Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
D536
Diálogos com a literatura portuguesa II / Organizadores Aion
Roloff, Antonio Augusto Nery, Eduardo Soczek Mendes. – São
Paulo: Pimenta Cultural, 2023.
Livro em PDF
ISBN 978-65-5939-625-2
DOI 10.31560/pimentacultural/2023.96252
1. Literatura portuguesa. 2. Autores portugueses. I. Roloff, Aion
(Organizador). II. Nery, Antonio Augusto (Organizador).
III. Mendes, Eduardo Soczek (Organizador). IV. Título.
CDD P869.09
Índice para catálogo sistemático:
I. Literatura portuguesa : Autores portugueses
Janaina Ramos – Bibliotecária – CRB-8/9166
ISBN da versão impressa (brochura): 978-65-5939-624-5
Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados.
Copyright do texto © 2023 os autores e as autoras.
Copyright da edição © 2023 Pimenta Cultural.
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Editora executiva Patricia Bieging
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Revisão Andrea Bittencourt
Organizadores
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Antonio Augusto Nery
Eduardo Soczek Mendes
PIMENTA CULTURAL
São Paulo . SP
Telefone: +55 (11) 96766 2200
livro@pimentacultural.com
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Julierme Sebastião Morais Souza
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Laionel Vieira da Silva
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Anísio Teixeira, Brasil
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Faculdade de Artes do Paraná, Brasil
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Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
Marcio Bernardino Sirino
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Marcos Pereira dos Santos
Universidad Internacional Iberoamericana del Mexico, México
Marcos Uzel Pereira da Silva
Sebastião Silva Soares
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da Fonseca, Brasil
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Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
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Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
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Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
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Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil
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Samuel André Pompeo
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil
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Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Tadeu João Ribeiro Baptista
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
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Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
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Universidade de São Paulo, Brasil
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Thiago Medeiros Barros
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Tiago Mendes de Oliveira
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Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil
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Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Wellington Furtado Ramos
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil
Wellton da Silva de Fatima
Instituto Federal de Alagoas, Brasil
Yan Masetto Nicolai
Universidade Federal de São Carlos, Brasil
PARECERISTAS E REVISORES(AS) POR PARES
Avaliadores e avaliadoras Ad-Hoc
Alessandra Figueiró Thornton
Jacqueline de Castro Rimá
Universidade Luterana do Brasil, Brasil
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Alexandre João Appio
Lucimar Romeu Fernandes
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil
Instituto Politécnico de Bragança, Brasil
Bianka de Abreu Severo
Marcos de Souza Machado
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Universidade Federal da Bahia, Brasil
Carlos Eduardo Damian Leite
Michele de Oliveira Sampaio
Universidade de São Paulo, Brasil
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Catarina Prestes de Carvalho
Pedro Augusto Paula do Carmo
Instituto Federal Sul-Rio-Grandense, Brasil
Universidade Paulista, Brasil
Elisiene Borges Leal
Samara Castro da Silva
Universidade Federal do Piauí, Brasil
Universidade de Caxias do Sul, Brasil
Elizabete de Paula Pacheco
Thais Karina Souza do Nascimento
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil
Instituto de Ciências das Artes, Brasil
Elton Simomukay
Viviane Gil da Silva Oliveira
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil
Universidade Federal do Amazonas, Brasil
Francisco Geová Goveia Silva Júnior
Weyber Rodrigues de Souza
Universidade Potiguar, Brasil
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil
Indiamaris Pereira
William Roslindo Paranhos
Universidade do Vale do Itajaí, Brasil
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
PARECER E REVISÃO POR PARES
Os textos que compõem esta obra foram submetidos para
avaliação do Conselho Editorial da Pimenta Cultural, bem
como revisados por pares, sendo indicados para a publicação.
Sumário
Apresentação ................................................................................. 13
Prefácio – Diálogos com a Literatura Portuguesa:
do prazer da literatura aos abismos da alma ................................... 14
Capítulo 1
Padre Vieira:
Demônios ou Políticos, a quem escutar? ......................................... 24
Valeria Evencio de Carvalho
Capítulo 2
Circunstâncias, vingança e prece:
o surgimento não miraculoso de Portugal
em O Bobo (1128) de Alexandre Herculano..................................... 38
Eduardo Soczek Mendes
Capítulo 3
Camilo e O Santo da Montanha .................................................... 66
Antonio Augusto Nery
Capítulo 4
A possível parcialidade do narrador
em Os Fidalgos da Casa Mourisca de Júlio Dinis ........................ 87
Ranieri Emanuele Mastroberardino
Capítulo 5
Embates entre a tradição e modernização
em As Pupilas do senhor reitor (1867),
de Júlio Dinis ............................................................................... 104
Sara Vitória Silva Monteiro
Capítulo 6
Santidade e “Relaxações”
de mulheres em A Relíquia ......................................................... 124
Andrea Bittencourt
Capítulo 7
Os conceitos de Ludwig Feuerbach
em A Relíquia, de Eça de Queirós:
uma análise da personagem
D. Patrocínio das Neves ................................................................ 144
David Alves Paulino
Capítulo 8
Figurações do grotesco e a representação
do indivíduo chinês em O Mandarim,
de Eça de Queirós ....................................................................... 164
Xênia Amaral Matos
Capítulo 9
A educação religiosa n’As Farpas,
de Eça de Queirós ....................................................................... 182
Wilian Augusto Inês
Capítulo 10
A instrumentalização do papel feminino
na sociedade portuguesa do século XIX
nos contos Uma história verdadeira
e A perceptora, de Maria Amália Vaz de Carvalho ..................... 202
Patrícia dos Santos Andrade
Capítulo 11
O teatro japonês em diálogo com
a literatura portuguesa: Kirishitan
Nobunaga e o imaginário ocidental ............................................... 218
José Carvalho Vanzelli
Capítulo 12
Família, voz feminina e ecos da primeira
metade do século XX português
em Casa sem pão, de Maria Archer............................................ 243
Eliane Cristina Perry
Capítulo 13
A confissão de Lúcio ou as confissões
de Ricardo? - Uma análise da obra
de Mário de Sá-Carneiro ............................................................... 260
Aion Roloff
Capítulo 14
Literaturas a contrapelo:
a redenção dos oprimidos nas obras
de Miguel Torga e José Saramago ................................................ 285
Charles Vitor Berndt
Capítulo 15
Santa Melânia e o feminino sagrado .......................................... 303
Bruno Kutelak Dias
Capítulo 16
Memória e identidade portuguesa
em Os memoráveis, de Lídia Jorge ............................................ 317
Marco Aurélio Pereira Mello
Capítulo 17
Os lugares pelos quais o tempo passou:
O senhor Voltaire e o século XX
(Gonçalo M. Tavares)..................................................................... 337
Robson José Custódio
Capítulo 18
Deus, pátria e família: um estudo sobre
o totalitarismo em O nosso reino
de Valter Hugo Mãe ....................................................................... 356
Anna Carolina Legroski
Organizadores ............................................................................. 377
Autores e autoras ........................................................................ 378
Índice Remissivo ......................................................................... 383
O medo provém de um certo cultivo da imaginação, da consideração extrema pela vida, que é distinta do amor por ela; considera-se
aquilo que se teme perder, mas amar é sempre um estado de audácia,
de êxtase, situação de jogador que lança os seus dados e arrisca
A Sibila, Agustina Bessa-Luís, 1954.
Dormiu cada qual como pôde, com os seus próprios e secretos sonhos, que os sonhos são como as
pessoas, acaso parecidos, mas nunca iguais
Memorial do Convento, José Saramago, 1982.
sumário
12
Apresentação
A seleta de textos que apresentamos – de Padre António Vieira
(1608-1697) a Valter Hugo Mãe (1971) –foi organizada cronologicamente
pelo ano de nascimento dos autores e das autoras, os quais tiveram as
suas produções analisadas pelos integrantes do grupo de pesquisa do
Centro de Estudos Portugueses da Universidade Federal do Paraná.
Quando há repetições de análises sobre um mesmo escritor,
levamos em consideração a data de publicação da obra a ser averiguada, considerando da mais antiga até a mais recente. E, por fim,
quando dois investigadores trataram de uma mesma produção de um
autor, estabelecemos a disposição dos artigos científicos conforme a
ordem alfabética do nome dos pesquisadores.
Recordamos, ainda, que estes textos, que tratam dos mais diferentes autores, mas sempre em algum diálogo com Portugal e com
a Literatura Portuguesa, são um tributo ao centenário de dois grandes expoentes das letras lusitanas: Agustina Bessa-Luís (1922-2019)
e José Saramago (1922-2010). Por isso, não poderia ser diferente que
eles estejam destacados em nossas epígrafes iniciais.
Aion Roloff
Antonio Augusto Nery
Eduardo Soczek Mendes
Organizadores
sumário
13
Prefácio
Diálogos com a Literatura Portuguesa:
do prazer da literatura aos abismos da alma
O trabalho com a literatura nas universidades brasileiras, cada
vez mais, nesses últimos anos, tem sido um árduo desafio devido à
perda de investimentos e desvalorização de seus profissionais. De
modo geral, as atividades de ensino enfrentam, há tempos, esses desafios, porém a situação tem se agravado nas áreas do conhecimento
relacionadas às humanidades, cada vez mais atacadas por governos
autoritários e projetos econômicos restritivos fundamentados no utilitarismo imediatista e no neoliberalismo. Embora a situação seja grave e
preocupante, é justamente no esforço de valorizar nossa humanidade
que os diferentes seguimentos conformadores da sociedade podem
se amparar e fortalecer meios de resiliência. Nesse sentido, as humanidades, ou seja, as artes, literaturas, linguagens e ciências humanas,
desempenham um papel fundamental de compreensão e de valorização das sensibilidades características do “humano”.
Nesse sentido, a universidade constitui um espaço de debate, de florescimento de ideias e de reflexões sobre a sociedade, o ser
humano e suas criações, sobretudo, no contexto de um Programa de
Pós-Graduação em Letras, que objetiva aperfeiçoar profissionais para a
docência e a pesquisa em estudos literários, como também refletir sobre
essa prática. Esse tem sido o mote de desenvolvimento dos trabalhos
do grupo de estudos coordenado por Antonio Augusto Nery e vinculado
ao grupo de pesquisa Diálogos com a Literatura Portuguesa, ao longo
de seus dez anos de existência. As atividades do grupo têm fomentado tanto o alargamento dos estudos e conhecimentos desenvolvidos
sumário
14
na graduação ou pós-graduação e respectivas pesquisas quanto o prazer e a fruição do conhecimento do mundo e da natureza humana por
meio da leitura de variadas obras pertencentes à Literatura Portuguesa.
Antonio Candido, célebre defensor do “direito à literatura”,do direito a uma formação completa em seu sentido pleno, comenta, em Formação da literatura brasileira, que uma literatura é considerada madura
quando não aceita “o valor aparente do comportamento e das ideias”
e quando o escritor apresenta uma pesquisa consistente da psicologia
humana para construir suas personagens, porque auxilia “a vislumbrar
em nós mesmos, e nos outros homens certos abismos sobre os quais
a vida de relação constrói as suas pontes frágeis e questionáveis [...]”,
concluindo que a maturidade da literatura revela-se “quando experimentamos a vertigem de tais abismos” (CANDIDO, 1997, p. 193).
O crítico explica como a literatura possibilita o conhecimento da
alma humana em sua completude, com suas qualidades, idiossincrasias, incoerências e negatividade. Em contrapartida, Roland Barthes
assinala que a literatura proporciona ao leitor a possibilidade de uma
leitura de prazer ou de fruição. A primeira propicia o prazer por contentamento, por coincidir com as perspectivas e parâmetros socioculturais e resultar em uma prática confortável. Já a leitura de fruição é
fruto do desconforto, do sentido de perda, por fazer hesitar “as bases
históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças” (BARTHES, 1987, p. 22),
por provocar uma crise com a linguagem.
Os dois pesquisadores salientam o fascínio exercido pela literatura ao possibilitar o conhecimento de diversos aspectos da vida e
da humanidade, positivos e negativos, a partir da linguagem. O deslocamento de realidade favorecido pelo texto, a entrega a um universo
de possibilidades, a imersão em outro mundo construído pela linguagem, na experiência de emoções, paixões e sentimentos agradáveis ou
sumário
15
desagradáveis que o texto artístico propõe, fazem da literatura uma ferramenta eficaz de persuasão, de formação, de impressão de opiniões –
poder reconhecidamente ameaçador a toda forma de governo autoritário, que vê na arte e, em particular, na literatura uma ameaça à vontade de
dominação. Por não apresentar verdades absolutas ou inquestionáveis,
mas, pelo contrário, oferecer infinitas possibilidades de conhecimento
dos abismos humanos, de suas insondáveis motivações, subverte a ordem, propõe novas perspectivas e, por isso, é libertária. Diferentemente
das outras artes que se utilizam das formas plásticas, das imagens, das
formas, das cores ou do som, a palavra, matéria-prima da literatura, necessita do leitor, de sua capacidade cognitiva e de imaginação criadora,
que a transfigura em ideias. Essa atividade lúdica é também crítica por
alargar os horizontes e favorecer a reflexão, o questionamento do que
está estabelecido para o que poderia vir a ser.
Ora, se o conhecimento do mundo e da alma humana é alargado pela literatura, no caso do Brasil, o conhecimento da Literatura Portuguesa, tanto pelas similitudes quanto pelas dissemelhanças, muito
diz sobre nossa cultura e suas particularidades. Não somente estende
nossos horizontes, como também aprofunda a instrução sobre nossas origens e desenvolvimento como nação interligada a Portugal pela
história, pela língua e por diversos outros aspectos, ladeados por um
mar de diferenças cujas fontes são constituídas por línguas, culturas
e etnias, autóctones e africanas, que compuseram e compõem nosso
país. Os diálogos propostos pelo nome do grupo e repetidos no título
deste livro constituem palavra-chave dos trabalhos realizados.
Desde a publicização do primeiro volume de Diálogos com a
Literatura Portuguesa, em 2020, reunindo dez capítulos, a continuidade
das atividades e de sua divulgação é coroada com o crescimento das
investigações e o fortalecimento da publicação com este segundo volume, finalizado no ano em que o grupo de pesquisa homônimo à obra
completa uma década de existência. Em suma, o objetivo desta segunda
sumário
16
edição de Diálogos com a Literatura Portuguesa é contribuir para o
trabalho teórico, crítico e analítico de diferentes perspectivas acerca
da Literatura Portuguesa, oferecendo, sobretudo aos estudantes de
Letras e a todos que se interessam pela área, textos de apoio para
aprofundamento de seus estudos e interesses teóricos e reflexivos.
Cada trabalho aqui apresentado tem como proposta o estabelecimento de um diálogo crítico em diferentes níveis de aprofundamento, em
consonância com a proposta do grupo de conjugar graduandos, graduados, pós-graduandos, pesquisadores, docentes e público externo
à universidade, no intuito de divulgação das investigações e pesquisas
desenvolvidas ao longo de suas atividades.
Assim sendo, esses estudos oferecem-se como práticas dialogantes por diversos caminhos e o que une todos é a dedicação à Literatura Portuguesa em um amplo espectro de temas, autores e períodos. Do século XVII de Padre Antônio Vieira à contemporaneidade de
Lídia Jorge, Natália Correia, José Saramago, Valter Hugo Mãe e Gonçalo Mendes Tavares; do século XX de diversos desdobramentos, representados aqui por Mário de Sá-Carneiro, Miguel Torga, Maria Archer
e Osanai Kaoru, aos destacados oitocentistas Alexandre Herculano,
Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e Eça de Queirós. O rico conjunto é
formado por 18 estudos que buscamos apresentar de forma breve, no
intuito de estimular a leitura completa, delineando o instigante material
das pesquisas realizadas.
Destarte, nossos leitores poderão apreciar, no primeiro capítulo:
Padre Antônio Vieira: demônios ou políticos, a quem escutar? Embora elaborado em 1645, segundo preocupações de evangelização
daquela época, a análise efetivada pela pesquisadora Valéria Evencio
de Carvalho, além de salientar a maestria de Vieira, não deixa de evidenciar a atualidade da crítica aos maus políticos, à realeza e ao poder
clerical, cujas ações são contrárias aos valores cristãos e distantes das
sumário
17
virtudes divinas, mesmo quando se comportavam como fiéis participantes da Eucaristia.
A revisitação da história portuguesa sob um olhar crítico e desmitificado constitui a tônica do romance O bobo, de Alexandre Herculano. A investigação acurada de Eduardo Soczek Mendes, no capítulo
intitulado Circunstâncias, vingança e prece: o surgimento não miraculoso de Portugal em O bobo (1128), de Alexandre Herculano,
discute, em diálogo com os trabalhos de Ana Isabel Buescu, Eduardo
Lourenço, György Lukács, Maria de Fátima Marinho e Paulo Motta Oliveira, como a arquitetura narrativa relata as origens de Portugal questionando os mitos fundadores caudatários da vontade divina em favor
da história, funcionando também como um meio de Herculano refletir
sobre os diferentes acontecimentos que abalaram o país na primeira
metade do século XIX.
Em contrapartida, um olhar crítico à religião, à religiosidade e
aos religiosos, similar em alguns aspectos ao de Herculano, pode ser
percebido em O santo da montanha, de Camilo Castelo Branco. Essa
perspectiva é desenvolvida por Antonio Augusto Nery, em Camilo e O
santo da montanha (1866). O pesquisador relaciona tanto o período em que a história transcorre (final do século XVII e início do XVIII)
quanto o contexto de publicação da obra como significativos índices
da necessidade de discutir a existência de um número preocupante
de maus religiosos, sem vocação genuína e voltados à hipocrisia e às
ações torpes, protegidos em conventos e mosteiros, que possibilitam
a livre ação da opressão religiosa em favor de desejos escusos.
Outro escritor romântico, cujas obras comparecem nesta coletânea, é Júlio Dinis. No trabalho nomeado Embates entre tradição e
modernização em As pupilas do senhor reitor (1867), de Júlio Dinis, Sara Vitória Silva Monteiro propõe uma análise crítica do romance
no intuito de reavaliar a visão genérica do cânone sobre a produção
do escritor ser caracterizada pela superficialidade e pelo otimismo.
sumário
18
Desse modo, a autora busca salientar como Dinis lança mão de diferentes elementos literários para encenar tensões sociais e levar à
reflexão a respeito do contexto vivido pelas personagens, também
relacionado às modificações do contexto sociocultural português na
segunda metade do século XIX.
A segunda obra de Dinis é investigada por Ranieri Emanuele
Mastroberardino, que parte de reflexões de historiadores acerca do cenário político-social na segunda metade de oitocentos, em especial, a
consolidação dos ideais liberais burgueses em Portugal, para examinar
a parcialidade do narrador no estudo intitulado A possível parcialidade do narrador em Os fidalgos da casa mourisca, de Júlio Dinis. A
investigação empreendida desvela que, mediante comentários críticos
sutilmente favoráveis à causa liberal, a instância narrativa se desprende da perspectiva neutra convencional.
O capítulo seguinte, propõe-se a examinar a figura feminina no
contexto dos comportamentos vistos como santos ou impróprios, intitulado Santidade e “relaxações” de mulheres em A relíquia, de
Andrea Bittencourt. O trabalho analítico acerca da representação da
mulher na sociedade lisboeta do século XIX parte do paralelo entre a
coletânea de crônicas As farpas (1871) e o romance A relíquia (1887),
de Eça de Queirós, para verificar se a construção das personagens do
romance Adélia e Miss Mary, antagônicas à Dona Patrocínio – beata
amarga e puritana –, apresenta ressonâncias das ideias sobre a mulher
enunciadas pelo autor nas crônicas.
A apreciação cuidadosa de As farpas também é assunto do
capítulo A educação religiosa n’As farpas, de Eça de Queirós, de
Wiliam Augusto Inês, cujo enfoque considera a influência dos princípios católicos sobre a sociedade portuguesa para discutir as críticas
presentes nas crônicas publicadas por Eça de Queirós, entre 1871 e
1872, a respeito do ensino e dessa influência católica na educação em
Portugal, considerada negativa.
sumário
19
O mandarim é outra obra de Eça investigada neste volume. Em
Figurações do grotesco e a representação do indivíduo chinês em
O mandarim, de Eça de Queirós, Xênia Amaral Matos, baseando-se
em estudos de E. Said e H. Bhabbha sobre Orientalismo, perscruta a
utilização da estética grotesca, efetivada pelo autor na construção de personagens chinesas na novela, como um instrumento de crítica ao comportamento dos portugueses em relação ao Oriente e a seus habitantes.
De outro lado, o romance A relíquia e a religião cristã são analisados por David Alves Paulino no trabalho Os conceitos de Ludwig
Feuerbach em A relíquia, de Eça de Queirós: uma análise da personagem D. Patrocínio das Neves. Conforme o título autoexplicativo,
o estudo, a partir das descrições estereotipadas plenas de ironia realizadas pelo narrador-personagem Teodorico Raposo acerca da tia D.
Patrocínio – a Titi–, em confronto com os conceitos desenvolvidos por
Feuerbach, revela que o escritor utilizou de alguns desses conceitos
filosóficos, como a alienação, a antinaturalidade e o milagre, na caracterização de sua personagem.
A respeito do espectro de autoria feminina e discussão da condição da mulher, organiza-se o texto designado A instrumentalização do
papel feminino na sociedade portuguesa do século XIX nos contos
Uma história verdadeira e a Perceptora, de Maria Amália Vaz de Carvalho. Patrícia dos Santos Andrade desenvolve a discussão salientando
como a autora dos contos, preocupada com a educação formal, defendia uma formação que instrumentalizasse a mulher para o exercício de
seus papéis sociais no contexto da segunda metade de oitocentos.
José Carvalho Vanzelli, no ensaio O teatro japonês em diálogo
com a Literatura Portuguesa: Kirishitan Nobunaga e o imaginário
ocidental, tece considerações relativas à peça Kirishitan Nobunaga
(1926), do dramaturgo Osanai Kaoru, e ao contexto japonês do século
XVI, período de ambientação do enredo, com o intuito de estabelecer
interações com as obras portuguesas quinhentistas História de Japam,
sumário
20
do padre jesuíta Luís Fróis, e Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto,
visando a discutir imagens e ideias equivocadas ou autênticas sobre o
Japão presentes no imaginário ocidental.
Eliane Cristina Perry no capítulo intitulado Família, voz feminina
e ecos da primeira metade do século XX português em Casa sem
pão, de Maria Archer, propõe uma análise da deterioração das relações familiares e do papel subalterno destinado às mulheres, em uma
perspectiva de aproximação inter-relacional com o panorama político,
social e histórico-cultural de Portugal no período.
No artigo A confissão de lúcio ou as confissões de Ricardo?
– uma análise da obra de Mário de Sá-Carneiro, Aion Roloff parte
das proposições de Levinas, sobre a relação Eu versus Outro para
discutir as implicações dessa relação com as confissões presentes na
novela – a de Lúcio e outras de Ricardo. A discussão, fundamentada
em ideias de Foucault sobre sexualidade, controle e repressão, constitui uma instigante proposição acerca do papel desempenhado pela
confissão na compreensão da obra
Outro tema comum que comparece neste conjunto em diferentes feições, especialmente em narrativas do século XX, é a opressão.
Em Literaturas a contrapelo: a redenção dos oprimidos nas obras
de Miguel Torga e de José Saramago, o pesquisador Charles Vitor
Berndt lança mão proposição de Walter Benjamin sobre a necessidade de se escovar a história a contrapelo e todo seu pensamento para
delinear relações entre as proposições do pensador alemão acerca
do materialismo histórico e as produções literárias de Miguel Torga e
José Saramago influenciadas pelo Neorrealismo. Conforme a análise
comparativa, tanto Benjamin quanto Torga e Saramago escreveram
obras em favor da emancipação da classe trabalhadora, enfocando
as injustiças sociais sob a perspectiva dos trabalhadores, dos pobres,
dos excluídos e vencidos pelas relações econômicas e de trabalho.
sumário
21
Por sua vez, em Santa Melânia e o feminino sagrado, Bruno
Kutelak Dias apresenta a análise da personagem Melânia Sabiani, da
peça A pécora, de Natália Correia. A partir dos estudos sobre a imagem mariana construída pela Igreja e da posição atribuída ao feminino
nesse universo, sob a perspectiva comparativa, o pesquisador discute
como a personagem é associada ao profano por servir aos interesses
da elite dominante, em oposição à tradição católica, que atribui as características do modelo mariano, de pureza e retidão, à Santa Melânia.
Em Memória e identidade portuguesa em Os memoráveis, de
Lídia Jorge, Marco Aurélio Pereira Mello também revisita a história ao
examinar a apropriação ficcional do contexto posterior à Revolução de
25 de Abril de 1974, assim como os sentidos identitários aflorados da
memória individual e coletiva vivenciada pelas personagens ao longo
da construção narrativa, que privilegia o reencontro com a memória
nacional e familiar fundamentada em reflexões desenvolvidas por Maurice Halbwachs, Jacques Le Goff e Joël Candau.
Por seu turno, o estudo do modo como o espaço toma relevância na produção de Gonçalo Mendes Tavares constitui o cerne do capítulo Os lugares pelos quais o tempo passou: o Senhor Voltaire e
o século XX (Gonçalo M. Tavares), de autoria de Robson José Custódio. A perspectiva analítica desenvolvida delineia a perspicácia do
narrador, que, pela voz de Voltaire, recorre a símbolos e impressões
dos ambientes para trazer à baila seu juízo crítico acerca do mundo
e das atividades sociais concernentes. Conforme o pesquisador, o
exame da atenção dada ao espaço desvela como as narrativas fluem
por ele no decorrer do século XX.
Mediante a análise do romance o nosso reino, de Valter Hugo
Mãe, Anna Carolina Legroski discute o alcance de formas de opressão reverberadas nas diferentes regiões de Portugal, no ensaio Deus,
pátria e família: um estudo sobre o totalitarismo em o nosso reino,
de Valter Hugo Mãe. Morador de uma comunidade de pescadores
sumário
22
isolada geográfica, econômica e culturalmente dos centros urbanos
portugueses, o narrador-personagem relata sua história desde a infância, salientando o autoritarismo opressor da família e da Igreja Católica
ao longo do salazarismo. Assim, a investigação busca discutir como os
mecanismos de coerção do Estado Novo, embora distantes geograficamente, repercutem e são validados pela configuração familiar e pelo
discurso religioso, segundo a trajetória do protagonista.
Encerramos, enfim, na expectativa de que estes diálogos diversificados alcancem muitos leitores, uma vez que as discussões e
estudos literários têm interessado um público mais diversificado justamente por levar à reflexão sobre questões fundamentais do nosso
tempo, sejam elas relacionadas diretamente à Literatura Portuguesa,
à fricção ou ao prazer da leitura ou às indagações concernentes à
condição de ser no mundo e dos abismos dessa condição em relação
com o(s) outro(s).
Boa leitura!
Ana Marcia A. Siqueira
Universidade Federal do Ceará
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1987.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos
(1750-1880). 8. ed. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1997. v. 2.
CANDIDO, Antonio.O direito à literatura. In:CANDIDO, Antonio. Vários
escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.
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23
Capítulo 1
Padre Vieira: Demônios ou
Políticos, a quem escutar?
Valeria Evencio de Carvalho
1
Valeria Evencio de Carvalho
Padre Vieira:
Demônios ou Políticos,
a quem escutar?
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.1
Resumo: A quem se deve escutar: os demônios ou os políticos? Segundo
Padre António Vieira, no Sermão do Santíssimo Sacramento, pregado entre
16 e 18 de janeiro de 1645, em Portugal, o mundo estava melhor quando os
demônios falavam e eram ouvidos do que na ocasião em que se passou a
escutar e prestar atenção aos políticos. De modo bastante simples, podemos
afirmar que a temática dessa evangelização é a Eucaristia, ou seja, os mistérios do corpo e do sangue de Cristo transmutando-se, respectivamente, em
alimento e em bebida para a pessoa de fé. Vieira escolhe tratar do assunto
apresentando os inimigos do milagre eucarístico, entre os quais, os políticos.
O orador faz, então, referência a dois poderes de seu tempo: a realeza e o
clero, criticando-os em seus atos, pois, mesmo como fiéis participantes da
Eucaristia, são contrários aos pensamentos cristãos e, portanto, em nada se
assemelham às virtudes divinas.
Palavras-chave: Padre António Vieira; Sermões; Demônios; Políticos.
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25
INTRODUÇÃO
Segundo Padre António Vieira (1608-1697), no Sermão do Santíssimo Sacramento, pregado entre 16 e 18 de janeiro de 1645, em
Portugal, o mundo estava melhor quando os demônios falavam e eram
ouvidos pelos homens do que na ocasião em que se passou a escutar
e prestar atenção aos políticos.
É preciso consignar – desde o início – que àquela mesma época a nação portuguesa estava sob o recente reinado de D. João IV,
coroado em 1º de dezembro de 1640, cuja alcunha o Restaurador lhe
conferiu a liderança na guerra firmada em busca da independência
de Portugal das mãos do reino de Castela e deu início à dinastia de
Bragança. Naquele período, no caso, em 1642, o padre vinculou-se ao
restauracionismo e passou a proferir seus sermões na Capela Real,
expressando suas ideias de governança por meio de discursos teológico-políticos. O primeiro, Sermão dos bons anos, abriu caminho para a
história de Portugal e o Quinto Império, assinalando um futuro glorioso
e promissor aos portugueses. Ainda, com tema tão apaixonado e diante do talento extraordinário e sem igual do orador, Vieira foi convidado
pelo rei a ser seu conselheiro, nomeando-o pregador régio, em 1644.
No próximo ano, proferiu o texto que suporta a interpretação
que aqui será dada, no caso, a de que os políticos de quatro séculos atrás e os da atualidade confirmam o que António Vieira (2015,
p. 67) expôs no longínquo 1645: “Nas maiores alturas sempre são
mais ocasionados os precipícios”, ao se referir ao sacramento da
Eucaristia como o mais elevado dentre os mistérios do Rosário e, por
essa razão, o que mais traz dúvidas entre os detentores dos poderes
instituídos. Vale lembrar que o Rosário mencionado aqui precede às
sumário
26
mudanças promovidas pelo Papa João Paulo II em 20021, consistindo
na meditação, dentre Ave-Maria e Pai-Nosso, de um mistério da vida
de Cristo e de Nossa Senhora.
Partindo das estreitas relações entre o poder reinante em Portugal no século XVII e o amplo olhar de Vieira sobre o mundo a seu
tempo, iniciamos esse estudo, que se imiscui para além do homem
religioso, tratando-se também de um diplomata e um filósofo. Logo,
a Eucaristia, nesse contexto, é utilizada para confrontar os políticos,
os demônios e o universo das mentiras dentro das relações humanas.
Por fim, a despeito da complexidade e universalidade de temas
que envolvem cada escrito do orador real, este artigo não intenciona
tratar de outros temas além do uso que o padre fez ao apresentar os
políticos como inimigos do milagre eucarístico e, portanto, mais perigosos e ferinos do que os demônios.
A RESTAURAÇÃO E VIEIRA
Os conflitos conhecidos como a Guerra da Restauração ocorreram entre 1640 e 1668. Tratava-se da intenção clara de ter um rei no trono
português, e não um rei exercendo domínio a partir de Espanha, o que já
vinha ocorrendo há 60 anos (1580-1640), por conta da chamada União
Ibérica. Outrossim, os conflitos com a Guerra dos 30 anos (1618-1648),
1
sumário
Segundo o Padre Antonio Vanlentini Neto (2022): “Esta designação de ‘rosário’ pode ter
origem no costume de, em alguns lugares, o povo oferecer coroas (guirlandas) de rosas
à sua rainha. Os cristãos transferiram isto a Maria, a rainha do céu e da terra: oferecer-lhe
uma coroa de 150 rosas – Ave-Marias. Daí o rosário, mas dividido em três partes, resultando o terço. Cada dez Ave-Marias, um fato da vida de Jesus e de Maria: cinco fatos da
infância: mistérios da alegria (gozosos); cinco fatos da dor, da paixão e morte (dolorosos);
cinco da vitória de Cristo e da participação de Maria nela (gloriosos). Como ficava fora a
pregação de Jesus, João Paulo II, em 16 de outubro de 2002, acrescentou cinco mistérios
da luz (luminosos). Assim, o rosário passa a ter 200 Ave-Marias (duzentas rosas) e cada
série de cinco mistérios passa a ser um quarto. Mas, pela tradição, continuar-se-á a falar
em rezar um terço ou um rosário”.
27
dos quais a Espanha fez parte, trouxeram-lhe prejuízos comerciais; por
consequência, os danos chegaram aos portugueses, que também sofreram diante dos impostos abusivos exigidos pelos espanhóis.
Em 1641, Vieira retornou a Lisboa, vindo do Colégio da Bahia,
onde já ocupava a cátedra de Teologia. Chegando à Corte portuguesa,
teve participação efetiva e significativa em projetos de cunho financeiro
e econômico para que Portugal fosse libertado. Naquele contexto, já
não era apenas o padre jesuíta que se fazia presente; Vieira tornou-se
um interventor político do rei e representou o apoio dos jesuítas à revolta contra o domínio filipino em Portugal, cuja relação estabelecida com
o reino de Castela fez com que Portugal perdesse sua independência.
Segundo Pécora (2010), organizador da obra Escritos históricos e políticos, Vieira, diante de sua proximidade a el-rei D. João IV,
apresentou a situação precária da economia portuguesa por conta dos
gastos com a guerra contra o poder espanhol, que, por seu turno, também litigava com países da Europa. Na “proposta feita a El-Rei Dom
João IV em que se lhe representava o miserável estado do reino e a
necessidade que tinha de admitir os homens de nação mercadores”2,
Vieira (2016, p. 45) afirma a importância de os cristãos-novos e dos
judeus, especialmente os sefarditas, serem aceitos na economia do
reino. Para tal, o orador relata que a heresia existente em quase toda
a Europa estava muito além do Judaísmo, ainda que a política externa
portuguesa privilegiasse hereges para a conveniência do comércio;
logo, também se devia ao acolhimento dos chamados “homens da
nação”. Assim está na proposta:
Também vemos que não só consente Portugal, antes chama à sua
custa, e está sustentando com excessivos soldos muitos hereges
holandeses e franceses, e entre estes hereges e os cristão-novos
há muita diferença: porque uns vêm nos levar o dinheiro, e outros
vêm no-lo trazer; uns publicamente são calvinistas e luteranos;
2
sumário
Publicado mais recentemente no Tomo IV, Volume II, de Escritos sobre os judeus e a
Inquisição.
28
outros publicamente professam a fé católica; uns profanam os
templos, e altares; [...] e o judaísmo não passa dos homens da
mesma nação. Pois se a necessidade da guerra nos obriga a
admitir entre nós as heresias mais contagiosas; porque não admitiremos as que o são menos? (VIEIRA, 2016, p. 45).
A partir do termo “heresia”, significando “qualquer coisa contrária aos dogmas” (MAIA, 1996, p. 99), Antònio Vieira apregoa sobre
a religião e os vieses econômicos que não podem ser ignorados por
Portugal nas circunstâncias em que se encontrava. O já citado Pécora
(2010) ressalta a necessária integração entre política e teologia para a
compreensão do ambiente social em que o pensamento vieiriano foi
consignado em seus sermões. Ainda, segundo Alfredo Bosi (2011, p.
20), nesse mesmo sentido,
convém começar pelos fins últimos. A razão de ser do Vieira
diplomata e conselheiro de ousados projetos econômicos e políticos, que incluíam a defesa dos judeus e cristãos-novos, era
uma só: consolidar a restauração de Portugal e erguê-lo à categoria de potência colonial então ameaçada pelos Estados concorrentes, dentre os quais a Holanda era decerto o mais temível.
Dessa fala, nasce e se reafirma a visão política de Vieira para a
reedificação de Portugal, que também perpassa, por conta do momento histórico do Brasil Colônia (1530-1822), pelas relações entre Portugal, Espanha e Holanda, essa última que guerreou com os espanhóis
de 1568 a 1648 (Guerra dos Oitenta Anos) e já estava com o Protestantismo implantado em sua sociedade.
De forma resumida, buscamos descrever o panorama que
envolvia as prelações de Vieira ao chegar a Portugal em 1641-1642.
Contudo, em qualquer cenário a ser tratado, não existe, como já dito,
discurso vieiriano desvinculado de sua condição católica-jesuítica, ou
seja, para tratar da aceitação dos novos-cristãos na novel nação portuguesa que se quer reconstruir, o religioso-diplomata usa o Sermão
do Santíssimo Sacramento, pregado entre 16 e 18 de janeiro de 1645,
sumário
29
em Portugal. Nesse sentido, induz à compreensão básica sobre a instituição do sacramento eucarístico, que, sendo o “mais alto dos Mistérios”, a contrario sensu em constituir predicativos ao homem, acaba
por revelas as piores fraquezas e malícias humanas.
O SERMÃO DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO
– DEMÔNIOS E POLÍTICOS
No exórdio do referido sermão, apresenta-se que, entre os sete
sacramentos da Igreja – Batismo, Confirmação, Eucaristia, Penitência,
Unção dos Enfermos, Ordem e Matrimônio –,? é a Eucaristia aquele
que confirma a palavra “vere” (= verdadeiramente) dita por Cristo, o
que também a ela confere o nome de “mistério da fé”, porque assim
é falado pelo celebrante durante o rito eucarístico da consagração do
vinho (VIEIRA, 1645, p. 68).
O Catecismo da Igreja Católica (1993) esclarece:
234. O mistério da Santíssima Trindade é o mistério central da fé
e da vida cristã. É o mistério de Deus em si mesmo. E, portanto,
a fonte de todos os outros mistérios da fé e a luz que os ilumina.
É o ensinamento mais fundamental e essencial na ‘hierarquia
das verdades da fé’ (35). ‘Toda a história da salvação não é senão a história do caminho e dos meios pelos quais o Deus verdadeiro e único, Pai, Filho e Espírito Santo, Se revela, reconcilia
consigo e Se une aos homens que se afastam do pecado’ (36).
Tanto o sermão quanto o Catecismo confirmam a soberania
daquele sacramento e relacionam-no com o pecado, uma vez que
a mentira (como oposição da verdade) é inescusável em quaisquer
circunstâncias, bem como não se exige santidade para não inventar,
bastando ser honrado (VIEIRA, 2015b, p. 35).
sumário
30
A relação entre a verdade do sacramento e a mentira como
um pecado de pessoas desonradas atrai, por consequência, a dúvida sobre a Eucaristia pela ciência, pela ignorância, pelos “inimigos
declarados da fé”, sendo estes, no caso, sete infaustos específicos
que buscariam – cada qual ao seu modo – desacreditar a verdade do
corpo de Cristo debaixo da hóstia e seu sangue debaixo do cálice.
São eles: um judeu, um gentio, um herege, um filósofo, um político,
um devoto e o Demônio.
Neste estudo, o interesse volta-se ao judeu, ao político e ao
Demônio. Ao judeu e ao Demônio porque, segundo Vieira, foram
ambos os “inventores” do sacramento da Eucaristia; embora contra
ela possam se manifestar, em nada suas razões podem prosperar.
Quanto ao judeu, especialmente no Sermão do Santíssimo Sacramento, aqui tratado, temos:
Eis aqui o que os Judeus pediram então, e eis aqui o nós adoramos hoje: um Deus debaixo de espécies visíveis, posto nelas milagrosamente por ministério dos Sacerdotes. Os Judeus foram
os que traçaram o Mistério, e nós somos os que gozamos; eles
fizeram a petição, e nós recebemos o despacho; eles erraram,
e nós não pódemos errar. [...] É porque eles foram verdadeiramente idólatras, e nós somos verdadeiros fiéis; é porque eles
adorando o bezerro reconheciam Divindade, onde a não havia;
e nós adorando aquela Hóstia Consagrada reconhecemos Divindade, onde verdadeiramente está Deus. De maneira, Judeu,
que com o teu mesmo castigo, com as tuas mesmas Escrituras,
e com o teu mesmo entendimento, te está convencendo a razão
a mesma verdade que negas, e os mesmos impossíveis, ou
dificuldade que finges (VIEIRA, 2015a, p. 71).
Adotando a retórica aristotélica3, Vieira colhe e atribui ao Judaísmo a existência da Eucaristia, reafirmando a verdade no rito católico,
3
sumário
“Segundo Aristóteles, a R. é ‘a faculdade de considerar, em qualquer caso, os meios
de persuasão disponíveis’ (Ibid.. I, 2. 1355 b 26). Enquanto qualquer outra arte só pode
instruir ou persuadir em torno de seus próprios objetos, a R. não se limita a uma esfera
especial de competência, mas considera os meios de persuasão que se referem a todos
os objetos possíveis (Ibid., I, 2, 1355 b 26)” (ABBAGNANO, 2007, p. 856).
31
a partir de uma negação daquela mesma verdade pelos judeus, deixando-os em situação difícil de apresentar contra-argumento, uma
vez que não parece haver discussão sobre o evento da adoração ao
bezerro no deserto por aquele povo. Ademais, ao reforçar que o milagre eucarístico adveio dos judeus, eleva-se também a argumentação diplomática de os aceitar para os negócios da nação portuguesa
débil de recursos financeiros, sendo “[...] um ardente defensor dos
cristão-novo castigados pela Inquisição, propondo a sua reintegração na sociedade e a anulação da confiscação dos seus bens, desde
que fossem investidos no capital das companhias comerciais para as
colónias” (PROENÇA, 2019, p. 411).
Do Demônio, Vieira também defende a verdade cristã a partir da
arma mais característica daquele Anjo, no caso, as tentações. Antes de
prosseguir, importa esclarecer a adoção do pensamento da demonologia cristã no que tange à definição do demônio neste artigo, eis que
tais seres ou elementos são considerados, desde tempos remotos e
por várias civilizações que antecederam o pensamento católico-cristão,
[...] anjos que traíram a própria natureza, mas que não são maus,
nem por sua origem, nem por sua natureza. Se eles fossem naturalmente maus, não procederiam do Bem nem seriam contados entre os seres; e mais: como se teriam separado dos anjos
bons se a sua natureza fosse má desde toda a eternidade?... A
raça dos demônios não é, pois, perversa no que se conforma à
sua natureza mas sim naquilo em que não se conforma (PSEO,
188-119) (CHEVALIER, 2019, p. 329-330).
Aqui, Deus está representado no “Bem”, sendo então divina a
origem dos anjos, demônios ou não, sem máculas que atinjam a sua
criação. Tal noção coaduna-se quando Vieira, no Sermão do Santíssimo Sacramento, aponta que o Diabo argumenta contra a Eucaristia,
dentre outros aspectos, dizendo: “[...] Nós, ainda que perseguidos,
somos Anjos, que quem nos pode roubar o lugar não nos pode tirar a
natureza” (VIEIRA, 2015a, p. 85).
sumário
32
Retornando aos inimigos da fé, na sequência da pregação, o
inaciano introduz que deixará os políticos por último, pondo os demônios no lugar daqueles, conforme o que segue: “Agora se seguia o Político: mas que fique para o fim, e entre em seu lugar o Diabo; que talvez
não seja desacertada esta troca. Tempos houve, em que os demônios
falavam, e o mundo os ouvia; mas depois que ouviu os Político, ainda
é pior o mundo” (VIEIRA, 2015a, p. 71).
Para a defesa de seus argumentos, Vieira afirma que, assim
como os judeus invocaram a transmutação de Deus por meio de Aarão, o Demônio buscou – por meio de mentira – colocar Deus no pomo
que ofertou a Eva, dizendo-lhe que, ao comê-lo, seriam como Deus,
sendo essa primeira falácia que fez surgir o pecado original. Ainda, ao
Demônio é atribuída a invenção do “desenho do Mistério da Eucaristia”
(VIEIRA, 2015a, p. 86), uma vez que, ao ofertar o pomo à Eva, argumentou que ela ficaria como Deus se o comesse; ao mesmo tempo,
para provocar o ser humano a não crer no pão eucarístico, afirma o
contrário, isto é, que, comendo aquele pão, não poderia o homem ser
como Deus. O preletor, então, responde:
Naquele encontro do Paraíso ficou o Demónio vencedor, e o
homem afrontado: vencedor o Demónio, porque enganou;
afrontado o homem, porque ficou enganado, despojado, perdido. Pois que remédio para desafrontar o homem, e o vingar do
Demónio? O remédio foi fazer Cristo da sua promessa dádiva,
e da sua tentação Sacramento: e assim o fez. Da promessa do
Demónio fez dádiva; porque nos deu a comer a Divindade, que
ele nos prometera comendo; e fez da sua tentação Sacramento;
porque consagrou debaixo das espécies de pão que ele fingira
debaixo das aparências do pomo (VIEIRA, 2015a, p. 87).
Em outras palavras, o instrumento de convencimento sobre a
verdade perpassa pela tentação do Demônio, sendo a fruta proibida ao
homem convertida por Cristo em alimento espiritual daquele mesmo
homem, que – ao menos no Sermão do Santíssimo Sacramento – faz o
mundo ser pior ao escutar seus dizeres.
sumário
33
Chegamos, assim, ao final do sermão, com os políticos, cuja
arma disponível a vencer suas dúvidas quanto ao “mistério da fé” seria
a conveniência, no sentido da retomada – ainda que indiretamente –
da necessidade de acolhimento, em primeiro plano, dos que podem
contribuir economicamente com o reinado português, deixando para
depois a conversão de todos ao Catolicismo. E como Vieira aponta que
isso se realize? Por meio da Eucaristia, que conforme já exposto, é o
sacramento soberano dentro da fé cristã.
Ademais, porque a arma contra os políticos é a conveniência,
podemos afirmar que é melhor e eventualmente mais fácil lidar com
o Demônio, que, sendo elemento do ar, não representa a terra, que é
elemento do homem. Nesse sentido, a Trindade Divina é mais claramente compreendida pelo Diabo do que pelo ser humano, especialmente os envolvidos na política, constantemente tentados ao egoísmo,
ganância e poder. Diante disso, Vieira (2015a, p. 91) aponta que mais
importante do que a construção de “muros e castelos” é a dedicação
aos “Templos do Santíssimo Sacramento”, pois, por consequência,
todos, inclusive os nobres, devem obediência à lei de Deus: “[...] porque honrar o Corpo de Cristo afrontado é ação que anda avinculada
à Nobreza. [...] porque os nobres não todos, mas são tudo”. Logo, o
poder na terra para a defesa daqueles que não o detêm está nas mãos
dos nobres no exercício da política, a qual, por sua vez, não deve ser
praticada distante dos princípios cristãos e tampouco ignorando que
a não aceitação dos que detém a riqueza (em referência aos judeus
sefarditas), transferirá essa mesma riqueza aos “inimigos da fé”, como
os holandeses, por exemplo, naquele tempo.
Segundo o prefácio de Pedro Calafate nos textos intitulados A
chave dos profetas, Vieira, com seu pensamento sobre a obediência
dos governantes e políticos ao que seja justo e equânime, trouxe a
concepção do “poder régio temporal de Cristo” (VIEIRA, 2014, p. 94).
sumário
34
Logo, não é lícito crer que os negócios temporais dos mortais
sejam governados pelo mando e soberania de Cristo, negócios
estes que vemos ser conduzidos com tamanha e tão completa
falta de respeito pela equidade, que parecem não ser dirigidos
pelas deliberações de homens dotados de razão, mas desatinadamente impelidos e postos a girar por loucos e vesanos.
(VIEIRA, 2014, p. 361).
Essa citação está afastada vários anos do Sermão do Santíssimo Sacramento, de 1645, antecedendo-o mais de 30 anos; contudo,
o pensamento do inaciano, com relação à prevalência do reino espiritual sobre o governo terreno, bem como ao gênero humano perdido e
enlouquecido diante do poder, esteve presente do início ao fim de sua
existência como padre, pregador, diplomata e jesuíta.
Também no Sermão no Sábado Quarto da Quaresma, de 1652,
em Lisboa, Vieira relembra que as palavras ditas por Cristo ao se defender do Demônio foram faladas ao ar e não poderiam, então, servir
de escritura, em oposição às que Jesus buscou para se defender
dos homens e que não apenas foram escritas, mas também impressas na terra. Destarte, o Demônio não resiste à Trindade, enquanto
os homens sim, de modo que estão sempre mais próximos do mal
do que o próprio Diabo.
Dando um considerável salto entre o século XVII de Vieira e o
atual, temos o Catecismo vigente discorrendo sobre o caráter dos políticos e da política. Mesmo afastadas por quatro séculos, essas reflexões caem como uma luva no Brasil Colônia e no Brasil de hoje:
A diversidade dos regimes políticos é moralmente admissível,
desde que concorram para o bem legítimo da comunidade que
os adopta. Os regimes cuja natureza for contrária à lei natural, à
ordem pública e aos direitos fundamentais das pessoas, não podem promover o bem comum das nações onde se impuseram.
[...] A autoridade não recebe de si mesma a legitimidade moral.
Por isso, não deve proceder de maneira despótica, mas agir em
prol do bem comum, como uma ‘força moral’ fundada na liberdade e no sentido de responsabilidade (CATECISMO..., 1993).
sumário
35
Fala-se do bem comum e da moral, como também do despotismo nos dias de hoje; contudo, Vieira, em seu tempo, já afirmava de
modo categórico as dificuldades que todos, incluídos os membros da
realeza e do clero, enfrentarão quando vierem “os anjos” e separarem
“os maus dos justos”. Portanto, quanto ao plano raso do ser humano,
o padre inclusive confirma sua preferência por ser tentado pelo Diabo
do que pelos homens, porque a humanidade teria usurpado o “trabalho” de tentação do Demônio, realizando-o de modo muito melhor e
eficiente do que o próprio (VIEIRA, 2015b, p. 386).
Bosi (1992, p. 124) confirma o empenho de Vieira em reconstruir
na cabeça de seus ouvintes a significação dos valores por meio de
um discurso dialético, o qual pugna por refletir, por exemplo, sobre “o
que é nobre? e o que não o é”, ou seja, o grande pensador antecipou
discussões sobre a distribuição da riqueza, bem como sobre a responsabilidade que todos têm por suas ações e omissões.
Diante do que foi dito, em conclusão, voltamos à reflexão primeira sobre escutar políticos ou demônios. Para Vieira, não havia dúvidas,
ao menos nos termos de seus textos aqui analisados, que o Diabo
“perdeu” a disputa para os detentores de poder, no que tange à loucura, insensatez, vaidade e ausência completa de empatia.
Os sermões de Vieira permanecem atuais, mesmo distantes
quatrocentos anos de hoje, sendo possível, inclusive, discussão sobre
a escolha entre políticos e demônios, a despeito da vigência – hoje - de
um Estado que se considera laico. Contudo, mais distante está o presente daquele tempo em que o mundo era melhor ao escutar o Diabo,
sendo, então, bastante difícil compreender os que falam sobre Deus e
agem como os políticos, não sendo possível afirmar que suas ações
são parte da influência demoníaca, afinal certos homens públicos ocupam hoje o lugar que antes fora de Lúcifer.
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36
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BOSI, Alfredo (Org.). Padre Antônio Vieira essencial. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011.
CATECISMO da Igreja Católica. 3. ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulinas,
Loyola, Ave-Maria, 1993.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2019.
MAIA, Antonio. Pequeno dicionário católico. Rio de Janeiro: Imprimatur, 1996.
NA ÍNTEGRA - Alcir Pécora - Padre Antônio Vieira - Os Jesuítas. [S. l.:s. n.],
2010. 1 vídeo (1h ). Publicado pelo Univesp. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=iV7KUhNmCrM&t=1180s&ab_channel=UNIVESP.
Acesso em: 24 out. 2022.
PÉCORA, Alcir. Teatro do Sacramento. A unidade teológico-retórico-política
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1994.
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Temas e Debates, 2019.
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VIEIRA, Antònio. Sermões eucarísticos, 1ª parte ciclo temporal litúrgico,
1645. In: FRANCO, José Eduardo; CALAFATE, Pedro. Obra completa Padre
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VIEIRA, Antònio. Escritos sobre os judeus e a Inquisição, entre 1642 e 1646.
In: FRANCO, José Eduardo; CALAFATE, Pedro. Obra completa Padre
Antònio Vieira. São Paulo: Loyola, 2016. v. II, t. IV.
sumário
37
Capítulo 2
2
Circunstâncias, vingança e prece: o
surgimento não miraculoso de Portugal em O
Bobo (1128) de Alexandre Herculano
Eduardo Soczek Mendes
Eduardo Soczek Mendes
Circunstâncias,
vingança e prece:
o surgimento não miraculoso
de Portugal em O Bobo (1128)
de Alexandre Herculano
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.2
Resumo: A revisitação do passado, por meio de construções ficcionais, não foi
mero saudosismo no caso de Alexandre Herculano (1810-1877). O autor, que
introduziu o romance histórico em língua portuguesa, ao buscar os momentos-chave da história de Portugal, buscou também refletir sobre o período oitocentista, no qual o reino foi sacudido por invasões, exílios, emigração, guerra
civil e pela tentativa paulatina da instauração do Liberalismo. Nesse sentido, O
Bobo (1128) é um romance histórico emblemático: publicado inicialmente em
folhetins, no semanário O Panorama (1843), versou sobre as origens de Portugal, distanciando-se dos mitos fundantes, que tentavam justificar a existência
nacional como vontade divina. Em discussão, sobretudo, com os trabalhos de
Ana Isabel Buescu, Eduardo Lourenço, György Lukács, Maria de Fátima Marinho e Paulo Motta Oliveira, averiguamos como se dá a construção narrativa de
O Bobo (1128) no que se refere à independência de Portugal, na Idade Média,
e como o escritor, antes mesmo da publicação de História de Portugal (1846),
já tentava produzir uma reflexão histórica por meio da literatura.
Palavras-chave: Alexandre Herculano; Romance histórico; Século XIX; Mitos
fundantes.
sumário
39
INTRODUÇÃO
O Bobo (1128) é um romance histórico cujo autor português,
Alexandre Herculano (1810-1877), veiculou, primeiramente, em folhetins, no semanário O Panorama, em 1843, e que veio a lume em tomos
somente após a morte do escritor4.Isso é uma informação extremamente importante para este estudo, pois dá notícias de que a narrativa,
mesmo depois de reorganizada por Herculano para uma publicação
em volumes, teve a sua primeira veiculação poucos anos após o término da Guerra Civil Portuguesa (1828-1834), entre absolutistas e liberais, com a vitória destes.
É legítimo o questionamento sobre o que um evento bélico oitocentista teria a ver com a publicação de um romance histórico, cuja
ambiência se dá no século XII, período da formação do reino de Portugal. No entanto, o que averiguaremos é como a produção ficcional
de Herculano tentou fazer os seus leitores refletirem acerca dos rumos
portugueses, após um período tão traumático, como o século XIX. O
autor não foi o único em seu período com tal intento, mas merece lugar
de grande destaque pelo lavor de sua obra. Por isso, concentraremos
as nossas análises nas descrições das circunstâncias históricas, recuperadas da narrativa, bem como na construção de uma personagem
ficcional que teria favorecido o príncipe, por vingança. Por fim, trataremos de um rito que, na lógica interna da narrativa de Herculano,
4
sumário
A publicação de O Bobo (1128) foi iniciada na tiragem de 14 de janeiro de 1843 de O
Panorama e teve a sua conclusão na edição de 5 de agosto do mesmo ano, no referido
semanário. O romance histórico foi, portanto, publicado de maneira folhetinesca, em 15
edições do periódico, havendo lacunas e retomadas de veiculação entre uma tiragem
e outra. Segundo David Lopes (19--, p. 335), O Bobo (1128) foi também publicado “[...]
depois, em contrafacção, em 1846, no Rio de Janeiro; e, pela primeira vez em volume,
em Portugal, em 1878, tendo começado a sua reimpressão no ano anterior, em vida ainda
do autor, que chegou a rever alguns capítulos”. Portanto, embora seja um texto literário
do início da década de 1840, a sua veiculação em tomos, em Portugal, só se deu após a
morte do escritor, no fim da década de 1870.
40
sustentou a tomada de uma decisão popular pelo infante D. Afonso
Henriques (1106?1109? 1111? -1185), em detrimento de Fernando Perez, o Conde de Trava (1100?-1155), e de D. Teresa de Portugal (1080?1130); com isso, a independência do novo reino se deu por ações
humanas e não por intervenções divinas, conforme algumas lendas
posteriores quiseram incutir na tradição nacional portuguesa.
A fim de levarmos a cabo as nossas propostas, iniciaremos
com uma discussão acerca da configuração de O Bobo (1128) – um
romance histórico – e do período de sua publicação – após muitos
acontecimentos traumáticos em Portugal. Trataremos igualmente, de
início, de algumas polêmicas posteriores à publicação da obra em
folhetins, que envolveram Herculano, como historiador, e setores do
clero lusitano, exatamente por controvérsias sobre as origens legendárias do reino. Por fim, passaremos à análise do texto ficcional e das
escolhas criativas do escritor em moldar uma narrativa que fizesse
ponderar sobre o surgimento medieval de um Portugal que, no século
XIX, correu riscos de deixar de existir.
Para guiar o nosso caminho nessa empreita, embasaremos as
nossas averiguações em trabalhos como o de Ana Isabel Buescu
(1993, 2013) e de Eduardo Lourenço (1999, 2016), que refletiram a
fundo sobre a criação dos mitos fundantes de Portugal. Também pensaremos o contexto oitocentista a partir das propostas de Amadeu
Carvalho Homem (2001) e Eric Hobsbawm (2015). Por fim, as contribuições de György Lukács (2011) e Maria de Fátima Marinho (1999),
acerca do romance histórico do século XIX, serão muito valiosas para
embasar as nossas análises.
sumário
41
O ROMANCE HISTÓRICO NO
CONTEXTO OITOCENTISTA E A
POLÊMICA DE OURIQUE (1850)
De antemão, chamemos atenção para a configuração textual
de O Bobo (1128): é um romance histórico, subgênero do romance
que fora introduzido em língua portuguesa por Herculano5. Não pretendemos, por óbvio, neste estudo, esgotar a teoria acerca do romance
histórico. Entretanto, fazem-se necessários, de antemão, alguns esclarecimentos: conforme propõe Marinho (1999, p. 15-16), acreditava-se
“[...] que um bom romance histórico ensinava mais do que um livro de
História”6, uma vez que “[...] o grande público lê com mais facilidade
um romance do que uma obra científica”. Portanto, a obra seria uma
dessas narrativas que, para além de muitas outras perspectivas, teriam
um caráter pedagógico, de resgatar o passado pátrio.
Desse modo, é importante rememorar como essas revisitações
ao pretérito, promovidas pelos romances históricos, no século XIX,
não são exclusividades de Portugal. Sabemos que Herculano “importou” o modelo, cultivado, por exemplo, pelo escocês Sir Walter Scott
(1771-1832), bem como pelo milanês Alessandro Manzoni (1785-1873)
e pelo francês Victor Hugo (1802-1885), lhe imprimindo a “cor local”.
sumário
5
Na “Advertência da primeira edição” de Lendas e narrativas, volume publicado em 1851,
Alexandre Herculano (19--a, p. V-VII) afirma que esses “[…] breves romances e narrativas
[…] [são] as primeiras tentativas do romance histórico que se fizeram na língua portuguesa. Monumentos dos esforços do autor para introduzir na literatura nacional um gênero
amplamente cultivado nestes nossos tempos em todos os países da Europa, […] o autor
se via de criar a substância e a forma; porque para o seu trabalho faltavam absolutamente
os modelos domésticos”. Recordemos, por exemplo, que o romance histórico O arco de
Sant’Ana: crónica portuense, de Almeida Garrett (1799-1854), teve o seu primeiro tomo
publicado em 1845, enquanto os textos compilados em Lendas e narrativas já eram divulgados em O Panorama entre os anos de 1839 e 1844, além de O bobo (1128), de 1843,
e dos fragmentos de O monge de Cister ou a época de D. João I(1841) e de Eurico, o
presbítero, este veiculado na Revista Universal Lisbonense, em 1842.
6
Optamos por atualizar, em nossas transcrições textuais, a grafia das edições que consultamos, seguindo o acordo ortográfico vigente (1990). Contudo, em obras publicadas em
Portugal, manteremos a ortografia e a acentuação portuguesas atuais.
42
Para Lukács (2011, p. 38, grifo do autor), há vários motivos para a eclosão da produção de romances históricos no século XIX e alguns deles
passam pela tomada de consciência nacional e pelos riscos que muitos
reinos correram, dentre as tantas revoluções que pulularam no período:
Primeiro foi a Revolução Francesa, as guerras revolucionárias, a
ascensão e a queda de Napoleão que fizeram da história uma
experiência das massas, e em escala europeia. Entre 1789 e
1814, as nações europeias viveram mais revoluções que em
séculos inteiros. E a celeridade das mudanças confere a essas revoluções um caráter qualitativamente especial, apaga nas
massas a impressão de ‘acontecimento natural’, torna o caráter histórico das revoluções muito mais visível do que costuma
ocorrer em casos isolados. [...] fortalece-se extraordinariamente
o sentimento de que existe uma história, de que essa história é
um processo ininterrupto de mudanças e, por fim, de que ela
interfere diretamente na vida de cada indivíduo.
Para Lukács (2011), há a tomada paulatina e coletiva de consciência acerca da realidade histórica, não como um acontecimento
“natural”, mas como uma construção humana, da qual as massas também seriam partícipes. Isso porque as revoluções, invasões e guerras
se espraiaram pelo continente europeu, conforme igualmente observa
Hobsbawm (2015, p. 180): “[...] nunca na história da Europa e poucas
vezes em qualquer outro lugar, o revolucionarismo foi tão endêmico,
tão geral, tão capaz de se espalhar por propaganda deliberada como
por contágio espontâneo”. Por isso, mesmo com os acontecimentos
locais e suas particularidades, temos de compreender que eles fazem
parte de um contexto maior de muitas revoluções entre o fim do século
XVIII e a primeira metade do século XIX.
Especificamente no contexto de Portugal, os romances históricos podem ser lidos como importantes reflexões acerca das vicissitudes políticas, sociais, religiosas e históricas. Recordemos que “Portugal
é, de 1808 a 1820, um país invadido, emigrado ou subalternizado pela
presença militar ostensiva do estrangeiro” (LOURENÇO, 2016, p. 104);
sumário
43
isso porque, em 1807, as tropas napoleônicas entraram no reino, mas
não encontraram a Corte, que fora transferida, em fuga, para o Brasil,
então colônia.Mesmo após a expulsão dos franceses, houve forte presença britânica no território português e demora do retorno da Corte,
estabelecida no Brasil, sendo algumas das causas do descontentamento, que culminou no “[...] movimento revolucionário de 24 de Agosto de 1820, que inicia em Portugal o complexo processo de afirmação
do liberalismo” (HOMEM, 2001, p. 341).
Nesse período inicial, Herculano era ainda uma criança, porém
os desdobramentos da primeira tentativa de implementação do sistema liberal em Portugal resultariam em outro trauma ainda maior: a
Guerra Civil, após a morte de D. João VI, em 1826, passando por tentativas de golpes e contragolpes, tanto por parte dos liberais, os quais
defendiam a causa de D. Pedro IV (1798-1834), quanto dos absolutistas, partidários de D. Miguel (1801-1866).Vejamos que não estamos
tratando, nesse caso, de mera contenda pela sucessão do trono entre
dois irmãos, mas, sim, de uma luta por dois modelos de sistema de governança.Tal querela teve forte participação de intelectuais portugueses, incluindo o jovem Herculano, que participou de revoltas em hostes
liberais, conhecendo, por isso, o exílio, primeiramente em Inglaterra e,
posteriormente, em França.
A presença da temática da guerra e das crises é recorrente nas
obras de muitos desses eruditos oitocentistas. Recordemos, por exemplo, que, para além das elaborações ficcionais, Herculano foi também
um historiador, dando início às publicações de História de Portugal,
em 1846, isto é, muito próximo à veiculação de O Bobo (1128). A obra
historiográfica, desde a primeira edição, traz uma advertência, na qual
Herculano (19--c, p. 24) refere que estaria fazendo a “[...] primeira tentativa de uma história crítica de Portugal”. Portanto, o historiador anunciou os seus intuitos: lavrar uma obra com cunho científico e baseada
em investigações documentais.
sumário
44
Joaquim Barradas de Carvalho (1976, p. 113) afirma que “Alexandre Herculano foi o primeiro historiador português, pois tudo o que
se fez antes de Herculano não ia além da Crónica, não transcendia no
fundo os cronistas medievais ou renascentistas”. No entanto, em sua
historiografia, o autor omitiu o aparecimento mítico de Cristo a D. Afonso Henriques na Batalha de Ourique, confronto entre cristãos e mouros
no território hoje português, datado do dia 25 de julho de 1139 – foi
um importante enfrentamento e se deu no contexto da expulsão dos
muçulmanos que ocupavam, sobretudo, o sul da Península Ibérica.
Não foi com Herculano, porém, a primeira vez que o Mito de Ourique foi questionado: no século XVIII, conforme propõe Buescu (2013,
p. 50-51), o padre oratoriano Luís António Verney (1713-1792) e Luís
Nunes Tinoco (1642? 1643? - 1719) haviam questionado o milagre em
seus estudos: “Apesar disso, a tradição mantinha uma apreciável importância ideológica e uma vitalidade talvez surpreendentes”. Por ser um
mito ainda significativo e reavivado em momentos de crise, como foi o
século XIX, muitos membros do clero passaram a criticar veementemente Alexandre Herculano e o historiador redigiu diversas missivas a fim de
expor o seu ponto de vista sobre a mítica de Ourique – datam de 1850
tais mensagens e a querela ficou conhecida como Polêmica de Ourique.
E o que isso tem a ver com o que nos propomos a averiguar
neste estudo? Ao que parece, como abordaremos ainda, desde a publicação do romance histórico, o autor vinha revisitando a Batalha de S.
Mamede como a fundante do reino – como também era crido anteriormente – e em seu trabalho como historiador desmistificava a Batalha
de Ourique, que viria acompanhada de uma versão mítica (e mística)
do nascimento de Portugal sob os auspícios e as bênçãos divinas.
Como bem discorre Lourenço (1999, p. 10), “em nome de Cristo, Portugal assumiu o papel impossível de povo ‘eleito’”, o que poderia prejudicar uma reflexão a sério sobre um reino ameaçado, pois a ideia de um
Portugal alicerçado e fundado sob uma “[...] particular garantia ‘divina’”
sumário
45
(LOURENÇO, 1999, p. 51), conforme a mítica de Ourique propalava,
fez-se importante em um período de vulnerabilidade pátria, como o
das invasões napoleônicas, que culminaram na Guerra Civil, mas, certamente, era apenas um pretexto delirante para justificar a existência
e o não desaparecimento milagroso do reino, contudo sem nenhum
trabalho efetivo para a sua recuperação e o que se faria dali adiante.
Feita essa explanação inicial, pensemos como o romance histórico de Herculano tenta recuperar a história pretérita do reino, bem
como certas tradições muito próprias de Portugal, em um momento
de incertezas:
Se Herculano se descobre e inventa romancista pseudo medievalizante e historiador, não é por amor do passado enquanto tal,
por mais glorioso, mas como prospector do tempo perdido de
Portugal, cuja decifração lhe é vital para se situar como homem,
cidadão e militante num presente enevoado e oscilante. Só assim julga possível modelar o perfil futuro da incerta forma histórica em que se converteu a sua pátria (LOURENÇO, 2016, p. 101).
Em outras palavras, a revisitação ao passado português não é,
para Herculano, mero saudosismo, como se fosse possível regressar
ao que fora Portugal. Ao remontar criticamente às origens, em um
presente brumoso, no qual nem sempre é possível enxergar com clareza, o escritor tenta também apontar caminhos para o futuro, a partir
de saídas que deram certo e de outras que foram desastrosas ao
longo da história de Portugal. Vejamos que isso se dá também pela
construção ficcional do passado; para tanto, passemos às averiguações do romance histórico.
sumário
46
CONTEXTO, REVIDE E FÓRMULA RITUAL:
TODA A AÇÃO É HUMANA NO NASCIMENTO
DE PORTUGAL, EM O BOBO (1128)
Pensemos, inicialmente, em algumas das características desse
romance histórico que corroboram para elencarmos os três elementos
fundamentais para a independência de Portugal na narrativa: o contexto, a vingança e uma liturgia.
De acordo com Paulo Motta Oliveira (2000, p. 140-141), “o enredo de O Bobo possui algumas características peculiares, que cabe
aqui ressaltar. O livro começa com uma longa reflexão histórica sobre
os efeitos da morte de Afonso VI [1047-1109], rei de Leão e Castela, nas
lutas políticas na península Ibérica”. De fato, a narrativa tem uma grande
propensão à contextualização ou às explicações para um leitor que está
afastado do período em que o romance histórico está circunscrito. Isso
está relacionado com o que já mencionamos: tentar ensinar o passado
pátrio pela narrativa histórica de ficção. Contudo, no caso de O Bobo
(1128), mais do que ensinar certos costumes medievais, o narrador se
propõe a uma séria reflexão acerca das origens de Portugal.
Comecemos pelo trecho que segue:
A ideia de nação e de pátria não existia para os homens de
então do mesmo modo que existe para nós. [...] Nem nas crónicas, nem nas lendas, nem dos diplomas se encontra um vocábulo que represente o espanhol, o indivíduo da raça godo-romana distinto do sarraceno ou mouro. Acha-se o asturiano,
o cantabro, o galiciano, o portugalense, o castelhano, isto é, o
homem da província ou grande condado; e ainda o toledano,
o barcelonês, o compostelano, o legionense, isto é, o homem
de certa cidade. O que falta é a designação simples, precisa,
do súbdito da coroa de Oviedo, Leão e Castela. E por que falta? É porque, em rigor, a entidade faltava socialmente. Havia-a,
mas debaixo de outro aspecto: em relação ao grêmio religioso.
sumário
47
Essa sim, que aparece clara e distinta. A sociedade cristã era
una, e preenchia até certo ponto o incompleto da sociedade
temporal. Quando cumpria aplicar uma designação que representasse o habitante da parte da península livre do jugo do islão, só uma havia: christianus. O epiteto que indicava a crença
representava a nacionalidade. E assim cada catedral, cada paróquia, cada mosteiro, cada simples ascetério era um anel de
cadeia moral que ligava o todo, na falta de um forte nexo político
(HERCULANO, 19--a, p. 4-5, grifo do autor).
No romance histórico de Herculano, a voz narrativa refere que
o conceito ou o entendimento de nacionalidade não existia conforme
os leitores – já oitocentistas, podemos presumir – estariam acostumados, pois isso nem existia “[...] para os homens dos séculos XI e XII”
(HERCULANO, 19--a, p. 4). O que havia, segundo o narrador, era a
concepção de origem local (provinciana ou de um condado), mais do
que o sentimento de origem filiado ao reino central. Aqui, podemos
inferir certa exaltação à não centralidade do poder régio, o qual, historicamente, viria mais tarde, com o Antigo Regime. De igual maneira,
o narrador de O Bobo (1128) afirma que a religiosidade era um forte
componente para a afirmação de pertencimento, pois todos os que
não estavam sob o jugo do Islamismo, na Península Ibérica, antes se
designavam como cristãos do que como pertencentes a determinado
reino. Por isso, ainda segundo o narrador, as catedrais, os mosteiros,
as paróquias e os ascetérios foram fundamentais para manter certa
coesão, quando faltavam as instituições políticas ou, antes, quando
elas não tinham a mesma proeminência que viriam a ter posteriormente. É perceptível, portanto, a tentativa da voz narrativa de ensinar, ao
contextualizar o período de ambientação histórica do romance.
Vejamos, ainda, que o excerto de O Bobo (1128) que transcrevemos faz menção às catedrais, às paróquias e aos mosteiros como maneiras medievais de manter certa coesão política e moral, nas palavras
do narrador, na Península Ibérica durante a Idade Média. Cabe aqui,
ainda, outra ponderação: esses prédios não eram somente edifícios
sumário
48
de pedra, pois representavam muito mais do que uma construção, primeiramente, porque reuniam uma comunidade: grosso modo, no caso
das catedrais, a comunidade dos cônegos e do povo citadino; no caso
das paróquias, os habitantes circunscritos em um território; e, por fim,
no caso dos mosteiros, toda a comunidade dos monges e, eventualmente, os que viviam sob a sombra do cenóbio.Eram, pois, lugares de
resistência cristã frente aos reinos islâmicos da Península Ibérica.
Em O Bobo (1128), por exemplo, um dos ambientes mais significativos na economia interna da narrativa é o mosteiro de D. Mumadona
(926?-968?), descrito pelo narrador nos seguintes termos: “Não vedes,
digo, a alpendrada de uma igreja, a portaria de um ascetério, a grimpa
de um campanário? É o mosteiro de D. Mumadona: é um claustro de
monges negros: é a origem desse burgo, do castelo roqueiro e dos
seus paços reais” (HERCULANO, 19--a, p. 19). O narrador convida o
leitor a observar o ascetério de São Mamede – ou mosteiro –, mandado erigir, no século X, por D. Mumadona Dias – o prédio já não existia
no século XIX. Logo, é um apelo do discurso narrativo à imaginação.
Entretanto, o narrador deixa claro que o mosteiro pertence aos monges
negros – assim designados pela coloração de seu hábito –, ou seja,
religiosos da Ordem de São Bento, confirmado pela descrição que a
voz narrativa traça acerca da personagem de Fr. Hilarião, “[...] o mui
pacífico abade beneditino” (HERCULANO, 19--a, p. 159). Será, pois,
na igreja desse mosteiro que uma liturgia, sob a presidência do abade,
incentivará a aclamação popular do então infante D. Afonso Henriques
como rei de Portugal; em outras palavras, a igreja e o mosteiro, muito
além de um conjunto edificado, são locais com significado pelas suas
celebrações e, em O Bobo (1128), foram também os lugares de entusiasmo coletivo pela causa da independência de Portugal.
Recordemos que o romance histórico de Herculano retoma
as querelas entre os partidários do infante D. Afonso Henriques e os
de D. Teresa, representada pelo Conde de Trava, seu amante: “[...]
sumário
49
não estamos diante de uma região periférica, mas no próprio epicentro
de uma crise que terá, como consequência, a batalha de S. Mamede e
a futura criação de Portugal enquanto reino independente” (OLIVEIRA,
2000, p. 142). Observemos, a partir dessas informações, as ponderações do narrador acerca do nascimento do reino lusitano:
Deste estado tumultuário derivou a separação definitiva de Portugal, e a consolidação da autonomia portuguesa. Obra a princípio de ambição e orgulho, a desmembração de dois condados
do Porto e de Coimbra veio por milagres de prudência e de
energia a constituir, não a nação mais forte, mas de certo a mais
audaz da Europa (HERCULANO, 19--a, p. 9).
Já sabemos que o romance se inicia com a contextualização da
morte do rei de Leão e Castela, pai de D. Teresa: “A morte de Afonso
VI, [...] quase no fim da primeira década do século XII, deu origem a
acontecimentos ainda mais graves do que os por ele previstos” (HERCULANO, 19--a, p. 1). Depois disso, o narrador segue tratando do
tumultuoso governo da outra filha de D. Afonso VI, D. Urraca (10801126) (HERCULANO, 19--a, p. 2-3) e, por fim, chega às conclusões
de que Portugal nasce a partir desses desordenamentos. De acordo
com Oliveira (2000, p. 142), “[...] será justamente a gestação do reino
de Portugal um dos temas centrais deste romance”, mas, para o narrador de O Bobo (1128), as origens pátrias não se deram de maneiras
miraculosas ou sacralizadas – como se acreditava pela propagação
do Mito de Ourique. Vejamos como a voz narrativa chega a empregar
o vocábulo “milagre”, mas o dito extraordinário foi empreendido por
ações históricas e humanas.
O romance se inicia com a situação macro, para relatar, posteriormente, os acontecimentos específicos. Ao mencionar as ações
humanas para a constituição do reino português, pensemos na personagem que cede o nome a essa narrativa de Herculano:
E não era lá nenhum grande homem: era um vulto de um pouco
mais de quatro pés de altura; feio como um judeu; barrigudo
sumário
50
como um cónego de Toledo; imundo como a consciência do célebre arcebispo Gelmírez, e insolente como um vilão de beetria.
Chamava-se de seu nome Dom Bibas. Oblato do mosteiro de D.
Muma, quando chegou à idade que se diz da razão, [...] achou
que não era feito para aquele remanso da vida monástica. Atirou
às malvas o hábito, a que desde o berço o tinham condenado:
e, ao cruzar a porta do ascetério, escarrou ali em peso o latim
com que os monges começavam a empeçonhentar-lhe o espírito. Depois, sacudindo o pó das suas sapatas, voltou-se para
o mui reverendo porteiro, e por um esforço sublime de abnegação atirou-lhe à cara com toda a ciência hebraica, que tinha
alcançado naquela santa casa, gritando-lhe com uma visagem
de escárnio – racca maranatha, racca maranatha – e desaparecendo após isso (HERCULANO, 19--a, p. 22-23, grifo do autor).
Dom Bibas é, portanto, um egresso do mosteiro de D. Mumadona, mas que não chegou a professar na Ordem de São Bento; como
oblato, era um leigo que estaria mais ligado aos serviços braçais na
vida monástica. Percebamos a descrição, com comparações, que o
narrador faz da personagem: baixo, feio como um judeu, barrigudo
como um cônego de Toledo e sujo como a consciência de Diego Gelmírez (ou Xelmírez) (1068-1139), primeiro arcebispo de Santiago de
Compostela, a quem são atribuídos roubos de relíquias de Braga, a
fim de serem levadas para Compostela7. Essas duas últimas comparações são de nítido tom anticlerical – uma se fundamenta na glutonaria
7
sumário
Há, em O Bobo (1128), outra referência a Diego Gelmírez e ao furto de relíquias de Braga, a
fim de serem levadas a Compostela, quando Tructezindo, personagem sobrinho de Fernando Perez, exclama ao tio: “‘Oh não, meu tio e senhor! – replicou o travesso rapaz. – Pelos
ossos de S. Cucufate, que com tão finas artes o santo arcebispo Gelmires furtou de Braga
para os levar a Compostela, vos juro que não pensava de amores’” (HERCULANO, 19--a,
p. 239). Recordemos que Compostela está na Galícia e Fernando Perez, o Conde de Trava,
era também galego, mas “[...] considerava-se já como senhor dos condados de Portugal e
Coimbra” (HERCULANO, 19--a, p. 237). Embora o discurso de Tructezindo seja uma construção ficcional, Gelmírez, de fato, empreendeu furtos para que muitas das romarias se
dirigissem a Compostela, e não mais a Braga, uma vez que muitos buscavam os santuários
em que houvesse relíquias de santos para a veneração; era, portanto, uma atividade muito
rentável, do ponto de vista econômico, além de fazer a fama desses lugares de peregrinação na Idade Média. Por fim, vale recordar que o santo mencionado pela personagem, São
Cucufate, é um mártir, que pregou na Península Ibérica e viveu entre os anos 269 e 313.
51
do clero8 e a outra, na vida delinquente de uma figura histórica. Cabe
afirmar que nada há de atrativo na figura de Dom Bibas, segundo o
narrador. Por outro lado, podemos perceber outra questão: o egresso,
ao deixar a Ordem e o mosteiro, revela um caráter extremamente zombeteiro, pois, de acordo com a voz narrativa, sai gritando impropérios
ao monge porteiro – racca, palavra de origem semítica que pode ser
entendida por “cabeça vazia” ou “sem miolos”, e maranatha, que é
um clamor, em oração, “vem, Senhor”. A cena serve muito mais para
demonstrar o quão escarnecedor Dom Bibas conseguiria ser –e seria
ele o escolhido para a função truanesca dos paços, em Guimarães.
Novamente, o narrador instrui o leitor acerca da importância, na
Idade Média, das funções desempenhadas por um truão:
O leitor que não conhecesse por dentro e por fora, como se
usa dizer, a vida da idade média, riria da pequice com que
atribuímos valor político ao bobo do conde de Portugal. Pois o
caso não é de rir. Naquela época o cargo de truão correspondia até certo ponto ao dos censores da república romana. [...]
Os ódios e as vinganças eram lealmente ferozes, a dissolução
sincera, a tirania sem mistério. No século XVI Filipe II envenenava seu filho nas trevas de um calabouço: no princípio do
XIII Sancho I de Portugal arrancando os olhos aos clérigos de
Coimbra, que recusavam celebrar os ofícios divinos nas igrejas interditas, chamava para testemunhas daquele feito todos
os parentes das vítimas. [...] / Numa sociedade em que as
torpezas humanas assim apareciam sem véu, o julgá-las era
fácil. O dificultoso era condená-las. [...] / Mas no meio do silêncio tremendo de padecer incrível e de sofrimento forçado, um
homem havia que, leve como a própria cabeça, livre como a
própria língua, podia descer e subir a íngreme e longa escada
8
sumário
De acordo com Cristian Santos (2014, p. 58), há certa recorrência, nas críticas anticlericais, à glutonaria dos membros eclesiásticos: “[...] a caricatura do clérigo obeso, apreciador da boa mesa, configurar-se-á em denúncia, não apenas no plano individual, como
evidência da vida desregrada do clero, mas, principalmente, na esfera política, por exprimir os privilégios outorgados à Igreja, por meio de alianças com o poder civil”. Não é a
centralidade deste estudo a tematização anticlerical nas obras de Alexandre Herculano,
porém é um assunto presente em muitas delas, como é o caso de O Bobo (1128), que
mereceria outro trabalho de averiguação, centrado nas personagens do clero e no discurso narrativo acerca delas.
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do privilégio, soltar em todos os degraus dela uma voz de repreensão, punir todos os crimes com uma injúria amarga e patentear desonras de poderosos, vingando assim, muitas vezes
sem o saber, males e opressões de humildes. Este homem era
o truão (HERCULANO, 19--a, p. 26-28).
Essas digressões explicativas do narrador de O Bobo (1228)
são importantes em nossa análise. Verificaremos como a junção de
três episódios, no romance histórico de Herculano, grosso modo, deram origem a Portugal. Do primeiro, já tratamos: o contexto histórico;
por ora, verificamos a ação de Dom Bibas e, por fim, chegaremos às
liturgias da igreja do mosteiro de D. Mumadona. Observemos como o
narrador caracteriza a importância das atividades truanescas na Idade
Média; para isso, recupera os atos sanguinolentos do filho de D. Afonso Henriques, D. Sancho I (1154-1211), mas também refere o possível
feito homicida de Filipe II (1527-1598), de Espanha, já no século XVI,
contra o próprio filho, Carlos, Príncipe das Astúrias (1545-1568). Isso
serviria para ilustrar o quanto os tiranos não estavam submetidos à lei
e o quanto a sociedade de outrora seria bárbara. Para tanto, havia o
truão que, pela troça, poderia censurar os soberanos. Por conseguinte,
poderia expô-los ao ridículo, pois era permitido ao bobo fazê-lo, além
de que o riso também poderia ser uma maneira de conduzir à reflexão.
Finalmente, o truão vingava, mesmo sem saber, os que não tinham voz
contra os opressores e poderia impedir outras delinquências.
Por isso, a personagem de Dom Bibas é fundamental para
o desenvolvimento da trama de O Bobo (1128): o truão escarnece
de Fernando Perez e de seu valido, Garcia Bermudes, apaixonado
pela personagem de Dulce e, por conseguinte, rival de Egas Moniz
Coelho. Dada a irritação do Conde de Trava, Dom Bibas é flagelado,
ainda que apenas por exercer as suas funções, dentro do Castelo de
Guimarães e por ordem dos nobres, sem alcançar nem a indulgência
de Martim Eicha, o cônego de Lamego: “Daí a pouco, em um pátio
interior, ouviam-se-lhe os gritos dolorosos por entre o som dos açou-
sumário
53
tes, e apupos e gargalhadas de pagens, serventes e cavaleiriços”
(HERCULANO, 19--a, p. 106-107).
Após essa punição, o truão trabalha, por vingança, contra o
Conde de Trava e facilita a entrada, por caminhos subterrâneos, dos
aliados de D. Afonso Henriques no Castelo de Guimarães – cuja construção já fora pormenorizada pelo narrador, no segundo capítulo do
romance, reforçando a “[...] sua fortaleza, vastidão e elegância” (HERCULANO, 19--a, p. 15). Contudo, somente ao fim da narrativa teremos
a revelação da participação de Dom Bibas nesse processo crucial da
vitória de D. Afonso Henriques na Batalha de S. Mamede:
A presença deste personagem que, por uma vingança, modifica
o destino de Portugal, e que está sempre oculto, parece-nos
sintomática. Parece-nos que ao seguir vários focos narrativos,
e ao manter oculto este bobo fundamental, o narrador acaba
por desmascarar uma visão da história: a de que o que dela
podemos recuperar é a superfície, os fatos externos e datáveis,
mas o que de fato a move está por baixo desta superfície, e não
pode ser atingido pelos olhos do historiador que quer recuperar
este passado. / [...] Nós, leitores, sabemos o lado oculto de tudo
isso que nos é narrado. Mas não o sabem os contemporâneos
dos acontecimentos – como o narrador se preocupa em indicar
(OLIVEIRA, 2000, p. 146-147).
Oliveira (2000) demonstra como o próprio romance de Herculano está construído de forma a ilustrar que o que sabemos historicamente, grosso modo, é o genérico, mas que muitas questões específicas se perdem ao longo da história. À ficção, é dada a liberdade para
preencher essas lacunas pelas vias da elucubração; vejamos que, pela
segunda vez, a voz narrativa não evoca um mito ou um milagre para explicar a independência de Portugal, mas a ação é toda humana. Mais:
é o trabalho de um truão ou, ainda, se quisermos, também dos aristocratas e do cônego, que infligiram o castigo ao bobo, gerando tamanha revolta em Dom Bibas. Em outras palavras, o Conde de Trava, D.
Teresa e D. Afonso Henriques, personagens com referencial histórico,
sumário
54
não foram excluídos do romance de Herculano, afinal eles fazem parte
da história. Entretanto, também existe a personagem ficcional de um
truão, que poderia estar apagada na história oficial, extremamente importante na lógica interna da narrativa para que o “prato da balança”
das decisões históricas “pendesse” para um lado.
Por fim, o terceiro elemento, também dirigido por ação humana,
é a liturgia monástica de afirmação de D. Afonso Henriques como rei.
Este estudo pretende chegar à sua principal proposta com a análise
dessa descrição no romance histórico. Todavia, faziam-se necessárias,
para melhor entendimento, a contextualização, sobre a qual já discorremos, e a menção aos elementos que, na economia interna do romance, sustentaram a independência do reino na Idade Média. Passemos,
pois, ao rito descrito na narrativa.
