo, a forma de revolucionar o mundo e subverter as estruturas por meio da samba. Quem disse que cantar é coisa de preta? A vida, a voz, a musicalidade dessas mulheres! Na música de Dona Ivone Lara: Um sorriso negro/Um abraço negro/Traz felicidade/Negro sem emprego/Fica sem sossego/Negro é a raiz da liberdade/Negro é uma cor de respeito/Negro é inspiração/Negro é silêncio, é luto/Negro é a solidão/Negro que já foi escravo/Negro é a voz da verdade/Negro é destino, é amor/Negro também é saudade. E Leci Brandão? Ela entra em cena sacudindo as estruturas coloniais do saber2 e rompe com aquilo que Chimamanda (2018) diz ser a “história única”: Zumbi, o teu grito ecoou/No Quilombo dos Palmares/Como um pássaro que voou/Tão liberto pelos ares/Um grito de dor e de fé/Ficou registrado na nossa história/Pela luta, pelo axé/Pela garra, pela glória. O que essas canções têm em comum? o enfrentamento ao sistema racista, um dar as mãos para a população negra. Termo desenvolvido por Quijano (2000) para demonstrar as forças coloniais no processo de construção de conhecimento. 2 68 Criminologia periférica A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural DOI: 10.23899/9786589284369.5 E para que voz mais potente do que Elza Soares pra falar de feminismo negro, dos atravessamentos que as mulheres negras sofrem, refletindo mais uma vez a colonialidade do poder e do saber? Mil nações moldaram a minha cara/Minha voz, uso pra dizer o que se cala/Ser feliz no vão, no triz/É força que me embala/O meu país é o meu lugar de fala/Pra que separar?/Pra que desunir?/Porque só gritar?/Porque nunca ouvir?/Pra que enganar?/Pra que reprimir?/Porque humilhar?/E tanto mentir?/Pra que negar que ódio é que te abala?/O meu país é meu lugar de fala. Mulheres negras resistiram e resistem pela ancestralidade e coletividade presentes na práxis da samba, desde os ritmos mais longínquos do som dos atabaques vindos dos quilombos, da musicalidade oriunda dos terreiros, dos cantos africanos ao berço da samba habitando os espaços urbanos onde o povo negro celebra a vida, a vida em comunidade, o carnaval. A samba como práxis, é o lugar de acolhimento, que tem o poder de reunir as pessoas trazendo o sentido de coletividade. A apropriação sobre a cultura africana vem desde a Diáspora Negra quando arrancados de seu Continente os africanos que aqui chegaram tiveram que abandonar suas tradições para sobreviver num mundo estranho sob um regime de desumanização. A apropriação cultural se moldou na pós-abolição em especial nas primeiras décadas do século XX como uma das faces do mito da democracia racial, a partir do conceito de brasilidade, onde a cultura do povo negro foi incorporada como cultura brasileira ou folclorizada até o seu total esvaziamento por um padrão cultural branco. Neste sentido, a presença das mulheres negras na samba, ora é super exposta pela mídia de massas, no intuito de folclorizar e objetificar aqueles corpos que são constantemente hipersexualizados, ora é invisibilizada quando se propõe a cantar, já que é por meio da música que busca também anunciar as formas de resistência e alianças para enfrentar a perversidade posta pela branquitude contra os corpos da população negra. Diante de todo esse cenário, algumas mulheres negras por meio da samba, foram e seguem sendo resistência/potência a todo o processo de branqueamento, apropriação cultural e desumanização. É pela música que muitas denúncias são feitas e os gritos de esperança são dados, ainda que em alguns cenários a branquitude usurpe e/ou suba ao palco do protagonismo, invisibilizando a produção potente das mulheres negras. Referências ACERVO MIS. Museu da Imagem e do Som. Trecho de entrevista com a sambista Deolinda Madre (Madrinha Eunice). Coleção Carnaval Paulistano do Acervo MIS. Entrevista de história oral com Deolinda Madre. 2019. Disponível em: <https://youtu.be/7CGMLs_GbKs>. Acesso em: jul. 2022. 69 Criminologia periférica A musicalidade ancestral das mulheres negras na cultura brasileira: samba, uma contranarrativa de resistência à apropriação cultural DOI: 10.23899/9786589284369.5 CARDOSO, Lourenço. O branco ante a rebeldia do desejo: um estudo sobre a branquitude no Brasil. 2014. 290 f. Tese (doutorado) – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras, 2014. CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. Disponível em: <https://repositorio.usp.br/item/001465832>. Acesso em: jul. 2022. CAVALCANTI, Maria Clara Martins. As mulheres e o samba na narrativa histórica: reflexões em torno da questão de gênero na exposição “o Rio de samba: resistência e reinvenção” do museu de arte do Rio. 2019. Disponível em: <https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1564665390_ARQUIVO_Artigo Final_MariaClaraMartins.pdf>. Acesso em: ago. 2021. CLEMENTINA DE JESUS, RAINHA QUELÉ. Cor filmagem: Colorida. Origem: Brasil. 2011, Documentário. Duração: 56 min. Direção: Werinton Kermes. Disponível em: <https://vimeo.com/301702668>. Acesso em: jul. 2022. ELZA SOARES. O que se cala. 2018. Disponível em: <https://youtu.be/5ypEw_9BFfQ>. Acesso em: jul. 2022. GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro latino americano: ensaios, intervenções e diálogos. Zahar, 1 ed., org. 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Nesse diapasão, será abordado e analisado até onde vai a liberdade de discricionariedade dos julgadores para justificar a conduta típica, frente a discrepância entre o tratamento entre o usuário e o traficante da seletividade penal ocasionada pelo etiquetamento, isto é, sob a ótica da Labeling Approach. Com pesar, o notório fracasso da política de guerra a drogas trouxe consigo inúmeras consequências à seara penal, social e a todo ordenamento jurídico, sendo um dos principais responsáveis por causar superlotações nas unidades prisionais brasileira, a qual ocupa o ranking mundial de uma das maiores populações carcerária, oriunda da tipificação legal com critérios essencialmente subjetivos que servem para o controle de classes. A temática aponta o perigo da liberdade das decisões pautadas em parâmetros sociais, abrindo assim brechas para julgamentos que se baseiam em estereótipos marginalizados socialmente, deixando de lado tão somente a fatídica que envolve o sujeito. A relevância dessa análise está principalmente no risco e consequência que a Possui graduação em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso. Atualmente é Assessor Jurídico da Prefeitura Municipal de Alta Floresta. E-mail: marins_matheus@hotmail.com ** Doutorando em Filosofia pela Unisinos. Mestre em Teoria do Direito e Teoria do Estado pela UNIVEM. Especialista em Teoria e Filosofia do Direito pela PUC-MG. Atualmente, é professor de Direito da Universidade Estadual de Mato Grosso e da Faculdade de Sinop, onde leciona Criminologia. E-mail: profhorita@outlook.com * 72 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 subjetividade em tela criou à segurança jurídica que se tornou instável e abriu meios para a seletividade penal. Diante desse quadro, o presente trabalho se funda, através do método dedutivo, em uma tentativa de demonstrar a necessidade imediata de preencher as lacunas legais, que com elas trazem mazelas à justiça e sociedade, se alastrando cada vez mais como um mal que se enraíza e que pouco se faz para coibi-lo e tratá-lo de forma eficaz. Contextualizando o inimigo no direito penal As penas são aplicadas desde o momento que a sociedade passou a se organizar para viver socialmente, sendo que a punição era utilizada para aqueles que infringissem as regras, que até então, não eram ainda as leis, mas sim as convicções morais, religiosas e de organização, usada como forma de punir o mal causado e dotada de um caráter de vingança. Segundo o art. 59 do Código Penal existe um caráter de retribuição pela prática do crime e de prevenção de outras infrações, seja pelo próprio condenado ou por outras pessoas, já em relação ao caráter reeducativo da pena, se encontra nas disposições da Lei de Execução Penal, a pena passe a ter um tríplice aspecto, para Júlio Fabbrini Mirabete (2001, p. 245): Passou-se a entender que a pena, por sua natureza, é retributiva, tem seu aspecto moral, mas sua finalidade é não só a prevenção, mas também um misto de educação e correção. Para Pellegrino Rossi, Guizot e Cousein, a pena deve objetivar, simultaneamente, retribuir e prevenir a infração: punitur quia peccatum ut ne pecceptur. Segundo tal orientação, a pena deve conservar seu caráter tradicional, porém outras medidas devem ser adotadas em relação aos autores de crimes, tendo em vista a periculosidade de uns e a inimputabilidade de outros. Seriam essas as denominadas medidas de segurança. O Estado continua com a função de punir, entretanto a sanção não tem mais o objetivo de mostrar o poder soberano do Estado, serve como uma forma de alertar os cidadãos para não cometer o que é tido como crime, respeitando sempre os limites da legalidade, humanidade e a ressocialização, em tese. A pena se bastaria para a realização da justiça, segregando quem chegar a cometer o crime. Observa-se que a pena é uma forma de retribuição e de afirmação do poder punitivo do Estado. As penas são podem ser narradas como falhas quando não cumprem seu papel social, mas quem sofre com as falhas estatais são as classes mais vulneráveis economicamente, com o endurecimento das penas para condutas simples geralmente 73 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 praticadas em decorrência da falta de um Estado eficiente. Por outro lado, penas como os crimes de colarinho branco que tem uma sanção mais branda por exemplo, reforçando a ideia das desigualdades sociais e aplicando severamente penas à conduta que não são bem vistas aos olhos. No entanto, fica nítido que ocorre a cifra negra quanto a isso. Uma das principais críticas em questão se baseia no fato do sistema penal não conseguir executar o pretendido, pois na hora de exercer suas funções de prevenção geral e especial não se realizam, não evitam novos delitos, nem ocasiona a segurança jurídica. Todos esses fatores alegados recaem à Lei de Drogas nº 11.343/2006, pois a linha tênue para a classificação do traficante ou do usuário se utiliza muitos dos critérios puramente subjetivos. Desta feita, o judiciário e a polícia podem usar de forma arbitrária a possibilidade de relativizar as condições pessoais do agente, como a moradia, condições sociais e os antecedentes para determinação do agente delituoso, assim teria se criado a oportunidade de se desenvolver um estereótipo de traficante de entorpecentes, tornando a conduta do agente como típica as vezes antes mesmo de apurado os reais fatos. O Direito penal do inimigo se destaca com Günther Jakobs (2007), a qual essa proposta se disseminou mundialmente, entranhando-se seu resquício no ordenamento penal brasileiro. Tal teoria possui objeto em que separa os delinquentes e criminosos em duas categorias, de um lado o status de cidadão, que, uma vez que infringissem a lei teriam o direito à um julgamento dentro do ordenamento jurídico normalmente estabelecido dentro dos conceitos do cidadão médio e assim voltaria a ajustar-se à sociedade. Por outro lado, seriam os caracterizados como inimigos do Estado, aqueles que se manifestam socialmente como adversários do Estado, cabendo assim a eles tratamento mais pungentes diferenciado dos demais. Assim, na concepção de Günter Jakobs o ordenamento jurídico deve manter os cidadãos delinquentes cobertos pelo Direito, no intuito de reingresso social. Seguindo essa: O Direito Penal conhece dois polos ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate sua periculosidade (JAKOBS, 2007, p. 37). 74 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 Nessa perspectiva, o Estado poderá exercer a punibilidade em duas formas aos infratores, primeiro sob a ideia de pessoas que delinquem, indivíduos que tenham cometido erro, no esboço do presente trabalho o enquadramento ao usuário que mantém o status de cidadão, ou ainda pessoas que devem ser impedidos de atacar o Estado e o ordenamento jurídico, aplicando a coação, por meio de criação de leis severas direcionados a pessoas específicas, como traficantes e terrorista, assim destaca-se: Com viés extremamente punitivo e sem observância das garantias processuais, o Direito Penal do Inimigo almeja punir aquele que viola as expectativas sociais e põe em risco toda a coletividade. O inimigo é aquele que não respeita o Estado de Direito, praticando condutas criminosas que ameaçam todos os direitos sociais, como a vida, a segurança pública, a saúde etc. Se assim o for desrespeitando as leis e a Constituição Federal, o ordenamento jurídico também não deve ser aplicado a ele de forma a tratá-lo igualmente àquele que respeita todos os direitos e as garantias individuais (GONZAGA, 2018, p. 21). O problema trazido por tal perspectiva se monstra nas condições e capacidades especiais em distinguir entre os que mereciam ser chamados de cidadãos e os que deveriam ser considerados inimigos, que quando aplicado nos crimes relacionados, expõe a incapacidade de tal que aponta afiada da espada se direciona com rigidez a determinados grupos com estereótipos marginalizados, já em outra esfera um estereótipo mantém-se protegido pelo ordenamento jurídico equilibrado e brando, e isto não exclusivamente pela conduta, mas por características físicas, sociais, regionais e econômicas. Segundo Sérgio Salomão Shecaira (2008) a criminologia tem por objetivo conhecer a realidade para explicá-la, enquanto o Direito Penal ordena e orienta a realidade respaldado em um leque de critérios axiológicos. Isto é, se manifesta como um ramo da Ciência Criminal que desloca seu olhar para a compreensão da realidade criminal, abarcando os contextos, e quais serão os resultados da questão criminal. Na construção do entendimento constitucional encontra-se garantias fundamentais que se ventilam objetivamente na esfera penal/criminal, a qual deveria atuar sem distinção a todos que sejam dotados de personalidade jurídica, independentemente do tipo penal, entre eles, o estado de inocência que também foram cristalizados em tratados internacionais, como a Declaração Universal de Direitos Humanos. Nesta toada, o Estado Democrático de Direito deveria colocar a presunção de inocência como pilar defensivo do indivíduo atuante como polo de um processo penal, que por si só já é uma pena. Assim, até que as provas obtidas diretamente do fato delitivo 75 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 apontem a culpa, o que impõe é a inocência, afastando a culpabilidade do indiciado. Em consequência, quando criado estereótipos preconceituosos e marginalizados, se desconstrói a condição de pessoa. A partir dessa rotulação desumanizadora o agente aparece não somente como perigoso, mas sua cidadania é negada e lhe é imposto o estigma de inimigo (ZAFFARONI, 2014). Assim, quando taxado como inimigo mitiga as garantias fundamentais. Em meio este esta ideia, Günther Jakobs vem firmar que “um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios do conceito de pessoa” (JAKOBS, 2007, p.85). É possível pensar que construir um discurso direcionado para determinada taxação de inimigo, a partir do ilícito em questão é direcionar a retirada de direito a um público específico. Afirma Raul Eugênio Zaffaroni (2014, p. 175) que: O verdadeiro inimigo do direito Penal é o Estado de Polícia, que, por sua essência, não pode deixar de buscar o absolutismo. Neste embate de pulsões e contrapulsões não é possível ceder terreno algum, e menos ainda imaginar com ingenuidade que o inimigo se conformará com um hipotético espaço compartimentado, porque este não existe, dado que os limites são porosos, alternam –se de forma permanente e não são controláveis. A criminologia crítica destaca então que a criminalidade está na sociedade, porém os danos sociais, econômicos gerados pelos crimes políticos e econômicos, são superiores àqueles causados pelas pessoas das classes econômicas mais baixas. Oriundo de uma construção histórica, o estereótipo do criminoso pode ter se enraizado no sistema de segurança pública, por isso vem sendo fonte de fundamento em sentença, gerando consequências a determinados grupos e nocivas à sociedade como todo, Alessandro Baratta (2002, p.197-198) diz: Enquanto a classe dominante está interessada na contenção do desvio em limites que não prejudiquem a funcionalidade do sistema econômico-social e os próprios interesses e, por consequência, na manutenção da própria hegemonia no processo seletivo de definição e perseguição da criminalidade ,as classes subalternas, ao contrário, estão interessadas em uma luta radical contra os comportamentos socialmente negativos, isto é, na superação das condições próprias do sistema socioeconômico capitalista, às quais a própria sociologia liberal não raramente tem reportado os fenômenos da “criminalidade”. [...] Realmente, as classes subalternas são aquelas selecionadas negativamente pelos mecanismos de criminalização. As estatísticas indicam que, nos países de 76 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 capitalismo avançado, a grande maioria da população carcerária é de extração proletária. Diante dessa tradição do estereótipo referente a condutada tida como grave, perigosa e violenta, se manifesta o tocante à seletividade penal que se resulta em enrijece uma construção sociocultural que alcança a máquina da jurisdição tornando o sistema penal seletivo e ilegítimo frente ao tratamento desigual que se presta como instrumento de controle social seletivo e discriminatório. Na visão de Alfonso Maíllo (2007, p. 257): O enfoque do Etiquetamento quer dizer basicamente duas coisas. Em primeiro lugar, que não existe quase nenhum ato que seja delitivo em si mesmo, mas delitivo ou desviado é aquilo que se define como tal pela comunidade ou pelos órgãos do sistema de Administração da Justiça. A chave para que algo seja delitivo, portanto, não reside tanto em suas características intrínsecas, mas no etiquetamento que dele se faça. [...]