Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos
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Sobre este e-book
Prémio Nobel de Literatura
Vencedora do Prémio Internacional Booker
Numa remota aldeia polaca, a excêntrica Janina Duszejko, professora reformada, divide os seus dias a traduzir a poesia de William Blake e a observar os sinais da astrologia, fazendo por manter-se afastada das pessoas e próxima dos animais, cuja companhia prefere; mas a pacatez dos seus dias vê-se interrompida quando começam a aparecer mortos vários membros do clube de caça local. Certa de encontrar respostas, Janina decide lançar-se na investigação do caso, chegando a uma estranha teoria que espalhará o terror pela comunidade.
Sob a máscara de policial noir ou fábula macabra, Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos é um romance mordaz e desconcertante que questiona a nossa posição acerca dos direitos dos animais e responsabilidade sobre a natureza, bem como todas as ideias preconcebidas sobre a loucura, a justiça e a tradição.
Tradução do polaco por Teresa Fernandes Swiatkiewicz
Os elogios da crítica:
«Um thriller heterodoxo, sob o signo de Blake, numa Polónia remota e rural.»
José Mário Silva, Expresso [4 estrelas]
«Um "romance rural" que põe a máscara de policial noir ao mesmo tempo que se revela como uma narrativa política sobre a natureza — uma fábula desconcertante.»
José Riço Direitinho, Público [4 estrelas]
«Uma surpreendente junção de thriller, comédia e tratado político, escrito por uma autora que combina um intelecto extraordinário com uma sensibilidade anárquica.»
The Guardian
«Podia ser uma versão do filme Fargo, reescrita por Thomas Mann.»
The Telegraph
«Uma entre os poucos assinaláveis romancistas europeus a surgirem neste século.»
The Economist
Olga Tokarczuk
Olga Tokarczuk nasceu em Sulechów, uma pequena cidade polaca, em 1962. É celebrada como uma das melhores escritoras europeias da actualidade. É autora de nove romances e de três volumes de contos. Recebeu por duas vezes o mais importante prémio literário do seu país, o Prémio Nike; em 2018, foi finalista do Prémio Femina Estrangeiro e vencedora do Prémio Internacional Booker, com Viagens. Os seus livros estão traduzidos em mais de trinta línguas. Em 2019, foi distinguida pela Academia Sueca com o Prémio Nobel de Literatura pela sua «imaginação narrativa, que com uma paixão enciclopédica representa o cruzamento de fronteiras como forma de vida».
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Conduz o Teu Arado Sobre os Ossos dos Mortos - Olga Tokarczuk
1
E, AGORA, TENDE CUIDADO!
Certa vez, tendo escolhido um Caminho perigoso,
um Homem justo caminhou com Humildade
pelo Vale da Morte.
Já atingi uma idade e, além disso, um estado em que, antes de me deitar, devia lavar muito bem os pés, no caso de uma ambulância ter de me levar durante a Noite.
Se, naquela noite, tivesse consultado as Efemérides para saber o que se passava no céu, não teria mesmo ido para a cama. Mas, em vez disso, caí num sono profundo, com a ajuda de um chá de lúpulo, que acompanhei com dois comprimidos de valeriana. Por isso, quando a meio da Noite alguém me acordou, batendo à porta violenta e exageradamente — sinal de mau agoiro —, não fui capaz de recuperar a consciência de imediato. Saltei da cama e pus-me de pé, hesitante, porque ensonada. O corpo alvoroçado não era capaz de pular do sono inocente para a realidade. Senti-me tonta e cambaleei, como se estivesse prestes a perder os sentidos. Por infortúnio, isto acontece-me ultimamente e tem que ver com as minhas Maleitas. Tive de me sentar e repetir a mim mesma, várias vezes: estou em casa, é de Noite, está alguém a bater à porta. Somente assim consegui controlar os nervos. Enquanto procurava os chinelos às escuras, ouvia a pessoa, que antes batera à porta, andando em redor da casa e murmurando de si para si. Lá em baixo, no nicho dos contadores da electricidade, tenho uma embalagem de gás paralisante que Dionizy me deu por causa dos caçadores furtivos e, naquele momento, foi precisamente dela que me lembrei. Lá consegui tactear a lata fria do pulverizador na Escuridão, e, assim armada, acendi a luz do exterior e espreitei pela janelinha lateral para ver o alpendre. A neve estralejou e, diante de mim, apareceu o meu vizinho, a quem eu chamo Bicho-Papão ou simplesmente Papão. Segurava com as mãos nas ancas as abas do seu casaco de carneira, o mesmo com que eu costumava vê-lo a trabalhar em redor da casa. Debaixo da carneira, viam-se as pernas de umas calças de pijama às riscas e umas botas pesadas de montanha.