No capítulo XV do romance, intitulado “Conclusão”, o narrador
dá notícias do resultado da Batalha de S. Mamede e comenta sobre o
registro histórico:
A sorte das armas e a vingança de Dom Bibas tinham resolvido
os futuros destinos de Portugal. Não foi esta a primeira vez,
nem será a última, em que uma batalha ou um caturra influam
na existência ou não existência, no modo de ser ou não ser
destes corpos morais chamados nações [...]. / Brava batalha
se pelejara no campo de S. Mamede junto de Guimarães, onde
a hoste do infante se travara com a de sua mãe e do conde de
Trava. Depois de largo conflito, Afonso Henriques triunfara, e D.
Teresa se vira obrigada a fugir com o soberbo estrangeiro, indo
encerrar-se no castelo de Lanhoso, distante duas léguas do
lugar do recontro. / Mas porque não procuraram os vencidos
amparar-se dentro dos fortes muros e torres do castelo de Guimarães? É o que não nos dias a história. Pouco importa: di-lo-emos nós. A história não conheceu Dom Bibas, e Dom Bibas,
muito em segredo o revelamos aqui aos leitores, nos oferece
a chave deste mistério. O bobo tornara impossível semelhante
arbítrio, e porventura ajudara a descer do céu a bênção que
cobriu as armas de Afonso Henriques (HERCULANO, 19--a, p.
277-278, grifo nosso).
sumário
55
Primeiramente, o narrador já declara que a vitória da batalha fora
de D. Afonso Henriques, mas o confronto bélico ainda seria descrito,
em partes, no mesmo capítulo, ou seja, o leitor sabe do resultado final
antes mesmo da pormenorização do confronto. Isso é importante, porque joga luz sobre a personagem de Dom Bibas, que seria o grande
facilitador das hostes de D. Afonso Henriques na tomada da cidadela
de Guimarães, tudo por conta de uma vingança pessoal. Por isso, a
voz narrativa declara que a história não conheceu o truão, mas apenas
os fatos da vitória do infante e da busca por refúgio, no Castelo de Lanhoso, por parte de Fernando Perez e D. Teresa. Em outras palavras,
“[...] a recuperação do passado, feita de fragmentos, [...] não recupera
o que aconteceu, mas apenas a face visível, e por vezes falsa, do que
aconteceu” (OLIVEIRA, 2000, p. 148).
Vejamos também como o narrador insiste que é a batalha no
campo de S. Mamede que define os destinos de Portugal, com a interferência, em O Bobo (1128), de Dom Bibas. Para melhor entender
a opção narrativa por S. Mamede, podemos recorrer ao que propõe
Buescu (1993, p. 24-25):
O facto de, nas origens longínquas do sentimento da nacionalidade e na génese da constituição de uma memória das origens, ter sido a batalha de São Mamede (1128) a representar
a fundação, sendo depois substituída pela batalha de Ourique,
assume um significado particular quando encarado segundo
a perspectiva da relação especial que, numa visão tradicional
das origens, se estabelece entre o poder e o sagrado. / Se até
finais do século XIV a intervenção divina não se encontra ainda
incorporada na narrativa de Ourique, a sua inclusão na Crónica
de 1419 marcará o passo decisivo na transferência de São Mamede para Ourique como momento das origens.
Como verificamos, a autora versa sobre o momento em que
surge a narrativa miraculosa do aparecimento de Cristo a D. Afonso
Henriques antes da Batalha de Ourique. Sua conclusão, no entanto,
é de que o milagre passa a ser propagado tardiamente (século XV)
sumário
56
em relação à dita batalha (século XII). O motivo, segundo Buescu (1993),
é de que o Mito de Ourique passaria a atrelar o surgimento de Portugal a
uma vontade divina, estabelecendo o reino lusitano como um novo povo
eleito, conforme já verificamos em relação à posição de Herculano na
Polêmica de Ourique e na redação de História de Portugal.
Contudo, anteriormente, como relata a autora, a origem do reino
estava muito mais associada à Batalha de S. Mamede. É perceptível,
portanto, à luz dessa informação, que o narrador de O Bobo (1128) recupera o confronto bélico no campo de S. Mamede como o momento decisivo para a independência de Portugal. Em outras palavras, o narrador
do romance histórico opta pelas ações humanas – o contexto histórico
e a vingança de Dom Bibas – como fundamentais para o nascimento de
Portugal. Não há, por fim, milagre ou aparecimento fantástico:
Se a história é apenas uma recuperação parcial, se essa recuperação pode trazer uma face falsa do passado, podemos
entender o quanto esse romance poderia ser perturbador. Afinal,
Portugal poderia ter surgido não por grandes feitos, mas graças
a vingança de um reles bobo (OLIVEIRA, 2000, p. 149).
Como bem propõe Oliveira (2000), O Bobo (1128) desmistifica,
mesmo como ficção, o surgimento extraordinário do reino na Idade
Média, antes mesmo da publicação de História de Portugal, que teria
um viés científico. Atentemos, ainda, para os termos empregados pelo
narrador na “Conclusão” do romance histórico; ele afirma, de forma
patente, que Dom Bibas ajudara a “bênção do céu” recair sobre as
armas de D. Afonso Henriques. Aqui, não restam dúvidas da racionalidade da voz narrativa, que pode até crer no divino, mas o sujeito do
auxílio para a vitória do infante é o truão.
Todavia, há uma questão que, muitas vezes, é negligenciada em
O Bobo (1128): a liturgia monástica de aclamação de D. Afonso Henriques. Não significa que Dom Bibas não tenha um papel primordial,
pois já vimos, inclusive, o que o narrador do romance refere sobre ele.
sumário
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Estamos afirmando, contudo, que há ainda uma celebração que impulsiona o povo pela causa de D. Afonso Henriques, enquanto o confronto
acontecia no campo de S. Mamede:
As portas da igreja de S. Salvador abriram-se de par em par, e
dentro ouviu-se o som do melodioso órgão [...] e o canto dos
monges, que entoavam as orações do ritual antigo para chamar
a bênção do céu sobre a cabeça do príncipe que devia voltar
vencedor dos seus inimigos. / A revolta começava no burgo pela
liturgia monástica (HERCULANO, 19--a, p. 280, grifo nosso).
A essa altura, na descrição do romance, D. Afonso Henriques já
estava em vantagem, mas ainda a peleja não estava completamente
resolvida. As informações são de que “os habitantes do burgo [...] sentiram misturarem-se lá no alto as aclamações ao infante com os gritos
e gemidos dos que morriam” (HERCULANO, 19--a, p. 278) e estava
já “[...] hasteada na torre de menagem a signa de Afonso Henriques”
(HERCULANO, 19--a, p. 279), isto é, os que guerreavam pelo infante já
tinham alcançado o último reduto defensivo do Castelo de Guimarães.
Contudo, segundo o narrador, era a liturgia monástica que haveria de
incitar a aclamação popular do príncipe como rei, pois os monges passariam a cantar o ritual para clamar a bênção sobre D. Afonso Henriques. Vejamos: primeiramente, uma liturgia poderia guiar as massas
e, em segundo lugar, reiteramos que não há uma intervenção divina
ou uma aparição miraculosa. O que ocorre é a seleção de um ritual
pelo abade, Fr. Hilarião, notório aliado da causa do infante. Em outras
palavras, ainda que seja uma celebração religiosa no romance, ela é,
antes de mais nada, uma escolha humana:
Não havia dúvida que Fr. Hilarião tornara ao mosteiro, porque a
voz fraca e trémula do velho abade entoara as palavras do salmo – Deus se compadece de nós, – e os kyries dos outros monges haviam após isso reboado no templo e sido interrompidos
novamente por Fr. Hilarião que cantava: – Levanta-te, ó senhor! –
ao que os seus confrades respondiam na toada solene do canto
gregoriano. Depois de várias orações, durante as quais muitos
burgueses tinham sucessivamente entrado na igreja, seguia-se
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58
uma em que era necessário proferir o nome do príncipe para
quem se invocava a protecção divina. Ousadamente o bom do
abade garganteou: / ‘Ó Deus, a cujos pés está o universo, e a
quem obedece tudo sob o império do teu servidor fiel o príncipe
D. Afonso! – concede-lhe tempos pacíficos, e piedoso afasta
dele esta bárbara guerra, para que, regedor do teu povo, guiado
por ti, Senhor, obtenha paz no meio das gentes.’ / Ao acabar
esta oração um leve ruído de aplauso sussurrou pelas naves,
mas logo morreu em atento silêncio (HERCULANO, 19--a, p.
280-281, grifo do autor).
Obviamente, quando o narrador se refere aos “burgueses”, está
tratando da concepção medieval do termo, isto é, os habitantes do
burgo. Isso é importante para que entendamos que estamos diante
de uma designação mais próxima do “povo” que vivia em Guimarães,
sem participar da aristocracia. Tanto é assim que, no primeiro capítulo
do romance, há uma conceituação acerca da classe burguesa, traçando, em linhas gerais, as diferenças do período do seu surgimento
com o que viria a ser posteriormente (HERCULANO, 19--a, p. 7-8). Isso
posto, recordemos que são os habitantes do burgo (Guimarães) que
vão adentrando a igreja do mosteiro durante a liturgia monástica e que
já ensaiam certo aplauso, quando o abade pronuncia o nome de D.
Afonso Henriques em meio à oração.
A liturgia, no entanto, não era uma invenção de Fr. Hilarião, mas
o abade se vale dela, espertamente, pela causa do príncipe. Tanto é
assim que há uma nota de rodapé, no fim da oração proferida pelo
abade, que assim explica: “Em todas as circunstâncias desta cerimônia religiosa seguimos rigorosa e textualmente o ritual de Silos de 1050,
publicado por Berganza” (HERCULANO, 19--a, p. 281). Em outras palavras, o narrador de O Bobo (1128) se utiliza de uma nota elucidativa
para fundamentar o rito que está descrevendo: quer deixar claro que
não se trata de mera invenção, mas está embasado em uma liturgia da
Abadia de Silos (Espanha) – a qual remonta ao século VII e pertence à
Ordem de S. Bento, a mesma dos monges do mosteiro de Guimarães
sumário
59
–, publicada por Fr. Francisco de Berganza y Arce (1663-1738), historiador beneditino de Espanha. Com isso, vemos novamente que se
quer demonstrar que houve consulta a importantes documentos para
contar a história – normalmente, nos romances históricos de Herculano, tem-se essa preocupação com a seriedade do que se está narrando e a investigação documental, citada e constantemente reafirmada,
teria um peso fundamental para garantir tal respeitabilidade.
Ainda, observemos o teor das orações cantadas por Fr. Hilarião
e pelos monges: o verso “Deus se compadece de nós” é extraído do
Salmo 103,13. Em seu todo, esse Salmo é um bendito ou um louvor, que
exalta a justiça de Deus para com os oprimidos (Salmo 103,6) e convida
os exércitos e os ministros a glorificá-lo (Salmo 103,21), isto é, embora
haja a menção ao rito de Silos, como a fonte do que se descreve em O
Bobo (1128), a seleção do texto bíblico para o início da liturgia monástica
está relacionada com o que se passa naquele momento no romance.
Depois, o narrador refere que Fr. Hilarião entoa outra frase bíblica – “Levanta-te, ó Senhor” – que está presente em diversos Salmos. É uma
súplica para que Deus se erga e, nessa liturgia, pode ter o sentido de
clamor contra os inimigos do infante. No entanto, é na oração ousada
do abade que está a chave dessa liturgia: o rito prescrevia, de acordo
com o narrador, que o presidente da celebração mencionasse nominalmente o príncipe a quem se destinava a bênção e Fr. Hilarião declara
abertamente o nome de D. Afonso Henriques. Aqui, estamos diante de
uma opção: o abade poderia ter se reportado ao Conde de Trava ou à D.
Teresa, mas declara que é por D. Afonso Henriques que se está rezando
ou é o infante que deve vencer no campo de S. Mamede.
Não é uma novidade para o leitor que acompanhou o romance
histórico até esse ponto: Fr. Hilarião é um notório aliado, como já dissemos, de D. Afonso Henriques e isso fica patente ao longo do enredo.
Tanto é assim que o abade beneditino tem relações conturbadas com o
outro clérigo, aliado de Fernando Perez, o cônego de Lamego, Martim
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60
Eicha. Entretanto, a novidade é a seguinte: a liturgia é capaz de manipular o povo pela causa do infante, já quase vitorioso. Depois, embora
seja um rito religioso, a opção do abade é puramente humana: ele é um
aliado político de D. Afonso Henriques. Em outras palavras, reiteramos:
uma liturgia, nada miraculosa, em O Bobo (1128), auxilia na comoção
popular pela causa do príncipe e, por conseguinte, pela causa de Portugal. Assim prossegue a descrição do rito na igreja do mosteiro:
Fr. Hilarião continuou: / ‘Invocamos-te, Senhor, para que sejas
propício às nossas preces, tu que és o rei dos reis, e o dominador
dos que imperam. Volve olhos benignos para o nosso príncipe D.
Afonso...’ / Ao repetir deste nome, proferido em voz mais alta, um
brado de muitos brados retumbou pelas naves do antigo templo
de D. Muma: o povo que o enchia escoou-se lentamente pelo
escuro portal, e as aclamações ao infante, restrugindo no terreiro
contiguo, vieram reboar de novo pelas sacrossantas abóbadas.
/ Os homens de rua e os vilões, vendo o castelo e o mosteiro
declararem-se pelo filho do conde Henrique, revoltar-se a torre
de menagem e o ritual, entenderam que o burgo, assentado aos
pés de dois símbolos da força e da inteligência, devia imitá-los.
Dentro de poucos minutos pelas vielas da povoação corriam os
peões armados de fundas, de bestas, de ascumas, e fugiam para
a campanha os besteiros do conde, que guardavam os valos e
os cubelos da cerca exterior, acompanhados dos apupos dos
burgueses e de muitas pedradas e virotes disparados atrás deles. Então a ponte levadiça do castelo desceu, e alguns homens
de armas saíram para o burgo. À sua frente vinha o Lidador que
se dirigia ao mosteiro, rodeado já da vilanagem, que o saudava
e aclamava o infante [...]. Dom Bibas, montado em um ginete do
conde de Trava [...], seguia de perto o cavaleiro, rindo e fazendo
visagens e momos, sem se esquecer de distribuir golpes de palheta à direita e à esquerda com toda a munificência de um truão
real (HERCULANO, 19--a, p. 281-282).
Em O Bobo (1128), é a partir da prece eucológica – texto que
compõe o rito – de Fr. Hilarião, repetindo o nome de D. Afonso Henriques como o beneficiário daquela liturgia monástica, que o povo sai da
igreja para aclamar o infante pelo burgo de Guimarães. Vejamos como
sumário
61
o narrador evidencia que o abade frisou o nome do príncipe em voz
mais alta, ou seja, há nítida disposição, no rito, para manobrar os fiéis
pela causa de Portugal. Tanto é assim que, a partir do que observa na
torre de menagem da fortaleza e nas preces litúrgicas no templo do
mosteiro, o povo toma partido pelo príncipe, pois, até então, a Batalha
de S. Mamede estava sendo travada pelos cavaleiros e pelos nobres.
Reiteramos: o trecho do romance destaca que o povo do burgo
expulsa, com pedras e outras armas mais elementares, os besteiros de
Fernando Perez, que guardavam a cerca exterior de Guimarães. Além
disso, quando se baixa a ponte levadiça do castelo e Gonçalo Mendes
da Maia, o Lidador (1110? - 1139?), vem, montado, em direção ao
mosteiro, o povo o saúda – visto que era um dos aliados de D. Afonso
Henriques –, mas também já aclama o infante. Pensemos, pois, como
a vontade popular também é representada em O Bobo (1128), sendo
que a batalha no campo de S. Mamede, na obra de Herculano, não fica
circunscrita aos aristocratas – são estes que a travam, mas o apoio popular, sobretudo após o desenvolvimento de uma celebração litúrgica,
é crucial para o “nascimento de Portugal”. Portanto, na construção do
romance de Herculano, o reino lusitano surge do contexto histórico, da
vingança de um truão, da Batalha de S. Mamede, da liturgia monástica
– conduzida com as opções partidárias do abade beneditino – e, por
fim, da participação do povo. Embora O Bobo (1128) seja um texto de
ficção, não há evento miraculoso. Talvez fosse exatamente essa visão
que Alexandre Herculano queria propor para o contexto no qual a obra
foi publicada: assim como é necessário repensar e reconstruir Portugal, é fundamental volver o olhar para a sua origem e não há fábula
ou lenda que resolva o problema. É inevitável o reconhecimento dos
tempos e indispensável o trabalho humano.
Por fim, vejamos como há outro símbolo importante no trecho
do romance: Dom Bibas aparece montado em um ginete de Fernando
Perez e, como se espera de um truão, ri e faz trejeitos zombeteiros.
sumário
62
Podemos entrever nessa cena a mensagem ao povo de que o Conde
de Trava já não determinava nada, pois a sua montaria era usada por
um bobo; sua força bélica e dominação militar eram, agora, utilizadas
para o ridículo. No entanto, nesse ridículo havia também um fundo de
verdade: Fernando Perez era derrotado por D. Afonso Henriques.
CONCLUSÃO
Os mitos fundantes ou alguns mitos de caráter messiânico foram, costumeiramente, revisitados por ocasião das crises do reino, em
Portugal, pois pareciam ser a garantia divina da existência da nação.
Aliás, poderíamos discutir o quanto desses mitos ainda são presentes em discursos religiosos e políticos da atualidade, sobretudo os de
cunho populista, tanto em Portugal quanto no Brasil. Entretanto, no
século XIX, Alexandre Herculano optou por uma linha racional acerca
das origens pátrias: para ele, havia um contexto que, grosso modo,
explicaria a independência e a formação do reino, muito mais do que
por um milagre não verificável em documentações – pois afirma o historiador, em Eu e o clero (1850)9, que a criação do Mito de Ourique seria
bastante posterior à Batalha de Afonso Henriques contra os mouros.
No entanto, o autor não realizou essa “desmitificação” e, consequentemente, a “desmistificação” apenas em sua obra historiográfica ou na carta enviada ao Cardeal-Patriarca de Lisboa. Já em O
Bobo (1128) consta, na construção ficcional do romance histórico, a
desconstrução das origens legendárias. Embora o romance narre a
9
sumário
Segundo Luís Machado de Abreu (2004), Alexandre Herculano “Publica, em 1850, Eu e o
Clero, Carta ao Em. º Cardeal-Patriarca. Perante as reacções que não se fizeram esperar,
Herculano publicará ainda, nesse mesmo ano sobre a mesma matéria, Cartas ao muito
reverendo em Christo Padre Francisco Recreio, Solemnia Verba, e Considerações pacificas sobre o opusculo ‘Eu e o Clero’” (p. 42) .Eu e o clero, missiva endereçada a Dom Guilherme Henriques de Carvalho (1793-1857), é, provavelmente, uma das mais conhecidas
cartas do escritor sobre a Polêmica de Ourique.
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Batalha de S. Mamede (não a de Ourique, porque o escritor recupera
a tradição mais antiga), o nascimento de Portugal, como pudemos observar, se dá pelas circunstâncias históricas e pela ação vingativa de
um truão da corte, que acarretaria a vantagem de D. Afonso Henriques
no confronto bélico. Mas não apenas isso: no romance de Herculano,
há a descrição de uma liturgia no mosteiro de D. Mumadona, em Guimarães, que faz o povo tomar partido do futuro rei, em detrimento do
Conde de Trava.
Em outras palavras, Portugal nasce, na Idade Média, por conta
de um contexto, bem como de uma revanche e, por fim, sob o signo
de um rito. A liturgia é realizada pela vontade humana – sendo o abade
partidário de D. Afonso Henriques –, sem haver manifestação maravilhosa. Por isso, podemos afirmar que, além do diálogo entre as obras
de diferentes gêneros do autor, a reprodução, em O Bobo (1128), de
uma “liturgia fundante” é muito mais do que mera representação dos
cantos de Salmos e hinos, mas uma maneira de refletir que, em momentos de crise, não são legendas míticas que sustentam a existência
do corpo nacional.
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sumário
64
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sumário
65
Capítulo 3
3
Camilo e o Santo da Montanha
Antonio Augusto Nery
Antonio Augusto Nery
Camilo e O Santo
da Montanha
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.3
Resumo: Meu objetivo neste trabalho volve-se especificamente para as questões relacionadas às críticas voltadas à religião, à religiosidade e aos religiosos,
bastante exploradas em O santo da montanha (1866) e significativas tanto para o
contexto no qual a trama ocorre (fim do século XVII/início do século XVII) quanto
para o seu contexto de publicação. Nessa ficção, parece haver a preocupação
declarada do narrador em desvelar, sobretudo, a situação de religiosos hipócritas e torpes, nada autenticamente vocacionados, que viviam abrigados em
conventos e mosteiros. Para a comprovação dessa hipótese, me debruço principalmente sobre a análise de cenas nas quais temos o protagonista, Balthazar,
antes, durante e depois de sua profissão religiosa, inclusive quando, já velho, é
um “penitente”, ficando conhecido como “santo da montanha”.
Palavras-chave: Camilo Castelo Branco; O santo da montanha; (Anti)
clericalismo.
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67
Publicada em 1866, O santo da montanha é mais uma narrativa
camiliana da década de 1860 que detém forte crítica (anti)clerical, com
narrador e personagens transparecendo interesse não somente em tecer discursos negativos e virulentos contra religiosos e religiosidades,
mas, concomitantemente, por intermédio de questionamentos e ponderações, explicitar o comportamento religioso “positivo” que se quer
ou que se tolera – por isso o uso precavido dos parênteses no prefixo
“anti”, antes do vocábulo clerical, quando me refiro à questão.
A obra aqui em causa não foge à fórmula empregada por Camilo
Castelo Branco (1825-1890) em outras ficções, qual seja, a de trazer
à baila discussões críticas em meio à uma história de superfície com
inúmeros acontecimentos, relacionada quase sempre a desventuras
amorosas. Neste caso, temos o drama vivenciado por Balthazar Pereira da Silva, o qual, ao ter rejeitado seu pedido de casamento pela
prima, Mécia, por conta de não ter posses suficientes que agradassem
o pai da jovem, assassina D. José de Noronha, seu antigo amigo e,
posteriormente, rival, ao se tornar o pretendente escolhido por Mécia e
seu pai, Lopo Vaz de Sampayo.
Movido pela culpa e – importantíssimo mencionar, uma vez que
o narrador se exaspera em deixar claro – fugindo da justiça, Balthazar se refugia em um mosteiro franciscano. Acolhido nesse mosteiro
por um grande amigo, Frei Antonio de Christo, ele faz votos perpétuos
e passa a ser chamado Frei Balthazar das Dores. Por conta de uma
doença ocasionada pelas preocupações sobre a real vocação do novo
religioso, Antonio de Christo desloca-se para Funchal, na Ilha da Madeira, a fim de passar uma temporada no convento franciscano da ilha,
em busca do restabelecimento de sua saúde. Balthazar é levado pelo
amigo, que tem a intenção de acompanhar de perto o desenvolvimento
de sua vocação. Entretanto, será em Funchal que Balthazar reencontrará Mécia, casada com outro primo rico, D. José de Dornellas, e,
movido pela vingança e pela ira, assassinará a jovem.
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68
Embora reconheça-se culpado pelo assassinato da jovem, o
religioso não é condenado nem na esfera civil nem na religiosa. Ileso,
mas temente de ser punido pelos crimes cometidos, decide fugir, porém o navio no qual viajava para o continente é abordado por corsários,
que o levam para Argel. Depois de uma série de peripécias, temos o
protagonista já velho, vivendo e praticando caridades nas serras de
Alvão, onde morre com fama de santo, “canonizado” pela população.
Em linhas gerais, já pude me dedicar a esse enredo de superfície em um trabalho anterior (NERY, 2020), no qual meu interesse era
explicitar a preocupação aparente do narrador em vincular todos os
acontecimentos narrados ao contexto sócio-histórico e cultural de Portugal no final do século XVII e início do século XVIII, no qual a trama
se desenvolve. No referido trabalho, eu já deixava claro que, embora
a narrativa transcorra nesse momento histórico específico, todas as
elucubrações desenvolvidas pelo narrador relacionam-se diretamente
com o contexto oitocentista que recebe a publicação, em que os enlaces amorosos, o casamento e as relações de poder ainda eram muito regidas pelo dinheiro, títulos nobiliárquicos e questões de sangue
(tradições e castas familiares). Tais questões permaneciam muitíssimo
importantes no Oitocentos para definir o caráter dos indivíduos.
Meu objetivo neste trabalho, tendo em vista a pesquisa que venho desenvolvendo10 e outras incursões anteriormente realizadas na
produção camiliana (NERY, 2013, 2015, 2016, 2018), volve-se especificamente para as questões relacionadas à religião e à religiosidade,
bastante exploradas em O santo da montanha e igualmente significativas tanto para o contexto no qual a trama ocorre quanto para o seu
contexto de publicação.
10
sumário
“O (anti)clericalismo em obras de Camilo Castelo Branco”, projeto de pesquisa financiado
com bolsa de Pesquisa Produtividade PQ-2 do CNPq, aprovada no Edital 2022, vigência
2022-2024.
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Nessa ficção, parece haver a preocupação declarada do narrador em desvelar, sobretudo, a situação de religiosos hipócritas e
torpes, nada autenticamente vocacionados, que viviam abrigados
em conventos e mosteiros. Para a comprovação dessa hipótese, me
debruçarei, principalmente, sobre a análise de cenas nas quais encontramos o protagonista, Balthazar, já enclausurado em um mosteiro franciscano, logo após cometer o assassinato de seu oponente,
D. José de Noronha. Posteriormente, dedicarei atenção também aos
acontecimentos nos quais Balthazar, já velho, é um “penitente”, ficando
conhecido como “santo da montanha”.
Onipresente em todas as cenas, encontra-se Frei Antonio de
Christo, amigo de Balthazar já antes da clausura, que se apresenta não
somente como um irmão de coração e de fé do protagonista, mas um
verdadeiro contraponto utilizado pelo narrador para perfazer um tipo
de religioso virtuoso, que se quer e tolera, em meio a figuras religiosas
controversas, como é o caso do próprio Balthazar e de outros clérigos
que orbitam a narrativa.
Antonio de Christo também fora levado ao sacerdócio por conta de uma desilusão amorosa, mas, conforme se depreende, com o
passar dos anos, além de se resignar, passou a viver a experiência
religiosa de forma autêntica. Justamente por considerar sua própria
experiência, os conselhos de Frei Antonio, em consonância com as
impressões do narrador, vão sempre no sentido de ponderar os motivos que levaram Balthazar – e muitos outros religiosos – a se refugiar
na vida clerical, por motivos outros que não uma verdadeira vocação.
É dele uma assertiva bastante eloquente sobre a situação: “[...]estas
conversões repentinas á vida monástica denunciam frequentemente
grandes desgraças, quando não provam grandes culpas” (CASTELO
BRANCO, 1928, p. 181)11.
11
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Preservei a ortografia que consta na edição utilizada.
70
Entre as ações do recém-noviço que indicam alerta para Frei
Antonio, está o demasiado fervor demonstrado por Balthazar em
suas experiências religiosas. O extremismo contemplativo é, para Frei
Antonio, sinal de que a fé e a vocação do amigo não eram amadurecidas e convictas:
Concluido o anno de noviciado, frei Antonio de Christo affastou-se com Balthazar ao mais recôndito da cêrca e disse-lhe:
– Não professes, meu amigo.
– Porquê ? !
– A tua alma deve estar fatigada, porque a exercitaste muito
na contemplação. Vi-te fervor demasiado; penitencia extraordinária; ardores muito temporãos: receio que em breve se anniquillem as forças da fé excitadas pela grande calamidade que
se deu em sua vida. Tens vinte e nove annos, Balthazar: se não
morreres cedo, grandíssimas reacções hão-de pelejar em teu
espirito. Espera, meu irmão: não vistas o habito de professo;
conserva-te algum anno mais assim; e, depois, quando mui serenamente olhares para ti e te sentires menos ardente na piedade, e, todavia, bem disposto para a vida monástica, professarás
então (CASTELO BRANCO, 1928, p. 188-189).
As respostas e a postura de Balthazar diante das preocupações
do amigo e companheiro de Ordem transpareciam ainda mais os controversos motivos que o levaram a fazer votos perpétuos em poucos
dias, não refletindo nenhuma convicção profunda de sua parte: “– Professarei já – disse o noviço, sem pensar resposta – Professarei já, porque vem ahi a grande noute da sepultura e eu quero cahir n’ella com o
habito de professo. Não me demovas, Antonio, que impugnas assim a
vontade de Deus, que me chama” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 189).
É mister mencionar que outros religiosos do convento, mais experientes, também notaram que a vocação do protagonista era questionável. De acordo com o narrador, embora Balthazar “esforçava-se
em convencer o mestre de que suas amarguras eram amor e temor de
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71
Deus, e não amor e saudade do mundo” (CASTELO BRANCO, 1928, p.
187), o diretor espiritual dos jovens noviços o aconselhava, por suspeitar ser ele mais um rapaz impulsionado para a vida religiosa sem qualquer vocação. A situação, aparentemente muito comum, se não regra,
era compreendida pelo velho confessor como exemplo da atuação do
demônio nos conventos: “O mestre, como calejado naquela vida de
defender os peitos fracos dos noviços, já sabia de experiência que o
demónio não sahia do convento” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 188).
Aqui, vale a pena um aparte em minha reflexão para demarcar
exatamente o tipo de religioso desde sempre valorizado pelos narradores em diversas obras camilianas que venho analisando. São posturas
comedidas e reflexivas, como as de Frei Antonio e o do mestre de
noviços, que no geral são sempre ilustradas quando está em causa a
atuação de determinados tipos de religioso que declaradamente recebem o rechaço dos narradores por conta de suas atitudes.
Frei Antonio, por exemplo, ao não conseguir demover o não vocacionado da profissão religiosa definitiva, fica altamente impactado,
sendo tomado por uma doença que o deixa acamado. O já professo,
agora nomeado Frei Balthazar das Dores, passa horas ao lado do convalescente, dando a entender que a profissão tinha lhe feito muito bem,
ressaltando a suposta vocação e o feito de ter esquecido as mazelas do
passado. Mas o comportamento não parece autêntico ao doente e muito
menos ao narrador, que denomina Balthazar de homicida, com “índole
deplorável”, deixando evidente seu julgamento acerca da personagem:
Era artificio, dissimulação mais dolorosa do que o chorar e maldizer. Frei Balthazar, como comprehendesse a doença do seu
amigo e se accusasse de lh’a ter motivado, curou de remedial-a com o fingimento. E conseguil-o-ia, se frei Antonio lhe não
penetrasse o intento e não colhesse, n’aquella hora da cêrca,
perfeito conhecimento da indole deplorável do homicida de D.
José (CASTELO BRANCO, 1928, p. 195).
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Vale destacar que, em outros momentos da trama, além de homicida, Balthazar é denominado pelo narrador de assassino e até mesmo “carniceiro que premeditava um sêvo de mais sangue” (CASTELO
BRANCO, 1928, p. 225). De partida, ao narrar a decisão do assassino
de D. José de Noronha de refugiar-se em um convento, apenas quatro
dias depois de ter cometido o homicídio, deixa logo clara a sua reprovação, mesmo ponderando que o processo, julgamento e condenação
na justiça civil não puderam ocorrer por não haver provas suficientes
que condenassem o assassino:
Balthazar Pereira da Silva, com a consciência talvez exulcerada e sem duvida com receio de morrer da sua paixão, sem
ter merecido a misericórdia do supremo Juiz, seguiu o destino
exemplificado por ilustres nomes da nossa historia: acolheu-se
ás abobadas sagradas. O que ha n’isto mais para tristeza e
escandalo da religião santa d’elle e nossa é que, premeditado
o homicidio, foi premeditado o remédio da alma... (CASTELO
BRANCO, 1928, p. 181).
Voltando à cena anterior, por conta da doença, Frei Antonio recebe a imposição de se restabelecer no convento de S. Francisco da Observancia, em Funchal, na Ilha da Madeira, para onde eram enviados
os freis doentes. Balthazar implora para acompanhar o amigo e este,
antevendo que a estada na ilha poderia fazer bem para o professo
novato, usa de sua influência para com o guardião a fim de que a concessão da partida de Balthazar fosse dada. A autorização é concedida,
entretanto, segundo comentário crítico do narrador, embora gozasse
de prestígio com o guardião e de amizades com parentes do provincial
da Ordem, consegui-la não foi fácil, pois o temor de perder o dinheiro
doado por Balthazar fez com que se formasse forte oposição à sua saída: “Quem mais lh’a impugnava eram intrigas fradescas do convento,
afeito a receber e receoso de perder a boa colheita dos bens reservados de frei Balthazar das Dores” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 196).
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A estada no convento franciscano na Madeira apresentava-se
promissora para os planos de Antonio destinados a Balthazar, pois
o local tinha fama de ser bastante douto e ilustrado, graças ao fato
de seus mais de cinquenta frades serem vizinhos de um convento de
jesuítas. Todavia, a estada, a princípio tranquila, revela um espaço no
qual habitam religiosos com comportamentos questionáveis, avessos
às práticas religiosas que deveriam exercer: fofoqueiros, muito preocupados com os acontecimentos sociais de Funchal e com questões
seculares, como a genealogia sanguínea dos fiéis e aqueles que mais
detinham posses.
Para enfatizar essas características, o narrador se demora em
dar notícias também sobre os jesuítas e justifica-se: “Estas apresentações não m’as tome o leitor como ociosas. Vem logo o ensejo de
as fazer necessarias na travação d’estes succedimentos” (CASTELO
BRANCO, 1928, p. 197); isso pelo fato de que serão esses religiosos
que revelarão o novo casamento de Mécia e, ao fim e ao cabo, “preparam o terreno” para a tragédia final do enredo.
Tomo essa fala do narrador para enfatizar que a postura controversa dos religiosos que habitam os conventos está sempre sob o
olhar atento do narrador. Por exemplo, quando o mestre dos noviços
do convento de Vila Real apresenta a biblioteca para Balthazar, o narrador detalha que as atividades exercidas pelos noviços naquele espaço eram completamente contrárias – e mesmo bizarras, considerando
que se trata de uma biblioteca – à forma como o mestre apresenta o
espaço e as “sãs doutrinas” nele presentes:
O mestre conduziu-o á livraria dos noviços e disse-lhe:
– Filho, aqui tendes o Examen Regularium de frei António de S.
Boaventura, as obras do devotíssimo Pinelo, as de S. Pedro de
Alcantara, as de S. João da Cruz, as de Santa Thereza. Enchei-vos d’estas sãs doutrinas; isto é maná, são as lâmpadas da
estrada da gloria... Lede, meu filho...
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74
Quando o padre-mestre estava fervorosamente inculcando as
lâmpadas da estrada da gloria, Balthazar viu de esguelha que
dous noviços de caras carnudas e vermelhaças punham o polex
da mão esquerda na ponta do nariz; encostavam o dedo mínimo ao polex da mão direita, e, entre-abrindo os dedos, abanavam com elles mui perto do alabastri- no cachaço do mestre.
Ao mesmo tempo, n’um recanto da sala, um noviço jogava, com
ares britannicos, o murro com outro, mas tão surdamente, que
apenas se ouvia o choque das punhadas nos respectivos estomagos ou caras.
Aquelles noviços e os outros pareciam estar não sómente allumiados, senão abrazados da luz das lampadas, que o esclarecido e gordo mestre re-commendava (CASTELO BRANCO,
1928, p. 185-186).
Ainda nesse convento, o narrador deixa claro que Balthazar começou a ser visto com “olhos reverentes e lisonjeiros” pelos outros frades,
por conta de uma mesada dedicada mensalmente ao local, advinda de
um imóvel deixado para o irmão, antes de entrar para a vida religiosa:
Comquanto o morgado das Olarias reservasse da casa que
doara ao irmão pequena parte, os proventos d’ella sobejavam a
uma limpa e abundante sustentação. Os rendimentos entraram
no convento sob titulo de esmola, e regalaram os animos e os
corpos da coromunidade. Esta simples cousa creou á volta do
noviço uns modos reverentes e lisongeiros dos frades, poupados assim de se andarem em mendicidade, a pé, por caminhos
maus, ao vento e á chuva, carregados de alforges e cabeças
de recos nos mezes rigorosos do inverno (CASTELO BRANCO,
1928, p. 187-188).
A ironia presente nesse trecho também é perceptível na maneira
como o narrador refere-se aos jesuítas de Funchal, pelos quais Balthazar fica sabendo que sua amada Mécia irá se casar com um primo,
D. José Dornellas, e passará a viver na cidade. Esses religiosos estão
mais interessados em fofocar sobre o acontecimento social que se
aproximava do que aconselhar os envolvidos sobre as consequências
de um casamento por interesse, quando têm a chance de fazer isso.
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A narrativa, por sua vez, dedica o capítulo XXVI para esclarecer
as circunstâncias do enlace que se aproximava. Ficamos sabendo que
após o homicídio de D. José de Noronha, Mécia e o pai passaram a
viver em Lisboa em busca de um bom casamento para a moça ou,
nas palavras de Lopo de Sampayo, alguém capaz de reerguer “a casa
da família”, tirando-lhes da falência e dando-lhes uma vida de posses.
Se em Lisboa Lopo estava triste, não era exatamente pela tragédia
ocorrida com o finado genro, mas por conta de que o acontecimento
usurpara a possibilidade de gozar a fortuna que a união traria:
Lopo Vaz, porém, ia abatido e melancolico. O estrondo do tiro,
que lhe matara o auspicioso genro, acordára-o de sonhos asiaticos. Era triste ver derruirem-se as torres solarengas que a phantasia do velho reedificára, mediante o dinheiro de D. José de
Noronha e Távora!
– Foi a suprema desgraça de minha acabada vida! – murmurava
elle, sentado defronte da filha na liteira que os transportava a
Lisboa – Funestissima calamidade, filha!...
– Emfim... – dizia a menina – foi a vontade do Senhor.. que havemos de fazer-lhe, meu pai!... Não se afflija... Verá que eu hei-de
achar marido tão fidalgo e tão rico ou mais que o primo D. José.
Em Lisboa não ha tanto moço abastado e da primeira fidalguia?
[...] Estes e ouros diálogos, que não edificam, nem deshonestam, passaram entre os dous antes da entrada em Lisboa (CASTELO BRANCO, 1928, p. 202-204).
Como já se pode notar na resposta que Mécia dá para os lamentos do pai, se em momentos anteriores a narrativa parecia ter alguma
condescendência para com a jovem, por ter aceitado casar por interesse com D. José de Noronha, preterindo Balthazar e cedendo aos
interesses do pai, e não aos seus sentimentos, neste ponto do enredo
temos deflagrada a postura interesseira da jovem, que, se não idêntica,
muito se aproxima da postura de seu pai. De acordo com o narrador,
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76
viver na côrte era o anhelo ardente da filha de Lopo. Viver como
sua mãi no paço, sentada em almofadas reaes, com as maiores
senhoras do reino, e respirar o mesmo ar de rainhas e infantas,
isto creio eu que lhe absorvia o melhor das potencias do coração.
Mataram-lhe o noivo rico; triste cousa foi; mas, se a desgraça de
não ter tal marido era indemnisada com a boa fortuna de sahir
da serra para as alcatifas do paço, cumpra-se a vontade do
Altissimo (CASTELO BRANCO, 1928, p. 201-202).
É por isso que a proposta de se casar com o primo madeirense
rico é rapidamente aceita por Mécia e efusivamente incentivada pelo
pai, pois, após dois anos em Lisboa, nenhum bom partido havia aparecido para a jovem. Os interesses escusos de Lopo, que já nessa altura do enredo é tratado como “ardiloso fidalgo” (CASTELO BRANCO,
1928, p. 206), levam o narrador a explicitar ironicamente seu posicionamento sobre a hipocrisia e a situação decadente de muitas famílias
portuguesas – representadas por intermédio dos discursos de Lopo
Vaz –, que prezavam por uniões matrimoniais que lhes dariam “[...] os
herdeiros do sangue mais puro que corre em veias de portuguezes!”
(CASTELO BRANCO, 1928, p. 207). Consoante o narrador, “o bom sangue tem absurdos que, bem contados, sujariam o renome de luminosos appellido, sem os quaes a historia portuguesa escassamente daria
um livro em formato diamante” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 205).
Ao tomar conhecimento de que Mécia iria viver em Funchal após
casada, Frei Antonio, receoso de que a proximidade da jovem pudesse
suscitar a ira de Balthazar, resolve deixar a ilha e retornar ao convento
de Villa Real, implorando ao amigo que o acompanhe, mas Balthazar
resolve ficar. O narrador, ao relatar a partida de Frei Antonio, assim
vaticina: “Fugiu o anjo do energúmeno, finalmente. Parece que é Deus
que o leva, para que no covil de Balthazar entre desassombrada a tentação, espumando sangue” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 220).
O receio de Antonio concretiza-se, pois certo dia, logo quando
vê boa oportunidade, Balthazar assassina Mécia, ocupando-se da
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77
arma de um fuzileiro que fazia a guarda do convento. Mécia, recém-casada, vivia com o marido em uma casa nas proximidades dos muros do convento, perto o suficiente para Balthazar pedir emprestada
a arma do vigilante, com a desculpa de caçar um animal, e alvejar a
jovem na cabeça12. Após o ato, o narrador faz questão de demarcar
12
sumário
Não posso deixar de sublinhar a forma como o narrador lida com a confirmação dos acontecimentos que relata sobre o homicídio de Mécia, pois é uma estratégia narrativa bastante
utilizada por Camilo, na tentativa de dar veracidade ao que seus narradores estão apresentando, conforme bem explica Santos (2016). Eis a digressão: “Frei Balthazar foi em
direitura á cella. Caminhava tranquillo como na noute em que vira cahir D. José de Noronha.
E Mécia cahira também? Morta, fulminada, com um dos quartos no centro da testa. – Inverosimil! – exclama o leitor – Provas! Um facto provado, histórico, verosimil, que se pareça
com esse. Ahi vou. Não ha de ser um que se pareça há de ser o mesmo, o caso de Mécia
assassinada, referido, impresso por um amigo do frade, pelo juiz que ajudou a julgal-o, por
António Vanguerve Cabral. O leitor não tem, mas encontra nas livrarias publicas, em muitas
particulares e também na minha, um livro assim intitulado... (tome fôlego, que o título é
espaçoso): Epilogo juridico de vários casos civeis e crimes concernentes ao especulativo e
prático, controvertidos, disputados e decididos a maior parte d’elles no supremo tribunal da
côrte e casa da supplicação com umas insignes annotações á lei novíssima da prohibição
das facas e mais armas promulgada em 4 de abril de 1719. Author, António Vanguerve Cabral,
jurisconsulto lisbonense, etc. (1). Se tem o livro á mão, abra a pag. 169 e leia. Se o não tem
e fia da minha lealdade, leio eu: ‘A’cerca do homicidio casual, me será licito escrever, para
exemplo, um caso que succedeu na cidade do Funchal da ilha da Madeira no anno de
1693, onde eu era juiz commissario d’aquelle bispado e assessor do illustrissimo bispo D.
frei José de Santa Maria, e depois premudado para o bispado do Porto, e no dito caso fui
também consultado, o qual foi na forma seguinte: ‘Na cidade do Funchal da ilha da Madeira é costume observado que, vindo para o porto da dita cidade de tres navios para cima,
tocar-se a rebate aonde se ajuntam as companhias da ordenança com seus capitães e se
arrumam onde elles mandam. Succedeu arrumar-se uma companhia á cerca dos religiosos
de S. Francisco, onde tinham arrumado os soldados as armasjunto á porta da cêrca, que
vulgarmente se chama a porta do carro; e vindo um religioso, pegou em uma espingarda
que estava carregada com quartos, dizendo queria atirara a um francelho, e com effeito
atirou e errou o tiro. E por volta da tarde, que o tiro foi pela uma hora depois do meio dia, se
divulgou que uma mulher nobilíssima, por nome D. Mécia, a mataram, estando ella a uma
janella das suas casas, que ficavam muito distantes da cêrca dos religiosos e por detraz
da dita cêrca, e por esta causa se não via; e logo o religioso disse que devia ser do tiro que
havia atirado ao francelho, pois não houve outro tiro naquelle lugar e se averiguou que fora
morta d’aquelle mesmo tiro, porque se achou que fora um quarto de bala que havia dado
na testa da dita D. Mécia; e não se havia n’aquelle sitio ouvido outro tiro e a espingarda
carregada com quartos.’ Logo voltaremos a consultar o sábio jurisconsulto e integerrimo
juiz sobre a innocencia do frade. Por emquanto, fique provada a veridicidade, que não já a
verosimiihança da historia, e assim confundida a descrença do leitor - louvavel descrença,
até certo ponto; porque, nos casos monstruoso» de crimos perversissimos, a repugnância
era crel-os é indicativa da bondade de nossa indole, maiormente se os criminosos são portuguezes. Nas bestas-feras que os novellistas de França nos descrevem, n’essas cremos,
são naturaes, são pintadas do natural. Portuguezas não nas ha; quer o nosso pacifico génio
que as não haja.’ (1) Esta obra costuma andar encadernada com outra do mesmo author
intitulada Tractatus praticus juridicus de sacrilegio, fol. Lisboa 1715. A obra, cujo titulo vai
trasladado em cima, é dedicada e offerecida á sagrada imagem de Jesus Christo, com o
soberano titulo da boa sentença, colocada na santa sé de Lisboa oriental. Se não ha-de ser
verdadeira obra com tal offertorio!” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 231-234, grifo meu).
78
a satisfação de Balthazar pelo crime cometido e, concomitantemente,
expor sua reprovação e ojeriza para com esse comportamento do
protagonista. Assim, após detalhar minuciosamente o que encontrou
nos “documentos legítimos” do juiz que julgou o caso (vide nota de
rodapé 4), ele esclarece:
E’ necessário crel-o, ainda que o juiz commissario o não diz : o
frade tinha lá dentro nas cavernas do peito uma serpe que o deleitava, despedaçando- o. Dava lhe latidos de jubilo o coração!
Era um apunhalar-se delicioso! Era embriaguez de sangue; era
a demência dos precitos, em cuja razão já se apagou o derradeiro lampejo de esperança em remédio, em rehabilitação! Tudo
péssimo n’aquelle homem, tudo assombroso de perversidade!
Para cumulo de infamia, até a coragem de viver lhe restava
(CASTELO BRANCO, 1928, p. 235).
O que se segue após o segundo assassinato cometido pelo
protagonista é a narrativa de sua absolvição, tanto pelas leis dos homens, conforme o narrador atesta, recorrendo aos “documentos oficiais”, quanto pelas leis da Igreja, instituição que o tem como religioso
exemplar. Ressalte-se que o juiz que julgou o criminoso era um seu
amigo, conforme grifei na citação contida na nota de rodapé 4, ou seja,
está posto que não houve imparcialidade no julgamento de Balthazar –
ou, em extensão indireta, de qualquer religioso que cometesse algum
delito de menor, igual ou maior envergadura.
A reação do narrador diante da injustiça não poderia ser outra:
ele volve sua ironia crítica não somente para a desfaçatez do criminoso, mas também para os legalistas, seculares e religiosos, que sequer
o repreenderam, muito menos o condenaram por tirar a vida de dois
seres humanos:
Está dito bastantemente para entendermos quanto frei Balthazar das Dores era acatado e presado de theologos especulativos, moralistas e jurisconsultos. Nem sequer irregular!
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Nenhuma pena, nenhuma desconfiança, nem laivo de mau conceito, e D. José de Noronha e D. Mécia de Sampayo assassinados!
Se o frade, até aquelle acto, perguntava: ‘onde está Deus?’
quem o impedia de responder depois aos duvidosos que o interrogassem pelas mesmas palavras: ‘Deus não está em parte
nenhuma conhecida, nem na consciência do assassino, nem
nas consciências dos theologos especulativos, moralistas e jurisconsultos’ (CASTELO BRANCO, 1928, p. 235-236).
Segundo o texto, passados dois meses desses acontecimentos,
Balthazar cogita sair de Funchal, em busca de liberdade plena, deixando a vida religiosa e estando bastante atento ao “abysmo da justiça
dos homens” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 238). A ideia era
Sahir para Portugal, simulando acolher-se á companhia do seu
amigo [Frei Antonio de Cristo] e á sua casa professa. Depois,
em terra grande como Lisboa, sumir-se, desfigurar-se, deixar
crescer barbas e cabellos, trajar-se ajustadamente ao seu desígnio e de lá escolher o fito do destino vagarosamente meditado (CASTELO BRANCO, 1928, p. 238).
Sem nenhum pudor, “Nem medo de Deus, nem sonhos hórridos, nem ferroadas da consciência” (CASTELO BRANCO, 1928, p.
237), temos nitidamente o assassino tramando uma fuga, porque, embora tenha sido absolvido em um julgamento, sabe bastante bem os
crimes cometidos e está receoso de que a punição por eles possa
tardar, mas não falhar.
A empresa é levada a cabo e Balthazar embarca em navio carregado de açúcar que partia para Lisboa, o qual, em sua terceira noite
de viagem, inesperadamente é atacado por corsários argelinos, que
detêm a tripulação e a levam cativa para Argel. Em mais uma reviravolta tipicamente camiliana, o protagonista transforma-se em amigo
sumário
80
do corsário que o capturou, Mustaphá13, e, por intermédio deste, é
apresentado à autoridade religiosa dos turcos; após fazer juramento à
Maomé, passa a ser denominado “Ali-Fendi”, recebe o título de “Boluco
Baxi”, uma espécie de capitão, e casa-se com a bela e rica sobrinha
de Mustaphá, a qual, após dar-lhe uma filha, morre, deixando-lhe rico
e com uma bela primogênita, chamada Lindaraxa.
Depois de “Dobaram-se os annos. Doze foram eles, e Lindaraxa tinha quinze e o pai cincoente e três” (CASTELO BRANCO, 1928,
p. 247), a menina manifesta o desejo de conhecer a terra natal do
pai, Portugal. “Era julho de 1712” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 247)
quando os barcos de Ali-Fendi rumaram a Portugal, a fim de realizar a
vontade de sua filha. Mas a comitiva é tida como composta por corsários e atacada pelas forças militares portuguesas, que não hesitam em
13
sumário
Na descrição da cena na qual ocorrem os primeiros diálogos entre Balthazar e o corsário
Mustaphá, tem-se mais uma vez empenhada a estratégia narrativa, tipicamente camiliana,
de explicitar que as informações propostas, no caso, sobre as origens de Mustaphá, são
retiradas de uma fonte fidedigna. A digressão claramente se dá para justificar que Balthazar se serve do conhecimento que tinha sobre a genealogia da família do mouro para se
aproximar de seu interlocutor, bastante interessado em ouvir informações sobre sua família paterna: “O mouro contou a vida de seus paes para dizer que era filho de portuguez.
Chamava-se Mustaphá e orçava por sessenta bellos annos. Seu pai era dos bons fidalgos
de Portugal... Aqui se pinta na phantasia do leitor que eu vou ideando um corsário filho
de fidalgo lusitano, sem pejo de desluzir na honra de algum grande appellido. Não direi
o appellido por a mesma razão de melindre que teve para não dizel-a João de Carvalho
Mascarenhas, o author da relação da perda da Nau Conceição em 1621, publicada em
1627. A historia do pai de Mustaphá queira o leitor vela, que é longa e descabida aqui,
no livro indicado, que é o terceiro tomo da Historia trágico-marítima” (CASTELO BRANCO,
1928, p. 241-242, grifo do autor). É de se registrar que ainda há uma nota de rodapé na
qual está transcrito um trecho do citado livro de João Mascarenhas, dando detalhes sobre
a origem do pai de Mustaphá.
81
atirar nos forasteiros. Um dos tiros alveja Lindaraxa, que cai morta14,
com o narrador apressando-se a explicitar o desfecho da cena e seus
comentários sobre ela:
Balthazar, quando cahiu de braços abertos sobre o cadaver, ia
como cego, mas nas trevas de seus olhos fulguraram umas lettras de fogo, com as quaes elle formou a palavra Expiação.
A justiça de Deus, para ser na severidade egual á misericórdia,
devia ser aquillo: matal-o no que lhe era mais vida que a existência própria (CASTELO BRANCO, 1928, p. 250, grifo do autor).
Todos esses acontecimentos, narrados muito rapidamente, se
considerarmos o espaço temporal no qual ocorreram, a extensão da
narrativa e a demorada descrição de algumas cenas anteriores, parecem se dar justamente para conferir verossimilhança ao “gancho” que
ligará a transição de Frei Balthazar para o “santo da montanha”, pois, em
um único capítulo, o foco narrativo volve-se para “meado de janeiro de
1713” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 25), nas serras do Alvão, onde um
já velho Balthazar faz caridade, sem ser reconhecido como o antigo senhor das olarias. Por intermédio de um casal muito pobre, habitante do
local, ele descobre que seus irmãos estão completamente falidos, sen14
sumário
É mister mencionar que o narrador informa o seguinte: “O caso foi depois assim referido
por frei Cláudio da Conceição no Gabinete histórico” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 250,
grifo do autor), abrindo em seguida aspas para citar o texto. Logo após, tece o comentário final acerca das supostas referências verídicas das quais se serviu para comprovar
algumas das informações apresentadas em sua história. Nessa curiosa intervenção do
narrador, entretanto, há não somente a problematização das informações contidas na
fonte bibliográfica, mas também comentários sobre o que nela não constava e que sua
narrativa apresenta, com ineditismo. Trata-se de um interessante trecho, que ilustra muito
bem esse tipo de estratégia narrativa empenhada por Camilo Castelo Branco na construção de seus narradores: “No máximo da noticia, frei Claudio da Conceição folgou de
se deixar enganar por outro frei Claudio, a quem o governador mentiu para encarecer a
façanha de atirar algumas dezenas de balas razas sobre três navios inoffensivos, sem
característico de bellicosos. O que nem governador, nem archivistas da proeza souberam foi que alli mataram a mais formosa moura de Argel e que uma bala dos armazéns
do castello de S. João da Foz tinha mysterio de alto decreto, porque nos faz lembrar e
faria lembrar também a Balthazar Pereira da Silva que D. José de Noronha e D. Mécia de
Sampayo tinham sido assassinados com bala. Mas que crime tinha a innocente menina,
– christã ou moura, não nos importa saber o que era – que crime tinha a inocente... Se a
gente soubesse destrinçar estes mysterios, não diria tanto a miúdo:
‘Secretos juizos do Altíssimo!’” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 252).
82
do ajudados por Frei Anthonio de Christo, que, ao reencontrar o amigo,
o acolhe, o confessa e fica com a incumbência de receber sua herança,
vinda de Argel, a fim de que ele possa continuar a ajudar financeiramente a família falida e construir uma igreja no local onde era a antiga casa
das Olarias. Para si, Balthazar apenas deseja que o bondoso frei proveja
uma mesada para financiar as caridades realizadas em prol do povo de
Alvão e lhe construa uma cabana onde possa viver15. É ali, em uma localidade erma e isolada, de uma das aldeias de Alvão, chamada Bustêllo,
que Balthazar, finda seus dias, infligindo-se uma punição por todos os
seus pecados cometidos: doa-se pelos mais necessitados e, por isso,
tal qual Angélica, protagonista do A bruxa do monte Córdova (1867), é
igualmente “canonizado” como “santo” pela crença popular.
Quando de sua morte, “ergueram-se centenares de vozes n’um
chorar alto, que as montanhas d´além repetiam. – Morreu o santo! –
conclamaram todos” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 263). Nas derradeiras linhas do texto, embora o narrador pondere que não duvida da ação
de Deus diante do impossível, ele parece não se convencer piamente,
como o povo, da salvação da alma do protagonista: “A piedade conjectura que Balthazar se salbou; Eu não conjecturo cousa nenhuma,
porém a Deus nada é impossível” (CASTELO BRANCO, 1928, p. 264).
Caminhando para o final desta reflexão, gostaria de retomar a
postura do narrador camiliano nessa narrativa e endossar que, tal qual
ocorre em outras narrativas do autor com temática semelhante, são em
passagens aparentemente circunstanciais do enredo, por intermédio
15
sumário
É interessante mencionar que o narrador esclarece o seguinte sobre a construção da
choça de Balthazar: “A choça concluída era imitante a uma que o mancebo gentil e apaixonado, de alcunha o Nemrod transmontano, vira na matta do Roboredo, viivte e seis
annos antes – a cabana do beato eremita Francisco de Jesus” (CASTELO BRANCO, 1928,
p. 260). Em minha pesquisa, não encontrei qualquer referência “empírica” sobre o referido
eremita, o que me leva a crer que pode ser mais um elemento da estratégia narrativa de
dar “veracidade” à história que está sendo contada, entretanto, se considerarmos que o
mote do “penitente”, isolado em uma choça e com fama de caridoso e santo é utilizado
um ano depois em A bruxa de monte Córdova, é de se pensar que Camilo Castelo Branco
talvez estivesse apenas representando um fenômeno corriqueiro em sua realidade.
83
de comentários e/ou digressões, que podemos compreender a maneira como ele lida com a questão (anti)clerical em suas obras.
O que parece estar em jogo aqui é a clara tentativa, por parte da
narrativa, de promover uma espécie de depuração das personagens
religiosas exemplares, quando comparadas a outras deploráveis, nitidamente rechaçadas, ora pelo próprio narrador, ora por outras personagens. Tal depuração e os questionamentos inerentes a ela muito
conectam-se com a discussão em torno da autenticidade da vocação
religiosa do indivíduo que está sendo ilustrado.
A crítica também se volve à instituição religiosa como um todo,
pois, se para a Igreja e a maior parte de sua ortodoxia, Balthazar se
constituía um religioso professo, autêntico e arrependido de seus pecados, com uma vida nova totalmente dedicada a Deus e à Igreja, para
o narrador camiliano desde sempre o protagonista foi um homicida
deplorável. Se foi “salvo” ao final de sua vida, isso poderia ter sido por
conta do poder de Deus, não da Igreja e muito menos das atitudes
derradeiras, ainda que louváveis, do “santo da montanha”.
A crítica posta é voltada para inúmeros religiosos que se servem da religião e da religiosidade para fingir inocência de crimes cometidos ou preservar comportamentos hipócritas e controversos; ou,
ainda, voltada para aqueles que, sob a proteção da “fé, esperança e
da caridade”, virtudes teologais, bem como do poder religioso ao qual
estão investidos, continuam a praticar barbáries sem sofrer punição
nem pela instituição civil nem pela religiosa.
Outra característica do (anti)clericalismo presente em O santo
da montanha, que preciso ressaltar, é que o narrador, direta ou indiretamente, concebe o verdadeiro amor entre humanos como igual
ou maior do que o amor experimentado pelos religiosos em sua relação com o divino. Por exemplo, ao se referir ao sentimento do marido
de Mécia por ela, propõe: “João Dornellas, o mais feliz dos homens,
sumário
84
o louco de amor que todo elle era um sorriso de alma embriagada
nas delicias da bem-aventurança, que os esposos felizes conhecem
muitíssimo melhor do que Santo Agostinho e Santa Thereza de Jesus”
(CASTELO BRANCO, 1928, p. 225). Já os frades jovens, ao observar
da cerca do convento dos franciscanos as felicidades e os beijos dos
recém-casados Mécia e João Dornellas, “coavam olhos em que certamente não pintavam os deleites puríssimos da celestial Jerusalém”
(CASTELO BRANCO, 1928, p. 228).
Para finalizar, reitero que, mesmo o enredo se passando em um
contexto outro que o de publicação, o narrador está atento à situação
da religião e da religiosidade em sua atualidade: “E’ mister que retrocedamos ao crer e sentir da humanidade de ha dous séculos para nos
não espantarmos das incongruências das grandes almas de então, até
certo ponto semelhantissimas ás almas de hoje” (CASTELO BRANCO,
1928, p. 180). Igualmente, cabe acrescentar, tendo em vista a situação
religiosa atual neste início da segunda década do século XXI, que também podemos dizer que as palavras do narrador camiliano, voltadas
para 1866, muito têm de significado para os nossos dias.
REFERÊNCIAS
CASTELO BRANCO, Camilo. O santo da montanha. 5. ed. Lisboa: António
Maria Pereira, 1928.
CASTELO BRANCO, Camilo. A bruxa de monte Córdova. 6. ed. Lisboa:
António Maria Pereira, 1957.
NERY, Antonio Augusto. Romantismos, realismos e anticlericalismos em
Amor de perdição (Camilo Castelo Branco). Revista Letras, Curitiba, v.
37, p. 151-168, 2013. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/letras/article/
view/31051/22015. Acesso em: 12 set. 2022.
NERY, Antonio Augusto. Camilo e O bem e o mal. In: CASA DE CAMILO
– CENTRO DE ESTUDOS (Org.). Encontros camilianos 1. Vila Nova de
Famalicão, 2015. p. 107-126.
sumário
85
NERY, Antonio Augusto. A bruxa de monte Córdova: religiosos e religiosidade
em questão. In: SOUSA, Sérgio Guimarães de; BRAGA, João Paulo (Org.).
Ficções do mal em Camilo Castelo Branco. Vila Nova de Famalicão: Casa
de Camilo – Centro de Estudos Edição, 2016. p. 89-111.
NERY, Antonio Augusto. Camilo e a divindade de Jesus. Revista Guavira,
Lagoas, v. 26, p. 138-147, 2018. Disponível em: http://websensors.net.br/seer/
index.php/guavira/article/view/652/482. Acesso em: 12 set. 2022.
NERY, Antonio Augusto. Sobre os contextos históricos de duas narrativas
camilianas com temática (anti)clerical e (anti)religiosa: O santo da montanha
e A bruxa de monte Córdova. In: SOUSA, Sérgio Paulo; RIBEIRO, Ana (Org.).
Romance histórico. cânones e periferias. Vila Nova de Famalicão: Húmus,
2020. p. 79-86.
SANTOS, Katrym Aline Bordinhão dos. A forma shandiana em Camilo
Castelo Branco. 2016. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2016.
sumário
86
Capítulo 4
4
A possível parcialidade do narrador em Os
Fidalgos da Casa Mourisca de Júlio Dinis
Ranieri Emanuele Mastroberardino
Ranieri Emanuele Mastroberardino
A possível parcialidade
do narrador em Os Fidalgos
da Casa Mourisca
de Júlio Dinis
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.4
Resumo: Este artigo refere-se ao contexto da Literatura Portuguesa da segunda metade do século XIX e possui como foco principal revelar a possível
parcialidade do narrador na obra Os fidalgos da Casa Mourisca (1871), de
Júlio Dinis (1839-1871). Para tal fim, convém mencionar, mediante as reflexões de Hobsbawm (1982), Homem (2000), Neto (1998) e Sá (1988), o cenário
político-social da época, destacando o advento e a consolidação dos ideais
liberais burgueses em Portugal. Em um segundo momento, por meio das ponderações de Booth (1980), analisamos a forma como se constitui a narrativa
ficcional desse livro, averiguando o enredo e o narrador. Tendo em vista essa
perspectiva de análise, notamos que, na querela entre liberais e absolutistas, a
instância narrativa se desvencilha da zona de neutralidade convencional e do
enredo de superfície, tecendo comentários críticos que descortinam um possível apreço pela causa liberal e desapreço pela causa absolutista.
Palavras-chave: Liberalismo burguês; Instância narrativa; Comentários críticos.
sumário
88
O ADVENTO E A CONSOLIDAÇÃO DOS IDEAIS
LIBERAIS BURGUESES EM PORTUGAL
Em 1806, Napoleão Bonaparte (1769-1821) decretou o bloqueio
continental. O objetivo dessa medida era impor aos países europeus
o fechamento de seus respectivos portos ao comércio inglês, causando, por consequência, o enfraquecimento econômico da Inglaterra e
o fortalecimento da burguesia francesa, que poderia ampliar a venda
de seus produtos para a Europa e outras regiões. Entretanto, devido à pressão do governo britânico, a coroa portuguesa não aderiu ao
decreto de Napoleão Bonaparte, fato que desencadeou a invasão de
Portugal, entre os anos de 1807 e 1810, pelas tropas francesas.
Com a finalidade de evitar um confronto bélico entre Portugal
e França, o príncipe regente D. João (1767-1826) solicitou à Grã-Bretanha um contingente militar para conter o avanço dos partidários de
Bonaparte, cujo imenso poder triunfava por todo o continente europeu.
Em meio a esse contexto, a família real, aconselhada pelas autoridades
inglesas, embarcou para o Brasil, evento que resultou na transferência
da sede do governo português para o Rio de Janeiro, em 1808. Além
de fornecer proteção militar e conselhos, o governo da Inglaterra, interessado economicamente na principal colônia de Portugal, reivindicou,
como moeda de troca, o término do pacto colonial e a abertura dos
portos brasileiros. Considerando que a coroa portuguesa dependia da
segurança fornecida pelos britânicos, tal desejo foi acatado prontamente, conforme podemos compreender mediante as ponderações
do estudioso Amadeu Carvalho Homem (2000, p. 341):
Logo que o exército de Junot, na primeira invasão, chegou às
portas de Lisboa, a família real, os nobres mais representativos
e as altas dignidades eclesiásticas embarcaram apressadamente para o Brasil. Sob a instigação da Inglaterra, abriram-se
sem reservas os portos brasileiros ao comércio internacional, o
que representou a quebra do ‘pacto colonial’ e o correspondente declínio da hegemonia metropolitana.
sumário
89
Ao emigrar para o Brasil, a família real deixou Portugal à deriva e, por um longo período relativo ao início do século XIX, a pátria
portuguesa permaneceria ocupada pelo exército francês e inglês. Por
conta dessa ocupação militar, houve, no plano cultural e ideológico, a
difusão de ideias que não eram condizentes com o regime monárquico
português vigente. No que diz respeito à essência dessas ideias, destacamos o liberalismo. Paralelamente a essa ideologia política, ressaltamos também a ascensão da burguesia, classe social insatisfeita com
o modus operandi absolutista. Logo, a burguesia crescia e se firmava,
acreditando no pensamento liberal.
Oriundo de França e de Inglaterra, o liberalismo incorporou uma
perspectiva política, social, econômica e religiosa. Essa mentalidade,
que despontou antes da Revolução Francesa (1789), pautava-se nos
ideais iluministas de igualdade, de fraternidade e de liberdade, bem
como na meritocracia, no princípio da livre concorrência entre os indivíduos, na ruptura do modelo de sociedade do antigo regime e no
domínio político da burguesia ascendente. Era a burguesia que deveria
impor aos demais os seus interesses, os seus valores e a sua fé.
Em relação à fé, sublinhamos que o pensamento liberal burguês
era anticlerical. De acordo com Vítor Neto (1998, p. 13), a tendência era
recusar as regras de conduta prescritas pela Igreja Católica, dado que
o conceito recobria uma mentalidade, uma atitude racional e
uma visão do mundo que privilegiava a individualidade, em detrimento da universalidade. [...] Nesta linha, substituía os valores
transcendentes pelo movimento horizontal e terrestre de uma
ordem social cada vez mais liberta da religião.
Sendo assim, o anticlericalismo significou uma ação da burguesia contra a religião e contra as ordens religiosas. Com essa conduta,
os objetivos eram a dessacralização do poder, a desclerização da sociedade e a redução do poder econômico da Igreja Católica. Levando
em consideração o vasto patrimônio fundiário desta, assim como a sua
sumário
90
ampla influência na vida pública e privada, tal instituição representava
uma barreira para o desenvolvimento da filosofia liberal.
Seguindo essa linha de raciocínio, o teórico Eric Hobsbawm
(1982, p. 277) aponta que o anticlericalismo era
[...]basicamente político, porque a certeza passional por detrás
de tudo era de que religiões bem estabelecidas eram hostis ao
progresso. E de fato eram, sendo do ponto de vista sociológico
e político instituições bastante conservadoras.
Com o surgimento de diversos movimentos revolucionários,
nos séculos XVIII e XIX, em grande parte da Europa, intensificou-se
um recuo do antigo regime. Por consequência, o pensamento liberal
conquistava adeptos e acentuava que as concepções de poder e de
ordem social seriam determinadas pela ciência, pelo progresso e pela
riqueza. Em Portugal, o processo de instauração do liberalismo foi lento e complexo. Devido ao contexto de invasão, a ideologia burguesa foi
simplesmente imposta e conviveu com tensões constantes, uma vez
que era impossível aceitar algo abrupto e forçoso.
Em meio a esse cenário, existiam os defensores do regime aristocrata, que exigiam o retorno da família real, e os defensores da nova
mentalidade. Dessa forma, travou-se, entre os anos de 1820 e 1843,
conflitos entre absolutistas e liberais, com o triunfo dos últimos16. A
partir desse triunfo, os vitoriosos confiscaram os bens dos absolutistas e os conventos tornaram-se meras propriedades particulares. Em
conformidade com Victor Sá (1988, p. 251), os liberais começaram a
dominar por completo a sociedade e o Estado, mas não conseguiram
fascinar as grandes camadas da população rural, pois
[...] a direcção política conservou-se nas mãos da grande burguesia, que chamou à sua posse a grande propriedade da an16
sumário
Como exemplos de êxito dos beligerantes liberais, mencionamos a Batalha da Cova da
Piedade (1833), a Batalha de Almoster (1834) e a Batalha de Asseiceira (1834) (MATTOSO, 1998).
91
tiga nobreza e dos conventos, sem dar oportunidade à partilha
da terra pelos pequenos agricultores. Nem os foros, que tanto
pesavam ao campesinato pobre, foram satisfatoriamente abolidos. Os baldios eram por sua vez convertidos em propriedade
privada, por intermédio da administração municipal, exclusivamente burguesa.
Em vista disso, os ideais liberais burgueses em Portugal não
davam sinais de mudança social, de igualdade e de inclusão, mas
de imutabilidade social, de desigualdade e de exclusão. Em síntese,
era um modelo profundamente elitista, que segregava a maioria dos
habitantes. Além da privação de recursos rurais sofrida pela população, alastrava-se uma crise socioeconômica e política, decorrente do
encarecimento do pão, do aumento da dívida pública, do atraso ou
da falta de remuneração dos funcionários públicos e da guerra entre
absolutistas e liberais. Diante dessa instabilidade, o povo, insatisfeito
com o pagamento de excessivos impostos, realizava diversos protestos de índole antiliberal. O descontentamento também provinha das
ordens religiosas católicas, visto que havia uma incompatibilidade entre o Catolicismo e o regime corrente. Assim como em grande parte da
Europa, as estruturas religiosas eram inadequadas ao novo modelo de
sociedade, o qual deveria encontrar o seu alicerce no individualismo e
no princípio da livre concorrência.
Realizadas as devidas ponderações, compreendemos qual foi
a recepção do liberalismo em Portugal, assim como os seus impactos
para a população portuguesa. A seguir, analisaremos as reflexões de
Wayne Clemens Booth (1980) sobre a configuração do narrador e o seu
respectivo comportamento ao longo da economia das obras literárias.
Sucessivamente, apontaremos como o narrador do livro Os fidalgos
da Casa Mourisca, de Júlio Dinis (1839-1871), desvencilha-se da zona
de neutralidade convencional e do enredo de superfície para adentrar
a tessitura de comentários críticos, revelando um possível apreço pela
causa liberal e desapreço pela causa absolutista.
sumário
92
REFLETINDO SOBRE
A FIGURA DO NARRADOR
Por intermédio de uma escrita objetiva e consistente, Booth
(1980), em seu livro A retórica da ficção, enaltece que há, por parte da
crítica literária e do público leitor, um interesse predominante por uma
espécie de literatura constituída, essencialmente, em torno da neutralidade da instância narrativa. Entretanto, para ele, é prejudicial recorrer
a uma ordem totalizante para avaliar se uma obra é provida ou desprovida de qualidade. Em concordância com esse intelectual, julgamos
necessário valorizar a particularidade de cada texto literário e de cada
narrador, em vez de nos conformar com o dogmatismo.
Ao movimentar uma gama de escritos renomados, dentre os
quais, citamos Decameron, de Giovanni Boccaccio, e Emma, de Jane
Austen, Booth (1980) tece a sua reflexão baseada na seguinte máxima:
cada romance é dotado de uma retórica específica, a qual o faz escapar
do mero exercício de repetição de formas. A retórica é o modo escolhido para o discurso narrativo ser proferido; refere-se à maneira como a
narrativa é construída. Pode-se variar na retórica, porém não é possível
dispensá-la. Ela sempre existirá e será um fator fundamental para qualificar uma obra. Portanto, é inconcebível rotular romances ou estabelecer
parâmetros de leitura, uma vez que as obras ficcionais apresentam as
suas respectivas identidades discursivas e graus de complexidade.
Haja vista esse raciocínio, Booth (1980) enfatiza que todo romance exige uma teoria própria, pois cada discurso literário possui a sua
especificidade e o seu devido funcionamento. Dependendo dos efeitos
de sentido que o autor quer causar no público leitor, as possibilidades de
constituição do narrador e do texto literário serão múltiplas e altamente
variáveis. Sobre esse aspecto, disserta que “a afirmação [...] de que o
artista deve ser totalmente engagé, a sua validade depende do tipo de
sumário
93
romance que o autor escreve. Alguns grandes artistas estavam comprometidos para com as causas dos seus tempos, outros não” (BOOTH,
1980, p. 87). Isso posto, verificamos que, ao contrário da elaboração de
generalizações, é preciso, para exercer uma crítica literária, individualizar
qualquer romance, bem como qualquer instância narrativa.
Ao lidar com a incontornabilidade da figura do narrador, Booth
(1980) relativiza, em seu livro, a neutralidade da instância narrativa.
Essa problematização perpassa a obra do início ao fim; entretanto, no
quarto capítulo, intitulado “A arte como deve ser ignora a audiência”, o
intelectual discorre que é impossível o narrador comportar-se apenas
como um mediador entre o leitor e o texto. Embora haja a tentativa
de somente relatar os fatos inerentes ao encadeamento da narrativa
superficial, de ser objetivo e imparcial, o narrador, em maior ou menor
grau, emite juízos de valor na história narrada. Logo, a neutralidade, em
sua plenitude, não é passível de se concretizar, dado que o ponto de
vista da instância narrativa sempre estará presente.
Para Booth (1980, p.128),
a realidade indiferenciada nunca é dada ao homem sob uma
forma <natural>, sem adornos. [...] cada ‘facto’ literário – até o
retrato menos adornado de um aspecto universal da experiência
humana – está altamente carregado de significados do autor,
por muito que ele queira ser objetivo.
Sua constatação é pertinente para entendermos melhor qual é a
técnica narrativa que está sendo implantada em determinado texto literário. Ao que tudo indica, o comportamento do narrador, para além da
zona de neutralidade e do suposto compromisso com a objetividade
e a imparcialidade, atrela-se à intensificação e à complexidade da ficção. É o momento em que o leitor deve refletir satisfatoriamente sobre
o que está sendo insinuado, sobre o que está contido nas entrelinhas
da obra. Esta, por sua vez, passa a adquirir outros elementos, sobre
os quais o mesmo leitor irá se debruçar para interpretá-la e compreendê-la em um plano mais profundo.
sumário
94
Levando em consideração o estudo de Booth (1980), é oportuno
verificar como se comporta o narrador de Os fidalgos da Casa Mourisca. Ao conceber a instância narrativa de tal modo, qual é a possível
intenção de Júlio Dinis em relação aos seus leitores? Nosso próximo
passo será responder a essa pergunta para que, posteriormente, consigamos proporcionar uma perspectiva de análise concernente à obra.
A POSSÍVEL PARCIALIDADE DO NARRADOR
EM OS FIDALGOS DA CASA MOURISCA
Publicado postumamente, em 1871, o livro Os fidalgos da Casa
Mourisca retrata uma sociedade em mudança. Se, de um lado, temos
uma aristocracia em decadência, representada por D. Luis, Jorge,
Maurício e frei Januário, do outro, temos uma burguesia rural em ascensão, composta por Tomé da Póvoa, Luisa e Berta.
Ao cabo da leitura do romance, percebemos que Jorge, mediante os ensinamentos e o apoio financeiro fornecido por Tomé, consegue
quitar todas as dívidas e redimir o nome de sua família. A julgar por
esse desfecho, a obra literária nos dá a impressão de que os princípios
liberais burgueses são capazes de promover uma regeneração familiar
e social. No entanto, na economia do texto, observamos que existem
trechos nos quais a narrativa aponta para questões além do enredo de
superfície. É justamente nesses momentos específicos que se distingue a figura do narrador.
À primeira vista, o foco principal da instância narrativa não é
expor meramente a regeneração da aristocracia em decadência, mas
tecer comentários críticos em prol do liberalismo burguês e contrários
ao modus operandi absolutista. Em decorrência disso, as reflexões críticas, presentes nas entrelinhas do texto, se sobrepõem ao circuito
sumário
95
fechado da obra e o narrador, por sua vez, ganha contornos de uma
entidade ficcional supostamente parcial, que parecesse posicionar a
favor de uma causa, em detrimento de outra.
Com o intuito de elucidar a possível parcialidade do narrador
na obra de Júlio Dinis, convém trazer para a superfície do texto seis
situações distintas. O primeiro momento refere-se ao capítulo I, mais
precisamente ao instante em que o narrador discorre sobre o irmão
mais novo da esposa de D. Luis.
À medida que avançamos na leitura desse capítulo, compreendemos que, por questões meramente políticas, D. Luis não simpatiza com
o irmão de sua mulher. Enquanto D. Luis era um adepto fervoroso das
ideias absolutistas, seu cunhado era um admirador efusivo do pensamento liberal burguês. Em meio à querela entre absolutistas e liberais, o
cunhado de D. Luis teve de se exilar, porém retornou à pátria portuguesa
para participar da vitória e da consolidação do liberalismo. Ao retratar
essa passagem, a instância narrativa faz o seguinte comentário:
Conseguindo, quase por milagre, escapar à fúria dos seus perseguidores, emigrou para voltar mais tarde nessa memoranda
expedição, que principiou em Portugal a heroica ilíada da nossa emancipação política [...] Fez-se a paz, e implantou-se no
País a árvore da liberdade (DINIS, [19--], p. 902, grifo nosso).
No tocante à citação evidenciada, constatamos que o narrador
promove uma intervenção pontual na economia da obra literária, na
qual as expressões “memoranda expedição”, “heroica ilíada da nossa
emancipação política” e “árvore da liberdade” indicam que a instância
narrativa não está sendo neutra, objetiva e imparcial, mas está emitindo um juízo de valor sobre a vitória do liberalismo em solo português. Aparentemente, de acordo com a voz que nos narra, o triunfo
dos ideais liberais burgueses não representa, apenas, a vitória de uma
nova mentalidade política, econômica, social e religiosa, mas, sobretudo, a libertação de Portugal em relação ao modelo de sociedade do
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antigo regime. Desse modo, por meio de um breve comentário feito
no decorrer do capítulo I, depreendemos que o narrador externa a sua
opinião em primeiro plano, avaliando de forma positiva a implantação
da filosofia liberal em Portugal.
Ainda no capítulo I, outra circunstância merece a nossa devida
atenção. Trata-se do momento em que o narrador aborda a educação
dos filhos de D. Luis, Jorge e Maurício. Novamente, por meio de uma
interferência precisa, a voz que nos narra emite a sua opinião e o seu
juízo de valor acerca de dois modelos de educação, o absolutista e
o liberal. Ao ler o excerto seguinte, observamos que, para a instância
narrativa, o modelo educacional liberal é mais fácil de ser assimilado
do que o modelo educacional absolutista. Isso se deve não somente
ao fato de os princípios liberais serem provenientes do veterano e da
mãe dos meninos, mas de os princípios absolutistas serem, na visão
do narrador, dogmáticos e intransigentes:
Não lhes faltavam mestres que os instruíssem, que muitos eram
os habilitados para isso nas salas do fidalgo, refúgio de tantos
ilustres descontentes. Graças a estas especiais condições, puderam os dois rapazes receber uma educação difícil de conseguir em um canto tão retirado da província, como aquele era.
Mas, ao lado da lição dos mestres, que, juntamente com a ciência, se esforçavam por imbuir-lhes os seus princípios políticos,
aos quais se atinham como a artigos de fé, havia uma outra
lição mais obscura, mas porventura mais eficaz. Era a lição
da mãe e a do veterano [...] Porém, no trato íntimo entre mãe e
filhos traía-se muita vez essa prudente discrição, e as fidalgas
crianças iam recebendo a doutrina, de que os outros lhes blasfemavam como de heresias, e, naturalmente, seduzidas pela
origem de onde ela lhes vinha, abriam-lhe de melhor vontade o
coração do que aos preceitos austeros e um pouco pedantescos dos mestres (DINIS, [19--], p. 903, grifo nosso).
Assim como ocorre no primeiro capítulo do romance, a interferência do narrador em benefício dos princípios liberais burgueses
visualiza-se também na conclusão da obra literária. Nessa parte da
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narrativa, é sabido que Jorge fez a propriedade de sua família, o solar
da Casa Mourisca, prosperar e se tornar uma das propriedades rurais
mais produtivas e valorizadas da região. Após utilizar os preceitos do
liberalismo para redimir o nome de sua família, ele é considerado, a
partir do olhar do narrador, um exemplo a ser seguido, uma vez que
essa personagem recebe elogios provenientes da instância narrativa.
Entretanto, em larga escala, a voz que nos narra não tece elogios somente a Jorge, mas, sim, à filosofia liberal, que permitiu a ele obter
êxito em sua empreitada. Ao que parece, o que é objeto de admiração
e merece ser seguido é o pensamento liberal, sinônimo de modernização, de prosperidade, de desenvolvimento e de progresso. Se cada
fazendeiro seguisse as diretrizes liberais, Portugal poderia se equiparar
a outras nações que adotam o liberalismo como doutrina política e que,
na perspectiva do narrador, são nações prósperas e evoluídas:
A sua iniciativa, esclarecida pela inteligência e mantida por uma
forte energia de carácter, apontava um exemplo salutar aos
proprietários vizinhos, que já se animavam a segui-lo. Graças
a este exemplo, terminavam muitos prejuízos, esqueciam
práticas rotineiras, que ainda hoje tolhem o progresso à
nossa agricultura, aventuravam-se inovações já abonadas
pela experiência de países mais cultos, e a que se opõem
entre nós a ignorância e a timidez que nasce dela. [...] Assim aprendessem nessa lição tantos que deveriam segui-la,
e talvez que a riqueza do País se desentranhasse do solo,
onde ainda está enclausurada, surgindo à luz para nos apresentar aos olhos de outras nações dignas da nossa época e
do trato de terra que ocupamos na Europa (DINIS, [19--], p.
1228-1229, grifo nosso).
Além dos três fragmentos que refletem um possível apreço da
instância narrativa pela mentalidade liberal, selecionamos outros três
nos quais podemos entrever um possível desapreço do narrador pela
mentalidade absolutista. O primeiro trecho alude ao capítulo IV, quando
D. Luis lê as folhas absolutistas. Por intermédio de um comentário curto
e conciso, a instância narrativa faz a seguinte observação:
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98
D. Luis lia as folhas absolutistas, que lhe mandavam da capital e
do Porto, e dava assim em alimento ao seu ódio contra as instituições liberais um dos frutos mais saborosos delas – a liberdade de imprensa; – fruto em que os seus correligionários mordem
com demasiada complacência, apesar de ser para eles fruto
proibido (DINIS, [19--], p. 925).
Ao interceder dessa maneira, compreendemos que os partidários do absolutismo criticavam as instituições liberais se servindo de
uma conquista liberal, que é a liberdade de imprensa. Tendo em vista
que no antigo regime não existia a liberdade de imprensa, bem como
a possibilidade de conhecer opiniões contrárias ao modelo de governo
instituído, o excerto salienta a ironia da instância narrativa para com a
atitude de D. Luis e de seus correligionários.
A mesma ironia pode ser constatada páginas à frente, mais especificamente no capítulo XVII, quando se celebra um jantar em homenagem a Gabriela, prima de Jorge e de Maurício. Nessa passagem, a voz
que nos narra apresenta, mediante um tom irônico, jocoso e debochado,
uma antipatia em relação aos convidados que pertencem à aristocracia
decadente. Ao que tudo indica, os aristocratas são descritos como seres
frágeis, fúteis, superficiais, não dotados de inteligência e intolerantes à
miscigenação. Em conformidade com o ponto de vista do narrador,
os convidados para o jantar eram todos da mais genuína fidalguia da província. Por muitas daquelas veias andava glóbulo de
sangue, que já pertencera a Fuás Roupinho ou a Egas Moniz, e
que por um mistério fisiológico, que só se dá naquela esmerilhada casta, conseguira transmitir-se inteiro de veias para
veias, através de vinte gerações, com o fim providencial de
manter inabaláveis os brios da raça [...] Os dotes físicos
tinham, é verdade, sofrido um pouco com os extremos e
cuidados empregados para conservar a crise aristocrática
daquele sangue livre de toda a mistura que o derrancasse;
os dotes intelectuais, em geral, ressentiam-se do cordão
sanitário, de que os chefes daquelas famílias as haviam cingido para precavê-las da infecção de idéias novas, propagadas pelos livros e jornais da actualidade. Mas lá estava
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99
o fermento da fidalguia, que era o essencial, e que supria
bem a saúde e a ilustração (DINIS, [19--], p. 1035, grifo nosso).
A julgar pelo raciocínio relativo aos trechos de nossa análise,
verificamos que a instância narrativa, por meio de seu posicionamento
ativo, direciona a compreensão do leitor, despertando o olhar deste
para o que se encontra nas entrelinhas do texto, em detrimento do que
ocorre na narrativa superficial. Nesse sentido, destacamos, no capítulo
XII, a descrição do narrador acerca dos fidalgos do Cruzeiro, personagens secundárias da trama. Mais uma vez, o narrador não deixa de
emitir a sua opinião e de formar um juízo de valor sobre o que está sendo narrado. Logo, ao fazer uso da ironia, assim como das expressões
“turbulentos vadios” e “asselvajados hábitos”, podemos inferir que os
fidalgos do Cruzeiro, para a voz que nos narra, não eram indivíduos
nobres por excelência, mas, sim, sujeitos desocupados, grosseiros,
mal-educados e ociosos:
Os fidalgos do Cruzeiro viviam ainda à moda antiga, como senhores feudais da terra, desconhecendo direitos de propriedade e calcando aos pés dos seus cavalos todos os códigos,
com que tentassem conter-lhes os ímpetos nobiliários. Eram
três estes nobres senhores. Um morgado e... morgado às
direitas; outro doutor... por ter andado dez anos em Coimbra, para deixar incompleto um curso de cinco; o terceiro, abade, escorraçado pelo povo de uma freguesia que
fora mandado paroquiar; ligavam-se todos três, em temível
triunvirato, para invadirem as propriedades, esgotarem as
tabernas, insultarem as mulheres e espancarem os homens
daqueles sítios. O povo, ou por hábito legado de submissão
os deixava à vontade, contentando-se com praguejá-los pela
calada, desforço dos oprimidos em todas as épocas da história da humanidade, ou exasperado e descrendo da eficácia da
lei, recorria à defesa própria, e procurava manter em respeito
esses turbulentos vadios, que mais de uma vez saíram malferidos da refrega. Jorge afastara-se cada vez mais da companhia dos primos, cujos asselvajados hábitos lhe repugnavam
[...] (DINIS, [19--], p. 992, grifo nosso).
