Organização
Gleisse Ribeiro Alves
Gabriel Blouin Genest
Eric Champagne
Nathalie Burlone
A CRISE DA COVID-19 NO
BRASIL E SEUS REFLEXOS
Brasília
2021
CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA - CEUB
Reitor
Getúlio Américo Moreira Lopes
Diagramação
Biblioteca Reitor João Herculino
Capa
Marcos Vianna
DAREL/CEUB
Disponível no link:
repositório.uniceub.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
A crise da COVID-19 no Brasil e seus reflexos. / organizadores, Gleisse
Ribeiro Alves [et al]. – Brasília: CEUB, 2021.
437 p.
ISBN 978-65-87823-87-4
1. Políticas públicas. I. Centro Universitário de Brasília. II. Título.
CDU 34:32
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitor João Herculino
Centro Universitário de Brasília – CEUB
SEPN 707/709 Campus do CEUB
Tel. (61) 3966-1335 / 3966-1336
PREFÁCIO
Hoje, mais do que nunca, faz-se necessário termos consciência do papel e do
destino que nos é reservado enquanto cidadãos e enquanto sociedade civil brasileira.
Os problemas sociais existem. Os avanços também. Talvez até os problemas da
humanidade sejam maiores e, portanto, mais desafiadores, tornando a vida mais
complexa e requerendo maiores capacitações de todos para superá-los.
Até porque a pandemia da Covid-19 precipitou uma profunda reformulação
na forma de atuação das instituições públicas que, direta ou indiretamente, lidam
com o enfrentamento de uma das maiores crises sanitárias vivenciadas pela
humanidade.
O ineditismo da situação, associado à acelerada disseminação do
desconhecido vírus entre a população, obrigou diferentes governos de diferentes
localidades e esferas a promover um rápido ajuste na máquina pública, que, por
força da difícil e inesperada conjuntura, precisou ser preparada às pressas para lidar
com os inúmeros problemas que emergiram em razão da crise.
O Brasil e o Distrito Federal, entidade federativa que abriga os poderes da
República, não fugiu à regra. Como em outras partes do mundo, aqui os efeitos da
pandemia foram rapidamente sentidos, com a explosão do aumento de casos de
infecção pela SARS-COV-2 e seu rastro sinistro de internações hospitalares e
mortes.
O quadro obrigou os Governos Federal, Estadual e Distrital a adotar uma
série de medidas administrativas para lidar com a delicada circunstância. O mesmo
ocorreu com outras instituições. Antes mesmo da declaração pública de pandemia,
realizada em 11 de março de 2020 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a
gravidade da situação já batera à porta do Ministério Público brasileiro e do próprio
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
Cabendo a este Procurador Distrital dos Direitos do Cidadão a coordenação
da Força-Tarefa, que teve como principal fundamento de sua criação a necessidade
de fortalecer a integração entre procuradorias, promotorias, núcleos e grupos do
MPDFT na defesa dos direitos coletivos e no controle das políticas públicas no
contexto de crise sanitária de grande impacto socioeconômico.
E neste contexto recebi, com muita satisfação, de Gleisse Ribeiro Alves,
querida Professora e Doutora em Direito Internacional pela Universidade Lorraine
da França, professora do CEUB e colaboradora do nosso Núcleo de Estudos e
Pesquisas Avançadas no Terceiro Setor (NEPATS), o honroso convite para prefaciar
obra por ela organizada, em conjunto com os dedicados Professores Gabriel Blouin
Genest, da Universidade de Sherbrooke, e de Eric Champagne e Nathalie Burlone,
ambos da Universidade de Ottawa.
A Obra intitulada “A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS
REFLEXOS” foi gestada a partir de pesquisas realizadas pelo Grupo de Pesquisa do
CEUB sobre Governança Global, coordenada pela diligente Professora Gleisse
Ribeiro, e que integrou o projeto de pesquisa intitulado: “The influence of multilevel
governance, transnational actors and public health information during COVID-19”
liderado pelo atuante Professor Gabriel Blouin Genest da École de Politique
appliquée, Université de Sherbrooke/Canadá.
Destaque-se que para realização dos artigos, duas grandes frentes de trabalho
foram realizadas ao longo dos últimos dois anos. A primeira com os estudantes do
CEUB (curso de Relações internacionais e Direito) e mesmo egressos convidados a
integrarem o projeto, divididos em grupos temáticos tais como: COVID-19 aspectos
econômicos; COVID-19 aspectos políticos; COVID-19 aspectos sociais; COVID-19
aspectos jurídicos. Frentes estas coordenadas por diversos professores para que os
estudantes tivessem uma orientação na pesquisa e redação dos trabalhos. A segunda
com uma Chamada Pública para envio de trabalhos, cujos artigos devidamente
submetidos e aprovados compõem também esta obra coletiva.
Confesso que ao ler os artigos e nas conversas que tive com a Professora
Gleisse, constatei significativo esforço dos estudantes e dos próprios professores que
muito se dedicaram, durante a pandemia, na realização da pesquisa. Inclusive, com
reuniões em grupo para debate dos temas da própria pesquisa, tudo a propiciar um
ambiente de partilha e até de angústias, inclusive para superação de desafios e
obstáculos que todos tiveram.
Constato também a importância de uma Chamada Pública para envio de
trabalhos que foram avaliados pelos organizadores. Tem como tópico que permeia
todos os artigos a visão de que toda contribuição acadêmica é importante para trazer
a lume os desafios pelos quais passaram e ainda passam os nossos governos e a
própria sociedade no desafio de superar a Pandemia provocada pela Covid-19.
Portanto, a obra é, indubitavelmente, fruto de um esforço coletivo e solidário
de muitos. Posso dizer que a obra apresenta-se, no contexto dos artigos produzidos
pelos Grupos de Pesquisas, em 5 (cinco) partes.
A primeira, que inclusive abre a coletânea, denominada “AS TRÊS FASES
DA POLÍTICA SANITÁRIA NACIONAL DURANTE A GRIPE ESPANHOLA:
ELEMENTO CATALISADOR DE MUDANÇAS (1918-1920)”, dos autores Adan
Martins Caetano e Jefferson Seidy Sonobe Hable, traz a lume fatos ocorridos no Rio
de Janeiro e no Brasil, há pouco mais de 100 anos, que servem de lição e orientação
para nossos gestores de hoje, vez que trata do processo histórico de formação da
política nacional de saúde pública brasileira, tendo a gripe espanhola como elemento
catalizador e motivador de mudanças e avanços na proteção à saúde coletiva.
A segunda “A ODISSEIA SOCIOECONÔMICA BRASILEIRA: UMA
HISTÓRIA CONTADA A PARTIR DA DÉCADA 60 E DESEMBOCADA NA
PANDEMIA DO COVID-19”, trabalho coordenado pela professora Patrícia Prego e
escrito pelos alunos Marco Vinicius Quevedo e Tiago Rezende Alves, oferece
interessante análise do histórico econômico brasileiro, a partir da década de 60, com
seus planos econômicos e políticos, com a abordagem das ações e reflexos na
economia do país e, por fim, aborda os impactos da Pandemia no âmbito social e
econômico, com análise e decisões das ações de enfrentamento e seus impactos a
curto e a longo prazo.
O terceiro trata do “PARLIAMENTARY INQUIRY COMMITTEE (CPI)
ON
COVID-19
PANDEMIC
IN
BRAZIL
AND
THE
DEFENSE
OF
DEMOCRACY IN CRISIS”, escrito pela Professora Gleisse Ribeiro Alves, em
conjunto com as alunas Fernanda Lopes de Oliveira e Letícia Mendes Silva, cujo
título em português pode ser traduzido como: “Comissões Parlamentares de
Inquérito (CPI) sobre a pandemia de Covid-19 no Brasil e a defesa da democracia
em crise”, aponta o processo legislativo brasileiro como uma importante ferramenta
de políticas públicas para criação de novas propostas de legislação. Destacam as
autoras que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a pandemia Covid-19,
instalada em 2021, expôs o governo brasileiro falhas em lidar com a pandemia
global, acumulando mais de 600 mil mortes. Esclarecem qual é o papel da CPI e o
que ela significa para o Brasil e a democracia, explicando inclusive sua competência
e seus impactos na política, e demonstrando como se torna uma importante
ferramenta para democracia do Brasil em crise.
O
quarto
artigo
“A
PARADIPLOMACIA:
ALTERNATIVA
DE
FINANCIAMENTO VIÁVEL PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE?”,
sob a coordenação da Professora Gleisse Ribeiro Alves, reúne os alunos: Eryck
Chaves Tavares, Helohane Rodrigues Carneiro Pereira, Pedro Carvalho de Holanda
Rodrigues, Victor Hugo Xavier dos Santos, Laura Luiza Gonçalves Teixeira, Leticia
Rodrigues de Carvalho, Carlos Eduardo Soares e Victor Jak van Erven Sigaud.
Neste trabalho, os autores destacam a disparidade de resposta à crise realizada pelo
Brasil, no tangente à pouca sinergia entre as diversas dimensões políticas realizadas
por cada ente federativo. Discorrem também sobre as dificuldades do Estado
brasileiro em prover o direito fundamental à saúde e, também, identificam e apontam
as atuações da paradiplomacia, por parte dos entes federativos, no enfrentamento e
subfinanciamento da saúde pública no Brasil.
O quinto “ENTRE CIÊNCIA, DIREITO E POLÍTICA: ACESSO E
UTILIZAÇÃO PRIORITÁRIA DE EQUIPAMENTOS E SERVIÇOS DE SAÚDE
POR PESSOAS COM DEFICIÊNCIA EM TEMPOS DE PANDEMIA”, escrito por
Ana Cláudia M. de Figueiredo, Ana Cláudia Brandão, Isabela Sousa, Letícia Mares
Antunes e coordenado pela Professora Luciana Barbosa Musse, aborda e enfoca o
tema do acesso aos equipamentos e serviços de saúde por pessoas com deficiência
em tempos de pandemia, destacando e identificando que não houve priorização do
acesso prioritário a equipamentos e serviços, face a não concretização de políticas
públicas apresentadas em projetos de lei nos vários âmbitos federativos.
A obra como fiz menção ao iniciar esta apresentação compõe de artigos
oriundos de estudos de Grupos de Pesquisas e de artigos oriundos de Chamada
Pública, chamada esta que ocorreram e foram avaliados textos dos mais variados
temas, tudo no contexto da Covid-19, constantes da presente obra.
O primeiro de autoria de Carolina Reis Jatobá Coêlho, com o título de
“DISTRIBUTION
NATIONAL
OF
ADMINISTRATIVE
AUTHORITIES
IN
COMPETENCES
BRAZILIAN
FEDERATIVE
BETWEEN
HEALTH
SYSTEM: INTERNATIONAL VACCINE PURSHASE CONTRACTS AND
PARADIPLOMACY”, que pode ser livremente traduzido como: “Distribuição de
competências administrativas entre autoridades no Brasil sistema de saúde
federativo: compra de vacina internacional, contratos e paradiplomacia”, e que
apresenta importantes reflexões a respeito do federalismo brasileiro, destacando a
importância de que haja uma entidade central não apenas responsável por tomar suas
próprias decisões administrativas (especialmente quando a política pública precisa
ser uniforme em todo país) ou quando mesmo como diferenças regionais no
tratamento administrativo e legislativo, mas também que apresenta orientação
mínima é essencial quanto às premissas a serem adotadas pelas outras entidades
federal, estados-membros, Distrito Federal e municípios. Observou o artigo que os
Estados-Membros desempenharam um papel de liderança, atuação na negociação,
compra e aplicação de imunizantes (vacinas). Ao observar que os Estados-Membros
assumiram a liderança na implementação de políticas de saúde, percebeu-se um
adensamento do fenômeno da paradiplomacia, o que não é novo no cenário
brasileiro, mas que foi amplamente utilizado como instrumento político na crise do
Covid-19.
O segundo artigo da chamada pública é de autoria de Paulo Roberto de
Almeida, com o título: “O Brasil e a pandemia de Covid-19: aspectos
internacionais”, apresenta ensaio acadêmico com abordagem das ações do Governo e
da diplomacia atuais, destacando na visão do autor seu posicionamento ideológico e
negacionista no enfrentamento da crise.
O terceiro artigo de Renato Zerbini Ribeiro Leão, sob o título “The UNITED
NATIONS COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGTHS
AND THE FIGTH AGAINST COVID-19”, que pode ser livremente traduzido por
“O controle das Nações Unidas para assuntos econômicos, sociais e culturais e
direitos na luta contra a Covid-19”, destaca que o combate à pandemia de Covid-19
conta com meios de proteção que levam os direitos humanos em consideração e que
o Pacto Internacional sobre Economia, Social e Direitos Culturais (PIDESC), que
inclusive fornece um regime consolidado para a afirmação e proteção desses
direitos, tanto pela sua composição como pelos seus princípios consagrando a
existência de um verdadeiro regime de proteção à saúde.
O quarto artigo “O POSICIONAMENTO DO BRASIL PERANTE ÀS
NAÇÕES UNIDAS, A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE E A
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO DURANTE A PANDEMIA DE
COVID-19: QUEBRA DOS PADRÕES TRADICIONAIS DA DIPLOMACIA
NACIONAL”, dos autores Elisa de Sousa Ribeiro, André Mendes Pini e Júlio
Edstron S. Santos, destacam como a diplomacia brasileira abordou os temas ligados
à pandemia de Covid-19 perante às Nações Unidas, a Organização Mundial da
Saúde e a Organização Mundial do Comércio. Em posicionamentos paradigmáticos,
o país quebrou padrões tradicionais de sua política externa em benefício de uma
visão ideológica voltada a um suposto liberalismo (econômico e político, ligado a
direitos de primeira geração) e a um alinhamento aos interesses estadunidenses.
O quinto artigo do Pós-Doutor Marcus Firmino Santiago, intitulado
“CHAMEM O ESTADO! A CRISE SOCIAL E ECONÔMICA CAUSADA PELA
PANDEMIA DO COVID-19 É A OPORTUNIDADE PARA ENTERRAR A
AUSTERIDADE FISCAL”, traz abordagem atual e reflexiva sustentando que a
gravidade do quadro social vivido hoje foi potencializada pelas escolhas da década
anterior com sua aposta na redução do papel estatal como garantidor do bem estar
social e que a saída para esta e outras crises humanitárias que possam surgir reside
no fortalecimento da capacidade interventiva e regulatória do Estado. Concluindo
por muito bem afirmar que “Combater as consequências sociais decorrentes da
pandemia exige uma ação estatal ampla e constante. Os mercados privados não
socorreram e não socorrerão as famílias que passam fome, as pessoas que ficaram
sem emprego, que caíram doentes, que carregarão sequelas físicas e emocionais”.
“OS CONTRATOS DE VENDA FUTURA DE COMMODITIES EM
TEMPOS PANDÊMICOS: QUESTÕES SOBRE IMPREVISIBILIDADE E
ALEATORIEDADE”, de Danilo Porfírio de Castro Vieira e Daniella Rebelo dos
Santos Chaves é o sétimo artigo oriundo da chamada pública e busca expor que os
eventos pandêmicos não
são
suportados pela
alea
negocial,
mas pela
imprevisibilidade, ao analisar os contratos de compra e venda futura de cereais,
feitos anteriormente ao surto pandêmico, sofreram efeitos inesperados e
supervenientes, em função da dimensão global da doença, gerando perdas e
prejuízos superiores a média de mercado, transcendendo os riscos suportados em
uma alea negocial.
“SEXUALIDADE E INTERAÇÕES VIRTUAIS NO CONTEXTO DA
PANDEMIA DE COVID 19” é o título do trabalho de Breno Ribeiro Custódio de
Carvalho e Aline Sapiezinskas Kras Borges. Abordam tema novo oriundo das
consequências e do próprio medo de contágio do vírus, questionando os possíveis
impactos dessa situação de aumento das interações virtuais sobre a sexualidade dos
indivíduos solteiros.
Hédel de Andrade Torres e Barbara Tude de Souza Ferreira trazem a baila
uma das formas mais graves de violação de direitos humanos que é o tráfico de
pessoas, tanto no Brasil como no mundo. E, com o contexto “REFLEXOS DA
PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19) NO AUMENTO DE VÍTIMAS
DE TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL E NO MUNDO” o artigo analisa o
crime de tráfico de pessoas de maneira a apresentar de quais maneiras a pandemia
tem influenciado os diversos indicadores desse crime e colaborado para o aumento
de suas vítimas em todo o mundo.
Como bem colocado por Alexandre Pereira da Rocha, Mayara Lima Tachy,
Welliton Caixeta Maciel e Valéria Vânia Costa da Silva, no artigo “SEGURANÇA
PÚBLICA, PERSECUÇÃO PENAL E PRISÕES NO DISTRITO FEDERAL EM
TEMPOS DE PANDEMIA DE COVID-19”, “a pandemia do novo Coronavírus
atingiu o Brasil em proporções preocupantes. Nesse cenário, os campos da segurança
pública, da persecução penal e das prisões no Distrito Federal também estão
inseridos”. E tal constatação motivaram os autores a pesquisarem relevante tema,
concluindo por afirmar que os direitos, por si só, não consegue solucionar os
problemas de saúde pública dos presídios do DF.
Rodrigo Augusto Lima de Medeiros, com o artigo “PARTICIPAÇÃO E
REGULAMENTAÇÃO NO ÂMBITO DO CONSELHO NACIONAL DO MEIO
AMBIENTE:
O
CONAMA
ENQUANTO
TERMÔMETRO
DOS
INSTRUMENTOS DE POLÍTICA AMBIENTAL BRASILEIRA DURANTE A
EMERGÊNCIA SANITÁRIA COVID19”, faz excelente abordagem e explora
dimensões simbólicas da institucionalização da política ambiental e privilegia a
interpretação de tais mudanças gerenciais no âmbito do Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama) por meio do exame de discursos, leis, decretos, resoluções,
gráficos e tabelas, discutindo a importância e a efetividade da participação da
sociedade civil na efetividade das decisões do Colegiado.
O artigo “COMPLEXO REGULADOR E ERA COVID: ESTUDO
PRELIMINAR”, de Simone Luzia Fidélis de Oliveira, Marcela Vilarim Muniz,
Domitília Bonfim de Macêdo Mihaliuc e Lúcia Helena Bueno da Fonseca, aborda
questão vital no âmbito da saúde. A Central de Regulação de Internação Hospitalar
do Complexo Regulador de Saúde do Distrito Federal que tem, dentre suas funções,
a priorização, controle e gestão de acesso a leitos de Unidade de Terapia Intensiva.
Com a pandemia da COVID-19, houve crescimento exponencial na busca por esses
leitos, oriundo da demanda do sistema de atendimento nas unidades públicas e do
sistema de judicialização.
A pesquisa de Joaquim Pedro Ribeiro Vasconcelos, Bruna Carvalho Barros
Rosa Nobre, Izabel Cristina Bruno Bacellar Zaneti e Sílvia Maria Ferreira
Guimarães, com o título “PANDEMIA DE COVID-19 E A VULNERABILIDADE
DOS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS NO BRASIL”, revela a
situação complexa dos catadores de materiais recicláveis diante da pandemia de
Covid-19 no âmbito nacional e distrital. E os resultados demonstram que a realidade
imposta pela pandemia do novo coronavírus agravou mais ainda o contexto de
vulnerabilidade social dos catadores. A crise sanitária instaurada pela proliferação do
SARS-COV-2 mostrou que esses trabalhadores são os mais vulneráveis no ciclo da
reciclagem, o que intensifica a necessidade da proteção social do Estado em suas
vidas, tanto no momento da pandemia quanto póspandemia de Covid-19.
.
Assim, este livro composto pela coletânea de excelentes artigos realizados
pelos Grupos de Pesquisas e pela Chamada Pública, vem, pelo seu conteúdo,
justamente se harmonizar com os desafios sempre presentes em nossa sociedade, que
busca, a cada dia, ser mais justa e que só o será, em sua plenitude, com a
contribuição de todos, por meio de um comportamento ético, transparente e
responsável.
Por tudo, concluo ser fundamental estarmos todos nós, cidadãos, sensíveis às
transformações da sociedade, para sermos, com dignidade e ética, capazes de
mantermos permanente compromisso com um mundo mais justo, em que a paz e o
respeito mútuo sejam a tônica e o corolário de nossas relações pessoais, sociais e
profissionais, independente de qual situação que possa impactar nossas vidas.
Tenham todos uma excelente leitura!
José Eduardo Sabo Paes
Procurador de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pelo Centro de Estudos Interdisciplinares, do Ius
Gentium Conimbrigae, Coimbra - Portugal
Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri
SUMÁRIO
AS TRÊS FASES DA POLÍTICA SANITÁRIA NACIONAL
DURANTE A GRIPE ESPANHOLA: ELEMENTO CATALISADOR
DE MUDANÇAS (1918-1920) ................................................................... 15
Alan Wruck Garcia Rangel; Adan M. Caetano; Jefferson Seidy Sonobe
Hable
A ODISSEIA DA SOCIOECONOMIA BRASILEIRA: UMA
HISTÓRIA CONTADA A PARTIR DA DÉCADA 60 E
DESEMBOCADA NA PANDEMIA DO COVID-19 ............................. 41
Marco Vinicius Quevedo; Tiago Rezende Alves
DISTRIBUTION OF ADMINISTRATIVE COMPETENCES
BETWEEN NATIONAL AUTHORITIES IN BRAZILIAN
FEDERATIVE HEALTH SYSTEM: INTERNATIONAL VACCINE
PURSHASE CONTRACTS AND PARADIPLOMACY
...................................................................................................................... 60
Carolina Reis Jatobá Coêlho
PARLIAMENTARY INQUIRY COMMITTEE (CPI) ON COVID-19
PANDEMIC IN BRAZIL AND THE DEFENSE OF DEMOCRACY IN
CRISIS ........................................................................................................ 73
Gleisse Ribeiro Alves; Fernanda Lopes de Oliveira; Letícia Mendes Silva
O BRASIL E A PANDEMIA DA COVID-19: ASPECTOS
INTERNACIONAIS .................................................................................. 85
Paulo Roberto de Almeida
THE UNITED NATIONS COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL
AND CULTURAL RIGHTS AND THE FIGHT AGAINST COVID-19
.................................................................................................................... 110
Renato Zerbini Ribeiro Leão
A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NO PRIMEIRO ANO DE
GESTÃO DA PANDEMIA DE COVID-19: QUEBRA DOS PADRÕES
TRADICIONAIS DA DIPLOMACIA NACIONAL ............................ 137
Elisa de Sousa Ribeiro; André Mendes Pini; Júlio Edstron S. Santos
A PARADIPLOMACIA: ALTERNATIVA DE FINANCIAMENTO
VIÁVEL PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE? ............. 172
Gleisse Ribeiro Alves; Eryck Chaves Tavares; Helohane Rodrigues Carneiro
Pereira; Pedro Carvalho de Holanda Rodrigues; Victor Hugo Xavier dos
Santos; Laura Luiza Gonçalves Teixeira; Leticia Rodrigues de Carvalho;
Carlos Eduardo Soares; Victor Jak van Erven Sigaud
CHAMEM O ESTADO! A CRISE SOCIAL E ECONÔMICA
CAUSADA PELA PANDEMIA DO COVID-19 É A OPORTUNIDADE
PARA ENTERRAR A AUSTERIDADE FISCAL ............................... 201
Marcus Firmino Santiago
OS CONTRATOS DE VENDA FUTURA DE COMMODITIES EM
TEMPOS PANDÊMICOS: QUESTÕES SOBRE
IMPREVISIBILIDADE E ALEATORIEDADE .................................. 225
Danilo Porfírio de Castro Vieira; Daniella Rebelo dos Santos Chaves
SEXUALIDADE E INTERAÇÕES VIRTUAIS NO CONTEXTO DA
PANDEMIA DE COVID 19 .................................................................... 237
Breno Ribeiro Custódio de Carvalho; Aline Sapiezinskas Kras Borges
A EPIDEMIA DE DIVÓRCIOS: MAIS UMA CONSEQUÊNCIA DA
COVID-19? ............................................................................................... 248
Aline Sapiezinskas Kras Borges Canani; Ronald Henrique Leal Acipreste
REFLEXOS DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19) NO
AUMENTO DE VÍTIMAS DE TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL E
NO MUNDO ............................................................................................. 258
Hédel de Andrade Torres; Barbara Tude de Souza Ferreira
ENTRE CIÊNCIA, DIREITO E POLÍTICA: ACESSO E
UTILIZAÇÃO PRIORITÁRIA DE EQUIPAMENTOS E SERVIÇOS
DE SAÚDE POR PESSOAS COM DEFICIÊNCIA EM TEMPOS DE
PANDEMIA ............................................................................................. 297
Luciana Barbosa Musse; Ana Cláudia M. de Figueiredo; Ana Cláudia
Brandão; Isabela Sousa; Letícia Mares Antunes
SEGURANÇA PÚBLICA, PERSECUÇÃO PENAL E PRISÕES NO
DISTRITO FEDERAL EM TEMPOS DE PANDEMIA DE COVID-19
.................................................................................................................... 327
Alexandre Pereira da Rocha; Mayara Lima Tachy; Welliton Caixeta Maciel;
Valéria Vânia Costa da Silva
PARTICIPAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO NO ÂMBITO DO
CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE: O CONAMA
ENQUANTO TERMÔMETRO DOS INSTRUMENTOS DE
POLÍTICA AMBIENTAL BRASILEIRA DURANTE A
EMERGÊNCIA SANITÁRIA COVID19. ............................................. 364
Rodrigo Augusto Lima de Medeiros
COMPLEXO REGULADOR E ERA COVID: ESTUDO
PRELIMINAR ......................................................................................... 385
Simone Luzia Fidélis de Oliveira; Marcela Vilarim Muniz; Domitília Bonfim
de Macêdo Mihaliuc; Lúcia Helena Bueno da Fonseca
PANDEMIA DE COVID-19 E A VULNERABILIDADE DOS
CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS NO BRASIL
.................................................................................................................... 411
Joaquim Pedro Ribeiro Vasconcelos; Bruna Carvalho Barros Rosa Nobre;
Izabel Cristina Bruno Bacellar Zaneti; Sílvia Maria Ferreira Guimarães
AS TRÊS FASES DA POLÍTICA
SANITÁRIA NACIONAL DURANTE A
GRIPE ESPANHOLA: ELEMENTO
CATALISADOR DE MUDANÇAS (1918-1920)
Alan Wruck Garcia Rangel1
Adan M. Caetano2
Jefferson Seidy Sonobe Hable3
RESUMO
Trata-se de pequena contribuição sobre o processo histórico de formação da
política nacional de saúde pública, tendo a epidemia da gripe espanhola como
elemento catalisador. Demonstramos, com base na legislação e nos jornais da época,
a ocorrência de diferentes reações sociais e políticas ante à crise sanitária instaurada
no período indicado que contribuíram à centralização da burocracia estatal no
tocante à saúde pública. O estudo também aborda, ainda que de modo indireto, a
relação entre ciência, saúde e política através das transformações ocorridas, em um
curto espaço tempo, no tratamento administrativo da questão sanitária, e emergência
de características do Estado-Cientista.
