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Uma Herança Fatal
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E-book494 páginas6 horas

Uma Herança Fatal

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Sobre este e-book

Sensibilidade, bom senso e uma herança em perigo.
Godmersham Park, Inglaterra, 1797. Depois de muitos anos afastados, Jane Austen está pronta para passar o verão com o seu irmão, Neddy. Sendo ele herdeiro da fortuna da abastada Sra. Knight, é imperativo que as relações de Neddy com esta se mantenham irrepreensíveis. Ao chegar, Jane apercebe-se, todavia, de que o irmão necessita de ajuda, pois a Sra. Knight vive com uma enigmática princesa estrangeira chamada Eleanor, resgatada numa praia após um naufrágio, e que ameaça conseguir tomar para si toda a herança.
Jane terá de desvendar a verdadeira história dessa misteriosa hóspede para proteger o futuro da sua família. O rumo dos acontecimentos, porém, dá uma reviravolta inesperada quando Jane descobre uma série de cartas a ameaçar Eleanor. O perigo parece estar à espreita, dentro e fora das paredes de Godmersham Park. Será Eleanor, afinal, uma pessoa de confiança? E conseguirá Jane resolver o mistério antes que o perigo os ameace a todos?
Depois do sucesso de Jane Austen Investiga, Jessica Bull traz-nos
de volta ao mundo da intrépida detetive amadora com uma
trama cativante, surpreendente e impossível de largar.
Os elogios da crítica:
«Excecional. O policial de Austen pelo qual sinto que esperei a vida inteira! Adorei.»

Sophie Irwin
«Engenhoso e inteligente. Jane Austen é uma detetive formidável.»

Ian Moore
IdiomaPortuguês
EditoraTOPSELLER
Data de lançamento7 de jul. de 2025
ISBN9789895892662
Uma Herança Fatal
Autor

Jessica Bull

Jessica Bull creció en el sureste de Londres, donde sigue viviendo con su marido, sus dos hijas y demasiadas mascotas. Es adicta a las historias y estudió Literatura Inglesa en la Universidad de Bristol y Ciencias de la Información en la City University de Londres. Empezó a trabajar como bibliotecaria (con la falsa impresión de que podía sentarse a leer todo el día), antes de convertirse en consultora de comunicación.Jane Austen investiga. La desdichada sombrerera (Lumen, 2024) es la primera entrega de la serie que ahora continúa con Una fortuna fatal (Lumen, 2026).

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    Uma Herança Fatal - Jessica Bull

    Capítulo Um

    Kent, Inglaterra, 8 de junho de 1797

    Na escassamente iluminada sala de jantar da estalagem Bull & George, em Dartford, Jane retorce as mãos e caminha para trás e para diante. São necessários treze passos para percorrer o espaço estreito entre as mesas de cavalete encostadas às janelas de sacada e o recesso da lareira, ao fundo da sala cheia de fumo. A distância não é suficiente para dispersar a energia nervosa dos seus membros, forçando-a a dar meia volta e recomeçar. Molhos de lúpulo seco suspensos de traves carcomidas roçam-lhe a testa quando passa. As flores estaladiças partem-se de encontro à sua touca, e as pétalas desfeitas salpicam os ombros da sua peliça castanha.

    — Mal posso acreditar que isto aconteceu. — Jane apoia a testa no vidro manchado.

    Lá fora, a estrada iluminada pelo luar está deserta. O seu estômago aperta-se à ideia de o pai e o irmão terem sido obrigados a aventurar-se naquela região inóspita. À exceção dos mais intrépidos dos viajantes, todos têm a prudência de concluir as suas viagens por alturas do pôr do sol. Não é segredo que há salteadores naquele trecho de estrada.

    — Por favor, tenta permanecer calma. — A Sra. Austen está sentada num banco corrido com costas, por baixo da janela, cingindo a capa de lã bem em volta dos ombros estreitos. Ao contrário da filha, tirou a touca e equilibra-a sobre o joelho enquanto espreme a fita entre os dedos.

    — Calma? — A voz de Jane é aguda. — As minhas irmãs desapareceram, mãe. Roubadas. Abduzidas. Podem estar em qualquer sítio neste momento. Quem sabe em que mãos infames podem cair? Ouviu o que disse o estalajadeiro. A carruagem dirige-se a Gravesend, pois o destino dos seus passageiros é um navio para as Índias Ocidentais. Estarão perdidas para sempre, arruinadas!

    A Sra. Austen cerra os lábios.

    — Precisas de ser tão melodramática, Jane? O teu pai e o Neddy começaram a persegui-los a cavalo assim que demos conta do engano. De certeza que os apanharão após algumas milhas. Muito em breve terás o teu manuscrito de volta.

