LEMOS, F. C. S.; GALINDO, D.; AGUIAR, K. F. Ao coração das cidades: notas parresiastas às práticas...
Ao coração das cidades: notas parresiastas às práticas securitárias
e ao des/arquivamento como resistências
At the heart of the cities: parresiastas notes to securitarian practices
and des/archiving as resistances
http://dx.doi.org/10.5007/2178-4582.2014v48n2p204
Flávia Cristina Silveira Lemos
Universidade Federal do Pará, UFPA, Belém/PA, Brasil
Dolores Galindo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo/SP, Brasil
Kátia Faria Aguiar
Universidade Federal Fluminense, Niterói/RJ, Brasil
Este artigo busca explicitar mecanismos de
segurança utilizados frente às resistências na cidade, no presente, a partir da problematização dos
arquivos enquanto dispositivos de governo de si e
dos outros, na parresía e na estilística da existência. A história pode nos auxiliar a lutar e a fazer
ranger acontecimentos, para dispersar forças militares e de gestão da vida pela regulação de controles inos e securitários. Escrever a história implica
desarquivar e forjar documentos com perguntas e
pensamentos que operem a coragem da verdade,
na parresía atualizada por meio de redes múltiplas,
constituídas pelos encontros de forças que inventam corpos vibrantes e guerreiros como um ethos
e uma política de existência diante das tentativas
de silenciar arquivos, de destruí-los e de impedir
acessos a eles ou mesmo de diicultar sua produção
vital para construção de espaços heterotópicos e
libertários.
This paper seeks to make explicit security mechanisms used in the face of resistance in the cities
in the present, from the problematization of iles as
devices of government of self and others, in parresia and stylistics of existence. History can help us
to ight and to ranger events to disperse military
forces and life management through the regulation
of ine and securitarian controls. Writing history
implies to unarchive and forge documents with
questions and thoughts that operate the courage
of truth, in the updated parresia through multiple
networks constituted by encounters of forces that
make up vibrant and warriors bodies as an ethos
and policy of existence in face of the attempts of
silencing iles, destroying them and preventing the
access to them or even hamper their vital production in the construction of heterotopics and libertarian spaces.
Palavras-chave: Heterotopias - Subjetivação Cidade - Arquivos - História.
Keywords: Heterotopias - Subjectivity - City - Files - History.
Introdução
Não é uma declaração feita para o bem da cidade, mas uma
pergunta ao coração da cidade; não é prescritivo ou assertivo,
mas interrogativo, e em vez de dizer às pessoas como devem se
comportar, ela reza, por exemplo, - e, sobretudo, - para cuidar
de si [...] (REVEL, 2014, s/p, tradução nossa).
Neste ensaio problematiza-se a cidade no campo de forças ético, estético
e político, com os intercessores Foucault, Deleuze, Guattari e Virílio. Pensar
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as capturas da circulação, as agonísticas nos usos da cidade, a apropriação dos
espaços, a produção de heretoropias e as lutas contra os enclaves urbanos é a
preocupação deste texto.
A agonística é um conceito de Foucault (2010a) que traz a tensão das
forças em disputa, por meio de práticas concretas, raras e históricas, na multiplicidade e descontinuidade das mesmas, que estão correlacionadas, sem
qualquer plano hierárquico prévio. A divisão das forças em segmentações já
é efeito de poderes como os de segurança, os disciplinares e os biopolíticos,
que organizam as forças em dispositivos de governo das condutas com vistas
a submeter politicamente as subjetividades na relação com a cidade. Neste
campo, Foucault (Ibid.) airma que a heterotopia é resistência pela agonística,
fazer mover as forças para deslocar os planos de existência e os espaços das
cidades, tornando-os diferentes, raros e singulares.
Objetiva-se efetuar a crítica do presente para problematizar os dispositivos de segurança territorial e da população e seus efeitos nos atuais processos de subjetivação. Na verdade, interrogar as práticas de controle em meio
aberto, analisar as rupturas com as racionalidades de circulação privatizada
no empresariamento da vida, e postular a saída da menoridade com a atitude
crítica do presente como resistência ao quadriculamento espacial das cidades,
hoje, ganha extrema relevância nas lutas por novos possíveis.
Foucault (2010a), no curso O governo de si e dos outros ressalta que a
atitude crítica frente ao presente é uma prática ética, estética e política que
possibilita pensar as artes de governar condutas de si e dos outros como dispositivo de estilização de existências. O cuidado de si se relaciona com o da
cidade neste modo de operar um ethos no presente, em uma problematização
dos acontecimentos historicamente. Pensar e diferir de si e dos outros, em
um plano de crítica à menoridade política e, assim, poder sair da menoridade
enquanto uma condição de tecnologia de si que traz o cuidado de si articuladamente ao cuidado da cidade.
Para Foucault (2008a; 2008b), e para Deleuze e Guattari (1997; 2007),
o nomadismo foi canalizado por encomendas de mercado e muitos circuitos
das cidades foram privatizados, tornados investimentos controlados pela publicidade e pelo policiamento, na esfera securitária e neoliberal. Para Virílio
(2008), uma dromopolítica foi criada e se tornou uma forma de gestão intensiva da circulação no plano da regulação dos trajetos, em contextos democráticos, baseados na urgência das decisões aceleradas pela capitalização do tempo e segmentação espacial. Problematizar a produção de subjetividades, na
multiplicidade de práticas econômicas, políticas, sociais, culturais, históricas
e ecológicas em jogo na constituição das cidades em tempos de intensiicação
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dos dispositivos de segurança securitários e de governamentalidades neoliberais, se faz importante como coragem da verdade, na parresía, atualizada
diante dos acontecimentos que vivemos.
No curso de Foucault (2010a), O governo de si e dos outros, a crítica à menoridade é colocada como experiência ética, estética e política. Pensar por si
mesmo é romper com a tutela e implica constituir espaços outros de existência
pela parresía. Judith Revel (2014) nos convoca a atualizar as teorizações foucaultianas sobre coragem da verdade sem cair em anacronismos, entendendo
que estas se dirigem a um regime de veridicção o qual postula perguntas às
questões colocadas na dimensão pública das cidades, não se restringindo, portanto, ao contexto greco-latino no qual, genealogicamente, Michel Foucault a
traçou historicamente.
