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O bairro de madina yabura

o bairro de mādina yābura Vanessa Galiza Filipe / IAP FCSH; UNL / nessa_filipe@hotmail.com RESUMO As intervenções arqueológicas desenvolvidas no espaço do actual Museu Municipal de Évora foram realizadas nos anos de 1996 e 1997 pela empresa de arqueologia Arkhaios em estreita colaboração com Theodor Hauschild e o Instituto Arqueológico Alemão. A abordagem arqueológica centrada nos níveis de ocupação islâmica permitiu o desvelar de informações sobre o legado civilizacional islâmico em Évora, nomeadamente o processo de urbanização do bairro residencial situado no interior de mādina Yābura. ABSTRACT The archaeological interventions developed in the space of the current Municipal Museum of Évora were performed in the years 1996 and 1997 by the company of archeology Arkhaios in close collaboration with Theodor Hauschild and the German Archaeological Institute. The archaeological approach centered on the levels of islamic occupation has allowed the unveiling of information about the Islamic civilization legacy in Évora, in particular the process of urbanization of the residential neighborhood located in the interior of mādina Yābura. MĀDINA YĀBURA Évora, cidade de origem romana, é incorporada na órbita de influência islâmica por ’Abd al -’Azı̄z, entre os anos de 714 a 716. A memória escrita de Évora nos dois primeiros séculos de ocupação muçulmana prima pela sobriedade informativa. Este facto é sucedâneo, em parte, da instabilidade política e social sentida na sede de Kūra, Beja. Contudo, à luz de um contexto militar no ano de 913, nomeadamente o ataque do rei asturo -leonês Ordonho II à urbe eborense (descrito por Ibn Hayyān, no Muqtabis V, e por um autor anónimo na Crónica Anónima de Abd al-Rahmān III al-Nasir), obtemos respostas sobre o estado imerso em que se encontrava a cidade. A observação histórica das informações e elementos revelados neste episódio elucida-nos, de uma forma geral, sobre o tecido urbano da cidade de Évora, revelando -nos uma continuidade da malha urbanística romana aproveitada pelos muçulmanos eborenses, ao mesmo tempo que nos alerta para outros aspectos político -administrativos, sociais e culturais como a presença de um ‘āmil na cidade, o medo da intrusão berbere, a fuga de aristocratas para Beja, a quantificação demográfica da população que habitava o núcleo urbano, entre outros. 923 Arqueologia em Portugal – 150 Anos A presente crónica também equaciona a conjuntura geopolítica, em 914, que beneficiou a cidade de Évora, colocando -a sob a alçada de Badajoz. Estratégicamente localizado na rede viária e topograficamente dominante face ao território envolvente, o centro eborense era um importante ponto de apoio militar para a cidade de Badajoz. Noção que Ibn Marwān possivelmente levou em conta, pois providenciou a reconstrução de seu perímetro amuralhado e juntou-o à causa muladí nomeando para o governo seu aventureiro amigo al-Surunbāqi. A desagregação das autonomias regionais coloca Évora sob o poder do califa omíada ‘Abd al-Rahmān III. De acordo com o seu empreendedorismo político, ideológico e construtivo, o impacto simbólico de uma muralha urbana estreitamente ligada às figuras políticas que a reconstruíram seria considerado uma debilidade na sua acção política. Por isso, a apropriação ideológica desse acontecimento fundacional (914) e, como julgamos nós, a construção de uma alcáçova e edificação da mesquita aljama de acordo com a política califal de controlo urbano e emergência de edificíos monumentais, expressão da hegemonia califal. A desagregação da unidade califal, a partir de 1012, terá como consequência a passagem de todo o espaço islâmico peninsular a uma nova malha de estruturas político -administrativas (reinos). A Taifa de Badajoz consagrar-se-à como um dos mais poderosos reinos do século XI. O principado dos Aftácidas compreendia o distrito militar noroeste, estendendo -se a sua autoridade pelas cidades de Coimbra, Santarém, Lisboa, Sintra, Évora, Alcácer do Sal e Beja. Évora, cujas afinidades e ligações sociopolíticas mantinha com a urbe de Badajoz desde o século X, tornou-se a segunda cidade mais importante do reino aftácida. O florescer económico de Évora prende-se com a sua localização geográfica, preeminente para os objectivos comerciais, militares e políticos de Badajoz. Nesta base de entendimento, o território de Évora, posiciona-se como o ponto central da via comercial mais importante para o reino aftácida em direcção às suas duas cidades portuárias: Lisboa e Alcácer do Sal. O interesse comercial pelos portos litorais, excedentários em riquezas alimentares e importantes para o domínio marítimo e económico das grandes rotas mercantis, provoca a atracção pelo percurso económico este-oeste, revelando -se este quadro essencial para o desenrolar da história de Évora neste período. A alteração do estatuto político e jurídico da cidade e região eborense no século XI para segunda cidade da Taifa de Badajoz, apoiada possivelmente numa elite culta e inovadora, permitiu a experiência governativa sobre um espaço económico, no qual a cidade de Alcácer do Sal era sua dependente. Não esqueçamos, que Muhammad b.’ Abd Allāh, al – Muzaffar “ (…) colocou nela o seu filho al-Mansūr.” (Rei, 2000, p. 24), escolhendo o seu filho primogénito para a administração da urbe eborense de entre todas as cidades que existiam no seu reino. A morte do monarca de Badajoz leva ao trono o então senhor de Évora, causando a revolta de seu irmão Umar b. Muhammad al – Mutawakkil, também ele com pretensões ao trono da dinastia aftácida. Muhammad al – Mutawakkil assume o cargo de governador de Évora, mas sempre com a intenção de se tornar rei de todos os territórios de Badajoz. As lutas entre os dois irmãos pelo reino de Badajoz, conduziu a uma nova etapa na história de Évora. Pensamos que a cidade tende a individualizar-se c omo espaço político autónomo, durante cerca de três ou quatro anos, duração do reinado de al-Mansūr em Badajoz, pois existe cunhagem de moedas em nome de al–Mutawakkil e um esplendor cultural confirmado por uma corte onde poetas, músicos e artistas deliciavam o seu senhor. A morte prematura de al-Mansūr vai de encontro aos reais propósitos de al-Mutawakkil. O seu poder é legitimado enquanto rei da taifa aftácida e o território é unificado sob a sua autoridade, concluindo Évora o seu promissor papel de capital de um reino autónomo. O enfraquecimento político e a debilidade militar vivenciada pelos reinos de Taifa, favoreceram a progressão cristã e foram o leitmotiv para a entrada, em 1086, de uma nova ordem política no Gharb: os Almorávidas. Durante o período de dominação almorávida sabemos que o território eborense é controlado políticamente pelo chefe militar Sidrāy Ibn Wazı̄r. O seu percurso na hierarquia militar almorávida confere-lhe a patente e o domínio sobre um território estratégicamente importante. Com o fenómeno de desagregação territorial emerge a personagem de Ibn Qası̄, místico sufí, que funda em 1144 o primeiro reino independente anti-almorávida em Mértola. Num primeiro momento Ibn Wazı̄r adere ao movimento muridine propagado por Ibn Qası̄, posteriormente a sua ânsia pelo poder coloca-o frente a frente com o seu antigo líder espiritual, confluindo na criação de um estado independente, com capital em Évora. A absorção de vários centros urbanos (Beja, Silves, Mértola) que outrora se enquadravam nos domínios de Ibn Qası̄, formaram um reino de dimensões consideráveis. A urbe de Évora enquanto capital de um reino desfrutou de uma duração efémera, consequência da submissão de todos os potentados locais por uma nova dinastia magrebina, os Almoadas. Porém, Ibn Wazı̄r não saiu dos quadros administrativos andaluses. Assumindo -se como representante da soberania almoada nessa área, apenas lhe são limitados os poderes e confinados à região de Évora e Beja. Posteriormente, é nomeado governador de Silves e desprovido de quaisquer poderes sobre a região de Évora, sendo esta entregue ao almóada Mu’nis Ibn Yahyā al-‘Arabı̄ no ano de 1151. A instabilidade política sentida no Gharb al-Andaluz e a crescente pressão do reino português para sul conduzirá à conquista cristã da cidade de Évora em 1165, por Geraldo Sem Pavor, inserindo -se a urbe alentejana num plano táctico de ocupação sucessiva dos pontos de apoio militar que rodeavam Badajoz. 924 O BAIRRO ISLÂMICO Os testemunhos arquitectónicos e materiais descobertos aquando da intervenção arqueológica são evidência do estado fragmentário em que encontravam três habitações islâmicas. Apesar de se encontrarem bastante degradadas tais pervivências estruturais permitiram-nos concluir tratar-se de um bairro residencial localizado no interior da medina. Comecemos então por analisar a distribuição espacial do complexo habitacional numa tentativa de perceber a organização interna e possíveis funcionalidades atribuídas aos compartimentos identificados (fig.1). A casa I desenvolvia-se pelas sondagens 215, 216 e 219, compreendendo possivelmente uma área total de 120 m². A importância da esfera do privado e do secreto para a comunidade muçulmana é bem retratada pela disposição formal da entrada e seu átrio presentes na sondagem 216. Neste caso, a ante-câmara da entrada configurava um pequeno compartimento de forma quadrangular, observando -se os vãos descentrados. O pavimento registado em desenho era formado por lajes de pedra de tamanho variável. A passagem entre o mundo familiar e privado e o espaço público era assim realizada através do saguão. Compreendido como o compartimento menos íntimo da casa islâmica, o saguão caracterizava-se pela sua entrada em cotovelo impedindo os olhares curiosos viandantes sobre o ambiente. Deste espaço em diante para o interior da casa só passava a família ou pessoas com vínculos familiares. Normalmente acedia-se directamente do saguão ao pátio interior da casa. O pátio, área central da casa, não foi totalmente escavado no arqueossítio em análise. A aproximação a este espaço é nos dada tendo em conta o esquema organizacional das casas islâmicas reconhecidas em Silves, Mértola, Tavira, Lisboa, Badajoz entre outras estações arqueológicas. Em todos os sítios arqueológicos mencionados, o pátio é o elemento que define o modelo habitacional islâmico. Os compartimentos são organizados em redor deste espaço plurifuncional, tal como podemos observar pela divisões colocadas a descoberto nas sondagens 215, 216 e 219, usufruindo estes da iluminação natural e da ventilação fornecida pela área em aberto. Outro elemento que nos permite conjecturar sobre localização do pátio é a presença de pavimento em 925 Arqueologia em Portugal – 150 Anos tijoleira, identificado nas sondagens 216 e 219, precisamente no espaço em frente aos compartimentos escavados. A aplicação deste tipo de revestimento nos pátios, “opção favorita” (Macías, 2006, p. 383) quer pela sua beleza quer pela adaptabilidade a múltiplas fórmulas estéticas, é também o mais resistente às modificações climáticas que sofre um espaço em aberto e o mais fácil de limpar. Num âmbito doméstico e familiar, o pátio motivava o convívio e lazer familiar além de promover as actividades domésticas que na sua prática necessitavam de iluminação. Adscrito a este último aspecto e a corroborar o facto identificámos na sondagem 216, uma torre de roca e um separador de fios, testemunhos materiais da produção de téxteis usualmente conectados com o universo femenino. O reconhecimento de uma talha decorada na sondagem 219, pressupõe a existência provável de tal recipiente no pátio contendo água para refrescar os habitantes que aí se encontravam. Na planimetria de uma casa medieval muçulmana o acesso à latrina realizava-se através do pátio, arejando -se consecutivamente esta divisão da casa. A existência de uma latrina no complexo habitacional, identificada a leste na sondagem 216, transmite desde logo o cuidado e importância que a civilização islâmica dava à higiene pessoal, à privacidade e intimidade. Característica singular das casas islâmicas, a latrina localizava-se num compartimento independente de planta rectangular, com cerca de 1 m de largura, apresentando pavimento em lajes de pedra. Adossada ao muro meridional a latrina encontrava-se elevada sobre uma plataforma construída em pedra, consistindo numa superfície composta por duas lajes em pedra de forma rectangular com cerca de 0,200 m, delimitando a abertura central com cerca de 0,100 m. A instalação da latrina segue dogmas jurídicos, sendo proibida a sua orientação para Meca. No caso desta infra-estrutura, ela segue o alinhamento norte-sul, estando por isso de acordo com as normas religiosas perpetradas pelo Islão. A latrina era vinculada directamente à fossa asséptica correspondente situada no espaço exterior à casa, a rua. A fossa asséptica coberta por lajes de xisto poderia conectar-se com a latrina através de uma abertura no solo, recebendo os resíduos de usos domésticos e higiénicos. A construção deste equipamento surge da proibição de deitar águas sujas na via pública, instalando -se a fossa asséptica na rua junto ao espaço habitacional ocupado pela latrina. Deste modo também não se importunavam os habitantes da casa com o mau cheiro da fossa. A escavação arqueológica das sondagens 215 e 219 colocou à vista um possível compartimento doméstico, de forma imperceptível. Comunicando directamente com o pátio através de uma entrada central, com cerca de 0,50 m, a presente divisão poderia corresponder a um salão, pavimentado em tijoleira, apesar das dificuldades de adscrição funcional face aos poucos elementos estruturais reconhecíveis. Os salões eram os espaços onde o senhor da casa e a sua familía podiam descansar nas suas alcovas, usufruir de uma refeição e guardar ou até expôr peças de realce estético e económico. Adequado a este último aspecto, os materiais cerâmicos recolhidos na sondagem 219 expressam na sua maioria bens sumptuários exógenos, com funções expositivas, salientando o poder