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Cidade em movimento: práticas insurgentes no ambiente urbano

2015, Oculum Ensaios

Este artigo aborda a importância e a influência dos coletivos urbanos nos espaços públicos das cidades brasileiras. Parte-se do pressuposto de que formas coletivas de ação derivam de um conjunto de contradições manifestas no espaço físico e existencial das cidades. O desenvolvimento dessas coletividades está relacionado a diversos campos, desde os movimentos sociais aos estudos sobre arte urbana; por isso, como forma de realizar um estudo detido e vertical, esta análise será desenvolvida em duas seções. A primeira se dá a partir de um breve percurso conceitual em torno dos novos coletivos urbanos e de novas formas de ação na cidade. A segunda é resultado da análise dos limites e possibilidades implicados na atuação de dois coletivos: o Opavivará!, que desenvolve trabalhos de arte e intervenção urbana, e o Ônibus Hacker, movimento de ação política pela difusão de saberes. Parte-se da premissa de que formas associativas de intervenção urbana ampliam o repertório de leituras sobre os l...

A CIDADE EM MOVIMENTO: PRÁTICAS INSURGENTES NO AMBIENTE URBANO THE MOVEMENT IN CITIES: RISING PRACTICES IN THE URBAN ENVIRONMENT | CIUDAD EN ACCIÓN: LAS ACTIVIDADES CRÍTICAS EN EL ENTORNO URBANO CARLOS HENRIQUE MAGALHÃES DE LIMA RESUMO Este artigo aborda a importância e a influência dos coletivos urbanos nos espaços públicos das cidades brasileiras. Parte-se do pressuposto de que formas coletivas de ação derivam de um conjunto de contradições manifestas no espaço físico e existencial das cidades. O desenvolvimento dessas coletividades está relacionado a diversos campos, desde os movimentos sociais aos estudos sobre arte urbana; por isso, como forma de realizar um estudo detido e vertical, esta análise será desenvolvida em duas seções. A primeira se dá a partir de um breve percurso conceitual em torno dos novos coletivos urbanos e de novas formas de ação na cidade. A segunda é resultado da análise dos limites e possibilidades implicados na atuação de dois coletivos: o Opavivará!, que desenvolve trabalhos de arte e intervenção urbana, e o Ônibus Hacker, movimento de ação política pela difusão de saberes. Parte-se da premissa de que formas associativas de intervenção urbana ampliam o repertório de leituras sobre os lugares, podendo ser vinculadas às disciplinas do urbanismo. Espera-se que a discussão em torno do tema revele demandas difundidas por esses grupos organizados, o que poderá contribuir para a construção de aparatos críticos e de projetos no campo do urbanismo, capazes de auxiliar em processos alternativos de produção das cidades. PALAVRAS-CHAVE: Coletivos urbanos. Cultura urbana. Teoria dos movimentos sociais. ABSTRACT The aim of this article is to discuss the importance and influence of urban collectives in public spaces of Brazilian cities. It begins from the perspective that collective forms of action results from a set of contradictions manifested in the physical and existential space of cities. The development of these communities is related to several fields from social movements to studies on urban art. Thus, in order to conduct a vertical in-depth study, the analysis will be developed in two sections. The first part provides a brief conceptual view of the new urban social movements and new forms of action in the urban matrix. The second is an analysis of the limitations and possibilities of two collectives: The Opavivará! (art and urban intervention) and Ônibus Hacker (political movement O cul um ens. | Campi nas | 12(1) | 39-48 | Janei ro-Junho 201 5 | 40 A C I D A D E E M M O V IM E NT O | C .H.M . Lim a to disseminate knowledge). This section begins with the premise that associative forms of urban intervention serve to expand the repertoire of understanding about places and can therefore be connected to disciplines of urbanism. We expect that the discussion reveals the multicultural demands of these organized groups. Thus, it may contribute to the development of critical apparatus and projects in the field of urbanism capable of assisting alternative processes in the development