. Em segundo lugar, é provável que sejam muitas as pessoas que incorram em atos desviados e até delitivos. Então, comportamento e ação não são iguais, passa a analisar o meio social de onde delinquente está inserido e a atuação do sistema penal é de que as condutas criminosas e suas penas são baseadas por diversas causas advindas das desigualdades sociais que formam antes mesmo da realização da conduta criminal. Em particular, reflete uma contradição fundamental entre igualde dos sujeitos de direito e desigualdade substancial dos indivíduos. O sistema penal possui evidente proteção social indistinta, em um pretenso Direito Penal igualitário. Sob essa ótica, pode-se concluir que: [...] o sistema penal é extremamente seletivo no combate ao crime. Desde a elaboração de normas proibitivas de condutas, até a punição judicial de criminosos, há uma perversa seleção de agentes que irão sofrer a efetivação da sanção penal. O status quo que impera no combate à criminalidade é alarmante. No intuito de manter calma a desinformada sociedade, direciona-se a punição a determinadas condutas (com doses altíssimas de publicidade) e cria-se a ideia de que a criminalidade está controlada. Falsa ilusão simbólica, porquanto a mais perversa e destruidora forma de criminalidade, a de cunho econômico, está a proliferar-se, sem que os órgãos estatais previnam e combatam tais forma de delito. A seletividade estrutural do sistema penal – que só pode exercer seu poder regressivo legal em número insignificante das hipóteses de intervenção planificadas é a mais elementar demonstração da falsidade da legalidade processual proclamada pelo discurso jurídico-penal. Os órgãos executivos têm 77 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 “espaço legal” para exercer poder repressivo sobre qualquer habitante, mas operam quando e contra quem decidem (ZAFFARONI; PIERANGELI, 1999, p. 77). Em atenção a Lei 11.343/2006, tem-se o artigo 28, e nele aponta-se lacunas que contribuem expressamente para a concretização da seletividade penal frente as questões políticas e culturais abordadas, os quais se reproduzem nos métodos de classificação da conduta típica, o artigo em questão gera um campo de subjetividade que traz como consequência a insegurança jurídica do que ora é crime, ora não. Nestes termos: Art. 28 Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: [...] § 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente (BRASIL, 2006). Isto posto, a atenção volta-se ao parágrafo 2º do respectivo artigo, em que discrimina a classificação de usuários de drogas, aqui, o principal ponto crítico é os quesitos subjetivos em que o Magistrado deverá fazer o sopesamento para caracterizar a conduta se baseando quanto ao local, as condições que se desenvolveu a ação, as circunstâncias sociais, bem com a conduta e aos antecedentes do agente. Ora, o preocupante se faz nos amplos critérios de interpretações individuais em que atua as agências policiais e judiciais que acaba por gerar espaço para utilizar-se de uma abrangente arbitrariedade das condições pessoais do agente, do local e os antecedentes para a classificação, Howard Becker aduz: O grau em que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele. Regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas que a outras. Estudos da delinquência juvenil deixam isso muito claro. Meninos de áreas de classe médica, quando detidos, não chegam tão longe no processo legal como os meninos de bairros miseráveis. O menino de classe média tem menos probabilidade, quando apanhado pela polícia, de ser levado à delegacia; menos probabilidade, quando levado à delegacia, de ser autuado; e é extremamente improvável que seja condenado e sentenciado. Essa variação ocorre ainda que a infração original da norma seja a mesma nos dois casos (BECKER, 2008, p. 25). 78 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 Dessa forma, o estereótipo marginalizado do traficante de drogas funciona como o elemento central de enquadramento da conduta típica. Gerando julgamentos de casos concretos de extremas semelhança tipificadas pela jurisdição de formas de extremamente discrepante quando se trata de classes abastadas ou não vistas sob a ótica de “raças” que possuem tendências à marginalidade. Teoria do labeling approach Conhecida também como teoria do etiquetamento, tal corrente parte da ideia de que a criminalidade é uma construção da sociedade, decorrente de processos de definições e de interação social. Assim, entende-se o crime não como uma realidade intrínseca, mas sim com a tipificação de critérios seletivos e discriminatório que em dado momento social foram definidos como tal. Tem-se, portanto, um paradigma criminológico em crítica ao paradigma etimológico, que observava o sujeito que comete crime através de suas características individuais, nessa teoria: A sociedade define, por meio dos controles sociais informais, o que se entende por comportamento desviado, isto é, todo comportamento considerado perigoso, constrangedor, impondo sanções àqueles que se comportarem dessa forma. Condutas desviantes são aquelas que as pessoas de uma sociedade rotulam às outras que as praticam. A teoria da rotulação de criminosos cria um processo de estigmatização para os condenados, funcionando a pena como algo que acentua as desigualdades. Nessa interação estigmatizante, o sujeito acaba sofrendo reação da família, de amigos, conhecidos e colegas, acarretando a marginalização nos diferentes meios sociais (GONZAGA, 2018, p. 57). Desta feita, extrai-se que a Teoria de Etiquetamento, veio com a contextualização criminológica ousado, em que propôs a inversão de paradigmas, a importância das relações no meio social no estudo do comportamento do criminoso alterou o enfoque do pensamento criminológico, que até então, procurava respostas sobre a origem da criminalidade pautado nas características intrínsecas de cada indivíduo ao invés do meio social em que ele estava posto. Além de entender a conceituação do surgimento do Labelling Approach, se faz necessário analisar o contexto histórico em que a teoria surge. Aparecendo pela primeira vez no final da década de 1950 e meados de 1960, no Estados Unidos da América. Diante deste contexto histórico surge-se o Labelling Approch, um paradigma que aponta o crime e a criminalidade como construções sociais. Concluindo que a 79 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 corrente surge em meio a lutas por questões sociais dentro e fora dos EUA, cuja defesa da sociedade surgiu para confrontar o etiológico vendo assim o infrator como pertencente a uma sociedade, com identidades sociais que refletem em suas atitudes. Essa teoria aborda uma diferenciação no tratamento de certos criminosos, passando a ver como inimigo real da população e do Estado, fazendo diferenciações como base para se aplicar a pena. É possível afirmar que a subjetividade da Lei que se originou como Guerra as Drogas se tornou uma das mais visíveis ferramentas para a concretização da seletividade penal elitista e também para o encarceramento massivo de jovens as margens da sociedade. Observa-se que o etiquetamento do sistema criminal, é abarcado pela criminalização primária e secundária, que são realizados pelo legislativo no momento das realizações as normas penais, e também pela polícia, ministério público e juízes que exercem esse controle. A grande crítica elencada pelos adeptos e teóricos da teoria em tela, sobre a temática, tange a finalidade da pena criminal. Conforme expõe Alessandro Baratta (2002, p. 179): Esta é chamada a evidenciar o papel desenvolvido pelo direito, e em particular pelo direito penal, através de norma e de sua aplicação, na produção das relações sociais, especialmente na circunscrição e marginalização de uma população criminosa recrutada nos setores socialmente mais débeis do proletariado. À vista disso, o instituto penalizador serve como seleção das instâncias do crime, uma vez que o sistema penal seleciona pessoas visando sua classe social como meio de segregação. Nesse sentido, Eugênio Raúl Zaffaroni (2015, p. 73) leciona: [...] ao menos em boa medida, o sistema penal seleciona pessoas ou ações, como também criminaliza certas pessoas segundo sua classe e posição social. Há uma clara demonstração de que não somos todos igualmente ‘vulneráveis’ ao sistema penal, que costuma orientar-se por ‘estereótipos’ que recolhem os caracteres dos setores marginalizados e humildes, que a criminalização gera fenômenos de rejeição do etiquetado como também daquele que se solidariza ou contata com ele, de forma que a segregação se mantém na sociedade livre. A posterior perseguição por parte das autoridades com rol de suspeitos permanentes, incrementa a estigmatização social do criminalizado. Conclui-se com os fatos narrados que o sistema penal brasileiro não efetiva o que deveria ser sua finalidade de ressocializar, ao contrário, o indivíduo que encara a lâmina 80 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 da justiça punitiva, é lançado em uma realidade precária que o estimula a práticas socialmente rejeitadas, distanciando ainda mais da realidade socialmente aceitável. A criminalização é o resultado de fatores sociais vistos oriundo do desvio criminal, que etiquetam a figura atribuída ao infrator, criminoso ou ainda denominado delinquente, sujeitos esse que possam realizar condutas em desconformidade com o que impõe o tipo penal. Nesse diapasão, Sérgio Salomão Shecaira (2008, p. 294) propõe: A personalidade do agente se referenciará no papel desviado ainda que ele se defina como não desviado. As dificuldades são ainda mais pronunciadas quando o agente, embora negue o papel desviado, é, cada vez, identificado por terceiros pela conduta classificada como desviada. Surgirá uma espécie de subcultura delinquente facilitadora da imersão do agente em um processo espiral que traga o desviante cada vez mais para a reincidência. Desta feita, origina o movimento da Criminologia Crítica como decorrência de entendimentos trazidos pela teoria do Labeling Approach. A conduta do criminoso e os efeitos gerados por ela na sociedade é analisado sob um novo viés, voltando-se para o estudo econômico-político da então tida conduta desviada, trabalhando sob a perspectiva da conduta socialmente repreendida e qual o processo de criminalização que a envolve. A Criminologia Crítica vem trazer uma vertente macrossociológico, apontando pungentemente as desigualdades de classes como reflexos a ser considerado dentro da seara do crime, desta forma o crime ou a conduta desviada não é analisada sob a ótica de qualidade do criminoso, mas como uma decorrência direta da atuação, ou a falta, do sistema penal. De acordo com Alessandro Baratta (2002, p. 160) expõe: O deslocamento do interesse cognoscitivo das causas do desvio criminal para os mecanismos sociais e do desvio, ou seja, para os mecanismos através dos quais são criadas e aplicadas as definições de desvio e de criminalidade e realizados os processos de criminalização. As condutas criminosas já não se baseiam em uma característica ontológica de comportamentos determinados e de indivíduos específicos, mas sim um status atribuído a determinados indivíduos. Deste modo, a criminalização com a estigmatização do indivíduo em conjuntura com as políticas de controle social gera a produção do desvio, vistas como as ações reiteradas das classes estigmatizadas. Logo, com o enraizamento dos fatores que estimulam práticas criminosas o resultado obtido 81 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 não será outro senão o elevado indicie de crimes e a reincidência de classes específicas. O crime então passa a ser analisado como sendo gerado pelo sistema penal, gerado pela forma de seletividade que descrimina. Na Labelling Approach, o crime e seu reflexo social são presenciados isoladamente, isso é, não de dividem, atuando inseparáveis. Em que pese essa perspectiva não conseguia superar a criminologia liberal, uma vez que se manteve dentro de uma esfera idealista. Por isso, Raul Eugênio Zaffaroni (1998) entende que essa teoria embora fora significativa, não foi suficiente para o desenvolvimento do estudo macrossociológico, sendo assim apenas um ponto de partida para os teóricos buscassem se aprofundar nos institutos de rotulagem das condutas socialmente desviadas. O usuário ou traficante à luz do labeling approch Importante entender na presente discussão qual a figura que vem à mente quando se pensa em quem são os traficantes? Esta é uma questão que não deveria ser respondida com facilidade e não deveria ser aceito conceitos instantâneos. Em que pese, ao abordar a ideia de tráfico, o estereótipo bastante comum para maior parte da sociedade é a figura de o indivíduo negro, com roupas largas, usando assessórios extravagantes, portando armamentos e morando em áreas periféricas. Figura esta que imediatamente, além de equivocadamente, passa a ser visualizada como provável não pessoa (JAKOBS, 2007), que se demonstra como inimigo do Estado. Nessa toada, explica Coimbra e Nascimento (2003) que circunstâncias que possibilitaram a emergência do que nomearam de mito da periculosidade, o que seria nada mais que a atribuição da periculosidade, condutas desumanas e criminosas à figura do pobre, representam a concretização do Racismo de Estado, sendo que quando não forem definitivamente criminosos a figura tem potencial tendência para manifestar-se como inimigo. Deste modo, com a violência ligada àquilo que se é pobre, é facilmente imaginar que existem formas de mecanismo especificados a punição e controle da sociedade hipossuficiente. Assim, o perfil de usuário que se encontra em situação de carência é facilmente criminalizado, amargando os reflexos da ineficaz guerra as drogas, vez que: [...] na construção de Política Pública, no caso específico do crack, vimos que a pessoa tem vez nem voz, porque na formulação de Políticas Públicas voltadas à questão de drogas são chamados diversos atores sociais envolvidos na questão DROGAS: policiais, juristas, políticos, padres, pastores, médicos, psicólogos, sociólogos, dirigentes de comunidade terapêuticas, representantes de associações médicas. Ministério da Saúde, secretaria Nacional de Políticas de 82 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 Drogas, mas não são chamados representantes do público-alvo, ou seja, nunca são consultadas pessoas que fazem o de drogas para discutir qual a melhor forma de se pensar em políticas públicas que contemplem suas necessidades, um exemplo de como uma epidemia e a resposta rápida do governo na formulação de um Plano Emergencial para Ampliação ao Tratamento e Prevenção em Álcool e Outras Drogas no SUS - PEAD (LOIVA, 2010, p. 164). O encarceramento em massa é uma grande preocupação no sistema de execução penal brasileiro, o número de presos em cárcere provisório é exasperado tendo forte contribuição da Lei Drogas. A relação do tráfico trazida com ela tem levantado grandes problematizações quanto a conduta típica, vez que a Lei 11.343/2006 não traz critérios objetivos e específicos para a distinção entre o que é a traficância e o usuário. Estando esta questão sob a discricionariedade de autoridade policial quem efetua o primeiro contato com a conduta. Dessa forma, não havendo positivada regra clara e objetiva que defina como ele deve classificar a questão. De tal modo, distinção que deve ser feita, conforme previsto em lei, não passa de simbologia, aplicada de forma objetiva. Devido à falta de critérios objetivos e legais que determine de forma coesa e imparcial a conduta típica em questão, a subjetividade possa trazer a desumanização e a criminalização da pobreza, abrindo um vasto campo de subjetividade que rotula e impõe o estereótipo de inimigo. O subjetivo conceito de julgamento abre espaço para um Direito Penal pautado em simbolismos e ilusão, deste modo no entendimento de Raul Eugênio Zaffaroni (1991, p. 27) “[...] o sistema é constituído para que a legalidade processual não se opere, e sim apenas exerça seu poder com alto grau de arbitrariedade seletiva”. Uma vez já abordado o estereótipo do criminoso, resta claro que a seletividade nos casos relacionados ao juízo do que é uso e do que será tido como tráfico já possui um pré-julgamento sobre a conduta, gerando o etiquetamente uma forma de direcionamento ao julgamento do criminoso, isso decorre de conceitos extremamente abstratos previsto no dispositivo legal. Segundo Alessandro Baratta (2003, p. 23): A guerra contra a droga no Brasil não é uma guerra internacional comandada pelos Estados Unidos e por outros países centrais; não é uma guerra contra um inimigo externo; é uma guerra contra o inimigo interno; um assunto, como se viu acima, de segurança nacional e urbana. 