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CIÊNCIAS SOCIAIS EM SAÚDE COLETIVA

Sumário
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 3

A CONSOLIDAÇÃO DE UM CAMPO: CIÊNCIAS SOCIAIS EM SAÚDE............ 4

DIFUSÃO DA PESQUISA QUALITATIVA NA SAÚDE COLETIVA ..................... 8

A QUALIDADE DAS PESQUISAS QUALITATIVAS .......................................... 13

SURGIMENTO DE NOVOS TEMAS: A ANTROPOLOGIA ENTRA EM SENA . 19

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ................................................................. 27


INTRODUÇÃO

A área da Saúde Coletiva, bem como de dissertações e teses, que utilizam a


metodologia qualitativa em suas pesquisas tem chamado a atenção dos
pesquisadores da área, particularmente dos cientistas sociais. Se, em um primeiro
momento, este dado é positivo, pois atesta a aceitação e penetração desta
metodologia na saúde, a análise dos produtos resultantes destas investigações tem
levantado uma série de questionamentos. De uma maneira geral, destaca-se a
fragilidade dos trabalhos, sobretudo no que se refere à consistência
teóricometodológica. Ou seja, os objetivos, universo de investigação e, sobretudo, a
análise dos dados, carecem de um referencial teórico que sustente as escolhas
metodológicas e caminhos analíticos adotados. Quais são as causas desta fragilidade
e quais as possíveis soluções? Este é um debate que, necessariamente, tem de se
dar na interface das duas áreas diretamente implicadas, as Ciências Sociais e a
Saúde Coletiva. É também um debate que tem de ser público, isto é, não ficar restrito
às conversas entre editores de revistas científicas ou avaliadores de trabalhos de
pósgraduação. A publicidade do debate não apenas dá visibilidade ao problema, mas
possibilita a adoção de diferentes estratégias no sentido de melhorar a qualidade das
pesquisas qualitativas. É nesta direção que o presente contexto se propõe a levantar
alguns elementos no sentido de aprofundar a reflexão sobre as implicações da
expansão das Ciências Sociais em Saúde.

A CONSOLIDAÇÃO DE UM CAMPO: CIÊNCIAS SOCIAIS EM SAÚDE

Saúde, na década de 1990, na área da Saúde Coletiva é notável. Este período


caracteriza-se não apenas pela expansão da área, mas, também, por sua
consolidação. No Brasil, antes dos anos 1990, encontramos poucas publicações na
área da Antropologia da Saúde, destacando-se os trabalhos de: José Carlos
Rodrigues, Maria Andréa Loyola, Paula Montero , Luiz Fernando Dias Duarte e Maria
Cecília Minayo . É possível identificar, no mínimo, três esferas de consolidação e
expansão das Ciências Sociais em Saúde:

 a primeira, mais relacionada aos aspectos teórico-metodológicos aportados


por esta área do conhecimento;

 a segunda, referente à consolidação da temática da saúde dentro da área


das Ciências Sociais, e, por fim, a inserção das Ciências Sociais na área da
Saúde Coletiva.

Em termos teórico-metodológicos, são inegáveis os importantes avanços


alcançados na discussão teórica em diversas temáticas de estudo, dentre as quais
destacam os estudos sobre: sexualidade, aids, corporalidade (embodiment), exclusão
social e vulnerabilidade. Nestas temáticas, é possível identificar um grande aumento
de trabalhos neste período, motivado, em grande parte, por “problemas sociais”, como
a epidemia de aids. A produção do período retoma questões já clássicas da disciplina,
como a religião, mas, agora, em sua intersecção com a questão da saúde – o que
coloca novos desafios teórico-metodológicos, ao mesmo tempo que indica novas
perspectivas de análise para estas temáticas. Podem-se identificar, também, avanços
no sentido do desenvolvimento de estratégias metodológicas mais adequadas aos
objetos de investigação (comportamentos reprodutivos, sexuais, experiências
corporais etc.) e ao próprio campo.

Portanto, trata se da combinação de metodologias quantitativas e qualitativas, o


desenvolvimento de técnicas qualitativas de coleta de dados mais “ágeis” (como
Rapid Ethnographic Procedure – REP e grupo focal), e o uso de programas de
informática que facilitam a sistematização e análise de dados qualitativos (como,
Nudist, Etnograph, NVivo, entre outros). Uma segunda esfera de consolidação diz
respeito à inserção da temática da saúde dentro da área das Ciências Sociais. A
Sociologia e, particularmente, a Antropologia da Saúde, sempre tiveram um status
um tanto marginal dentro das Ciências Sociais por lidarem com temas tidos como
menos sociológicos e, talvez, mais “naturais” (como o corpo e a doença), mas,
sobretudo, por estabelecerem um diálogo mais próximo com outras disciplinas
(Medicina, Enfermagem, Epidemiologia, Educação Física), e, ainda, por terem uma
maior preocupação com a aplicação do conhecimento acadêmico (o que, muitas
vezes, é visto como uma forma de corrupção do conhecimento sociológico,
contrariando o modelo clássico das Ciências Sociais, basicamente teórico e pouco
aplicado).

Assim, a Sociologia e a Antropologia da Saúde ganham progressivamente mais


espaço e destaque. Contudo, de um lado, aos avanços teóricos-metodológicos da
área já destacados, e, de outro, à crescente interferência do conhecimento médico e
biológico na vida social, criando a necessidade de compreensão sociológica deste
fenômeno (não apenas como uma forma de “resistência” e contestação, como se
caracterizavam os estudos das décadas de 1970 e 1980), mas como um objeto
privilegiado para investigar as questões centrais que sempre ocuparam as Ciências
Sociais, como a relação entre indivíduo/sociedade, natureza/cultura, relações de poder
e de gênero.