    Jane pousa a mão na base do pescoço e engole em seco. As Irmãs são a sua última composição. Como tudo o resto na sua mesa de escrita portátil, correm o risco de cruzar o Atlântico se o pai e o irmão não as recuperarem a tempo.

    — Santo Deus, e se o cocheiro, tomando o pai e o Neddy por salteadores, disparar a pistola contra eles? Podem ser mortos!

    — Deixa de ser ridícula. Senta-te imediatamente e toma um gole de brande. — A Sra. Austen agita a sua bebida no copo de lata. — É muito bom. Recorda-me o que a tua prima Eliza nos costumava enviar de França.

    — Avizinham-se tempos negros — grita um velho esfarrapado do outro lado da sala, sobressaltando violentamente Jane e a mãe. É o único cliente da estalagem além delas. Até agora tem estado sentado em silêncio, aquecendo os ossos antigos junto ao lume quase extinto, com um cachimbo de barro entre os dentes. — O Dia do Juízo deve estar próximo, se uma alma honesta não pode passar uma viagem em paz. Decidi vir pela estrada, visto que o mar se revolta contra todos os que nele naveguem. Ainda não há cinco noites que um navio se afundou ao largo da costa de Harty.

    Jane cerra os olhos firmemente, tentando bloquear as divagações do velho. O fedor a tabaco aperta-lhe a garganta, ameaçando asfixiá-la.

    — Eu devia ter tido mais cuidado com a minha escrivaninha portátil. Onde é que tinha a cabeça, para deixar que a amarrassem ao teto da carruagem, quando podia tê-la lá dentro comigo? Dessa forma nunca teria sido confundida com a bagagem dos outros passageiros.

    — A tripulação andava a tramar alguma coisa, acho eu. — O velho coça a barba da cor do aço e prossegue o monólogo sem sentido. — Ninguém navega daquela forma numa tempestade. A menos que estejam a tentar escapar ao pagamento das obrigações. Só Deus sabe o que o capitão viu naquelas ondas para o fazer dar uma volta tão apertada sem sequer preparar as velas. A não ser que fosse o seu próprio destino a precipitar-se para ele.

    A Sra. Austen vira o corpo esguio na direção da filha.

    — Jane, sei que a tua escrita é importante para ti. Cada vez mais ao longo do último ano, desde o teu desapontamento com…

    Jane fecha os punhos ao lado do corpo.

    — Se pronunciar simplesmente o seu nome, mãe, entro em combustão aqui mesmo. — Porque é que os pais insistiam em associar qualquer ligeira alteração no seu estado de espírito a algum doloroso ressentimento pela perda do seu antigo pretendente? Ela sabe que agiu corretamente ao recusar a insípida proposta do Sr. Lefroy, especialmente em face de tão violentas objeções dos seus parentes. Casar sem a bênção do seu tio-avô e patrono prejudicaria o futuro de ambos, por mais que gostassem um do outro. Era muito natural que ela desejasse que as circunstâncias tivessem sido diferentes — ou que, com o tempo, isso viesse a acontecer. Desde a partida de Tom que tem feito os possíveis para cumprir as suas obrigações perante Deus e a sua família, tentando encontrar consolo nas suas composições. Não tem culpa que o seu batimento cardíaco tropece, por vezes, em si mesmo, quando passa por um estranho de cabelos claros na rua, devido à possibilidade improvável de que possa ser ele.

    — Como eu estava a dizer, sei que o teu trabalho é importante para ti, mas não pagarei um bilhete de carruagem a mais para a tua mesa de escrita portátil. Ficaria perfeitamente segura no telhado com o teu baú e o resto da nossa bagagem. — A Sra. Austen cruza os braços no peito plano.

    — Mas não ficou, pois não? Porque enquanto estávamos ocupados a matar saudades do Neddy, todos os meus pertences foram desviados para as Índias Ocidentais. A mãe não compreende. Tudo o que mais estimo está trancado naquela caixa. Não é só As Irmãs. As minhas únicas cópias de Catherine e Primeiras Impressões estão lá também.

    O velho segura o cabo da sua bengala de avelaneira com a mão encarquilhada e bate com a ponta na lareira de pedra.

    — Andou para ali aos trambolhões, como se não passasse de um brinquedo. O mastro foi o que se partiu primeiro. Partido ao meio, como uma palha. Ouvíamos os gritos dos marinheiros. Mas não podemos fazer nada quando o mar decide que nos quer fazer dele.

    A Sra. Austen vira os joelhos para a janela, voltando as costas ao hóspede tagarela.