of cities. KEYWORDS: Urban collective. Urban art. Social movement theory. RESUMEN En este artículo se analiza la importancia e influencia de colectivos urbanos en el espacio público de las ciudades brasileñas. Se parte de la perspectiva de que las formas de acción colectivas se derivan de una serie de contradicciones que se manifiestan en el espacio existencial de las ciudades. El desarrollo de estas comunidades se relaciona con varios campos, con el fin de realizar un estudio en profundidad vertical y el análisis se desarrollará en dos secciones. La primera parte de un breve recorrido conceptual en torno a los nuevos movimientos sociales urbanos y nuevas formas de acción en la matriz urbana. La segunda se refiere a los límites y posibilidades de estos colectivos analizada desde dos de ellos: Opavivará! (arte e intervención urbana) y Ônibus Hacker (la acción política mediante la divulgación de los conocimientos). Se parte de la premisa de que las formas asociativas de intervención urbana sirven para ampliar el repertorio de lecturas sobre los lugares y por lo tanto pueden estar vinculadas a las disciplinas del urbanismo. Se espera que la discusión en torno al tema revele amplias demandas multiculturales de estos grupos organizados, que pueden contribuir a la construcción de dispositivos críticos en el campo del urbanismo, capaces de ayudar en los procesos alternativos para la producción de las ciudades. PALABRAS CLAVE: Colectivo urbano. Arte urbano. Teoría de los movimientos sociales. INTRODUÇÃO A DIMENSÃO DOS COLETIVOS URBANOS NA ATUALIDADE As décadas recentes foram marcadas pelo desenvolvimento de fenômenos que ampliaram o entendimento sobre a cidade. Na esteira de pensadores como Castells (2011), o espaço urbano é antes a difusão de um sistema de valores e comportamentos, denominado cultura urbana, sendo a urbanização entendida como produção social das formas espaciais, o que confere caráter processual e aberto ao arranjo complexo e intrincado que é a rede urbana. Essa é uma questão que leva a pensar sobre a diversidade de sujeitos que participam da produção urbana e, também, sobre posição que eles ocupam em uma situação histórica. Sendo assim, caberia perguntar como os modos de pensar e agir desses sujeitos podem revelar aspectos do cotidiano, bem como as possibilidades de sua transformação. Oc ulu m e n s . | C a m p i n as | 12(1) | 39-48 | Jan eir o- Ju n ho 2015 A CID AD E EM MO VIMEN TO | C.H .M. Li ma |41 Longe de ser elementar, a resposta a essa questão permite várias abordagens. Uma possibilidade se dá em torno das formas de associação coletiva e das ações espaciais críticas, em que não apenas a dimensão física mas a própria imaterialidade dos processos são fundamentais para compreender o espaço das cidades naquilo que restringe ou possibilita, ou seja, nos modos de apreensão de seus espaços e na abertura que oferece para apropriação. O surgimento de novos agentes sociais e de mobilizações que permeiam a história urbana recente dá mostras do conjunto de contradições presentes na cidade. Nesse contexto, os coletivos urbanos surgem como modos de organização capazes de criar culturas defensivas diante de situações-problema vivenciadas no espaço urbano. Portanto, qual seria o papel dessas ações críticas no campo de forças que configura as cidades de hoje? Este artigo coloca em tensão a dimensão cotidiana das cidades e as práticas interventoras de coletivos urbanos. Entende-se que essas manifestações críticas são resultado de contextos mais amplos, como as transformações proporcionadas pelos movimentos sociais urbanos. No entanto, o que se propõe aqui é uma leitura sobre os possíveis nexos entre a prática crítica e a o campo do urbanismo, com o intuito de desenvolver a hipótese de que o processo de constituição das cidades não ocorre apenas a partir de relações de natureza física, daí a necessidade de refletir sobre as ações dos sujeitos na vida urbana. Entende-se que as demandas discursivas dessas ações podem ajudar a compreender suas possíveis direções, pois esses movimentos são tanto o resultado das contradições urbanas quanto o espelho da experiência na cidade, revelando possíveis desvios e