A consolidação da Sociologia e da Antropologia da Saúde pode ser percebida


pela inclusão das Ciências Sociais e Saúde e, em particular, da Antropologia do Corpo
e da Saúde, nos encontros da área – Reuniões da ANPOCS (Associação Nacional de
Pós-Gradução em Ciências Sociais) e da ABA (Associação Brasileira de Antropologia)
– por meio de Grupos de Trabalho e Mesas Redondas. Estes espaços, por sua vez,
passam a funcionar como uma forma de organização do próprio “campo”, articulando
pesquisadores de diferentes regiões do país e, mesmo, do Mercosul, e, ainda,
integrando sociólogos e antropólogos.

Os Grupos de Trabalhos e Mesas Redondas na área das Ciências Sociais e Saúde


atraem uma grande quantidade de participantes, seja por trazerem, para a discussão,
temas bastante atuais – como aids, sexualidade, novas tecnologias reprodutivas,
projeto genoma, entre outros, não se restringindo aos temas clássicos da área, como
religião, cultura, família e parentesco –, seja por abrirem espaço para pesquisadores
de outras áreas do conhecimento, como os pós-graduandos da área da Saúde
Coletiva. A expansão da Sociologia e Antropologia da Saúde nas Ciências Sociais, no
Brasil, são paralelas à consolidação destas disciplinas dentro do campo da Saúde
Coletiva, na década de 1990, no Brasil.

Portanto, sobre sua vez, ganha relevância no cenário nacional, dentro das chamadas
Ciências da Saúde, com a própria consolidação do Sistema Único de

Saúde. Na área de Sociologia, encontram importantes trabalhos já nas décadas de


1970 e 1980 (por exemplo, os trabalhos de Maria Cecília Donnangelo, Madel Luz,
Roberto Machado, Everardo Nunes, Amélia Cohn, entre outros), enquanto, na
Antropologia, a consolidação ocorre, especialmente, na década de 1990. Outro
indicador da penetração da Sociologia e da Antropologia no campo da Saúde Coletiva
é a procura por referenciais teóricos da área, como é o caso, por exemplo, da literatura
de gênero e de representações sociais e, ainda, pelo crescente interesse por
metodologias qualitativas aplicadas à saúde.

Exemplos desta maior visibilidade são:

 a publicação do número especial da revista Cadernos de Saúde Pública, que


aparece em 1993 (v. 9, n. 3), dedicado ao tema;

 a publicação, pela Editora da Fiocruz, em 1994, de uma coletânea de artigos


na área, intitulada Saúde e doença: um olhar antropológico, organizada por
Paulo Cesar Alves e Maria Cecília Minayo15, e, ainda, a publicação, em 1995,
pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, do livro Corpo e
Significado, organizado por Ondina Fachel Leal16.

Neste processo de consolidação da área das Ciências Sociais e Saúde, a organização


do I (e único) Encontro Nacional de Antropologia Médica tem um papel
determinante. É interessante notar que esta primeira tentativa formal de articulação do
campo se dê a partir da Saúde Coletiva e, mais precisamente, a partir da II
Conferência Brasileira de Epidemiologia (1994), por meio da constatação da grande
demanda em relação ao curso oferecido de metodologia qualitativa. Este encontro
possibilitou o estabelecimento de uma rede de pesquisadores, que seguiram
encontrando-se mais regularmente, agora, nos encontros da área da Ciências Sociais
(até porque as reuniões da ANPOCS são anuais), sem deixar de estarem presentes
nos Encontros da Saúde Coletiva.

Destes encontros, resultou uma publicação – organizada por Luiz Fernando Dias
Duarte e Ondina Fachel Leal17, intitulada Doença, sofrimento, perturbação:
perspectivas etnográficas – e, talvez, poder-se-ia dizer, uma série de publicações da
coleção Antropologia e Saúde, coordenada por Carlos Coimbra e Maria Cecília
Minayo, editada pela Editora da Fiocruz. Dessa forma, ao menos no Brasil, a área da
Antropologia da Saúde articulou-se muito mais por seu viés temático – saúde – do que
por seu viés teórico-metodológico, e muito impulsionado pelos pesquisadores que
mantinham um diálogo mais próximo com a Saúde Coletiva. Talvez o reconhecimento
da Antropologia da Saúde dentro da própria Antropologia deva-se, em parte (pois não
podem desprezar sua contribuição teóricometodológica), à visibilidade (possibilitada
pela articulação de um grupo de pesquisadores) que esta obteve por meio da Saúde
Coletiva.

DIFUSÃO DA PESQUISA QUALITATIVA NA SAÚDE COLETIVA

A expansão da área das Ciências Sociais em Saúde, além de sua consolidação


enquanto uma área de conhecimento, trouxe consigo um conjunto de aspectos que
merecem destaque, visto que possuem importantes implicações para esta área.
Primeiramente, deve-se salientar a valorização da pesquisa qualitativa em diferentes
áreas do conhecimento. É inegável o crescimento e aceitação da metodologia
qualitativa na Saúde Coletiva, não apenas nas áreas mais “soft”, como a Enfermagem
e a Nutrição, mas, também, em áreas tradicionalmente mais “duras”, como a Medicina
e a Epidemiologia.
Estudos baseados exclusivamente na metodologia qualitativa ou na combinação de
metodologias quanti e qualitativa têm se destacado nas publicações da área, tanto
nacionais quanto internacionais. Revistas nacionais da área de Saúde Coletiva (como
Cadernos de Saúde Pública, Revista de Saúde Pública, Ciência e Saúde Coletiva,
Physis e Interface) e internacionais (Social Science and Medicine, American Journal
of Public Health) recebem e publicam uma grande quantidade de artigos cuja pesquisa
foi conduzida por intermédio de metodologia com abordagem qualitativa de
investigação.