    — Mesmo que o pior aconteça e não consigamos recuperar a tua bagagem, podes sempre voltar a escrever essas composições. São criações tuas, nascidas da tua própria cabeça. Passaste tanto tempo trancada no teu quarto de vestir, curvada sobre elas, que neste momento cada uma das suas palavras deve estar gravada na tua memória. E se fosses forçada a reescrevê-las, provavelmente resultariam ainda melhores.

    — Reescrevê-las? — gagueja Jane, indignada com a forma como a mãe desvaloriza o seu trabalho. Passou os últimos dezoito meses a labutar sobre cada palavra, deliberando cada frase, escrevendo e reescrevendo cada parágrafo das suas composições até os rascunhos estarem tão perfeitos quanto seria possível que mãos humanas fizessem. Catherine e Primeiras Impressões eram romances completos. Eram ambos mais longos e mais sérios e, ela quase diria, muito superiores a qualquer coisa que tivesse tentado na sua juventude. Os seus trabalhos anteriores eram frivolidades de rapariga, meras peças humorísticas para passar o tempo e divertir a família. Embora só recentemente tenha começado a trabalhar em As Irmãs, espera que seja a sua mais completa delineação da natureza humana até agora.

    — Onde arranjaria tempo para isso, dado que me comprometi a ser criada da prole do Neddy durante o verão?

    A Sra. Austen semicerra os olhos.

    — A escolha foi tua, Jane. Ofereceste-te para ir para Rowling no lugar da Cassandra.

    — Como podia não o fazer? — Jane reprime as lágrimas, virando a cara para a janela. A Sra. Austen está refletida no vidro, pestanejando para o regaço.

    Ainda não passou uma lua inteira desde que o navio do noivo de Cassandra voltou a Falmouth e, em vez de trazer o seu amado Sr. Fowle em segurança para casa, trouxe a notícia do seu trágico falecimento. Pobre Sr. Fowle. Mal chegara a San Domingo quando tombou vítima de febre-amarela. Durante todos esses meses a irmã de Jane costurara alegremente o seu enxoval e apontara as receitas da mãe no seu livro de economia doméstica, enquanto o corpo sem vida do noivo era arrastado pelas ondas depois de um funeral no mar. Num ápice, a notícia extinguiu o temperamento entusiástico de Cassandra, afundando para sempre o seu otimismo natural sob o peso do luto.

    E então Jane ofereceu-se para ir a Rowling e ajudar a mulher de Neddy, Elizabeth, no nascimento do quarto filho. Cassandra estivera presente no nascimento dos três mais velhos. Antes da notícia da tragédia, Elizabeth escrevera a dizer que queria muito que Cassandra se lhe reunisse novamente, pois ficaria perdida sem a sua ajuda. Infelizmente, desta vez teria de se desenvencilhar apenas com Jane a guiá-la. Tolhida pela dor, Cassandra permanece em Hampshire com o irmão mais velho, James, ambos igualmente inconsoláveis na sua dor. O Sr. Fowle era, não só o noivo de Cassandra, mas também o melhor amigo do irmão e muito apreciado por toda a família Austen. A mulher de James prometera cuidar bem dele e de Cassandra enquanto os pais de Jane a acompanhavam a Dartford, ao encontro de Neddy. Mary Lloyd, ou melhor, a Sra. James Austen (já passaram vários meses do casamento mas Jane ainda tem de se corrigir), também está de esperanças. Dada a sua condição, Jane espera que Mary se lembre de cuidar também de si.

    Para Jane, o Sr. Fowle já era como um irmão honorário e não apenas mais um dos muitos rapazes da escola que tinham crescido ao lado dela na Reitoria de Steventon. Imagina as suas feições sorridentes quando, em rapaz, cheio de paciência, as ensinava, a ela e a Cassandra, a balançar um taco de críquete e a aparar os lançamentos implacáveis do irmão delas sem partir todos os dedos. Um nó doloroso forma-se-lhe na garganta à ideia desse mesmo rosto bonito a esfacelar-se até ficar totalmente destruído no mar das Caraíbas.

    Toda a gente felicita Jane pelo seu altruísmo ao oferecer-se para ajudar a cunhada. Não sabem que vai porque não suporta assistir à agonia de Cassandra. Os soluços da irmã são uma adaga no seu próprio coração. Se Cassandra pode ser desfeita pelo amor, que possibilidades tem Jane, que se deixa abater muito mais facilmente? Só um louco arriscaria entregar-se a esperanças de felicidade duradoura depois de testemunhar em primeira mão a agonia de ter as suas expectativas tão cruelmente desfeitas.

    O velho respira asperamente, arrancando Jane das suas cogitações.