Na herança dos cínicos, Judith Revel (2014) pergunta sobre modos de vida
outros na cidade, sem esquecer-se de inventar a própria vida, ou seja, de estilizar existências pelo dissenso e processos de singularização. Não negamos a
importância dos direitos civis e políticos, uma conquista de tantos que os buscaram e ainda lutam por eles, mas estamos chamando a atenção para algo que
se articula com a politeia (igualdade de direito à fala), a dynasteia (problema
político de entrar na batalha pelos discursos, com regras outras que não se limitam à lei). A parresía é a coragem da verdade e articula politeia e dynasteia.
Como analisadores, problematizamos acontecimentos recentes que tiveram lugar no Rio de Janeiro, cidade atravessada por programas designados
de paciicação, os quais tornam as periferias urbanas cariocas um “campo de
concentração a céu aberto”, recorrendo ao conceito de Edson Passetti (2006).
Descrevemos práticas de ordenamento urbano na realização dos grandes
eventos, como a Copa e, em breve, as Olimpíadas, como retirar pessoas das
ruas e praças para encaminhá-las aos albergues e comunidades designadas
de terapêuticas, em internações compulsórias, e/ou, ainda, recolher pessoas
em situação de rua e impedir sua presença nas cidades, com dispositivos que
as impossibilitam de circular pelos centros urbanos. Essas são situações que
analisamos neste artigo e que são justiicadas pela insígnia da segurança da
população e para promover mercados de armas, de aparatos de vigilância, da
construção civil, do comércio de objetos, como cercas elétricas e câmeras,
alarmes e vidros blindados, entre outros.
Ainda pensamos os analisadores da Comissão Nacional da Verdade, em
seus trabalhos, no Brasil. Desenhar relações e descontinuidades entre os arquivos da Ditadura Civil Militar de 1964 a 1985, e os das cidades, nas denominadas comunidades paciicadas cariocas, nos últimos anos, nos auxilia
a descrever e interrogar os intoleráveis securitários e os controles que nos
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inquietam, neste presente em que vivemos. Tal prática se assemelha aos mecanismos característicos das sociedades de controle, como Deleuze (1992) a
deiniu, além de materializar a velocidade enquanto tática política, no sentido
que lhe confere Paul Virílio (1996), ao tratar da dromopolítica.
Resistir, na esfera dos processos de subjetivação, que são os modos
de ser, de sentir, de pensar, de se relacionar e de agir, com a coragem da
verdade signiica operar pelos entremeios, como nos indicaram Deleuze e
Guattari (2007), frente aos intoleráveis securitários, de controle e velozes
da sociedade de contemporânea. Fazer da cidade lugar de potência para
criar redes de dispersão desses mecanismos de segurança neoliberais tornase um movimento ético, estético e político, vital na produção da liberdade
no presente.
O dispositivo de segurança articula disciplina, soberania, biopolítica e
controles sutis, simultaneamente. Pela disciplina, realiza o policiamento do
cotidiano individualizado; pela soberania, delineia as leis para o monopólio
estatal da violência militar e civil articulados; pela biopolítica, faz viver, deixa
morrer e mata em nome da vida; por meio dos controles, organiza forças rápidas de vigilância a céu aberto. Nesse sentido, desenha velocidade e política na
dromopolítica e aciona agenciamentos empresariais da/na cidade mercantilizada e governada pela segurança.
Trata, ainda, do enredado processo de desarquivamento de dossiês e memórias das cidades como um diagrama de documentos os quais testemunham
gritos, sussurros, lágrimas, risos, vitórias, derrotas, disputas, valores, arquiteturas, cheiros, cores, murmúrios, queixas, mortes, guerras, lutos, perdas, trabalho, protestos, movimentos, danças, cantos, andanças, ritos, garantias de
direitos, habitações, ruas, pontes, prédios, casas, avenidas, escolas, hospitais,
calçadas, decisões, lugares e intempéries. Criar visibilidade para esse arquivo-cidade possibilita resistir e agir no presente e no tempo, para fazer ranger
vozes múltiplas e espaços heterotópicos.
Disciplina, panoptismo e o espaço de resistência à cidade como
acampamento militar pelos usos dos arquivos
Em Vigiar e Punir, Foucault (1999) destaca que o poder disciplinar funcionou pela disciplina como bloqueio com os leprosários excludentes do espaço da cidade e, pelo panoptismo, como mecanismo de inclusão em meio
aberto, que operava como um acampamento militar. No mesmo livro, assinala
que o controle dos corpos no espaço ocorria pela vigilância minuciosa, em
sistemas de repartição na cidade, visando a aumentar a produção e a utilidade
simultaneamente à docilização política. O poder saber disciplinar forja indiví207
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duos e os distribui no espaço como multiplicidades organizadas, para diminuir
as revoltas e resistências ou mesmo tentar capturá-las e torná-las engrenagens
do liberalismo.
A circulação na cidade para trabalhar, estudar, comprar, vender serviços,
fazer turismo, realizar lazeres e esportes, acessar cultura e comercializar bens,
habitações, alimentos, espaços de oferta de saúde, educação e justiça e, por
im, extrair recursos e lucro dos movimentos tem sofrido intensa disciplina
com vistas a ampliar a produção dos corpos dóceis e a diminuir as revoltas.
Regular os questionamentos advindos de insurgências contra a racionalidade
liberal de governo dos corpos é um permanente objetivo político e econômico
das democracias modernas.
Tal regulação se dá por meio do exercício de uma violência legítima, dirão Michael Hardt e Antônio Negri (2012), cuja justiicativa vem a posteriori
dos atos que a materializam, dos quais é a norma e não a exceção. Os poderes
militares e/ou de polícia parecem adquirir eicácia, menos porque restituem
a paz, e mais por manterem ordenações instáveis e móveis. Isso se aplica,
também, ao exercício da violência, de modo que a cidade se converte num
acampamento militar, as ruas em rotas policiais e as casas, principalmente
nas chamadas zonas de risco, adquirem os contornos dos espaços de exceção
prestes a serem invadidos.