Esta ampliação das estratégias metodológicas adotadas nas pesquisas permite, por
sua vez, uma compreensão mais ampla dos fenômenos estudados. Ou seja,
fundamental quando consideram que os fenômenos da área da saúde pública são
complexos e, em geral, sua compreensão exige abordagens multidisciplinares e a
combinação de estratégias metodológicas de investigação. A difusão de estudos de
cunho qualitativo para outras áreas da Saúde Coletiva possibilitou ainda a ampliação
dos temas investigados. Os estudos de cunho qualitativo da área das Ciências Sociais
que, até a década de 1990, se centravam em poucas temáticas – como concepções e
práticas sobre determinada doença, busca por recursos de cura “alternativos” ou
religiosos, ou, ainda, no resgate da criação das políticas de saúde e participação
popular (ver, por exemplo, o primeiro número da Revista Physis, publicado em 1991,
com vários artigos dedicados aos temas) –, ganham um amplo leque de temáticas.

As pesquisas passam a incluir uma variedade muito maior de doenças e a caracterizar


comportamentos e concepções sobre doenças específicas (como câncer de mama,
diabetes, hipertensão, entre outras), e a se debruçar sobre os avanços da tecnologia
médica e suas implicações (como são os estudos sobre doenças genéticas,
reprodução assistida, transplante, só para citar alguns). Recentemente, há um
conjunto de estudos voltados para a própria produção do conhecimento na área
médica e seus efeitos sobre a sociedade. Mesmo que a pesquisa qualitativa tenha
ganhado espaço, pontuam que, em alguns temas relativamente mais novos no campo
da Saúde Coletiva, como o são o tema da avaliação de serviços ou programas de
saúde e o tema das políticas públicas (especialmente a partir da década de 1990), a
preponderância segue sendo de estudos quantitativos.

A centralidade de abordagens quantitativas em avaliações no Brasil espelha o que


acontece com o monitoramento e a avaliação no cenário internacional. O tema das
políticas públicas também entra para a agenda da Saúde Coletiva e, igualmente, tende
a estar embasado em abordagens quantitativas. Para tanto, foram levantados, nas
presentes pesquisas.

Caracterização dos estudos (n = 31) Os artigos foram encontrados


predominantemente em periódicos que compreendem a área da Psicologia (n = 27),
com destaque para a Revista Psicologia: Ciência e Profissão (16), Revista da
Abordagem Gestáltica (3), Estudos de Psicologia (1), Mudanças – Psicologia da Saúde
(1), Revista Polis e Psique (1), Psicologia em Revista (1), entre outras. No entanto
revistas que abrangem as áreas da Saúde Pública e Saúde Coletiva apresentaram
uma quantidade muito inferior (n = 4) para publicação, a saber: Saúde Debate (1),
Saúde e Sociedade (1), O Mundo da Saúde (1) e Revista Disan (1). Em relação ao
ano de publicação, observou-se a seguinte distribuição nos últimos cinco anos:
Quanto ao método/tipo de estudo, os artigos teóricos (n = 12) podem ser organizados
em duas categorias: ensaios, 66% (n = 8), e pesquisas documentais, 44% (n = 4). No
que tange aos ensaios, estes contemplam as seguintes temáticas, formação em:

 Psicologia para atuar no âmbito da saúde (1);

 Atuação do psicólogo no contexto hospitalar e em unidades básicas de


saúde (2);

 E outras drogas (3);

 Psicologia social e comunitária (4);

 E recurso fotográfico como uma estratégia metodológica de pesquisa


em (5);

 Psicologia (6).

Quanto às pesquisas documentais, tais artigos são constituídos por assuntos que
envolvem a caracterização do perfil da demanda encaminhada e dos psicólogos que
atuam nos serviços de saúde (2); análise de documentos governamentais acerca do
trabalho do psicólogo no NASF (1); e a formação em Psicologia para atuação na
atenção primária de saúde (1). No que tange aos artigos fundamentados em pesquisas
empíricas (n = 19), como local de estudo destaca-se aqueles realizados nos serviços
de saúde (68%), com foco na atuação de psicólogos no Núcleo de Apoio à Saúde da
Família (NASF), Estratégia de Saúde da Família (ESF) e em Centros de Apoio
Psicossocial (CAPS), seguidos daqueles que versam sobre experiências de estágios
profissionalizantes em saúde (32%). O público-alvo de tais investigações são os
usuários (42%), os profissionais (31%) e estudantes (27%).

Em relação aos estudos de delineamento quantitativo (n = 3), cita-se:

 um estudo sobre o perfil de psicólogos do Conselho Regional de Psicologia


de Minas Gerais (CRP 04) que utilizou como ferramenta de análise o
programa Sphinx Survey Edição Léxica (Santos, Monteiro, Torres, Sousa, &
Coelho, 2014);

 um estudo que versa sobre o bem-estar de psicólogos que atuam em serviços


de saúde, possuindo questionários como ferramenta de coleta de dados e o
software SPSS como instrumento de análise (Sousa & Coleta, 2012);
 outro que promove um estudo comparativo de tendências de personalidade
patológicas em moradores de rua, por meio do Inventário de Personalidade
dos Transtornos de Personalidade (IDP), sendo tais inventários estudados pela
análise de correlação (Montiel, Bartholomeu, Carvalho, & Pesotto, 2015).

