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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL – UFRGS FACULDADE DE DIREITO RODRIGO PUCCI FLORES A RESPONSABILIDADE ALIMENTAR AVOENGA Porto Alegre 2011 RODRIGO PUCCI FLORES A RESPONSABILIDADE ALIMENTAR AVOENGA Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado ao Departamento de Direito Privado e Processo Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Jamil Andraus Hanna Bannura Porto Alegre 2011 RODRIGO PUCCI FLORES A RESPONSABILIDADE ALIMENTAR AVOENGA Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado ao Departamento de Direito Privado e Processo Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Jamil Andraus Hanna Bannura Aprovado em Porto Alegre, em ___ de _________________ de 2011. BANCA EXAMINADORA ________________________________________ Prof. Jamil Andraus Hanna Bannura Orientador Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS _______________________________________ Prof. Dr. Sérgio Viana Severo Examinador Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS _______________________________________ Prof. Sérgio Augusto Pereira de Borja Examinador Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS AGRADECIMENTOS Aos meus avós e familiares, que sempre me propiciaram um ambiente de crescimento pessoal invejável. Aos meus pais, cujas lições à mesa de jantar despertaram o meu interesse pela sociedade e pelo Direito. Aos meus amigos, com os quais vivi os melhores anos da minha vida. RESUMO O presente trabalho tem o condão de analisar a responsabilidade alimentar dos avós em relação aos netos de acordo com o ordenamento brasileiro vigente, traçando-se a sua abrangência e os seus limites por meio de uma leitura da legislação e da jurisprudência, bem como da interpretação da doutrina pátria. Para tanto, será feita, em um primeiro momento, uma análise ampla do instituto dos alimentos, abordando-se seus diferentes contornos jurídicos e, posteriormente, delimitar-se-á o tema à responsabilidade alimentar avoenga, suas características e alguns dos pontos controvertidos da matéria. Demonstrar-se-á a possibilidade de responsabilização, verificando-se porém alguns limites impostos pelo balanceamento de princípios. Palavras-chave: Alimentos; Responsabilidade avoenga; Parentesco. ABSTRACT The present work has the objective of analyzing grandparents‟ child support liability regarding their grandchildren according to current Brazilian law, drawing its scope and limits, through a study of the legislation and case law as well as the doctrine‟s interpretation. To do so, it will be made, at first, a comprehensive analyses of the child support institute, approaching its different legal contours, subsequently delimitating the work to grandparents‟ child support liability, its characteristics and some controversial issues around the matter. It will be demonstrated the possibility of such liability, provided some limits are imposed by the balancing of principles. Keywords: Child support; Grandparents‟ liability; Family relationship. SUMÁRIO INTRODUÇÃO .......................................................................................... 7 1 DOS ASPECTOS JURÍDICOS DOS ALIMENTOS ................................... 13 1.1 Espécies de alimentos ............................................................................ 13 1.1.1 Quanto à natureza ..................................................................................... 13 1.1.2 Quanto à causa jurídica ............................................................................. 15 1.1.3 Quanto à finalidade ................................................................................... 17 1.2 Características dos alimentos ................................................................ 19 1.2.1 Em relação à obrigação alimentar legal .................................................... 19 1.2.2 Em relação ao direito à prestação alimentícia ........................................... 22 1.3 Pressupostos da obrigação alimentar ................................................... 26 1.3.1 O binômio necessidade-possibilidade ....................................................... 26 1.3.1.1 As necessidades do alimentando .............................................................. 28 1.3.1.2 As possibilidades do alimentante .............................................................. 30 1.3.2 Sujeitos da obrigação alimentar ................................................................ 33 2. DA RESPONSABILIDADE ALIMENTAR DOS AVÓS ............................. 39 2.1 Os contornos dominantes da obrigação avoenga ............................... 39 2.1.1 A subsidiariedade e a complementariedade da obrigação ........................ 39 2.1.2 Ausência de solidariedade entre os obrigados .......................................... 44 2.2 A teoria da divisão matemática .............................................................. 46 2.3 A intervenção de terceiros do artigo 1.698 do Código Civil ................ 52 CONCLUSÃO ........................................................................................... 60 REFERÊNCIAS ......................................................................................... 62 7 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por escopo, inicialmente, realizar uma análise do instituto dos alimentos no direito brasileiro e, mais especificamente, da obrigação legal dos avós em prestá-los aos netos. Para tanto, se buscará expor a legislação vigente acerca do tema, bem como suas diferentes interpretações pela doutrina e jurisprudência, salientando-se seus aspectos controversos. Nessa linha, a fim de melhor compreender as diferentes influências que contribuíram para a criação desta figura jurídica, mister se faz uma breve explanação histórica da família e dos alimentos. Com efeito, a família sempre foi, independentemente do momento histórico, o núcleo fundamental da sociedade. É só por meio dela que se faz possível a perpetuação da espécie e a organização do Estado: “Não há nenhuma controvérsia de que a família seja a célula básica de toda e qualquer sociedade. Ela desperta interesse de todos os povos, em todos os tempos, uma vez que entende-la é preservar a organização e a continuidade da sociedade e do Estado.”1 Junto com o conceito de família, evoluiu a ideia de deveres e obrigações dela decorrentes, dentre eles a obrigação alimentar. No direito romano, a família era eminentemente patriarcal. O culto aos ancestrais e o sistema do paterfamilias tornava o homem mais velho do clã chefe soberano da mulher, da prole e de todos os seus descendentes, inclusive das mulheres que com eles casavam. Sua autoridade não se limitava ao poder moral, estando os demais membros sujeitos ao pater como qualquer outro de seus pertences. Poderia vendê-los, castigá-los ou até matá-los caso fosse de seu interesse. O patrimônio familiar era um só, pertencente exclusivamente ao homem mais velho da linha hereditária. Em um segundo momento, com a necessidade de tornar o serviço militar mais atraente, permitiu-se aos descendentes que administrassem o chamado pecúlio castrense, patrimônio adquirido ao servir às 1 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 7 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. 8 legiões e que era administrado pelo soldado. Entretanto a submissão ao patriarca permanecia uma condição insuperável.2 Nesse contexto, em que inexistia qualquer presunção de solidariedade ou afetividade familiar, bem como em que o patrimônio do patriarca quase não se diferencia dos demais integrantes do clã, não havia um ambiente em que pudesse germinar o conceito de alimentos, ou de prestação devida entre parentes. Entretanto, já no século IV, com o fim da era pagã e o início da família cristã, o culto aos antepassados que embasava a hierarquia familiar romana dá lugar ao culto à religião familiar, que se confundia com a do Estado. A moral passou a ser o principal regulador das relações entre os membros da família, o que acabou restringindo progressivamente o poder patriarcal e, consequentemente, dando-se maior autonomia aos filhos e à mulher. O casamento passou a ser o baluarte da família, a sua composição não mais reunia toda linha genealógica, mas restringia-se primordialmente a pais e filhos3. Surge, a partir da moral, o conceito de obrigações familiares, não tardando, consequentemente, para que o dever de sustento entre parentes passasse a ser jurisdicionalizado frente aos reclamos da sociedade. Dessa forma, já no direito justineaneu, surgem as obrigações alimentares entre familiares e que não se restringiam aos devidos pelos pais aos filhos. Com efeito, aparece, já nessas codificações, a obrigação alimentar em linha reta ao infinito em famílias legítimas, restringindo-se, porém, à família materna e ao pai nas ilegítimas.4 Na idade média, as relações familiares passaram a ser regidas exclusivamente pelo direito canônico, com alguma influência do direito romano somente em relação ao patrio poder, mais precisamente na relação entre os cônjuges.5 Somente no século XIX é que o casamento passou a perder o vínculo religioso e o direito passou a regê-lo, descrevendo-o nas diversas codificações como instituto constituidor da família e esta como a base da sociedade.6 2 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol. 6: direito de família. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 31. 3 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 10. 4 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 42. 5 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol. 6: direito de família. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 32. 6 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 5. 9 No Brasil, a obrigação alimentar vigeu desde a época das ordenações portuguesas, ainda que com âmbito de aplicação muito menor do que hoje. Entretanto, mesmo naquele contexto, já havia uma preocupação com a educação dos alimentários, limitada à sua alfabetização.7 Porém, o mais importante documento do direito pré-codificado brasileiro a falar sobre os alimentos foi o Assento de 9 de abril de 1772, que ganhou autoridade de lei pelo Alvará de 29 de agosto de 1776. Em que pese tal documento determinasse ser dever de cada um alimentar-se a si mesmo, preocupou-se também em elencar algumas exceções, como nos casos de descendentes, ascendentes, transversais, irmãos, primos e outros, sempre diferenciando-os entre legítimos e ilegítimos. Já com a advento do Código Civil de 1916, os alimentos foram inseridos como dever de mútua assistência entre os cônjuges (art. 231, III), como dever de sustento, guarda e educação do filhos (art. 231, IV), como dever do marido, na condição de chefe da sociedade conjugal, prover a manutenção da família (art. 233, IV) e como decorrência das relações de parentesco (art. 396). Seguiu-se a essa inovadora legislação, no entanto, grande confusão quanto ao instituto, em razão de conceitos fixados pelos tribunais, bem como por legislações extravagantes esparsas e confusas. Com efeito, o Decreto-Lei 3.200/41 (Lei de Proteção à Família), assim como outros decretos específicos posteriores, determinou o desconto em folha para cumprimento da obrigação de alimentos; a Lei 883/49 cuidou do reconhecimento de filhos ilegítimos e de garantir-lhes alimentos provisionais, após sentença de primeira instância procedente; a Lei 968, editada no mesmo ano, tratou da conciliação e acordo nas causas de alimentos; a Lei 5.478/68 instituiu a ação de alimentos e criou a modalidade dos provisórios; a Lei do Divórcio (Lei 6.515/77) alterou diversos dispositivos anteriormente vigentes; a Lei 8.560/92 determinou alimentos provisionais ou definitivos nas ações de reconhecimento de paternidade fora do casamento; em 1993, o art. 399 do CC foi alterado para adicionar o direito de alimentos em favor dos pais idosos carentes ou enfermos; e a Lei 9.278/96 que, regulando o art. 226, §3º, da CF/88, normatizou o direito de alimentos entre companheiros. 7 “Se alguns Orfãos forem filhos de taes pessoas, que não devam ser dados por soldadas, o Juiz lhes ordenará o que lhes necessário for para seu mantimento, vestido e calçado, e todo o mais em cada hum anno. E o mandará screver no inventario, para se levar em conta a seu Tutor, ou Curador. E mandará ensinar a ler e screver aquelles, que forem para isso (2), até a idade de doze annos. E dahi em diante lhes ordenará sua vida e ensino, segunda a qualidade de suas pessoas e fazenda.” (Ordenações Filipinas: Liv. 1, Tít. LXXXVIII, 15). 10 Assim, diante dessa gigantesca confusão legislativa acumulada durante décadas de grandes mudanças culturais e constitucionais no país, o que se esperava do novo Código Civil era reunião de todas essas normas, de forma clara e detalhada, a fim de facilitar a aplicação desse tão importante instrumento de garantias vitais. Entretanto, isso acabou não acontecendo, trazendo o mais recente código apenas algumas pequenas inovações, mantendo praticamente a mesma lógica do código anterior e não resolvendo os problemas que até hoje causam divergências na doutrina e na jurisprudência quanto à sua aplicação, especialmente em relação aos avós. O Código Civil, afirma Maria Berenice Dias, “trata promiscuamente dos alimentos, não se sabe se por falha, desconhecimento ou real intenção. Não distingue a origem da obrigação, se decorrente do poder familiar, do parentesco ou do rompimento do casamento ou da união estável.”8 O art. 1.694, talvez no intuito de demonstrar a preocupação com a dignidade da pessoa humana e com o seu amparo, colocou em pé de igualdade as obrigações dos pais, dos cônjuges, dos companheiros e, até, dos avós, como se todas tivessem a mesma causa e intensidade. Sua única preocupação foi em eleger uma ordem sucessiva e que, ainda por cima, mostrou-se injusta. Não preocupou-se em determinar em que proporção esses alimentos deveriam ser prestados e não soube sopesar princípios. Coube, mais uma vez, à jurisprudência regular tamanha injustiça para com os avós, quando o legislador negligentemente esqueceu-se da condição desses membros na família e das reais consequências dessas disposições. De qualquer forma, os alimentos, hoje, têm tratamento constitucional. De fato, a Constituição Federal de 1988 elegeu a dignidade da pessoa humana como princípio maior, fundante do Estado Democrático de Direito e matriz de todos direitos fundamentais9. Inserido nesse conceito, está o direito inauferível do ser humano de conservação da própria vida e da própria existência, bem como o de buscar o seu desenvolvimento pessoal. Sendo capaz, o indivíduo deverá buscar alcançar esses objetivos com suas próprias forças e trabalho, não lhe sendo facultado exigir que outros devam abrir mão de seu sustento e conforto para mantê-lo. Entretanto, por vezes, as diversas 8 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 501. 9 Art. 1º, III – Constituição Federal de 1988. 11 circunstâncias da vida retiram de determinadas pessoas os meios para que, sozinhas, provejam a própria mantença, seja em razão da idade, de incapacidades físicas ou da sua condição social. Dessa forma, impedido de granjear seu próprio sustento, o indivíduo passa a depender de outros para manter-se, a fim de que não caia na miséria e, em um caso mais extremo, não consiga sequer obter o suficiente para as suas refeições. Nesse contexto, em um Estado de garantias sociais, o poder público tem o dever de prover aos necessitados os seus mantimentos, por meio de sua previdência e assistência social, o que, no entanto, não exime outros obrigados de fazê-lo primeiramente10. Com efeito, de forma a aliviar o ônus que recai sobre o Estado, a lei procurou delegar o sustento dos necessitados também à família, em decorrência de uma obrigação moral, baseada no princípio da solidariedade familiar. Assim, estabeleceuse a figura dos “alimentos” e da “obrigação alimentar”, que pode recair sobre os diversos membros do clã, sendo decorrente da filiação, do parentesco, do casamento ou da união estável. Os alimentos, portanto, nada mais são do que a expressão máxima dos princípios da solidariedade (social, familiar e econômica) e da dignidade da pessoa humana, alicerçados na ideia de que os membros da família devem amparar-se uns aos outros, de forma a socorrer aqueles que não tiverem condições de manter-se por seu próprio esforço. Transforma-se uma obrigação moral, constitucionalmente prevista, em uma obrigação legal. E nesse contexto que entra a questão avoenga. É difícil dizer até que ponto vai a responsabilidade dos avós pela mantença dos netos e até que ponto é moralmente aceitável imputar-se aos avós uma obrigação que inicialmente sequer é sua. Não há dúvidas que os avós possuem papel de enorme importância na família, inclusive na criação dos netos e que não podem deixá-los desamparados, mas há de se questionar os limites dessa responsabilidade. Em que pese o direito de alimentos tenha caráter de subsistência e urgência, impossível não lembrar que do outro lado da obrigação está um sujeito idoso, cuja renda em regra decorre de exíguas aposentadorias ou pensões e cujo próprio sustento também já é bastante difícil. 