Sobre espaços, turistas e homelands imaginadas
Ema Pires
Universidade de Evora
Resumo: Este texto explora relações entre espaços, identidades e processos turísticos.
Baseado em trabalho de campo antropológico (realizado em Portugal, Malásia e Sin
gapura), aborda-se o processo de construção social do espaço do bairro português de
Malaca (1929-2009). Discute-se o processo de apropriação social do bairro por várias
categorias de pessoas e argumenta-se que, desde a sua produção colonial à sua reapro
priação contemporânea, coexiste uma retórica de nostalgia empacotada subjacente
aos usos do espaço.
Palavras-chave: Malaca; euroasiáticos; espaço; emigração; turismo.
Abstract: This text explores relationships between spaces, identities and tourism
process. Based in anthropological fieldwork (conducted in Portugal, Malaysia and
Singapore), it adresses the process of social construction of the “Portuguese Settle
ment” of Melaka (1929-2009). Ir discusses the process of social appropriation of the
settlement by several categories of people and it argues that, since its production
until its contemporary (re)appropriation, coexists a rethorical packaged nostalgia
underlying the uses of space.
Keywords: Melalca; Eurasians; space; emigration; tourism.
546
Ema
Espaços,
Pires
Introdução
O presente texto insere-se tematicamente no campo da Antropologia social e
cultural. E motivado por um interesse teórico em explorar a relação entre a
produção de identidades sociais e a construção e apropriação social de espa
ços, com enfoque empírico na análise de um espaço residencial localizado na
cidade de Malaca (Malásia).
O Bairro Português de Malaca é a designação em língua portuguesa de
um local que é quotidianamente designado na Malásia como Portuguese Set
tlement (em língua inglesa), Padri sa Chang (em língua kristang), e Kainpung
Portugis (em língua malaia). Construído no final da década de 1920 para alojar
membros de uma população carenciada de euroasiáticos portugueses (na se
quência de uma proposta de dois missionários europeus), o Bairro Português
é habitado desde a década de 1930. Neste espaço (hoje inscrito na malha sub
urbana) da cidade de Malaca, “contam-se sete ruas, um convento da Ordem
Canossiana, um palco para ocasiões festivas, uma praça erigida em 1984 com
o apoio do governo português, um sino doado no mesmo ano pela Fundação
Calouste Gulberikian, uma escola primária, três pequenas lojas, sete restau
rantes e uma fila de stalls (‘vendas’) à beira-mar dedicados à confecção de
pequenas refeições” (O’NEILL 1997: 68). O processo turístico no bairro tem
vindo a efectivar-se de um modo contínuo e gradual. Com efeito, segundo
O’Neill, o espaço “tem-se tornado, em anos recentes, um centro nevrálgico
da indóstria turística de Malaca, a ponto de constar em praticamente todas as
brochuras e catálogos turísticos da Malásia como confirmação viva da natu
reza pluriétnica e multicultural do país. Estes textos incluem invariavelmen
te uma fotografia de um rapaz e rapariga portugueses de Malaca a dançar em
estilo ‘folclórico’. Estas imagens emblemáticas são reconhecidas e interiori
zadas pelos próprios Kristang” (O’NEILL 1997: 68). Este é o espaço residencial
dos portugueses de Malaca, um grupo de euroasiáticos que tem vindo a ser
objecto de análise por parte de vários autores, situados tematicamente na
Antropologia (Brian O’Neill), Etnomusicologia (Margaret Sarkissian) e Lin
guística (Isabel Tomás e Alan Baxter). O grupo tem também sido analisado
em publicações de divulgação cultural e científica por autores pertencentes ao
grupo (Gerard Fernandis, Bernard St Maria, Joseph St Maria e Joan Mar
beck).
Especificamente, o enfoque desta pesquisa é a análise da produção e
apropriação de espaços contemporâneos. O interesse central é compreender
os processos de investimento na classificação e na indexação de espaços como
‘turísticos’, bem como, explorar as modalidades de apreensão dessas etiqueta
gens pelas pessoas. Em particular, através do método etnográfico, visa-se
contribuir para a compreensão dos usos e apropriações que os portugueses de
Malaca residentes fora da Malásia fazem do espaço residencial do Bairro Por
tuguês de Malaca.
turistas
e
homelands
imaginadas
547
Em articulação com o problema de como se constroem processualmen
te espaços, encontra-se a compreensão de como estes são classificados através
de agenciamentos vários, ao longo do tempo. Compreender o processo de
construção social do Bairro Português de Malaca, no período de cerca de se
tenta anos decorrido do início da sua edificação e apropriação social, está fora
do enquadramento do presente texto, mas foi por nós realizado num outro
lugar (PIRES 2012). Na actualidade, coexistem no espaço várias etiquetagens,
produzidas por várias categorias de pessoas. Uma das modalidades recentes
da sua etiquetagem espacial é a classificação como local de interesse turístico.
Contudo, o turismo é uma “camada” mais recente de um processo mais recu
ado de classificação do espaço como gueto colonial, ruína imperial (STOLER
zoo8).
O presente texto está organizado em três secções: na primeira enqua
dra-se metodologicamente a análise; a secção central, intitulada “Pessoas no
Espaço”, caracteriza o processo de apropriação do espaço pelas pessoas em
análise; finalmente, na terceira secção, realiza-se uma análise conclusiva, em
tom de balanço em aberto.
Enquadramento metodológico
A presente investigação está ancorada em pesquisa etnográfica. O período de
observação participante em Malaca decorreu ao longo de onze meses (em três
períodos, cronologicamente decorrentes entre Agosto de zoo6 e Abril de
2009). O universo a focar etnograficamente neste estudo incluiu o conjunto
da população residente no Bairro Português de Malaca, assim como o conjun
to de pessoas que visitam o espaço. A entrevista qualitativa a informantes
qualificados constituiu o segundo instrumento metodológico utilizado (en
trevistas não estruturadas e semiestruturadas). Este instrumento de recolha
de dados relacionou-se intimamente com a forma como o universo de pesqui
sa foi decomposto; do conjunto da população residente no bairro cerca de
mil pessoas recorreu-se a uma forma de amostragem não probabilística. A
investigação bibliográfico-documental, terceiro pilar metodológico deste tra
balho, foi também fundamental na prossecução do projecto. Keith Punch
anota que uma diversidade de fontes documentais “might be used in various
ways in social research. Some studies might depend entirely on documentary
data, with such data [being] the focus in their own right” (PUNcH 1998: 590).