Palavras-chave: História do Direito Social; Saúde Pública; Epidemia.
ABSTRACT
It is a contribution to the historical process of formation of national public
health, having the “Spanish flu epidemic” as a catalyst. Based on the legislation and
newspapers of the time, we demonstrate the occurrence of different social and
political reactions to the sanitary crisis established in the indicated period, which
contributed to the centralization of the state bureaucracy with regard to public health.
The study also refers, indirectly, to the relationship between science, health and
politics through the transformations that occurred, in a short space of time, in the
1
2
3
Doutor em História do Direito e das Instituições pela Universidade de Estrasburgo, França. Pósdoutorando na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador vinculado ao
Laboratório Interdisciplinar de História do Direito. E-mail: alan.wruck@gmail.com
Internacionalista. Graduado em Relações Internacionais pelo UniCEUB - Brasília/DF. Email: adanm.caetano@sempreceub.com
Advogado. Aluno pesquisador pela Graduate School of Environmental Studies na Universidade de
Nagoya/Japão.
Graduado
em
Direito
pelo
UniCEUB
Brasília/DF.
Email: jefferson.sh@sempreceub.com
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
administrative treatment of the sanitary issue, and the emergence of characteristics
of the State-Scientist.
Keywords: History of Social Law; Public Health; Epidemic
1 INTRODUÇÃO
A pandemia da COVID-19 pegou o mundo de surpresa. Ninguém poderia
imaginar que cem anos depois - em pleno século XXI! -, desde a epidemia da gripe
espanhola de 1918, ainda passaríamos por uma crise sanitária dessa envergadura,
deixando sofrimento e muitas mortes na população do globo. Os avanços na ciência
médica e toda a tecnologia desenvolvida nas últimas décadas não foram suficientes
para estancar o novo vírus que se alastrou rapidamente em escala planetária, e levou
à formação de uma cooperação internacional no seu enfrentamento.
No entanto, apesar das tentativas de se estabelecer uma política sanitária
internacional comum, coordenada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), com
recomendações e diretrizes uniformizadas, na prática, os governantes de cada país
adotavam diferentes posturas diante da pandemia. No Brasil, a postura adotada pelo
presidente da República causou bastante polêmica, ao negar explicitamente a
gravidade de um vírus até então desconhecido pela própria classe médica. Mais de
500 mil mortes e milhares de infectados, protestos da população, várias trocas feitas
na chefia do Ministério da Saúde, abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito
contra o governo para investigar supostos crimes de responsabilidade, tudo isto
revela um cenário generalizado de crise, não só sanitária, mas também institucional,
política e social, desde que a pandemia chegou no território brasileiro em março de
2020.
Algo semelhante o Brasil vivenciou durante a eclosão da gripe espanhola, em
um contexto completamente diferente do atual. A crise sanitária instaurada em 1918
devastou a população, com alto número de óbitos e infectados, e se transformou em
crise política, abalando as instituições, muito por causa da postura adotada pelo
governo nacional no início da epidemia, o que alavancou contestações e reações das
mais diversas.
O presente artigo tem, portanto, como escopo estudar a política sanitarista
desenvolvida no Rio de Janeiro - à época Distrito Federal - nos dois anos que
16
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
transcorreram o surto da gripe espanhola 4. A análise se concentra em um período
curto, mas de grande drama social, compreendido entre 1918 e 1920, e tenta
demonstrar como a epidemia da gripe espanhola impactou a população carioca e o
cenário político republicano e, ao mesmo tempo, alavancou o desenvolvimento de
planos de ação mais amplos, de espectro nacional, para enfrentar uma doença até
então completamente desconhecida.
A historiografia assinala que a gripe espanhola promoveu verdadeiro
despertar de consciência à questão sanitária, e a década de 1920 marca o início da
nacionalização das políticas de saúde e saneamento5. Com efeito, se inaugura, nesta
década, uma fase de intervencionismo estatal que relativiza os preceitos do
liberalismo clássico fundado no princípio do laissez-faire e base de sustentação da
ideologia política da Primeira República. A necessidade de intervencionismo do
governo federal, em um setor até então de competência dos Estados, e imiscuído à
“política dos governadores”6, revela a fragilidade dos serviços de saúde locais à
época7. Até a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em
janeiro de 1920, não havia, portanto, uma administração nacional consistente,
centralizada, no campo da saúde pública.
O estudo tenta estabelecer, através das fontes pesquisadas, diálogo entre
história do direito social e história política, e conhecer os impactos nos campos
sociais e políticos, e medir o intervencionismo federal através da produção
4
Os principais trabalhos sobre a gripe espanhola no Rio de Janeiro são: a dissertação de mestrado de
Adriana Goulart, Um cenário mefistofélico: a gripe espanhola no Rio de Janeiro, de 2003, que depois
foi sintetizado no artigo Revisitando a Espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro
(2005) em que a autora analisa os impactos da gripe nos campos médico e político. O recente livro de
Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2020), A bailarina da morte, que aborda de modo amplo os efeitos
políticos e sociais da gripe espanhola nas principais capitais do Brasil, e no Distrito Federal, em que
retoma muitos elementos mencionados no estudo de Goulart. Um estudo já antigo, mas que serviu de
ponto de partida para os dois trabalhos acima, é o de Nísia Lima e Gilberto Hochman (1998),
Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil redescoberto pelo movimento sanitarista da
Primeira República que, apesar de não situar a gripe no centro da análise, traz informações importantes
sobre o movimento sanitarista no Rio de Janeiro.
5
HOCHMAN; LIMA, 1998, p. 36.
6
A Primeira República é marcada pela descentralização, com grande autonomia conferida aos Estados.
Os governadores dos Estados consentiam em manter sua independência em face do Distrito Federal, e
como moeda de troca firmavam acordo político no qual os Estados economicamente mais expressivos
alternavam a cadeira de presidente da República. Os trabalhos historiográficos que analisam a Primeira
República a partir do marco teoria centro/periferia são abundantes. A grande autonomia administrativa
na periferia levou Schwarcz e Starling (2020) a compreender as diferentes reações sociais e políticas
em face da gripe espanhola a partir dos Estados.
7
Com exceção do Estado de São Paulo que possuía legislação modelo neste setor.
17
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
legislativa. Não se trata, portanto, de dar apenas enfoque à política, centrar a análise
em alguns personagens e retraçar as diferentes medidas tomadas pelas autoridades da
época, nem tampouco utilizar apenas as leis promulgadas como fio condutor da
análise, mas também de colocar em relevo os diferentes questionamentos e reações
em face da epidemia da gripe espanhola.
A “gripe espanhola”, expressão, na verdade, equívoca, pois, como se sabe,
não teve origem na Espanha, é uma doença respiratória provocada pelo vírus
Influenza A (H1N1)8. Não se sabe ao certo onde o vírus surgiu 9, e nem a quantidade
exata de infectados na população do planeta no período pandêmico, entre 1918 e
1919. Há estimativa de que 500 milhões de pessoas tenham sido contaminadas,
deixando 50 milhões de vitimados10, ultrapassando o número de óbitos de civis e
militares durante a guerra.
A gripe desembarcou no Brasil por intermédio da tripulação do navio inglês
Demerara, deixando rastros da doença em todos os portos que atracou. Em setembro
de 1918, o “navio da morte”, como depois ficou conhecido, aportou no Recife,
depois em Salvador, Rio de Janeiro e Santos, para em seguida partir para
Montevidéu. Em questão de meses a doença se alastrava por todo o país, e o Brasil
registrou 35 mil mortes, com a cidade do Rio de Janeiro tendo o maior número de
vítimas11.
No século XIX, os surtos epidêmicos - da febre amarela de 1850 e de 1870,
os mais devastadores -, deixavam rastro de morte e sofrimento, e eram marcados
pelo desconhecimento da ciência médica sobre a sua transmissão. Doenças como a
tuberculose e varíola, que assolaram a população brasileira por séculos, eram
8
A primeira notícia do aspecto epidêmico da gripe aconteceu na Espanha, onde a imprensa não sofria
censura devido ao não envolvimento do país na Primeira Guerra. Tendo em vista que, discutir sobre a
possibilidade de suas tropas serem afetadas pela enfermidade poderia significar uma demonstração de
fraqueza, muitos Estados censuraram a gravidade do problema e classificaram a doença como uma
epidemia espanhola.
9
Alguns estudos atribuem que a moléstia tenha surgido em campos de treinamento militar de países com
envolvimento direto com a guerra
10
MARTINI et alli., 2019, p. 66.
11
SCHWARCZ; STARLING, 2020. p. 65.
18
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
constantemente associadas à pobreza por uma linguagem médica “centrada nas
noções de meio ambiente e aclimatação” 12.
As ações do governo no setor da saúde eram pautadas pelo conceito de
“hygiene”, bastante ambíguo, capaz de justificar uma intervenção sob pretexto de
“interesse público” e, ao mesmo tempo, promover segregações 13 - o exemplo mais
conhecido o Bota-Abaixo da reforma urbana do prefeito carioca Pereira Passos.
Pobreza, sujeira e epidemia estavam frequentemente associadas nas justificações de
um intervencionismo estatal “conservador, excludente e sem nenhuma sensibilidade
para a questão social”14.
No entanto, naquele ano de 1918 ninguém imaginava uma pandemia dessa
envergadura. Os avanços da medicina científica, com descobertas importantes da
bacteriologia para cura de antigas moléstias, dava esperança de dias melhores 15. A
Primeira República havia conhecido uma campanha bem sucedida de erradicação da
varíola, colocada em prática na cidade do Rio de Janeiro pelo médico higienista
Oswaldo Cruz16. Essa experiência, muito embora maculada pela Revolta da Vacina,
transmitia certo otimismo, ao menos entre cientistas e a elite republicana, e serviu de
pontapé inicial no lento desenvolvimento do setor de saúde nacional.
Em sentido contrário ao triunfo de qualquer política sanitária da época, a
gripe espanhola devastou a população brasileira em escalas nunca vistas antes, e
revelou a irresponsabilidade dos governantes e as fragilidades dos serviços de saúde.
Ao infectar todas as classes sociais, e fugir da lógica da “ditadura sanitarista” dos
primeiros anos da República, os governantes foram obrigados a rever suas políticas,
diante de um cenário inquietante de aumento progressivo do número de óbitos na
população.
A medida que o vírus se disseminava a mortandade aumentava, o que chamou
a atenção da imprensa de todo o mundo, colocando a “Influenza espanhola” nas
primeiras páginas dos jornais. No Rio de Janeiro, os principais jornais noticiaram,
12
CHALHOUB, 2017, p. 108.
SEELAENDER, 2006, p. 14, e 2021, p. 180.
14
SCHWARCZ; STARLING, 2020. p. 18.
15
SILVEIRA, 2005, p. 93.
16
A obrigatoriedade da vacina não foi bem recebida pela população carioca que reagiu de modo violento
e brutal, causando verdadeira revolta urbana (CHALHOUB, 2017, p. 69 e s.).
13
19
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
cada um à sua maneira, os incidentes causados pela gripe, e a situação caótica que
tomou conta da cidade, com perda diária de vidas, interrupção de diversos serviços
essenciais, e aumento da fome e miséria. Isto tudo causou imensa comoção social e
provocou diferentes questionamentos e reações, perceptíveis nas fontes trabalhadas,
contra o conservadorismo da política sanitarista republicana.
É a partir da identificação e análise desses questionamentos e reações que
pudemos identificar três fases da política sanitarista organizada em torno da gripe
espanhola. Em cada uma delas, a figura do diretor geral - responsável pelo setor da
saúde - aparece como peça-chave caracterizadora da postura do governo diante da
epidemia. Para tanto, a pesquisa está apoiada na legislação produzida no campo da
saúde durante o período indicado, e nos jornais cariocas A Noite, Correio da Manhã,
O Paiz e Gazeta de Notícias. Nessas fontes, pudemos coletar dados sobre as três
fases da política sanitarista entre 1918 e 1920, tendo a gripe espanhola como fator de
impacto e gatilho que contribuiu para reforma administrativa na área da saúde.
Convém, portanto, dividir o estudo em três partes. Na primeira, relatar a fase
de incerteza, desconhecimento e subestimação da gravidade da doença (I), seguida
de uma crise sanitária sem precedentes e caracterizada pela mudança de postura e
implemento de ações de enfrentamento (II). E, finalmente, uma terceira e última fase
de incremento e reforma das instituições e dos serviços federais, que culmina com a
criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (III).
2 O “MAL DE SEIDL”: A SUBESTIMAÇÃO DA GRIPE
ESPANHOLA
A expressão “mal de Seidl”, forjada pelo Gazeta de Notícias, em matéria
publicada no dia 16 de outubro de 1918, é ilustrativa desse período 17. Carlos Pinto
Seidl, médico paraense, formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
membro titular da Academia Nacional de Medicina, ocupou a Diretoria Geral de
Saúde Pública entre 1912 e 1918. Quando a epidemia eclodiu na capital federal, era,
portanto, ele o responsável pela gestão e tomada de decisões em matéria de saúde
pública, transformando-se, posteriormente, no principal alvo de ataques e
17
Gazeta de Notícias, 16.10.1918.
20
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
responsável pela crise sanitária. Sua saída da direção da Saúde Pública, em 18 de
outubro de 1918, marca o fim desse período.
A sensação geral à época era de que o governo não havia dado a devida
importância à “influenza espanhola”, e por isto não havia tomado com “antecedência
as medidas preventivas que o caso requeria”18. Quando o número de óbitos começou
a crescer assustadoramente, o pouco caso do governo com a doença foi interpretado
como má administração. O Gazeta de Notícias não poupou adjetivos para criticar:
“Inércia culposa”, “imprevidência criminosa”, “mal administrador”, “médico sem
clinica e burocrata” que estava ali “unicamente contando tempo para a
aposentadoria”, foram os termos empregados para desqualificar o diretor geral 19.
Talvez o jornal tenha exagerado no tom, com emprego de palavras fortes, o
que acabou gerando enorme mal-estar, e o governo, a pedido de Seidl, reagiu,
aplicando censura ao jornal20. Isto só fez piorar a situação. O periódico carioca
noticiou a censura em palavras garrafais e com deboche: “Que beleza! Agora... a
grippe hespanhola cessará completamente (...). A população pode ficar descansada,
porque o governo está providenciando, de maneira que já hoje ninguém verá
publicados os nomes das pessoas mortas”21. Seidl não foi, entretanto, o único alvo de
ataques da imprensa. Jayme Silvado, responsável pelo Serviço de Profilaxia do
Porto, uma seção da Diretoria Geral de Saúde Pública, foi também acusado de falhar
na inspeção de navios contaminados e favorecer a entrada da doença, sob o
argumento de que “positivista, não acredita em micróbios” 22.
A indisposição do governo para tomar medidas eficazes de enfrentamento
não estava relacionada à falta de experiência para lidar com epidemias. Existia à
época legislação com medidas de profilaxia geral e especial para combater doenças
transmissíveis23. O Código Sanitário de São Paulo, por exemplo, previa um
protocolo bastante completo quando detectado alguém contaminado24: notificação
18
Ibidem.
Ibidem.
20
Gazeta de Notícias, 18.10.1918.
21
Ibidem.
22
GOULART, 2005, p. 106.
23
O Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894, depois reformado em abril de 1918, com
acréscimo de novas regulamentações, era o que se tinha de mais sofisticado à época na matéria.
24
Decreto n° 2.918, 9 de abril de 1918.
19
21
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
da autoridade sanitária (art. 555), o isolamento do infectado (art. 568), desinfecção
dos locais e objetos contaminados (art. 583), e vigilância médica com exame diário
durante o período máximo de incubação da doença (art. 602). Em seguida, orientava
um procedimento específico a ser adotado a cada doença transmissível: varíola,
escarlatina, peste, cholera, febre amarela, diphteria, febres typhoide, tuberculose,
lepra, impaludismo, ancylostomose, coqueluche, etc. A gripe, obviamente, não
figurava no rol de doenças transmissíveis.
Até então as moléstias que mais matavam e faziam a população sofrer não
eram as gripes. Talvez isso explique o ceticismo de Seidl, sua descrença, quanto à
gravidade de uma doença que todos desconheciam, inclusive a classe médica. No
entanto, ao invés de adotar uma postura de precaução, ele preferiu contemporizar,
fazendo a população acreditar que se tratava de uma doença “benigna”. Isto fica
nítido na sua fala em conferência à Academia de Medicina, cujas conclusões foram
publicadas no jornal A Noite25.
Nas palavras de Seidl, se tratava apenas de “uma simples influenza,
synonymia de grippe”, sendo desnecessária medidas de “profilaxia geral”, pois “em
sua marcha caprichosa e vagabunda, a influenza teria... menosprezado em todos os
países, os regulamentos, medidas administrativas e todas as quarentenas” 26. E assim
concluía: qualquer medida que tentasse “impedir a invasão pela gripe... de uma
região ou de uma cidade, é procurar resolver um problema atualmente insolúvel, um
sonho, uma utopia científica”27. Considerava, portanto, o isolamento social como
“irrealizável”, e recomendava, apenas, medidas de “prophylaxia individual”, como
higienização da boca e fossas nasais, e a ingestão de “saes de quinino, em dose útil,
como preventivo”28.
A especulação comercial aproveitou essas recomendações oficiais para
vender produtos. Dois dias depois da conferência de Carlos Seidl, o Correio da
Manhã anuncia o produto “Calmettina”, líquido para assepsia da boca e das fossas
nasais29. A publicidade trazia, ainda, um texto, destinado “ao povo sensato”, no qual
25
A Noite, 10.10.1918.
Ibidem.
27
Ibidem.
28
Ibidem.
29
Correio da Manhã, 12.10.1918.
26
22
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
lembrava que o próprio Diretor Geral de Saúde Publica, “em suas doutas
considerações apresentadas... à ilustre e benemérita Academia de Medicina, chega a
conclusão de que, para defender a população da pandemica, gripe (influenza
hespanhola), importa, sobretudo, cuidar da prophylaxia individual” 30. Em outro
anúncio se vendia “capsulas reguladoras do aparelho digestivo” com a transcrição
ipsis litteris de trecho da fala de Carlos Seidl para ganhar a credibilidade dos seus
fregueses: “Diz o ilustre Director da Saude Publica: “...trazer o aparelho digestivo
regulado é uma das condições contra esta moléstia” 31.
Os sais de quinino, igualmente recomendados pelo diretor de Saúde Pública,
ganharam uma atenção especial nos jornais. O Dr. Raul Leite escrevia à redação do
Correio da Manhã, em outubro de 1918, relatando o uso dos “saes de quinino” na
sua casa habitada por doze pessoas, sendo seis de sua família e seis do serviço
doméstico32. Segundo o relato do médico, dez pessoas tomaram o tal medicamento, e
nada sentiram, ao passo que as outras duas que se opuseram a tomar, “foram
fortemente attingidas”33. Dizia, ainda, que estava “absolutamente convencido de que
este poderoso medicamento e um pouco de menthol e acido bórico para o nariz,
previnem completamente a “grippe hespanhola” (...)”34.
A desinformação sobre as causas e males da gripe espanhola era
generalizada35. No meio da população o recurso à medicina popular, com
recomendações de chás, emplastros, e todo tipo de remédios caseiros, além de
simpatias e produtos de limpeza, passaram a ser comercializados como receitas
milagrosas. Os anúncios nos jornais pululavam: “perfumador Tehivona”,
“específicos
homeopáticos”
(Antipanpyrus”,
“Albapenitum”),
fortificantes
(“Satosin”, “Emulsão de Scott”, “Vanadiol”), “água de colônia Odean”,
comprimidos de aspirina da Bayer, desinfetantes de ambiente e objetos, até uso do
alcatrão. O Dr. Guilherme Elseniohr, que se apresentava como especialista em
moléstias respiratórias, havia elaborado um “específico” milagroso administrado por
30
Ibidem.
Correio da Manhã, 13.10.1918.
32
Correio da Manhã, 21.10.1918.
33
Ibidem.
34
Ibidem.
35
Ainda em 1919, circulou rumores de que Carlos Chagas havia encontrado a bactéria transmissora da
gripe. Ninguém à época parecia perceber que se tratava de um vírus! Somente em 1930 o vírus H1N1 é
descoberto.
31
23
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
meio de injeções, e prometia que de 4 a 16 horas após a primeira dose o doente
estaria salvo36.
A exploração comercial era tamanha que haviam remédios milagrosos para
“depois da Influenza”. As “Pílulas Rosadas do Dr. Williams” recomendadas às
pessoas atacadas pela gripe evitava que elas ficassem “debeis e nervosas depois de
desaparecer a febre”, e sua eficácia estava assegurada depois de 30 anos de
experiência em epidemias na Europa e América 37.
O resultado não poderia ser outro, além de números preocupantes. O Correio
da Manhã estampava, em 15 de outubro de 1918, a seguinte manchete: “A grippe
estende os seus tentáculos a todos os cantos da cidade”, e trazia uma extensa lista de
“casos fatais”, pessoas que faleceram na Santa Casa de Misericórdia, ou em suas
residências38. O Gazeta de Notícias, deste mesmo dia, imprimiu na primeira página
manchete estarrecedora: “O Rio é um vasto hospital” 39. Alertava que não havia
médicos suficientes na cidade, e que os remédios sumiram das prateleiras das
farmácias. Contavam-se doentes em todas as principais repartições públicas:
exército, marinha, nos ministérios, nos correios, na brigada policial, no Senado, no
fórum de justiça, e a companhia de fornecimento de luz (Light) tinha mais de 1.200
empregados infectados40.
Com efeito, devido ao rápido período de incubação da doença, houve
aumento de 2.000% na taxa de mortalidade no Rio de Janeiro, observados 930 óbitos
pela gripe até a segunda metade do mês de outubro de 1918, em comparação aos 48
casos de morte por gripe comum no mês anterior 41. Com tantos mortos, a população
presenciava cenas sombrias, com cadáveres em decomposição nas casas ou
depositados nas ruas, onde ficavam por horas, dias, diante de um serviço de remoção
em colapso42. Quando transportados, eram carregados amontoados, uns por cima dos
outros, e desprendiam “horrível fétido”43. Isto durou por oito dias. Tomado pelo
36
Correio da Manhã, 28.10.1918.
Correio da Manhã, 17.10.1918.
38
Correio da Manhã, 15.10.1918.
39
Gazeta de Notícias, 15.10.1918.
40
Ibidem.
41
GOULART, 2005, p. 105.
42
Gazeta de Notícias, 23.10.1918.
43
Ibidem.
37
24
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
desespero e medo da doença desconhecida, um sujeito preferiu tirar a própria vida
com um tiro na cabeça do que contrair a gripe44.
O médico higienista Carlos Moncorvo Filho, que esteve na linha de frente
durante a epidemia, relatou, no seu O Pandemônio de 1918, um cenário aterrorizante
nos hospitais: “havia gente de todas as classes sociais, indivíduos brancos e de cor,
velhos, moços e crianças carregados [...] cambaleando, esquálidos, ardendo em
febre, e até mesmo a expirar na via pública” 45. A influenza havia impossibilitado a
maioria dos profissionais de saúde, e relata que se sentiu arruinado e, por vezes, com
o “ímpeto de fugir das cenas macabras e dos meus ouvidos lancinantes gemidos que
me dilaceravam a alma”46.
Com tantas mortes, e cenas apocalípticas, que pareciam anunciar o fim do
mundo, a sociedade civil, através dos jornais, e os políticos, no Congresso Nacional,
continuavam a atacar Seidl pela incompetência e morosidade nas ações, e o governo
Wenceslau Brás sangrava à reboque. Na Câmara, alguns deputados, liderados por
Nicanor do Nascimento, davam vazão à comoção dos cariocas, e criticavam
abertamente o governo e seu diretor geral de saúde pública 47. Sob pressão, e
buscando evitar prejuízos políticos, o presidente Wenceslau Brás culpou o diretor
geral pela situação de calamidade, o que forçou Carlos Seidl a pedir demissão do
cargo em 18 de outubro de 191848.