10 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 591. 12 Assim, para que se possa analisar onde inicia e onde termina a responsabilidade alimentar dos avós, imperativo, primeiramente, delimitar as diferentes modalidades, características e pressupostos dos alimentos, a fim de obter-se uma compreensão mais ampla desse instituto, para, então, posteriormente, focar o estudo na responsabilidade avoenga, sua abrangência, limites, bem como suas peculiaridades. 13 1 DOS ASPECTOS JURÍDICOS DOS ALIMENTOS 1.1 Espécies de Alimentos 1.1.1 Quanto à natureza Uma das grandes causas de divergência na doutrina e na jurisprudência em relação aos alimentos se dá na constatação, caso a caso, se serão devidos alimentos naturais, ou “necessarium vitae”, ou alimentos civis, também chamados de côngruos. No Brasil, a grande maioria dos casos sequer comporta esse tipo de questionamento, tendo em vista que as possibilidades do alimentante nem ao menos alcançam as necessidades básicas do alimentado, em razão da pobreza que assola a maior parte da sua população. Entretanto, ao falar-se de responsabilidade dos demais parentes, que não apenas os genitores, como é o caso dos avós, impossível não delinear precisamente em que consistem as diferentes espécies de alimentos no tocante à sua natureza. Os alimentos naturais são aqueles que, seguindo precisamente o instituto originário dos alimentos, servem apenas para resguardar o mínimo indispensável a sobrevivência do alimentando, devendo atender apenas à sua habitação, comida, cura e vestuário, desconsiderando-se, no entanto, a sua condição social. Os alimentos civis, por sua vez, abrangem todas as necessidades do alimentando, tomando-se em conta, além das necessidades vitais, as necessidades decorrentes da idade, da posição social e demais circunstâncias relativas ao padrão a que está habituado o alimentado, seja a título de educação, lazer ou conforto11. Pontes de Miranda afirma que “os alimentos podem ser naturais ou civis: a) alimentos naturais são os estritamente exigidos para a mantença da vida; b) civis, os 11 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 18. 14 que se taxam segundo os haveres do alimentante e a qualidade e situação do alimentado”12. Para Sílvio Venosa, os alimentos necessários “possuem alcance limitado, compreendendo estritamente o necessário para a subsistência”, enquanto que os alimentos civis ou côngruos “incluem as outras necessidades básicas do alimentando, segundo as possibilidades do obrigado”13. Maria Helena Diniz, por sua vez, afirma que os alimentos naturais “compreendem o estritamente necessário à subsistência do alimentando, ou seja, alimentação, remédios, vestuário, habitação” e os civis “se concernem a outras necessidades, como intelectuais e morais, ou seja, educação, instrução, assistência, recreação”14. Os alimentos naturais são calculados em uma base fixa, enquanto que os alimentos civis são calculados em uma base proporcional às condições do obrigado. Aqueles resultam sempre em uma prestação maior do que estes. O Código Civil introduziu este conceito de alimentos indispensáveis em seu art. 1.694, §2º, aplicando-lhe na hipótese da situação da necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia. Ou seja, a previsão legal expressa determina que, caso o alimentando esteja na situação de necessidade por culpa, receberá do obrigado apenas o mínimo necessário: § 2º Os alimentos serão apenas os indispensáveis à subsistência, quando a situação de necessidade resultar de culpa de quem os pleiteia. O conceito de alimentos necessarium vitae volta a ser atrelado à culpa no art. 1.704, parágrafo único15, em que estando o cônjuge responsável pela separação em necessidade e não possuindo parentes aptos a prover o seu sustento, o outro cônjuge será obrigado a assegurar os alimentos, somente em valor “indispensável a sobrevivência”. Nesse tocante, em que pese a doutrina mais moderna tenha deixado 12 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo IX. 1 ed. Campinas: Bookselles, 2000. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 338. 14 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 608. 15 Art. 1.704, Parágrafo único. “Se o cônjuge declarado culpado vier a necessitar de alimentos, e não tiver parentes em condições de prestá-los, nem aptidão para o trabalho, o outro cônjuge será obrigado a assegurá-los, fixando o juiz o valor indispensável à sobrevivência.” 13 15 de perquirir a culpa pelo fim do relacionamento16, entendimento este consolidado com o advento da EC 66/1017, o dispositivo deixa clara a intenção do legislador em limitar os alimentos sempre apenas em caráter punitivo. Assim, o legislador atrelou exclusivamente à culpa a diminuição do valor dos alimentos, o que claramente decorre de uma análise muito superficial das diferentes origens e modalidades de obrigações que norteiam os alimentos. A lei esquivou-se de determinar precisamente quando os alimentos poderão ser reduzidos ou quando deverão manter o padrão social do alimentário, e não somente quando decorrer de culpa. Por esse motivo, hoje, muitas vezes, se vê a pensão alimentícia como uma forma de abuso, quando impõe-se a pessoas, como os avós, que não possuem qualquer obrigação moral de manter o padrão de vida dos netos, pesados ônus alimentares, privando-os de seus rendimentos merecidamente obtidos durante toda uma vida de trabalho, para que o alimentário desfrute das benesses da sua condição social. Essa incoerência, como se verá adiante, levou a jurisprudência e a doutrina a criarem novas hipóteses em que serão devidos apenas alimentos naturais, que não apenas as de culpa do alimentado. Isso porque, ainda que essa nova concepção tenha representado um avanço, o legislador furtou-se de apontar outras tantas situações em que a manutenção do padrão social – alimentos civis – não se justificaria, dando ensejo às grandes discussões que hoje se travam na doutrina em relação às obrigações alimentares. 1.1.2 Quanto à causa jurídica A obrigação alimentar possui três causas distintas: a vontade, o delito/ilícito ou a lei. 16 SEPARAÇÃO JUDICIAL. CULPA. IDENTIFICAÇÃO DO RESPONSÁVEL PELO TÉRMINO DA RELAÇÃO CONJUGAL. DESNECESSIDADE. Segundo entendimento já sedimentado nesta câmara, não se pode atribuir a responsabilidade pela falência da vida familiar a qualquer uma das partes, mas tão-somente à corrosão dos sentimentos, ao desamor que se instala no seio da relação. Afastada a imposição de culpa, mantém-se o decreto de separação judicial. PARTILHA DE BENS. EXCLUSÃO DE IMÓVEL. PROVA. MATRÍCULA. (TJRS, Apelação Cível nº 70005842380, 7ª Câmara Cível, Rel. José Carlos Teixeira Giorgis, julgado em 18/06/2003). 17 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 516. 16 Os alimentos voluntários são aqueles decorrentes de declarações de vontade, podendo ser inter vivos ou causa mortis e se inserem no direito das obrigações ou sucessões. Ocorre quando partes, em um negócio jurídico, convencionam ou dispõe unilateralmente prestação alimentícia em favor de uma delas ou de terceiro, podendo ser uma obrigação gratuita ou onerosa. Não resultam, portanto, de uma obrigação legal, mas da autonomia da vontade das partes e, portanto, regulado pelo ramo do direito obrigacional e não de família18. Quando decorrentes de vontade causa mortis, os alimentos são regidos pelos arts. 1.920 a 1.928 do Código Civil19, submetendo-se às regras gerais do legado e específicas dos alimentos do legado. Esta prestação poderá ser constituída por meio de uma renda vitalícia ou de um usufruto, dentro dos limites do patrimônio do legatário. A obrigação alimentar ex delicto, por sua vez, é consequência de ato ilícito e representa uma forma de indenização. Tem sua previsão legal no arts. 948 a 951 do Código Civil20, que dispõem sobre os alimentos devidos aos dependentes da vítima de homicídio ou de ofensa física à vítima. Havendo, também, diminuição relativa da capacidade laborativa da vítima, serão igualmente devidos alimentos, proporcionalmente à redução, conforme previsto no art. 950 do CC: Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu. Entretanto, essa modalidade de alimentos também não se confunde com os alimentos decorrentes da filiação, do parentesco, do casamento ou da união estável, seguindo diferentes regras e princípios, estando precípuamente no âmbito da responsabilidade civil. Assim, diversas das importantes características dos alimentos 18 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 610. 19 Art. 1.920. O legado de alimentos abrange o sustento, a cura, o vestuário e a casa, enquanto o legatário viver, além da educação, se ele for menor. 20 Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações: [...] II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima. 17 legítimos não se aplicam a essa modalidade, como, por exemplo a possibilidade de prisão civil do devedor21. Dessa forma, em que pese alguns aspectos dessas últimas modalidades de alimentos sejam conexos e ainda sirvam para auxiliar umas às outras, não são objeto de estudo deste trabalho, que se limita a análise dos alimentos devidos em razão das relações familiares ou legítimos. Estes, por fim, são aqueles decorrentes do vínculo familiar que se origina no parentesco, na filiação, no casamento ou na união estável. Esta hipótese sim diz respeito ao direito de Família e embasa a grande maioria das ações alimentícias em trâmite no poder judiciário. É a estes alimentos que se atribuem as características e pressupostos aqui estudados, que seguem uma lógica própria diante dos valores que o norteiam, que se diferem dos aplicados àquelas duas outras espécies. 1.1.3 Quanto à finalidade No tocante à sua finalidade, os alimentos se classificam em definitivos, provisórios ou provisionais. Definitivos são aqueles estabelecidos pelo magistrado ou pelas partes, em prestações periódicas, de caráter permanente, ainda que possam ser revistos em razão do acordo ou da alteração dos pressupostos da obrigação (conforme art. 1.699, CC22). Os alimentos provisionais, ou ad litem, têm natureza antecipatória e cautelar e são concedidos aos autores da ação cautelar preparatória ou incidental em ação de 21 HABEAS CORPUS LIBERATÓRIO. ALIMENTOS DECORRENTES DE ATO ILÍCITO. RITO DO ART. 733 DO CPC. PRISÃO CIVIL. DESCABIMENTO. 1.A prisão civil é medida de exceção, só se justificando em casos extremos, razão pela qual comporta sempre interpretação restritiva, levando em conta os aspectos fáticos e jurídicos do caso examinado. 2.O inciso LXVII do art. 5º da Constituição Federal deve ser interpretado restritivamente, em homenagem à garantia constitucional de liberdade de locomoção e ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. 3.Deve-se dar uma interpretação estrita do dispositivo constitucional em comento, abarcando somente o devedor de alimentos de natureza parental, ou seja, decorrentes do direito de família. 4.Em se tratando de obrigação alimentar decorrente de ato ilícito, não se aplica o rito previsto no artigo 733 do CPC. Nessa hipótese, cabe ao credor requerer a constituição de capital, a fim de assegurar o adimplemento da obrigação, conforme dispõe o artigo 475-Q e a Súmula 313 do STJ. Ordem concedida. (Habeas Corpus Nº 70043331404, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 31/08/2011) 22 Art. 1.699. Se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz, conforme as circunstâncias, exoneração, redução ou majoração do encargo. 18 separação judicial, de nulidade ou anulação de casamento ou de alimentos (art. 852, CPC23). Têm o escopo de manter o suplicante ou a prole durante o trâmite processual, devendo custear também as despesas com custas processuais e honorários advocatícios. Como pressuposto, necessitam da comprovação do preenchimento dos requisitos da antecipação de tutela (fumus boni iuris e periculum in mora). Por sua natureza acautelatória e processual, podem ser revogados a qualquer tempo durante a lide e deverão vigorar até o trânsito em julgado da decisão final.24 Já os alimentos provisórios são aqueles fixados na ação de alimentos pelo rito especial previsto na Lei 5.478/68, com a finalidade de suprir as necessidades do credor enquanto aguarda a sentença de mérito. Têm natureza antecipatória e se tratam de uma antevisão do alimentos definitivos. Entretanto, para serem concedidos, exigem prova pré-constituída do parentesco, casamento ou 25 companheirismo (art. 4º, Lei de alimentos) . Em que pese as divergências citadas quanto aos alimentos não definitivos (provisórios e provisionais), a jurisprudência e a doutrina não os têm diferenciado, por vezes tratando-os como sinônimos26. Isso porque, em que pese tenham fontes diversas, ambos pretendem, em verdade, adiantar a prestação alimentar, para a mantença do alimentando durante o trâmite do processo, como bem resume Maria Berenice Dias: “Ainda que a doutrina insista em diferenciar esses dois tipos de tutela emergencial, os juízes os tratam de maneira indistinta. A diferenciação, em essência, é apenas terminológica e procedimental. 23 Art. 852. É lícito pedir alimentos provisionais: I - nas ações de desquite e de anulação de casamento, desde que estejam separados os cônjuges; II - nas ações de alimentos, desde o despacho da petição inicial; III - nos demais casos expressos em lei. 24 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 609. 25 “Art. 4º As despachar o pedido, o juiz fixará desde logo alimentos provisórios a serem pagos pelo devedor, salvo se o credor expressamente declarar que deles não necessita.” 26 APELAÇÃO CIVEL. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS PROVISÓRIOS. EXCEÇÃO DE PRÉEXECUTIVIDADE ACOLHIDA. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DA AÇÃO DE ALIMENTOS. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE TÍTULO EXECUTIVO AFASTADA. PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO. A sentença que julga improcedente o pedido de alimentos não atinge os alimentos provisórios fixados initio litis, cuja obrigação persiste e pode ser executada de forma autônoma. Conclusão que se funda na possibilidade de modificação da necessidade do alimentado entre a fixação dos provisórios e o tempo da sentença ou mesmo da instrução do processo. Ademais, visa também evitar que o devedor relapso possa se beneficiar com a demora em pagar os provisionais. APELAÇÃO PROVIDA. (TJRS, Apelação Cível nº 70044240349, 7ª Câmara Cível, Rel. André Luiz Planella Villarinho, julgado em 09/11/2011). 19 Em substância, significam o mesmo instituto. [...] Provisório ou provisionais, seu ponto em comum está estruturado na possibilidade de as duas espécies de tutela alimentar preverem a expedição de mandado liminar, deferindo o adiantamento dos alimentos iniciais, fixados em caráter temporário pelo juiz da causa, para garantir os recursos necessários à subsistência daquele a ser alimentado no fluir do processo.”27 Dessa forma, tem-se, de fato, deferido pela jurisprudência apenas alimentos provisórios, seguindo os pressupostos previstos na lei de alimentos.28 1.2 Características dos alimentos 1.2.1 Em relação à obrigação alimentar legal A obrigação alimentar não se trata de uma simples relação jurídica unilateral prevista na lei, cujos aspectos se limitam a uma prestação. Se trata de um instituto embasado nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade familiar, tratando-se de instrumento de extrema relevância àqueles que se encontram em situação de necessidade. Por essa razão, possui características próprias, que, em função de sua natureza peculiar, a diferenciam das demais obrigações. Assim, observa-se que a obrigação alimentar é recíproca, transmissível, divisível, condicional e mutável. A primeira, e talvez a mais importante característica da obrigação alimentar, se trata da reciprocidade. Por fundar-se no princípio da solidariedade familiar, o vínculo afetivo que gera a obrigação legal é presumido tanto do obrigado em relação ao alimentado quanto deste em relação àquele. Por essa razão, o art. 1.69629 estabeleceu que o direito à prestação alimentar é recíproco quando decorrente de 27 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 549. 