Esta ferramenta de investigação foi imprescindível na contextualização teóri
ca, empírica e processual do universo de estudo. Por outro lado, o uso de ou
tras fontes documentais e a análise de imagens (fotografias) foram igualmen
te relevantes. Corrobora-se aqui, como refere Sarah Pink, que as imagens
“may not be the main research method or topic, but through their relation to
other sensory, material and discursive elements of the research images and
visual knowledge will become of interest” (PINK 2001: 5). Na análise qualita
tiva dos resultados obtidos durante o trabalho de campo (observação directa e
—
—
148
Ema
Espaços,
Pires
participante), emergiram as dimensões etnográfica e interpretativa, com uso
combinado de procedimentos de análise temática e categorial (MARSHALL e
ROSSMAN
1999).
Assume-se a construção de Malaca e do Settiement “não como terrenos
per si mas como cenários onde se desenvolvem identidades historicamente
situadas” (SILVA 1997: 151). Esta autora, parafraseando Frederik Barth, asso
cia-se aos autores que tomam a “sociedade não como coisa, mas como o con
texto para a acção e seus resultados, e o terreno não como localidade mas co
mo o campo de relações com pertinência para as pessoas envolvidas no estu
do” (SILVA 1997: 151). Com isso, a produção do lugar em que a observação se
alicerçou está espacializada em Ujong Pasir, Malaca, mas estende-se numa
rede de conexões a vários outros espaços físicos situados em Malaca, Singa
pura e Portugal. Tendo sido realizada recolha de informação nestes três lo
cais, esta é uma etnografia multi-localizada. Situado em Malaca, o contexto
empírico de observação etnográfica transps as fronteiras espaciais da cidade
e do país. A construção da rede de informantes realizou-se em bola de neve,
através de uma rede de pessoas hoje deslocalizadas face ao contexto empírico
de observação (o Bairro Português de Malaca).
Quando em Malaca, a escrita de notas de campo foi um processo estru
turante do quotidiano. A maioria das notas de campo foi redigida em portu
guês; o texto, fazendo eco do contexto linguístico falado no bairro, integra
ainda alguns segmentos de frase em língua inglesa, em kristang e em língua
malaia.
Em articulação com o trabalho de campo em Malaca, a pesquisa docu
mental foi realizada em instituições públicas e em arquivos privados (locali
zados em Portugal, na Malásia e em Singapura)’. Finalmente, foi também
realizada, ainda que de um modo situado e exploratório, pesquisa em contex
tos de espaço virtual (suportes hipermedia/ hipertexto) em biogs e sítios web.
Para este fim, foram usados procedimentos metodológicos de etnografia vir
tual
(HINE
2000).
Pessoas no espaço
O Portuguese Settiement, o espaço empírico em análise ao longo deste trabalho,
é hoje classificado como ‘turístico’. Argumentarei aqui, em articulação crítica
face a essa classificação turística, que os portugueses de Malaca reclassificam
quotidianamente o seu “lugar” espacial e identitariamente. No contexto
empírico em análise, os limites das categorias “turista”, “visitante” e “resi
dente” são porosos, bocelados. Pressupõem nuances matizadas, imprecisas,
face a outras situações de desempenho de um papel social de fronteiras estan
ques. No plano observacional e analítico, a categoria turista está ancorada
num enquadramento mais situacional do que outro. O papel social de turista
pode ser fugaz, volátil. Na micro-esfera desta empina, os “turistas” são uma
categoria relativamente vazia. A etnografia permite, não obstante, preencher
—
turistas
e
homelands
imaginadas
149
esse vazio através de observação concreta das práticas espaciais de várias
categorias de pessoas. Para situar os limites da categoria, usam-se as designa
ções émicas, usadas pelos residentes para caracterizar quem são os principais
frequentadores do espaço: kristang, chineses (dos Estreitos, de Singapura e da
China), singapurenses, Malzan-peopie (comensais), K. L. peopie (pessoas da
2 e ainda os outros (mediadores
capital, Kuala Lumpur), matsaflehs (brancos)
turísticos, residentes, políticos locais e estaduais). Estas categorizações têm
também uma etiquetagem marcadamente situacionaP.
O Sea Terrace
Oswald Goonting é um sexagenário português de Malaca, residente na Rua
Sequeira. E casado com Catherine Fernandez e não tem filhos. Começou a
ganhar a vida como pescador (marcas que o seu rosto tisnado pelo sol deixa
ver) e depois como jardineiro (na escola do Settiement) antes de se dedicar à
restauração a tempo inteiro. Em 1977 começou a trabalhar como ajudante no
primeiro restaurante que existiu no Settiement e, em 1991, assumiu o desafio
de se tornar concessionário do espaço, situação que acumulava com o seu
trabalho de jardineiro. Oswald fez negócio com o anterior proprietário da
concessão (que lha vendeu por seis mil ringgits), pediu emprestado dinheiro a
um amigo chinês e lançou-se ao trabalho.
Entre 1991 e 1995 o negócio foi pouco rentável, mas começou a melhorar
desde então e até ao presente. Actualmente trabalham consigo treze pessoas a
tempo inteiro, entre as quais a esposa e dois dos cunhados, um dos quais,
Kenny, é hoje seu sócio no negócio, sendo a pessoa a quem Oswald pensa
entregar o restaurante quando se reformar. Oswald e a mulher, Catherine,
cozinham. Kenny gere a zona das mesas dos clientes e as restantes pessoas
servem à mesa ou ajudam na cozinha ou na caixa de pagamentos. Oswald
contratou em 2009 um terceiro cozinheiro, chinês, que prepara refeições de
noodies (massas). A excepção deste cozinheiro, todos são euroasiáticos resi
dentes no Settiement.
O seu restaurante tem o nome de Sea Terrace e está localizado no nú
mero i da rua dos staiis no Settiement. O espaço não vende especificamente
“comida portuguesa” e, na verdade, é sobretudo conhecido pela seafood (refei
ções de marisco), O principal prato é o caranguejo com pimenta (pepper crab).