— Abre! — exclamou.
Sem dissimular o espanto, lançou um olhar ao meu fatinho estival de linho (durmo com aquilo que o casal de Professores deitou fora no Verão e que me faz lembrar uma moda antiga e os meus anos de mocidade — desta maneira, ligo o Útil ao Sentimental) e, sem cerimónias, entrou na minha casa.
— Faz o favor de te vestires, o Pé Grande morreu.
Com o choque, fiquei por instantes sem palavras e foi em silêncio que calcei as botas altas de neve e enfiei o primeiro casaco polar que me veio à mão entre os que estavam pendurados no bengaleiro. Lá fora, a neve caía e, trespassada pelo halo de luz proveniente do candeeiro do alpendre, transformava-se num chuveiro vagaroso e sonolento. O Papão, estacado ao pé de mim em silêncio, alto, magro e ossudo, parecia uma silhueta esboçada com meia dúzia de traços a lápis. A cada movimento, a neve caía dele como o açúcar em pó cai das filhoses polvilhadas.
— O que queres dizer com «morreu»? — perguntei-lhe, enfim, com um nó na garganta, abrindo a porta, mas o Papão não respondeu.
De uma maneira geral, não é homem de muitas falas. Deve ter Mercúrio no signo mudo — aposto que em Capricórnio ou, talvez, na conjunção, no quadrado ou, quiçá, em oposição a Saturno. Também podia ser Mercúrio na retrogradação, o que dá origem a um carácter reservado.
Saímos de casa e logo fomos fustigados por um ar húmido e frio, bem nosso conhecido, que todos os Invernos, nos lembrava que o mundo não fora criado para o Homem e, pelo menos durante meio ano, nos mostrava o quão era para nós hostil. O ar gélido tomava de assalto as nossas faces, enquanto as nossas bocas expeliam nuvens brancas de vapor. A luz do alpendre apagou-se automaticamente e nós caminhámos pela neve que estralejava na Escuridão absoluta, sem contar com a lanterna colocada na testa do Papão, que perfurava as trevas diante de si, à medida que avançava. Eu seguia atrás dele na Escuridão.
— Não tens lanterna? — perguntou-me.
Claro que tinha, mas onde é que estava? Isso, só amanhã de manhã poderia sabê-lo, à luz do dia. É sempre assim com as lanternas: só se vêem durante o dia.
A casa do Pé Grande ficava um pouco afastada; situava-se ligeiramente mais acima das restantes casas. Era uma das três habitadas durante todo o ano. Só ele, o Papão e eu morávamos aqui sem temer o Inverno. A partir de Outubro, os outros habitantes fechavam hermeticamente as suas casas, deixavam escorrer a água das canalizações e regressavam às suas cidades.
A seguir, saímos do caminho onde a neve fora mais ou menos removida, um caminho que atravessa a nossa povoação e se ramifica em veredas conducentes às diversas casas. O caminho que nos levava até à casa do Pé Grande era um trilho pisado sobre uma grossa camada de neve, tão estreito, que era preciso colocar um pé diante do outro e esforçarmo-nos por manter constantemente o equilíbrio.
— Não vai ser bonito de ver — avisou o Papão, virando-se para mim e, por instantes, encandeando-me por completo.
Eu não estava à espera de outra coisa. Ele quedou-se calado uns momentos e, depois, disse como quem quer justificar-se:
— Foi a luz na cozinha dele que me deixou inquieto, e os latidos da cadela, tão desesperados. Não ouviste nada?
Não, não ouvira nada porque dormia, atordoada com o lúpulo e a valeriana.
— E onde está agora essa Cadela?
— Tirei-a daqui, levei-a para minha casa, dei-lhe de comer e acho que se acalmou.
O silêncio instalou-se de novo.
— Ele costumava deitar-se cedo e apagava sempre a luz, para poupar electricidade. Desta vez, ficou acesa, lançando um feixe sobre a neve que se via da janela do meu quarto. Foi por isso que fui até à casa dele. Pensei que talvez se tivesse embebedado ou que estivesse a fazer mal ao cão, que uivava daquela maneira.