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100
Haja vista as seis situações retratadas neste artigo, depreendemos que Júlio Dinis, ao construir um narrador pendente à mentalidade
liberal, em detrimento da mentalidade absolutista, relativiza, na nossa
óptica, o enredo de superfície. De acordo com o nosso entendimento,
a especificidade do romance poderia ser a própria configuração da
instância narrativa, pois estamos diante de um narrador que não se
contenta somente em narrar os fatos inerentes ao encadeamento da
narrativa superficial. Trata-se de um narrador extremamente crítico, que
revela o seu ponto de vista mediante a realização de comentários e de
intervenções pontuais no decorrer da trama.
Estabelecendo novamente um diálogo com os apontamentos
de Booth (1980), notamos a importância dos comentários do narrador
para esta análise. Segundo o teórico estadunidense, existem comentários na narrativa que não são meros enfeites ou acessórios, mas partes
imprescindíveis de determinada obra literária. Na visão de Booth (1980,
p. 170- 171), o comentário pode,
[...] é claro, abranger qualquer aspecto da experiência humana
e pode ser relacionado com a questão principal por inúmeras
formas e graus. Tratá-lo como processo único é ignorar as diferenças importantes entre comentário que é meramente ornamental, comentário que serve um fim retórico mas não é parte
da estrutura dramática e comentário que é parte integrante da
estrutura dramática [...].
Em concordância com o trecho em destaque, observamos que,
no livro Os fidalgos da Casa Mourisca, os comentários da instância narrativa não podem ser marginalizados ou desprezados, pois são componentes relevantes para a compreensão da obra em um plano mais
enriquecedor. O narrador, ao realizar certas intervenções, se posiciona
e direciona o interlocutor para além da superfície da história. Consequentemente, o leitor amplia a sua experiência diante do texto literário
e passa a compreendê-lo de uma maneira plural e significativa. Por
mais que o modelo de sociedade liberal fosse desigual e excludente,
sumário
101
conforme vimos, a instância narrativa do romance, mediante a sua própria estratégia retórica, aparenta nutrir um apreço pelas ideias liberais
e um desapreço pelas ideias absolutistas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Redigido este artigo, inferimos que, para propiciar uma perspectiva de leitura menos sistemática e mais intensa, é preciso atentar
para a complexidade do texto literário, analisando-o individualmente e
sem se preocupar em seguir uma ordem totalizante. Em consonância
com esse entendimento, os comentários críticos do narrador de Os
fidalgos da Casa Mourisca merecem um destaque. É por intermédio
deles que o narrador se desprende da superficialidade do enredo e
da zona de neutralidade convencional, orientando a compreensão do
leitor. Segundo o que foi salientado, o intuito desse procedimento é
indicar para o interlocutor que a instância narrativa demonstra uma
simpatia pela causa liberal e uma antipatia pela causa absolutista. Ao
que tudo indica, trata-se de um narrador crítico, parcial e extremamente
ponderado em suas reflexões.
Haja vista a análise discorrida, podemos expandir os nossos
horizontes de compreensão quanto à figura de Júlio Dinis. A possível parcialidade do narrador na obra Os fidalgos da Casa Mourisca
pode sinalizar que o autor empírico era afeito ao liberalismo burguês.
Certamente, por meio de um futuro estudo, podemos encontrar mais
fundamentos para essa questão.
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REFERÊNCIAS
BOOTH, Wayne Clemens. A retórica da ficção. Lisboa: Arcádia, 1980.
DINIS, Júlio. Obras completas. Porto: Lello e Irmãos, [19--]. v. 1-2.
HOBSBAWM, Eric J. A era do capital (1848-1875). 3. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1982.
HOMEM, Amadeu Carvalho. Jacobinos, liberais e democratas na edificação
do Portugal contemporâneo. In: TENGARRINHA, José (Org.). História de
Portugal. Bauru: Edusc; São Paulo: Editora Unesp, 2000. p. 341-359.
MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. Lisboa: Estampa, 1998. v. 5.
NETO, Vítor. O Estado, a igreja e a sociedade em Portugal (1832-1911).
Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1998.
SÁ, Victor. A subida ao poder da burguesia portuguesa. Revista da
Faculdade de Letras, Porto, n. 5, p. 245-252, 1988. Disponível em: http://ler.
letras.up.pt/uploads/ficheiros/2111.pdf. Acesso em: 16 jun. 2021.
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103
Capítulo 5
5
Embates entre a tradição e modernização
em As Pupilas do senhor reitor
(1867), de Júlio Dinis
Sara Vitória Silva Monteiro
Sara Vitória Silva Monteiro
Embates entre a tradição
e modernização em
As Pupilas do senhor reitor
(1867), de Júlio Dinis
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.5
Resumo: As obras de Júlio Dinis são tradicionalmente retratadas pela historiografia literária como superficiais e otimistas, com a representação de sociedades harmônicas e sem conflito. Neste artigo, visamos a propor uma leitura
da obra As pupilas do senhor reitor, com o objetivo de demonstrar como, a
seu modo, o autor se utilizou de diversos elementos literários para representar
tensões sociais de seu contexto. Com isso, pretendemos repensar a visão do
cânone crítico sobre a obra de Júlio Dinis.
Palavras-chave: Júlio Dinis; As pupilas do senhor reitor.
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INTRODUÇÃO
Na passagem do século XVIII para o XIX, em grande parte da
Europa, houve um embate entre tradição e modernidade nos mais
diversos espaços políticos e sociais. Isso ocorreu pois tratava-se de
um contexto de descobertas científicas, difusão de ideologias (como
o socialismo, o anarquismo e o positivismo), fortalecimento da classe burguesa e mudanças de paradigmas historicamente constituídos.
Essas mudanças, que ocorreram de forma lenta, se acentuaram com
a industrialização do continente e com a Revolução Francesa (1789),
que inspirou uma série de revoltas liberais no restante da Europa.
Essas transformações foram mais perceptíveis na Europa do Norte (França, Inglaterra, Holanda...), porém não tardaram a chegar a Portugal. De acordo com Ana Cristina Araújo (1998, p. 32), desde a Revolução
Francesa, “o clero [português] não se cansava de pregar contra o complot satânico, a impiedade e a anarquia que vinham de França”. Em uma
sociedade profundamente marcada pelo Catolicismo, a expansão de
uma revolução laica se apresentava como um futuro temeroso para o reino português, repulsa que se acentuou com as invasões napoleônicas
no território, em 1807. Com a violência dos franceses, a fuga da família
real e a perda de autonomia administrativa – que era personificada na
figura do rei –, podemos dizer que os “ventos novos” da Europa do Norte
constituíram uma experiência traumática para muitos portugueses, pois
as ideias liberais adentraram Portugal forçosamente.
Em resposta a essas mudanças, houve uma série de revoltas
espontâneas, principalmente nas regiões mais rurais, ao norte de
Portugal. Fátima Sá e Melo Ferreira (2004) indica que essas revoltas
buscavam conservar elementos tradicionais e garantir os direitos da
população campesina. Tratava-se de um desejo de manutenção de
expressões culturais, elementos religiosos, práticas, saberes, entre
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106
outros, que fariam sentido para tais comunidades e não estariam necessariamente alinhados às mudanças promovidas pelo governo central.
Mesmo com a expulsão dos franceses, no ano de 1808, os ânimos não se arrefeceram e a primeira metade do século XIX foi especialmente violenta no país: a permanência das tropas inglesas no país,
a Revolução do Porto de 1820 e a Guerra Civil Portuguesa entre 1832 e
183417 evidenciam que a sociedade portuguesa estava, de certa forma,
dividida – monarquistas constitucionais, absolutistas, republicanos e
outros disputavam entre si a implementação de seus projetos políticos.
Esse embate ocorreu em diversas regiões da Europa, principalmente
após o Congresso de Viena (1814-1815), que buscava solapar o Liberalismo no continente e restaurar o Absolutismo vigente antes da Revolução Francesa. Esse movimento não foi bem-sucedido e contribuiu
para gerar ainda mais tensões entre essas visões de mundo. No caso
português, a autora indica que o Congresso inflamou grupos liberais,
principalmente ligados à intelectualidade, que reivindicavam uma Monarquia Constitucional e que protagonizaram a Revolução de 1820.
Dentro do próprio Liberalismo, havia divergências e disputas
pelo poder entre vertentes do vintismo (liberais), cartismo (absolutistas), setembrismo (liberais radicais) e outras. Portanto, a tensão política era generalizada e não havia uma homogeneidade de pensamento
entre os grupos que dirigiam a política nacional, ou seja, as elites portuguesas18. Esse mosaico de pensamentos e visões de mundo não
estava limitado à política, uma vez que os grupos que mais sentiram os
impactos desse embate entre tradição e modernidade estavam entre
sumário
17
A Revolução do Porto foi um movimento de cunho liberal, em que políticos e militares
portugueses, descontentes com a presença inglesa e a ausência da família real no país,
tomaram o poder e possibilitaram a instituição de uma Monarquia Constitucional. A Guerra Civil pode ser considerada uma continuação dos eventos que levaram à Revolução
do Porto, uma vez que as questões políticas que motivaram os conflitos foram fruto da
crise sucessória iniciada com a Independência do Brasil. Para um panorama dos conflitos
ocorridos na primeira metade do século XIX em Portugal, ver Bittencourt (2017).
18
Para um resumo do cenário dos diversos grupos políticos citados, ver Sousa (2010).
107
as camadas mais humildes da população. Por meio da literatura do século XIX, podemos compreender melhor essas contradições internas
no país e como a vida da população foi afetada pelas mudanças que
ocorriam em ritmo tão acelerado.
Na primeira metade do século XIX, a escola literária dominante
em Portugal era o Romantismo, que estava intimamente ligado aos
valores liberais que se difundiam: questionamento do status quo, liberdade, justiça social, democratização do conhecimento etc. Ele também foi um movimento bastante diverso, com obras canônicas que
iam desde romances de viagens até romances históricos. Em nosso
trabalho, nos deteremos sobre uma obra de Júlio Dinis (1839-1871),
autor que é tradicionalmente enquadrado em uma estética romântica
por compêndios e manuais didáticos. Em História da Literatura Portuguesa, António José Saraiva (1949, p. 146) destaca que existem fortes
valores burgueses na obra do autor e que seus romances seriam “muito prejudicado[s] por preconceitos de classe e por uma superficialidade ideológica que reflete a euforia dos ‘melhoramentos materiais’” que
estariam em curso em Portugal. O crítico literário também informa que
Júlio Dinis trabalhava com personagens-tipo, por vezes caricaturadas,
que eram dispostas em uma trama superficial, dramática e otimista, ao
gosto da burguesia do período.
Não há menções a críticas políticas ou questionamentos da ordem social, pois o autor é definido, na História de Saraiva (1949), como
alheio às contradições de seu contexto. Sua obra é resumida pelo crítico literário da seguinte forma: “O seu estilo, impessoal, incaracterístico,
arrumado, sem ornatos, feito para o leitor corrente, é também muito
significativo pelo gosto da linguagem sóbria e funcional que supõe no
mesmo público” (SARAIVA, 1949, p. 146), ou seja, estritamente comercial, ao gosto de seus leitores.
Neste artigo, analisaremos o romance As pupilas do senhor reitor (doravante, PSR), publicado pela primeira vez em 1867, buscando
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108
indícios de tensões entre tradição e modernidade, tão latentes em
Portugal no contexto do autor. Com isso, será possível pôr à prova a
caracterização realizada por Saraiva (1949) em sua crítica, de que os
romances de Júlio Dinis eram meramente comerciais e descolados
da realidade do país.
ANÁLISE
O enredo de PSR narra os laços que ligam as órfãs Clara e Margarida aos irmãos Daniel e Pedro, bem como o papel que o reitor da
paróquia desempenhava na vida dos jovens. A narrativa é construída
por uma série de oposições, contrastes que estão presentes na construção das personagens, no desenrolar do enredo e nos comentários
emitidos pelo narrador ao longo do romance, ou seja, trata-se de um
aspecto recorrente em todos os seus elementos constitutivos, sendo
por meio da divergência que o enredo se desenrola.
Já no início da obra, somos apresentados aos filhos de José das
Dornas, Pedro e Daniel, que simbolizam a primeira divergência entre
tradição e modernidade trazida no romance.
Eram dois estes filhos - Pedro e Daniel. Pedro, que era o mais
velho, não podia negar a paternidade. Ver o pai era vê-lo a ele;
a mesma expressão de franqueza no rosto, a mesma robustez
de compleição, a mesma excelência de musculatura, o mesmo
tipo, apenas um pouco mais elegante, porque a idade não viera
ainda curvatura de certos contornos e ampliar-lhe as dimensões
transversais, como já no pai acontecia. Conservava-se ainda
correto aquele vivo exemplar do Hércules escultural.
Pedro era, de fato, o tipo de beleza masculina, como a compreendiam os antigos. O gosto moderno tem-se modificado, ao
que parece, exigindo nos seus tipos de adoção o que quer que
seja de franzino e delicado, que não foi por certo o característico
dos mais perfeitos homens de outras eras.
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A organização talhara Pedro para a vida de lavrador, e parecia
apontá-lo para suceder ao pai no amanho das terras e na direção dos trabalhos agrícolas.
[...]
Daniel já tinha condições físicas e morais muito diferentes.
Era o avesso do irmão e por isso incapaz de tomar o mesmo
rumo de vida.
Possuía uma constituição quase de mulher. Era alvo e louro, de
voz efeminada, mãos estreitas e saúde vacilante.
[...]
Votar Daniel à vida dos campos seria sacrificá-lo (DINIS,
1987, p. 2-3).
Nesse trecho, enquanto apresenta os irmãos ao leitor, o narrador contrapõe dois ideais de beleza masculina: o “gosto moderno” e
o “gosto antigo”. Este estaria ligado à robustez física, à aptidão aos
trabalhos no campo e, de forma geral, ao estilo de vida rural. Convém
destacar que a industrialização e a urbanização de Portugal foram processos tardios, se comparados com o restante da Europa; segundo
Jaime Reis (1987), eles se deram principalmente entre 1870 e 1913 e,
ainda assim, de forma relativamente pontual. Portanto, a tradição portuguesa estava vinculada à vida e ao trabalho no campo e, como vimos
anteriormente, durante a primeira metade do século XIX, tudo que não
estivesse ligado à tradição era considerado subversivo, estrangeiro.
É nessa subversão que se encontra o “gosto moderno”, ou seja,
o homem delicado, não apto para os trabalhos no campo. A alternativa
para homens que não exerciam funções braçais ou manuais, no contexto de produção do romance, era o estudo. Por meio dele, era possível exercer uma atividade que não exigia esforço físico e que, salvo
o caminho religioso, resultaria no exercício de uma função burguesa.
sumário
110
Além de trazer a questão estética, o comentário do narrador nos
coloca diante de uma oposição entre campo e cidade, entre o estilo
de vida rural/tradicional e o moderno/urbano. Se considerarmos a afirmação de Saraiva (1949), de que Júlio Dinis desenvolvia seus romances com personagens-tipo, a caracterização dos irmãos pode ser lida
como representativa desses dois mundos. Acreditamos que isso seja
correto também para as demais personagens, a exemplo do médico
da aldeia, João Semana.
Antes da apresentação deste por parte do narrador, no capítulo
XIV, há breves menções a ele por parte de outras personagens, que
enfatizam o quão idoso o médico está, em oposição à juventude de
Daniel, que se forma em Medicina e retorna à sua aldeia natal. No
entanto, o narrador nos apresenta uma personagem sadia, forte e
vigorosa, mesmo no auge de seus 80 anos. João Semana é descrito
da seguinte forma:
João Semana, o velho cirurgião, de quem já temos falado, homem rude, franco, jovial, que apertou a mão de Daniel, pondo
em exercício uns músculos de oitenta anos, que fariam a vergonha dos nossos rapazes de vinte.
Apesar dos seus muitos anos, tinha ainda João Semana hábitos
de atividade, a que não sabia fugir.
Erguia-se com estrelas, almoçava com luz e montava a cavalo,
para começar o giro clínico, que lhe tomava o dia quase todo, e
nunca reprimia a velocidade de sua pacífica e bem intencionada
azêmola, para gozar por mais tempo de um ponto de vista pitoresco, para escutar o gorjeio de alguma ave oculta na folhagem,
nem para cortar a flor desabrochada à borda dos caminhos, ou
de entre a relva dos campos. Nada disso; se abrandava o trote
da égua, era nos sítios mais azados a quedas, se parava, era
à porta dos doentes ou a ouvir alguma consulta, à qual, até a
cavalo, respondia, e nos mais lacônicos termos possíveis.
Dava-se nele uma necessidade de movimento e de agitação, à qual em vão fora resistir. Quem o quisesse ver morto,
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era condená-lo à inação, privá-lo daqueles sóis ardentíssimos
e chuvas excessivas a que, havia mais de meio século, andava
sujeito (DINIS, 1987, p. 112).
O vigor físico de João Semana é descrito de forma semelhante
ao de Pedro e, devido à sua permanência na aldeia, bem como seus
estreitos laços com a comunidade, podemos considerá-lo, também,
ligado a um estilo de vida tradicional e rural. Esses laços possibilitam
a manifestação de diversos aspectos culturais no universo rural: ao
caracterizar a religião popular portuguesa, manifestação religiosa especialmente forte no Norte português, Moisés Espírito Santo (1990, p.
17) informa que “a religião popular não está exclusivamente associada
a uma classe social, económica e culturalmente pobre; ela liga-se, sim,
a um tipo de cultura que se transmite nas relações de vizinhança e na
memória colectiva”. Traçando um paralelo com a caracterização do
médico da aldeia, podemos compreender a importância da confiança,
do senso de comunidade e de coletividade presente no campo.
João Semana admirava a poesia da natureza, não de livros de
poemas, o que só podia ser feito ao passo lento, característico do
modo de vida tradicional português. Esse modo de vida vinha também
apegado a hábitos antigos, como acordar muito cedo e medir as horas
do dia pelo Sol. A descrição bucólica que o narrador faz do médico
nos leva a crer que há uma admiração por esse estilo de vida. Temos
mais um indício dessa visão positiva com relação à tradição no capítulo
XVIII, em que o narrador comenta a alimentação de João Semana:
A cozinha de João Semana era de um caráter portuguesíssimo,
e eu, ainda que me valha a confissão os desagrados de alguma
leitora elegante, francamente declaro aqui que, para mim, a cozinha portuguesa é das melhores cozinhas do mundo.
Dou razão nisto a João semana.
As combinações extravagantes das cozinhas estrangeiras –
galicismos culinários, por exemplo – repugnavam-lhe tanto ao
sumário
112
estômago, como aos ouvidos, mais pechosamente sensíveis
dos nossos severos puritanos, a outra qualidade de galicismos.
[...]
Não havia cá a usança de se dar a qualquer pastel ou empada o nome de um general do exército; a qualquer açorda o de
um ministro célebre; a qualquer doce balofo e insípido o de um
poeta da moda.
[...]
Hoje, época de programas, inventaram-se os programas dos
jantares à imitação dos dos concertos, dos deputados e dos ministros. Com oito dias de antecipação publica-se o elenco de um
banquete, para que cada qual procure decifrar o que vai comer, e
estude a maneira como se come (DINIS, 1987, p. 153-155).
No trecho, o narrador satiriza as “modas”, as ideias novas no
campo culinário que chegavam a Portugal, por mais elegantes que
fossem consideradas em seu contexto. Nessa contraposição de estilos
culinários, podemos verificar que havia a presença das “cozinhas estrangeiras” nas tradições portuguesas, mesmo em uma aldeia rural tão
pequena como a retratada no romance: hábitos, gostos e ideias novos
não estavam restritos a espaços urbanos, embora, naturalmente, neles
circulassem com mais facilidade.
Nesse trecho, também podemos verificar que o narrador considerava essa preservação da cozinha portuguesa algo positivo, uma defesa
frente aos estrangeirismos,19 ou seja, observamos uma das formas de
resistência cotidiana das tradições portuguesas que ocorriam nas regiões mais remotas do país. Além disso, relacionar a tradição culinária
portuguesa à personagem de João Semana, que é retratada de forma
bastante positiva ao longo do romance, é outra forma de exaltar essa
tradição, atribuindo a ela, em parte, a saúde e o vigor do médico em
seus 80 anos. Por fim, do trecho também podemos depreender que o
“combustível” que mantém o lento movimento da vida rural portuguesa
é a manutenção das tradições frente às inevitáveis novidades.
19
sumário
Para a compreensão da alimentação como prática cultural, ver Carneiro (2012).
113
João Semana, representando as tradições portuguesas, tem
como contraponto Daniel, que retorna de seus estudos após ter contato com o que havia de mais moderno na ciência do período. Assim
que as personagens estão frente a frente pela primeira vez, ocorre o
seguinte diálogo:
As exaltadas crenças teóricas de Daniel, e a casuística inflexível
e fria do velho prático acharam-se em conflito.
João Semana era céptico em relação à ciência moderna. Quando Daniel lhe citava um autor em voga, ou se referia a uma descoberta notável, a um medicamento novo, João Semana encolhia os ombros, sorrindo.
– Tudo isso é muito bonito – dizia ele, com poucas contemplações para com a impaciência do seu jovem colega - mas não
me serve para nada. Era o que me faltava se eu, que não tenho
tempo para dormir, me punha agora a ler essas coisas todas.
Que nomes! que moléstias que eu nunca vi, em sessenta anos
de prática! Sabe você, Daniel? Eu penso que lá por fora, nessas terras grandes, há fábricas de moléstias novas, que felizmente por lá se gastam também; cá à aldeia não chegam; é o
que sei lhe dizer. Você para cá virá, você para cá virá - há de ver
que na prática a coisa reduz-se a muito pouco, mais gástricas,
menos gástricas e disse.
Daniel [...] chegou a persuadir-se que sua eloquência conseguiria, enfim, vencer o indiferentismo teórico do clínico.
Recebeu, portanto, uma impressão desagradável, quando ao
terminar um bem elaborado período em honra da ciência moderna, obteve em resposta a frase do costume:
– Isso é tudo muito bonito, mas você para cá virá, você para cá
virá, e então falaremos.
Nesta parte, tornava-se, pois, impossível a conciliação. Era o
antagonismo permanente entre a teoria e a prática, revelado
em uma das suas multiplicadíssimas manifestações (DINIS,
1987, p. 113-114).
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114
No excerto, podemos constatar que João Semana não era
aberto a teorias novas na área em que atuava. Isso porque ele, inflexível, recorria a décadas de medicina tradicional que nunca haviam
lhe falhado naquele universo rural. Já Daniel chegava da cidade com
teorias, ideias e descobertas que estavam em consonância com o
forte cientificismo da época.
O século XIX foi profícuo também em avanços no campo da
medicina: na década de 1840, por exemplo, o médico húngaro Ignaz
Semmelweis demonstrou a importância da assepsia em procedimentos cirúrgicos, o que encontrou resistência por décadas entre os cirurgiões; em 1861, Louis Pasteur demonstrou que a teoria da geração
espontânea não se sustentava na realidade, ao comprovar a existência
da proliferação de microrganismos. Portanto, a divergência de pensamentos entre Daniel e João Semana não era algo localizado, mas, sim,
uma demonstração do choque constante que se dava entre a tradição
médica e as novas descobertas científicas do século XIX.
Chama-nos atenção a escolha de termos do narrador, ao registrar que se trataria de divergências entre “teoria e prática”. Isso pode
significar que ele considerava as novidades científicas meramente teóricas, pois ainda não haviam passado pelas décadas de aplicação,
aperfeiçoamento e comprovação que as técnicas tradicionais haviam
enfrentado. A divergência desses dois lados da medicina é reforçada
como inconciliável pelo narrador: enquanto João Semana não aceita
de pronto as novas técnicas, Daniel encontra grande resistência por
parte da população da aldeia em aderir a tratamentos novos, pois não
havia a confiança entre as duas partes.
Isso fica evidente tanto no choque entre os médicos quanto na
resistência da própria população perante os novos tratamentos da
medicina e as novas ideias que surgiam no âmbito científico. Temos
duas passagens no romance em que essa resistência ocorre de maneira cômica: na primeira delas, no capítulo XI, João das Dornas tenta
sumário
115
apresentar ao vendedor João da Esquina as teses científicas que Daniel lhe comunicava por meio de cartas.
– Quer saber, Sr. João? Olhe que, pelos modos, o rapaz até lá
provou... Já sei que se vai admirar, mas olhe que é fato, assim o
leu no fim do livro o Sr. Reitor, até lá provou... que não há doenças.
João da Esquina interrompeu efetivamente a sua tarefa, para
fitar no seu interlocutor uns olhos espantados.
[...]
– Não sei. Diz ele que é outra coisa; lá lhe dá um nome, mas é
tão arrevesado, que me não ficou.
– Que não há doenças! Essa lá me custa a engolir! Então para
que andou o rapaz a estudar, e o que vem fazer para cá, se não
há doenças? Faz o favor de me dizer?
– Ele não me disse que... Mas João da Esquina estava muito
ofendido nas suas crenças, para o deixar continuar:
[...]
– É o que eu estou morto por lhe perguntar. Mas o Sr. João
admirase? E então se eu lhe disser que ele provou também que
um homem é a mesma coisa que um macaco?
João da esquina fechou com impetuosidade o livro dos assentos.
– Irra! Está a caçoar comigo, Sr. José? Ele podia lá dizer semelhante coisa? (DINIS, 1987, p. 88-90).
Nesse diálogo, João da Esquina é bastante reativo às ideias
trazidas pelo pai de Daniel. Fica claro que João das Dornas não compreende as ideias que ele conta ao seu compadre, apenas as reproduz, pois deseja comunicar as teses científicas partilhadas por seu
filho, como pai orgulhoso. No entanto, essas ideias não foram explicadas de forma a fazerem sentido no contexto rural em que o enredo se
desenrola; portanto, a primeira reação de João da Esquina é sentir-se
ofendido em suas crenças: como seria possível que suas crenças mais
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fundamentais pudessem ser contestadas, quanto mais por teses (aparentemente) sem lógica?
Esse primeiro contato entre o vendedor e as teses de Daniel
o deixa desconfiado com relação ao novo médico. No capítulo XXI,
temos outra cena cômica, em que o novo médico atende João da Esquina e lhe receita, entre outros medicamentos, uma pequena dose de
arsênico, ao que se segue o diálogo:
– Arsênico? – exclamou ele com voz quase rouca de susto e de
indignação. – O senhor quer que eu tome arsênico?!
– Que dúvida? – respondeu Daniel. – É um medicamento heróico, prodigioso em muitos casos.
– Eu tenho conhecido os prodígios que ele obra. Vale por dois
gatos!
[...]
– Mas ouça. Olhe... na Áustria... na Áustria, os cavalos de boa
raça recebem sempre na aveia uma porção de arsênico, o qual
lhes dá um aspecto luzente, elegante, vigoroso e inexcedível.
O exemplo beliscou o amor próprio do Sr. João da Esquina, que
redargüiu com despeito:
– Muito obrigado pela notícia. Isso talvez anime a gente da Áustria, ou certos doutores que eu conheço, que pensam que um
homem é como qualquer animalejo dos tais, e que pode andar
a quatro como eles também. Eu por mim…
– Mas aí tem outro exemplo - continuou Daniel. - Em certas partes da Alemanha há povoações inteiras, nas quais o arsênico é
comido com um prazer excessivo.
– Pois que se regalem (DINIS, 1987, p. 179-180).
Nesse trecho, Daniel tenta explicar a João da Esquina os bons
resultados que a medicação obtinha por meio de exemplos “vindos
de fora”. No entanto, ele encontra uma dupla resistência: o vendedor
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117
já tinha uma opinião formada tanto com relação ao arsênico (por seu
conhecimento de mundo, seria um veneno) quanto às ideias de Daniel
(contrárias ao senso comum, com base nos relatos do pai do médico).
Apesar da resistência de João da Esquina, o narrador é condescendente com Daniel: sua empolgação, suas teorias e seu desejo de
mudança na medicina da aldeia são retratados como sentimentos sinceros visando à melhora efetiva da vida da população. Embora as mudanças propostas por ele tivessem como base a ciência do período, há certa
ingenuidade na personagem, proveniente da crença cega na razão.
Outro elemento ligado à tradição popular rural apresentada pelo
autor é a esfolhada, uma festa bastante alegre, que traz a ideia de coletividade portuguesa. Ela ocorre após a colheita do milho e consiste em
uma série de brincadeiras em meio ao trabalho coletivo de desfolhar o
milho. Trata-se de um trabalho manual e não remunerado, aguardado
por muitas pessoas da aldeia. Ao iniciar a descrição dessa tarefa, quase um festejo, o narrador comenta:
Julgo que pequeno será o número dos leitores, que não tenham
assistido a uma esfolhada na aldeia, ou que pelo menos de
tradição, não saibam a índole folgazã e traquinas deste gênero
de trabalho, do qual ninguém procura eximir-se: pois antes espontaneamente correm de toda a parte a oferecer-lhe os braços
(DINIS, 1987, p. 250).
Com isso, podemos constatar que era uma tradição bastante
conhecida dos leitores contemporâneos à publicação do romance,
porém não amplamente conhecida na atualidade, ao menos para o
público brasileiro. O próprio narrador traz uma indicação de por que
essa tradição viria a se perder em breve:
Quando um dia a máquina agrícola fizer ouvis nas aldeias portuguesas o silvo estridente do vapor; quando a força prodigiosa de suas alavancas, o movimento de suas rodas gigantes e
complicadas articulações dispensar o concurso de tantos braços, nestes trabalhos rurais; quando a musa pastoril, resignada,
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118
trocar as vestes primitivas por a glouse do artista, e esquecer
as antigas cantilenas, para aprender as canção das fábricas;
lembrar-se-ão com saudades das esfolhadas os felizes que as
puderam ainda gozar.
A onda econômica adianta-se rápida; dentro em pouco inundará os campos. Dêem-se pressa os que ainda quiserem conhecer as velhas usanças, para as quais está já a soar a derradeira
hora (DINIS, 1987, p. 250-251).
No excerto, o narrador estabelece uma oposição entre a tradição festiva da esfolhada e a modernidade das máquinas agrícolas, que
viriam com a “onda econômica”: elas propiciariam mais lucro, porém
destruiriam tradições alegres e centenárias. Esse panorama pessimista advinha da observação do contexto português: a “onda econômica”,
os “novos ares” e as “modas” já estavam dentro das cozinhas, das casas e no seio das famílias portuguesas. Então, seria questão de tempo
para que invadissem também as técnicas agrícolas, modificando tanto
o espaço rural quanto as tradições que estavam vinculadas a ele. O
tom melancólico que o trecho traz indica que, nesse caso, o narrador
não vê uma conciliação entre tradição e modernidade – o embate é
visível e seria questão de tempo até um dos mundos deixar de existir.
No romance, a exaltação da tradição e a resistência às mudanças que chegam a esse universo rural não vêm apenas no campo tecnológico ou ideológico, mas também dentro de instituições milenares,
como a Igreja Católica. A seguir, temos a apresentação da senhora
Josefa da Graça, beata de uma nova onda religiosa que estaria adentrando a sociedade da aldeia retratada na obra:
Era enfim um desses tipos de beata, comuns nas nossas aldeias; mulheres cuja vida se passa em devoções contínuas, em
novenas e vias-sacras, e em perene confissão; obra dos gordos
missionários, que deixam a outros o cuidado de desbravar a
gentilidade das nossas possessões, para andar na tarefa mais
cômoda de tolher o trabalho e a atividade na casa do lavrador.
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119
[...]
Numa localidade, não muito distante do Porto, ainda há pouco
um desses apóstolos, que andam por aí reformando escandalosamente a moral dos povos, pregou do púlpito ‘que a salvação
de um homem casado era tão difícil, como o aparecimento de
um corvo branco’.
É triste e desconsolador o aspecto da terra, onde esta praga
farisaica tem feito maiores estragos. A alegria do povo, esse
reflexo de alegria das mulheres, porque das mães se reflete nos
filhos, das esposas nos maridos, das raparigas nos amantes,
desaparece pouco a pouco (DINIS, 1987, p. 373).
Não é especificada a orientação religiosa da personagem, mas
sua descrição nos leva a considerar a possibilidade de que ela seja
ultramontana, uma visão católica bastante conservadora, que surgiu
na França no início do XIX e se fortaleceu em Portugal, especialmente
no curto reinado de D. Miguel. Ítalo Domingos Santirocchi (2010, p. 24)
afirma que essa vertente, no século XIX, se caracterizou pelo
fortalecimento da autoridade pontifícia sobre as igrejas locais; a
reafirmação da escolástica; o restabelecimento da Companhia
de Jesus (1814); a definição dos ‘perigos’ que assolavam a Igreja (galicanismo, jansenismo, regalismo, todos os tipos de liberalismo, protestantismo, maçonaria, deísmo, racionalismo, socialismo, casamento civil, liberdade de imprensa e outras mais).
A expansão do ultramontanismo, especialmente no Norte de
Portugal, entrou em choque com as práticas religiosas tradicionais da
religiosidade popular, como o culto aos santos locais, as simbologias
de certas plantas, pedras e lendas, a ênfase dada à figura feminina,
entre outras práticas e concepções religiosas (ESPÍRITO SANTO,
1990). A autonomia desse tipo de crença, arraigada na sociedade rural portuguesa, com relação à Igreja Católica, resultou no rechaço por
parte do ultramontanismo. Com isso, podemos inferir que a modernização não provinha somente das cidades, mas também poderia florescer em um contexto de pensamento acrítico com relação à religião.
sumário
120
Seja qual for a orientação religiosa dos missionários citados, eles pregavam mudanças na organização social tradicional, o que é retratado
de forma negativa pelo narrador.
D. Josefa é caracterizada como fofoqueira e mentirosa, disseminando desinformação, julgando o próximo e considerando-se superior
aos demais. Essa figura orgulhosa se contrapõe à do reitor, retratado
como um homem rigoroso, porém bom e correto. Acreditamos que o
religioso tenha em sua figuração a união ideal entre a modernidade
e a tradição, uma figura que foi construída de forma a unir o melhor
de ambos os aspectos. Como exemplo, trazemos a apresentação do
reitor em sua conversa com João das Dornas:
A qualidade de egresso não o tolhia [o reitor] ser liberal de convicção. Era-o como poucos.
[...]
– Então é só isso? Ora valha-te Deus! É verdade. O pequeno é fraquito e decerto não pode com o trabalho do campo, mas... para
que queres tu o dinheiro, José? Acaso não terás alguns centos
de mil-réis ao canto da caixa para pôr o rapaz nos estudos? [...]
– Nisso mesmo penava eu. Já me lembrou mandá-lo estudar,
mas tinha cá certos escrúpulos.
– Escrúpulos! Valha-te não sei que diga! Pois ainda és desses
tempos? Que escrúpulos podes ter em mandar ensinar teus filhos? (DINIS, 1987, p. 3-5).
No trecho, não entendemos “liberal” no sentido estritamente político – não há referências a um posicionamento partidário que o religioso
pudesse ter. Portanto, tomamos o termo como um liberalismo em alguns
costumes que, naquele tempo, não eram comuns a clérigos tradicionais,
como, por exemplo, educar as crianças do campo. Ele é bastante entusiasta da educação, tanto para meninos quanto para meninas, contanto
que houvesse um rigor moral nesse processo, vendo a educação como
forma de emancipação. Essa caracterização do religioso evidencia
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121
como o progressismo não estava presente somente na cidade, sendo
sua presença no campo também benéfica para a população.
Ainda na recusa da associação automática de modernização
às cidades, a própria mudança de pensamento de João das Dornas
com relação à educação de seu filho é indicativa de como repensar e,
por vezes, recusar a tradição (no caso, um camponês enviar seu filho
para estudar) garantia a manutenção das próprias relações entre as
personagens.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do romance, somos apresentados a vantagens e desvantagens das novas ideias que adentravam o universo rural português.
Para além disso, Júlio Dinis traz, em sua narrativa, um narrador de olhar
atento para os embates de seu tempo. Ele opta por retratá-los em um
espaço rural, em contextos bastante corriqueiros, representando o impacto desses conflitos no cotidiano da população mais humilde.
Com a análise da caracterização e da interação entre as personagens, podemos dizer que o romance não é uma defesa estrita das
tradições rurais, embora haja uma ênfase na beleza e na simplicidade
da vida no campo. Na obra, é possível constatar como a modernização
poderia beneficiar também o mundo rural, ao estabelecer um equilíbrio
entre as mudanças e a conservação das tradições.
Saraiva (1949) retrata Júlio Dinis como um autor burguês, que
escrevia de forma a atender ao gosto de seu público e a defender os valores de sua classe. No romance analisado, no entanto, nos parece que
ele desejava apresentar esse mundo rural a leitores que não tinham contato com ele. Analisando os trechos trazidos, nos parece reducionista
considerá-lo um romântico alheio aos eventos de seu tempo, pois PSR
sumário
122
nos apresenta um microcosmo das tensões portuguesas do contexto e
parece apontar para uma solução para esses problemas: selecionar e
abraçar o melhor, tanto da tradição quanto da modernização.
REFERÊNCIAS
ARAÚJO, Ana Cristina. As invasões francesas e a afirmação das ideias
liberais. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. Lisboa: Estampa,
1998. v. V.
BITTENCOURT, Flávia Rodrigues. Entre rupturas e permanências:
progressistas e conservadores em Portugal na primeira metade do século
XIX. Revista Convergência Crítica, Rio de Janeiro, n. 10, 2017.
CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação.
Rio de Janeiro: Elsevier Brasil, 2012
DINIS, Júlio. As pupilas do senhor reitor. 8. ed. São Paulo: Ática, 1987.
ESPÍRITO SANTO, Moisés. A religião popular portuguesa. Lisboa: As
Regras do Jogo, 1990.
FERREIRA, Fátima Sá e Mello. Modernização e conflito no mundo rural do
século XIX: politização e “política popular” na Maria da Fonte. Revista da
Faculdade de Letras, Porto, III série, v. 5, 2004.
REIS, Jaime. A industrialização num país de desenvolvimento lento e tardio:
Portugal, 1870-1913. Análise Social, [s.l.], v. XXIII, p. 207-227, 1987.
SANTIROCCHI, Ítalo Domingos. Uma questão de revisão de conceitos:
romanização – ultramontanismo – reforma. Temporalidades, Belo Horizonte,
v. 2, n. 2, 2010.
SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa. Sintra:
Publicações Europa-América, 1949.
SOUSA, Osvaldo Macedo de. As caricaturas da Primeira República.
Lisboa: Tinta-da-China, 2010.
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123
Capítulo 6
6
Santidade e “Relaxações” de
mulheres em A Relíquia
Andrea Bittencourt
Andrea Bittencourt
Santidade
e “Relaxações”
de mulheres
em A Relíquia
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.6
Resumo: Com base em duas obras de Eça de Queirós, que revelam um retrato
da burguesia lisboeta do século XIX, este artigo busca traçar um paralelo entre
As farpas (1871) e A relíquia (1887), especificamente no tocante à representação da mulher nessa sociedade. Para tanto, analisamos personagens femininas relevantes que orbitam o narrador protagonista da segunda obra referida,
enfatizando constituições antagônicas a Dona Patrocínio, a exemplo de Adélia
e Miss Mary.A partir de suas características, pretendemos verificar se as considerações sobre a mulher empreendidas pelo autor em As farpas encontram
reverberações em A relíquia.
Palavras-chave: Representação da mulher; Eça de Queirós; A relíquia; As farpas.
sumário
125
INTRODUÇÃO20
Um dos autores mais importantes da Literatura Portuguesa e expoente da Geração de 70, Eça de Queirós (1845-1900) é igualmente
considerado um dos grandes retratistas e críticos da sociedade burguesa do século XIX, narrando com propriedade suas características, qualidades e defeitos, sonhos e decepções, haja vista ter feito parte dela.
Ante sua extensa produção literária, elegemos para análise neste artigo
duas de suas obras, a saber, As farpas (1871-1872) e A relíquia (1887).
Com o subtítulo Crônica mensal da política, das letras e dos costumes, As farpas consistem em uma compilação de textos jornalísticos
do então iniciante escritor, em que principia sua construção crítica do
perfil da sociedade burguesa portuguesa, em maior medida, e lisboeta, em específico, na companhia de Ramalho Ortigão, que assina em
conjunto as crônicas. Maria Filomena Mónica (2013, p. 1), na introdução da edição coordenada e publicada por ela dessa obra, revela que,
“durante os primeiros anos, [quase] a totalidade de textos foi redigida
por Eça”, por isso a escolha da referida edição como corpus de análise, visto ser composta pelos textos datados de 1871 e 1872.
De acordo com João Medina (2000, p. 149),
grande parte das Farpas queirosianas são dedicadas a uma implacável crítica do mundo constitucional, da sua política, das
suas idéias, homens, instituições e prática. Raramente, aliás, se
terá ido, durante o oitocentismo português, tão longe na denúncia dos vícios e fraquezas de um sistema político.
20
sumário
Este artigo consiste em uma versão da comunicação Santa e pecadora: “farpas” de mulheres burguesas em “A relíquia”, apresentada no III Encontro do Grupo Eça: O mandarim,
A relíquia e suas fricções, realizado pela Universidade Federal do Ceará, de 29 a 31 de
outubro de 2018.
126
De fato, esse perfil português traçado no decorrer das “farpas” é
exaltado pelo próprio autor ao travar um primeiro contato com seu leitor
na crônica inicial, de maio de 1871:
Leitor de bom senso – que abres curiosamente a primeira página deste livrinho, sabe, leitor – celibatário ou casado, proprietário ou produtor, conservador ou revolucionário, velho patuleia
ou legitimista hostil – que foi para ti que ele foi escrito – se tens
bom senso! E a ideia de te dar assim todos os meses, enquanto quiseres, cem páginas irónicas, alegres, mordentes, justas,
nasceu no dia em que pudemos descobrir através da penumbra
confusa dos factos, alguns contornos do perfil do nosso tempo
(QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 16).
Mesmo a política figurando como principal foco de atenção, Eça
não deixa de abordar os pilares da sociedade burguesa portuguesa, a
exemplo da família e do lar, podendo-se encontrar em quase totalidade
das suas crônicas trechos que denunciam o papel da mulher e acusam
a educação recebida como fonte de sua subalternidade em relação
ao homem. Tal perspectiva é ressaltada por Medina (2000, p. 158), ao
afirmar que, “quanto à mulher, seu papel na sociedade, sua condição
e função social, Eça dedica páginas admiráveis de lucidez e atenção
sociológicas [...]”.
Por outra perspectiva, dando ênfase às facetas religiosas que
influenciam a burguesia portuguesa e, consequentemente, sua política
e bases sociais, em A relíquia, Eça narra a história de Teodorico Raposo, narrador protagonista da obra, que, tendo ficado órfão em tenra
idade, é acolhido por sua tia, Dona Maria do Patrocínio, solteira, beata
e que considera toda forma de lazer e prazer – que não o relacionado
à religião – como “relaxações”, tendo horror a elas e as maldizendo.
Mesmo sob o olhar crítico e o pulso firme da tia, Teodorico vive seus
amores e, até mesmo, vê sua derrocada e deserção serem causadas
por uma dessas “relaxações”.
sumário
127
Neste artigo, buscamos traçar um paralelo entre essas obras,
especificamente no tocante à representação da mulher nessa sociedade – nesse aspecto, é preciso desde já ressaltar que se trata do ponto
de vista masculino, uma vez que elas são desenhadas e discutidas a
partir da visão de Eça (no caso das crônicas) e de Teodorico (no caso
do romance). Para tanto, analisamos personagens femininas relevantes que orbitam o narrador protagonista de A relíquia, com ênfase em
constituições antagônicas a Dona Patrocínio, a exemplo de Adélia e
Miss Mary. A partir de suas características, pretendemos verificar se as
considerações sobre a mulher empreendidas pelo autor em As farpas
encontram reverberações em A relíquia.
FARPAS QUEIROSIANAS SOBRE
A MULHER REVERBERADAS
Por meio da seleção e análise das farpas queirosianas, podemos ter uma ideia inicial da mulher pelo ponto de vista de Eça. Principiando pela de fevereiro de 1872, o autor transita por vários assuntos,
incluindo o desenho dos tipos que vivem na sociedade portuguesa,
com certo destaque para as mulheres, enaltecendo a falta da verdadeira mulher lisboeta, assim descrita:
É a mulher pequenota, arredondada, potelée, morena, cabelo
abundante, negro e lustroso, olho inquieto espreitando na órbita
como a cabeça de um grilo entre os alfinetes da gaiola, mão
polpuda, pé gordo e pequeno, sobrancelha espessa, e – particularidade para que temos a honra de chamar particularmente a
atenção dos estudiosos – buço! Há anos já que se notava que a
mulher típica, a indígena de Lisboa, lentamente se despaisava:
perdia importantes partes da sua velha e característica devoção
a Santo António; o vaso do manjerico e a maçaroca de alfazema, – adorno e riso do seu telhado, companhia e perfume do
seu bragal – principiaram a baixar de preço; ela abandonou em
sumário
128
seguida o capote e lenço; por fim, ultimamente – oh saudade
eterna! – pôs também de parte o buço! Não sabemos realmente
o que fizeste, ó mulher de Lisboa, abandonando o bigodinho
lendário, cunho e brasão do seu rosto! (QUEIROZ; ORTIGÃO,
2013, p. 366-367, grifo do autor).
Já em crônica de março do mesmo ano, exalta a constituição
das jovens mulheres portuguesas, com as seguintes palavras:
As meninas solteiras. Vejamos o tipo geral de Lisboa: é uma
pessoa magrita, amarelada, com um andar débil, ligeiramente
ondulado, um grande puff no vestido, penteado difícil e espesso, um pequenino chapéu, o olhar sem ingenuidade, sem
hesitação e sem temor.
O primeiro sinal saliente é a debilidade e a anemia. [...] A palidez, a curvatura, as olheiras, o deprimido, o murcho – mostram
um ser possuído de sensibilidade, de histérico, de apetites,
de ideias subtis e profanas, de excitações e de nevroses. [...]
(QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 414, grifo do autor).
De acordo com Eça, a composição corporal por ele referida deve-se a sintomas, como não respirar, não fazer exercícios, não comer
ou comer mal e, finalmente, apertar-se em espartilhos. No mesmo texto, compara tais mulheres com as francesas, alemãs, inglesas, consideradas melhores em seu preparo físico e sentimental.
Considerando tais descrições, podemos depreender que a mulher caracterizada na primeira farpa representa a mulher aristocrática,
que perdeu seu lugar em consequência, principalmente, da fuga da
família real para sua colônia quando da invasão francesa em terras
portuguesas. Por sua vez, na segunda, temos aquela criada aos moldes burgueses, cuja forma de ser e agir é influenciada em grande parte pela educação romântica recebida, herança do momento histórico
imediatamente anterior.
Sobre a educação romântica, aliás, interessa trazer o pensamento de Irene Vaquinhas (2011, p. 24-25, grifo do autor), que afirma:
sumário
129
O próprio romantismo ajudou a forjar este tipo feminino, ao
construir uma imagem de mulher simultaneamente idealizada e
insignificante: a mulher frágil, cujo charme reside precisamente
na sua vulnerabilidade; a mulher espartilhada em termos físicos e morais, posta ao abrigo dos perigos exteriores, virginal e
ignorante, cujos conhecimentos se deviam reduzir às artes de
bem receber e às ‘prendas domésticas’: lavores, um pouco de
francês, de piano e de canto. Apenas o necessário para animar
os salões ou os saraus familiares.
Temos, assim, uma confirmação da asserção feita sobre a origem da constituição frágil e a educação direcionada ao lar das moças burguesas.
Uma vez que este estudo pretende traçar paralelos com outra
obra do autor, especificamente, A relíquia, neste momento, cumpre trazer à luz a descrição feita por seu narrador protagonista de uma das
principais personagens femininas da narrativa, a saber, Dona Patrocínio ou Titi, sua tia, que o toma sob sua proteção quando fica órfão.
Eis um primeiro excerto a respeito: “A Titi estava sentada no meio do
canapé, vestida de seda preta, toucada de rendas pretas, com os dedos resplandecentes de anéis” (QUEIROZ, 2018, p. 18), a partir do qual
começa a se desenhar no imaginário do leitor uma mulher de posses.
Num retrato mais demorado, assim Teodorico se refere à tia:
Donzela, e velha, e ressequida como um galho de sarmento;
não tendo jamais provado na lívida pele senão os bigodes do
comendador G. Godinho, paternais e grisalhos; resmungando
incessantemente, diante de Cristo nu, essas ejaculatórias das
Horas de Piedade, soluçantes de amor divino – a Titi entranhara-se, pouco a pouco, dum rancor invejoso e amargo a todas as
formas e a todas as graças do amor humano.
E não lhe bastava reprovar o amor como coisa profana: a sra.
d. Patrocínio das Neves fazia uma carantonha, e varria-o como
coisa suja. Um moço grave, amando seriamente, era para ela
‘uma porcaria!’. Quando sabia duma senhora que tivera um
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130
filho, cuspia para o lado, rosnava ‘que nojo!’. E quase achava a
Natureza obscena por ter criado dois sexos.
Rica, apreciando o conforto, nunca quisera em casa um escudeiro – para que não houvesse na cozinha, nos corredores,
saias a roçar com calças. E, apesar de irem embranquecendo
os cabelos da Vicência, de ser decrépita e gaga a cozinheira,
de não ter dentes a outra criada chamada Eusébia, andava-lhes
sempre remexendo desesperadamente nos baús, e até na palha dos enxergões, a ver se descobria fotografia de homem,
carta de homem, rasto de homem, cheiro de homem.
Todas as recreações moças: um passeio gentil com as senhoras,
em burrinhos; um botão de rosa orvalhado oferecido na ponta
dos dedos; uma decorosa contradança em jucundo dia de Páscoa; outras alegrias, ainda mais cândidas, pareciam à Titi perversas, cheias de sujidade, e chamava-lhes relaxações. Diante dela
já os sisudos amigos da casa não ousavam mencionar dessas
comoventes histórias, lidas nas gazetas, e em que transparecem
motivos de amor – porque isso a escandalizava como o desbragamento de uma nudez (QUEIROZ, 2018, p. 38, grifo do autor).
Esse perfil apresentado pelo protagonista traz semelhanças daquele referido por Eça em sua crônica de fevereiro de 1872, no tocante
à mulher aristocrática, tradicional, ainda sem perder suas características
mais imponentes, como sua devoção religiosa e seus trajes escuros e
sisudos. Vale lembrar que os leitores têm acesso apenas às impressões
de Teodorico sobre as demais personagens, uma vez que se trata do
narrador; desse modo, há certa tendência a traçar um retrato um tanto
circunspecto de sua tia, que se configura como alguém antagônico ao
modo de vida, pensamentos e desejos da personagem principal.
Ainda sobre Titi, além de sua riqueza, é frequentemente testemunhada sua religiosidade, aspecto também tratado por Eça em suas
crônicas, a exemplo da escrita em maio de 1871, que traz o seguinte:
As mulheres são supersticiosas: creem da religião o que é necessário para ser moda, ou então creem apenas na exterioridade – novenas, festas de igreja, flores e altares – o que excita
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os sentidos, exalta a sensibilidade, não dá uma regra para o
julgamento, nem um critério para a consciência.
A perfeição religiosa não consiste simplesmente, como as mulheres têm o infortúnio de acreditar, na observância e no respeito
do culto: consiste no exame e no estudo recolhido e austero dos
desígnios e da vontade de Deus sobre os nossos sentimentos e
sobre os nossos atos (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 32).
Em farpa de março de 1872, o autor volta a discutir o tema da
religião, voltando-se especificamente à educação religiosa (católica)
ofertada às meninas, como podemos observar:
A par dessa educação profana – que educação moral? – o catecismo e a doutrina. É a educação religiosa. Faz-se assim: a
pequerrucha aprende a persignar-se, a ajoelhar com gravidade e a recitar o padre-nosso. Depois seguidamente, mistério a
mistério, todas as orações da cartilha. Esta doutrina di-la a pequerrucha, correntemente, de cor, como a tabuada ou como as
capitais da Europa, sem ideia, sem fé, sem compreensão, com
um certo terror – porque lhe ensinam que Deus dá as trovoadas,
as doenças, a morte e os castigos abrasados (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 419-420, grifo do autor).
Nessas duas crônicas, Eça declara que o Catolicismo não caminha com a fé, sendo esta de aparências, fruto de repetições e palavras
vazias, além de poder ser vista como consequência do medo, uma vez
que é Deus quem concede a vida e a morte.
A partir de tais considerações, a religiosidade de Titi, em A relíquia, parece ser consequente de sua educação, assim como sua “fé”
fervorosa pode ser entendida como decorrente do medo do poder de
Deus – e por isso aqui grafada entre aspas, denotando ser resultado de
algo exterior, e não um sentimento inerente da personagem. Posto isso,
é relevante retornar ao excerto do romance apresentado anteriormente,
em que Teodorico menciona a ojeriza da tia em relação a recreações
e roçares de saias, puras “relaxações”, em seu entendimento. Ora, o
Deus do Antigo Testamento expulsou Adão e Eva do Paraíso como
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punição a uma “relaxação”; não imaginaria Titi que o mesmo aconteceria a ela e àqueles que O desafiassem, impedindo a entrada no céu?
Afinal, “[...] para a tia Patrocínio todas as ações humanas, passadas
por fora dos portais das igrejas, consistiam em andar atrás de calças ou
andar atrás de saias– e ambos estes doces impulsos naturais lhe eram
igualmente odiosos!” (QUEIROZ, 2018, p. 37, grifo nosso).
Em contraposição a ela, podemos trazer como primeiro exemplo do outro perfil de mulher revelado por Eça em suas crônicas, consoante excerto já exposto, sua irmã, Dona Rosa, mãe do protagonista,
assim descrita nas primeiras páginas da narrativa:
[...] A outra, d. Rosa, gordinha e trigueira, tocava harpa, sabia
de cor os versos do Amor e melancolia, e passava horas, à beira
da água, entre a sombra dos amieiros, rojando o vestido branco
pelas relvas, a fazer raminhos silvestres.
[...] d. Rosa sentava-se então ao pé da Titi com uma flor nos
cabelos, um livro caído no regaço; e o papá, chocalhando os
dados, sentia a carícia prometedora dos seus olhos pestanudos
(QUEIROZ, 2018, p. 14, grifo do autor).
Apesar da permanência breve no texto, uma vez que é relatada
sua morte quando do nascimento de Teodorico, é a primeira personagem a ter características opostas às de Titi, sendo retratada em cores claras, em situações cândidas – recordando cenários românticos
e indicando sua educação nessas bases –, mas também dando os
primeiros vislumbres da promessa do prazer.
A esse cotidiano mais leve vivido por Dona Rosa, Eça já se referia em suas farpas, ao descrever um típico dia da mulher burguesa.
Vejamos excerto da crônica de março de 1872:
[...] O dia de uma menina de dezoito anos é assim dissipado:
almoça, vai-se pentear, corre o Diário de Notícias, cantarola
um pouco pela casa, ajeita-se numa cadeira, pega no crochet
ou na costura, deixa-a, vai à janela, passa pelo espelho, duas
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pancadinhas no cabelo para o compor, dá mais dois pontos no
trabalho, deixa-o cair no regaço, come um bocadinho de doce,
conversa vagamente, volta ao espelho e assim vai puxando o
tempo pelas orelhas, fatigada de ociosidade e bocejando as
horas (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 417, grifo do autor).
Ambas as rotinas são simples, morando a diferença no cenário
em que acontecem: no caso de Dona Rosa, no campo; no exemplo
dado na crônica, dentro de casa, provavelmente na cidade.
Outro aspecto interessante diz respeito ao prazer prenunciado
pelo olhar da personagem do romance no fim do excerto trazido, o
qual resume a trajetória de sedução até o casamento. Como dá a
conhecer Eça em suas farpas, as mulheres são educadas para seu
papel no lar, sendo seu objetivo casar, para assim cumprir a obrigação social que lhe cabe.
Muitos teóricos que têm como foco o estudo da sociedade burguesa do século XIX, a exemplo de Eric Hobsbawm (2005), Peter Gay
(2002) e Franco Moretti (2014), relatam que o lar é a quintessência do
mundo burguês, sendo o lócus natural das mulheres, uma vez que não
são afeitas aos estudos e às ciências. Isso se deve, segundo Eça, às
características entediantes do ensino tradicional, com seus métodos
monótonos e fatigantes. Dessa forma, o lar figura como seu ambiente,
“único lugar em que podiam realizar a vocação divina de esposas e
mães” (GAY, 2002, p. 68).
Daí a preocupação, casar, casar com dinheiro, casar rica; seja o
marido velho, imbecil ou rude, plebeu ou trivial: o dinheiro faísca,
atrai, triunfa. Por outro lado a sociedade diz-lhe: goza. [...] De
modo que temos, casar rica para gozar: é em que se resolve a
ambição de todo o destino feminino. Dinheiro – e sensibilidade
(QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 427).
No caso das mulheres sem muitas posses, o casamento figura
como uma salvação, como um degrau para alçá-la a novo status dentro da sociedade, como podemos compreender pelo seguinte trecho:
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As mulheres vivem as consequências desta decadência. Pobres, precisam de casar. A caça ao marido é uma instituição.
Levam-se as meninas aos teatros, aos bailes, aos passeios,
para as mostrar, para as lançar à busca. Faz-se com a maior
simplicidade esse ato, que é simplesmente monstruoso. Para
se imporem à atenção, as meninas têm as toilettes ruidosas, os
penteados fantásticos, e as árias amorosas ao piano.
A sua mira é o casamento rico: gostam do luxo, da boa mesa,
das salas estofadas: um marido rico realizaria tudo isso [...]
(QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 31, grifo do autor).
Em A relíquia, a caça ao marido – ou, ao menos, a alguém que
sustente essas mulheres – dá-se a partir do prazer, característica preponderante de uma das principais antagonistas de Titi: Adélia, amante
de Teodorico, que utiliza seus dotes naturais para conquistar aquilo
que deseja. Eis o excerto do primeiro encontro deles:
Munidos dum cartucho de papéis e de uma garrafa de Madeira,
encontramos Ernestina a coser um elástico nas suas botinas de
duraque. E a Adélia, estendida no sofá, de chambre e em saia
branca, com os chinelos caídos no tapete, fumava um cigarro
lânguido. Eu sentei-me ao lado dela, comovido e mono, com o
meu guarda-chuva entre os joelhos. [...].
[...] Ela pediu-me outro cigarro, cortesmente, dizendo-me – o
cavalheiro. Apreciei estes modos, as mangas largas do seu roupão, escorregando, descobriam braços tão brancos e macios
que entre eles a Morte mesma deveria ser deleitosa. [...] Ela
quis saber meu nome. Tinha um sobrinho que também se chamava Teodorico; e isto foi como um fio sutil e forte que veio, do
seu coração, enrodilhar-se no meu. [...] O brilho picante dos
seus dentinhos miúdos fez desabrochar dentro de mim uma flor
de madrigal. [...] Ela fez-me uma cócega lenta no pescoço. Eu,
aboborado de gozo, bebi o resto do Madeira que ela deixara
no cálice. [...] Então a Adélia, revirando-se languidamente, puxou-me a face – e os meus lábios encontraram os seus no beijo
mais sério, mais sentido, mais profundo que até aí abalara o
meu ser (QUEIROZ, 2018, p. 29-30, grifo do autor).
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Adélia traz em si reminiscências daquele tipo de mulher aludido por Eça na crônica de março de 1872, ou seja, a mulher magra,
de andar débil. Diferentemente de Titi, sempre trajada em preto, com
ares sombrios, ela representa a luz, portando o branco além de suas
vestes, tendo-o impresso em sua própria pele. Apesar de ter as mãos
grossas, indicando uma vida de labor, é envolta por uma aura idílica
aos olhos de Teodorico.
Enamorado dela, o protagonista sonha com a morte de sua tia e a
possibilidade de oferecer uma vida mais abastada a Adélia; no entanto,
descobre ter sido por ela traído, fato de que tem conhecimento por denúncia de Mariana, empregada dela. Essa cena, aliás, traz à lembrança
outra obra de Eça, O primo Basílio (1878), em que o adultério cometido
por Luísa com seu primo figura como pano de fundo da narrativa. Assim como em A relíquia, é a empregada que guarda o segredo de sua
patroa; no caso, Juliana descobre carta de Basílio a Luísa e a usa para
chantageá-la, enquanto Mariana denuncia Adélia por vingança.
Sobre o adultério, Eça inicia suas considerações também em As
farpas, como vemos:
E depois esta questão de adultério é equívoca. Porque ou é
tratada num folheto pelo sr. fulano, bom rapaz e empregado
público – e então torna-se tão monótona, tão banal, tão recalcada, que nem Robinson Crusoé na sua ilha deserta, com todo
o seu tédio, e sendo esse folheto o único folheto e sendo essa
distração a única distração – a quereria: ou então é tratada por
espíritos subtis, analíticos, originais como Dumas e sucede que,
com os detalhes, as anedotas, os quadros, as revelações, o
estudo torna-se uma divulgação de alcova e uma pimenta amorosa! De modo que quando não é uma trivialidade estéril, é uma
provocação irritante! (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 544).
Se o marido se conserva um amante – bem. Mas se o marido
naturalmente, como deve ser, se ocupa dos seus negócios,
do seu escritório, da sua política, dos seus fundos, do seu
clube, dos seus amigos – mal. Ela naturalmente faz como um
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amanuense que tendo por profissão escrever, quando tem
escrita e cheia a primeira folha de papel, toma outra – para
continuar a escrever.
Tal é a verdade (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 550).
Nessas citações, de crônica de setembro a outubro de 1872, o
autor revela seu entendimento do adultério ou como algo trivial ou como
uma provocação, sendo um ato ao qual a mulher não pode escapar. No
caso do romance analisado, na verdade, é Teodorico que não consegue
escapar de ser a vítima desse ato, como será exposto adiante.
Abandonado por Adélia, ele sai em peregrinação pela Terra Santa, à custa de sua tia, a quem promete uma relíquia. Nessas andanças,
conhece Miss Mary, inglesa com quem se envolve e que acaba por ser
a causadora de sua desgraça. Vejamos a primeira descrição dela feita
pelo protagonista:
Entrei comovido. Por trás do balcão envernizado, junto a um
vaso de rosas e magnólias, ela estava lendo o seu Times, com
um gato branco ao colo. O que me prendeu logo foram os seus
olhos azul-claro, dum azul que só há nas porcelanas, simples,
celestes, como eu nunca vira na morena Lisboa. Mas encanto
maior ainda tinham os seus cabelos, crespos, frisadinhos como
uma carapinha de ouro, tão doces e finos que apetecia ficar
eternamente e devotadamente a mexer-lhe com os dedos trêmulos; e era irresistível o profano nimbo luminoso que eles punham em torno da sua face gordinha, duma brancura de leite,
onde se desfez carmesim, toda tenra e suculenta. Sorrindo, e
baixando com sentimento as pestanas escuras, perguntou-me
se eu queria pelica ou Suécia.
[...] Ela era silenciosa; mas o seu simples sorrir com os braços
cruzados, ou o seu modo gentil de dobrar o Times, saturava o
meu coração de luminosa alegria. [...] (QUEIROZ, 2018, p. 7374, grifo do autor).
Nessa descrição, apesar da brancura que aproxima a personagem de Adélia, temos a configuração de outro tipo de mulher,
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a estrangeira, cuja compleição é, na visão de Eça, melhor física e mentalmente. Nesse sentido, cumpre trazer a conhecimento trechos de
crônica datada de março de 1872, em que são feitas comparações
entre as portuguesas e as inglesas, principalmente:
[...] Taine diz, pintando o sólido vigor inglês – que o primeiro dever de uma menina é ter saúde. É. A saúde é a explosão física da
inocência. À saudável perfeição do corpo corresponde a lúcida
simplicidade do espírito. Mens sana em corpore sano. Uma pele
fresca e sanguínea diz um pensamento casto e verídico. [...].
[...] Uma alemã, uma inglesa, anda – como pensa – direita e
certa. [...] (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 414, grifo do autor).
[...] Nada mais significativo que o seu modo de andar. Veja-se o
andar de uma inglesa, firme, direito, acentuado, sereno, prático:
sente-se a saúde, a personalidade bem afirmada, a coragem,
os instintos positivos. [...] (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 417).
Eis por que temos, provavelmente, a sensação de luminosidade,
saúde e frescor a partir da caracterização de Miss Mary, feita por Teodorico. Destacamos que esse ponto de vista de Eça sobre as mulheres, tanto portuguesas quanto estrangeiras, é compartilhado por intelectuais de sua época, como o próprio Ramalho Ortigão, que co-assina
as crônicas de As farpas (MÓNICA, 2001).
Ainda sobre esse aspecto, há o primeiro afastamento da tese
construída n’As farpas em comparação ao romance. Diferentemente ao
apregoado em seus primeiros escritos, Miss Mary não pode ser considerada um exemplo de correção, uma vez que, adiante na narrativa,
temos conhecimento de que também ela acaba por trair Teodorico e
não o esperar, fugindo com um italiano, além de ter vivido outras relações amorosas e deixado peças brancas como sinal de sua afeição.
Dessa forma, a inglesa (Miss Mary) passa a ter uma semelhança com
a portuguesa (Adélia), no que diz respeito ao adultério e à caça ao
marido. Essa possível transformação no pensamento do autor, operada na representação ficcional, indica que sua compreensão do ideal
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burguês como sendo aquele vivido em Inglaterra e França pode ter
começado a mudar, o que parece ter tido lugar, a princípio, na caracterização feminina. No entanto, tal discussão, apesar de interessante,
não é comportada nesta análise.
Retornando às peças brancas deixadas como mimos por Miss
Mary a seus amantes, é fundamental trazer uma cena que as envolve:
Rebuscando, entre os cobertores revoltos, descobrira uma longa camisa de rendas, com laços de seda clara. Sacudia-a; e
espalhava-se um aroma saudoso de violeta e de amor... Ai! Era
a camisa de dormir da Mary, quente ainda dos meus braços!
[...] Dou-ta, Teodorico! Leva-a, Teodorico! Ainda está amarrotada da nossa ternura! [...] Espera, espera ainda, amor! Quero
pôr-lhe uma palavra, uma dedicatória!
[...] Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!
[...] Então Maricoquinhas, com uma inspiração delicada, agarrou uma folha de papel pardo, apanhou do chão um nastro vermelho; e as suas habilidosas mãos de luveira fizeram da camisinha um embrulho redondo, cômodo e gracioso [...] (QUEIROZ,
2018, p. 79-80, grifo do autor).
Temos, ainda, outra cena interessante, que acaba por levar ao
clímax da narrativa. Vejamos:
– É à minha querida Titi, só a ela, que compete, pela sua muita
virtude, desembrulhar o pacotinho!...
Acordando do seu langor, trêmula e pálida, mas com a gravidade de um pontífice, a Titi tomou o embrulho, fez mesura aos santos, colocou-o sobre o altar; devotadamente desatou o nó do
nastro vermelho; depois, com o cuidado de quem teme magoar
um corpo divino, foi desfazendo uma a uma as dobras do papel
pardo... Uma brancura de linho apareceu... A Titi segurou-a nas
pontas dos dedos, repuxou-a bruscamente – e sobre a ara, por
entre os santos, em cima das camélias, aos pés da cruz – espalhou-se, com laços e rendas, a camisa de dormir da Mary!
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A camisa de dormir da Mary! Em todo o seu luxo, todo o seu
impudor, enxovalhada pelos meus abraços, com cada prega
fedendo a pecado! A camisa de dormir da Mary! E pregado
nela por um alfinete, bem evidente ao clarão das velas, o cartão
com a oferta em letra encorpada: – ‘Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!’,
Assinado, M. M. A camisa de dormir da Mary! (QUEIROZ, 2018,
p. 245, grifo do autor).
Eis a ruína de Teodorico, fruto de suas “relaxações”, prenunciada por sua tia – “Que se aguente... É o que sucede a quem não
tem temor de Deus e se mete com bêbedas [...] homem que anda
atrás de saias, acabou... Não tem o perdão de Deus, nem tem o meu!
[...]” (QUEIROZ, 2018, p. 28) – e facilitada por sua amante. Deserdado,
obrigado a trabalhar para obter seu sustento, agora é ele que utiliza o
casamento como forma de melhorar sua posição na sociedade, dando
a conhecer a última personagem feminina a orbitar sua vida:
Assim eu conheci a irmã da Firma. Chamava-se d. Jesuína, tinha
trinta e dois anos e era zarolha. Mas, desde esse domingo de rio
e de campo a riqueza dos seus cabelos ruivos como os de Eva,
o seu peito sólido e suculento, a sua pele cor de maçã madura,
o riso são dos seus dentes claros [...].
– Amor, amor, não... Mas acho-a um belo mulherão; gosto-lhe
muito do dote; e havia de ser um bom marido.
[...] Casei. Sou pai [...] (QUEIROZ, 2018, p. 263-264).
Jesuína, portanto, difere da compleição típica da burguesa portuguesa discutida por Eça em As farpas, não tendo sido encontrada
associação a ela em suas crônicas, o que aponta outra transformação
no pensamento do autor: no sentido inverso da mudança referida anteriormente, temos aqui a relativização da inferioridade da portuguesa
em relação às estrangeiras.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como exposto na introdução, este artigo teve a intenção de, a
partir da análise de personagens femininas de A relíquia, identificar as
reverberações das considerações de Eça tecidas n’As farpas sobre a
representação da mulher. Para tanto, o texto foi entremeado pelo estudo concomitante das duas obras, a fim de traçar aproximações e/ou
afastamentos entre elas. Também destacamos que, haja vista o objetivo traçado, demos ênfase ao estudo comparado delas, empregando
os textos jornalísticos como fonte de embasamento para a discussão.
Retomando parte do título deste artigo, a partir dos excertos
apresentados, verificamos que Titi, representante da santidade em A
relíquia, é sempre vista pelo narrador através de filtros sombrios, negros, enquanto Adélia, personificação das “relaxações”, é envolta por
aura límpida, branca, quase angelical. O mesmo acontece com Miss
Mary, que, também retratada a partir dessa aura límpida, apesar de ser
considerada correta pelo protagonista, é revelada como outra personificação do pecado, tal qual um lobo na pele de cordeiro.
Uma vez que o ponto de vista da narrativa pertence unicamente
a Teodorico, podemos dizer que a dicotomia morte-vida personificada
por Titi e Adélia, respectivamente, tem intrínseca relação com os desejos do protagonista, ou seja, para ele, a existência que sua tia lhe
imputa leva-o à morte em vida, visto que só quer gozar das riquezas
que ela pode proporcionar; por outro lado, a vida de prazer com Adélia
é tudo que seu corpo e espírito desejam, sendo, assim, um paraíso
na Terra. Ainda nesse sentido, é relevante destacar que a dualidade
pecado x santidade se deve à inversão de valores de Teodorico, sendo
o protagonista sincero sobre esse aspecto do seu comportamento.
Outro ponto importante a trazer nestas considerações diz respeito a Adélia e Miss Mary. Apesar de serem desprezadas pela sociedade,
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visto não deterem status e viverem a “roçar calças”, somente elas detêm certa individualidade na narrativa, uma vez que dão vazão a seus
desejos e vivem seu próprio prazer, sem influência externa. Aliás, é
Adélia que acaba por gozar das regalias proporcionadas pela herança
de Titi, visto ter sido tomada à proteção de Padre Negrão: “[...]Tudo o
que eu esperara e amara (até a Adélia!) o possuía agora legitimamente
o horrendo Negrão!... Perda pavorosa! [...]” (QUEIROZ, 2018, p. 265).
Por fim, indo mais além, numa vertente da crítica social, podemos dizer que Eça, com a dualidade vida x morte presente em A relíquia, pretende representar a morte de uma classe que não mais possui
centralidade na sociedade, além da ascensão de outra, que encontra
seu espaço, passa a ser a classe dominante, mas finda por também
entrar em derrocada. De fato, como já discutido, Dona Patrocínio finalmente sucumbe, tomando seu lugar nada menos que Adélia, amante
do padre, que acaba por ficar com grande parte da herança em lugar
de Teodorico, que é expulso de casa devido às suas “relaxações” e
recebe apenas o óculo de Titi, “para ver o resto de longe!”, como bem
conclui Justino (QUEIROZ, 2018, p. 254).
REFERÊNCIAS
GAY, Peter. O século de Schnitzler: a formação da cultura da classe média:
1815-1914. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
HOBSBAWM, Eric J. O mundo burguês. In: HOBSBAWM, Eric J. A era do
capital. 11. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
MEDINA, João. Reler Eça de Queiroz: das Farpas aos Maias. Lisboa: Livros
Horizonte, 2000.
MÓNICA, Maria Filomena. Eça: vida e obra de José Maria Eça de Queirós.
Rio de Janeiro: Record, 2001.
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142
MÓNICA, Maria Filomena. Introdução. In: QUEIROZ, Eça de; ORTIGÃO,
Ramalho. As farpas: crónica mensal da política, das letras e dos costumes.
4. ed. Parede: Princípia, 2013.
MORETTI, Franco. O burguês: entre a história e a literatura. São Paulo: Três
Estrelas, 2014.
QUEIRÓS, Eça de. O primo Basílio. Lisboa: Bertrand, 2016.
QUEIROZ, Eça de. A relíquia. Porto Alegre: L&PM, 2018.
QUEIROZ, Eça de; ORTIGÃO, Ramalho. As farpas: crónica mensal da
política, das letras e dos costumes. 4. ed. Parede: Princípia, 2013.
VAQUINHAS, Irene Maria. “Senhoras e mulheres” na sociedade
portuguesa do século XIX. 2. ed. Lisboa: Colibri, 2011.
sumário
143
Capítulo 7
7
Os conceitos de Ludwig Feuerbach em A
Relíquia, de Eça de Queirós: Uma análise
da personagem D. Patrocínio das Neves
David Alves Paulino
David Alves Paulino
Os conceitos
de Ludwig Feuerbach
em A Relíquia,
de Eça de Queirós:
uma análise da personagem
D. Patrocínio das Neves
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.7
Resumo: Neste estudo, apresentamos uma análise do livro A relíquia (1887),
de Eça de Queirós (1845-1900), relacionando a construção da personagem D.
Patrocínio das Neves com conceitos presentes em A essência do Cristianismo
(1841), de Ludwig Feuerbach (1804-1872). Para isso, utilizamos autores como
Adolfo S. Vásquez (1997), Francesco Tomasoni (2015), Aparecida de F. Bueno
(2000), dentre outros. No livro, Eça de Queirós constrói um narrador irônico,
Teodorico Raposo, que vive com sua tia, D. Patrocínio, após a morte de seus
pais. No seu cotidiano, Teodorico descreve a tia com figuras de linguagens
e adjetivações que contribuem para uma estereotipagem da personagem. A
investigação evidencia que, para a caracterização da personagem Titi, Eça
utilizou-se dos conceitos filosóficos de alienação, da antinaturalidade, do milagre, dentre outros.
Palavras-chave: A relíquia; A essência do Cristianismo; Eça de Queirós; Ludwig
Feuerbach.
sumário
145
INTRODUÇÃO
De acordo com Francesco Tomasoni (2015), o anticlericalismo se
constitui como uma característica de meados do século XIX. Um dos alicerces das ideias iluministas era a liberdade do homem, sendo a Igreja
considerada um instrumento de comedimento das ações e pensamentos. Ao contrário do que muitos podem pensar, as ideias iluministas não
foram difundidas de uma maneira homogênea em todos os países. A
Alemanha é um exemplo de como a crítica à Igreja desenvolveu-se lenta
e receosamente. O Iluminismo alemão, a priori, não combateu os ideais
cristãos; pelo contrário, pautou-se em suas ideologias. Márcio Gimenes
de Paula (2015, p. 10) anuncia tal questão na introdução do livro Ludwig
Feuerbach e a fratura no pensamento contemporâneo:
Nele podemos perceber o modo como se desenvolveu, desde
a herança de Lutero, o iluminismo alemão, que, diferentemente
do iluminismo francês, por exemplo, constrói-se tanto na Alemanha como nos países nórdicos não como uma espécie de
movimento antieclesiático, mas como um aprofundamento da
própria teologia e da religião [...].
Na Alemanha, Hegel (1770-1831) esforçou-se em tecer supostas críticas ao pensamento iluminista e, mesmo sua rede conceitual
sendo considerada uma filosofia da modernidade, apostou em um
pensamento dogmático, reunindo as contradições cristãs em seu
sistema filosófico e admitindo que “razão e fé, humanidade e Deus,
natureza e história podiam gerar uma unidade dinâmica [...]” (TOMASONI, 2015, p. 20). O movimento antitético entre contradição e negação transformou-se em sua famosa dialética hegeliana, constituindo
parte de suas obras filosóficas. O pensamento e obras de Hegel levaram ao extremo o modelo sistemático, conduzindo, posteriormente à
sua morte, uma divisão nas reflexões cunhadas por seus discípulos.
Dessa forma, houve separação da escola hegeliana entre os jovens
hegelianos e os velhos hegelianos.
sumário
146
De acordo com Karl Löwith (2014), os velhos hegelianos eram
designados dessa forma por conservarem o modo de pensar histórico
de Hegel, buscando dar continuidade às pesquisas históricas singulares, mas não produzindo uma relevância para o movimento histórico
do século XIX. Os jovens hegelianos, por sua vez, repensaram e criaram redes conceituais contrárias às ideias de Hegel, apontando desde
o princípio a incapacidade para manter alguns de seus preceitos, sendo um deles “[...] que a partir da ideia não se poderiam manter os relatos históricos dos Evangelhos, seja total ou parcialmente” (LÖWITH,
2014, p. 62). Podemos citar como pertencentes a esse grupo: Bruno
Bauer (1809-1882), David Strauss (1808-1874), Karl Marx (1818-1883),
Ludwig Feuerbach (1804-1872), entre outros.
Nas produções dos jovens hegelianos, há rupturas com o pensamento vigente na época, o que Tomasoni (2015) intitula como fratura
do pensamento contemporâneo. A crítica à fé cristã e a análise sobre
preceitos do Cristianismo são frequentes em suas produções. Nessa
direção, Strauss publica o livro A vida de Jesus (1835) e Feuerbach,
A essência do Cristianismo (1841). Em ambos, há o questionamento
sobre a figura central e um dos pilares da religião cristã: Jesus Cristo
e o seu estatuto como Deus carnal. Entretanto, “as polêmicas entre
os representantes da esquerda foram sempre mais violentas [...] entre
Max Stirner e Ludwig Feuerbach, que levou à dissolução do grupo”
(TOMASONI, 2015, p. 20).
As ideias disseminadas pelos jovens hegelianos serviram como
inspirações para autores de diferentes épocas. O grupo de intelectuais
de Portugal conhecido como Geração de 70 é um exemplo. A Geração
de 70 foi um movimento do século XIX que propunha repensar e modificar a cultura portuguesa em vários âmbitos. De acordo com Álvaro Manuel Machado (1981), ela surgiu com um impulso revolucionário a partir
das ideias do Liberalismo, com o intuito de regenerar a cultura e a Literatura Portuguesa. Dentre os jovens intelectuais que compunham o grupo,
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147
podemos citar Antero de Quental (1842-1891), Eça de Queirós (18451900), Ramalho Ortigão (1836-1915) e Oliveira Martins (1845-1894).
A Geração de 70 sentiu-se produto de uma sociedade, história e
cultura com incoerências e ‘falhas’ e, como elite intelectual, quis
contestar esses ‘erros’ interrogando seus fundamentos, refletindo nessa contestação, toda uma corrente crítica que ocorria
no cenário europeu, especialmente na Alemanha e na França
(NERY, 2017, p. 161)
Entre as supostas falhas históricas e culturais portuguesas, estava a influência da Igreja sobre o país. Antero de Quental (1942) aponta
o descontentamento no que a Igreja havia se tornado após o Concílio
de Trento (1545-1563), que, grosso modo, foi uma reunião para discutir
práticas que resultassem na afirmação das práticas religiosas ortodoxas próprias do Catolicismo, visando a ações que reagissem contra o
avanço do Protestantismo e suas ideias. A fim de reafirmar os dogmas
e reorganizar sua estrutura, instituiu-se a Inquisição, tendo em vista que
o Concílio reconheceu a necessidade de alcançar mais fiéis e converter a parcela da população que não seguia os dogmas católicos.
As idéias de Antero serviram como norte para todos os participantes da Geração e estão refletidas nas obras de outros
integrantes da plêiade. Em seu principal ensaio deste período, a
conferência apresentada no Casino Lisbonense em 27 de maio
de 1871, Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos, Antero propõe o Catolicismo pós-tridentino,
junto com a monarquia absolutista e as conquistas ultramarinas,
como causadores da decadência moral, econômica e social
das nações ibéricas; responsáveis pelo atraso do desenvolvimento da indústria e da ciência na península a partir do século
XVII (NERY, 2017, p. 162)
No ensaio mencionado pelo crítico, Antero afirma que a razão
e o livre pensamento eram considerados um anátema para os cristãos e seus dogmas. Com o intuito de comparar Portugal e outros
países europeus, valorizando o avanço moderno, o autor de Odes
modernas (1865) demonstra seu descontentamento perante a suposta
sumário
148
decadência na indústria, cultura, ciência e religião de seu país. Quental
(1942) afirma que os países, após a Reforma Protestante, conseguiram
a ascensão pelas virtudes modernas, enquanto Portugal, no caminho
inverso, descia pelos vícios antigos.
No entanto, a crítica à Igreja e o anticlericalismo em Portugal não
são um aspecto exclusivo da Geração de 70. Sendo a Igreja Católica
influente desde os primórdios de Portugal, a literatura retratou-a, tecendo críticas e apontando hipocrisias, desde a época medieval. Como
afirma Aparecida Bueno (2000), as críticas anteriores à Geração de
70 eram relacionadas a outros aspectos, como a conduta de seus representantes e a instituição religiosa. O redirecionamento das críticas
e o anticlericalismo do grupo de intelectuais portugueses “[...] é consequência de orientações ideológicas de índole socialista, republicana
ou positivista, se é que não até o eco de um legado de proveniência
liberal [...]” (REIS, 2000, p. 53). Dessa forma, com a carga ideológica
advinda de vertentes de pensamentos e das críticas a Portugal, somente no século XIX seria questionada a figura de Jesus Cristo:
No entanto, é preciso deixar claro que a crítica anticlerical, que
sempre existiu em Portugal, foi, sobretudo, dirigida à instituição
religiosa e ao comportamento de seus representantes, ou seja,
à Igreja Católica e ao seu clero. Mantinha-se preservado dessas
críticas Jesus Cristo. Parece-nos que é no século XIX, com o
acirramento do anticlericalismo, que a relação com Jesus Cristo
passa a ser revista, e começa a ser questionada a sua divindade
(BUENO, 2000, p. 13).
Como afirma Bueno (2000), a Geração de 70 teve conhecimento
das discussões que ocorreram no cenário europeu, como a querela
da imortalidade da alma, o estatuto divino de Deus e as personagens
religiosas, considerados assuntos de extrema importância filosófica
pós-Hegel. A autora também aponta que a obra de Ludwig Feuerbach,
A essência do Cristianismo (1841), era do conhecimento de Eça e de
seus companheiros da Geração de 70:
sumário
149
Certamente ele contribuiu em muito para as reflexões e exegeses bíblicas que vieram a lume após a publicação de seu estudo. Por esse motivo é bem provável que as principais idéias
contidas em sua obra tenham chegado ao conhecimento de
Eça de Queiroz e de seus companheiros de geração. O próprio
Eça, como vimos, cita o nome de Feuerbach entre o dos autores
cujas obras deveriam ser ‘proibidas’ pelas autoridades que encerraram as Conferências Democráticas, se essas autoridades
fossem coerentes, segundo a opinião de Eça, com a censura
que infringiram aos debates que ocorriam nos salões do Casino
Lisbonense (BUENO, 2000, p. 94)
Considerando o contato tanto com a obra de Feuerbach quanto
de outros escritores, o anticlericalismo tornou-se “um factor determinante de afirmação da geração a que Eça pertenceu [...]” (REIS, 2000,
p. 53), configurando um tema constante nas produções ecianas.
A RELÍQUIA E OS CONCEITOS
FEUERBACHIANOS
Um exemplo é o livro A relíquia, publicado em 1887, no qual
Eça de Queirós nos traz um narrador em primeira pessoa (Teodorico
Raposo), que rememora sua trajetória desde antes de seu nascimento, mas com maior atenção aos fatos após tornar-se órfão e mudar-se
para a casa de sua tia, D. Patrocínio das Neves, a Titi. Convivendo
com a tia, Teodorico recebe uma educação pautada na moral e ensinamentos cristãos, passando por formação escolar em seminários
e, posteriormente, formando-se em Direito. O protagonista vive de
forma ambígua, “alternando missas e devoções com boémia e aventuras amorosas” (REIS, 2000, p. 30). Ao assumir as características
de um devoto, o protagonista visa a conseguir vantagens, incluindo a herança de sua tia. Muito doente, D. Patrocínio descobre a suposta possibilidade da cura de seus males indo à Terra Santa ou
sumário
150
possibilitando que um parente próximo possa realizar o trajeto. Ela,
então, envia Teodorico para tal empreendimento.
Teodorico conhece um cientista alemão, Topsius, que o acompanha por todo o trajeto. No Egito, vive um romance com Mary. Na
Terra Santa, visita lugares sacros e sonha com a crucificação de Jesus
Cristo. Retornando a Portugal, em vez de entregar o pacote contendo
a relíquia que trouxera para sua tia, uma coroa de espinhos, oferece a
camisa de dormir que ganhara de sua amante, deixando Titi furiosa e
ocasionando sua expulsão da casa. O protagonista inicia um comércio de produtos religiosos, descobrindo posteriormente que herdara
de sua tia somente os óculos para “[...] ver através dele o resto da
herança” (QUEIRÓS, 1974, p. 209, grifo do autor). Logo após esse fato
arrasador, Teodorico reencontra um amigo de infância, consegue um
emprego e casa-se com a irmã de Crispim.
Neste estudo, não assumiremos uma postura de desvalorização
da literatura em detrimento da filosofia, tampouco traremos questionamentos sobre a autonomia da criação literária. Partiremos do pressuposto de que Eça de Queirós utilizou-se de conceitos filosóficos presentes em A essência do Cristianismo, mas construindo o seu próprio
universo literário e detendo sua própria autonomia, ou seja, os conceitos feuerbachianos, em A relíquia, criam contornos para se adequar à
lógica interna do livro. Diante disso, podemos considerar que alguns
conceitos de Feuerbach foram utilizados para a construção da narrativa de Teodorico e para constituir personagens como Titi. Conceitos
como a antinaturalidade do Cristianismo, as essências do homem, a
alienação, dentre outros, integram a narrativa, fazendo-se necessário
esclarecer alguns conceitos presentes em A essência do Cristianismo
para compreender como se edifica essa relação.