Segundo Oswald:
my costumers, che most important thing they come is for crab, the pepper
crab. If there’s no crab, they won’t eat anything, they’ll go back. (...) one night
1 can sell o kgs of crab. Without crab 1 cannot survive, that is the main dish:
crab, fish and prawns. This is our most expensive dish. If io persons come and
eat crab, fish and prawns, it will cost you 200 ringgits.
Devido à quantidade de caranguejos que compra, Oswald tem três for
necedores diferentes, todos empresários de Kuala Lumpur; diz que, “Here in
Malacca we don’t have the main suppliers, ail crabs come from Kuala Lum
150
Ema
Pires
pur. Mostly these crabs come from Sri Lanka, Indonesia, India. They fly to
the airport...”
Em contraponto com os seus caranguejos, Oswald, referindo-se aos cli
entes, anota que “mostly are locais, and that’s why they know, always they
come and eat”. Os clientes do seu Sea Terrace são regulares, na sua maioria, e
originários da Malásia e de Singapura:
Mosciy are Chinese, [and also] Singaporeans. They are very good regulars.
Whenever they are in Malacca they will drop down. Especialiy Singaporeans,
because my price compared to ali the others, is a totally different price. Ali
4
my prices are cheaper by 50 cencs to one ringgit, even these chicken wings
1991
1
was
selling
a
it.
From
maintain
[...]. 1 don’t increase the price 1 still
fried chicken wing 1,50 ringgits, now it’s 2007 and 1 maintain it. The supplier
asked me to increase the price but 1 did not... after ali 1 still make money. To
me ali rny dreams, ali 1 wanted, everything carne true. 1 wanted to be a boss,
now I’m the boss.
Talvez por isso o empresário queira manter o seu negócio independen
te de acordos com agentes de viagens, porque se recusa a aumentar o preço
das refeições que permitiriam a outros ganharem comissões, que ele julga
serem injustas e que encarecerem o preço final a pagar pelos clientes:
you come, you sit, you pay the bili. No such thing as marking up, 1 don’t
agree with that. ... Everything he [o agente turístico] wants to mark up, even
the food, 1 said: no way. 1 do business real honestly. Like the tourists, when
they come, two persons can have two small beers, it will cost them 15 ringgits,
you can take a big bottle, you can still share, it will cost you 13 ringgits. They
have big bottles, instead of having two little ones. If you ask me to mark up,
sorry, there’s no way...
Para Oswald, a sazonalidade turística não é um problema, porque diz
ter urna clientela constante que frequenta regularmente o seu stall: “for me 1
don’t say when the best time is. Mine is every month, every day the sarne. 1
can maintain, it comes to Saturdays and Sundays it’s worse, more business”.
O dia de folga de Oswald Goonting é a terça-feira. Nesse dia, fica em casa a
jardinar no seu Jzintal e ao fim do dia vai à praça portuguesa beber com os
amigos. Costuma consumir uma quantia razoável de comida e bebida nos
restaurantes da praça e ficar a jogar as cartas até ao anoitecer. E o seu prazer
pessoal e também uma maneira de ajudar os colegas dos restaurantes da pra
ça. Entre os factores de sucesso do espaço de Oswald Goonting parece residir
a circunstância de o seu restaurante estar instalado na orla costeira. Em con
traponto, os outros espaços de restauração localizados na praça portuguesa,
estão quotidianamente vazios.
Espaços,
turistas
e
hornelands
imaginaaas
151
Os primos de Singapura
Philomena Nonis é uma sexagenária portuguesa de Malaca, residente em
Singapura. O seu pai era um migrante Bengali (da India), e a sua mãe era
euroasiática portuguesa. Philomena migrou para Singapura, com vinte e pou
cos anos, e ali conheceu o seu futuro marido, um chinês de dialecto Hokkien.
Tem dois filhos solteiros e adquiriu entretanto a nacionalidade de Singapura.
Apesar disso, a sua homeland
6 imaginada ainda permanece na Malásia. Várias
vezes no ano, Phil viaja para Malaca com o marido. Usam os transportes
públicos para se movimentar entre os dois países. Desde a área residencial
onde vivem (em Bedoll Reservoir), o casal vai de autocarro urbano para o cen
tro de Singapura. Na estação central de camionagem tomam depois o auto
carro que atravessará a fronteira entre os dois países e os levará até Malaca,
passadas quatro horas de viagem.
Em Malaca, Phil costuma ficar alojada em casa dos seus primos, locali
zada na rua principal do Settlement. Esta casa está na sua família há duas ge
rações. Philomena Nonis regressa a Malaca para restabelecer a ligação com as
suas raízes. Fica na casa dos primos alguns dias, nunca mais de uma semana.
Durante as manhãs, ajuda a prima a cozinhar, na cozinha das traseiras (hin
tal). Depois de almoço, costuma ir à cidade passear. Os seus itinerários inclu
em ir às compras (nos mercados nocturnos, nas ruas do centro da cidade e
nos novos centros comerciais). Um excerto, retirado do diário de campo,
anota isto:
Philomena e o marido saíram para a cidade, de bus, e regressaram depois das 3
da tarde. Foram aos centros comerciais. Almoçaram um hamburguer no Car
refour e comentaram que é muito mais barato [almoçar] ali do que em Singa
pura ( dólares malaios, a de Singapura). Estiveram uma hora à espera do au
tocarro para regressar ao bairro. Comentaram desagradados, acerca da inefici
ência dos transportes públicos locais, quando comparados com Singapura (No
tas de campo, Sábado, 14 de Fevereiro de 2009).
Fazer compras em Malaca é valorizado por Philomena como uma
“truiy Malaccan experience”, onde encontra “cheap items” para comprar com
os seus dólares de Singapura. Uma outra actividade essencial que realiza nas
estadias em Malaca é ir comer fora (“going out for makan”). Phil gosta tam
bém muito de ficar em casa, no Settlement, à conversa com os seus familiares
do kampung (aldeia). Philomena Nonis vai a Malaca durante as épocas festi
vas (S. Pedro, Christmas, weddings) e sempre que tem férias em Singapura. O
seu marido apoia-a bastante, incentivando-a nas viagens à sua homeland e a
retomar as suas “Eurasian roots, and also, to pass these ‘heritage’ to their
children” (também ele e os seus irmãos estão a renovar a casa da família na
mainland China).