Em momentos de crise, as falhas, bem como os acertos, ficam expostos, em
evidência, gerando tensão e impasse, e é naturalmente que se procure por
responsáveis, ainda que apenas para servir de bode expiatórios. Como chefe da
diretoria, e primeira autoridade sanitária da capital federal, era de se esperar que a
culpa recaísse sobre os ombros de Carlos Seidl. No entanto, vale ressaltar que apesar
das grandes dificuldades e fragilidades dos veículos sanitários durante a epidemia, o
diretor geral não detinha total responsabilidade pelas consequências com a saúde
pública, pois havia “clara falta de autonomia [...] para desenvolver as atividades a
44
Correio da Manhã, 11.10.1918; Gazeta de Notícias, 11.10.1918.
FILHO, 1924, p. 49.
46
Ibidem
47
SCHWARCZ; STARLING, 2020, p. 147.
48
Ibid., p. 148.
45
25
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
seu cargo”49. A atuação da Saúde Pública não era, portanto, autônoma, e estava
vinculada Ministério da Justiça e Negócios Interiores que reunia uma série de outras
pastas – administração da justiça, da polícia, da guarda nacional, catequização dos
povos indígenas, saúde e assistência pública, menores abandonados, alienados etc 50.
– e “destinava às questões de saúde menor atenção do que elas necessitavam” 51.
Alguns anos mais tarde, a imagem de Carlos Seidl foi defendida pelo colega
Moncorvo Filho, acreditando que ele serviu de bode expiatório para a designação de
um culpado pela crise sanitária: “é portanto evidentíssimo não caber ao Diretor
Federal de Saúde [Carlos Seidl] na órbita das suas funções normais e
regulamentares, nem a lembrança da execução da totalidade das medidas precisas, na
conjuntura criada pela invasão da gripe epidêmica” 52.
3 O ENFRENTAMENTO DA GRIPE ESPANHOLA
Em 19 de outubro de 1918, Theóphilo Torres foi nomeado o novo Diretor
Geral de Saúde Publica53. Dias depois, Carlos Chagas seria integrado à diretoria
geral, sob aplausos da elite política e da imprensa. A mudança deu nova esperança
no combate à epidemia.
Poderíamos pensar que essa mudança teria sido crucial para provocar a queda
no número de infectados e de mortes. No entanto, o estudo de Adriana Goulart deixa
entender que a principal causa do abrandamento da disseminação da doença esteve
menos atrelada a uma alteração substancial no quadro administrativo do que o
próprio comportamento da gripe que atuava em ondas epidêmicas. O estudo sugere
que o fato de Carlos Chagas ter assumido o cargo em um momento de rarefação
natural do número de infectados e de mortos foi uma coincidência que adensou
bastante “capital político e social” à sua pessoa, e concorreu para sua mitificação
como “salvador da pátria”54.
49
GOULART, 2005, p. 107.
O Ministério da Justiça e Negócios Interiores havia sido estruturado em 30 de outubro de 1891, por
meio da lei nº 23, como proposta do governo federal de reorganizar os serviços da Administração
Federal.
51
GOULART, 2005, p. 107.
52
FILHO, 1924, p. 37.
53
Gazeta de Notícias, 19.10.1918.
54
GOULART, 2005, p. 127.
50
26
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Num período de conhecimento científico bastante limitado, em que se
achava, inclusive, que a gripe espanhola poderia ser propagada por micróbios 55, a
coincidência favorecia Chagas. Sem contestar as conclusões do estudo de Goulart,
pretendemos nesta seção testar, com apoio na legislação produzida no período
indicado, se as ações planificadas e projetadas nas leis, após a saída de Carlos Seidl,
constituíram ou não mudanças significativas no modo de enfrentar a gripe
espanhola.
Como já dito, para substituir Seidl, o presidente Wenceslau Brás nomeou
Theóphilo de Almeida Torres para o cargo de Diretor Geral de Saúde Pública.
Formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e membro da Academia
Nacional de Medicina, tinha reconhecida liderança da bem sucedida Comissão de
Profilaxia da Febre Amarela em Manaus em 1913. Sua nomeação não teve,
entretanto, aceitação unânime na opinião pública, ao menos aquela expressada na
imprensa e entre os parlamentares.
Se, para alguns jornais, o novo diretor geral não poupava esforços para obter
“a normalização de determinadas seções de Saúde Pública”, ao fomentar, inclusive,
o “estudo contínuo... sobre novas medidas para serem colocadas em prática” 56, para
alguns parlamentares, como o deputado Nicanor do Nascimento, a escolha de Torres
era bastante contestável.
Com claro propósito de mostrar a todos que uma nova administração surgiria,
e evitar mais desgaste político, o governo decretou, como medida de profilaxia geral,
feriado os dias 19, 20, 21 e 22 de outubro. No entanto, os jornais continuaram a
divulgar números alarmantes, com mais de 500 mortes em um único dia, e mais da
metade da população contaminada57.
Torres, por sua vez, parecia empenhado em enfrentar o desafio. Um dia antes
de assumir ao cargo, havia convencido o Ministério da Justiça e Negócios Interiores
a solicitar adiantamento financeiro a fim de dar efetividade aos serviços de combate
à epidemia58. Ainda naquele dia, 18 de outubro de 1918, a Diretoria de Saúde
55
SILVEIRA, 2005, p. 92.
Gazeta de Notícias, 23.10.1918.
Gazeta de Notícias, 22.10.1918.
58
Gazeta de Notícias, 18.10.1918.
56
57
27
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Pública recebeu uma comissão de médicos estrangeiros - Argentina, Peru e Bolívia que se ofereceu para ajudar a reestruturar o sistema sanitário da capital federal, pois,
naquele momento, enfrentava sérias dificuldades. Nessa ocasião, Torres apoiara a
iniciativa59.
Para solucionar o grave problema da remoção de cadáveres, Torres requisitou
“todas as ambulâncias existentes nos polos de infecção, para o transporte e socorro
de enfermos”60. Mobilizou, igualmente, “todos os profissionais da saúde pública,
inclusive médicos dermatologistas, microscopistas e bacteriologistas, [para que]
estivessem ocupados na investida à influenza espanhola”61. E deu início ao
estabelecimento dos hospitais provisórios, segundo orientações anteriores, que
seriam, posteriormente, “ampliadas com a nomeação de Carlos Chagas” 62.
A comunicação aberta foi definitivamente um dos pontos fortes da nova
gestão. Por meio da imprensa se passava à população informações necessárias para a
prevenção do contágio da doença e de procedência nos casos de infecção, ao mesmo
tempo em que levava os resultados das medidas profiláticas ao governo federal. A
pedido do Gazeta de Notícias, Torres deu “alguns conselhos uteis às classes dos
pobres”, em que reforçou a necessidade de cautela e ressaltou maior atenção aos
sintomas, como dores de cabeça, tosses e fraquezas musculares, além de ter indicado
o consumo moderado de xaropes, aspirinas e uma dieta rica em vitaminas e outros
nutrientes63.
Muito embora Theophilo Torres tenha envidado esforços no combate à
epidemia, a escolha do seu nome havia sido recebida com desconfiança, e muitos o
viam como “um burocrata da escola de Carlos Seidl” 64. O Correio da Manhã havia
acusado o governo de “acefalia”, e de ter compactuado com a incompetência do
antigo diretor geral, e questionava o fato de ter esperado Seidl pedir demissão, ao
invés de demiti-lo65. Neste mesmo dia 19 de outubro, o deputado Nicanor do
Nascimento subia a tribuna para questionar a competência do novo diretor para o
59
Ibidem.
Gazeta de Notícias, 19.10.1918.
Ibidem.
62
GOULART, 2005, p. 124.
63
Gazeta de Notícias, 19.10.1918.
64
GOULART, 2005, p. 124.
65
Correio da Manhã, 19.10.1918.
60
61
28
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
cargo, e relembrar o legado de Oswaldo Cruz, deixando a entender que haviam no
país cientistas mais bem preparados: “Foi esse homem, o Sr. Theophilo Torres, que
o Sr. encontrou para o cargo. (...) há neste país alguém que saiba que esse nome
equivale aos de Arthur Neiva ou Carlos Chagas?”66
Para apaziguar os ânimos e evitar maiores atritos, o governo logo
providenciou integrar Carlos Chagas à Diretoria Geral de Saúde Pública, lhe
nomeando no comando dos socorros públicos. Formado na Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro, e pesquisador no Instituto Manguinhos desde 1908, Carlos
Ribeiro Justiniano das Chagas destacou-se ao descobrir o protozoário tripanossoma
em 1909 a partir do sangue de uma criança infectada do inseto hematófago,
popularmente conhecido como “barbeiro”. Isto possibilitou o desenvolvimento do
antígeno para a cura dessa doença que matava milhares de pessoas no Brasil.
Além dessa louvável contribuição científica, Chagas havia sido aluno de
Oswaldo Cruz, o promotor da erradicação da varíola em 1904, e fundador do
instituto de pesquisa de Manguinhos. Ele reunia, portanto, todas as credenciais para
ser considerado como “o único cientista capaz de solucionar os transtornos advindos
da espanhola assassina”67. Com efeito, o ingresso de Chagas à diretoria geral dava
legitimidade social às ações governamentais no campo da saúde.
Ocorreu, de fato, uma mudança de postura dentro do governo, com relação à
Diretoria Geral de Saúde Pública, que passa ao centro das atenções, e obter maior
operacionalidade dentro da burocracia estatal. A Diretoria conseguiu, por exemplo,
autorização do governo para impor diversas medidas: quarentena de navios,
notificação compulsória de casos, criação de hospitais emergenciais, novos postos de
atendimento, além do fechamento de escolas e teatros, paralisação de eventos
esportivos como o futebol, redução de missas de igrejas e o encerramento de parte
do comércio.68
Houve, também, preocupação maior com o avanço da doença nos subúrbios,
devido aos altos índices de infecção e ausência de medicamentos nessa localidade.
Com o apoio do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, a Diretoria Geral pôde
66
GOULART, 2005, p. 125.
Ibid., p. 127.
68
A Noite, 21.10.1918.
67
29
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
inaugurar a comissão de socorros domiciliares, para tratar pessoas infectadas nas
proximidades de seus lares, “por meio da obtenção de medicamentos, transporte de
doentes, hospitalização de enfermos, e quaisquer outras medidas, que incluíam a
própria assistência médica domiciliar” 69. Segundo o jornal O Paiz, a comissão de
socorros domiciliares foi um precioso complemento dos serviços operantes,
atendendo com a máxima “solicitude e presteza” todos os pedidos de socorro que
surgissem.70
Chagas aparecia nos jornais convocando médicos e estudantes de medicina
para cooperar na pesquisa e combate à gripe espanhola.71 Reclamava pela
necessidade de salvaguarda da vida da população, expressando a importância de
regularizar a distribuição do trabalho e auxílio dos colegas da medicina nos postos
de saúde instalados durante sua gestão72. A instauração de casas e postos de
atendimento foram elogiadas pelos veículos de mídia, atribuindo a Carlos Chagas o
qualificativo de “incansável trabalhador e distribuidor de socorros”.73
Muito embora as ações tenham sido coordenadas pela Diretoria Geral, era a
imagem de Chagas que ficava em evidência, assumindo o papel de liderança na
ofensiva contra a gripe espanhola. Seu protagonismo era alimentado pela imprensa
que, ao contrário do que fazia com Seidl e Torres, rasgava elogios às suas ações. Os
mecanismos de enfrentamento da doença não sofreram alterações substanciais,
porém em novembro de 1918 o número de mortes começou a declinar 74.
4 O LEGADO INSTITUCIONAL DO ENFRENTAMENTO DA
GRIPE ESPANHOLA
Essa terceira fase da política sanitarista é marcada por reformas substanciais
que deixaram um legado institucional importante porque fez a elite republicana
repensar o modo de organização do setor da saúde, até então entregue aos Estados
por conta do modelo federalista. Esta fase está, igualmente, caracterizada pelo
fortalecimento do movimento sanitarista - iniciado em 1909 e marcado pela gestão
69
O Paiz, 24.10.1918.
Ibidem
71
A Noite, 21.10.1918.
72
A Noite, 26.10.1918.
73
A Noite, 31.10.1918.
74
SCHWARTZ; STARLING, 2020, p. 151.
70
30
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
de Oswaldo Cruz frente aos serviços federais de saúde 75 - que culminou com a
criação da Liga Pró-Saneamento do Brasil em 11 de fevereiro de 1918.
Com a reputação em alta, Carlos Chagas e sua equipe de higienistas deram
maior visibilidade à Liga Pró-Saneamento do Brasil ao chamar atenção para a
necessidade de cuidar da saúde dos indivíduos e desenvolver o saneamento do
interior do país76. Para a Liga, as doenças que grassavam o país deveriam ser
tratadas como problema político, pois sua permanência era sinônimo de atraso,
incivismo e abandono da população. Belisário Penna, sanitarista de renome à época
e líder da Liga entre 1918 e 1930, afirmava que o sistema federalista constituía
obstáculo ao implemento de ações de saneamento unificadas e coordenadas, reflexo
da falta de “consciência sanitária” das classes dirigentes 77. Não acreditava que a
“autonomia dos estados pudesse contribuir para a unidade das práticas judiciais,
administrativas, educacionais e sanitárias”78, e propunha projeto nacional de
saneamento vigiado por uma administração estatal centralizada 79.
A preocupação com a falta de saneamento nas zonas rurais do país veio com
as expedições científicas, organizadas pelos pesquisadores do Instituo Manguinhos –
Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Belisário Penna, Artur Neiva, Clementino Fraga -, ao
percorrerem, durante a primeira década do século XX, as regiões norte e nordeste do
Brasil. Após a epidemia da gripe espanhola, o trabalho de pesquisa e assistência que
vinha sendo desenvolvido pelos cientistas de Manguinhos junto à população do
interior do país passa a ser pensado como projeto de política pública. Em janeiro de
1919, o governo restabelece antigos postos de desinfecção nos estados do Pará,
Pernambuco e Bahia, que haviam servido de sede para trabalhos científicos 80. No
mês de abril desse mesmo ano, o Serviço de Profilaxia Rural foi reestruturado e
75
LIMA; PINTO, 2003, p. 1040.
Ibid., p. 1041.
77
A ideia de “consciência sanitária” está expressa no seu principal livro Saneamento no Brasil, de 1918,
que reúne artigos seus publicados no Correio da Manhã. Com uma linguagem informal e crítica,
denuncia o descaso com a saúde pública, e aponta vários problemas, desde a doença generalizada na
população rural, a fome, a miséria até a escassez de verba no orçamento dos municípios. Considerava
que a falta de saneamento era uma questão política, e propunha a criação da Liga Pró-Saneamento para
sanar os males da República.
78
LIMA; PINTO, 2003, p. 1041.
79
CARVALHO, 2021, p. 4.
80
Decreto nº 3.750, 09 de agosto de 1919.
76
31
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
passa a ser diretamente vinculado ao Ministério da Justiça81, e um laboratório de
vacinas e soros fora instalado no Maranhão 82.
A crise também impulsionou a regulamentação do antigo Instituto
Manguinhos, agora renomeado Instituto Oswaldo Cruz, em homenagem ao médico
sanitarista que falecera em 191783. Sua regulação foi um passo importante para a
distribuição de vacinas entre os Estados. O regulamento previa que, por ocasião de
epidemias, se deveria fornecer gratuitamente às autoridades sanitárias, que o
requisitarem, os soros terapêuticos e as vacinas (art. 7). Apenas as vacinas, os soros
e produtos congêneres não requisitados seriam vendidos pelo Instituto, de acordo
com a tabela de preços organizada pelo diretor e aprovada pelo ministro da Justiça e
Negócios Interiores (art. 8).
Com efeito, se percebe mudança de postura no governo federal frente à saúde
pública que se torna, aos poucos, uma questão nacional. No orçamento de 1919,
publicado em janeiro deste mesmo ano, fixando a despesa geral da República dos
Estados Unidos do Brasil, se nota aumento de recursos ao Instituto Oswaldo Cruz,
para equipar seu “laboratório de vacinas e soros” e custear “instalações
indispensáveis”, além de subvenções destinadas ao “Instituto de Hygiene de Pelotas
para fabricação de vacinas”84. Nesse mesmo orçamento, estão, também, previstos
recursos adicionais para compra de “material para reconstrução do hospital de
doenças tropicais”85.
O aumento do orçamento federal foi, entretanto, insuficiente para cobrir as
despesas acarretadas durante o período de pico da gripe espanhola. Em dezembro de
1918, os funcionários públicos afetados pelo combate da doença haviam sido
beneficiados com acréscimo de um ano de serviço na contagem do tempo da
aposentadoria. Uma forma de agraciar aqueles que colocaram suas vidas em risco
para salvar outras. Em razão da alta despesa, um “crédito extraordinário” foi aberto
ao Ministério da Justiça em maio de 1919 “para pagamento de despesas realizadas,
81
HOCHMAN; LIMA, 1998, p. 36.
Decreto 13.565, 23 de abril de 1919.
83
Decreto nº 13.527, 26 de março de 1919.
84
Lei n° 3.674 de 7 de janeiro de 1919. Fixa a Despeza Geral da República dos Estados Unidos do Brasil
para o exercício de 1919.
85
Ibidem.
82
32
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
em 1918, em consequência da epidemia de gripe que reinou ultimamente nesta
capital, nos estados e no território do Acre”86. Ademais, a questão sanitária passou a
integrar o orçamento de outros ministérios, e um “crédito suplementar” fora
concedido ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio para “aquisição de
vacinas e outros”87.
Os maiores atingidos pela epidemia foram os pobres residentes dos
subúrbios88. Pessoas desabrigadas, desemprego, crianças órfãs, acarretava miséria e
fome. Além da situação social caótica e de penúria da população, o governo tinha
motivos para temer os flagelados. Durante o surto da doença, a população carioca,
em “desespero de fome”, como relatou o jornal Gazeta de Notícias, havia invadido a
estação Praia Formosa no Rio de Janeiro, e assaltado todas as galinhas encontradas
em um trem, para alimentar “seus doentes queridos” 89. Em junho de 1919, o governo
abre, por decreto, “crédito extraordinário”, em caráter urgente e inadiável, para
auxiliar as populações flageladas de diversas zonas do país”90.
A gripe espanhola havia, igualmente, ensinado que os portos marítimos eram
a principal porta de entrada das moléstias. Isto justificava o direcionamento de mais
recursos para “assegurar a defesa sanitária de todos os portos da República” com
adoção de medidas de profilaxia, agora consideradas como indispensáveis, ao
controle das moléstia que reinavam em vários pontos do país, e ameaçavam
seriamente a capital91.
Um giro importante ocorre em 5 de outubro de 1919 quando Carlos Chagas
assume o cargo de Diretor Geral de Saúde Pública 92. Seu prestígio profissional à
época, com vários prêmios e títulos conferidos a ele por entidades nacionais e
internacionais, favoreceu a aprovação da Convenção Sanitária Internacional,
86
Decreto n° 13.593, 7 de maio de 1919.
Decreto n° 13.594, 9 de maio de 1919.
88
Uma matéria do Gazeta de Notícias chamava atenção para a “Trágica situação de Bangu”, onde reinava
“morte, luto, desolação!”, essa “infeliz localidade abandonada de todo dos poderes públicos”
(23.10.1918).
89
Gazeta de Notícias, 23.10.1918.
90
Decreto n° 13.645, 13 de junho de 1919.
91
Ibid. Em janeiro de 1920, sob ameaça de uma nova onda da gripe, a inspeção dos portos foi a primeira
medida a ser tomada (Correio da Manhã, 22.01.1920).
92
O Paiz, 05.10.1918.
87
33
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
celebrada entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai 93. Ainda no âmbito da
cooperação internacional, ficou estabelecido que os telegramas expedidos pelo
governo do Brasil ou por seus agentes no continente americano, comunicando o
aparecimento de alguma epidemia ou fatos de notória calamidade pública, deveriam
ser encaminhados com a maior brevidade possível e de forma gratuita 94.
Apesar dos esforços administrativos para tornar o setor da saúde pública mais
robusto e atuante, a competência assessória do governo federal dificultava a
planificação de soluções mais amplas e de largo alcance. A revisão da competência
trazia subjacente a contestação do modelo federalista, já que cabia aos Estados
organizar o setor da saúde em âmbito local. A Câmara dos Deputados havia vetado o
projeto do deputado Azevedo Sodré de criação do Ministério da Saúde 95. Em
dezembro de 1919, com o contexto político jogando a favor, o Congresso aprova,
depois de intensos debates na Câmara dos Deputados e no Senado, a criação do
Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) que passa a contar com
mecanismos de financiamento federal amplos, ainda que fosse mantida a
necessidade de acordo com os Estados no caso de trabalhos de profilaxia rural 96.
A lei n° 3.987 de 02 de janeiro de 1920 pode ser considerada como a certidão
de nascimento do primeiro órgão administrativo, em caráter nacional, responsável
pela saúde pública. O presidente da República não teve dificuldades para escolher,
“dentre os médicos de reconhecido saber” – conforme exigência da lei -, Carlos
Chagas como primeiro diretor do DNSP. Com a nova lei, diferentes serviços que se
encontravam dispersos em órgãos ministeriais são reunidos em um único lugar:
serviços de profilaxia geral e específica de doenças transmissíveis, serviços
sanitários dos portos, profilaxia rural, estudos de etiologia, fornecimento de soros,
vacina e medicamentos, inspeção médica de imigrantes, fiscalização de produtos
farmacêuticos, etc.
93
Decreto nº 4.170, 30 de outubro de 1920. Isto facilitará a ratificação da Convenção Sanitária
Internacional, assinada em janeiro de 1921, na cidade de Paris, dispondo sobre protocolos de
comunicação em casos de possível proliferação de pandemias (decreto nº 4.349, de outubro de 1921).
94
Decreto nº 13.833, 23 de outubro de 1919. Cláusula XX.
95
HOCHMAN; LIMA, 1998, p. 34-35.
96
Ibid., p. 35-36.
34
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A criação do Departamento Nacional de Saúde Pública é resultado da
formação de uma “consciência sanitária”, postulada no interior da Liga PróSaneamento do Brasil,97 e impulsionada pela eclosão da gripe espanhola, que
demonstrou, na prática, a necessidade do consórcio do governo federal no
enfrentamento de epidemias na esfera dos Estados.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa tentou demonstrar que a crise sanitária de 1918 fez surgir
problemas sociais gravíssimos, nunca antes vistos, que teve reflexos políticos
importantes, levando a discussão sobre o desenvolvimento de novas políticas
públicas no campo da saúde. A falta de preparo e incapacidade do governo federal
de lidar com a crise sanitária fez com que a sociedade civil e a classe política
exigissem mudanças de postura e medidas urgentes para impedir que o caos fosse
maior. Neste sentido, a epidemia da gripe espanhola se apresenta como um elemento
catalisador das mudanças ocorridas no período.
Certo, outros fatores também contribuíram ao processo de desenvolvimento
da política sanitarista de cunho nacional, e o presente trabalho buscou apenas
ressaltar, pela análise da produção de leis, e dos questionamentos e reações
expressadas nos jornais da época, que houve, entre 1918 e 1920, uma aceleração
desse processo, devido a eclosão da epidemia que fez acentuar antigas mazelas e
revelar um “país doente”.
A mudança de postura do governo pode ser identificada na própria legislação
produzida, seja pelo aumento de investimento no setor sanitário (o que se verifica
pela comparação entre os orçamentos de 1918 e 1919), seja pela integração da
pesquisa científica à política de governo. Neste último ponto, estamos diante da
emergência do Estado-Cientista, resultado do processo de fusão entre ciência e
sociedade, através da dominação da natureza, sobretudo com o desenvolvimento da
bacteriologia. Através do Estado, o saber científico passa a se relacionar com o
poder político, e faz emergir uma nova cadeia de relações.
97
Após a criação do DNSP, a Liga foi extinta, com seus membros incorporados à Administração Pública.
35
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Entre janeiro e novembro de 1918, a legislação produzida pelo governo
federal esteve prioritariamente voltada para a capital federal e se preocupava em
aparelhar outras instituições que prestavam serviços relacionados ao sanitarismo e
higiene dos indivíduos, tais como a Santa Casa da Misericórdia98 e o Instituto
Oswaldo Cruz99. Duas leis foram elaboradas para conceder auxílios a pesquisadores
em congressos científicos de Hygiene, Microbiologia e Pathologia 100. Havia,
portanto, nítida separação entre produção científica e política pública, uma vez que a
administração estatal pesava pouco, ou quase nada, na organização desses serviços, e
nem aproveitava de modo satisfatório os resultados obtidos com a produção
científica. Havia, igualmente, desinteresse com o saneamento rural, com o interior
do país.
Entre janeiro de 1919 até a criação do Departamento Nacional de Saúde
Pública em 1920, o perfil da legislação se alterou. Há maior gerência do governo
federal em um setor que se expande para outros Estados, ainda que timidamente.
Laboratórios são criados no Maranhão, em Pelotas, e um orçamento é inteiramente
destinado para auxiliar as “populações flageladas” de todo o país, e cobrir despesas
geradas durante a epidemia de 1918. A cooperação internacional é, também,
aquecida, e o Brasil assina compromissos com países da América Latina, até a
formalização e aprovação da Convenção Sanitária Internacional, em outubro de
1920101.
Com a criação do DNSP, quase todos os médicos higienistas da Liga PróSaneamento do Brasil foram integrados ao órgão, que passa a concentrar diversos
serviços, o que aproxima e confunde funcionalismo público e ciência, para criar a
categoria de “médicos especializados em saúde pública”. O pessoal do DNSP
constituirá a base institucional que, anos mais tarde, já no governo Vargas, ajudará
na criação do Ministério da Saúde em 1930.
98
Lei n° 12.934, 20 de março de 1918.
Lei n° 3.453, 2 de janeiro de 1918; e Lei n° 12.796, do mesmo mês.
Lei 3.547, 9 de outubro de 1918; e Decreto n° 13.226, do mesmo mês.
101
Decreto n° 4.170, 30 de outubro de 1920.