28 A título exemplificativo: TJRS, Agravo de Instrumento nº 70045966140, 7ª Câmara Cível, Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 04/11/2011; TJRS, Agravo de Instrumento nº 70044769800, 8ª Câmara Cível, Rel. Rui Portanova, julgado em 03/11/2011; TJRS, Apelação Cível nº 70043889468, 8ª Câmara Cível, Rel. Alzir Felippe Schmitz, julgado em 03/11/2011. 29 Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigaçãonos mais próximos em grau, uns em falta de outros. 20 parentesco, casamento ou união estável. Aquele que em determinado momento presta alimentos a outrem, poderá deste também exigir alimentos quando a situação de necessidade/possibilidade estiver inversa. Se trata de uma relação bilateral, uma via de mão dupla. Pontes de Miranda muito bem explica: “A obrigação à prestação de alimentos é recíproca no direito brasileiro (...). E é razoável que assim seja. Se o pai, o avô e o bisavô têm o dever de sustentar aquele a quem deram vida, injusto seria que o filho, neto ou bisneto, abastado, não fosse obrigado a alimentar o seu ascendente incapaz de manter-se”30 Essa característica, no entanto, não integra toda e qualquer relação dessa natureza, eis que não há se falar em reciprocidade com relação aos alimentos decorrentes do dever de sustento dos filhos menores. Isso porque tal responsabilidade se trata de uma obrigação unilateral prevista no art. 1566, VI, e inerente ao poder familiar dos genitores, conforme se verá melhor adiante. Assim, ainda que, ao atingir a maioridade, o vínculo familiar originário da obrigação de alimentos entre pais e filhos passe a ser o de parentesco, a jurisprudência, sob um fundamento ético, tem entendido que, tendo sido omisso em cumprir sua obrigação parental, não pode o genitor invocar a reciprocidade para pleitear alimentos contra o filho: ALIMENTOS. SOLIDARIEDADE FAMILIAR. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. É descabido o pedido de alimentos, com fundamento no dever de solidariedade, pelo genitor que nunca cumpriu com os deveres inerentes ao poder familiar, deixando de pagar alimentos e prestar aos filhos os cuidados e o afeto de que necessitavam em fase precoce do seu desenvolvimento. Negado provimento ao apelo. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (TJRS, Apelação Cível nº 70013502331, 7ª Câmara Cível, Rel. Maria Berenice Dias, julgado em 15/02/2006). A segunda característica da obrigação alimentar se trata da transmissibilidade passiva da obrigação. Esta, por sua vez, decorre do art. 1.700 do Código Civil, que estabelece que “a obrigação de prestar alimentos transmite-se aos herdeiros do devedor”. Essa disposição representou grande inovação em relação ao disposto no artigo correspondente do código anterior (art. 402, CC/1916), que determinava 30 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo IX. 1 ed. Campinas: Bookselles, 2000. 21 exatamente o contrário31. Na vigência do Código Beviláqua, era admitida exclusivamente a transmissão da dívida alimentar vencida e não adimplida, compreendida exclusivamente como um crédito diante do espólio32. Entretanto, com o advento do novo Código, passou-se a transmitir não só o crédito, como também a própria obrigação alimentar, mesmo que não imposta antes do óbito do alimentante33. Importante ressaltar que, em que pese a lei afirme que a obrigação se transmite aos herdeiros, ela se transmite, de fato, ao espólio, eis que os herdeiros se responsabilizam até os limites da herança34, como bem dispõe a jurisprudência: APELAÇÃO CÍVEL. EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS PROPOSTA PELO ESPÓLIO ALIMENTANTE. MAIORIDADE E INDEPENDENCIA DOS ALIMENTADOS. INSUFICIÊNCIA DO ACERVO DA HERANÇA PARA HONRAR OS ALIMENTOS. A regra do art. 1.700 do Código Civil é no sentido de que, com o decesso do alimentante, o débito alimentar se transmite aos herdeiros na forma do art. 1694, desde que o monte-mor do espólio produza frutos suficientes para honrar a obrigação. Não demonstrado nos autos que o espólio detém condições de cumprir a obrigação, mormente se tratando de alimentados maiores de idade e em condições de prover o próprio sustento, impõe-se manter a exoneração da obrigação alimentar. (TJRS, Apelação Cível nº 70040252595, 7ª Câmara Cível, Rel. André Luiz Planella Villarinho, julgado em 08/06/2011). Já a divisibilidade da obrigação alimentar é decorrente da ausência de solidariedade entre os devedores. Ainda que possa existir mais de um obrigado de mesmo grau, não há entre eles solidariedade. Como regra de direito, a solidariedade não pode ser presumida, devendo decorrer da lei ou da vontade das partes (art. 265, CC)35. Da mesma forma, ao ser fixada de acordo com as possibilidades do alimentante (art. 1.694, §1º)36, a prestação alimentícia devida por diversos credores não pode vir a ser cobrada inteiramente de apenas um dos obrigados, eis que resultaria em um fardo demasiadamente pesado sobre uma das partes da obrigação, desvirtuando por completo o instituto. Dessa forma, havendo mais de um credor em 31 CC/16: Art. 402. A obrigação de prestar alimentos não se transmite aos herdeiros do devedor. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 510. 33 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 51-54. 34 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 511. 35 Art. 265. A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes. 36 § 1o Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada. 32 22 potencial, poderá a prestação ser dividida de acordo com as possibilidades de cada um, respondendo separadamente por sua quota-parte37. Por esse motivo, não há, formação de litisconsórcio passivo necessário quando há pluralidade de devedores, podendo a suplicante dirigir a demandante a qualquer dos obrigados ou a todos conjuntamente. Na verdade, a redação do art. 1.698 gerou grande confusão na doutrina quanto a esse aspecto processual dos alimentos, ao dispor que “sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide”. Este assunto, porém, será melhor explanado adiante. A obrigação de alimentos é, ainda, condicional, na medida em que só existe enquanto perdurar a situação fática que a ensejou. Ou seja, deixando de existir algum dos pressupostos objetivos estampados no art. 1.695, conforme se verá adiante, seja pelo alimentado não mais necessitar de alimentos ou pelo alimentante não mais ter condições de fornecê-los sem desfalque ao seu sustento, cessa a obrigação alimentar38. Da mesma forma, havendo mudança nas necessidades do alimentado ou nas possibilidades do alimentante, pode o valor da pensão ser revisto, diante do caráter mutável da obrigação e conforme disposto no art. 1.699 do Código Civil39. 1.2.2 Em relação ao direito à prestação alimentícia Já adentrando ao direito à prestação alimentícia pela parte necessitada, observa-se que a sua existência não diz respeito exclusivamente às partes diretamente interessadas no caso concreto. Há interesse geral no seu adimplemento e, por isso, se trata de obrigação regulada por normas cogentes de ordem pública40. 37 FARIAS, Cristiano Chaves de. Alimentos decorrentes de parentesco. In: CAHALI, Francisco José. Alimentos no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 59-60. 38 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 593. 39 Art. 1.699. Se, fixados os alimentos, sobrevier mudança na situação financeira de quem os supre, ou na de quem os recebe, poderá o interessado reclamar ao juiz, conforme as circunstâncias, exoneração, redução ou majoração do encargo. 40 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 505. 23 Nesse sentido, tendo em vista tratar, por vezes, de menores, bem como da parte mais vulnerável de uma relação, o direito à prestação alimentar é coberto por determinadas características, sempre no sentido de mitigar a autonomia da vontade das partes, de forma a impedir que, por estar em posição desvantajosa, o alimentado seja compelido a abrir mão de um direito tão essencial à sua sobrevivência e desenvolvimento digno, constitucionalmente previsto. Assim, atribuiu-se ao direito à prestação alimentar algumas características particulares, a fim de resguardá-lo contra os abusos inerentes à vida em sociedade. Nesse contexto, o direito à prestação alimentar é precipuamente personalíssimo, “na medida em que visa a preservar a vida e assegurar a existência do indivíduo que necessita de auxílio para sobreviver”41. O art. 1.707 do Código Civil estabelece que, ao credor, “é vedado renunciar o direito a alimentos, sendo o respectivo crédito insuscetível de cessão, compensação ou penhora”. Por esse motivo, não se transmite e não pode ser alienado de qualquer forma. Assim, primeiramente, tem-se que o direito à prestação alimentar é irrenunciável. Tratando-se de um direito que visa a resguardar o próprio direito à vida, sendo, portanto, um direito de ordem pública, o Estado protege-o até mesmo contra a vontade do titular, que não pode renunciá-lo jamais. Entretanto, essa irrenunciabilidade atinge apenas ao direito e não ao seu exercício. Isso significa que, caso o potencial alimentando prefira não pleitear prestação alimentar em desfavor dos obrigados, seja por relações emocionais ou qualquer outro motivo, poderá fazêlo, o que, contudo, não impediria uma ulterior pretensão caso mudasse de ideia.42 Importante salientar, no entanto, que, não exercendo o direito à prestação alimentar por certo período de tempo, não pode o alimentando, ao ajuizar a ação de alimentos, cobrar dos obrigados as parcelas pretéritas, anteriores à fixação da obrigação. Isso se dá em razão da característica da atualidade da prestação, que determina que os alimentos devem satisfazer as necessidades presentes e futuras do alimentário e não as passadas. As dificuldades que teve anteriormente não podem justificar o pleito em relação a um crédito que até então não lhe foi garantido 41 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 511. 42 MONTEIRO, Washington de Barros; TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Curso de direito civil: direito de família. 40 Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 530. Et al. 24 (in praeteritum non vivitur), eis que, bem ou mal, o necessitado pode manter-se até então sem a prestação43. Outra característica bastante particular dos alimentos é o fato de ser incompensável. Ainda que o devedor seja credor do alimentado, por dívida originada de outra natureza, não poderá invocar o instituto previsto no art. 368 do CC para deixar de adimplir as prestações devidas, sendo obrigado a manter a periodicidade, ainda que credor do alimentado. De fato, com a compensação, o direito aos alimentos “seria extinto, total ou parcialmente [...], com prejuízo irreparável para o alimentado, já que os alimentos constituem o mínimo necessário à subsistência”44. É, ainda, impenhorável, de forma que seus débitos, ainda que não relativos ao alimentante, não poderão gerar restrições à esta prestação, uma vez que, em se tratando de prestação destinada a suprir as necessidades vitais do alimentando, seria inadmissível que tivesse que dispor desses recursos para garantir a satisfação de credores. Essa restrição é ainda reforçada no Código de Processo Civil, que, em seu art. 649, IV45, determina serem absolutamente impenhoráveis os vencimentos e pensões. Com base nos mesmos preceitos, o direito alimentar é intransacionável, tratando-se de um direito indisponível. Dessa forma, não pode ser objeto de juízo arbitral ou de compromisso. Contudo, a jurisprudência tem entendido que isso não significa que as prestações não possam ser objeto de transação entre as partes no momento da fixação do montante ou da forma de sua prestação. Entendimento contrário poderia causar um mal maior ao alimentário, quando a família decide amistosamente sobre os alimentos, tendo em vista que a manutenção da solidariedade familiar de fato, e não só de direito, é tão importante quanto o valor da prestação. O único óbice, é quanto a prestações pretéritas vencidas de alimentos em relação a filhos menores, em que a transação deve ser homologada pelo juízo após vista ao Ministério Público46. 43 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 604. Et al. 44 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol. 6: direito de família. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 521. 45 Art. 649. São absolutamente impenhoráveis: [...] IV - os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3o deste artigo; 46 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 507. 25 Na mesma senda, o direito a alimentos é imprescritível, mesmo que não exercido por longo tempo depois de constituídos os pressupostos da obrigação. Importante frisar-se neste ponto que o que não prescreve é a obrigação alimentar e não as parcelas vencidas e não pagas. Nesta última hipótese, aplica-se o prazo previsto no art. 206, § 2º, do Código Civil, o qual determina que prescreve “em dois anos, a pretensão para haver prestações alimentares, a partir da data em que se vencerem”. Entretanto, mesmo nesse caso, em se tratando o alimentando de pessoa absolutamente incapaz, suspende-se o prazo prescricional, em virtude das regras previstas tanto no art. 198, I, quanto no art. 197, II, do CC47. Essa questão, inclusive, foi recentemente pacificada perante o TJRS em incidente de uniformização de jurisprudência do 4º Grupo Cível, em que restou vencido apenas o relator Des. Rui Portanova: INCIDENTE DE PREVENÇÃO/COMPOSIÇÃO DE DIVERGÊNCIA. APELAÇÃO. EMBARGOS À EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. Não corre a prescrição contra menores e incapazes, bem como entre ascendentes e descendentes durante o exercício do poder familiar.. Inteligência dos arts. 197, II, e 198, I, do Código Civil. Precedentes jurisprudenciais. PENHORA. BEM DE FAMÍLIA. Nas execuções de pensão alimentícia, o imóvel residencial do devedor é penhorável, a fim de proteger o próprio integrante da família. Inteligência do art. 3º, II, da Lei n. 8.009/90. Apelação desprovida, por maioria. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (TJRS, Uniformização de Jurisprudência nº 70040576928, 4º Grupo de Câmaras Cíveis, Rel. Rui Portanova, julgado em 16/09/2011). Por fim, talvez a mais importante característica desse instituto, os alimentos, uma vez pagos, são irrepetíveis. Ou seja, ainda que, ao final, a ação venha ser julgada improcedente, os alimentos provisórios ou provisionais não serão restituídos ao credor, como bem afirma Pontes de Miranda: “Os alimentos recebidos não se restituem, ainda que o alimentário venha a decair da ação na mesma instância, ou em grau de recurso: Alimenta decernuntur, nec teneni ad cautionem praestandam, nec restitutionern praedictorum alimentorum, in casu quo victus fuerit”.48 47 Art. 197. Não corre a prescrição:[...] II - entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar; Art. 198. Também não corre a prescrição:[...] I - contra os incapazes de que trata o art. 3o; 48 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo IX. 1 ed. Campinas: Bookselles, 2000. 26 Essa característica decorre claramente da função dos alimentos, que destinam-se a ser consumidos pela pessoa que deles necessita para prover sua própria sobrevivência. Sendo prestados em decorrência do estado de necessidade do até então credor, não há como conceber-se a restituição dos valores prestados exatamente para sua subsistência49. Além de, na maioria das vezes, ineficaz, em razão da situação em que se encontra o alimentário, a possível restituição acabaria, em última instância, desencorajando o pleito por parte daqueles que necessitam da prestação, desvirtuando a lógica do instituto. Todavia, esse princípio não é absoluto. Havendo má-fé na obtenção injusta desses alimentos, como quando a credora adquire novo casamento sem informar ao juízo, mantendo os descontos em folha, caberá repetição dos valores pagos após a cessação dos pressupostos autorizadores50. 1.3 Pressupostos da obrigação alimentar 1.3.1 O binômio necessidade-possibilidade O art. 1.695 do Código Civil assim dispõe: “São devidos os alimentos quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento.” 49 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 508. 