Outro aspecto da disciplina é a maneira com que esta opera a criação de
arquiteturas, de máquinas de observação e escrita, de dossiês, de casos a regular, de registros a guardar, no fazer ver e falar dos arquivos disciplinares,
em que poderes lançaram luz para os acontecimentos. A escrita e a guarda de
relatórios fora transformada pela administração pública e privada em saberesvestígios de que houve luta. Talvez seja paradoxal, mas é necessário pontuar
que, apesar da inlação documental de legislações sobre possíveis insurgências, necessitamos continuar a olhar, também, para as zonas conexas aos enquadramentos legais, a im de rastrear como o poder disciplinar, em conjunção
com a defesa da segurança, continua a operar.
As máquinas diagramáticas de criação de arquivos da cidade e dos corpos
inscritos pela história é uma positividade do poder saber disciplinar, no campo
da fabricação da problemática genealógica da política da verdade. A conissão
extraída dos atendimentos em estabelecimentos de cuidado e de proteção, nas
inquirições jurídicas e sociais, nas anamneses médico-psicológicas, nos diagnósticos institucionais, nas avaliações psicopedagógicas, nas seleções para
trabalhar e ser promovido, nas gestões das infâmias pequenas das famílias
medicalizadas e judicializadas, tem, cada vez mais, ocorrido pela disciplina da
ordem do discurso e das práticas de poder. Concorre-se para técnicas de si que
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se baseiam na menoridade, na dependência do discurso do outro que lhe dirá a
verdade sobre si, à dependência da fala de outrem, à menoridade.
Equipamentos, organizações, ruas, asilos, fábricas, escolas, exército, hospitais, abrigos, manicômios, delegacias, prisões, universidades, museus e albergues em junção, ou disjunção, perpetuam a racionalidade jurídico-punitiva
-preventivista que preside aquilo que é possível enunciar. Há que se lidar com
o risco constante do sufocamento total e do ruir das forças daqueles que estão
diretamente sob o escrutínio: necessita-se dizer algo, preencher uma determinada planilha, inscrever em seu corpo uma dada insígnia. Estamos falando,
pelo menos ainda, de um governo dos vivos, e a máquina capitalística requer
a produção continuada da vida, embora mate em nome dela.
Um dos grandes paradoxos do bipoder, como bem o assinalou Michel
Foucault, coincide com a potência de eliminar a própria vida; não nos espanta
que Michael Hardt e Antonio Negri, em Multidão (2012), hajam recuperado a
igura monstruosa do Golem para falar da biopolítica, no contemporâneo, esta
que não mais distingue amigos de inimigos, na qual qualquer um é potencialmente inimigo.
As resistências ocorrem na dinâmica móvel das leis e normas, utilizadas
como táticas de governamentalidade na cidade e nas comunicações entre fronteiras, nas linhas das dobras que fazem ver e falar nos entremeios estéticos,
nas problemáticas éticas e nos efeitos políticos (FOUCAULT, 1979). As maneiras de governar são disputadas e constitutivas de alianças, de dispersões
e bifurcações. Batalha-se, no diagrama das normas e das leis, no plano da
fabricação das subjetividades, historicamente, em uma atitude crítica frente ao
presente, mesmo quando este desliza entre repartições da cidade policial e militar variadas. Ora, onde há poder há resistência, nos ensinou Foucault (1999).
O intelectual da esquerda iluminado e portador de uma verdade a ser
enunciada já não é suiciente (VIEIRA, 2011). Por isso, talvez, a igura do
parresiasta emerja como uma igura alternativa, ainda que com riscos de anacronismos, para o trabalho de ontologia crítica de nós mesmos. As gavetas
repletas de dossiês podem assinalar esse campo de forças, as atas das reuniões
e assembleias poderão ser usadas para contarmos a história da luta pelo e no
espaço. Cada cidade tem sua monumental memória e as vilanias silenciadas
de seus massacres, de seus controles disciplinares em meio aberto e em seus
asilos feitos para depositar os refugos que ela engendra em seus processos de
inclusão/exclusão.
Por exemplo, como sabemos quem foi morto pelos autos de resistência,
quem foi internado obrigatoriamente e quem pôde circular sem fronteiras?
Quais critérios foram usados, nessas práticas? Que divulgações e silenciamen209
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tos sofreram, em nome da defesa da sociedade? Que veículos midiáticos operaram o panóptico e/ou lançaram sombras sobre os acontecimentos da cidade?
A Comissão Nacional da Verdade, no Brasil, pela Lei 12.528/2011 (POLITI, 2012) tem feito essas questões aos arquivos da Ditadura Civil Militar;
vem compondo forças com muitos setores da sociedade e lutando ativamente
para abrir os arquivos do período ditatorial, a im de explicitar as torturas realizadas, os desaparecimentos ocorridos, as prisões dos chamados subversivos
ao regime de 1964 a 1985. Essa busca da abertura dos arquivos é crucial, bem
como a produção de novos documentos pelas entrevistas a militares, civis,
familiares dos desaparecidos, integrantes de sindicatos e movimentos sociais,
ex-parlamentares e intelectuais, a religiosos e trabalhadores da comunicação,
etc.
Desarquivar e operar por novos arquivos silenciados anteriormente pode
potencializar resistências diversas e relevantes, diante das práticas autoritárias
e marcadas pela violência ainda hoje, no país, como as que ocorrem nas denominadas favelas cariocas, nas táticas militares de ocupar para paciicar matando, deixando morrer, vigiando, impedindo a circulação e fazendo circular
alguns frente aos outros. As memórias documentadas na oralidade e na escrita,
nas fotograias, nos nomes de militares da ditadura nas ruas, nas avenidas,
pontes, prédios, placas e bustos, vibrando a história nos corpos e dos mesmos,
da cidade e das repartições feitas nela.