99
100
36
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
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37
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Legislação
BRASIL. Lei nº 23, de 30 de outubro de 1891. Reorganiza os serviços da
Administração Federal da República dos Estados Unidos do Brasil.
BRASIL. Lei n° 3453, de 2 de janeiro de 1918. Autoriza o Poder Executivo a abrir,
pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, o crédito de 349: 482$800, para
conclusão das obras do Instituto Oswaldo Cruz e instalação de um hospital destinado
ao estudo do tratamento de molestias tropicais.
BRASIL. Lei n° 3454, 6 de janeiro de 1918. Fixa a despeza geral da República dos
Estados Unidos do Brasil para 1918.
BRASIL. Lei nº 12.934, de 20 de março de 1918. Abre ao Ministerio da Justiça e
Negocios Interiores o credito especial de 700:000$, para auxiliar a Santa Casa da
Misericordia desta Capital.
BRASIL. Decreto nº 2.918, de 09 de abril de 1918. Abre ao Ministério da Justiça e
Negócios Interiores o credito especial de 700:000$, para auxiliar a Santa Casa da
Misericordia desta Capital.
BRASIL. Lei n° 3.674 de 7 de janeiro de 1919. Fixa a Despeza Geral da Republica
dos Estados Unidos do Brasil para exercício de 1919.
BRASIL. Decreto nº 13.527, de 26 de março de 1919. Reorganiza o Instituto
Oswaldo Cruz.
BRASIL. Decreto 13.565 de 23 de abril de 1919. Abre ao Ministério da Justiça e
Negócios Interiores, o crédito especial de 50:000$, para auxiliar a instalação de um
laboratório de vacinas e soros no Maranhão.
BRASIL. Decreto n° 13.593 de 7 de maio de 1919. Abre ao Ministério da Justiça e
Negócios Interiores o crédito extraordinário de 206: 645$997, para pagamento de
despesas realizadas, em 1918, em consequência da epidemia de gripe que reinou
ultimamente nesta capital, nos estados e no território do Acre.
BRASIL. Decreto n° 13.594 de 9 de maio de 1919. Abre ao Ministério da
Agricultura, Indústria e Comercio, o crédito de 70:000$, suplementar à
subconsignação "aquisição de vacinas e outros", da verba 15a do art. 96 da lei 3.454,
de 6 de janeiro de 1918.
BRASIL. Decreto n° 13.645 de 13 de junho de 1919. Abre ao Ministério da Justiça e
Negócios Interiores o crédito extraordinário de 5.000: 000$, para auxiliar as
populações flageladas de diversas zonas do país, para assegurar a defesa sanitária
dos portos e procede à prophylaxia de molestias que reiam vários pontos da
República.
38
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
BRASIL. Decreto nº 3.750, de 09 de agosto de 1919. Autoriza o Poder Executivo a
restabelecer os antigos postos de desinfecção nos Estados do Pará, Pernambuco e
Bahia.
BRASIL. Decreto nº 13.833, de 23 de outubro de 1919. Torna sem effeito as
clausulas que baixaram com o decreto número 13.524, de 26 de março de 1919, e
concede a Frank Carney, representante da Central de South American Telegraph
Company, para si ou empreza que organizar, permissão para lançar, aterrar na costa
do Brasil, manter e trafegar um cabo telegraphico submarino ligando a cidade do Rio
de Janeiro á ilha de Cuba. Cláusula XX.
BRASIL. Lei nº 3.987, de 02 de janeiro de 1920. Reorganiza os serviços da Saúde
Pública.
BRASIL. Decreto nº 4.170, de 30 de outubro de 1920. Approva a Convenção
Sanitaria Internacional celebrada entre as Republicas Argentina, Estados Unidos do
Brasil, Paraguay e Oriental do Uruguay.
Jornais
A EPIDEMIA CAUSOU ONTEM MAIS DE QUINHENTAS MORTES. Gazeta de
Notícias, 22 out. 1918, primeira pág.
A EPIDEMIA: O GOVERNO TOMA PROVIDÊNCIAS. Correio da Manhã, 19
out. 1918, p. 3.
A GRANDE EPIDEMIA. OS SOCORROS À POPULAÇÃO COMEÇAM A SER
PRESTADOS. Gazeta de Notícias, 19 out. 1918, p. 3.
A GRIPPE ESTENDE OS SEUS TENTACULOS A TODOS OS CANTOS DA
CIDADE. Correio da Manhã, 15 out. 1918, p. 3.
A NECESSIDADE DE URGENTES PROVIDÊNCIAS. O FLAGELLO
CONTINUA FAZENDO CENTENAS DE VICTIMAS. A Noite, 21 out. 1918, p. 1.
A POSSE DO NOVO DIRECTOR DE SAUDE. O Paiz, 5 out. 1919, p. 4.
AINDA É MUITO SÉRIA A SITUAÇÃO EPIDÊMICA. O GRANDE FLAGELLO.
A Noite, 26 out. 1918, p. 1.
AOS SRS. MEDICOS. AO POVO SENSATO. Correio da Manhã, 12 out. 1918.
Publicidade, p. 7.
AS AUTORIDADES MEDICAS VOLTAM A AFFIRMAR QUE O ESTADO
39
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
CARLOS SEIDL EM CONFERÊNCIA. CONSIDERAÇÕES DO SR. DIRETOR
GERAL DE SAÚDE PÚBLICA À ACADEMIA DE MEDICINA. A Noite, 10 out.
1918, p. 3.
COMMISÃO DE SOCCORROS DOMICILIARES. O Paiz, 24 out. 1918, p. 4.
DEPOIS DA INFLUENZA. Correio da Manhã, 17 out. 1918. Publicidade, p. 3.
HEPATOLAXINA E A INFLUENZA HESPANHOLA. Correio da Manhã, 13 out.
1918. Publicidade, p. 3.
INFLUENZA HESPANHOLA. ANTIPANPYRUS. Correio da Manhã, 12 out.
1918. Publicidade, p. 3.
O DR. CARLOS CHAGAS TRABALHA, ESPERANÇADO EM DESCOBRIR O
GERMEN DO FLAGELLO. ENSAIOS CLÍNICOS PARA A CURA DA PESTE. A
Noite, 31 out. 1918, p. 1.
O MAL DE SEIDL PROGRIDE ASSUSTADORAMENTE. Gazeta de Notícias, 16
out. 1918, p. 1.
O NOVO DIRETOR DA SAÚDE PÚBLICA NO CATTETE. Gazeta de Notícias,
19 out. 1918, p. 3.
O RIO É UM VASTO HOSPITAL. Gazeta de Notícias, 15 out. 1918, primeira pág.
O TRANSPORTE DE CADAVERES. SCENAS QUE ENLOUQUECEM. Gazeta
de Notícias, 23 out. 1918, p. 5.
OS SOFRIMENTOS DA CIDADE. O SERVIÇO NORMALIZA-SE NA SAÚDE
PÚBLICA. Gazeta de Notícias, 23 out. 1918, p. 4.
PARA FUGIR À INFLUENZA HESPANHOLA DEU UM TIRO NA CABEÇA!
Gazeta de Notícias, 11 out. 1918, p. 3.
PARA QUE POSSA SER EVITADA UMA NOVA INVASÃO DA INFLUENZA.
Correio da Manhã, 22 jan. 1920, p. 3.
SAES DE QUININO COMO PODEROSO PREVENTIVO DA GRIPPE. Correio
da Manhã, 21 out. 1918. Publicidade, p. 1.
SANITARIO DA CAPITAL MELHORA. Correio da Manhã, 28 out. 1918, p. 3.
TRÁGICA SITUAÇÃO DE BANGU. MORTE, LUTO, DESOLAÇÃO! Gazeta de
Notícias, 23 out. 1918, p. 2.
UM MAR DE ROSAS…. ADIANTAMENTO DE DINHEIRO AO DR.
THEOPHILO TORRES. Gazeta de Notícias, 18 out. 1918, p. 1.
40
A ODISSEIA DA SOCIOECONOMIA
BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA CONTADA
A PARTIR DA DÉCADA 60 E
DESEMBOCADA NA PANDEMIA DO
COVID-19
Marco Vinicius Quevedo1
Tiago Rezende Alves2
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende analisar o histórico da econômico brasileiro a
partir da década de 60 e a ampliação de suas fragilidades devido ao alastramento da
Pandemia do Covid-19.
Os estudos serão divididos em três áreas macro. A primeira delas apresentará
uma explicação, análise e descrição dos principais planos políticos econômicos
brasileiros e suas ferramentas de cunho macroeconômico, seja de âmbito monetário,
fiscal ou cambial, como prerrogativa para contextualizar a tentativa de planejamento
de contenção da grande crise econômica e sanitária da atualidade no Brasil.
Em um segundo nível, serão abordados as ações e reflexos visíveis na
socioeconomia do país até os dias de hoje, a partir da crise mundial de 2008.
Por fim, serão abordados os impactos da Pandemia no social e no econômico,
assim como uma análise e descrição das ações de enfrentamento realizadas pelo
governo, concluindo com a afirmação da instabilidade e insustentabilidade
socioeconômica brasileira arrastada pelas últimas décadas, geradas pela falta de
1
Pós-graduando em Engenharia Econômica Financeira (Universidade Federal Fluminense). Bacharel em
Relações Internacionais (Centro Universitário de Brasília).
2
Mestrando em Comércio Internacional e Inovação, (Universidad Santa Isabel I e Escuela de Negocios de
Barcelona). Graduado em relações Internacionais (UNICEUB). Fundador da Rural Commerce.
Elaborador de Projetos de Cooperação Técnica Internacional (RZD Cooperation).
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
gestão no desenvolvimento de Políticas de Estado de longo prazo que respondam à
complexidade do sistema político, econômico, social, jurídico e territorial brasileiro.
2 AS POLÍTICAS MACROECONÕMICAS DE 1960 A 1980
A década de 1960, foi um período conturbado tanto no âmbito político quanto
no econômico. Essa época foi caracterizada pela instauração do golpe militar em
1964, e pelos contornos tomados na crise econômica que assolou o país. Como
medida foram formulados dois planos econômico para tentar eliminar a inflação e
reestruturar o Brasil para o desenvolvimento e o crescimento industrial que muito foi
aplicado no governo JK.
O Plano econômico de Celso Furtado foi criado a partir da ótica das
consequências econômicas advindas da gestão de JK e da política conservadora do
rápido governo de Jânio Quadros. Nos padrões da época, de 1960 à 1964, o Brasil
passava por uma grave crise inflacionária e política, onde acentuou ainda mais o
fracasso da conjuntura de objetivos do Plano Trienal.
Joao Goulart tomou posse como Presidente da República em 1962, após a
renúncia de Jânio Quadros e aprovação do plesbicito definindo o restabelecimento
do regime presidencialista. Logo em seguida foi apresentado por Celso Furtado,
então Ministro Extraordinário para Assuntos do Desenvolvimento Econômico, uma
resposta para a aceleração inflacionária e crescente deterioração econômica externa,
o Plano Trienal. Este que viria a ser o primeiro plano econômico totalmente bem
estruturado da história brasileira.
O Plano Trienal tinha o objetivo do combate à inflação, criar condições para
que os ganhos advindos do desenvolvimento fossem distribuídos de maneira ampla
entre a população destinando-se ao crescimento salarial a partir da produtividade,
criar soluções visando o pagamento da dívida externa e várias metas para a produção
industrial (PRESIDENCIA DA REPUBLICA, 1962). Em um contexto macro, a
principal ambição do plano era em estabilizar a economia sem comprometer o
crescimento econômico, viabilizando suporte para as bases sindicais.
Neste sentido, para conter todo o agravamento inflacionário as principais
medidas propostas foram as de contenção de gasto e crédito. Todavia, devido ao alto
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
endividamento brasileiro no exterior, a falta de ajuda financeira externa para tentar
realocar os seus credores internacionais, o aumento exponencial inflacionário de
demanda que impactava no acirramento entre as forças sindicais e o governo,
fizeram com que o Plano fracassasse e abrisse espaço para o golpe militar que estava
por acontecer em 1964.
Com a tomada do poder, através de um golpe de estado, pelos militares, em
1964, logo foi instituído um novo plano econômico, com o intuito primordial de
frear a grave crise inflacionária. Os militares assumiram o poder com um discurso
desenvolvimentista, com foco no crescimento econômico. O marechal Castello
Branco tomou posse como presidente e nomeou Octavio Gouveia de Bulhões e
Roberto Campos para os cargos de ministro da Fazenda e do Planejamento. Sob uma
orientação ditatorial e conservadora, foi lançado o Programa de Ação Econômica do
Governo (PAEG) o qual tinha objetivos específicos para a retomada do
desenvolvimento e estabilidade econômica do Brasil.
O Plano baseava-se sobre as causas da inflação apontando para três fatores:
os déficits públicos, a expansão do crédito às empresas e os aumentos salariais por
cima dos ganhos da produtividade (BASTIAN, 2012). Designando o problema
inflacionário como uma inflação de demanda.
Diante disso o plano previa uma estratégia gradualista de combate à inflação,
não praticando, num primeiro momento, tratamento de choque para solucionar o
problema inflacionário. A estratégia era retomar o desenvolvimento sem afetar o
estado de devedor de prestações públicas empresariais e não podendo ameaçar os
investimentos econômicos (BASTIAN, 2012). Desta forma, o foco estava voltado
para a prioridade na estabilidade de preços, o aumento de investimentos diretos,
reformas bancárias e tributárias, acertar o déficit da balança de pagamentos e a
diminuição dos desequilíbrios regionais (KERECKI, SANTOS, 2009).
A PAEG conseguiu estabilizar a economia brasileira e foi um plano que
notoriamente angariou projeções positivas. O planejamento econômico que foi
inserido no Programa forneceu forças para que conseguisse reduzir a inflação para a
faixa de 20% ao ano. No mesmo sentido, conseguiu implementar reformas
43
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
institucionais e criou bases para o crescimento desenvolvimentista econômico que
estava sendo efetivado (LACERDA et al., 2014).
As novas medidas ganharam grandes contornos de notoriedade e foram
amplamente apoiadas no
setor internacional, principalmente pelos EUA.
Proporcionando em parte para a estabilização inflacionária nos próximos governos
Costa e Silva e Médici.
O período de 1967 a 1973 é caracterizado pelo crescimento e
desenvolvimento econômico do Brasil, chamado de ‘’Milagre Econômico’’. Esta
nova perspectiva que o país se inseria demonstrava os ganhos das medidas tomadas
pelo PAEG e a atuação dos novos Governos para o desenvolvimento econômico.
Diferente das gestões anteriores, o governo Costa e Silva acreditava que ao
longo do curso dos anos a inflação brasileira da década de 60, tinha tomado um novo
curso de natureza inflacionária, diferente da inflação de demanda na qual estava
inserida. Sendo assim, Delfim Netto, ministro da economia à época, instituiu que
para a retomada do crescimento seria necessário a implementação do
desenvolvimento industrial econômico o mais breve possível, ou seja, o Estado
deveria injetar medidas para o crescimento empresarial imediatamente. Logo foram
inseridas medidas de alto valor expansionista (LACERDA et al., 2014).
Com a intromissão dessas medidas, entre os anos de 1968 a 1973, o Brasil
alcançou saldos favoráveis de crescimento, as exportações triplicaram, as empresas
privadas cresceram rapidamente aumentando o nível empregatício, tornando o Brasil
em uma das nações mais promissoras da América Latina (MACARINI, 2006).
A este ponto o Governo brasileiro conseguiu contornar em parte a situação de
crise, à custa de um investimento agressivo em crescimento e desenvolvimento
pautado em empresas privadas. Entretanto, é importante frisar a falta de
planejamento do governo brasileiro neste período para o âmbito social, sendo um
crescimento voltado apenas para a elite econômica do Brasil.
O general Geisel assumiu a presidência em 1974, com a responsabilidade de
renovar toda a linha de planejamento de crescimento até então implementada. O país
sul americano apresentava sinais de esgotamento, de exaustão do modelo de
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
crescimento agressivo que vinha sendo implementado desde o governo JK. Como
medida para contornar a situação foi executado o II Plano Nacional de
Desenvolvimento (II PND), com o intuito de equilibrar as contas e dar continuidade
ao intenso desenvolvimento brasileiro. Todavia o esforço foi em vão, acabando por
acelerar o processo inflacionário que já estava começando a assolar, novamente, o
país.
O II PND, surgiu como uma resposta à crise internacional que se passava,
sendo um programa com intuitos ambiciosos de substituição de importações, com
base em grandes projetos na área de bens de produção. O intuito do plano era em
conduzir a economia brasileira, em um curto período de tempo, ao nível das
economias desenvolvidas (SILVA, 2017). O plano foi elaborado pelo então ministro
do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, sendo um projeto bem estruturado
onde assumia os riscos de aumentar os déficits comerciais e a dívida externa, porém
tinha o propósito de construir uma estrutura industrial avançada que permitiria
superar a crise e o subdesenvolvimento.
Para lidar com as demandas econômicas domesticas e as crises internacionais,
como a crise do Petróleo, o governo Geisel acreditava na capacidade do II PND
como fonte para o contato empresarial. O intuito era em contar com o apoio
empresarial. Dessa forma, através do Conselho de Desenvolvimento Econômico
(CDE) o governo militar delimita uma série de incentivos fiscais para as empresas
privadas, com o intuito de angariar apoio e principalmente diminuir a dependência
externa brasileira. No mesmo segmento as empresas públicas ficaram a cargo de
criarem diversos programas voltados para as áreas de infraestrutura e energia, tendo
todos os empréstimos e financiamentos sendo subsidiados por grandes bancos
privados internacionais (ARIENTI, 2008).
Neste sentido, o fato de não poderem recorrer aos bancos brasileiros,
deliberou de maneira agressiva para o aumento da dívida externa. Em 1974, a
participação do setor público no total da dívida era de 50%, já em 1980, atingiu
cerca de 69%, ou seja, a dívida exterior tornava-se de total responsabilidade do
governo (SILVA, 2017). O que conflagra em uma grande guinada para a volta da
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
inflação de forma mais atenuante e ainda tendo que contornar toda a situação de
crise que estava sendo gerada pelas crises do Petróleo.
Sendo assim, mesmo com o crescimento do PIB o plano não consegue dar
margem para o crescimento com taxas parecidas as colocadas pelo milagre
econômico. A instabilidade macroeconômica internacional, a partir da inflação que
persistia posteriormente tornou-se frequente, muito devido ao endividamento das
empresas estatais, sendo o principal percalço para que o plano se tornasse apenas um
induto com medidas paliativas para que o Brasil conseguisse atravessar os dois
choques do petróleo de maneira plena.
Dessa forma, é visível a tentativa governamental de criar uma conjuntura
econômica de comunicação entre os governos sucessores. Todavia, o método na qual
foi implantado fez com que a economia brasileira ficasse suscetível as demandas
internacionais o que de certo modo impulsionou para que o II PND não se
desenvolvesse, inflando a economia brasileira a uma dívida externa gigantesca e a
deterioração da inflação. É com este contexto que a década de 80 se inicia. Sendo
um período marcado como a década perdida para a histórica econômica brasileira,
muito devido as políticas macroeconômicas que estavam sendo implantadas no II
PND.
A década de 1980 foi um período na qual sofreu o reflexo das políticas
desenvolvimentistas econômicas implantadas nas gestões anteriores, onde foi
marcada pela grande inflação, endividamento externo e desiquilíbrios na balança
comercial. Para tentar contornar a situação, autoridades passaram a implementar
políticas econômicas com instruções ortodoxas com o intuito de controlar as
despesas públicas e os gastos das empresas estatais, aumentar a arrecadação do
imposto de renda e do imposto sobre Operações Financeiras nas operações de
câmbio para importação e uma contração da violação do crédito, com a única
exceção para o setor da agricultura.
Em 1980, acontece o crescimento da dívida externa brasileira onde muito
impulsionada pelas gestões anteriores, piora principalmente por conta da alta dos
juros comerciais internacionais realocadas pelo governo norte americano. Outro
agravante foi à alta constante da inflação, introduzindo um novo pacote de medidas
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
econômicas em 1980, tendo Delfim Netto como o precursor. Foram colocadas
medidas de austeridade ao setor público e privado, novas medidas de restrição
monetária e de crédito, aumento dos juros, corte dos gastos públicos, alteração na lei
salarial e grande incentivo às exportações. Os novos projetos de investimento foram
todos revistos e adequados de acordo com as condições de crédito disponível
(SILVA, 2017). O intuito do Governo brasileiro com as novas medidas de cunho
heterodoxo estava em derrubar a inflação que crescia em larga escala e conseguir
conduzir a balança de pagamento (KASZNAR, 2006).
Com o investimento em medidas para influenciar o crescimento das
exportações, como as inferências realizadas na taxa de câmbio, o governo consegue
provocar certo aumento da balança comercial, o que se observa um aumento
passando de um déficit, em 1980, para superávits de US$ 6,5 bilhões, em 1983, e um
recorde de US$ 13 bilhões, em 1984. A causa do crescimento nas exportações
deveu-se à própria recessão, onde pode ser visto uma queda nas importações e
estímulo para o aumento das exportações.
Todavia, o índice de inflação aumentou de maneira agressiva, sendo um
reflexo da mudança dos preços relativos combinado ao sistema de indexação da
economia. O Brasil não conseguia angaria um meio termo de estabilização, ao passo
que conseguia crescer em suas exportações devido a incentivos governamentais as
indústrias, no âmbito interno o país ainda passava por sérias dificuldades. Para tentar
contornar esta situação, foi proposto o Plano de Estabilização, pelo então ministro
Dilson Funaro. O Plano previa uma nova correção monetária igual a inflação
correspondente ao mês anterior, a redução da taxa de juros em 30% pagas aos títulos
públicos, renegociação dos compromissos da dívida externa, buscando o afastamento
do FMI e explorar soluções para a resolução do problema do desequilíbrio financeiro
sem precisar necessariamente realizar o corte dos gastos públicos. Entretanto, no
final de 1985 para 1986, a inflação alcança a incrível margem de 230%, levando o
governo a incluir uma série de medidas heterodoxas através do congelamento total e
generalizado de preços, acompanhados por políticas monetária e fiscal passivas
(SILVA, 2017).
47
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Com a realização do primeiro congelamento de preços, as empresas passaram
a antecipar os novos congelamentos, pois o intuito era em se prevenir diante da
possibilidade de estar com os preços defasados. Nesse sentido, a inflação tornou-se
paliativamente continua e iniciou-se a financeirização dos preços através das taxas
de juros que eram utilizadas como critério para o reajuste dos preços, porém este
critério estimulava a remuneração das moedas que eram indexadas, transformandose em ativos financeiros. A partir deste cenário, o Plano Cruzado não consegue se
manter, sendo impossibilitado de gerar superávits comerciais sem conter o âmbito
interno da economia (NOZAKI, 2010).
No ano seguinte, em 1987, é lançado o Plano Bresser, seguindo praticamente
as mesmas prerrogativas de congelamento de preços, o que foi o motor para o
fracasso do Plano Cruzado. O que obviamente, elevou ainda a inflação no Brasil,
deturpou o câmbio através das tentativas de desvalorização e ocasionou instabilidade
crescente na taxa de juros (SILVA, 2017).
Com isso, num contexto geral, os anos 80, representou uma quebra de
expansão econômica, vivida na década de 1970. Este período deu margem para uma
estrutura produtiva que pouco evoluiu, com o seu crescimento estagnado e pouco
investimento tecnológico para o aperfeiçoamento da malha industrial brasileira.
Dessa forma, é perceptível a falta de gestão brasileira no escancaramento da
criação de Planos econômicos com o pensamento a longo prazo, o que continua se
alastrando até a atualidade.
3 PANDEMIA DO COVID-19: O ESTOPIM DA HISTÓRICA
CRISE POLÍTICO-ECONÔMICA BRASILEIRA EVIDENCIADA
A PARTIR CRISE GLOBAL DE 2008
Em suma, no que diz respeito aos fatos apresentados, a economia política
brasileira havia patinado entre as décadas de 60 e 80. Entre movimentos
antidemocráticos, alternância de governança e ausência de políticas públicas de
longo prazo, fortalecendo a debilidade da economia brasileira.
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Por outro lado, na década de 90, em uma tentativa de restaurar a economia foi
lançado o plano real, movimento inicial que contribuiu para movimentos ocorridos
posteriormente.
O Governo do Ex-Presidente Lula propôs, conforme descrito por Calixtre,
Biancarelli e Cintra, era um modelo de desenvolvimento inclusivo, baseado em
quatro pilares. Primeiro, o crescimento econômico impulsionado pelo aumento do
emprego, do salário mínimo real e pela redistribuição da renda salarial. Segundo, o
avanço na consolidação de um Estado de bem-estar social estabelecido, por meio da
implementação de políticas públicas universais e direcionadas aos grupos sociais
mais pobres (transferência de renda) (estimativas indicam que as “transferências
públicas de assistência e previdência social” agregadas atingiram mais de 15% do
produto interno bruto (PIB), com impactos relevantes no consumo das famílias).
Terceiro, a expansão do ciclo de crédito com queda da taxa de juros e aumento real
nos salários. Quarto, um conjunto de investimentos públicos, direta e indiretamente
(através de bancos públicos). (CALIXTRE, BIANCARELLI e CINTRA, 2014)
Nesse sentido, a autora Laura de Carvalho menciona que entre 2003 e 2011, o
Brasil alcançou um crescimento nunca visto e a diminuição da desigualdade interna.
Entretanto, a autora afirma que esses movimentos só ocorreram pelo aumento dos
preços das commodities exportadas e que passado esse período a socioeconomia
brasileira voltou a despencar. (CARVALHO, 2018).