83 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 O inimigo se manifesta com a forma e estereótipo das classes sociais em situação de vulnerabilidade, que não possui as mesmas armas para se defender do poder estatal punitivo, logo, a violência contra ela acaba tendo legitimidade, enquanto para classes abastadas ainda se mantém o equilíbrio e segurança jurídica da balança da Justiça. O juízo de valor nos casos envolvendo drogas não são analisados de forma isoladas, voltado exclusivamente ao bem jurídico tutelado, ao combate ao antijurídico, abrindo lacuna a subjetividade por meio da preconização do local de apreensão, circunstâncias sociais e pessoais do agente. Contudo, a ausência de critérios objetivos descritos em lei afeta um princípio basilar no ordenamento jurídico pátrio, a segurança jurídica, onde grupos determinados já sofrem pré-julgamentos que muitas vezes resultam em condenações com extrema discrepância quando comparado a grupos abastados economicamente. É evidente que o Estado está perdendo a guerra as drogas, devendo esse reconhecimento ser um dos primeiros passos para um enfrentamento eficaz à problemática. Impõe-se a necessidade de inovar a tutela que deveria ser de controle do Estado e que se encontra sob o controle de organizações criminosas em que, fruto do etiquetamento, aqueles que estão no cume do controle não são devidamente punidos e muitas vezes nem mesmos alcançados pelo ordenamento jurídico. Cessando a ideologia repressiva da aplicação da pena a determinado grupo pode reduzir ou se demonstrar mais eficaz ao combate ao tráfico, visando aos reais controladores das redes de tráfico, retirando o direcionamento único e exclusivamente ao consumidor final, que se encontra na base. Destarte, o controle sobre massas e seletividade do sistema, são institutos que devem ser desconstruídos quanto o assunto é pretensão punitiva estatal, a fim de se coibir julgamentos pautados em condutas sociais e estereótipos, iniciando maior eficácia e igualdade voltada realmente e unicamente em tutelar a saúde pública, direcionando os julgamentos em uma efetiva segurança jurídica. Conclusão O objetivo do presente trabalho foi abordar como a política de guerra as drogas se tornou uma política que realiza a seletividade penal. A subjetividade envolvendo a lei antitóxico permite o juízo de valores sob aspectos pessoais e íntimos do julgador, fomentando e efetiva a aplicação de teoria seletiva em que os indivíduos são 84 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 estigmatizados, punindo-se o indivíduo pautado em características pessoais e estereótipos marginalizado, ao invés de exclusivamente o crime. Desta forma, fica demonstrado que o Estado é falho. O déficit estatal gera reflexos diretos nos fatores sociais, e assim o crime organizado atua e ampara determinadas classes de forma mais organizada e em posição de superioridade em relação ao Estado, gerando punições a determinados grupos sociais ante mesmo a prática de crime, ou seja, para alguns são lançados a um sistema punitivo preconceituoso, seletivo e fracassado, para outros a oportunidade de respeito aos direitos e garantias fundamentais. Evidente, portanto, a necessidade de readequação da atuação do Estado em todas as searas que envolve às classes fragilizada, gerando políticas eficazes desde a base familiar e chagando até os sistemas punitivos responsáveis por aplicar sanções às condutas criminosas, garantindo a todos a dignidade humana e um julgamento justo pautado em segurança jurídica, o qual o fato a ser julgado seja única e exclusivamente o crime, a conduta típica e não as características pessoais do agente, evitando assim a criminalização da pobreza. 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Porto Alegre: Ideograf, 2010. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2001. SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. Prefácio Alvino Augusto de Sá. 2. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revistas dos Tribunais, 2008. 85 Criminologia periférica A criminologia da seletividade penal quanto a subjetividade na tipificação da conduta na lei antitóxico DOI: 10.23899/9786589284369.6 ZAFFARONI, Eugenio Raul. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 3. ed. Tradução de Vânia Romano Pedrosa, Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991. ZAFFARONI, Eugenio Raul. A Questão Criminal. Tradução de Sérgio Lamarão. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2014. ZAFFARONI, Eugênio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. 11. ed. ver. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015. 86 Criminologia periférica Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas DOI: 10.23899/9786589284369.7 Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas Rafaela Isler da Costa* O perfil da mulher encarcerada Em 2018, o Ministério da Justiça e da Segurança Pública realizou o levantamento nacional de informações penitenciárias – Infopen Mulheres. No documento, relatou o perfil das mulheres encarceradas. Em relação à cor e raça, 62% eram negras. Em relação à escolaridade, quanto ao ensino médio, apenas 15% haviam concluído e 66% nem mesmo o cursaram (INFOPEN, 2018). De acordo com o relatório, é necessário compreender a natureza dos crimes tentados ou consumados pelas pessoas encarceradas para analisar o fluxo do sistema de justiça criminal e a seletividade penal. Nesse sentido, será possível compreender qual aparato punitivo do Estado será voltado para determinados crimes e para o encarceramento de determinados grupos sociais (INFOPEN, 2018). O relatório concluiu que 62% das incidências penais nos registros das mulheres encarceradas ou que aguardavam julgamento eram de crime de tráfico de drogas (INFOPEN, 2018). Diante do exposto, conclui-se que a maioria das mulheres privadas de liberdade foram acusadas de envolvimento com tráfico de drogas, são negras e de baixa escolaridade. Akotirene (2020) leciona que é necessário analisar o aprisionamento de mulheres por meio da interseccionalidade, já que nas prisões residem o sexismo e o racismo institucionais. Além disso, há o comportamento policial, que além de ser racista, julga Mestranda em Direito e Justiça Social no Mestrado em Direito e Justiça Social (PPGDJS/FaDir/FURG/RS). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). PósGraduação em Direito Público (LEGALE) Integrante do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos Humanos (NUPEDH/FURG).do CNPq: DIREITO, GÊNERO E IDENTIDADES PLURAIS (DGIPLUS). CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/2927053833082820 E-mail: rafaelaislerdacosta@gmail.com * 87 Criminologia periférica Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas DOI: 10.23899/9786589284369.7 as mulheres de camadas sociais estigmatizadas como perigosas, inadequadas e passíveis de punição. Tendo em vista as informações divulgadas pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública no levantamento de informações penitenciárias sobre mulheres, torna-se necessário discutir o aprisionamento com os marcadores de sexo, raça e classe social. Tendo em vista de realizar uma análise por meio da criminologia feminista com viés interseccional, o próximo capítulo analisará de forma suscinta a criminalização de entorpecentes e seus malefícios para a sociedade. O crime de tráfico de drogas como forma de punição aos indesejáveis Tendo em vista que atualmente a maior parte da população carcerária feminina é negra, com baixa escolaridade e envolvida no tráfico de drogas, torna-se necessário uma análise da criminologia feminista com viés interseccional e, defender a descriminalização das drogas, tendo em vista que esta, atualmente tornou-se um meio de punir os indesejáveis da sociedade, principalmente os pobres, negros e periféricos. A lei de drogas atual é injusta, usa força e violência para criar desigualdade e encarcerar pessoas pobres e de minorias étnicas. A “guerra às drogas” persiste há mais de 30 anos, porém, ao invés de diminuir o consumo de drogas, este aumentou ainda mais. Diante disso, não há sequer racionalidade em isolar o problema do poder punitivo (ZAFFARONI, 2013). Importa destacar que “[...] o mercado das drogas, na ilegalidade, vulnerabiliza vidas, estabelece uma dinâmica policial e gera insegurança nas comunidades afetadas, ameaçando instituições e até a democracia” (BORGES. 2019, p. 69). E, além disso, a proibição criou um “apherteid social”, gerando mais problemas sociais do que a própria substância (VALOIS, 2016). É importante destacar que o crime de tráfico de drogas faz parte da estatística de crimes femininos, representando um alto número de mulheres encarceradas. A maioria dessas mulheres são meros meios de transporte de drogas para levar aos maridos, não sendo possível analisar o crime apenas por questões socioeconômicas (MENDES, 2012). Diante do quadro apresentado, em que o crime de tráfico de drogas está nas estatísticas como crime que mais encarcera mulheres pobres e negras, faz-se necessário abordar questões como feminilização da pobreza, para posteriormente analisar a criminologia feminista com viés interseccional. 88 Criminologia periférica Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas DOI: 10.23899/9786589284369.7 A feminilização da pobreza como expressão da desigualdade: conceitos, divisão sexual do trabalho e relação com o tráfico de drogas Em 2005, o Instituto de Pesquisa Aplicada divulgou um estudo sobre a feminização da pobreza, explicando que essa indica o aumento da pobreza das mulheres e a desigualdade entre homens e mulheres. Diante disso, destacou a importância de avaliar o fenômeno brasileiro, já que a pobreza e a desigualdade entre homens e mulheres são inaceitáveis (IPEA, 2005). Chernicharo e Boiteux (2014) lecionam que a feminização da pobreza é um processo em que há níveis maiores de pobreza entre as mulheres e que em lares pobres há maior proporção de chefes femininas. Além disso, afirmam que as mulheres pobres latino-americana estão em subempregos, já que não acessam os meios formais de trabalho. Nesse sentido, Chernicharo e Boiteux (2014) afirmam que a questão socioeconômica deve ser analisada associada com a condição de gênero, tendo em vista questões como a divisão sexual e desigual do trabalho do trabalho, em que mulheres acumulam o trabalho doméstico e do cuidado, de forma que precisam depender de homem. Dessa forma, a vulnerabilidade social das mulheres aumenta. De acordo com Hirata e Kergoat (2007), a divisão do trabalho possui 2 princípios organizadores. O primeiro é o da separação, em que existem trabalhos de homens e de mulheres. O segundo é o de que o trabalho das mulheres vale menos do que os dos homens. Dessa forma, por meio do processo de legitimação da ideologia naturalista, as práticas sociais são reduzidas a papéis sociais sexuados, como se houvesse um destino natural da espécie (HIRATA; KERGOAT, 2007). Tendo em vista o exposto, há a feminização da pobreza em decorrência da desigualdade entre homens e mulheres. As mulheres são impedidas de alcançar o mercado formal de trabalho e não são remuneradas em suas horas de trabalhos do cuidado e doméstico não remunerados. Porém, o marcador de raça é ainda mais agravante quando se trata de mercado de trabalho. É importante destacar que, conforme Quadrado (2022), o tráfico de drogas tornou-se um negócio que cada vez mais recruta mulheres. A ascensão do envolvimento das mulheres com o crime de tráfico de drogas deve ser analisada. A partir de mudanças não só econômicas, mas também políticas e sociais, nessa sociedade global neoliberal, que vem aumentando o empobrecimento feminino, com a precária inclusão da mulher no mercado de trabalho (QUADRADO. 2022). 89 Criminologia periférica Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas DOI: 10.23899/9786589284369.7 Diante disso, tendo em vista a pobreza com os marcadores de gênero e raça, e os dados levantados sobre o perfil das mulheres encarceradas, torna-se possível relacionar o tráfico de drogas com a pobreza das mulheres negras, que as vitimiza e as encarcera. Dessa forma, tendo em vista a criminalização dessas mulheres, torna-se possível realizar uma análise criminologia feminista, com viés interseccional. As mulheres apagadas ao longo da história da criminologia e a necessidade de uma criminologia feminista com um viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas No Brasil, os trabalhos que descrevem a mulher como vítima ou como autora de crimes são referenciados em “[...] paradigmas criminológicos conformadores de categorias totalizantes. Paradigmas estes que, muito pouco, ou nada, se aproximam do que já produziu a teoria feminista” (MENDES. 2012, p. 12). Diante disso, surge a criminologia feminista (entre a diversidade de feminismos existes), objetivando estudar a mulher e o crime, por meio de uma perspectiva de gênero (MENDES, 2012). A criminologia tem sido uma “[...] ciência sobre homens, de homens, mas que, pretensamente, se diz para todos” (MENDES. 2012, p. 12). Além disso, há pouca produção sobre feminismo e gênero na criminologia. Nesse sentido, tem-se a necessidade de estudar o patriarcado e o poder punitivo ao longo da história (MENDES, 2012). Mendes adere à posição de que o primeiro discurso criminológico seria a inquisição, mencionando o livro “Martelo das Feiticerias”, onde mulheres são descritas como perversas, fracas física e mentalmente, sem fé e maliciosas. Dessa forma, mulheres eram perigosas e deveriam ser eliminadas. Além de perseguidas, as mulheres eram controladas e confinadas (MENDES, 2012). Por meio da caça às bruxas, havia o cerceamento dos corpos, com o consequente controle pelo estado da capacidade reprodutiva e da sexualidade das mulheres. Nos séculos XVI e XVII, a caça às bruxas foi justificada pela religião e possuía intenções misóginas. Além dos limites impostos aos corpos femininos, as mulheres foram submetidas ao conceito de família patriarcal e proibidas de cultivarem práticas médicas ou holísticas (FEDERICI, 2019). Importa destacar que a caça às bruxas, além de seu teor misógino e punitivo, serviu ainda para o surgimento do capitalismo no mundo moderno. Inúmeras das mulheres perseguidas eram pobres e os crimes impostos a elas demonstraram que essas não 90 Criminologia periférica Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas DOI: 10.23899/9786589284369.7 tinham mais posses ou direitos consuetudinários. Inclusive, nas acusações das mulheres chamadas de bruxas, constava a pobreza (FEDERICI, 2019). As mulheres, acusadas de bruxas, eram punidas pelas autoridades em razão de desvios das normas sexuais vigentes, dos supostos poderes incontroláveis, por supostamente investirem contra a propriedade privada, por serem insubordinadas e por propagarem crenças mágicas (FEDERICI, 2019). Por meio do poder punitivo da caça às bruxas, mulheres foram eliminadas junto com suas crenças e práticas compreendidas como improdutivas ou perigosas. As mulheres tiveram seus direitos retirados, não podendo acessar o conhecimento ou controlar seus próprios corpos e suas relações com pessoas ou com a natureza (FEDERICI, 2019). As mulheres foram demonizadas e novos códigos sociais e éticos foram impostos em razão disso. Inclusive, mulheres eram punidas por possuírem animais de estimação, já que esses seriam na verdade o diabo que ajudava as bruxas a cometerem crimes. Além disso, eram acusadas de crimes como de causar impotência masculina. As mulheres, portanto, eram vistas como o inimigo e como o mal absoluto (FEDERICI, 2019). No século IV d. C, os padres possuíam interesse em manter a igreja masculina e patriarcal, e de impedir que a fraqueza do clero diante das mulheres dissipasse a propriedade. Dessa forma, o clero passou a demonizar as mulheres, sendo o tema central da demonologia (iniciada pelo livro misógino “o Martelo das Bruxas”). Desde a publicação do mencionado livro até o século XIX, a criminologia não abordou apropriadamente as mulheres (MENDES, 2012). Quanto ao pensamento criminológico, há o período filosófico de Cesare Beccaria; e o período jurídico, de Carrara. Porém, em nenhum há reflexão sobre a opressão das mulheres ou a condição feminina. Inclusive, no século XVIII, as mulheres não gozavam de igualdade política e, logo após a Revolução Francesa, as mulheres foram recolhidas ao espaço doméstico (MENDES, 2012). Apesar do período “iluminado”, os únicos direitos que as mulheres conseguiam, apenas as tornavam melhores mães e esposas. Dessa forma, uma mulher era “normal” ou “criminosa”, a depender se era ou não mãe. Em 1876, Lombroso fundou a criminologia moderna, com o livro publicado “O homem delinquente” (MENDES, 2012). Lombroso defendia que o criminoso escolhia o crime não por livre arbítrio, mas por determinismo biológico. Cabe destacar que ele explicava, por meio do atavismo, a criminalidade nata e a estrutura corporal de um criminoso. Em 1982, Lombroso 91 Criminologia periférica Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas DOI: 10.23899/9786589284369.7 publicou o livro “La Donna Delinquente”, estudando e explicando o que seria a mulher criminosa (MENDES, 2012). No livro publicado, descreve-se que a mulher seria obediente ao homem, com passividade. Porém, as mulheres sofriam de um problema: seriam imorais, sedutoras, do mal. Logo, se não cometessem o delito, logo seriam prostitutas. Lombroso estudou o crânio, e o cérebro das mulheres consideradas criminosas (MENDES, 2012). As mulheres, de acordo com Lombroso, poderiam ser “[...] criminosas natas, criminosas ocasionais, ofensoras histéricas, criminosas de paixão, suicidas, mulheres criminosas lunáticas, epiléticas e moralmente insanas” (MENDES. 