Feuerbach (2013) postula que o homem é composto por três
essências: o amor, a vontade e a razão.
sumário
151
Mas qual é então a essência do homem, da qual ele é consciente, ou o que realiza o gênero, a própria humanidade do homem?
A razão, a vontade, o coração. Um homem completo possui a
força do pensamento, a força da vontade e a força do coração.
A força do pensamento é a luz do conhecimento, a força da
vontade é a energia do caráter, a força do coração é o amor
(FEUERBACH, 2013, p. 36).
O filósofo tem a concepção de indivíduos essencialistas, cujas
capacidades sentimentais, racionais e de realização de suas vontades
são inatas, não sendo aprendidas ou adquiridas, mas desenvolvidas.
Essas três instâncias ocupam um local de primazia na rede conceitual
feuerbachiana, sendo o cerne de toda a sua filosofia e configurando a
finalidade da existência humana. A essência da razão é a capacidade
inata do ser humano de pensar, criar e produzir conhecimento; a essência do coração constitui-se da capacidade de sentir e reconhecer os
sentimentos, como o amor; a essência da vontade refere-se à capacidade de agir e adequar-se moralmente conforme as regras e condutas.
Para o referido autor, o homem possui essências predefinidas realizadas tanto no indivíduo quanto no gênero21. O que é considerado uma
limitação para o indivíduo torna-se de possível realização no gênero.
Um exemplo dessa característica é a onipresença: é impossível para um
indivíduo estar em vários lugares em simultâneo, ao passo que seria um
aspecto realizável para o gênero, havendo homens habitando diversos
lugares do mundo em simultâneo. Outra característica é a onisciência,
ou seja, apesar de ser impossível para o indivíduo conhecer e estudar
diversos assuntos simultaneamente, isso se torna possível na realização
do gênero: os indivíduos podem estudar e desenvolver conhecimentos
acerca de diversas áreas do conhecimento. Assim, temos as primeiras
características do gênero que são transportadas para Deus na criação
do Cristianismo: um Ser onipresente e onisciente.
21
sumário
Por gênero, Feuerbach (2013) entende o conjunto de características que designam a
espécie humana. O conceito de gênero para o autor torna-se importante para a definição
do conceito de consciência rigorosa.
152
Outro importante aspecto da filosofia feuerbachiana é a relação
de equivalência entre o homem e o objeto: o homem toma consciência de si a partir do objeto. Feuerbach (2013) afirma que o indivíduo
reconhece no objeto aquilo que é de sua posse: o homem reconhece a expressão sentimental na música, porque há nele a essência do
sentimento, havendo uma relação de paralelismo – essência musical
e essência humana. Por outro lado, a música é de produção e criação
humana – um ser dotado da essência do coração, produzindo um objeto que carrega a sua essência, resultando na exteriorização desta. O
homem reconhece o caráter sentimental da música, pois reconhece
nela parte da sua essência exteriorizada.
Visto isso, podemos inferir algumas sentenças: (i) o homem é
um ser que cria e recria; (ii) o homem só reconhece no objeto aquilo
que possui; (iii) o objeto criado carrega a essência do criador. Ainda que haja uma relação de igualdade e de reconhecimento entre a
criação e a essência do criador, a consciência facilmente distingue o
objeto exterior (a música, por exemplo) da essência de seu criador,
entendendo-o como um objeto externo com características próprias
e produzido. A relação torna-se mediata, com a consciência estabelecendo o papel de mediadora. Isso não ocorre com o objeto religioso.
Para Feuerbach (2013), a religião também é uma criação humana e, como toda criação, carrega a essência de seu criador; entretanto, a relação do homem com essa criação é imediata. O homem tem
a consciência de si mesmo na religião, sem a percepção de ser um
objeto criado e separado de si: “A religião é a consciência primeira e
indireta que o homem tem de si mesmo” (FEUERBACH, 2013, p. 45).
Ao considerar o Cristianismo uma religião, consequentemente o entendemos como uma criação.
O processo de criação da religião cristã torna-se inconsciente
pelo processo de alienação:
sumário
153
a) O sujeito é ativo e com sua atividade cria o objeto;
b) o objeto é um produto seu, mas, no entanto, o sujeito não se
reconhece nele; lhe é estranho, alheio;
c) o objeto obtém um poder que por si não tem e se volta contra o sujeito, domina-o, convertendo-o em seu predicado (VÁSQUEZ, 1977, p. 92).
Dessa forma, para Feuerbach (2013), no primeiro estágio da
alienação, o homem cria o Cristianismo, transferindo-lhe as suas essências (coração, vontade e razão) e atribuindo as características do
gênero. No segundo estágio, não se considera seu criador, havendo
uma cisão entre a essência do Cristianismo e a essência do homem.
O terceiro estágio se caracteriza pela submissão do homem pelos
dogmas. Sendo a alienação um processo inconsciente, gera-se uma
névoa mística que turva a percepção dos cristãos para não haver a
associação entre a essência do homem e a essência do Cristianismo;
a consciência não discerne este como uma criação.
No Cristianismo, as essências humanas personificam-se em figuras religiosas, estas assumindo as principais características daquelas. Deus, por exemplo, seria a transfiguração da essência da razão,
uma essência sem formas físicas definidas e sem afetividade: “A unidade da razão é a unidade de Deus” (FEUERBACH, 2013, p. 69). A razão,
assim como Deus, não possui forma, é imaterial e isenta de uma aparente sensibilidade. “Deus enquanto Deus é sempre um ser distante, a
relação com ele é abstrata [...]” (FEUERBACH, 2013, p. 157). Seguindo
pela lógica feuerbachiana sobre a relação sujeito-objeto, há uma impossibilidade de desenvolvimento da percepção de suas outras essências (a vontade e o coração) na figura de Deus, reconhecendo-o pela
essência da razão, mas não sensorial ou afetivamente.
É nesse sentido que, para o indivíduo reconhecer sua essência
no objeto religioso, é necessária a criação de uma figura que exprima
sumário
154
a essência do coração. Jesus Cristo configura-se como a essência
do coração. Para o filósofo, o reconhecimento dessa essência parte
de um objeto sensível e material, um objeto que desperta os sentimentos humanos. Um ser abstrato e sem formas é deficiente e quase
inalcançável para a essência do coração. Assim, Jesus torna-se um
Deus acessível, material e visível, para que o cristão desperte o seu
sentimento e reconheça o sentimentalismo na religião cristã.
N’A essência do Cristianismo, observa-se que o amor se mantém pelo sofrimento, mas não qualquer sofrimento: “E, em verdade, o
sofrimento do impassível em si, daquele que está acima de todo sofrimento, o sofrimento do inocente, do puro de pecados, o sofrimento
meramente pelo bem dos outros, o sofrimento do amor, o sacrifício
de si mesmo?” (FEUERBACH, 2013, p. 85). Isso explica a trajetória
de sofrimento do Deus carnal, o sofrimento por amor: “[...] os cristãos
sacralizavam o sofrimento, colocavam mesmo o sofrimento em Deus”
(FEUERBACH, 2013, p. 85). Além da realização da essência do coração na figura de Jesus Cristo, ao atribuir-lhe um caráter divino, há a
divinização do sentimento humano, realçado pelo objeto divino de um
Deus carnal e sofredor.
A ANÁLISE DA PERSONAGEM TITI
Após a explanação, podemos considerar que personagens
como D. Patrocínio das Neves parecem estar sob a névoa mística
causada pela fantasia22, resultando na impossibilidade de compreender o Cristianismo como uma criação humana. A própria construção
da personagem aponta para isso. De acordo com Antonio Candido
22
sumário
Na rede conceitual de Feuerbach (2013), a fantasia ocupa um papel importante para a
efetivação da alienação. A fantasia também é uma força criadora, assim como a razão.
Utilizando essa força criadora, inconscientemente, o cristão gera uma ficção para que a
essência do coração e a afetividade não sejam reconhecidas como a própria essência
humana e, consequentemente, como uma criação.
155
e colaboradores (2014), as personagens planas são caracterizadas
por traços definitivos e construídas em torno de uma ideia. Titi se enquadra nas atribuições descritas pelo teórico, sendo os traços definitivos demarcados logo em sua primeira aparição: “A mais velha destas
senhoras, d. Maria do Patrocínio, usava óculos escuros, e vinha todas
as manhãs da quinta à cidade, num burrinho, com o criado com farda,
ouvir a missa a Santana” (QUEIRÓS, 1974, p. 21). A memória narrada,
antes mesmo do nascimento do protagonista, estabelece o contorno
definitivo da personagem: as atitudes devotas e a utilização de uma
figura de linguagem, a personificação, para referir-se aos óculos. O
contorno definitivo também pressupõe a principal ideia que se utilizará
para sua constituição: a ideia de uma típica beata e devota, que guiará
as ações e falas da personagem pela narrativa.
Os óculos são constantemente evocados e serão a herança ao
sobrinho, cumprindo um papel expressivo e irônico. Em trechos como:
“Enfiei pela sala; e vi logo, lá no fundo, no sofá de damasco, os óculos da Titi, mais negros, assanhados, esperando por mim e fuzilando”
(QUEIRÓS, 1974, p. 34), há a utilização da personificação, ao passo
que o narrador nunca tem um contato direto com os olhos de sua tia,
sendo os óculos a tradução dos sentimentos e expressões, como se o
próprio olhar da mulher fosse incapaz de demonstrar emoções.
Os traços definidos por Teodorico no início da narrativa e a falta
de profundidade psicológica de D. Patrocínio das Neves permitem
que o leitor crie um estereótipo. A estereotipagem é reforçada pelo
caráter plano da personagem: Titi não possui variações em suas atitudes e não causa surpresas no leitor ao desenrolar da narrativa, sendo as suas decisões previsíveis. As sentenças expressas por ela, em
sua maioria em tom de ordem, revelam, além do caráter autoritário,
a predominância de frases negativas e moralizantes, resultando em
uma atitude previsível de deserdar seu sobrinho devido à repugnância de atos considerados impuros: “Relaxações em minha casa não
sumário
156
admito” (QUEIRÓS, 1974, p. 34) e “E fique entendendo! Para outra
vez que venha a estas horas, não me entra em casa! Fica na rua,
como um cão [...]” (QUEIRÓS, 1974, p. 35). As falam contribuem para
a previsibilidade da personagem e para lhe atribuir mais um traço
característico: o caráter autoritário.
Atravessando a narrativa com o caráter plano, Titi parece ser a
figura do cristão resultado do processo de alienação. Esse aspecto é
ilustrado em diversas passagens do livro, porém apontaremos o episódio da descoberta de Teodorico sobre a intenção de D. Patrocínio em
deixar a herança para a Igreja, momento em que procura impressionar
a tia com sua devoção fervorosa:
Sim, o erro! Porque até aí, essa minha devoção complicada com
que eu procurara agradar à Titi e ao seu ouro, fora sempre regular,
mas nunca fora fervente. Que importava murmurar com correção
o terço diante de Nossa Senhora do Rosário? Diante de Nossa
Senhora em todas suas encarnações, e bem em evidência para
comover a Titi, eu devia mostrar habilmente uma alma ardendo
em labaredas de amor beato, e um corpo pisado, penitente, ferido pelos picos dos cilícios [...] (QUEIRÓS, 1974, p. 45).
Notamos, nas reflexões de Teodorico, a compreensão sobre a
base do Cristianismo estar pautada sobre o sofrimento. Ao referir-se ao
corpo ferido, o narrador, além de reforçar a ideia da impressão positiva
que causaria em sua tia ao realçar o sofrimento como um sentimento
fervoroso e religioso, retoma imagens constantes em representações
religiosas de corpos martirizados, como o corpo crucificado de Jesus:
“A religião cristã é a religião do sofrimento. As imagens do crucificado,
que até hoje encontramos em todas as igrejas, não representam um
redentor, mas somente o crucificado, o sofredor” (FEUERBACH, 2013,
p. 88). A impressão positiva resultante do ato teatral aponta que o sofrimento é a possibilidade dos cristãos para desenvolver e reconhecer a
essência do coração por meio da figura do Deus carnal e das frequentes figuras que expressam o martírio.
sumário
157
Outro mecanismo para a construção da personagem de caráter plano, realçando os estereótipos, é a utilização de adjetivações.
Desde o primeiro encontro entre Teodorico e D. Patrocínio, o narrador
utiliza adjetivações e figuras de linguagem, como comparações e metáforas, para realçar a sua aparência lívida: “Lentamente, a custo, ela
baixou o carão chupado e esverdinhado. Eu senti um beijo vago, de
uma frialdade de pedra; e logo Titi recuou, enojada” (QUEIRÓS, 1974,
p. 25). No primeiro contato com Titi, Teodorico revela-nos uma mulher
por cujo rosto, aparentemente, não lhe corre o sangue, deixando-a
com aparência “esverdinhada”, reforçando as características ao relatar a sensação de seu beijo frio.
Em outra passagem, Teodorico diz:
Donzela e velha e ressequida como um galho de sarmento,
não tendo jamais provado na lívida pele senão os bigodes do
comendador G. Godinho, paternais e grisalhos, resmungando
incessantemente, diante de Cristo nu, essas jaculatórias das horas de piedade, soluçantes de amor divino, a Titi entranhara-se,
pouco a pouco, de um rancor invejoso e amargo a todas as
formas e a todas as graças do amor humano (QUEIRÓS, 1974,
p. 40, grifo do autor)
A utilização da figura de linguagem da comparação, expressa
no termo “como”, constrói uma relação de semelhança entre Titi e um
galho seco, contribuindo para a construção imagética do leitor e para
a estereotipagem da personagem, relacionando-a com seres secos
e sem aspecto vivaz.
Em outro trecho, o narrador diz: “E pela primeira vez, depois
de 50 anos de aridez, uma lágrima breve escorreu no carão da Titi,
por sob seus óculos sombrios” (QUEIRÓS, 1974, p. 62). O termo “aridez” pode ter um duplo significado: enquanto corrobora para afirmar
a ideia de diversas expressões utilizadas para associar Titi a uma aparência seca e sem vida, que se confirma pelas várias alusões na narrativa, podemos entender o termo como referente a um terreno estéril.
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158
A última implicação do termo “aridez” traz uma relação intrínseca com
a citação anterior. Ao comparar D. Patrocínio a um galho seco e, mais
adiante, a um terreno árido, o protagonista nos revela dois aspectos:
sua interpretação sobre as mulheres que se devotam à religião, abstendo-se dos instintos sexuais, e o caráter antinatural de sua tia.
Teodorico demonstra, pelas descrições das personagens femininas celibatárias, alusões constantes a seres inférteis, murchos e secos:
“Por que colocava novamente o destino junto a mim, no estreito tombadilho do Caimão, este lírio de capela, ainda fechado e murcho? Quem
sabe! Talvez para que o calor do meu desejo lhe reverdessece, desse
flor, e não ficasse para sempre estéril e inútil, tombado aos pés do cadáver de um deus!” (QUEIRÓS, 1974, p. 183). Mais uma vez, o narrador
se utiliza de uma metáfora para a construção da personagem. Com a
imagem de uma flor murcha e os adjetivos negativos, a freira constitui
um ser que não desenvolve sua natureza. Em uma relação antitética,
Teodorico afirma que o calor de seu desejo – o que pode ser entendido
como a realização de instintos sexuais e naturais – reavivaria aquele ser.
Com a associação entre as personagens e a negação dos instintos sexuais, chegamos ao aspecto antinatural do Cristianismo defendido por Feuerbach (2013, p. 147): “Com o Cristianismo perdeu o
homem o sentimento, a capacidade de pensar-se dentro da natureza,
do universo”. Das considerações do filósofo, podemos inferir algumas
causas do aspecto antinatural do Cristianismo: (i) para encobrir a verdadeira essência de Deus e dos objetos religiosos, causando um afastamento entre Deus e natureza, entendendo-os como seres distintos
e não seguindo a lógica criador-objeto, pois a natureza não possui
a essência de seu criador; (ii) para criar uma cisão e uma separação
entre o homem e a natureza; (iii) a natureza é considerada um obstáculo para a concretização dos desejos cristãos, reafirmando a finitude
do indivíduo. Ora, como uma personagem que expressa a imagem do
cristão, Titi também revela traços antinaturais ao negar os impulsos
sexuais e ansiar por milagres.
sumário
159
Titi demonstra sua devoção pelos objetos religiosos e, por outro
lado, cria uma aversão aos instintos relacionados ao sexo e demonstrações de afeto: “Porque para a tia Patrocínio todas as ações humanas,
passadas fora dos portais das igrejas, consistiam em andar atrás de
calças ou andar atrás de saia; e ambos estes doces impulsos naturais
lhe eram igualmente odiosos!” (QUEIRÓS, 1974, p. 40, grifo do autor).
A negação dos instintos pode ser interpretada como a negação do
mundo material para alcançar a vida celestial: “A separação do mundo,
da matéria, é portanto a meta essencial do cristão. E esta meta se concretizou de modo sensorial na vida monástica” (FEUERBACH, 2013, p.
172). Conforme o filósofo, a crença que a qualidade moral desta vida
deve ser determinada pela crença na vida eterna para que se garantam
as recompensas no céu pressupõe uma morte moral, a morte perante
o mundo material. Nessa direção, Titi escolheu a vida celibatária para
sua ascensão ao céu após a morte: “A vida celibatária, ascética em
geral é o caminho direto para a vida celestial imortal, pois o céu nada
mais é que a vida sobrenatural [...]” (FEUERBACH, 2013, p. 179). Dessa forma, o cristão adianta a morte moral, abstendo-se de práticas que
contradizem um juízo moral, colocando no céu do Cristianismo todos
os aspectos que estão em harmonia com o sentimento. As contradições da natureza e da sociedade são excluídas no céu cristão.
Relacionado com a negação da natureza pelos instintos sexuais
e afetivos, está o anseio por milagres. D. Patrocínio proporciona a possibilidade de viagem a seu sobrinho apenas com o intento de conseguir uma relíquia que lhe cure de seus males:
– Aqui está! – declarou a Titi – Se entendes que mereço alguma
coisa, pelo que tenho feito por ti, desde que morreu sua mãe,
já educando-te, já vestindo-te, já dando-te égua para passear,
já cuidando de sua alma, então traze-me desses santos lugares
uma santa relíquia, uma relíquia milagrosa que eu guarde, com
que me fique sempre apegando nas minhas aflições e que cure
minhas doenças (QUEIRÓS, 1974, p. 62).
sumário
160
A personagem anseia pelo resultado dessa viagem e pelo milagre
que a relíquia lhe trará. A busca pelo milagre23, para Feuerbach (2013,
p. 137), reflete o egoísmo cristão: “O cristianismo refinou o egoísmo judaico num subjetivismo espiritual (não obstante, dentro do cristianismo,
esta subjetividade tenha se expressado novamente como puro egoísmo
[...]”. Com a oração e a busca pelo milagre, busca-se desvalidar a regra
da causalidade por um desejo de seu coração, mudando a ordem natural para suprir as necessidades da afetividade de um indivíduo.
A compreensão da possibilidade de alteração da ordem natural do
mundo pelo simples ato da oração pressupõe que a natureza é um instrumento de Deus, separado deste, podendo ser modificado pelo simples
ato de sua vontade. Consequentemente, cria-se uma hierarquização na
relação entre Deus, homem e natureza. Para o filósofo, a natureza, sendo
o objeto criado, mas não se tornando parte de seu criador, resulta em sua
concepção de mero instrumento, podendo ser modificado ao bel-prazer.
Deus estaria no topo da hierarquia, seguido do homem, que pelo ato
da oração pode conseguir uma alteração na ordem natural. Na base da
hierarquia, estaria a natureza, passível de modificações.
D. Patrocínio deseja alterar a ordem natural de seu estado físico para não chegar ao fim do ciclo natural, a morte. Ela não deseja
acompanhar o processo de sua cura; isso não seria essencialmente o
milagre: “O fato de doentes readquirirem a saúde não é milagre, mas
sim o fato deles a readquirirem de modo imediato [...]” (FEUERBACH,
2013, p. 145). O desejo é tocar a relíquia e ser curada imediatamente,
modificando a lógica natural para a realização de um desejo pessoal.
O esperado milagre não é realizado e a personagem morre pouco tempo após deserdar o sobrinho.
Por fim, observamos uma ação antitética e irônica realizada
pelo narrador. A despeito da utilização de metáforas, comparações
23 Feuerbach define o milagre como “Um desejo sobrenatural realizado-mais nada”
(2013, p. 80).
sumário
161
e personificações para a construção da imagem de um ser quase inanimado, seco e infértil, intensificada pela caracterização de uma personagem plana e incorporando conceitos feuerbachianos para construir o
estereótipo de uma beata que sente horror a alguns instintos, notamos
uma animalização da personagem. Em trechos como: “[...] rosnou a
Titi secamente” (QUEIRÓS, 1974, p. 25) e “Mas já a Titi, recostando-se na cadeira, rosnava com um sorrisinho feroz” (QUEIRÓS, 1974, p.
32), Teodorico utiliza termos que remetem a características e sons de
animais – termos como rosnou remetem a sons animalescos e a utilização do adjetivo para se referir ao sorriso feroz retoma a conduta de
um animal. Dessa forma, fica evidente que, por mais que a religiosa tenha aversão às expressões naturais e seus instintos, o narrador insere
adjetivos que retomam a condição de um ser pertencente à natureza.
REFERÊNCIAS
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2000. 236 p. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade Estadual de
Campinas, Campinas, 2000.
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al. A personagem de ficção. 13. ed. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 51-80.
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LÖWITH, Karl. De Hegel a Nietzsche: a ruptura revolucionária no pensamento
do século XIX, Marx e Kierkegaard. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
MACHADO, Álvaro Manuel. A geração de 70: uma revolução cultural e
literária. 2. ed. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1981.
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Ciências das Religiões, [s.l.], n. 20, p 157-169, 2017.
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Feuerbach e a fratura no pensamento contemporâneo. São Paulo:
Loyola, 2015.
QUEIRÓS, Eça de. A relíquia. São Paulo: Três, 1974.
sumário
162
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últimos três séculos. In: QUENTAL, Antero de. Prosas escolhidas. Rio de
Janeiro: Livros de Portugal, 1942. p. 95-142.
REIS, Carlos. O essencial sobre Eça de Queirós. Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 2000.
TOMASONI, Francesco. Ludwig Feuerbach e a fratura no pensamento
contemporâneo. São Paulo: Loyola, 2015.
VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. 2. ed. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1977.
sumário
163
Capítulo 8
8
Figurações do grotesco e a
representação do indivíduo chinês
em O Mandarim, de Eça de Queirós
Xênia Amaral Matos
Xênia Amaral Matos
Figurações do grotesco
e a representação
do indivíduo chinês
em O Mandarim,
de Eça de Queirós
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.8
Resumo: Este trabalho é uma análise sobre o modo como a estética grotesca
permeia a representação dos indivíduos chineses na narrativa O mandarim
(1880), de Eça de Queirós. Apesar de as representações grotescas poderem
resultar em objetos estereotipados com uma conotação aparentemente negativa, nesta pesquisa, pretendemos demonstrar que é por meio dessa estética
que uma crítica aos comportamentos portugueses em relação ao Oriente é
feita. Nesse sentido, utilizamos teóricos como Said (1996) e Bhabbha (1998)
para discutir o orientalismo, bem como Kayser (2013), Bakhtin (2003) e Meindl
(2005) para definir o grotesco.
Palavras-chave: O mandarim; Eça de Queirós; Grotesco; Orientalismo.
sumário
165
INTRODUÇÃO
No clássico estudo Orientalismo, Edward Said (1996) coloca o
espaço como uma criação discursiva da cultura hegemônica euro-ocidental, sendo todo um imaginário alinhado aos projetos colonialistas
de exploração. De forma estereotipada, o conceito abarca diferentes
regiões – como a dos países árabes e a do leste do continente asiático
– e povos, agrupando-os a partir da visão do europeu:
Falar do Orientalismo, portanto, é falar principalmente, embora
não exclusivamente, de um empreendimento cultural britânico e
francês, um projeto cujas dimensões incluem áreas tão díspares
como a própria imaginação, toda a Índia e o Levante, os textos bíblicos e as terras bíblicas, o comércio de especiarias, os exércitos
coloniais e uma longa tradição de administradores, um formidável
corpo de eruditos, inúmeros ‘especialistas’ e ‘auxiliares’ orientais,
um professorado oriental, um arranjo complexo de idéias ‘orientais’ (o despotismo oriental, o esplendor oriental, a crueldade, a
sensualidade), muitas seitas, filosofias e sabedorias orientais domesticadas para o uso europeu local [...] (SAID, 1996, p. 15-16).
Portanto, as imagens do Oriente repetem discursos e imagens
acerca das regiões e populações que ali habitam, num processo bem
explanado por Homi K. Bhabbha (1998, p. 105):
Um aspecto importante do discurso colonial e sua dependência
do conceito de ‘fixidez’ na construção ideológica da alteridade.
A fixidez, como signo da diferença cultural/histórica/racial no discurso do colonialismo, é um modo de representação paradoxal:
conota rigidez e ordem imutável como também desordem, degeneração e repetição demoníaca. Do mesmo modo, o estereótipo,
que é sua principal estratégia discursiva, e uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre ‘no
lugar’, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido...
Nesse processo, não são alheias representações do indivíduo
chinês como ser exótico e com aparência ou hábitos considerados
sumário
166
estranhos. Um exemplo disso é visto em O mandarim (1880), de Eça
de Queirós, no qual Teodoro enriquece após matar Ti Chin-Fu insolitamente e mediante uma oferta feita pelo próprio Diabo. Para Álvaro
Manoel Machado (1983, p. 79), na narrativa, “note-se a subtil ironia:
Eça utiliza a fantasia do exotismo oriental em moda para melhor caricaturar o espírito português”. Assim, utilizando os termos do crítico,
a “fantasia exótica” da história eciana volta-se contra o próprio indivíduo português, isto é, num primeiro e inocente olhar, podemos compreender que o chinês é representado de maneira estereotipada e
que a narrativa supostamente aproxima-se do discurso hegemônico
e europeu sobre o Oriente. Todavia, no contexto da obra, o insólito e
as estereotipias são permeados por um viés grotesco de representação, cuja resultante é uma crítica às práticas portuguesas frente à
cultura e ao território do outro.
De acordo com Wolfgang Kayser (2013, p. 24), grotesco é “o
monstruoso, constituído justamente da mistura dos domínios [inumano, animal, vegetal, humano etc.], assim como, concomitantemente, o
desordenado e o desproporcional”. Nesse sentido, para o autor, é uma
vertente estética que representa os objetos pela mescla de características opostas (como o humano e o inumano), pelo estranhamento e pela
hipérbole. Os estudos de Kayser (2013) abrangem a pintura e a literatura, iniciando no Império Romano, quando o grotesco era forma de
ornamentação, até a literatura modernista, já como uma estética literária. Na ficção, o estudioso argumenta que o grotesco foi redefinido por
Edgar Allan Poe, com o livro Tales of grotesque and arabesque (1840),
no qual por meio da “justaposição ao gótico deixa supor, [conter] o
vocábulo [...] o sentido de ‘sinistro’ e ‘sombrio’” (KAYSER, 2013, p. 74).
Uma vez que o grotesco desperta determinados sentidos, Kayser (2013) compreende-o como um efeito atrelado ao receptor e, assim, cabem à instância associações e leituras de objetos e obras como
grotescos. Para tal, ele entende que o mundo representado é tornado
estranho, causando surpresa no leitor ou no espectador:
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167
[...] [o grotesco] é uma estrutura. Poderíamos designar a sua
natureza com uma expressão, que já nos insinuou com bastante
frequência: o grotesco é um mundo alheado (tornado estranho).
Mas isto ainda exige uma explicação. O mundo dos contos de
fada, quando visto de fora poderia ser classificado como estranho e exótico. Mas não é um mundo alheado. Para pertencer a
ele, é preciso que aquilo que nos era conhecido e familiar, se
revele, de repente, estranho e sinistro. Foi [...] o nosso mundo
que se transformou. O repentino e a surpresa são partes essenciais (KAYSER, 2013, p. 159).
Por sua vez, no canônico trabalho A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, Mikhail Bakhtin (2003) debruça-se sobre o grotesco, embasando-se nos trabalhos de François Rabelais e nas culturas
populares desenvolvidas entre a Idade Média e a Renascença. Contudo,
o teórico assume uma visão contrária à de Kayser (2013), pois entende o
grotesco como um fenômeno resultante do realismo grotesco:
No realismo grotesco (isto é, no sistema de imagens da cultura
popular cômica), o princípio material e corporal aparece sob forma universal, festiva e utópica. O cósmico, o social e o corporal
estão ligados indissoluvelmente numa totalidade viva e indivisível. É um conjunto alegre e benfazejo. No realismo grotesco,
o elemento material e corporal é um princípio profundamente
positivo [...]. O princípio material e corporal é percebido como
universal e popular e, como tal, opõe-se a toda separação das
raízes materiais e corporais do mundo, a todo isolamento e confinamento em si mesmo, a todo caráter ideal abstrato, a toda
pretensão de significação destacada e independente da terra e
do corpo (BAKHTIN, 2003, p. 17).
Bakhtin (2003, p. 17) destaca a suma importância do rebaixamento para o grotesco, um processo que implica a “transferência ao
plano material e corporal, o da terra e do corpo na sua indissolúvel unidade, de tudo o que é elevado, espiritual e ideal e abstrato”. Tendo em
vista tais definições, apesenta que, no realismo grotesco, a topografia
dos conceitos não tem valor formal ou relativo, pois as significações
não são absolutas. Por conseguinte, rebaixar é aproximar do comum,
sem resultar em um objeto de valor negativo, levando à ambivalência.
sumário
168
O corpo grotesco é entendido pelo autor como algo que não
está desconectado do mundo, tampouco é acabado, pois sua materialidade ultrapassa a si e está em constante expansão de limites. As
partes que o ligam com o mundo externo, como boca, órgãos genitais,
nariz, ouvidos, ânus e barriga, são destacadas, assim como as ações
que revelam essa vontade de ultrapassar limites, tais quais comer, beber, urinar, defecar, copular e parir. Bakhtin (2003) elabora o corpo grotesco como um organismo em constante mutação, uma corporeidade
inacabada, que se recusa a respeitar as leis da lógica e da natureza.
Dessa forma, ele conclui que o grotesco está ligado à renovação dos
sentidos, à ambivalência e ao riso cômico, sendo pouco relacionado
aos aspectos obscuros e horrendos percebidos por Kayser (2013).
Portanto, ao estabelecer uma comparação entre os argumentos
de Kayser (2013) e de Bakhtin (2003), observamos algumas divergências de posicionamento quanto ao grotesco. Kayser (2013) enfatiza
as origens da estética e seus desdobramentos no Romantismo e no
Modernismo, mesmo que sua visão seja guiada pelo último. Nesse
recorte, o estudioso alemão deixa de lado a Idade Média e o Renascimento, os quais são o grande escopo de Bakhtin (2003). Por sua
vez, o teórico russo organiza sua argumentação em torno das práticas
populares que se entrecruzaram com as produções literárias grotescas, como a de Rabelais, e critica a exclusão argumentativa de Kayser
(2013) sobre esse tópico. Para Bakhtin (2003), o grotesco não pode
ser associado ao sinistro, uma vez que exclui o aspecto do riso. Contudo, o que é possível compreender da argumentação de Kayser (2013)
sobre o entrecruzamento do grotesco com o horror é que, em vez do
riso, o próprio medo assume um papel de destaque. Nesse meio, é o
temor que suscita na recepção o questionamento e o estranhamento.
Críticos mais recentes, como Dieter Meindl (2005, p. 7), fazem
uma leitura do grotesco assimilando ambas as perspectivas:
sumário
169
The grotesque emerges as a contradiction between attractive
and repulsive elements, of comic and tragic aspects, of ludicrous and horrifying features. Emphasis can be placed on either
its bright or its dark side. However, it does not seem to exist
without a certain collision between playfulness and seriousness,
fun and dread, glee and gloom.24
Em suma, o estudioso compreende o grotesco como uma tensão interna de tons, resultando numa estrutura paradoxal. Dessa forma, a estética proporciona uma representação ambivalente de mundo,
a qual suscita um distanciamento/alheamento do objeto representado.
Conforme apontado por Meindl (2005), o grotesco suporta diversas
organizações e é possível que seja motivado por diferentes tradições
literárias, a fim de enfatizar os contornos problemáticos da sociedade
e das relações nela estabelecidas. Levando em conta tais considerações, este estudo propõe uma análise da nuança grotesca na narrativa
queirosiana, a fim de compreender uma crítica à visão e aos costumes
portugueses em relação aos indivíduos chineses e seu território.
LE MANDARIM, UN CONTE FANTAISISTE,
FANTASTIQUE ET GROTESQUE25
Na narrativa eciana O mandarim, Teodoro é um médio-burguês,
um funcionário público de vida comum, que dizia aspirar “ao racional,
sumário
24
“O grotesco emerge como uma contradição entre elementos atrativos e repulsivos de
aspectos cômicos e trágicos de características horrendas e lúdicas. A ênfase pode ser
posicionada tanto no lado luminoso quanto no lado obscuro. Entretanto, isso não parece
existir sem determinada colisão entre brincadeira e seriedade, diversão e pavor, alegria e
melancolia” (MEINDL, 2005, p. 7, tradução nossa).
25
Adaptação da ideia de Eça de Queirós na carta A propus du ‘Mandarim’ (A propósito do
Mandarim, em tradução livre), a qual foi escrita com a ideia de ser um prefácio. A frase,
no original, é: “Le Mandarim, un conte fantaisiste et fantastique” (QUEIRÓS, 2001, p. 9)
e pode ser traduzida por: “O Mandarim, um conto fantasista e fantástico” (QUEIRÓS,
2001, p. 14). O subtítulo aqui proposto, em português, significa: “O mandarim, um conto
fantasista, fantástico e grotesco”.
170
ao tangível, ao que já fora alcançado por outros no meu bairro, ao que
é acessível ao bacharel” (QUEIRÓS, 2001, p. 24). Contudo, ao ler o capítulo de Brecha das almas, um infólio, recebe a proposta de matar um
mandarim para que receba toda a sua fortuna. Nessa cena, o escrito
exerce sobre Teodoro uma atração sobrenatural:
Mas aquele sombrio infólio parecia exalar magia; cada letra
afectava a inquietadora configuração desses sinais da velha
cabala, que encerram um atributo fatídico; as vírgulas tinham
o retorcido petulante de rabos de diabinhos, entrevistos numa
alvura de luar; no ponto de interrogação final eu via o pavoroso
gancho com que o Tentador vai fisgando as almas que adormeceram sem se refugiar na inviolável cidadela da Oração!... Uma
influência sobrenatural apoderando-se de mim, arrebatava-me
devagar para fora da realidade, do raciocínio: e no meu espírito foram-se formando duas visões – de um lado um mandarim
decrépito, morrendo sem dor, longe, num quiosque chinês, a
um ti-li-tim de campainha; do outro toda uma montanha de ouro
cintilando aos meus pés! Isto era tão nítido, que eu via os olhos
oblíquos do velho personagem embaciarem-se, como cobertos
de uma ténue camada de pó; e sentia o fino tinir de libras rolando juntas. E imóvel, arrepiado, cravava os olhos ardentes na
campainha [...] (QUEIRÓS, 2001, p. 26).
O suposto lado racional é abalado pela cobiça, misturada à
tentação. O diabólico é tanto um elemento que foge ao real quanto
uma metáfora da ambição, capaz de corroer o “positivismo” da personagem. Nesse momento, o grotesco não está na representação do
Oriente, mas, sim, na fratura da realidade, havendo um esmaecimento do empírico, bem como do lógico, ocasionando uma ambivalência
que, futuramente, fará o próprio Teodoro duvidar do ocorrido: “Voltei ao
quarto: tudo lá repousava tranquilo, idêntico e real. O infólio ainda estava aberto [...] agora, parecia-me apenas a prosa antiquada moralista
da caturra” (QUEIRÓS, 2001, p. 34).
Ainda no momento insólito, Teodoro se depara com o próprio
Diabo, que é apresentado da seguinte forma:
sumário
171
[...] muito pacificamente sentado, um indivíduo corpulento, todo
vestido de preto, de chapéu alto, com as duas mãos calçadas
de luvas negras gravemente apoiadas ao cabo de um guarda-chuva. [...] Toda a sua originalidade estava no rosto, sem
barba, de linhas fortes e duras; o nariz brusco, de um aquilino
formidável, apresentava a expressão rapace e atacante de um
bico de águia; o corte dos lábios, muito firme, fazia-lhe como
uma boca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois
clarões de tiro, partindo subitamente de entre as sarças tenebrosas das sobrancelhas unidas; era lívido – mas, aqui e além na
pele, corriam-lhe raiações sanguíneas como num velho mármore fenício (QUEIRÓS, 2001, p. 27).
O corpo robusto, o rosto forte, o olhar penetrante, as sobrancelhas
serradas, as veias saltadas e, principalmente, o nariz adunco fazem com
que a descrição do Diabo tenha um halo grotesco. Na estética, além
da caracterização hiperbólica, conforme apresentado, as partes corporais com ligações externas são as mais destacadas. Segundo Bakhtin
(2003), na Idade Média, o nariz era um dos elementos mais distorcidos
em suas representações, muitas vezes associado ao falo. Ainda, há a
mescla do humano e inumano; imagens como o bronze, o mármore e o
olhar como um clarão são indícios de sua diferença. Contudo, não há um
tom cômico no excerto, algo muito discutido pelo teórico; percebemos,
na verdade, uma atmosfera tenebrosa, uma vez que as comparações
feitas o ligam ao misterioso. A despeito disso, a personagem o classifica
da seguinte forma: “Não tinha nada de fantástico. Parecia tão contemporâneo, tão regular, tão classe média como se viesse da minha repartição...” (QUEIRÓS, 2001, p. 27). Incapaz de compreender totalmente os
sinais de diferenciação, Teodoro liga o Diabo a um burguês, causando
uma ironia no texto. Portanto, a imagem deixa entender que a ganância
da classe social possui um aspecto diabólico.
Logo, o Diabo apresenta-lhe a imagem de Ti Chin-Fu:
[...] o Mandarim, esse Mandarim do fundo da China, está decrépito e está gotoso: como homem, como funcionário do
Celeste Império, é mais inútil em Pequim e na humanidade,
sumário
172
que um seixo na boca de um cão esfomeado. Mas a transformação da Substância existe: garanto-lha eu, que sei o segredo
das coisas... Porque a terra é assim: recolhe aqui um homem
apodrecido, e restitui-o além ao conjunto das formas como
vegetal viçoso. Bem pode ser que ele, inútil como mandarim
no Império do Meio, vá ser útil noutra terra como rosa perfumada ou saboroso repolho. Matar, meu filho, é quase sempre
equilibrar as necessidades universais. É eliminar aqui a excrescência para ir além suprir a falta. Penetre-se destas sólidas
filosofias (QUEIRÓS, 2001, p. 31).
Na perspectiva diabólica, o mandarim é visto como decrépito
e eliminável. Consequentemente, matá-lo seria como gerar um ciclo
de renovação e de reequilíbrio das forças universais. Essa ideia pode
ser relacionada à constante renovação percebida por Bakhtin (2003)
nas representações grotescas, pois, na tradição, o corpo nunca morre, sempre se transformando em algo novo. Ainda, o tom absurdo da
ideia de “eliminar” um indivíduo para restaurar uma ordem carrega ares
grotescos, uma vez que, além de estar inserida num meio que escapa
ao empírico, exclui qualquer princípio moral ou julgamento direto de
conduta, alheando e estranhando as regras sociais.
A persuasão empenhada pelo Diabo transpassa um tom sombrio, pois, por intermédio dela, se corrompe a outra personagem. Além
disso, a representação da morte de Ti Chin-Fu pode ser lida como uma
metáfora para o domínio europeu e português exercido sobre a China:
nesse sistema alheado e grotesco, matar e roubar “reequilibram” a
fortuna de um grupo ou, nas próprias palavras do Diabo, “o assassino
é um filantropo” (QUEIRÓS, 2001, p. 32).
Tentado, Teodoro aperta a campainha e vê o mandarim:
E, de mão firme, repeniquei a campainha. Foi talvez uma ilusão;
mas pareceu-me que um sino, de boca tão vasta como o mesmo céu, badalava na escuridão, através do universo, num tom
temeroso que decerto foi acordar sóis que faziam nené e planetas pançudos ressonando sobre os seus eixos... [...] Estava
sumário
173
no seu jardim, sossegado, armando, para o lançar ao ar, um
papagaio de papel, no passatempo honesto de um mandarim
retirado, – quando o surpreendeu este ti-li-tim da campainha.
Agora jaz à beira de um arroio cantante, todo vestido de seda
amarela, morto, de pança ao ar, sobre a relva verde: e nos braços frios tem o seu papagaio de papel, que parece tão morto
como ele. Amanhã são os funerais. Que a sabedoria de Confúcio, penetrando-o, ajude a bem emigrar a sua alma! (QUEIRÓS,
2001, p. 33-34).
A imagem corporal é muito presente na descrição e as partes
que ligam o ser humano com o mundo são bastante destacadas, como
a boca e a barriga (é notável que por intermédio dela ocorre a ligação
da criança com a mãe pelo cordão umbilical), numa lógica que é passível de aproximação das ideias bakhtinianas. A enorme boca ceifa
a vida do chinês, que tem seu corpo descrito pelo narrador por meio
disforme: é pançudo e tem o corpo frio pela morte. Uma vez que é o
europeu quem o percebe, a descrição carrega um tom orientalista,
pois é fruto de um imaginário estereotipado e que, no caso, serve aos
objetivos narrativos de Teodoro.
A partir da cena, ocorre a renovação grotesca, com o protagonista enriquecendo mediante o assassinato de outro homem. Entretanto, não ocorre um equilíbrio, sendo o português tomado pela culpa e
assombrado pelo mandarim:
Todas as vezes que entrava em casa estacava, arrepiado [...] –
lá jazia a figura bojuda, de rabicho negro e túnica amarela, com
o seu papagaio nos braços... Era o mandarim Ti Chin-Fu! Eu
precipitava-me, de punho erguido: e tudo se dissipava. Então
caía aniquilado [...] sobre uma poltrona, e murmurava no silêncio do quarto [...]: – Preciso matar este morto! E, todavia, não
era esta impertinência de um velho fantasma pançudo, acomodando-se nos meus móveis, sobre as minhas colchas, que me
fazia saber mal a vida. O horror supremo consistia na ideia, que
se me cravara então no espírito como um ferro inarrancável –
que eu tinha assassinado um velho! (QUEIRÓS, 2001, p. 49-50).
sumário
174
A aparição do homem retoma a representação grotesca pela
hipérbole. Seu corpo é obeso e sua presença fantasmagórica, experienciada por Teodoro, é carregada pelo viés da culpa. Apesar de se
assustar com a presença, a personagem diz contraditoriamente que o
fantasma não é o problema; o que o incomoda é o fato de tê-lo matado. Nesse sentido, o homem tenta reparar o seu erro indo à China
e procurando a família do mandarim para dar-lhe dinheiro. Todavia,
essa postura salvadora revela-se pouco eficiente ao chegar a terras
estrangeiras. Naquele espaço, ele tenta incorporar os costumes locais:
E, pelas misteriosas correlações com que o vestuário influencia o carácter, eu sentia já em mim ideias, instintos chineses:
– o amor dos cerimoniais meticulosos, o respeito burocrático
das fórmulas, uma ponta de cepticismo letrado; e também um
abjecto terror do imperador, o ódio ao estrangeiro, o culto dos
antepassados, o fanatismo da tradição, o gosto das coisas
açucaradas... Alma e ventre eram já totalmente um mandarim.
(QUEIRÓS, 2001, p. 67-68).
Embora tenha matado o homem chinês e acreditado que eliminá-lo fazia parte de um reequilíbrio natural, como se esse indivíduo
e seus costumes fossem menores frente ao seu heroísmo europeu,
agora ele se considera quase um mandarim. A autopercepção da
personagem resulta num efeito irônico, pois jamais ele se tornará um
chinês, tampouco tais modificações reder-lhe-ão sucesso na empreitada. Essa mescla, bem como o efeito irônico, carrega um tom
grotesco, demonstrando o caráter inadequado da personagem no
Oriente. Teodoro, que se julgava tão racional e deveras poderoso,
não consegue êxito nas terras chinesas.
Posteriormente, ele avança no território em busca da família de
Ti Chin-Fu. Lá, ele e Sá-Tó, que o acompanha, param em um albergue
“onde arrieiros mongóis” e “crianças piolhosas” (QUEIRÓS, 2001, p.
86) habitavam. Sá-Tó adverte que não devem temer a estranheza do
lugar nem seus moradores, pois ele sacrificou um galo preto em honra
da deusa Kaonine antes de a viagem começar. Contudo, rumores de
sua chegada se espalham, relativizando a sensação de proteção:
sumário
175
[...] enquanto eu dormia, espalhara-se pela vila que um estrangeiro, o Diabo estrangeiro, chegara com bagagens carregadas
de tesouros... Já desde o começo da noite ele tinha entrevisto
faces agudas, de olho voraz, rondando o barracão, como chacais impacientes... E ordenara logo aos koulis que entrincheirassem a porta com os carros das bagagens, formados em semicírculo à velha maneira tártara... Mas pouco a pouco a malta
crescera... Agora vinha de espreitar por um postigo: e era em
roda da estalagem toda a populaça de Tien-Hó rosnando sinistramente... A deusa Kaonine não se satisfizera com o sangue
do galo preto!... Além disso ele vira à porta de um pagode uma
cabra negra recuar! ... A noite seria de terrores! [...] E agora, Sá-Tó? – perguntei eu. – Agora... Vossa Honra! Agora... Calou-se: e
a sua magra figura tremia, acaçapada como um cão que se roja
sob o açoite. Eu afastei o cobarde, e adiantei-me para a galeria.
Em baixo, o muro fronteiro, coberto de um alpendre, projetava
uma funda sombra. [...] Às vezes uma figura, rastejando, adiantava-se no espaço alumiado, espreitava, farejava as carretas e,
sentindo a lua sobre a face, recuava vivamente, fundindo-se na
escuridão [...] (QUEIRÓS, 2001, p. 88).
Se antes o mandarim era um estranho e alvo de Teodoro, agora
os papéis se invertem e o protagonista torna-se uma figura estrangeira
e que causa cobiça. Ele é perseguido pelos moradores e o diabólico/
fantasmagórico retorna à narrativa: a sombra na parede simboliza a
presença diabólica. Amedrontada e encurralada, a personagem assiste impotente ao ciclo se repetir, vivenciando o lugar da vítima. O aspecto cíclico, bem como a inversão dos papéis, carrega a grotesca sutileza
da constante transformação, que, aqui, comunica a ganância humana
como um fato independente de ser ocidental ou oriental. Nessa troca,
demonstra-se que os indivíduos tendem a almejar a riqueza alheia em
benefício próprio. Além disso, percebe-se que Teodoro, ao adentrar a
China, coloca-se na posição de “salvador”, aquele que socorrerá a família do mandarim, porém ele mal consegue zelar por si próprio, dando
um tom irônico e cômico à situação e à personagem. Mesmo assim,
a comicidade não exclui os aspectos terríficos das ocasiões vivenciadas por Teodoro, corroborando a ideia de que o grotesco suporta uma
tensão interna de tons, tal qual Meindl (2005) aponta em seu estudo.
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176
Então, Teodoro decide por uma fuga da estalagem:
Apesar da lua, eu via em roda do barracão errarem tochas, numa
dispersão de fagulhas: um alarido rouco elevava-se, fazendo ao
longe uivar os cães; e de todas as vielas desembocava, corria
populaça, sombras ligeiras, agitando chuços e foices recurvas...
Subitamente, na loja térrea, ouvi o tumulto da turba que a invadia
pelas portas despedaçadas: decerto me procuravam, supondo
que eu teria comigo o melhor do tesouro, pedras preciosas ou oiros... O terror desvairou-me. Corri a uma grade de bambus para o
lado do pátio. Demoli-a, saltei sobre uma camada de mato grosso, num cheiro acre de imundícies (QUEIRÓS, 2001, p. 91).
O terror do momento perturba os sentidos, as pessoas são
como sombras e ele já julga qualquer ruído como a presença de seus
perseguidores. À medida que a narrativa avança para o final, um tom
grotesco e sombrio, nos moldes de Kayser (2013), ganha forma, abandonando qualquer possibilidade de uma representação luminosa e
cômica, defendida por Bakhtin (2003).
Teodoro reflete sobre sua empreitada e decide deixar a China:
Retirar-me com os meus milhões era a desforra mais prática,
mais fácil! Demais, a minha ideia de ressuscitar artificialmente,
para bem da China, a personalidade de Ti Chin-Fu, parecia-me
agora absurda, de uma insensatez de sonho. Eu não compreendia a língua, nem os costumes, nem os ritos, nem as leis, nem
os sábios daquela raça: que vinha pois fazer ali senão expor-me, pelo aparato da minha riqueza, aos assaltos de um povo
que há quarenta e quatro séculos é pirata nos mares e traz as
terras varridas de rapina? (QUEIRÓS, 2001, p. 96).
A personagem, que antes se considerava tão adaptada ao contexto e já pertencente ao lugar, tendo até absorvido a cultura local,
conclui uma impossibilidade de se tornar um chinês ou de se adaptar
ao espaço. Ela retoma a perspectiva inicial, apresentada no momento em que aceita a oferta diabólica, de que aquele povo é “inferior”,
como a narrativa diz, “piratas” que assaltam os mares. No entanto,
sumário
177
no momento e na sua perspectiva limitada, ele é incapaz de refletir
sobre seus próprios atos e erros, demonstrando a sua inaptidão de
compreender adequadamente a si próprio e seu entorno.
A reflexão só ocorre quando Teodoro retorna a Portugal e há um
contato com seus compatriotas:
Julgando-me arruinado – todos aqueles que a minha opulência
humilhara cobriram-me de ofensas, como se alastra de lixo uma
estátua derrubada de príncipe decaído. Os jornais, num triunfo
de ironia, achincalharam a minha miséria. A Aristocracia, que
balbuciara adulações aos pés do nababo, ordenava agora aos
seus cocheiros que atropelassem nas ruas o corpo encolhido
do plumitivo de secretaria. O Clero, que eu enriquecera, acusava-me de ‘feiticeiro’ (QUEIRÓS, 2001, p. 109-110).
Teodoro é rechaçado pelos próprios portugueses, tendo se tornado um ser desprezível e sem a capacidade de se reintroduzir na
cultura europeia, pois cometeu um crime, bem como envolveu-se com
o diabólico e com o estrangeiro, questões malvistas pelos valores daquele espaço. Nessa crise identitária, é possível um tipo de aproximação com o conceito de Bauman (2005, p. 35) sobre o “nem-um-nem-outro”, caracterizado pelo “anseio por identidade vem do desejo de
segurança, ele próprio um sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto prazo [...] flutuar sem apoio num espaço
pouco definido [...] ‘nem-um-nem-outro’, torna-se a longo prazo uma
condição enervante e produtora de ansiedade”. Inicialmente cunhado
para as identidades que são migrantes e que vivenciam a experiência
pelo choque cultural e pelo não pertencimento ao território estrangeiro, Teodoro carrega um contorno do “nem-um-nem-outro” ao não se
encaixar mais no próprio país, por ter infringido os códigos morais e
sociais, tornando-se aquilo que rechaçava e julgava: um ser à parte,
estranho ao espaço, sem valor social e autointitulado um “não ser”
(QUEIRÓS, 2001, p. 110, grifo do autor).
Por fim, ele vislumbra o Diabo na rua:
sumário
178
[...] bradei: – Livra-me das minhas riquezas! Ressuscita o Mandarim! Restitui-me a paz da miséria! Ele passou gravemente o
seu guarda-chuva para debaixo do outro braço, e respondeu
com bondade: – Não pode ser, meu prezado senhor, não pode
ser... Eu atirei-me aos seus pós numa suplicação abjecta: mas
só vi diante de mim, sob uma luz mortiça de gás, a forma magra
de um cão farejando o lixo. Nunca mais encontrei este indivíduo.
– E agora o mundo parece-me um imenso montão de ruínas
onde a minha alma solitária, como um exilado que erra por entre colunas tombadas, geme, sem descontinuar... As flores dos
meus aposentos murcham e ninguém as renova: toda a luz me
parece uma tocha: e quando as minhas amantes vêm, na brancura dos seus penteadores, encostar-se ao meu leito, eu choro
– como se avistasse a legião amortalhada das minhas alegrias
defuntas... Sinto-me morrer. Tenho o meu testamento feito. Nele
lego os meus milhões ao Demónio; pertencem-lhe; ele que os
reclame e que os reparta... (QUEIRÓS, 2001, p. 111-112).
O reencontro é ambíguo, pois a personagem tem os sentidos
afetados pela culpa e a suposta imagem do Diabo mistura-se com a de
um cão. Nem personagem nem leitor têm certeza do que ocorreu. O léxico recorre ao sombrio e negativo, como “mortiça”, “ruína” “murchar”,
“choro”, “alegria defunta” e “morrer”, tornando a atmosfera soturna e
sugerindo a morte de Teodoro. No contexto, a percepção confusa do
ambiente carrega um tom grotesco-obscuro: as imagens são distorcidas como gás e o temor é presente, gerando uma apreensão que
escapa as fronteiras ficcionais da narrativa e atinge o leitor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da narrativa, percebemos uma caracterização que recorre ao grotesco para representar o Oriente, o indivíduo chinês e a
experiência vivida. No que tange às imagens da China e de seus habitantes, num primeiro plano há uma descrição estereotipada. O lugar é
visto como estranho e as pessoas são descritas pelo viés grotesco da
sumário
179
animalização e da deformidade corporal. Por outro lado, essa escolha
não está para demonstrar como Teodoro e o português/europeu são
mais “evoluídos” do que aquela população. A perspectiva dele sobre
ambos os objetos comunica muito mais as suas falhas de caráter e sua
inadequação moral, como a ganância. Assim, a presença da estética
grotesca resulta num importante efeito irônico, uma vez que estranha
os objetos representados, a fim de sinalizar uma crítica social sobre o
português/europeu. Por um lado, a questão cômico-grotesco “luminosa”, conforme Bakhtin (2003), é minimizada para que se opte pela estratégia sombria, tal qual a visão de Kayser (2013). Isso contribui para a
crítica, à medida que as imagens e discursos da ordem do soturno são
um indício para o receptor sobre a dubiedade das ações de Teodoro.
Além disso, o tom de inadequação do protagonista e de suas
ações é um indício para o leitor compreender que a situação ali representada é problemática. Teodoro julga conveniente a proposta do Diabo, bem como crê, num primeiro momento, ser salvador da família do
mandarim, adaptado ao meio chinês a ponto de incorporar hábitos e
cultura. Assim, a personagem apresenta um sutil halo cômico, beirando
ao ridículo, além das questões do fracasso e da morte. Nesse contexto,
a representação retoma os aspectos grotescos próximos aos discutidos
por Meindl (2005), tendo em vista que o cômico e o risível não excluem o
sombrio e o negativo, ocasionando uma representação paradoxal.
Por fim, a culpa experienciada pela personagem tem uma posição de destaque para demonstrar que há uma crítica sobre o posicionamento de Teodoro em relação ao mandarim. A sensação é resultado
de uma espécie de consciência dele sobre seus atos e de que o domínio praticado sobre o outro é repreensível. Dessa forma, na narrativa predomina uma postura crítica sobre as ações de ganância do
português/europeu em relação ao Oriente. Com isso, dentro de suas
diferentes configurações internas, deveras paradoxais, o grotesco permite que uma imagem inicialmente estereotipada, a qual soa negativa,
torne-se crítica às práticas, ao social e ao colonialismo.
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180
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2003.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
BHABBHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
KAYSER, Wolfgang. O grotesco. São Paulo: Perspectiva, 2013.
MACHADO, Álvaro Manuel. O mito do Oriente na Literatura Portuguesa.
Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983.
MEINDL, Dieter. The grotesque: concepts and illustrations. In: MEINDL, Dieter
et al. O grotesco. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, 2005. p. 7-21.
QUEIRÓS, Eça de. O mandarim. Porto Alegre: L&PM, 2001.
SAID, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
sumário
181
Capítulo 9
9
A educação religiosa n’As
Farpas, de Eça de Queirós
Wilian Augusto Inês
Wilian Augusto Inês
A educação
religiosa n’As Farpas,
de Eça de Queirós
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.9
Resumo: O Catolicismo exercia considerável influência sobre a sociedade
portuguesa oitocentista e um dos principais instrumentos para a manutenção
de sua soberania, que remonta a séculos anteriores, foi a educação. Desde
o Concílio de Trento (1545-1563), a formação da sociedade portuguesa era
alicerçada nos princípios católicos, os quais foram alvos de críticas dos intelectuais da Geração de 70, na segunda metade do século XIX. Com isso, o
artigo pretende analisar as críticas presentes nas crônicas d’As farpas, de Eça
de Queirós, publicadas em 1871-1872, relacionadas ao ensino e à influência
da religião católica sobre a educação em Portugal.
Palavras-chave: As farpas; Catolicismo; Educação religiosa; Eça de Queirós.
sumário
183
INTRODUÇÃO26
No século XIX, a crônica tornou-se moda na imprensa portuguesa, sendo um dos gêneros jornalísticos que mais se enquadravam no
gosto dos leitores. Com isso, muitos intelectuais passaram a utilizá-la
como meio de se expressar. Eça de Queirós (1845-1900) foi um desses
escritores e sua estreia na escrita cronística deu-se no Distrito de Évora
(1867), jornal dirigido por ele entre janeiro e agosto de 1867. Entretanto, é importante ressaltar que seu aperfeiçoamento no meio cronístico
ocorreu com a publicação d’As farpas (1871-1872).
As farpas (crônica mensal da política, das letras e dos costumes)
foi o nome dado às crônicas redigidas por Eça com Ramalho Ortigão.
Segundo Medina (2000, p. 149), “grande parte das Farpas queirosianas são dedicadas a uma implacável crítica do mundo constitucional,
da sua política, das suas ideias, homens, instituições e prática”. Nesse
conjunto crítico, um dos assuntos abordados pelo escritor é a educação religiosa, tema que motivou nosso trabalho.
No que diz respeito à religiosidade presente n’As farpas de Eça,
Medina (2000, p. 166) salienta que o autor “[...] não cessa de farpear a
dimensão profanamente sociológica da fé, a sua realidade propriamente
eclesial, isto é, a transformação da relação viva com Deus num acervo de
atitudes, costumes, hábitos, fórmulas e práticas [...]”, ou seja, em muitas
das crônicas de As farpas, Eça tece críticas sobre o sistema religioso
português e sua influência no modo de pensar e agir da sociedade.
Outro assunto discutido com acuidade por ele nesses textos é
a educação portuguesa. Nos textos d’As farpas, o escritor critica com
argúcia a educação religiosa, desde os primeiros anos das crianças
26
sumário
Este texto é parte de minha dissertação de mestrado, intitulada Eça de Queirós e a educação religiosa: As farpas em O crime do padre Amaro, defendida em março de 2022, sob
a orientação do Prof. Dr. Antonio Augusto Nery, na Universidade Federal do Paraná.
184
até o momento em que se tornam jovens. Comenta principalmente
sobre a educação da figura feminina, descrevendo o caráter, as atitudes e os tipos de pensamentos a pairar sobre os portugueses desde
a infância até a mocidade.
É preciso frisar que realizamos a análise tendo em conta os textos
d’As farpas originais27, coligidos pela socióloga Maria Filomena Mónica
(2013) que desenvolveu um trabalho criterioso, atualizando a grafia, inserindo glossário, tabela onomástica e indicação de trechos suprimidos
na edição de 1890 e 1891, sob o título Uma campanha alegre.
Também convém esclarecer que, em nosso trabalho, utilizamos o
termo “educação religiosa” e/ou “educação católica” no sentido de agregar a educação formal, advinda especialmente de instituições de ensino
e, sobretudo, a educação familiar, reflexo da sociedade, que buscava
moldar os valores, costumes, atitudes e comportamentos individuais.
Diante disso, este artigo visa a analisar a educação religiosa
em Portugal, tendo como ponto de partida as críticas redigidas por
Eça de Queirós e Ramalho Ortigão acerca da educação dos portugueses em As farpas, enfatizando primeiramente a educação de um
ponto de vista mais amplo e pedagógico, considerando a estrutura
das instituições de ensino, a situação dos professores e o ensino-aprendizagem dos jovens portugueses. Em seguida, abordaremos
a educação religiosa, buscando evidenciar e compreender a forma
como a religião moldava a mentalidade das pessoas e como essa
educação refletia em seu comportamento.
27
sumário
Segundo Mónica (2013), em 1886, Ramalho Ortigão resolveu republicar As farpas em livro,
porém Eça de Queirós discordou, defendendo que o título era de autoria de Ramalho e
muitas das crônicas publicadas não contavam com a sua colaboração. Na verdade, o que
Eça não queria era ver seus textos juntos dos de Ramalho. Com isso, editou os fascículos
e alterou partes de suas crônicas. Por isso, utilizamos as crônicas d’As farpas originais,
tendo em vista que a edição sob o título Uma campanha alegre, lançada em 1890-1891,
foi publicada com “consideráveis alterações e algumas excisões autocensórias, nos dois
volumes da obra [...]” (MEDINA, 2000, p. 13).
185
AS FARPAS
Por volta de 1870, Eça de Queirós decidiu ter uma carreira no
exterior; no entanto, a única chance de ele alcançar esse cargo seria
pela via consular e, para isso acontecer, era necessário que ele tivesse
experiência de dois anos na área administrativa; até que, em julho do
mesmo ano, conseguiu ser nomeado como administrador do concelho
de Leiria. Em outubro, passou a frequentar a casa de Jaime Batalha
Reis (1847-1935) e se preparar para prestar concurso para tornar-se
cônsul; entretanto, mesmo Eça tendo ficado em primeiro lugar, foi nomeado cônsul da Bahia Manuel Saldanha da Gama (1820-1875), que
havia nascido no Rio de Janeiro e era filho de um conde. Com isso, o
escritor não teve outra escolha a não ser voltar para Leiria.
Em 1871, Eça retornou a Lisboa para participar das Conferências do Casino Lisbonense. Enquanto ocorriam as reuniões, em colaboração com Ramalho Ortigão, o escritor redigiu e publicou a primeira
edição de As farpas, folhetos nos quais expunham, em forma de crônicas, críticas à política, ao clero, à burguesia e a aspectos da vida em
geral. Embora tenham sido publicadas por Ramalho Ortigão até 1882,
Eça contribuiu com As farpas até outubro de 1872, quando deixou Portugal para se tornar cônsul em Cuba.
Conforme Medina (2000, p. 142-143), o que As farpas pretendiam era,
[...] sobretudo, criticar os males estruturais de um país e de um
sistema, ocupando-se dos homens ou dos atos e instituições
que o caracterizam, tão-somente, porém na medida em que
tais indivíduos, casos ou sucessos representam de fato esse
sistema no que ele tem de defeituoso e vicioso. O programa
da revista mensal é simples, ele consiste em combater tudo o
que signifique a continuidade da Decadência nacional, a Miséria
Portuguesa, entendida esta como o complexo de deficiências
sumário
186
estruturais, tanto materiais, como morais, que são responsáveis
pelo abaixamento generalizado de Portugal.
Dessa forma, o intuito de ambos os autores era trazer algo
bastante diferente do que os portugueses estavam acostumados a
ler nos folhetins tradicionais, tratando-se de “uma novidade cultural,
ideológica e propriamente jornalística no panorama português” (MEDINA, 2000, p. 117). De acordo com Mónica (2013), Eça acreditava ser
possível transformar a sociedade por meio do riso e, com seus textos
irônicos, poder incentivar os indivíduos a refletir sobre seus costumes
e valores decadentes, além de questionar o tradicionalismo das instituições e as ideologias antimodernas e conservadoras que pairavam
sobre Portugal. No que se refere ao riso em As farpas, Bernardes (2012,
p. 98-99) explicita:
O redactor-narrador não recorre ao riso e á derrisão de forma a
instalar nos opúsculos uma subversão de ritmo carnavalesco,
já que manifestamente As Farpas não são manual de bons costumes, que pretendem empreender uma catarse (após a qual
tudo voltaria ao seu lugar – a Revolução presente n’As Farpas
não admite uma dimensão cíclica na mesma) nem de soluções
para a comédia social. As Farpas não são carnavalescas, mas
sim expressão da carnavalização da sociedade, já que a sua
provocação do riso tem origem externa na medida em que se o
leitor ri é porque está a ver verdadeiro.
Em outras palavras, as crônicas d’As farpas tinham o intuito de
mostrar os costumes decadentes, estagnados e até mesmo arcaicos,
proporcionando, por meio do riso e da ironia, que a sociedade enxergasse aqueles problemas e buscasse mudar e evoluir, deixando
de tratá-los com indiferença. Como dito antes, as crônicas de Eça e
Ramalho eram completamente diferentes dos periódicos da imprensa:
As Farpas não queriam estar vinculadas a partidos, clubes políticos ou mandarins e caciques da sociedade portuguesa constitucional, mas apenas serem a clara voz do ‘bom senso’ – o slogan
vinha também da querela coimbrã contra os bonzos da cidadela
sumário
187
romântico-liberal, monárquico-constitucional e burguesa, a do regime vigente em Portugal (MEDINA, 2000, p. 118-119).
De acordo com Mónica (2013), inspirado nos periódicos do
francês Alphonse Karr (1808-1890),28 intitulados Les Guêpes, que tecia comentários sobre personalidade e obras literárias de Paris, Eça,
na primeira crônica de As farpas, torna evidente o seu propósito, apresentando os temas que serão discutidos no decorrer da publicação
das crônicas mensais:
O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caráteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a
conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não
há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita.
Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém
crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na
imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços
públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo
pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso
(QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 16).
É interessante pensar que todas essas críticas dirigidas aos
costumes, aos valores e às instituições sociais foram escritas com
base no que os jovens intelectuais observavam na sociedade, dando
sua livre opinião sobre diferentes áreas sociais, atitudes e comportamentos dos indivíduos. Eça e Ramalho deixam isso evidente na
crônica de maio de 1871:
As breves páginas que tu acabas de percorrer, amigo leitor, nenhum periódico português ousaria publicá-las integralmente nas
suas colunas. E todavia não são elas mais que a opinião sincera, desinteressada e livre, de dois homens honrados que um dia
28
sumário
De acordo com Medina (1984, p. 364), Jean Baptiste Alphonse Karr foi “um romancista
romântico, colaborador do Fígaro e panfletário da revista mensal em folhetos publicada a partir de 1839, as Guêpes; [...] panfletos escritos e editados entre 1839-1876 pelo
jornalista e romancista francês, no qual o crítico tecia ataques satíricos às monarquias
pós-Revolução Francesa e às conjunturas político-sociais”.
188
atravessaram as salas, os teatros, as bibliotecas, os botequins,
os escritórios dos jornais e as repartições públicas do seu país, e
que em seguida reuniram as observações que fizeram, escrevendo-as juntos (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 34-35).
Essas observações fizeram muito sucesso. Segundo Medina
(2000, p. 124), cerca de 2.500 exemplares eram impressos mensalmente, número elevado, considerando que a população era em sua
maioria analfabeta. Entretanto, além de fazerem muito sucesso,causaram muitas polêmicas, como as desavenças entre pernambucanos e
portugueses; a polêmica resposta dada por Ramalho e Eça, em julho
de 1871, a Samuel, pseudônimo de José Cardoso Vieira de Castro
(1836-1873),29 que em seu texto, publicado sob o título Consciência/
carta aos Ilmos. Exmos. Srs. Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, redactores das Farpas,teceu críticas às crônicas mensais; e, claro, a polêmica com Antonio Enes30 (1845-1901), relativa à opinião publicada na
Gazeta do Povo,sobre as crônicas mensais.
Em 1886, Ramalho Ortigão procurou Eça e propôs a republicação dos opúsculos publicados em 1871-1872, porém este não enxergou essa ideia com bons olhos, pois haviam se passado alguns anos
e sua mentalidade havia mudado. Além disso, naquele momento, ele
era cônsul em Bristol, ou seja, fazia parte do setor político de Portugal,
parcela da população bastante criticada por ele no período da publicação das primeiras crônicas d’As farpas. A despeito disso, Eça aceitou
sumário
29
Vieira de Castro foi um político e literato que utilizava o pseudônimo Samuel para tecer
críticas à As farpas, de Eça e Ramalho. Foi casado com a brasileira D. Claudina Adelaide
Guimarães, a quem ele assassinou, por ciúmes, em sua casa na Rua das Flores. Foi
condenado a 15 anos de degredo em Angola, para onde partiu em 1871 e ficou até a sua
morte, em 1873.
30
António Enes foi um jornalista político que trabalhava na Gazeta de Portugal, revista fundada
por Pinheiro Chagas e João Crisóstomo Milécio (1837-1899). Enes teceu diversas críticas às
crônicas mensais d’As farpas, o que ocasionou, entre junho e setembro de 1871, respostas
dos farpistas às ofensas e provocações do jornalista. Segundo Bernardes (2012), algum
tempo depois, em 1888, Eça teceu diversos elogios a Enes, com o objetivo de conseguir
uma colaboração do jornalista em um projeto da Revista de Portugal, tanto que a polêmica
entre Enes e os farpistas foi suprimida da edição de Uma campanha alegre, publicada em
1890. Para mais detalhes sobre a polêmica de Enes e os farpistas, ler Medina (1984).
189
republicar os textos, porém com um novo título, Uma campanha alegre.
Além da mudança do título de suas crônicas, Eça alterou muitas coisas
nos textos, introduziu e suprimiu diversas partes das crônicas originais.
A EDUCAÇÃO EM AS FARPAS
Uma das principais instituições da sociedade portuguesa criticadas por Eça de Queirós nos textos jornalísticos d’As farpas foi o
sistema educacional, o qual, segundo ele, desvalorizava o professor,
possuía metodologias pedagógicas ultrapassadas e era estruturado
de modo tacanho. O escritor, demonstrando sua perplexidade diante
da indiferença dos governantes em relação à decadência e à degeneração educacional em Portugal, propõe que o aperfeiçoamento da
educação poderia salvar Portugal da decadência.
Com a constatação da indiferença do governo com o ensino, Eça
defende, nas crônicas de outubro de 1871, a ideia de que as crianças
deveriam ser educadas pelos pais. Ele faz essa indicação porque acredita que a educação pública de Portugal estava em uma situação precária:
A educação pública é uma burla atrozmente vergonhosa. Não
lhes entregues a criança que o destino te confiou. Educa-o tu.
Se não souberes mais, procura pelo menos torná-lo forte, ensina-lhe a ler e a escrever, dá-lhe um ofício e fá-lo um homem
de bem; ele de si mesmo se fará um sábio, se tiver de o ser. A
ignorância tem isso de bom; que se desfaz aprendendo. A falsa
instrução tem esta perfídia: não dá o ensino e inibe de o tomar
(QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 210).
Analisando os comentários, é possível perceber que, para Eça, o
Estado deixava a educação em uma situação deplorável, sobretudo por
conta da indiferença dos políticos, que eram responsáveis não somente
pela construção de escolas em Portugal, mas também por gerir o sistema educacional, porém não cumpriam o que lhes era designado.
sumário
190
Nas crônicas de março de 1872, Eça menciona que “a lei de
1844 concedeu às câmaras municipais – autorização para fundarem
com seus rendimentos escolas primárias” (QUEIROZ; ORTIGÃO,
2013, p. 403). No entanto, o autor enfatiza que somente uma escola
fora construída em Setúbal. Além disso, por meio de dados estatísticos, explicita que Portugal tinha 700.000 crianças e 2.300 escolas, sendo que deveria haver 14.000 instituições de ensino. Dessas
700.000 crianças, apenas 97.000 foram ensinadas e, dessas, apenas
1.940 realmente aprenderam.
Diante desses dados, o escritor tenta mostrar que Portugal passava por uma enorme dificuldade no sistema educacional, com um
número abaixo do necessário para educar todas as crianças portuguesas, metodologias de ensino que não demonstravam evolução no ensino-aprendizado dos jovens e “esta infecundidade – tem a sua origem
no aluno, no mestre e na organização da escola. Tem sobretudo, a sua
causa – no estado. O estado inutiliza o aluno, impossibilita o mestre e
despreza a escola” (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 404).
Além de apresentar as estatísticas do número de indivíduos que
recebiam ensino, Eça reflete sobre as crianças das classes pobres que
deixavam de ir à escola para ajudar os pais no trabalho: “Nas famílias
trabalhadoras a criança é um braço, é uma parte da tarefa, é um aumento de trabalho, é uma atividade criadora, é um lucro” (QUEIROZ;
ORTIGÃO, 2013, p. 404). Embora o governo tivesse criado aulas no período noturno, para as pessoas que não podiam ter acesso à educação
durante o dia devido ao trabalho, de pouco adiantou, pois em poucos
meses foram fechadas, considerando que a Câmara dos Deputados
deixou de destinar recursos para o funcionamento das turmas.
Eça também aborda a condição dos professores, levantando a
questão do baixo salário e de as instituições de ensino serem mantidas pelos docentes, tendo em vista que uma parcela dos alunos não
tinha condições de comprar os materiais escolares e os professores
sumário
191
pagavam os itens para não ver a escola vazia e, consequentemente,
tornarem-se desempregados. N’As farpas de março de 1872, salienta:
Uma das causas da ignorância pública é o professor.
O professor de instrução primária é o homem no país mais humildemente desgraçado e mais cruelmente desatendido. Sabem quanto tem o professor de instrução primária? 120$00 reis
por ano, 260 reis por dia! Tem de se alimentar, vestir, morar,
comprar livros e quase sempre comprar para a escola papel,
lápis, lousa, etc., treze vinténs por dia. Note-se que para a alta
moralidade da sua missão, é evidente que o professor deve ser
casado. Pois bem, para crear uma família — treze vinténs por
dia! (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 405).
Notamos a sugestão de que, por conta do salário baixo e da
desvalorização, os professores não se sentiam motivados a aperfeiçoar suas metodologias e tornar o ensino mais proveitoso, possibilitando ainda mais a deterioração da educação em Portugal.
Outro fator importante que colabora para o ensino de qualidade
é o ambiente escolar. Contudo, em Portugal dos Oitocentos, as escolas
eram mal organizadas. De acordo com o escritor,
a escola entre nós é uma grilheta do abecedário, escura, suja,
desarranjada: as crianças estão ali enfastiadas, repetindo a
lição alto, monotamente, sem vontade, sem inteligência, sem
estímulo: o professor domina pela palmatória, ensina pela rotina, e põe todo o tédio da sua vida no sistema do seu ensino
(QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 407).
Eça descreve os edifícios e os compara a um celeiro sem espaço,
“nem asseio, nem arranjo, nem luz, nem ar” (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013,
p. 407). Podemos verificar também a falta de inspeção, que tornava a
escola um ambiente desorganizado e os professores desleixados.
É preciso ressaltar que a educação sempre foi assunto discutido
pelos contemporâneos e antecessores da geração de Eça de Queirós. Diversos escritores, como Almeida Garret (1799-1854), Alexandre
sumário
192
Herculano (1810-1877) e António Feliciano de Castilho (1800-1875),
discutiram esse assunto.31
Entretanto, diferentemente de Eça, eles não apenas criticaram,
mas também apresentaram propostas de mudanças para a educação
em Portugal. Nesse sentido, podemos pensar que Eça era um polemista, e não um propositor de contribuições para o sistema educacional
português, considerando que, na maioria das crônicas, o redator apresenta os fatos, discorre sobre o assunto de forma irônica e, para finalizar, tece comentários críticos. Em outros termos, Eça aponta, discute
e critica os problemas na educação portuguesa, porém não apresenta
nenhuma proposta de implementação de um novo sistema educacional.
Haja vista as observações realizadas no decorrer do texto, podemos dizer que n’As farpas há o escancaramento dos fatores que
tornavam a educação portuguesa deficiente. Entre esses fatores, podemos citar, especialmente, a interferência da religião no processo
educacional, que teria tornado o ensino mais restrito, impossibilitando
os estudantes de ter acesso a pensamentos divergentes dos propagados pela ortodoxia acerca da vida e da sociedade, além da indiferença
da classe política para com o sistema educacional.
A EDUCAÇÃO RELIGIOSA E A
EDUCAÇÃO FEMININA N’AS FARPAS
Além de tecer críticas ao sistema educacional formal de Portugal, Eça demonstra ter preocupação com a educação recebida pelas
jovens mulheres daquele período, transcendendo a discussão para sua
produção vindoura. No entanto, tendo em vista As farpas, não devemos
31
sumário
Para mais informações sobre o pensamento e as propostas de implementação da educação em Portugal de Almeida Garret, Alexandre Herculano e Antônio Feliciano de Castilho,
ler Boto (1997).
193
pensar que o escritor era um defensor dos direitos civis femininos, pois
em nenhum momento ele demonstra apoio aos direitos das mulheres,
como o direito ao voto, a administração de bens exercida pela figura
feminina, o acesso a profissões, o direito a pedido de divórcio, entre
outros. Ao contrário disso, o farpista demonstra ter preocupação com
a decadência da sociedade e como a instrução e a formação da figura
feminina poderiam ajudar a transformar esse cenário.
Em outros termos, Eça não polemiza a educação feminina com
intuito de beneficiar o gênero feminino, mas, sim, tornar Portugal um
país moderno. Percebemos, nas crônicas, que o escritor busca criticar os costumes e os comportamentos das portuguesas, comparando-as com jovens da França e da Inglaterra, como podemos notar na
crônica de março de 1872:
Veja-se o andar de uma inglesa, firme, direito, acentuado, sereno, prático: sente-se a saúde, a personalidade bem afirmada, a
coragem, os instintos positivos. Veja-se o andar de uma menina
portuguesa, arrastado, incerto, balançado, hesitante, mórbido:
sente-se a indecisão, a fraqueza e a incoerência (QUEIROZ;
ORTIGÃO, 2013, p. 417).
No decorrer desse texto, Eça faz diversas outras comparações
entre a figura feminina portuguesa e a mulher inglesa e francesa, deixando nítido que sua crítica estava voltada ao comportamento das
jovens de Portugal.32 Podemos dizer que essa comparação realizada
pelo escritor entre as mulheres portuguesas e as mulheres de outros
países europeus demonstra, de certa forma, como os intelectuais
portugueses tinham a Inglaterra e a França como modelos a serem
32
sumário
Conforme Francisco José Costa Dantas (1999, p. 34-35) postula em seu livro A mulher
no romance de Eça de Queiroz, “a perspectiva pela qual Eça vê a mulher em geral, bem
como as críticas desencadeadas sobre a educação feminina estão nitidamente marcadas
pelas influências teóricas assimiladas por sua geração. E no seu caso particular, consta
que Proudhon foi a sua referência mais frequente e mais duradoura [...] E quando vai
opinar sobre o lugar que deve ser reservado à mulher, Eça não esquece a lição de seu
preferido: ‘Proudhon disse que a mulher só tem um destino – menagère ou courtisanne –
dona de casa ou mulher de prazer”.
194
seguidos, tanto que Eça polemiza o comportamento das mulheres de
Portugal com um tom difamador, rebaixando-as perante as mulheres
francesas e inglesas, dando a entender que, se aquelas fossem educadas da mesma maneira que estas, Portugal seria um país evoluído.
Carlota Maria Conceição Aires Pedro (2006) argumenta em sua
dissertação, Educação feminina no século XIX em Portugal: em busca
de uma consciência, que a sociedade portuguesa oitocentista, predominantemente conservadora, era caracterizada por segregar as
mulheres, permitindo-lhes uma educação com o objetivo de moldar a
mentalidade e o comportamento da figura feminina. De acordo com a
estudiosa, no século XIX, “a boa educação das jovens damas deveria respeitar a concepção feminina naturalmente vocacionada para as
obrigações familiares e maternais, pois a felicidade e bem-estar do núcleo familiar representaria o valor soberano da própria razão existencial
feminina” (PEDRO, 2006, p. 144).
Em outras palavras, a educação feminina surgia com o objetivo
de oferecer uma melhor instrução e preparação para as funções no âmbito doméstico e familiar, pois uma mulher letrada e que desenvolvesse
o senso crítico poderia causar ameaças à sociedade patriarcal. Dessa
forma, notamos que Eça de Queirós, assim como outros intelectuais,
seus contemporâneos, seguia os preceitos da sociedade da época, defendendo a ideia de que a mulher deveria adquirir uma boa educação
para exercer um papel exemplar no âmbito matrimonial e materno.
Almeida e Boschetti (2018) reiteram que, no século XIX, as mulheres não tinham acesso à mesma educação dos homens, pois ela
estava relacionada ao ambiente doméstico:
A concepção da casa como santuário familiar e da mulher como
anjo do lar mantinham o arcabouço sócio religioso considerado
indispensável para a ordem e a manutenção dos papéis sociais,
que explicam em parte o lento processo de modernização da
sociedade portuguesa do período. Assim, o ensino para as meninas se manteve na esfera da educação doméstica.
sumário
195
No caso dos textos de Eça, percebemos a concepção de que
as mulheres deveriam ter acesso à educação, pois elas eram responsáveis pela formação de seus filhos, e uma mulher moral e intelectualmente educada poderia moldar a nova geração:
A valia de uma geração depende da educação que recebeu
das mães. O homem é profundamente filho da mulher, disse
Michelet. Sobretudo pela educação. A criança é como um mármore branco, sobre ela a mãe grava – mais tarde os colégios,
os livros, os costumes só conseguem escrever. As palavras
escritas podem apagar-se e ou emendar-se: não se alteram as
palavras gravadas. A mãe penetra profundamente o homem
com o seu temperamento, instintos ideias e ideais (QUEIROZ;
ORTIGÃO, 2013, p. 413).
Ainda, citando Pedro (2006), no que se refere à educação feminina, as mães deveriam transmitir as normas de civilidade, os bons
valores e criar, dessa forma, uma educação sólida por meio das condutas tidas como modelo na sociedade, tendo como objetivo corrigir os
maus temperamentos e os possíveis atos de desrespeito aos preceitos
religiosos e à civilidade.
Vale ressaltar que, nesse período, o respeito à doutrina cristã
era extremamente importante, tanto que as famílias incutiam os valores
e preceitos religiosos na conduta de seus filhos, principalmente das
meninas, desde a infância, pois acreditavam que os valores religiosos
eram adequados para guiar os pensamentos e a conduta da mulher.
Retornando às crônicas de Eça, além das dificuldades sociais
que as instituições de ensino enfrentavam naquela época, havia a influência católica sobre a mentalidade da sociedade, exercendo domínio sobre os pensamentos, comportamentos, valores e costumes.
O que o escritor parece querer explicitar é que, desde a infância, os
portugueses eram submetidos à educação religiosa, sendo educados
por meio dos princípios doutrinários do Catolicismo e, depois, formalmente, submetidos a uma escolarização com os mesmos valores.
sumário
196
De fato, segundo Almeida e Boschetti (2018, p. 162), “o processo
educativo foi permeado por modelos de inspiração religiosa e congregacional que, por longo período sacralizou o ensino, manteve-o como
privilégio de classe e de gênero, opondo-se à laicidade e a coeducação”. Seguindo o raciocínio, no que se refere ao processo educativo
das meninas, Pedro (2006) argumenta que elas deveriam adquirir um
melhor conhecimento sobre as leis divinas33 e essa educação religiosa ocorria mediante a memorização de textos religiosos, porém muitas
não compreendiam, pois eram textos difíceis de interpretar e continham
mensagens subliminares de castigos para as más condutas.
N’As farpas, Eça salienta, inclusive, que o Catolicismo prezava
pela memorização da doutrina católica por meio do catecismo. No entanto, as pessoas não praticavam e muito menos obedeciam à risca
aos valores e preceitos católicos; isso ocorria devido à falta de compreensão dos mandamentos, dos sacramentos e da doutrina católica,
de modo geral. Na crônica de março de 1872, lemos o seguinte:
Ora a criança que recita maquinalmente, à flor dos lábios, sem
intenção, o catecismo – não o percebeu: expõe-se lhe a vontade
de Deus: sem lha explicar, fazendo-lhe apenas aprender de cor,
de modo que as palavras que profere não liga ideia que o prenda.
Assim desde que a criança tem de cor o catecismo supõe-se que
ela sabe e possui a religião: mas, se chegando com essa educação aos quinze anos, lhe perguntarem- qual é o seu dever como
esposa cristã? Qual é o seu dever de cristã como mãe? – Ficará
extremamente embaraçada, como diante de interrogações misteriosas- Não sabe (QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 420).
No folheto de outubro de 1871, Eça comenta sobre o fato de
em Portugal o catecismo ser a única instrução séria na primeira infância; no entanto, enfatiza que as crianças não entendiam absolutamente nada sobre as orações e as recitavam de maneira maquinal,
33
sumário
De acordo com Pedro (2006, p. 160), “algumas das normas de conduta instruídas pela
doutrina cristã através de rigorosos preceitos seriam: a modéstia, a submissão na hierarquia familiar e social, os costumes e normas associadas à Igreja, a participação em actos
de culto religioso e cerimônias católicas”.
197
evidenciando a falsa educação religiosa dada a elas naquele período.
O autor também acredita que a religião tirava a liberdade da sociedade
e, por isso, defende que o Catolicismo, depois do Concílio de Trento,
impossibilitou a liberdade de conhecimento, como podemos perceber
no fragmento a seguir:
[...] a religião voa das consciências para pender em garridos
bambolins nas exterioridades do culto; a voz íntima do dever
emudece, o sentimento augusto da liberdade abastarda-se ou
apaga-se, e o povo, lentamente, mas profundamente corrompido, amolenta-se, espapa-se e converte-se num abismo [...]
(QUEIROZ; ORTIGÃO, 2013, p. 51).
Segundo o que se depreende dessa citação, é possível perceber que Eça segue a mesma linha de raciocínio de Antero de Quental
(1842-1891), pois ambos acreditavam que a religião era uma das principais causadoras da decadência de Portugal e tentaram, respectivamente, por meio do ensaio Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos e dos textos jornalísticos d’As farpas,
expor seus pensamentos em relação à influência da religião sobre os
portugueses e como isso afetou o processo de evolução da modernidade em Portugal.