Os fatos mencionados anteriormente nos fazem perceber que a economia
política brasileira está atrelada a uma instabilidade caótica, mascarada, por diversas
vezes, por alterações das moedas nacionais, planos de governo, planos de aceleração
do crescimento e do falso poder econômico social, que potencializam ainda mais as
discrepâncias brasileiras.
Desde 2008, os sintomas da esquizofrenia socioeconômica brasileira têm
chamado a atenção. Em um momento de recessão econômica, onde as principais
economias do mundo repensaram suas políticas, estruturaram suas economias e
criaram estratégias de recuperação e sustentabilidade a longo prazo, o Brasil decidiu
realizar testes de laboratório para acelerar o seu crescimento socioeconômico.
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Os resultados negativos dessas ações começaram a ganhar força em 2014.
Dados do IPEA de 2018 mostraram que o crescimento do PIB brasileiro que antes
andava na média positiva de 4%, começou a contabilizar taxas negativas de 3,85%
(2015), 3,6% (2016) e 0,01% (2017).
Dados do IBGE de 2019 e 2020, mostraram o ensaio para o aquecimento da
economia, atingindo um PIB de +1,8% em 2018 e +1,4% em 2019, que, ainda assim,
demonstram uma equação negativa de 4,26%, se comparada com o retrocesso
ocorrido nos anos anteriores.
Mesmo nos anos de maior investimento na aceleração socioeconômica, o país
nunca foi capaz de deixar de estar na zona de países com mais desigualdade no
mundo. Segundo o indicador GINI, entre 2008 e 2014, o melhor posicionamento
brasileiro foi em 2014 com 52,1 na escala de desigualdade.
Nas últimas décadas as crises socioeconômicas brasileiras, conforme cita o
autor Lauro Mattei, foram apenas financeiras, derivadas da própria gestão da
estrutura econômica.
Entretanto, o Brasil e o Mundo mergulharam na nova década com um cenário
completamente diferente.
Em 2020 o mundo foi surpreendido com o surgimento do coronavírus
(COVID-19). Esta crise sanitária, de proporções mundiais e aterradoras, que gerou
um caos nos sistemas socioeconômicos mundiais.
No caso brasileiro, esse cenário escancarou sua fragilidade, patenteou o alto
índice de desigualdade, a pobreza, a miséria, a pouca capacidade de resiliência e o
falso desenvolvimento e crescimento visto em algumas décadas.
A Jornalista econômica, Thais Carrança, salienta que a Pandemia agravou o
que já se desenhava como a pior década de crescimento nos últimos séculos,
sinalizando um encolhimento de 4,1% em 2020, aproximando aos efeitos de 4,4% do
Plano Collor de 1990 e superando os 3,5% de 2015 e os 3,3% de 2016.
No ano anterior à pandemia, o Brasil atingiu a marca de 53,8 no coeficiente
GINI, estado alarmante, que demonstra a recorrência negativa na desigualdade de
distribuição de ingressos.
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
No que diz respeito ao índice de Desenvolvimento Humano, o Brasil, em
2019, ocupava a 84ª posição do ranking, atrás de países da região como México e
Colômbia, com 0,765.
A situação já caótica, com a chegada da pandemia se torna insuportável e
insustentável no país.
A partir desse fenômeno e como consequência o aumento do número de
contágios, se instaurou um debate sobre as medidas sanitárias que deveriam ocorrer.
Entretanto, tratando-se de uma pandemia esse debate nunca se limita à esfera
sanitária.
Isso, porque, inevitavelmente, todas as experiências mundiais anteriores,
relacionadas com epidemias e pandemias provocadas por doenças virais, é de
conhecimento que a ação mais estratégica é realizar o isolamento social, evitando o
espalhamento do contágio e permitindo a investigação científica e a criação de
medidas sanitárias de controle, prevenção e enfrentamento.
As ações de contingências afetam todas as áreas da sociedade, tendo sempre,
como ponto de gargalo e atenção, as consequências socioeconômicas.
No início de março de 2020, período onde acentuou-se as preocupações com
o vírus no Brasil, o Governo já diminuiu as expectativas relativas ao crescimento da
economia e as incertezas socioeconômicas ganharam proporções inigualáveis no
país.
Em 16/03/2020, o governo publicou pela primeira vez, no site do Ministério
da Economia (ME) medidas que seriam adotadas relativas ao enfrentamento da crise
econômica que se conflagrava devido a pandemia. Podendo-se destacar a injeção de
R$ 147,3 bilhões na economia para atender a idosos e para a manutenção de
empregos; suspensão do pagamento do FGTS por três meses para empresas;
suspensão por três meses da parcela da união no Simples Nacional; R$ 5 bilhões de
crédito para micro e pequenas empresas; contribuições do Sistema S com desconto
de 50% por três meses
O mais preocupante das medidas supramencionadas é que elas não
consideravam os mais de 12 milhões desempregados, os mais de 35 milhões de
51
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
trabalhadores informais e autônomos, e os mais de 92 milhões de trabalhadores
formais, segundo dados do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua
(PNAD/IBGE).
Após dias de caos e muita movimentação da sociedade civil para conseguir
apoio para estes grupos e para a população mais vulnerável, o governo anunciou a
liberação de um auxílio emergencial no valor de R $200,00 por CPF, abarcado nos
parâmetros definidos, como, por exemplo, ter mais de 18 anos, durante 3 meses.
Segundo o próprio site do governo, essa medida iria beneficiar de 15 a 20 milhões de
pessoas, correspondente a uma injeção de R$ 5 bilhões na economia.
O valor mencionado, em níveis proporcionais, representa: ⅓ do valor
solicitado pela sociedade civil, 31% do preço da cesta básica e 18% do Salário
mínimo.
Uma das ações mais polêmicas do governo foi a criação do chamado
“Programa Antidesemprego”, que permitiria a negociação para redução de jornada
de trabalho e salário em até 50%, não permitindo que o valor seja inferior a um
salário mínimo e a proposição da Medida Provisória que permitiria a suspensão dos
contratos de trabalho por quatro meses.
Claramente uma das ações menos práticas, objetivas e efetivas propostas pelo
governo, reduzindo a renda das populações mais pobres e o dinheiro circulando na
economia, mas, principalmente, desviando completamente das medidas eficientes
comprovadas ao longo da história de aumento do investimento público.
Em 19/03/2020, o governo informou no site do ME um acréscimo de 22
bilhões de reais no plano de enfrentamento à pandemia, totalizando R$ 169,6
bilhões, cerca de 2.32% do PIB de 2020, dos quais R$ 98,4 bilhões seria para as
populações mais vulneráveis, R$ 59,4 bilhões para a manutenção dos empregos e R$
11,8 bilhões para o combate à pandemia. Também anunciou que 1 bilhão do Fundo
de Amparo ao Trabalhador (FAT) seria destinado em formato de crédito para as
micro, pequenas e médias empresas com faturamento bruto anual de até R$ 10
milhões.
52
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
O autor Lauro Mattei comentou que até este período as medidas anunciadas
eram genéricas, salientando que o ministro voltou a tratar do tema das reformas
(administrativa e tributária), afirmando que a melhor resposta para conter a crise era
aprovar as reformas no Congresso Nacional (CN) que, se isso fosse feito, a
economia brasileira iria crescer 2,55% em 2020. Justificou-se afirmando que
somente as reformas poderiam conter as turbulências que vêm de fora. (MATTEI,
2020)
Com relação aos municípios, em 23/03/2020, o governo anunciou um repasse
de R$ 88,2 bilhões para os setores da saúde, Recomposição FPE e FPM, Assistência
Social, Suspensão de dívidas dos Estados com a União, Renegociação com bancos e
Operações de crédito.
Dia 03/04/2020, o ME anunciou um empréstimo de R$ 34 bilhões para que as
empresas pudessem manter as folhas de pagamento.
Logo após, dia 29/04/2020, o ME criou doze forças-tarefas com o objetivo de
monitorar o setor produtivo e propor medidas de apoio e enfrentamento aos impactos
econômicos durante a pandemia.
Em maio de 2020 (13/05/2020), o Ministério da economia informou que os
custos da paralisação da economia seriam de R$ 20 bilhões por semana, projetando
uma retração de 4,7% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020. É importante
ressaltar que essas projeções foram feitas considerando que as paralisações
terminariam em 31/05/2020.
Após muitas críticas sobre a obsessão do ministro pelas reformas e dois dias
após as projeções apresentadas, o Ministro da economia informou que as reformas
estruturantes da economia foram interrompidas devido ao enfrentamento à
pandemia. Também vale salientar, que nesse pronunciamento foi apresentado o
vídeo e site “500 dias de Governo - Governo Jair Bolsonaro”, desenvolvidos com
recursos públicos para promoção do governo em meio à maior crise sanitária e
econômica das últimas décadas. Foi ressaltado no vídeo a compra exorbitante de 2,9
milhões de unidades de Cloroquina e Hidroxicloroquina, medicamentos sem
comprovação científica para o tratamento da COVID-19.
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Por outro lado (28/05/2020), foi sancionada a Lei Complementar nº 173/2020
com o objetivo de repassar para os estados, municípios e o Distrito Federal mais de
R$ 60 bilhões para dar suporte no enfrentamento à pandemia.
No início do mês de junho de 2020 o Ministério da Economia, juntamente
com o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) lançaram o Programa de
facilitação de acesso a crédito para pequenas e médias empresas (PMEs).
Em 30/06/2020 foi anunciado a prorrogação do auxílio emergencial por mais
dois meses.
O Ministério da economia anunciou (02/07/2020) que até a data R$ 521,3
bilhões já haviam sido investidos na economia para enfrentamento aos impactos da
pandemia, sendo R$ 508,5 bilhões injetados e R$ 12,8 bilhões em redução de
receitas.
No dia 13/07/2020, quatro meses depois do início da pandemia, os estados e
municípios receberam a primeira parcela do auxílio de enfrentamento à pandemia e
no dia 19/08/2020, cinco meses após o início da pandemia, o governo federal
sancionou as Medidas provisórias (MP 944, que institui o Programa Emergencial de
Suporte a Empregos, e da MP 975 que institui o Programa Emergencial de Acesso a
Crédito) de facilitação do acesso ao crédito pelas micro, pequenas e médias
empresas.
Como podemos ver, várias das medidas tomadas pelo governo foram de
respostas lentas. É possível afirmar isso, pois o país foi um dos últimos a ser afetado
com o espalhamento do vírus, tendo as possibilidades de haver desenvolvido
respostas de mitigação. Nesse sentido, também podemos citar o fato de tomarem
medidas contando com o fim da pandemia dois meses após a chegada no Brasil e
uma retomada da economia entre três e cinco meses.
Em publicação de 2020, transcrevemos, o autor Lauro Matei (2020):
“O governo não tem um Plano de Ações organizado e
articulado para amenizar os efeitos da pandemia nas atividades
econômicas. O que se viu até o momento foram anúncios
espalhafatosos e a conta gotas de montantes de recursos,
porém sempre com poucos efeitos práticos, uma vez que os
encaminhamentos para que de fato esses montantes
54
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
anunciados cheguem aos agentes econômicos (empresários e
trabalhadores) normalmente continuam paralisados até o
momento (MATTEI, 2020, pag 4)”
O Ministério da Economia informou no dia 23/12/2020 que, até a data de
18/12/2020, o impacto fiscal com a Pandemia já havia alcançado o patamar de R$
620,5 bilhões, sendo R$ 374,2 bilhões (60,3%) destinados aos vulneráveis e à saúde,
R$ 140,8 bilhões (22,7%), para manutenção dos empregos e empresas e R$ 105,5
bilhões (17%) aos entes nacionais.
Nesse sentido, informou em 31/12/2020 que o Programa Nacional de Apoio
às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (PRONAMPE) concedeu crédito de
mais de R$ 37,5 bilhões a 517 mil empresas.
Apesar das medidas apresentadas com relação a facilitação e acesso a crédito
para as pequenas empresas, a realidade era um pouco distinta. O processo e as
condições eram complexos, logo, muitos empreendimentos levaram meses para
acessá-lo e outras nunca o acessaram.
Em termos gerais, os pouco mais de 8% do PIB de 2020 injetados na
economia foram míseros comparados com as necessidades provocadas pela
pandemia do Covid-19. Esses fatos são corroborados com os dados apresentados
anteriormente sobre os aumentos intensivos do número de desempregos, empresas
fechadas, da desigualdade e da população na linha da pobreza e da insegurança
alimentar.
4 CONCLUSÃO
É demasiadamente perceptível que as gestões econômicas brasileiras nunca
conseguiram realizar um plano econômico para com o pensamento de longo prazo
sobre o sistema estrutural da economia do Brasil. Desde a década de 1960, todas as
medidas econômicas lançadas, foram criadas pra solução de problemas
macroeconômicos imediatos para a gestão que estava no poder. A crise sanitária
devido a propagação do vírus do Coronavírus é apenas mais um dos exemplos de
crises que influenciam na criação de projetos econômicos para solução imediata, o
que vem depois, pode ser resolvido pela próxima gestão. Já a questão social é um
ponto na qual estava fora das premissas de urgências impostas sobre os planos
55
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
econômicos até então já lançados, sendo um fator que provavelmente seja o motivo
para o fracasso de todas os projetos econômicos até então implementados.
No início da década de 60, é visível que o país não conseguia sustentar o seu
rápido crescimento imposto pelo Governo anterior. O Plano Trienal veio como uma
excelente ferramenta para solucionar os problemas econômicos advindos do
Governo JK, sendo o primeiro Plano econômico brasileiro altamente estruturado e
com medidas que iriam provocar alcances a longo prazo. No entanto, o golpe militar
interrompe o desenvolvimento do Plano, tendo em seguida a implementação do
PAEG, que, praticamente, tinha as mesmas medidas colocadas pelo Plano Trienal.
Neste sentido é visto que neste período o Governo brasileiro tentou realizar a
intromissão de políticas vindouras da gestão anterior, sendo o que de fato foi feito
até 1975. Contudo, podemos observar que o Brasil apresentou grande crescimento
econômico no período entre a década de 1960 a 1970, devido à uma gestão
econômica na qual demonstrou certo diálogo entre os governos sucessores para que
as medidas até então impostas continuassem no rumo certo para o desenvolvimento
do país. Todavia, é a partir do meio da década de 1970, que observamos que a gestão
não consegue atualizar as suas medidas para enfrentar a grave crise internacional que
passava, o que os impõem criar um Plano econômico com o proposito de solucionar
os problemas vindouros naquele instante e, novamente, não pensando em soluções
estruturais de impacto a longo prazo. Posteriormente, foi apenas na gestão do
Governo Lula, que o Brasil conseguiu realizar projetos com o intuito obter impactos
a logo prazo.
Na realidade mais recente, a condução da crise sanitária brasileira provocada
pelo coronavírus é mais um exemplo de caso brasileiro de criar políticas econômicas
sobre ótica emergencialmente na tentativa de encontrar soluções com impactos de
curto prazo, deixando aquém medidas que teriam relevância e predominância maior
a longo prazo, com soluções imediatas. No mesmo passo as políticas econômicas até
então criadas no início da instalação da crise, foram medidas que excluíram a classe
mais pobre o que retoma as medidas criadas na gestão dos militares na qual não
demonstraram a necessidade de uma visão para o âmbito social, tendo como maior
foco o desenvolvimento de um capitalismo ferrenho, não dando qualquer margem
56
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
para uma maioria marginalizada, o que foi demonstrado amplamente nos ganhos do
milagre econômico.
A partir disso, pelo período de grave crise econômica e as suas
consequências, como a pressão inflacionária, baixo poder aquisitivo e pouco
crescimento econômico dão margens para à tomada de grandes medidas públicas
econômicas, porém essas medidas teriam que ser tomadas com a percepção da
demanda populacional. A criação de novas tributações, arrocho salarial e o
fornecimento de capital para indústrias, com o intuito de frear a inflação, foram
medidas tomadas para uma classe especifica. A percepção do governo em não
implantar essas novas medidas de maneira como ‘’medidas de choque’’ tinha o claro
intuito em não desestabilizar ainda mais a economia brasileira, porém, para as várias
famílias brasileiras as novas medidas econômicas tiveram um grande choque em
suas vidas. A construção de infraestruturas públicas, apenas demonstram maiores
pavimentos para a indústria, principalmente privada, onde se teria o básico para o
mantimento do desenvolvimento industrial. Observa-se, também, que governo Costa
e Silva, apenas ampliou o estimulo ao desenvolvimento agro exportador não abrindo
nenhuma porta para o desenvolvimento social, o que é rapidamente demonstrado
com a colheita dos frutos das novas medidas econômicas, no governo Médici com o
‘’ Milagre econômico’’, o qual foi um grande milagre para uma minoria, tendo
grande concentração de capital, e uma grande desvantagem para uma maioria, não
obtendo investimentos sociais. O Governo Bolsonaro, cria políticas econômicas com
o mesmo viés implementado durante a gestão militar. É perceptível a inerência de
criação de políticas públicas voltada para a grande maioria populacional que
pertence a classe mais pobre do Brasil.
Dessa forma, conclui-se que as gestões governamentais brasileira procuram
criar Planos econômicos para gerir problemas macroeconômicos de imediato,
deixando de lado a visão de criar uma estrutura para sólida que provocará impactos
coesas a longo prazo.
57
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
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58
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
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Disponível em: <https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/noticiascoronavirus-covid-19?b_start:int=60>.
59
DISTRIBUTION OF ADMINISTRATIVE
COMPETENCES BETWEEN NATIONAL
AUTHORITIES IN BRAZILIAN
FEDERATIVE HEALTH SYSTEM:
INTERNATIONAL VACCINE PURSHASE
CONTRACTS AND PARADIPLOMACY
Carolina Reis Jatobá Coêlho1
1 INTRODUCTION
On January 20, 2020, the World Health Organization declared that the world
was facing a"public health emergency of international interest", which led Brazil to
enact Law No. 13,979, of February 6, 2020, which was later modified on March 20,
2020, after a new WHO declaration that reclassified that current moment as a global
pandemic, caused by the advance of the new coronavirus that causes a disease called
COVID-19.
The legislation guides coordinated actions by all entities of federation,
highlighting measures that may be adopted by the authorities in health issues only
provided if they are within limites of their competence. Citizens shall be subject to
compliance with sanitary measures and their non-compliance will lead to liability
and all system should assure full respect for dignity, human rights and fundamental
freedoms.
In order to face the public health crises, the authorities may adopt, within the
scope of their competences, the following measures, among others: isolation;
quarantine; determination of compulsory performance of: a) medical exams; b)
1
Phd in Administrative Law at PUC-SP. Master in Law of International Relations at University Center of
Brasília. Specialist in Constitutional Law at IDP/DF. Specialist of Public Law at Fundação Escola
Superior do Ministério Público/DF. Legal Consultant/Attorney at Law at Caixa Econômica Federal in
Brasília/DF. Professor at the University Center of Brasília.
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
laboratory tests; c) collection of clinical samples; d) vaccination and other
prophylactic measures; or e) specific medical treatments; epidemiological study or
investigation; exhumation, necropsy, cremation and handling of corpses; exceptional
and
temporary restriction,
according
to
the
technical
and
substantiated
recommendation of the National Health Surveillance Agency, by highways, ports or
airports from: a) entry and exit from the country; b) interstate and intercity
transportation; c) requisition of goods and services from natural and legal persons, in
which case the subsequent payment of fair compensation will be guaranteed; and
exceptional and temporary authorization for the import of products subject to
sanitary surveillance without registration with Anvisa, provided that: a) registered by
a foreign sanitary authority; and b) provided for in an act of the Ministry of Health.
To compose the hole legislative framework, in addition to Law No. 13,979,
already explained, we should be mentioned Law No. 14,121, Law No. 14,124 and
Law No 14,125 all of them published in March 2021 and that guide actions to
combat and prevent COVID-19. First one provides for exceptional measures related
to the acquisition of vaccines, authorizes the federal executive branch to adhere to
the Covid-19 Global Access to Vaccines Instrument (Covax Facility) and establishes
guidelines for the immunization of the population.
Second one also provides for exceptional measures relating to the acquisition
of vaccines, but also for supplies and the contracting of goods and services in
logistics,
information
and
communication
technology,
social
and
public
communication and technical training for vaccination against covid-19 and on the
Covid-19 National Immunization Operational Plan. In this legislation, there is an
exemption from bidding of contracts or similar instruments, but it does not remove
the need for an administrative process that contains the technical elements required
to choose the contracting option and to justify the applicable price.
The third of them is the most important for the subject of this paper.
According to Law 14,125, entities of federation (the Federal, Member-States and
Municipalities) are authorized to acquire vaccines and to assume the risks related to
civil liability, under the terms of the instrument of acquisition or supply of vaccines.
61
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
This guidance is consistent with the understanding that the coordination of all
federative entities is one of the premises underlying Law No. 13,979.
The coherence of coordination also exists within the National Immunization
Program (NIP), established by Law No. 6.259/1975. The NIP began its first National
Vaccination Campaign against Poliomyelitis in 1980, with the goal of vaccinating all
children under the age of 05 in one day. This program have been internationally
known as part of the World Health Organization Program, with technical,
operational and financial support from UNICEF, and contributions from Rotary
International and the United Nations Development Program (UNDP).
The problem that arises in this paper discussion is that even facing a unified
health system in Brazil, which covers the entire national territory and is coordinated
by a central unit, there is inequality in the health universe, highlighting regional
differences, that reveal marked disparities between member states with regard to
equipment and human resources in the area of health.
Additionally, the pace of vaccination was not the same for all federation
entities. There were advances and setbacks when considering member states.
Although the public policy on vaccination is considered broad and covers the entire
national territory, member states have their own public budgets and the forms of
decentralization of material, personal and administrative resources and it leds to
greater advances in vaccination in richer states and a delay in poorest states.
This combination of coordination by a central entity and the execution of
public policies by federative entities ends up generating a model that intends to be
cooperative. However, what was noticed were member states taking the lead in
negotiating, purchasing, and executing international contracts, including national
entities, which characterizes the phenomenon of paradiplomacy.
This article intends to analyze the individual actions of the Member States of
the Brazilian federation in light of the Brazilian legal system and also the
jurisprudential readings of the Brazilian Supreme Court. The questions that arise are:
i) are member states acting legally in the design of the distribution of administrative
powers provided for in the Brazilian Constitution for Public Health issues? ii) is the
62
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
phenomenon of paradiplomacy observed in the negotiations of international
contracts conducted by state governors?
To answer the questions, this article is divided into two parts, each one
intended to address each of the questions. The first one proposes to describe how
administrative and legislative competences are designed to deal with public health
issues in the Brazilian legal system. This item is also intended to present how the
Brazilian Federal Supreme Court interpreted the issues of competence distribution in
the execution of public policies regarding the treatment and prevention of COVID19.
The second part introduces the concept of paradiplomacy and justifies the
negotiation of international contracts for the purchase of vaccines by governors,
given the administrative vacuum that occurred in the health crisis due to the delay in
approving purchases. Finally, it is concluded that it is possible to consider the
legitimacy and legality of negotiation and contracting acts carried out by governors.
2 BRAZILIAN FEDERATIVE MODEL AND REPERCUSSIONS
ON THE PUBLIC HEALTH POLICY AGENDA.
Brazil is a republic whose State adopts the form of federalism. Traditionally,
federalist states divide power into administrative and legislative decision-making
spheres that must be united for common collaboration 2..Thus, the exercise of power
is carried out jointly by the larger entity, the federal sphere, and between smaller
entities, the Member States, which have a certain autonomy in relation to the latter,
mainly in matters of regional characteristics.
However, Brazil is not a two-tier federation3, like most federative models in
the world. This is because, in addition to national and regional power, there is a
2
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís
Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998, p. 178 e ss. In Hesse's traditional view, federalism is
the free unification of different political totalities, fundamentally with the same rights, into regional
rules that, in this way, must be united for common collaboration”. Although the author considers that
there is a conceptual uniformity in the theme, the distinction is due to the concrete-historical
particularities and individualities of each social and legal formation.
3
Most Federated States adopt dual or classic federalism, which has a North American origin and presents
a centripetal model (which starts from the base or from the center to the ends), in which there is a
decentralization of competences distributed to the Member States. In Brazil, this logic was already
implemented in the Federal Constitution of 1891, which established the Union's competences expressly
63
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
division of local power, which also represents autonomy for even smaller entities,
the municipalities. The division of powers in the federation, therefore, is a
presumption and the forms of exercising such powers are designated by
competences: whether administrative or legislative.
So, first of all, it is important to afirmm that competence, in the technical
sense of the term used in Brazil, is considered as a complex of powers that are
performed through attributions that limit them, so that no public authority is
absolute. Assume that premisse, the division of competence in Brazilian Constitution
of 19884 addresses the legislative competences (to legislate), and administrative
competences (to manage).
In the scope of legislative competences, there are within the scope of
legislative competence, there are two types that can be considered: i) private
competence (art. 22) and ii) concurrent competence (art. 24). Private competence is
that exclusive to the federative entity. For exemple, it is the exclusive competence of
the federal sphere to legislate on sovereign issues or those matters that need
homogeneous treatment throughout the national territory.
In this sense, article 21 of the Brazilian Constitution of 1988 provides that
some of the following themes are legislative matters of the federal sphere: i) civil,
commercial, criminal, procedural, electoral, agrarian, maritime, aeronautical, space
and labor law; ii) expropriation; iii) civil and military requisitions, in case of
imminent danger and in time of war; iv) water, energy, information technology,
telecommunications and broadcasting, and much others itens, including foreign and
interstate trade.