Quanto aos estudos qualitativos (n = 16), envolvem principalmente as seguintes


temáticas: atuação do psicólogo nos dispositivos de saúde (n = 8, 50%), álcool e
drogas (n = 1, 6,25%), formação (n = 3, 18,75%), Psicologia Comunitária (n = 1,
6,25%), psicoterapia (n = 2, 12,5%) e queixa escolar (n = 1, 6,25%). São trabalhos que
utilizam como ferramentas de coleta de informações: entrevistas semiestruturadas,
grupos-focais, diários de campo, questionários, rodas de conversa, entre outras.
A QUALIDADE DAS PESQUISAS QUALITATIVAS

A difusão da metodologia qualitativa de investigação trouxe, também, uma série de


consequências que requerem uma reflexão mais sistemática para que não se coloque
em xeque a validade da pesquisa qualitativa. Nessa experiência na avaliação de teses
e dissertações e na elaboração de pareceres de artigos submetidos a revistas
científicas da área da Saúde Coletiva aponta para a forma como a pesquisa qualitativa
tem sido incorporada no campo da Saúde Coletiva. De uma forma geral, pode-se
afirmar que, paradoxalmente, o uso da metodologia qualitativa dentro da Saúde
Coletiva parece prescindir de sua área-mãe, as Ciências Sociais.

Se a difusão desta abordagem metodológica deu-se ao crescimento e consolidação


das Ciências Sociais em Saúde, por outro, ao longo dos últimos anos, grande parte
dos usos que têm sido feitos da pesquisa qualitativa mantém pouca relação com o
referencial teórico das Ciências Sociais. Há, na verdade, o uso das técnicas de coleta
de dados características da pesquisa qualitativa – como entrevista semiestruturada,
grupo focal, observação – mas sem a devida incorporação desta abordagem
metodológica enquanto uma forma de compreender o mundo social, isto é, sem a
devida incorporação da discussão epistemológica que embasa o referencial
metodológico das Ciências Sociais.De acordo Bourdieu,

Ao designar por metodologia [...] o que não passa do decálogo dos preceitos
tecnológicos, escamoteia-se a questão metodológica propriamente dita, ou
seja, a da escolha entre as técnicas (métricas ou não) por referência à
significação epistemológica do tratamento a que será submetido, pelas técnicas
escolhidas, o objeto e a significação teórica das questões que se pretende
formular ao objeto ao qual são aplicadas. (p. 53)

A má compreensão da “pesquisa qualitativa”, como sendo o mero emprego de uma


combinação de técnicas ditas qualitativas de coleta de dados (para não falar da
extrema redução ao emprego de uma única técnica), tem implicado a produção de
pesquisas que são superficiais e de má qualidade. Observa, em publicações da Saúde
Coletiva, o emprego, por exemplo, de uma técnica de análise de dados de pesquisa
qualitativa (na forma de um software) chamada de Discurso do Sujeito Coletivo –
DSC, sem que haja, nestes estudos, qualquer referência aos conceitos ou teorias da
Sociologia que fundamentam esta técnica, ou a como é extraído, do conjunto dos
dados, um “discurso” tido como representativo do coletivo.

Um exemplo do pouco diálogo com o referencial teórico são as propostas correntes de


combinação de metodologias qualitativas e quantitativas de pesquisa. O crescimento
do uso combinado destas duas abordagens metodológicas parece ter tido pouco
impacto numa reflexão mais aprofundada das diferenças epistemológicas entre as
duas abordagens metodológicas, ou melhor, entre as duas áreas do conhecimento
científico que, dentro da Saúde Coletiva, fundamentam métodos de pesquisa
específicos, a Epidemiologia e as Ciências Sociais (e, mais particularmente, a
Antropologia). As duas metodologias são tomadas apenas a partir de suas técnicas de
coleta de dados, resultando em estudos paralelos, separados entre si, e não em uma
combinação de metodologias.
Além de separados, a parte qualitativa da pesquisa tende a figurar como um apoio
secundário, de modo que os dados qualitativos são utilizados, em geral, apenas para
“ilustrar”, por meio de depoimentos de entrevistados, os percentuais e análises
estatísticas apresentadas. O mesmo se passa com uma parcela significativa dos
estudos ditos qualitativos. Nesses, a ausência da compreensão dos fundamentos da
metodologia qualitativa é até mais evidente, visto que o “qualitativo” é reduzido ao
emprego de uma técnica pinçada de uma lista de técnicas ditas “qualitativas” –
usualmente a de entrevista ou a de grupo focal – e ao número reduzido de
participantes do estudo, que não raramente somam apenas um dígito.

Os resultados são apresentados na forma de uma lista de temas ou conteúdos, sem


que os temas sejam relacionados entre si ou a um referencial teórico; com frequência,
apresenta-se a transcrição de frases retirada do discurso dos entrevistados, que são
tomadas de forma literal, e não interpretadas (o que, nas Ciências Sociais, é chamado
de “beber na boca do informante”, incorporar de forma acrítica o discurso do
entrevistado, não como um discurso, mas sim como um dado sobre o real). Ainda,
muitos resultados são apresentados na forma de percentuais apesar do reduzido
número de sujeitos pesquisados.

Em outras palavras, muitas vezes, os estudos ditos qualitativos na Saúde Coletiva


apresentam descrições superficiais porque coladas à empiria, e não análises que
explicam os fenômenos. Ou seja, combinada com o quantitativo, seja exclusivamente
qualitativa, a expansão da pesquisa qualitativa na área da Saúde Coletiva se deu sem
a devida apropriação do referencial teórico das Ciências Sociais. É deste referencial
que vêm os pressupostos da metodologia, bem como é ele que possibilita uma análise
mais aprofundada dos dados. Assim, o referencial estão incluindo todo o conjunto
variado e distinto de teorias que buscam explicar o funcionamento da sociedade e das
relações sociais, sejam estas funcionalistas, estruturalistas, marxistas ou
pósestruturalistas.