50 Repetição do indébito – Ocultação de novo casamento pela alimentada – Verba que perdeu o caráter alimentar – Ação procedente. (TJSP, 4ª Câmara Cível, Rel. Armindo Freire Mármora, JTJ 276/34, julgado em 16/10/2003); No mesmo sentido: Alimentos - Pedido de devolução do que foi pago indevidamente, nos próprios autos da ação de exoneração [...] - Repetição de indébito - Varão exonerado de pagar pensão a filha, por decisão transitada em julgado em agosto de 2001, visto contar ela com 26 anos de idade e ser formada em Direito - Descontos cessados somente em abril de 2002 - Principio da irrepetibilidade que não e absoluto - Direito a repetição reconhecido para que não haja enriquecimento sem causa. (TJSP, Apelação Cível nº 0103757-11.2003.8.26.0000, 6ª Câmara Cível, Rel. Waldemar Nogueira Filho, julgado em 04/10/2007). 27 O legislador, portanto, procurou determinar expressamente dois principais pressupostos que devem ser considerados ao fixar-se tanto a obrigação alimentar, quanto o quantum da prestação. Trata-se do binômio necessidades do alimentando e possibilidades do obrigado. Nesse sentido, se percebe que a obrigação alimentar somente passará existir, no caso concreto, caso haja necessidade por parte de um sujeito detentor de direitos alimentícios e, ao mesmo tempo, um outro sujeito capaz de suportar o encargo, que esteja legalmente obrigado a fazê-lo. Essa disposição, cerne na limitação dos alimentos, é ainda enfatizada no parágrafo primeiro do art. 1.69451, demonstrando a sua enorme importância na instituição dos alimentos. Não havendo necessidade de quem os postula, não há razão de serem fixados alimentos. Ao mesmo tempo, não possuindo recursos suficientes para a própria mantença, o demandado não pode ser obrigado a assegurar o sustento de outrem. Da mesma forma, o binômio ainda é aplicável na fixação do valor da prestação, variando a importância da “necessidade” e da “possibilidade” de acordo com a natureza desses alimentos. Nesse contexto, em que se procura sopesar esses dois pressupostos essenciais, surge o princípio do proporcionalidade ou da razoabilidade, em que, por meio de um juízo axiológico, deverá o juiz determinar um valor que atenda às necessidades do alimentando, bem como não configure encargo excessivamente oneroso ao devedor52. Como se vê, “o legislador quis deliberadamente ser vago, fixando apenas um standard jurídico, abrindo ao juiz um extenso campo de ação, capaz de possibilitar-lhe o enquadramento dos mais variados casos”53. Alguns autores entendem que, em decorrência da aceitação da proporcionalidade em relação às necessidades e possibilidades, dever-se-ia falar em trinômio e não mais apenas em binômio54. Data maxima venia, entendemos que tal entendimento se trata, em verdade, de uma redundância, na medida em que a proporcionalidade é consequência do sopesamento das necessidades e das possibilidades, sendo um resultado inerente a esta análise. 51 o § 1 Os alimentos devem ser fixados na proporção das necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada. 52 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 340. 53 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 519. 54 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 541. Et al. 28 1.3.1.1 As necessidades do alimentando O Código Civil determina que as necessidades não se limitam ao essencial. Como visto, a regra geral apontada na lei é de que, havendo obrigação alimentar, a sua fixação será de modo compatível com a condição social do necessitado, compreendendo-se, portanto, os alimentos civis. Quando sua situação de necessidade decorrer de culpa, no entanto, fará jus exclusivamente aos alimentos naturais. Assim, o conceito de necessidade é bastante amplo, englobando tanto o necessário mínimo à sobrevivência, quanto às necessidades decorrentes da condição social do alimentando. Possuindo patrimônio próprio que possa sustentar o necessitado por largo período de tempo, deve ele dispor dessas riquezas para garantir o seu sustento, eis que, de outra forma, estar-se-ia permitindo o enriquecimento do credor, às custas do devedor, apenas para que aquele mantenha seu patrimônio. Da mesma forma, quando o indivíduo válido e capaz estiver simplesmente desempregado, deverá comprovar que não consegue ou que tem dificuldades em obter ocupação, seja por condições personalíssimas, seja por questões ligadas ao mercado de trabalho55. Só pode reclamar alimentos, assim, o parente que não tem recursos próprios e está impossibilitado de obtê-los, por doença, idade avançada ou outro motivo relevante56. Nesse contexto, fica clara a noção de que a necessidade prevista na lei decorre sempre de motivo alheio à vontade do alimentário, tratando-se de uma necessidade incontornável, ainda que momentânea. Por outro lado, o simples fato de o alimentado exercer atividade, por si só, não é suficiente para extinguir a obrigação. Se os proventos do seu trabalho não são suficientes para o mínimo indispensável, ou ainda, para manter a sua condição social, quando sua situação não decorrer de culpa, pode o alimentário pleitear 55 PRUNES, Lourenço Mário. Ações de alimentos. 2 Ed. São Paulo: Sugestões Literárias, 1978. apud CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. 56 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol. 6: direito de família. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 531. 29 alimentos dos obrigados, de forma a complementar a sua renda5758. Essa complementariedade, de fato, mostra-se bastante razoável e salutar dentro da lógica dos alimentos, eis que se trata, em verdade, de um incentivo ao alimentário para que procure uma atividade lucrativa, sem que isso importe em renúncia aos proventos decorrentes da pensão. Entendimento contrário desestimularia por completo qualquer esforço para fugir do ócio, eis que, ao procurar o próprio sustento, o necessitado seria “punido” com a perda de sua renda. Yussef Cahali muito bem aponta que, na verdade, “a lei não precisa, a qual ponto, a indigência do alimentário justifica o pedido de alimentos; não há aqui, senão, uma questão de fato, que se remete ao prudente arbítrio do juiz, não se podendo fixar a respeito regras precisas.”59 Por fim, independe, para o surgimento da obrigação alimentar, a causa que levou o alimentário ao estado de necessidade. Ainda que a culpa do necessitado tenha efeitos quanto à espécie dos alimentos, reduzindo-lhe o valor ao mínimo necessário, como visto, jamais poderá ser invocada para justificar a descaracterização da obrigação. Entretanto, como também já mencionado, a culpa não será a única razão pela qual os alimentos serão devidos apenas para atender à subsistência mínima. Como se verá adiante, a lei não tomou o devido cuidado ao limitar os alimentos, o que foi devidamente corrigido pela jurisprudência, ainda que de forma não completamente pacífica. Como bem assevera Sílvio Venosa, “o novel ordenamento civil é claro no sentido de que os alimentos devem preservar o status do necessitado”, entretanto, prossegue dizendo que “essa expressão é de total impropriedade, pois pode dar margem a abusos patentes. Daí por que o texto legal vigente ‘compatível com sua 57 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 514. 58 APELAÇÃO CÍVEL. EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. IMPLEMENTO DA MAIORIDADE CIVIL. RESTABELECIMENTO DA VERBA ALIMENTAR. Não há falar em exoneração da obrigação alimentar do apelante em relação à apelada tão só pelo fato de que esta atingiu a maioridade e trabalha como estagiária, ainda mais pelo fato de permanecer a demandada estudando no ensino médio. À desobrigação do recorrente deve concorrer prova da desnecessidade da recorrida, dado não provado no feito, vez que esta estuda e possui rendimentos próprios apenas como estagiária, de modo a complementar os alimentos. Precedentes. Recurso provido. (TJRS, Apelação Cível nº 70030026447, 8ª Câmara Cível, Rel. José Ataídes Siqueira Trindade, julgado em 22/06/2009) 59 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 515. 30 condição social’ deve ser substituído pela ênfase à dignidade do necessitado de alimentos”60. E muito bem complementa Maria Aracy Menezes da Costa: “Ao determinar o „modo compatível com a sua condição social‟ se evidencia de pronto equívoco, eis que a manutenção do padrão social somente se deve aplicar aos filhos menores de pais separados, quando um dos pais proporcionava um elevado nível de vida ao filho, e o outro pai que vai deter a guarda não tem condições de manter o mesmo padrão social. Então, sim, se justifica a medida, mas não é adequada no caso de cônjuge ou convivente. A manutenção do padrão de vida é uma obrigação de ordem material e moral, com previsão legal, decorrente do poder familiar; mas não decorrência do casamento, nem das relações de parentes com que estão mais ligadas ao espírito de solidariedade do que com a obrigação de criar, sustentar, dar estudo, rasgar-se, dilacerar-se em função do outro. Não existe a obrigação de um irmão garantir a condição social de outro; nem de um avô proporcionar ao neto o padrão de vida que mantinha na casa dos pais.”61 1.3.1.2 As possibilidades do alimentante Do outro lado da obrigação, encontra-se o devedor, ou o obrigado. Assim, considerando que os alimentos deverão ser prestados de forma a garantir o sustento daquele que não tem condições de fazê-lo por si, não pode o credor ser levado à situação que procurou-se evitar com o alimentário, razão pela qual o valor a ser prestado deve ser fixado dentro de suas possibilidades, de forma a não comprometer a sua subsistência, conforme prescrito no art. 1.695. Washington de Barros Monteiro muito bem resume, afirmando que “a lei não quer o perecimento do alimentado, mas também não deseja o sacrifício do alimentante; não há direito alimentar contra quem possui estritamente o necessário à própria subsistência”62. Alguns autores, no entanto, afirmam que a redação do artigo enseja uma interpretação equivocada acerca dos limites que as “possibilidades” do alimentante impõe. Com efeito, ao definir que o valor pago pelo obrigado seja fixado “sem 60 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 7 ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 341. COSTA, Maria Aracy Menezes da. Os limites da obrigação alimentar dos avós. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 65-66. 62 MONTEIRO, Washington de Barros; TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Curso de direito civil: direito de família. 40 Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 532. 61 31 desfalque do necessário ao seu sustento”, o legislador determinou que, desde que o credor permaneça com o mínimo para a sobrevivência, os alimentos poderão ser fixados de forma a manter o padrão social do alimentário 63. Por evidente, em uma interpretação teleológica, não há como conceber-se que essa seja a intenção da norma, sendo evidente que a posição de que o alimentante não pode acabar em uma situação financeira pior que a do próprio alimentado. Da mesma forma, a doutrina entende que as possibilidades do credor se caracterizam pela sua renda líquida e não pelo seus patrimônio imobiliário. De fato, não seria justo que o alimentante fosse obrigado a alienar e dilapidar sucessivamente seus bens, a fim de manter a prestação mensal ao alimentado. Deve-se considerar a sua renda líquida, retirados os descontos inerentes à atividade laboral, bem como outros gastos que não importem simplesmente em conforto ou esbanjos do credor, como o sustento de outra família e dependentes64. Por outro lado, vê-se que, além de utilizado para limitar a prestação alimentar, o pressuposto das possibilidades do alimentante também poderá servir para elevar o valor prestado. Com efeito, quando um genitor aufere renda volumosa, esse quesito deverá ser levado em conta na hora de determinar-se a pensão para os filhos, de modo a manter o “padrão social” indicado pela lei: AGRAVO DE INSTRUMENTIO. ALIMENTOS. BINÔMIO NECESSIDADE/POSSIBILIDADE. Alimentada menor de idade que tem necessidades presumidas proporcionais ao padrão de vida dos pais. Alimentante que goza de confortável padrão financeiro e que deve contribuir proporcionalmente às suas possibilidades. A Corte guarda algum entendimento de que alimentos em prol de apenas 01 filho, sem necessidades especiais, devem ser fixados em cerca de 20% dos rendimentos líquidos do alimentante. NEGADO SEGUIMENTO. EM MONOCRÁTICA. (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70045275807, 8ª Câmara Cível, Rel. Rui Portanova, julgado em 04/10/2011). Assim, quando o credor é assalariado, a jurisprudência, em regra, estipula um percentual sobre seus rendimentos, que normalmente varia entre quinze e quarenta por cento65, quando devido pelo ex-cônjuge ao que manteve a guarda do filhos, de 63 COSTA, Maria Aracy Menezes da. Os limites da obrigação alimentar dos avós. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 67. 64 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol. 6: direito de família. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 532. 65 AGRAVO DE INSTRUMENTO. FAMÍLIA. AÇÃO REVISIONAL DE ALIMENTOS. GÊMEOS MENORES DE IDADE. NECESSIDADES PRESUMIDAS. ALIMENTOS ACORDADOS NO ANO DE 32 acordo com as peculiaridades do caso. Este, sem dúvida, é o modo mais adequado de manter-se a proporcionalidade da prestação, sem que esta fique defasada ou importe em correção que não corresponda aos reajustes do credor, como bem ensina a doutrina: “O critério mais seguro e equilibrado para a definição do encargo é o da vinculação aos rendimentos do alimentante. Dessa maneira, fica garantido o reajuste dos alimentos no mesmo percentual dos ganhos do devedor, afastando-se discussões acerca da defasagem dos valores da pensão. Dita modalidade, além de guardar relação com a capacidade econômica do alimentante, assegura o proporcional e automático reajuste do encargo.” 66 Isso, contudo, não significa que o credor poderá esquivar-se da obrigação pelo simples fato de não receber salário fixo ou tratar-se de empreendedor autônomo. Havendo fortes indícios de que aufere renda variável, porém suficiente para prover ao necessitado, haverá obrigação alimentar e seu quantum será calculado à base de uma estimativa média de renda, em valor fixo, que pode ser comprovada por meio de movimentações bancárias, cartões de crédito, viagens ou quaisquer outros sinais exteriores de riqueza67. Visando, ainda, garantir o melhor interesse do alimentário, em regra filhos menores, a lei 5.478/68, que ainda hoje regula a ação de alimentos, determinou que a execução dos alimentos poderá ocorrer mediante expedição de ofício do juízo ao empregador do obrigado, de forma a realizar os descontos relativos à prestação diretamente na folha de pagamento, sendo direcionado ao credor sem o intermédio do devedor, sob pena de sanções penais. Esse desconto incidirá, após as deduções do Imposto de Renda e INSS, sobre todas as parcelas habitualmente recebidas pelo empregado, incluindo férias e 2010 SOBRE OS RENDIMENTOS PREVIDENCIÁRIOS LÍQUIDOS DO GENITOR. ALTERAÇÃO DO BINÔMIO ALIMENTAR POSSIBILIDADE/NECESSIDADE QUE NÃO RESTOU COMPROVADO. No caso, é ônus do alimentante comprovar a sua incapacidade em arcar com a verba arbitrada, bem como a eventual desnecessidade de receber a pensão por parte dos alimentados. Tratando-se de filhos menores, sendo um deles portador de grave patologia, as necessidades são presumidas, e havendo prova no sentido da possibilidade de ser restabelecida a verba alimentar acordada judicialmente no ano de 2010, mostra-se mais adequado que a mesma seja arbitrada em 40% sobre os efetivos ganhos auferidos pelo genitor. AGRAVO PROVIDO. (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70044663714, 7ª Câmara Cível, Rel. Roberto Carvalho Fraga, julgado em 19/10/2011). 66 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 541. 67 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 541. 33 décimo terceiro, excetuando-se, todavia, as parcelas extraordinárias e indenizatórias: AÇÃO DE ALIMENTOS. BINÔMIO POSSIBILIDADE E NECESSIDADE. CRITÉRIO DE FIXAÇÃO. ADEQUAÇÃO DO QUANTUM. BASE DE INCIDÊNCIA DO PERCENTUAL ESTABELECIDO. PRÊMIO DE PARTICIPAÇÃO NOS LUCROS. HORAS EXTRAS. [...] Deve o juiz determinar que a pensão incida em percentual sobre os ganhos do alimentante, descontadas as contribuições obrigatórias, isto significa que há incidência da pensão sobre todas as verbas remuneratórias, inclusive o terço de férias e o prêmio de participação nos lucros, pois tal receita integra o conceito amplo de `rendimentos, excluindo somente os descontos legais de Imposto de Renda e INSS, e não incidindo sobre o FGTS, nem sobre parcelas de caráter indenizatório. Recurso do autor provido em parte e o do réu desprovido. (TJRS, Apelação Cível nº 70038310017, 7ª Câmara Cível, Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 27/07/2011). 