    — Cada uma daquelas pobres almas pereceu naquela noite. Toda a tripulação se afogou. Deviam ser pelo menos vinte homens, a bordo de um barco daqueles. Se o capitão tivesse sobrevivido, estaria agora a braços com a justiça… e com uma corda em volta do pescoço.

    A triste história reforça ainda mais a melancolia de Jane pelo destino do Sr. Fowle. Inclina a cabeça na direção da grossa trave de carvalho diante da lareira e murmura muito baixinho.

    — Quem me dera que ele parasse com aquele chinfrim.

    — Eu também. — A Sra. Austen remexe-se no seu assento. — As suas profecias de desgraça não estão a ajudar nada.

    A porta da frente abre-se e uma rajada de ar frio penetra na sala, apagando a lareira e lançando o velho nas trevas. Neddy avança direito a Jane. Os seus caracóis dourados fluem sobre o colarinho do seu fraque de veludo azul e o seu rosto bem-humorado brilha no escuro.

    — Temo-la! — Segura uma caixa de mogno junto do peito como se esta não pesasse mais do que uma folha de papel. — O cocheiro pediu muita desculpa pela confusão. O pai e o estalajadeiro têm o teu baú, mas achei que querias isto imediatamente. — Pousa a escrivaninha portátil em cima da mesa.

    O alívio inunda Jane enquanto procura no bolso a minúscula chave de bronze. Quando destranca a tampa e a abre, a caixa transforma-se num plano inclinado para escrever, revestido de couro verde. Ela prende um dedo num puxador de bronze e levanta uma secção para revelar um pequeno compartimento. Lá dentro, em segurança, está As Irmãs; os primeiros esboços das meninas Dashwood estão contidos dentro nas cartas que escrevem uma para a outra. Cartas que Jane compôs amorosamente como o início da sua nova história. Os seus ombros descaem finalmente e todo o seu corpo fica flácido.

    Perder a sua mesa de escrita e todo o trabalho que esta continha seria um péssimo presságio para a sua viagem. Dado que Jane nunca antes se aventurara para mais longe de casa do que East Kent e nunca viajara para lado nenhum sem Cassandra ao lado, está extremamente insegura em relação à forma como vai enfrentar os dias e semanas à sua frente. Não pode alegar qualquer inclinação natural para estar presente no nascimento do seu mais recente sobrinho ou sobrinha, e confiarem-lhe a segurança da cunhada durante o parto é uma perspetiva assustadora. Por muito agonizante que fosse testemunhar o sofrimento de Cassandra, estar separada da sua amada irmã trará também, sem dúvida, o seu próprio tormento. Porém, tem a certeza de conseguir suportar qualquer provação, desde que as suas personagens estejam ao seu lado.

    Capítulo Dois

    As cenouras-bravas enfunadas pela brisa acompanham a viagem de Jane pela zona rural de Kent no faetonte de Neddy. Desde a sua posição privilegiada nos bancos elevados da carruagem aberta, vê o Jardim de Inglaterra estender-se diante de si. Sugerira tomar a carruagem do correio a partir de Dartford, para não obrigar Neddy a ir buscá-la, mas o pai e o irmão opuseram-se à ideia de ela viajar sem acompanhante. Dada a sua inexperiência como viajante solitária, estavam provavelmente certos ao exagerar nas precauções. Com tanta proteção familiar, ficaria retida em Kent até que um dos seus parentes masculinos se dignasse ir buscá-la.

    O Capitão Henry Austen, recém-comissionado, ofereceu-se para prestar as honras. Tendo-se licenciado no St. John’s College, de Oxford, Henry preparava-se para ser ordenado. Contudo, com a guerra a assolar a Europa e as Índias Ocidentais, e a ameaça francesa de nova invasão do outro lado do Canal a qualquer momento, conseguiu ao invés um cargo de tesoureiro adjunto na guarda nacional de Oxfordshire. É decerto mais lucrativo do que um vicariato. Espera obter uma licença em meados de agosto, um mês depois do nascimento previsto do bebé de Elizabeth. O seu regimento está estacionado em East Anglia e ele escreve que está ansioso por visitar os seus amigos em Kent antes de continuar a viagem para casa, no Hampshire. Porém, visto que ser confiável nunca foi o ponto forte de Henry, Jane hesita em dar muito crédito à sua promessa.

    Enquanto percorrem as estradas rurais, encasuladas de ambos os lados por sebes imponentes, Jane reflete na ligeira disparidade daquela região com a sua Hampshire natal. O terreno plano alarga o céu azul por cima deles, e as pontas cónicas dos edifícios dos fornos de secagem do lúpulo espreitam sobre encostas verdejantes em quase todos os cruzamentos. De poucas em poucas milhas, a filha de um agricultor surge à beira da estrada, vendendo cestinhos de cerejas ou morangos acabados de colher. Jane já provou de ambos, deliciando-se com o sabor doce mas intenso da fruta bem madura.