É somente a partir de uma perspectiva teórica e de categorias analíticas que é possível


produzir uma interpretação consistente dos dados qualitativos, pois, como já afirmou
Bourdieu, os dados não falam por si. Isto é, os “resultados” de uma pesquisa qualitativa
não derivam da mera contabilização das falas dos participantes ou da “extração” das
“categorias” que “emergem” das falas ou no campo, como comumente é apresentado.
Os resultados – a análise – emergem, sim, de um referencial teórico que guia a pesquisa
desde a concepção dos instrumentos até a “leitura”, sistematização e análise dos dados
em seu conjunto. A ausência de um referencial teórico para a análise dos dados é, sem
dúvida, a principal fragilidade dos trabalhos resultantes de pesquisas qualitativas na
área da Saúde Coletiva.

Tendo por consequência a produção de trabalhos (seja no formato de tese/dissertação


ou de artigos) que apenas descrevem os dados empíricos encontrados. Pior, em
grande parte dos casos, tais dados decorrem de questões equivocadamente
formuladas, que só podem ter como resposta o que foi proposto, seja concordando ou
apenas refutando a questão. A abertura proposta pela metodologia qualitativa, que é
uma de suas vantagens em relação às abordagens mais diretivas, é já drasticamente
limitada pelas questões formuladas aos participantes. Decorre daí que os
“resultados” e “conclusões” do estudo apenas corroboram o que o pesquisador
perguntou. É neste sentido que argumentamos que, de fato, a pesquisa qualitativa não
foi apropriada enquanto uma metodologia, mas apenas enquanto um conjunto de
técnicas de coleta de dados. A perspectiva metodológica, pela ausência de
compreensão de seus pressupostos e de um referencial teórico que sustente desde a
construção do objeto de investigação até a análise dos dados, não é de fato
operacionalizada, produzindo estudos frágeis e que pouco contribui para a
compreensão dos fenômenos analisados.

Dito de outro modo, não há uma compreensão da discussão epistemológica da


pesquisa científica: da relação entre o que é um conhecimento científico verdadeiro e
de como se pode produzi-lo, por um lado, com o objeto da pesquisa, e a escolha das
técnicas de coleta e análise de dados, por outro. Como exemplo deste equívoco,
tomem o caso de um estudo que se propõe a utilizar a metodologia qualitativa para
compreender a implementação de uma determinada política pública de saúde; o dito
estudo propõe um roteiro de entrevista em que se pergunta se o entrevistado conhece
a tal política e qual sua opinião a respeito da política. O resultado, tido como
inesperado, é o grande desconhecimento que existe por parte dos participantes em
relação à política. Como estudo nos ajuda a compreender esta política no cotidiano
dos serviços de saúde e de seus usuários? Assim, o grande potencial que a pesquisa
qualitativa teria para fornecer subsídios a uma avaliação da implementação da política
– inquirindo em que medida aquela política faz sentido conforme a política está sendo
(ou pode ser) implementada naquele contexto – é completamente desperdiçado.

Este tipo de exemplo de pesquisas qualitativas em que a questão inicial está


formulada de maneira inadequada à abordagem metodológica, é bastante comum nos
estudos qualitativos da área da Saúde Coletiva, e tem implicações importantes sobre
a qualidade dos trabalhos resultantes. Ainda exemplificando, também com frequência,
nos deparamos com pesquisas de abordagem qualitativa em que o pesquisador
transfere, ao entrevistado, sua questão de pesquisa. Ou seja, formula, no roteiro de
entrevista a ser empregado, perguntas genéricas e abstratas do tipo:

“o que é para você „promoção da saúde‟?” (ou qualquer outra expressão que, na
realidade, o pesquisador propunha compreender como tal coisa era concebida ou
representada) ou, ainda, “por que você não „adere ao protocolo x‟?” (ou qualquer
outro comportamento que o pesquisador se propunha a investigar).

Enquanto outra pesquisa com abordagem quantitativa provavelmente seria


impensável uma única medida que respondesse à pesquisa, e haveria uma
investigação de um conjunto de fatores que poderiam (ou não) estarem associados a
um determinado desfecho, observam-se estudos de abordagem qualitativa em que se
faz uma única pergunta ao entrevistado que é, de fato, o objeto da investigação. Outra
evidência da falta de compreensão dos pressupostos da metodologia qualitativa e da
ausência de um referencial teórico pertinente ao problema estudado é a apresentação
dos dados sem nenhuma contextualização. Os dados são naturalizados e
generalizados, esquecendo-se um princípio fundante da metodologia qualitativa que é
o de que estes são produzidos em um determinado contexto e que este contexto deve
ser considerado na análise, portanto, as coisas são ditas a alguém, a partir de um
determinado questionamento e em um local específico.

Apontando uma posição relativista perante o dado, sendo que, este pode ser diferente
se algum dos elementos deste contexto for alterado, razão pela qual o contexto deve
fazer parte da análise do próprio dado. Mais um princípio da pesquisa qualitativa que
é “esquecido” em uma parcela significativa dos trabalhos de cunho qualitativo que
temos tido a oportunidade de ler é o de que os indivíduos participantes do estudo
devem ser considerados a partir de seu pertencimento social, cujos indicadores irão
variar de acordo com o referencial teórico assumido (pois se, numa perspectiva
marxista, estes marcadores podem ser a posição ocupada em relação aos meios de
produção, em outras abordagens teóricas podem incluir características como gênero,
raça ou etnia, capital social, entre outros).