152
Ema
Pires
Veronica, a filha mais velha do casal, raramente visita Malaca. Esta jo
vem mulher é graduada em Turismo, fala várias línguas e trabalha como
“service manager” num hotel (propriedade do Sultão de Brunei e localizado
no centro de Singapura). Veronica adquiriu recentemente o seu próprio apar
tamento, localizado a dois “blocks” de distância da casa dos pais. Poupou
dinheiro e contratou um arquitecto de interiores para decorar a sua casa nova.
E neste espaço que ela organiza o seu trabalho em part-time: workshops de
culinária euroasiática (“Eurasian Food”) para pequenos grupos de pessoas
(que fazem marcações prévias). O cartão pessoal (“business card”) da filha de
Phil tem o título “Veronica’s Cozinha”. Veronica aprende com a mãe as re
ceitas que ensina aos seus “guests” e ambas cozinham e entretêm as pessoas.
Na sua maioria, os clientes que frequentam a cozinha da Veronica são chine
ses de Singapura e euroasiáticos.
Veronica costumava ir a Malaca na infância e adolescância e, mais ra
ramente, na idade adulta. Evocando a sua mais recente estadia na Malásia,
7 comigo que o Settlement lhe parece agora um rojalz
comentou
, metáfora que
8
expressa um espaço desordenado e confuso (devido a ter sido tomada mais
terra ao mar e ter sido construído entretanto um hotel, espaço que lhe desa
grada). Por isso, afirma Veronica, aquele é hoje um lugar menos bonito e
também menos atractivo enquanto espaço de turismo.
Para a sua mãe, a estética do espaço do bairro é menos relevante do que
a conexão que a liga a ele. Quando questionada sobre isso (sobre o que a liga
ao espaço), Philomena expressa os laços afectivos que a ligam a Malaca. Das
suas palavras, depreende-se que na Malásia fica a sua homeland, mas que Sin
gapura é a sua nation. Voltar à terra de origem (e em concreto, regressar ao
Settlement) é um exercício enleado em lembranças do passado (por si guarda
das e valorizadas). Mas, ao mesmo tempo, Phil enfatiza a sua boa vida do
presente (em Singapura), quando comparada com as lutas do passado (“stru
ggles of past life”), desconstruindo quaisquer laivos de nostalgia acerca dos
tempos pretéritos.
Em Singapura, nas horas vagas, Philomena e o marido cultivam com
devoção um canteiro com flores e vegetais, junto ao prédio alto do seu apar
tamento. Ela refere, em tom comparativo, que em Malaca as pessoas tm
mais terra mas não querem cultivar vegetais. As suas “Eurasian roots” ligamna àquele espaço, que é retratado como uma homeland. A sua actual nacionali
dade e experiáncias de vida desligam-na de Malaca. As viagens de Phil entre
os dois espaços criam um espaço ambíguo (um espaço “in-between”) entre a
rapariga que ela foi (no passado remoto) e a mulher em que viria a tornar-se.
No presente, ela tem algumas reservas sobre o país onde nasceu, por si descri
to como “corrupto” e “desorganizado”, se tomarmos como comparação o seu
actual país, Singapura.
Ela e toda a sua família são membros activos da Associação de Euroa
siáticos de Singapura. Depois que se aposentou, Phil preenche ali muito do
seu tempo livre, em acções de caridade com outras “Eurasian ladies” de Sin
Espaços,
turistas
e
homelands
imaginadas
153
gapura. Depois das suas viagens a Malaca, leva alguns presentes para as ami
gas de Singapura. Por vezes, são as suas amigas que lhe encomendam “coisas
de Malaca” (entre as quais, alimentos semelhantes aos pichies de manga que
se vendem na loja de Sharon, os quais são produzidos em indústrias caseiras
do Settlement).
Philomena Nonis emula as coisas boas do país da sua infância, mas ao
. Ela acres
9
mesmo tempo religa-se ao seu estatuto prçsente de singapurense
centa que este último local é melhor para viver, devido ao nível de vida e ao
facto de ser mais organizado.
As suas viagens a Malaca e as estadias na casa dos primos são maneiras
práticas de se religar às suas raízes, através das actividades quotidianas que
realiza com os parentes de Malaca (ir passear, às compras, ficar em casa, co
zinhar). Ela diz que precisa de voltar ali para fazer essas coisas. E, ao mesmo
tempo, fazendo-as, reconfirma que Singapura é o seu lugar do presente, a sua
“nação”. Para confirmar essa pertença do presente, Phil precisa de se religar à
homeland de Malaca. De um modo ambivalente, ainda que aparentemente
paradoxal, Philomena Nonis realiza, nas suas viagens periódicas a Ujong
Pasir, uma peregrinação secular à homeland sacralizada de Malaca. E através
do contacto com a viliage life de Malaca, recicla a sua Eurasian-ness reajustada
com a experiência do quotidiano no Settlement (“to a daily basis”). Finalmen
te, no regresso a Singapura, Phillomena Nonis leva na bagagem objectos va
riados, mas também (e talvez, acima de tudo) um acrescido capital simbólico
para exibir entre as suas amigas euroasiáticas residentes em Singapura’°.
As kristang da Austrália e as suas casas de férias
Outras pessoas que conheci durante o trabalho de campo são visitantes kris
tang com planos para regressarem definitivamente a Malaca. Uma delas é
Maureen Shepherdson May (residente em Benalla, Victoria, Austrália).
Maureen nasceu em Malaca em 1946 e cresceu no Settlement com os irmãos e
os pais (o seu pai foi regedor durante o período da ocupação japonesa). Com o
seu actual marido, o australiano lan May, Maureen regressa anualmente à
casa da sua família, na Rua D’Aranjo. Vem geralmente em Agosto, ou em
Dezembro, gozar as férias da sua actividade profissional (a enfermagem).
Esta visita é uma pausa para si essencial no calendário anual e um tempo
precioso em que revê os familiares residentes na cidade (irmãos, filhas e ne
tos). Conhecemo-nos em zoo6, altura em que reuniu toda a família no lzintal
da casa, para a celebração do seu sexagésimo aniversário. Reencontrámo-nos
em zoo7, zoo8 e 2009. Até zoo8, Maureen vinha passar férias à casa da família,
onde morou a sua mãe viúva e que, durante décadas, acolheu os filhos e netos
residentes e visitantes. A casa da família teve como último residente o seu
irmão mais novo (Christie Shepherdson), falecido em 2009.