Concurrent competence, in turn, is that which is attributed not to a single
entity of the federation, but which can be performed by all of them, within the limits
in an exhaustive list, and, by a contrario sensu interpretation, all other undetermined competences were
attributed to the Member States, who had greater political autonomy. Such was the autonomy of the
Member States that it ended up generating an undesirable alternation of government polarized between
São Paulo and Minas Gerais, and was baptized by historians as “República Café com Leite” (a
reference to the two main economic products produced by those Member States).
4
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF:
Presidência
da
República.
Avaiable
in:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Conferred on 08th October of
2021.
64
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
of their territorial scope. Therefore, pursuant to article 24 of the Brazilian
Constitution it is incumbent upon the Nacional Entity, the States and the Federal
District to legislate concurrently on, for exemple: itax, financial, penitentiary,
economic and urban law; ii) budget; iii) commercial boards; iv) costs of forensic
services; vproduction and consumption; ix)education, culture, teaching, sport,
science, technology, research, development, and, especially for the purposes of this
paper, social security, health protection and defense. In order to preserve the state's
competence, within the scope of concurrent legislation, the competence of the
Nacional Entity will be limited to the establishment of general rules.
Regarding administrative competence, it is possible to perceive two types of
competence: exclusive (art. 21) and common (art. 23). The exclusive administrative
competence is that which cannot be delegated, that is, it cannot be performed by any
entity other than the one to which the Constitution has granted powers. To exemplify
this exclusive competence, it is mentioned that the national entity is in charge of
matters of relevant value to the nation-state, such as maintaining relations with
foreign states, declaring war, issuing currency, among others provided for in article
21, it is noteworthy that the exclusive competence of the union is undelegable, so its
delegation to any other being prohibited.
Similar to the logic of concurrent legislative competences, it is the common
competences of federative entities (the Federal sphere, the States sphere, the Federal
District and the Municipalities). The difference between the competences is that the
first is related to legislative actions, while the other is related to the administration
and execution of public policies. However, in both, there is a limitation on the
attributions of the federation's entities.
Concurrent and common competence, therefore, are specific words in the
language of the Brazilian Constitution. And it was established that if the Constitution
speaks of concurrent competence, it will be referring to the act of legislating by each
of the federative entities, each in its sphere of action. Similarly, if the adoption of the
term is in reference to common competence, it is talking about the attributions that
fall to the Executive Power and its representatives in each of the Brazilian federative
65
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
spheres. Basically, common competences are administrative and concurrent
competences are legislative.
The actions and public policies common to all federative entities and that
express typical activities of the Executive Power are, among others, the safeguard
and protection of the Constitution, laws and democratic institutions, in addition to
the preservation of public property, and for the purposes of the article, the guarantee
of public health and assistance. Health care is understood as a set of diagnostic,
therapeutic and interventional services. In Brazil, it is provided both by the Public
Power and by private institutions, albeit under the logic of the Unified Health
System, and its guidelines are decentralization, comprehensive care and community
participation.
Thus, it is the obligation of the entire Brazilian federation (common
competence of the Federal Sphere, States, Federal District and Municipalities) to
care for health, which is compatible with what is called the Unified Health System,
created by the Constitution, in its art. 198, based on the following considerations
previously seen: health is a duty of all and a duty of all brazilian entities; access to
actions and services to promote prevention and recovery is universal and equal, that
is, everyone has the right.
The Unified Health System is organized through the integration of the actions
and health services of a federative entity with another, in the network of these
actions and services. This demonstrates that federative entities, although enjoying
the same federative autonomy, are interdependent within the Unified Health System,
and should integrate their services with each other in the health region. The health
system is composed of the services of different entities, in the health region or
between health regions, which are integrated in a network.
Article 7 § II of Law nº 8.080/1990 defines the integrality of health care,
saying that it is a articulated and continuous set of actions and services that must be
guaranteed in the system. The integration of federative entities characterizes the
unified health system and gives rise to a program with an interdependent format in
which an entity of the federation does not carry out any activity on its own. He is
66
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
always helped by other entities and the actions are coordinated by the Federal
Sphere, which must ensure integrity and standardization of the system.
These guidelines were the object of analysis by the STF in concentrated
control of the constitutionality of the legislation (ADI 6.341), in which the Court
expressed its opinion, considering that the matter of public health is a concurrent
administrative competence of the federative entities as per the diction of article 23, II
, of the Federal Constitution, and, in an injunction for a monocratic decision (to be
confirmed by the Plenary), understood that the measures of isolation, quarantine and
compulsory examinations do not rule out measures taken by federative entities.
Therefore, in practical terms, measures relating to isolation, quarantine and
restriction on entry and exit from the country and locomotion may be taken in
different administrative spheres of the Federal Sphere and several Federated States
have implemented their own measures, using the judicial authorization given by the
interpretation of the STF to manage within its federative unit.
According to the Constitution, the correct interpretation of Law No. 13,979 is
confirmation of the concurrent competence of the Union, States, Federal District and
Municipalities over public health. The laws enacted by the Union were considered
constitutional, respecting its competences, but even so this does not remove or
weaken the power of each of the other federative entities. The conclusion of the
paradigmatic judgment demonstrates that federative model to address the issue of
public health works in a cooperative between subnational entities and coordinating
role of the nacional entity.
3
COOPERATIVE FEDERALISM IN HEALTH, THE
LEADING ROLE OF THE MEMBER STATES IN
MANAGING THE CRISIS AND THE INEVITABLE
PARADIPLOMACY
In the view of the Brazilian Federal Supreme Court, subnational entities end
up acquiring greater responsibilities. As a result, the central entity would be
responsible for coordinating public policies and directing assumptions and
guidelines to other entities. However, what was noticed was a greater role for the
Member States, which replaced more central roles in the conduct of policies to fight
67
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
the pandemic. In this regard, the Constitutional Court recognized the roles of
subnational entities and reinforced their need for cooperation.
According to this context, the protagonism of some Member States in front of
the health crisis is justified, which, in many cases, generated an intensification of the
phenomenon of paradiplomacy, which, in Brazil, has been relatively constant over
time and it encompasses time space beyond constituted governments or policy
agendas.
As a rule, diplomatic activities, because they involve representation of the
Sovereign Unit, are carried out by public servants who belong to their own
professional careers and are admitted through a public examination for exams and
titles.
The complexity and scope of the contents provided for in the public tender
indicates that the occupants of this specific career are servants molded to serve the
public function representing Brazil abroad, in forums of the most diverse themes and
having meetings with relevant interlocutors such as Heads of State and Government,
congresses of parliamentarians, business meetings, technical seminars, conferences
of non-governmental organizations. This indication clarifies that international issues
are of increasing interest to a greater number of representatives of society in
technical matters.
However, the actors and themes of international dialogues have been
diversified, and it is no longer exclusive for career diplomats or heads of state to
represent sovereign interests. This decentralization of diplomatic activities has been
called paradiplomacy and adding not only technical entities, academics, NGOs (nongovernmental organizations) and other actors to the debates, but also subnational
representatives.
Subnational government interest have been constituted by agents that, in the
traditional level of Law International would not represent the State in international
relations through the establishment of formal and informal, permanent or provisional
contacts with entities public or private foreign companies.
68
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
This patent and irreversible movement is a logical consequence of the degree
of complexity and specialization of subjects, typical of contemporary times, which
raises the decision-making power of such agents and their respective institutional
links, which modifies the logic of relationship structures and fields of power in
international relations, with considerable limitation of the sovereignty of the
National States, in view of the traditional formatting of classical international law 5.
In modeling Brazilian cooperative federalism, the intention of the constituent
was to establish a cooperative federalism from which the three levels could
collaborate reciprocally to guarantee the provision of quality public services and the
scarcity of resources was overcome by its efficient application, allowing the
realization of more with less investment.
However, this reality did not take shape in practice, as the financial and
administrative capacity of the Member States is not uniform and there is a great
centralization of revenues in the federal entity. For this reason, when it comes to
public health policies, it is essential to have a certain centralization, which is
consolidated by the Unified Health System, including the distribution of
immunization agents and transfer of budget funds.
An emblematic example was the negotiation between the governor of São
Paulo directly with the Chinese laboratory Sinovac, which culminated in a contract
that provided for the supply of 46 million doses of CoronaVac vaccine to the São
Paulo government, in addition to the technological transfer of the vaccine from
Sinovac to the Butantan Institute.
Despite negotiations and final contracting by São Paulo, the National Health
Surveillance Agency (Anvisa) had to approve the use of the vaccine and make it
available for vaccination throughout Brazil.
5
CASTELO BRANCO, Álvaro Chagas. Paradiplomacia e entes não-centrais no cenário internacional.
Curitiba: Juruá, 2008. PIETRO, Noé Cornago. O outro lado do novo regionalismo pós-soviético e da
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paradiplomacia financeira no Brasil da República Velha, 1890-1930. In Revista Brasileira de Política
Internacional. N. 55
69
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
According to the National Immunization Program of the Unified Health
System, despite the individual actions of Member States, the distribution of
immunizing agents does not fail to indicate the centralization of activities in
agreements at the federal level.
Along with paradiplomacy, it should be noted that Brazil adhered to some
instruments, especially the COVAX facility consortium through Provisional
Measure nº 1003 of 2020, later converted into Law nº 14,121, of March 1, 2021.
Provisional Measure No. 1026 was edited, which provided for exceptional measures
related to the acquisition of vaccines, converted into Law 14,124, of March 10,
2021. The then Minister of Health consulted the TCU on the exegesis of some of the
articles in these regulations. The analysis of the Provisional Measures and the
resulting Laws are necessary to understand the instrument and the contracts signed
through them.
COVAX Facility's financing mechanism is the International Finance Facility
for Immunization (IFFIm) and is built on the partnership between donor countries,
private investors, the World Bank and the Gavi Alliance. Donor countries contribute
long-term, legally binding pledges from donor countries, and the World Bank turns
them into vaccine bonds, which promote immediate financing for the Gavi Alliance's
immunization programs.
The administrator of this fund is the World Bank and with the pledges of
donation from the countries, it managed to raise approximately 6.9 billion dollars
from 2006 to 2020. Brazil has become one of the countries that contribute to the
Gavi Alliance, linking to a donation from US$ 20,000,000.00 (twenty million US
dollars) in equal and subsequent installments over 20 years, being an example of a
pledge of contribution that will be converted into vaccine titles, even before the
IFFIm actually receives these features.
The pace of public contracts for the acquisition of vaccines was not the same
for all Member States and even centralized purchases by the National State were not
sufficient. After long political differences, a Parliamentary Inquiry Commission
indicted national authorities in 80 crimes, the long and apprehensive year of 2021
seems to be heading to an end. Number of admissions and deaths dropped with most
70
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
of the adult population vaccinated and some member states are already planning to
stop forcing people to wear masks in open spaces.
In September, during a meeting with the ministers of health of the countries
that make up the G20, in Rome, Italy, the director general of the World Health
Organization (WHO), and the country will begin to appear as an exporter of
vaccines.
4 CONCLUSION
Brazilian federalism is established on the premise of 03 levels of decisionmaking spheres both at the legislative and administrative: a central entity, which is
not only responsible for taking its own administrative decisions with national
coverage (especially when public policy needs to be uniform in all of country) or
when even with regional differences in administrative and legislative treatment,
some minimum guidance is essential as to the premises to be adopted by other
national entities.
Unlike other federative systems, which generally have 02 levels, the Brazilian
system adds the municipality and also an entity such as the Federal District, which
brings together powers of the States and Municipalities.With regard to public health
policies, cooperative and coordinated action is very relevant for the effectiveness of
constitutional instruments and the existing model.
The COVID-19 crisis added some complexities to this scenario, in addition to
the urgency of action. In this sense, given the population and financial inequality and
organizational and administrative capacity of federative entities, the contribution of
the sovereign central entity is essential. Contrary to what was expected from the
normative model, what was observed was that the Member States played a leading
role in the negotiation, purchase and application of immunizing agents (vaccines).
When observing that Member States took the lead in the implementation of
health policies, it was noticed a densification of the phenomenon of paradiplomacy,
which is not new in the Brazilian scenario, but which was widely used as a political
instrument in the COVID-19 crisis.
71
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
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72
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
PARLIAMENTARY INQUIRY
COMMITTEE (CPI) ON COVID-19
PANDEMIC IN BRAZIL AND THE
DEFENSE OF DEMOCRACY IN CRISIS
Gleisse Ribeiro Alves1
Fernanda Lopes de Oliveira2
Letícia Mendes Silva3
ABSTRACT
The Brazilian legislative process is an important tool for public policy and
new legislation propositions creation. The Parliamentary Inquiry Committee (CPI)
on the Covid-19 pandemic installed in 2021 exposed the Brazilian government’s
failures in dealing with the global pandemic, accumulating over 600 thousand
deaths. To clarify what is the role of the CPI and what it means for Brazilian
democracy, this paper aims to describe the legislative procedure law on the creation
of this CPI, explaining their legal competence and their impacts on the political
sphere, and demonstrating how it becomes an important tool for the Brazilian
democracy in crisis.
Keywords: CPI; Parliamentary Inquiry Committee; Covid-19; Brazil; democracy.
1 INTRODUCTION
The Brazilian legislative process as a tool for public policy has a complex
number of rules and procedures. Part of it is oriented to the parliamentary
committee’s function, which is responsible for constructing national rules of law and
public policy more rationally and technically. In that view, those committees are
places where civil society – as a Brazilian democracy - can hold discussions on
crucial topics concerning the national public agenda as well as exercise their
1
Doctor in International Law (Université Lorraine, France); Law and International Relations Professor
(University Center of Brasília, Brazil); Visiting Professor (Université Lorraine, France).
2
International Relations bachelor by University Center of Brasília (UniCEUB, Brazil) and post-graduate
on Public Policy by Fundação Getúlio Vargas (FGV).
3
Political Science bachelor by University of Brasília (UnB, Brazil) and post-graduate on Public Policy by
Fundação Getúlio Vargas (FGV).
73
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
democratic right through social participation. Seeing as the main directions of
Brazilian public policy and all the legislative decision-making processes are made
within those committees, such as the government budget issue, some of those
committees can also play an auditing and inspection role as the Parliamentary
Inquiry Committee (CPI). This type of collegial body is a specific type within the
Brazilian legislative process that has the purpose of investigating public authorities
and forwarding their conclusions to the judiciary power for the execution of civil or
criminal charges. This type of CPI has increasingly gained attention worldwide
during the Covid-19 pandemic and the Brazilian political institution crisis. To clarify
what the role of the CPI is and what it means for the Brazilian democracy, this paper
aims to describe the legislative procedure law for the creation of this CPI, by
explaining their legal competence and their impacts on the political sphere and
demonstrating how it has become an important tool for a Brazilian democracy in
crisis.
2 CONCEPT OF PARLIAMENTARY COMMITTEE
The decision-making process within the Brazilian legislative power has
various levels of decision so that it is quicker and more effective. seeing the need for
deliberative rationalization inside legislative bodies in the National Congress
bicameral system, the Brazilian Federal Constitution of 1988 established
institutional mechanisms to develop public policy and law. Thereafter, the
parliamentary committees started being defined as collegial bodies to promote
discussions, voting, presentations, and deliberations of legal propositions and
relevant themes or events to society.
In this view, the parliament committees came about to strengthen the
Brazilian democratic participation, seen as they promote smaller political groups of
discussion for a reduced number of congressmen in the decision-making process on
a certain proposed subject, just as established in many other countries such as the
United States and Germany. At that, the enormous number of themes to be
deliberated are structured in a more cohesive form, as it provides space for
congressmen to participate in several areas accordingly with their agendas and main
political areas of interest.
74
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
In terms of definition, Casseb (2008) sets the parliamentary committee’s
concept as a congressmen reunion, in a reduced setting, to act jointly on a specific
matter. Sharing a similar view, Andrade and Coutinho (2016) describe those
committees as bodies that aim to examine and vote for legal propositions in a
decisive sphere with a reduced number of congressmen. To Coelho (2007), the
parliamentary committees aim to discuss and vote for draft legislations and are part
of the internal delegation process of each house of the National Congress to simplify
the legislative process and diminish the excess of matters destined to the Congress
plenary4.
The Brazilian Federal Constitution on its article nº. 58 covers the committee’s
creation in the National Congress and it can be divided into two types: permanent
and temporary committees, which is the most common classification criteria. It is
also important to stress out that those committees can be formed by congressmen of
the two houses, called Joint Committees, or be formed by members of each house,
either representatives-only or senators-only. The Permanent Committees are
collegial bodies that do not have a predetermined time for closure and are fixed in
the Internal Regiments of the House of Representatives, the Senate, or the National
Congress as a whole.
They are part of the administrative structure that analyzes technically legal
propositions, following up the government plans and programs, and supervising
actions of the Executive power. Examples of this kind of committee are the
Agriculture, Livestock, Supply and Rural Development Committee (CAPADR);
Constitution, Justice and Citizenship Committee (CCJC); Finance and Taxation
Committee (CFT) and Foreign Affairs and National Defense Committee (CREDN)
on the House of Representatives, and the Economic Affairs Committee (CAE),
Social Affairs Committee (CAS) and Constitution, Justice and Citizenship
Committee (CCJ) in the Senate.
On the other hand, the temporary committees have a predetermined time for
closure. They are responsible for technically analyzing a specific matter, and can be
4
The maximum deliberative body inside each National Congress house - the House of Representatives
and the Senate - that has sovereignty on its decision-making and integrates all the congressmen or
senators on the same reunion called Plenary Sessions.
75
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
classified on Special Temporary Committees, External Committees, Parliamentary
Inquiry Committees (CPI), and working groups as stated by the article nº 33 of the
Internal Regiment of the House of Representatives (RICD) and by the article nº 74
of the Internal Regiment of the Senate (RISF). The Special Committees are
deliberative bodies to analyze Constitutional Amendment Propositions, Legal Code
Projects, and Law Propositions (Complementary and Ordinary law, according to the
Brazilian legal classification). The External Committees deal with Congress external
affairs such as the External Committee for the Combat of Covid-19.
The Parliament Inquiry Committee (CPI), which is the subject of this paper,
aims to inquire about a relevant matter or fact in public life that is susceptible to
Legislative power inspection, legislation, and control. They are also an important
tool for public representation when society can evaluate the actions of the public
administration. During its period of operation, the collegial bodies can carry out
witness questioning, suspects hearings, authorities’ testimonies, require documents
or breach of financial and fiscal secrecy, and also have police powers to request for
arrest in flagrante delicto. Their final report, approved at the end of the CPI, must
be forwarded to the Judiciary power by the Federal Public Prosecutor’s Office
(MPF) or the Federal Attorney General’s Office (AGU) for public responsibility and
judicial measures5.
3 THE CPI’S COMPOSITION AND COMPETENCE
The Parliament Inquiry Committee (CPI) is set to investigate facts related to
the actions of the public administration to change specific legislation or actions
concerning public power. They can be created by the House of Representatives, the
Senate, or by both houses composed of senators and congressmen alike when a
requirement signed by at least ⅓ of its members is presented to the house or the
Congress Presiding Office for the creation and establishment of the CPI when the
minimal requirements are attended.
5
“ The Parliamentary Inquiry Committee, which will have judiciary authorities investigation powers of its
own besides others foreseen on the regiment of each [legislative] Houses, will be created by the House
of Representatives and by the Senate, jointly or separately, on one-third of its members request to
verify a determined fact and an on certain time with its conclusion, if applicable, forwarded to Federal
Prosecutor’s Office to promote civil or criminal responsibility to violators.” Article 58, the third
paragraph of the Brazilian Federal Constitution.
76
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Besides the minimal quorum of ⅓, those requirements are verifying the
veracity of the fact and its opportune temporality (Article 35 of the House of
Representatives Internal Regiment - RICD). The CPIs have their function based on
the Law nº 1579 of 1952 and additionally by the Decree-Law nº 2848/1940 of the
Criminal Code; Decree-Law nº 3689/1941 of the Criminal Process Code; Law nº
9296/1996 on interception of phone, computer, and telecommunications; Law nº
10001/2000 that determines the priority in the procedures to be adopted by the
Federal Prosecutor’s Office and other offices based on the CPI’s conclusions;
Complementary Law nº 105/2001 on financial operations breach of secrecy; and the
Federal Supreme Court jurisprudence. The CPI is considered among the other
committees the one with a greater level of urgency, which can be installed even
during the congressional recess. The CPI has 120 days to complete its work and can
be extended up to 60 days with no fixed number of extensions within a legislature
period6.
As stated before in this article, the CPI has investigation power as that of the
judiciary authority but is limited only to the case files instructions which include the
accused interrogation, witness testimony, documents requirement, and technical
expertise or diligence to clarify important issues (Silva, 2009 apud Andrade and
Coutinho, 2016). According to article 36 of the House of Representatives Internal
Regiment (RICD), the CPI can carry out a few actions to investigate facts and to
elaborate its report:
“Observing specific legislation, the Parliamentary Inquiry
Committee can:
6
1.
Require the House of Representatives administrative
service employees as those coming from any office or
public direct, indirect, or foundational administrative
entity, or the Judiciary power, necessary to the execution
of its work.
2.
Determine diligences, hear suspects, inquiry
witnesses under oath, require from public
administration pieces of information and
documents, require an audience with congressmen
and state ministers, take federal, state, and
Period of time that comprehends the congressmen's regular mandate in a total of four years.
77
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
municipal authorities’ testimony, and require
services from any authority including the police.
3.
Assign any of its members or required employees
from the House administrative services to conduct
inquiry or diligence process needed with the
previous consent of the House Presiding Office.
4.
Move to any point of the national territory to
perform investigation and public hearings.
5.
Stipulate a deadline to meet any providence or to
execute any diligence under the law’s penalty,
except when it is under the judiciary authority.
6.
Discuss the inquired object-related facts separately
if those are diverse, even before the end of the other
facts investigation.
7.
Single paragraph. The Parliamentary Inquiry
Committees will additionally resort from norms of
the Criminal Process Code.”7
Thus, according to Andrade and Coutinho (2016), the CPI has the same
powers of instruction as the magistrates but not the judicial power, seeing as the
verification and penalty is the Judiciary’s exclusive competence. In addition, the
Brazilian Federal Supreme Court monitors the CPI’s work to prevent any authority
abuse, illegal conduct, or offense to the constitutional law.
In the case of public hearings and witnesses, suspects, or culprits’ hearings
those are invited or present themselves (in the case of public hearing) or summoned
to testify. An invitation can be refused, but a summoned person needs to justify their
absence that will only be permitted under judicial review to ensure a habeas-corpus
or the constitutional right to be silent. A situation such as this is often judged by the
Federal Supreme Court. If the justification is not acceptable or the absence has no
justification, the CPI can require the Federal Police for coercive conduction of the
person under investigation.
In addition to that, the CPI can also carry out search and apprehension
procedures as long as they are justified to obtain proof, apprehend culprits or any
kind of object obtained by illicit practice, and require a breach of personal
information or communications secrecy. The CPI cannot disclose any confidential
7
Free translation of Article 36 of the House of Representatives Internal Regiment done by the authors.
78
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
information required to the process, which must be available only to the CPI
members, those being investigated, and their defendants (Andrade and Coutinho,
2016).
Although the CPI does not have a penalty and coercive powers, it can
determine an arrest in flagrante delicto as stated by the Law nº 2848/1940 of the
Criminal Code under the justification of public service legal order disobedience;
defiance; active corruption; resistance by violence, threat or violent obstruction of
the CPI’s attributions; and false testimony (this includes the continuous spreading of
fake news).
4 THE FINAL REPORT AND THE IMPORTANT ROLE OF
THE CPI`S RAPPORTEUR
At the end of the CPI’s work period, a final thorough report containing all the
collegial bodies inquiry working roadmap, presented requirements, public hearing
presented, testimonies, diligence, main document analysis, conclusions, and
judiciary forwarding are approved (Andrade and Coutinho, 2016). The CPI members
can reject a report proposition and can suggest alterations but not amendments since
this kind of report does not accept this kind of adjustment. The CPI can also produce
partial reports when there are various related facts. Usually, the CPI has only one
rapporteur, however, if the case is based on a complex number of facts, partial
rapporteurs can be indicated to provide aid to the draft of a single report.
The rapporteur is a key figure in a parliamentary committee. He or she is
nominated by the committee’s president according to his/her attributions, as stated in
article 41 item VI of the RICD. The rapporteur’s function is to foster a thorough
study on the proposed matter and present conclusions upon which decisions should
be made by the committee. The selection criteria are generally by the party
proportion principle, to which the rapporteur is indicated based on negotiations
between the political groups or blocs (FEDERAL SENATE, 2021). In the House of
Representatives case, following this principle is not clearly stated in its internal
regiment, besides the guarantee of free choice independent of any political
leadership, but the negotiations on this indication common practice surround this
representation proportion principle (De Oliveira, 2015). There is the possibility of a
79
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
previous rapporteur nomination to speed the CPI’s work after analysis of those
interested congressmen according to the internal regiment norms. In special cases,
the committees’ president can also become a rapporteur when there are various
issues in the committee to be dealt with. A proposition author can never be its
rapporteur. Typically, temporary committees like the CPI have only one rapporteur.
After the matter is distributed by the committee’s secretary to the rapporteur,
he/she will collect information on that area. All the presented information must have
its technical foundation and relevance properly justified avoiding errors and
misunderstandings. This data can be brought forward by specialized consulting,
public hearings, or civil society participation represented by organized entities or
any Brazilian citizen. In this process, the rapporteur works as a channel by receiving
information from society and groups of interest. The study and examination of data
period are equal to half of the committee’s term, and it can be extended to the same
amount of time, except urgent cases (article 52 1st paragraph of RICD). After
finalizing the initial report, the committee’s members will discuss the points brought
by the rapporteur and then deliberate to approve the document.