    — A tua carruagem é muito elegante — diz ela, procurando uma forma de envolver Neddy numa conversa. Apesar da sua bonomia, Jane tem uma profunda consciência da distância entre eles. Não era tão notória quando os pais estavam presentes, mas desde que ela e Neddy tinham ficado sozinhos, não podia deixar de se sentir constrangida e insegura. Ele parece não perceber metade das suas piadas, e ela é demasiado tímida para o provocar como faria com os outros irmãos.

    Neddy sorri, muito satisfeito com o elogio.

    — A Beth preferia uma carruagem fechada. Embora admita que tal veículo pode ser mais digno para uma família, um faetonte é concebido para a velocidade. Talvez lhe ofereça uma caleche no próximo ano, se as minhas receitas forem como antecipo. Vou precisar de contratar um cocheiro particular, é óbvio, e adquirir mais uma parelha de cavalos de carruagem. É difícil encontrar um par que combine bem. Sessenta guinéus, custaram-me estas duas. Mas, assim que as vi, percebi que tinham de ser minhas.

    — Não duvido. — Jane sorri, segurando com força a copa do seu chapéu de palha para evitar que fuja com o vento. As éguas elegantes erguem os seus cascos delicados em uníssono, agitando as caudas entrançadas. Não menciona que, desde que o Parlamento introduziu um novo imposto sobre as carruagens para financiar o esforço de guerra, o Sr. Austen teve de vender o seu veículo, deixando a família dependente da generosidade dos vizinhos sempre que precisava de transporte. Neddy fora criado num mundo diferente do dela: não valia a pena fazer comparações.

    Jane tinha apenas 3 anos quando o senhor e a senhora Knight visitaram a reitoria de Steventon, durante a digressão nupcial de visita às suas várias propriedades. A antecipação da sua chegada está gravada na mente dela devido ao invulgarmente severo aviso que ela e todas as crianças tinham recebido do Sr. Austen para se portarem muito bem durante a visita do seu primo e benfeitor. Foi o pai do Sr. Knight que, tendo ficado invulgarmente rico pelo simples facto de sobreviver a vários dos seus parentes abastados e sem filhos, concedeu ao recém-casado Sr. Austen os rendimentos de Steventon e Deane. Os dízimos combinados forneciam uma receita de pouco mais de duzentas libras por ano, permitindo à família de Jane a ténue aquisição da respeitabilidade de que desfrutavam há três décadas.

    Quando o ofuscante duo finalmente chegou numa carruagem de seis cavalos, todas as crianças ficaram tontas de excitação. O Sr. Knight cheirava a bombons de limão, que distribuiu prodigamente, e a sua linda noiva, quase vinte anos mais nova do que ele, usava um enorme chapéu de abas largas adornado com penas de avestruz. Os pais de Jane ficaram claramente aliviados quando, ao preparar-se para partir, o casal se mostrou tão encantado com a família que convidou um dos rapazes mais velhos a acompanhá-los na viagem. James preparava-se para ir para Oxford. Georgy, com as suas várias maleitas, nunca esteve em cogitação. Henry já demonstrara ser demasiado propenso a sarilhos para lhe confiarem a responsabilidade de representar a família inteira. Restava Neddy, de 11 anos, geralmente elogiado como o mais bonito e afável filho dos Austens.

    De facto, Neddy portou-se tão bem que, quando os Knights concluíram a sua viagem e regressaram à magnífica casa de Godmersham Park, em Kent, convidavam regularmente o seu jovem favorito para passar longos períodos com eles. A mãe de Jane explicou que, não tendo os Knights ainda sido abençoados com filhos, era uma questão de caridade deixarem-nos levar Neddy emprestado de tempos a tempos. Quatro anos depois, o Sr. Knight deve ter concluído que aquela união permaneceria sem filhos, e não desejava nada que não fosse um herdeiro. Então perguntou se podia ficar com Neddy para sempre.

    O cocheiro de Godmersham viajou com a mensagem, juntamente com um elegante pónei baio amarrado ao seu cavalo. No início, o Sr. Austen vacilou à ideia de entregar o filho para adoção. Foi a Sra. Austen, com o seu eminente pragmatismo, que teve a clarividência de aconselhar o marido:

    — Julgo, meu querido, que seria melhor fazer a vontade aos teus primos, e deixar o menino ir.