2012, p. 46). Para Lombroso, as mulheres seriam inferiores até mesmo para praticar crimes, sendo destacado características como sexualidade, lascívia e vingança (MENDES, 2012). Em Lombroso, é possível destacar a maternidade compulsória, já que para ele, a mulher criminosa abandonaria seus filhos ou induziria as próprias filhas à prostituição. Mulheres que praticassem o infantícidio poderiam ser afogadas, enterradas vivas ou queimadas na fogueira. Além disso, o maior exemplo de delinquente feminina seria a prostituta (MENDES, 2012). Importa destacar que o sentimento de amor materno seria um importante traço na análise criminológica, o que perdurou por séculos. Havendo o homícidio de uma criança, haveria a presunção de culpa da mãe, até que se provasse sua inocência. Porém, ainda que com provas irrefutáveis, mulheres eram tidas como fofoqueiras e não confiáveis (MENDES, 2012). Caso uma mulher fosse bonita e considerada sedutora, já se fazia possível justificar sua capacidade de cometer delitos. Logo, beleza feminina e delito eram associadas. Porém, a aparência física também foi uma forma de atenuar a situação caso a mulher fosse autora de um crime. Mulheres com características físicas e comportamentos considerados masculinos também eram consideradas criminosas (MENDES, 2012). Havia ainda o raciocínio de que uma mulher criminosa seria uma mulher que deseja ser homem. Importa ainda destacar que a criminologia não se dedicou ao estudo das vítimas (alguns estudos da vitimologia criaram mitos tanto quanto a criminologia). Como exemplo disso, há algumas afirmações que são difundidas, como se estupradores seriam homens como mães ou mulheres que os repreendiam (MENDES, 2012). Nos anos 60 e 70, surgiu o “labeling”, deslocando o foco do delito e do infrator para análise do controle social. Logo, estuda-se o efeito estigmatizante por meio das normas abstratas e da reação contra esse delito. Dessa forma, o controle seria seletivo e 92 Criminologia periférica Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas DOI: 10.23899/9786589284369.7 discriminatório. Desde os anos 60, com o pensamento criminológico crítico, passou-se a registrar o capitalismo determinante ao cárcere (MENDES, 2012). Nos anos 80, iniciou-se o desenvolvimento feminista na criminologia crítica, em que o sistema de justiça criminal é interpretado como uma categoria patriarcal e de gênero. Com a criminologia crítica, estuda-se a justiça criminal sob a interpretação ideológica do capitalismo e do patriarcado. A justiça criminal não só é ineficaz para as mulheres em relação à proteção, mas ainda aumenta a violência contra elas (MENDES, 2012). Ao longo dos anos, mulheres foram aprisionadas em prisões e conventos. Dessa forma, interessa ao patriarcado custodiar mulheres, as afastando da vida pública. Para as autoridades religiosas, as mulheres eram mais fracas e precisariam ser guiadas para casa-conventos, devendo aprender atividades como costura, limpeza e cozinha (MENDES, 2012). Mendes defende que a história das mulheres quanto ao poder punitivo não deve ser uma mera aferição do passado, mas uma forma de pensar novamente tanto o presente como o futuro. O sistema penal atual disciplina e mantém a subordinação das mulheres (MENDES, 2012). Apesar de o direito ter sido opressor de mulheres ao longo da história, Mendes (2012) defende que é possível torná-lo uma ferramenta de auxílio às mulheres. Logo, torna-se possível legitimar novas pretensões, reconstruindo a realidade, a partir do ponto de vista das mulheres. Diante disso, há a possibilidade de ressignificar o direito, a partir das vivências femininas. Tendo em vista que o perfil da mulher encarcerada é de mulher negra, pobre, com baixa escolaridade, por em tese ter praticado o crime de tráfico de drogas, e ainda esse crime ter relação com a feminilização da pobreza, faz-se necessário analisar o delito mencionado por meio de uma criminologia feminista, mas com o viés interseccional. De acordo com Akotirene (2020, p. 28), “[...] iniquidades de gênero nunca atingem mulheres em intensidades e frequências análogas. Gênero inscreve o corpo racializado”. Diante disso, tendo em vista que as mulheres negras e pobres são as mais encarceradas por em tese praticarem o crime de tráfico de drogas, torna-se necessário analisar o crime em tela por meio de uma criminologia feminista com viés interseccional, já que mulheres são oprimidas diferentemente. A interseccionalidade foi pensada pelas feministas negras, as quais tiveram seus anseios ignoradas pelas mulheres brancas e pelos homens negros (AKOTIRENE, 2020). 93 Criminologia periférica Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas DOI: 10.23899/9786589284369.7 Logo, a interseccionalidade é uma sensibilidade analítica, realizando críticas ao racismo patriarcal. Nesse sentido, cabe destacar que, conforme Akotirene (2020, p. 19): Dá instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado – produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais. A interseccionalidade permite analisar a interação de todas as interações entre as opressões que as mulheres sofrem. Como exemplo, cita-se que as mulheres brancas possuem medo que seus filhos sejam cooptados pelo poder patriarcal, enquanto as mulheres negras, vítimas de uma necropolítica, sofrem o medo de que seus filhos morram pelos discursos religiosos, brancos, elitistas de valorização da vida, mas contra o aborto (AKOTIRENE, 2020). É possível explicar a interseccionalidade com a divisão sexual do trabalho cisheteropatriarcal, em que mulheres negras trabalham na casa de mulheres brancas instruídas e quando chegam em casa, têm o dinheiro tomado por maridos que reclamam que a comida ainda não ficou pronta (AKOTIRENE, 2020). Diante do exposto, conclui-se que a criminalização das drogas é apenas uma força de criminalizar indivíduos indesejáveis na sociedade cisheteropatriarcal capitalista branca e religiosa. Além disso, a criminalização das drogas é em estatística o crime que mais encarcera mulheres, sendo reflexo e aumentando a feminilização da pobreza. Dessa forma, torna-se necessário analisar o crime por meio de uma criminologia feminista com viés interseccional, ressignificando o poder punitivo para a vivências das mulheres negras periféricas. Referências AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaia, 2020. 152p. [Feminismos Plurais/coordenação de Djamila Ribeiro]. BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. 144 p. [Feminismos Plurais/coordenação de Djamila Ribeiro]. CHERNICHARO, Luciana Peluzio; BOITEUX, Luciana. Encarceramento feminino, seletividade penal e tráfico de drogas em uma perspectiva feminista critica. In: VI Seminário Nacional de Estudos Prisionais e III Fórum de Vitimização de Mulheres no Sistema de Justiça Criminal, Universidade Federal do ABC. 94 Criminologia periférica Guerra às mulheres negras e periféricas: A necessidade de uma criminologia feminista com viés interseccional na análise do crime de tráfico de drogas DOI: 10.23899/9786589284369.7 Anais... 2014. Disponível em: <http://www.neip.info/upd_blob/0001/1566.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2022. IPEA. A face feminina da pobreza: sobre-representação e feminilização da pobreza no Brasil. Brasília, nov. 2005. Disponível em: <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1137.pdf>. Acesso em: 2022. INFOPEN. INFOPEN Mulheres. Levantamento nacional de informações penitenciárias. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2018. Disponível em: <https://conectas.org/wpcontent/uploads/2018/05/infopenmulheres_arte_07-03-18-1.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2022. FEDERICI, Sílvia. Mulheres e caça às bruxas: da idade média aos dias atuais. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019. HIRAT, Helena; KERGOAT, Daniéle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Tradução de Fátima Murad. Cadernos de Pesquisas, v. 37, n. 132, p. 595-609, set.-dez. 2007. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/cp/a/cCztcWVvvtWGDvFqRmdsBWQ/?format=pdf&lang=pt>. Acesso em: 13 ago. 2022. MENDES, Soraia Da Rosa. (RE)Pensando a criminologia: Reflexões sobre um novo paradigma desde a epistemologia feminista. Tese (Doutorado em Direito, Estado e Constituição) – Universidade de Brasília, Brasília, 2012. QUADRADO, Jaqueline. Encarceramento feminino, Seletividade penal e tráfico de drogas. Revista Gênero, v. 22, n. 2, 2022. VALOIS, Luís Carlos. O direito penal da guerra às drogas. 1. ed. Belo Horizonte: Editora D'Plácido, 2016. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Guerra às Drogas e Letalidade do Sistema Penal. R. EMERJ, Rio de Janeiro, v. 16, n. 63 (Edição Especial), p. 115-125, out.-dez. 2013. Disponível em: <https://www.emerj.tjrj.jus.br/revistaemerj_online/edicoes/revista63/revista63_115.pdf>. Acesso em: 13 ago. 2022. 95 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal Ramison Benedito da Rocha de Souza* Tainá Ariel Vaz Diana Cifuentes** Tatiana Moraes Cosate*** Introdução Tratando-se de direito penal e sistema punitivo, é recorrente associar o tema com a realidade vivenciada pela população negra no Brasil e o modo pelo qual o sistema criminal atua tão cotidianamente em suas vidas. Segundo boletim da Rede de Observatório da Segurança (2021), a cada quatro horas uma pessoa negra é morta em ações policiais. Destaca-se ainda mais tal cenário, frente aos dados da realidade carcerária: o número de pretos e pardos é superior a 60%, contra pouco mais de 30% de pessoas brancas presas no país (INFOPEN, 2019). Neste contexto, é que se tem a existência de um racismo estrutural como sendo um sistema de opressão, o qual nega direitos e implica numa série de desvantagens sociais em decorrência do fator raça – o negro, pobre e periférico – e atribui inúmeras vantagens a outros – o branco que ocupa os espaços de poder na sociedade (RIBEIRO, 2019). Por isso, falar sobre racismo é um dos principais pontos de partida para a compreensão de que um apêndice da organização social atual – isto é, o sistema Graduando em Direito pelas Faculdades Londrina (FACLON). Membro do grupo de pesquisa em Ciências Criminais e os Direitos Fundamentais do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC). E-mail: ramisonsouzars@gmail.com ** Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Participa do Curso de Formação em Inclusão e Diversidade em Direito Humanos da USP (2022). Participa do Grupo de Estudos Avançados em Teorias Críticas e Crítica da Punição do IBCCRIM (2022). E-mail: tainaariel@gmail.com *** Professora de Graduação e Pós-graduação em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Graduada em Direito pela Universidade Norte do Paraná (UNOPAR). E-mail: taticosate2014@gmail.com * 96 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 criminal, e o direito penal em geral – atuam de modo a controlar as relações sociais e os conflitos, focalizando sua coercitividade e punição à uma parcela específica da população. Assim, impende uma análise mais profunda acerca das estruturas que permeiam e constituem estas relações sociais, sendo imprescindível para compreensão da atualidade, uma análise de como manifesta-se este “braço” do Estado. Neste contexto é que se desenvolve o presente artigo. Tendo como parâmetro os ensinamentos de Georg Rusche e Otto Kirchheimer de que toda estrutura punitivista é reflexo do modelo econômico adotado, objetiva-se realizar um recorte histórico do desenvolvimento das estruturas sociais e produtivas, para que se possa elucidar um modo de punição específico: a vigilância estatal e constante sobre o corpo negro. Para tanto, o presente artigo está estruturado em duas partes. Na primeira, evidencia-se como a institucionalização da punição perpetua-se por meio do atual direito penal e da justiça criminal, exprimindo uma concepção de que o crime deve ser combatido perante o indivíduo e suas particularidades, deixando de lado a imprescindível análise do contexto social, político e econômico em que ele se insere, e o modo pelo qual desenvolve-se o modo de produção vigente no período, pontos chave para compreensão dos conflitos existentes. Na sequência, contextualiza-se o reconhecimento facial, evidenciando o seu conceito e aplicabilidade no contexto da segurança pública e repressão da violência criminal. Após a análise de seu funcionamento técnico, aborda-se a questão do viés discriminatório do reconhecimento facial como mecanismo de perpetuação das práticas racistas. Racismo e seletividade no Brasil: um breve panorama histórico do colonialismo à contemporaneidade Ao tratar de racismo estrutural, importante analisar a organização da estrutura social que permite sua perpetuação, e inclusive, beneficia-se deste. De certo, ao se aferir o desenvolvimento do modo de punição no Brasil, revelam-se marcos cruciais que permitem a compreensão de como se expressa o direito penal e a justiça criminal na atualidade. Vale dizer, o modelo de punição brasileiro contemporâneo apresenta particularidades específicas deste período histórico, assim como faz-se possível verificar em períodos pretéritos. E na busca pela compreensão da constituição da sociedade brasileira, o advento do capitalismo e a construção de seu próprio sistema punitivo realçam um viés racista, desde o período da colonização, com a utilização da mão de obra escrava na produção de riqueza e lucro, bem como pelos resquícios deixados pela abolição do regime 97 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 escravista. E nesse sentido, a punição se manifestará como um aparato de dominação e controle desta classe. Perante a análise de momentos históricos decisivos para o desenvolvimento do modelo de punição atual, resta imprescindível retomar o momento da chegada dos europeus ao Brasil, em meados do século XVI. Neste período, a Europa estava em ascensão, abandonando os resquícios remanescentes das estruturas feudalistas – e consequentemente, de seu modo de produção feudal, que dentre outras facetas, utilizava-se da servidão como mão-de-obra e a propriedade da terra e dos meios de produção por parte do senhor feudal. Com o advento da comercialização e a necessidade de sua expansão, iniciou-se uma expansão marítimo-comercial, e neste momento, a Coroa portuguesa encontra no Brasil a possibilidade de exploração de matéria-prima, e associado a este cenário, passou-se a desenvolver o comércio da população africana, visto a necessidade de utilização de mão-de-obra, bem como a lucratividade advinda desta comercialização. Desse modo, é possível verificar que as estruturas embrionárias do que ficará conhecido como modo de produção capitalista, funda-se no fardo do colonialismo e da escravidão dos povos originários e africanos, que subjugaram e coisificaram a vida de mais de 4 milhões de africanos durante três séculos – apenas no Brasil – (IBGE, 2007) utilizado como forma de acumulação primária de riquezas. Com a Revolução Industrial e o desenvolvimento de novos modos de produção no século XVIII, uma série de transformações – tanto sociais quanto econômicas –, embarcou a Europa no estágio do capitalismo industrial, expandido a necessidade de industrialização dos demais países periféricos, solidificando novas relações de trabalho, promovendo o êxodo rural e a expansão da urbanização, bem como, aumentando a capacidade produtiva das nações em desenvolvimento. A escravidão deixou de ser o cerne de lucratividade, no caso do Brasil, da Coroa portuguesa, uma vez que a comercialização de escravos passa a ser proibida na Europa no início do século XIX, e a necessidade de juntar-se ao desenvolvimento dos demais Estados Modernos auxiliou a proibição do tráfico de escravos em 1850, seguido da abolição da escravidão em 1888 por meio da Lei Aurea. De acordo com o economista João Manuel Cardoso de Mello (1991, p. 87): O trabalho assalariado se tornara dominante e o Abolicionismo, a princípio um movimento social amparado apenas nas camadas médias urbanas e que fora ganhando para si a adesão das classes proprietárias dos estados não-cafeeiros, na medida em que o café passara a drenar para si escravos de outras regiões, 98 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 recebera, agora, o respaldo do núcleo dominante da economia cafeeira. Abolicionismo e Imigrantismo tornaram-se uma só e mesma coisa. Em 1888, extinguia-se a escravidão. Impende ressaltar que apesar da proibição da escravidão, a população negra, agora libertada, permaneceu à margem da sociedade. Isto porque, conjuntamente com as mudanças que ocorriam com relação ao declínio de