In the deliberation phase, the voting to approve the rapporteur’s conclusions
occurs, entirely or partially; and not the judgment of the matter itself. In the total
approval of the report text, all committee members agree with the information and
arguments presented; otherwise, in a partial approval scenario, congressmen will
suggest additions or alterations to the report which can or cannot be accepted by the
rapporteur. In the case of a tie, the rapporteur should cast the decisive vote. In other
situations, in which the report is not approved, or the demanding alterations are
denied by the rapporteur, the committee’s president can indicate a new rapporteur,
although this is very rare to happen. When the report is finally approved, it is
forwarded to the next committee or the Plenary’s voting. In the case of the CPI after
the report conclusion and approval, it is published and forwarded to the Congress
Plenary for its competent providences; to the Federal Public Prosecutor’s Office
(MPF); to the Union General-Defense Office (AGU), or the Union GeneralAttorney’s Office (PGR); to the Executive power for administrative providence
implementation; to the permanent committee with greater links with the report
subject; to the Union Accounting Court (TCU); and the Congress Joint Permanent
80
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Committee to inspect financial accounting and governmental programs and plans.
The CPI can also submit legislative proposals, decrees, and resolutions propositions
that will go through the legislative process.
Considering that, the rapporteur’s figure is fundamental to the parliamentary
appreciation of society’s great interest issues, for it is through him/her that
information on a specific subject is made available to the committee and social
participation is exercised. Aside from that, the proposition direction intimately
depends on the rapporteur’s bond with the matter and his/her disposition to carry it
out along the committees’ terms and approvals. He/she is also the link between
groups of interest, the organized civil society, the government, and several economic
sectors.
5 IMPACTS OF THE CPI ON THE BRAZILIAN POLITICAL
SPHERE AND DEMOCRACY IN TIMES OF CRISIS
The Covid-19 Pandemic Parliamentary Inquiry Committee was installed on
April 27th of 2021 under the requirement of Senator Randolffe Rodrigues from the
state of Amapá moved by his preoccupation with public administration actions in
Manaus, which had a catastrophic pivot of Covid-19 infections and hospital
admissions at the beginning of 2021, and where several people died due to the lack
of air respirators. Thus, the CPI’s main objective was to discuss the federal
government action on the fight against Covid-19, analyzing Jair Bolsonaro’s
administration approach on sanitary measures, such as obligatory use of facial
masks, social distancing, delay in the purchasing of vaccines, and promotion and
defense of the use of Covid-19 medical treatments with no scientific evidence, such
as hydroxychloroquine, chloroquine, and ivermectin. In addition to that, it is also
inquired the reason behind the constant changes to the head of the Minister of Health
during the pandemic, the lack of respirators in Manaus, the irregular acquisitions of
Covaxin vaccines produced by Bharat Biotech (India), and the supposed negligence
on Pfizer and Jansen’s vaccines acquisition when the government did not reply to at
least 81 e-mails concerning the acquisition contract of those vaccines.
Seeing this scenario, the Covid-19 Pandemic CPI had two main lines of
investigation: the adoption of herd immunity strategy adopted by the Bolsonaro’s
81
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
government and its allegedly “parallel cabinet”8 to combat the pandemic, and the
supposed corruption and prevarication infractions on hospital utensils and vaccines
acquisition by the government and private companies. Among the several authorities
heard at the CPI’s hearings were all the previous Ministers of Health in Jair
Bolsonaro’s administration: Luis Henrique Mandetta, Nelson Teich, and Eduardo
Pazuello; the former Minister of Foreign Affairs, Ernesto Araújo; the State Governor
of Amazonas, Wilson Lima; Prevent Senior9’s director, Pedro Benedito Batista
Junior; and the current Minister of Health, Marcelo Queiroga.
The government reactions to the CPI inquiry by president Bolsonaro himself
and his supporters inside and outside the government deepened the longstanding
political-institutional crisis. The president’s participation in the corruption on
Covaxin vaccines acquisition was mentioned by two witnesses, Luis Miranda, and
Luís Ricardo Miranda, that confirmed Bolsonaro’s previous consent to the whole
corruption scheme. His response was to diminish and attack the CPI’s work and its
members, especially the committee rapporteur Senator Renan Calheiros. The Armed
Forces, a strong pillar of the current government political structure, have also
allegedly tried to intimidate the CPI collegial bodies by releasing a threatening toned
press note on responding to CPI’s accusations.
On October 20th, the report was submitted by the rapporteur Senator Renan
Calheiros which contemplated all the information dealt with during the five months
of inquiry and indicted 65 people and 2 private companies, Prevent Senior and VTC
logistic company. Among those investigated are the last and the current Minister of
Health, Eduardo Pazuello and Marcelo Queiroga, respectively; the former Minister
of Foreign Affairs, Ernesto Araújo; the former advisor of the Presidency, Arthur
Weintraub; two of Bolsonaro’s sons, Congressman Eduardo Bolsonaro and Senator
Flávio Bolsonaro; and the President Jair Bolsonaro himself. The crimes attributed to
the President totalized 29 types such as epidemy crime; quackery; sanitary measure
violation; active corruption; fraudulent misrepresentation; incitement to crime;
8
Alleged group formed by government authorities close to President Jair Bolsonaro that acted as a private
administrative council in a parallel way to the norms of the Brazilian state of law.
9
Health Insurance Company accused of carrying out illegal tests on its patients, mostly elders, with the
“Covid Kit” which contained medications without scientific evidence proven efficacy, such as
hydroxychloroquine, chloroquine, azithromycin, and ivermectin.
82
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
private documents fraud; irregular employment of public funds; prevarication;
crimes against humanity as extermination, persecution, and inhuman acts to cause
intentional suffering; and liability crimes.
6 CONCLUSIONS
The Parliamentary Committees are the mechanism by which social
participation can be exercised on the main themes of public interest contemplation.
The legislative process guarantees the thorough appreciation of legal propositions
aiming at the economic, social, and political spheres as a means of transparency on
the legislative proposals and the public policies development process, respecting the
Brazilian Federal Constitution. The Parliamentary Inquiry Committee is nonetheless
a political response to the institutional crisis provoked by the Covid-19 pandemic.
Their results and the whole process of inquiring the witnesses and investigating
authorities had an enormous impact on Brazilian economic and political spheres,
which affected the institutional crisis and increased economic vulnerability such as
the rise of investments risk and state institutional insecurity. Although the work of
the Covid-19 Pandemic CPI has been a significant measure to Brazilian politics,
especially against corruption and democracy deterioration happening in Brazil due to
the intense political polarization, it cannot fully guarantee the judiciary inquiry
expected outcomes, or even promote a great stability sensation, but it is surely the
beginning.
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84
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
O BRASIL E A PANDEMIA DA COVID-19:
ASPECTOS INTERNACIONAIS
Paulo Roberto de Almeida1
1
INTRODUÇÃO:
IDEOLOGIA
E
NEGACIONISMO
IMPORTADOS NO GOVERNO BOLSONARO
As conexões internacionais da questão da pandemia no caso brasileiro
apresentam mais de um aspecto. Por um lado, o fato, relativamente subjetivo, de o
presidente brasileiro eleito em outubro de 2918, Jair Bolsonaro, ter colocado suas
ações e posturas (internas e externas) no contexto ideológico da chamada “nova
direita americana”, ou seja, o movimento que presidiu à ascensão à presidência
americana de Donald Trump, em 2016, e que já vinha se manifestando, sob outras
roupagens, no continente europeu e em outros continentes em torno de ideias
altamente conservadoras: fundamentalismo religioso, antiglobalismo, rejeição da
imigração de povos “exóticos” e agenda de costumes, de maneira geral (antiaborto,
ideologia de gênero, minorias sexuais, etc.); essas ideias, ademais das próprias
posturas e declarações do presidente Trump pautaram, e de certa forma moldaram, o
comportamento e as posturas do seu colega brasileiro – chamado pelos jornalistas
americanos de “Trump dos trópicos”– no enfrentamento (ou falta de, mais
corretamente) da pandemia.
De outro lado, num contexto mais objetivo, uma visão, mesmo perfunctória,
em escala comparativa internacional confirma os resultados nitidamente negativos
registrados pelo governo Bolsonaro no enfrentamento do desafio da pandemia
quando colocados no contexto mundial, sendo imediatamente visível o mau
desempenho do governo federal ao se confrontarem os números de infectados e
1
Doutor em Ciências Sociais, mestre em planejamento econômico, diplomata de carreira; diretor de
publicações e editor da Revista do Instituto Histórico e Geográfico e Geográfico do Distrito Federal;
autor de numerosos trabalhos sobre relações econômicas internacionais, política externa e diplomacia
do Brasil. E-mail. pralmeida@me.com
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
mortos (em proporção da população, não de modo absoluto) com países
relativamente similares. Comparações internacionais, feitas em forma de gráficos,
tabelas ou simples alinhamentos estatísticos, revelam a performance deplorável do
governo de Bolsonaro, até meados de 2021, no tocante ao acúmulo de milhares de
vítimas “excedentárias” (em relação ao número de habitantes), do que se observou
ser o caso, quando verificados os mesmos indicadores em países cujos governantes
empreenderam ações mais decisivas nessa área. Nesse sentido, Bolsonaro se
distanciou, neste quesito, em relação à postura de outros dirigentes nacionais,
mesmo declaradamente de direita, como ele pretende ser.
Todavia, mesmo num registro mais linear, são impactantes os indicadores
brasileiros no confronto com outros países, o que vem sendo registrado por algumas
instituições internacionais dedicadas ao cômputo dos dados relativos à incidência da
pandemia. Em diversos momentos desde o início da pandemia, em 2020, o Brasil foi
sucessivamente apresentado como o “homem doente da América do Sul”, como um
possível super spreader de novas variantes do vírus e como um país irresponsável no
tratamento da sua própria população, tendo enfrentado o fechamento de diversas
fronteiras e de aeroportos em conexões internacionais para outros continentes.
Esses aspectos internacionais merecem, portanto, uma atenção especial neste
ensaio sintético. Três países se destacam relativamente aos vínculos internacionais
do governo Bolsonaro na questão da pandemia da covid-19: os Estados Unidos, em
primeiro lugar, ou mais especificamente o presidente Trump, pelo menos durante a
ascensão e propagação no novo vírus, no decorrer de 2020; a China “comunista”,
objeto do desconforto aberto ou implícito da diplomacia “bolsonarista”, quando não
sujeita à hostilidade explícita por parte de “responsáveis” do setor – oficialmente da
parte do primeiro chanceler, de modo oficioso pelo filho deputado do presidente –,
sendo o gigante asiático o principal parceiro comercial e potencial grande investidor
no Brasil, ademais de fornecedor de primeira grandeza de todo tipo de equipamentos
médico-sanitários, bem como de vacinas e insumos para a fabricação de vacinas no
Brasil; a Índia, finalmente, em posição relativamente secundária, mas elevada
ocasionalmente à condição de grande parceira na área vacinal, já em 2021,
justamente em função das antipatias acima referidas.
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Esses três países estiveram e estão presentes em grande parte do debate
interno – do governo com a sociedade, assim como dentro do Parlamento – na
sequência registrada quanto ao conteúdo mesmo desse “debate” (bastante confuso,
por sinal): o presidente Trump, na origem do negacionismo de Bolsonaro durante
toda a fase ascensional da pandemia; a China, como a primeira fornecedora
confiável de equipamentos e vacinas entre o final de 2020 e o início de 2021, mas
com a qual (e com o seu embaixador em Brasília) foram travados diversos embates
pouco diplomáticos em diversos episódios, sendo que estes também exibem
conteúdo político doméstico, dado o relacionamento próximo do governador de São
Paulo, candidato à presidência em 2021, com os chineses (o estado possui um
escritório oficial de representação em Xangai); a Índia, finalmente, já no decorrer do
primeiro semestre de 2021, em direção da qual são feitas tentativas desesperadas do
governo federal de aquisição de vacinas, justamente para diminuir o papel da China
nesse fornecimento, sendo que as iniciativas revelaram demonstrações evidentes de
corrupção, em análise na Comissão Parlamentar de Inquérito (de âmbito senatorial),
após duas fases iniciais dedicadas a “tratamento precoce” e a falhas do governo
federal no atendimento de demandas dos estados.
Antes de analisar esses aspectos “internacionais” da pandemia no Brasil,
cabe, preliminarmente, evidenciar o cenário normal do atendimento médicohospitalar no Brasil, especialmente em termos de campanhas de vacinação em
massa, políticas que funcionaram de modo relativamente satisfatório até o advento
do governo Bolsonaro. O Brasil sempre foi conhecido internacionalmente por dispor
de um programa regular, bem estruturado e abrangente de vacinação geral da sua
população, sobretudo de sua faixa infantil. Tal programa, nacional, existe desde os
anos 1970 – sob a ditadura militar, portanto, quando se manifestou uma epidemia de
meningite – e foi reforçado no plano federal a partir da Constituição de 1988, que
instituiu um Sistema Universal de Saúde (SUS), aberto a todas as faixas da
população, mas absolutamente crucial para os seus estratos mais pobres. O SUS foi
reconhecido como um exemplo exitoso entre países em desenvolvimento e, ao lado
da cobertura vacinal dispensada pelos programas nacionais de imunização, permitiu
que o país erradicasse por completo ou controlasse de forma adequada diversas
epidemias mais comuns na população infantil no último meio século, o que garantiu
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
uma progressão regular da esperança de vida até a recente pandemia da covid-19
(que ocasionou um retrocesso pela primeira vez na história).
Cabe ainda notar a existência de vários outras iniciativas em favor dos
estratos mais idosos (contra a gripe, por exemplo). Os esforços dispendidos desde a
irrupção da epidemia da Aids, no início dos anos 1980, com o fornecimento público
e gratuito de diversos retrovirais (inclusive os obtidos graças à flexibilização de
patentes, uma das vitórias alcançadas no âmbito da OMC, em 2001) foram
amplamente reconhecidos e aplaudidos pela comunidade internacional. Nesse
mesmo plano, o Brasil sempre teve uma participação exemplar nas iniciativas
multilaterais coordenadas pela OMS e, no plano regional, pela OPAS, com diversos
especialistas brasileiros de destaque exercendo altos cargos nas duas organizações.
Com esses antecedentes, seria de se esperar que o enfrentamento da nova
pandemia, a da covid-19, seguisse os mesmos padrões de prontidão, de qualidade no
atendimento da população mais frágil e com a mesma eficiência já demonstrados em
todas as experiências anteriores, inclusive, mais recentemente, nos casos da dengue,
da zika e da chikungunya, não apenas em termos de cobertura no atendimento em
postos de saúde, mas igualmente no plano das pesquisas de laboratório em prol de
vacinas. Não foi, contudo, o que se observou desde o início da pandemia no Brasil,
em torno de março de 2020, com uma reversão inesperada das políticas públicas e
um retrocesso inaceitável na implementação dos padrões recomendados pela OMS,
pela comunidade de pesquisadores internacionais, assim como pelos próprios
cientistas e equipes médicas do setor no próprio Brasil. No caso, não houve nenhuma
falha ou incompetência por parte do pessoal especializado, mas sim uma atitude
completamente negacionista e anticientífica por parte do chefe do governo, o
presidente Bolsonaro. Sua atitude específica em relação à pandemia não difere,
porém, de sua postura geral em relação às relações exteriores do Brasil, que foram
rebaixadas a um nível inédito para os padrões elevados de profissionalismo
diplomático exibidos pelo Brasil ao longo dos anos.
Com menos de 3% da população do globo (cerca de 2,7%, mais exatamente),
o governo Bolsonaro conseguiu exibir um recorde inaceitável no número de
infectados (cerca de 10% do total do planeta), assim como em relação ao número de
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
vítimas fatais, de aproximadamente 13% do total mundial (dados da Universidade
Johns Hopkins, reportados na Newsletter Veja Coronavirus de 8/07/2021). Numa
fase em que o número de casos, nas duas vertentes, parece diminuir no mundo, após
o início de um processo mais ativo de vacinação nos diversos países, um aspecto
talvez até mais assustador é o fato de que a média móvel das mortes por covid no
Brasil ainda representa 20% do total mundial. Existe, portanto, um “adicional” de
vítimas e de mortos, no Brasil, que só pode ser explicado pela incúria do governo
central e por uma descoordenação completa das diversas esferas envolvidas no
enfrentamento da pandemia, em termos de esforços não conjugados – na verdade,
divergentes, na maior parte dos casos – entre o governo federal e as demais unidades
da federação.
Ainda que a maior parte dos fatores na origem desse cenário estarrecedor seja
de origem propriamente interna, cabe não descurar a importação de “ideias erradas”
no enfrentamento do maior desafio que enfrenta a Humanidade desde a chamada
“gripe espanhola” (de fato americana), ao final da Grande Guerra (Almeida, 2021).
Com efeito, uma das razões para essa performance deplorável se situa precisamente
no plano das relações exteriores e da diplomacia de Bolsonaro, ações e opções que
as tornaram caudatárias das ações e orientações externas dos Estados Unidos e da
diplomacia de Trump – em uma escala jamais vista nos anais da diplomacia
brasileira –, assim como terminaram por consolidar um isolamento internacional e
regional igualmente inédito nas relações internacionais do Brasil. Mal guiado por
suas concepções primárias no terreno da política internacional e das relações
exteriores do país, o presidente foi assistido por uma diplomacia especialmente
inepta, a despeito de ter ficado a cargo de um diplomata profissional, inclusive por
ter sido completamente submissa, nos seus dois primeiros anos, ao despreparo do
presidente e de seus conselheiros mais próximos (membros da própria família, ou
assessores amadores em seu círculo palaciano) nos lances mais relevantes de sua
ação prática: Venezuela, integração regional e Mercosul, Oriente Médio, relações
com os principais parceiros (como EUA, Argentina, países europeus e China), sem
esquecer a própria pandemia. Ridicularizado pelo fato de ter pronunciado um
surpreendente “I love you Trump”, por ocasião de sua primeira participação na
abertura dos debates da Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2019, o
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
presidente brasileiro continuou apoiando o derrotado presidente americano até o
último minuto do processo de aferição dos resultados das eleições de novembro de
2020, tendo se destacado, inclusive, por ser o grande e último negacionista do
planeta.
2 A LENTA E LONGA MARCHA DO BRASIL EM DIREÇÃO À
VACINA: UM PROGRAMA FRUSTRADO
Os aspectos internacionais do problema da pandemia no Brasil se manifestam
em todas as fases e episódios do percurso ainda não terminado da covid-19 no país,
embora ênfases e interações externas tenham variado ao longo dos quinze meses (de
março de 2020 a julho de 2021) durante os quais as políticas do governo
acompanharam seu itinerário especialmente doloroso, para uma nação que tinha
enfrentado ameaças sanitárias com excelente prontidão médica e epidemiológica
para um país emergente. Esse período foi sobretudo marcado pela inação do governo
central, ou por orientações equivocadas no seu enfrentamento inicial – uma primeira
fase dominada pela “novela da cloroquina” e de um ineficiente “tratamento precoce”
–, por uma sabotagem evidente – embora não formalizada – da busca de vacinas,
numa segunda fase, e, finalmente, na sua terceira fase, ainda em curso, pela
incompetência e corrupção de autoridades e encarregados de prover o país de
vacinas em quantidades suficientes para a imunização da população. Em todas essas
fases, as conexões internacionais foram subjacentes, por vezes proeminentes, no
encaminhamento do problema, como agora se poderá expor.
O reconhecimento inicial da pandemia da covid-19 foi provavelmente tardio
e tal designação só lhe foi atribuída bem depois que as evidências foram bem
detectadas na China, seguindo-se sua rápida disseminação pelo resto do mundo. A
partir do momento em que ela deixou de ser uma “epidemia chinesa” para converterse, de fato e oficialmente, em uma pandemia, com toda a atenção que ela passou a
merecer por parte dos países vizinhos, dos ocidentais e sobretudo da própria OMS,
as respostas dos diferentes governos, nos diversos continentes, não foram uniformes,
o que explica as grandes disparidades de taxas de incidência entre a Europa ocidental
e nas Américas e, de outro lado, as dos países da Ásia Pacífico, nestes com menores
índices de infecção e, consequentemente, de mortos.
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Dois países se destacaram pelos seus trágicos indicadores: os Estados Unidos
e o Brasil, por acaso dirigidos por dois dirigentes negacionistas em relação à ciência
e “antiglobalistas” no plano das relações internacionais. Na verdade, os impulsos
mais negativos vinham do presidente americano, implementando uma agenda
conservadora extremada que reproduzia posturas da alt-right, como identificado, por
exemplo, no livro de Benjamin Teitelbaum, War for Eternity (2020), focando mais
detidamente nos ideólogos principais desse movimento, o americano Steve Bannon,
o brasileiro Olavo de Carvalho e o russo Alexander Dugin. O presidente brasileiro
importou, sem qualquer originalidade, essa agenda negacionista e antiglobalista e ela
se manteve fiel durante toda a extensão da pandemia em 2020 e 2021, mesmo depois
que Trump moderou, em parte, sua objeção a qualquer programa nacional de
controle e às recomendações dos especialistas em termos de medidas profiláticas e
de aplicação de vacinas.
A diplomacia negacionista e obscurantista do chefe de governo do Brasil, e
de seu submisso primeiro chanceler, à época, adotou como sua e seguiu a fielmente a
postura obstrucionista de Trump contra a OMS ou contra qualquer outro esforço de
coordenação global para a luta contra a pandemia. Sob Trump os EUA abandonaram
a Unesco, por razões claramente ideológicas, e chegaram a sair da OMS, por
acusações de ineficiência na condução da política contra a pandemia, gesto quase
seguido pelo governo de Bolsonaro, que, no entanto, foi contido pelo que ainda
restou de racionalidade em alguns poucos outros setores de seu governo.
Na prática, o que se assistiu no Brasil, durante todo o ano de 2020, enquanto
se processava no mundo um retorno ao nacionalismo sanitário e profilático – pois
cada um dos países, mesmo na União Europeia, tentava assegurar suprimentos
adequados de equipamentos de proteção e de tratamento – foi um nacionalismo de
inação, com uma carência notável de medidas preventivas e, sobretudo, curativas, o
que explica o aumento exponencial dos casos no país, ao longo de toda a agonia das
diversas ondas da pandemia. De maneira clara, o governo Bolsonaro, já tendo se
identificado com líderes de extrema direita em certos países do mundo – Mateo
Salvini, ministro do Interior do breve governo de coalizão heteróclita na Itália;
Benjamin Netanyahu, de Israel; Viktor Orban, da Hungria, e colegas do Grupo de
Visegrad; Narendra Modi, da Índia; Trump, dos EUA –, acompanhou a ofensiva
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
antimultilateralista levada a cabo por esses líderes e até os superou, numa oposição
às principais recomendações feitas pela OMS e por grupos de cientistas e
pesquisadores ao redor do mundo; caso provavelmente único e inédito em sua
história editorial, uma das revistas mais prestigiosas da área de pesquisa científica na
medicina, The Lancet, chegou a publicar um editorial de primeira página,
expressamente dedicado a condenar a postura do presidente brasileiro no trato da
pandemia.
O que ocorreu, no plano mundial, desde o início da primeira fase, alarmante,
devido ao aumento súbito de casos, sobretudo na Europa ocidental, foi uma corrida
sem qualquer coordenação multilateral ou regional em busca de equipamentos e
esforços de pesquisa e desenvolvimento. A comunidade científica e os grandes
laboratórios privados ou universitários responderam bastante bem aos desafios de
um vírus especialmente virulento, registrando-se um progresso fantasticamente
rápido nas pesquisas e testes com modalidades tradicionais e inovadoras de
antivirais. No plano da produção e distribuição de equipamentos de proteção e de
tratamento, o que se viu, porém, foi uma retração nacionalista tristemente danosa
para os países menos preparados para enfrentar a asfixia dos hospitais e centros de
atendimento. A Itália, por exemplo, se sentiu traída pelos seus vizinhos do bloco
europeu, que vetaram exportações de determinados itens de atendimento
emergencial.
Os Estados Unidos de Trump organizaram um sequestro dos mesmos
equipamentos ao redor do mundo, quando os casos apresentaram um súbito aumento
no país. Exportações para o Brasil foram desviadas de terceiros aeroportos pelo
poder do dinheiro americano, e as mais diversas gangues de fraudadores, nacionais e
internacionais, se inseriram nesses circuitos para fraudar as importações, oferecendo
equipamentos inadequados, superfaturados ou simplesmente inexistentes. Nessa fase
inicial, ocorreu uma corrida para a frente na busca de expedientes exclusivamente
nacionais, tanto no plano produtivo, quanto na área comercial, durante a qual foram
reveladas fragilidades estruturais nas respectivas bases industriais, quanto evidências
de descoordenação estatal nas medidas preventivas e curativas, inclusive em países
dotados de maiores recursos orçamentários. À diferença de países europeus e do
próprio Brasil, um dos países mais frágeis nessa vertente foram os EUA, que é
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
completamente desprovido de um sistema nacional de saúde, como possuem as
nações mais bem dotadas de instituições oficiais voltadas para a saúde em nível
nacional.
A chamada “desglobalização”, que já era uma tendência vários anos antes da
pandemia, foi extraordinariamente reforçada nos primeiros meses da pandemia, até
que novos circuitos de produção e de distribuição passassem a atender às demandas
oficiais de cada país. O Secretário-Geral da ONU, o português Antonio Guterres
tentou, de modo desesperado, estabelecer alguma forma de coordenação mundial em
favor de um tratamento minimamente racional em prol da cooperação nesse terreno,
mas não logrou sucesso, especialmente em razão da animosidade entre as grandes
potências, no caso bem mais estimulada pela atitude agressiva e até belicosa de
Trump em relação à China. O fato é que nenhuma coordenação logrou estabelecer-se
entre os órgãos máximos da ONU, suas agências especializadas – a OMS e as
regionais –, o G20, as organizações de Bretton Woods (para o financiamento de
programas em prol de países mais pobres), a OMC e a Ompi (para tratar das
questões de patentes e licenciamentos), ou até órgão mais restritos, como o CADOCDE (para assistência humanitária, ao lado de ONGs dessa área). Nenhuma
mobilização internacional se reproduziu, como em casos anteriores, a exemplo da
luta contra o ebola, na África ocidental.