económico do chefe de família. Na sondagem 206 foi descoberta uma conduta de saneamento construída em pedra argamassada e coberto por lajes de pedra, notando -se a reutilização de elementos arquitectónicos de origem romana. O canal permitiria a evacuação de águas pluviais ou domésticas do pátio directamente para a via pública a sul, aproveitando a vertente do sítio. Em relação a outros arqueossítios no al-Andalus, a eliminação de resíduos domésticos através de canalizações construídas sobre os pavimentos conectava por vezes diversas casas, tal como acontece em Mértola, Silves e Sı̄yasa a título de exemplo. De encontro a nordeste, realizaram-se as sondagens 222, 50 e 51 que conformam a casa II. A primeira sondagem mencionada oferece planta provavelmente rectangular, com abertura central de acesso à sondagem 50. Morfológicamente apresentando forma rectangular, a divisão doméstica configurada na sondagem 50, parece marcar o final nordeste da casa, corroborando o facto de a sua parede nordeste se revelar uma parede-mestre e a disposição espacial do compartimento (virado para o interior) reflectir este pressuposto. Os pavimentos destes compartimentos eram possivelmente elaborados em terra batida dada a ausência de outros vestigíos de revestimento. No que se refere à funcionalidade destes dois compartimentos podemos conjecturar sobre a sonda- gem 50 representar um espaço de armazenamento ou sítio de preparação das comidas de acordo com a sua constituição estrutural e que a sondagem 222 conjugaria-se com o compartimento da sondagem 50, abrangendo uma área dedicada à confecção de comida, a cozinha. Contudo, o pressuposto elaborado não encontra confirmação arqueológica na medida em que não foi descoberta nenhuma estrutura de combustão, propriamente dita, na sondagem 222, mas a leitura do relatório da escavação arqueológica informa sobre a presença de um complexo estratigráfico composto por sedimentos de tom escuro com abundantes carvões. Na sondagem 51, e no alinhamento da infra-estrutura sudoeste presente na sondagem 50 surge um pequeno troço de muro sugerindo uma outra divisão doméstica. Por último, nas sondagens 211 e 201 exumou-se um espaço conformado por três muros, denotando -se a inexistência de uma entrada (situando -se provavelmente a norte). Neste caso, a exiguidade dos fragmentos cerâmicos recolhidos em ambas as sondagens associado à difícil apreensão estrutural e funcional do espaço invalidam uma teorização sobre a sua importância e função no contexto arqueológico em análise. Não obstante, acreditamos estar perante a casa III, abrangendo uma área provável de 120 m². INTEGRAÇÃO CULTURAL A extensão original dos horizontes arqueológicos exumados não é conhecida. A este propósito, a prática de uma arqueologia de emergência; a impossibilidade de escavar em toda a superficíe do edifício; a anulação e sobreposição de muros efectuada por novas gerações e as destruições operadas pelas comunidades predecessoras, dificultaram a sua apreensão gráfica e científica. Mas, os dados disponíveis permitem-nos tecer alguns comentários pertinentes. Os testemunhos arqueológicos revelam em primeiro lugar uma organização racional do espaço apresentando uma distribuição espacial de âmbito doméstico bem estruturada, reflectindo essencialmente um planeamento urbanístico prévio revelado pela construção de um sistema de saneamento (sondagem 206) efectuada necessariamente antes da edificação e pavimentação da casa. Reconhecendo -se arqueológicamente três casas, somos ainda da opinião que o bairro islâmico de- 926 senvolvia-se-se para sudoeste, tendo em conta que a conduta de saneamento exumada na sondagem 206 poderia ser partilhada pela casa I e outra habitação localizada a oeste da primeira casa. Além disso, o bairro habitacional era delimitado a este pela alcáçova, a norte pelo templo e praça romana e a sul pela rua (fig.2), confinando -se necessariamente o seu desenvolvimento urbanístico para sudoeste. A presença de uma via pública, com direcção nordeste-sudoeste, é confirmada pelo sistema de esgoto, típicamente islâmico, posicionado fora do compartimento correspondente à latrina (sondagem 216), aludindo às normas construtivas e higiénicas muçulmanas que alertam para a localização das fossas assépticas na rua. Realçamos agora a pervivência desta via de circulação no traçado urbano islâmico eborense desde o Período Romano. Aspecto este que corrobora o facto de não existir uma ocupação da rua, como observado em outras cidades do al-Andalus, mantendo-se inalterado o sistema viário de origem romana nesta zona da cidade de Évora. As habitações domésticas também não foram construídas sobre o pavimento em mármore