desigualdades na condução de políticas públicas ou práticas de governo. Permeia este trabalho a intenção de construir uma leitura das demandas expressas nas ações coletivas, indagando se elas podem contribuir para os aparatos críticos e os projetos no campo do urbanismo, auxiliando processos alternativos de produção urbana. A DIMENSÃO DOS MOVIMENTOS URBANOS Atualmente, a comunicação de massa e a difusão da informação na sociedade em rede contribuíram para ampliar sensivelmente as formas associativas. A movimentação solidária de grupos — empenhados na redistribuição de recursos e na afirmação da diversidade de vida —, é exemplo desse contexto de emergência, em que as práticas críticas e ativistas são modificadas na sociedade de informação, apontando um horizonte de transformações calcadas numa política de equidade. O cenário dessas ações críticas se situa hoje num contexto complexo, pois a difusão em rede é acompanhada por cisões que, aos poucos, perdem seu aspecto de dualidade. Para Santos (2001), não há um princípio único de transformação social na contemporaneidade, sendo muitas as faces de dominação e resistência, tanto quanto de agentes envolvidos nessa disputa. Desse modo, os movimentos urbanos atuais se colocam contra a perspectiva totalizante desenhada desde a modernidade, abrindo outras abordagens, uma O cul um ens. | Campi nas | 12(1) | 39-48 | Janei ro-Junho 2015 | 42 A C I D A D E E M M O V IM E NT O | C .H.M . Lim a vez que “na ausência de um princípio único, não é possível reunir todas as resistências e agências sob a alçada de uma grande teoria comum” (SANTOS, 2001, p.28). Nesse contexto, os coletivos urbanos não dirigem suas ações apenas à redistribuição de recursos, mas também a modos de vida que tenham como suporte a liberdade e o reconhecimento. Gohn (2010) considera que os coletivos urbanos têm contribuído para organizar e conscientizar a sociedade, apresentado demandas construídas em torno de práticas de pressão/mobilização. Esses movimentos “[…] não são apenas reativos, movidos só pelas necessidades (fome ou qualquer forma de opressão), pois podem surgir e se desenvolver também a partir de uma reflexão sobre sua própria experiência” (GOHN, 2010, p.16). Para Castells (2010), numa situação em que o conceito de cultura teve suas noções multiplicadas, os coletivos urbanos encontram na sociedade em rede e na flexibilidade de ação seus principais focos de mobilização — considerando que a noção de rede é capaz de “articular a heterogeneidade de múltiplos atores coletivos em torno de unidades de referências normativas, relativamente abertas e plurais” (SCHERER-WAREN, 2008, p.515). A simultaneidade da rede não só permite trocas horizontais e dispersas, mas também favorece novas formas associativas. Para Santos, o caráter simultâneo da rede foi possível graças aos milagres da ciência, sendo capaz de articular novas solidariedades e “[…] a possibilidade de um acontecer solidário, malgrado todas as formas de diferença, entre pessoas, entre lugares” (SANTOS, 2005, p.256). DEFININDO A AÇÃO INSURGENTE NA CIDADE Como forma de efetuar uma abordagem detida e vertical, será dada atenção às estratégias e práticas espaciais que se desenvolvem em torno do espaço público, considerado este como lugar da expressão de valores da sociedade. As ações de coletivos urbanos tendem a modificar a ambiência e a programação dos espaços públicos — mais do que a esfera pública, entendida como uma dimensão menos restrita. A soma desses coletivos tende a adquirir uma direção e a se converter em movimentos mais abrangentes, que extrapolam as esferas locais. A falta de consenso permeia os estudos e as próprias escolhas dos coletivos urbanos, de modo que a leitura que se segue será feita a partir do caráter critico de suas intervenções. Entende-se que essas ações coletivas estão vinculadas a relações contextuais mais amplas, como a dos Movimentos Sociais Urbanos, que “[…] atuam no interior de um tipo de sociedade, lutando pela direção de seu modelo de investimento, de conhecimento, ou cultural” (SCHERER-WAREN, 2005, p.18). No entanto, será dada ênfase às intervenções recentes de natureza crítica, independentemente de sua escala de