Entretanto, em 2008, Maureen e lan compraram um bungalow na zona
costeira de Klebang Besar (uma zona de praias localizada nos arredores norte
154
Ema
Pires
da cidade de Malaca). O lugar aonde pensa regressar um dia, Malaca, é agora
destino anual de férias e segunda residência do casal sexagenário. Maureen
fala do Settlement como a sua homeland. Parte do seu quotidiano é passada no
hintal da casa da mãe (sentada nos sofás de bambu, almofadados e estampa
dos em tons florais). As décadas vividas na cidade de Victoria (Austrália)
conferiram à sua pronúncia um acentuado sotaque australiano. O espaço ac
tual de Ujong Pasir é descrito por ela como “dirty”, “messy”, em contraponto
com o espaço que se habituou a frequentar no passado. Segundo ela, o turis
mo recente e a construção do hotel, gerido por malaios, introduziu grandes
mudanças no local, pois, segundo Maureen, o Settlement deixou de ser “ape
nas para portugueses”; agora outras “races” estão também ali quotidianamen
te. Maureen acalentou em vão o sonho de comprar a casa da família. Por de
sacordo entre os restantes herdeiros, a casa de família seria colocada para
venda, após a morte do seu irmão Christie.
Há uma “nostalgia estrutural” (HERZFELD 2005: 147-182) nas entreli
nhas das palavras de Maureen, para quem o Settlerrzent do passado era um
lugar ordenado e quase paradisíaco, em contraponto com a desordem do mo
mento presente.
Lucia Fernandez Marsh tem uma leitura mais optimista do espaço de
Ujong Pasir. Lucia, filha de Elsie e de Sunny Fernandez, nasceu na Rua Sequeira e cresceu no Settlenient ao lado dos seus nove irmãos. Na juventude, foi
dançarina de “danças portuguesas”. E casada com Celestine Marsh, também
ele originário de Malaca. Lucia e Celestine são emigrantes na ilha de Chris
tmas Island (Austrália). O casal regressa todos os natais ao Settlement, onde
Lúcia é hoje proprietária da casa do seu pai, que adquiriu há alguns anos, após
um acordo pacífico entre todos os irmãos. A casa da família, a que chama
“Papa’s House”, continua, apesar disso, a ser o centro do clã Fernandez e o
local de residência do pai. Hoje, as filhas residentes na cidade cuidam deste
ancião viúvo, num sistema voluntário rotativo entre todas. Este facto torna o
espaço doméstico o centro simbólico e quotidiano da vida da família alargada
dos Fernandez.
O espaço foi remodelado por Lucia após a aquisição da casa. Investindo
parte das suas poupanças, recorreu aos serviços de um arquitecto para embe
lezar o espaço doméstico. O interior da casa foi remodelado em tons de ama
relo e azul e as paredes estão povoadas de fotografias dos familiares presentes
e ausentes. No exterior (hintal), o jardim foi embelezado com mais espécies
de plantas, com uma pérgula, uma fonte, uma estátua de Nossa Senhora
(“Our Lady”), e um parlatório, elevado face ao solo (seguindo os padrões de
arquitectura tradicional malaia), para melhor captar a brisa da tarde. Estes
elementos arquitectónicos novos do hintal seguem as tonalidades azuis do
interior da casa.
Lucia e Celestine costumam ficar algumas semanas em Malaca e tra
zem presentes da Austrália para toda a família (em particular, livros de recei
tas, enfeites de natal e outros objectos). Para Lucia, Malaca e a casa do pai são
Espaços,
turistas
e
homelands
imaginadas
155
o epicentro de uma homeland a que retorna sem cessar, cumprindo um ritual
pessoal e familiar, que dá sentido à sua vida de emigrante e marca o tempo
forte do seu calendário anual, O casal espera regressar de vez à cidade dentro
de alguns anos e passar os anos de velhice entre os irmãos e sobrinhos netos,
a ver passar os dias.
Lucia e Celestine são um exemplo de kristang que têm do Settlement a
imagem de um lugar idealizado e romanceado” da vida na “village” de Ujong
Pasir.
Uma imagem comparável da vida na cidade e no Settlement é visível
. Esta resi
2
noutros kristang entrevistados, por exemplo, Jaqueline de Silva’
para
Singapura
com o
dente nasceu em Malaca (em Praya Lane) e migrou
marido nos anos 90. Regressou de Singapura em 2007 e passou, desde então, a
residir em Malaca. Gosta mais desta cidade, que diz ser mais barato para
educar os filhos. Deixou a casa de Singapura arrendada, onde espera voltar
um dia, quando os três filhos forem para a universidade. Diz que em Singa
pura as “tradições já estão mais modernizadas” do que em Malaca, onde ain
da se praticam “à maneira tradicional”: em Singapura, afirma Jaqueline, “as
pessoas já estão a deixar de ter os altares na sala de entrada, e estão a recuá
los para os quartos”. Segundo Jaqueline, a Associação de Eurasians de Singa
pura está agora a ensinar kristang, para que não se perca a língua. Para Jaque
une, em Malaca, as tradições kristang continuam vivas, devido à concentra
ção de portugueses e ao ritmo mais lento (“slower pace”) desta cidade.
Outros contactos durante o trabalho de campo, com outros visitantes
euroasiáticos, comprovam como o regresso à homeland de Malaca é um ritual
periódico. Entre elas, salientam-se as interacções tidas com Marjorie Lambert
(residente em Coogee, Western Austrália), com Jenny Pearce (vinda de
Mount Gambier, South Austrália), ou com Sally Lay (residente em Adding
ton, Christchurch, na Nova Zelândia). Estas mulheres, que visitaram o Set
tlement entre Julho e Setembro de 2007, não pensam voltar para Malaca “for
good” (definitivamente). Porém, a cidade é o seu destino de férias de família
e a homeland a que regressam periodicamente.
Em síntese, para todas estas pessoas, Malaca e o Settlement são uma ho
meland crucial, um ponto de referência, de acolhimento, uma paragem impor
tante da sua vida de euroasiáticas. Para a maioria destas pessoas, Malaca e o
Settlement são representados como um lugar bucólico, romântico.