da praça romana, sugerindo uma adaptação social a este elemento urbano, abandonado pela população visigoda conformando todavia um espaço em aberto onde se realizariam possivelmente pequenas vendas de mercado. Apenas foi violado pela comunidade islâmica eborense por razões de âmbito económico (construção de silos) e religioso (inumação de três indivíduos em período de cerco militar). A urbanização do bairro islâmico nessa área da medina usufrui da proximidade da mesquita-aljama e dos mercados, tal como acreditamos que estaria perto de uma fonte de abastecimento de água como o exemplifica o alcatruz exumado. Era, portanto, um bairro habitacional bastante central. A reprodução no al-Andalus do modelo mediterrânico de habitação doméstica observado agora em Évora, deduz uma forte islamização da população e um intercâmbio de ideias e homens a uma escala geográfica alargada. Condicionantes que, em conexão com o espólio cerâmico estudado, revelador de uma cultura material maioritariamente presente entre os séculos X a XII, com atenção para os numismas de Muhammad al – Mutawakkil (século XI), sugerem cronológicamente a edificação deste complexo habitacional centrado nesses séculos de desenvolvimento político, urbano, económico e soció-cultural em 927 Arqueologia em Portugal – 150 Anos Évora (da segunda metade do século X à primeira metade do século XII). No que respeita à organização espacial das casas determinámos uma área de pátio, uma divisão com latrina, um ou mais salões, um possível espaço de armazenamento e uma entrada com vestíbulo associado, faltando apenas dados concretos para a identificação de um compartimento classificado como cozinha. Os elementos espaciais e funcionais reconhecíveis podem não constituír parte de todas as habitações domésticas, existindo variantes na determinação espacial de carácter doméstico enunciadas por motivos sócio -económicos (número de familiares versus riqueza do proprietário). Neste âmbito sócio -económico compreendemos através das fórmulas arquitectónicas empregues pelos habitantes do bairro islâmico de Évora, particularmente a inexistência de elementos decorativos nas paredes como estuque ou azulejos, de mármore a revestir os solos da casas, de capiteís a decorarem as entradas dos salões, que as famílias que aí viviam não eram necessariamente abastadas, mas possuíam algum poder de compra sublinhando -se as peças importadas exumadas no contexto arqueológico. Expressão de influências económicas, sócio -culturais e religiosas a casa muçulmana reflecte o modus vivendi de uma civilização. Uma das primeiras acepções traduz-se na importância dada à higiene pessoal, plasmada na presença de uma latrina e de sistemas de saneamento, conduzindo a uma mentalidade culturalmente elevada em relação à posterior sociedade medieval cristã. O carácter intimista das casas islâmicas, onde o pátio central assegurava um espaço aberto e seguro na vida familiar adquire significação cultural na medida em que as actividades quotidianas de preparação de comida, tecelagem e outras, estavam longe dos olhares alheios, protegendo a honra da família, tão importante para a civilização islâmica. Por fim, a ocupação islâmica do sítio abrange dois períodos temporais, o primeiro configurado por uma planta ilegível de funcionalidade indeterminada, constando apenas para o informe cronológico os materiais cerâmicos atribuídos ao período emiral. Neste âmbito, a morte e a escravidão perpretada pelas hostes cristãs aos habitantes eborenses (913) e a fuga de alguns notáveis para Beja corroboram a nossa acepção de uma cidade despovoada e logicamente o abandono das estruturas habitacionais até à chegada de Mas’ūd ibn Sa’dun Surunbāqi, no ano de 914. O segundo momento de ocupação enquadra a primeira metade do século X até à conquista cristã de Évora em 1165, onde os elementos estruturais interpretados em conjunto com o espólio material reflectem tais datações. No que concerne ao abandono da área residencial, o bairro islâmico foi possivelmente desactivado após a conquista cristã da cidade, num processo de entulhamento da zona até ao reinado de D.Sancho II, como o confirmam os numismas exumados, os elementos de vestuário e a presença de esporas do século XII e XIII associados aos militares da conquista cristã de Évora. sínteses e perspectivas de estudo. Homenagem a José Luís de Matos. 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Figura 1 – Planta das estruturas islâmicas exumadas. 928 Figura 2 – Reconstituição hipotética da cidade de Évora entre 914 a 1165. Figura 3 – Representação geral do acervo arqueológico identificado para os séculos VIII a XII. 929 Arqueologia em Portugal – 150 Anos