lucratividade da mão-de-obra escrava e a transferência da força produtiva para as mãos-de-obra assalariadas, instaurou-se uma jurisdição de domínio e propriedade da terra apenas por meio de compra. Desta forma, sem que fossem realizadas políticas de inserção após séculos de escravidão e submissão, bem como sem acesso à moradia e à propriedade, e ainda, sem trabalho, a população negra passou da realidade escravista para a realidade de sujeitos de direitos e deveres, já marginalizados e deslocados da lógica do trabalho formal, de modo que a igualdade apresentava-se apenas no papel. Assim, analisando o modo pelo qual se desenvolveu a punição no Brasil, faz-se possível aferir sua conexão com aqueles grupos de indivíduos subalternos em meio a estruturação da organização social, e em seu início, representado pela mão-de-obra escrava, visto que no período colonial1 o controle social penal ocorria dentro da própria unidade de produção, impondo-se perante indígenas e negros escravizados. Logo, o poder punitivo expressava-se em âmbito privado, e perdurou até a institucionalização do 1° Código Criminal em 18302. Durante o período colonial, a jurisdição regente era a das Ordenações Filipinas, impostas no período da União Ibérica, as quais exprimiam normas visando à manutenção da Monarquia e da escravidão, o controle social frente as revoltas de escravos e a hegemonia da fé católica. Ou seja, o direcionamento do poder punitivo alinhava-se à conservação das estruturas organizacionais e econômicas da colônia e à lógica de acumulação de capital europeia, perpetuando um genocídio físico e simbólico dos povos africanos. Nas décadas que antecederam a Proclamação da República, denota-se o encaminhamento às concepções de liberdade e igualdade formal, já presentes em quase toda a Europa, assim como o início do desenvolvimento das concepções do direito contemporâneo e do papel do Estado - como ente autônomo e dotado de personalidade jurídica - que exerce a função de mediação e controle dos conflitos sociais e organização da estrutura social como um todo. Decorrente disto, vê-se nascer a primeira Constituição brasileira, em 1824, a qual concebe o caráter de cidadão aos indivíduos, com exceção das mulheres e escravos - corolário da estrutura patriarcal vigente, bem como a permanência da legalidade da escravidão no período do Brasil Imperial. Contudo, as contradições entre o avanço do liberalismo e o modo de produção escravista passam a escancarar-se, resultando em conflitos políticos e no recrudescimento da imposição de poder, tanto por parte do imperador, o qual expressa-se pela vontade do poder moderador, quanto pela perpetuação da punição com base no Código Criminal do Império outorgado em 1830. 2 As normas presentes em tal Código alinham-se à manutenção do Império, autorizam a aplicação de penas corporais - até a morte -, e criminalizam os movimentos de revoltas e insurreições - comuns no 1 99 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 Um ano após o advento da Proclamação da República brasileira, outorgou-se um novo Código Criminal (1890), e este período fora acompanhado de concepções advindas da teoria positivista criminológica. Nesse sentido, a partir de meados do século XIX, verifica-se a construção de um direito penal fundado em ideais positivistas, assim como pela assimilação de ideais advindos do darwinismo social, fundado nas concepções de hierarquia racial, posicionando os povos europeus como centro da civilização e evolução, e legitimando a aniquilação cultural e física de diversos povos africanos e indígenas. Desse modo, associado a uma ciência criminológica fundada no positivismo, a punição no Brasil direcionou-se a apreensão de que o crime deveria ser analisado de modo individual, nas palavras de Cirino, “[...] em síntese, o crime é uma realidade ontológica pré-constituída em relação ao Sistema de Justiça Criminal, produzido por defeitos pessoais determinados por causas biopsicológicas e sociais, que precisam ser identificadas e removidas” (CIRINO, 2021, p. 28). Neste contexto, interessante destacar o Decreto n. 528/1890, que tratava da ação de incentivo à imigração de europeus para ocuparem os postos de trabalho, visto a urgência de implementação de mão-de-obra para o desenvolvimento das forças produtivas da época, beneficiando também a propagação da ideologia racial dominante de embranquecimento da população e perpetuação de uma visão de criminalidade e periculosidade dos povos marginalizados, que consistia majoritariamente na população negra brasileira. A lógica do trabalho formal como única possibilidade de produção de valor, e consequentemente, de percebimento de remuneração em forma de salário pelo dispêndio de força de trabalho, coloca a população negra em uma posição de subalternidade, exercendo o papel de sub trabalhador, explorado pela classe dominante – a qual é possuidora dos meios de produção e da ideologia dominante -, e consequentemente, tendo acesso a subempregos ou então por meio da produção de riqueza clandestina – como o tráfico de drogas. Desse modo, a institucionalização da exclusão dessa população, corroborado pela construção de um perfil ideal de criminoso, culmina no direcionamento das ciências criminais – no atual sistema capitalista brasileiro – ao extermínio da população negra e período em diversas regiões do Brasil -, bem como proíbem a expressão de religião diversa da fé católica - como as religiões de matrizes africanas -, e ainda, criminalizam a “vadiagem” e “mendicância” - relativa àqueles indivíduos que não possuíam ocupação laborativa para prover seu sustento -, de modo que a intensa opressão imposta à população negra desvelou-se por meio da imposição das normas imperiais de processo penal. 100 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 periférica, tanto por meio da inflação legislativa penal – a qual não demonstra efetivos índices de diminuição da criminalidade -, e por meio do Código de Processo Penal de 19413 – influenciado pela escola positivista criminologia italiana do período fascista -, quanto pelo discurso de guerra às drogas, propagando e financiando invasões policiais à comunidades e favelas, resultando na morte e encarceramento de jovens negros. Em outras palavras, a reificação dos fenômenos sociais, produzida pela exclusão de seu significado ideológico ou valor político, habilita o método à determinação causal de um problema político reduzido a uma expressão física (CIRINO, 2021). Portanto, a partir do momento em que se tem o delineamento de um sistema penal altamente seletivo, punitivista e racista, afere-se que o desenvolvimento de teorias das ciências criminais acríticas promove a perpetuação deste ciclo. Retoma-se que o direito se expressa pela forma jurídica, na qual se concentra a regulamentação das relações sociais da sociedade contemporânea, por meio de suas normas e sistemas auxiliares da justiça – como o poder de polícia, por exemplo. Nesse sentido, resta evidente que “[...] é justamente o direito penal o que tem a capacidade de afetar o indivíduo de modo mais direto e brutal” (PACHUKANIS, 2017, p. 167). Depreende-se que dentro de uma vivência social em que a possibilidade de acumulação de riqueza – e por conseguinte, de possibilitação de acesso à alimentação, saúde, educação, lazer entre outros – decorre da assimilação da forma salário como equivalente ao tempo despendido de força de trabalho, faz-se possível aferir que a privação de tempo e estigmatização proporcionados pelo processo penal corroboram e atuam na marginalização desta classe social composta pela população negra, periférica e proletária. De modo que em meados do século XXI, por meio do desenvolvimento de novas tecnologias, verifica-se a instrumentalização do aparato punitivo do Estado, utilizando-se de novas técnicas para perpetuar o genocídio e encarceramento da população negra na dinâmica social. Nascido em plena época de exceção ao Estado de Direito, sob a égide formal da Constituição de 1937, para atender “ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente”, conforme afirma seu próprio preâmbulo, e sob influência de direito positivo do regime fascista italiano, o direito processual penal brasileiro conheceu, fora do Parlamento e pelas mãos práticas de Francisco Campos, sua reunificação legislativa (CHOUKR, 2017, p. 23). 3 101 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 Reconhecimento facial: uma nova forma de vigilância estatal proporcionada pelos avanços tecnológicos Big data, sociedade digital, inteligência artificial, algoritmos, data mining, training data, dentre outros, são alguns termos que se tornaram coloquiais nessa nova vivência digital. E neste contexto, o Direito também passou a ser modulado por essas transformações tecnológicas com o objetivo de tentar regulamentar essa nova sociedade digital, a exemplo da proteção de dados e da vigilância estatal. Apoiadas nos ensinamentos de Foucault e Deleuze, Coutinho e Dal Castel (2022, p. 113) discorrem que, atualmente, houve uma transição da sociedade disciplinar foucaultiana para uma sociedade de vigilância digital, onde a tecnologia passou a ser a tônica da genealogia do exercício do poder de controle. Neste sentido: Os indivíduos passaram a ser catalogados e rastreados de forma ininterrupta e voluntária a partir das possibilidades surgidas com o avanço das tecnologias de caráter eletrônico e digital e a criação artificial de necessidades que conduziram à submissão voluntária a estas novas formas de vigilância. O interessante é observar que, neste novo panóptico digital, o olho do poder continua invisível e ainda mais incisivo, ganhando uma performance, ante imaginável, com o uso da internet e sobretudo das redes sociais. Assim, as autoras concluem que a nova vigilância estatal pode ser aduzida numa vigilância algorítmica, caracterizada por um controle intersubjetivo e voluntário, no qual “[...] o sujeito neoliberal opta por, voluntariamente, exibir-se, expor-se ao escrutínio alheio, fazendo com que a exposição transmute-se em produção de valor” (COUTINHO; DAL CASTEL, 2022, p. 116). De fato, a internet deixou de ser somente uma ferramenta utilizada para aproximar as pessoas, para se tornar na maior ferramenta utilizada para o cruzamento de dados. De acordo com Ana Frazão (2020), o capitalismo do século 21 passou a centrar-se na extração e no uso de dados pessoais: o dado processado tornou-se em informação útil, é o novo petróleo da sociedade digital. O raciocínio empregado é simples: uma sociedade econômica de vigilância precisa de uma economia de dados que se tornaram nos principais atuais recursos econômicos. Neste contexto, “[...] a economia movida a dados e o capitalismo da vigilância são as duas faces da mesma moeda pois, quanto maior a importância dos dados, mais incentivos haverá para o aumento da vigilância e, por conseguinte, maior será a coleta de dados” (FRAZÃO, 2020, p. 28). 102 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 Sob esta perspectiva, o Poder Público vem intensificando novas técnicas de vigilância amparadas pelo uso de tecnologias, utilizando-se, para tanto, o argumento infalível de apelo popular: o aumento de segurança pública. Exatamente neste ponto, é que se pretende evidenciar a Portaria 793, publicada em 24 de outubro de 2019 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública destinada a estabelecer ações e recursos para o enfrentamento da criminalidade violenta. Dentre as estratégias adotadas, o artigo 4º, §1º, III, “b” prevê o “fomento à implantação de sistemas de videomonitoramento com soluções de reconhecimento facial, por Optical Character Recognition – OCR, uso de inteligência artificial ou outros” (BRASIL, 2019). Primeiramente, informa-se que o reconhecimento facial não é uma técnica nova utilizada no Brasil. Conforme o Instituto Igarapé (2019), a sua utilização remonta ao ano de 2011, na cidade de Ilhéus e com atuação na área do transporte público como forma de fiscalizar e evitar fraudes em gratuidade daquele setor. Após aquele episódio, a implementação do reconhecimento facial espalhou-se para outros setores, a exemplo de escolas, controle de fronteiras, sistemas para gestão de benefícios sociais. Porém, o que se pretende evidenciar é a sua utilização no setor da segurança pública, como destacado pela Portaria 793/2019. Mas o que seria o reconhecimento facial? Consiste no “tratamento de informações da face” (LAPIN, 2021, p. 5), ou, simplesmente, a biometria da face, utilizando-se, para tanto, dos pontos nodais de uma pessoa. Assim, o procedimento percorre as seguintes etapas: a imagem de uma pessoa (seja através de fotos ou vídeos) é capturada, rastreada e, depois, submetida a um software que analisará as métricas e a geometria facial da pessoa, identificando fatores como a “distância entre os olhos, largura do nariz, profundidade das órbitas oculares e comprimento da linha da mandíbula são alguns exemplos de pontos nodais utilizados pela tecnologia” (MAGNO; BEZERRA, 2020, p. 2). No caso do Brasil, a utilização do reconhecimento facial para a segurança pública e repercussão penal utiliza a “base nacional de mandado de prisão, base organizada pelo Conselho Nacional de Justiça, e bases regionais geridas pela própria polícia civil estadual de pessoas procuradas e desaparecidas” (LAPIN, 2021, p. 33). Realizada esta assinatura facial, é que se passa para a próxima etapa: a da comparação. Ou seja, com a tecnologia instalada em espaços público, imagens reais de pessoas são capturadas e comparadas com aquela assinatura digital, podendo resultar na identificação de uma pessoa e, desta forma, justificar a sua prisão. De posse deste conceito, o emprego do reconhecimento facial poderia imprimir um senso de neutralidade e de segurança ao cumprimento dos mandados de prisão em 103 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 aberto no país e de um efetivo controle e combate à criminalidade violenta, como preconizado pela Portaria 793/2019. No entanto, a realidade se destoa da prática. A respeito deste assunto, o Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN), elaborou um relatório intitulado Vigilância Automatizada: uso de reconhecimento facial pela Administração Pública no qual aborda um pesquisa empírica a respeito desta tecnologia de vigilância, apontando cinco pontos críticos decorrentes do reconhecimento facial: falta de regulamento para o uso do reconhecimento facial na área de segurança pública e persecução penal; origem e meios de aquisição e uso da tecnologia; conhecimento técnico das autoridades públicas no manuseio tecnológico; elaboração do relatório de impacto à proteção de dados pessoais e, por fim, as formas de prestação de contas pelo uso das tecnologias. Dentre todos esses aspectos negativos, destaca-se a falta de legislação pertinente ao assunto. Para uma melhor compreensão dessa problemática, faz-se necessário elucidar que em 2018, houve a promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados. Logo, poderia se pensar que há um contrassenso em afirmar a falta de regulamentação legal nesta área. No entanto, a aparente contradição cede espaço ao se analisar o artigo 4º, III, a e d da LGPD que exclui do seu âmbito de aplicação e normatização a utilização de dados para fins de segurança pública e persecução penal, determinando a elaboração de uma legislação específica para tanto. A LGPD ainda estabelece que esta norma deverá seguir os parâmetros estritamente necessários e proporcionais ao atendimento do interesse público, observando, sempre, os princípios do devido processo legal, da proteção de dados e dos direitos dos titulares4. Ademais, esta falta de regulamentação se agrava ao considerar que o reconhecimento facial lida com dados biométricos de uma pessoa, ou seja, são dados correlacionados “às características físicas únicas da pessoa” (LAPIN, 2020, p. 05). Neste mesmo sentido, a LGPD conceitua os dados biométricos como sendo dados sensíveis (artigo 5º, inciso II), reconhecendo a necessidade de se ter um cuidado ainda maior quando se tem o manuseio daqueles, em virtude da possibilidade de um manuseio discriminatório. Para atender a essa determinação e suprir a lacuna legislativa, em 2019, a Câmara dos Deputados tomou a iniciativa de criar uma Comissão de Juristas para a elaboração de um anteprojeto de lei para os casos de tratamento de dados pessoais para segurança pública e persecução penal, sendo que, em 2020, o anteprojeto foi concluído contendo 12 capítulos e 68 artigos, estando pendente de discussão e votação no Congresso Nacional. 