Assim, independente do referencial teórico adotado, o indivíduo é tomado enquanto


um ser social, e, por isso, “representante” de um determinado grupo social
previamente definido teoricamente. O sujeito pode pertencer e representar, inclusive,
mais de um grupo social, mas não se entende que seja representante de um grupo no
sentido estatístico. Porém, não se trata de uma amostragem, mas da ideia de um
pertencimento a uma determinada comunidade com quem compartilha de uma
linguagem, de algumas ideias, valores e práticas. É justamente este princípio que
possibilita à pesquisa qualitativa trabalhar com um número reduzido de participantes,
visto ela não estar trabalhando com indivíduos singulares, mas, sim, com indivíduos
que compartilham um conjunto de características sociais.
Contudo, se, por um lado, os dados da investigação não são contextualizados, por
outro lado, está ausência de contextualização produz uma certa homogeneização dos
resultados, o que leva a conclusões que são, muitas vezes, generalizadas para “a
população”. Aqui, novamente, perde-se o fundamento da pesquisa qualitativa, que é
o de compreender em profundidade um determinado grupo social, cultura, classe ou
posição social (todos teoricamente definidos). A possibilidade de generalização está
restrita a estas definições teóricas e deve ser respaldada por estudos em contextos
que possam ser comparáveis.

SURGIMENTO DE NOVOS TEMAS: A ANTROPOLOGIA ENTRA EM


SENA

De acordo Canesqui, a realização do terceiro congresso de Ciências Sociais e


Saúde, previsto para 2004, “foi prejudicada pelos obstáculos financeiros da
associação e ocupação da agenda da diretoria com outros eventos significativos na
conjuntura favorável à política de saúde.” (CANESQUI, 2008, p. 231). No seu lugar,
foi programado o II Encontro de Ciências Sociais e Saúde (realizado na fase
précongresso do VII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva), quando novos temas
surgiram, correspondendo a um certo distanciamento da abordagem mais claramente
sociológica e política que foi a marca da área em seus primórdios. A pauta elaborada
para o encontro contou com temas diversificados.

Alguns outros vinculados à tradição da área de Planejamento e Política, tais como


avaliação de políticas e programas de promoção da saúde ou instituições e políticas
de saúde e bioética. Outros traziam novos objetos de estudos e novas abordagens,
como racionalidades e práticas em medicina e saúde; estudos sociais da ciência e da
técnica; gênero e saúde; subjetividade e cultura; comunicação e redes de informação;
violência e saúde; construção social da saúde e da doença. A paulatina constituição
e estruturação da área das Ciências Sociais e Saúde, portanto, vai coincidir com o
surgimento de novas temáticas que, acreditasse, ser tratadas também com uma
metodologia diversa – questões que não podem ser trabalhadas por meio dos
métodos “objetivos”. Tendo, de um ado, “novos” objetos de pesquisa – a experiência
(dos sujeitos), concepções populares ou leigas, modos de organização de grupos
sociais.

Entretanto, há o surgimento de questões mais propriamente teóricas, que exigem uma


formulação conceitual, como: subjetividade e cultura, construção social da saúde e da
doença, medicalização. Esses três níveis – do método, do objeto e da teoria – estão
entrelaçados. A abordagem qualitativa surge como a que permite ter acesso a
crenças, valores, a todo um universo simbólico dos sujeitos / grupos sociais, que os
métodos quantitativos não seriam capazes de captar. E o acesso a esse universo é
imprescindível para se discutir conceitualmente a relação entre subjetividade, corpo e
cultura, por exemplo, ou a construção social da saúde e da doença.
Surge aí outra leitura política acerca do par saúde/doença, diferente da politização
que marca os anos 70/80, em que a luta política girava em torno dos “determinantes
sociais da doença”, ou seja, das características sociodemográficas da população,
condições sanitárias do meio, etc. Essa segunda politização, correspondendo aos
novos objetos dos anos 1990 e 2000, tem a ver justamente com a perspectiva de “dar
voz” aos sujeitos, de perceber, para além dos discursos eruditos da medicina e de
outras especialidades, o modo como os clientes potenciais (ou atuais) dos serviços
de saúde organizam e dão sentido ao seu mundo. Articula-se aí uma forte crítica tanto
ao poder médico/sanitário (daí o tema da “medicalização”) quanto ao próprio poder
normativo da ciência (daí o tema da “construção social”). Podendo então dizer que
as ciências sociais têm duas entradas no campo da SC. Em um primeiro momento,
através de uma sociologia de corte marxista e da ciência política, em que o
sanitarismo predomina.

Em um segundo momento, através de uma perspectiva sócio-antropológica, que


traz consigo uma nova leitura política e representa uma vertente crítica da própria
prática médica e sanitária. Este segundo momento corresponderia, então, à
separação efetiva e à estruturação de uma nova área de concentração em diferentes
programas de pós-graduação. Entretanto, a presença da perspectiva antropológica
no campo da SC não necessariamente coincide com a presença de antropólogos. De
fato, há poucos professores/pesquisadores na SC com pósgraduação em
Antropologia. Realizaram um levantamento preliminar e não sistemático a partir das
informações contidas no artigo de Ana Maria Canesqui (2008) acerca dos 36
participantes da comissão de Ciências Sociais e Saúde da Abrasco, de 1990 até
2007. Dessas 36 pessoas, não foi possivel informação sobre a pós-graduação de 11.
Na trajetória dos 25 restantes, a Antropologia aparece apenas duas vezes (um
mestrado e um doutorado).