Em suma, com o acesso à educação restrita a poucas pessoas,
essa minoria era submetida a um ensino influenciado pelos dogmas
religiosos, ou seja, uma educação devocional, cuja intenção era perpetuar o controle sobre o caráter, em busca de um comportamento
religioso e socialmente passivo. Em outros termos, Eça prevê que a
educação religiosa tinha o intuito - ou produzia naturalmente - indivíduos acríticos, que não tinham opinião própria.
Os indivíduos eram submetidos a um ensino extremamente
sistemático, que contestava os métodos inovadores, principalmente
aqueles que continham ideais filosóficos contrários à escolástica, pois
“a Igreja Católica Romana, tinha aliás uma hostilidade manifesta por
sumário
198
tudo aquilo que o século XIX se punha a favor” (HOBSBAWM, 1977,
p. 277), além de ser proibida a leitura de livros que estimulassem os
estudantes a refletir, a questionar e a ser críticos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da análise das crônicas, percebemos que Eça de
Queirós se preocupa bastante com a educação, principalmente a educação da figura feminina, pois, segundo ele, a educação da sociedade
era responsabilidade da mulher. No entanto, para que a criança tivesse
boas instruções, a figura materna deveria ser alfabetizada e ter uma
boa formação, o que era difícil, pois o setor educacional português
estava completamente insatisfatório e com muitos problemas. Além
disso, o escritor aponta os problemas da educação portuguesa e de
outros setores da sociedade, deixando claro que tinha o intuito de polemizar os problemas sociais de Portugal, trazendo à luz os costumes,
os hábitos, os valores e as instituições sociais decadentes.
Também é possível observar em seus textos uma grande crítica
aos portugueses que submetiam seus filhos a uma falsa educação
religiosa, pela qual os jovens não compreendiam o verdadeiro sentido
da doutrina católica, apenas recitavam as orações maquinalmente e
não refletiam sobre o que estavam proferindo. Ainda, Eça tece críticas
ao comportamento da classe eclesiástica na sociedade, questionando
sua disciplina e colocando em discussão suas verdadeiras intenções.
Nossa pesquisa também constatou que a religião católica sempre exerceu forte influência sobre as instituições sociais portuguesas,
estando atrelada à cultura portuguesa desde o surgimento de Portugal;
entretanto, também sofreu retaliações, tendo de enfrentar resistência por
parte de governos e da maioria da sociedade intelectualizada. Conforme Dix (2010, p. 19), o Catolicismo passou por diversas transformações
sumário
199
nos últimos 200 anos, nos quais “a sociedade portuguesa oscilou entre
a esfera secular e a esfera católica”, sempre tentando aumentar sua
influência sobre a sociedade e se adaptar ao contexto de cada época,
mas nunca deixando de se fazer presente na vida dos indivíduos.
O século XIX foi um período de acontecimentos difusos na
esfera religiosa, ainda mais com a ascensão do anticlericalismo na
sociedade portuguesa. Tendo em vista a Geração de 70, da qual Eça
fez parte, muitos de seus intelectuais dispunham de um pensamento
de que a sociedade só alcançaria a glória com a separação da Igreja
do Estado. Por outro lado, Dix (2010) enfatiza que o surgimento da I
República (1910-1926) e a separação da Igreja do Estado (1911) promoveram um efeito contrário ao que os republicanos esperavam, pois
a Igreja Católica adquiriu mais força, principalmente com o fenômeno
de Fátima, a partir de 1917, tornando a religiosidade católica latente
no território português.
O domínio da Igreja se expandiu com a institucionalização do Estado Novo, período em que a Igreja passou a “reconstruir e recuperar a sua
posição de religião dominante” (REZOLA, 2012, p. 81). Ainda de acordo
com Rezola (2012), em 1940 a Igreja Católica adquiriu grande força social devido ao aumento de escolas sob sua administração, criação de
jornais voltados à ideologia católica, movimentos a favor do Catolicismo e
aumento de sacerdotes em Portugal, tudo em função do pacto entre Portugal e Santa Sé, conhecido como Concordata, no qual a Igreja Católica
adquiriu grandes vantagens sobre diversas áreas da sociedade.
No que se refere ao setor educacional, Rezola (2012, p. 85) argumenta que “[...] a Concordata garante a livre organização de escolas
particulares e, ainda, o ensino da religião e moral católica nas escolas e estabelecimento de ensino público”. Em outros termos, a Igreja
Católica voltou a ter influência considerável na esfera educacional e,
consequentemente, sobre parte dos portugueses, assim como fez nos
séculos anteriores.
sumário
200
REFERÊNCIAS
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propostas coeducativas (séculos XIX/XX): a Igreja Católica como mediadora
educacional. Revista História de La Educacíon Latinoamericana, [s.l.], v.
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BERNARDES, Joana Duarte. Eça de Queirós: riso, memória e morte. 2. ed.
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.
BOTO, Carlota. Ler, escrever, contar e se comportar: a escola primária como rito
do século XIX português. 1997. Tese (Doutorado em História Social) – Universidade
de São Paulo, São Paulo, 1997. Disponível em:https://teses.usp.br/teses/
disponiveis/8/8138/tde-20032012-103942/pt-br.php. Acesso em: 12 nov. 2021.
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DIX, Steffen. As esferas seculares e religiosas na sociedade portuguesa.
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mec.pt/pdf/aso/n194/n194a01.pdf. Acesso em: 4 maio 2021.
HOBSBAWM, Eric J. Ciência, religião, ideologia. In: HOBSBAWM, Eric J. A era
do capital (1848-1875). 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 241-256.
MEDINA, João. As Conferências do Casino e o socialismo em Portugal.
Lisboa: Dom Quixote, 1984.
MEDINA, João. Eça de Queirós antibrasileiro? Bauru: Edusc, 2000.
MÓNICA, Maria Filomena. Introdução. In: QUEIROZ, Eça de; ORTIGÃO,
Ramalho. As farpas: crónica mensal da política, das letras e dos costumes.
4. ed. Cascais: Princípia, 2013.
PEDRO, Carlota Maria Conceição Aires. Educação feminina no
século XIX em Portugal: em busca de uma consciência. 2006.
Dissertação (Mestrado em Ciências da Educação) – Universidade
de Lisboa, Lisboa, 2006. Disponível em:https://repositorio.ul.pt/
browse?type=advisor&value=Fernandes%2C+Rog%C3%A9rio%2C
+1933-2010. Acesso em: 11 nov. 2021.
QUEIROZ, Eça de; ORTIGÃO, Ramalho.As farpas: crónica mensal da
política, das letras e dos costumes. 4. ed. Cascais: Princípia, 2013.
REZOLA, Maria Inácia. A Igreja Católica nas origens do Salazarismo. Locus:
Revista de História, Juiz de Fora, v. 18, n. 1, p. 69-88, 2012. Disponível em:
https://periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20363/22371 Acesso
em: 25 fev. 2022.
sumário
201
10
Capítulo 10
A instrumentalização do papel feminino
na sociedade portuguesa do século XIX
nos contos Uma história verdadeira e A
perceptora, de Maria Amália Vaz de Carvalho
Patrícia dos Santos Andrade
Patrícia dos Santos Andrade
A instrumentalização
do papel feminino
na sociedade portuguesa
do século XIX nos contos
Uma história verdadeira
e A perceptora, de Maria
Amália Vaz de Carvalho
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.10
Resumo: Este artigo analisa dois contos de Maria Amália Vaz de Carvalho:
Uma história verdadeira e A perceptora, do livro Contos e fantasias (1880), no
intuito de demonstrar como a autora defendia uma educação mais instrumentalizante da mulher na segunda metade do século XIX. Ainda assim, analisamos como ela utilizava seus textos para doutrinar e contextualizar, por meio
da ficção, nos contos, os seus conselhos às mulheres de sua época, com o
objetivo maior de conscientizá-las da importância de uma formação educacional assertiva para que pudessem exercer com mestria seus deveres sociais de
mães, esposas e donas de casa.
Palavras-chave: Maria Amália Vaz de Carvalho; Educação feminina;
Instrumentalização da mulher.
sumário
203
INTRODUÇÃO
Na segunda metade do século XIX, em Portugal, nascendo de
dentro do predomínio masculino, ganhou espaço na literatura um quadro de escritoras, entre elas, Maria Amália Vaz de Carvalho. Ao encarar
o labor literário, a figura feminina começou a deixar a coadjuvação e
passou ao protagonismo, mediante a crescente dinamização da imprensa, como resultado da industrialização de fim de século. Isso fez
com que uma nova parcela do público leitor fosse almejada e atingida:
o público feminino, muito embora a maior parte da população portuguesa fosse analfabeta34.
Nascida em família privilegiada na sociedade portuguesa, Maria
Amália Vaz de Carvalho, desde nova e inclinada à vocação literária,
observa o papel da mulher naquela sociedade e reflete sobre sua importância e influência dentro da família. Segundo ela, existia uma necessidade de escolarizar essa mulher para que suas funções sociais
– dentro do espaço familiar, claro! – fossem dotadas de maior utilidade
e prestígio, ultrapassando a “mulher de sala”, que, segundo a autora,
[...] é uma nova face da transformação lenta por que vão passando as idéas e os acontecimentos. A mulher de sala é um producto
exotico entre nós. A França recebeu-a da Italia, cultivou-a, transformou-a, deu-lhe todos os requintes falsos, todos os donaires artificiaes, ergueu-lhe um throno no seio das suas côrtes galantes,
e deixou que nós, vendo-a de longe, a cubiçassemos e tentássemos transplantá-la para os nossos costumes chãos, para a nossa
pobreza envergonhada e modesta (CARVALHO, 1880, p. 19-20).
Com isso, Maria Amália defende que a mulher tem de deixar de
lado a vaidade, as frivolidades, ter bom senso e buscar tornar-se instruída com os descobrimentos e conquistas de seu tempo, sacrificando-se
34
sumário
Segundo Francisco Ribeiro da Silva (1992, p. 101), “há cerca de cem anos (1890), 76%
da população portuguesa maior de 7 anos não sabia ler nem escrever”.
204
aos seus deveres para com a família. Sua pretensão é que a mulher
deixe de ser essa “mulher de sala” e passe a ser a “mulher da família”,
voltada unicamente para seus deveres de esposa, dona da casa e mãe.
Entretanto, é preciso considerar que Maria Amália não defendia
uma emancipação da mulher, muito embora estivesse vivendo a iminência do movimento sufragista (primeiras décadas no século XX). O que
ela tentava fazer era colocar a mulher em pauta, com suas expectativas adaptadas a um paradigma masculino, defendendo uma expansão
da consciência feminina no seu papel obrigatório e imprescindível na
sociedade: o papel de mãe, esposa e dona de casa: “Longe de mim
o aconselhar à mulher que se emancipe dos seus graves e obscuros
deveres, que tente luctar com o homem, e arrancar-lhe a palma das
grandes descobertas e das grandes conquistas!” (CARVALHO, 1938, p.
166). Em outras palavras, a autora não desejava romper com a dominação masculina de sua época, mas, reconhecendo sua existência e assumindo o papel secundário da mulher na relação familiar, ela defendia
uma postura conscienciosa e qualificada dela dentro do espaço que lhe
era limitado – e isso só seria viável pela escolarização feminina.
Sendo assim, podemos pensar nas reflexões de Maria Amália
como uma proposta não de transformação do papel feminino na família do Oitocentos – haja vista que esse termo, no campo da evolução
histórica das conquistas femininas, carrega a ideia de metamorfose na
ocupação de espaços sociais –, mas de manutenção, no sentido de instrumentalizar a atuação dessa mulher dentro da sociedade portuguesa
da segunda metade do século XIX. A partir disso, seu foco passa a ser
a capacitação e formação da mulher, no intuito de produzir comportamentos adequados e assertivos nas funções de gerir a casa, cuidar dos
filhos e desempenhar os papéis reservados a ela naquela sociedade.
Em seu artigo, intitulado Ensinamentos e contos: Maria Amália Vaz de Carvalho e sua estratégia para a educação da mulher, Maria Celi Chaves Vasconcelos (2020, p. 1519) afirma que as obras
sumário
205
Contos e fantasias (1880) e Mulheres e crianças: notas sobre educação
(1880), de Maria Amália Vaz de Carvalho, empunham um propósito
moral e educativo, complementando-se, uma vez que demonstram
“qual era a educação feminina e qual era o papel das mães e das mestras que ele julgava serem adequados na sociedade do seu tempo”.
Portanto, e a partir disso, este texto tem como objetivo analisar
dois contos de Maria Amália Vaz de Carvalho: Uma história verdadeira
e A perceptora, ambos pertencentes à obra Contos e fantasias, sob
a perspectiva educativa – instrumentalizante – com que essa autora
redigiu as obras anteriormente mencionadas.
CONTO UMA HISTÓRIA VERDADEIRA
Primeiro conto do livro Contos e fantasias, nesse texto inicial,
Maria Amália constrói uma narrativa em terceira pessoa, que apresenta
como personagem principal um rapaz chamado Tadeu. De “fisionomia
incaracterística, apagada e tristíssima” (CARVALHO, 1905, p. 6), esse
rapaz leva uma vida completamente desafortunada e infeliz, morando
de favor, com seus pais, desde pequeno, na casa de seus tios, que
são ricos. É nesse lar que Tadeu cresce, debaixo de humilhações, desafetos, abusos físicos e psicológicos variados. Todos lhe maltratam:
os criados, seu próprio pai e seus tios.
A narrativa mostra, já na primeira página, um traço marcante na
personalidade de Tadeu: a presença entranhada do medo.
Nasceu numa casa opulenta que lhe não pertencia, cresceu no
meio de um luxo de que os seus pais eram parasitas voluntários e de que ele era... um parasita inconsciente. Começara por
ter medo de tudo e de todos; um medo que não raciocinava,
que não sabia, que não indagava mesmo a sua própria origem
(CARVALHO, 1905, p. 6).
sumário
206
Essa falta de identidade da personagem se reafirma com o nascimento de sua prima, Margarida, a quem se afeiçoa e por quem desenvolve uma verdadeira obsessão e amor fraternal. Essa menina cresce
tendo Tadeu como principal entretenimento: “O que a bebé queria, na
ingenuidade adorável do seu despotismo infantil, era um companheiro
dos seus brinquedos, um socio, um escravo que a adorasse” (CARVALHO, 1905, p. 11). Ela adorava usá-lo como seu melhor e mais divertido
brinquedo, ao passo que Tadeu se sentia honrado em ser usado.
Aos nove anos de idade, Margarida é enviada para estudar na
França e retorna sete anos depois. Tadeu se consome em tristeza e
amargura por ficar longe de sua pequena deusa. Quando a prima retorna, Tadeu é recebido por ela com deboche, numa cena em que se
apresenta com uma casaca do pai, sendo ridicularizado pela prima.
Na sequência, Tadeu conhece Henrique, na escola, e se tornam
grandes amigos. É esse amigo de Tadeu quem se casa com Margarida.
Depois do evento, Tadeu vai morar com eles, perpetuando sua função
de serviçal, agora do casal. Tempos depois, nascem os dois filhos do
casal, crianças que são veneradas e fortemente respeitadas por Tadeu.
A grande questão, nesse conto, que perpassa o elemento educativo da escrita de Maria Amália, é a construção de uma personagem
masculina, fortemente caracterizada por atributos, sobretudo, comportamentais, como uma forma não de chamar atenção para si, mas para
a figura de Margarida. Essa estratégia narrativa evidencia a intenção
discursiva da autora de expor os efeitos destrutivos e maléficos de
uma educação feminina mal praticada e erroneamente direcionada,
uma vez que, segundo Vasconcelos (2020), os contos da autora foram
escritos como uma forma de exemplificar os ensinamentos de Maria
Amália em sua publicação Mulheres e crianças: notas sobre educação.
Diante disso, a personagem Margarida aparece como um mau
exemplo daquilo que deveria ser a boa conduta da mulher naquela
sumário
207
sociedade oitocentista, ou seja, “boa esposa, boa mãe, boa dona de
casa” (CARVALHO, 1905, p. 44). Para a autora – e demonstrado no
conto –, o comportamento frívolo e egoísta de Margarida, totalmente
voltado para o luxo e gastos impensados, denuncia a má educação
que ela recebeu de sua mãe. Essa educação, a despeito de a família
ter muito dinheiro, não foi decidida de forma assertiva, porque Margarida foi enviada para estudar na França, em vez de ser educada pela
própria mãe, em casa, comportamento defendido por Maria Amália
como elemento imprescindível à boa instrução da mulher: “Não as
acusemos, acusemos antes a perniciosa, a funesta educação que receberam, germens que teem no passado as suas raízes damninhas e
que vão estender sobre o futuro a sua sombra deleteria e esterelisadora” (CARVALHO, 1938, p. 18).
Segundo Maria Amália, o importante era se afastar do luxo, das
ambições, das “mesquinhas invejas” que corroíam as forças da mulher
e que corrompiam os costumes e os sentimentos na família e na sociedade, desviando-a do ideal de ser boa esposa, boa mãe e dona de
casa exemplar. Entretanto, essa conduta faz-se ausente na atuação de
Margarida, que, desde criança, exercita sua frivolidade e tirania na exigência de seus caprichos, tendo sempre como executor-mor de seus
fúteis desejos o seu primo Tadeu:
Sim; ela dera-lhe essa sensação poderosa e extraordinária, a
sensação dos que se veem admirados com ingénua confiança.
Margarida pedia-lhe coisas enormes, com uma serenidade
inefável de crente!
Pedira-lhe um ninho de melros, e o que é mais! Conseguira que
ele tão medroso, tão débil, tão assustado, trepasse pelos braços nodosos de uma grande árvore e lho fosse buscar lá cima
(CARVALHO, 1905, p. 14).
Esse comportamento caprichoso e, ao mesmo tempo, desdenhoso e aproveitador em relação a Tadeu não se esgota na infância
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208
– “Ninguém oprimia nunca aquela altiva natureza aristocrática”, “Margarida tinha uma vontade de ferro, e uns nervos de mulher caprichosa”,
“Tivera criadas que a serviam, um escravo que tremia à frente dela, e
pais que transigiam com todos os seus pequenos desejos de criança”
(CARVALHO, 1905, p. 18) –, mas se perpetua na idade adulta, quando
ela já está casada com Henrique e seu primo mora com o casal:
Margarida que nenhuma força superior tentava dominar, dera
expansão completa a todos os caprichos da sua colorida e
quente fantasia.
Adorava o luxo, as coisas de arte, a música, as flores raras,
frequentava muito o alto mundo onde era requestadíssima, vivia
na perpétua idolatria de si própria, que a pouco e pouco a inutilizava para os graves deveres da vida.
Tadeu no meio da sua cega e embrutecedora adoração obedecia-lhe como um escravo. Só ele sabia as despesas colossais,
as extravagâncias principescas daquela pequenina pessoa, ativa, graciosa, fantasista como um poeta oriental.
Mas economizava ridiculamente em todas as verbas, para que
ela, a rainha, a perola, a Margarita dos seus sonhos doutro tempo não franzisse um minuto a sua testa curta, a sua testa de
teimosa, na contrariedade de um desejo insaciado.
E ela estava tão habituada à submissão e à humildade daquele
pária, que o tratava como um traste, um objeto seu, com o qual
não tinha de mostrar o mínimo constrangimento, a mínima atenção afetuosa (CARVALHO, 1905, p. 47).
Sendo assim, nesse conto, Maria Amália tece uma crítica ao comportamento completamente fútil e centrado em si das mulheres não assertivamente educadas de sua época. Margarida dedicou sua vida a
si mesma, a seus interesses, caprichos e sentimentos pueris, o que a
fez desviar-se de sua função primordial na sociedade, dentro da família,
sendo a personagem Tadeu um mero sintoma da educação não instrumentalizada para os deveres femininos dentro do lar que ela recebeu.
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209
Notamos, portanto, que, para a autora, não basta receber uma
formação requintada, estrangeira, dotada de prestígio social. Contudo
e sobretudo, é preciso qualificar essa formação, selecionando as áreas
do conhecimento e as instruções que servirão para o exercício primoroso da função doméstica; essa atuação, de fato, é a que importa e
deve ser prioridade nos anseios e pensamentos das mulheres:
Todos os males que assolavam a família e a sociedade, segundo Maria Amália, eram fruto da falta de uma educação feminina
sólida e positiva e, para tanto, tornava-se imperioso modificar a
que existia, radicalmente. De acordo com a autora, a mudança
deveria começar pelos ensinamentos que, embora considerados parte integrante de uma educação perfeita, deveriam ser
suprimidos, pois eram nocivos ou inúteis, ou ainda, promoviam
a vaidade e a luxúria. Entre esses misteres que precisariam deixar de ser ensinados estariam a dança, tratada por ela como
‘um talento absolutamente dispensável’, que só serviria para
estimular o desejo de exibir-se; e a tapeçaria, que estimularia
a preguiça, dando tempo ao pensamento para, desocupado,
buscar um ideal impossível. O piano também fazia parte das críticas, pois para Maria Amália nem todas as filhas teriam talento
para essa arte, e obrigá-las a tocar era atormentar o ouvido de
quem a escutava. Para a autora, os ensinamentos que deveriam
permanecer sendo oferecidos às mulheres eram a música, a
história, as línguas, a geografia, a aritmética, as ciências naturais, a botânica, a mineralogia, a biologia, entre outras ciências
dessa natureza (VASCONCELOS, 2020, p. 1524).
Dessa forma, direcionar a educação das meninas, elegendo, segundo sua futura serventia, os aprendizados que lhe serão úteis quando casadas, no labor doméstico, faz-se, para Maria Amália, imprescindível à formação de uma estrutura familiar sólida e bem desenhada.
Com vistas a isso, o conto analisado foi uma estratégia da autora de
ficcionalizar seus ensinamentos, utilizando cenários muitos comuns ao
cotidiano da época, para demonstrar que a mulher que não aceita e
que não é preparada para executar suas funções dentro da família
perde-se num caminho de anseios vazios e inutilidade.
sumário
210
CONTO A PERCEPTORA
Penúltimo conto da obra, trata de uma função feminina muito
importante na sociedade portuguesa do século XIX: a preceptoria, uma
maneira muito utilizada pelas camadas da burguesia e da aristocracia
para a educação doméstica de suas filhas. Era uma ocupação reconhecida e bastante aceita para mulheres, de preferência solteiras, que
precisassem ganhar seu próprio sustento.
A protagonista é a personagem Marta Vasconcelos, filha bastarda de um homem que provê seu sustento desde criança, sem reconhecê-la publicamente como filha, pois ela era fruto de infidelidade
conjugal: “O pai de Marta era casado, tinha filhos, vivia para sempre
longe dela nas tranquilas alegrias da família, uma família em que ela
só podia ser a intrusa” (CARVALHO, 1905, p. 199). Ele não a reconhecera, mas custeava e investia em sua educação: “Dizia-se que Marta
conhecera melhores dias, afirmava-se mesmo que não fora para servir
de mestra a burguesinhas pretensiosas que o seu pai, um pai extremoso, lhe adornara o espirito de todos os primores de uma educação
excecional” (CARVALHO, 1905, p. 197).
Quando Marta tinha 15 anos, seu pai, numa de suas frequentes
visitas a ela, na casa de uma senhora a quem confiara os cuidados de
sua filha, disse-lhe que pretendia reconhecê-la e dar-lhe os direitos que
lhe eram devidos. Marta não compreendeu muito bem, mas pressentiu
tempos difíceis, o que a fez dedicar-se com mais afinco aos estudos:
Desde esse dia Marta estudou com dobrado afinco, aprendeu
com uma ânsia dolorosa, com um não sei quê de impaciência
inexplicada.
Sentia que havia de ter muito que sofrer, muito que lutar.
Tratou de robustecer a alma e de dilatar o espirito.
sumário
211
Era uma espécie de iniciação heroica (CARVALHO, 1905, p. 199).
Tempos depois, o pai de Marta morreu inesperadamente por
conta da ruptura de um aneurisma. Diz o texto que, oito dias depois,
ela passou a viver na casa do comendador Gonçalves, assumindo a
função de perceptora de suas duas filhas, passando a ser a mestra
dessas “burguesinhas pretensiosas” (CARVALHO, 1905, p. 197), que
a humilhavam diariamente. Havia outro filho do comendador, Julião,
de 23 anos, por quem Marta se apaixonara, sofrendo, posteriormente,
a desilusão de vê-lo casando-se com a filha de um barão, escolhida
por seu pai para unir as riquezas e títulos das famílias, e assumindo a
penúria de conviver com ele e sua esposa após o casamento.
Nesse conto, Maria Amália aborda questões bastante significativas no tocante à educação da mulher. Para a autora, é primordial que a
mãe exerça e assuma o papel de educar e instrumentalizar suas filhas
para o labor familiar, mas reconhece a importância de uma perceptora
nessa função quando da ausência ou incapacidade de uma mãe para
fazê-la. Dessa forma, não tece críticas contundentes à preceptoria, porém, em seus contos, essa ocupação está sempre relacionada a algum
tipo de abandono sofrido pela mulher, que é obrigada a exercê-la.
As filhas do comendador se aproveitavam dos conhecimentos
adquiridos de Marta somente para se fazerem superioras às outras
garotas da sociedade:
Não tinham ideias absolutas, tinham simplesmente ideias relativas. Excitar a admiração parecia-lhes uma coisa reles e insignificante; o que eles queriam era excitar a inveja. As pequenas
compreendiam isto maravilhosamente. Em vendo uma amiga
da infância, uma conhecida qualquer com um vestido mais bonito ou com uma prenda intelectual preciosa, tinham ataques
de desespero surdo. Ralava-as uma vaga inveja de todos os
esplendores sociais. Andavam à busca de gente a quem pudessem ofuscar. Eram simplesmente ridículas! Às vezes entravam
no quarto de Marta e diziam-lhe num transporte e cólera:
sumário
212
– Quero saber alemão. A Mariquinhas sabe alemão, enquanto
eu não sei.
– Quero aprender a bordar de matiz, a Júlia fez um quadro que
eu não sei fazer.
Era assim que iam progredindo no estudo.
Mara conformava-se docilmente ás aspirações das discípulas:
ensinava-lhes tudo o que sabia, mas o que ela de todo não pudera, era inocular-lhe a vida interior que animava e coordenava
todos os seus conhecimentos adquiridos ou intuitivos (CARVALHO, 1905, p. 195-196).
Essa postura era exemplo de tudo aquilo que Maria Amália condenava em seu livro Mulheres e crianças: notas sobre educação, pois
sustentava um comportamento vaidoso, invejoso, fútil e frívolo, além
destratar Marta, com absoluto desdém.
A perceptora recebia pelos seus serviços e era bem remunerada, se dedicando integralmente à educação das crianças e demandas
da família: desde tocar piano durante toda a soirée até ensinar qualquer modismo do qual a família tomasse conhecimento. Essa condição da personagem exemplifica o reconhecimento de Maria Amália
acerca da situação de submissão dessas mulheres, trabalhando para
moças caprichosas, fora de sua própria casa, configurando um cenário de dor e amargura.
Entretanto, mesmo sendo uma vida de sofrimento a de uma perceptora que se depara com moças fúteis e vaidosas para educar, a função de preceptoria era o resultado direto da educação que recebera,
ou seja, essa mulher recebeu uma educação que a instrumentalizou,
capacitou-a para exercer essa função num momento de abandono inesperado, ao se vir desamparada após a morte do pai, sendo os estudos
e formação responsáveis por ela ter, ainda que de forma sofrida, uma
ocupação remunerada que lhe garantiria sua dignidade e sustento.
sumário
213
Esse aspecto traz à tona outro pensamento de Maria Amália: o
de que não são todas as áreas do conhecimento úteis à instrumentalização da mulher do Oitocentos, senão as de maior serventia e aproveitamento ao desempenho de seu papel dentro do lar. Segundo a
autora, dentre os ensinamentos sem relevância, estão a dança – “um
talento [...] que nas meninas só serve para desenvolver a coquetterie, o
desejo de brilhar e de agradar” – e a tapeçaria – “um pretexto fútil para
estragar o tempo” (CARVALHO, 1880, p. 49-50).
Em contraponto, alguns dos conhecimentos que deveriam permanecer sendo oferecidos para as mulheres eram a música, a história,
a geografia, a aritmética e as línguas. Essas últimas fizeram-se muito
presentes na personagem Marta, sendo um aspecto importante e muito bem pontuado pela autora no conto:
Conhecia as línguas modernas, mas não como as conhecem as
meninas que por aí conversam com os diplomatas, resumindo
nisso todas as suas ambições de estudo. Penetrara no espirito
delas, compreendera o génio especial de cada uma, sabia de
cor e escolhia principalmente os poetas que sintetizam uma nacionalidade ou uma civilização.
Tinham-lhe ensinado a raciocinar, a pensar, a estudar a fundo
todos os problemas em que outras mulheres tocam somente
ao de leve.
A curiosidade natural ao espirito feminino, essa qualidade preciosa, que, descurada, se trona quase sempre num vício antipático, fora nela tão bem dirigida, disciplinada com tal mestria,
que se tomara em fonte dos mais puros gozos do seu espirito
(CARVALHO, 1905, p. 197).
Dessa forma, percebemos uma crítica de Maria Amália às mulheres que acessam os saberes apenas de maneira leve, superficial.
Com forte representação na personagem Marta, a autora defende a
subjetivação e compreensão profunda dos conhecimentos adquiridos para uma verdadeira capacitação da mulher em seus deveres
sociais: “Na lingua de um povo está consubstanciado muito do que
sumário
214
elle é moral, physica e intellectualmente. Penetrase no caracter de
uma nação conhecendo a fundo as locuções de que ella se serve”
(CARVALHO, 1880, p. 55).
Além disso, nesse conto, Maria Amália chama atenção para
outra questão importante no exercício da preceptoria: as perceptoras deveriam reconhecer os limites de seu lugar nas casas em que
trabalhavam: “Pagavam-lhe integral e generosamente, tinham direito
aos serviços correspondentes a essa remuneração. As suas relações
paravam aqui” (CARVALHO, 1905, p. 194). Com isso, Maria Amália
demonstra que existe um limite que pontua o lugar que essas perceptoras ocupam nas casas, pois não eram simples criadas, mas também
jamais seriam tratadas como membros da família.
O desvio dessa consciência da mulher em sua função de perceptora só poderia acarretar sofrimento e mais dor em sua atuação, o que
se exemplifica, no conto, no fato de Marta se apaixonar por Julião, filho
de seus patrões. Para Maria Amália, a mulher, como perceptora, não
deve desviar-se de suas obrigações naquela casa; antes, deve assumir
o seu lugar e ter consciência de sua condição, caso contrário, sofrerá as
amarguras de ter alimentado uma expectativa que jamais aconteceria
em realidade: “Como ela lhe tinha querido, ao seu belo sonho desfeito, e
com que dilacerante agonia lhe dizia para sempre adeus!” (CARVALHO,
1905, p. 206). Assim, com esse conto, Maria Amália chama atenção das
mulheres para os limites de seus papéis como perceptoras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a análise desses dois contos, à luz das intenções educativas
da mulher com as quais Maria Amália escreveu seus textos, podemos
perceber certa militância em favor da escolarização das mulheres do Oitocentos, porém com o viés capacitador/instrumentalizante das funções
sumário
215
femininas para o exercício do labor doméstico, deixando bem claro o
espaço que lhe era destinado na sociedade portuguesa da época:
A mulher dentro de sua casa sentir-se-hia bem, porque teria em
si recursos sufficientes não só para entreter os seus, como tambem-e é isto o principal-para se entreter a si.
É essa a grande questão!
É preciso que as mães preparem o espirito de suas filhas de
modo que ellas não precisem dos outros para viver contentes.
E como se ha de conseguir este fim?
Educando-as para que ellas bastem a si proprias.
Dando-lhes ao espirito todos os recursos, ao corpo todo o vigor,
ao caracter toda a austera dignidade; cultivando e desenvolvendo todas as faculdades superiores que
ellas revelem, encadeando harmonicamente as suas acquisições intellectuaes, para que d’essa harmonia interior resulte
para ellas uma exacta e elevada comprehensão da vida! (CARVALHO, 1880, p. 57).
Não interessava à autora a emancipação da mulher para fora
dos lares, mas uma emancipação para além de sua ignorância e frivolidade, sendo mais importantes os conhecimentos adquiridos para ser
boa esposa, mão e dona de casa, em detrimento do interesse pelo luxo
e vida social sem utilidade. Seu ativismo era muito mais pela educação
das mulheres voltada para uma funcionalidade doméstica do que qualquer conotação outra, social ou política.
sumário
216
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Maria Amália Vaz. Mulheres e crianças: notas sobre educação.
Porto: Joaquim Antunes Leitão & Irmão, 1880. Disponível em: http://www.
gutenberg.org/files/29550/29550-h/29550-h.htm. Acesso em: 15 mar. 2021.
CARVALHO, Maria Amália Vaz. Contos e fantasias. 2. ed. Lisboa: Parceria
António Maria Pereira, 1905. Disponível em: https://luso-livros.net/. Acesso
em: 5 mar. 2021.
CARVALHO, M. A. V. Mulheres e Crianças: notas sobre educação.4. ed.
Porto: Editora Educação Nacional, 1938
SILVA, Francisco Ribeiro da. História da alfabetização em Portugal:
fontes, métodos, resultados. In: ENCONTROS IBÉRICOS DE HISTÓRIA
DA EDUCAÇÃO, 1., 1992, [s.l.]. Actas [...]. [S.l.: s.n.], 1992. p. 101-121.
Disponível em: https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/15174.pdf. Acesso
em: 8 mar. 2021.
VASCONCELOS, Maria Celi Chaves. Ensinamentos e contos: Maria Amália
Vaz de Carvalho e sua estratégia para a educação da mulher. Diálogo
Educacional, Curitiba, v. 20, n. 67, p. 1513-1538, out./dez. 2020. Disponível
em: https://periodicos.pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/
view/27363. Acesso em: 5 mar. 2021.
sumário
217
Capítulo 11
11
O teatro japonês em diálogo com
a literatura portuguesa: Kirishitan
Nobunaga e o imaginário ocidental
José Carvalho Vanzelli
José Carvalho Vanzelli
O teatro japonês
em diálogo com
a literatura
portuguesa:
Kirishitan Nobunaga
e o imaginário ocidental
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.11
Resumo: Este texto apresenta considerações em torno da peça teatral japonesa
Kirishitan Nobunaga (1926), escrita pelo dramaturgo Osanai Kaoru (1881-1928),
que traz um português e um grupo de cristãos entre suas personagens. Para
além de observações gerais sobre a peça e as figuras que surgem em cena,
intento estabelecer diálogos entre esse texto dramático e algumas obras portuguesas, nominalmente o relato histórico Historia de Japam, do padre jesuíta Luís
Fróis (1532-1597), e Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto (1509-1583), dando
ênfase às retificações e ratificações das imagens em relação ao Japão – e algumas de suas figuras históricas – presentes no imaginário ocidental.
Palavras-chave: Literatura Japonesa; Literatura Portuguesa; Alteridade; Teatro.
sumário
219
O35 século XVI japonês foi marcado por inúmeras guerras entre
as províncias do país, o que fez o período entre 1467 e 1615 ficar conhecido como sengokujidai(era dos estados beligerantes, em tradução
livre).Foi durante esse período que os célebres samurais ganharam
proeminência,o que, somado às complexas tramas políticas que atravessaram a centúria e o desenvolvimento de vários elementos culturais
que hoje são vistos como “tradicionais”, faz do sengokujidai uma das
épocas mais recordadas em criações e adaptações literárias, teatrais,
fílmicas, em mangá e anime ou até mesmo videogames. Dessa forma,
sobejam referências a ele nas mais diferentes linguagens artísticas,
tanto no Japão quanto no exterior.
Aos falantes de língua portuguesa, no entanto, esse período da
história japonesa é especialmente interessante por razões distintas.
Foi justamente durante o sengokujidaique os portugueses aportaram
e se estabeleceram em territórios da ilha de Kyūshū, a oeste do arquipélago japonês, sendo os primeiros europeus a travar relações com
o(s) governante(s) do Japão. Esse contato, que durou pouco mais de
70 anos, mudou de modo indelével tanto os rumos das guerras no
Japão quanto a história de Portugal. Os lusitanos, ao se quedarem
no Japão, além de novas tecnologias que convieram significativamente ao período belicoso em que o Japão se encontrava, levaram uma
nova religião: o Cristianismo. Como Charles Boxer (1951) explana, os
portugueses conseguiram monopolizar a intermediação do comércio
do Japão com o exterior – não apenas com a Europa, mas também
com a China –, vinculando a presença do chamado kurofune– a nau
que anualmente trazia e levava bens e minérios do Japão – à missão
catequizadora controlada pela Companhia de Jesus e supervisionada
pela coroa lusitana. Assim, estabeleceu-se um vínculo umbilical entre
35
sumário
Partes deste trabalho foram apresentadasna comunicação O período sengoku, portugueses (cristãos) e japoneses (budistas) em Kirishitan Nobunaga, de OsanaiKaoru, no 5ºSimpósio Eletrônico Internacional de História Oriental (2021). O texto da comunicação, que
serve como complemento a este artigo, está disponível no e-book Mundos em movimento:
Extremo Oriente (2021).
220
comércio e religião, que obteve um relativo êxito durante a segunda
metade do século XVI.
O protagonismo exercido por Portugal na intermediação das relações do Japão com o restante do mundo faz com que a segunda
metade do Quinhentos seja o período recordado de modo quase exclusivo pelos escritores lusos que retratam o Japão. Não são poucos
os relatos de viagem e romances históricos que, desde fins do século
XIX até nossos dias, buscam recontar e rememorar nomes e fatos da
presença lusitana no arquipélago japonês dessa época.
Entretanto, não é apenas na arte portuguesa que o contato quinhentista entre Portugal e Japão é recriado. Textos japoneses também
oferecem interessantes visões sobre o encontro desses povos, possibilitando ricas comparações em torno das visões e representações
de ambos os lados. Neste trabalho, proponho tecer algumas considerações em torno de uma dessas obras: a peça Kirishitan Nobunaga (“Nobunaga cristão”, em tradução livre) (1926), de Osanai Kaoru36(1881-1928), conhecido como “o pai do shingeki” (KUMAGAI, 2015,
p. 40, tradução minha37). Essa peça em um ato reconstrói um encontro,
ocorrido no ano de 1569, entre o famoso líder militar Oda Nobunaga
(1534-1582), o padre jesuíta Luís Fróis (1532-1597) e o monge budista
Asayama Nichijō (?-1577) e tem como mote um debate sobre religião e
espiritualidade entre o monge e o padre, mediado pelo militar japonês.
Não deixa de se revelar, ainda, uma leitura histórica que o autor faz da
época e das personagens recriadas.
Osanai Kaoru, embora seja pouco conhecido no Brasil, é um
nome significativo para a literatura, o teatro e o cinema japonês do
primeiro quartel do século XX. Foi figura central na adaptação das artes dramáticas tradicionais japonesas aos moldes do teatro ocidental,
sumário
36
Os nomes japoneses seguem o sistema da língua japonesa, ou seja, vêm na ordem
sobrenome-nome.
37
“shingeki no chichi” (no original).
221
recebendo grande influência dos movimentos realista e naturalista
europeus. Assim, foi preponderante no estabelecimento do chamado
teatro moderno japonês, ou shingeki, que, grosso modo, diz respeito
à dramaturgia elaborada tendo a estética europeia como paradigma.
Osanai conviveu com importantes nomes das artes japonesas das eras Meiji (1868-1912) e Taishō (1912-1926), como Mori Ōgai
(1862-1922), Tanizaki Jun’ichirō (1886-1965) e Uchimura Kanzō (18611930). Esse último nome parece ser de especial significância para o
pensamento e a obra de Osanai, uma vez que foi por meio de Uchimura (KATO, 1983) que o dramaturgo se converteu ao Cristianismo, em
1900. Osanai logo abandonou a fé cristã e se tornou adepto da Sugamo-no-shiseiden (a partir de 1916) e, posteriormente, da Oomoto-kyō
(a partir de 1920) (Kumagai, 2016), duas das várias novas crenças que
surgiram no Japão ao longo das efervescentes eras Meiji e Taishō. Entretanto, o dramaturgo, em nenhum momento, deixou de ter a fé cristã
no horizonte de suas reflexões. Inclusive, segundo Kumagai (2016, p.
62), na década de 1920, a última que viveu, Osanai escreveu algumas
peças que têm “forte relação com o Cristianismo” (tradução minha38),
sendo Kirishitan Nobunaga uma delas.
Parece consenso entre os especialistas em sua obra que o convívio com Uchimura, declaradamente um pacifista que fez oposição
à Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) (Kato, 1983), ajudou a moldar
o pensamento de Osanai em torno das religiões e da espiritualidade,
que, conforme indica Kumagai (2015), é um dos pontos-chave para a
compreensão de sua obra. Aqui, no entanto, não pretendo desenvolver
esse tópico. Minha atenção estará centrada nos diálogos que a peça
supramencionada pode ter com alguns textos portugueses e com o
imaginário ocidental sobre o Japão quinhentista e suas figuras históricas de maior renome.
38
sumário
“kirisutokyōnikankei no fukaisakuhin [...]” (no original).
222
Antes, no entanto, é preciso ressaltar que o episódio levado aos
palcos por Osanai não se trata de um encontro fictício, mas um evento
registrado historicamente, entre outros lugares, na Historia de Japam, de
Luís Fróis (1981, p. 282-290). Portanto, o que o dramaturgo faz é colocar
como personagem a pessoa que não só vivenciou, mas também registrou o fato histórico. Não é possível afirmar que o texto de Fróis (1981)
tenha sido a fonte a que o escritor recorreu para montar sua peça39.
Entretanto, a existência do relato do sacerdote português acerca do encontro abre caminhos de estudos comparativos entre os textos.Ainda,
sendo os textos jesuítas fontes importantes para se entender a história
do Japão, uma vez que, para Boxer (1951, p. 50), esses religiosos eram
“agudos e inteligentes observadores da vida mundana que os rodeava”
e “os principais historiadores japoneses (Anesaki, Murakami, Koda, entre outros) avaliam muito bem a correspondência [das descrições dos
jesuítas com a dos japoneses]” (traduções minhas40), é válido averiguar
até que ponto a peça de Osanai e o relato do jesuíta dialogam.
A princípio, a forma como essa peça é escrita não chama a
atenção de um leitor formado em literatura ocidental. Afinal, como
peça de shingeki, ela possui todos os elementos do texto dramático
consolidados nas literaturas europeias e americanas. Desse modo,
encontram-se ali lista de personagens, descrição dos cenários, rubricas com indicações de gestos e movimentos dos atores, entre outros.
Diferencia-se, assim, dos elementos formais de algumas formas tradicionais de teatro japonês, como Nō ou Kabuki. No que tange às personagens, a peça traz apenas figuras históricas, como Oda Nobunaga;
sumário
39
O texto completo em português foi editado e publicado entre os anos de 1976 e 1984, em
cinco volumes. Uma tradução ao japonês data da mesma época, tendo sido publicada
em 12 volumes entre 1977 e 1980, graças aos esforços dos historiadores Matsuda Kiichi
e Kawasaki Momota. Ademais, partes do texto de Fróis obtidos na Biblioteca da Ajuda,
em Lisboa, foram traduzidas para o alemão e publicados em 1926, mesmo ano da peça.
Portanto, se Osanai teve algum contato com o texto do jesuíta, provavelmente foi por
intermédio da versão alemã.
40
“The missionaries were certainly keen and intelligent observers of the mundane life that went
on around them”; “the leading Japanese historians (Anesaki, Murakami, Koda, and others)
rate their correspondence very highly” (no original).
223
seu braço direito, Shibata Katsuie; Kinoshita Tōkichirō– que, posteriormente seria conhecido como Toyotomi Hideyoshi, o segundo dos
“três arquitetos da unificação política da nação” (BOXER, 1951, p. 56,
tradução minha41) –;o daimio42 protetor da missão cristã Wada Koremasa; Luís Fróis; e seu intérprete, o japonês cristão Lourenço Ryōsai. Na
impossibilidade de averiguar detidamente como o dramaturgo retrata
cada uma dessas figuras, me centrarei apenas nas de maior relevância para este trabalho. Começo por tecer algumas considerações em
torno da figura que dá título à peça.
Oda Nobunaga é uma das figuras históricas mais afamadas do
Japão. Tanto em seu país quanto no exterior, seu nome é conhecido
pelo fato de ter iniciado o processo de unificação política da nação. Sua
morte, em 1582, veio após a traição de um de seus daimio subordinados, Akechi Mitsuhide (1528-1582), colocando fim à intenção de Oda
de liderar todas as províncias japonesas. Seu projeto foi levado a cabo
por seu sucessor, Toyotomi Hideyoshi (1537-1598). Após a morte deste, a reivindicação da governança ficou dividida em dois grupos, um
liderado por Tokugawa Ieyasu (1543-1616) e outro por IshidaMitsunari
(1559-1600). A contenda foi definida após a famigerada batalha de Sekigahara, em 1600. O lado vencedor foi o liderado por Tokugawa, que,
não só implementou o xogunato, como logrou o estado de paz em 1615,
após os eventos conhecidos como Ōsaka no jin(Cercos de Osaka). Assim, Oda, Toyotomi e Tokugawa surgem como os três grandes nomes
da unificação e centralização do poder político no Japão quinhentista.
sumário
41
“three main architects of the political unification of the country” (no original).
42
Daimio (ou daimyō, na romanização oficial da língua japonesa) diz respeito ao antigo
nobre que governava determinado território. As terras de um daimy eram, normalmente,
cedidas pelo imperador – ou, em outros momentos, pelo xogum, a quem esses nobres
eram subordinados. Esse cargo também é comumente referido como “senhor de terras”
ou “senhor feudal” japonês.
224
A cultura popular japonesa dos séculos seguintes diferenciou
as atitudes e personalidades dessas figuras em três poemas senryū43.
Oda Nobunaga seria definido pelos versos: nakanunara, koroshiteshimae, hototogisu (“se o cuco não canta, mate-o”, tradução minha). Já
Toyotomi Hideyoshi seria representado da seguinte maneira: nakanunara, nakashitemiseyō, hototogisu (“se o cuco não canta, façamos
cantar”, tradução minha). Por fim, os versos que definiriam Tokugawa
Ieyasu são: nakanunara, nakumadematō, hototogisu (“se o cuco não
canta, esperemos até ele cantar”, tradução minha). Vê-se, assim, na
cultura popular três maneiras distintas como cada militar lidava com
adversidades, sendo Nobunaga caracterizado pela pouca paciência e
frieza. Os versos levam a pensar que Tokugawa seria o mais estratégico e diplomático dos três e, por isso, teria tido êxito em implementar
um xogunato de mais de dois séculos de duração. Entretanto, a visão
presente na peça de Osanai e em textos de língua portuguesa, como
veremos, ao mesmo tempo, confirmam e desmentem o que os três
senryū dão a entender.
Quando os portugueses se estabeleceram na costa oeste do
Japão, no fim da década de 1560, Nobunaga estava em plena campanha de ampliação de suas zonas de controle. A fim de utilizaras vantagens comerciais e bélicas que os novos visitantes traziam, adotou
atitudes de compreensão e benevolência perante os europeus. Assim,
concedeu permissões para a instalação da missão católica e a livre
circulação dos cristãos em seus domínios. Ainda, Nobunaga cerceou a
participação dos monges budistas em questões nacionais e, em 1571,
executou o conhecido “massacre do Monte Hiei”, em que eclipsou em
definitivo a influência política dos monges budistas. Criou-se, portanto,
aos olhos jesuítas, uma imagem de defensor dos europeus, um verdadeiro “amigo” da causa cristã. Tal visão se verifica no relato histórico de
Luís Fróis. Segundo Inês Vila (2013, p. 116),
43
sumário
Senryū corresponde a uma forma poética curta, de apenas 17 sílabas, próxima do conhecido haiku(ou haicai), porém os poemas senryū são de caráter mais cômico que este.
225
no início da narrativa, Nobunaga aparecia como um ser heróico,
o ‘Anjo’ que se condoía da má sorte dos padres, da sua condição de estrangeiros indefesos e maltratados pelos inimigos, intercedendo por eles naquilo que era necessário, protegendo-os
e defendendo-os, aumentando o seu crédito e a fama da sua
religião. Tratava sempre os jesuítas com ‘amor e affeição’, conversava com eles largas horas, familiarmente, sobre diversos
assuntos, colocando questões acerca da religião e do mundo
exterior, pelo qual parecia interessar-se largamente. Ouviu várias vezes falar de Deus e da lei cristã, mostrando-se curioso
por aprendê-la ao fazer comentários e procurar conhecê-la mais
detalhadamente, afirmando que se impressionava por aquela
religião tão recta e que concordava com vários dos seus aspectos. Comportava-se de modo informal, descontraído e até generoso perante Fróis e Lourenço, não aceitando, por exemplo,
o dinheiro que Vatadono44 lhe levara da parte do padre, rindo e
conversando alegremente nas visitas dos religiosos, não precisando de agir perante estes de forma hierárquica mas de modo
muito mais natural, oferecendo-lhes bons presentes, o chá e
as refeições pelas próprias mãos, elogiando continuamente o
seu espírito aventureiro e corajoso de viajantes, tratando-os, até,
como estimados amigos.
É fato que, como destaca Vila (2013, p. 135), ao longo do texto
de Fróis, Nobunaga passa a ser visto com outros olhos: “Denota-se,
subtilmente, um leve cansaço da sua arrogância e soberba, que acaba
por culminar na denúncia da sua loucura, acusando-o de ser o pior
dos hereges, o pior dos pecadores, qual anjo luciferino que tentou
ultrapassar o Todo-Poderoso”. No entanto, a imagem de Nobunaga
evidenciada pelo jesuíta em 1569, ano em que ocorreu o debate encenado na peça de Osanai, é a de um interessado amigo dos cristãos.
Talvez em decorrência dessa primeira impressão deixada pelo padre,
não é raro encontrar em textos lusitanos dos séculos seguintes essas
mesmas visões amistosas em torno de Oda.
44
sumário
Vatadono é o modo que Fróis grafa o nome de Wada Koremasa; “dono” corresponde a um
sufixo honorífico que era colocado após os nomes da época. Essa é a razão de surgirem
tantos nomes japoneses terminados dessa forma nos textos quinhentistas portugueses.
226
Em contraste a essa postura, aparecem Hideyoshi e os Tokugawa como os grandes antagonistas lusitanos, afinal foi Toyotomiquem
assinou o édito anticristão de 1587 e foi o ordenador do massacre dos
26 mártires cristãos em 1597, enquanto o xogunato Tokugawa diminuiu
a influência portuguesa, passando aos holandeses o monopólio do comércio com o exterior e expulsando a missão jesuíta do solo japonês.
Assim, em diversos relatos de viagem e ficções em língua portuguesa
sobre o Japão, esses dois últimos nomes surgem pintados com tintas
vilanescas e fortemente pejorativas. Logo, o que se observa muitas
vezes é uma caracterização pró-Cristianismo e antibudista de Oda e,
inversamente, anticristã e pró-budista de Toyotomi e Tokugawa.
Diferentemente de tal entender, os movimentos dessas três figuras perante as seitas não tinham motivações religiosas e, sim, meramente políticas e comerciais. Estudos históricos, como os de Boxer
(1951) e Elisonas (1991), demonstram que, na prática, os três adotavam estratégias políticas parecidas, afinal “nenhum dos ‘Três Heróis’
da reunificação do Japão [...] tolerou o tipo de instituição que era ‘domínio da Igreja’” (ELISONAS, 1991, p. 331, tradução minha45). Eles tinham “a sujeição das instituições religiosas ao controle hegemônico
central (como) uma parte importante do plano geral da reunificação”
(ELISONAS, 1991, p. 331, tradução minha46), fossem essas instituições
budistas ou católicas. Assim, a liberação e perseguição ao Cristianismo representavam mais a preservação de um plano político e econômico local do que uma opinião diretamente relacionada aos preceitos
pregados pelos padres.
Ademais, vale ressaltar que o espaço menor dado por Toyotomi e Tokugawa aos cristãos não significou uma perseguição concreta à
política catequizadora. Afinal, embora Toyotomi tenha baixado o édipo
sumário
45
“None of the ‘Three Heroes’ of Japan’s reunification […] had any tolerance for the type of
institution that the ‘Church domain’ was” (no original).
46
“the subjection of religious institutions to central hegemonic control was a major part of the
general agenda of reunification” (no original).
227
anticristão que expulsava os jesuítas em 1587, na prática, pouca coisa
mudou; os jesuítas permaneceram na ilha de Kyūshū e continuaram o
trabalho de catequização até a primeira década do século XVII (BOXER,
1951). Ainda, Tokugawa manteve o padre português João Rodrigues
Tçuzzu (1558? -1633) como intérprete, conselheiro e homem de confiança em assuntos estrangeiros até 1612, quando o substituiu pelo britânico William Adams (1564-1620) (BOXER, 1951), outra figura que surge
com frequência como um inimigo de Portugal nos textos deste país.
Na peça de Osanai, a figura de Nobunaga aparece de modo
diverso da imagem “amiga” dos cristãos. Embora sua figura não
ceda às investidas do monge budista Asayama Nichijō para suprimir
a presença cristã no Japão e, em caminho contrário, mostre-se muito
interessada em relação a tudo que vem dos estrangeiros, fica evidente para o espectador da peça que tal postura é mera estratégia para
atingir seus objetivos.
A primeira parte da peça mostra Nobunaga conduzindo com
mãos de ferro a construção de um castelo para Ashikaga Yoshiaki, o
então “xogum nominal”, que era um “títere” (BOXER, 1951, p. 58, tradução minha47) do militar. A crueza e impaciência com que Nobunaga
trata seus vassalos chama atenção. Nas primeiras falas da peça, são
comuns os termos hayaku (rápido) e isoide (apressem-se) (OSANAI,
1929, p. 251), mostrando um caráter irritadiço da personagem. Trata
seus subordinados com rudeza e exigência. As violências verbal e física também se mostram bastante presentes nas ações da personagem. Por outro lado, essa postura se torna mais calma, compreensiva,
quando, na segunda metade da obra, aparecem as três personagens
cristãs. Engana-se, entretanto, quem julga que a postura é por um interesse sincero para com a religião vinda da Europa. Durante um diálogo com o monge Nichijō sobre as razões pelas quais receberia os
cristãos para uma conversa, Nobunaga expressa claramente que sua
47
sumário
“nominal shogun”, “puppet” (no original).
228
permissividade em relação aos estrangeiros se deve exclusivamente ao
fato de enxergar neles uma fonte de recursos importante para seus fins
políticos. Quando questionado se acreditava sinceramente naqueles
termos que os jesuítas pregavam, como “Deus”, “Onipotente”, “infinito”, “Spirituale Essentia”, “Justíssimo”, “Sapientíssimo” (OSANAI, 1929,
p. 258, tradução minha), entre outros, Nobunaga diz: “Idiota! E quem
acredita nessas coisas? Para mim, apenas, os sermões cristãos não
ficam em coisas pequenas e sua grande escala me é agradável. Eu
duvido que até mesmo os monges cristãos acreditem realmente nessas
coisas” (OSANAI, 1929, p. 259, tradução minha48). O lado interessado
de Nobunaga pelo discurso cristão, então, mostra-se como uma simples diversão, sem surtir qualquer efeito em sua reflexão. Em outras palavras, é um mero entretenimento, cuja magnitude retórica ia ao encontro de sua personalidade, que, na peça, aponta para a megalomania.
Em momento posterior da peça, a personagem Nobunaga esclarece, sem meias palavras, sua visão de mundo:
Eu já te disse. Minha fé é o pequeno poema ‘shinouwaichijō’ [é
certo que morreremos]. [...] Quem construiu este mundo, quem
o irá destruir, não importa. Não importa se as pessoas têm pecados ou não. Só interessa enquanto a pessoa está viva. Não
há antes nem depois. O nascimento é o início e a morte é o fim.
Por isso, apenas faço o máximo que posso enquanto estou vivo.
[...] Sem passado ou porvir. Há apenas o ‘agora’ enquanto estou
vivo. Não me importa quando morra, não reclamarei (OSANAI,
1929, p. 259, tradução minha49).
sumário
48
“Baka. Dare ga shinzuru mono ka. Ore watadakirishitanno sekkyou ga, chiisaitokoronikosekoseshiteinai de, kibo no ookinatokoro ga yukaina no da – ore wadaiichi, kirishitan no bouzu
demo, hontonisonnakoto wo shinjiteru no ka doukautagatteiru no da” (no original).
49
“Tabitabiitta de wanai ka. Ore no shinkouwakouta no ‘shinouwaichijō’ da. [...] konotenchiwodaregatsuuroutodaregakowasoutokamattakoto de wanai. Ningennitsumiga arou totsumiganakaroutokamattakoto de wanai. Yousuruni, ningenwaikiteiruaidadake no koto da.
Mae monakereba, ato monai. Umareru no gahajimede, shinuru no gaowari da. Soushite,
umareta mono wakittoshinuru no da. Dakaraikiteiruaidanidekirudake no kotowosurukoto da
[...] maemonai. Ato monai. Aru no waikiteiru no ‘ima’dake da – ore waitsushindemokesshiteguchiwaiwan” (no original).
229
Portanto, o que se vê é a dissociação da personalidade de Nobunaga em relação a qualquer crença religiosa. Destaca-se uma visão
de mundo que preza pelo momento presente, focada em seus objetivos mundanos, sem qualquer ligação com origem ou consequência
das coisas. Dessa forma, entende-se como todas as coisas e pessoas
do mundo são vistas como joguetes para Nobunaga cumprir seus
planos, sendo irrelevante a proveniência – nacional ou estrangeira –,
bem como os intentos. Enquanto convier a seus objetivos individuais,
Nobunaga se relacionará mal ou bem com quem quer que seja. Entendem-se, assim, as atitudes ríspidas e cruéis em direção a seus subordinados, bem como a postura amistosa e supostamente interessada que
demonstra com os cristãos quando estes adentram o palco.
As características de Nobunaga, embora unas e coerentes,
aparecem ao espectador de modo cíclico. Inicia-se a peça com um
Nobunaga irritadiço e cruel. Passa-se ao Nobunaga astuto, que revela
seus planos a Nichijō. Em seguida, tem-se um Nobunaga amável aos
cristãos. No momento final da peça, após a saída dos três cristãos da
cena, a imagem inicial de Nobunaga retorna. Ao encontrar um trabalhador descansando, transcorre-se o seguinte trecho:
Nobunaga (ao trabalhador): Por que você descansa?
Trabalhador: Desde manhã, esta é a 46ª vez [que carrego as
pedras]. Já não consigo mais ficar em pé.
Nobunaga: Idiota! (de repente, mata-o)
(Os outros trabalhadores correm de um lado para outro temerosos. Neste meio, outro trabalhador cai, sem conseguir se levantar. Nobunaga, sem nada dizer, mata-o também) (OSANAI,
1929, p. 270, tradução minha50).
50
sumário
“Nobunaga: (sono ninpuni) nazeyasumu no da. / Ninpu: asa karakore de yonjuuroppen me
desu. Moutotemotatemasen. / Nobunaga: Baka. (ikinarikittesuteru) / (hoka no ninputachi,
osoretekakeruyouniittarikitarisuru. Sono uchini, mata taoretetatenai no gahitoridekiru. Nobunaga, mono womoiwazuni, sore wokittesuteru)” (no original).
230
As risadas de Nobunaga após os assassínios que provoca
(OSANAI, 1929) mostram o retorno de sua característica cruel e utilitarista da primeira metade da peça, reforçando ao público espectador/
leitor que sua postura perante os cristãos foi meramente política. Dessa forma, pode-se dizer que, num âmbito geral, a caracterização da
personagem feita pelo dramaturgo da era Taishō referenda o poema
senryū sobre Oda que se popularizou e se aparta do que é visto, em
um primeiro momento, no texto de Fróis.
Vale ressaltar que Osanai Kaoru destaca o contraste da postura
de Nobunaga com a de Toyotomi Hideyoshi, que na peça surge como
um subordinado de Oda e com o nome Kinoshita Tōkichirō. Este aparece em uma breve cena. Sua entrada é descrita da seguinte forma:
(Tōkichirō aparece vestido de forma displicente)
Nobunaga: Ei, Ei. Tōkichirō
Tōkichirō: (Vira-se para Nobunaga, fingindo ter se assustado)
Nobunaga: Que aparência é essa? Não vai ajudar? Katsuie está
até mesmo empurrando os carros.
Tōkichirō: Eu não faço trabalhos braçais. Shibata é um homem
sem outras capacidades, então, para ele, não há o que fazer
(OSANAI, 1929, p. 253, tradução minha51).
A cena prossegue com Tōkichirō colaborando para as obras do
castelo, entregando um grande montante de ouro, o que muito agrada
Nobunaga. A falta de decoro de Tōkichirō é perdoada por Oda perante a ajuda financeira, o que reforça o lado prático do militar. Adiante, quando os dois falam em conseguir mais ouro dos subordinados
de Tōkichirō, este diz que irá “calmamente” (OSANAI, 1929, p. 254,
51
sumário
“(KinoshitaTōkichirō, yuuchouna sou woshite, detekuru) / Nobunaga: oi, oi. Tōkichirō. / Tōkichirō: (wazatoodoroitayouni Nobunaga no kaowomiru) / Nobunaga: Nan da, sono nariwa.
Tetsudawan no ka. Shibata nado wakuruma no atooshimadeshiteiru zo. / Tōkichirō: Washiwachikarawazawadamedesu. Shibata wahokaninou no naiotokodesukarashikatagaarimasen” (no original).
231
tradução minha52). Então, Nobunaga exclama: “Calmamente, não. Vá
depressa” (OSANAI, 1929, p. 254, tradução minha53). A essa ordem,
Tōkichirō responde: “Estas não são coisas que devem ser apressadas.
(intencionalmente sai caminhando vagarosamente)” (OSANAI, 1929, p.
254, tradução minha54).
A resposta e o gesto irônico e provocativo de Tōkichirō mostram-no como uma pessoa tática e paciente. Nesse sentido, a personalidade dessa personagem parece se aproximar mais do poema senryū
de Tokugawa do que daquela que lhe foi atribuída. Para o leitor/espectador pouco familiarizado com a história japonesa, que desconhece o
fato de Tōkichirō ser Hideyoshi, o contraponto a essa personagem é
Shibata Katsuie, o outro vassalo de Nobunaga, que, diferentemente do
afrontoso Kinoshita, surge obediente, realizando trabalhos pesados,
como transporte de pedras que busca de um templo próximo (OSANAI,
1929). Entretanto, para aquele que conhece o fato de Tōkichirō, anos
mais tarde, ter se tornado o sucessor de Nobunaga no processo de
centralização de poder, mostra-se uma figura fria e observadora, que
parece saber esperar pelo momento certo para ascender ao poder.
Dessa forma, parece-me válido pensar que o trecho em que Tōkichirō
aparece na peça serve como ponto de diferenciação do modo como
o dramaturgo via essas duas figuras centrais da história japonesa quinhentista, ou melhor, apresenta aspectos da interpretação pessoal do
artista sobre a história de seu país.
Também chamam atenção as personagens negras na peça. No
imaginário ocidental, se cristalizou uma relação positiva de Nobunaga
com a figura de Yasuke, homem de origem africana que teria sido o
primeiro negro visto pelo militar japonês e, em pouco tempo, ganhado
52
“Buraburamairimashou” (no original).
53
“Burabura nado toiwazuni, hayakuittekitekure” (no original).
54 “kouiukotowa sou seikyuuniikukoto de waarimasen (wazatoyukkuriyukkurideteiku)”
(no original).
sumário
232
a confiança de Nobunaga, ascendido ao posto de samurai e estado
ao lado deste em seus últimos momentos. Essa figura recentemente
recuperou certa popularidade, sendo retratada em textos de diversas linguagens, desde obras literárias, como o romance infantojuvenil japonês
Kurosuke (1968), de Kurusu Yoshio (1916-2001), e a trilogia portuguesa
de romances históricos – O samurai negro (2016), Xogum, o senhor do
Japão (2018) e A dama do quimono branco (2019) – escrita pelo historiador João Paulo Oliveira e Costa, até mangás, Graphic novels, animações
e videogames, sem mencionar o projeto de um longa-metragem que
seria estrelado pelo ator Chadwick Boseman (1976-2020).
Na obra de Osanai, no entanto, a presença de personagens negras mostra uma relação diferente, em que Yasuke– que não é mencionado na peça – não seria um dos poucos negros a circular no Japão
da época, sendo estes, portanto, figuras humanas menos raras do que
se cristalizou no imaginário. Na peça, os negros atuam apenas como
coadjuvantes mudos. São escravos ofertados a Nobunaga por jesuítas
em momentos anteriores ao enredo encenado e, no palco, surgem meramente como composição do cenário, interagindo pontualmente com
as outras personagens. A mudez e as ações, que se resumem a tarefas
que demandam força física, fazem com que os negros na peça não
tenham uma representação distinta de tantas outras obras ocidentais
e orientais da época – e mesmo posteriores –em que são tratados de
forma objetificada, rebaixada e primitiva.
Na peça de Osanai, há certo momento em que Nobunaga, após
passar algumas ordens aos escravos, diz ao monge Nichijō: “Que tal,
Nichijō? Você sempre maldiz, mas mesmo estes negros são muito
úteis, não são?” (OSANAI, 1929, p. 256, tradução minha55). Tal fala
mostra um Nobunaga que vê os negros como objetos, sendo meramente úteis, semelhantemente ao modo como eram tratados pelos
55
sumário
“Douda, Nichijo. Omaewashijuuwarukuiuga, ano kuronboudemo, nakanakayakunitatsun de
wanai ka” (no original).
233
jesuítas. Assim, é possível conjeturar que a própria relação com o africano Yasuke, para o Nobunaga de Osanai, seria meramente utilitarista,
e não um laço afetivo, como comumente se vê no imaginário ocidental.
Ainda, mesmo que houvesse uma relação amistosa com Yasuke, ela
representaria a exceção, e não a regra. Dessa forma, a peça, mais uma
vez, acaba por indiretamente relativizar a visão de Nobunaga como
amigável ao que é externo do Japão. De fato, como disse anteriormente, são vários os momentos em que o dramaturgo ressalta que, para
Nobunaga, importa apenas a utilidade das coisas e das pessoas, não
sua origem (OSANAI, 1929, p. 252). Assim, ao mesmo tempo em que
reforça a característica prática com que cobre sua personagem, o dramaturgo relativiza aspectos do encontro entre ocidentais e japoneses
popularizados no imaginário daqueles.
O maldizer (warukuiu, no original) destacado na fala supramencionada leva à principal característica do monge budista Nichijō. A todo
momento, sua figura surge com dizeres contrários a tudo e a todos
que vêm de fora, especialmente os padres cristãos. Em resposta à
pergunta de Nobunaga sobre a utilidade dos escravos negros, diz o
budista: “Por mais que o senhor os elogie, eu os odeio. Eu odeio os
cristãos. São grandes impostores, ou então, traidores que espiam o
Japão” (OSANAI, 1929, p. 257, tradução minha56). Adiante, prossegue:
“[...] Eu odeio. Eu odeio os estrangeiros. O Japão tem sua religião. Crer
em uma religião estrangeira, é perder para o exterior” (OSANAI, 1929,
p. 257-258, tradução minha57). Dessa forma, o monge é pintado com
tintas nacionalistas e xenófobas, buscando a todo momento convencer
Nobunaga, sem sucesso, a proibir a missão jesuíta e a fechar o Japão
a tudo que vem do exterior. Essa caracterização de Nichijō encontra
sumário
56
“Ikurawohomeninattemo, watashiwakiraidesu. [...] watashiwakirishitantoiu mono gakiraina no
desu. Are waōyamashidesu. Samonakereba, nihonwoukagaukokuzokudesu” (no original).
57
“[...] watashiwakiraina no desu. Ikokujintoiu mono gakiraina no desu. Nihon niwanihon no
shuukyougaarimasu. Ikoku no shuukyouwoshinzurukotowaikokunimakerukotodesu” (no
original).
234
respaldo nas descrições que Fróis deixou. O padre jesuíta descreve o
budista da seguinte forma em seu relato:
Havia neste tempo hum bonzo no Goquinai, homem de baxa
sorte e escuro sangue, pequeno de estatura e mui desprazível
filosomia, idiota sem letras nem inteligência em as mesmas seitas de Japão, da maior sagacidade e vivo engenho que então o
demônio podia achar para conspirar nelleseo veneno, mui solto
e livre no falar, hum Demostenes na eloquencia de Japão [...] se
fez soldado cometendo muitos insultos e morte(s) criminosas,
e pelo temor e receio de taes delitos determinou mudar o habito mas não os costumes: vestio-se em pelle de ovelha e feito
bonzo, andou peregrinando de reino em reyno. [...] como era
membro do demônio e capital inimigo da ley de Deos, tinha hido
a Nobunaga e lhe pedio com muita instancia que antes de S. A.
se partir mandasse deitar o Padre fora do Miaco e desterrá-lo
daqueles reinos, porque aonde estavão estes Padres tudo se
revolvia e destruia[...] (FRÓIS, 1981, p. 278-282).
Outras características da descrição de Nichijō feita pelo padre
cristão aparecem também na obra de Osanai. O caráter “idiota sem letras nem inteligência” é evidenciado nas constantes exclamações que
Nobunaga faz ao monge, uma vez que este era incapaz de enxergar os
objetivos em longo prazo do militar por trás do convívio pacífico com
os ocidentais. Assim sendo, termos como baka (tolo, bobo, idiota),
chiisairyōken (ideias pequenas, em tradução literal) eatama no warui
(burro, estúpido) (OSANAI, 1929, p. 258-259) reforçam tipificações que
vão ao encontro do ponto de vista deixado pelo jesuíta. Entretanto, outras características do monge, como a eloquência e a sagacidade, não
parecem transparecer na obra teatral. Afinal, falta a ele a capacidade
de argumentação para a sustentação do debate central da peça.
Vale destacar mais um interessante cotejo entre o relato de
Fróis e o trabalho de Osanai. Há, na descrição jesuíta da contenda
com Nichijō, uma passagem em que são detalhados os argumentos
dados pelo padre sobre a existência da alma. Em determinado momento, é dito pelo português:
sumário
235
E a prova que ao prezente disto vos podia dar era necessário
ser fundada nos termos e proposições das nossas sciencias a
que chamamos logica e filozofia, porém como as vós ignorais,
usaremos como de remédio para o entenderdes de alguma
comparação que não vá muito alongada desta sensibilidade a
que mostrais estar tão apegado (FRÓIS, 1981, p. 288).
A denúncia da ignorância “das nossas sciencias a que chamamos logica e filosofia” creditada a Fróis por si mesmo passa, na peça,
a Nobunaga. Momentos antes da entrada dos cristãos no palco, diz o
militar ao monge budista:
Aprender as ciências estrangeiras é agora a tarefa mais urgente.
Penso até mesmo em construir uma escola com professores
estrangeiros. Retórica, filosofia, lógica, filosofia – são coisas que
você não entende, mas são todas ciências úteis (OSANAI, 1929,
p. 260, tradução minha58).
Ao transferir uma observação que supostamente seria de Fróis
para Nobunaga, Osanai consegue, a um tempo, se apartar do texto do
padre português sem deixar de corroborar outra imagem ali presente.
Afinal, reforça tanto o traço limitado do raciocínio de Nichijō, ausente
na descrição jesuíta, quanto enfatiza a característica estrategista com
que pinta Nobunaga.
Tanto na peça quanto no relato do padre, a impossibilidade de
competir com a retórica jesuíta faz Nichijō se “inflama(r) em fúria, tendo
o rosto abrasado e os olhos encarniçados” (Fróis, 1981, p. 289). Destaca-se, assim, a índole violenta do monge, que tenta assassinar o jesuíta
e WadaKoremasa, o daimio benfeitor dos cristãos. Na Historia de Japam
(FRÓIS, 1981), a agressividade de Nichijō pode não chamar atenção,
afinal é dito que, antes de ser monge, ele teria sido soldado. No entanto,
é interessante notar que, nos relatos portugueses sobre o Japão quinhentista, não é exclusividade de Asayama essa característica.
58
sumário
“ikokujinnisesshitaikokugakumonwomanabukotowa, genzai nani yori no kyuumu da. Ore
waikokujinwokyoushitosurugakumonjowotatetaitosaeomotteirugurai da. Retorika, hirosohiya, rojika, teyorojiya – omaeniwanan no koto ka wakarumaiga, minnayakunitatsugakumon
da” (no original).
236
Em Peregrinação, obra de Fernão Mendes Pinto (1509-1583)
publicada postumamente em 1614, também há relatos e menções a
“práticas [...] que o padre tivera com eles [budistas][e] os confundira e
envergonhara a todos, com razões a que não souberam dar resposta”
(PINTO, 2005, p. 711). Entre os capítulos CCXI e CCXIII da obra, o narrador de Mendes Pinto destaca três debates ocorridos em um espaço
de dois dias entre o padre Francisco Xavier e o monge budista Fucarandono, provavelmente no ano de 1551. No texto, de fato, o bonzo é
traçado com tintas tão pejorativas quanto Fróis. Assim, Fucarandonoe
os monges budistas surgem com seu “modo de tirania” (PINTO, 2005,
p. 718), “modo de escárnio” (PINTO, 2005, p. 712), “muito confiado
e com aspecto soberbo” (PINTO, 2005, p. 713) ou, ainda, como pessoas de “natural ufania e presunção” (PINTO, 2005, p. 719). Em contrapartida, a figura do padre jesuíta é de “muita severidade e brandura”
(PINTO, 2005, p. 713), “manso” (PINTO, 2005, p. 717) e de “razões tão
claras e tão vivas” (PINTO, 2005, p. 713).
Tal como os retratos de Nichijō, os monges de Mendes Pinto,
incapazes de vencer os europeus nos embates retóricos, apelam à
força de seus superiores, no caso, o daimio Bungo (atual Ōita), que
na Peregrinação é chamado “El-rei”. Assim, esse daimio aparece,
em Mendes Pinto, com o mesmo papel que Oda Nobunaga tem no
embate retratado por Osanai e, assim como o unificador japonês, o
senhor das terras de Bungo também não cede às súplicas dos budistas (PINTO, 2005, p. 717-718).
Para além dos pedidos de expulsão dos cristãos, se percebe
no texto de Mendes Pinto o uso da violência como característica por
parte dos budistas; afinal, incapazes de competir com os cristãos em
palavras, segundo o narrador, havia um plano para matar Francisco
Xavier, que fora frustrado:
[...] mas valeu-nos termos sempre El-Rei de nossa parte, o
qual, depois de Deus, foi causa de os bonzos não ousarem se
sumário
237
determinar no que entre si traziam combinado, que era, segundo depois soubemos, ordenarem um ruído fictício em que matassem o padre e a nós todos com ele (PINTO, 2005, p. 711).
De fato, nem mesmo entre os próprios monges a violência era
diminuída, uma vez que o narrador de Mendes Pinto fala que os bonzos “três ou quatro vezes houveram de vir às bofetadas perante El-Rei”
por “se desconcertar entre si” (PINTO, 2005, p. 722) e não conseguirem acordar reciprocamente.
As investidas “emperrad[as] na sua brutalidade” (PINTO, 2005,
p. 713) dos budistas sempre acabam, como na peça de Osanai e no
relato de Fróis, com o apaziguamento por parte dos nobres japoneses,
que não deixam acontecer nenhum ato de violência contra os portugueses. Inversamente, são os budistas que sofrem fisicamente por terem essa índole belicosa. O primeiro debate entre Francisco Xavier e
Fucarandono é encerrado da seguinte maneira:
- Se tu vens para pelejar, vai-te ao reino de Omanguché [Yamaguchi], que está agora em guerra, e lá acharás com quem
quebres a cabeça, porque nós, Deus seja louvado, estamos
cátodos em paz; porém, se vens para argumentar ou sustentar
ou negar, seja por palavras mansas e quietas como vês que faz
esse bonzo estrangeiro, que te não responde a mais que àquilo
para que tu lhe dás licença, e se assim o fizeres, ouvir-te-á sua
alteza, e se não, jantará, porque se vão já fazendo horas.
A isso que disse um daqueles senhores que ali estavam, respondeu o bonzo com palavras tão mal concertadas que El-Rei,
de afrontado, o mandou levantar e lançar pela porta fora, jurando-lhe que se não fora bonzo, lhe houvera de mandar cortar a
cabeça (PINTO, 2005, p. 714).
Dessa forma, percebe-se como a peça japonesa dialoga diretamente não só com as impressões deixadas por Fróis, mas também
com outros textos da literatura lusitana. Obviamente, a imagem dos
budistas nesses textos quinhentistas portugueses não é isenta. Afinal,
Fróis era um missionário jesuíta e Mendes Pinto, como nos recorda
sumário
238
Boxer (1951), foi um integrante da Companhia de Jesus entre 1554 e
1556. Logo, mesmo que já não fizesse mais parte dos jesuítas quando
redigiu sua obra, o autor tinha um posicionamento evangelizador muito
claro59, o que leva a entender a imagem dos bonzos como “ministros
que eram do Diabo” (PINTO, 2005, p. 711) nos dois textos. Seja como
for, não deixa de ser interessante notar como essa imagem presente
nesses textos do século XVI contrasta com a dos adeptos da “seita de
Xaca” (Fróis, 1981, p. 280) que vemos em textos dos séculos XIX, XX e,
também, XXI. Afinal, desde a “febre” budista oitocentista, na qual parte
da intelligentsia europeia usou a filosofia búdica para se repensar social
e culturalmente60, o Budismo, seus sacerdotes e seguidores foram vinculados a características como sabedoria, paciência, calma e placidez,
tipificações exatamente opostas a que vemos no monge de Osanai e
nos textos de Fróis e Mendes Pinto. Os lugares-comuns em torno dos
budistas presentes na Europa após o século XIX, na peça de 1926, surgem nos cristãos, que podem ser vistos como os antípodas de Nichijō.
Luís Fróis, como personagem, surge em cena já na segunda
metade da peça e sua característica dialoga com o que se vê de Francisco Xavier em Peregrinação.Fróis entra acompanhado de outras duas
personagens: Lourenço Ryōsai, seu intérprete, e Wada Koremasa.
Chama atenção que, desde a aparição no palco até sua primeira fala,
se transcorre um significativo intervalo em que as outras personagens
continuam seus debates. Assim, Fróis permanece mudo, interagindo
apenas com pequenos gestos. Tal fato indica uma caracterização marcada pela quietude, calma e serenidade.
sumário
59
Segundo Boxer (1951), que diz recorrer à correspondência do próprio padre Francisco
Xavier, Mendes Pinto, no ano de 1551, o mesmo dos debates com Fucarandono, emprestou 300 cruzados ao “santo padre” (PINTO, 2005, p. 720) para a construção de uma
igreja em Yamaguchi. Assim, fica claro que, mesmo fora da ordem, Mendes Pinto estava
diretamente ligado à missão jesuíta durante suas passagens pelo Japão.
60
Para estudos sobre a importância do Budismo na intelectualidade europeia e, principalmente, portuguesa, cf. BORGES; BRAGA, 2007.
239
As rubricas deixadas pelo dramaturgo evidenciam que silêncio
e discrição são caracterizações pensadas para suas personagens
cristãs. A entrada dessas personagens vem com a seguinte indicação do dramaturgo: “Finalmente, Wada Koremasa, Lourenço Ryōsai
e Luís Fróis entram silenciosamente” (OSANAI, 1929, p. 263, tradução
minha61). Em seguida, outra rubrica indica: “Fróis, retira seu chapéu e
cumprimenta [Nobunaga]” (OSANAI, 1929, p. 263, tradução minha62).
Reforça-se, assim, o caráter plácido do padre, que recebe a permissão
do militar para não se prender a tais formalidades. Mesmo quando o
jesuíta interage durante o debate com o monge budista, são comuns
as indicações dramatúrgicas com a expressão shizukani (quietamente,
calmamente, pacificamente) (OSANAI, 1929, p. 266). É fato que a maior
parte do debate com Nichijō é conduzida pelo intérprete Lourenço Ryōsai. Entretanto, a quietude de Fróis não se deve a limitações linguísticas, uma vez que o japonês convertido também é caracterizado pela
“modéstia e quietação” (Fróis, 1981, p. 290), características presentes
em Lourenço também no relato do padre quinhentista. Desse modo,
na peça japonesa, há uma clara associação dos cristãos a características de sabedoria e quietude, enquanto a personagem budista possui
uma visão limitada, intolerante e violenta. Não deixa de ser interessante
pensar como, nas artes ocidentais, cristãos e budistas por vezes aparecem em tipificações inversas.
É importante ressaltar que não penso, no entanto, que as cores
com que o dramaturgo pinta suas personagens indiquem uma valoração qualitativa para cada crença religiosa. Em outras palavras, não
creio que Osanai esteja querendo dizer que o Cristianismo seria uma
religião mais meritória que o Budismo ou que seus seguidores seriam
mais sábios. Tal visão não me parece plausível ao pensar que o dramaturgo se converteu, mas depois abandonou a fé cristã, passando
sumário
61
“Yagate, WadaKoremasa, RorensoRyōsai, RuisuFuroisu no sanninga, shizukanihaittekuru”
(no original).
62
“Furoisu, boushi wo totte, aisatsusuru” (no original).
240
a seguir outras religiões. Osanai Kaoru foi um artista que buscou em
outras culturas e pensamentos formas de ressignificar sua arte e sua
vida. Assim sendo, o destaque almejado pelo artista pode ser justamente o diálogo, e não um dos lados da discussão. O próprio fato de
se interessar por formas novas de espiritualidade, em vez de seguir
aquelas que vinham de séculos, parece apontar para uma valorização
do hibridismo e do diálogo intercultural – fato central em Kirishitan Nobunaga – por parte do dramaturgo.
Assim, Kirishitan Nobunaga é uma peça que merece ser observada de modo detido sob vários prismas. Se examinada de modo restrito
aos estudos japoneses, a peça ajuda a ler a história, a religiosidade
e a sociedade em uma época de grandes transformações no Japão.
Entretanto, a obra pode ser vista sob um olhar comparatista e, nesse
sentido, destaca-se um interessante diálogo que se pode estabelecer
com obras históricas e literárias de Portugal. Dessa forma, a peça não
só permite entender o Japão, mas também faz pensar sobre Portugal
e o imaginário ocidental de ontem e de hoje. Ainda, o texto de Osanai
Kaoru serve como outro ponto de vista da relação Portugal-Japão, que,
aos falantes de língua portuguesa, chega de modo quase exclusivo por
meio de relatos no vernáculo.
Não contando ainda essa peça com uma tradução ao português
e, até onde sei, a nenhum idioma germânico ocidental ou românico,
espero que as considerações aqui expostas contribuam para os estudos das relações artísticas entre Ocidente e Oriente, bem como para a
reflexão em torno do jogo de espelhos da alteridade, cujas representações são mútuas e complementares.
REFERÊNCIAS
BORGES, Paulo; BRAGA, Duarte (Org.). O Buda e o Budismo no Ocidente
e na cultura portuguesa. Lisboa: Ésquilo, 2007.
sumário
241
BOXER, Charles R. The Christian century in Japan. Berkeley; Los Angeles:
Universityof California Press, 1951.
ELISONAS, Jurgis. “Christianity and the daimyo”. In: THE CAMBRIDGE history
of Japan. New York: Cambridge University Press, 1991. v. 4. p. 301-372.
FRÓIS, Luís. Historia de Japam. Lisboa: Biblioteca Nacional, 1981. v. 2.
KATO, Shuichi. A history of Japanese Literature. Londres: The Macmillan
Press, 1983. v. 3.
KUMAGAI, Tomoko. “OsanaiKaoru no shūkyōshinkōto sono jidai (A fé religiosa
de Osanai Kaoru e seu tempo)”. Bungaku-bubungakukenkyūkagakujutsuk
enkyūronshū, n. 5, p. 39-48, 2015.
KUMAGAI, Tomoko. “OsanaiKaoru ‘Daiichi no sekai’ ron
shūkyōshinkōtoreishugiwomegutte (“Daiichi no sekai” de OsanaiKaoru:
considerações em torno da fé religiosa e do espiritualismo)”.
EngekigakuronshuNihon engekigakkaikiyō, n. 62, p. 51-66, 2016.
OSANAI, Kaoru. Kirishitan Nobunaga. In: OSANAI Kaoruzenshū. Tóquio:
Shunyodo, 1929. v. 3.p. 250-271.
PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
VILA, Inês Maria Lorga Ramos. Representação de Oda Nobunaga
enquanto personagem literário na Historia de Japam de Luís Fróis. 2013.
142 p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2013.
sumário
242
12
Capítulo 12
Família, voz feminina e ecos da primeira
metade do século XX português em
Casa sem pão, de Maria Archer
Eliane Cristina Perry
Eliane Cristina Perry
Família, voz feminina
e ecos da primeira metade
do século XX português
em Casa sem pão,
de Maria Archer
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.12
Às vezes, para enxergarmos mais longe,
temos de olhar por cima dos muros
que nos cercam.
(GLEISER, 2010, p. 13)
Resumo: Este artigo aborda os desafios da primeira metade do século XX
em Portugal, a partir do estudo de alguns aspectos e temáticas do romance
Casa sem pão, da escritora Maria Archer (1899-1982). São evidenciados e desdobrados os dramas cotidianos e comezinhos da personagem protagonista
Adriana, em estreita correlação com o quadro sócio-histórico-cultural e político
em que a narrativa se ambienta e com a deterioração das relações familiares,
além do papel subalterno destinado às mulheres nesse período.
Palavras-chave: Casa sem pão.; Maria Archer.; Portugal; Mulheres.
sumário
244
INTRODUÇÃO
Prestes a trafegar pelas linhas narrativas de Casa sem pão, da
escritora portuguesa Maria Archer (1899-1982), evocamos a expressão
“ler a vida”– título de um artigo do escritor italiano Primo Levi (19191987) – como uma linha norteadora.
Ler a vida de portugueses e portuguesas da primeira metade
do século XX, eis aquilo a que se propôs a escritora ao retratar o
cotidiano de uma típica família burguesa em decadência, em meio às
intricadas relações entre a conjuntura circundante externa com o esgarçamento da trama familiar e o (não) papel atribuído às mulheres.
Assim, ficção e história contemporânea compõem um quadro bastante depreciativo que desemboca no caos, o que poderia explicar a
forte repressão a esse livro.
Escrito em Lisboa, entre os meses de janeiro e julho de 1946,
editado pela Empresa Contemporânea de Edições e publicado em
1947, foi censurado e teve seus exemplares apreendidos63 pela Polícia
Internacional e de Defesa do Estado (PIDE).64 No despacho de 11 de
fevereiro de 194765, o capitão Rodrigues de Carvalho informa:
A divulgação deste livro, salvo melhor e mais autorizada opinião, parece ser de grave inconveniente [...] sob o ponto de
vista da moral social. [...] Há no texto expressões que pouco
dignificam a autora, na sua qualidade de senhora, pela forma
cruamente realista como as refere e pelos motivos como os
apresenta. [...] baixa literatura.