Os acontecimentos militares e paramilitares, os de ocupação com violência
e vigilância/controle do Estado governamentalizado, pulsam e se inscrevem
em tantos documentos-monumentos, a partir dos arquivos que não deixam
calar e ainda sangram, doem, gritam, berram e gemem. Escrever a história
desses acontecimentos é forjar um legado dos que ousaram ter coragem da
verdade, a dizer e a viver resistindo ao autoritarismo da Ditadura Civil Militar
e às democracias abstratas de nosso hoje. Indica um percurso diferente de uma
expiação coletiva e, talvez, diferentemente de outros países, por se conigurar
como uma fenda para pensar o presente da força militar, policial, disciplinar,
biopolítica e securitária no esquadrinhamento das cidades, hoje.
A Comissão da Verdade brasileira nos diz dos mortos tidos por desaparecidos, nos diz das técnicas de tortura; coloca, frente a frente, torturadores e torturados; disponibiliza documentos para acesso público. Essa Comissão vem
efetivando uma maneira de produção de verdade que não se resume a uma
abertura dos arquivos, ainda que a pressuponha; esta é necessária, mas não
suiciente. Está em cena um trabalho de veridicção político, estético e ético o
qual não pode ser equiparado ao dispositivo de conissão que apazigua, sem
colocar no espaço da cidade as marcas que ainda nela se evidenciam, quando
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protestos são criminalizados e fortemente reprimidos com armas, emergindo
novas categorias de presos políticos e pedidos de asilo por razões políticas.
Para entender esse corte será útil assinalar que os vínculos com a ditadura
ainda levam pessoas às ruas para reivindicar o retorno a um dispositivo totalitário. São cinco, são seis, são cinquenta pessoas que estão nas ruas brasileiras?
É importante saber quantas pessoas estão nas ruas para reivindicar a volta
do regime militar no Brasil, mas igualmente importa atentar para as forças
desejantes mobilizadas para tornar possível a defesa da presença das forças
militares em nome da ordem pública. As pequenas caminhadas em prol do regime militar, da segurança e da moralidade que se insinuam no urbano, tornam
visível um diagrama no qual as relações entre forças militares e de polícia são
distribuídas e redistribuídas.
Na sociedade securitária, as leis e normas entram no funcionamento do
dispositivo panóptico do policiamento da cidade, na dimensão da relação entre soberania e disciplina. Como indagar os insidiosos dispositivos de controle
policial, os quais agem em nome da democracia e da paciicação? Quando
a violência se torna ilegítima, o questionamento advém. Todavia, isso não
exclui o exercício regulador que adquire o poder militar-policial. Se esperássemos mais, dizem as autoridades militares e policiais, poderia ter ocorrido o
pior – e mal sabemos o que isso signiica –, medo difuso que assola as pessoas
cujas casas estão vigiadas e as pessoas que não dormem para estar em vigília
a um mínimo estampido de bala.
O governo das condutas vigiadas se dá no espaço com muros, brechas com
buracos nos muros e derrubadas de muros; por isso, a disciplina opera também
sem muros e entre eles, para realizar submissões políticas na sociedade da
vigilância (FOUCAULT, 1999). Em nome da ordem, trabalhadores do Estado
podem, inclusive, pedir desculpas a algumas famílias, estabelecer benefícios
continuados no sistema de previdência a viúvas de policiais mortos ou de outros civis mortos injustamente por forças policiais. Cabe observar que essas
vazões sustentam uma racionalidade preventivista, com o resguardo de uma
lógica compensatória e de um léxico político liberal que não representa sequer
as elites amedrontadas. Pensar o poder disciplinar, hoje, é necessariamente
pensá-lo nos diagramas securitários.
Segurança, território, circulação e a cidade como espaço de exceção:
novas subjetividades controladas?
A gestão do território se tornou parte de uma política de controle da circulação, no plano do governo da população, dos bens, dos alimentos, das riquezas, dos recursos naturais, dos transportes, dos saberes, das normas, do
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consumo e turismo, das doenças e perigos. Preocupar-se com o deslocamento
produtivo e seguro se tornou um objeto de governo relevante, na sociedade e
no Estado governamentalizados. Deixar ir e vir, impedir liberdades em nome
da segurança, prender, internar e vigiar são vários mecanismos que podem
funcionar conjuntamente em nome da garantia da ordem.
Tanto a diplomacia, no campo internacional, quanto a polícia, no nível
local, estão conectadas pelo diagrama securitário que agencia soberania, disciplina, biopolítica e segurança, na gestão dos corpos e das populações pelas
governamentalidades atualizadoras dos poderes pastorais. A quebra de fronteiras, o direito internacional, o direito público e o neoliberalismo passaram a
empresariar a vida, judicializá-la pelos contratos e processos de reparação de
danos. Cidades mapeadas pela ordem jurídica puderam materializar a ordem
disciplinar; Estados em luta e em aliança racistas puderam determinar seus
acordos de segurança e de liberdade. Vários deles nasceram da guerra das
raças e entre as raças, em nome da defesa da sociedade (FOUCAULT, 2008a).
Documentos de organismos internacionais surgiram nas lutas por fronteiras e entre elas. Refugiados foram assentados, desertores aplacados pelas declarações de soberania e de porosidade jurídico-disciplinar das demarcações
de terra, de territórios e de forças, nas guerras militarizadas e nas travadas em
meio à paz (FOUCAULT, 2008a). Tratados foram escritos e assinados pelos
países, estatutos das cidades publicados, para ressaltar a gerência dos deslocamentos e segregações urbanas.
Se a diplomacia delimitaria as condições de suposta produção da paz
mundial em meio às guerras militares, entre nações, as polícias garantiriam
a ordem em meio às guerras civis, no interior dos países, fruto das tensões de
demarcação de territórios e do apagamento das diferenças, em nome da fabricação de unidades ictícias nacionais. Nesse sentido, a gerência da ordem e o
Estado de Direito são resultantes do biopoder, entrelaçando soberania jurídica,
disciplina normalizadora e biopolítica reguladora do fazer viver, do deixar
morrer e do matar em nome da vida.
A defesa dos Direitos Humanos assume um papel central na ordenação
dos discursos e distribuição de poderes, na perspectiva da soberania jurídica,
porém, persiste sendo, principalmente, um recurso retórico e de baixa eicácia,
exceto quando utilizado para justiicar as hierarquias transnacionais e nacionais, em tempos da política como guerra travada por outros meios ou, ainda,
para banir refugiados, expulsar imigrantes e matar suspeitos de terrorismo
(HARDT; NEGRI, 2012). Contudo, em nome dos direitos e da proteção, muitos poderão morrer e, de forma racista, serem forjados como párias e refugos,
na racionalidade de defesa da sociedade.