Após apresentar algumas situações individuais de kristang em viagens
de turismo para Malaca, ilustra-se agora o argumento com o exemplo de um
encontro de família, organizado por portugueses de Malaca, retirado das no
tas de campo.
O Sequeira Family Meeting
Em 19 de Dezembro de 2008, no ensaio do coro do Settlement, conheci Gerry
Sequeira’ homem de meia-idade, magro e de bigode fino, que tem no coro a
,
3
x6
Ema
Espaços,
Pires
posição de tenor. Após o ensaio, continuámos a conversa, enquanto nos des
locávamos para a zona interior da praça portuguesa. Gerry disse-me que no
dia 28 de Dezembro de zoo8, em sua casa, iria organizar um encontro da sua
família “Sequeira Family Meeting” com a presença de noventa pessoas,
algumas vindas da Austrália e de Singapura. Gerry disse-me ainda que os
Sequeiras estão a fazer a árvore genealógica e interessados em preservar a sua
cultura, ao contrário de outras famílias, que, segundo ele, “mingle with other
people” e se casam com pessoas de outras “races”.
Um primo de Gerry, residente na Austrália, compilou uma apresenta
ção (em formato de DVD) onde a história da família é contada. Este docu
mento foi pensado para ser oferecido como presente na festa de Malaca. Com
banda sonora de música kristang de Malaca, apresenta-se nele um mapa de
Portugal onde, num lugar incerto do mapa, é identificada a localidade de ori
gem do “clã”. A mobilidade mental entre o longínquo país de origem da fa
mília e a Malásia, é efectivada pela acção do fundador ancestral imaginado
pelo grupo familiar, Diogo Lopes de Sequeira, navegador portuguâs do século
—
—
XVI.
Os Sequeiras parentes de Gerry migraram entretanto para vários ou
tros continentes (Oceânia, Europa, América). Os seus rostos estão represen
tados no DVD em fragmentos de clips de vídeo e em fotografias de família.
Algumas destas pessoas, apresentadas nas fotografias, são os progenitores dos
convivas presentes na festa de Malaca. Estes progenitores, apesar de na sua
maioria terem já falecido, tornam-se ainda assim agregadores do sentido de
família, estando, por isso, presentes na memória dos actuais Sequeiras, ge
rando uma festa alargada de família, que integra passado e presente, alegria e
nostalgia, raízes (roots) e encruzilhadas de futuro. O “encontro de família”
teve, segundo Gerry, um enorme sucesso, e foi até alvo de uma reportagem
num jornal locaP
.
4
Joanna Sequeira, uma das filhas de Gerry e de Agnes, contar-me-ia,
semanas depois, que, após a festa em sua casa, passou a ter mais contacto com
alguns dos seus primos até então desconhecidos; reencontra-os, agora, todos
os dias através da rede social facebook. Joanna Sequeira tem vinte e poucos
anos e trabalha em Malaca, no café Starbucks, localizado no centro comercial
Datharan Palawan. Das conversas quotidianas com ela, depreende-se que emi
grar não está nos seus planos mais próximos; mas, se estivesse, a sua decisão
do destino migratório teria em conta esta rede de primos e tios Sequeira, re
sidentes em Perth, em Singapura, em Londres e noutros locais espalhados
pelo inundo. Estes familiares, que a sua casa acolheu, viajaram até à homeland
de Malaca em Dezembro de zoo8, conjugando a temporalidade das festas
natalícias com a da reunião familiar. Na estadia que realizaram em Malaca,
os membros da família alargada de Joanna Sequeira ficaram hospedados em
casa de familiares e em hotéis da cidade. Esta estadia na cidade foi um regres
so fugaz às raízes, fazendo uma paragem confortável, nos seus trilhos de mo
bilidades e de identidades sobrepostas (O’NEILL zoo6a) da contemporaneida
turistas
e
homelands
imaginadas
157
de. Neste regresso temporário, os Sequeiras reunidos em Ujong Pasir, ao
reencontrarem a família, celebram a sua condição de kristang.
No universo de mobilidades que caracteriza hoje o mundo contempo
râneo e em particular aquela região, os residentes portugueses do bairro são,
também eles, num crescente número de situações, ‘turistas’: seja na visita a
familiares, emigrados na Austrália ou no Reino Unido; em peregrinações aos
santuários europeus de Lourdes e Fátima; em viagens de fim-de-semana de
autocarro para Singapura ou Tailândia, ou ainda, para os mais afluentes, em
pacotes turísticos para compras na cidade chinesa de Xangai.
Ser turista, aprendo com eles, é um exercício de modernidade, é ainda
um exercício de poder e de circulação, de movimento (rodiar rodiar), que é
socialmente valorado e premiado. Nessa busca da modernidade, quando os
residentes kristang (que foram já eles também visitantes noutros lugares)
interagem com os visitantes do bairro, essa interacção parece não evidenciar a
assimetria relacional encontrada noutros lugares turísticos estudados pelos
antropólogos. Ao mesmo tempo, a sua condição de visitantes e ou de turistas,
noutros espaços, possibilita-lhes o contacto com (e o consumo de) elementos
estéticos que lhes permitem reactualiZar a materialidade do seu quotidiano
residencial no regresso a casa, localizada neste espaço que é classificado como
turístico. Esta materialidade está decalcada em souvenirs variados (de recheio
para a casa, objectos de prestígio e alimentos). A massificação e democratiza
ção do acesso a viajar tem relação com o desenvolvimento de empresas de
.
5
aviação, algumas das quais aplicam tarifas de baixo custo (low-cost)’
O exemplo que se apresenta em seguida ilustra isso mesmo.
As Holylands da Europa
Regina Maria Pereira é uma sexagenária euroasiática, residente em Malaca.
Durante o trabalho de campo, era hábito encontrarmo-nos no bairro, quase
todos os dias ao serão, no alpendre de uma amiga comum, Anne de Mello.
Um dos passatempos preferidos de Regina é jogar às cartas (“gambling”),
actividade que tem lugar na sua casa, ou na cozinha da casa de uma amiga,
residente na rua principal do bairro.
Na tarde de domingo, 27 de Setembro de 2009, reencontro-a em Fáti
ma, Portugal, na sala de entrada do hotel de quatro estrelas onde está hospe
dada, no centro da cidade, a apenas uns minutos do Santuário. Viaja aco m
panhada do marido e de duas mulheres suas familiares. O grupo familiar está
por sua vez integrado num grupo mais alargado de “pilgrims” e todos inte
gram um circuito de turismo religioso que reuniu cristãos (católicos e protes
tantes) de várias partes da Malásia e de Singapura.