Posteriormente, em 1969, a obra foi liberada para reedição. Todavia, é de se mencionar que o texto sofreu alguns cortes e, entre as
63
sumário
Conforme o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1.176 exemplares foram apreendidos.
Para mais detalhamentos, consultar: https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4330354.
64
Criada em 1945, com o intuito de reprimir quaisquer forças contrárias ao regime salazarista.
65
Para mais informações, consultar: https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4330354.
245
idas e vindas com a censura, em 20 de junho de 1953, a PIDE invadiu
a casa da escritora em Lisboa, apreendendo alguns de seus manuscritos, inclusive anotações que se tornariam um livro-relato, Últimos
dias do fascismo português, que estava em vias de conclusão. Com a
palavra, Maria Archer (1956, p. 5-6):
Nenhum escritor português procura, hoje, produzir a obra de
ressonância universal, mas apenas humilhada e dolorosamente, salvar o livro da apreensão. É a censura, órgão oficial de
Salazar, que coloca a literatura portuguesa em forçada inferioridade perante a literatura mundial, e retira aos seus operários a
possibilidade de erguer o nome de Portugal nesse plano [mais
alto] em que uma nacionalidade […] se afirma no espaço e no
tempo. Aqueles que produzem arte e literatura dirigidas não são
artistas e escritores, são artífices, são redatores. As suas obras
podem ser de utilidade para qualquer facção política mas não
valem como Arte Literária.
Essa fala simboliza a Literatura Portuguesa inferiorizada por ter
de se submeter a uma pretensa “moral”, em conformidade com os
ditames do regime salazarista. Assim sendo, os escritores deveriam
ser meros relatores do período. Para os literatos que não se deixaram
subjugar e insistiram em uma escrita de proposta, coube-lhes criar estratégias que evitassem ou driblassem possíveis pareceres contrários
e confisco das obras. Diante disso, muitos se tornaram grandes buriladores e manejadores da palavra, com o intuito de não possibilitar que
suas vozes dissonantes fossem cerceadas.
UM ESBOÇO DA PRIMEIRA METADE DO
SÉCULO XX PORTUGUÊS (1900-1946)
Cuidamos de analisar a história contemporânea portuguesa em
consonância com o quadro sociopolítico descrito no romance. Portugal adentrava o século XX, provindo de uma conjuntura bastante
sumário
246
turbulenta: a transferência da família real ao Brasil, em 1808, a invasão francesa e as intermináveis querelas entre liberais e absolutistas.
Nesse cenário, alguns pró-monarquistas começaram a compartir do
pensamento liberal republicano.
Os republicanos conquistaram o poder em 1910 e instalou-se a
1ª República portuguesa, também chamada democracia frágil. O uso
do vocábulo “frágil” justifica-se uma vez que a ideia do pensamento republicano era complexa e não foi devidamente compreendida pela população que almejava essa República. As massas que forneciam sustentação às mudanças estruturais não assimilaram o desenho de uma
República tal qual os intelectuais. Por conseguinte, em pouco tempo,
houve uma decepção popular, o governo enfraqueceu e, desse modo,
foram desenvolvidas condições propícias para o golpe de António de
Oliveira Salazar (1889-1970) e a instauração do Estado Novo.
Salazar fazia uso do discurso para cooptar o povo e criou uma
espécie de mitogênese do regime, que passava pela ideia de moral,
lazer e religião. Era preciso construir a subjetividade, aqui entendida
como um “conjunto de valores, ideais e percepções” (TRINDADE,
2008, p. 254). Nessa subjetividade, a literatura operava e, a partir dela,
se lidava mimeticamente com a realidade. Transformar o real era uma
“tarefa dos escritores” (TRINDADE, 2008, p. 258) e, portanto, deveria
haver um imbricamento entre literatura e nação. De acordo com Rui
Ramos (2009, p. 652-653), em História de Portugal,
é muito difícil viver em Portugal ou noutro país nas circunstâncias presentes, sem ter de ceder de alguma maneira, aqui ou
ali. Se se vai para os colégios, tem de se fazer uma papeleta
declarando que se está integrado, etc. No jornalismo, há o contacto directo ou indirecto com a Censura, instáveis hipocrisias
e concessões.
sumário
247
A OBRA CASA SEM PÃO
A arquitetura textual é organizada em quatro partes ou painéis,
sendo que os três primeiros abrangem acontecimentos ambientados
em Pedroiços, percorrendo o arco temporal de 1900 até 1918, ano de
término da Grande Guerra e fortemente impactado pela epidemia da
gripe espanhola. Já a última seção narrativa desenrola-se após a Segunda Guerra Mundial, em 1946, na cidade de Lisboa.
Embora não seja de cunho inovativo e apresente uma estrutura
linear e simples, trata-se de um romance em que figuram aspectos não
convencionais, se levada em conta a tônica do contexto de publicação.
Vale mencionar que o regime salazarista preconizava o apagamento
de qualquer traço de individualidade e do “eu”, o que deveria ocorrer
em todos os planos do público para o privado. Ora, para além dessa
lógica, a narrativa subverte a falsa ideia de normalidade, tranquilidade
e bonança a partir do drama familiar vivenciado pela personagem protagonista Adriana. Ademais, o padrão de família utópica acaba por ruir
e as relações entre seus componentes são fortemente abaladas pelo
quadro econômico do país.
Consequentemente, é possível reputar à escritora Maria Archer
a qualidade de uma leitora bastante atenta e perspicaz dos meandros
e minúcias pelos quais atravessavam os portugueses, ou seja, uma
retratista de seu tempo, que não deixa de lançar luz às mazelas travestidas de uma pseudo tranquilidade. Como bem denota o filósofo
Marshall Berman (1986, p. 30), “o pintor da vida moderna é aquele
que concentra sua visão e energia na ‘sua moda, sua moral, e suas
emoções; no instante que passa’ [...]”.
Descortina-se o texto com dois fenômenos simultâneos comparáveis ao deslocamento das andorinhas: os aristocratas de Pedroiços
migram para Cascais e, com a sua debandada, ingressa na região
sumário
248
uma classe média “pretensamente alta”. Esses novos burgueses não
apenas ocupavam-se em estarem atentos ao que os aristocratas faziam, mas também em preencher seus lugares, atraídos que foram por
um mundo de aparências. Como podemos notar no trecho a seguir, o
narrador os qualifica como meros invasores, os quais se davam ares
de importância, além de terem alto apreço pelos que lhes antecediam
na cadeia hierárquica social-econômica e de prestígio: “[...] invasão
de outra camada social, mais modesta, mas que ronda de perto a aristocracia [...] Famílias da burguesia, mas ciosas de seus preconceitos,
atraídas pela fama aristocrática” (ARCHER, 1946, p.7).
Dentre essas famílias, situa-se a do Coronel José Geraldes Ramalho, que se transferira para Pedroiços pouco tempo após a morte
de D. Inês Ramalho, em 1901. Clarisse, a filha mais velha, era aleijada
– tinha problemas de locomoção na perna direita. Gustavo, o caçula
da casa, era um menino bajulado e mimado por todos. Adriana, a filha
do meio, é descrita como alguém “forte, bela e equilibrada, tornara-se
no amparo da família” (ARCHER, 1946, p. 9). Também compõem o
palco familiar a antiga criada Rosa e a órfã Isménia, que fora retirada
do orfanato para servir os Ramalhos em troca do que comer e vestir.
Vale mencionar que, embora o Coronel fosse um homem culto e tivesse uma vasta biblioteca, cujas estantes eram compostas por
“[...] colecções de romances, de Camilo, de Júlio Diniz, de Herculano,
de Júlio Verne, mas há também o Abel Botelho, o Balzac, o Zola” (ARCHER, 1946, p. 19), negava o acesso de sua filha a essas obras. Para
ele, os autores do Romantismo, do Realismo e contemporâneos eram
prejudiciais, razão pela qual mantinha suas estantes trancadas à chave.
Adriana torna-se fascinada pela biblioteca do pai e nutre o sonho de embrenhar-se no universo ficcional, não obstante tema perder a admiração
da família: “Receia que [...] percam a confiança que põem nela e deixem
de a olhar como um ser de exceção, digno de louvores, digno de admiração e muito acima das outras raparigas” (ARCHER, 1946, p.21-22).
sumário
249
A despeito disso, a personagem rouba um molho de chaves e eis que a
literatura surge como uma via de escape. Com efeito, devora com avidez
vários romances e se sente extasiada pelas heroínas de Camilo Castelo
Branco, as quais lhe acalentam a alma, a tal ponto que pensa ter descoberto finalmente o que é o amor.
Nessa toada, as histórias dos livros invadem seus sonhos noturnos. Adicionalmente, flui da matéria textual o fato de haver dentro
do romance um espaço para tantas outras obras literárias, as quais
servem como lenitivo para Adriana:
Lê o romance, depois lê um outro, depois outro. Lê os do Camilo, lê os do Júlio Dinis. As heroínas do Camilo fascinam a
alma de Adriana. O que acontece com aquelas mulheres! O seu
desejo seria ter um destino de tragédia, como o das mulheres
fatais da galeria camiliana. Agora, sim, agora sabe o que se
deve desejar na vida... Já desdenha do amor honesto, comum,
com finalidade no casamento e na família. Sonha com amores impossíveis, etéreos, excepcionais. [...] Sonha com o amor
contrariado, ensopado em lágrimas, amassado com desditas,
força maldita que destrói duas vidas, às vezes duas famílias
(ARCHER, 1946, p. 30-31).
Ao amor contrariado, opõe-se o amor honesto, representado
por Júlio Dinis e seus romances: “[Adriana] regressa a sentimentos
mais calmos. Volta a sonhar com o amor honesto, burguês, bem-visto
pelos pais, que se tece de olhares; cartinhas mandadas pela criada,
conversas à janela [...] Gostaria de ser amada por alguém que a venerasse” (ARCHER, 1946, p. 31). Assim, são diversas as facetas para
o tópico “amor” veiculadas pelas leituras da protagonista. Talvez, o
fato de a literatura propiciar ou facultar a expansão do raciocínio em
torno de uma mesma temática e, além disso, ocasionar no leitor certo arrebatamento tenha sido um dos motivos pelos quais o Coronel
proibira a leitura dos romances. Em vista do exposto, Irene Vaquinhas
(2010, p. 84) assinala que
sumário
250
o romance é [...] encarado como potencialmente perigoso e um
factor de alienação e desvio moral. Elevado a inimigo da mulher
como se pretendia que ela o fosse, atribui-se-lhe capacidades
corruptoras, capaz de distorcer as mentes, chegando a ser qualificado de ‘haxixe ou ópio das mulheres’ por suscitar a evasão
da realidade e abrir horizontes desconhecidos para além do tradicional mundo doméstico.
De todo modo, é imperioso notar que Adriana tenta transpor a
ficção para a realidade quando inicia o namoro com Eduardo Cardoso,
o que acaba por lhe trazer diversos dissabores. O namoro não é bem-visto nem aceito por ambas as famílias, que almejavam pretendentes
mais bem posicionados e com melhores condições econômicas para
seus filhos. Nessa seara, a protagonista não aceita que as diferenças
entre as classes sociais sejam um impedimento, pois para ela o amor
deveria ser como aquele retratado pelo mundo ficcional:
O seu amor é como o oceano, cresce e avoluma-se com o obstáculo. [...] Então a pobreza é defeito? Então não são as qualidades do coração que contam, a nobreza dos sentimentos, a
pureza das acções? [...] Lembra-se dos heróis dos romances
[...] Ela também se sente heroína de romance e não tarda a
perder o contacto com a realidade – deixa de entender a vida
(ARCHER, 1946, p.77).
Impende mencionar que Eduardo Cardoso morava com seus
pais, D. Aida e Belarmino, e é descrito pelo narrador como sendo uma
personagem medíocre: “Tem dezanove anos, três r.r. no curso dos liceus, o sangue corroído da sífilis [...] passeia, pavoneando-se, sob as
janelas das solteiras e casadas” (ARCHER, 1946, p. 68). Era empregado num banco, como correspondente. Também é de se mencionar
que os Cardosos tinham uma vida familiar construída por aparências
que “excedem o modesto ordenado de um chefe de repartição. D. Aida
julga que ilude suas amigas e lhes faz crer que ‘tem alguma coisa’. [...]
poupa-se em todos os gastos que não sejam para fazer vistas” (ARCHER, 1946, p. 68-69). A entrada deles sinaliza fortemente uma lógica
familiar baseada em uma teia de ilusões, dissimulações e hipocrisias.
sumário
251
Visto por esse prisma, o próprio sentimento que Eduardo nutre
por Adriana não se situa no âmbito do desejo e, sim, da admiração e
elevação, além de certo regozijo por ter conquistado aquela que todos
queriam cortejar: “[...] papel de proprietário da beldade famosa que
entusiasma os rapazes e é tida em tão alta conta [...]” (ARCHER, 1946,
p. 106). Se assim o é, então Adriana nada mais é do que mero troféu
a ser conquistado. Por sua vez, a protagonista mantém-se presa às
suas convicções e gostaria de que o namorado tivesse uma conduta
austera, de extremo comedimento, e se assemelhasse à personagem
Simão, de Camilo: “Desejaria que Eduardo lhe respeitasse a pureza
como Simão Botelho respeitara a pureza de sua amada. Exigia-lhe
uma atitude de devoto em adoração” (ARCHER, 1946, p. 91). Dessa
forma, o binômio impulsividade e comedimento norteiam o relacionamento dos dois, pois, enquanto Eduardo age por impulso, Adriana tem
seu comportamento baseado naquilo que os outros pensariam e não
admite que o amor “espiritual” tenha adentrado a esfera física.
É perceptível que há um horizonte imbuído do conceito de idealização por parte da protagonista. O desmascaramento disso é inculcar
no leitor valores da sociedade, ou seja, mostrar o quão distante a sociedade está dos valores que ela própria cultiva. Notamos que o narrador de modo algum recrimina a ação desta ou daquela personagem,
uma vez que a voz narrativa apenas fornece suporte e legitima seus
seres ficcionais, o que parece ser uma estratégia para oferecer ao leitor
profundidade psíquica. Sob tal ângulo, é preciso fugir da tentação de
considerar a personagem Adriana uma heroína absoluta.
Já foi mencionado que ela representa para Eduardo apenas um
objeto, cuja posse o envaidece. Acrescente-se a isso que ele alia o
amor aos seus interesses pessoais, pois era preciso ser prático: “Mas
a vida é a vida... [...] Mas toda a gente sabe que o seu ordenado é
pequeno. [...] não tem meios, mas está pronto a casar, arranjem-lhos,
que se casa sem demora...” (ARCHER, 1946, p. 138).
sumário
252
Nesse jogo de ambições e burlas, de um lado, e devaneios, do
outro, Adriana se submete à moral da época, tem sua voz cerceada e
não se desvincula da velha ordenação familiar ou dos velhos estatutos
da família. Quando sua reputação é abalada, o Coronel, mesmo tendo
consciência de que sua filha trilharia uma espécie de calvário ao se
casar com Eduardo, opta por sacrificar a felicidade dela para preservar-lhe a imagem e a aparência:
E uma sensação de terror sombrio, angustiado, apossa-se da
alma do coronel. A sua pobre filha, tão boa, tão virtuosa e tão
desgraçada! Que pouca sorte, a da Adriana, em se ter inclinado
para aquele rapaz, ela, que poderia casar tão bem! Mas o seu
dever de pai é velar por ela, é impedi-la de se desgraçar... Tem
que lhe dizer a verdade, tem que lhe abrir os olhos, tem que a
levar ao repúdio desse casamento impossível... [...] Ah! Não,
não dirá nada, não fará mais que calar-se, e esperar, e sofrer...
O casamento tem que se fazer, o casamento é a última salvaguarda da reputação de Adriana...Amargurado, vendo o futuro
negro e uma ameaça perpétua sobre o destino da filha, José
Geraldes verga a cabeça, encolhe os ombros, cala-se [...] Não
tem o direito de impedir o casamento [...] Se o casamento se
não fizesse haveria sempre quem falasse, com um sorriso de
dúvida, da sua pureza, da sua virtude, e quem a olhasse com
um certo desdém (ARCHER, 1946, p. 166).
Não podemos deixar de correlacionar a atitude de José Geraldes a uma recusa em romper com a tradição de sujeitar-se à estrutura
patriarcal. Assim, é como se do texto ecoassem a subordinação e a
opressão social das mulheres, não havendo para elas nenhum rastro
ou possibilidade de autonomia individual. No limite, também o pai se
torna passivo, sente-se intimidado e exerce o papel unicamente de
aderir ao padrão vigente.
Conforme o esperado, o casamento traduz-se em infelicidade
para os nubentes: as influências do contexto abalam fortemente a relação já tão esgarçada entre eles. O sistema político e de crenças faz
com que Eduardo tenha seu cargo rebaixado no banco. Tal fato ocorre
sumário
253
em 1910, com o advento da República: “Os Cardosos, os Ramalhos,
eram monárquicos, por solidariedade com as classes aristocráticas, a
que se julgavam ligados” (ARCHER, 1946, p. 171). Não que ambas as
famílias fossem adeptas da Monarquia, apenas seguiam uma estrutura
pautada em influências. É claro que os aristocratas não almejavam
uma sociedade de bem-estar geral, como os republicanos a anunciavam, pois eram ciosos em preservar o status quo. Nesse caso, nenhuma influência poupou a personagem Eduardo da humilhação.
A piora na situação econômica e o vazio oriundo da quebra de
expectativas do que seria uma relação a dois alimentam em Adriana
o desejo, cada vez maior, de preencher sua vida com a maternidade.
Entretanto, “o Eduardo não queria filhos, tomava os cuidados precisos... ‘A burla do casamento’ dizia a médica num tom tão desdenhoso,
tão reprovador, que Adriana corava pelo marido” (ARCHER, 1946, p.
189). Ora, verter à lume essa discussão, além de ser algo bastante
revolucionário para o leitor de 1946, pode ter causado certo grau de
estranhamento por parte da censura salazarista.
Nessa perspectiva, o sociólogo Luís António Vicente Baptista(1986, p. 201) afirma, em seu texto Valores e imagens da família em
Portugal nos anos 30 – o quadro normativo,que “a prole é a principal
razão de ser da família e do casamento, ou seja, a sua constituição,
defesa e educação deve ser a primeira das tarefas para quem edifica
um novo lar”.Adita que “dar continuidade ao género humano, biológica
e culturalmente, seria a finalidade da família e a aspiração única na vida
dos esposos [...]” (BAPTISTA, 1986, p. 202).
A mudança para Lisboa em 1918, após a morte do Coronel e
de Belarmino – ambos vitimados pela gripe espanhola –, simboliza a
dissolução de todas as encenações, o decaimento social e a completa
(não) condição das mulheres, aqui representadas pela protagonista.
Isso é enfocado no painel 4 do romance, com as personagens a vivenciar o momento do pós-guerra.
sumário
254
É sobremodo importante destacar que, mesmo tendo mantido a
neutralidade durante a Segunda Guerra Mundial, o país não escapou
imune das consequências da guerra: o déficit na balança comercial, a
queda do produto interno bruto, o pouco desenvolvimento industrial e
o alto predomínio de uma economia calcada em bases rurais eram alguns dos problemas que assolavam Portugal. Desses fatores, derivou
a crise econômica que atingiu fortemente os lares portugueses, que se
viram impactados pela inflação alta e pelo desemprego. Com efeito, a
luta pela subsistência estava na ordem do dia e, como se depreende
das linhas narrativas, a família de Adriana não só foi tocada, mas submersa nessa conjuntura.
Vale ressaltar que a personagem tem suas aflições amplificadas
pelos desajustes de seu marido e tenta ser o mais fiel possível à sua
essência: “[...] admirada por se ter conservado honesta, pura, fiel e
digna, apesar de ter vivido quase só, tão abandonada pelo marido que
mais parecia uma viúva ou uma divorciada” (ARCHER, 1946, p. 263). À
medida que ela se angustia, Eduardo, na mesma proporção, se deteriora em imoralidades e autodestruição. Vejamos, por exemplo, como
a voz narrativa o qualifica de modo bastante derrisório:
[...] está gasto e acabado [...] É um velho com aspecto repulsivo,
de expressão dissimulada, de olhos fugidios. As suas maneiras
untuosas, de cortesia exagerada e falas mansas, destilam artifício e falsidade. Mas, quando lobriga uma garota delgada, loirita,
cara de vício e de fome, Eduardo apruma-se. [...] Persegue a
rapariga em grandes passadas [...]. Uns minutos depois o cansaço curva-o de novo e o velho ridículo regressa à situação de
velho lamentável (ARCHER, 1946, p. 267).
Novamente, recorremos ao texto supracitado de Baptista (1986,
p. 200): “O homem e a mulher não são obrigados a ser felizes, mas sim
a cumprir seus deveres morais”. Ao que parece, nem esses “deveres”
Eduardo conseguia desempenhar.
sumário
255
Para Adriana, o marido nada mais era do que “[...] a coluna da
casa, o ganhão que enche o celeiro do templo” (ARCHER, 1946, p.
246), ao passo que Eduardo desejaria que ela fosse submissa e alheia
ao que ele fazia, tal como alerta o narrador no excerto seguinte:
Quer [...] [que] Adriana se mantenha como sempre, de olhos fechados, deixando-lhe a liberdade da rua, mas que se conserve,
como sempre, modesta de costumes, contentando-se com os
vestidos feitos ao serão, com uma ou outra noite de cinema, e
aguentando a casa, as aparências, com o pouco dinheiro que
lhe dá (ARCHER, 1946, p. 268).
A situação econômica e psicológica da protagonista se agrava,
assim como colapsa e fragmenta qualquer pista afetiva que a unia ao
marido. Cabe, então, perscrutar os motivos pelos quais ela não pede
o divórcio. Certamente, o ato de colocar a figura feminina para além
de uma mera dicotomia pode indicar haver adensamento psicológico
na técnica de elaboração e construção dessa personagem. Por outro
lado, é o desvelo de uma questão bastante objetiva, pois havia a total
dependência econômica do marido.
Visto pela mentalidade da época, é preciso lembrar que o escarço papel destinado às mulheres era concernente ao lar. Nessa linha,
segundo argumenta Catroga (1986, p.137), “a estrutura da família nuclear, unificada e hierarquizada a partir do poder marital [...] implicava
a subalternização da mulher [...] [e a] prestar obediência ao marido”.
Assim, o papel feminino era o da submissão e de prestar obediência,
além de “dedicação, sacrifício, persistência mesmo que obstinada”
(BAPTISTA, 1986, p. 209). Claro está, portanto, que o circuito narrativo
revela a lógica de um discurso sustentado pela imobilidade e sujeição
da parte ou das partes “mais fracas”, em coerência com a conduta
que o governo preconizava para as mulheres, pois a retórica salazarista baseava-se em total
[...] obediência, na resignação dos desfavorecidos: na família
(a mulher, os filhos, os mais novos) e na sociedade (os pobres).
sumário
256
Duas razões os levariam a aceitar tal situação, por um lado, a
hipótese de felicidade eterna, por outro, a impossibilidade de
mudar o quadro natural e divino das distinções entre os indivíduos (BAPTISTA, 1986, p. 204).
Destarte, dar visibilidade ao drama da personagem Adriana
é ter a audácia de demonstrar a máxima de que a resignação e a
obediência não servem para nada além de produzir uma falsa noção
de que a estrutura social – seja ela em âmbito familiar ou governamental – era harmônica.
Num contexto em que estava tão em voga a “lição de moral”,
como a autora lida com isso? Pelos registros narrativos, afigura-se uma
visão de mundo que não é mais uma moral acerca desse mundo. Trata-se da avaliação de alguém bastante atento ao seu entorno e que dá
um passo para fora do padrão da retórica literária sobre o que é viver
em sociedade e o faz para além do estereótipo do vício e virtude. O
leitor há de se lembrar, por exemplo, ser Adriana indiretamente responsável pela morte de D. Aida e diretamente pela de Eduardo.
Indubitavelmente, a noção de bem e virtude é um retrato pouco ortodoxo em Casa sem pão, uma vez que faz frente a uma representação alternativa, isto é, a virtude e as possibilidades de vícios se
mesclam, o que é bastante assustador para a época. No modo como
as personagens confrontam suas perspectivas com suas diferenças, é
patente o esforço que a escritora faz de não repetir o padrão literário de
seu tempo, mas de oferecer alternativas no sentido de contribuir para
o romance como gênero. De mais a mais, observamos a preocupação
em avançar naquilo que a narrativa tem a oferecer para colaborar com
uma maior complexidade, ou seja, é o intuito de que o romance possa
se sustentar como discurso autônomo e artístico, e não meramente um
duplo da moral corrente.
É desse modo que a autora retira do romance seu papel moralizador, embora não vire as costas para essa moral. Esse gesto aponta
sumário
257
que seria insuficiente e improdutivo repetir um padrão moral conforme
os ditames da época, pois isso em nada beneficiaria o construto da
sociedade portuguesa e as mulheres em 1946.
MOVIMENTO CONCLUSIVO
O caminho narrativo de Casa sem pão transita entre as esferas
do ficcional e do real. Nessa tela, há uma exposição das adversidades
da primeira metade do século XX em Portugal pela representação ficcional do ambiente cotidiano de uma típica família da média burguesia
portuguesa. Esse cenário familiar é apresentado em seus desafios,
idiossincrasias e dilaceramento progressivo das relações entre seus
componentes. No percurso narrativo, assume relevância e proeminência a figura feminina de Adriana, com os acontecimentos tumultuosos
experienciados por ela.
Em linhas gerais, o texto faz uma tomografia do social, ou seja,
o narrador desnuda a natureza do núcleo familiar em suas tramas e
enredamentos. Nesse processo, as caracterizações individuais e coletivas de todas as personagens levam o leitor a perceber que ninguém é
absolutamente “bom” ou “mau”, pois o meio age e, ao mesmo tempo,
não age sobre os seres de papel apresentados no romance, o que
significa que são muitos aspectos que colidem. Outrossim, ao fazer um
mapeamento dessa complexidade, o narrador alerta não ser um campo de natureza exclusiva moral ou material: ocupa-se da precariedade
da vida e da ideia de uma condição humana bastante frágil.
Da paleta narrativa, desponta uma tensão entre a imagem de
vida que a protagonista constrói para si e aquilo que parece ser a práxis do texto. Toda a composição textual é montada em cima do que a
personagem quer ser, daquilo que acredita e do que, de fato, ela é.
sumário
258
Em síntese, na teia narrativa, vêm à tona os confrontos dos
indivíduos com o universo familiar a que pertenciam e com o establishment existente. Por sua vez, no microcosmo retratado, é nítido
um esboço do macrocosmo.
REFERÊNCIAS
ARCHER, Maria. Casa sem pão. Lisboa: Empresa Contemporânea de
Edições, 1946.
ARCHER, Maria. A censura à imprensa e ao livro. Portugal Democrático,
São Paulo, 6 out.1956.
BAPTISTA, Luís Antonio Vicente. Valores e imagens da família em Portugal
nos anos 30 – o quadro normativo. In: COLÓQUIO A MULHER NA
SOCIEDADE PORTUGUESA, 1985, Coimbra. Actas [...]. [S.l.: s.n.], 1986.
CATROGA, Fernando. A laicização do casamento e o feminismo
republicano. In: Actas do Colóquio realizado em Coimbra de 20 a 22 de
março de 1985. Coimbra: Instituto de História Económica e Social, Faculdade
de Letras, 1986, v.1.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
GLEISER, Marcelo. Criação imperfeita. Rio de Janeiro: Record, 2010.
RAMOS, Rui (Coord.). História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2009.
TRINDADE, Luís. O estranho caso do nacionalismo português: o salazarismo
entre a literatura e a política. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2008.
VAQUINHAS, Irene. Perigos da leitura no feminino. Dos livros proibidos aos
aconselhados (séculos XIX e XX). Ler história, Portugal, n.59, p.83-89, 2010.
sumário
259
13
Capítulo 13
A confissão de Lúcio ou as confissões
de Ricardo? - Uma análise da obra
de Mário de Sá-Carneiro
Aion Roloff
Aion Roloff
A confissão de Lúcio
ou as confissões
de Ricardo?
- Uma análise da obra
de Mário de Sá-Carneiro
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.13
Resumo: Este artigo propõe uma leitura da obra “A confissão de Lúcio” de Mário de Sá-Carneiro a partir das proposições de Levinas (1980) sobre a relação
Eu x Outro presente na narrativa: A obra apresenta a confissão do personagem
central Lúcio (o Eu) que por vezes decide conceder espaço na narrativa a
Ricardo (o Outro), que também faz confissões ao longo de todo o enredo, embasa nossa discussão também os escritos de Michael Foucault (1979, 2003,
2009) para entendermos o papel da confissão e como ela ajuda a compreender a obra de Sá-Carneiro.
Palavras-chave: Confissão de Lúcio; Mário de Sá Carneiro; Levinas.
sumário
261
Obsessão66, amizade, amor, ternura e o mundo das artes são alguns dos muitos temas tratados por Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)
em sua obra A confissão de Lúcio, publicada pela primeira vez em 1914.
O próprio título sugere que se trata de uma confissão, isto é, alguém está
contando – confessando algo – uma história aos leitores. Somos, então,
levados até a fala de Lúcio, que, de antemão, nos declara:
Cumpridos dez anos de prisão por um crime que não pratiquei
e do qual, entanto, nunca me defendi, morto para a vida e para
os sonhos: nada podendo já esperar e coisa alguma desejando – eu venho enfim a minha confissão: isto é, demonstrar a
minha inocência.
Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas
pouco importa. O meu interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo de Loureiro é nulo. Não tenho família: não preciso de
que reabilitem. Mesmo quem esteve dez anos preso, nunca se
reabilita. A verdade simples é esta (SÁ-CARNEIRO, 2006, p. 11).
A trama gira ao redor basicamente disso: Lúcio, após passar
dez anos preso, decide justificar as razões pelas quais afirma não ter
matado o amigo, Ricardo de Loureiro. Além disso, é uma narrativa que
tem como pano de fundo o fim do século XIX e início do XX e que também retrata, conforme mostraremos, o homem moderno em crise67,
perdido, sem saber direito o que fazer.
Mário de Sá-Carneiro foi um dos integrantes da Geração de
Orpheu, cujo movimento se iniciou em 1912, na cidade de Lisboa,
com a reunião de diversos poetas/escritores, como Almada Negreiros
(1893-1970), Fernando Pessoa (1888-1935), entre outros, que criaram a revista Orpheu, que causou grande barulho na intelectualidade
sumário
66
Este artigo é parte da pesquisa de mestrado do autor.
67
Marshal Berman (1997, p. 15), ao conceituar a modernidade, afirma: “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo tempo ameaça destruir
tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos”. O que talvez explique a crise
da modernidade é justamente porque estamos numa sociedade que é contraditória em
sua essência. Segundo Berman (1997, p. 21), “o fato básico da vida moderna [...] é que
essa vida é radicalmente contraditória na sua base”.
262
portuguesa por se opor aos dogmas das gerações anteriores e instaurar
uma espécie de vanguarda nas letras do período, culminando naquilo
que anos depois se convencionou chamar Modernismo português.68
Dono de uma produção literária pequena, por conta de seu suicídio em 1916 (GALHOZ, 1963), Sá-Carneiro publicou A confissão de
Lúcio em 1914, sendo esta uma das suas últimas obras. Considerando
esse contexto de produção, a narrativa é a história de um homem que
decide escrever uma confissão com a função de provar a sua inocência de um crime. O livro se passa justamente na virada do século XIX
para o XX, iniciando a narrativa em 1895 e chegando aos 1900.
Lúcio, o protagonista, é poeta e artista, vivendo no meio de
intelectuais, no contexto finissecular dos Oitocentos. A narrativa não
aponta de onde provém o sustento dos artistas que circundam seu
universo, mas não se trata de pessoas pobres. Lúcio frequenta festas,
não trabalha, realiza viagens, sendo, conforme ele mesmo admite, um
vagabundo: “Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando direito
na Faculdade de Paris, ou melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter tentado vários fins para minha vida e de todos
igualmente desistido” (SÁ-CARNEIRO, 2006, p. 19).
O romance é narrado em primeira pessoa, com a presença
de um narrador-testemunha69, Lúcio, que decide confessar os fatos
sumário
68
Osvaldo Silvestre (2010, p. 474) afirma o seguinte sobre esse período literário: “A cronologia do Modernismo em Portugal é muito facilitada pela edição da revista Orpheu em 1915
[...] Para o bem e para o mal, Orpheu tornou-se o órgão e o símbolo da geração do primeiro modernismo português”. Dessa forma, quando dizemos que Sá-Carneiro era parte
do Modernismo português, nos referimos ao que a crítica tradicional cristalizou como
Geração de Orpheu.
69
Ligia Chiappini Moraes Leite (1997, p. 37, grifo do autor), recorrendo à tipologia de Norman Friedman, conceitua o narrador-testemunha da seguinte forma: “Seguindo a classificação de Friedman, o NARRADOR TESTEMUNHA dá um passo adiante rumo à apresentação do narrado sem a mediação ostensiva de uma voz exterior [...] Testemunha, não é
à toa esse nome: apela-se para o testemunho de alguém, quando se está em busca da
verdade ou querendo fazer algo parecer como tal”. Novamente, assim como em Coração,
cabeça e estômago, o narrador-testemunha é o protagonista da obra. Essas duas categorias de Friedman (eu como testemunha e narrador protagonista) em ambas as narrativas
aparecem mescladas.
263
anteriores que teriam culminado em um crime que ele afirma não ter
cometido – o caso que teve com a esposa de Ricardo, Marta – e a
relação de amizade construída primeiramente com Gervásio em Paris
e depois com o próprio Ricardo, inicialmente na capital francesa e
posteriormente em Portugal.
Lúcio, em determinado ponto da narrativa, concede a voz, emprestando as suas falas a Ricardo. Estranhamente, mesmo declarando inocência, afirma que sua “defesa era impossível” (SÁ-CARNEIRO,
2006, p.15-16) e que só agora, após cumprida a pena, se faria, possíveis a confissão sobre o que teria acontecido e, por conseguinte, a
tentativa de comprovar sua inocência. No capítulo intitulado “Introdução”, o narrador afirma:
Apenas desejo fazer uma exposição clara dos factos. [...]
Mas o que ainda uma vez, sob minha palavra de honra, afirmo é
que só digo a verdade. Não importa que me acreditem, mas só
digo a verdade – mesmo quando ela é inverossímil.
A minha confissão é um mero documento (SÁ-CARNEIRO,
2006, p. 17, grifo nosso).
Nesse sentido, ele pretende confirmar a veracidade de seu relato pelo fato de estar narrando aos leitores uma confissão. Embora a
única verdade a que tenhamos acesso seja aquela que ele conta, não
podemos ignorar o fato da força que tem um relato confessional: como
Lúcio confessa, supostamente está dizendo a verdade e a veracidade
do que ele diz reside exatamente no fato de a confissão ser produzida.
Michael Foucault (2009, p. 39-40), sobre a confissão, informa
que ela
constitui uma prova tão forte que não há nenhuma necessidade de acrescentar outras, nem de entrar na difícil e duvidosa
combinação de indício; a confissão, desde que feita na forma
correta, quase desobriga o acusador do cuidado de fornecer
sumário
264
outras provas [...] [aquele] que confessa vem desempenhar o
papel de verdade viva.
A confissão, para a teoria foucaultiana, é uma prova cabal tão
forte que subentende as outras e sozinha produz a verdade necessária
para condenar ou absolver alguém. A produção de verdade do narrador de A confissão de Lúcio é assegurada exatamente por isso:
A confissão passou a ser, no Ocidente, uma das técnicas mais
altamente (sic) valorizada para produzir a verdade. Desde então nos tornamos uma sociedade singularmente confessanda.
A confissão difundiu amplamente seus efeitos: na justiça, na
medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações
amorosas, na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes,
confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os
desejos, confessam-se passado e sonhos, confessa-se a infância, confessam-se as próprias doenças e misérias. [...] O
homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente (FOUCAULT, 1979, p. 59, grifo nosso).
Dessa forma, de partida, acreditamos no protagonista e, portanto, seu relato se mostra cabal. Entretanto, ele escreve porque quer
provar a sua inocência. Mas porque ele esperou dez anos para fazê-lo?
Cabe ao leitor mergulhar na narrativa e investigar o motivo. Começa,
assim, o primeiro capítulo, no qual Lúcio afirma:
Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na
Faculdade de Paris, ou melhor, não estudando. Vagabundo da
minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha vida
e de todos igualmente desistido – sedento de Europa, resolvera
transportar-me à grande capital (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.19).
O primeiro capítulo da obra nos remete à amizade e às calorosas discussões artísticas entre Lúcio e Gervásio Vila-Nova, que mal conhecera em Lisboa. Essa aproximação de ambos, no entanto, parece
apenas uma desculpa para a união de Ricardo e Lúcio mais à frente,
que é a grande força motriz do livro. Tal união ocorre justamente por
intermédio do próprio Gervásio:
sumário
265
Ah sabe? Temos de esperar ainda pelo Ricardo de Loureiro.
Também está convidado. E ficou de se encontrar aqui comigo.
Olhem, aí vem ele...
E apresentou-nos:
- O escritor Lúcio Vaz.
- O poeta, Ricardo de Loureiro.
E nós um ao outro:
- Muito gosto em o conhecer pessoalmente (SÁ-CARNEIRO,
2006, p.32).
Nesse primeiro momento, há também a descrição de uma festa, ofertada por uma mulher americana que Gervásio conhece num
café e apresenta ao amigo. No evento, há a descrição de um espetáculo com mulheres nuas. Lúcio detalha cada parte da festa e como
enxerga a realização do evento artístico. Tudo acontece no palco e é
descrito com extravagância, atentando para o jogo de luzes e cores,
os figurinos, a celebração da arte, com riqueza de detalhes. A Lúcio
causa algum estranhamento todo o espetáculo, mas ainda assim o
acompanha maravilhado, talvez tomado pela celebração da arte que
parece reconhecer ali.
Nessa festa, Lúcio e Ricardo estreitam os laços de amizade:
Se a sua lembrança me ficou para sempre gravada, não foi
por a ter vivido – mas sim porque, dessa noite, se originava a
minha amizade com Ricardo de Loureiro. [...] De resto, no caso
presente, que podia valer a noite fantástica em face do nosso
encontro – desse encontro marcou o princípio da minha vida?
Ah! sem dúvida, amizade predestinada aquela que começava num cenário tão estranho, tão perturbador, tão dourado...
(SÁ-CARNEIRO, 2006, p.44, grifo do autor).
No capítulo II, existe a preocupação em demonstrar como a amizade dos dois escritores crescera e o quanto aquilo significava para
sumário
266
ambos. A narrativa – contada em primeira pessoa por Lúcio – é sempre tomada por comentários de Ricardo de maneira gradativa. Aqui
o narrador concede a voz ao amigo, que aparece por diversas falas
grafado entre aspas. No decorrer do texto, essas falas tornam-se gradativamente maiores e tomam mais parágrafos. Assim, se estabelece a
relação Eu-Outro, conforme conceitos definidos por Emmanuel Levinas
(1980) a respeito de quem seria o Outro e sua relação de alteridade70
com o Eu. Ele declara:
O outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de
uma alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem
de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma
alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do
Mesmo; outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque
nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo.
O absolutamente Outro é Outrem: não faz número comigo. A
colectividade em que eu digo ‘tu’ ou ‘nós’ não é um plural de
‘eu’ (LEVINAS, 1980, p.26).
Assim sendo, essa relação proposta vai muito além da mera
definição superficial de se colocar no lugar do outro (BURCKHART,
2016), reconhecendo o eu e o outro como categorias distintas e fundamentalmente opostas, porém não excludentes. Afinal, o Eu só existiria
no Outro e este só existiria no Mesmo (LEVINAS, 1980). O Eu-Lúcio
concede voz ao Outro-Ricardo e isso acontece por todo esse capítulo,
passando as confissões de Ricardo a dominar a narrativa:
Pintando-me a sua angústia, Ricardo de Loureiro fazia perturbadoras confidências, tinha imagens estranhas.
- Ah! meu caro Lúcio, acredite-me! Nada me encanta já; tudo
me aborrece, me nauseia. Os meus próprios raros entusiasmos,
se me lembro deles, logo se esvaem – pois ao medi-los, encontro os tão mesquinhos, tão de pacotilha... Quer saber? Outrora,
70
sumário
Recorrendo ao dicionário para definir alteridade, temos: “Estado ou qualidade do que é
outro, distinto, diferente” (MICHAELIS, 1998, p.115).
267
à noite, no meu leito, antes de dormir, eu punha-me a divagar.
E era feliz por momentos, entressonhando a glória, o amor, os
êxtases... Mas hoje já não sei com que sonhos me robustecer
(SÁ-CARNEIRO, 2006, p.47).
Os dois conversam, mas sempre Ricardo acaba por falar mais
que Lúcio, que se revela bom ouvinte e para quem a relação é importante e duradoura:
As minhas conversas com Ricardo – pormenor interessante –
foram logo desde o inicio, bem mais conversas de alma, do que
simples conversas de intelectuais. Pela primeira vez eu encontraram efectivamente alguém que sabia descer um pouco aos
recantos ignorados do meu espírito – os mais sensíveis, os mais
dolorosos para mim. E com êle o mesmo acontecera – havia de
mo contar mais tarde (SÁ-CARNEIRO, 2006, p. 46).
Lúcio faz questão de salientar que, mesmo encontrando alguém
que o completaria, “não éramos felizes – oh! Não... As nossas vidas
passavam torturadas de ânsias, de incompreensões, de agonias, de
sombra” (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.46); eram homens de seu tempo: em
crise, perturbados com a sua posição no mundo, tanto um quanto o
outro – “Sofríamos tanto... tanto... O nosso único refúgio era nas nossas
obras” (SÁ-CARNEIRO, 2006, p. 47) –, sendo na arte que os dois encontravam a válvula de escape para enfrentar as agruras da vida moderna.
É por intermédio de Lúcio que Ricardo começa a confessar os
seus medos, anseios e desejos. Tais confissões seguem os mesmos
preceitos que justificam a grande confissão do protagonista – o cerne
da narrativa –, isto é, assumimos como verdade, porque estão sob
o estatuto de confissão. Ricardo confia em Lúcio, por isso sente que
pode confessar sua vida ao amigo e, assim, estreitar os laços que os
unem. Desse modo, quando a personagem confessa, estabelece uma
distinção entre sua vida amorosa e aquilo que chama vida prática:
sumário
268
‘A minha imaginação infantil sonhava, romanescamente construía mil aventuras amorosas, que aliás todos vivem. Pois bem:
nunca me vi ao fantasia-las [...]’
‘Dentro da vida prática também nunca me figurei. Até hoje, aos vinte e sete anos, não consegui ganhar dinheiro pelo meu trabalho. Felizmente não preciso...’(SÁ-CARNEIRO, 2006, p.48-49, grifo nosso).
Ricardo declara que não precisa trabalhar, mas não evidencia o
porquê, e comemora o fato, podendo, assim, se dedicar à sua poesia,
a razão do seu viver. Além disso, confessa ao amigo que tais artes
eram “[...] por mais bizarras, mais impossíveis – são, pelo menos em
parte sinceras” (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.51).
Novamente, evocamos Foucault (1979, p. 61, grifo nosso) ao
tratar do ato de confissão:
Ora, a confissão é um ritual de discurso onde o sujeito que fala
coincide com o sujeito do enunciado, é, também, um ritual que
se desenrola numa relação de poder, pois não se confessa sem
a presença ao menos virtual de um parceiro, que não é simplesmente um interlocutor, mas a instância que requer a confissão,
impõe-na, avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar,
reconciliar; um ritual onde a verdade é autenticada pelos obstáculos e as resistências que teve de suprimir para poder manifestar-se; enfim, um ritual onde a enunciação em si, independente
de suas consequências externas, produz em quem a articula
modificações intrínsecas: inocenta-o, resgata-o, purifica-o, livra-o de suas faltas, libera-o, promete-lhe a salvação.
É exatamente isso que ocorre: Lúcio apenas escuta Ricardo,
se esforçando para entendê-lo e consolá-lo, ainda que, por diversas
passagens, sirva, apenas e tão somente,como mero mensageiro
das confissões:
Em horas mais tranqüilas, Ricardo punha-se-me a falar da suavidade da vida norma. E confessava-me:
- Ah quantas vezes isolado em grupos de conhecidos banais,
eu não invejei os meus camaradas... Lembro-me tanto de certo
sumário
269
jantar no Leão de Ouro... numa noite chuvosa de dezembro...
Acompanhavam-me dois atores e um dramaturgo [...] Porque
afina essa sua vida – ‘a vida de todos os dias’ – é a única que
eu amo. Simplesmente não a posso existir... E orgulho-me tanto
de não a poder viver... orgulho-me tanto de não ser feliz... Cá
estamos: a maldita literatura.’
E depois de uma breve pausa:
- Noutros tempos, em Lisboa, um, meu companheiro íntimo,
hoje já morto, alma ampla e intensa de artista requintado – admirava-se de me ver acamaradar com certas criaturas inferiores.
É que essas andavam na vida, e eu aprazia-me com elas numa
ilusão (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.59, grifo nosso).
A confiança e a admiração entre ambos são tamanhas que
parecem justificar apenas o papel de espectador que cabe a Lúcio
enquanto Ricardo confessa. Hubert L. Dreyfus e Paul Rabinow (2010,
p. 229), ao analisar as teorias foucaultianas, afirmam que o ser humano foi persuadido a acreditar que, pela confissão, era possível
conhecer a si próprio:
A vontade de saber a verdade sobre nós mesmos, própria a
nossa cultura, instiga-nos a falar a verdade; as confissões que
se sucedem, confissões que fazemos aos outros e a nós mesmos, e essa colocação em discurso instauram uma rede de
relações de poder entre aqueles que afirmaram ser capazes
de extrair a verdade dessas confissões, através da posse das
chaves de interpretação.
Talvez uma das motivações de Ricardo ao fazer as suas confissões por intermédio de Lúcio resida exatamente nisso: conhecer a si
próprio. Ao final da segunda parte da trama, há a passagem de uma
cena cuja importância só perceberemos com clareza ao final do romance, em que Ricardo declara:
Deteve-se um instante e, de súbito, em outro tom:
- É isto só – disse - não posso ser amigo de ninguém... Não
proteste... Eu não sou seu amigo. Nunca soube ter afetos – já
sumário
270
lhe contei – apenas ternuras. A amizade máxima para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz
sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar... de
estreitar... Enfim: de possuir! Ora eu, só depois de satisfazer os
meus desejos, posso realmente sentir aquilo que os provocou.
[...] Logo eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo,
se essa criatura ou eu mudássemos de sexo.
Ah a minha dor é enorme: Todos podem ter amizades, que
são o amparo de uma vida, a razão de uma existência inteira
– amizades que nos dedicam; amizades que, sinceramente,
nós retribuímos. Enquanto que eu, por mais que me esforce,
nunca poderei retribuir nenhum afeto: os afetos não se materializam dentro de mim!
[...]
Não me diga nada... não me diga nada! Tenha dó de mim...
muito dó...
[Lúcio] Calei-me. Pelo meu cérebro ia um vendaval desfeito. Eu
era alguém a cujos pés, sobre uma estrada lisa, cheia de sol e
árvores, se cavasse de súbito um abismo de fogo.
Mas, após instantes, muito naturalmente, o poeta exclamou:
- Bem, já vai sendo tempo de nos irmos embora (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.68-69, grifo do autor).
A grande confissão da vida de Ricardo, evidentemente, causa
furor e algum estranhamento em Lúcio, mas nada que prejudique a
amizade e a confiança mútua de ambos. Por vezes, isso é algo que
perpassa a narrativa; é como se fossem várias confissões de Ricardo,
dentro da grande confissão de Lúcio, que quer declarar sua inocência
e, para tanto, precisa descrever uma narrativa de fatos acontecidos
anteriormente que expliquem como ele foi acusado de um crime que
não cometeu. No terceiro capítulo, contudo, o narrador se preocupa
em afirmar que a conversa em que Ricardo fez sua confissão não é
retomada por ambos, em momento algum, mas ainda assim ele nunca
a apagou da memória:
sumário
271
No dia seguinte, de novo nos encontrámos, como sempre, mas
não aludimos à estranha conversa da véspera. Nem no dia seguinte, nem nunca mais...até ao desenlace da minha vida.
Entretanto, a perturbadora confidência do artista não se me varrera da memória. Pelo contrário – dia algum eu deixava de a relembrar, inquieto, quase numa obsessão (SÁ-CARNEIRO, 2006,
p.71, grifo nosso).
A partir desse ponto da trama, em fins de 1895, Ricardo decide
regressar a Portugal e os dois acabam por ficar um ano separados.
Mesmo também amando a cidade de Paris, Lúcio decide voltar a Portugal e os dois podem finalmente se reencontrar. É aqui que somos introduzidos a outra personagem, Marta, a esposa de Ricardo. A amizade
de Lúcio e Ricardo se intensifica, como também a relação de Lúcio
com Marta. A partir desse momento, uma obsessão toma de assalto o
protagonista: nada se sabe sobre o passado da esposa de seu melhor
amigo e ele fica cada vez mais obcecado com a ideia de investigá-lo:
Mas ai, de súbito, uma estranha obsessão começou no meu
espírito...
Como que acordado bruscamente de um sonho, uma noite
achei-me perguntando a mim próprio:
- Mas no fim de contas quem é esta mulher?...
Pois eu ignorava tudo a seu respeito. Donde surgira? Quando a
encontrara o poeta? Mistério... Em face de mim nunca ela fizera a
mínima alusão ao seu passado, Nunca falara de um parente, de
uma amiga. E, por parte de Ricardo, o mesmo silêncio, o mesmo
inexplicável silêncio...(SÁ-CARNEIRO, 2006, p.79, grifo do autor).
A obsessão segue sendo o maior interesse de Lúcio, que, por vezes, começa a duvidar se Marta existe de verdade. Cabe mencionar que,
embora esta tenha uma importância crucial para a narrativa, ela raramente se pronuncia e é apresentada como uma personagem que não age, a
não ser por intermédio das demais, principalmente Ricardo. Tampouco
sumário
272
há uma descrição física dela e o narrador chega a comentar que para ela
não existe passado nem futuro, apenas o momento presente:
De maneira que a realidade inquietante era esta: aquela mulher
erguia-se aos meus olhos como se não tivesse passado – como
se tivesse apenas presente!
Em vão tentei expulsar do espírito as idéias afogueadas. Mais e
mais cada noite elas se enclavinhavam, focando-se hoje toda a
minha agonia em desvendar o mistério.
Nas minhas conversas com Marta esforçava-me por obrigá-la
a descer no seu passado. Assim lhe perguntava naturalmente
se conhecia tal cidade, se conservava muitas reminiscências
da sua infância, se tinha saudades desta ou de outras épocas
da sua vida... Mas ela – naturalmente também, suponho – respondia iludindo as minhas perguntas; mais:como se não me
percebesse... (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.80, grifo do autor).
É importante notar que Lúcio discute muito sutilmente a existência
ou não de Marta, principalmente quando, adiante no enredo, comenta
que num momento ela simplesmente desaparece, enquanto eles escutam, na casa de Ricardo, um amigo executando uma música ao piano:
Automaticamente os meus olhos se tinham fixado na esposa de
Ricardo que se assentara num fauteuil ao fundo da casa, em um
recanto, de maneira que só eu a podia ver olhando ao mesmo
tempo para o pianista.
Longe dela, em pé, na outra extremidade da sala, permanecia
o poeta [Ricardo].
E então, pouco a pouco, à medida que a música aumentava
de maravilha, eu vi – sim na realidade vi! – a figura de Marta
dissipar-se, esbater-se, som a som, lentamente, até que desapareceu por completo. Em face dos meus olhos abismados eu
só tinha agora o fauteuil vazio... (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.82-83,
grifo do autor).
Por mais inverossímil que seja tal acontecimento, devemos recordar aquilo que Lúcio comenta no início da obra: ele falará a verdade,
sumário
273
ainda que não aparente isso. Neste ponto da narrativa, estamos claramente diante de um acontecimento inverossímil. Após o desaparecimento de Marta, o protagonista prossegue:
Fui de súbito acordado da miragem pelos aplausos dos auditores que a música genial transportara, fizera fremir, quasi delirar...
E velada, a voz de Ricardo alteou-se:
- Nunca vibrei sensações mais intensas do que perante esta
música admirável. Não se pode exceder a emoção angustiante,
perturbadora, que ela suscita. São véus rasgados sobre o além
– o que a sua harmonia soçobra... Tive a impressão de que tudo
quanto me constitui em alma, se precisou condensar para a estremecer – se reuniu dentro de mim, ansiosamente, em um globo
de luz... (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.83, grifo nosso).
Marta desaparece exatamente no momento em que Ricardo declara o quanto a música lhe causa total emoção. Tal situação faz com
que tudo que faça parte dele se reúna. Essa é outra passagem que só
ganhará sentido mais amplo quando Ricardo revelar sua real relação
com a esposa, mais ao final do romance.
A obsessão de Lúcio acaba por resvalar no interesse dele em
Marta, o que culmina num tórrido caso de amor entre ambos. Persiste
a pergunta sobre o passado não revelado de Marta e, mesmo assim,
o caso dos dois continua, tanto que Lúcio deixa claro não sentir culpa
pelos seus atos. As coisas complicam-se quando Marta rareia as visitas que fazia à casa do amante e este se dá conta de que ela teria um
terceiro alguém:
Ai, quanto eu não daria por conhecer o seu outro amante... os
seus outros amantes...
Se ela me contasse os seus amores livremente, sinceramente,
se eu não me ignorasse as suas horas – todo o meu ciúme desapareceria, não teria razão de existir.
sumário
274
Com efeito, se ela não se ocultasse de mim, se apenas se
ocultasse dos outros, eu seria o primeiro. Logo, só me poderia
envaidecer; de forma alguma me poderia revoltar em orgulho.
Porque a verdade era essa, atingira: todo meu sofrimento provinha apenas do meu orgulho ferido (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.121,
grifo do autor).
A dúvida de quem seria o tal amante é logo revelada: Sérgio
Warginsky, uma personagem secundária, grande amigo de Ricardo e
um dos desafetos do narrador, o que geraria neste por conta disso:
E dar-se-ia o mesmo com Sérgio? Oh sem dúvida... Ricardo estimava-o tanto...
......................................................................................................
O mais infame, o mais inacreditável, porém, era que sabendo
ele, a sua amizade, as suas atenções, por mim e pelo russo
aumentassem a cada...
Que ele soubesse e entanto se calasse, por muito amar a sua
companheira e, acima de tudo, não a querer perder – ainda se
admitia. Mas então, ao menos, que mostrasse uma atitude nobre – que nos não adulasse, que não nos acariciasse (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.134, grifo do autor).
Isso provoca o afastamento de Marta71 e, por conseguinte, do
próprio Ricardo. No entanto, a grande raiva de Lúcio provém do amigo,
que, mesmo sabendo dos dois casos, nada teria feito para impedir:
Ah! como tudo isto me revoltava! Não propriamente pela sua
atitude; antes pela sua falta de orgulho. Eu não soube nunca
desculpar uma falta de orgulho. E sentia que toda minha amizade por Ricardo de Loureiro soçobrara hoje em face da sua
baixeza. A sua baixeza! Ele que tanto me gritara ser o orgulho a
71
sumário
Lúcio refere que se deitar com uma mulher, que já se deitara com um desafeto seu, seria
como se deitar com o desafeto: “Se esse amante que eu ignorava fosse alguém que me
inspirasse um grande nojo?... Podia muito bem ser assim, num pressentimento, tanto
mais que – já o confessei – ao possuí-la, eu tinha a sensação monstruosa de possuir
também o corpo masculino desse amante” (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.124).
275
única qualidade cuja ausência não perdoava em um carácter...
(SÁ-CARNEIRO, 2006, p.134).
Tal sentimento só é confidenciado mais ao final da narrativa,
quando ambos se reencontram. Lúcio declara todo o seu amargor e
chegamos ao clímax, no qual Ricardo revela a grande confissão que
norteia as motivações do suposto crime que fez com que o protagonista passasse dez anos na cadeia. O amigo, então, confessa:
[...] Pois não te lembras já, Lúcio, do martírio da minha vida? Esqueceste-o?... Eu não podia ser amigo de ninguém... não podia
experimentar afectos [...] Dedicavas-me um grande afeto, eu
queria vibrar esse teu afeto – isto é: retribuir-to (sic); e era-me
impossível!...Só te beijasse, se te enlaçasse, se te possuísse...
Ah! Mas como possuir uma criatura do nosso sexo? [...] Uma
noite, porém [...] Achei-A, sim, criei-A! criei-A![...] Ela é só minha
entendes? [...] Mandei-A ser tua! (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.150,
grifo do autor).
Na sequência, ele afirma que também era muito amigo de Sérgio, por isso Marta também se deitara com ele, sendo essa a justificativa para o terceiro homem na sua vida.
O enredo segue e Ricardo leva o amigo até sua casa, onde
encontram Marta. O esposo, sem pensar, dá um tiro à queima-roupa;
contudo, não é ela quem morre:
[...] Quem jazia estiraçado junto da janela, não era Marta! – não –
era o meu amigo, era Ricardo... E aos meus pés – sim aos meus
pés! Caíra o seu revólver ainda fumegante!
Marta, essa desaparecera, evolara-se em silêncio, como se extingue uma chama... (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.154, grifo do autor).
Lúcio finda a sua confissão, sinalizando que não teria como declarar sua inocência, pois, “com o inverossímil, ninguém se justifica.
Por isso me calei” (SÁ- CARNEIRO, 2006, p.155).
sumário
276
A hipótese que talvez melhor explique a relação aqui presente
entre o Eu e o Outro na obra é que Ricardo e Marta são a mesma pessoa72. Suas confissões, por intermédio de Lúcio, justificariam a criação
desse duplo. Em vários momentos do enredo, isso fica evidente, primeiramente quando Marta sugere a Ricardo que beije o amigo:
E Marta:
- Que beijo tão desengraçado! Parece impossível que ainda não
saiba dar um beijo... Não tem vergonha? Anda, Ricardo, ensina-o tu...
Rindo, o meu amigo ergueu-se, avançou para mim... tomou-me
o rosto... beijou-me...
......................................................................................................
O beijo de Ricardo fora igual, exatamente igual, tivera a mesma
cor, a mesma perturbação que os beijos da minha amante. Eu
sentira-o da mesma maneira (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.109, grifo
do autor).
Lúcio afirma que o beijo era igual ao dela, que se sentira exatamente da mesma forma. Sendo o mesmo beijo, então poderia ser a
mesma pessoa. No clímax da trama, Ricardo profere a seguinte confissão: “[Sobre Marta] Compreendemo-nos tanto, que Marta é como se
fora a minha própria alma! Pensamos da mesma maneira; igualmente
sentimos. Somos nós-dois...” (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.150). Esse trecho talvez confirme a razão do primeiro desaparecimento da esposa,
do qual tratamos anteriormente. O esposo, extremamente tocado pelas sensações que uma música lhe causa, afirma que a emoção foi
tamanha que por um momento acabou por unir todas as partes de
sua alma, entrando numa espécie de transe. Como Marta é seu duplo,
72
sumário
Evidentemente, essa não é uma questão de fácil resolução no que tange à fortuna crítica
da obra. Antônio Quadros (1994), por exemplo, defende que Ricardo e Marta seriam desdobramentos de Lúcio. Rita Alcaraz (2005, p. 9), por sua vez, acredita que Marta seja uma
obra de arte do artista Ricardo: “A arte transcende, a subjetividade, materializando-se em
Marta, criação do artista Ricardo”. O que nos interessa não é apresentar um visionamento
que reduza a discussão, mas, sim, uma nova possibilidade de análise.
277
uma parte de sua alma, parece natural que ela desapareça do plano
físico e se una a Ricardo, quando este se vê impelido a juntar todas as
partes do seu ser para dentro de si.
Em outro ponto da trama, Lúcio reafirma que o beijo de ambos
era sentido por ele da mesma forma: “E ao penetrar-me esta idéia
alucinadora, eu lembrava-me sempre de que o beijo de Ricardo, esse
beijo, masculino, me soubera às mordeduras de Marta: tivera a mesma cor, a mesma perturbação...” (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.112). Esses fatos fazem crer que, na verdade, Ricardo e Marta são a mesma
pessoa e Lúcio insinua, em outro ponto da narrativa, que ela nunca
divergia do pensamento do marido e, por conta disso, era como se
fosse uma extensão dele:
Marta misturava-se por vezes nas nossas discussões, e evidenciava-se de uma larga cultura, de uma finíssima inteligência. Curioso que a sua maneira de pensar nunca divergia da
do poeta [Ricardo]. Ao contrário: integrava-se sempre com a
dele reforçando, aumentando em pequenos detalhes as suas
teorias, as suas opiniões. (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.75)
Ainda sobre essa simbiose Ricardo-Marta, quando Lúcio retorna
a Portugal e ele e Ricardo se reencontram, o narrador comenta:
Ricardo esperava-me na estação.
Mas como o seu aspecto físico mudara nesse ano que estivéramos sem nos ver!
As suas feições bruscas haviam amenizado, acetinado – feminilizado, eis a verdade – e detalhe que mais me impressionou,
a cor dos seus cabelos esbatera-se também. Era mesmo talvez
desta última alteração que provinha, fundamentalmente, a diferença que eu notava na fisionomia do meu amigo – fisionomia
que se tinha difundido, Sim, porque fora esta a minha impressão
total: os seus traços fisionômicos haviam-se dispersado – eram
hoje menores (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.72, grifo do autor).
sumário
278
A feminilização sugerida por Lúcio talvez seja a maneira que a
obra encontra de lidar com um suposto romance homossexual sugerido pela narrativa: Ricardo era em verdade apaixonado por Lúcio, daí
a criação daquela que seria uma segunda face do Outro– Marta, esta,
sim, mulher, presa as diferentes convenções sociais da época73 no que
se referiam a essa situação. Sua criação se faz necessária para que
Ricardo possa se relacionar com um homem, ainda que o livro toque
em outro tema tabu para o contexto: o adultério74.
Ambos são supostamente a mesma personagem, pois Ricardo
não pode ceder aos desejos homoafetivos, quando confessa que só
poderia ser amigo de outro homem se ambos trocassem de sexo. Ele
revela que, na verdade, sente desejo de possuir o amigo, mas, como
isso é considerado imoral no contexto em que a obra se passa, a solução proposta é se tornar mulher para poder se entregar à individualidade e, dessa maneira, possuir e poder ser de fato amigo de Lúcio,
visto que o poeta confessara páginas anteriores que jamais conseguiria experimentar a plenitude de afeição por alguém a menos que viesse
a experimentar a maior
ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar... de estreitar... Enfim: de possuir! [...]
Logo eu só poderia ser amigo de uma criatura do meu sexo,
sumário
73
As convenções sociais para a sociedade são responsáveis por manter as estruturas de
poder e os indivíduos controlados para que permaneçam dóceis, úteis e mantenham as
estruturas sociais intocadas (FOUCAULT, 2007). Tais convenções, no contexto da sociedade burguesa de meados do século XIX e início do século XX, são ainda mais contundentes
e importantes, mantendo o status que a sociedade precisa ter: o homem como provedor
da casa, a mulher como a senhora do lar, aquela que deve cuidar da família, e as crianças
subjugadas às vontades dos mais velhos (HOBSBAWM, 2015). Não há espaço, nessa sociedade, para o sexo de maneira desregulada ou para qualquer tipo de relação amorosa
que não seja estritamente entre um homem e uma mulher (FOUCAULT, 1979), daí a necessidade de, para Ricardo poder ceder ao desejo de possuir, de estreitar suas relações com
Lúcio, criar um duplo de si, uma mulher, podendo essa, sim, viver um caso com o amigo.
74
Sobre a questão do adultério nesse contexto, Hobsbawm (2015, p. 325) afirma: “[...] um
comportamento francamente duplo era aceito: castidade para mulheres solteiras e fidelidade para as casadas, a caça livre de todas as mulheres (exceto talvez as filhas casadoiras
das classes médias e altas) por todos os jovens burgueses, solteiros e uma infidelidade
tolerada para os casados”; assim, o adultério de Marta não seria socialmente aceito.
279
se esta criatura ou eu mudássemos de sexo (SÁ-CARNEIRO,
2006, p.69, grifo do autor).
De fato, conforme já mencionado, Lúcio salienta que quem o
possuiu foi Marta e não o contrário. Sendo assim, se assumimos que
Marta e Ricardo são um só, então foi Ricardo quem o possuiu; para
além do desejo carnal que poderia sentir por ele, houve a necessidade
demudar de sexo para exercer a afeição pelo amigo. Tudo indica que
ele se encontrava em crise identitária, sem conseguir se incluir nos
preceitos sociais e experimentar a plenitude de afeição por alguém.
Não o podendo, por conta daquilo que confessa a Lúcio como “a maior
dor” (SÁ-CARNEIRO, 2006, p.68) de sua vida, Ricardo recorre à criação
desse duplo para poder experienciara afeição que não podia vivenciar
sem esse desdobramento ou, conforme acreditamos, um interesse
afetivo/sexual reprimido que teria por Lúcio, afinal isso se dá exatamente por meio de uma figura feminina.
Foucault (2003) discorre que, para os gregos, haveria uma distinção entre um amor homossexual e um amor heterossexual. Por outro
lado, também afirma que a história da sexualidade supõe duas rupturas, dois momentos em que os mecanismos de repressão atuaram de
maneira diferenciada a meio de cercear – ou não –determinados desejos sexuais – entre eles, a homossexualidade – que poderiam causar
algum tipo de problema na ordem vigente da época:
Uma [das rupturas] no decorrer do século XVII: nascimento das
grandes proibições, valorização exclusiva da sexualidade adulta
e matrimonial, imperativos de decência, esquiva obrigatória do
corpo, contenção e pudores imperativas da linguagem; a outra
no século XX; menos ruptura, aliás, do que inflexão da curva:
começado a afrouxar (FOUCAULT, 1979, p.109, grifo nosso).
De fato, entre o século XVII e o início do XX, a sexualidade humana foi marcada por proibições, ora do ponto de vista moral/religioso,
ora do ponto de vista biológico/científico. A esse respeito, ele declara:
sumário
280
Na mesma época, a análise da hereditariedade colocava o sexo
(as relações sexuais, as doenças venéreas, as alianças matrimoniais, as perversões) em posição de ‘responsabilidade biológica’
com relação a espécie; não somente o sexo podia ser afetado
por suas próprias doenças mas, se não fosse controlado, podia transmitir doenças ou criá-las para as gerações futuras [...]
A medicina das perversões e os programas de eugenia foram, na
tecnologia do sexo, as duas grandes inovações da segunda metade dó século XIX75 (FOUCAULT, 1979, p.111-112, grifo nosso).
Dessa forma, e considerando que a homossexualidade era, inclusive, vista como patologia até pelo menos o início da década de
199076, Ricardo, um homem burguês, não se sentiria confortável em
ceder aos desejos que tinha – neste caso, a questão homoafetiva –,
pois eram reprimidos, inclusive por ele mesmo, daí a necessidade de,
para conseguir vivê-los, criar um Eu feminino que segue a ordem social
e respeita as proibições impostas pela sociedade.
Com a morte de Ricardo, o próprio Lúcio não sabe bem o que
aconteceu, pois Marta some e ele é preso pelo crime que declara não
ter cometido. Então, dá início à sua confissão, a fim de nos convencer
de que fora preso injustamente:
Quando pude raciocinar, juntas duas idéias, em suma: quando despertei deste pesadelo alucinante, infernal, que fora só a
realidade, a realidade inverossímil – achei-me preso num calabouço do Governo Civil, guardado à vista por uma sentinela...
(SÁ-CARNEIRO, 2006, p.154, grifo do autor).
sumário
75
A confissão de Lúcio se passa exatamente entre as duas rupturas que Foucault (1979)
cita: o enredo principia em fins do século XIX e finda já em 1900, no início do século XX,
quando de certa forma as proibições começaram a ser atenuadas. Isso talvez explique
por que Lúcio, ao final do romance, embora estupefato com a confissão de Ricardo, aja
com certa naturalidade frente à talvez possibilidade de que, se Ricardo e Marta forem de
fato a mesma pessoa, tenha tido um caso com outro homem.
76
Sobre esse aspecto, Sandra Magrini Ferreira Mendes (2007, p. 250) afirma: “[...] o cristianismo, as ciências médicas e a sexologia inicialmente definiram a homossexualidade
como uma patologia, um desvio da conduta sexual normal, buscando deste modo mudá-la para o ‘padrão’ dominante vigente da heterossexualidade. Mais recentemente, a 10º
edição da classificação internacional de doenças – CID-10 (OMS, 1993) e a quarta edição
do manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais – DSM (APA, 1995), excluíram
a homossexualidade da classificação de ‘doença’”.
281
Considerando o fato de que Lúcio (o Eu) e Ricardo (o Outro) confessam, nós, leitores, acabamos por acreditar no que eles proferem,
ainda que sejam fatos inverossímeis. Ambas as confissões também se
inserem na crise da Modernidade, permeada pelo contexto da obra. A
respeito da grande dificuldade de se inserir em sociedade, Lúcio declara:
Não comprava jornais portugueses. Se vinha no Matin qualquer telegrama de Lisboa, não o lia; e assim, em verdade quási
triunfara esquecer-me de quem era...Entre a multidão cosmopolita, criava-me alguém sem pátria, sem amarras, sem raízes
em todo o mundo.
- Ah! que venturoso eu fora se não tivesse nascido em parte nenhuma e entretanto existisse... – lembrei-me muita vez
estranhamente, nos meus passeios solitários pelos bulevares,
pelas avenidas pelas grande praças (SÁ-CARNEIRO, 2006,
p.136, grifo nosso).
Um homem imerso numa sociedade cosmopolita, mas que se
sente deslocado dela. É exatamente assim que Lúcio descreve sua
relação com o mundo. A respeito disso, devemos considerar o que
apresenta Berman (1997, p.15-16, grifo nosso):
As pessoas que se encontram em meio a esse turbilhão estão aptas a sentir-se como as primeiras, e talvez as últimas, a
passar por isso; [...]O turbilhão da vida moderna tem sido alimentado por muitas fontes: grandes descobertas nas ciências
físicas, com a mudança da nossa imagem do universo e do
lugar que ocupamos neles; a industrialização da produção, que
transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos
ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo
de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de
classes; [...] rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu
desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades.
Lúcio está imerso nessa sociedade que prega o que Berman
(1997) chama de “modernização”, conceito que atinge a sociedade
sumário
282
como um todo, passando pela questão científica e política e interferindo na vida individual das pessoas.Contudo, a despeito de todo o
progresso que a modernização traria ao final do século XIX e início do
século XX, ele se sente perdido na relação que estabelece entre si próprio – o Eu – e o restante do mundo – neste caso,o(s) Outro(s) –, tanto
que gostaria, se possível, de se alhear de tudo, inclusive fragmentando
e perdendo a própria identidade.
REFERÊNCIAS
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leitura de A confissão de Lúcio e O retrato de Dorian Gray. 2005. 130 f.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2005. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/bitstream/handle/1884/8449/
rita.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 20 jan. 2020.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: A Aventura da
modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
BURCKHART, Thiago. Alteridade é colocar-se no lugar do mais
fraco. 2016. Disponível em: http://www.justificando.com/2016/06/30/
alteridade-e-colocar-se-no-lugar-do-mais-fraco/. Acesso em: 30 jul. 2019.
DREYFUS, Hubert L.; RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória
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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 37. ed. Petrópolis:
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GALHOZ, Maria Aliete. Mário de Sá-Carneiro. Lisboa: Presença, 1963.
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sumário
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sumário
284
14
Capítulo 14
Literaturas a contrapelo: a redenção
dos oprimidos nas obras de Miguel
Torga e José Saramago
Charles Vitor Berndt
Charles Vitor Berndt
Literaturas
a contrapelo:
a redenção dos oprimidos
nas obras de Miguel Torga
e José Saramago
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.14
Resumo: Walter Benjamin, em suas teses “Sobre o conceito de História”, chama nossa atenção para a necessidade de se escovar a história a contrapelo e
todo seu pensamento, influenciado pelo marxismo, está a serviço da emancipação dos oprimidos, da classe trabalhadora. Atentando, ainda, para o conceito benjaminiano de redenção, o objetivo deste texto é traçar um paralelo entre
o pensamento do crítico alemão e a literatura de dois escritores portugueses
do século XX: Miguel Torga e José Saramago. Influenciados pelo neorrealismo
português, ambos construíram uma literatura cujo papel se assemelha ao materialista histórico benjaminiano, representando injustiças sociais e narrando
histórias sob o ponto de vista dos trabalhadores, isto é, as personagens principais dos seus textos são sempre os pobres, os trabalhadores, os excluídos,
os vencidos de que nos fala Benjamin.
Palavras-chave: Walter Benjamin; Miguel Torga; José Saramago; Redenção
dos oprimidos.
sumário
286
HISTÓRIA E REDENÇÃO DOS OPRIMIDOS
NAS TESES DE WALTER BENJAMIN
Em nossa breve análise, interessa, primeiramente, lançar mão
do conceito de história desenvolvido e apresentado por Walter Benjamin em Teses sobre o conceito de história, de 1940, que está intrinsecamente relacionado à sua concepção “dialética (e materialista)
da cultura” (LOWY, 2011, p. 199). Em linhas gerais, podemos dizer
que Benjamin é um crítico da história universal, ou seja, é um anti-historicista, na medida em que aponta a descontinuidade da história
e problematiza o modo como ela é convencionalmente preservada
e contada, sempre do ponto de vista dos vencedores, das classes
dominantes. Em suas palavras,
o momento destruidor: demolição da história universal, eliminação do elemento épico, nenhuma identificação com o vencedor.
A história deve ser escovada a contrapelo. A história da cultura
como tal é abandonada: ela deve ser integrada à história da luta
de classes (BENJAMIN, 1981 apud LOWY, 2011, p. 21).
Em sua Tese VII, Benjamin (2005, p. 70) deixa claro que é função
do materialista histórico estar ciente da barbárie que se esconde sob
o cortejo dos vencedores:
Nunca há um documento da cultura que não seja, ao mesmo
tempo, um documento da barbárie. E, assim como ele não está
livre da barbárie, também não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se
afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a histórica a contrapelo.
Escovar a história a contrapelo significa perceber a barbárie por
trás da capa da civilização, isto é, por trás do cortejo dos vencedores,
dos heróis, dos monumentos históricos, dos obeliscos, Benjamin nos
mostra que se esconde uma infinidade de vidas apagadas, silenciadas,
sumário
287
uma massa incalculável de sujeitos oprimidos, excluídos, explorados,
marginalizados e privados das conquistas e avanços da modernidade.
Assim, seu pensamento pode ser compreendido como “uma crítica
moderna à modernidade” (LOWY, 2005, p. 15), estabelecendo relações
com o Romantismo, com o messianismo judaico e com o marxismo.
A crítica benjaminiana à modernidade, ao capitalismo, à ideia de
progresso, presente em muitos de seus textos, inspira-se, em primeiro
lugar, no pensamento romântico, que sempre criticou a degradação
humana a partir da Revolução Industrial, sobretudo
[...] a transformação dos seres humanos em ‘máquinas de trabalho’, a degradação do trabalho a uma simples técnica, a submissão desesperadora das pessoas ao mecanismo social, a
substituição dos ‘esforços heroico-revolucionários’ do passado
pela piedosa marcha (semelhante à do caranguejo) da evolução e do progresso (LOWY, 2005, p. 20).
Já no que toca ao messianismo judaico, podemos dizer que o
pensamento de Benjamin se apropria da sua ideia e desejo de liberdade e de redenção, principalmente depois que leu a obra de Franz
Rosenzweig (LOWY, 2005). De Marx, o filósofo alemão apodera-se,
especialmente, de seu conceito de luta de classes. A partir de 1924,
Benjamin passa a ter contato com os textos de Lukács e a concepção
de luta de classes ocupa um lugar central em seu pensamento. Ao contrário do que se poderia supor, ele não deixa, a partir do materialismo
histórico, de criticar o progresso e apontar seus problemas, afastando-se do marxismo ortodoxo:
Ao contrário do marxismo evolucionista vulgar – que pode se
referir evidentemente a alguns escritos de Marx e Engels – Benjamin não concebe a evolução como resultado ‘natural’ ou ‘inevitável’ do progresso econômico e técnico (ou da ‘contradição
entre forças e relações de produção’), mas como a interrupção de uma evolução histórica que leva à catástrofe. E é por
perceber esse perigo catastrófico que ele evoca (no artigo sobre o Surrealismo em 1929) o pessimismo – um pessimismo
sumário
288
revolucionário que não tem nada a ver com a resignação fatalista e, menos ainda, com o Kultur-pessimimus alemão, conservador, reacionário e pré-fascista de Carl Schmitt, Oswal Spengler
ou Moeller van de Bruck; o pessimismo está aqui a serviço da
emancipação das classes oprimidas. Sua preocupação não é
com o ‘declínio’ das elites ou da nação, mas sim com as ameaças que o progresso técnico e econômico promovido pelo capitalismo faz pesar sobre a humanidade (LOWY, 2005, p. 23).
Como bem coloca Michael Lowy (2005, p. 23), o pessimismo e
o anti-historicismo de Benjamin em suas teses estão “[...] a serviço da
emancipação das classes oprimidas”, bem como denotam o quanto
o autor estava ciente das ameaças que assolavam a Europa em 1940,
já durante os acontecimentos da Segunda Guerra. Em verdade, toda
a obra de Walter Benjamin é “[...] uma espécie de aviso de incêndio
dirigido a seus contemporâneos, um sino que repica e busca chamar
atenção sobre perigos iminentes que os ameaçam, sobre as novas
catástrofes que se perfilam no horizonte” (LOWY, 2005, p. 32).
Aliado à sua concepção descontínua e revolucionária de história, interessa-nos, ainda, algo que Walter Benjamin denomina, em sua
Tese II, redenção:
Em outras palavras, na representação da felicidade vibra conjuntamente, inalienável, a [representação] da redenção. Com
a representação do passado, que a História toma por sua causa, passa-se o mesmo. O passado leva consigo um índice
secreto pelo qual é remetido à redenção. Não nos afaga, pois,
levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam? Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das
que estão, agora, caladas? E as mulheres que cortejamos não
têm irmãs que jamais conheceram? Se assim é, um encontro
secreto está marcado entre as gerações passadas e a nossa.
Então fomos esperados sobre a Terra. Então nos foi dada, assim como a cada geração que nos precedeu, uma fraca força
messiânica, à qual o passado tem pretensão. Essa pretensão
não pode ser descartada sem custo. O materialista histórico
sabe disso (BENJAMIN apud LOWY, 2005, p. 48).
sumário
289
Mas a revolução só será possível, para Benjamin, se houver um
processo de rememoração histórica que una o sofrimento dos vencidos de ontem às lutas dos trabalhadores e subalternos de hoje, à
maneira do que faz, por exemplo, o poeta Bertold Brecht (2000, p. 77),
no poema Perguntas de um operário que lê:
Quem construiu a Tebas de sete portas?
Nos livros estão nomes de reis.
Arrastaram eles os blocos de pedra?
E a Babilônia várias vezes destruída. Quem a reconstruiu tantas
vezes?
Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?
Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha
da China ficou pronta?
A grande Roma está cheia de arcos do triunfo.
Quem os ergueu? Sobre quem triunfaram os césares?
A decantada Bizâncio
Tinha somente palácios para seus habitantes? Mesmo na lendária Atlântida
Os que se afogavam gritaram por seus escravos
Na noite em que o mar a tragou.
O jovem Alexandre conquistou a Índia.
Sozinho?
César bateu os gauleses.
Não levava sequer um cozinheiro?
Filipe da Espanha chorou, quando sua Armada
sumário
290
Naufragou. Ninguém mais chorou?
Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
Quem venceu além dele?
Cada página uma vitória.
Quem cozinhava o banquete?
A cada dez anos um grande homem.
Quem pagava a conta?
Tantas histórias.
Tantas questões.
Portanto, escovar a história a contrapelo, nesses termos, significa
lançar os olhos para o passado e para o presente e ver o número infindável de vidas apagadas, silenciadas, esmagadas, isto é, enxergar, como
Brecht (2000), a barbárie que se esconde sob os “documentos de cultura” (LOWY, 2005, p. 79). Mas, para que haja de fato uma redenção e uma
transformação concreta da sociedade, é preciso uma ação prática, e
não somente a contemplação e consciência das injustiças e opressões
de ontem: “É preciso, para que a redenção aconteça, a reparação – em
hebraico, tikkun – do sofrimento, da desolação das gerações vencidas,
e a realização dos objetivos pelos quais lutaram e não conseguiram alcançar” (LOWY, 2005, p. 51). Em outras palavras, não basta contemplar
e ter consciência das injustiças do passado; é necessário que haja uma
conexão entre o ontem e o agora. É o que lemos, por exemplo, na Tese
XIV: “A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’. Assim, a Roma
antiga era para Robespierre um passado carregado de ‘agoras’, que ele
fez explodir do continuum da história” (LOWY, 2005, p. 119).
A classe operária, nessa visão, é herdeira dos oprimidos do passado e essa lembrança pode ajudá-la a romper com o sistema opressivo
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291
ao qual está submetida. Segundo Benjamin, por meio desse processo
de rememoração e de revisão histórica, os oprimidos de hoje podem
encontrar no passado uma espécie de “força messiânica” que os ajude
no seu processo emancipatório. Nas palavras de Lowy (2005, p. 120),
o passado contém o presente, Jeztzeit – ‘tempo-de-agora’ ou
‘tempo atual’. Em uma variante da tese XIV, o Jeztzeit é definido
como um ‘material explosivo’ ao qual o materialismo histórico
junta o estopim. Trata-se de fazer explodir o contínuo da história
[...] com a ajuda de concepção do tempo histórico que o percebe como pleno, carregado de momentos ‘atuais’, explosivos,
subversivos.
Essa ideia nos faz pensar que escritores como Miguel Torga, José
Saramago e os próprios neorrealistas portugueses, mediante seu engajamento social e seu alinhamento com a teoria marxista, são um exemplo desse desejo benjaminiano de escovar a história a contrapelo e de
redimir, por meio da literatura, os sofrimentos dos oprimidos de ontem e
de hoje. Para que discutamos isso, acreditamos ser necessário retomar
outra discussão do filósofo alemão, quando propõe a politização da arte
como uma resposta à estetização da guerra feita pelo fascismo, no texto
A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica.
Como coloca Benjamin (1985, p. 195-196), pelo cinema, principalmente, o fascismo constrói uma espécie de espetáculo a partir da
guerra, da destruição, da catástrofe:
Multidões de milhares de pessoas podem ser captadas mais
exatamente numa perspectiva a vôo de pássaro. E, ainda que
essa perspectiva seja tão acessível ao olhar quanto à objetiva, a imagem que se oferece ao olhar não pode ser ampliada,
como a que se oferece ao aparelho. Isso significa que os movimentos de massa e em primeira instância a guerra constituem
uma forma do comportamento humano especialmente adaptada ao aparelho. As massas têm o direito de exigir a mudança
das relações de propriedade; o Fascismo permite que elas se
exprimam conservando, ao mesmo tempo, essas relações. Ele
desemboca, conseqüentemente, na estetização da vida política
sumário
292
[...] Todos os esforços para estetizar a política convergem para
um ponto. Esse ponto é a guerra. A guerra, e somente a guerra,
permite dar um objetivo aos grandes movimentos de massa,
preservando as relações de produção existentes. Eis como o
fenômeno pode ser formulado do ponto de vista político. Do
ponto de vista técnico, sua formulação é a seguinte: somente a
guerra permite mobilizar em sua totalidade os meios técnicos do
presente, preservando as atuais relações de produção. É óbvio
que a apoteose fascista da guerra não recorre a esse argumento. Mas seria instrutivo lançar os olhos sobre a maneira com
que ela é formulada. Em seu manifesto sobre a guerra colonial
da Etiópia, diz Marinetti: ‘Há vinte e sete bela, porque graças às
máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e aos tanques, funda a supremacia do homem sobre a máquina subjugara. A guerra é bela, porque inaugura a metalização onífica do corpo humano. A guerra é bela, porque enriquece
um prado florido com as orquídeas de fogo das metralhadoras.
A guerra é bela, porque conjuga numa sinfonia os tiros de fuzil,
os canhoneios, as pausas entre duas batalhas, os perfumes e
os odores de decomposição. A guerra é bela, porque cria novas
arquiteturas, como a dos tanques, dos esquadrões aéreos em
formação geométrica, das espirais de fumaça pairando sobre
estética da guerra, para que eles iluminem vossa luta por uma
nova poesia e uma nova escultural’.
Evidentemente, esse texto precisa ser compreendido no seu
contexto específico, quando principalmente os nazistas utilizavam o
cinema como forma de propaganda do seu regime e de suas ideias.
Como forma de resistência a essa estetização da política que leva, indubitavelmente, à guerra, Benjamin (1985, p. 197, grifo nosso) propõe
a politização da arte:
Fiat ars, pereatmundus: é essa a palavra de ordem do fascismo que, como Marinetti o reconhece, espera obter na guerra a
satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela
técnica. Reside aí, evidentemente, a perfeita realização da arte
pela arte. Na época de Homero, a humanidade se oferecia em
espetáculo aos deuses do Olimpo; ela agora se converteu no
próprio espetáculo. Tornou-se tão alienada se si mesma que
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293
consegue viver sua própria destruição como um prazer estético
de primeira ordem. A resposta do comunismo é politizar a arte.
Portanto, nossa intenção é compreender essa reflexão de Benjamin como uma espécie de convite ao enfrentamento do fascismo
por parte dos intelectuais e dos artistas. Nesse sentido, estamos a
pensar em uma arte e em uma literatura engajadas, comprometidas
com questões sociais, econômicas e políticas, tal como o foram as
narrativas ligadas ao Neorrealismo português e o são os romances de
Torga e de Saramago, igualmente.77
Podemos nos perguntar, então: até que ponto a literatura e a
arte, de modo geral, podem dialogar com o pensamento de Walter
Benjamin, com o que lemos nas Teses II e VII, ou seja, com a sua proposta de escovar a história a contrapelo e de redimir, por meio da superação de desigualdades e injustiças sociais, os oprimidos, aqueles
que são privados da felicidade e dos gozos do progresso econômico
e técnico da modernidade? Qual é, afinal, o papel da literatura, como
obra de arte engajada? Nossa reflexão busca discutir alguns aspectos
da literatura desses dois escritores portugueses do século XX – Miguel
Torga e José Saramago –, cujos textos literários estão permeados por
ideias muito semelhantes às de Walter Benjamin, sobretudo no que
toca à luta de classes e a um olhar voltado à classe trabalhadora, aos
pobres, aos oprimidos e vencidos da história.