    Jane permaneceu à porta da reitoria com os restantes irmãos, tentando desesperadamente reprimir as lágrimas ao ver Neddy montar o seu novo pónei e despedir-se da família. A partir do momento em que Neddy foi viver com os Knights, estes educaram-no ao estilo de alguém que se esperava viesse a ser um cavalheiro de grande fortuna. Fiéis à sua palavra, Neddy é agora herdeiro da viúva do Sr. Knight, cujas propriedades combinadas a Sra. Austen estima que valham oito mil libras por ano, e a sua mulher, Elizabeth, é filha de um baronete.

    A decisão provou-se astuciosa também para as perspetivas da família Austen alargada. Apesar da generosidade do patrono do Sr. Austen e das entusiásticas tentativas deste de complementar os rendimentos cultivando as suas terras eclesiásticas e gerindo uma escola para rapazes, o pai de Jane queixa-se de que os seus depósitos anuais no banco nunca excedem os levantamentos. Não ter de fornecer a quota de Neddy permitiu ao Sr. Austen mais liberdade para assegurar o futuro dos restantes filhos. James e Henry alegraram-se ao reclamar vagas gratuitas como descendentes de um fundador do St. John’s College, ambos com ideia de seguir as pisadas eclesiásticas do pai, mas Frank decidiu tornar-se oficial da marinha. E, tal como Frank estava determinado a ganhar a sua fortuna no mar, o mesmo acontecia com o rapaz Austen mais jovem, Charles, que sempre idolatrara o seu audaz irmão mais velho. Visto o Sr. Austen não ter conexões no Almirantado que oferecessem aos rapazes uma posição a bordo de um navio, pagou as 50 libras anuais necessárias para enviar ambos para a Academia Naval Real, em Portsmouth. Ter-lhe-ia sido impossível apoiar as ambições dos filhos se fosse responsável pelo lançamento da carreira de ainda mais um.

    Mais significativamente, a adoção de Neddy forneceu uma garantia de conforto futuro. Ele podia ainda não estar de posse da sua fortuna, mas a família já aprendera a contar com ela. A expectativa da sua riqueza, combinada com a sua boa índole, dá ao pai de Jane a paz de espírito de saber que a sua mulher e filhas, para não mencionar o seu filho mais vulnerável, Georgy, continuarão a ser sustentados mesmo depois da sua partida. Quanto a Georgy, que sofre de ataques e é mudo, nunca será capaz de percorrer o seu próprio caminho no mundo e, enquanto jovens senhoras de categoria pouco elevada, a única opção de melhoria para Jane e Cassandra é casarem bem.

    Durante algum tempo depois de Neddy ter sido levado de Steventon, Jane perguntou-se se ela e o resto das crianças Austen podiam também ser adotadas pelos parentes mais ricos. Por direito, o seu tio James Leigh-Perrot teria sido a sua primeira escolha, pois também ele não tinha filhos e possuía grande propensão para herdar legados. Contudo, Jane suspeitava de que seria mais feliz com a sua frívola tia falecida, Philadelphia Hancock. Embora a abordagem caótica da tia Phila significasse que todo o dinheiro que o seu marido, o Sr. Hancock, ganhava como cirurgião da Companhia das Índias Orientais nunca esticava muito, tinha uma inclinação para fazer amigos extraordinariamente generosos. Vários anos depois do seu casamento, enquanto a tia Phila vivia em Bengala, tornara-se favorita do grande Warren Hastings. Quando Eliza, a prima de Jane, nasceu, menos de um ano mais tarde, o Sr. Hastings aceitou magnanimamente ser seu padrinho e até lhe concedeu uma fortuna pessoal de 10 mil libras. Como a vida de Jane podia ter sido diferente, se fosse uma mulher de recursos independentes! Para começar, teria podido casar com Tom.

    Neddy interrompe o seu estado sonhador acenando entusiasticamente a um pastor que, à distância, está encostado ao seu cajado.

    — Chegaremos a Rowling num instante. — A mansão histórica onde Neddy atualmente reside faz parte da propriedade de Goodnestone, pertença da família de Elizabeth (e que a família Bridges pronuncia «Gunston», estando a sua reivindicação à terra tão bem estabelecida que dispensam sílabas extra). — Estes campos são meus. A casa veio com cem acres, mas arrendei mais duzentos a Sir William no dia da Anunciação. Felizmente para mim, o baronete tem pouco interesse na agricultura. Está disposto a arrendar tudo com a promessa de um bom rendimento.

    Enquanto Jane admira as cabriolas das ovelhas recentemente tosquiadas, parecendo vestir meias e camisas de noite, pergunta-se se o entusiasmo de Neddy em provar as suas credenciais como rendeiro tem o fim de assegurar à Sra. Knight que está preparado para a enorme responsabilidade que esta um dia lhe legará. Lembra-se de que ele podia estar à espera de herdar uma parte da fortuna do pai adotivo imediatamente após a morte deste, em vez de ter de aguardar o falecimento da sua viúva. A transferência de qualquer das três propriedades maiores (Steventon e Chawton, no Hampshire, ou Godmersham em Kent) tê-lo-iam tornado um importante proprietário de terras: as três juntas, colocá-lo-iam ao nível de um duque.