4 104 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 A respeito do assunto, Pablo Nunes ao discorrer sobre o uso daquela tecnologia, evidencia a sua contradição inerente: de um lado, ela representa uma suposta neutralidade e uma certa eficiência no trabalho policial, reduzindo o “preconceito nas abordagens, dando a um algoritmo ‘isento’ a tarefa de selecionar os suspeitos” (NUNES, 2019, p. 69). No entanto, alguns argumentos apresentados pelo autor desmoronam esse lado ingênuo do reconhecimento facial. O primeiro deles é a falta de acurácia da tecnologia empregada, resultando nos falsos negativos ou falsos positivos. Os primeiros ocorrem quando o sistema não localiza a face no banco de dados e, os segundos vão na via oposta e reconhecem a face de uma pessoa que não esteja no banco de dados. O autor explica que essa falibilidade decorre do fato de que a leitura do reconhecimento facial não engloba o corpo inteiro, mas somente os pontos nodais. O segundo argumento contém estrita ligação com a análise qualitativa do reconhecimento facial. Neste sentido, Pablo Nunes acompanhou a implementação do reconhecimento facial nos meses de março a outubro de 2019 em quatro estados: Bahia, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraíba, resultando no Relatório Retratos da Violência: cinco meses de monitoramento, análises e descobertas da Rede de Observatórios da Segurança, no qual aponta que, no período de análise, foram realizadas 151 prisões, assim distribuídas: Bahia com 51,7%; Rio de Janeiro com 37, 1%, seguido por Santa Catarina (7,3%) e Paraíba (3,3%). Aliado a esse dado numérico, o Relatório também se questionou em saber quem eram as pessoas que foram presas, obtendo algumas informações preciosas: No conjunto, em 66 casos havia informações sobre sexo: 87,9% dos suspeitos foram homens e 12,1%, mulheres. A idade média do grupo foi de 35 anos. Em relação aos casos em que havia informações sobre raça e cor, ou quando havia imagens dos abordados (42 casos), 90,5% das pessoas eram negras e 9,5% eram brancas. No que se refere à motivação para a abordagem, chama a atenção o grande volume de prisões por tráfico de drogas e por roubo 24,1%, cada uma (NUNES, 2019, p. 71). Antes de emitir qualquer nota conclusiva, outros dados podem ser acrescentados e que permitem uma maior visualização do cenário que se enfrenta. Sob esta perspectiva, destaca-se o conceito de aprendizado da máquina ou machine learning que consiste na inserção de dados e na construção de um código. Diante desta visão simplória é que se tem uma outra assertiva: “os próprios algoritmos – pelo menos no ponto de partida – são criados por humanos. Neste sentido, são – como outras 105 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 técnicas/tecnologias – construções sociais criadas em determinados contextos” (HOFFMANN-RIEM, 2021, p. 33). Evidencia-se, portanto, a subjetividade daquele que realiza o machine learning: o ser humano, o programador. Corroborando este argumento, Tarcízio da Silva (2020) conclui que a utilização tecnológica pode representar uma forma de opressão racial em decorrência da visibilidade ou invisibilidade que branco e negro ocupam numa sociedade: “[...] a visibilidade ou invisibilidade de brancos e negros são contextuais de acordo com as vantagens e desvantagens de cada ponto dessa dicotomia nas mídias e tecnologias em questão” (SILVA, 2020, p. 439). Assim, como exposto anteriormente, verifica-se que há uma visibilidade acentuada do negro e uma invisibilidade do branco em questões relacionadas à criminalidade. Neste contexto, Rosane Leal da Silva e Fernanda dos Santos Rodrigues da Silva (2019, p. 12) pontuam que o reconhecimento facial reforça o estereótipo de criminoso lançado sobre o negro, aumentando ainda mais o caráter seletivo do sistema penal. E o ponto fundamental, para as autoras, é justamente o fato “[...] de que softwares genéricos de reconhecimento facial tendem a não reconhecer rostos negros com a mesma capacidade com que reconhecem rostos brancos”. Ou seja, o estereótipo lançado sobre o negro e o fardo histórico de carregarem indicadores negativos de sua essência enviesam a machine learning. Indubitavelmente, neste momento, oportunas são as palavras de Silvio Almeida (2020, p. 32) a respeito do racismo estrutural: [...] o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam. Portanto, a partir do momento em que se tem o delineamento de um sistema penal altamente seletivo, punitivista e racista, conclui-se que o reconhecimento facial perpetua esse ciclo. Nesta vertente, a tecnologia pode ser utilizada como instrumento de massificação do encarceramento em massa daquelas pessoas que, historicamente, não conseguiram e não conseguem ser inseridas na sociedade de forma digna e passaram e continuam a ser rotulados como desocupados, marginais, bandidos e vagabundos, no qual sua história continua a se escrever no presente mediante desigualdades sociais, perfazendo a prática de um racismo silencioso e igualmente perverso (SCHWARCZ, 2018). 106 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 Conclusão O discurso de combate ao crime voltado para as periferias vem há anos sendo um mecanismo de seletividade desenvolvida pelo Estado, tendo em vista o auto indicie de violência estatal sofrida pelo preto, pobre e periférico. Isso ainda é uma herança, como bem demonstrado, de um país que tem suas raízes moldadas pela escravidão, que hoje se transformou em um racismo ainda pouco visível para a maioria, porém tão devastador e bélico como antes. Isso tudo leva a sociedade a refletir que a luta dos movimentos negros está longe de acabar, tendo em vista que conforme a sociedade muda, novos desafios surgem, principalmente na era da revolução tecnológica, que proporciona novos mecanismos para o desenvolvimento de uma política que revela-se na concretude e resultado da construção de uma cultura ultra punitivista, seletiva e racista, indicando o aumento do índice de violência policial contra população periférica, bem como o crescimento vertiginoso de encarceramento da população negra. A sociedade muda, e o racismo também, cabe a todos, principalmente operadores do Direito, em busca de uma sociedade mais justa, observar de forma crítica essas novas faces do racismo contemporâneo. Referências ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020. COUTINHO, Lorena Melo; CASTEL, Mauricio Dal. Controle e vigilância: a ascensão do reconhecimento facial na política criminal. Biopolíticas no século XXI, Porto Alegre, v. 2, p. 111-130, 2022. FRAZÃO, ANA. Fundamentos da proteção de dados pessoais – Noções Introdutórias para a compreensão da importância da Lei Geral de Proteção de Dados. In: Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. HOFFMANN-RIEM, Wolfgang. Teoria Geral do Direito Digital: transformação digital: desafios para o direito. Rio de Janeiro: Forense, 2021. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro: IBGE 2007. Disponível em: <https://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-epovoamento/negros>. Acesso em: 24 jun. 2022. MAGNO, Madja Elayne da Silva Penha; BEZERRA, Josenildo Soares. Vigilância negra: o dispositivo de reconhecimento facial e a disciplinaridade dos corpos. Revista Novos Olhares, v. 9, n. 2, ago.-dez. 2020. MELLO, João Manuel Cardoso. O capitalismo tardio: contribuição à revisão crítica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991. 107 Criminologia periférica Racismo estrutural e punição no Brasil: o reconhecimento facial como nova ferramenta de seletividade estatal DOI: 10.23899/9786589284369.8 NUNES, Pablo. Novas ferramentas, velhas práticas: reconhecimento facial e policiamento no Brasil. In: Retratos da Violência: cinco meses de monitoramento, análise e descobertas. Centro de Estudos em Segurança e Cidadania, 2019. PACHUKANIS, Evguiéni. Teoria geral do direito e marxismo. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. REDE DE OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA. Uma pessoa negra é morta pela polícia a cada quatro horas. 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In: X Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade: mídias e direitos da sociedade em rede, Anais... 2019. Disponível: <https://www.ufsm.br/app/uploads/sites/563/2019/09/5.23.pdf>. Acesso em: 20 maio 2022. SILVA, Tarcízio. Visão computacional e racismo algorítmico: branquitude e opacidade no aprendizado de máquina. Revista da ABPN, v. 12, n. 31, p. 428-448, dez. 2019-fev. 2020. 108 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra1 Lídia Piucco Ugion* Felipe de Araújo Chersoni** Thomaz Jefferson Carvalho*** Texto completo pode ser acessado na RELACult - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade, com o título “Com a nossa lei não há, levando ao mundo inteiro, a bandeira de Oxalá”: Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica crítica”. Aqui trata-se de uma versão reduzida da pesquisa que se encontra em andamento. * Mestranda em Direito no PPGD - UNESC, pela linha de pesquisa Direito, Sociedade e Estado. Pósgraduanda em Direito Processual Penal pela Damásio Educacional. Graduada em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC); Bolsista do Artigo 171 na modalidade de Iniciação Científica (Bolsas UNIEDU/Estado de Santa Catarina) na linha de Republicanismo e Instituições Políticas orientada pelo Prof Dr. Mauricio da Cunha Savino Filó, no período de abril de 2020 a junho de 2021; Integrante e Pesquisadora do projeto de extensão do direito Projeto Amora (PEDIC/Direito/UNESC) de junho de 2019 a setembro de 2021. Integrante da Liga Acadêmica de Sexualidade e Estudos de Gênero (LASEG/UNESC) desde agosto de 2019. E-mail: lidiappiucco@gmail.com ** Mestrando em Direito pela Universidade (comunitária) do Extremo Sul Catarinense (PPGD-Unesc); Bolsista do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições de Ensino Comunitárias (PROSUCCapes); onde é pesquisador vinculado ao Grupo pensamento jurídico crítico latino-americano, na qual se subdivide no grupo de Criminologia Crítica Latino Americana - Andradiano (Unesc) (grupo que sedia minha atual pesquisa); Membro pesquisador Cnpq no núcleo de Estudos em Gênero e Raça - Negra (Unesc); Membro do eixo de Criminologia e Movimentos Sociais - Instituto de Pesquisa em Direito e Movimentos Sociais (IPDMS). Atuou na Advocacia Popular. E-mail: felipe_chersoni@hotmail.com *** Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Mestre em Ciências Jurídicas pela UniCesumar Universidade Cesumar. Pós-graduado lato sensu em Direito Eletrônico pela Universidade Estácio de Sá, Pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho pela Universidade Castelo Branco, Pós-graduado lato sensu em Metodologia do Ensino Superior pela UNOPAR - Universidade Norte do Paraná, campus Londrina/PR e graduado em Direito pela UNOPAR - Universidade Norte do Paraná, campus Arapongas/PR. Possui experiência no magistério superior nas áreas de Direitos Humanos, Direito Constitucional, Administrativo, Direito Internacional Público, Estágio Supervisionado em Trabalho e Civil, Teoria Geral do Estado e da Constituição e Direito e processo do Trabalho, Direito Empresarial. Pesquisa na área de Direitos Humanos. E-mail: thomaz@carvalhoerodrigues.adv.br 1 109 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 Introdução A umbanda2 é mística. Tem seus fundamentos e seus credos. A experiência que trago nesta introdução é de filha de casa de santo. A caridade e o amor são a maior lição que a religião traz para com seus filhos e a sociedade, apesar da intolerância sofrida por seus fiéis. Quando estou dentro da terreira, a áurea de fazer o bem, de conversar e ser acolhida pelas entidades me faz sentir a forma como este chamado foi importante, desde a evolução espiritual, até mesmo para com a visão de mundo que temos. É pensando nisso que reflito sobre a intolerância neste escrito. Pensar de forma decolonial, antirracista, em prol da religião que muda o mundo e ainda assim sofre com o eurocentrismo da ciência e da religião católica. Quando entendemos que as religiões de matrizes afro, e aqui especificamente a umbanda, estão a margem, as subalternizadas após a colonização europeia e a colonialidade expressa pela cultura difundida através da demonização de tudo que não é europeu, não é branco. Como filha de santo, percebo como estas violências foram mitigadas por meio da positivação de leis ordinárias e até mesmo de dispositivos constitucionais; mas, o que vejo na prática, são racismos velados e intolerantes que ficam no limiar entre o aceite forçado e a necessidade de não se provar como uma pessoa preconceituosa. Exemplifico, aqui, em duas situações: quando ando com a guia de proteção com a cor de minha guia de cabeça, muitas pessoas têm necessidade de questionar desde o que é até sentir medo de eu estar fazendo ‘macumba’, ou seja, fazendo mal a alguém. Em outra situação, podemos citar o desfile da campeã do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro em 2022, a Grande Rio, que trouxe Exú, ora Orixá, ou, na umbanda, catiço, abridor de caminhos, com a repercussão de que era representação do demônio, e que, assim, o estado estaria condenado e o país também a inúmeras tragédias. É com estas representações que pensaremos a partir da criminologia, por meio das encruzilhadas dos saberes (RODRIGUES JUNIOR, 2018; GÓES, 2021), de forma Um dos pontos básicos para compreender Umbanda é entender que ela tem sua própria cosmogonia e androgenesia – explicações sobre o surgimento do universo e da humanidade. Entretanto, sabemos que esta religião apresenta grande diversidade de pensamento e práticas. Sendo assim, é possível que dentro da Umbanda Sagrada, segundo doutrina expressa por Rubens Saraceni e seus discípulos, encontre-se uma explicação relacionada a muitos universos coexistentes, dimensões paralelas etc. Já outras, como a Umbanda Esotérica, segundo orientada pelo Caboclo Mirim, possui bases na teosofia e forte influência de filosofias orientais, especialmente a hinduísta. Outras visões mais tradicionalistas podem tomar como verdades os mitos da criação iorubás ou mesmo tomar emprestada a mitologia judaico-cristã para explicar o surgimento da vida, seus objetivos e consequências (NÓS DA UMBANDA, 2016, s/p.). 2 110 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 decolonial, como as religiões de matriz africana são vistas e demonizadas, por meio de uma ótica ainda colonialista e europeia, de desprezo dos saberes não tradicionais. Nesta senda, deverá ser analisado criticamente como os direitos humanos, numa perspectiva colonial e atual, não conseguem abranger os saberes e defender os integrantes de religiões de matriz africana dos preconceitos sofridos, utilizando da criminologia como mecanismo de libertação para compreender a fundo essas intolerâncias e suas punições correlatas. Assim, o objetivo deste trabalho é, em suma, ir de encontro a decolonialidade e dar suporte aos saberes das margens, com apoio da criminologia crítica, de forma a entender o fenômeno de criminalização das religiões de matriz africana e afrobrasileira, e como a teoria vigente de direitos humanos é incisiva em desconsiderar os saberes negros. A justificativa para o presente trabalho se incide em que, no Brasil, existe ainda um preconceito velado em relação a pessoas de religiões africanas e/ou afro-brasileiras, desde o batuque até a umbanda. De forma a demonstrar este racismo, religiões brancas como o espiritismo não recebem tais distratos e preconceitos, por razão principal em serem considerados vertentes cristã e branca, diferentemente das outras religiões citadas. É por esta senda que deve ser debatido o tema. Urge a necessidade de debater os malefícios desta demonização e da criminalização desde o período colonial e escravocrata do culto e saudação dos Orixás e falangeiros3 no Brasil, e como isto vem sendo propagado e replicado até o Brasil República no século XXI. A metodologia de pesquisa utilizada para que possamos compreender e chegar aos resultados propostos será qualitativa, com etapa bibliográfica, fazendo análise documental e bibliográfica das evidências já existentes, para que assim, possamos chegar ao objetivo final. Por estes motivos e do aquilombamento mais que necessário entre os negros até mesmo não racializados, mas simpatizantes das religiões citadas, devemos discutir, debater e mudar a visão desencorajadora destas religiões. Os preconceitos ficam escondidos, mas nada muda. Precisamos mudar e é pra já. Após compreender o objetivo do trabalho tese central que nos guia é a superação do positivismo desde uma construção teórica negra e periférica, “nós falando por nós e teorizando nós” para, desde os saberes periféricos contribuir para a construção de uma Importante ressaltar a diferença entre Orixá e Falangeiro, sendo os Orixás mais próximos ao iorubá e culto antigo, muito expresso, no Brasil, em cultos como o candomblé, o batuque e a nação, sendo a representação mais próxima ao divino. Quando pensamos em Falangeiros, estes foram pessoas que evoluíram espiritualmente e que, por conta do trabalho feito em terra vibrar fortemente na linha de um determinado Orixá, acaba se tornando seu falangeiro e sua representação na Umbanda. 