1.3.2 Sujeitos da obrigação alimentar Como já exposto, a obrigação alimentar pode decorrer da vontade das partes, de ato ilícito ou da relação familiar. Neste último caso, objeto deste trabalho, os alimentos podem ser devidos em razão da filiação, do parentesco, do casamento ou da união estável. A lei e, por vezes, a jurisprudência parecem não ter efetuado o devido discernimento e diferenciação desses alimentos, que, por possuírem causas diversas, ainda que dentro da relação familiar, possuem, ou deveriam possuir, efeitos diversos, o que acaba gerando as grandes discussões acerca da responsabilidade dos parentes em relação aos outros que hoje se travam nos tribunais. A primeira hipótese de alimentos decorrentes da lei são os alimentos devidos em razão do casamento ou da união estável. Esta obrigação, que se diferencia das demais hipóteses de obrigação alimentar, envolve o dever recíproco entre cônjuges de sustento e assistência mútua, tornando-os sujeitos ativos e passivos de alimentos. Assim, quando um dos separados não possui condições de manter o 34 padrão social experimentado pelo casal, deve o outro socorrer-lhe68. Isso se dá, na grande maioria dos casos, em razão da mulher, por uma questão cultural, abdicar de sua vida profissional em favor da manutenção do lar e da criação dos filhos. Dessa forma, tendo contribuído para a entidade familiar da sua maneira, abdicando, por vezes, de sonhos e aspirações pessoais, não pode ser deixada desamparada quando o convívio não é mais a vontade do casal. Assim, quando cônjuge ou companheiro economicamente inativo ou, ainda, que não proveja o adequado ao seu padrão social, necessitar de alimentos, poderá pleiteá-los contra o outro sujeito do casal. Nesta hipótese, dever-se-á analisar, caso a caso, se o necessitado tem condições potenciais de se reintroduzir no mercado de trabalho. Não as tendo, como no caso de alguém em idade avançada, serão devidos alimentos vitalícios: EXONERAÇÃO DE ALIMENTOS. EX-MULHER. ALTERAÇÃO DO BINÔMIO POSSIBILIDADE E NECESSIDADE. REDEFINIÇÃO DO QUANTUM QUANDO PERSISTE A NECESSIDADE DA ALIMENTANDA E REDUZIU A POSSIBILIDADE DO ALIMENTANTE. 1. Se a alimentanda sempre foi dependente do varão e já vinha recebendo pensão alimentícia há uma década, não pode agora, nessa quadra da sua vida, ficar ao desamparo. 2. Sendo já sexagenária a ex-mulher do alimentante e enfrentando problemas de saúde, não é cabível a exoneração dos alimentos, mas justifica-se plenamente a redução do quantum, quando fica cabalmente comprovada a limitação da capacidade econômica do alimentante, que enfrenta graves problemas de saúde e ficou impossibilitado de exercer qualquer atividade laboral, mantendo-se apenas com a reduzida pensão previdenciária que recebe. Recurso provido, em parte. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (TJRS, Apelação Cível nº 70040634677, 7ª Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 19/10/2011) Entretanto, havendo possibilidade de reinserção, será fixado prazo razoável de prestação, sendo esta a regra geral a ser seguida69. Uma leitura conjunta do art. 1.704 e de seu parágrafo único ainda esclarece que, sendo culpado pela separação, o necessitado deverá primeiro buscar auxílio na família e, só depois, poderá exigi-los do cônjuge. E pior, nesta hipótese fará jus exclusivamente aos alimentos naturais. Essa opção do legislador é alvo de grandes 68 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 623. 69 TJRS, Apelação Cível nº 70031327935, 8ª Câmara Cível, Rel. Alzir Felippe Schmitz, julgado em 05/11/2009. 35 críticas por parte da doutrina, que, com o advento da EC 66/10, consolidou o entendimento de ter restado derrogada a perquirição de culpa nesta hipótese, uma vez que não há mais a figura da separação, apenas o divórcio 70. Por fim, cessam-se os alimentos devidos ao ex-cônjuge ou companheiro quando este passar a possuir renda suficiente para manter-se (deixando de existir o pressuposto autorizador) ou quando contrair novo matrimônio ou união estável (art. 1.708 do CC71), ainda que o novo parceiro não tenha as mesmas condições do antigo credor. Já adentrando às obrigações alimentares decorrentes de vínculo familiar, mister apontar-se primeiramente que os pais possuem dever de sustento em relação aos filhos menores. Essa relação, como dito, não possui reciprocidade e se diferencia em diversos aspectos da simples relação de parentesco. Ao contrário desta, aquela não se transfere aos demais ascendentes, descendentes e colaterais, eis que se trata de obrigação exclusiva dos genitores para com a sua prole, prevista no art. 22972 da CF/88 e no art. 1.566, IV, do CC73, e não se limita à simples prestação alimentar. Se trata primordialmente de uma obrigação de fazer74. Da mesma forma, quando há separação do casal, o art. 20 ver da Lei do Divórcio ainda determina que ambos os cônjuges separados deverão contribuir na proporção de seus recursos75. Nesse caso, a necessidade é presumida, inclusive quanto à educação, e independe se o filho possui aptidão ao trabalho. Havendo filiação, haverá dever de sustento. Veja-se que sequer pode ser perquirida culpa na fixação dos alimentos, de modo a reduzir a pensão, eis que, sendo decorrente do poder familiar, os alimentos serão sempre civis, proporcionais à renda dos genitores76. Neste sentido, muito bem resume Rodrigo da Cunha Pereira: 70 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 516. 71 Art. 1.708. Com o casamento, a união estável ou o concubinato do credor, cessa o dever de prestar alimentos. 72 Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. 73 Art. 1.566. São deveres de ambos os cônjuges: [...] IV - sustento, guarda e educação dos filhos; 74 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, vol. 6: direito de família. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 539. 75 Art 20. Para manutenção dos filhos, os cônjuges, separados judicialmente, contribuirão na proporção de seus recursos. 76 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 523. 36 “Dever de sustento é atributo inerente ao poder familiar, conforme se constata pelo art. 229 da Constituição Federal, art. 1.566, IV do CCB/2002, e art. 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente. É a forma que socorre o filho, até completar a maioridade ou ser emancipado, de ver suas despesas satisfeitas por seus genitores. No dever de sustento, presume-se a necessidade do alimentando, tentando-se harmonizá-la com a possibilidade do obrigado, de modo a encontrar o valor dos alimentos. Ao se extinguir o poder familiar, rompem-se com ele todas as suas consequências, tal como o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, subsistindo, porém, a obrigação alimentar.”77 O dever de alimentos dos pais para com os filhos, no entanto, não cessa com a simples maioridade da prole. Belmiro Pedro Welter sintetiza que os pais podem ser obrigados a prestar alimentos aos filhos maiores em três hipóteses: (i) aos filhos maiores e incapazes; (ii) aos filhos maiores e capazes que estão em formação escolar profissionalizante ou em faculdade; e (iii) aos filhos maiores, porém em situação de indigência não proposital78. O caso mais comum dentre estes, sem dúvida, é o segundo, em que, estando, o filho maior inscrito em curso superior, permanece o dever de alimentos. Por analogia à Lei do Imposto de Renda, a jurisprudência fixou o limite máximo de profissionalização nos 24 anos de idade do alimentando, período até o qual poderse-ia abater os custos educacionais que o pai despendia com o filho do aludido tributo79. Entretanto, esse prazo passou a ser flexibilizado, em razão da grande duração de determinados cursos, sendo apenas necessário que a escolaridade seja compatível com a idade do alimentado e mantenham-se os pressupostos objetivos80. 77 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Teoria geral dos alimentos. In: CAHALI, Francisco José. Alimentos no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 15. 78 WELTER, Belmiro Pedro. Alimentos no código civil. Porto Alegre: Síntese, 2003. p. 107. 79 FARIAS, Cristiano Chaves de. Alimentos decorrentes de parentesco. In: CAHALI, Francisco José. Alimentos no código civil. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 36. 80 AGRAVO DE INSTRUMENTO. FAMÍLIA. AÇÃO DE ALIMENTOS. FILHO MAIOR DE IDADE. ESTUDANTE. DEMONSTRAÇÃO DA NECESSIDADE DO AUXÍLIO PATERNO. INEXISTÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA AUSÊNCIA DE POSSIBILIDADE DO GENITOR. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA. 1. A maioridade civil, por si só, não tem o condão de afastar o dever de prestação de alimentos decorrente das relações de parentesco. Tratando-se de demanda intentada para originariamente estabelecer a verba alimentícia, faz-se necessária a comprovação da alegada necessidade do filho maior, que não mais é presumida. 2. Caso em que o alimentado, que conta atualmente com 25 anos de idade e exerce atividade remunerada, demonstrou que as despesas para o custeio de sua formação profissional superam a remuneração mensal percebida, conferindo verossimilhança à alegação de que necessita do auxílio paterno para custeio da educação. 3. De outro lado, o alimentante não comprovou minimamente a alegada impossibilidade de arcar com o pensionamento arbitrado na origem (no valor de 50% do salário mínimo), sem prejuízo da sua mantença. Necessidade de dilação probatória. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70044864635, 8ª Câmara Cível, Rel. Ricardo Moreira Lins Pastl, julgado em 27/10/2011). 37 O certo, no entanto, é que a simples maioridade dos filhos não exonera de imediato a obrigação paterna, devendo haver análise acerca da desnecessidade de sua manutenção. A questão foi, inclusive, objeto da Súmula 358 do STJ, que determinou que “o cancelamento de pensão alimentícia de filho que atingiu a maioridade está sujeito à decisão judicial, mediante contraditório, ainda que nos próprios autos”. Igualmente, os deveres inerentes ao poder familiar são também relativos até mesmo ao nascituro, que pode ser autor da ação de investigação de paternidade cumulada com pedido de alimentos. Essa concepção decorre da proteção de certos direitos de personalidade do nascituro, sem conteúdo patrimonial, como é o caso dos alimentos, que visa a proteger o direito à vida, também assegurado ao nascituro (art. 2º, CC81). Já a última hipótese de alimentos guarda relação com o parentesco. Enquanto o dever de alimentos dos pais em relação aos filhos menores, inserido no dever de sustento, encontra guarida no art. 1.566, IV, do CC, a obrigação de alimentos decorrente do parentesco relaciona-se com a solidariedade familiar e está previsto nos arts. 1.696 e 1.697, que determinam que “o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros” e que “na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais”. Tem-se, então, que, ao contrário do dever de sustendo, a obrigação meramente alimentar se resume a uma obrigação de dar e é recíproca entre todos os parentes em linha reta e irmãos, podendo ser exigida tanto contra, quanto a favor de determinado membro. Importante ressaltar, também, que esse rol é taxativo, de forma que não poderão ser obrigados os tios, sobrinhos, primos, tampouco os parentes por afinidade: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. PRETENSÃO DEDUZIDA PELO FILHO, EM FACE DA COMPANHEIRA DO SEU FALECIDO PAI. DESCABIMENTO. Inexistente qualquer vínculo de parentesco entre o autor e a ré, sendo ele filho do falecido companheiro da requerida, não há dever de alimentos entre eles. Os 81 Art. 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. 38 laços de afinidade que porventura pudessem existir entre o autor e a ré, não geram obrigação alimentar. Pretensão não abrangida pelos arts. 1.694 e 1.696 do Código Civil. DESPROVERAM A APELAÇÃO. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (TJRS, Apelação Cível nº 70032209322, 7ª Câmara Cível, Rel. André Luiz Planella Villarinho, julgado em 09/06/2010). A lei ainda determina uma clara ordem preferencial e sucessiva na obrigação desses parentes nos arts. 1.696 e 1.697 do CC. Primeiro, deve-se buscar os ascendentes ou descendentes diretos, ou seja, pais e filhos. Ainda que não mais sob o poder familiar, o filho deve sempre socorrer-se inicialmente junto aos pais e viceversa. A presunção de proximidade dessas partes exclui os demais parentes, quando suficiente para atender às necessidades do alimentário. Depois, procura-se os ascendentes de acordo com sua proximidade de grau (avós, bisavós, trisavós e assim por diante). Não havendo ascendentes em condições de arcar com os encargos, cabe aos descentes, seguindo a mesmo lógica de proximidade. Por último, busca-se os irmãos, unilaterais ou bilaterais, sem distinção. Quanto a esta ordem elencada na lei, cumpre traçar uma crítica. Em que pese se mostre razoável que primeiro se busque aos pais e filhos reciprocamente, e que os demais ascendentes e descendentes sejam chamados pela ordem de graus, o mesmo não se pode dizer quanto a ordem em que restaram os irmãos. Ora, a família atual é composta primordialmente por pais e filhos, em que estes últimos são criados conjuntamente até a sua maioridade. Dessa forma, se presume um vínculo afetivos muito mais próximo entre os irmão do que dentre um deles e seus avós, ou, pior, bisavós ou netos. Na pior das hipóteses, estariam os irmãos no mesmo grau de proximidade que os avós. Soma-se a isso o fato de os irmãos serem mais jovens que os avós e mais dispostos ao trabalho, ao contrário dos ascendentes, que, em regra, são idosos e dependem de suas aposentadorias. Por evidente, aqui se fala de irmãos capazes e que tenham possibilidade de contribuição, como já visto, mas nada justifica que os irmãos sejam privilegiados nessa ordem sucessiva como os últimos responsabilizáveis. 39 2. DA RESPONSABILIDADE ALIMENTAR DOS AVÓS 2.1 Os contornos dominantes da obrigação avoenga 2.1.1 A subsidiariedade e a complementariedade da obrigação Ainda que, conforme já exposto, o Código Civil e a legislação extravagante não tenham delineado em que consistem precisamente as diferentes obrigações alimentares, a questão alimentar dos avós foi muito bem limitada pela doutrina e pela jurisprudência, suprindo-se essa lacuna e reconhecendo-se que a obrigação avoenga tem caráter exclusivamente sucessivo e complementar à obrigação paterna. Como dito, o dever de sustento dos pais decorre do arts. 1.566 e 1.634 do CC, sendo unilateral e devendo atender a todas as necessidades da prole, inclusive a de manter o seu padrão social, proporcional à sua renda82. Entretanto, na hipótese da prestação alimentar devida pelos pais aos filhos não ser suficiente a garantir-lhes o mínimo existencial, poderão os avós serem chamados a responder subsidiária e complementarmente, conforme disposto nos arts. 1.696 e 1.698 do CC: Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros. Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide. Como se pode ver, a redação do art. 1.696, em sua parte final, sugere que os parentes mais remotos somente serão chamados “uns em falta dos outros”. Com 82 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 339. 40 base nisso, a doutrina muito bem determinou a forma sucessiva ou subsidiária dessa obrigação, devendo estarem ausentes dos genitores ou impossibilitados de suprir as necessidades básicas do alimentado satisfatoriamente, para que os avós possam ser obrigados, como refere Yussef Cahali: “O avô só está obrigado a prestar alimentos ao neto se o pai deste não estiver em condições de concedê-lo, estiver incapacitado ou for falecido; assim a ação de alimento não poderá contra o ascendente de um grau sem a prova de que o mais próximo não pode satisfazêla”83 Ou seja, para que os avós, ou demais parentes sucessivos, passem a ser sujeitos passivos da obrigação alimentar em relação aos netos é necessário que os pais não tenham condições de cumprir com o encargo primeiramente, seja por ausência ou qualquer outra impossibilidade. “O alimentando não poderá, a seu belprazer, escolher o parente que deverá prover seu sustendo”84, não sendo facultado, portanto, suprimir esta etapa da linha sucessória obrigacional quando postular alimentos. E no mesmo sentido se posicionou o STJ, decidindo que a responsabilidade avoenga tem como pressuposto a falta dos pais, ou a sua incapacidade em cumprir a obrigação, tornando-se inviável a ação dirigida diretamente aos avós, sem a devida comprovação de impossibilidade daqueles: CIVIL. AÇÃO DE ALIMENTOS. AVÓS. RESPONSABILIDADE. I - A responsabilidade de os avós pagarem pensão alimentícia aos netos decorre da incapacidade de o pai cumprir com sua obrigação. Assim, é inviável a ação de alimentos ajuizada diretamente contra os avós paternos, sem comprovação de que o devedor originário esteja impossibilitado de cumprir com o seu dever. Por isso, a constrição imposta aos pacientes, no caso, se mostra ilegal. II - Ordem de 'habeas corpus' concedida. (STJ, HC 38.314/MS, Rel. Ministro Antônio de Pádua Ribeiro, 3ª Turma, julgado em 22/02/2005). Como também se vê do precedente citado, em que pese este caráter sucessivo da obrigação avoenga, nada impede que a ação seja direcionada 83 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 677. 