Passámos pelo celeiro em ruínas e, logo a seguir, a lanterna do Papão descobriu na Escuridão dois pares de olhos cintilantes, esverdeados e fluorescentes.
— Olha, Corças! — exclamei, com um sussurro de excitação, agarrando-o pela manga da carneira. — Estão muito próximas da casa dele. Não têm medo?
As Corças, ali estacadas, tinham neve até quase à barriga. Olhavam para nós com tranquilidade, como se as tivéssemos apanhado no decurso de um ritual, cujo sentido não éramos capazes de descortinar. Estava escuro e, por isso, eu não conseguia identificar se eram as mesmas Senhoritas que ali tinham chegado da República Checa no Outono passado, ou se eram outras. E, na verdade, por que razão seriam só duas? As outras eram, pelo menos, quatro.
— Vão para casa — incitei-as, abanando as mãos.
Estremeceram, mas não se mexeram. Seguiram-nos calmamente com o olhar até à porta. Um arrepio atravessou-me o corpo.
Entretanto, o Papão, batendo com os pés no chão, sacudiu a neve das botas em frente à porta do casebre arruinado do Pé Grande. As janelinhas pequenas estavam tapadas com plástico e papel, e a porta de madeira estava coberta com uma tela de alcatrão.
Junto às paredes do vestíbulo, amontoava-se lenha para a lareira, pedaços de madeira irregulares. Era um espaço desagradável — o que mais poderia dizer-se?… Sujo e descuidado. Por todo o lado sentia-se o cheiro a mofo, madeira e terra, húmido e voraz. O fedor do fumo, acumulado ao longo dos anos, instalara-se nas paredes com uma camada gordurosa.
A porta da cozinha estava entreaberta e eu vi, de imediato, o corpo do Pé Grande, caído no chão. Mal o meu olhar tocou nele, logo se desviou. Demorei algum tempo até conseguir de novo olhar para o seu corpo. Era uma visão aterradora.
Estava deitado no chão, torcido, numa posição bizarra, com as mãos agarradas ao pescoço, como quem tenta arrancar um colarinho apertado. Devagarinho, fui-me aproximando, como que hipnotizada. Vi os seus olhos abertos e fixos algures sob a mesa. A camisola interior suja estava rasgada junto à garganta. Dava a ideia de que o corpo havia lutado contra si mesmo e que, vencido, sucumbira. Perante o Horror daquela cena, fiquei com frio, e o sangue congelou-se-me nas veias, parecendo que se evadira para as profundezas mais recônditas do meu corpo. Ainda ontem tinha visto aquele corpo, vivo.
— Meu Deus — balbuciei. — O que terá acontecido?
O Papão encolheu os ombros.
— Não consigo telefonar para a polícia… Para variar, só apanho a rede checa.
Tirei do bolso o meu telemóvel, marquei o número que conhecia da televisão — 997 — e, daí a pouco, no meu aparelho, ouviu-se uma voz checa automática. Pois é, as coisas aqui são assim. A cobertura deambula, sem levar em consideração as fronteiras entre os países. Há dias em que a fronteira entre os operadores se detém prolongadamente na minha cozinha. Mas também já aconteceu ter-se instalado vários dias junto à casa do Papão, ou no seu terraço, sendo difícil prever as oscilações de um tal carácter quimérico.
— Teria sido preciso sair de casa e subir a encosta até lá acima — sugeri tardiamente.
— Quando chegarem, já o corpo estará rígido — disse o Papão, naquele tom omnisciente de que eu não gostava nada. Despiu a carneira e colocou-a nas costas de uma cadeira. — Não podemos deixar o corpo assim sem mais nem menos. Tem um aspecto horrível e, afinal de contas, era o nosso vizinho.
Quedei-me a olhar o pobre corpo retorcido do Pé Grande, e custava-me acreditar que ainda ontem sentira medo daquele Homem. Não gostava dele. Dizer que não gostava dele é pouco. Devia antes dizer que era, para mim, asqueroso, horrível. No fundo, nem sequer o considerava um Ser humano. Agora, estava ali deitado num chão cheio de nódoas, com a roupa interior imunda, pequeno e magro, impotente e inofensivo. Qual pedaço de matéria que, em resultado de transformações dificilmente imagináveis, se tornara um ser frágil, de tudo o mais alheado. Fiquei triste, terrivelmente triste, porque mesmo alguém tão repugnante como ele não merecia morrer assim. E quem é que o merecia? A mim espera-me o mesmo destino, e ao Papão também, e ainda àquelas Corças lá de fora. Todos seremos, um dia, nada mais do que apenas um corpo morto.