3 111 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 criminologia crítica enraizada nos saberes populares, uma teoria que se constrói a partir de vivências e assim possa dar respostas reais aos problemas nas quais a criminologia se propõe a enfrentar, tomando como exemplo, neste texto, o caso da intolerância religiosa que tem nos seus nefastos efeitos, os genocídios, culturais, epistêmicos e de vidas humanas, e buscando na vivência de terreiro a construção epistêmica de uma criminologia da libertação negra, tese trabalhada por Luciano Góes em texto denominado de Ebó Criminológico: Malandragem Epistêmica nos cruzos da criminologia da libertação negra publicado no ano de 2021 e que aqui nos esforçamos para dar continuidade a esta ideia4. Sendo assim o texto se divide em quatro subtópico, no primeiro deles Positivismos criminológicos e genocídios: a construção do negro como inimigo nos esforçamos a buscar, em como a construção de um inimigo a ser combatido pela burguesia, encontrou no tripé, racismo científico, técnica jurídica e dogmática a perfeita simbiose que justifica os genocídios promovidos por uma criminologia que ainda era pautada no racismo e no colonialismo. No segundo subtópico denominado de Colonialismo e religiosidade: os saberes populares na mira do positivismo acadêmico demonstramos a simbiose entre o colonialismo e o genocídio epistêmico, que aqui cruza-se com os preceitos científicos burgueses que a partir da “demonização” dos saberes populares que os colocam como inferiores cunhou uma pretensa neutralidade acadêmica, o tópico inova-se em pensar este contexto dentro do campo criminológico, porém buscando em referenciais diversos reconstruir, dentro dos limites de um artigo ensaístico essa parte da história de opressões. Dentro deste tópico maior, destaca-se o item denominado de A criminalização de terreiro e os açoites em corpos aliados: pensando em um estudo de caso que é um relato de experiencia evidenciando os efeitos práticos do racismo religioso no cotidiano de Este texto é fruto não somente de uma pesquisa coletiva maior, que tem como horizonte a construção de uma possível criminologia popular, que vem dando vida a uma dissertação de mestrado, mas também é fruto de encontros. Aqui cruza-se ao menos dois grupos de pesquisa e perspectivas que desde discordâncias internas se encontram. As perspectivas trabalhadas pelo grupo Andradiano de Criminologia, que partem de uma possível reconstrução de uma “nova” economia política da pena, se cruzam com os contundentes estudos do Negra – Núcleo de Estudos em Gênero e Raça, que coloca, assertivamente o racismo como estrutura de dominação. Esse encontro também é interestadual pois conta com os estudos sobre Direitos Humanos desenvolvidos na Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro. Esse encontro tem compromisso com uma agenda de pesquisas que não somente se limita a dialogar com a academia, mas que parte do protagonismo dos movimentos populares, das formas de luta através dos saberes religiosos e demais saberes para uma possível epistemologia da libertação negra essa que é vista, por nós como parte da totalidade dentro das estruturas de dominação. 4 112 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 uma umbandista e partir disto, construir possíveis maneiras de uma reconstrução teórica a partir da vivência e escrevivencia. O tópico de encerramento deste escrito Criminologia da libertação negra: aportes decoloniais para uma criminologia de terreiro é um esforço em continuar a empreitada iniciada por Luciano Góes que foi debatido no V Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as) da Região Sul (COPENE-Sul)5, realizado pela Universidade do Extremo sul catarinense a partir da pergunta realizada por um dos autores deste texto. A criminologia de terreiro se coloca como esforço para, dentro da criminologia da libertação negra, ser um mecanismo de enfrentamento ao genocídio epistêmico. Portanto este tópico que encerra o escrito, parte de uma criminologia da libertação, porém, buscando em referenciais populares a construção de uma libertação que tenha o povo negro como protagonista de luta e de construção teórica. Em tópicos conclusivos evidenciou-se a necessidade de buscar na pluralidade de saberes populares, o protagonismo necessário para que se construa uma teoria da libertação que parta das populações periféricas negras como práxis de mudanças radicais na sociedade. Além de buscar nessa rebeldia coletiva uma criminologia preocupada com essa mudança radical, que se construa com o protagonismo popular para que supere os genocídios e finalmente vença o positivismo criminológico na prática. Colonialismo e religiosidade: os saberes populares na mira do positivismo acadêmico Clóvis Moura bem teorizou que as religiões, para as pessoas escravizadas, não eram apenas devoção, para este povo, vítima do sequestro colonial, era uma forma de luta e libertação. Dessa forma, na visão dos colonizadores, delinquir tal expressão religiosa era também, uma forma de evitar uma possível revolução (CLÓVIS MOURA, 1966). Os processos envolvendo essa suposta abolição veio eivado de imenso discurso contra as religiões do povo escravizado, criar este inimigo era um fator crucial, pois o medo da elite agrária e europeia era uma revolta que tomasse os mesmos contornos 5 O V Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as) da Região Sul (COPENE-Sul), foi um evento virtual que ocorreu de 26 a 28 de outubro de 2021. O tema do V COPENE - SUL, foi intitulado “ANO PASSADO EU MORRI, MAS ESSE ANO EU NÃO MORRO”: O Direito à Cidade e as populações negras no Sul do Brasil. O evento visou congregar pesquisadores/as, movimentos negros e/ou outros coletivos, negras e negros em movimento de diversos saberes para debater, analisar e refletir a construção do Direito à Cidade e, consequentemente, a condição de cidadania e de humanidade, das populações negras residentes e atuantes no Sul do Brasil que lutam pelo direito de existir e reexistir. 113 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 que a revolução do Haiti, exemplo vivo da tomada do poder pelo povo das mãos dos colonizadores (QUEIROZ, 2022). Esses processos que moldaram os rumos das instituições da violência policial até os dias atuais, antes de ser institucionalizada pelos discursos de direitos humanos ocidental, eram práticas de silenciamento epistêmico e cultural, o racismo que tinha como plano de fundo a violência era vitimado em diferentes perspectivas (CLÓVIS MOURA, 1966). A narrativa construída de que o Brasil era uma sociedade em pleno desenvolvimento humano e que a abolição era uma amostra disso, em verdade, foi contestada por diversos autores, e demonstrada que essa construção teórica e retórica era uma grande falácia. Clóvis Moura no clássico Rebeliões da Senzala aponta que um dos fatores que levaram a suposta abolição, além de todo o apelo desenvolvimentista capitalista, que via nos escravizados libertos um mercado consumidor, de ao menos, produtos básicos, era a união. Através da capoeira, do compartilhamento do fumo e das práticas religiosas essas pessoas construíam laços de contestação de toda essa ordem posta e assim constituíram práxis de libertação desde os costumes e usos (CLÓVIS MOURA, 1990). Essa união se tornou a resistência dos quilombos, uma unidade de consolidação de uma ideia, a rebelião e a luta pela liberdade. Obviamente que essa era uma retórica a ser escondida pela burguesia racista, que via nessas resistências, um impasse para os projetos “desenvolvimentistas” brasileiros. Nas palavras de Clóvis Moura “Em Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Maranhão, onde quer que o trabalho escravo se estratificava, ali estava o quilombo, o mocambo de negros fugidos, oferecendo resistência. Lutando” (CLÓVIS MOURA, 1990, p. 87). Para consolidar essa base de resistência, eram necessários alguns pontos de convergências estratégicas, pois para organizar essas revoltas, era necessária muita inteligência entre as lideranças. A religião se colocava como aliada dessa organização e dessa conjuntura começou-se a aflorar diversos pensadores, estrategistas, artistas e poetas, que contavam em seus escritos e cantos a vozes da resistência (CLÓVIS MOURA, 1990). Abdias do Nascimento (1978) sistematiza algumas concepções de genocídios, que facilita a compreensão da ideia de genocídio epistêmicos utilizando os positivismos criminológicos para tanto. “O crescimento da consciência negra é desencorajado pela recusa da sociedade em conceder ao cidadão negro a oportunidade de realizar sua integra identidade” (NASCIMENTO, 1978, p. 80). Mais à frente o autor convoca a 114 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 categoria de “mito da democracia racial” para compreender como esse silenciamento das vozes negras é fruto de uma pretensa democracia racial, e até os dias atuais atua silenciosamente cerceando vozes de resistência, dentro e fora da academia. A Europa por sua vez calcada na ideia de modernidade, modificou as formas de punição, abolindo os suplícios públicos, com base em uma ideia totalmente embranquecida de direitos humanos, institucionalizaram-se a barbárie, e essa ideia, é tão nefasta para o povo negro ao ponto de colocar as próprias práticas religiosas contra essa pretensão moderna de direitos humanos, que em verdade, era um discurso desenvolvimentista colonizador. Essa fase inaugurou as prisões modernas. Pois a modernidade não aceitava mais a barbárie, pública, então a grande ideia foi estruturar gigantescos estabelecimentos penais, rodeado de muros e distantes das cidades, resumidamente surgiu o sistema penal (GÓES, 2016). O positivismo, ou os positivismos, para além de discursos foram práticas que legitimou e legitima um turbilhão de acontecimentos que comumente resultam em um corpo negro caído no chão (FLAUZINA, 2006). Essa ideia que teve como pai a figura e os escritos de Lombroso foi propulsora de uma criminologia, inclusive acadêmica, tida como hegemônica que culminou em diversos processos genocidas. Pensemos no genocídio epistêmico e cultural para desenvolver o pensamento deste tópico. O genocídio epistêmico é o próprio apagamento de toda pluralidade de saberes não eurocêntrica, que se legitima por supostos métodos científicos, que por vezes provouse ser falsos, como no caso do positivismo criminológico (GÓES, 2016). Esse apagamento cultural justificado por um discurso metódico justificou o silenciamento da união e possíveis revoluções patrocinadas pelas revoltas das pessoas escravizadas, e não somente isso, colocou esse movimento como inimigo a ser combatido, transportando não somente uma cientificidade não brasileira como hegemônica, como religiões hegemônicas que patrocinaram apartheids (ZAFFARONI, 1988). Como consequência ao positivismo criminológico ter sido consolidado mundialmente como uma ciência, sobrou mais uma vez para as populações negras a conta do desenvolvimento. Foi Rosa Del Olmo que se debruçou a nos contar essa história que se materializou no livro A América latina e sua criminologia que fica evidente como olhar para os países “industrializados” foram um modelo para o surgimento do que se chama de “prevenção e repressão ao delito''. Importamos então as casas de correção, como forma de solucionar o “problema” da situação dos cárceres e as quantidades já extraordinárias de pessoas em cumprimento de pena existentes. A modernidade pugnava por maneiras “humanas” de punição (DEL OLMO, 2004). 115 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 No primeiro congresso de antropologia criminal, que aconteceu na cidade de Roma em 1985, a criminologia surgiu como “a ciência do estudo do delinquente”, e não demorou a essa ideia rapidamente se difundir no Brasil. E para a autora, essa suposta ciência não demoraria a justificar a repressão aos movimentos de resistência, servindo como resposta aos que ousavam “atrapalhar” o desenvolvimento das forças produtivas do grande capital (DEL OLMO, 2004, p. 171). Rosa Del Olmo foi pioneira em desvelar como a introjeção da América Latina no processo de produção capitalista foi desigual, desde um olhar criminológico crítico, a absorção a antropologia criminal deveria ser uniforme em nossos solos, tentando especificar de forma total os processos de delinquência e desvio, incorporando nesta ciência as especificidades dos povos indígenas e colocando Argentina e Brasil como a vanguarda dos estudos da personalidade criminosa, ou seja, fomos berço da aplicação de uma ciência racista e classista que se utilizou de uma fumaça de intelectualidade como ferramenta de sequestro e introjeção da modernidade em nossos solos (DEL OLMO, 2004, p. 171). Zaffaroni (1988, p. 134) aponta que: La criminología positivista se ocupó largamente de los "crímenes de las muchedumbres", que HIPÓLITOTAYNE ejemplificaba con crímenes cometidos durante la Revolución francesa, en tanto que otros autores recogían su casuística de la Comuna de París, de cuyos líderes varios "científicos" trazaron "cuadros patológicos". Hubo quienes —entre ellos, SIGHELE— establecieron la diferencia entre la multitud "sana " que sufría el efecto de los "degenerados " que la utilizaban y los "degenerados " mismos, mientras que el inefable LE BON desarrollaba su tesis de la neutralización de la racionalidad del hombre en las muchedumbres. La literatura recogió esta imagen y EMILIO ZOLA relataba horrendas escenas de huelgas tumultuarias en su Germinal, que culminan con la castración de un cadáver y la exhibición triunfal de los testículos en una pica. Mientras que la superioridad blanca nordeuropea de las clases hegemónicas y de los trabajadores disciplinados de Europa frente a la inferioridad de las restantes ' 'razas " de Europa y del mundo y de las masas indisciplinadas y de sus dirigentes, eran cuestiones que no admitían discusión en la "ciencia" de los "superiores " centrales, en nuestro margen latinoamericano las élites criollas tampoco lo discutían, identificándose con los sectores hegemónicos centrales y considerando inferior a la inmensa mayoría de la población latinoamericana, con variables arguméntales de detalle en cuanto a sus consecuencias políticas a corto plazo. A burguesia colocou na mira dessa pretensa ciência todas o pluralismo de saberes que atenta contra essa lógica hegemônica. A resistência popular, passou a ser calada, pois, dentro dos muros acadêmicos e fora deles, tudo que se referia a cultura negra 116 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 popular passou a ser criminalizada, a exemplo disso, temos as próprias criminalizações da capoeira, do fumo e da religião, através do controle social formal e informal, domínios que se atravessam e se complementam (SAAD, 2009). Assim, a demonização das religiões de matriz africana não foi sem propósito, mas um estratagema branco de dominação e, sobretudo, neutralização da resistência negra, que tem nos terreiros sua incorporação, refazendo passos das insurgências negras tão temidas por sociedades racistas (GÓES, 2021). A exemplo desses controles sociais que passou a jogar as práticas ancestrais cada vez mais as margens "científicas" e sociais. Os primeiros registros de criminalização dos saberes populares foi a criminalização do curandeirismo, essas práticas eram consideradas crimes contra a saúde pública. Após o Estado novo esses dispositivos passaram por modificações, que ainda sim, na prática implicava sansões apenas a um grupo social, os negros (OLIVEIRA et al., 2015). Associados a disseminação do saber médico legal, fruto do positivismo criminológico, a psicologia passou a associar as religiões de matriz afro-brasileiras a problemas mentais, muito porque, é tradição de tais religiões o transe. Esse transe passou a ser visto como anormalidade psíquica por esses saberes, disseminando mais ainda o controle social informal a tais pessoas. A criminalização da maconha também passou por diversos estudos médicos legais, e contou com o apoio da própria psicologia e época, culminando em uma lei de drogas que representa a criminalização da pobreza até os dias atuais (SAAD, 2009). Para despachar seus carregos (necropolítica, genocídio, presunção de periculosidade e epistemicídio), a insurgência negra rompe os aprisionamentos colonialistas com saberes forjados nas rodas cosmo-filosóficas diaspóricas, abrindo “novos” caminhos ao que é primordial para redimensionar os cruzos, transformar sentidos e subverter lógicas racistas, pois ali reside o dínamo da desordem, Exú, o movimento em deidade, o princípio de tudo e sem o qual nada é realizado, é senhor dos caminhos de nossa libertação (GÓES, 2021). Invocar Exú é cantar para que a estratégia racista suba, se dissipe no ar, como a fumaça resultante do fogo que tacamos nas plantations do saber epistemicida (SIMAS; RUFINO, 2018), incrustado no racismo religioso que integra o sistema de controle racial informal, que manipula a gramática de violência inscrita em nossos corpos igualmente simbolizados (GÓES, 2021). Todos esses acontecimentos estavam sob, não somente a ótica da pretensa ciência hegemônica que de fato é racista, como também ancoradas em um discurso de direitos humanos, que assim como o direito penal em si, é seletiva. Ao ler a forma com que 117 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 Joaquin Herrera Flores aborda a temática dos direitos humanos a partir da ideia de sua (re)invenção, torna-se impossível não abrir novos olhares e questionamentos quanto ao entendimento da temática de direitos humanos, especialmente no que se refere ao campo da segurança pública, o controle social e o próprio direito penal e seus discursos pautados nos Direitos Humanos. O autor desmistifica conceitos criados pela dogmática neoliberal, aproxima os debates políticos e populares ao direito e denuncia a burocratização do método de minimização das lutas pela afirmação dos direitos humanos em uma perspectiva latinoamericana (HERRERA FLORES, 2009). É com esta perspectiva que seguiremos