As demais pós-graduações são em Sociologia, Ciência Política, História, além de


Saúde Pública e Saúde Coletiva. Algumas características da Antropologia como
disciplina poderiam explicar essa ausência. A Antropologia, pelo seu método de
trabalho e de produção acadêmica, articula-se mal às “ciências aplicadas”, com
áreas acadêmicas estreitamente vinculadas a uma ação prática ou política, como é o
caso da saúde. Como uma espécie de rito de passagem, o trabalho de campo subsidia
escritos extremamente autorais/individuais, tornando o percurso do antropólogo
pouco adaptável às pesquisas coletivas, multicêntricas e “objetivas” que tendem a
predominar no campo da SC. A pesquisa do antropólogo tende a ser mais artesanal,
mais demorada nos seus resultados. Os resultados não parecem muito conclusivos.
Isso tudo se adapta pouco à área da saúde de um modo geral e às suas urgências.
O antropólogo, quando se debruça sobre a prática médica ou sobre a medicina (ou
os sistemas de saúde ou as práticas de saúde ou corporais dos sujeitos comuns),
pode construir uma crítica que muitas vezes vai ser vista como excessivamente

“desconstrutiva”. O exercício de estranhamento da própria cultura leva os


antropólogos a verem na medicina e suas práticas um produto cultural como outro
qualquer, o que pode ser interpretado como um ataque à legitimidade científica e
social da medicina. Isso subverte a hierarquia de um campo que, como vimos, surge
no interior mesmo das faculdades de Medicina e mantém-se, com outras ciências
biomédicas, subordinado à Grande Área das Ciências da Saúde nas próprias
instancias de avaliação acadêmica, como a Capes e o CNPq. Frente a isso,
observam-se por vezes tentativas de “transferência de legitimidade”. Ou seja, em
face da crescente hegemonia da Epidemiologia e sua lógica de produção acadêmica,
os cientistas sociais foram (e vão) buscar legitimidade em suas áreas de origem. Nos
anos 80, houve pelo menos duas tentativas de cientistas sociais da SC de proporem
um grupo de trabalho sobre saúde à reunião anual da Anpocs. A resposta foi negativa,
pois a diretoria da Anpocs considerou que esse era um tema para a Abrasco, isto é,
“próprio” da área da SC (Cf. LANGDON, 2012, p. 13; MINAYO, 1998, p. 34).

Na década seguinte, outro grupo de trabalho proposto por dois antropólogos, Luiz
Fernando Dias Duarte (do Museu Nacional da UFRJ) e Ondina Fachel Leal (da
UFRGS), intitulado Pessoa, corpo e doença, foi aceito, e acabou tendo uma vida
longuíssima nas reuniões da Anpocs, com variações em torno desse título.
Constituiuse enquanto um GT eminentemente antropológico. Ou seja, as temáticas
mais sociológicas/políticas em torno da saúde pública eram marginais, voltando-se de
fato para a Abrasco. É importante lembrar a realização em Salvador, no ano de 1993,
do I Encontro Nacional de Antropologia Médica, que congregou antropólogos e
não antropólogos que trabalhavam na área da SC e também vários que não
trabalhavam nessa área. Esse encontro resultou numa coletânea, mas não teve
continuidade. Não houve um segundo encontro, e de fato a antropologia médica, uma
área disciplinar bastante relevante e produtiva nos EUA, não se consolidou na
antropologia brasileira.
Isso se deve em parte a certa característica da antropologia brasileira, que tende a
valorizar os autores clássicos, e em que domina uma visão mais “holista” da cultura
e da sociedade. Dentro dessa visão, a doença, o corpo, as práticas curativas tenderão
a ser vistos como parte de um universo mais amplo de valores e práticas. Assim, a
Antropologia tende a se polarizar em torno de desacordos teóricos e metodológicos e
menos em torno de subdivisões disciplinares. Isto é, a antropologia médica de corte
norte-americano não tenha vingado entre nós, nas reuniões da ABA (Associação
Brasileira de Antropologia) assistimos a uma proliferação de GTs voltados para
discussão de temáticas relativas ao corpo e à saúde.

Na reunião da ABA de 2012, havia, por exemplo, três GTs que tinham a saúde como
tema: Antropologia e Saúde Pública no Brasil (47 participantes, 11 dos quais atuando
na SC); Por uma Antropologia Política da Saúde Indígena (8 participantes);

Religiões e percursos de saúde no Brasil hoje: as “curas espirituais” (28


participantes, sendo apenas um atuando na SC). E mais três grupos, organizados em
torno de temáticas afins: Cuidados terapêuticos, crenças e emoções (28
participantes, sendo 3 da SC); Etnografias de biodefinições (21 participantes, sendo
2 da SC); Identidades, Biossocialidades e Espaços Sociais (18 participantes,
sendo 3 da SC). Participaram, portanto, apresentando trabalhos nesses GTs da ABA,
um total de 20 pesquisadores ou pós-graduandos do campo da SC. Ou seja, a
Antropologia acolhe as discussões sobre corpo, saúde, doença, medicina, práticas
de cura etc., mas isso não é necessariamente valorizado pela SC, assim como são
menos valorizadas publicações em periódicos específicos das Ciências Sociais.

Neste sentido, o entrecruzamento dos campos (Antropologia e SC) se dá no espaço


próprio da Antropologia, e menos no da SC, a legitimidade científica de tais estudos
sendo sustentada pela Antropologia enquanto campo disciplinar. Desse modo, o
antropólogo, como outros cientistas sociais que trabalham no campo da SC, parece
estar submetido a duas forças que vão atuar no mesmo sentido. Uma centrífuga,
interna ao próprio campo da SC, que, mantendo as disciplinas de ciências sociais
em posição subordinada, vai empurrar os profissionais dessas ciências para fora, em
busca de legitimação e prestígio; e uma força centrípeta do campo das ciências
sociais e, em especial da Antropologia, que vai puxar para seu interior o que é
produzido em seu nome.