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Fabricar os modos de ser como párias é um processo de subjetivação,
marcado por estratégias de governo das condutas de gestão da vida pelo deixar
morrer aqueles que são transformados em lixo a ser descartado pelos desvios
sociais diante das normas e pelas rupturas com as leis no Estado Democrático
de Direito. Os que não se adequam ao formato do estilo de vida empresarial
no neoliberalismo são encaminhados aos espaços de recolhimento/internação,
para serem supostamente “reciclados” e, caso rejeitem essa prática docilizadora, poderão desaparecer e/ou icar aprisionados nos guetos urbanos, nos
asilos modernos e nas valas clandestinas. As placas das cidades irão gloriicar
os chamados cidadãos de bem, os que aceitam circular pela segurança dos
mercados da saúde, do empresariamento da educação, da família, dos afetos,
das amizades e dos lugares outrora públicos.
Deixar morrer e matar os que se tornam opositores, questionadores e resistentes foi uma tônica da regulação política e militar das cidades. Movimentos e corpos foram e são criminalizados, medicalizados e judicializados. No
Brasil, isso é muito claro nas primeiras décadas do século XX, pelo ideário e
práticas higienistas, eugenistas e de segregação em asilos. A noção de higiene
social e a esterilização dos considerados párias sociais foram recorrentes e se
atualizaram na ditadura militar, com a Doutrina de Segurança Nacional, e, na
Nova República, em nome do desenvolvimento e da ordem social.
Entretanto, nos últimos anos, novas leis foram criadas no plano das penas
alternativas, como as multas e a prestação de serviços comunitários. Simultaneamente, houve recrudescimento penal e ampliação da lógica punitiva no
cotidiano. Assim, uma elasticidade das penas, das punições e da normalização é negociada e aplicada no governo dos interesses. Os nomeados grandes
eventos, no Brasil, são exemplos de segurança, com mercado, com direitos,
regulação do espaço e policiamento. Movimentos nas ruas passam a ser alvo
da denominada vigilância ostensiva policial e até mesmo do uso das forças
armadas, em nome da paz.
Subjetividades com medo, inseguras, que clamam pela vigilância e pelas
técnicas mais duras (e também pelas mais inas) de controle e segurança irão
proliferar como vírus em mutação e contágio intensivo. Os pedidos e encomendas de segurança são antecipados pela oferta da mesma e pela estilização
de existências vigilantes e vigiadas, as quais não se furtam a sofrer todo tipo
de revista e a oferecer conissões, delações, votos e inanciamentos, em nome
das promessas securitárias de contenção do medo e da dor do desamparo social e subjetivo.
O uso de armas consideradas não letais, como balas de borracha, taser,
spray de pimenta, jatos de água e gás lacrimogênio foi exponencialmente am213
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pliado, nos meses de junho e de julho de 2013, durante manifestações nas ruas
brasileiras, em plena democracia, antecedendo os eventos mundiais esportivos
e ao longo do período da Copa das Confederações. Dispersar as revoltas era
o objetivo, mas, diante da frustração dessa tentativa e com a força aumentada
das resistências, novas tecnologias bélicas de vigilância foram adquiridas, leis
de exceção tramitam no Congresso, em nome da segurança, e civis vêm sendo
presos, nomeados de vândalos e de terroristas.
As remoções forçadas em decorrência de reformas para esses grandes
eventos para a política de higiene social e desenvolvimentista neoliberal brasileira nos apontam as exceções e o uso da violência do Estado contra os que
se organizam contra tais práticas sociais, ou contra aqueles que, mesmo desprovidos de cidadania, se interpõem como obstáculos à obsessão desenvolvimentista. A aprovação das leis de exceção para a realização da Copa trouxe inquietações nas cidades quanto às maneiras de gerir economica e politicamente
os espaços, as populações e as relações transnacionais, em nome do turismo,
da circulação monetária e da força de corporações.
Uma igura cara ao pensamento político de Agamben (2002), para abordar
o estado de exceção continuada em que vivemos, é a do refugiado, aquele desprovido de cidadania, ao qual não caberia a tutela do Estado, mas a das organizações humanitárias e da polícia. Estendendo essa igura à exceção instalada
pelos chamados grandes eventos, no Brasil, tais como a Copa e as Olimpíadas,
podemos pensar, quiçá, que novos refugiados emergem no interior das cidades. Aos novos refugiados, o Estado brasileiro parece reservar a violência
legítima e o diapasão sempre inclusivo do equívoco tático, nas operações de
polícia que visam a garantir a segurança. Para quem, ainal?
Cumpre advertir que uma tese central em Agamben reside em ver no campo, e não na cidade, o paradigma para pensar a biopolítica (CASTRO, 2012):
os recentes conlitos na comunidade carioca da Maré, com a entrada dos tanques blindados e com o levante local em prol da diminuição da violência policial e militar, fazem indagar se o que está se instalando nesse espaço é um
regime de exceção continuado, próprio aos campos de concentração, apartando-o do regime característico da cidade. Se a igura do campo é excessiva, talvez a igura do conhecido regime penal semiaberto esteja mais próxima, com
suas aberturas e fechamentos de acessos que divisam o espaço sem exterioridade, ainda que esta permaneça como plano para o exercício de liberdades.
Sociedade de controle: serviços, publicidade e mercado do espaço
As construtoras civis privatizaram a cidade, nos enclaves de condomínios e de empreendimentos marcados pela segregação espacial. O consumo
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de serviços, sua venda pelo investimento intensivo de marketing e no turismo
urbano, foi levado ao extremo do paroxismo de inclusão/exclusão/eliminação.
A construção civil, o lazer e as comunicações passaram a ser chamadas de
práticas de reciclagem dos centros antigos, nos planos de urbanização revitalizada, em nome da segurança e do lucro.