o trabalho, encaminhando-se para um relato pessoal com a criminalização da religião. A criminalização de terreiro e os açoites em corpos aliados: pensando em um estudo de caso Peço licença de forma a falar minha experiência de pessoa negra (parda) e de religião de matriz afro-brasileira, sendo umbandista mesmo há pouco tempo, mas aprendendo cada dia mais sobre o universo da religião e fora dela. Quando falamos que a umbanda tem fundamento e é preciso preparar, seus fundamentos vão além do que se imagina. Pregar a caridade e o amor é a essência, mas prova-se todo dia o amor à religião a cada cena, cada vivência de intolerância religiosa que passamos quando andamos pela rua guiados; quando ouvimos que a Pomba Gira destruiu mais um casamento; quando nos acusam de amarrações amorosas e “macumba” (de forma pejorativa) para conseguirmos o que necessitamos e trabalhamos profundamente para conseguir. Pregar a caridade é um elemento fundamental para a religião, mas estamos para a caridade, assim como a intolerância está para cruzar a sorte de um umbandista. Desde meu amací, ou seja, uma forma de batismo (de uma forma mais simplificada em palavras) com ervas, muito mudou e a postura de mundo de quem adentra as portas de uma casa de santo muda. Oportunidades vêm de encontro e muitas coisas saem de nossa vida. Nossas escolhas de ações mudam. É por este motivo que abro meu Orí neste texto e clamo por uma teoria crítica de direitos humanos em que não haja distinção dos nossos saberes ancestrais para com os saberes eurocêntricos. Quando digo que minha religião cura, não quer dizer que a religião embranquecida não cura, ou que desacredito da ciência, mas que tenho fé na força de meu Pai Maior e que o bem prevalecerá dentro das quatro paredes de minha casa de fé e irá reverberar 118 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 a tudo e todos ao redor. Quando digo que a religião da umbanda é o último respiro, muitas vezes, para alguém tomar fôlego e seguir, quer dizer que acredito na nossa caridade e amor de forma a mudar o mundo. Pessoas não mudam a umbanda, mas a umbanda muda pessoas. Quando dizemos que queremos paz para nossos cultos, é apenas isso. Não queremos casas cheias de filhos e filhas, mas queremos a paz de poder cultuar nossas entidades sem andar na rua e sermos xingados ou tentar nos exorcizar em outras celebrações ecumênicas. Queremos andar na rua e fazer as entregas para quem necessita sem ter que ouvir das entidades que o trabalho foi vandalizado. A umbanda é para todos, mas nem todos são para a umbanda. Se você não é de umbanda, não é bom se aproximar. Intolerantes, não se aproximem, não mexam com o sagrado umbandista. Nós não somos seus alvos de forma a descontar frustrações e raivas do desconhecido. Seu preconceito mata. Seu pré-conceito mata. Mata os nossos. Mata nós. Mata todo dia um pouquinho e vai escalando. E é nesse sentido que propomos alternativas criminológicas. As religiões de matriz afro-brasileiras como suporte e centro de uma libertação negra para uma não criminalização. Minha proximidade com a criminologia me faz afirmar que o que precisamos não é de punições maiores e extremas a quem nos fere. Não precisamos de mais uma lei em que positive determinadas condutas produzidas por uma ignorância que perdura há séculos e que foram plantadas por pessoas que nos odeiam pela cor da pele. Precisamos de uma alternativa para além das atuais, em que se preza por infligir uma pena em relação a uma pessoa e, desta forma, encarcera-la o máximo possível como forma a pagar por seus erros, ao invés de compreender as raízes do problema e aprender para possíveis atitudes no futuro. É, sem dúvida, imprescindível dizer que este passo com relação as religiões brasileiras, nos leva a uma abordagem em que a equidade racial possa ser possível e debatida, assim como a intolerância religiosa e a ignorância causada pelo medo do desconhecido, especialmente no contexto histórico-cultural em que estamos inseridos. Atualmente, o preconceito vem em ondas, onde o próprio representante mor da nação desfere e destila discursos de ódio, levando a população a um conforto onde se possa ser abertamente preconceituoso ou intolerante com os diferentes e sabe-se que tudo irá ficar bem. Um dos motivos deste avanço de retrocesso é o domínio absurdo de religiões cristãs em que se prega o ódio aos diferentes, associando a uma onda 119 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 conservadora, pregadora da família, da boa moral e dos bons costumes, que despreza religiões afro-brasileiras e as condena ao inferno cristão. O resultado desses avanços resulta em ataques a terreiros de fé, conservadores que se acham ao direito de simplesmente julgar a fé alheia e impor conceitos de sua própria fé, acusar de fazer o mal e por isso julgar ser motivo mais que suficiente para que possa desprezar e violentar representações de outros fiéis. Precisamos nos libertar das amarras do positivismo e eurocentrismo para compreender novas e antigas diferentes cosmovisões do mundo. Precisamos descolonizar tudo e já! Criminologia da libertação negra: aportes decoloniais para uma criminologia de terreiro As teorias da libertação, que partem de uma construção popular, utilizando dos ideais das religiões latino americanas, em sua escrita de maior vanguarda, nos leva a refletir acerca de como. Mesmo as teóricas que se colocam como críticas retornam ao centro se perdermos de vista a necessária contundência, isso leva-se em consideração de que, o projeto acadêmico colonial, como já posto, epistemologicamente apagam os escritos dos povos oprimidos. Essa direção ao centro, para o autor, é a morte social e filosófica dessa crítica, que se coloca como decolonial e pós-moderna (DUSSEL, 1977). Esses apontamentos fizeram florescer diversas teorias que, não só pretendiam ter um olhar para as classes oprimidas, como também, teorizar com as vivências advindas das mesmas. Partimos então de uma Criminologia da libertação (ANIYAR DE CASTRO, 2005), cuja práxis de liberdade depende urgentemente de um projeto criminológico popular, não que somente teorize essas classes, mas que compreendam que elas também produzem conhecimento, e que este deve ser comprometido com o desmantelamento do sistema penal formal e informal/subterrâneo (ANIYAR DE CASTRO, 2005), compreendendo os limites da Criminologia crítica ao voltar-se majoritariamente sobre o sistema penal formal e suas funções latentes (ANDRADE, 2003). Nesse sentido, nos juntamos à Ana Flauzina (2016, p. 95): É bem verdade que falo como visitante do clube criminológico. Juro que paguei as mensalidades devidas, aprendi os ensinamentos essenciais, me vali das estratégias disponíveis. Mas não seria capaz de pegar a carteira de membro permanente. Para mim, esse sempre foi um caminho, dos muitos possíveis, para se dar conta do recado de sobreviver ao genocídio. Esse que se vulgariza com a 120 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 velocidade nas bocas dos teóricos do campo. Intelectuais dessa tal “esquerda acadêmica sensível e iluminada” que ignoram convenientemente seu papel estratégico no avanço dos equipamentos. Retornemos a Lola Aniyar de Castro, pois, para nosso entendimento a autora foi fundamental para o desmantelamento e denúncia de uma lógica subterrânea de punição, que mais que seletiva é violenta. Em apresentação a edição brasileira do livro Criminologia da Libertação, Lola Aniyar de Castro enfaticamente aponta que o livro continua, mais do que nunca, atual. Porque “[...] o livro aborda os momentos preparatórios, às vezes muito dolorosos, do que é hoje a prática dos controles formais e informais da dominação” (CASTRO, 2005, p. 13). Pioneira em desvelar em como os controles sociais, encontra na via penal, a partir do suporte do Estado com substrato do mercado financeiro, maneiras e formas de manter a hegemonia do capital através da violência. O controle social subterrâneo que através a coerção, medo e truculência legítima a acumulação de riquezas e concentração de terras. É na América Latina que o controle social se transforma em robustas formas de opressão, tanto de maneira informal, subterrânea como escreve Lola, como na esfera formal, legitimando a barbárie através da burocratização legislativa e dogmática (CASTRO, 2005). A autora, em nossa análise, também é precursora em problematizar as entrelinhas da dependência Latino Americana e o poder punitivo. Tomando essa característica como base para compreender como o Estado age de forma simbiótica com a hegemonia financeira. As características de penetração do capital financeiro também se materializam através do Estado-político-punitivo. Em uma das várias passagens que a autora aborda essa simbiose, ela compreende que para Hulsman nos países de centro do mundo “[...] a legitimação do sistema sociopolítico não depende do sistema penal” (CASTRO, 2005, p. 146); podendo ser utilizados de outros mecanismos, como por exemplo, políticas sociais. Na especificidade a América Latina “periferia do capitalismo selvagem” embora não se adote teorias de cunho voluntaristas. “O sistema penal é aqui um suporte fundamental do processo de dominação, tanto em sua vertente ideológica como fática” (CASTRO, 2005, p. 146). Os movimentos populares, também se destacam na obra analisada, destacando as formas de criminalização dos mesmos. O poder punitivo utiliza-se de diversas formas de criminalizar a resistência ao sistema, a autora exemplifica isso através do “combate ao narcotráfico”. Para a professora Lola fica cristalina a ideia de que o discurso do 121 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 combate ao tráfico de drogas, em verdade, é uma das ferramentas de criminalização dos movimentos populares, visto que, é disseminada na mídia dominante, sobretudo estrangeira, o discurso de que os grupos radicais de esquerda são responsáveis ou beneficiários direitos do narcotráfico (CASTRO, 2005). Foi Rosa Del Olmo que se debruçou a nos contar essa história que se materializou no livro a América latina e sua criminologia fica evidente como olhar para os países “industrializados” foram um modelo para o surgimento do que se chama de “prevenção e repressão ao delito''. Importamos então as casas de correção, como forma de solucionar o “problema” da situação dos cárceres e as quantidades já extraordinárias de pessoas em cumprimento de pena existentes. A modernidade pugnava por maneiras “humanas” de punição (DEL OLMO, 2004, p. 166-168). No primeiro congresso de antropologia criminal que aconteceu na cidade de Roma em 1985 a criminologia surgiu como “a ciência do estudo do delinquente” e não demorou a essa ideia rapidamente se difundir no Brasil. E para a autora essa suposta ciência não demoraria a justificar a repressão aos movimentos de resistência, servindo como resposta aos que ousavam “atrapalhar” o desenvolvimento das forças produtivas do grande capital (DEL OLMO, 2004, p. 171). A professora Del Olmo foi pioneira em desvelar como a introjeção da América Latina no processo de produção capitalista foi desigual, desde um olhar criminológico crítico, a absorção a antropologia criminal deveria ser uniforme em nossos solos, tentando especificar de forma total os processos de delinquência e desvio, incorporando nesta ciência as especificidades dos povos indígenas e colocando Argentina e Brasil como a vanguarda dos estudos da personalidade criminosa, ou seja, fomos berço da aplicação de uma ciência racista e classista que se utilizou de uma fumaça de intelectualidade como ferramenta de sequestro e introjeção da modernidade em nossos solos (DEL OLMO, 2004). Em importante reconstrução da criminologia da libertação, Leal (2017) contesta a efetiva participação do Brasil na construção dessa criminologia. Isso diz muito sobre o trabalho em que desenvolvemos aqui, pois, o autor demonstra em sua investigação a dois importantes periódicos latinos de criminologia, que a construção da brasilidade criminológica necessita estar aliada as utopias de transformação social, pois essas utopias guiam os horizontes das teorias críticas latinas (LEAL, 2017). Pode-se se dizer que esse resgate passa pelos processos de tomada de consciência, tanto da criminologia enquanto locus de transformação, quanto, da própria população sobre a ideia de que somos um território marginal e subalternizado. 122 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 É necessário, pois então, descer das “torres de marfim” de uma academia dita crítica, essa ideia é a construção teórica alvos das críticas de Ana Flauzina (LEAL, 2017). No V Congresso Brasileiro de Pesquisadores(as) Negros(as) da Região Sul (COPENE-Sul), realizado pela Universidade do Extremo sul catarinense, na mesa de abertura que contou com palestras de Luciano GÓES, Thula Pires e Flávia Medeiros, com mediação e organização da professora Fernanda da Silva Lima. O tema da criminologia da libertação foi levantado, em pergunta realizada por um dos participantes ao professor Luciano Góes que de forma contundente demonstrou que a teoria da libertação só estaria completa se abrangesse as religiões de matriz afrobrasileiras (GÓES, 2022). Nesta linha o professor apresentou a ideia desenvolvida no texto Ebó Criminológico: Malandragem Epistêmica nos Cruzos da Criminologia da Libertação Negra. Que além da contundente crítica abolicionista arrancando o racismo das entrelinhas e desmascarando o controle repressivo que tem em suas raízes a segregação da população negra, o autor demonstra como o racismo religioso faz parte de uma teoria que tem como pretensão a crítica. Nesses cruzamentos são necessários buscar nas religiões de matrizes africanas os fundamentos de uma libertação que só é capaz dentro do verdadeiro contexto racial brasileiro, buscando nessas raízes os fundadores desta nação, que são o povo que veio sequestrados do continente africano e que trazem na malandragem epistêmica a construção de uma criminologia que liberta o povo preto das amarras raciais burguesas. Conclusão Chegamos à conclusão de que o Brasil foi forjado por uma ideia supostamente iluminista de libertação, na qual em primeiro momento passava-se por um desenvolvimento industrial e uma modernização em suas práticas sociais, que em verdade, resultou em uma massificação da subalternização, sobretudo das pessoas negras. Dentro deste pretenso ideário desenvolvimentista burguês, o transplante de uma cientificidade que se coloca como “neutra” e o patrocínio de uma migração branca, com a pretensa justificativa de necessidade de uma mão de obra técnica foi fundamental para a construção de um genocídio epistêmico. Esse genocídio foi responsável pela destruição dos saberes tradicionais de nossos povos, pelos processos de branqueamento da população brasileira, tanto em termos 123 Criminologia periférica Uma análise do racismo colonial nas religiões afro-brasileiras sob a ótica criminológica da libertação negra DOI: 10.23899/9786589284369.9 físicos como em termos culturais e dentro dessa estrutura patrocinou a construção de uma teoria eminentemente técnica que nega qualquer preceito de popularidade. Neste sentido a criminologia nadou nesta maré e em seu início foi fruto desse iluminismo que em verdade cunhou uma institucionalização da tortura através do direito penal clássico, dogmático e tecnicista. Diversos estudiosos que mencionamos, como o caso de Lola Aniyar de Castro, demonstraram que o desmantelamento dessas estruturas passa pela superação do controle social informal. Na reconstrução dessa linha teórica e política, Jackson da Silva Leal apontou que eram necessários descermos das torres de marfim da academia para adentrarmos a concretude dos acontecimentos sociais e promover uma tomada de consciência em busca da transformação radical da sociedade através de uma criminologia engajada na luta. Essa crítica foi feita por Ana Flauzina quando a autora coloca que a pretensa esquerda acadêmica necessita ser realmente fiel aos preceitos de mudança radical da sociedade. O professor Luciano Góes denunciou o racismo religioso dessa academia que se diz crítica apontando os caminhos possíveis para uma criminologia da libertação negra, que passa sobretudo pelo desmantelamento desse preconceito, para assim, buscarmos uma criminologia malandra epistêmica de terreiro. Desta forma apontamos para esse desmantelamento para que possamos buscar uma criminologia crítica brasileira e popular que supere o genocídio em suas mais variadas formas e seja uma ferramenta de construção teórica e práxis desde perspectivas populares, vivencias e lutas. Conclui-se, portanto, que se necessita de uma criminologia engajada a partir da teorização epistêmica das ruas, que se cruzam com todos os esforços teóricos já produzidos pela academia, para que assim somados, tomemos os movimentos de libertação como protagonistas para que a libertação negra seja um horizonte possível. Referências ANDRADE Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. 250 p. CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan, 2005. DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua criminologia. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004. DUSSEL, Enrique D. Filosofia Da Libertação: Na América Latina. 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