articulação. Para Sansão (2014), as ações temporárias podem deixar marcas permanentes na cidade e mudar a percepção dos lugares; nesse sentido, talvez possam também mudar o modo de concebê-los. Oc ulu m e n s . | C a m p i n as | 12(1) | 39-48 | Jan eir o- Ju n ho 2015 A CID AD E EM MO VIMEN TO | C.H .M. Li ma |43 Essas questões estão relacionadas à prática crítica em seu sentido espacial, ou seja, à impressão deixada por grupos e indivíduos nos espaços urbanos. Para Hirsh e Miessen (2012), essa prática crítica está relacionada também ao alargamento das fronteiras disciplinares observado em décadas recentes, o que levanta questões sobre os limites tectônicos e materiais do que é, de fato, o espaço construído da cidade. Testar as fronteiras e limites das disciplinas que lidam com o espaço é parte do que subsidia as discussões dos coletivos urbanos aqui analisados. O caráter restritivo e excludente, pelo qual se delibera sobre as atividades que são permitidas na cidade, é fundamental para se pensar o caráter desestabilizador dessas ações, centradas na abertura de possibilidades e espaços de imaginação. Trata-se de pensar no caráter público dos espaços, seus limites e possibilidades, dado que, quanto mais abertas e intensas forem as interações nos espaços livres, mais efetiva será sua transformação. Pensar a programação dos lugares é refletir sobre o espaço relacional que se cria. Para Doron, o que estes lugares públicos tem em comum é “[…] a ausência de um programa definido, […] a impossibilidade de atribuir um termo concreto abre espaço para usos informais, o que desestabiliza a identidade desses lugares”1 (DORON, 2007, p.220, tradução minha). Propõe-se pensar aqui na ação desses coletivos a partir de dois casos referenciais. O primeiro se refere à intervenção temporária do coletivo de arte Opavivará!, no Rio de Janeiro, que propõe ocupações livres como forma de resistência. Em seguida, serão analisadas as ações do coletivo Ônibus Hacker e o empenho de seus integrantes na reconquista do espaço, a partir de incursões físicas e virtuais. Entende-se que esses movimentos adotam diferentes estratégias — sejam artísticas ou políticas —, como forma de ativar a vida urbana em suas múltiplas dimensões. O OPAVIVARÁ! NO RIO DE JANEIRO O Opavivará é um coletivo de arte e intervenção urbana do Rio de Janeiro, que desenvolve ações em espaços públicos, galerias e instituições, propondo dispositivos relacionais que proporcionem experiências coletivas. Desde 2005, o grupo vem refletindo sobre a rua como lugar de mediação entre público, espectador e obra. Entre maio e junho de 2012, o Opavivará! ocupou a Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, transformado-a em espaço doméstico, com estruturas que reproduziam cômodos como cozinha, lavanderia, mesas e cadeiras, disponíveis para qualquer tipo de interação. A Praça Tiradentes é um espaço histórico da cidade e vinha sofrendo um “processo de degradação2” (BORDE, 2006, p.7), não muito diferente do que se vê no centro de outras grandes metrópoles. Essa intervenção se caracteriza por buscar a redefinição do público contra o encolhimento de seus domínios, por meio de uma atitude contrastante. As cadeiras, mesas e a cozinha coletiva inscrevem um signo privado no lugar público, devolvendo o O cul um ens. | Campi nas | 12(1) | 39-48 | Janei ro-Junho 2015 | 44 A C I D A D E E M M O V IM E NT O | C .H.M . Lim a sentido de interação e convívio para a praça, por meio de uma manifestação ritual. “É cozinhando que a gente se entende” torna-se o lema desse trabalho, que reúne símbolos e relações em torno de uma cozinha, conferindo a ela um aspecto humano e político. As propostas do Coletivo Opavivará! criticam o declínio de experiências coletivas, do sentido da vida pública e das concepções estreitas sobre lugares. A ambiência programada, presente em diversos projetos urbanos contemporâneos — com interações e posições definidas e projeções estabelecidas para os sujeitos —, pode ser desfeita pela situação ativista (ou artística) interventora. Para Arrabal (2011), esse é um modo de conceber uma “cartografia autônoma” em que o cidadão não seja mero espectador, mas possa propor um território