O desenvolvimento e progresso na compra e venda de serviços, no capitalismo de especulação, fora alçado à prática de regulação do trânsito e dos negócios inanciados na concorrência dos mercados. Deixar morrer em acidentes
de trânsito, nos barcos, carros, ônibus, aviões, nas bicicletas e ferrovias, passou a ser uma prática comum em muitos lugares, como controle populacional
e prática racista. Podemos citar a situação dos refugiados e dos imigrantes, dos
migrantes trabalhadores em deslocamento, das pessoas traicadas como escravas e daquelas que permanecem à deriva, nos mares e nas zonas de fronteira.
Em dívida permanente e modulações rápidas de controle, eventos e turismos foram agenciados pelas empresas e clubes esportivos ávidos por negócios
lucrativos no campo do entretenimento e da venda de sensações fugazes de
diversão (DELEUZE, 1992). As marcas e os estilos de vida na cidade foram
colados ao nomadismo do corpo organizado, na biopolítica.
Os corpos, nessa trama, são organizados e policiados, na disciplina dos
recortes estriados e dos processos de rostiicação. Porém, podem fazer proliferar corpos sem órgãos e povoar o deserto da racionalidade de segurança
(DELEUZE; GUATTARI, 1997). Esse jogo é incessante, pois as máquinas de
sobrecodiicação acionam seus axiomas e tentam fazer rostos de luxos dispersos em permanente captura, na sociedade de controle, que visam codiicar
e sobrecodiicar o espaço liso e os nomadismos não estratiicados. Ora, se a
cidade tem seus entremeios e zonas cinzas, por onde os gatos fogem e escapam, onde as brechas podem ser abertas por muitos lados, ao mesmo tempo,
os tempos presentes trazem novos perigos e outras possibilidades.
Segregar grupos constituídos como perigosos, cercar os bairros das cidades por classes sociais, fabricar guetos, fazer cordões sanitários nas nomeadas zonas de risco com as polícias das famílias, vigiar morros com exércitos
e policiais militares chamados de paciicadores, prender manifestantes que
protestam ou mesmo matá-los e torturá-los – o que tudo isso assinala de nós
mesmos e de nossas democracias, em tempos neoliberais?
Quem pode manter e gerar a miséria, e a desterritorialização-reterritorialização das favelas, salvo polícias e exércitos poderosos que coexistem com as democracias? Que social-democracia
não dá a ordem de atirar quando a miséria sai de seus territórios
ou guetos? Os direitos não salvam nem os homens, nem uma
ilosoia que se reterritorializa sobre o Estado Democrático.
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Os direitos do homem não nos farão abençoar o capitalismo.
E é preciso muita inocência, ou safadeza, a uma ilosoia da
comunicação que pretende restaurar a sociedade de amigos ou
mesmo de sábios, formando uma opinião universal, como ‘consenso’, capaz de moralizar as nações, os Estados e o mercado
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 139).
No caso do silenciamento dos movimentos sociais dissidentes, nas cidades, a rostiicação do Estado de Direito aciona o do monopólio da violência,
de acordo com Deleuze e Guattari (2007), para supostamente fazer reinar o
que se deine, politicamente, como paz nas cidades, na perspectiva de soberania jurídica contratualista. Nesse aspecto, Deleuze e Guattari (1997, p. 139)
airmam que “[...] os direitos dos homens são axiomas: eles podem coexistir no mercado com muitos outros axiomas, especialmente na segurança da
propriedade, que os ignoram ou ainda os suspendem, mais do que os contradizem”. Com efeito, o Estado de Direito não funciona sem um mercado da
violência, mesmo que institucionalizado pelo monopólio estatal da violência.
A compra e a venda de armas, de consultorias de segurança, de tecnologias
de comunicação aplicadas à vigilância dos corpos entra nesse agenciamento
inanceiro-técnico-policial de regulação da circulação no espaço.
É verdade que o capitalismo manteve como constante a extrema
miséria de três quartos da humanidade, pobres demais para a
dívida, numerosos demais para o coninamento: o controle não
só terá que enfrentar a dissipação das fronteiras, mas também a
explosão dos guetos e favelas (DELEUZE, 1992, p. 224).
Deleuze e Guattari (2007) nos deixaram um legado importante para interrogar o controle do marketing e do mercado de serviços, ao questionarem o
mapeamento do espaço pela segmentação estriada que recorta os circuitos e
os captura, fazendo-os operar como serviços, em um mercado, no capitalismo
mundial integrado por agenciamentos axiomáticos. A política não é apenas expressão jurídica de gestão das cidades e da circulação nas mesmas, pois opera
por experimentação e tateio. O que é interessante dessa airmação é que o Estado de Direito realiza apropriações das resistências no espaço, a partir das retiradas, dos avanços e de recuos nos cálculos referentes às decisões políticas.
Portanto, o capitalismo vai adicionando axiomas e os faz entrar em mutação, para lucrar e controlar rapidamente as tentativas de fuga. “Não há necessidade de icção cientíica para se conceber um mecanismo de controle que dê,
a cada instante, a posição de um elemento em espaço aberto, animal numa reserva, homem numa empresa (coleira eletrônica)” (DELEUZE, 1992, p. 224).
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Dromopolítica, velocidade e capitalização do tempo
De acordo com Coimbra (2001), a Operação não é algo limitado a uma
realidade especíica e que icou no passado; pois, para ela, as políticas de
segurança pública continuam sendo intensamente militarizadas no presente.
Outro aspecto ressaltado por Coimbra é que o general Newton Cerqueira, que
cheiou a Operação Rio, foi um agente no serviço de inteligência do Exército, na Bahia, cheiando a operação que resultou na morte, ou melhor, no
assassinato de Carlos Lamarca. À época da produção do livro em tela, quem
cheiava a Operação Rio era o coronel Josias Quintal, um oicial que, durante
a Ditadura Civil-Militar brasileira, prestou serviços para o setor de informação
do DOI-Codi.