    — Que maravilhoso. O pai vai pedir-me que lhe relate cada pormenor, por isso deves contar-me tudo o que puderes.

    — O meu rebanho é de uma raça diferente dos de Steventon, com focinho mais escuro e sem chifres. Suponho que não notaste? A lã de Cantuária é a mais fina do mundo. Podia fazer uma boa quantia com o seu velo no Continente, não fossem os execráveis impostos sobre as exportações.

    — Não imaginava encontrar-me em companhia tão esclarecida. Posso pedir para ser apresentada a cada uma das tuas ovelhas? Diz-lhes que estou ansiosa por conhecê-las.

    A gargalhada de Neddy sobrepõe-se ao estalido das rodas da carruagem.

    — Estou tão contente por estares aqui. A Beth e as crianças ficaram deliciadas quando te ofereceste para vir.

    — E eu estou muito contente por estar aqui. — Jane baixa o queixo para o peito, tentando evitar que a pele fique ainda mais irritada pelo vento e queimada pelo sol do que já estava. As pontas dos seus botins espreitam por baixo da bainha do vestido. Sob a luz forte, vê as biqueiras esfoladas e o couro gasto. Gostaria de se ter lembrado de pedir à nova criada que lhas engraxasse antes de sair. Sally, a criada anterior, tê-lo-ia feito sem ser preciso pedir-lhe. Infelizmente, Sally trocara os Austens por um casamento e uma casa própria, e a rapariga robusta para todo o serviço que a mãe de Jane contratara para a substituir parece ofendida quando lhe pedem para fazer seja o que for.

    Neddy estala o chicote por cima das garupas das éguas.

    — Vou pô-las a galope, não achas? A ver se consigo ir tão depressa como quando te embrulhava num lençol e te rebocava pelas escadas da reitoria abaixo.

    O movimento atira o corpo de Jane para trás. Ela segura o cotovelo de Neddy e, meio rindo, meio gritando, recorda as suas brincadeiras rudes. Passaram-se demasiados anos desde que os irmãos estiveram, de facto, algum tempo juntos, e ela tem sentido muito a falta dele. Será gratificante passar algumas semanas a conhecê-lo melhor, assim como à sua jovem família. Talvez seja capaz de preencher o abismo entre eles e, pelo fim do verão, Neddy lhe seja tão familiar como qualquer dos outros irmãos. E, numa perspetiva mais egoísta, com o seu próprio quarto na confortável casa de Neddy e sem a distração das suas habituais tarefas domésticas, talvez possa realizar um bom progresso com As Irmãs.

    Rowling Manor fica no seu próprio parque bem cuidado, no final de um longo e serpenteante caminho de acesso. Elegantes chaminés de tijolo vermelho elevam-se do telhado inclinado, brilhando sob o sol da tarde, e rosas de um tom pálido crescem por toda a fachada, perfumando o ar com o mais doce aroma floral. Há uma ala extra, bastante grande para acomodar um cozinheiro, um lacaio e duas criadas de quartos, assim como uma cocheira e estábulos separados. Nas suas cartas, Neddy descrevia-a como uma «casa de família de bom tamanho». Jane é forçada a concordar: é deliciosamente cavernosa.

    A carruagem detém-se e Elizabeth espreita por trás da porta preta envernizada. Com 24 anos, a cunhada de Jane é apenas três anos mais velha do que ela, mas as rugas finas em torno dos seus olhos negros revelam que envelheceu no curto período desde que se casou. É magra, com um pescoço longo que lhe dá a aparência de um cisne excessivamente curioso. O seu vestido de cintura subida oculta-lhe a gravidez, porém, quando se vira de lado e a enorme barriga fica à mostra parece espantoso ainda não ter dado à luz.

    — Edward, onde tens estado? Esperava-te em casa ontem. Não leva quatro noites chegar a Darford e voltar.

    — Bem, já estou aqui, querida. Não te preocupes. — Neddy salta da carruagem, oferecendo a mão a Jane assim que as solas das suas botas batem na gravilha. Jane aceita-a e faz o seu melhor para descer graciosamente sob o escrutínio da cunhada. Elizabeth frequentara uma escola assustadoramente cara para jovens senhoras em Londres, que ela se gaba de possuir uma carruagem desativada com o fim expresso de instruir as suas pupilas na arte de se apearem sem revelarem mais do que o normativo centímetro de meia por cima do tornozelo.