Olhei para o Papão em busca de algum consolo, mas ele já estava ocupado a fazer a cama amarrotada, ou melhor, a endireitar o emaranhado de lençóis do sofá-cama desengonçado. Por isso, tive de me consolar a mim própria em pensamento. Ocorreu-me, então, que a morte do Pé Grande podia ser, em certa medida, uma coisa boa. Libertara-o da desordem que era a vida dele. E libertava ainda outros Seres vivos dele próprio. Oh, sim, subitamente dava-me conta de que a morte podia ser uma coisa boa e justa, como um desinfectante ou um aspirador. Admito-o — foi mesmo o que pensei, e continuo a pensar assim.
Era meu vizinho; as nossas casas estavam separadas por não mais do que meio quilómetro, mas eu dava-me pouco com o Pé Grande. Felizmente. Via-o antes à distância — uma figura pequena e rija, sempre um pouco vacilante, em movimento no pano de fundo da paisagem. Andava e balbuciava de si para si e, às vezes, a acústica ventosa do Planalto trazia até mim farrapos do seu monólogo que, no fundo, era simples e monótono. O seu vocabulário era sobretudo composto por imprecações, às quais acrescentava apenas nomes próprios.
O Pé Grande conhecia cada pedacinho de terra das redondezas, pois, ao que parece, nasceu aqui e nunca foi mais longe do que Kłodzko. Também conhecia muito bem a floresta — sabia o que poderia render-lhe dinheiro e que coisa poderia vender a quem. Cogumelos, bagas, madeira roubada, lenha para fogueiras, armadilhas de corda, a corrida anual de carros todo-o-terreno, a caça. A floresta era a subsistência daquele pequeno gnomo. Por isso, ele deveria respeitar a floresta; mas não a respeitava. Certa vez, em Agosto, durante um período de seca, pegou fogo a toda uma área de mirtilos. Telefonei logo para os bombeiros, mas não conseguiram salvar grande coisa. Nunca soube por que razão ele fez isto. No Verão, andava com uma serra pelas imediações e abatia árvores saudáveis, cheias de seiva. Quando o chamei polidamente à atenção, respondeu-me, contendo a Ira com dificuldade e de modo grosseiro: «Vai passear! Raio da velha!» Só que usou palavras bem piores. Ganhava dinheiro extra roubando coisas aqui e ali, recolhendo e trapaceando outras. Quando os lenhadores deixavam no exterior lanternas ou tesouras de poda, o Pé Grande logo aproveitava a ocasião para tudo arrecadar e, depois, converter em dinheiro algures na cidade. Em minha opinião, já lhe deviam ter dado algum Castigo há muito tempo ou, então, já devia ter ido parar à cadeia. Não sei como era possível fazer tudo aquilo e ficar impune. Talvez ele fosse protegido por anjos-da-guarda. Às vezes, acontece-lhes ficar do lado errado.
Eu sabia ainda que ele era caçador furtivo de todas as maneiras possíveis e imaginárias. Tratava a floresta como propriedade sua — tudo ali lhe pertencia. Era um homem do tipo saqueador.
Por causa dele, passei várias Noites sem dormir, tomada por um sentimento de impotência. Telefonei muitas vezes para a Polícia. Quando, por fim, atendiam a chamada, registavam amavelmente a minha participação, mas depois nada mais acontecia. O Pé Grande punha-se de novo a caminho, com um monte de armadilhas de corda e arame sobre os ombros, soltando gritos aziagos. Tal como um pequeno deus malfazejo. Malicioso e imprevisível. Estava sempre levemente bêbedo e talvez fosse isso o que nele despertava aquele mau humor. Murmurava de si para si e batia nos troncos das árvores com um pau, como se quisesse afastá-las do seu caminho. Parecia ter nascido já naquele estado de ligeiro embrutecimento. Fui atrás dele muitas vezes, seguindo as suas pegadas com a finalidade de recolher as armadilhas primitivas feitas de arame para caçar Animais, bem como as cordas em laço atadas a árvores jovens, curvadas de tal modo que o Animal capturado se içava como se tivesse sido disparado de uma fisga, ficando suspenso no ar. Às vezes, encontrava Animais mortos — Lebres, Texugos e Corças.