77
sumário
É importante mencionar que este texto, em alguma medida, é uma adaptação de algumas
discussões e análises levadas a cabo em nossa tese de doutoramento, intitulada Vindima
e Levantado do chão: fulgurações neorrealistas em Miguel Torga e em José Saramago,
defendida em 2021 junto ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade
Federal de Santa Catarina. Nesse estudo, inclusive, aprofundamos a discussão a respeito
da relação das obras de Torga e de Saramago com o Neorrealismo português. Defendemos que tanto Vindima quanto Levantado do chão estabelecem um claro diálogo com a
tradição neorrealista e devem ser compreendidos como textos que, em grande medida,
seguem os preceitos estéticos e ideológicos dessa tradição literária.
294
MIGUEL TORGA E JOSÉ SARAMAGO:
OPRESSÃO E REDENÇÃO EM VINDIMA
E EM LEVANTADO DO CHÃO
Nascido na região de Trás-os-Montes, ao norte de Portugal,
Miguel Torga78,por meio de sua literatura, demonstrou sempre ter uma
forte ligação com a terra, com o chão onde nasceu, com a parte rural
e campesina de Portugal. Não raro encontramos declarações como
esta: “Cuido que as coisas mais válidas que escrevi sabem à terra
nativa que trago agarrada aos pés” (TORGA, 1999, p. 279). Martin
Neumann (2009) nos lembra que é possível enxergar nos textos do
escritor de Trás-os-Montes uma grande fé no humano, na ação do
homem, sobretudo das pessoas mais simples e humildes. De fato,
nos textos de Torga, o protagonismo é quase sempre dado ao homem ou à mulher rural, aos camponeses e trabalhadores do campo
português, que, apesar dos séculos de submissão e exploração, ainda “[...] estão à espera de uma redenção sempre adiada mas nunca
esquecida” (LOURENÇO, 1995, p. 6).
Assim, a obra de Torga aproxima-se em vários aspectos do movimento neorrealista português, que fora gestado em Portugal a partir
de 1930. Robson Dutra (2010, p. 56) recorda que uma das principais
características do Neorrealismo português é o deslocamento “[...] do
espaço urbano para o rural, notadamente as regiões mais inóspitas de
Portugal”. Esse procedimento pode ser facilmente observado na obra
de Miguel Torga, cujos heróis, personagens principais, como dissemos, representam, de modo geral, as pessoas excluídas e marginalizadas da sociedade, camponeses, agricultores, trabalhadores pobres
do campo e do interior português.
78
sumário
Miguel Torga é, na verdade, o pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha, médico, poeta,
contista, ensaísta e romancista português, falecido em 1995.
295
Por meio de um de seus romances, Vindima, publicado em
1945, é possível ilustrar a preocupação do escritor transmontano em
produzir uma literatura com certa preocupação social, que denuncie
desigualdades e injustiças sociais, dando voz e espaço para “os perdedores da história” (DUTRA, 2010, p.54). Nesse romance, narra-se
a história de algumas famílias de aldeões do Norte de Portugal, que
todos os anos vão trabalhar, sob condições precárias e degradantes,
em vindimas na região do Doiro, colhendo uvas para a produção de
vinho em troca de um salário miserável.
Pais e filhos jogam naquela lotaria. Não que saia prémio que
se veja. Todos o sabem. Os magros vinténs que ficam no fim
da novena pouco ou nada adiantam. O que é, enche-se o peito
doutros ares, sonha-se à ida, pena-se à volta, e muda-se, varia-se, passam-se quinze dias que não cheiram a tristeza nem
a fuligem. Vive-se! E como Penaguião fica longe, e os rogadores têm as pernas curtas, é preciso aproveitar o que aparece
(TORGA, 1954, p. 9).
Vindima traz à tona a luta de classes existente na sociedade
moderna, sendo os vindimadores a representação dos trabalhadores,
daqueles que vendem sua força de trabalho aos capitalistas, que são
representados no romance, por sua vez, pelos patrões, os Lopes e
os Menezes, donos das vindimas, que, além de pagarem um salário miserável aos seus empregados, oferecem condições de trabalho
humilhantes e desumanas. Inúmeras vezes o narrador torguiano faz
referência ao modo como os vindimadores de Penaguião são tratados
na Cavadinha, na vindima dos Lopes, demonstrando, desde o início
do romance, o quanto os empregados são vistos pelos patrões como
animais de carga, bichos, praticamente destituídos de direitos:
Eram quarenta pessoas ao todo, entre homens, mulheres e
crianças. Foi o Seara, feitor da Cavadinha, que os apalavrou um
a um, de casa em casa, mais como anunciador de uma boa-nova do que como contratador de animais de carga. Quem podia
com as pernas ia aceitando logo, porque, feitas as malhadas,
Penaguião é uma eira de palha moída, já bafejada das primeiras
sumário
296
aragens frescas, sem ganhos, desolada, à espera das grandes
invernias. E quinze dias de trabalho fora apetecem como um
bálsamo (TORGA, 1954, p. 7).
Mas, na luta de classes e nos conflitos humanos evocados na
obra, é nos trabalhadores, nos pobres, alegorizados mediante os vindimadores, que o texto torguiano deposita sua fé e esperança de redenção. É no desfecho da narrativa de Torga que eles têm seu momento de maior redenção, num ato de insurreição, de revolta, enfrentando
o patrão injusto e cruel e o obrigando a pagar um salário melhor: “No
cimo da escada, a pinha de revoltoso ameaçava arrombar a porta.
E o Lopes não encontrou melhor caminho do que resolver o caso a
contento deles” (TORGA, 1954, p. 348). Em suma, Vindima evidencia
o quanto sempre
[…] doeram a Torga a carga de submissão e a incultura do seu
povo matricial, e por isso promoveu a heróis aqueles que, apesar dessa pesada herança, arrancaram das entranhas a violência que conquista o céu ou a finura instintiva com que se defendem do mundo civilizado da cidade, Babilônia longínqua que só
se lembra deles para lhes exigir o tributo do suor ou do sangue
(LOURENÇO, 1995, p. 9).
De forma semelhante, a literatura de José Saramago, Nobel em
Literatura, nascido no Ribatejo, outra região pobre e rural de Portugal, também possui forte ligação com o Neorrealismo e busca dar voz
àqueles que nunca tiveram espaço nem lugar dentro do discurso histórico oficial. É o que verificamos, principalmente, no romance Levantado
do chão, publicado em 1980, em que se conta a história dos Mau-Tempo, uma família de cavadores pobres dos latifúndios alentejanos que,
com o passar das gerações, depois de séculos de submissão, passa
a lutar por direitos e por uma vida mais justa.
Tal como acontece em Vindima, em Levantado do chão percebemos um processo de desumanização dos trabalhadores, comparados
sumário
297
muitas vezes pelo narrador aos animais, de modo a evidenciar a situação degradante que vivenciavam no latifúndio:
O povo fez-se para viver sujo e esfomeado. Um povo que se
lava é um povo que não trabalha, talvez nas cidades, enfim, não
digo que não, mas aqui, no latifúndio, vai contratado por três ou
quatro semanas para longe de casa, e meses até, se assim convier a Alberto, e é ponto de honra e de homem que durante todo
o tempo do contrato se não lave nem cara nem mãos, nem a
barba se corte. E se o fizer, hipótese ingénua de tão improvável,
pode contar com a troça dos patrões e dos próprios companheiros. É esse o luxo da época, gloriarem-se os sofredores do
seu sofrimento, os escravos da escravidão. É preciso que este
bicho da terra seja bicho mesmo, que de manhã some a remela
da noite à remela das noites, que o sujo das mãos, da cara, dos
sovacos, das virilhas, dos pés, do buraco do corpo, seja o halo
glorioso do trabalho no latifúndio, é preciso que o homem esteja
abaixo do animal, que esse, para se limpar, lambe-se, é preciso
que o homem se degrade para que não se respeite a si próprio,
nem aos seus próximos (SARAMAGO, 2013, p. 80-81).
Lélia Duarte (2011, p. 205) chama atenção justamente para o
fato de que, se no início de Levantado do chão as personagens aceitam
de forma submissa as suas vidas miseráveis e o trabalho desumano
lhes imposto no latifúndio, isso começa a mudar nas gerações seguintes, sobretudo a partir de João Mau-Tempo, personagem que desde
criança não aceita os maus-tratos dos patrões:
É interessante observar serem as crianças de novas gerações
as primeiras personagens a fazer perguntas, enquanto Domingos Mau-Tempo continua, sob muitos aspectos, como uma
criança reprimida. É como se na nova geração pudesse haver
espontaneidade, consequente a uma visão ainda não contaminada da realidade.
Aos poucos, João amadurece, aproxima-se de Sigismundo Canastro e Manuel Espada, outros cavadores que também ousam questionar os patrões e a lógica do latifúndio, e surgem, então, as primeiras
greves em Monte Lavre:
sumário
298
São duas as palavras, não aceitar a jorna de vinte e cinco escudos, não trabalhar por menos de trinta e três escudos por dia, de
sol a sol, porque assim tem de ser ainda, os frutos não amadurecem todos ao mesmo tempo. As searas diriam, se falassem,
muito pasmadas do desacerto, Que é isso que se passa, que
não nos vêm colher, alguém estará a faltar à sua obrigação. São
imaginações. As searas estão maduras, e esperam, já se vai
fazendo tarde (DUARTE, 2011, p. 147).
A primeira mudança que se vai percebendo no romance diz
respeito à consciência dos trabalhadores, que vão despertando, levantando-se do chão, tomando consciência das injustiças que sofrem
e procurando meios de resistir e lutar por um salário mais digno e
uma vida melhor. Assim, se no início da narrativa quase não se falava
de mulheres, o que observamos, com o passar do tempo no latifúndio, é que as personagens femininas ganham espaço, protagonismo e resistem e lutam ao lado dos homens, seus esposos, irmãos e
pais. Nesse sentido, a figura de Gracinda Mau-Tempo, filha de João
Mau-Tempo, casada com Manuel Espada, é a primeira personagem
feminina no romance que decide participar de uma manifestação de
trabalhadores rurais em Monte Mor:
Gracinda Mau-Tempo também quis vir, já não há quem segure
as mulheres, isto pensam os mais velhos e antigos, mas não
diziam nada, que fariam se tivessem ouvida a conversa, Manuel, eu vou contigo, e Manuel Espada, apesar de ser quem é,
julgou que a mulher estava a brincar e respondeu, responderam pela boca dele sabe-se lá quantas vozes de manuéis, Isto
não é coisa para mulheres, que tal foste dizer, um homem deve
ter cuidado quando fala, não é só atirar palavras pela boca
fora, depois fica em pouco e perde autoridade, o que vale é
tanto gostarem um do outro, Gracinda e Manuel, mas mesmo
assim. Falaram do caso no resto do serão, falaram já deitados,
a conversa adiantada, A menina fica com a minha mãe e nós
vamos juntos, não é só dormirmos na mesma cama, enfim
rendeu-se Manuel Espada e ficou contente por se ter rendido
(SARAMAGO, 2013, p. 336).
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299
Aos poucos, os cavadores, os trabalhadores dos latifúndios
alentejanos, que secularmente aceitavam o salário de fome oferecido
pelos Bertos79, deixam de ser formigas, submissas, escravas do chão
e levantam suas cabeças como cães, ladrando, gritando, exigindo direitos e melhorias nas condições de trabalho: “Parecem formigas, mas
são cães” (SARAMAGO, 2013, p. 337).
Vale enfatizar que, na obra de José Saramago, tal como observamos nos textos de Miguel Torga e em boa parte de toda a literatura neorrealista, em termos benjaminianos, há um claro desejo de
redenção por parte dos cavadores e trabalhadores dos latifúndios. Por
meio dessas personagens, criticam-se as instituições hegemônicas de
poder, a desigualdade social, a riqueza e os privilégios de alguns que
sobrevivem da pobreza e da fome de milhares de pessoas. No desfecho do romance, não são apenas os vivos, as novas gerações, que
vivenciam os novos tempos, que comemoram e desfrutam desse “dia
levantado e principal” (SARAMAGO, 2013, p. 397). Os mortos, os vencidos de outrora, levantam-se de suas tumbas e começam a dançar e
a cantar, em plena Revolução dos Cravos:
Põe João Mau-Tempo o seu braço de invisível fumo por cima do
ombro de Faustina, que não ouve nada nem sente, mas começa a cantar, hesitante, uma moda de baile antigo, é a sua parte
no coro, lembra-se do tempo em que dançava com seu marido
João, falecido há três anos, em descanso esteja, é este o errado
voto de Faustina, como há-de ela saber. E olhando nós de mais
longe, de mais alto, da altura do milhano, podemos ver Augusto
Pintéu, o que morreu com as mulas na noite do temporal, e atrás
dele, quase a agarrá-lo, sua mulher Cipriana, e também o guarda
José Calmedo, vindo doutras terras e vestido à paisana, e outros
de quem não sabemos os nomes, mas conhecemos as vidas.
Vão todos, os vivos e os mortos (SARAMAGO, 2013, p. 397).
79
sumário
Em Levantado do chão, todos os patrões possuem nomes com esse sufixo: Lamberto,
Alberto, Norberto, Dagoberto etc.
300
De forma alegórica, estamos convencidos de que Levantado do
chão, assim como Vindima, pela insurreição dos vindimadores, ilustra e
representa a redenção dos oprimidos na qual pensara Walter Benjamin
em sua Tese II. Nesse momento final de Levantado do chão, sobretudo,
identificamos a redenção dos oprimidos e dos vencidos do passado
mencionada por Benjamin, quando os cavadores mortos, explorados
até o fim de suas vidas na labuta do latifúndio, levantam-se do chão,
saem de suas tumbas e dançam com os vivos, comemorando a ocupação de Monte Lavre por parte dos cavadores e o fim da ditadura
salazarista. Não se trata, evidentemente, da crença no juízo final, mas
de um olhar descontínuo e inacabado para a história, que pode ser
transformada, modificada, a partir de nossas reflexões, de nosso pensamento crítico, de ações e iniciativas que puxem o freio da locomotiva
do progresso meramente técnico, econômico, científico, que marginaliza, explora e exclui milhões de vidas.
Por fim, as vindimas do Porto e os latifúndios do Alentejo, bem
como os arrozais de que nos falam textos neorrealistas como Gaibéus
(1939), de Alves Redol, por exemplo, continuam, ainda hoje, a ser uma
realidade, isto é, seguem a funcionar como alegoria de diversos outros
lugares e situações em que seres humanos vivenciam condições de
trabalho exíguas à escravidão. Acreditamos que esses romances cumprem, de certa forma, na esteira doque propõe o poema já citado de
Brecht (2000), o papel que Walter Benjamin deseja para o materialista
histórico, que é o de se afastar das narrativas históricas dos vencedores e identificar-se com os oprimidos, com os vencidos, assumindo
o lugar de uma literatura “a contrapelo”, rememorando o passado e
trazendo à tona a experiência e as vozes dessas vidas apagadas, silenciadas e esmagadas pela locomotiva do progresso moderno e da
exploração capitalista. Resta saber até que ponto a literatura, como
arte, como mimésis, contribui para uma possível redenção, em termos
benjaminianos. Talvez, nesse caso, seu papel, na qualidade de arte
engajada, seja simplesmente nos lembrar de que dentro desse mundo,
sumário
301
ainda tão desigual e injusto, exista um outro mundo possível: de que,
como defende Benjamin, cada geração que se segue é detentora de
uma força messiânica e tem a capacidade e a responsabilidade de
exercê-la, de colocá-la em prática.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In:
BEJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BENJAMIN, Walter. Teses sobre conceito de história. In: LOWY, Michael.
Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das Teses sobre o conceito
de história. São Paulo: Boitempo, 2005.
BRECHT, Beltolt. Poemas 1913-1956. São Paulo: Editora 34, 2000.
DUARTE, Lélia Parreira. Levantado do chão, de José Saramago: a grande
novidade dos anos 80. Revista Ipotesi, Juiz de Fora, v. 15, n. 1, 2011.
Disponível em: http://www.ufjf.br/revistaipotesi/files/2012/03/22-levantado-dochão.pdf. Acesso em: 26 jan. 2018.
DUTRA, Robson. Literatura e insurreição. Revista Magistro, Rio de Janeiro,
v. 1, n.1, 2010. Disponível em:http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/
magistro/article/viewFile/1061/623. Acesso em: 18 jan. 2018.
LOURENÇO, Eduardo. O Portugal de Torga. In: COLÓQUIO DE LETRAS,
1995, Lisboa. Anais [...]. Lisboa: [s.n.], 1995.
LOWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das Teses
sobre o conceito de história. São Paulo: Boitempo, 2005.
LOWY, Michael. “A contrapelo”:a concepção dialética da cultura nas teses de
Walter Benjamin (1940). Lutas Sociais, São Paulo, n. 25/26, 2011. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/18578. Acesso em: 1 fev. 2018.
NEUMAN, Martin. Nota de apresentação. Veredas – Revista da Associação
Internacional de Lusitanistas, Santiago de Compostela, v. 11, p. 11-20, 2009.
SARAMAGO, José. Levantado do chão. São Paulo:Companhia das Letras, 2013.
TORGA, Miguel. Vindima. Coimbra: [s.n.], 1954.
TORGA, Miguel. Diário – vls. V a VIII. Alfragide: Dom Quixote, 1999.
sumário
302
Capítulo 15
15
Santa Melânia e o feminino sagrado
Bruno Kutelak Dias
Bruno Kutelak Dias
Santa Melânia
e o feminino sagrado
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.15
Resumo: Este artigo busca analisar a figura de Melânia Sabiani, personagem
da peça A pécora, de Natália Correia, em sua versão santificada. Com base
em teorias a respeito da imagem mariana para a Igreja Católica e da posição
do feminino no universo cristão, analisamos como a personagem de Correia é
retratada de modo a servir aos critérios postos pela dominância religiosa local
e à manutenção de poderes na comunidade fictícia de Gal. Santa Melânia, diferentemente da versão da personagem que é associada ao profano, está longe
de qualquer característica mundana ou pecaminosa, servindo de modelo às
mulheres, assim como Maria.
Palavras-chave: A pécora; Natália Correia; Feminino; Sagrado.
sumário
304
Melânia Sabiani é vista como uma personagem com duas personalidades opostas, devido a uma rede de mentiras inicialmente orquestrada para esconder o amor entre ela e o padre da cidade de Gal,
palco do enredo, mas que passa a ser base para o controle de toda a
comunidade. Filha de uma família simples e prometida em casamento
a um dos vizinhos, a jovem se revolta contra a vontade dos pais para
viver seu único amor, o qual acaba por se desfazer em desgraça para
a protagonista. Após perder o controle da história criada pelo casal –
de que a jovem estaria sendo transformada em santa e recebida por
um anjo de Deus –, Melânia é colocada em um prostíbulo para se
manter distante de sua cidade, que passou a cultuá-la. Esse culto nos
é apresentado antes mesmo do início da peça, por meio do Romance
de Melânia Sabiani cuja virtude impôs aos céus o seu rapto por um anjo
a fim de a furtar a este mundo de perdição, que nos mostra o tom de
como a personagem é tratada:
Andorinha gloriosa, / o anjo colheu a rosa! / Quando Melânia
aqui nasceu / o mundo de luz encheu.
Não digas, ó pecador, / que os milagres são mentira! / Que um
anjo andou pela terra / e raptou uma donzela / dois pastorinhos
o viram. / para que a erva dos pecados / não comamos impassíveis / e os costumes reformar, / de Melânia Sabiani / a virtude
redentora / viram os dois inocentes / o anjo glorificar.
Santo é agora o local / onde o anjo a arrebatou / erguendo um
oratório de pinho / o povo de Gal o assinalou. / Sete lâmpadas de
azeite / ardem ali noite e dia. / Se não fossem os Liberais / mais
lâmpadas arderiam. / Muitos são os peregrinos / porque muita é a
sua agonia; / trazem trigo, azeite e dinheiro / nos dias de romaria.
/ Se não fossem os Liberais / que não trariam, que não trariam?
Andorinha gloriosa, / o anjo colheu a rosa! / Quando Melânia aqui
nasceu / o mundo de luz encheu80 (CORREIA, 1983, p. 18-19).
80
sumário
Escolhemos o uso de barras para separação de versos.
305
O poema é uma adaptação do texto Angelina gloriosa, retirado de um cancioneiro popular espanhol do século XVII que chegou a
Portugal como Andorinha gloriosa81. Sua versão original apresenta o
Arcanjo Gabriel como protagonista, indo aos pastores apresentar-lhes
Maria, que daria à luz o filho de Deus. A paródia de Correia é, em oposição, uma ode à nova santa de Gal. Embora semelhantes na primeira
estrofe e com tom que evidencia a benevolência de Melânia, assim
como o original faz com Maria, a autora utiliza a terceira estrofe como
crítica à face mais mundana da adoração de sua santa. Destacar as
virtudes financeiras e as grandes oferendas daqueles que vêm buscar
por uma graça nos introduz um dos temas mais abordados por toda
a obra. Contudo, em nossa análise, daremos ênfase a dois símbolos
encontrados no início e no fim do Romance de Melânia Sabiani.
A primeira estrofe, repetida ao final, serve de guia para a análise
desse trecho. Como poema, o Romance exalta a importância de Santa
Melânia, principalmente pelas alegorias utilizadas nos versos iniciais.
Mais do que ser estimada como luz que encheu o mundo com seu
nascimento, nos chama atenção o uso de duas imagens importantes:
a andorinha e a rosa colhida por um anjo. Esses dois termos, levando
em consideração o contexto de adoração, remetem-nos à sacralidade
de tal figura. A andorinha, como aponta Chevalier (1986), é considerada a ave do paraíso. Além disso, representa a fecundidade, paz e
alegria, justamente por ser um pássaro migratório e retornar no início
da primavera às terras de onde havia partido, vindo a ser associado
ao Cristianismo nessas regiões orientais. Já a rosa recebe muito mais
destaque na iconografia cristã, sendo tanto “la copa que recoge la
sangre de Cristo, bien la transfiguración de las gotas de esta sangre,
81
sumário
Na versão portuguesa: “Andorinha gloriosa / Tão perfeita como a rosa, / Quando Deus
aqui nasceu, / Toda a terra estremeceu; Veio o anjo Gabriel / Perguntar pelos pastores:
/ ‘Pastorinhos de bom dia / Aqui ‘stá Santa Maria Co seu livrinho na mão / Rezando a
oração’ [...]”.
306
o bien el símbolo de las llagas de Cristo”82 (CHEVALIER, 1986, p. 892).
Igualmente, Maria é ligada às rosas, não apenas pelo rosário, mas
também nas icônicas aparições difundidas pela Igreja Católica, como
La Salette83 e Lourdes84.
Sem embargo, além das comparações com Maria ou com
ideais cristãos, nos chama atenção nessas duas imagens a relação
direta com outras entidades sagradas femininas. A andorinha também
é associada à deusa Isis, que se transformava nesse pássaro e sobrevoava seu sarcófago de Osíris, seu irmão, durante a noite, lamentando
em gritos o falecimento até a volta do Sol, simbolizando o perpétuo
retorno e a ressurreição. Na Grécia, Atena, deusa nascida em Rodes,
a Ilha das Rosas, compartilhava os roseirais com Afrodite. Tais comparações permitem identificar a grandiosidade da figura de Melânia na
peça e, ainda, observar as diversas representações divinas que acabaram tendo seus cultos substituídos pelo culto mariano. Assim como
Ísis, a rainha do céu, dá à luz Hórus, deus dos céus, o sol nascente,
Maria concebe Jesus, a luz do mundo85 (Jo 8:12). Também representa
o amor e, até os dias atuais, é buscada pelos crentes como fonte de
sabedoria e conselhos, igual a Afrodite e Atena, que tiveram seus templos transformados em altares à mãe de Jesus.
sumário
82
“A taça que recolhe o sangue de Cristo, a transfiguração das gotas deste sangue, ou o
símbolo das chagas de Cristo”.
83
No sábado, 19 de setembro de 1846, uma “Bela Senhora” apareceu para duas crianças,
ambas de Corps, nos Alpes franceses: Maximin Giraud e Melanie Calvat, que cuidavam
de seus rebanhos na encosta do Monte Planeau, próximo da vila de La Salette. Além da
roupa tradicional da região, a Senhora usava guirlandas de rosas na cabeça, na ponta do
xale e nos pés (THE APPARITION..., 2022).
84
Em 11 de fevereiro de 1858, acompanhada por sua irmã e uma amiga, Bernadette Soubirous foi a Massabielle, às margens do Gave. Antes de atravessar o riacho, ouviu um
barulho como uma rajada de vento, olhou para uma gruta e notou uma Senhora vestida
de branco, um cinto azul e uma rosa amarela em cada pé. Bernadette fez o sinal da cruz
e rezou o terço com a aparição. Quando a oração terminou, a Senhora desapareceu
repentinamente (THE APPARITIONS, 2022).
85
A associação de Ísis e Maria não se dá apenas no nível comparativo das histórias, uma
vez que ambas são mães, mesmo sendo virgens, de personagens associadas à luz, ao
Sol e comando de seus seguidores, mas também em suas representações. A imagem
mais icônica de Ísis e seu filho se equipara à de Maria como Virgem do Leite, com Jesus
em seu colo (ISIS, 2022).
307
Assim, rosa e andorinha deixam de ser apenas símbolos que
invocam elementos de uma tradição cristã na obra de Correia, mas
trazem consigo a cultura popular capaz de adaptar o novo aos moldes
existentes previamente, como também o jogo de poder que conduz
o que pode ou não ser aceito dentro de uma esfera dominante. Até
mesmo em Portugal, com relação à Nossa Senhora de Fátima, houve
críticas ferrenhas não só de pessoas fora da religião a esse rito popular,
mas de dentro do próprio Catolicismo sobre os excessos da adoração
à padroeira do país, que beiravam o paganismo e a mariolatria.
Na peça, Melânia é diretamente relacionada ao paraíso como
pássaro glorioso, assim como Maria, por sua graça, é considerada a
porta do reino dos céus, tendo em vista que redime os pecados de Eva86.
Ela é aquela que foi eleita para se tornar santa e juntar-se ao Senhor no
paraíso. Da mesma forma que a alegoria da andorinha, a personagem
renasce para atingir sua posição sagrada. O mesmo repete-se com a
imagem da rosa, como veremos, a fim de dar ênfase à divinização.
Em Gal, Melânia é fundamental para a criação de uma nova ordem social, na qual a Igreja prospera utilizando-se dos milagres, retomando uma posição de autoridade, em detrimento do governo vigente.
Considerando tanto o que acontece na ficção quanto na história com
Maria, podemos refletir sobre a potência que o sagrado feminino significou com relação à dominação da Igreja.
Historicamente, para que o patriarcado tomasse o poder das
sociedades em que a cultura tinha a mulher como elemento central,
deveria extirpar ou reprimir tudo que se relacionava a ela. Fosse a
Deusa-Mãe ou qualquer outra que veio a sucedê-la, não havia espaço para qualquer manifestação delas em uma sociedade governada
por homens, exceto se fosse uma versão que servisse aos propósitos
86
sumário
Para a Igreja Católica, Maria é a nova Eva, a nova mãe da humanidade, posto alcançado
por ter sido escolhida por Deus para dar à luz seu filho, Jesus (IGREJA CATÓLICA, 1992,
Primeira Parte, Parágrafo 726).
308
patriarcais. O feminino deveria se limitar à passividade obediente, à
maternidade e à domesticidade (WHITMONT, 1991), à perfeita representação de alguém que não questionaria seu lugar social e se manteria afastado do poder, pois estava relegado ao ambiente residencial,
imagem idealizada na pureza de Maria.
Para ser considerada santa, era imperativo que a filha dos Sabiani fosse pura ou pelo menos se aproximasse ao máximo disso. Nas
exaltações de seus fiéis devotos, notamos uma glorificação de sua
imagem, muito distante de humana e mais próxima do angelical. A
jovem era a “flor das flores” (CORREIA, 1983, p. 107), “mais branca
que a neve” (CORREIA, 1983, p. 158) e “mais translúcida que a água”
(CORREIA, 1983, p. 163). Não há nela sinal de mácula; era, assim
como Maria, o ideal de mulher para a sociedade patriarcal. Assim, do
mesmo modo que Madalena não é santificada como prostituta, mas,
sim, como a mulher que foi salva de sua vida de pecado e se juntou
a Jesus, passando a viver sob a lei de Deus, Melânia também precisa
se despir de qualquer aspecto mundano para ser digna de adoração.
Melânia não se torna santa levando toda a sua vida anterior às
aparições aos pastorinhos. Em nenhum momento da peça, temos noção de sua vida antes de ser “escolhida” por Deus, a não ser quem era
sua família, os Sabiani. Melânia recebe uma nova história de vida, apenas destacando episódios que a mostrassem como digna de tal graça.
Isso é visto ao analisar a figura de Maria na tradição católica, que tem
sua vida antes da concepção quase ignorada, focando apenas em atributos que a distinguiam de todas as mulheres. Para que o Cristianismo
aceitasse uma mulher como figura que pudesse ser adorada, deveria
buscar a perfeição em seus atos e em sua fé.
Para Melânia, tudo foi alterado, até mesmo seu rendimento escolar, como mostra o trecho em que o guia turístico responsável pelo
tour dos devotos é corrigido por Zenóbia, funcionária do bordel ao
qual Melânia é levada:
sumário
309
GUIA TURÍSTICO: (em voz de guia) E agora, senhoras e senhores, vão ver a escola onde a santa em criança revelou uma
cultura tão fora do comum...
ZENÓBIA: (interrompendo) Ó criatura! Quantas vezes lhe recomendei que ela não passou das primeiras letras porque era curta de ideias? Então não sabe que Deus escolhe os analfabetos
para confundir os sábios? [...] (CORREIA, 1983, p. 64-65).
Podemos desenvolver duas análises com foco em Melânia. A primeira nos mostra um aspecto da santidade que aparece como recorrente para os que se dedicam ao serviço do Senhor, a marginalidade social. Humildade, desapego dos bens materiais e outras condições que
afastem o homem daquilo que pode levá-lo à perdição ainda hoje são
premissas pregadas como ideais no Cristianismo. Era importante para
Zenóbia que a santa fosse retratada como semianalfabeta, uma ótima
justificativa quando toda a casta intelectual da cidade fosse convertida
imediatamente por presenciar o milagre. Aquela que pouco se desenvolveu na escola foi capaz de curvar até mesmo os mais inteligentes e
céticos da sociedade de Gal, como observamos na rubrica a seguir:
Vestida de santa e coroada de rosas, Melânia começa a surgir
lentamente no ar, por detrás de um troço das ruínas. [...] O Cientista e o Sociólogo lançam-se também por terra, ficando este
de quatro patas no chão e rastejando, aquele, como um verme.
Nesta posição, espreitam, com terror, para o sítio da aparição
(CORREIA, 1983, p. 116).
Coroada de rosas, como símbolo de sua grandeza sagrada, Melânia é levada aos céus por meio de um sistema mecânico escondido
nas ruínas onde o milagre aconteceria, causando uma imensa onda de
excitação em todos os presentes, entre eles, o Cientista e o Sociólogo,
que antes questionavam os milagres da nova santa e agora tinham
sido convertidos pela aparição milagrosa. Dessa forma, há a mudança
dos poderes que governam a sociedade de Gal, que passa a dar muito
mais destaque à Igreja do que à ciência.
sumário
310
Por outro lado, a ignorância de Melânia tem um peso importante
em sua posição como mulher. Das santas da Igreja Católica, poucas
são conhecidas por terem se destacado em meios acadêmicos, como
é o caso de Hildegarda de Bingen87, ou em funções de liderança, como
Joana D’Arc88. Se considerarmos o rebaixamento feminino nas tradições patriarcais, a mulher não é apenas destituída de poder social,
mas, também, intelectual.
Ao abordar o Malleus Maleficarum, livro que serviu de base para
a perseguição feminina na Idade Média, notamos que era comum considerá-las mentalmente inferiores, fracas das ideias e com inteligência
aquém da masculina. Seria essa a razão que as fazia mais suscetíveis
à influência demoníaca (CLARK, 2006). Melânia não ter podido passar
das primeiras letras não apenas assegura uma falsa humildade idealizada para sua figura de santa, mas garante seu lugar limitado. Com
a ascensão dela, também há um contraponto com seu rebaixamento
intelectual que seria divulgado ao público. A jovem santa não era inteligente e não há outra menção sequer a alguma qualidade que a fizesse
se sobressair em comparação aos demais habitantes de Gal. O que é
recorrentemente exaltado é sua gloriosa pureza incorruptível. Melânia
fora escolhida pelo Senhor por sua irrepreensível conduta terrena, que
a fez digna de tamanha graça.
Pensar a figura de Melânia, de outra pessoa canonizada pela
Igreja Católica ou outro avatar dos mais diversos sistemas religiosos
que concebem a possibilidade da encarnação de figuras espiritualmente evoluídas permite uma aproximação entre um distante universo sagrado e a esfera profana. Contudo, características que podem
sumário
87
Monja professora da Ordem de São Bento cuja produção acadêmica se destacou nas
áreas da medicina, teologia e filosofia. Foi declarada Doutora da Igreja pelo Papa Bento
XVI (SANTA..., 2022).
88
Camponesa que, aos 17 anos, após ouvir o chamado de Deus, liderou os exércitos franceses na Guerra dos Cem Anos contra a Inglaterra. Joana teve grande influência nas
batalhas e estava ao lado de Carlos VII em sua coroação. A jovem foi condenada por
heresia e queimada viva em praça pública aos 19 anos (JOANA..., 2022).
311
apontar para uma qualquer semelhança, como uma origem humilde
ou pouco estudo, não passam de uma ilusão momentânea, uma vez
que tais personalidades mantêm um grande afastamento dos padrões
sociais mais comuns em nome da santidade.
Todos os fiéis são chamados para junto de Deus e para que se
assemelhem ao máximo a Seu Filho. Para tal, deve-se abolir tudo que
não condiz com a santidade e perfeição do Criador. O Evangelho de
Mateus provoca os cristãos a esse chamado: “Portanto, sejam perfeitos como perfeito é o Pai celestial de vocês” (Mt 5:48). A santidade nos
é apresentada quase como compulsória, uma situação idealizada não
como ilusória, mas como objetivo real daqueles que realmente seguem
o que foi ensinado por Jesus Cristo, “mestre e modelo divino de toda
a perfeição” (IGREJA CATÓLICA, 1964, 40). Não se deve ter apego ao
material, pois o propósito maior da vida neste mundo passageiro é o
encontro com o Senhor após a morte. O que soa como algo intangível
para a maioria da população aparenta ser ainda mais dificultoso se
destacamos o gênero feminino devido à tradição com relação à sua
conduta e ao que se espera dele.
À mulher restaria uma posição de subalterna e transgressora,
distante da perfeição de Deus e do sexo masculino. Essa posição se
justifica com a referência à Eva, por seu papel na vinda do pecado ao
mundo, tendo em vista que “Adão não foi enganado, mas sim a mulher, que, tendo sido enganada, tornou-se transgressora” (1Tm 2:14).
No entanto, há a possibilidade de salvação para elas, pois “a mulher
será salva dando à luz filhos – se elas permanecerem na fé, no amor e
na santidade, com bom senso” (1Tm 2:15, grifo nosso). Em A pécora,
Natália Correia coloca em evidência toda essa problemática que recai
sobre as mulheres, utilizando como exemplo de perfeição e santidade
a personagem santa. Mesmo com uma vida que seria considerada moralmente imprópria, a jovem se iguala a Maria na pureza e integridade
e é digna de ser levada aos céus:
sumário
312
MELÂNIA: (desfazendo a atitude) Mas tu disseste que eu devia
ter uma expressão de beatitude.
ARDINELLI: (requintado) Referia-me àquela satisfação ideal que
a arte mais perfeita interpretou. Tu não és uma santa qualquer.
MELÂNIA: (obediente) Eu não sou uma santa qualquer...
ARDINELLI: Deus declarou a tua carne impoluta.
MELÂNIA: (excitando-se) Deus declarou a minha carne impoluta...
ARDINELLI: ... para que a virtude vencesse o peso da matéria...
MELÂNIA: (cada vez mais excitada) Venci o peso da matéria...
ARDINELLI: ... contrariasse a lei da gravidade...
MELÂNIA: (mais exaltada) Contrariei a lei da gravidade...
ARDINELLI: ... e ascendesses89 aos pélagos divinos (CORREIA,
1983, p. 75-77).
Teófilo Ardinelli, aquele com quem Melânia deveria ter se casado, já envolvido em todo o esquema, planeja a assunção da jovem
aos céus. O evento foi a derradeira confirmação da existência em Gal
de uma mulher escolhida por Deus para se tornar santa, convertendo
até os mais incrédulos. Enquanto Teófilo e Melânia discutem sobre a
qualidade da expressão de beatitude feita por ela, vemos a perfeição
que deveria ser atingida também na imagem da personagem. Melânia
não é como as outras mulheres que receberam a honraria de serem
consideradas dignas de adoração pela Igreja; por ser tão especial, é
igualada à mãe de Jesus.
89
sumário
Embora seja usado o termo “ascender”, assim como Maria, Melânia não sobe aos céus
por conta própria, o que a colocaria em posição superior à mãe de Cristo, mas é levada
por um anjo para junto de Deus, como vemos na canção à personagem: “Da carne sem
mácula / Deus se enamorou. / E à casta Melânia / um anjo mandou. Salvé! Salvé! / Ó pura
e perfeita! / Da oculta aurora / incubada flor, / dos céus a eleita! / Cioso foi Deus / da carne
ilibada. / E o anjo a levou / para a sua morada. / Salvé! Salvé! Ó pura e perfeita! / Da oculta
aurora / incubada flor, / dos céus a eleita!” (CORREIA, 1983, p. 169-170, grifo nosso).
313
Maria é tida como exemplo entre as mulheres. No aspecto mais
mundano, continua pura e casta mesmo depois do nascimento de seu
Filho. Para a Igreja, Maria é tida como virgem perpétua, ou seja, concebeu Cristo e deu à luz permanecendo virgem. Melânia, por sua vez,
está longe de ser igualada a esse padrão feminino; enquanto a fé em
sua versão santificada crescia, a jovem se tornava prostituta. Apesar
disso, recebe as honrarias da posição de santa, tomando o lugar de
Maria até mesmo em seu papel de redentora dos pecados de Eva,
como vemos a seguir:
A cena escurece. Quando volta a estar iluminada, no plano de fundo apinham-se os Enfermos, [...], incluindo as Mulheres Estéreis.
No chão, estão estendidas toalhas repletas de comida e garrafões
de vinho. Os Enfermos comem com avidez, agarrando com as
mãos peças de carne, onde afundam as maxilas sôfregas. Por
vezes roubam a comida uns aos outros. [...] entram as Três Bailarinas [...] Estão vestidas da mesma maneira e marcam o ritmo da
dança com as pandeiretas. Enquanto bailam, fazem cerco a um
homem de fato pintalgado que traz uma máscara com cornos e
vem acorrentado, mimando querer livrar-se das cadeias.
TRÊS BAILARINAS: (cantando e bailando à volta da figura diabólica) Folguemos, irmãs, folguemos! / Pela virtuosa de Gal /
remida está a culpa de Eva. / Donzelas somos e exultamos /
bailando sobre a verde relva. Amanhã, emergentes frutos / ao
nosso ventre pedirá a terra. / Mas hoje consagra-se a virtude /
e o demónio enraivece na treva (CORREIA, 1983, p. 154-155).
O trecho nos traz dois pontos interessantes para a fundamentação da santidade feminina tanto de Melânia quanto do patriarcalismo
cristão. O que primeiramente nos chama atenção é a ambientação da
cena, na qual adentra uma personagem com trajes coloridos e com uma
máscara diabólica, aprisionado por correntes, sem conseguir se soltar.
Manter tal figura acorrentada simboliza o controle sobre ela; o Demônio é
exposto à população como derrotado, cercado pelas bailarinas que cantam em honra à Melânia. A fé cristã o venceu. Entretanto, como a nova
santa carrega escondida a duplicidade de sua vida pregressa, a influên-
sumário
314
cia do Diabo se mantém viva no meio da população, que se delicia na
bacanal que acontece ao fundo. O controle do Demônio e de tudo que é
relacionado a ele e, por consequência, ao legado feminino, que remonta
às sociedades mais antigas, coroado pela santificação de Melânia, é um
espelho da hipocrisia em meio à sociedade devota.
Em segundo lugar, o texto nos reforça a ideia de que Melânia
usurpa o lugar de Maria, uma vez que foi a Santa de Gal a remir a culpa
de Eva. Igualar Maria e Melânia não só afronta o conceito de perfeição e modelo tradicionalmente pregado e idolatrado pela Igreja Católica, como também refuta os padrões que são impostos às mulheres
cristãs. A personagem de Correia, em sua versão santa, apresenta-se
como a desconstrução do feminino e aquisição de poder, em detrimento da doutrina cristã. No entanto, o que é recorrente é o apagamento de
qualquer traço que não se adeque ao esperado pelo dogma da Igreja.
Como santa, ela não serve ao feminino como uma tentativa de
empoderamento e libertação, mas, sim, ao patriarcado religioso, como
forma de reforçar o que é esperado das mulheres no contexto cristão. A real Melânia, que poderia trazer aspectos inerentes ao mundo
profano, sendo um espelho para os pecadores que pudessem vir a
adorá-la, acaba por ser extirpada, dando lugar ao modelo de perfeição
divina sob a forma de seu duplo. Não há, no universo criado por Natália
Correia, espaço para o pecado na esfera sagrada, tampouco para a
ascensão feminina liberta das amarras do Cristianismo.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA de Jerusalém. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2002.
CHEVALIER, Jean. Diccionário de los símbolos. Barcelona: Herder, 1986.
CLARK, Stuart. Pensando com demônios: a idéia da bruxaria no princípio da
Europa Moderna. São Paulo: EdUsp, 2006.
sumário
315
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proclamada Doutora da Igreja universal. Disponível em: https://w2.vatican.va/
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WHITMONT, Edward C. Retorno da deusa. 2. ed. São Paulo: Summus, 1991.
sumário
316
Capítulo 16
16
Memória e identidade portuguesa em
Os memoráveis, de Lídia Jorge
Marco Aurélio Pereira Mello
Marco Aurélio Pereira Mello
Memória
e identidade portuguesa
em Os memoráveis,
de Lídia Jorge
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.16
Resumo: Os memoráveis (2014) se apresenta como narrativa que busca o resgate memorialístico da Revolução de 25 de Abril de 1974 – Revolução dos Cravos –, por meio de uma personagem portuguesa com laços tênues com o país
lusitano, seu povo e sua história particular. Trata-se de um (re)encontro não só
com a memória de um país, mas também com sua própria história familiar. A
partir da referida obra, este trabalho analisa a apropriação ficcional do contexto
pós-Revolução de 25 de Abril de 1974, bem como as significações identitárias
que emergem da memória individual e coletiva na construção ficcional de Os
memoráveis. Este estudo terá como aporte teórico, entre outros, as reflexões
de Maurice Halbwachs, Jacques Le Goff e Joël Candau.
Palavras-chave: Os memoráveis; Memória; Identidade; Portugal.
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318
INTRODUÇÃO
A construção da identidade, seja coletiva, seja individual, não
se apoia na novidade e na negação do tradicional, visto que negar a
tradição, aqui entendida como lembrança, é também recusar a memória. Segundo Joël Candau (2019, p. 19), “não há busca identitária sem
memória e, inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada
de um sentimento de identidade, pelo menos individualmente”. Por
isso, no contexto aqui estudado, “memória” e “identidade” possuem
campos semânticos afins. Desse modo, podemos afirmar que, destituído de memória, o sujeito está suprimido de si mesmo. O abandono
da memória é, pois, o abandono da própria identidade. Tal abandono
pode abranger todo um grupo de pessoas, pois a memória não é só
individual e subjetiva, mas também coletiva.
Maurice Halbwachs (1990), ao estudar a organização da memória
coletiva, estabelece convergências entre esta e a memória individual.
Para o sociólogo francês, a memória individual e, portanto, subjetiva não
existe à parte da memória coletiva e ambas – memória individual e coletiva – encontram-se vinculadas pela linguagem, que viabiliza recurso
inerente à memória, qual seja, a narratividade. Ao narrar sua experiência,
o indivíduo se submete à influência de seu grupo. Não há, desse modo,
uma percepção particular que se sustente por si só, pois todos somos
inspirados por fatos que também dizem respeito a outros indivíduos.
Para ilustrar seu pensamento, Halbwachs (1990, p. 26) afirma
que “cada grupo social empenha-se em manter uma semelhante persuasão junto a seus membros”, o que lhes confere uma afinidade de
ideias e impressões. Por haver essa influência, a perspectiva de cada
indivíduo pode se alterar conforme sejam substituídos o lugar e o grupo aos quais se vincula. Ainda, segundo Halbwachs (1990, p. 31),
“um homem, para evocar seu próprio passado, tem frequentemente
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319
necessidade de fazer apelo às lembranças dos outros. Ele se reporta
a pontos de referência que existem fora dele, e que são fixados pela
sociedade”. Desse modo, torna-se inviável a invocação da memória
individual, sem que, para isso, se recorra à memória coletiva.
Na esteira desse raciocínio, Halbwachs (1990) aponta que na coletividade podem existir várias camadas de grupos sociais nas quais o
sujeito se encontra inserido e que, quanto mais abrangente a camada,
mais diluída se apresenta a identidade desse indivíduo. Assim, ao almejar a memória de fatos relacionados à revolução em dado país, valendo-nos de uma perspectiva a mais abrangente, a relação entre a memória
de tal fato histórico e a memória da maioria dos indivíduos que dele participaram será tênue ou nula, como se estivesse a se dissolver em meio
a várias camadas compostas por inúmeras memórias. Desse modo, a
perquirição da memória a partir de grupos delimitados de personagens
se revela propícia a evitar o esquecimento de indivíduos partícipes de
um fato histórico. A memória de tais grupos, no entanto, geralmente está
fadada ao esquecimento, uma vez, na condição de memória, para existir ela depende dos sujeitos que a ensejaram. Quando tais sujeitos se
dispersam ao integrar outros grupos ou dão lugar a gerações que os
sucedem, a memória do grupo que integravam e, por conseguinte, a
própria memória individual daquilo que os ligava a esse grupo tendem
a se dissipar. Afinal, os grupos ou sociedades sucessórios tendem a
ignorar a memória que lhes precede (HALBWACHS, 1990).
Tal entendimento também expõe que, ao processo memorialístico, se impõe uma constante construção e reconstrução, tendo em vista que, com o tempo, os lugares e os grupos integrados pelo indivíduo
sofrem constante mutação. Assim, Candau (2019, p.77) pontua que “o
sentimento do passado se modifica em função da sociedade”.
sumário
320
Ao abordar a força da memória, Jean-Michel Alexandre (1990, p.
13), na introdução de A memória coletiva, de Halbwachs (1990), compara a lembrança a um marco de referência que nos situa “em meio à
variação contínua dos quadros sociais e da experiência coletiva histórica”. É justamente a imbricação de memórias acerca de uma referência
em comum que confere à lembrança vigor em contextos de crise ou de
tensão social, ao contrário, pois, dos períodos de paz e calmaria, que
não exercem na lembrança poder de perenidade. Em passagem de Os
memoráveis, tal observação é oferecida à personagem Ana Maria Machado de forma bastante enfática: “Não vê como a memória do horrível
perdura, e como a lembrança dos momentos de graça tão depressa se
apaga?” (JORGE, 2014, não paginado).
Por seu turno, Jacques Le Goff (2013) contrapõe a memória coletiva à memória dos historiadores. À primeira, o historiador francês
atribui um caráter fragmentário, difuso e, por isso, mítico; por outro
lado, é justamente essa memória que estabelece um elo entre o passado e o presente a partir da vivência. À segunda, atribui a função de
esclarecer a memória e lhe corrigir os possíveis equívocos, de modo
impessoal, ou seja, despido do sentimento passional que pode estar
imbricado naquela. Assim, segundo o historiador, ao passo que a memória está sujeita a manipulações conscientes ou inconscientes, a história tem como compromisso a verdade. Contudo, ainda que tenha tal
compromisso, a história oficial também é porosa, ou seja, está sujeita
ao esquecimento de episódios e personagens que, ainda que sob uma
perspectiva ficcional, podem ser preenchidos pela memória coletiva.
Ante tal fato, a escrita de Os memoráveis (2014) se revela como
discurso de resistência ao apagamento do passado, cabendo à jornalista Ana Maria Machado não só recuperar aquilo que foi perdido, mas
também lançar luz sobre pontos ignorados pela história oficial.
sumário
321
OS MEMORÁVEIS
Por conferir destaque particular à memória coletiva de Portugal
e, por conseguinte, à busca por manter viva tal memória, por meio da
recolha de episódios à margem da história oficial, a narrativa de Os memoráveis dialoga com a história do país e de seu povo, processo com
largo lastro na Literatura Portuguesa, aplicado por escritores como Luiz
Vaz de Camões (1524-1580), Alexandre Herculano (1810-1877), José
Saramago (1922-2010) e António Lobo Antunes, para citar apenas alguns dentre tantos nomes de uma literatura que se propõe a contar, a
partir da ficção, seja em verso, seja em prosa, a história portuguesa,
exaltando seus feitos ou preenchendo lacunas deixadas pela história dita oficial. Lídia Jorge se alinha a esse segundo grupo, ou seja,
àqueles que buscam rever a história de modo a questionar narrativas
já conhecidas e consagradas, além de conferir voz a personagens silenciadas ou esquecidas por essas narrativas.
Cerdeira (2018), ao cotejar a escrita literária e a escrita historiográfica, identifica pontos que, ao contrário do senso comum, indicam
mais convergências que divergências entre essas duas escritas. Um
desses pontos diz respeito à marca subjetiva no texto historiográfico
que se propõe exclusivamente objetivo. Segundo Cerdeira (2018), o
historiador, após a recolha de material resultante de sua pesquisa, seleciona o que integrará o resultado final de seu trabalho, ou seja, aquilo
que apresentará por meio de seu texto. Essa seleção, por si só, guarda
um aspecto subjetivo, pois aquilo que dado historiador descarta pode
ganhar foros de relevância sob a perspectiva de outro olhar. Seguindo
esse apontamento, o que há na historiografia oficial é, na realidade,
uma pretensa objetividade. Por seu turno, a literatura, conquanto fundada no ficcional, em diálogo com a história, almeja também a verdade, cujo resultado reflete, do mesmo modo, escolhas e perspectivas.
sumário
322
Não surpreende, pois, que o ficcionista se sinta instigado a oferecer a sua versão da história, preenchendo lacunas legadas pela historiografia oficial, e, como já dito, Portugal há muito é bem servido de
escritores que sabem fazê-lo com penetrante compreensão, como é
o caso de Lídia Jorge, que publicou Os memoráveis no ano em que a
Revolução de 25 de Abril de 1974, comumente conhecida como Revolução dos Cravos, completou 40 anos.
CONTEXTO DA REVOLUÇÃO DOS CRAVOS
Com a queda da Monarquia portuguesa em 1910, foi instituída a
República em Portugal, na qual se projetava a expectativa de superar
modelos entendidos como entraves para o desenvolvimento do país.
No entanto, tais modelos, por estarem arraigados naquela sociedade, contavam ainda com expressivo número de defensores. Propostas
como justa distribuição de terras, em um Portugal predominantemente
agrário, encontravam ampla resistência dos latifundiários; na economia, a produção se restringia quase exclusivamente ao setor primário
e se via dependente de acordos com Grã-Bretanha, quase sempre
desfavoráveis a Portugal. No campo político, houve uma proliferação
de partidos e ideologias; os governos eram sucessivos, pois, segundo
A. H. de Oliveira Marques (2000, p. 286), se ascendia facilmente ao
poder, mas a queda era tão rápida quanto a ascensão, o que gerava
uma permanente instabilidade política. No domínio religioso, a Igreja
Católica, historicamente vinculada à Monarquia, se opôs à República,
temendo a perda de fiéis e, por conseguinte, a perda de influência, ante
o avanço de uma cultura pautada no laicismo. Nas Forças Armadas,
prevalecia o conservadorismo de soldados de baixa instrução, geralmente provenientes do meio rural português, e de oficiais de alta patente que defendiam a continuidade da empreitada colonial em África.
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323
Somando-se a esses fatores adversos, em 1918 iniciou-se a Primeira Guerra Mundial, fragilizando ainda mais a já combalida e desacredita República portuguesa. Como pontua Marques (2000, p. 288), “a
República deixou de se distinguir da Monarquia e de representar uma
alternativa de progresso e de bem-estar. Os Messias passaram a ser
outros”. Assim, em 28 de maio de 1926, chegou ao fim a República
Democrática e, em 1932, o poder foi formalmente conferido a António
de Oliveira Salazar, que na prática já o exercia desde 1928 (MARQUES,
2000). Iniciou-se, assim, o Estado Novo, ou a ditadura de Salazar, que
não a interpretava como um antirregime, mas como um regime em si,
em construção, pautado principalmente por um autoritarismo moral, pelo
nacionalismo e pela aproximação com a Igreja Católica (TORGAL, 2000).
O governo de Salazar foi marcado também pela ideologia anticomunista, contrária à influência russa na Europa, e pela neutralidade
na Segunda Guerra Mundial, da qual Salazar se valeu para confrontar
a realidade portuguesa, de paz e ordem, com a realidade europeia,
estrutural e economicamente arrasada pelo conflito.Esse governo foi
caracterizado ainda pela defesa e manutenção das colônias portuguesas em África, num passo contrário, aos demais países europeus, que,
especialmente após a Segunda Guerra Mundial, se tornaram críticos
ao sistema colonial, o que levou Portugal a um isolamento.
Na década de 1960, ante o avanço de grupos de resistência armada em África, iniciou-se a Guerra Colonial e, no início do decênio de
1970, o exército português começou a sucumbir a uma guerrilha que
passou a contar, inclusive, com mísseis soviéticos, os quais derrubaram muitos aviões portugueses. Os gastos vultosos de recursos para
manter a empreitada colonial, a insatisfação dos oficiais envolvidos
em uma guerra que se sabia perdida e o impacto das famílias interioranas ante a chegada de corpos de seus familiares mortos ou com
sequelas da guerra propagaram um ambiente de insatisfação geral
com a ditadura instituída por Salazar, especialmente no âmbito militar.
sumário
324
Por conseguinte, após uma sondagem interna, um grupo de militares,
às 23 horas do dia 24 de abril de 1974, saiu às ruas para derrubar o
governo de Marcello Caetano, que assumira o poder após a morte de
Salazar, em 1970. Na manhã de 25 de abril daquele ano, a população
ocupou as ruas de Lisboa em apoio à derrubada da ditadura, após 48
anos de poder arbitrário.
A BUSCA PELA MEMÓRIA
Um antigo embaixador, que, à época da Revolução de 25 de
Abril, atuava na embaixada norte-americana em Portugal, atribuiu à
narradora, a jornalista Ana Maria Machado, a missão de produzir um
documentário sobre a Revolução dos Cravos, com vistas a evitar que
essa história fosse esquecida pelo presente.
A busca pela memória coletiva se entrelaça à memória subjetiva
da própria narradora, que é apresentada como fruto daquela revolução, que aproximou seus pais, António Machado e Rose Honoré. No
entanto, a narradora, que deixara Portugal para morar em Washington,
“o centro do centro do mundo” (JORGE, 2014, não paginado), não
se vê identificada com seu país de origem. “Estava em questão o seu
povo. E o padrinho invocava uma gente mansa, uma gente de que todo
o ministro gostaria de ser dirigente, todo o sacerdote gostaria de ser
pastor, todo o provedor público gostaria de defender” (JORGE, 2014,
não paginado). Se, para o embaixador, a mansidão portuguesa é vista
como um predicado, para a narradora tal mansidão é sinônimo de
subserviência, por isso o tom sarcástico ao se referir ao “seu povo”. É
pertinente, nesse sentido, o seguinte comentário de Eduardo Lourenço
(2015, p. 59) acerca do povo português:
Salazar conhecia esse povo de que se proclamava guia sábio e
sereno, quer dizer, conhecia-lhe a ancestral condição humilde,
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325
a inata ou histórica paciência diante da adversidade, a infinita
resignação, a inexpugnável credulidade, realidades sociológicas do mundo rural que poucos homens de Estado ou nenhum
souberam utilizar com tão funda perspicácia.
O ex-embaixador, ante a resistência inicial de Ana Maria Machado, passa a narrar-lhe o que testemunhou naquele 25 de abril de 1974,
entrelaçando os fatos da revolução com o conhecimento que tinha a
respeito do pai da narradora, então jornalista crítico à política norte-americana. Há um esforço do ex-embaixador em reunir os elementos de
sua narrativa, de modo que algumas informações-chave lhe escapam
da memória, sendo preciso recorrer à memória alheia.
O antigo embaixador quis lembrar-se do nome das flores que os
portugueses em setenta e quatro enfiavam no cano das espingardas e não lhe ocorria. Nós três, como se os nossos cérebros
estivessem programados para o esquecimento simultâneo,
empancámos na designação [...]. O anfitrião ficou suspenso.
Perguntou –‘Pois como se chamavam as flores?’
Sim, aquelas flores vermelhas?
Nenhum de nós se lembrava. Era inacreditável que os três soubéssemos que as páginas da pétala dessas flores eram dentadas, uma unha longa em pecíolo forte, que tinham sido oferecidas pelas floristas logo pela manhã do próprio dia vinte e cinco,
quando os insurrectos galgavam a Baixa, até o Bob sabia do
caso, sabia que começara por ser a oferta de uma vendedeira
quando a coluna sublevada fazia a volta em torno de uma praça, até ele sabia, e no entanto, nenhum de nós se lembrava do
nome da flor (JORGE, 2014, não paginado).
Paolo Rossi (2010) pontua que a reminiscência, diferentemente
da memória, não é passiva, pois demanda esforço daquele que deseja
recuperar uma informação esquecida. Embora, naquele momento, não
recordem se tratar de cravos, as personagens reconstroem a imagem
da flor por meio de suas características, bem como o contexto em que
ela surgiu na Revolução de 25 de Abril.
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326
Com o aceite de Ana Maria Machado para produzir o documentário, o antigo embaixador entrega a ela toda a correspondência
que recebera no período coetâneo à revolução, como forma de contato inicial com aquele passado. Em sua maioria, as cartas denunciavam atos de sublevação contra a ditadura ou personagens nela
envolvidos; essas cartas, no entanto, geralmente expressavam uma
ambiguidade, pois, não obstante a denúncia, ao final, pedem indulgência aos sublevados, alegando que, embora estes tivessem agido
mal, o fizeram com o fim de combater outro mal, qual seja, o regime
salazarista, que se arrastara na história de Portugal por quase 50
anos. Tal preocupação se justifica pelo fato de o então embaixador
representar os Estados Unidos em Portugal, cuja política salazarista
se alinhava ao do país norte-americano, no sentido de combater uma
possível influência comunista em território luso.
Embora as cartas não tenham sido redigidas com o intuito de
serem preservadas, o então embaixador, ao fazê-lo, materializou os
fatos nelas narrados, de modo a preservar a memória destes. De
acordo com Candau (2019, p. 108), a escrita viabiliza “a socialização
da memória e a possibilidade de estocagem de informações cujo
caráter fixo pode fornecer referenciais coletivos de maneira bem mais
eficaz que a transmissão oral”.
Os relatos presentes nas cartas tornam também tênues ou nulas as fronteiras entre passado, presente e futuro, razão por que Rossi
(2010, p. 24) assinala que a memória se relaciona “não só com o passado, mas também com a identidade e, assim (indiretamente), com a própria persistência no futuro”. Por isso, na medida em que a narradora lê as
cartas, aqueles que as escreveram ganham vida por meio das palavras.
E assim, contra tudo o que era suposto, passei esse fim de domingo debruçada sobre cartas provenientes do meu país de origem, escutando vozes que se levantavam dos papéis tomando
forma de gente viva, indo e vindo, cruzando-se à vez no vão daquele recinto, como se ontem fosse hoje, como se hoje tivesse
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327
sido um tempo muito antigo, como se o futuro estivesse em
tudo isso, e entre os tempos passados e por vir não houvesse
intervalo (JORGE, 2014, não paginado).
O próprio título do romance, Os memoráveis, presta-se como
mote para esse resgate da memória, que tem como ponto de partida
uma fotografia registrada no bar Memories, na Lisboa de 1974. Com
o auxílio de dois amigos, Margarida Lota e Miguel Ângelo, com quem
convivera na faculdade de Jornalismo, a narradora, Ana Maria Machado, parte em busca das personagens presentes naquela fotografia,
que ficara esquecida por décadas na casa de seu pai, António Machado, também partícipe daquele registro.
O poder imagético presente nessa fotografia confere dínamo
à narrativa. A imagem, à medida que percorre espaços, levada pela
narradora, confere vida e voz às personagens que nela figuram. Dado
o seu valor semântico, não poderia ser substituída por uma cópia. Fez-se necessário, pois, que fosse a versão original a ser apresentada
àqueles que a ela deram origem, de modo que “lhe tocassem, que
sentissem que era tão verdadeira que nem precisassem de perguntar a quem pertencia, ou como teria vindo parar às minhas mãos”
(JORGE, 2014, não paginado).
Ana Maria Mauad (1996, p. 10), em seu estudo acerca da interface entre fotografia e história, pontua que a fotografia tem a capacidade
de fazer o passado presente, “num outro lugar, num outro contexto e
com uma função diferente”. Portanto, compete ao pesquisador ante a
imagem buscar-lhe sentidos que permitam não só a leitura do passado, mas também do presente. Por isso, Mauad (1996, p. 10) destaca
que, ao pesquisador, compete fazer as proposições pertinentes à leitura proficiente dos significados memorialísticos presentes no registro
fotográfico, visto que “a imagem não fala por si só; é necessário que
as perguntas sejam feitas”.
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Assim, a busca da narradora, a partir daquela imagem, não
se limita às personagens fotografadas, mas abrange todo o contexto
da fotografia e os detalhes nele envolvidos. Além do contato com
os fotografados, a narradora, auxiliada por Margarida Lota e Miguel
Ângelo, percorre os lugares por onde aquelas personagens passaram, pois, segundo ela, “para avaliarmos o que tinha acontecido, era
preciso caminhar pelos lugares, dominar o palco dos acontecimentos
tal como se tinham passado. Fizemos todo o reconhecimento a pé”
(JORGE, 2014, não paginado).
Diferentemente das personagens que de fato vivenciaram aquele
contexto e dele tinham uma memória espontânea e impregnada, a narradora, que nascera após a Revolução dos Cravos, demandava uma
memória arquivista, amparada, pois, no espaço. De acordo com Pierre
Nora (1983, p. 8), “menos a memória é vivida no interior, mais ela tem necessidade de suportes exteriores e de referências tangíveis de uma existência que só vive através delas”. Contudo, as personagens se deparam
com a total ausência de registros que indicassem os fatos e os nomes
nos espaços onde se protagonizaram ações-chave da Revolução dos
Cravos, o que, na visão delas, indicava a falta de zelo pela memória de
homens que arriscaram suas vidas para derrubar um regime ditatorial
com 48 anos de poder. Eram homens que previam um confronto com
aqueles que ainda guardavam fidelidade a Marcello Caetano, então presidente do Conselho de Ministros do Estado Novo; ainda assim, invadiram a Rádio Clube na madrugada de 25 de abril para anunciar, pouco
depois das 4 horas da manhã, o levante contra a ditadura.
Depois subíamos uma outra rua e parávamos diante de uma
porta de vidro. Parecia impossível. Por aquela porta tinham os
oito oficiais entrado para tomarem de assalto o Rádio Clube, e
o que estava escrito na porta? Nada. Os nomes daqueles que
tinham entrado? Não existiam. Os nomes daqueles que no seu
interior tinham lido os comunicados? Ninguém os conhecia
(JORGE, 2014, não paginado).
sumário
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O mesmo sentimento de ausência é experimentado em outros
espaços percorridos pela narradora, em sua vã busca por sinais materiais de fatos e personagens.
Faltavam fotografias, nomes, legendas, setas que indicassem
quem havia participado no esforço da grande viragem. Os transeuntes comuns, tal como ela até há dois meses atrás, passavam por ali e não se apercebiam de coisa nenhuma. Era como
se as casas e as ruas estivessem desprovidas de uma memória
que deveria estar viva, e esse apagamento parecia-lhe insuportável (JORGE, 2014, não paginado).
A necessidade de materialização dessa memória decorre do
fato de esta ser ignorada pelo presente, por isso Nora (1983) aponta
a demanda por marcos, esculturas, arquivos e datas comemorativas
que tenham como referência fatos históricos. Essa ausência do passado no presente presume que, no futuro, o presente também será
esquecido. Ainda que existam os arquivos, as esculturas e as comemorações, segundo Nora (1983), estes oferecerão sempre uma versão precária da história, por não se tratar de uma memória vivida,
mas, sim, das sobras dela.
Resta, portanto, a Ana Maria, Margarida Lota e Miguel Ângelo
reconstituir esse passado por meio das narrativas dos insurgentes fotografados no bar Memories, pois, se não havia marcas nos espaços
para registrar a história, havia aqueles que, conquanto à margem dessa história, detinham a memória, e esta, como pontua Nora (1983), não
se confunde com aquela.
Em analogia à imagem criada por Benjamin (1997), a narradora
assume a condição de trapeiro da história e, assim, parte em busca
dos cacos, das sobras, daquilo que foi ignorado. Não se trata apenas de encontrar o que estava perdido, de resgatar o esquecido, mas
também de preservar a memória coletiva, lançando luz a fatos até então desconhecidos. “Ela deveria ir lá, quanto antes, recolher o resto
da metralha de flores que ainda existe entalada entre as pedras da
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330
calçada de Lisboa” (JORGE, 2014, não paginado). Dessa forma, Ana
Maria Machado, Margarida Lota e Miguel Ângelo saem em busca das
personagens que figuravam na fotografia registrada no bar Memories.
O papel de trapeiro não cabe, contudo, somente à narradora.
A personagem de codinome Oficial de Bronze, uma das figuras da
fotografia, também assume esse papel, em sua busca incessante por
conferir luz àqueles que participaram efetivamente da revolução, mas
que permaneceram anônimos até o tempo presente. Não são escassos, pois, os pontos de confluência do romance com a memória, em
especial, a memória coletiva.
O Oficial de Bronze não busca um herói para essa epopeia portuguesa, fragmentada pelo tempo e com muitos de seus episódios
ignorados pelas gerações que lhe sobrevieram. A busca se dá, sim,
pelos “cinco mil”, pois cada qual, naquela revolução, era “cinco mil”.
“Eu sou cinco mil”, essa era a sentença compartilhada pelos partícipes
da revolução, num gesto de desprendimento que, não obstante, não
foi suficiente para evitar que, entre esses “cinco mil”, alguns se destacassem, ao passo que outros, ainda que fundamentais ao sucesso
da revolução, fossem esquecidos e, assim, relegados ao anonimato.
Nas palavras do oficial, “à medida que alguns, na praça pública,
passavam a ser reconhecidos como heróis, a maioria dos verdadeiros
autores dos actos decisivos se ia transformando numa massa informe
de soldados desconhecidos” (JORGE, 2014, não paginado). O próprio
codinome Bronze, que lhe fora atribuído, põe-no entre os que ficaram à
margem da história, cabendo o ouro e a prata àqueles que conseguiram
angariar visibilidade, os quais, inclusive, usufruíram politicamente disso.
O Oficial atribui tal distorção à história, que, segundo ele, atua ao acaso:
“Sou um homem que lida com os partos da história, e por isso sei muito
bem como uma boa parcela do mérito não é feita por nós, é dada pelo
acaso. O acaso lá sabe. A história quis-me no terceiro lugar, o meu dever
é honrar esse lugar. E aqui estou eu” (JORGE, 2014, não paginado).
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Major Umbela, também partícipe daquela fotografia, foi um dos
oito que invadiram a Rádio Clube para noticiar a sublevação, o que o
torna imprescindível para o documentário produzido por Ana Maria Machado. No entanto, ele se revela relutante em fornecer seu depoimento
sobre aqueles fatos, visto que “ou se ouvia oito, ou não se ouvia nenhum, pois [...] havia homens que, para descreverem um acto, usavam
duas palavras, outros, para o mesmo acto, utilizavam três mil” (JORGE,
2014, não paginado). Ao ganhar a forma de documentário, a memória
se transforma em história, que é o reflexo de versões e seleções, razão
por que subjetiva, como já frisado.
Há, ainda, no discurso do Major um sentido de coletividade, ou
seja, a memória particular dele não se sobressai à memória do grupo
de oito militares que tomaram a rádio. Essa coletividade, a qual ele não
abandona, é gradativa; assim, há o grupo de oito homens, o qual ele
integrou, mas, além desse grupo, há outro maior, no qual esse primeiro
está inserido, e assim sucessivamente, como expõe a narradora: “E
ele, cada vez mais se via a si mesmo no meio do seu grupo, e cada
vez mais via o seu grupo no meio de um grupo muito vasto, e cada vez
mais representava o vastíssimo grupo a que pertencia inscrito no tempo comum e no espaço colectivo [...]” (JORGE, 2014, não paginado).
Como pontua Halbwachs (1990, p. 54), “um homem, para evocar seu
próprio passado, tem frequentemente necessidade de fazer apelo às
lembranças dos outros”, pois sua lembrança não abarcará por completo os fatos vivenciados.
Ainda assim, Major Umbela assente em narrar o que lhe sucedera após a revolução, quando um secretário de Estado o convidou a
comandar uma ação com vistas a desfazer um círculo de nepotismo
em uma instituição pública. Honrado com o convite, Umbela assentiu e
agiu conforme o proposto, alcançando os resultados visados e sendo,
por isso, homenageado. Contudo, transcorridos quatro dias, o mesmo
secretário de Estado disse em entrevista a TVs e jornais que haviam
sumário
332
sido identificadas graves irregularidades no setor pelo qual Umbrela se
responsabilizava, o que indiretamente vinculava o nome deste às supostas irregularidades, sem que estas existissem, pois estava em jogo,
na realidade, “uma dança de cadeiras” (JORGE, 2014, não paginado).
Assim, o Major Umbela teve espoliada sua honra, e, por conseguinte,
também sua saúde, passando, por isso, a mover nove processos contra as TVs, jornais e aqueles que deram causa a tal espoliação, na ânsia de recuperar a honra de quem arriscou a própria vida pela liberdade
daquele país e agora se via injustamente sob o signo de “suspeito”.
Entre as personagens da fotografia que serviu como ponto de
partida para o documentário produzido por Ana Maria Machado, encontrava-se também o militar Charlie 8, ao menos em imagem naquela
fotografia e em outras dispostas por sua viúva na parede da casa onde
vivera. Cabe, pois, à viúva, assim identificada na narrativa, compartilhar
a experiência de Charlie 8 com Ana Maria, Margarida e Miguel Ângelo,
o que faz de forma reticente, especialmente por estar a ser gravada.
Revela sem reservas as ações das quais Charlie 8 participou em 25 de
abril de 1974, mas hesita ante questões que põem em dúvida o reconhecimento de Charlie 8 por aqueles que assumiram o poder após o
levante, sendo confrontada com tal realidade ao receber a pergunta de
Margarida Lota: “Quer dizer que o seu marido morreu de desgosto”,
que, na realidade, soou como afirmação, a ser negada veemente pela
viúva, que, sabendo-se gravada, fez questão de fazê-lo em voz alta.
Isso, contudo, não destitui Margarida de seu intento, de modo que
expõe o que apurara acerca do destino de Charlie 8 após a revolução,
como, por exemplo, o fato de que o governo português lhe havia negado pensão por serviços distintos, ao passo que concedera tal pensão
a membros da polícia política. Confrontada com o que omitira, a viúva
assume o sentimento de que o marido fora injustiçado, mas o faz após
emudecer com a mão o microfone instalado no decote.
‘Quer dizer que durante nove anos os militares não promoveram o seu marido, que o desterraram para lugares e ilhas onde
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333
nada tinha que fazer, que o nomearam carcereiro dos serviços
prisionais, e ele, aquele que foi o rosto mais visível de todos
quantos deram a liberdade ao país, não morreu de desgosto?’
[...] A viúva olhou para a câmara, deixou-se filmar mas colocou
a mão no decote, cobrindo o micro com o punho – ‘De facto,
quando o destacaram para as Ilhas, eu ainda quis reagir. Sem
ele saber, pensei fazer como as outras mulheres faziam, pensei
pedir a intervenção das senhoras. Ainda telefonei à mulher do
Presidente da República, mas a senhora tinha ido às compras.
E ainda telefonei à mulher do Chefe Maior das Forças Armadas,
mas a senhora tinha ido ao cinema...’ [...] Com o microfone tapado pelo punho, a viúva disse – ‘Muito pensava o meu marido
na palavra liberdade. Dizia o meu marido que cedo tinha sido
assaltada por aqueles que sempre seriam destacados, quer
houvesse liberdade quer houvesse repressão, porque se adaptavam a tudo. Tinham sido concebidos e educados para isso.
Para viverem em ambos os lados e em todos os regimes’ (JORGE, 2014, não paginado).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, ao acompanhar o percurso de Ana Maria Machado, Margarida Lota e Miguel Ângelo, optamos por determo-nos nas
entrevistas às personagens Oficial de Bronze, Major Umbrela e viúva,
as quais, entre os entrevistados, melhor sintetizam o misto de orgulho
e melancolia, aquele em razão da relevância do fato histórico,esta em
razão da condição de anonimato e, especialmente, da precariedade
social e econômica em que vivem.Em condição semelhante, também
se encontravam a personagem Ernesto Salamida, advogado que não
recebe os honorários nem das causas ganhas, e o pai de Ana Maria, António Machado, igualmente presente na foto do bar Memories.
Na época da revolução, António Machado era um jornalista muito respeitado em Portugal, conhecido por prever o futuro, e, no presente,
sumário
334
um homem que não consegue pagar as contas de luz, água e gás do
apartamento onde vive.
Os memoráveis expõe como a memória se desfaz à medida que
um grupo ou uma geração é sucedido por um seguinte, que não tem
em si a memória impregnada dos fatos passados por não os ter vivenciado, restando-lhe como alternativa a história, que geralmente é
motivada, e não espontânea, por isso tende a selecionar os fatos conforme a perspectiva de quem a escreve, o que não raro implica deixar
à margem seus verdadeiros protagonistas.
A obra também nos estimula a refletir que, conquanto uma ditadura, como a salazarista, caia, muitos dos que dela participam ou
com ela simpatizam permanecem introduzidos no poder, a agir em
conveniência com seus próprios interesses e com o interesse de seus
pares de ideologia, não por acaso, pois, o desalento das personagens
que se arriscaram para libertar o país daqueles que o subjugavam pela
força e pela repressão.
REFERÊNCIAS
ALEXANDRE, Jean-Michel. Introdução. In: HALBWACHS, Maurice. A
memória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. Willi Bolle; Olgaria Matos; Irene Aron.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
CANDAU, Joël. Memória e identidade.Trad. Maria Letícia Ferreira. São Paulo:
Contexto, 2019.
CERDEIRA, Teresa Cristina. José Saramago: entre a história e a ficção, uma
saga de portugueses. 2. Ed. Belo Horizonte: Ed. Moinhos, 2018.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva.Trad. Beatriz Sidou. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1990.
JORGE, Lídia. Os memoráveis. Alfragide: Dom Quixote, 2014. Versão Kindle.
sumário
335
LE GOFF, Jacques. História e memória.Trad. Bernardo Leitão. Campinas:
Unicamp, 2013.
LOURENÇO, Eduardo. O labirinto da saudade. Lisboa: Gradiva, 2015.
MARQUES, A.H. de Oliveira. Da Monarquia para a República. In: TENGARRINHA,
José. História de Portugal. São Paulo: Unesp, 2000. p. 285-297.
MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: fotografia e história interfaces.
Tempo, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 1996.
NORA, Pierre. Les Lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1983.
ROSSI, Paolo. O passado, a memória, o esquecimento: seis ensaios da
história das ideias.Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Unesp, 2010.
TORGAL, Luis Reis. O Estado Novo: fascismo, salazarismo e Europa. In:
TENGARRINHA, José. História de Portugal. São Paulo: Unesp, 2000. p. 315-339.]
sumário
336
17
Capítulo 17
Os lugares pelos quais o tempo
passou: o senhor Voltaire e o século
XX (Gonçalo M. Tavares)
Robson José Custódio
Robson José Custódio
Os lugares pelos
quais o tempo passou:
O senhor Voltaire e o século XX
(Gonçalo M. Tavares)
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.17
Resumo: A proposta deste texto, primordialmente, é destacar o modo como o
espaço se torna relevante no texto de Gonçalo M. Tavares, neste caso, a partir
das crônicas de O senhor Voltaire, sob a sua perspicácia em analisar o século
XX. Ressaltamos, de antemão, que essas narrativas ainda não fazem parte
oficialmente de uma obra completa da série tavariana O bairro (composta hoje
por dez livros publicados), mas são igualmente importantes para a biografia do
autor. Além disso, é importante considerar que o narrador, pela voz de Voltaire,
parte de símbolos e percepção dos lugares para nos trazer seu senso crítico
diante do mundo e as respectivas atividades sociais. Dentro desse cenário,
observamos que o espaço acaba sendo uma preocupação interessante a se
pontuar nessas crônicas, visto que é por ele que muitas das narrativas fluem
ao longo dos anos do século passado.
Palavras-chave: Espaço; Lugar; O bairro; Crítica.
sumário
338
CONSEGUINTES PELO TEMPO,
PELO ESPAÇO…
O perigo é uma percepção relativa, pois cada um pode senti-lo
de maneira diferente. Entretanto, o senhor Voltaire deixa implícito em
sua fala que, por mais controverso que aparente ser, o medo é o único
sentimento comum entre todos os indivíduos, sobretudo quando se
trata de uma reação abstrata a outro indivíduo: “Não há nada mais perigoso do que um humano venenoso” (TAVARES, 2014a). Isso porque,
para ele, o sujeito tem dimensões semelhantes. Quando o objeto é
muito menor em relação a ele, o medo não é aparente, mas é um engano achar que as coisas pequenas não são perigosas – “o perigo não
é uma questão de fita métrica” (TAVARES, 2014a) –; é, provavelmente,
maior o risco, uma vez que não é possível enxergá-lo.
Essa invisibilidade do ser possibilita ao senhor Voltaire criar uma
delimitação para os lugares90, pois o que é pequeno é ainda maior do
que o invisível, mas, de qualquer modo, o que não se vê ainda ocupa
um espaço: “O maior perigo, eu diria, vem até daquilo que não vemos
[...], não te podes defender daquilo que não vês, eis o óbvio. [... Mas,]
em suma, até o invisível pode ser veneno” (TAVARES, 2014a). Em outras palavras, o espaço é ocupado até por seres microscópicos, que
possibilitam uma interação com outros seres, sendo a relação perigosa ou não. Todavia, esses seres nos dão a chance de trabalhar a
imaginação diante da representação, pois, pensando em Bachelard
(1978), essa ação não é nada mais do que expressões comunicando
aos leitores as próprias imagens. Segundo ele,
em tal imaginação, há, diante do espírito de observação, uma
inversão total. O espírito que imagina segue aqui o caminho inverso do espírito que observa. A imaginação não quer
90
sumário
Isso de acordo com o que nos diz Augé (2012) em relação aos não lugares, pois eles são
formados pelos símbolos que nos remetem a outros pontos dentro da cidade; são rastros
que nos dão a ideia de contrato com determinado ponto e uma identidade.
339
chegar a um diagrama que resuma conhecimentos. Procura
apenas um pretexto para multiplicar as imagens e, quando
a imaginação se interessa por uma imagem, majora o valor
(BACHELARD, 1978, p. 296).
Dessa maneira, o leitor deve se lançar à representação, buscando trabalhar a imaginação diante da imagem pretendida pelo
narrador. Santos (2017) ressalta ainda que os símbolos – por mais
invisíveis que sejam – são criados por ideologias para integrar a vida
real. É o que acontece, portanto, com as fotografias do século XX do
senhor Voltaire; elas são capazes de revelar transformações que perpassam um século inteiro. O protagonista, nessas ligeiras crônicas
de relatos cotidianos, expõe-nos espaços simbólicos transformados
pelas atitudes do ser humano.
Em uma conversa com o senhor Foucault91, em praça pública,
Voltaire vai pouco a pouco destacando fotografias com as suas respectivas passagens no tempo, resgatando símbolos e ideologias da vida real:
– Eis aqui – e o senhor Voltaire aponta para uma das primeiras
fotografias do álbum que tem nas mãos – eis aqui uma rua cheia
de animais que respiram e de objetos que são vendidos. Nas
ruas dos ricos, observa-se, há menos quantidade, por metro
quadrado, de animais que respiram e também é menor o número de objetos embora o preço seja maior (TAVARES, 2013a)92.
Nesse contexto, o narrador nos abre a possibilidade de nos
atentarmos às questões socioeconômicas – não em um bairro especificamente, mas nas cidades, de um modo geral, no século XX – a partir
da realidade na rua. Talvez seja apenas uma observação paralela, mas
ele consegue contrastar os homens que vivem em uma comunidade
de classe mais baixa, considerando o comércio popular de rua, aos
sumário
91
Também habitante de O bairro, o senhor Foucault ainda não tem obra dedicada aos seus
relatos diários.
92
Essa ideia de cenas e fotografias do cotidiano pode ser encontrada também em outras
obras do autor, tais como: Short movies (TAVARES, 2015) e Canções mexicanas (TAVARES, 2013b).
340
que habitam em espaços mais ricos: “Nas melhores ruas da cidade os
cães têm movimentos de madame; e a educação impera” (TAVARES,
2013a), revela sarcasticamente o narrador.
Santos (2017) explicita que as sociedades se realizam por meio
das formas sociais, das diversas realidades e suas respectivas evoluções no tempo, mesmo que mudanças bruscas ocorram. Já Dardel
(2015) delibera que, geograficamente, a cidade é, de modo geral, a
rua. Isso porque é nela que conhecemos os homens e as diversas
possibilidades de interação e realidades93. Assim como apresenta o
senhor Voltaire em sua narrativa, Dardel (2015) coloca a rua não sendo
apenas uma redução de espaço, mas algo múltiplo, como uma abertura para as experiências citadinas, como uma forma da vida cotidiana
em que o indivíduo é transeunte. Ademais, para ele, o sujeito é
elemento constitutivo e permanente, às vezes quase inconsciente, na visão de mundo e no desamparo do homem; realidade concreta, imediata, que faz do citadino ‘um homem da rua’,
um homem diante dos outros, sob o olhar de outrem, público
no sentido original da palavra. Para muitos homens, sobretudo
os dos séculos passados, a rua é onde se nasce, onde se vive
e onde se morre sem que se possa sair. A rua da Idade Média,
ruela tortuosa, rua com escadarias, impasse, com sua fisionomia pitoresca ou sórdida, com suas corporações de ofício
instaladas desde tempos imemoriais, suas tendas, seus ruídos,
seus odores, o cruzamento próximo e suas vias adjacentes. A
rua entregue à noite, à obscuridade e ao silêncio, é o ponto de
ancoragem do homem no universo, seu espaço concreto e familiar (DARDEL, 2015, p. 28).
93
sumário
Esvaindo da discussão teórica e associando-a a uma questão poética, destaca-se Álvaro
de Campos, em seu poema Passagem das horas. De acordo com seu texto, o homem
vive se conhecendo pelas relações que desenvolve pouco a pouco. A utopia da cidade
e suas diversas possibilidades de interação também se efetivam na rua, como defende
o geógrafo Dardel (2015). A existência, desse modo, do eu lírico é depreendida de cotidianos efetivados ao longo do tempo, das realidades e dos espaços, com o eu lírico nos
colocando diante de situações típicas da convivência e do conhecimento do eu com o
lugar pelo qual passa: “Rua a passear por mim a passear pela rua por mim/ [...] O chão
no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua/ O meu passado rua estremece
camion rua não me recordo rua/ [...] Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés/ Rua
em X em Y em Z por dentro dos meus braços/ Rua pelo meu monóculo em círculos de
cinematógrafo pequeno” (CAMPOS, 2021).
341
Também, muitos seres, como manifestado pelo senhor Voltaire e
tantos outros senhores de O bairro, têm suas relações e seus diálogos
desenvolvidos na rua. Pela perspectiva experiencial de Tuan (1983), em
Espaço e lugar, a rua é um caminho de busca pelo conhecimento. A experiência de contato oportuniza explorar não só o tato, mas tantos outros sentidos: a ideia de experimentação envolve “diferentes maneiras
através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade. Essas
maneiras variam desde os sentidos mais diretos e passivos [...], até a
percepção visual ativa e a maneira indireta de simbolização” (TUAN,
1983, p. 9). É nesse sentido que as emoções se envolvem para a construção de significados diante das situações; além de serem aspectos
importantes para a construção das relações, são – pelos termos tuanianos – um colorido para a experiência humana. Por conseguinte, é
possível dizer que não se conhece algo ou alguém em essência, mas
se cria conhecimento pelo sentimento e pensamento, sendo preciso se
jogar no desconhecido para desenvolver relações, para experienciar o
incerto, trabalhar os dois extremos para as afinidades dentro de um espaço, no circundar de uma rua ou nos simples lugares de passagem:
A experiência tem uma conotação de passividade; a palavra
sugere o que uma pessoa tem suportado ou sofrido. Um homem ou mulher experiente é a quem têm acontecido muitas
coisas. No entanto, não falamos das experiências das plantas e,
mesmo nos referindo aos animais inferiores, a palavra ‘experiência’ parece inapropriada. Porém, existe um contraste entre um
cachorrinho e um experiente mastim; e os seres humanos são
maduros ou imaturos dependendo de terem ou não tirado vantagens dos acontecimentos. Assim, a experiência implica a capacidade de aprender a partir da própria vivência. Experimentar
é aprender; significa atuar sobre o dado e criar a partir dele. O
dado não pode ser conhecido em sua essência. O que pode ser
conhecido é uma realidade que é um constructo da experiência,
uma criação de sentimento e pensamento (TUAN, 1983, p. 10).
Destarte, o campo subjetivo está intrinsicamente ligado ao
mundo objetivo, sendo todos os estímulos visuais despertados ao
conhecimento, ao raciocínio. A cidade vai sendo conhecida pelas
sumário
342
sensações despertadas na rua e ganhando discernimento para se
concretizar no conhecimento.