As UPPs foram criadas com a promessa de ocupar as favelas cariocas,
instalando nelas uma suposta paz, ao demarcar a conquista de um território
perdido pelo Estado outrora, por ser comandado pelo tráico de drogas. A perspectiva de segurança armada, militar, que articulava forças militares estaduais
e nacionais, teve uma atualização nessa nova política, pós-Operação Rio. No
presente, há 39 UPPs no Rio de Janeiro. Para Misse (2011), o jogo do bicho,
a venda ilegal de armas, as milícias armadas e o tráico de drogas produziram
uma situação complexa, no âmbito dos crimes e das maneiras do monopólio
estatal de a violência intervir.
Conforme Virílio (2008), cada vez mais as fronteiras anteriormente delimitadas pelos Estados passaram para as cidades, que ele deine como superexpostas. Os efeitos da mundialização da economia e da concorrência entre
grandes corporações também se colocam na reorganização urbana. Construir
para prevenir riscos de terrorismo, fazer circular bens e modular os aglomerados classiicados como perigosos se torna mecanismo político de governo das
cidades e das populações.
Uma polícia do ar e das fronteiras é instalada e os drones poderiam ser
pensados, juntamente com os helicópteros da polícia, os radares e satélites,
como máquinas de vigilância aérea. Nas fronteiras entre cidades, as revistas
policiais nas rodovias, nos pedágios e na vigilância pelas câmeras da autoestrada são maneiras de governar securitariamente os espaços e os trajetos,
nesse cenário. Ao mesmo tempo em que os intramuros e extramuros foram
deslocados pelas tecnologias de comunicação, de telecomunicação e dos
transportes, novos enclaves urbanos ganham presença, com os cercos militares às periferias dos centros.
Uma realidade geopolítica dá lugar a uma deportação instantânea, em que
o terminal não é mais o ponto inal, mas um local de outros acessos. Há uma
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contração dos espaços, na longa duração televisual e na fragmentação do tempo de duração técnica da grade dos programas.
O urbanismo foi deslocado pela transmissão, pelo trânsito e pela transferência. Uma desregulamentação topológica é seguida de uma tecnológica, da
arquitetura de papéis à arquitetura vídeo-eletrônica, um mal-estar é forjado
e passa a inquietar. Na ontologia do presente, como iremos resistir a favor
do tempo e contra o tempo, com a coragem de problematizar, de lutar e de
enfrentar essas forças centrípetas das cidades superexpostas? O governo de
si e dos outros, cuidado de si e da cidade, estilística da existência e ética, na
coragem da verdade, políticas de existência e agonística na crítica do presente (FOUCAULT, 2010a). Fazer perguntas que desnaturalizam as práticas e
permitem pensar os intoleráveis do presente tem sido relevante, nos cenários
tão difíceis em que vivemos, ou melhor, em que sobrevivemos, como testemunhas amedrontadas e apavoradas.
Heterotopias, parresía e modos outros de existência na cidade
Constituir espaços outros se torna difícil, quando a segurança é cada vez
mais lexível e se espraia como seguridade ágil, na esfera da velocidade e da
política. Por isso, Foucault (2010b) destaca que fazer a crítica é tornar difícil
o gesto mais simples. Essa postura só é possível na abertura do espaço para a
interrogação permanente, como experiência de vida para incitar as lutas e enfrentamentos, diante dos intoleráveis de nosso tempo. Com efeito, perguntarse qual é o campo atual das experiências possíveis é uma maneira de resistir,
no plano das governamentalidades securitárias e punitivas de controle dos
corpos e da cidade. Em decorrência, postula-se uma ontologia do presente,
problematizando o que acontece hoje. Isso não ocorre sem a abertura de um
espaço de risco, em que a própria existência é colocada em jogo, pela materialização da palavra franca (FOUCAULT, 2010a).
Nesse sentido, a genealogia, como insurreição e inscrição histórica dos
corpos, se tornou uma dramática no governo de si e da cidade, em que a parresía como coragem da verdade se colocou como premente para muitos que
buscavam e acreditavam na luta, por meio das perguntas desnaturalizadoras
da democracia brasileira. Ora, assim, a liberdade de falar e de se manifestar
não pode se restringir a uma prerrogativa legal, ganhando mais vigor na airmativa coragem de dizer a verdade e pagar o preço de dizê-la, neste tempo em
que vivemos. O drama de formular o dizer verdadeiro como crítica política,
em um exercício ético e estético, em que subjetivar-se pela parresía acontece
na imanência da vida na cidade.
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A presença nas ruas em resistência, no Brasil atual, em plena democracia
no século XXI, em clara instalação de perguntas do que se tem feito conosco,
trouxe vários acontecimentos dos riscos de habitar a cidade, na dimensão pública de fazer ranger os questionamentos das governamentalidades constituídas pela prática de gerenciar pela segurança. Dizer o que se pensa em cartazes,
em faixas, na frente de forças policiais e midiáticas teve um alto preço para
muitos manifestantes: morte, prisão, perdas de visão, dores e marcas, ao ser
alvo de balas de borracha, de choques com taser, de ardências provocadas
pelo spray de pimenta, mal-estares pela respiração de gás lacrimogênio, entre
outras retaliações como as que acontecem no chamado complexo da Maré, no
Rio de Janeiro, ocupado por forças militares.
O discurso dos manifestantes em face das injustiças é agonístico, na medida em que se apresenta posicionado na luta na qual se engajava, sem medo
dos que são mais fortes e estão armados pela lei e pelas tecnologias do monopólio da violência. Utilizar vinagre, máscaras, vestir-se para lutar e enfrentar,
mesmo que em clara disparidade de forças, é a parresía, na agonística de viver
arriscando-se por coragem da verdade.
No Rio de Janeiro, afrontar a ordenação de paciicação dos morros é descer/transbordar/criar a cidade para as manifestações, para os fóruns de debate,
e isso implicou numa reordenação insuspeitada, já que a cidade, na perspectiva cindida dos ordenados e dos desordenados, prevê seus circuitos de circulação na lógica securitária.
As práticas de dispersão com violências policiais às manifestações de junho de 2013, na greve dos professores no Rio de Janeiro, contra os protestos de
jovens frente aos aumentos das passagens, em vários lugares do Brasil, diante
das indignações contra os gastos para a Copa e contra as leis de exceção para a
realização desse evento, foram acontecimentos de intenso uso securitário das
forças policiais, dos aparatos militares e de estratégias criminalizadoras, com
a prisão de estudantes, de professores, de trabalhadores, com ferimentos em
jornalistas e em muitos que lutavam pela apropriação da cidade, na crítica à
privatização de seus espaços públicos.