de liberdade. Esse território autônomo, resultante da tensão entre espectador e cidade, também está presente na intervenção Desvende-se, cujo tema também é a transformação recente do Rio de Janeiro, resultado da forma pouco inclusiva pela qual o capital privado se associa às instâncias de governo. Com inspiração nos blocos de carnaval, paradas e cortejos, o grupo realizou uma ocupação em movimento, com o intuito de desvendar os espaços da cidade que estão em plena metamorfose, caso da região portuária da cidade. Assim, a intervenção desperta o olhar do público para uma dimensão crítica e afetuosa desse território complexo. Esses temas se desdobram em outras intervenções do coletivo. A obra Cangaço — realizada no Rio de Janeiro, em 2013 <http://opavivara.com.br>, trouxe um conteúdo crítico para a praia, geralmente entendida como lugar de distração e convívio. Diversas cangas foram dispostas nas areias do Arpoador, com mensagens que ressoavam as manifestações de junho de 2013, ocorridas em diversas cidades brasileiras. Com clareza e despojamento, os temas das ruas migraram para a praia, por meio de uma atitude contrastante com aquela paisagem de descanso e lazer. ÔNIBUS HACKER, ATIVISMO CONECTADO É incontestável que o contexto das ações críticas é marcado pela descentralização e fragmentação proporcionadas pela sociedade da informação. Essa forma de ativismo pode ser associada a diversas definições, como a noção de “tecnopolítica”, entendida pelo grupo Datanalysis15M como o “[…] uso tático e estratégico de dispositivos tecnológicos para a comunicação, organização e ação coletiva” (TECNOPOLÍTICA…, 2013, p.40). A tecnopolítica não coincide com o ciberativismo, por não estar restrita à esfera digital; manifesta-se como uma tomada do espaço público físico, digital e midiático, capaz de orientar ações tanto nas redes como nas cidades. As redes, nesse sentido, não apenas possuem um papel de construir e coordenar, mas propiciam um impulso transformador da própria natureza dessas ações criticas e sociais. Este termo descreve, em larga medida, a atuação do coletivo Ônibus Hacker. O Ônibus Hacker é um laboratório móvel em que hackers de especialidades diversas embarcam com um desejo comum: ocupar cidades brasileiras com ações políticas3. Oc ulu m e n s . | C a m p i n as | 12(1) | 39-48 | Jan eir o- Ju n ho 2015 A CID AD E EM MO VIMEN TO | C.H .M. Li ma |45 De maneira semelhante, o filósofo Lévy (1999) prevê a articulação entre o desenvolvimento urbano e novas formas de inteligência coletiva, capaz de resultar em novos padrões espaciais derivados dessas interações, dada sua capacidade de fortalecer as redes de participação e parceria. As intervenções do Ônibus Hacker são construídas em torno de palestras sobre cultura digital e software livre, que acontecem simultaneamente a oficinas sobre transparência na divulgação de dados, mapeamento e cartografia, práticas de compartilhamento digital, dentre outros temas. São ações que mostram como a diversidade urbana pode ser um fator essencial para a construção de saberes e de ações compartilhadas e práticas cotidianas que favoreçam a conformação do território por meio de redes de informação e diálogo. COLETIVOS URBANOS PELA TRANSFORMAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO A transformação dos modos de constituição do espaço em favor da coletividade pode alterar as camadas de discurso escondidas entre práticas e convivências. Nos dois exemplos abordados neste estudo foi possível identificar ao menos duas questões que permeiam demandas recorrentes no campo do urbanismo: - Contra o declínio dos espaços públicos abertos. Observam-se nas cidades brasileiras ciclos de ascensão e declínio, em que a substituição de usos é um processo comum, que faz parta da vitalidade urbana. No entanto, quando essa situação é ocasionada pela ausência de políticas públicas ou por práticas de governo pouco participativas, o resultado é a subtração desse domínio público e das formas de convívio que ele proporciona. Diante desse cenário, surgem vozes que se colocam contra modelos de cidade pouco abrangentes e inclusivos, e que valorizam as áreas urbanas livres não apenas como espaço de