O senhor Voltaire, em suas narrativas, de um modo geral, demarca a evolução da sociedade e seus respectivos comportamentos ao longo dos tempos. Pensando em Dardel (2015), quando se refere ao século
XX como um momento de urbanização, de ascendência dos homens e
de crescente perspectiva das cidades, o tempo é capaz de modificar
não só o território paisagístico, como também recebe responsabilidade pelas mudanças no espaço de relações. Além disso, é importante
lembrar aqui o que diz Cassirer (2012), remetendo a Kant: o espaço é a
concretização de nossa experiência exterior, enquanto o tempo é da experiência interior. A diferença é que o contato que se mantém no mundo
externo difere nos instrumentos utilizados no outro lado, ou seja, a metodologia usada para organizar o mundo, pois, com a experiência interior,
envolve-se muito mais com a memória. Aliás, Cassirer (2012) ressalta o
fato de que um espaço nunca se identifica como ele mesmo nos diferentes tempos. Um rio ou uma praça de antes não são os mesmos de agora
nem serão idênticos aos do futuro. Novas experiências são aplicadas a
esses espaços em diferentes tempos: “O tempo é pensado no início não
como uma forma específica da via humana, mas como uma condição
geral da vida orgânica. A vida orgânica existe apenas na medida em
que evolui no tempo” (CASSIRER, 2012, p. 85). É, basicamente, uma
sequência ou um ciclo de atividades.
Nesse sentido, por exemplo, diante de uma de suas fotografias,
o senhor salientou uma importante mudança no papel que a mulher
exerceu em uma cidade ao longo dos tempos: “No início do século XX,
as mulheres trabalham em casa onde o silêncio permite que as mãos
se tornem rápidas nessa caligrafia concreta designada como trabalho
manual. Costurar é fazer arquiteturas mínimas” (TAVARES, 2013a). O
patriarcado, além disso, é delimitado e apontado pelo narrador como
um sistema comum nesse século:
sumário
343
A velha mulher, com a faca que corta o pão, faz danças sensatas e exatas para que o velho homem, o seu marido, receba na
mão o tamanho exato dessa parte do mundo que se come. Na
cozinha, em 1960, é a mulher que tem a faca; e na rua quem tem
a faca é o homem. Isto, em 1960 (TAVARES, 2013c).
A representação de família dada anteriormente é, para o senhor
Voltaire, de modo geral, a forma do conservadorismo, sendo caracterizada por seus costumes e tradições: “Uma família é estável quando
se contabilizam as energias internas e se percebe que não há cortes
de energia entre pais e irmãos, entre a avó e a sua lenta cadeira de
baloiço...” (TAVARES, 2013c).
Em suas fotografias da década de 1960, Voltaire registra diversos eventos que se modificaram ao longo do tempo – a cadeira da
avó não balança mais da mesma maneira que balançaria no presente,
não se posiciona no mesmo lugar que antigamente, pois “o organismo
nunca está localizado em um único instante” (CASSIRER, 2012, p. 86).
Ele perpassa, mas se modifica, não podendo os tempos se subdividir
em tempos individuais; os lugares frequentam, digamos, diferentes situações de acordo com a sua evolução; é um ciclo, no qual a memória
se torna a principal ferramenta para a localização do passado: “Não
podemos descrever o estado momentâneo de um organismo sem levar em consideração a sua história e sem referi-lo a um estado futuro
para o qual este estado é apenas um ponto de passagem” (CASSIRER, 2012, p. 86). A memória, enfim, está situada em todas as nossas
relações com o outro e com o espaço, não sendo algo que deve se
desprezar ao olhar para um lugar no presente e no futuro – espaço e
tempo, portanto, estão interligados:
Cada estímulo que age sobre um organismo deixa nele um
engrama, um traço fisiológico definido; e todas as futuras reações do organismo dependem da cadeia desses engramas, do
complexo de engramas conectados. [Dessa maneira,] as impressões anteriores não devem ser apenas repetidas; devem
também ser ordenadas e localizadas, e referidas a diferentes
pontos do tempo. Tal localização não é possível sem a con-
sumário
344
cepção do tempo como um esquema geral – como uma ordem
serial que compreende todos os eventos individuais. A percepção do tempo implica necessariamente o conceito de tal ordem
serial correspondente àquele outro esquema que chamamos de
espaço (CASSIRER, 2012, p. 86-87, grifo do autor).
Mas é de grande valia evidenciar que essa memória não se trata
somente de uma simples repetição ou retorno, mas de uma lembrança
que renasce e que demanda uma movimentação dos ciclos e sentidos,
da imaginação, do processo criativo próprio do ser humano – uma
percepção, como lembra Bachelard (1978). O homem vai ao passado,
resgata a memória e tenta revivê-la e reorganizá-la no presente, criando sentidos, como uma possível memória simbólica, que faz com que
haja uma reconexão com a experiência passada. O senhor Voltaire,
por conseguinte, adquire essa capacidade de resgatar o passado pela
memória e destaca que os tempos mudaram, como ele mesmo deixa
implícito ao apresentar a evolução da mulher no século XX.
De acordo com a narrativa, houve uma devida inversão nos papéis sociais, a partir da qual as mulheres conseguiram ultrapassar os
limites arcaicos em seus costumes: “As mulheres têm a responsabilidade de fazer o relato da História do Mundo e da Família. E tem ainda
de fazer o relato da história da própria casa e do próprio bairro. No
século XX, são as mulheres que fazem a história” (TAVARES, 2013d).
As mulheres conseguem ser vistas no mercado de trabalho, quebram
também os limites socioeconômicos. Aquela “mulher-objeto” transpassa suas balizas para atingir uma posição além daquela visão realista do
século XIX94. É possível ressaltar o papel desse grupo na constituição
94
sumário
O senhor Voltaire enfatiza, além disso, a transição da visibilidade externa em relação a quem
é a mulher na sociedade: “No século XX, ao domingo no parque junto à erva, os homens
procuram diamantes e as mulheres procuram homens que procuram diamantes. Existe a
música escutada pelas mulheres que guardam os olhos para os homens e pelos homens
que querem ver as mulheres dançar” (TAVARES, 2013a). O interesse é externalizado e vivido
não como já apresentado por Eça de Queirós (1845-1900) em seus romances, com o casamento sendo apenas um contrato, mas como um jogo de prazer e de interesse social, cheio
de tabus. Entretanto, ressalta Voltaire, “para os homens com desejo a música só existe se
as mulheres dançarem. A dança feminina é, portanto, a prova de que a música existe. Isto,
no século XX. No século XXI tudo mudou” (TAVARES, 2013a), todos dançam, não só aquela
mulher vista apenas como um sinônimo de posse, de objeto.
345
da sociedade, mas ainda mais destacar a importância das tarefas, do
trabalho, nas demarcações de papéis sociais nos espaços.
A atividade laboral, inclusive, é uma das representações da cidade no processo globalizante95. Não obstante, esse processo teve
origem – como entrega outra fotografia de Voltaire – na Revolução Industrial e com os processos de êxodo no mesmo contexto: “As fábricas
invadem o espaço à volta da cidade e rapidamente invadem também
a pauta da música artificial e a pauta da música natural, substituindo,
assim, o som do pássaro pelo som da máquina, o som do voo da ave
pelo som suave do fumo a sair da chaminé” (TAVARES, 2013c). É um
tempo que Dardel (2015, p. 29) denomina como uma circunstância que
ultrapassa a geografia humana:
Imensas populações nascem e se movem na grande cidade,
um número enorme de homens é, praticamente, ‘de desenraizados’, sem ligações duráveis com a terra ou com um horizonte
natural, seres nos quais os observadores mais ‘objetivos’ concordam em reconhecer o caráter irritadiço, volúvel, sujeito a
psicoses ou a contágios afetivos. O homem torna-se também
construtor de espaços, abrindo vias de comunicação: caminhos, pistas, estradas, vias férreas, canais são maneiras de
modificar o espaço, de o recriar. A rota desfaz o espaço para
recriá-lo, reagrupá-lo.
O ser humano é um elemento importante para a localização
das situações nos diversos tempos da história, não só na forma como
95
sumário
Santos (2017) apresenta a divisão social do trabalho como algo representativo na constituição do espaço social. Para ele, esse papel, movido “pela produção, atribui, a cada
movimento, um novo conteúdo e uma nova função aos lugares. [...] [Assim,] num primeiro
momento, ainda não dotado de próteses que aumentem seu poder transformador e sua
mobilidade, o homem é criador, mas subordinado. Depois, as intervenções técnicas vão
aumentando o poder de intervenção e a autonomia relativa do homem, ao mesmo tempo
em que se vai ampliando a parte da ‘diversificação da natureza’ socialmente construída.
[...] Lembremo-nos, em primeiro lugar, de que a cada novo momento histórico muda a
divisão do trabalho. É uma lei geral. Em cada lugar, em cada subespaço, novas divisões
de trabalho chegam e se implantam, mas sem exclusão da presença dos restos de divisões do trabalho anteriores” (SANTOS, 2017, p. 131-136). Cada nova divisão de trabalho
garante o seu tempo, o seu momento, não devendo, ou melhor, não sendo uma repetição,
por mais repetitivo que pareça ser. O trabalho é uma grande concepção de que o tempo
interfere nas localizações dos indivíduos e nas coisas do espaço.
346
existe a relação entre o ser e o mundo, mas como isso pode se tornar visível aos outros. Para Santos (2017), as diversas temporalidades
nos conduzem às diversas formações socioespaciais, formando novos
agrupamentos de acordo com as divisões executadas ao longo do
tempo. Dessa maneira, os eventos decorrentes das influências humanas têm os seus determinados pontos no tempo e no espaço: “Todos
os lugares existem em relação com um tempo do mundo, tempo do
modo de produção dominante, embora nem todos os lugares sejam,
obrigatoriamente, atingidos por ele” (SANTOS, 2017, p. 138). Existe um
papel, em contrapartida, de diferenciação pelo que ocorre em diversas
situações no tempo do mundo, cuja dimensão geográfica externa, segundo ele, é o próprio mundo; diferentemente dos limites internos, que
não são possíveis de definir, ela não é absoluta.
É relevante saber, por exemplo, de que maneira determinado
evento modifica (ou simplesmente interfere) os diversos lugares durante a Revolução Industrial, como já citado pelo senhor Voltaire em suas
narrativas, ou, também, como as mulheres se estabeleceram em diferentes espaços, não só na divisão social do trabalho. Santos (2017) quer,
possivelmente, nos chamar atenção para a forma como os eventos são
sucedidos e para o fato de que as áreas e regiões pelas quais se estende
determinada atividade não terão como se comportar de maneira idêntica, mas semelhantes. “Cada área constitui uma situação particular. Cada
lugar é uma combinação quantitativa e qualitativamente específica de
vetores” (SANTOS, 2017, p. 151). Não é válido citar ou entender todos os
lugares da mesma maneira, generalizando-os; é por isso que as questões temporais da narrativa se tornam tão importantes nesse aspecto,
visto que as sucessões de fatos precisam ser compreendidas em seus
campos de interferências e em diferentes séculos (aqui, neste caso).
O senhor Voltaire conta muitos dos principais eventos do século
XX e resguarda a história em suas localizações e momentos específicos – sendo eles concomitantes ou não em toda a Europa. A questão
sumário
347
trabalhista, em amplas lentes, é posta como uma situação de determinações (opressoras) e hierarquia social, justificando as mobilizações
sociais, diante das relações de trabalho, da seguinte forma:
Segundo parece, em 193696, uns tantos ocuparam uma fábrica e entraram na propriedade privada do patrão com os seus
gritos públicos – palavras ditas e comunidade como se aquilo
fosse um coro grego e muito clássico. De fato, as manifestações e as greves trazem palavras misteriosas que conseguem
juntar milhares de pessoas. Eis uns dos lemas: os operários
têm pescoço como as rosas e os patrões tesoura como os
jardineiros. Era o que se ouvia, em surdina, em algumas manifestações (TAVARES, 2013e).
Em contrapartida, em outro momento, Voltaire relata os eventos
das greves e as contribuições dos sindicatos: “Antes de determinada
data do século XX, os sindicatos dos trabalhadores eram tão ilegais
como o ato de assassinar a vizinha. Depois, assassinar manteve-se
ilegal” (TAVARES, 2013f). Continua:
Havia uma lei de 188497 que permitia que os trabalhadores se
pudessem juntar, mesmo que não fosse para trabalhar. O quer
era uma lei perigosa, diga-se. Se quem trabalha se junta fora
do local de trabalho, é porque algures, por aí, existe vinho, baile
ou uma tendência perigosa para a revolução. Daí a importância
de se oferecer vinho e música aos trabalhadores que se junta
(TAVARES, 2013e).
Pelo menos assim se garantiria a manutenção da hierarquia.
Voltaire ainda rememora o processo de modernização do mundo, sobretudo no que tange à urbanidade dos territórios. Devido a esse processo, as periferias surgiram, para ele, graças ao também avanço da
comunicação e da informação entre as sociedades, fazendo com que
sumário
96
O senhor Voltaire se refere aqui às manifestações de junho de 1936, na França, em que
Trotsky expôs uma nova fase do movimento operário francês, motivada pela crise do
sindicalismo francês.
97
Revogação da Lei Le Chapelier (1884), aprovada nos primórdios da Revolução Francesa
(1791) para proibir sindicatos e manifestações trabalhistas, autorizando, a partir de então,
a formação de sindicatos de categorias trabalhistas.
348
houvesse uma extrema expansão territorial dos grandes centros e da
criação das avenidas pelo mundo:
Como se vê por esta foto – disse o senhor Voltaire –, em 1955 já
há cortinados feios, e o rádio encontra-se no canto do quarto, e
o quarto encontra-se no canto da casa, e a casa encontra-se no
centro do bairro, e o bairro encontra-se no canto da cidade. Portanto, o rádio é o único centro das vidas que foram empurradas
para a periferia. O rádio traz notícias do centro e assim o ouvido
das pessoas que vivem na periferia torna-se uma parte fisiologicamente central, fisiologicamente atualizada (TAVARES, 2013f).
O rádio é, por sua representatividade, o único instrumento dos
grandes centros a frequentar os ouvidos das pessoas que estiveram
condicionadas às margens da cidade; só ele está atento e preocupado
com elas, mas só essas pessoas, como revelam os enunciados subordinados adjetivos usados pelo narrador, porque, de todas as outras
vidas (dos indivíduos despreocupados com essas marginalizações e
dos presentes na burguesia central), a informação, o progresso e a
hierarquia eram mantidos.
Diante disso, é preciso reforçar o fato de que os eventos históricos possuem uma rede de solidariedade, uma vez que são capazes
de se manifestar em caráter somente de tempo e espaço: um se dá
na noção de origem e causa, que permite que seja a mesma em diversas regiões; o outro remete à localização propriamente dita, que,
neste caso, possui eventos concomitantes, superpostos, acontecendo
comumente, independentemente das regiões ou da relação centro-marginal (SANTOS, 2017). O geógrafo afirma que, ao considerar as
ocorrências conjuntas de diversos eventos – de ordem e duração não
idênticas –, eles são superpostos:
[É] como um nó, um lugar de encontro. É como se o evento
amarrasse essas diversas manifestações do presente, unificando esses instantes atuais através de um verdadeiro processo
químico em que perdem suas qualidades originais para participar da produção de uma nova entidade que já aparece com
suas próprias qualidades (SANTOS, 2017, p. 154-155).
sumário
349
É, praticamente, a união dos tempos para a formação de uma
única localização, relações que se imbricam no singular para o desenrolar das atividades nas possibilidades de extensões. Reforçando o que a
geografia humana nos passa, por meio dos eventos somos capazes de
definir muitas das composições dos lugares e o processo evolutivo pelo
qual aquele instante passou, visando à mudança. Calvino (1990) pode
ser corroborado a partir do discurso de Santos (2017), ao contar a história da cidade de Zaíra dos altos bastiões, em sua obra As cidades invisíveis. Para ele, a memória está garantida não pelas belas construções da
cidade, mas pelos eventos que a compuseram; deduzimos, então, que
o passado consegue resgatar a memória e os espaços:
[A cidade é feita] das relações entre as medidas de seu espaço
e os acontecimentos do passado: a distância do solo até um
lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado; o fio
esticado do lampião à balaustrada em frente e os festões que
empavesavam o percurso do cortejo nupcial da rainha; a altura
daquela balaustrada e o salto do adúltero que foge de madrugada;98 [...] A cidade se embebe como uma esponja dessa onda
que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de Zaíra
como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas
a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas
da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas,
nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos
mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões,
serradelas, entalhes, esfoladuras (CALVINO, 1990, p. 14-15).
Em outras palavras, a história dos eventos está intrinsecamente
ligada à história dos locais atuais, que, consequentemente, se relaciona à existência dos homens, pois é do mundo, desses espaços, que o
indivíduo retira suas ideias. As localizações e os objetos resguardam
narrativas que são próprias deles, bem como faz o senhor Voltaire,
98
sumário
Calvino (1990, p. 14) continua: “A inclinação de um canal que escoa a água das chuvas e
o passo majestoso de um gato que se introduz numa janela; a linha de tiro da canhoneira
que surge inesperadamente atrás do cabo e a bomba que destrói o canal; os rasgos nas
redes de pesca e os três velhos remendando as redes que sentados no molhe, contam
pela milésima vez a história da canhoneira do usurpador, que dizem ser o filho ilegítimo
da rainha, abandonada de cueiro ali sobre o molhe”.
350
ao dar oportunidade às situações históricas por meio de suas fotografias e leves recordações. Em uma dessas imagens, o senhor se
reconhece, pois se tratava de um documento de identidade: “Um papel com tinta por cima, mas esse papel com tinta por cima parece
conhecer-te melhor do que a tua própria mãe. Tem os teus dados, os
teus números, os teus nomes” (TAVARES, 2013d).
Consideremos que isso seja uma forma de ele se fixar no espaço, como um indivíduo identificado e registrado, porém, para ele,
só há um problema: esse papel reúne tudo da ciência – os números
e as palavras, menos as emoções, porque, voluntariamente ou não,
ele ainda existe e sente. “A ficha de um cidadão, o documento que
o identifica, além dos números das datas de nascimento e da altura,
grande ou pequena, e além dos nomes próprios e de família e do sítio
onde vive... em suma, além dos números e das palavras, deveria ter
versos” (TAVARES, 2013d), ressalta o senhor, buscando, na percepção dos versos, atribuir o ser subjetivo, abstrato. Independentemente
disso, notamos que os objetos se encontram nos lugares possuídos
de sentidos em relação ao meio e à ordem temporal em que se descobrem. Na esteira de Santos (2017), todos os elementos ocupam um
lugar no espaço e são reconhecidos a partir do momento em que são
inseridos na existência do ser. Basicamente, “o objeto existe geograficamente em um lugar e, no momento em que nele se instala, ganha
uma outra certidão de idade. O fato da inserção em um determinado
meio é diferente do fato de existir de forma absoluta” (SANTOS, 2017,
p. 157), ou seja, determinado objeto, um documento ou uma fotografia, por exemplo, tem sua origem no lugar exato em que nasceu, mas
também terá um epicentro em outro lugar, a partir do momento em que
for inserido nesse outro lugar.
Talvez seja por isso que alguns conflitos surjam e permaneçam
na sociedade, devido às origens e interesses antitéticos de cada pessoa, pelo sim e pelo não, pelo Norte e pelo Sul, pela concomitância e
sumário
351
coexistência, pela distinção, enfim, dos sistemas em períodos diferentes. O senhor Voltaire, usando de sua esperteza, propõe, diante disso,
que a cidade seja dividida em dois extremos: “Em vez de mulheres
para um lado, homens para outro, crianças para um lado, velhos para
outro – comecemos então a propor: quem diz sim para aquele lado,
quem diz não para o outro. [...] Duas cidades opostas. Duas cidades
quase inimigas” (TAVARES, 2013g). Os problemas seriam capazes de
resolução ou criariam mais dilemas pela dupla possibilidade de pensamentos (somente)99. Ora, o habitante, em certo momento – reflete
Voltaire –, percebe o mundo intrincado e constata a necessidade de
organização: “O mundo não está bem; está torto, mal feito, é caótico,
estranho e imprevisível, mas eu estou completamente convencido de
que se em vez de dez dedos tivéssemos onze ou nove o mundo ainda
estaria mais desorganizado” (TAVARES, 2014b). O problema não são
as opções, não são as quantidades, mas o próprio habitante, o próprio
99
sumário
Em O útil e o inútil, o senhor Voltaire pondera sobre a filosofia, não em seu caráter teórico,
simplesmente, mas de que forma ela consegue ser algo usual em nosso cotidiano, de
uso constante – tal como se define esse adjetivo dentre múltiplos verbetes –: “Tenta com
ela abrir uma porta fechada à chave, mas não consegue. Tenta com a filosofia cavar um
buraco na terra, e nada – nenhum buraco. Tenta com ela rodar um parafuso e o parafuso
nicles, não se mexe. Tenta subir a um prédio, usando a filosofia, e não consegue – fica
no mesmo sítio, no piso zero. Não tem motor nem rodas, não serve para mudar de ponto
no espaço” (TAVARES, 2013h). A filosofia não é vista, portanto, como um objeto material
e que pode ter seu uso visto concretamente, como procura entender o senhor. Além
disso, academicamente, não é comum identificar a filosofia como “objeto”, pois ela não
se encerra, não se compreende a utilidade, tal como procura o narrador. Entra-se em um
dilema, a partir do momento em que o senhor Voltaire compara o tempo à filosofia: “Como
fazer um risco, um traço a caneta preta, no tempo? [...] Não consigo fazer um traço no
tempo, só no espaço, na folha branca ou na parede – eis o que diz o desenhador do
espaço que queria muito ser desenhador a sério, mas não consegue” (TAVARES, 2013h).
Se o registro fosse feito no tempo, a marca seria definitiva, pois, como já visto em discussões anteriores, o tempo resguarda a memória do passado, as vivências do presente e as
perspectivas do futuro. Entretanto, de qualquer maneira, a filosofia é definida pelo senhor
como inútil; dessa maneira, ele a joga para longe, como se fosse mesmo um objeto sem
forma e sem objetivo, como se fosse uma pedra: “Pega nela, puxa o braço e zás: lá para
o fundo! [...] No entanto, de repente, ali, de novo, o raio da coisa! À sua frente, junto aos
seus pés. Que fazer?” (TAVARES, 2013h). O senhor pensa que o mundo estaria livre do
pensamento, daquele elemento que nos faz refletir, do questionamento, mas ele não se
desprende do mundo e está em nosso entorno em todas as situações; sua localização
é permanente. Esse comportamento reforça o pensamento da aporética de Sócrates em
relação à filosofia, ou seja, é impossível determiná-la como uma ciência exata, sendo
seu principal objetivo – segundo a teoria socrática – o exercício da razão, a produção de
indagações a partir de uma dúvida, não respostas.
352
ser. Não adianta ter a simetria e a harmonia na teoria, portanto, como
reverbera Bachelard (1978, p. 297), o objeto real e a imaginação são
processos diferentes, pois o primeiro se completa em si mesmo, enquanto o segundo é só uma reflexão subjetiva: “No plano da imaginação, ele não se ‘enganou’, já que a imaginação não se engana nunca,
já que a imaginação não tem que confrontar uma imagem com uma
realidade objetiva”.
Para o senhor Voltaire, seria necessário olhar os impasses e os
outros com os sentidos, na tentativa de evitar as posturas dos homens
em suas relações com o tempo e o espaço. O mundo se torna, dessa
forma, defectivo, visto que as pessoas não se permitem: “Se queres
que os outros te observem com atenção, se queres que os outros detectem em ti detalhes e pormenores essenciais: fecha os olhos. Finge-te cego” (TAVARES, 2014c). Será preciso utilizar os outros sentidos, a
percepção das coisas. O narrador, inclusive, reforça que os objetos se
permitem descrever, enquanto os humanos tendem apenas a ser observadores. As propriedades são os nossos sistemas – acontece que
eles são regidos pelos homens: “Não se endireita a sombra de uma
vara torta” (TAVARES, 2014c) – politicamente, a encruzilhada é muito
mais superior, além das forças primárias do intelecto.
REFERÊNCIAS
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supermodernidade. 9. ed. Campinas: Papirus, 2012.
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pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
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dominiopublico.gov.br/download/texto/jp000011.pdf. Acesso em: 15 maio 2021.
sumário
353
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cultura humana. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
DARDEL, Eric. O homem e a Terra: natureza da realidade geográfica. São
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SANTOS, Milton. A natureza do espaço:técnica e tempo, razão e emoção. 4.
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Acesso em: 10 fev. 2019.
TAVARES, Gonçalo M. O senhor Voltaire e o século XX: tudo certo, portanto.
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e antibióticos. Notícias Magazine, 2013e. Disponível em: https://www.
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TAVARES, Gonçalo M. O senhor Voltaire e o século XX: rádio e bigode.
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Acesso em: 10 fev. 2019.
TAVARES, Gonçalo M. O senhor Voltaire e o século XX: os dois gêneros
humanos. Notícias Magazine, 2013g. Disponível em: https://www.
noticiasmagazine.pt/2014/o-senhor-voltaire-e-o-seculo-xx-os-dois-generoshumanos/cronicas/4288/ Acesso em: 10 fev. 2019.
TAVARES, Gonçalo M. O senhor Voltaire e o século XX: o útil e o inútil.
Notícias Magazine, 2013h. Disponível em: https://www.noticiasmagazine.
pt/2014/o-senhor-voltaire-e-o-seculo-xx-o-util-e-o-inutil/cronicas/4284/ Acesso
em: 10 fev. 2019.
sumário
354
TAVARES, Gonçalo M. O senhor Voltaire e o século XX: sobre as dimensões
do perigo. Notícias Magazine, 2014a. Disponível em: https://www.
noticiasmagazine.pt/2014/sobre-as-dimensoes-do-perigo/cronicas/4301/
Acesso em: 10 fev. 2019.
TAVARES, Gonçalo M. O senhor Voltaire e o século XX: pés, mãos – escrita,
matemática. Notícias Magazine, 2014b. Disponível em: https://www.
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TAVARES, Gonçalo M. O senhor Voltaire e o século XX: objetos, homens
e animais. Notícias Magazine, 2014c. Disponível em: https://www.
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TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.
sumário
355
Capítulo 18
18
Deus, pátria e família: Um estudo
sobre o totalitarismo em o nosso
reino de Valter Hugo Mãe
Anna Carolina Legroski
Anna Carolina Legroski
Deus,
pátria e família:
um estudo sobre o totalitarismo
em O nosso reino de Valter Hugo Mãe
DOI: 10.31560/pimentacultural/2023.96252.18
Resumo: Passando-se durante os anos finais do Estado Novo português, a
narrativa o nosso reino (2004), de Valter Hugo Mãe, submerge o leitor em uma
comunidade isolada de pescadores, dado o distanciamento geográfico, econômico e cultural em relação ao restante de Portugal. O narrador-personagem,
benjamim, conta sua trajetória, dando especial atenção ao período da infância,
em meio ao autoritarismo familiar e ao totalitarismo da Igreja Católica da época. Neste trabalho, buscamos compreender de que forma o poder do Estado
Novo português se faz presente na vida de benjamim e do seu entorno, tendo
em vista que, apesar da comunidade estar isolada dos aparelhos do Estado
ela não está, de maneira alguma, isolada do discurso e dos mecanismos de
coercivos desse sistema, uma vez que o poder do Estado Novo salazarista
ecoa e é legitimado pela configuração familiar e pelo discurso religioso.
Palavras-chave: Totalitarismo; Salazarismo; Valter Hugo Mãe.
sumário
357
INTRODUÇÃO100
No romance o nosso reino (2004), o escritor português Valter
Hugo Mãe retrata uma pequena comunidade de pescadores, em meio
a uma devastadora crise econômica e alimentar, reflexo direto do tempo em que se passa a narrativa (anos finais do Estado Novo português,
ocorrido entre 1933 e 1974). Nesse contexto de isolamentos geográfico, econômico e político, o protagonista, benjamim101, criado dentro do Catolicismo tradicional, vive uma crise de fé, ao mesmo tempo
subversiva e aterradora, tendo em vista que sua sociedade não só se
organiza, mas compreende o mundo por meio da forte crença católica,
sustentáculo em seus períodos críticos.
O romance de Mãe traz como um dos elementos principais – e,
por isso, mais visíveis – essa relação do narrador protagonista com o
Catolicismo, a forma idiossincrática e conflitante com que entende e
exerce sua religiosidade e espiritualidade. Todavia, dado o contexto
político evocado pela narrativa, é incontornável considerar que, à presença esmagadora do Catolicismo tradicional, subjaz invariavelmente
o discurso que se organiza em torno e pelos interesses do salazarismo, uma vez que, nessa época, as duas instituições imiscuíram seus
discursos em uma aliança mutualística, formalizada via Concordata,
acordo firmado entre Vaticano e Portugal, garantindo à Igreja Católica
uma série de direitos em consonância com o Estado, em 1940, e que
ambiciona moldar a sociedade em seu núcleo fundamental: a família.
Dessa forma, existia à época da narrativa uma forte (e poderosa)
linha discursiva voltada para o cerceio de práticas consideradas perigosas ao bem-estar social e, portanto, extremamente moralista e que valorizava o sacrifício e a penitência como maneiras de garantir o equilíbrio
100 Este trabalho faz parte da pesquisa da tese em desenvolvimento da autora.
101 Todos os nomes próprios são grafados com minúsculas no original.
sumário
358
social, mascarado como forma de obtenção da salvação no pós-vida,
sendo esse raciocínio reforçado pelas políticas públicas de austeridade.
Os estudos de Luís A. Vicente Baptista (1986) sobre a propaganda moral vinculada em cartilhas, manuais e reportagens da época
apontam como alvo dessas construções discursivas, sobretudo, a população da classe baixa e demais classes empobrecidas; assim,
a mensagem discursiva é, primordialmente, dirigida às classes
de inferior condição social e económica pretendendo: a) servir
os grupos sociais dominantes, tendo em vista o convencimento
dos subordinados da imutabilidade da sua condição; b) cobrir
a maior parte da população, a quem esta condição identifica
(BAPTISTA, 1986, p. 192).
Essa relação faz-se presente no romance de Mãe, pois, apesar
de a família de benjamim, de acordo com o próprio rapaz, vir de um
passado recente de destaque social, toda a narrativa trabalha com as
cenas de empobrecimento severo dessa família, incluindo momentos
em que seus integrantes chegam a passar fome. Nas palavras do narrador, sua avó era “não muito rica, mas rica, como nós nunca haveríamos de ser após a sua morte. e foi a comer, rica e limpa, que tombou
[morta]” (MÃE, 2008, p. 31).
Pensando no poder exercido pela Igreja Católica, é interessante
investigar a religiosidade que paira sobre a vila de pescadores, também em sua fusão com o Estado, sobretudo na forma do discurso
moral, ético e tradicionalista, ou seja, nos pontos basais de ambas as
instituições. Isso porque, na narrativa de Mãe, a religião apresenta-se
como a força capaz de manter a estabilidade e normalidade da cidade, desde a repetição do rito dominical até suas implicações no foro
mais íntimo dos indivíduos, amplificando, de certa forma, a presença
também onipresente do Estado.
Logo a princípio, ainda na porção inicial do primeiro capítulo,
ao descrever o cotidiano familiar, benjamim evoca a tradição em torno
do dia santo:
sumário
359
aos domingos, quando descíamos para a missa e o caminho
até ao centro da vila se enchia de vizinhos, parecíamos todos
felizes. parávamos para comprar bolos na mercearia, podíamos
ver os amigos da escola vestidos a rigor, como nós, e havia
sempre um a parecer ridículo, embelezado com toques quase
florais das mães tão zelosas. víamos e ouvíamos muito, atendendo à eucaristia em silêncio temendo os olhos de deus. aos
domingos, através das pequenas dádivas, subíamos ao senhor
para nos purificarmos e esperançar de vida (MÃE, 2008, p. 19)
Embora percebamos um breve indício de desiquilíbrio na estrutura doméstica, por meio do verbo “parecer”, há, na superfície, uma
cena amena, de encontros sociais e de manutenção da esperança
pela repetição de uma rotina social calcada no ritual sacro. No entanto,
longe de uma fé submissa e obediente, as personagens se relacionam com o Catolicismo de maneira personalizada, às vezes utilitarista,
negociável, com adaptações da doutrina católica, de forma que, não
raro, temos vislumbres de um deus pessoal e acessível, moldado pela
personagem à sua imagem e semelhança. Inclusive, o próprio pároco
da vila, padre filipe, ao submeter benjamim à agressão física, por não
validar a adaptação do sacramento da confissão feita pelo menino,
passa a representar literalmente o poder autocrático e punitivo. Além
disso, chamamos atenção para a ausência de referências ao poder
público na narrativa, seja via estrutura de governança, seja da força
policial ou militar na vila – as referências a soldados e guerras são exclusivas para situações no além-mar, longínquas e encerradas, como
a guerra de Angola, na qual uma das personagens lutou.
Tendo em vista essas relações, investigamos aqui, de forma
preliminar, a presença da emulação do discurso da moral e tradição
cristãs nas ações e comportamentos das personagens do romance,
voltando o olhar também para a própria construção familiar de benjamim, no que reverbera (ou não) o padrão moral e ético desejável para
a época. Isso porque é a partir da resignação pela mística da santidade
e sua validação via martírio que benjamim parece organizar o próprio
sumário
360
pensamento para enfrentar o momento histórico-político de penúria e
de mortes sequenciais advindas da fome e adoecimento dos corpos e
mentes. Dentro de ponderação, o menino considera o sofrimento uma
contrapartida natural e aceitável da perfeição espiritual: “quanto maior
a santidade maior o sofrimento, a cada dia perdíamos tudo, pessoas e
coisas desapareciam de nós” (MÃE, 2008, p. 141).
Chamamos também atenção para a pobreza estrutural da vila,
que, mesmo já existindo, se intensifica implacavelmente e se manifesta, sobretudo, a partir da fome e doenças psicológicas, justificando-se pela crença em um projeto divino – mediante a provação,
sacrifício e martirizarão do corpo, capaz de justificar o merecimento
de uma vida pós-terrena recompensadora. Dessa maneira, os mecanismos da fé são mobilizados em prol da compreensão, resignação
e, até mesmo, de sua exaltação, diante desse contexto. Acrescido a
isso, o profundo isolamento geográfico da região reverbera o projeto
político fascista baseado na
acentuação da ideia e do sentimento de isolamento da sociedade portuguesa (ligando-a preferencialmente ao mar e afastando-a dos povos próximos), negando-lhe o contacto com outras
sociedades e com as mudanças nelas operadas, empolando
valores mantidos por uma organização social característica do
Antigo Regime e classificando como heréticas as iniciativas
para a modificar ‘por dentro’ (BAPTISTA, 1986, p. 192).
De fato, Mãe, a partir do desenvolvimento de uma vila ficcional
isolada em si mesma e na obrigação tácita de manter-se socialmente correta e íntegra, disseca indivíduos e relações moldadas e (de)
formadas naquele momento histórico, dentro de suas trajetórias individuais, que, muitas vezes, causam uma pressão interna insuportável
para que haja uma mudança no estado das coisas, privilegiando seu
distanciamento temporal e crítico, mediante uma visão portuguesa
contemporânea e pós-salazarista, uma vez que o Estado não aparece de maneira nítida na obra e, mesmo quando a referência é mais
sumário
361
explícita, não há citação direta ao regime salazarista. O que se propõe
aqui é uma leitura de o nosso reino a partir da paródia do discurso
religioso institucional da época, buscando, no entanto, considerar os
pontos de convergência discursiva entre a Igreja Católica e o Estado
Novo, instituições indissociáveis na época e que se retroalimentavam, a partir do eco e interações entre as personagens, sobretudo no
que diz respeito a seu protagonista.
UMA PARÓDIA DO DISCURSO
Por maior que seja o realismo de representações afetivas e discursivas, o texto de Mãe apresenta a ficcionalização de uma realidade
suposta, mais apreendida que vivida, e que pressupõe em sua construção a emulação não apenas das relações e afetos, mas também do
aparato discursivo que fundamenta tais relações e afetos, que, dentro
do contexto do Estado Novo português, é fortemente ideológico, político e religioso. Assim, na leitura desse romance, não podemos – e não
somos deixados a – perder de vista o lema totalitário “Deus, família e
propriedade”, sempre reverberante em segundo plano. Entramos em
uma espécie de apropriação do discurso salazarista, capaz de impactar e repercutir em uma comunidade isolada, empobrecida e cuja economia gira em torno da atividade pesqueira. De acordo com Camila da
Silva Alavarce (2009, p. 58),
ao passo que há uma ideologia manipuladora disfarçada em
realidade – que manipula até mesmo o riso conforme seja conveniente –, o discurso literário existe justamente para subverter
esse estado de coisas: ele realiza com a estrutura ideológica
o que esta realizou com o real. Em outras palavras, o discurso
literário inverte a estrutura ideológica, rompendo modelos socialmente impostos e provocando, pois, o questionamento.
sumário
362
A pesquisadora se refere, de maneira geral, a episódios da história em que houve o reforço de uma ideologia que valoriza a seriedade, mas, pensando especificamente no caso de o nosso reino, faz
sentido interpretar o discurso fascista como uma forma de manipulação da realidade e o que Valter Hugo Mãe faz em seu livro equivale à
subversão desse discurso via questionamento.
Tal emulação é de certa forma sutil, à medida que, primeiramente, não há a evocação de textos oficiais da época – não há referências à Constituição de 1933, à Concordata de 1940, a textos do
catecismo católico ou a discursos oficiais. No entanto, ela opera no
nível do tácito, do conhecimento geral, do apregoado por manuais de
comportamento (BAPTISTA, 1986) e, principalmente, do discurso-padrão construído ao longo dos anos de repressão e que ainda hoje é
repetido por vozes fundamentalistas, de forma hereditária. Talvez seja
possível afirmar que, em o nosso reino, a presença do fascismo faz-se
de forma velada, porém crível e apropriada para a realidade ribeirinha
representada, lembrando que em comunidades afastadas, com pouco
desenvolvimento de aparelhos políticos, ele chega de outras formas.
Por exemplo, se manifesta na interdição dos tios de benjamim, moradores da França, de voltarem para a casa da infância, mesmo no caso
da morte da mãe deles.
Nesse ponto, parece ser possível pensar em termos de paródia.
A pesquisadora Maria Lúcia Aragão (1980, p. 18) chama atenção para
a relação entre o autor e sua própria época por meio do recurso à paródia, afirmando que
nesta recusa em aceitar os modelos literários vigentes ou os
mitos, ou os procedimentos, ou melhor, tudo aquilo que compõe
o acervo cultural de sua época, o parodiador está denunciando
a sua preocupação com os elementos que servem a esta estrutura já esgotada, que é preciso esvaziar, para poder preencher
com algo novo. Por vezes a paródia fica camuflada sob certos
tipos de disfarces, nos quais não percebemos, de imediato,
sumário
363
a intenção do autor. Geralmente, o recurso de falar de outras
épocas, de culturas ultrapassadas, é empregado como crítica à
ideologia vigente em sua própria época.
Sobre esse aspecto, vale a pena resgatar um depoimento de
Mãe, feito em seu blog pessoal, em 2009, a respeito da intencionalidade no projeto de escrita do romance, que, pela emulação e dobra do
discurso vigente durante os anos de regime totalitário, parece pretender mais que o questionamento daquele pensar, ao propor a ruptura,
mostrando a insustentabilidade do discurso fascista diante de seres
humanos complexos e em situação de vulnerabilidade física, afetiva e
psicológica graças a esse mesmo discurso:
o meu primeiro romance, ‘o nosso reino’, conta a história de
uma criança de oito anos que, angustiada com a questão do
divino, se vê torturada num lugar de pobreza e ignorância como
eram abundantemente os lugares pequenos do norte do país. a
história passa-se ao tempo da revolução, ainda que esta ocorra quase sem produzir efeitos nas consciências pequenas das
personagens envolvidas. interessou-me perspectivar o quotidiano de um povo resignado com a pobreza e com os dogmas
da igreja, a partir dos quais podemos perceber a anestesia característica do antigo regime; essa receita cruel que promovia
a pequenez para defender o poder instalado contra espíritos
melhor formados.
Como se pode perceber, ao passo que há uma ideologia manipuladora disfarçada em realidade – que manipula até mesmo
o riso conforme seja conveniente –, o discurso literário existe
justamente para subverter esse estado de coisas: ele realiza
com a estrutura ideológica o que esta realizou com o real. Em
outras palavras, o discurso literário inverte a estrutura ideológica, rompendo modelos social mente impostos e provocando,
pois, o questionamento (MÃE, 2009).
Mãe, ao emular tempo e espaço de opressão coletiva e individual, questiona, deforma e reforma essa realidade histórica, possibilitando o vislumbre de crises pessoais dentro de um panorama
de coletividade retorcida e oprimida. Supomos, com o ocultamento
sumário
364
sistemático das referências diretas ao salazarismo, que o que está em
questão em o nosso reino não é, necessariamente, o regime de exceção, mas os seres humanos e a ruptura identitária causada por causa
desse regime, que permanecem na estrutura social português. Nesse
sentido, no romance, Mãe explora barreiras dolorosamente sensíveis,
que evocam não apenas o salazarismo, mas, principalmente, o papel
de opressão a que se prestou a Igreja Católica da época. Considerando Aragão (1980, p. 19),
a narrativa paródica não é construída mecanicamente, como se
sua função fosse a de descrever o velho sistema, num reflexo
paralelo. Através de um jogo de espelhos inclinados, que produz imagens sob vários ângulos, é revelado um novo e significativo mundo. O escritor usa de artifícios que possibilitam a
retomada de uma narrativa como uma dissimulação, ou melhor,
através do projeto de uma estilização paródica da ideologia de
uma determinada época, reconduz o texto a uma crítica dessa
ideologia. Fala do velho para falar do novo. Recua no tempo
para deixar o tempo avançar.
Logo, podemos pensar o romance de Mãe como uma forma de,
por intermédio do resgate do passado doloroso, olhar para o presente
e futuro de forma crítica e provocadora. Infelizmente, anos após a publicação do livro, vemos a emergência de líderes políticos autoritários sob
o aplauso de uma maioria que os elegeu, o que reforça a pertinência
de obras literárias que busquem o passado doloroso das sociedades
como forma de compreender as instabilidades e as marcas indeléveis
causadas por momentos de crise e opressão.
Outro vislumbre possivelmente paródico está na forma como o
lugar-comum moral e cívico da estrutura familiar (BAPTISTA, 1986) é
desenvolvido na narrativa, a partir da fragmentação dos indivíduos e
consequente ruptura de relações afetivas, agindo e desintegrando estruturas familiares. A conexão entre família e religião clarifica-se com a
argumentação de que “seria através dos deveres e dos benefícios da
vida familiar que o indivíduo ficaria preparado para a salvação eterna”
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365
(BAPTISTA, 1986, p. 197). Além disso, do ponto de vista do poder político, a perpetuação da espécie significa necessariamente a perpetuação
da tradição e valores da nação, uma vez que são prerrogativas da instituição familiar a formação e educação dos filhos, daí a necessidade de
um modelo unificado e estável de família “assente no estabelecimento
duma hierarquia, duma autoridade duma fidelidade perfeitamente regulamentadas e incontestáveis” (BAPTISTA, 1986, p. 197).
Inclusa nesse pacote está a ideação do sacrifício como forma
de salvação da alma, de garantia de uma felicidade póstuma inigualável. Os pais devem sacrificar-se por seus filhos e vice-versa, todos
resignando-se diante de um sofrimento plural que escalona cada dia
mais na vila de benjamim. Linda Hutcheon (1985, p.95), em Uma teoria da paródia, pontua que
o reconhecimento do mundo invertido exige ainda um conhecimento da ordem do mundo que inverte e, em certo sentido, incorpora. A motivação e a forma do carnavalesco derivam ambas
da autoridade: a segunda vida do carnaval só tem sentido em
relação com a primeira vida oficial.
Em outras palavras, para perceber a totalidade do inferno pessoal que cada personagem vive em o nosso reino, é preciso também
considerar o contexto político e histórico em sua trajetória de sufocamento dos indivíduos.
Ainda conforme Hutcheon (1985, p. 95),
ao texto paródico é concedida uma licença especial para transgredir os limites da convenção, mas [...] só pode fazê-lo temporariamente e apenas dentro dos limites autorizados pelo texto
parodiado – quer isto dizer, muito simplesmente, dentro dos
limites ditados pela reconhecibilidade.
É verdade que, no romance de Mãe, as barreiras do real são
constantemente tensionadas e rompidas pela exploração da santidade de benjamim, seus milagres, suas visões apocalíticas, bem como
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366
pela mítica do homem mais triste do mundo. Todavia, esse estiramento do real conserva-se dentro do ideário católico romano, com o qual
está sempre em contato.
Retornando ao primeiro capítulo da narrativa, quando a avó
surge, já em seu leito de morte, também é apresentada com ela uma
imagem de Cristo situada em seu quarto, pela qual a senhora nutria
profunda devoção e mantinha, de maneira transcendental, uma relação de cumplicidade e posse. Essa imagem, porém, exerce um papel de parte e não de todo em relação ao seu referente cristão, uma
vez que, para benjamim, aquele era um Cristo particionado, o que
cria uma dicotomia maniqueísta: esse Cristo, o interdito e “medonho”
(MÃE, 2008, p. 23), o mau e punitivo, era o oposto do Cristo bom e
absolvedor da doutrina católica.
Além disso, essa perturbadora imagem de Cristo era exclusiva
da avó, como uma manifestação de uma religiosidade personalizada.
Podemos percebê-la, então, de forma simbólica dentro da relação de
confidencialidade instituída entre os dois. O paroxismo dessa conexão
talvez seja o fato de a senhora ter sido enterrada com a imagem: “no
funeral puseram o Cristo dentro do caixão. ficou abraçada a ele, como
a uma companhia ou ligação para uma viagem que ia fazer” (MÃE,
2008, p. 32). Ora, se a velha senhora representa o poder autoritário
instituído no seio familiar (pois a família é a representação em menor
escala do Estado) e o Cristo, por sua vez, é a representação da Igreja
Católica, há, com essa cena, o reforço, via metáfora, da ligação extremamente forte entre poder e Igreja.
Para benjamim, o Cristo presente no quarto da avó, cuja origem
supostamente mítica validaria a santidade e legitimidade do laço entre
os dois, é ambíguo e aterrorizante, não apenas pela sua aparência – o
Cristo morto, mutilado, que não parece prometer a ressureição gloriosa
–, mas pela presença opressiva de sua onipotência suspeita. benjamim analisa esse medo, apontando que a imagem
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367
me assustava, por ser polémico, diferente, como um Cristo ranhoso, ovelha negra, mau. e, se conservava o poder da omnipresença e podia ler pensamentos, perseguia-me, e sempre
que eu queria dizer uma mentira ou fazer uma asneira ele via-me,
não o bom Cristo, mas aquele, o mau, o proibido e exclusivo da
minha avó. era por viver temendo os olhos de deus, como disse,
e ter ali um óculo apontado aos pormenores, criando nitidez nos
mais ínfimos defeitos (MÃE, 2008, p. 30-31).
Esse Cristo, que, pela simples presença, agia como censor do
menino, também incomodava pela crença na fidelidade dele com a
avó. Para os habitantes da casa, era como se ele fosse capaz de revelar os segredos e delatá-los ao poder construído pela avó, fazendo
com que ele não fosse de todo confiável; inclusive, a mãe aconselha
ao menino que “se rezares ao Cristo da tua avó não lhe contes tudo,
porque depois ele conta-lhe a ela” (MÃE, 2008, p. 30). Obviamente, a
dicotomia entre os possíveis Cristos é percebida com estranheza por
benjamim, que não compreende essa relação: “como era estranho, se
todos os Cristos eram o mesmo, porque haveria aquele de ter um ar
tão distinto e agressivo” (MÃE, 2008, p. 32).
Por sua vez, a avó corrobora essa situação incomodamente dúbia. Na ocasião em que sua filha cândida faz menção de rezar para o
seu Cristo pessoal, a senhora reage negativamente, com estardalhaço,
impedindo-a de rezar àquele Cristo, o seu Cristo. este é meu,
não lhe vais pedir nada que eu não queira, sai daqui. se era
ridículo, sim, qualquer Cristo é de todos, mas o que lhe dizia era
isso, se queres compra um, este paguei-o eu, comprado para
mim, é para lhe rezar eu, não tu (MÃE, 2008, p. 44).
Fica nítida aqui a relação de posse e de exercício de controle
que há entre imagem e dona. Resumindo em três palavras de benjamim a relação entre sua avó e a imagem do Cristo, era “como se
conspirassem” (MÃE, 2008, p. 44).
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É importante notar que essa situação de jogo de poder não implicava ausência de afeto entre os familiares. O menino demonstrava
gostar da avó, mas havia uma constante sensação de vigilância e,
por conseguinte, de temor, insegurança, medo e paranoia. Tudo isso é
amplificado pela presença de outras oito imagens de Cristo pela casa,
que causavam uma sensação de vigilância onipresente, como uma
rede de espiões pregados às representações de cruzes, que estão por
toda a parte e tudo acompanham, ressaltando a pequenez e impotência dos habitantes da casa. Ao relatar a experiência de dona ermelinda,
a empregada doméstica da casa, benjamim descreve a sensação da
mulher diante das imagens da seguinte forma: “havia uma condenação nisto tudo. sentia-se vigiada por deus, expiando os seus pecados,
tão pobre que sempre fora, tão pouco instruída, achava-se pecadora
apenas por existir” (MÃE, 2008, p. 41-42).
Naturalmente, a estrutura familiar de benjamim reconfigura-se
após a perda dos avós, mas não como uma família tradicional e típica
da época. De acordo com os estudos de Baptista (1986, p. 191), nesse
momento histórico havia apenas uma “concepção única, homogênea e
autoritária (sustentada na moral cristã e na tradição)”, ou seja, o modelo
de família nuclear – casamento monogâmico e presença de filhos, sendo todos geridos por uma figura centralizadora do poder, o patriarca.
O grande enfoque na estrutura e equilíbrio do núcleo familiar
justifica-se não apenas pelos preceitos tradicionais católicos romanos, mas também pelo poder de coesão que ela representa dentro
do Estado Novo, que atribuía valor biológico e controle moral a essa
instituição. A família, “agrupamento natural” por definição (BAPTISTA,
1986, p. 194), representa também, nesse contexto de totalitarismo,
uma sociedade estruturada – e submissa a uma figura de autoridade – em escala mínima, exercendo, assim, um papel insubstituível na
fundamentação dessa sociedade. Além disso, pela procriação, seria
possível garantir a continuação da raça e da ideologia dominante.
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369
A partir dessas conexões mais ou menos lógicas dentro de um
governo de exceção, a conexão religião-família-Estado torna-se evidente, sendo que o “Estado, ‘sociedade que dirige a Nação’, [...] tem
o dever de proteger a Família pois é dela que depende a atividade
fecunda, é ela a fonte de todas as virtudes morais e cívicas da raça, o
que representaria para a Nação, uma forte garantia para seu engrandecimento” (BAPTISTA, 1986, p. 194). O lar, nesse sentido, é visto como
santuário, “fechado à maldade e às impurezas do mundo” (BAPTISTA,
1986, p. 198), capaz de proteger os indivíduos ou de confortá-los em
seu sofrimento, renúncia e penitência, dando espaço à resignação e à
obediência de um projeto divino que inclui o sacrifício – saber sofrer –
como forma de purgar o pecado e alcançar a salvação.
Esse templo doméstico, na moral social e religiosa, é calcado na
indissolubilidade do casamento, para que haja manutenção da moral
e prevenção da corrupção e decadência da sociedade. No caso dos
pais de benjamim, a manutenção do matrimônio também age como
forma de penitência para os dois, o que pode ser verificado no relato
do menino, logo após uma violenta surra recebida arbitrariamente:
falei com o meu pai e foi pior. a partir do dia em que a noite
não veio ele passou a beber. ficava fora de casa muito tempo,
voltava quando já só caía na cama sem dizer nem fazer nada.
a tristeza na nossa casa passou a ser tremenda, mas a minha
mãe limitou-se a seguir com a sua rotina doméstica como se
agora fôssemos assim (MÃE, 2008, p. 89).
Dessa forma, a configuração familiar de benjamim parece,
desde seu início, ser um tanto enviesada dentro dessa concepção
tradicional. A princípio, temos o contato com uma família matriarcal,
gerida pela avó, figura central de poder – a casa é sua, assim como
é seu o dinheiro que sustenta a família confortavelmente, todos sob o
mesmo teto. Com seu falecimento, a centralização de decisões, poder e renda é estiolada. Todavia, essa posição vacante também não
é ocupada pelo seu esposo, que falece em seguida. Restam, assim,
sumário
370
três adultos, em idade próxima, para se organizar na nova realidade:
a mãe, o pai e a tia de benjamim. Enquanto a mãe inicia um processo
de adoecimento psicológico, a tia cândida, solteirona aos 43 anos,
engaja-se em um romance extraconjugal considerado pecaminoso
com um viúvo, o senhor francisco.
A expectativa da época era que o pai ocupasse a vaga, uma vez
que, dentro do Estado Novo português,
ao homem estão ligadas as ideias de liderança e chefia da família que são mediatizadas pela acção direta da mulher; é ele,
à distância, que comanda as operações pela firmeza do seu
caráter, o seu saber e sobretudo seu exemplo de trabalho e autoridade, devendo a mulher – sua companheira – com ele colaborar, sujeitando-se-lhe (BAPTISTA, 1986, p. 207).
Entretanto, essa personagem parece inapta para desempenhar
a função: seu caráter se enfraquece de mais a mais, culminando em
brutalidade, punição física contra seu filho mais velho e sua esposa, em
um vício crescente em álcool, levando-o ao posterior abandono do lar.
Nesse ínterim, a memória da avó ainda impacta sua família, apesar de não estar mais presente. Nas palavras de benjamim, “a minha
avó era como um silêncio muito forte que os sugeria coisas ao ouvido”
(MÃE, 2008, p. 32). Essa impressão do menino confirma a avó como
autoridade máxima da casa, cuja morte marca o início da desintegração
da família e, consequentemente, da propriedade e a ruína do poder.
O pai parece assumir o papel da figura punitiva máxima, revoltada e incontornável, arbitrária e cega pela raiva de não se ver respeitada
como acha justo. Essa nova roupagem da função paterna mostra-se
em plena força na passagem em que benjamim é punido desproporcionalmente, por voltar para casa sujo de lama:
parecíamos dois miúdos mal comportados. e já contávamos
com o raspanete à chegada. mas nunca com uma tareia, com
um arreio bruto que me marcaria as pernas para sempre. dizia
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o meu pai, se nesta casa não há respeito eu vou tratar disso.
falava não só de mim, e quase nem de mim era, era a minha
tia cândida a ter coisas com o senhor francisco, e a memória
dos avós como estaria manchada, que veriam eles lá de cima.
a apertar os meus braços, quase partindo-os, e a chicotear-me
as pernas e o rabo, eu via a minha tia de costas voltadas para
o senhor francisco, a dizer-lhe que sim, que poderia pôr dentro
dela o pénis, onde quisesse e as vezes que quisesse. e por
isso eu estava debaixo daquele ataque. [...] que nesta casa
acabaram-se as faltas de respeito, todos vamos cumprir com
a decência. mas de todos quem estava debaixo de fogo era
eu, porque sujo de lama não eram modos de chegar a casa
(MÃE, 2008, p. 84-85).
A punição recebida, que gera cicatrizes perpétuas nas pernas
de benjamim, não era endereçada ao menino – embora ele a tenha
recebido, talvez por ser criança, talvez por estar sob mando direto do
pai –, mas ao comportamento de cândida com francisco, considerado
imoral e maculoso. De toda forma, salta aos olhos a motivação do pai
ao descontrolar-se em seus atos: sua revolta por não se sentir respeitado como a figura de chefe e sua tentativa para estabelecer esse
respeito, mesmo que mediado pelo medo.
O trágico fim dessa família advém da forma como expectativas
e construções sociais tolhem os indivíduos e os obrigam a entrar em
moldes em que não cabem. As coisas iam bem e estáveis sob o regime da avó, porque ela representava a tradição. Contudo, após sua
morte, sem uma figura de liderança da casa definida, os outros perdem-se entre seus deveres sociais e seus desejos. Como o casamento
dos pais de benjamim foi arranjado, talvez seja possível entender que a
inércia une o casal por meio do temor despertado pela avó. O mesmo
vale para o relacionamento de tia cândida: enquanto a relação estava
na esfera particular, escondida, não era um problema, porém a família
toda é abalada quando o relacionamento alcança a esfera pública.
sumário
372
A violência contra benjamim e sua mãe torna-se física e gigantesca, também por causa da desestabilização. A doença da mãe igualmente toma corpo a partir dessa ruptura. É uma geração de seres
– pai, mãe, tia – que são obrigados a manter uma imagem social, a
estrutura familiar clara, mas que não parecem ter capacidade emocional suficiente para aturar a rigidez e tortura que é manter essas aparências. Isso não significa que, na época da avó, a família fosse perfeita
moralmente, longe disso, mas havia um elemento tácito de coesão,
que incapacitava seus integrantes a comportarem-se de forma abertamente escandalosa, fazendo com que os comportamentos reprováveis
ocorressem na surdina. Evocamos aqui o caso extraconjugal que o avô
manteve com a empregada da família, dona ermelinda, triplamente pecaminoso, pois, além de ser um rompimento da fidelidade matrimonial,
era uma relação de abuso de poder contra a empregada, que ocorria
dentro da propriedade da avó.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em o nosso reino, as relações de poder são construídas de forma dúbia, pois, mesmo havendo medo e temor em relação às figuras
totalitárias familiares, existe também a relação de respeito e afetividade. Se, para o Estado Novo português, a instituição familiar era a sua
própria representação miniaturizada, em um núcleo mínimo no qual
relações de poder eram fomentadas por um coeso discurso social, talvez a presença das imagens religiosas, sobretudo a do Cristo censor,
representasse, de certa forma, a onipresença da instituição católica
nos lares portugueses da época. Se as notícias sobre os eventos políticos são abstrações distantes para benjamim, a religião o acompanha
dia e noite, dentro e fora de si mesmo, moldando e confundindo, fomentando temor e medo.
sumário
373
Os mais velhos da família, ao falecer ainda no início da narrativa,
prenunciam a desintegração de sua herança financeira e moral. Quando
seus herdeiros sucumbem, cessam com eles a permanência e memória
de uma geração mais antiga, capaz de centralizar o poder na família. A
eles, sucede uma geração instável econômica, moral, emocional e religiosamente: o pai, desmoralizado, desenvolve o percurso da violência
e do alcoolismo, até se desapegar tanto de sua família que a deserta;
a mãe, isolada em si mesma, enfrenta depressão e desvario motivados
pela culpa da concepção maculada de benjamim, culminando em um
suicídio pintado com tintas míticas; cândida, conspurcada duplamente
pela idade avançada e por perder a virgindade fora do casamento, vê
o filho, fruto desse consórcio, minguar até a morte de ambos. Os filhos
vindos da França, tão afastados de sua origem, não se encaixam na
terra natal, nem pelos costumes, nem pela língua de preferência.
Essa geração que não vinga também não terá frutos perenes.
Os irmãos de benjamim morrem muito cedo, esmagados literal e metaforicamente pela casa onde nasceram, que, apodrecida pela falta de
manutenção, não consegue sustentar-se por mais tempo. benjamim,
por sua vez, condena-se e é condenado à solidão, ao silêncio e ao esquecimento, enquanto seus amigos de infância se distanciam em direção às suas próprias vidas. A trajetória da casa e da família, permeada
de relações ambíguas de afeto e poder, aponta para a fragmentação
final desses indivíduos.
O próprio poder público, na Constituição de 1933, explicitava o
valor imputado à família e a interpretação dessa instituição como núcleo mínimo – e indivisível – do Estado. No art. 11 dessa Constituição,
lemos que “o estado assegura a construção e defesa da família, como
fonte de conservação e desenvolvimento da raça, como base primária
da educação, da disciplina e harmonia social, e como fundamento de
toda a ordem política pela sua agregação e representação na freguesia e no município” (PORTUGAL, 1933). Mãe age então, por meio da
sumário
374
subversão desse valor, pulverizando as relações de poder com o enfraquecimento do vínculo familiar. A família fragilizada e rompida sugere o
espelhamento dessa decadência no macro universo de poder.
A compreensão do poder religioso como um braço forte do Estado também pode ser sustentada pelo texto da Concordata de 1940,
na qual se desenvolve uma analogia entre membros a serviço da Igreja
Católica e oficiais de Estado. Por exemplo, o art. 11 garante aos oficiais
católicos proteção do Estado do mesmo nível e abrangência de que gozam as autoridades públicas, da mesma forma como aqueles também
são passíveis de punição por abuso de poder (art. 15). Esses dados
ajudam a compreender como, dentro do Estado Novo, as barreiras limítrofes entre as duas instituições eram, no mínimo, porosas e, em grande
medida, complacentes. Não por acaso, o art. 2º desse texto de lei deixa
clara a carta branca garantida ao poder eclesiástico: “É garantido à Igreja Católica o livre exercício da sua autoridade: na esfera da sua competência, tem a faculdade de exercer os actos do seu poder de ordem e
jurisdição sem qualquer impedimento” (PORTUGAL, 1940).
Assim, Deus, pátria e família imiscuem-se homogeneamente e
agem, dentro da narrativa de Mãe, como uma força reguladora, ou gerenciadora, da situação de opressão e jugo sobre as personagens do
texto. Da mesma forma que se amalgamam na afirmação do poder, as
três instituições são solapadas analogamente, restando aos indivíduos
arcar com as consequências e produtos da ruína.
REFERÊNCIAS
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a dissonância na paródia e no riso. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2009.
ARAGÃO, Maria Lúcia P. de. A paródia em A força do destino. Revista sobre
a Paródia, Rio de Janeiro, n. 62, p. 97-113, 1980.
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375
BAPTISTA, Luís A. Vicente. Valores e Imagens da Família em Portugal
nos Anos 30 – O Quadro Normativo. In Actas do Colóquio: A Mulher na
Sociedade Portuguesa – Visão Histórica e Perspectivas actuais. V.1. Coimbra:
Instituto de História Económica e Social/Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, 1985.
MÃE, Valter Hugo. o nosso reino. São Paulo: Biblioteca Azul, 2008.
MÃE, Valter Hugo. Vinte e cinco de abril. 2009. Disponível em: http://casadeosso.
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HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia. Rio de Janeiro: Edições 70, 1985.
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maio de 1940. Inter Sanctam Sedem Et Rempublicam Lusitanam Sollemnes
Conventiones. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_
state/archivio/documents/rc_seg-st_19400507_santa-sede-portogallo_
po.html. Acesso em: 14 jul. 2009.
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Organizadores
Aion Roloff
Professor de Língua Portuguesa, Literatura e Redação. Licenciado em Letras
– Português pela Universidade Federal do Paraná (2016). Mestre em Letras
(Estudos Literários) pela mesma instituição (2020), realizando uma pesquisa
de literatura comparada dos romances “Coração, cabeça e Estômago” de Camilo Castelo Branco e “A Confissão de Lúcio”, de Mário de Sá-Carneiro. Organizador da coletânea “Diálogos com a Literatura Portuguesa” (2020) e autor do
romance “Chico” (2016). Participante do Grupo de Pesquisa “Diálogos com a
Literatura Portuguesa”. Seus interesses de pesquisa centram-se em autores
como Camilo Castelo Branco, Mário de Sá-Carneiro, José Cardoso Pires e
Machado de Assis.
E-mail: aionroloff@gmail.com.
Antonio Augusto Nery
Antonio Augusto Nery é Professor Associado de Literatura Portuguesa na graduação e na pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná e
integrante da Cátedra Camões José Saramago dessa mesma instituição, onde
também é vinculado ao Centro de Estudos Portugueses (CEP-UFPR) e um
dos líderes do Grupo de Pesquisa “Diálogos com a Literatura Portuguesa”. É
Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo e Pós-doutor em Literatura
Portuguesa pelas Universidades de Coimbra, do Minho e de Campinas. Bolsista de Produtividade do CNPq, seus interesses de pesquisa centram-se nos
seguintes temas: Eça de Queirós; José Saramago; Literatura Portuguesa do
século XIX à Contemporaneidade e Literatura e Religião.
E-mail: gutonery@gmail.com
Eduardo Soczek Mendes
Eduardo Soczek Mendes é curitibano, mestre e doutor em Letras (Estudos
Literários) pela Universidade Federal do Paraná. Cursou Licenciatura em Letras
(Português) pela mesma instituição federal de ensino. Foi professor de Língua
Portuguesa, desde o princípio de sua graduação, em Escolas e Colégios da
Secretaria de Estado da Educação do Paraná e professor colaborador de Literatura Portuguesa, vinculado ao Departamento de Letras da Universidade
Estadual do Centro-Oeste (Guarapuava, Paraná). Integra o grupo de pesquisa
do Centro de Estudos Portugueses – Cátedra Camões-José Saramago (UFPR)
e desenvolve investigações relacionadas com a produção de Alexandre Her-
sumário
377
culano (1810-1877), no que concerne em seu diálogo com a História e com o
Catolicismo popular e oficial. Todavia, também interessam-lhe, sob a mesma
ótica, as obras de outros autores, como Almeida Garrett (1799-1854), Camilo
Castelo Branco (1825-1890), Eça de Queirós (1845-1900), Agustina Bessa-Luís
(1922-2019), José Saramago (1922-2010), dentre outros.
E-mail: edu.soczek@gmail.com
Autores e autoras
Andrea Bittencourt
Doutoranda em Letras – Estudos Literários na Universidade Federal do Paraná.
Mestra em Letras – Estudos Literários pela mesma universidade. Especialista em Literatura Brasileira e História Nacional pela Universidade Tecnológica
Federal do Paraná. Licenciada em Letras Português-Inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Revisora de textos na Pontifícia Universidade
Católica do Paraná – PUCPR Online. Faz parte dos grupos de pesquisa Diálogos com a Literatura Portuguesa, Grupo Eça e Cenáculo: Fluxos e Afluxos da
Geração de 70, cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Desenvolve pesquisa
em Literatura Portuguesa e comparada, com ênfase em Eça de Queirós, José
Saramago e a representação da mulher na sociedade.
E-mail: dea.bitt@gmail.com.
Anna Carolina Legroski
Doutoranda em Letras pela UFPR, mestre em Letras pela UFPR, e mestre em
Tradução literária e edição crítica pela Lumière Lyon 2, licenciada em Letras
Português e bacharela em Letras Francês, ambas pela UFPR. Especialista em
Docência (IFMG) e em Inovação e Tecnologias na Educação (UTFPR).
E-mail: anna.legroski@gmail.com
Bruno Kutelak Dias
Graduado em Letras - Português e Inglês pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná, mestre e doutor em Letras pela Universidade Federal do Paraná.
Atualmente atuo como professor da pós-graduação Teoria Literária do Centro
Universitário Campos de Andrade e professor da educação básica e me dedico à pesquisa, principalmente nos seguintes temas: literatura e feminino,
literatura e religião, literatura e fantástico.
E-mail: brunokutelak@gmail.com
sumário
378
Charles Vitor Berndt
Doutor e mestre em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Licenciado em Língua Portuguesa e Literaturas pela mesma instituição. Licenciado em Português pela Universidade de Coimbra. Seus principais interesses
de pesquisa centram-se nos seguintes temas: Literatura Portuguesa do século
XIX à contemporaneidade; literatura comparada; Eça de Queirós; Neorrealismo português; José Saramago; Miguel Torga; Mia Couto; literatura e religião;e
estudos de teopoética.
E-mail: charlesatlantis@gmail.com.
David Alves Paulino
Mestrando em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR). Graduado em Letras- Português e Inglês pela Universidade Estadual
do Norte do Paraná (UENP-2022). Participou do Projeto de Iniciação Científica
Voluntário (PICV) com o título: A dessacralização da personagem Jesus em
O evangelho segundo Jesus Cristo e as concepçãos feuerbachianas (UENP2018). Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP-2016). Integrante do Grupo de Estudos “Diálogos com a Literatura
Portuguesa” (UFPR) e do Grupo de Pesquisa “Estudos do Romance” (UENP).
Seus interesses de pesquisa centram-se nos seguintes temas: Eça de Queirós,
Ludwig Feuerbach, Literatura do século XIX, Filosofia do século XIX, Literatura
comparada, Filosofia alemã e Literatura Portuguesa.
E-mail: davidfiloalves@gmail.com
Eliane Cristina Perry
Licenciada em Letras Português e Italiano UFPR (2017) Foi docente cooperada
do CLIE (Centre for Languages and International Educations da FUNTEF/PR)
e do Centro de Línguas e Interculturalidades da UFPR (agosto 2016 - março 2020). No 1° semestre de 2018 ministrou o curso de extensão “História
e Identidade italiana por meio da literatura”, como parte das atividades do
TEL (Tópicos de Estudos Literários) na UFPR. É integrante desde agosto de
2017 da Academia de línguas do Paraná- antiga Cooperativa de Educadores
e Instrutores de Línguas e atua como professora cooperada de língua italiana
na UTFPR Idiomas. Além disso é Mestre em Letras: /Área de Concentração:
Estudos Literários, pelo Programa de Pós- Graduação em Letras da UFPR
(fevereiro 2020), tendo como linha de pesquisa Literatura, História e Crítica.
E-mail: elianecristinaperry@gmail.com
sumário
379
José Carvalho Vanzelli
Professor Substituto de Literatura Japonesa na UFPR. Professor Colaborador
do Programa de Pós-graduação em Letras (Estudos Literários) da UFPR. Pesquisador em âmbito de pós-doutorado na mesma instituição. Doutor e mestre
em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) pela
USP; bacharel em Letras (Português e Japonês) pela USP. Autor do livro Portugal e o Oriente: Antero de Quental - Camilo Castelo Branco - Eça de Queirós
- Pinheiro Chagas (2021) e organizador de coletâneas em torno dos temas:
Literatura Portuguesa e Estudos Brasileiros na Ásia. Atuou como docente na
Hankuk University of Foreign Studies (Coreia do Sul). Seus interesses de pesquisas centram-se nos temas: Oriente e orientalismos; alteridade; intertextualidade; e diálogos da literatura com outras artes e outras ciências humanas.
E-mail: vanzelli.jose@gmail.com
Orcid: 0000-0002-7131-7617
Marco Aurélio Pereira Mello
Doutorando em Letras Vernáculas na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Mestre em Letras pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Ensino
de Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Licenciado
em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cataguases. Revisor de textos no Instituto Federal do Tocantins.
E-mail: mellopereiramarco@gmail.com.
Patricia dos Santos Andrade
Licenciada em Letras-Português pela Universidade Federal do Paraná. Mestranda em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Federal do Paraná.
Desenvolve pesquisa em literatura portuguesa e em literatura comparada com
foco no aspecto narratológico.
E-mail: patyvieira01@gmail.com
Ranieri Emanuele Mastroberardino
Professor de língua e cultura italiana. Licenciado em Letras Português e Italiano
pela Universidade Federal do Paraná. Mestre e doutorando em Letras pela mesma instituição, tendo como linha de pesquisa a literatura, a história e a crítica.
E-mail: raniema95@hotmail.com.
Robson José Custódio
Doutor em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.
Mestre em Estudos da Linguagem – Estudos Literários pela Universidade Es-
sumário
380
tadual de Ponta Grossa. Graduado em Letras e Jornalismo. Membro do grupo
de estudos Diálogos com a Literatura Portuguesa, vinculado ao Centro de Estudos Portugueses da Universidade Federal do Paraná; e do Polo de Pesquisa
em Poesia Portuguesa Moderna e Contemporânea, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais. Atua sobretudo com as literaturas modernas e contemporâneas portuguesa e africana, assim como com os estudos
de geoliteratura, a partir das discussões de espaço nas artes.
E-mail: robscustodio@gmail.com
Sara Vitória Silva Monteiro
Me graduei em História pela Universidade Federal do Paraná, onde iniciei minhas pesquisas com ênfase nos temas de escravidão, imprensa e colonização.
Concluí o mestrado na mesma instituição, na área de Letras (Estudos Literários),
desenvolvendo ma dissertação acerca do Imperialismo em textos de imprensa
de Eça de Queirós. Atualmente sou doutoranda em Letras pela UFPR, desenvolvendo pesquisar acerca do conceito de civilização na imprensa lusófona no
século XIX. Também tenho como interesses de pesquisa a relação entre história
e literatura e contatos intelectuais e culturais entre Portugal, Brasil e Angola.
E-mail: saravsmonteiro@gmail.com
Valeria Evencio de Carvalho
Doutoranda em Letras – Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná, Mestra na mesma instituição (2018), bem como Licenciada e Bacharela em
Letras-Português. Licenciada em Letras-Inglês pela FAE – Centro Universitário
(2022). Especialista em Ensino da Língua Portuguesa e da Literatura pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (1996). Especialista em Direito e Processo Tributário
pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (1998). Seus estudos são nas
áreas da tanatografia (Padre Antònio Vieira), literatura portuguesa (Camilo Castelo Branco) e tragédia grega (Eurípides), sob os aspectos da morte, religião
e rito. Foi docente de Língua Portuguesa, Redação e Literatura. Atualmente
é assistente de promotoria junto ao Ministério Público do Estado do Paraná.
E-mail: evencio.valeria@gmail.com
William Augusto Inês
Mestre em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista
em Humanidades: Estudos Interdisciplinares em Educação, Cultura e Contemporaneidade pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP 2020).
Graduado em Letras/ Inglês pela mesma instituição (2018). Foi integrante do
Projeto de Pesquisa - Implicações Pedagógicas do Inglês como Língua Franca
sumário
381
(ILF). Integrante do Grupo de Estudos Diálogos com a Literatura portuguesa
(UFPR). Atua como professor da rede pública de educação do Paraná, dedicando-se ao ensino de Língua Inglesa para turmas do ensino fundamental e
médio. Seus interesses de pesquisa centram-se principalmente nos seguintes
temas: Eça de Queirós, Isabel Rio Novo, Literatura do século XIX à Contemporaneidade, Literatura Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Inglesa e
Ensino de Língua Estrangeira.
E-mail: wilianaugustoines@gmail.com
Xenia Amaral Matos
Pós-doutoranda em Letras pela Universidade Federal do Paraná. Doutora em
Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal
de Santa Maria. Mestre em Letras pela mesma instituição. Graduada em Letras-Inglês e Literaturas da Língua Inglesa na Universidade Federal de Santa
Maria em 2015. Possui interesse na área de Literatura e nos estudos de Crítica
Literária, Teoria Literária, Estudos Interartes e Narratologia; bem como nas Literaturas de Língua Inglesa e de Língua Portuguesa. Atualmente, atua como
professora de língua inglesa na rede de ensino municipal de Itajaí/SC.
E-mail: xenia.am.matos@gmail.com
sumário
382
Índice Remissivo
Símbolos
(anti)clerical 68, 84, 86
A
A confissão de Lúcio 260, 261, 262, 263,
265, 281, 283, 284
Alexandre Herculano 17, 18, 38, 39, 40, 42,
45, 52, 62, 63, 64, 65, 192, 193, 322, 377
A pécora 22, 304, 312, 316
A relíquia 19, 20, 125, 126, 127, 128, 130,
132, 135, 136, 141, 142, 143, 145, 150,
151, 162
As pupilas do senhor reitor 18, 105, 108, 123
B
Balthazar 67, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76,
77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84
burguês 88, 90, 95, 96, 102, 122, 134, 139,
142, 143, 170, 172, 250, 281
burguesia 89, 90, 91, 95, 103, 108, 125,
127, 186, 211, 249, 258, 349
C
Camilo Castelo Branco 17, 18, 67, 68, 69,
82, 83, 85, 86, 250, 377, 378, 380, 381
Casa sem pão 21, 243, 244, 245, 257, 258, 259
Catolicismo 34, 92, 106, 132, 148, 183, 196,
197, 198, 199, 200, 308, 358, 360, 378
científico 44, 57, 115, 280, 282, 301
colônia 44, 89, 129
cristã 20, 30, 32, 34, 48, 49, 147, 153, 155,
157, 196, 197, 222, 224, 225, 226, 228,
240, 306, 308, 314, 315, 369
cristãos-novos 28, 29
Cristianismo 145, 147, 149, 151, 152, 153,
154, 155, 157, 159, 160, 162, 220, 222,
227, 240, 306, 309, 310, 315
sumário
Cristo 25, 27, 30, 31, 33, 34, 35, 45, 56, 80,
130, 147, 149, 151, 155, 158, 162, 306, 307,
312, 313, 314, 367, 368, 369, 373, 379
crítica 16, 17, 18, 20, 44, 68, 79, 84, 93,
94, 109, 126, 142, 146, 147, 148, 149, 165,
167, 170, 180, 184, 194, 199, 209, 214,
263, 277, 288, 306, 364, 365, 378, 380
cultura 16, 112, 142, 147, 148, 149, 166,
167, 168, 177, 178, 180, 181, 199, 225,
241, 270, 278, 287, 291, 302, 308, 310,
323, 354, 380
D
demônios 17, 25, 26, 27, 32, 33, 36, 315
dogmático 146
E
Eça de Queirós 17, 19, 20, 125, 126, 142,
144, 145, 148, 150, 151, 163, 164, 165,
167, 170, 182, 183, 184, 185, 186, 189,
190, 192, 195, 199, 201, 345, 377, 378,
379, 380, 381, 382
educação religiosa 19, 132, 182, 184, 185,
196, 197, 198, 199
eucarístico 25, 27, 30, 32, 33
F
farpas 19, 125, 126, 127, 128, 133, 134,
136, 138, 140, 141, 143, 183, 184, 185,
186, 187, 188, 189, 190, 192, 193, 197,
198, 201
feminina 19, 20, 21, 120, 139, 140, 185,
194, 195, 196, 199, 201, 203, 204, 205,
206, 207, 210, 211, 243, 256, 258, 280,
299, 311, 314, 315, 345
ficção 47, 54, 57, 62, 65, 67, 70, 93, 94,
103, 155, 162, 167, 203, 245, 251, 308,
322, 335
383
filosofia 37, 91, 97, 98, 146, 151, 152, 153,
236, 239, 311, 352, 354
G
governo 16, 35, 50, 89, 99, 107, 190, 191,
247, 256, 308, 324, 325, 333, 370
H
heresia 28, 29, 311
história 16, 18, 20, 21, 22, 23, 26, 30, 37,
39, 43, 44, 46, 54, 55, 56, 57, 60, 65, 68,
82, 83, 94, 100, 101, 123, 127, 143, 146,
148, 167, 202, 203, 206, 210, 214, 220,
223, 232, 241, 245, 246, 259, 262, 263,
280, 286, 287, 289, 291, 292, 294, 296,
297, 301, 302, 305, 308, 309, 318, 321,
322, 323, 325, 327, 328, 330, 331, 332,
335, 336, 344, 345, 346, 347, 350, 363,
364, 380, 381
histórico 21, 29, 39, 40, 41, 42, 43, 45, 46,
47, 48, 49, 53, 54, 55, 57, 60, 62, 63, 65,
69, 78, 82, 86, 129, 147, 219, 223, 225,
244, 286, 287, 288, 289, 292, 297, 301,
320, 334, 346, 361, 366, 369
I
identidade 22, 178, 207, 267, 283, 317,
319, 320, 327, 335, 339, 351
ideologias 106, 146, 187, 323, 340
Igreja Católica 23, 30, 37, 90, 119, 120,
149, 198, 200, 201, 304, 307, 308, 311,
315, 316, 323, 324, 357, 358, 359, 362,
365, 367, 375
J
japonês 20, 218, 220, 221, 222, 223, 224,
227, 232, 233, 237, 240
José Saramago 12, 13, 17, 21, 285, 286,
292, 294, 297, 300, 302, 322, 335, 377,
378, 379
Júlio Dinis 17, 18, 19, 87, 88, 92, 95, 96,
101, 102, 104, 105, 108, 109, 111, 122, 250
sumário
L
liberalismo 44, 90, 91, 92, 95, 96, 98, 102,
120, 121
literatura 14, 15, 16, 23, 39, 42, 65, 93,
108, 143, 149, 151, 167, 204, 218, 221,
223, 238, 245, 246, 247, 250, 259, 270,
286, 292, 294, 295, 296, 297, 300, 301,
302, 322, 377, 378, 379, 380, 381
M
Maria Amália Vaz de Carvalho 20, 202, 203,
204, 205, 206, 217
Maria Archer 17, 21, 243, 244, 245, 246, 248
Mário de Sá-Carneiro 17, 21, 260, 261,
262, 283, 377
memória 22, 56, 64, 112, 156, 201, 271,
272, 318, 319, 320, 321, 322, 325, 326,
327, 328, 329, 330, 331, 332, 335, 336,
343, 344, 345, 350, 352, 371, 372, 374
Miguel Torga 17, 21, 285, 286, 292, 294,
295, 300, 379
mítica 45, 46, 65, 367
mitos 18, 39, 41, 63, 64, 363
modernidade 106, 107, 109, 119, 121, 146,
198, 259, 262, 283, 288, 294
mulher 19, 20, 78, 96, 110, 125, 127, 128,
129, 130, 131, 133, 136, 137, 141, 156,
158, 194, 195, 196, 199, 201, 203, 204,
205, 207, 208, 209, 210, 212, 213, 214,
215, 216, 217, 251, 255, 256, 266, 272,
273, 275, 279, 295, 299, 300, 308, 309,
311, 312, 313, 334, 342, 343, 344, 345,
369, 371, 378
N
narrador 19, 20, 22, 23, 47, 48, 49, 50, 51,
52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 62, 67,
68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78,
79, 82, 83, 84, 85, 87, 88, 92, 93, 94, 95,
96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 109, 110,
111, 112, 113, 115, 118, 119, 121, 122,
384
125, 127, 128, 130, 131, 141, 145, 150,
156, 157, 158, 159, 161, 162, 174, 187,
237, 238, 249, 251, 252, 256, 258, 263,
264, 265, 267, 271, 273, 275, 278, 296,
298, 338, 340, 341, 343, 349, 352, 353,
357, 358, 359
narrativa 18, 19, 22, 39, 40, 41, 47, 48,
49, 50, 52, 54, 55, 56, 57, 68, 69, 70, 76,
78, 79, 81, 82, 83, 84, 88, 93, 94, 95, 96,
97, 98, 99, 100, 101, 102, 109, 122, 130,
133, 136, 138, 139, 141, 142, 151, 156,
157, 158, 165, 167, 170, 176, 177, 179,
180, 206, 207, 226, 244, 248, 252, 255,
257, 258, 259, 261, 262, 263, 264, 265,
267, 268, 271, 272, 274, 276, 278, 279,
297, 299, 318, 322, 326, 328, 333, 341,
345, 347, 357, 358, 359, 360, 365, 367,
374, 375
Natália Correia 17, 22, 304, 312, 315
neutralidade 88, 92, 93, 94, 102, 255, 324
109, 110, 113, 120, 123, 147, 148, 149,
151, 163, 178, 183, 185, 186, 187, 188,
189, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 197,
198, 199, 200, 201, 204, 217, 220, 221,
228, 241, 244, 246, 247, 254, 255, 258,
259, 263, 264, 272, 278, 295, 296, 297,
302, 306, 308, 319, 322, 323, 324, 325,
327, 334, 336, 357, 358, 376, 380, 381
portuguesa 18, 19, 20, 22, 26, 28, 29, 32,
39, 41, 42, 50, 77, 89, 90, 92, 96, 103, 107,
110, 112, 113, 118, 120, 123, 126, 127,
128, 138, 140, 143, 147, 183, 184, 187,
190, 193, 194, 195, 199, 200, 201, 202,
204, 205, 211, 216, 218, 220, 221, 225,
227, 233, 239, 241, 245, 246, 247, 258,
263, 284, 306, 317, 318, 322, 323, 324,
325, 331, 361, 380, 381, 382
pública 35, 91, 92, 190, 192, 311, 331,
332, 340, 372, 382
O
redenção 21, 285, 286, 288, 289, 291, 295,
297, 300, 301
reino 22, 26, 28, 35, 39, 40, 41, 44, 45, 46,
48, 50, 55, 57, 62, 63, 64, 77, 106, 235,
238, 308, 356, 357, 358, 362, 363, 364,
365, 366, 373, 376
religião 18, 20, 29, 67, 69, 73, 84, 85, 90,
112, 120, 123, 127, 131, 132, 146, 147,
149, 153, 155, 157, 159, 183, 185, 193,
197, 198, 199, 200, 201, 220, 221, 226,
228, 234, 240, 247, 308, 359, 365, 370,
373, 378, 379, 381
religioso 23, 27, 29, 47, 61, 68, 69, 70, 72,
78, 79, 84, 110, 121, 153, 154, 157, 184,
195, 197, 198, 280, 315, 323, 357, 362, 375
Revolução Francesa 43, 90, 106, 107, 188, 348
romance histórico 39, 40, 41, 42, 45, 46,
47, 48, 49, 53, 55, 57, 60, 63, 65
Oitocentos 69, 192, 205, 214, 215, 263
oprimidos 21, 60, 100, 285, 286, 288, 291,
292, 294, 301
Orientalismo 20, 165, 166, 181
Os memoráveis 22, 317, 318, 321, 322,
323, 328, 335
P
Padre António Vieira 13, 25, 26
Panorama 39, 40, 42
pecado 30, 31, 33, 140, 141, 309, 312,
315, 370
políticos 17, 25, 26, 27, 28, 29, 33, 34, 35,
36, 63, 97, 106, 107, 187, 190, 229, 363,
365, 373
Portugal 13, 16, 18, 19, 21, 22, 25, 26, 27,
28, 29, 30, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44,
45, 46, 47, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56,
57, 61, 62, 63, 64, 65, 69, 80, 81, 88, 89,
90, 91, 92, 96, 97, 98, 103, 106, 107, 108,
sumário
R
385
romances 42, 43, 60, 93, 108, 109, 111,
221, 233, 249, 250, 251, 294, 296, 301,
345, 377
S
santo da montanha 18, 67, 68, 69, 70, 82,
84, 85, 86
Sermão 25, 26, 29, 31, 32, 33, 35
socialismo 106, 120, 201
sociedade 14, 19, 20, 29, 32, 48, 52, 53,
90, 91, 92, 95, 96, 101, 103, 106, 107, 119,
120, 123, 125, 126, 127, 128, 134, 140,
141, 142, 143, 148, 160, 170, 183, 184,
185, 187, 188, 190, 193, 194, 195, 196,
198, 199, 200, 201, 202, 204, 205, 206,
208, 209, 210, 211, 212, 216, 241, 252,
sumário
254, 256, 257, 258, 262, 265, 279, 281,
282, 291, 295, 296, 308, 309, 310, 315,
320, 323, 343, 345, 346, 351, 358, 361,
369, 370, 378
T
teologia 29, 146, 311
tradições 46, 69, 113, 114, 119, 122, 170,
311, 344
U
ultramontanismo 120, 123
W
Walter Benjamin 21, 286, 287, 289, 294,
301, 302
386