    — Jane. — Elizabeth oferece-lhe a bochecha. Jane beija o ar ao seu lado. Há um bebé na anca de Elizabeth, que mira Jane, desconfiado. Outros dois bebés de cabelos dourados espreitam por trás das saias da mãe, enquanto um par de raparigas com vestidos cinzentos, iguais, pairam atrás deles.

    — Essa não é a tia Cassy. — A criança mais velha, uma menina de 4 anos, não consegue disfarçar o seu desapontamento enquanto sussurra sonoramente para a mãe. O menino ao seu lado fita Jane com um ar decididamente hostil. Apenas Conker, o spaniel de manchas brancas e castanhas de Neddy, denuncia algum entusiasmo autêntico pela sua chegada. O cão agita freneticamente a cauda cortada e dá saltos para o ar, tão alto que parece uma marioneta puxada por uma corda invisível.

    — Não sejam desconfiados, Fanny, Ted. Nós dissemos que desta vez era a tia Jane que vinha. Dissemos, não dissemos? De certeza que a tia Cassy voltará a estar connosco em breve. — Neddy levanta ambas as crianças nos seus braços fortes, apresentando uma de cada vez. Cheiravam a leite fervido e tinham uns caracóis tão macios como a penugem de um pintainho acabado de sair do ovo. Jane tenta beijá-los sem sofrer nenhum ferimento enquanto eles se retorcem e pontapeiam tentando libertar-se. Depois de os depositar em segurança no chão, Neddy tira o bebé do colo de Elizabeth. — E o que é que achas do nosso Georgy? Já é tão robusto como o seu homónimo?

    Mim ninho Joji? — palra a criança.

    — É verdade, és o pequeno Georgy. — Jane ri-se. — Mas o papá tem razão. Não tarda nada, serás tão grande como o teu tio Georgy. — Estende a mão, acariciando as bochechas rosadas. O pequenino gorgoleja e encolhe o pescoço até este desaparecer dentro de rolinhos de gordura. É um alívio que pelo menos uma das crianças não mostre ressentimento por ela ser a tia errada.

    As feições de Elizabeth relaxam quando observa o marido a aninhar uma criança nos braços enquanto as outras duas se lhe penduram nas pernas.

    — Vem, vamos instalar-te. — Pousa uma mão fria no fundo das costas de Jane. — Pusemos-te no quarto verde, que dá para o lago. Teremos um jantar sossegado em família, mas tenho muitos planeados para o resto da tua visita. A sociedade de Kent é muito animada, e fiz uma lista de todas as famílias que tenho mesmo de te apresentar.

    — Mas não devias incomodar-te — responde Jane. — Estou aqui para te ajudar, não para te dar mais trabalho.

    Elizabeth pestaneja para ela.

    — Ajudar-me?

    — Sim. Então, com o teu… — Jane aponta a figura inchada de Elizabeth —, confinamento. Vou dar comida e banho às crianças, tratar das costuras, fazer recados. O que a Cassy normalmente faz.

    Elizabeth aponta as duas jovens que os seguem para casa.

    — Temos criadas para esse género de coisas, Jane. Estas são a Susan e a Susan.

    — Ambas Susan? — pergunta Jane. A mais alta responde com um encolher de ombros enquanto a mais baixa e mais jovem se limita a fitá-la.

    Elizabeth continua:

    — E quanto ao meu «confinamento», não sou a Ana Bolena. Não têm de me esconder, sufocada em tapeçarias. Ainda faltam seis semanas para o bebé nascer. Dá-nos muito tempo para te estabeleceres.

    — Estabelecer? — Jane transpõe a ombreira para o grande vestíbulo de entrada. Chamas suaves brilham na lareira, apesar do dia temperado de verão. Puxa a pesada fita de renda amarrada debaixo do seu queixo, para tirar o chapéu de palha. Por baixo deste, os seus caracóis castanhos estão húmidos e colados à testa.

    — Sim, estabelecida. Entre a nossa sociedade. — Elizabeth pega no chapéu de Jane, entregando-o à criada mais alta como se fosse um trapo sujo. — És irmã do herdeiro de Godmersham. Há por aqui muitos solteiros elegíveis que estarão ávidos de te serem apresentados.

    Jane engole a horrível suspeita de que caiu numa armadilha. Parecia ter chegado a Kent sob a expectativa de que viera para assegurar o seu futuro da única maneira que uma senhora respeitável tem ao seu dispor.

    — Mas eu esperava um verão tranquilo, convosco e as crianças. E talvez um pouco de tempo para a minha escrita. Trouxe Catherine e Primeiras Impressões para vos ler ao serão.

    — Primeiras quê? — Elizabeth fita-a,

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