Ora, simultaneamente às tentativas de desarquivar os documentos da Ditadura Civil Militar brasileira e de gerar novos arquivos para resistir à violência
institucional dos autoritarismos, presenciamos novos acontecimentos, documentos vivos das práticas de segurança nas democracias, as quais atualizam
torturas, prisões, desaparecimentos, encarceramentos, internações e desqualiicações das lutas contra as técnicas de paciicação do presente, em nome da
ordem, do desenvolvimento social e econômico, do turismo dos grandes eventos e dos interesses das construtoras, dos corporativismos e das empreiteiras.
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Para Foucault (2010a), a parresía diz respeito aos que se ocupam da cidade, em um exercício político de dizer a palavra franca, com todo o custo
penoso de fazê-lo. Ora, a democracia pode signiicar a igualdade de palavra
no campo legal; todavia, em que medida esse direito se realiza, de fato? Na
verdade, mais que direito de falar, é preciso lutar pela fala verdadeira, no presente, correndo riscos diversos, inclusive o de perder a vida.
Romper com os campos de concentração a céu aberto é possível, na rede
múltipla das práticas de governamentalidade neoliberal? Não há democracia,
de fato, sem parresía, ou seja, a cidade, como lugar de interesse público, é esvaziada, quando povoada de aduladores e impotentes amedrontados. Todavia,
há como atualizar a parresía formulada por Michel Foucault, a partir de um
determinado contexto político, no presente?
A agonística na cidade e da cidade é colocada na tensão entre saberes,
poderes e subjetivações, em meio às governamentalidades. Forjar espaços outros de possíveis em face dos controles e extermínios do fazer viver e deixar
morrer, da disciplina docilizadora, da biopolítica empresarial e da defesa da
sociedade racista é a aposta em outras maneiras de viver e experimentar a
crítica política e a avaliação ética das condutas, a qual só pode ser feita com a
parresía em todas as suas implicações. “Não nos falta comunicação, ao contrário, nós temos comunicação demais, falta-nos criação. Falta-nos resistência
ao presente” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.140).
Considerações inais
Concluímos, provisoriamente, airmando que a heterotopia como inquietação nos faz pensar na parresía, em que a maneira de enfrentar os fortes, de
governar a cidade e de se governar implica colocar-se sob toda sorte de julgamentos, ao falar a verdade e interpelar a muitos. O parresiasta, ou seja, aquele
que ousa falar a verdade com coragem e se arrisca como quem se subjetiva
apresentando a franqueza e busca a justiça, arrisca-se para ecoar os intoleráveis que o inquietam, na atualidade. “Acreditar no mundo signiica principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem ao controle,
ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos” (DELEUZE, 1992, p. 218).
Pensar fora da menoridade e resistindo à tutela é conduzir-se por perguntas interrogantes dos acontecimentos do presente, no que este nos inquieta,
e, em especial, pensar sem ser dirigido por outrem. O parresiasta fala em seu
nome, não diz o futuro e nem interpreta, ele deixa algo a fazer com o que disse
(FOUCAULT, 2011). Para pensar e romper com a menoridade, é preciso ter
coragem. Com efeito, a parresía é uma atitude crítica e não uma proissão,
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cujo “[...] adversário técnico [...] é a retórica; a lisonja seu inimigo” (RAGO,
2011, p.52), ambos ligados, já que as artes retóricas são instrumentos privilegiados dos ardis da lisonja.
Coragem de airmar as afecções sem ceder à utopia da velocidade que
nos torna demasiadamente ágeis e incapazes. Fazer da vida um testemunho
sem temor, um ethos de recusa política às injustiças (FOUCAULT, 2010a),
percorrer um espaço, cuidar de si, como trabalho ético, estilístico e político,
traz a implicação crítica de elaborar perguntas no presente em que se vive;
tomar a palavra e lutar por ela, com todos os riscos correlatos. Os arquivos, os
escritos, os movimentos sociais, as pesquisas e tantas outras armas poderão
ser dispositivos de parresía, para efetuar a história problematizadora do presente. Pensar a ontologia histórica de nós mesmos consiste em fazer falar e ver
outras versões e outros olhares da cidade, em deslocamento.
A liberdade de falar não se limita à isegoria (direito constitucional à palavra como cidadão), pois a parresía é a luta pela fala verdadeira e crítica, em
qualquer regime e lugar, como exercício ético e político. A coragem como um
modo de vida e um ato político na cidade é possível para parresiastas, os quais
ousam correr riscos de colocar em xeque regimes de veridicção, não recorrem
à retórica senão taticamente, e endereçam suas questões ao coração das cidades. Vale perguntar, nessa direção, se a escrita acadêmica, cuja circulação é
restrita a determinados grupos de leitores e submetida cada vez mais a leituras
rápidas, em tempos de produtivismo acadêmico neoliberal, pode se conigurar
como parresía.
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Submissão em: 22/10/2014
Revisão em: 07/11/2014
Aceite em: 18/11/2014
Flávia Cristina Silveira Lemos é Psicóloga/UNESP. Mestre em Psicologia Social/
UNESP. Doutora em História/UNESP. Bolsista de produtividade em pesquisa
CNPQ2. Profa. adjunta IV de psicologia social/UFPA. Endereço para correspondência: Avenida Augusto Côrrea, n. 01. Bairro: Guamá. Belém/PA. CEP 66.000-000.
PPGP/IFCH-UFPA
E-mail: laviacslemos@gmail.com
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R. Ci. Hum., v. 48, n. 2, p. 204-223, jul-dez 2014
Dolores Galindo é Psicóloga/UFPE. Mestre e Doutora em Psicologia Social/PUC
-SP. Profa. adjunta III em Psicologia Social/UFMT.
E-mail: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com
Kátia Faria Aguiar é Psicóloga. Mestre e Doutora em Psicologia. Profa de
Psicologia Social/UFF.
E-mail: katiafaguiar@uol.com.br
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