uso apaziguado, mas como lugar de apropriação política, em sua esfera simbólica ou cotidiana. - Pela mobilidade das ideias. A possibilidade da troca de saberes permeia as formas de sociabilidade nos espaços públicos. Os estágios crescentes de especialização, bem como as formas pouco abertas de concepção dos projetos urbanos de hoje, tendem a excluir pequenas comunidades em favor de cidades “vendáveis”, com maior capacidade de atrair investimentos e gerar riqueza. Essa mediação entre global e local já foi proposta por inúmeros autores. Para Sassen (2006), ainda que as chamadas cidades globais apresentem grande homogeneidade e clivagens diversas, existem mais particularidades do que se possa imaginar na microescala urbana, especialmente no que diz respeito à preservação do caráter público do ambiente construído. Nessa conjuntura, a cidade se torna o ambiente profícuo da disseminação e da troca, como um espaço em que a ação solidária pode proporcionar o realinhamento de mentalidades em favor da equidade. Nesse sentido, mostra-se promissora a vinculação entre o campo do urbanismo e as áreas correlatas, por auxiliar a construção de métodos e formas de abordagem do projeto urbano e sua gestão. O cul um ens. | Campi nas | 12(1) | 39-48 | Janei ro-Junho 2015 | 46 A C I D A D E E M M O V IM E NT O | C .H.M . Lim a A CIDADE INSURGENTE: OS MOVIMENTOS COMO FORMA DE AÇÃO POLÍTICA A análise acerca dos movimentos sociais abre espaço para se questionar o caráter centralizador com que são conduzidas as políticas públicas de planejamento. Aqueles grupos de indivíduos se multiplicam em metrópoles do Brasil e do mundo, reivindicando autonomia para segmentos que muitas vezes ficam à margem dos ciclos de desenvolvimento. São inúmeras as atividades e os modos de intervenção que lançam novas leituras em face dos espaços de programação mais rigorosa. Os edifícios e a cidade se tornam lugares da manifestação de demandas escondidas, de sistemas latentes que não encontram espaço na lógica da cidade formal. Coletivos como Opavivará! e Ônibus Hacker buscam inserir elementos de imprevisibilidade e interação mútua, ou, ainda, promover o descolamento do olhar para espaços ociosos, que estejam em desacordo com a ótica do trabalho e da produção. Nesse sentido, pode-se pensar o urbanismo como campo ligado aos aspectos de representação e reconhecimento, dentro de uma dinâmica maior dos conflitos sociais, relacionada aos sujeitos e às suas “[…] condições intersubjetivas de integridade” (HONNETH, 2003, p.269). Os ativistas e os grupos organizados de empreendimentos artísticos são resultado da cultura urbana de massa e da proliferação de ferramentas tecnológicas que fizeram surgir novas abordagens acerca das cidades, o que redefine em parte a atuação do arquiteto e do urbanista. Essa leitura possui pontos de convergência com outras análises. Harvey (2000) utiliza a expressão “arquiteto rebelde em ação” para descrever um agente coletivo dotado de grande capacidade e empenhado na transformação social. Para Harvey (2000), essas ações transformadoras, orientadas em uma longa fronteira de práticas políticas rebeldes, deve acontecer em diversas escalas da vida pública para que a sociedade seja alterada por meio de atitudes colaborativas. Esse arquiteto rebelde nasce na certeza de que a forma arquitetônica não deriva (ou não deveria derivar) apenas de uma abordagem técnica, mas de uma negociação contínua entre interações mutáveis no trabalho de campo e a sociedade. Talvez resida aí um dos limites dessas abordagens: na interseção entre as instâncias e os agentes, na construção de um campo epistemológico suficientemente aberto para se adaptar ao cenário instável das dinâmicas urbanas. Dada a diversidade de vozes empenhadas na afirmação de diferentes modos de vida, muitas abordagens sobre o espaço urbano acabam se tornando frágeis, diante de seu aspecto totalizante e redutor. Além do uso de espaço público e da mobilidade de ideias, a construção de uma metodologia compartilhada com áreas diversas poderá evidenciar desvios ou levantar questionamentos sobre outros temas, como a constituição de identidades coletivas e participação em processos decisórios, tal qual