84 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 612. 41 diretamente contra os avós, desde que devidamente comprovado nos autos do processo a ausência dos genitores ou sua dificuldade em arcar com a obrigação. Da mesma forma, poderá o neto demandar conjuntamente contra o pai e os avós na mesma ação, requerendo que seja fixada a obrigação paterna e, sucessivamente, em caso de insuficiência da prestação, fixar a obrigação avoenga. Forma-se um litisconsórcio passivo sucessivo e, nesta hipótese, não há necessidade de prova especificamente produzida para comprovar a carência de recursos do genitor, eis que a própria prestação fixada servirá como base para determinar a insuficiência ou não. Segundo Maria Berenice Dias: “Ainda que não disponha o autor de prova da impossibilidade do pai, o uso da mesma demanda atende ao princípio da economia processual. Na instrução é que, comprovada a ausência de condições do genitor, evidenciada a impossibilidade de ele adimplir a obrigação, será reconhecida a responsabilidade dos avós. A cumulação da ação contra pais e avós tem a vantagem de assegurar a obrigação desde a data da citação.”85 E muito bem complementa Yussef Cahali: “A inclusão do avô, desde logo, no pólo passivo da ação, junto com o devedor principal, funda-se em um argumento expressivo: se a pretensão de alimentos é sempre urgente, a necessidade de prévio ajuizamento de ação contra o pai para somente no final dela ser movida ação contra o avô estaria desconforme com a celeridade indispensável ao procedimento.”86 E aqui fica evidenciado o caráter complementar da obrigação avoenga. Como se vê, não é necessário que os genitores estejam absolutamente desprovidos de recursos e que não possam arcar com o seu dever de sustento para que os seus respectivos pais sejam instados a concorrer, como previsto no art. 1.698 do CC. Demonstrado nos autos que, ainda que existente, a prestação alimentar dos genitores aos filhos é insuficiente para o mínimo necessário à sua sobrevivência e 85 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 529. 86 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 471. 42 que os avós possam contribuir sem que sejam privados do seu sustento, poderá ser fixada obrigação complementar aos netos87, como vem julgando o STJ: CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE ALIMENTOS MOVIDA CONTRA PAI E AVÓ PATERNA DO MENOR. REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS. ADVOCACIA DA MÃE DO MENOR AUTOR EM SUA DEFESA. REGULARIDADE. AGRAVO DE INSTRUMENTO. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. CC ANTIGO, ART. 397. EXEGESE. I. Regular a defesa do menor por sua mãe, advogada, que atua diretamente nos autos, mesmo que existam, ainda, outros causídicos já constituídos. II. Há possibilidade jurídica no pedido alimentar direcionado concomitantemente contra o pai do menor e sua avó, se a exordial justifica o pleito esclarecendo que os valores que o genitor paga não são suficientes às necessidades do alimentando, e a capacidade em supri-los é muito duvidosa, eles podem, em tese, ser complementados pela segunda ré, cabendo à segunda instância examinar o mérito da postulação quanto aos provisionais, deferidos que foram pelo juízo singular. III. Recurso especial conhecido e parcialmente provido. (STJ, REsp 373004/RJ, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, 4ª Turma, julgado em 27/03/2007). Por outro lado, o simples inadimplemento, pagamento a menor ou atraso nos pagamentos da prestação pelo genitor não são suficientes para transferir a responsabilidade alimentar do pai para os avós. Uma vez fixada a pensão, deve o alimentado valer-se de meios coercitivos judiciais, como a execução, para tentar fazer valer o crédito, para, só então, após demonstrada a ineficácia de tal provimento, demandar contra os avós, evidenciando-se um caráter de grande excepcionalidade na medida88. Essa questão é muito bem exemplificada em precedente pátrio: “Não se nega que o avô está na linha legal da obrigação alimentar – obrigado in abstracto, portanto –, tornando-se devedor na medida em que é chamado pela ordem. Nem se está afirmando que o parente de grau mais próximo exclui o de grau mais remoto. Mas enquanto o obrigado mais próximo tiver condições de prestar alimentos, ele é o devedor e não se convoca o mais afastado. E isto vale especialmente para os pais, cuja qualidade de devedores de alimentos é singular, e que não podem ser dispensados do dever paterno fundamental como se está tentando fazer. Ora, nenhuma das 87 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 472. 88 STJ, Resp. nº 366.837/RJ, Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, 4ª Turma, julgado em 19/12/2002. 43 alegações concernentes à insuficiência do pai se comprovam. O que, ao contrário, se revela, é não só que é pessoa válida e com domicílio estabelecido e conhecido, mas que é homem de posses e possivelmente abastado. Do fato de ser domiciliado no Acre não se pode extrair situação de impossibilidade de cobrança ou execução. E o simples fato de ser mais cômoda ou mais fácil para a alimentanda dirigir-se ao avô não justifica excluir a obrigação do pai. O direito não protege comodismo; não pode o comodismo, portanto, gerar qualquer direito.”89 Sendo, ainda, a impossibilidade de sustento dos filhos momentânea, não havendo qualquer incapacidade dos pais em exercer atividade laborativa, a obrigação fixada é de caráter temporário e transitório, de forma a não estimular a inércia ou acomodação dos pais, obrigados em primeiro grau90. Ademais insta salientar que, como já mencionado, a responsabilidade dos avós, sendo complementar, diz respeito exclusivamente às necessidades básicas do alimentando. Por essa razão, o binômio necessidade-possibilidade não deve ser aplicado na sua plenitude. Com efeito, as possibilidades do alimentante, no caso os avós, deve ser utilizada exclusivamente como parâmetro de limitação da obrigação, jamais como fator para a sua majoração, como muito bem explica o Des. José S. Trindade, em voto divergente vencedor: “Sr. Presidente, com a devida vênia do eminente Relator, vou discordar do seu voto. Há uma afirmação, no voto do eminente Relator, no sentido de que, “com efeito, pode-se dizer que a fixação da obrigação alimentária aos avós deve-se limitar proporcionalmente às suas possibilidades”. Na verdade, quando os avós são chamados a intervir, em matéria alimentícia como esta, esse chamamento é feito de forma subsidiária ou suplementar. As necessidades dos netos que devem ser atendidas são, essencialmente, aquelas básicas, nada mais além dessas necessidades básicas. Então, não se deve guardar proporcionalidade entre as necessidades dos netos e as possibilidades dos avós, porque sendo as necessidades dos netos aquelas básicas desaparece essa proporcionalidade que o eminente Relator inseriu em seu voto.”91 Assim, conclui-se que, ainda que o avô perceba elevadas quantias, a prestação devida aos netos limitar-se-á às necessidades básicas desses, não sendo 89 TJSP, EI nº 104.160-2, 2ª Câmara Cível, julgado em 13/03/1990. CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 475. 91 TJRS, Agravo de Instrumento nº 70005419205, 8ª Câmara Cível, Rel. Rui Portanova, julgado em 13/03/2003. 90 44 autorizado fixar pensão proporcional às possibilidades dos avós. Por outro lado, auferindo o ascendente renda reduzida, os alimentos serão proporcionais de forma a diminuí-los, ainda que a prestação não seja suficiente para garantir ao neto o mínimo necessário. 2.1.2 Ausência de solidariedade entre os obrigados Como visto, a obrigação alimentar avoenga é sucessiva e complementar à dos pais. Somente quando estes estejam ausentes ou impossibilitados de arcar com encargo é que os avós passarão a ser sujeitos da obrigação. Entretanto, ainda que preenchidos os requisitos para que sejam os avós ou demais parentes obrigados a concorrer com a obrigação de alimentos, não há que se falar em solidariedade. Com efeito, o art. 264 do Código Civil define as obrigações solidárias da seguintes forma: Art. 264. Há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda. Por outro lado, o art. 1.698 muito claramente dispõe que “sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos”. Ou seja, uma vez apurados os pressupostos e havendo mais de um obrigado, haverão obrigações distintas e proporcionais. O que se percebe é que não se trata de uma divisão do crédito alimentar em si, mas sim da obrigação alimentar. Acórdão de relatoria do desembargador Rui Portanova muito bem aponta que não há que se confundir complementariedade com solidariedade: AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIMENTOS FIXADOS SOLIDARIAMENTE EM DESFAVOR DO GENITOR E DOS AVÓS PATERNOS. A obrigação alimentar entre genitor e avós não é solidária, mas sim divisível. Merece ser desconstituída a decisão que fixa alimentos em desfavor do genitor e dos avós paternos, responsabilizando-os solidariamente. DESCONSTITUÍRAM, EM PARTE, A DECISÃO. (TJRS, Agravo de Instrumento nº 45 70005396072, 8ª Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, julgado em 19/12/2002).92 Não são todos os alimentantes responsáveis pelas prestações devidas pelos demais. Havendo alimentos, há tantas obrigações distintas quantas sejam as pessoas a que possam ser obrigadas a pensionar93, sendo que, em relação aos avós que não dispõe de recursos para prover alimentos a seus netos, a obrigação sequer chega a existir. E é extremamente lógico que assim seja. Determinando a lei que caberá a cada um contribuir com as suas possibilidades, não poderá o devedor ser responsabilizado pela dívida inteira, que, consequentemente, será maior que a sua capacidade de contribuição. Seria o mesmo que dizer que o avô materno, condenado a contribuir com R$ 100,00 para os netos, deva arcar com eventual inadimplemento do avô paterno, condenado a contribuir com R$ 400,00. Muito menos se pode atribuir diretamente aos avós o encargo não adimplido pelo pai. A complementação a que se refere a lei é sempre no sentido da obrigação e nunca do crédito. Se o pai foi condenado a determinado montante e vem pagando a menor, os avós não poderão ser chamados a adimplir as parcelas não pagas94. Somente após atribuída uma obrigação alimentar aos ascendentes, aferindo-se suas possibilidades, é que surgirá o crédito: CIVIL. FAMÍLIA. ALIMENTOS. RESPONSABILIDADE COMPLEMENTAR DOS AVÓS. Não é só e só porque o pai deixa de adimplir a obrigação alimentar devida aos seus filhos que sobre os avós (pais do alimentante originário) deve recair a responsabilidade pelo seu cumprimento integral, na mesma quantificação da pensão devida pelo pai. Os avós podem ser instados a pagar alimentos aos netos por obrigação própria, complementar e/ou sucessiva, mas não solidária. Na hipótese de alimentos complementares, tal como no caso, a obrigação de prestá-los se dilui entre todos os avós, paternos e maternos, associada à responsabilidade primária dos pais de alimentarem os seus filhos. 92 No mesmo sentido: ALIMENTOS. SOLIDARIEDADE. DIVISIBILIDADE. Ainda que complementar, não há falar em solidariedade da obrigação alimentar dos avós, uma vez que cada alimentante é obrigado no limite de suas possibilidades, trata-se de obrigação divisível. Apelo desprovido. (TJRS, Apelação Cível nº 70004188298, 7ª Câmara Cível, Rel. Des. Maria Berenice Dias, julgado em 05/06/2002). 93 WELTER, Belmiro Pedro. Alimentos no código civil. Porto Alegre: Síntese, 2003. p. 46. 94 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 470. 46 Recurso especial parcialmente conhecido e parcialmente provido, para reduzir a pensão em 50% do que foi arbitrado pela Corte de origem. (STJ, REsp 366837/RJ, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma, julgado em 19/12/2002). Assim, resta patente, portanto, a ausência de qualquer solidariedade entre os coobrigados sucessivos ou de mesmo grau. Havendo mais de um obrigado, deverse-ão apurar os pressupostos objetivos da obrigação alimentar, para, só então, constituir-se o crédito em favor do alimentando. 2.2 A teoria da divisão matemática Observa-se com certa frequência nos tribunais pátrios que, em algumas ações de alimentos (principalmente quando o pai é ausente), procura-se dividir a obrigação alimentar de sustento em duas, metade para o pai e metade para a mãe. Dessa forma, não encontrando-se algum dos genitores, passa-se a obrigação original destes aos seus pais, a fim de que o guardião não tenha de arcar sozinho com a criação da prole. Há uma divisão matemática por linhas hereditárias de responsabilidade, em que, independentemente das possibilidades da mãe (ou o genitor presente), o pai deve contribuir de alguma forma, sendo essa obrigação transmissível aos seus ascendentes. O grande argumento dessa corrente está no fato de que a mãe acaba por ficar desamparada, sem poder invocar aos avós para auxiliar no sustento dos filhos, quando abandonada pelo pai, ou quando este se recusa a contribuir com a criação. Dessa forma, pensando no melhor interesse do alimentando, entendem que deveria haver uma transmissão da obrigação paterna aos avós, tornando o encargo mais suportável para a matriarca e colaborando com a qualidade de vida da prole. Nesse sentido, Maria Berenice Dias se posiciona ferrenhamente contra a posição adotada pelos tribunais pátrios, que, em sua maioria, não aceitam esta possibilidade: “O art. 1.696 do Código Civil, com clareza diz: O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os 47 ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros. Também não falta clareza ao art. 1.698: Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato (...). De maneira surpreendente, a tendência da jurisprudência tem sido ignorar esses dispositivos legais, sob o seguinte fundamento: a obrigação é dos pais. Na omissão de um dos pais, o ônus passa para o outro. Somente se ambos os genitores não têm condições de prover o sustento dos filhos é que se invoca a responsabilidade dos avós. Segundo esse raciocínio, está-se impondo ao genitor que tem o filho em sua companhia, que arque sozinho com o seu sustento. Pelo jeito, basta o guardião estar inserido no mercado de trabalho, ter alguma gratificação profissional ou simplesmente desempenhar atividade que gere algum rendimento, para ser responsável exclusiva pela mantença da prole. Caso o outro genitor não pague alimentos, não pode se socorrer de mais ninguém. Sequer pode invocar a responsabilidade dos avós pela mantença dos netos. Como dentro de nossa realidade social o filho geralmente fica sob a guarda da mãe, é ela quem resta onerada. Além da já famosa dupla jornada de trabalho, que compreende a administração do lar e o encargo da criação, educação e orientação da prole, se o genitor não cumpre com o encargo alimentar, terá ela que, sozinha, prover o sustento dos filhos. Basta ter algum ganho, nem que seja de pequena monta. Contra clara disposição legal vem sendo afastada a obrigação complementar e subsidiária dos ascendentes. O avô, independentemente de desfrutar de confortável situação de vida e ter ganhos que permitam com tranquilidade de auxiliar no sustento dos netos, não está sendo chamado a contribuir. Não é reconhecida sua obrigação pelo fato de a mãe ter algum tipo de rendimento. Nem sequer se atende ao critério da proporcionalidade entre o salário da guardiã e a situação econômica do avô. Basta a genitora auferir alguma renda para afastar a responsabilidade dos ascendentes.”95 Esta concepção é compartilhada ainda na jurisprudência em diversos precedentes que, ainda que por vezes aparentemente de forma inadvertida, atribuem essa responsabilidade aos avós, quando a mãe tem condições de sustentar os filhos: DIREITO DE FAMÍLIA. ALIMENTOS PROVISÓRIOS. PAI EM LUGAR INCERTO E NÃO SABIDO. OBRIGAÇÃO DOS AVÓS PATERNOS. Demonstrada a falta do pai, que encontra-se em lugar incerto e não sabido, correta a decisão que transfere a obrigação alimentar aos avós, que têm responsabilidade subsidiária e supletiva, conforme art. 397 do Código Civil. AGRAVO IMPROVIDO. (TJRS, 95 DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre alimentos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 14-15. 