— Temos de o colocar no sofá-cama — disse o Papão.
Não gostei nada da ideia. Não gostei da ideia de ter de tocar nele.
— Acho que devíamos esperar pela Polícia — retorqui.
Mas o Papão, de mangas arregaçadas, já estava a preparar o sofá. Lançou-me um olhar penetrante com aqueles seus olhos claros.
— Acho que tu se calhar também não ias gostar que te encontrassem assim. Neste estado. Seria desumano.
Oh, sim, com certeza! O corpo humano é inumano. Principalmente quando está morto.
Não estaríamos, então, diante de um paradoxo sombrio, ao termos de lidar com o corpo do Pé Grande, que nos deixara mais um problema? A nós, seus vizinhos, a quem não respeitava, de quem não gostava e por quem não nutria qualquer consideração.
Em minha opinião, depois de se Morrer, o corpo deveria desmaterializar-se. Seria a solução mais adequada. Os corpos desmaterializados regressariam assim directamente para os buracos negros de onde tinham saído. As almas viajariam com a velocidade da luz até à luz. Se é que existe uma coisa como a Alma.
Superando uma resistência monstruosa, fiz o que o Papão me pedia. Agarrámos no corpo pelos braços e pelas pernas, e transportámo-lo para o sofá. Para minha surpresa, constatei que o corpo era pesado e que de modo algum parecia inerte, antes teimosamente rígido, tão desagradável como os lençóis engomados recém-chegados da engomadoria. Também vi umas peúgas ou algo que fazia as suas vezes nos pés dele — uns trapos imundos, meotes feitos de tiras rasgadas de um lençol, agora cinzentas e manchadas. Não sei porquê, mas a visão daqueles meotes atingiu-me em pleno no peito, no diafragma, em todo o corpo, ao ponto de não conseguir mais conter um soluço. O Papão olhou para mim fria e fugazmente, em sinal de censura.
— Temos de o vestir antes que cheguem — disse o Papão, e percebi que também ele tinha o queixo a tremer, só de ver aquela miséria humana (embora por alguma razão não quisesse admiti-lo).
Em primeiro lugar, tentámos tirar-lhe a camisola interior, imunda e malcheirosa, mas não havia maneira de ela sair pela cabeça. Foi então que o Papão sacou da algibeira um complicado canivete e começou a cortar o tecido a partir do peito. O Pé Grande jazia agora seminu no sofá-cama diante de nós, peludo como um trol, com cicatrizes no peito e nas mãos, tatuagens já irreconhecíveis, nas quais eu não era capaz de identificar nada que fizesse sentido. Conservava os olhos ironicamente entreabertos, enquanto nós procurávamos no armário desengonçado algo decente para lhe vestir, antes que o corpo ficasse rígido para sempre e voltasse a ser aquilo que sempre fora — um torrão de matéria. As cuecas rasgadas saíam-lhe das calças de fato de treino prateadas e novinhas em folha.
Descalcei-lhe aquelas peúgas asquerosas e vi-lhe os pés. Fiquei estarrecida. Sempre tive a impressão de que os pés são a parte mais íntima e pessoal do nosso corpo, e não os órgãos genitais, ou o coração, ou até o cérebro, órgãos sem um significado essencial, mas altamente valorizados. É nos pés que se esconde todo o saber sobre o Homem; é aí que se concentra o profundo sentido daquilo que realmente somos e do modo como nos relacionamos com a terra. É no tocar a terra, quando o corpo entra em contacto com a terra, que reside todo o mistério — somos constituídos por elementos da matéria, mas somos-lhe simultaneamente estranhos e estamos separados dela. Os pés são as nossas fichas que enfiamos nas tomadas. E agora aqueles pés eram para mim a prova da singular proveniência do Pé Grande. Não podia ser um Homem. Devia antes ser uma daquelas formas sem nome, uma daquelas que — tal como diz Blake — derretem os metais no infinito e transformam a ordem em caos. Talvez fosse da família do diabo. Os seres diabólicos reconhecem-se sempre pelos pés, porque pisam a terra de outra maneira.
Estes pés, muito compridos e estreitos, de dedos delgados com unhas negras e deformadas, pareciam preênseis. O dedo gordo estava ligeiramente separado do resto, como um polegar. Os dedos mostravam-se densamente cobertos de pêlos negros. Onde é que já se viu uma coisa assim? O Papão e eu trocámos olhares.