Assim, são inegáveis o crescimento e a consolidação das Ciências Sociais em Saúde


e, em particular, da Antropologia da Saúde, tanto na área das Ciências Sociais quanto
na da Saúde Coletiva, permanece, ainda, uma série de desafios. Estes desafios são
de diferentes ordens, indo desde a produção de conhecimento e desenvolvimento de
metodologias (de pesquisa e intervenção), até questões de ordem de política
acadêmica. Em termos de produção de conhecimento, precisam, de mais estudos que
se debrucem sobre os modos de formulação e vulgarização do pensamento e das
categorias médicas. Quanto ao processo de formação do raciocínio profissional (em
sua diversidade, que vai do clínico ao burocrata, por exemplo), como objeto de
investigação. Carecemos, também, de estudos que investiguem o processo de
vulgarização deste conhecimento científico, suas mediações, diferentes
interpretações (iniciado por Boltanski na década de 1960), identificando: o papel da
mídia, dos “formadores de opinião”, da escola, dos serviços de saúde, da família, entre
outras instituições sociais.

Em termos de construção do conhecimento, se faz necessário retomar alguns temas


clássicos da área das Ciências Sociais e analisar como estes se redefinem em face
dos avanços da tecnologia médica. Por exemplo, pensar em como se (re)colocam as
relações entre natureza e cultura no contexto das novas tecnologias reprodutivas e
do projeto genoma. Nesta mesma direção, seria importante refletir sobre as
implicações sociológicas e antropológicas dos movimentos de, não mais apenas
“medicalização”, mas de “biologização” do ser humano. Ou, ainda, como se
colocam, na atualidade, teorias clássicas como as de estigma e discriminação social.
No que concerne aos desafios metodológicos, além de qualificam os estudos
qualitativos, tendo avançar na sofisticação da combinação de técnicas quantitativas
e qualitativas de investigação que sejam capazes de produzir explicações mais
complexas e aprofundadas dos diferentes fenômenos da área da saúde. No mais,
seria necessário criar formas de análise que contemplem, simultaneamente, a
dimensão quantitativa e qualitativa. O avanço nos últimos anos em termos de
software para auxiliar na análise de dados qualitativos permitiu reduzir, em muitos
casos, o tempo necessário para a sistematização de dados, porém os programas não
fazem sozinhos a interpretação nem a análise.

Assim como um software como o SPSS tornou mais amigável e rápida a possibilidade
de se fazerem análises quantitativas, mas continua sendo necessário que um
pesquisador, com um referencial teórico e hipóteses, pense sobre o que quer analisar
e por que (e o que significam aqueles resultados), um software qualitativo não é capaz
de produzir um sentido, por si só, dos dados qualitativos, nem uma interpretação com
base em um referencial teórico.

Conforme Pope e Mays, é possível que o software qualitativo tenha ajudado na maior
aceitação da pesquisa qualitativa no campo da saúde, pois, com o software, a análise
qualitativa parece ser, ela mesma, uma questão meramente técnica. Conforme
argumentamos ao longo deste artigo, ela não é. Outra área em que são necessários
maiores investimentos é a de avaliação de programas e serviços. Já é consenso que
os indicadores quantitativos são insuficientes, entretanto ainda não conseguimos
estabelecer critérios qualitativos capazes de avaliar melhor aqueles aspectos de difícil
mensuração, tais como: “acolhimento”, “boa relação médicopaciente”, “mudança
de comportamento”, só para citar alguns.

No campo do estudo de políticas públicas, precisamos, igualmente, de mais estudos


com abordagens qualitativas, que empreguem o referencial teórico das Ciências
Sociais. Conceitos e teorias empregados na sociologia, como “movimentos sociais”
e o neoinstitucionalismo, podem e devem contribuir para a discussão de políticas
sociais e, especificamente, de políticas de saúde. A abordagem metodológica
qualitativa para o estudo de políticas e programas de saúde, da relação entre
sociedade e Estado, dos agentes públicos encarregados de implementar as políticas,
ou dos beneficiados pelas ações públicas, para citar alguns exemplos, pode ser
extremamente produtiva e oferecer novos conhecimentos.

Por fim, é fundamental que, neste movimento de intersecção entre as Ciências


Sociais e a área da Saúde Coletiva, se tenha presente que não se trata apenas de
uma estratégia metodológica, mas, sobretudo, de uma forma específica de conceber
os fenômenos sociais (e também naturais) própria das Ciências Sociais. Isto é, junto
com a metodologia qualitativa deve ser incorporada a maneira como as Ciências
Sociais concebem as relações entre social e individual, entre natureza e cultura, entre
universal e particular.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

Bourdieu P, Chamboredon J-C, Passeron J-C. O ofício de sociólogo: metodologia da


pesquisa na sociologia. Petrópolis: Vozes; 1999.

LANGDON, 2012, p. 13; MINAYO, 1998, p. 34).

Revista Psicologia e Saúde, v. 12, n. 1, jan./abr. 2020, p. 33-47

. Minayo MCS. A saúde em estado de choque. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo; 1986.

Nunes ED. Ciências sociais em saúde na América Latina: tendências e perspectivas.


Brasília (DF): Opas; 1985. 12.

Nunes ED, organizador. Medicina social: aspectos históricos e teóricos: São Paulo:
Global; 1983. 13. Cohn A. O sistema unificado e descentralizado de saúde:
descentralização ou desconcentração? Sao Paulo Perspect. 1987;1(3):55-8. 14.

Cohn A. Caminhos da Reforma Sanitária. Lua Nova. 1989; 19:123-40. 15. Alves PC,
Minayo MCS, organizadores. Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de
Janeiro: Fiocruz; 1994.

(Montiel, Bartholomeu, Carvalho, & Pesotto, 2015).

(Santos, Monteiro, Torres, Sousa, & Coelho, 2014).

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