48 Agravo de Instrumento nº 70001288281, 2ª Câmara Especial Cível, Rel. Marilene Bonzanini Bernardi, julgado em 29/11/2000).96 Entretanto, em que pese as situações esposadas a favor da teoria e que realmente demonstram uma preocupação com parte mais fraca de uma relação, este entendimento, data maxima venia, redundaria em outras mazelas, tão indesejáveis quanto as acima referidas, além de passar por cima de diversos direitos também tutelados. Com efeito, Maria Aracy Menezes da Costa faz duras críticas a essa teoria, explicando que a responsabilidade dos pais é diferenciada e jamais pode ser atribuída igualmente aos avós, como se pais fossem: “Verifica-se que essa teoria divide a responsabilidade alimentar “por linhas” – “linha paterna” e “linha materna” – nos moldes da distribuição da herança no direito sucessório, passando a “metade” que seria responsabilidade do pai para os avós. Desconsidera-se, nesse entendimento, que se trata de uma obrigação diferenciada, de ambos os pais, decorrente do poder familiar, e não de uma simples substituição do obrigado, ou um repasse de tarefa. A mãe escolheu o pai de seu filho, e se ele não correspondeu a suas expectativas, não há porque se “vingar” nos pais dele, os avós. A queda do padrão econômico que, muitas vezes, ocorre com uma separação, com a dissolução de uma família, não deve nem pode ser “descontada” ou compensada nos avós. A solução deve ser buscada nos limites da família original da criança – mãe e pai. Só excepcionalmente, e de forma moderada, na falta absolutamente essencial, recorre-se aos avós.”97 E realmente, percebe-se que em momento algum a lei, ou o entendimento majoritário deixam a mãe absolutamente desamparada como dá a entender a argumentação em favor da teoria. Como já sobejamente exposto, em caso de impossibilidade ou grandes dificuldades em prover aos filhos, os avós terão sim obrigação alimentar em favor dos netos. Entretanto, o que realmente se pretende por meio dessa maior responsabilização é, em verdade, a manutenção do padrão 96 No mesmo sentido: ALIMENTOS. OBRIGAÇÃO AVOENGA. AINDA QUE A OBRIGAÇÃO ALIMENTAR DOS AVÓS COM RELAÇÃO AOS NETOS SEJA COMPLEMENTAR E SUBSIDIÁRIA, ELA NÃO ESTÁ CONDICIONADA À PROVA DE QUE AMBOS OS PAIS NÃO POSSUEM CAPACIDADE FINANCEIRA PARA PROVER O SUSTENTO DOS FILHOS. APELO PROVIDO EM PARTE, VENCIDO O RELATOR. (TJRS, Apelação Cível nº 70006215719, 7ª Câmara Cível, Rel. Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 21/05/2003) 97 COSTA, Maria Aracy Menezes da. Os limites da obrigação alimentar dos avós. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 129-130. 49 social e econômico dos netos em relação aos avós. Sendo abastados os avós, pretende a mãe que seus filhos também gozem desses frutos. Com a devida vênia, os filhos devem desfrutar apenas do padrão econômico dos pais. Se estes não puderam, por seus próprios esforços garantir um conforto extra para seus filhos, não podem os avós (obrigados apenas pelo parentesco, assim como os demais familiares) serem compelidos a fazê-lo, caso não seja sua vontade. Essa questão é muito bem abordada pelo Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, em decisão na qual restou vencido: “As demais despesas relacionadas na inicial não justificam, por igual, a imposição de pensionamento provisório por parte dos avós. Isso porque, auferindo a genitora renda razoável, e não possuindo despesas com habitação, como aluguel ou prestação de casa, devem as despesas dos filhos ser compatíveis com o seu ganho. Se não têm as menores condições de estudar em colégio particular, cursar inglês e participar de atividades esportivas pagas (dança), devem readequar o seu padrão de vida, tornando-o compatível com a disponibilidade financeira de sua representante legal. [...] É que, como temos aqui majoritariamente decidido, a obrigação alimentar dos avós é sempre subsidiária e complementar à de ambos os pais, somente se configurando, pois, quando pai e mãe não dispõem de recursos para proporcionar aos filhos o mínimo necessário ao sustento deles, o que, como visto, não é o caso aqui. [...] O problema é que o art. 1.696, bem lembrado por V. Exa., diz que o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos. Então, a obrigação é, em primeiro lugar, em relação aos filhos, dos pais – plural: pai e mãe. E continua: e extensivo a todos os ascendentes. Porém, diz o art. 1.698: “Se o parente que deve alimentos em primeiro lugar” - no caso os pais, pai e mãe – “não estiver em condições de suportar totalmente o encargo (e somente nesta hipótese de nenhum dos dois estar em condições de suportar totalmente o encargo) serão chamados a concorrer os de grau imediato”, ou seja, o ascendente mais remoto, o ascendente de segundo grau, os avós neste caso. Mas, para tanto, a condição posta na lei é clara: o parente mais próximo não estar em condições de suportar totalmente o encargo.”98 Aliás, a aplicação de tal teoria poderia resultar em grandes distorções do instituto dos alimentos, esquecendo-se que os avós também possuem grande necessidade de sua já exígua renda para comprar remédios e cobrir diversos outros custos que a idade avançada os impõe, enquanto que os pais ainda encontram-se 98 TJRS, Apelação Cível nº 70006215719, 7ª Câmara Cível, Rel. Luiz Felipe Brasil Santos, j. em 21/05/2003. 50 em condições de trabalho e de crescimento profissional. Essa questão fica clara em acórdão no qual o voto de relatoria do Des. Rui Portanova foi no sentido de fixar verba alimentícia em favor dos netos em razão da impossibilidade do pai, a despeito do fato de que a mãe tinha plenas condições de manter os filhos, inclusive com conforto. O voto divergente, no entanto, muito bem demonstrou a injustiça que se praticava: Outro ponto da divergência é em função do avô ser uma pessoa de 80 anos de idade, e ter gastos ordinários com medicamentos, e isso é natural já em função da idade avançada. Ele percebe somente R$ 2.200,00 mensais, o que, segundo o Relator, ficou consolidado, uma vez que reconhece que efetivamente recebe esse valor. Sustenta a sua mulher e a si próprio, pagando uma série de despesas, enfrentando uma série de gastos daí decorrentes. Logo, não lhe sobra muito – ou nada lhe pode sobrar até – para fazer frente a esse pensionamento pretendido pelos netos. [...] Finalmente, o que é muito importante e quase decisivo para o deslinde desta causa, é o fato da mãe dos filhos que pretendem o pensionamento ganhar R$ 4.372,00 mensais. É funcionária pública do Judiciário. Sempre temos decidido aqui que deve ser esgotada toda aquela busca do pensionamento dos pais, e pais significa pai e mãe. Somente quando isso for totalmente impossível é que, então, se projetará a obrigação, transferir-se-á a obrigação para o avô. A mãe, ganhando R$ 4.372,00 mensais, tem condições suficientes para manter os seus filhos. Se o pai não tem essas condições, o avô não pode ser chamado porque a mãe supre a ausência de condições do pai. Com essas observações, dou provimento ao agravo, desonerando o avô totalmente da obrigação alimentar.99 Por esses motivos, a jurisprudência vastamente dominante entende que esta obrigação somente pode ser repassada aos avós quando ambos os genitores, e não apenas um, encontram-se impossibilitados de suportar o encargo, como muito bem dispõe recente acórdão do TJRS, de lavra do Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves: ALIMENTOS. OBRIGAÇÃO AVOENGA. DESCABIMENTO. ENCARGO DE AMBOS OS GENITORES. 1. A obrigação de prover o sustento de filho menor é, primordialmente, de ambos os genitores, isto é, do pai e da mãe, e do pai ou da mãe, devendo cada qual concorrer na medida da própria disponibilidade. 2. O chamamento dos avós é excepcional e somente se justifica quando nenhum dos genitores possui condições de atender o sustento do filho menor e os avós possuem condições de prestar o auxílio sem afetar o próprio 99 TJRS, Agravo de Instrumento nº 70005419205, 8ª Câmara Cível, Rel. Rui Portanova, julgado em 13/03/2003. 51 sustento. 3. Os filhos tem o direito de desfrutar do padrão de vida assemelhado ao dos genitores e não ao dos avós. 4. Cuidando-se de obrigação alimentar avoenga, não é possível fixar alimentos provisórios quando existem questões fáticas que reclamam comprovação. Recurso desprovido. (TJRS, Agravo de Instrumento nº 70044160737, 7ª Câmara Cível, Rel. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 29/07/2011). A obrigação de sustento dos filhos menores é exclusiva dos pais e somente em relação a estes se justifica o padrão de vida em que os filhos serão criados. Se, ao deixar de receber a contribuição paterna, o padrão de vida dos filhos seja reduzido, isso não significa que haja uma obrigação moral e, muito menos, legal para que os avós supram essa diferença. O mesmo não se aplicaria caso a renda da genitora não fosse suficiente para manter o mínimo existencial da prole. Nesta hipótese é que passa a haver a obrigação alimentar avoenga, baseada no princípio da solidariedade familiar, é bem dizer, devem-se somente alimentos naturais. A esse respeito, muito bem resume Adriana Kruchin: “Os alimentandos não tem o direito de desfrutar do padrão de vida que os avós lhes possam proporcionar, devendo ficar restritos ao que é possível dispor com a renda do pai e da mãe. Somente será possível a complementação se restar incontroverso que os genitores não desfrutem de condições para fornecer um mínimo de vida digna aos filhos e, por outro lado, os avós detêm tal possibilidade. Entretanto, a quantificação dos alimentos devidos pelos avós deve ficar limitada tão-somente à viabilização do minimamente adequado às necessidades dos alimentandos.”100 Todos os familiares têm a obrigação moral e legal de garantir o mínimo existencial em relação aos seus semelhantes (conforme disposto no arts. 1.694 e 1.698 do CC), mas jamais de custear o conforto alheio, sem que seja esta a sua vontade. Assim, caso, voluntariamente, os avós desejem contribuir para que os netos possam ter aulas de natação, inglês, clube, etc, poderão fazê-lo com total autonomia (e como geralmente fazem quando podem, por razões de simples afeto), caso contrário não há fundamento para que, de forma coercitiva, sejam compelidos. 100 KRUCHIN, Adriana. Obrigação alimentar dos avós. In: LEITE, Eduardo de Oliveira. Grandes temas da atualidade, v. 5: alimentos no novo código civil: aspectos polêmicos. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p. 12. 52 2.3 A intervenção de terceiros do artigo 1.698 do Código Civil O art. 1.698 do Código Civil de 2002 trouxe grandes inovações em relação à divisão dos alimentos entre os parentes coobrigados: Art. 1.698. Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide. Uma dessa inovações, que tem gerado bastante controvérsia na doutrina e na jurisprudência, consta na sua parte final, em que o legislador, de forma um tanto lacônica, se referiu a uma nova modalidade de intervenção de terceiros na esfera processual, diferente das anteriormente previstas no Código de Processo Civil. De fato, é difícil afirmar se o legislador realmente pretendeu a sua criação na forma como fez ou sequer se tomou ciência das reais consequências dessa disposição, mas sem dúvida não regulou com o devido cuidado o instituto, razão pela qual esse ponto merece especial atenção neste trabalho101. Assim, cumpre inicialmente apontar-se que, em conformidade com a redação do artigo, tal intervenção somente é possível entre parentes coobrigados de mesma classe e grau. Não é possível, portanto, que o pai, na tentativa de exonerar-se do encargo alimentar, chame os avós ou demais parentes sucessivos a integrar a lide ou o chamamento de cônjuges prioritários. Tal instituto é cabível somente entre avós e avós, bisavós e bisavós, irmão e irmão, etc.102 Não obstante, Yussef Cahali muito bem lembra que tal dispositivo, na forma como foi aprovado pelo legislativo, manteve a exata mesma redação do anteprojeto do Código Civil de 1972, ou seja, enquanto ainda vigorava o CPC de 1939103. Talvez por esse motivo, observa-se que, diante da natureza da obrigação e do crédito 101 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 556. 102 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 7 ed. rev.,atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 556. 103 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 133. 53 alimentar, não é possível associar a disposição do aludido artigo com as demais formas de intervenção de terceiros, anteriormente existentes no direito brasileiro. Com efeito, por evidente, não se trata da figura conhecida por oposição, prevista no art. 56 do CPC104. Sendo a finalidade dessa modalidade de intervenção o interesse de terceiro em relação ao objeto da lide, ou seja, uma ação intentada pelo próprio interveniente, não há como reconhecer-se relação com o intuito do art. 1.698, que prevê exatamente o contrário. Em relação à nomeação à autoria, disposta no art. 62 do CPC105, mais uma vez inexiste similaridade entre os institutos. Ao afirmar que, intentada a ação contra um dos devedores, “poderão as demais [pessoas] ser chamadas a integrar a lide”, o art. 1.698 deixou claro que a intensão da norma jamais foi a substituição do réu pelos outros obrigados, mas a integração destes à lide, ao lado do requerido. O chamamento dos demais parentes à lide também não se caracteriza como uma denunciação da lide106. Além de não constar no rol apontado no art. 70 do CPC, a nova intervenção não preenche os requisitos doutrinários dessa modalidade, cuja finalidade é trazer ao processo principal ou à ação originária aquele que seria responsabilizado de forma regressiva pelo réu, para que possa oferecer defesa também em relação ao credor, como bem explica Luiz Guilherme Marinoni: “A denunciação da lide constitui modalidade de „intervenção de terceiro‟ em que se pretende incluir no processo uma nova ação, subsidiária àquela originariamente instaurada, a ser analisada caso o denunciante venha a sucumbir na ação principal. Em regra funda-se no direito de regresso, pelo qual aquele que vier a sofrer algum prejuízo, pode, posteriormente, recuperá-lo de terceiro, que por alguma razão é seu garante.” 107 104 Art. 56. Quem pretender, no todo ou em parte, a coisa ou o direito sobre que controvertem autor e réu, poderá, até ser proferida a sentença, oferecer oposição contra ambos. 105 Art. 62. Aquele que detiver a coisa em nome alheio, sendo-lhe demandada em nome próprio, deverá nomear à autoria o proprietário ou o possuidor. 106 Art. 70. A denunciação da lide é obrigatória: I - ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção Ihe resulta; II - ao proprietário ou ao possuidor indireto quando, por força de obrigação ou direito, em casos como o do usufrutuário, do credor pignoratício, do locatário, o réu, citado em nome próprio, exerça a posse direta da coisa demandada; III - àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda. 107 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil. v. 2: processo de conhecimento. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 182. 54 Desse modo, percebe-se que, tratando-se de obrigações divisíveis e individuais, em que não existe responsabilidade regressiva de um devedor para com os demais, não há relação entre a espécie delimitada no art. 1.698 do CC e a denunciação da lide. Por fim, ainda que se possa vislumbrar grande semelhanças entre a modalidade em análise e o chamamento ao processo, descrito no art. 77 do CPC108, até porque o dispositivo utiliza o termo “chamar”, igualmente não há como enquadrálos como a mesma espécie. Com efeito, a doutrina bem descreve a natureza e as características do chamamento em linhas um tanto semelhantes às do art. 1.698 do CC: “Em síntese, o chamamento ao processo é uma modalidade de criar litisconsórcio passivo facultativo por vontade do réu e não pela iniciativo do autor. Como se sabe, em regra, a determinação da formação de litisconsórcio passivo facultativo é de incumbência do autor, que pode optar por propor a demanda em face de um, alguns ou todos os legitimados passivos. No chamamento ao processo, porém, admite-se que o réu da demanda possa, por sua própria iniciativa, e mesmo sem que haja colaboração ou adesão da parte autora, promover esse tipo de litisconsórcio passivo, convocando ao processo outras pessoas que também seriam legitimadas a figurar como réus.”109 De fato, até este ponto parece fazer-se uma leitura exata do instituto previsto no livro de Direito de Família do Código Civil. Entretanto, ao analisar-se as hipóteses de chamamento ao processo previstas na lei, percebe-se a incompatibilidade de ambas intervenções, em razão da necessidade de haver fiador na relação ou que haja solidariedade entre eles, o que inexiste, como já demonstrado, na obrigação alimentar dos parentes: Art. 77. É admissível o chamamento ao processo I - do devedor, na ação em que o fiador for réu II - dos outros fiadores, quando para a ação for citado apenas um deles; 108 Art. 77. É admissível o chamamento ao processo: I - do devedor, na ação em que o fiador for réu; II - dos outros fiadores, quando para a ação for citado apenas um deles; III - de todos os devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns deles, parcial ou totalmente, a dívida comum. 