descrito por autores como Healey (2012). Esse um caminho possível para a construção de cidades mais abrangentes e inclusivas. Oc ulu m e n s . | C a m p i n as | 12(1) | 39-48 | Jan eir o- Ju n ho 2015 A CID AD E EM MO VIMEN TO | C.H .M. Li ma |47 CONSIDERAÇÕES FINAIS Foram debatidas neste trabalho intervenções que levantam a possibilidade de participação e diálogo entre coagentes, que poderão se reconhecer em ações interventoras, discutir alternativas e transformar o uso de espaços públicos. Deve-se pensar que esses confrontos resultantes da capacidade de mobilização podem se materializar em diversas formas, construindo uma inserção crítica mais significativa dentro do tecido social. As coletividades urbanas, assim como os movimentos e práticas ativistas, relativizam a questão dos lugares e de sua apropriação pelos sujeitos. Entende-se que os processos de subtração da vida pública, tanto quanto de degeneração urbana, estão assentados em pautas pouco inclusivas, na contramão da alteridade, considerada esta uma das principais características da condição urbana. No contexto contemporâneo, a pluralidade de vozes demanda não apenas que o urbanismo se vincule a aspectos materiais, normativos e jurídicos, mas que incorpore em sua estrutura de projeto e planejamento as nuances reveladas pelos diversos movimentos que ecoam na cidade. A partir desta análise, podem surgir estratégias para a prática urbanística fundada na produção de mudanças graduais e sucessivas, empenhadas na participação dos diferentes atores desse processo, avessos ao caráter totalizante dos grandes planos. Estratégias que possam ampliar o envolvimento das comunidades locais, formulando espaços produtivos para o âmbito público. NOTAS 1. Em seu texto sobre espaços de indeterminação, Doron afirma: “Underlying all these spaces is the lack of a definite program; […], the impossibility of enforcing it exclusively opens the space to informal uses, a situation that destabilizes the identity of these places” DORON, G. Transgressive Urban Space. In: FRANCK, K.; STEVENS, Q. Loose space: Possibility and diversity in urban life. London: Routledge, 2007. p.219-220. 2. Em sua tese sobre a atualidade dos vazios urbanos e seu impacto no tecido urbano do Rio de Janeiro, Andrea Borde discorre: “A noção de degradação está relacionada, no urbanismo, à destituição de qualidades físicas, formais e funcionais de uma edificação ou conjunto urbano. As suas causas incluiriam desde as perversas consequências da especulação imobiliária até a presença de segmentos sócio econômicos de mais baixa renda cujos hábitos estabeleceriam uma contraposição com aqueles das elites. Esta noção deve ser, no entanto, questionada uma vez que ela tem sido utilizada usualmente para justificar ações de renovação urbana, de expulsão da população e outras tantas ações que se contrapõem à existência da desejada diversidade e equidade urbanas”. In: BORDE, A. Vazios urbanos: perspectivas contemporâneas. 2006. Tese (Doutorado) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. 3. “Por política, entendemos toda apropriação tecnológica, todo questionamento e exercício de direitos”. Disponível em: <onibushacker.org>. Acesso em: 3 abr. 2013. O cul um ens. | Campi nas | 12(1) | 39-48 | Janei ro-Junho 2015 | 48 A C I D A D E E M M O V IM E NT O | C .H.M . Lim a REFERÊNCIAS ARRABAL, O. Atalho contemporâneo na avenida moderna ou a critica da razão rua. 2011. Disponí- vel em: <http://opavivara.blogspot.com.br/2010/08/atalho-contemporaneo-na-avenida-moderna. html>. Acesso em: 15 set. 2012. BORDE, A. Vazios urbanos: perspectivas contemporâneas. 2006. Tese (Doutorado) — Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. CASTELLS, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2010. CASTELLS, M. A questão urbana. 4.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011. DORON, G. Transgressive urban space. 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Reitor Pedro Calmon, 550, Prédio da Reitoria, 5º andar, sala 521, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, 21941-901, Rio de Janeiro, RJ, Brasil | E-mail: <grao.ds@gmail.com>. | C a m p i n as | 12(1) | 39-48 | Jan eir o- Ju n ho 2015