Regina e a família, no seu itinerário na Europa, cumprem os passos de
uma peregrinação secular, para a qual se prepararam durante anos. A viagem
levou-os em primeiro lugar ao destino principal e mais desejado por todos:
Roma e a cidade do Vaticano. A partir de Roma, viajaram de autocarro até
158
Ema
Pires
França. Em Lourdes, Regina visitou o santuário mariano e comprou souvenirs
para os seus amigos e familiares, O grupo continuou depois viagem, até Es
panha, parando algumas horas em Burgos, para uma visita à catedral daquela
cidade. Sempre de autocarro, continuaram depois o trajecto na Península
Ibérica até Fátima.
Na visita que lhe fiz, em Fátima, o marido de Regina esperava-me à
porta do hotel. Ela estava à minha espera na sala interior, na companhia das
duas mulheres da sua família. Regina vestia um fato preto, com blusa estam
pada em tons de cinzento e rosa e o seu rosto redondo, com cabelo castanho,
cortado curto, era salientado pela maquilhagem suave que usava (baton) e
pelos acessórios que a ornamentavam (fio e pulseiras em ouro branco).
Em Portugal, viajou acompanhada de uma guia-intérprete portuguesa,
que, depois da estadia em Fátima, a levaria, à Nazaré e à Batalha e depois a
Lisboa, cidade de onde voaria de regresso à Asia. No seu itinerário europeu, o
autocarro foi o meio de transporte preferencial usado na viagem. A janela do
“bus” foi assim o ponto de observação privilegiado para, em movimento,
Regina Pereira apreender os espaços novos das (outrora tão distantes) holy
lands europeias. A noção de continuidade destes espaços já era alimentada
antes da sua viagem real. Para Regina e para outros kristang, os santuários de
Lourdes e Fátima são, ambos, identificados territorialmente com “Portugal”.
Na sua viagem real, Regina aprendeu que apesar da localização geográfica
destes santuários os situar em países diferentes, o mapa mental da sua holy
land europeia manteve-se. Isto porque a sua mobilidade territorial realizou-se
sem paragens em fronteiras, contrariamente àquelas a que está habituada na
Asia (entre a Malásia e Singapura). Uma land contínua, que apesar de atra
vessar vários países, lhe parece um espaço contínuo. Em Portugal, fascinou-a
o clima “fresco”, a limpeza das ruas, as casas e a floresta. Em Fátima, visitou
e rezou na “cathedral” e comprou “many rosaries”, na loja do hotel. Estes
souvenirs de Portugal e de Fátima seriam, depois, por si redistribuídos em
Malaca entre os seus amigos e familiares. Com esta viagem, há muito ansia
da, Regina Maria Pereira refere que cumpriu um dos seus objectivos de vida.
Disse-me que gostaria de voltar no futuro a Portugal e de ficar mais tempo,
para conhecer o “countryside”. Ficou fascinada com os muros de pedra da
serra de Fátima e gostou muito de conhecer uma “small viliage” onde vive
ram os três “little shepherds” (pastorinhos).
Na sua condição de turista, Regina Pereira reactualizou, nesta viagem
intercontinental à Europa, a imagem mental de uma homeland da sua identi
dade kristang. Um processo similar acontece entre os visitantes kristang que
se deslocaram em lazer ao Bairro Português de Malaca.
Balanço em aberto
Entre os visitantes kristang que aqui apresentámos, os espaços visitados são
desenhados como homelands, lugares identitários numa rede de contactos que
Espaços,
turistas
e
homelands
imaginadas
159
atravessa vários espaços e vários tempos e nos quais se tece um território de
identidades sobrepostas (O’NEILL 2003).
A condição de ser “turista” é, neste contexto, uma metáfora das rela
ções que se tecem entre pessoas, entre grupos, entre visões do mundo. E em
simultâneo uma metáfora e uma metonímia da construção de espaços imagi
nários/imaginados. No terreno produzido ao longo deste trabalho, o espaço
mental a que se dá o nome de paraíso desfocado (PIRES 2012) construído
usando a prática cultural da nostalgia como cimento agregador. Neste espaço
imaterial, há a construção de um espaço in-between, entre espaços que congre
gam o perto-longe, aqui e além, ontem e hoje, passado e presente.
O Turismo e o Lazer são fenómenos profundamente imbricados, vi
vencial e epistémologicamente. Este texto problematizou modalidades dife
renciais de apropriação do espaço por categorias de pessoas que praticam o
espaço do Portuguese Settlement. Através das retóricas turísticas que classifi
cam o Settlement, o Governo da Malásia reapropria e recoloniza este espaço.
Especulo que neste espaço que, como vimos, foi classificado como lugar turís
tico, se observa um processo de exotismo biunívoco: por um lado, o espaço é
representado como “memorabilia empacotada” (,pachaged remembrance) de um
encontro histórico entre a Asia e a Europa, que vende uma imagem cristali
zada e essencializada do grupo que nele habita (os Malacca Portuguese ou Kris
tang).
Recentes análises sobre o turismo na Asia (WINTER 2007) demons
tram como existe um campo emergente de realidades teórico-empíricas a
explorar. Na Asia, em geral, e na Malásia em particular, associado a este pro
cesso de turistificação de espaços, há uma ideia de modernidade (GOH 1998)
que embrulha e ajuda a compreender como ser turista é adquirir poder simbó
lico junto de outros. Na Asia, a emergência do turismo é uma vertente mais
recente e mais visível, de uma prática ancestral, a da viagem, integrante do
itinerário de vida de grande parte da população. A compreensão da condição
humana, que despertou a curiosidade de gerações de antropólogos, está tam
bém na base do que faz com que pessoas concretas embarquem em situações
sociais de mobilidade em lazer e sejam turistas num número cada vez mais
abundante de situações. Durante o trabalho de terreno, cruzámo-nos com
muitas dessas pessoas.