109 MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil. v. 2: processo de conhecimento. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 187. 55 III - de todos os devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns deles, parcial ou totalmente, a dívida comum. Assim, conforme já exposto, não havendo solidariedade entre os coobrigados, e sim obrigações divisíveis, não há que se falar em chamamento ao processo. O que se observa, portanto, é que se trata de um modalidade de intervenção de terceiro sui generis, que segue suas próprias regras, diferentes das intervenções previstas no CPC. Como se vê, a dificuldade de compatibilidade da intervenção em tela e das demais previstas no direito processual se dá em razão da peculiaridade da obrigação alimentar dos parentes, que, ainda que não solidária, varia de acordo com as possibilidades de cada um dos devedores e em razão da necessidade de simplicidade da ação de alimentos. Primeiramente se pode dizer que há litisconsórcio passivo, previsto em qualquer dos incisos do art. 46 do Código de Processo Civil 110. Sendo a obrigação, como dito, divisível entre os coobrigados, podendo aumentar ou diminuir de acordo com o número de devedores, há litisconsórcio passivo. Até porque como dito, há uma prerrogativa do autor em procurar tanto um, como todos os possíveis obrigados. Esse litisconsórcio, no entanto, não é necessário, mas facultativo. Como se vê da redação do art. 47 e parágrafo único do CPC, não se aplica aqui a obrigatoriedade da citação de todos os coobrigados111. A ausência dessa exigência se da pela necessidade de tornar o instituto dos alimentos menos formal e mais acessível, eis que, ao contrário, dever-se-ia citar todos os parentes de mesma classe, sob pena de extinção da ação. Dessa forma, Yussef Cahali assim dispõe o seu entendimento acerca da questão: “Identificar-se-ia, no caso, mais propriamente, uma forma especiosa de litisconsórcio facultativo, em que “os litisconsortes serão considerados, em suas relações com a parte adversa como litigantes 110 Art. 46. Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando: I - entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide; II - os direitos ou as obrigações derivarem do mesmo fundamento de fato ou de direito; III - entre as causas houver conexão pelo objeto ou pela causa de pedir; IV - ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito. 111 Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo. Parágrafo único. O juiz ordenará ao autor que promova a citação de todos os litisconsortes necessários, dentro do prazo que assinar, sob pena de declarar extinto o processo. 56 distintos”, sem que se prejudiquem ou se beneficiem reciprocamente (art. 48 do CPC); com a peculiaridade de que, não pedido na inicial pelo alimentário, só se instaura por instância do devedor único demandado; e, ainda assim, a benefício do próprio autor, a fim de possibilitar a este exigir conjuntamente de todas as pessoas obrigadas a prestar alimentos o cumprimento da totalidade do encargo alimentar, concorrendo cada qual na proporção dos respectivos recursos.”112 Com a devida vênia, tal entendimento parece retirar qualquer utilidade ou possibilidade dessa modalidade de intervenção de terceiro. Tratando-se de atitude exclusiva do demandado em benefício exclusivo do autor, há absoluta falta de interesse processual por parte do devedor/chamante. Se, segundo tal entendimento, passam a existir diferentes réus como se em diferentes ação litigassem, não há interesse jurídico para que um chame os demais em favor do requerente. Já Freddie Didier, ao analisar a posição do autor supracitado, adota o mesmo entendimento, entretanto observando para o fato de que a intervenção se trataria de prerrogativa do autor, após eventual averiguação processual de que os recursos do requerido não sejam suficientes para suprir suas necessidades: “Aqui se visualiza a importância do art. 1.698 do CC-2002. Ao que nos parece, este artigo autoriza a formação de um litisconsórcio passivo facultativo ulterior simples, por provocação do autor. O autor, que originariamente optou por não demandar contra determinado devedor-comum, após a manifestação do réu, ou, a despeito dela, em razão de fato superveniente, percebe a possibilidade/utilidade de trazer ao processo o outro devedor-comum, para que o magistrado também certifique a sua pretensão contra ele, tudo isso em uma mesma relação jurídica processual. Mas este chamamento é feito pelo autor, até porque se trata de formulação de um novo pedido em face deste novo réu – cumulação objetiva e subjetiva ulterior.”113 Em que pese tal análise já aparente uma utilidade maior à intervenção, também parece não ter seguido a vontade do legislador ao constituir esse chamamento. Como se vê das premissas do autor, a limitação da quota-parte do parente requerido poderá ser invocada como matéria de defesa, sendo deferido, na sentença, apenas a sua contribuição: 112 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 136. 113 DIDIER JR., Freddie. A nova intervenção de terceiros na ação de alimentos. Disponível em: <http://www.didiersodrerosa.com.br/artigos/Fredie%20Didier%20Jr.%20%20A%20nova%20interven%C3%A7%C3%A3o%20de%20terceiro%20na%20a%C3%A7%C3%A3o %20de%20alimentos.pdf>. Acesso em: 18/10/2011. 57 “O ingresso de terceiro, no particular, não traz qualquer benefício ao réu – suposto devedor. Se ele é parente e tem condições de pagar, o magistrado fixará o valor da sua parcela de contribuição. Se houver outro devedor na mesma classe que também possua condições de arcar com a pensão (outro avô, p. ex.), esta circunstância será trazida como argumento de defesa e certamente será levada em consideração pelo magistrado.”114 Entretanto, ignora o autor o fato de que a obrigação alimentar dos parentes é uma obrigação diversa da dos genitores. Quanto aos avós, são devidos apenas alimentos naturais e não civis, ou seja, a renda do devedor é relevante apenas para a limitação do valor dos alimentos, jamais para a sua ampliação, como já exposto. Ou seja, se são devidos alimentos naturais ao neto, trata-se de um valor fixo, em que havendo mais de um obrigado, será dividido entre todos proporcionalmente. Em verdade, como já exposto, o rateio da pensão se dará proporcionalmente aos rendimentos que cada obrigado percebe. Aquele que possui renda mais elevada pagará a maior parte, enquanto o que possui renda reduzida mais pagará a menor. Ao comprovar que existem outros coobrigados a prestar alimentos e havendo indícios que estes auferem renda, cabe ao réu chamá-los ao processo, a fim de que possam ser responsabilizados, bem como oferecer defesa. Nesse sentido, bem esclarece Maria Helena Diniz: Pode haver um rateio proporcional sucessivo e não solidário entre os parentes. Nada obsta, havendo pluralidade de obrigados do mesmo grau (pais, avós ou irmão), que se cumpra a obrigação alimentar por concurso entre parentes, contribuindo cada um com a quota proporcional aos seus haveres; mas se a ação de alimentos for intentada contra um deles, os demais poderão ser chamados pelo demandado, na contestação, a integrar a lide (CC, art. 1.698) para contribuir com sua parte, na proporção de seus recursos, distribuindo-se a dívida entre todos. Apesar de a obrigação ter a característica da não-solidariedade e da divisibilidade (CC, arts. 257 c/c 1.698, 1ª parte), ter-se-á, excepcionalmente, chamamento à lide dos coobrigados, quando um deles for acionado, tendo-se em vista que o art. 1.698 contém norma adjetiva especial posterior ao CPC, art. 77, III, prevalecendo, por tal razão. Ter-se-á, na verdade, litisconsórcio passivo facultativo ulterior simples (JTJ, 252:235; CPC, arts. 46 e 47). É um caso de intervenção de terceiro sui generis não previsto na lei processual. [...] É uma inovação do art. 1.698 (norma 114 DIDIER JR., Freddie. A nova intervenção de terceiros na ação de alimentos. Disponível em: <http://www.didiersodrerosa.com.br/artigos/Fredie%20Didier%20Jr.%20%20A%20nova%20interven%C3%A7%C3%A3o%20de%20terceiro%20na%20a%C3%A7%C3%A3o %20de%20alimentos.pdf>. Acesso em: 18/10/2011. 58 adjetiva contida no Código Civil). Temos uma nova intervenção de terceiros na ação de alimentos. Na sentença, o juiz rateará entre todos a soma arbitrada e proporcional às possibilidades econômicas de cada um, exceto aquele que se encontra financeiramente incapacitado, e assim cada qual será responsável pela sua parte.115 Dessa forma, há sim relação entre um devedor e outro e há sim interesse jurídico no chamamento dos demais avós e parentes da mesma classe para integrar a lide, uma vez que poderá reduzir o valor prestado pelo réu, bem como oportunizarse-á defesa ao chamado, que poderá, desde já ser responsabilizado. E assim tem decidido a mais atual jurisprudência: APELAÇÃO CÍVEL. FIXAÇÃO DE ALIMENTOS. Impõe-se o chamamento à lide os demais irmãos dos demandados, na forma autorizada expressamente pelo art. 1.698 do Código Civil. Não se trata de solidariedade (que não existe) e nem de litisconsórcio necessário, mas, da formação de um litisconsórcio facultativo ulterior simples, forma especial de intervenção de terceiro, criada no atual Código Civil como meio de tornar mais efetiva a prestação jurisdicional em situações como esta, em que, embora não havendo solidariedade, há uma obrigação conjunta que deve ser rateada entre os co-obrigados, na proporção de suas possibilidades. Desse modo, havendo, no caso, pedido por parte daqueles irmãos que foram demandados, impõe-se seja acolhido, a fim de chamar à lide, na forma do art. 1.698 do CC, os demais. POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO AO AGRAVO RETIDO, PREJUDICADA A APELAÇÃO, VENCIDO O DES. RELATOR. (TJRS, Apelação Cível nº 70043660034, 8ª Câmara Cível, Rel. Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 06/10/2011). Ademais, não se pode olvidar que o direito de alimentos está intimamente ligado, na prática, às relações familiares. De fato, é pouco provável que uma mãe, ao necessitar de auxílio para sustentar os filhos, em decorrência da ausência do pai, vá procurar receber alimentos tanto dos avós paternos quanto dos avós maternos. O que se vê é que, ao ser abandonada, a mãe procura responsabilizar o marido pela sua ajuda e, na falta dele, dos pais dele. Entretanto, não ousaria demandar em juízo os próprios pais, mas que devem na mesma proporção dos demais avós, como bem já aduziu o STJ: CIVIL. ALIMENTOS. RESPONSABILIDADE ALIMENTOS PROVISÓRIOS. 115 DOS AVÓS. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, vol. 5: direito de família. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 616-618. 59 TERMO FINAL. TRÂNSITO EM JULGADO.[...] 2. A responsabilidade dos avós quantos aos alimentos é complementar e deve ser diluída entre todos eles (paternos e maternos). 3. Recurso especial conhecido e parcialmente provido para estabelecer que, até o trânsito em julgado, o pensionamento deverá ser no valor estabelecido provisoriamente, reduzido em 50% (cinqüenta por cento) o quantitativo estabelecido em definitivo. (STJ, REsp 401484/PB, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 4ª Turma, julgado em 07/10/2003). E no mesmo sentido os tribunais de origem: ALIMENTOS – Ação movida contra os avós paternos – Chamamento à lide dos avós maternos – Admissibilidade – Art. 1.698 do CC – Recurso Provido. (TJSP, Agravo de Instrumento nº 011568925.2005.8.26.0000, 1ª Câmara de Direito Privado, Rel. De Santi Ribeiro, julgado em 05/10/2006). Dessa forma, entende-se que se trata de forma de intervenção de terceiros sui generis, em que há litisconsórcio passivo facultativo ulterior simples, a ser promovido pelo réu da ação de alimentos contra os demais co-devedores, a fim de que se possa efetuar o devido rateio proporcional da pensão alimentícia. 60 CONCLUSÃO A figura dos alimentos tem seu suporte fundamental no principio constitucional da dignidade da pessoa humana e é inegável o grande avanço que este instituto propicia em direção a uma sociedade mais harmônica e igualitária. Esta forma de tornar um dever meramente moral em um dever legal garante que ninguém seja esquecido no abandono, sem que possa socorrer-se de seus pais e parentes. Entretanto, ainda que a sua existência remonte a eras passadas, e que o ordenamento brasileiro o tenha constituído desde o século XVIII, até hoje não recebeu a devida atenção e regularização. Com a elaboração do novo Código Civil, desperdiçou-se uma oportunidade única em esclarecer e melhor regular os alimentos, diferenciando-os entre as suas diferentes causas dentro da família: casamento, união estável, filiação e parentesco. Pelo contrário, manteve-se o mesmo padrão construído há quase um século e transtornado por novas legislações e entendimentos jurisprudenciais. Quando pôde, o legislador fez questão de colocar todos os familiares (cônjuges, companheiros, pais e parentes) no mesmo dispositivo, como se suas obrigações fossem as mesmas. E nesse contexto, os avós foram esquecidos. A lei não procurou explicitar qual a sua responsabilidade perante os netos e não atentou ao fato de que os avós também se encontram em situação precária. Pela literalidade do código, passou-se toda a responsabilidade dos pais aos ascendentes, como se pais fossem! Esqueceu-se que aqueles já criaram os seus filhos, contribuíram para o seu sustento e, no mais das vezes, também prestaram assistência aos próprios netos. Injustamente, o legislador, de uma forma lacônica, obrigou os avós a garantirem o padrão social dos netos. Ignorou o fato de que estes ainda tem toda uma vida pela frente para construírem sua própria riqueza, ao mesmo tempo em que os avós, no final de suas vidas, teriam de sacrificar os seus parcos ganhos. Agora, quando poderiam ter um pouco mais de conforto ou, ainda, realizarem os sonhos nutridos durante toda uma vida, e que foram impedidos pela criação dos filhos e pelo trabalho, são sumariamente obrigados a contribuir com o padrão de vida dos netos. 61 Coube à jurisprudência e à doutrina melhor regular aquilo que o legislador foi omisso. Não se põe em dúvida o dever moral e legal dos avós em garantir que seus descendentes não sejam largados na miséria. Contudo, entre isso e dispor de grande parte de sua renda para garantir o conforto alheio há uma grande diferença. Os tribunais, no entanto, rumaram em um sentido mais justo e a doutrina passou a militar em favor da reforma legislativa. Ainda assim, a matéria ainda levanta entendimentos contrários, em que se procura repassar a responsabilidade dos pais aos avós, como na teoria de divisão matemática ou nos inúmeros precedentes que ignoram, por não haver taxatividade na lei, a subsidiariedade da obrigação avoenga. A confusão legislativa, aliás, é muito bem demonstrada na intervenção de terceiros adicionada aos alimentos no último Código Civil. Não houve qualquer preocupação com o sentido da norma ou de sua utilidade. Ainda que seja possível sua aplicação hoje, as diferentes visões quanto ao instituto processual demonstram claramente a ausência de coerência da norma. Felizmente, hoje, a corrente que defende a substituição dos pais pelos avós quanto aos alimentos se trata de uma minoria, o que, no entanto, não afasta a necessidade de uma melhor disposição legal acerca dos diferentes tipo obrigações e das suas reais consequências. 62 REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 18/10/2011. _______. Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil de 1916. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 18/10/2011. _______. Lei 5.478, de 25 de julho de 1968. Lei de Alimentos. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 18/10/2011. _______. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Disponível em <www.planalto.gov.br>. Acesso em: 18/10/2011. CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. COSTA, Maria Aracy Menezes da. Os limites da obrigação alimentar dos avós. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. 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