No armário praticamente vazio encontrámos um fato cor de café, meio manchado, mas no fundo pouco usado. Nunca o vi com ele vestido. O Pé Grande andava sempre com valenki, botas de feltro russas, e umas calças coçadas, acompanhadas de uma camisa aos quadrados e de um colete acolchoado, independentemente da estação do ano.
Vestir o defunto era para mim semelhante a afagar alguém. Não me parece que ele tenha recebido em vida tanto afecto. Segurámo-lo delicadamente debaixo dos braços e enfiámos-lhe a roupa. O seu peso apoiava-se no meu peito e, após uma onda de repulsa natural, que me nauseou, ocorreu-me subitamente que poderia abraçar aquele corpo, dar-lhe pancadinhas nas costas e dizer-lhe em tom tranquilizador: «Não te preocupes. Vai correr tudo bem.» Por causa da presença do Papão, que poderia interpretar tal atitude como uma perversão minha, não foi isto que fiz.
Quando foram postos de lado, os gestos transformaram-se em pensamentos, e fiquei com pena do Pé Grande. Talvez a mãe o tenha abandonado e ele tenha sido infeliz toda a vida. Longos anos de infelicidade levam o Homem à degradação, mais do que uma doença fatal. Nunca vi visitas na casa dele, nunca lhe vi família nem amigos. Nem mesmo os colectores de cogumelos se detinham junto à sua casa para lhe falarem. As pessoas tinham medo dele, e não gostavam dele. Ao que parece, só se dava com caçadores, e ainda assim raramente. Quanto a mim, ele devia ter uns cinquenta anos e eu seria capaz de pagar para ver a sua oitava casa e verificar se Neptuno e Plutão não estariam aí ligados de alguma maneira, com Marte algures no Ascendente, porque ele, com a sua serra dentada nas mãos fibrosas, fazia-me lembrar um predador que apenas vive para semear a morte e infligir sofrimento.
De modo que lhe vestisse o casaco, o Papão ergueu-o para a posição de sentado e foi nessa altura que reparámos que, na sua boca, a língua grande e inchada continha algo. Então, após uns instantes de hesitação, rangendo os dentes de repulsa e recuando várias vezes a mão, consegui agarrar delicadamente entre os dedos uma pontinha de algo, que retirei e vi tratar-se de um ossinho comprido e estreito, cortante como um estilete. Da boca morta soltou-se um gargarejo gutural e ar, um silvo mudo, que se assemelhava muito a um suspiro. Demos os dois um salto para trás, afastando-nos do morto, e o Papão deve ter sentido o mesmo que eu: Terror. Principalmente porque daí a pouco apareceu, na boca do Pé Grande, um sangue vermelho-escuro, quase preto. Um fio agoirento que escorria para o exterior.
Ficámos paralisados, aterrorizados.
— Pois! — exclamou o Papão com voz trémula. — Engasgou-se. Sufocou por causa de um osso. O osso ficou-lhe entalado na garganta, a garganta ficou obstruída com um osso, morreu asfixiado — repetia nervosamente. E, depois, como quem tenta acalmar-se, acrescentou — Mãos à obra! Não é agradável, mas as obrigações face ao próximo nem sempre são agradáveis.
Percebi que ele se tinha autonomeado chefe daquele turno da noite, e pus-me à sua disposição.
Entregámo-nos por completo à tarefa ingrata de enfiar o Pé Grande dentro do fato cor de café e de o colocar numa posição condigna. Há muito tempo que eu não tocava num corpo estranho, já para não falar de um corpo sem vida. Sentia que, a cada instante que passava, a imobilidade se apoderava dele e, a cada minuto, o corpo petrificava. Era por isso que tínhamos tanta pressa. E, quando o Pé Grande já estava deitado com o seu fatinho domingueiro, o rosto perdeu por fim a expressão humana, tornando-se, sem qualquer sombra de dúvida, um cadáver. Somente o dedo indicador da mão direita recusava acatar a tradicional posição das mãos delicadamente entrelaçadas, apontando para o alto, como se assim quisesse chamar a nossa atenção e deter por instantes os nossos esforços, nervosos e apressados.
— E, agora, tende cuidado! — dizia aquele dedo. — Agora, tende cuidado, pois há uma coisa que não vedes, um ponto inicial e importante de um