Na actualidade existe, em nitmero cada vez mais representativo, um
turismo de “origem asiática” (WINTER et ai. 2009), que procura espaços, ex
periências, que são valoradas de modos diversos entre si. E que, por isso
mesmo, deixam cair por terra os pressupostos eurocêntricos de estética, de
valor atribuído a espaços e de classificação de espaços. Eles e as suas práticas
levam-nos a reajustar os aparatus teórico-analíticos. Reconsiderando o autên
tico, o inautêntico, o belo e outros tropos reificados da categorização feita
pelos académicos.
Há uma subtil relação entre ser turista e assumir poder de olhar o
mundo, de o percorrer, de ter o direito ao lazer e a deslocar-se. Na clássica
i6o
Ema
Espaços,
Pires
definição de Valene Smith, um turista era definido como uma pessoa tempo
rariamente em lazer, que voluntariamente se desloca para fora de sua resi
dncia com o objectivo de experienciar uma mudança (SMITH 1989). Os tu
ristas que observámos demonstram bem como essa mudança, real e/ou ima
ginária, impele as suas vidas em papéis transitórios e fugazes de turistas. Por
vezes, a experiência de ser turista está colada a uma paleta de emoções que se
revelam em viagem. E que são lente angular de percepção e apropriação dos
espaços percorridos durante a viagem.
Epistemologicamente, esta investigação pretendeu explorar categorias
ambivalentes, mais do que as enraizadas em certezas analíticas muito fecha
das. E nas margens fronteiriças dos conceitos que se acomoda muita da im
ponderabibidade da vida real (DIAs 1997). E nas esquinas dos cruzamentos dos
modelos teóricos que se alojam perguntas e respostas sobre a condição huma
na. E é aí que a Antropologia é chamada a escutar as vozes sussurradas dos
interstfcios dessas vidas humanas.
Nestes interstícios, conceptuais e reais, encontrámos os próprios euroa
siáticos portugueses de Malaca. Ambivalentes no nome e na representação
que outros fazem deles, como tendo “identidades sobrepostas” (O’NEILL
2003), ou sendo “camaleões culturais” (SARKISSIAN 2003). Na encruzilhada
destas representações, eles são pessoas in-between (FRIEDMAN 2005), viajantes
reais e/ou imaginários através de espaços e tempos. A sua experiência de vida
ensina-nos como é importante relativizar categorias e certezas analíticas dos
territórios e dos saberes, e dos objectos que se movimentam através dos espa
ços. Como os caranguejos de Oswald Goonting ou as lembranças empacota
das que os portugueses de Malaca levam consigo para casa depois das férias.
Estes artefactos são pavio para a construção (e em sentido inverso, também
para a desconstrução) de paraísos desfocados (PIRES 2012). Espaços estes,
dentro dos quais as pessoas tecem os significados das suas viagens mentais
e/ou reais e procuram o(s) sentido(s) das suas permanncias.
—
turistas
e
homelands
imaginadas
e esvaziam de sentido as dicotomias académicas “turista internacional”, “residente” e “tu
rista doméstico”.
As “asas de frango fritas” (chicken wings) são um prato muito apreciado em Malaca; têm
um preço que por vezes sofre oscilações no mercado, decorrente da oferta e da procura
existentes.
Comunicação pessoal, em 15 e i6 de Dezembro zoo8, em Singapura.
6
Sobre o conceito de homeland cf. LEvY e
WEINGROD 1005.
i de Dezembro de 2008, em Singapura.
principalmente à culinária dos malaios, cujos ingredientes são
associado
Rojak é um prato
misturados no recipiente que se serve à mesa.
Comunicação pessoal,
8
A afiliação identitária de Philomena Nonis a Singapura estará certamente relacionada,
numa escala mais abrangente, com o processo de emergência dos euroasiáticos de Singa
pura no coador das políticas multirraciais de Singapura, estudado pelo sociólogo Alexius
Pereira (zoo6).
A isto não será alheio o processo mais abrangente de romantização da kampung life (vida
na aldeia) existente na Malásia e Singapura contemporâneas. Um processo que tem sido
alvo da atenção de autores como G0H (1998) e CHUA (1994), que analisam os contextos
da Malásia e de Singapura, respectivarnente.
“
°
Um processo que também é observável noutros locais da Malásia, como anota Goh Beng
Lan (1998).
Comunicação pessoal, i6 de Novembro de oo8, em Malaca.
Gerry é marido de Agnes Lazaroo, que é contralto no grupo coral. No início da nossa in
teracção, perguntou-me se eu era jornalista. Disse-lhe que não: “I’m an anthropologist”.
“What’s that?” perguntou ele. “It’s someone that studies the culture and the traditions
of people”, referi. Acrescentei ainda: “I’m here studying the Portuguese culture and tradi
tions”. Perguntou-me depois de onde sou (e qual a minha nacionalidade). Disse-lhe que
era portuguesa e vinha de Lisboa. Ele perguntou-me se “lá em Portugal” há livros nos
museus sobre a “presença portuguesa” em “Malaca”. Eu confirmei. Ele acrescentou, com
um tom enfático e sorridente, que em 2009 contar-se-iam 500 anos da chegada dos portu
gueses. Eu anu{, lacónica.
—
—
Notas
Em Malaca, foi feita consulta aos seguintes arquivos privados: Bosco Lazaroo, Paul da
Silva, Gerry Fernandis, Oswald Goonting, Aloisous Santa Maria, Arquivo do Painel do
Regedor, Arquivo de Michael Banerji, Jules Pierre Francois e Colin Goh. Em Kluang, ar
quivo pessoal de Sister Dorothy Santa Maria. Em Singapura, Consultou-se o arquivo pes
soal de Christine Rodrigues Karanajah, acrescido de realização de entrevistas a esta in
formante privilegiada (em 2007 e 2009).
Race é uma categoria usada quotidianamente (do Citizen Card aos formulários das escolas)
pelas pessoas. E por isso aqui usada também. Esta categoria enquadra também a minha
própria condição de matsalieh (branca) em working-hoiiday, que expressa o modo como eu e
os outros observadores profissionais brancos (académicos e outros) fomos percepcionados
pelos kristangs.
Por exemplo, entre os Makan-peopie encontramos pessoas que são identificadas como Sin
gaporeans, K. L. peopie e other peopie. Estas três sub-categorias perpassam transversalmente
i6i
O jornal The Star.
Com particular relevância no contexto em análise, salienta-se a empresa Air Asia.