O máximo que se logrou foi a constituição de um consórcio duramente
negociado entre a OMS e os principais países e laboratórios produtores, a Covax
Facility, com vistas a diminuir a evidência das brutais disparidades na aquisição de
vacinas entre países produtores ou detentores de tesouros abastecidos e os mais
pobres, desprovidos inclusive dos meios mais rudimentares de prevenção e
tratamento. Ainda assim, o governo Bolsonaro relutou vergonhosamente em aderir à
iniciativa, e quando o fez, depois de muita pressão da comunidade científica e dos
meios parlamentares, optou por estabelecer padrões e quantidades mínimas de
fornecimento vacinal, em total desproporção ao tamanho da população brasileira e
ao que lhe era permitido pelas regras do consórcio. Esse aspecto também foi
explorado por uma comissão de inquérito estabelecido no âmbito do Senado Federal,
ao serem revelados telegramas do ministério das Relações Exteriores que indicavam
a clara má disposição do governo Bolsonaro em se juntar à iniciativa (mais uma vez
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
pelos mesmos pruridos antiglobalistas importados, já manifestados numa série de
outros contextos diplomáticos). Nessa mesma época, o primeiro chanceler do
governo Bolsonaro insinuava até que o Brasil poderia seguir o exemplo de Donald
Trump e retirar o Brasil da OMS.
A fonte dos clamorosos erros registrados no Brasil durante todo o primeiro
ano da pandemia pode ser apontada única e exclusivamente na pessoa do chefe de
governo, que manteve sua postura inflexivelmente negacionista e obscurantista,
contra todas as recomendações de cientistas da área e epidemiologistas em ação ao
longo de todo o período; a mesma atitude estendeu-se no decorrer do segundo ano,
sempre desafiando as práticas a serem observadas nos protocolos recomendados para
tais circunstâncias. O comportamento do presidente Bolsonaro foi classificado por
diversos observadores como propriamente criminoso, surgindo inclusive sugestões
de denúncia ao Tribunal Penal Internacional por “crimes contra a humanidade”, em
especial no tocante à situação dramática de tribos indígenas colocados em contato
com exploradores ilegais (madeireiros e garimpeiros) de suas reservas na região
amazônica e alhures.
A postura é tanto mais contraditória, ou inexplicável, em face da atitude próciência de seus “aliados” de direita – por exemplo, Netanyahu, de Israel, Pinera, do
Chile, e até, a partir de certo momento, o próprio Trump, depois de muitas
hesitações iniciais –, que todos saíram afanosamente à cata de vacinas, quaisquer
que fossem, de quaisquer produtores ao redor do mundo, com vistas a alcançar o
maior grau de vacinação possível em seus países respectivos. O que se assistiu no
Brasil foi exatamente o contrário, e até uma postura totalmente improvisada de
recusa de se engajar num programa nacional de imunização, quando não de
sabotagem em face dos esforços dos governadores e prefeitos que intentavam –
contra as palavras e exemplos do presidente negacionista – adotar medidas
preventivas de isolamento social e de obrigatoriedade de uso de máscaras, quando
não de iniciativas limitadas e muito parciais de lockdowns temporários em
determinadas atividades produtivas e de serviços.
Estimativas de epidemiologistas colocam o número excessivamente elevado
de vítimas no Brasil – bem acima das características do país em termos de
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
experiências anteriores no trato de epidemias e de aparelhamento hospitalar público
e privado – na conta das ações contrarianistas do presidente, estimulando
ajuntamentos, contatos políticos, marchas eleitorais e todo tipo de provocação
contrária às recomendações dos especialistas ou de simples bom senso no plano do
civismo. De fato, depois dos Estados Unidos – onde ocorreu uma resistência de
origem nitidamente política às medidas preventivas recomendadas pelas autoridades
da saúde –, o Brasil foi o país que mais desafiou os protocolos recomendados no
caso da pandemia da covid-19, daí o volume anormalmente desproporcional de
infectados e de mortos em relação à população total.
O mais surpreendente é que diversos membros de uma delegação presidencial
que acompanhou Bolsonaro, no início da pandemia, numa visita a Trump, na
residência de Mar-A-Lago, na Florida, inclusive o embaixador em Washington,
foram infectados pelo vírus, sem que a sua postura negacionista fosse em qualquer
momento revertida. O próprio Bolsonaro foi contaminado logo adiante – certamente
o resultado das frequentes incursões irresponsáveis que fazia todo fim de semana,
por motivos eleitoreiros, pelos mais diversos cantos do país –, tendo sido
brevemente internado num hospital das Forças Armadas. Antes, durante e depois de
sua contaminação pelo vírus da covid-19 não houve qualquer mudança em sua
atitude negacionista, de desprezo pela pandemia e de minimização de seus efeitos
sobre a população, continuando a prática constante das aglomerações, da
recomendação para o não uso de máscaras e do distanciamento social e, mais grave,
repetidas tentativas de sabotar, por proclamas ou pedidos à Justiça, as poucas
decisões de governadores e prefeitos em favor de medidas de contenção da abertura
de negócios ou outras atividades concentradoras de pessoas.
O aspecto provavelmente mais nefasto, e possivelmente criminoso, revelouse na sabotagem de qualquer programa nacional de vacinação, ignorando inclusive
ofertas feitas por laboratórios privados ou até por um instituto estadual, de São Paulo
(sede de um dos possíveis concorrentes presidenciais), que se dispunha a entregar
praticamente toda a sua produção de uma vacina, fabricada em cooperação com
produtor da China, a um programa federal de imunização. A despeito de terem
recebido propostas de aquisição de vacinas – de diversas origens, ocidentais,
chinesas ou indianas – no auge da primeira onda, em meados de 2020, as autoridades
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
da saúde, com repetidas interferências do presidente, foram extremamente relutantes
em negociar concretamente esse fornecimento, registrando-se, o tempo todo, o
desprezo do presidente por um programa efetivo de vacinação nacional. Este talvez
se converta no objeto principal das investigações em curso da comissão parlamentar
de inquérito, ao lado de fraudes detectadas e de inúmeros casos de corrupção,
envolvendo tanto funcionários públicos e intermediários privados, quanto
responsáveis em cargos comissionados no ministério da Saúde, inclusive diversos
militares da ativa ou da reserva que acompanharam o terceiro ministro da área, na
pessoa de um general da ativa, agora denunciado.
Ao se lograr o estabelecimento de uma Comissão Parlamentar de Inquérito
sobre a pandemia, no âmbito do Senado Federal – mas apenas em abril de 2021 –, se
detectou uma das possíveis fontes do negacionismo e da sabotagem tanto nas
medidas preventivas quanto no terreno das vacinas: a existência de um “gabinete
paralelo”, e independente de órgãos de especialistas, no aconselhamento equivocado
do presidente, ao reforçar suas próprias convicções de que a saída para o Brasil
estaria numa suposta “imunidade de rebanho”, a ser alcançada com a contaminação
de uma larga proporção da população. Tal crença, não observada em nenhum outro
país dotado de estruturas adequadas de saúde pública, está provavelmente na origem
da mortandade incontrolada ainda registrada no Brasil, que ainda ameaça
ultrapassar, nos próximos meses, o quantitativo alcançado nos EUA da gestão
Trump e remanescente nas primeiras semanas da administração Biden.
O caso do Brasil é ainda mais deplorável pois que, ao atraso deliberado na
decisão de se passar à aquisição de vacinas – o que foi em grande medida adotado
por simples cálculo político eleitoral, ao se ter um possível candidato nas eleições de
2022 na figura do governador de São Paulo, que se tinha adiantado na aquisição de
vacinas chinesas e na contratação de insumos daquele país –, se agregou a
incompetência fenomenal de gestores militares do Ministério da Saúde,
absolutamente despreparados para a tarefa e ainda tendo de contornar ou se submeter
à oposição do presidente à negociação de vacinas e insumos com a “China
comunista”, a fonte de todo mal, na visão canhestra dos ideólogos despreparados que
estão no poder no Brasil. Daí também as poucas tentativas canhestras, mal
improvisadas e não isentas de golpes fraudulentos, que se registraram quando de
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
importações – geralmente frustradas – de vacinas ou de insumos a partir da Índia,
cujo chefe de governo seria supostamente um aliado de Bolsonaro, o também
nacionalista de direita, e ultra religioso, Narendra Modi.
As decepções e falcatruas, nesses e em outros casos, foram registradas pela
CPI da Pandemia, e podem fundamentar indiciamentos até criminosos contra todas
as autoridades envolvidas no cenário deplorável a que se assistiu no Brasil desde o
início da pandemia, um quadro ainda não debelado, podendo inclusive se agravar a
partir de uma possível terceira onda ainda mais alarmante. A CPI perdeu muito
tempo, em suas semanas iniciais, na investigação de uma das principais obsessões do
presidente – não superada de todo no segundo ano da pandemia – no sentido de se
obter “curas precoces” a partir de um coquetel de medicamentos totalmente
inadequado para o tratamento da infecção viral, sobretudo à base de cloroquina – e
de alguns vermífugos –, o que motivou inclusive recomendação do ministério da
Saúde por esses métodos “preventivos”, cuja ineficácia já estava provada desde o
segundo semestre de 2020.
No conjunto caótico de medidas improvisadas, e sempre reativas a partir de
“recomendações” do “gabinete paralelo” de aconselhamento do presidente, a
“política” oficial do governo federal foi de uma inconsistência criminosa durante a
longa persistência de níveis alarmantes de contaminação – estimuladas pela práticas
de aglomerações eleitorais do “candidato precoce” – e de mortos, que se
acumularam em proporções inaceitáveis no comparativo com países da região. A
existência desse “gabinete paralelo” tornou-se a atenção da CPI da Pandemia, numa
segunda fase de seus trabalhos, depois da concentração sobre aspectos menos
relevantes das políticas de governo, se é possível falar em “políticas de governo”,
quando se está no quarto ministro da Saúde desde o início do terceiro ano da
administração Bolsonaro, sendo o terceiro um general do Exército sem qualquer
competência nessa área e extremamente complacente com o cenário caótico
registrado nessa pasta.
Depois das primeiras semanas tratando de uma questão secundária – a
obsessão do presidente com o chamado “tratamento precoce”, por meio de um
coquetel não aprovado pelos especialistas composto de medicamentos ineficientes –,
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
a CPI finalmente enveredou pela questão das vacinas, necessariamente conectada às
relações exteriores do Brasil, e objeto de um tratamento confuso durante todo o ano
de 2020 e nos primeiros meses de 2021. Na primeira fase, o negacionismo quanto à
importância da pandemia, assim como a busca insana por tratamentos totalmente
inadequados, foi diretamente importado de Trump por Bolsonaro; o mais
surpreendente, porém, é que quando Trump deixa de ser negacionista vacinal e
engaja seu governo na aquisição de quantas vacinas estivessem sendo testadas e
oportunamente introduzidas no mercado – menos as chinesas, evidentemente –,
Bolsonaro continua a exibir um viés objetivamente contrário a uma adequada
cobertura vacinal dos brasileiros, confiante, talvez, numa hipotética “imunidade de
rebanho” (recomendada aparentemente pelos amadores que compunham o seu
“gabinete paralelo”), que seria adquirida a partir da contaminação de
aproximadamente 70% da população; daí as inúmeras aglomerações planejadas e
implementadas pelo próprio presidente, sem qualquer cuidado (ou até em desafio às)
recomendações de especialistas quanto aos protocolos a serem seguidos.
Aparentemente o presidente não se importou nunca quanto ao número de vítimas
fatais que decorreriam de sua “opção” pela “imunidade de rebanho”, considerada
uma completa ilusão pela maior parte dos especialistas da área. A CPI ouviu alguns
pesquisadores a esse respeito, quando se estimou que parte significativa do volume
de mortos poderia ter sido evitada, caso fossem outras as posturas do presidente e de
sua equipe próxima.
Mas, o trabalho d CPI também tem sido caracterizado por “golpes políticos”
– de evidente efeito eleitoral – o que dificulta uma avaliação ponderada do que
poderá emergir ao cabo de seus trabalhos, nos primeiros três meses de atividades,
que serão renovados por período igual, e que podem se prolongar no ano eleitoral de
2022, com todos os impactos prováveis sobre o calendário da campanha
presidencial. O fato é que superada a fase dos tratamentos inadequados e do
negacionismo trumpista importado pelo presidente – que continua a exibir a mesma
postura, sem qualquer remissão –, os trabalhos da CPI adentraram no terreno mais
objetivo da estratégia governamental para a aquisição de vacinas, suas fontes
externas e um calendário de aplicação. Mais uma vez, falar de “estratégia
governamental” é altamente ilusório no caso do governo Bolsonaro, pois estava
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
claro que não havia nenhuma, e que as primeiras medidas preventivas sugeridas
pelos dois ministros iniciais da Saúde – dois médicos – foram solenemente ignoradas
pelo presidente e até confrontadas abertamente por meio de seus ajuntamentos
políticos todos os finais de semana, nos mais diversos cantos do país.
Foi preciso que a própria suprema corte, o Superior Tribunal Federal (STF)
obrigasse o governo a publicar um documento estabelecendo um programa nacional
de imunização calendarizado, o que só foi obtido depois de muitas tergiversações e
com um cumprimento abaixo do aceitável, sob a gestão do ministro militar da Saúde.
Na verdade, o governo federal passou todo o ano de 2020 opondo-se a qualquer
iniciativa de aquisição de vacinas, só tendo iniciado débeis esforços nesse sentido
quando o seu “inimigo político”, o governador de São Paulo aplicou a primeira dose
de uma vacina “chinesa” em uma trabalhadora estadual da saúde, em janeiro de
2021. Tem início aí, e apenas a partir desse momento, a movimentação frenética do
governo federal em busca de vacinas – preferencialmente não chinesas – para não
ficar atrás do governo de São Paulo nesse particular, ativismo que também coincide
com incompetência, má gestão e possíveis atos de corrupção no âmbito do ministério
da Saúde nessas importações improvisadas, aceleradas e feitas pelos canais os mais
bizarros (como revelado na terceira fase de trabalhos da CPI da Pandemia).
Numa decisão anterior, a corte constitucional já tinha sido chamada a dirimir
uma pendência (criada pelo presidente) relativamente às competências concorrentes
e cooperativas do governo central e dos governos estaduais e municipais no tocante a
eventuais políticas de restrição de atividades econômicas que estavam sendo
implementadas (contra a vontade do presidente) pelas administrações subfederais em
atendimento às recomendações de especialistas no quadro de medidas de
distanciamento social e de uso de máscaras. Não apenas o presidente se empenhou
em desafiar essas medidas – e de fato as contrariou, organizando atos políticos em
diversos estados, em total desobediência às normas locais de uso de máscaras e nãoaglomeração –, como também tentou, mais de uma vez, obter uma decisão as
suprema corte dando-lhe a autoridade exclusiva na regulamentação das políticas de
contenção da pandemia. Ele de fato obteve “sucesso” nas suas investidas, uma vez
que vários milhares de seguidores, organizados por militantes e redes sociais
coniventes, se empenharam em desafiar as normas locais editadas pelos
99
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
governadores – ou comportamentos de simples bom senso – em sair às ruas em
ruidosos comícios políticos, o que pode ter contribuído para aumentar os tristes
números globais exibidos pelo Brasil em número de vítimas.
Um outro aspecto, que tem a ver apenas incidentalmente com quaisquer
exemplos externos, mas que tem tudo a ver com o negacionismo importado do
presidente Bolsonaro, foi registrado no tocante à distribuição geográfica do número
de vítimas da infecção ou de mortos pela covid-19. Jornalistas investigadores
cruzaram os mapas de votação das eleições presidenciais de 2018 com os números
de hospitalizados e de mortos por covid-19 desde o seu início: a “descoberta” –
estarrecedora, mas não surpreendente – foi a de que os municípios e estados que
mais forneceram votos para o candidato vencedor também foram aqueles cujos
registros de enfermos e de vítimas fatais são os mais elevados, relativamente e
absolutamente, na comparação com outros distritos eleitorais menos “aderentes” ao
candidato Bolsonaro. Tratou-se, na interpretação desses jornalistas e analistas, de
uma clara correlação entre a adesão ao exemplo e às palavras do presidente e os
comportamentos mais propensos a causar o maior número de vítimas da covid-19,
numa proporção muito superior às médias locais ou nacional. Segundo pesquisas
efetuadas por respeitáveis institutos educacionais – Insper, Ibmec e Universidade de
Toronto – as cidades que tiveram mais de 51% dos votos para Bolsonaro registraram
números de casos até 299% maior e até 415% mais mortes um ano depois do início
da pandemia (Soares, 2021).
Um ano e meio depois de registrado o primeiro caso de pandemia no Brasil,
em fevereiro de 2020 – seguido da primeira morte, um mês depois –, seis meses
depois de iniciada a aplicação descoordenada das poucas vacinas disponíveis, o país
segue sem um programa definido, previsível, calendarizado e racional de imunização
nacional mediante vacinas, sendo que o presidente Bolsonaro não recuou uma única
vez de sua postura negacionista e de seus comportamentos obstrutores em relação às
medidas que vêm sendo implementadas pelos governadores dos estados ou prefeitos
de municípios na contenção ou em prol da imunização da população sob suas
jurisdições respectivas. Aliás, desde a demissão do segundo ministro da Saúde,
substituído por um general incompetente e submisso ao negacionismo do presidente,
o país não dispõe sequer de estatísticas unificadas comportando os indicadores mais
100
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
relevantes em termos de número de infectados, hospitalizados, recuperados e mortos,
uma vez que o ministério da Saúde deixou de computar esses dados desde a
assunção do terceiro ministro da área (substituído sob pressão do Parlamento por um
médico, em março de 2021, mas também relativamente complacente em relação à
postura obstrucionista do presidente). As informações disponibilizadas diariamente
pelos veículos de informação e comunicação são coletadas por um consórcio
nacional de empresas de mídia, em contato direto com cada uma das secretarias
estaduais da saúde.
O pequeno ativismo demonstrado pelo governo federal desde o segundo
trimestre de 2021– na verdade, unicamente pelo ministério da Saúde, não pelo
governo como um todo e muito menos pela presidência da República, que manteve
sua tradicional postura obstrucionista – se deve, em grande medida, à pressão da
opinião pública, das entidades da sociedade civil vinculadas à saúde pública e, com
cada vez maior peso, da CPI da Pandemia, desde o seu início relativamente tardio.
Não existem previsões fiáveis, neste momento (meados de julho de 2021), sobre
quando, exatamente, a maior parte da população adulta brasileira poderá estar
imunizada com alguma das muitas vacinas atualmente em oferta no mercado (mas
principalmente CoronaVac, Astrazeneca, Pfizer e Janssen); no estado atual das
iniciativas dispersas de vacinação – fracamente coordenadas pelo ministério da
Saúde, que tem a competência legal por um Programa Nacional de Imunização – e
do atraso já acumulado na contratação das vacinas que estavam sendo ofertadas, por
cada um dos fabricantes, nas fases intermediárias de testes clínicos. O Instituto
Butantã, do estado de São Paulo, finaliza os testes e preparativos para a introdução
de sua própria vacina contra o vírus, a ButanVac, que representará a primeira
iniciativa totalmente nacional nessa área, no plano da tecnologia e dos insumos,
ainda que em cooperação com institutos estrangeiros de pesquisa, com os quais
foram compartilhadas patentes.
Um capítulo especial de qualquer ensaio dedicado aos aspectos internacionais
do problema da pandemia deveria ser dedicado a um exame especial do
comportamento de seus responsáveis e das ações institucionais do ministério das
Relações Exteriores, o que, no entanto, não será oferecido do modo detalhado que tal
questão requereria, por diferentes razões aqui sumariadas. Em primeiro e mais
101
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
importante lugar, o Itamaraty, sob a presidência Bolsonaro, deixou de ser o centro
formulador e executor das principais ações no domínio da política externa; estas
foram, desde o início, apropriadas por um restrito círculo de amadores ignaros em
política internacional, mas detentores de um poder decisório efetivo muito acima do
chanceler escolhido ou do corpo profissional de diplomatas. Na verdade, o
chanceler, escolhido num obscuro processo de seleção no curso da campanha
presidencial de 2018, representou, enquanto exerceu o cargo – entre janeiro de 2019
e março de 2021 – a peça de menor importância no bizarro processo de tomada de
decisões na área externa do governo Bolsonaro.
Admitindo-se que o próprio presidente estivesse no comando – algo
extremamente duvidoso, tendo em vista sua notória ignorância nessas matérias –, o
escalão seguinte estava representado por um assessor presidencial em assuntos
internacionais e pelo filho deputado do presidente, ambos discípulos de um guru
presidencial expatriado, de quem receberam as concepções extremistas da “direita
alternativa” americana, entre as quais as teorias conspiratórias do antiglobalismo e
da ameaça comunista internacional. Alguns assessores militares palacianos se
envolvem, ocasionalmente, nesse confuso processo de tomada de decisões, mas de
modo muito improvisado e mesmo caótico, uma vez que ministros e altos
funcionários foram sendo substituídos ao longo dos primeiros dois anos e meio de
mandato, segundo os humores do presidente. Apenas em terceiro ou quarto escalão
se inseria o primeiro chanceler nesse processo decisório, uma vez que várias
“decisões” eram tomadas externamente e independentemente do que pudessem
sugerir os quadros profissionais do ministério. O mais dramático nesse cenário
altamente errático é que tais “decisões” podiam envolver aspectos sensíveis da
política externa – relações com os principais parceiros do Brasil, em especial os
vizinhos regionais, como a Argentina, a China e as potências ocidentais – em temas
de grande importância para os interesses do país. O que se assistiu, na primeira
metade do mandato presidencial foi um crescente isolamento internacional do Brasil,
em virtude de desentendimentos políticos – até o ponto de atitudes descorteses e até
ofensivas – com alguns desses parceiros (a Argentina, a China e os grandes países da
Europa continental) e de um alinhamento inédito, até o limite da subserviência, não
exatamente aos Estados Unidos, mas a Trump, enquanto este foi presidente (até
102
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
janeiro de 2021), inclusive nos minutos finais da contestação aos resultados das
eleições.
No aspecto específico da questão da pandemia, o chanceler acidental não
apenas se alinhou inteiramente ao negacionismo e à incompetência do presidente, e
de seus assessores mais chegados (que eram os seus verdadeiros chefes), como se
submeteu totalmente às diretivas e orientações que emanavam do presidente
americano e de seu Secretário de Estado. Isso significou, mesmo nos momentos mais
dramáticos da pandemia, o mesmo desprezo que exibia o presidente brasileiro pelo
número de vítimas que se acumulavam durante a primeira e a segunda onda, bem
como uma postura contrária a qualquer coordenação multilateral dos esforços que
estavam sendo precariamente empreendidos pela OMS, e pelo próprio Secretário
Geral da ONU, para se lograr um mínimo de cooperação entre os principais países
produtores e fabricantes de vacinas (notadamente os EUA, os grandes da União
Europeia, a China e a Índia),
Numa determinada fase, se cogitou inclusive abandonar a OMS – como feito
por Trump – e não integrar o consórcio Covax Facility, constituído pela OMS para
distribuir as vacinas disponibilizadas pelos grandes laboratórios e fabricantes.
Anteriormente, o inepto chanceler – provavelmente para alinhar o seu
anticomunismo às concepções políticas primárias do círculo presidencial – já tinha
se referido desdenhosamente a um “comunavirus”, como sendo um plano de
enfraquecimento do Ocidente pela grande potência “comunista” da Ásia. Ele
também interferiu nos embates entre o filho deputado do presidente e o embaixador
da China em Brasília, chegando ao cúmulo de solicitar secretamente à chancelaria
chinesa a retirada do embaixador do posto.
Os principais episódios das turbulentas relações entre o Brasil de Bolsonaro e
a China estão refletidos e analisados em artigo coletivo cobrindo ao ano de 2020
(Sousa et ali, in: Azzi et alii, 2020, p. 31-45). Um relatório mais recente, produzido
como subsídio à CPI da Pandemia por um grupo de pesquisadores, coordenado pela
médica especialista em saúde pública Ligia Bahia, cuja parte internacional recebeu
colaboração do jornalista Jamil Chade, sublinhou o papel negativo do ministério das
Relações Exteriores no decorrer da crise:
103
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A política global tem sido marcada pela pandemia de diversas
formas, com a exacerbação de nacionalismo e ênfase na ajuda
sanitária. A diplomacia da vacina tornou-se uma prática
comum no contexto da atual pandemia. China, Rússia, Índia,
entre outros países, utilizaram a doação de vacinas como
forma de aumentar sua influência internacional e regional.
Neste contexto, o isolamento internacional brasileiro tem
ainda como resultado não poder acessar com fluidez estas
vacinas.
O Ministro Ernesto Araújo, ao contrário, participou ativamente
do esforço coletivo de promoção de teorias conspiratórias
visando a mobilização permanente da base bolsonarista, em
detrimento de sua função constitucional de construção de
pontes com o universo internacional. Ele ignorou as tratativas
internacionais para viabilizar vacinas. Chamou de
“comunavírus” o novo coronavírus e afirmou que se tratava de
uma armadilha globalista para instaurar o socialismo mundial.
O ministro apontou ainda o que chamou de “covidismo” como
um inimigo a ser combatido e associou a epidemia a uma
conspiração contra a liberdade, tema ao qual retornou
insistentemente. Fiel à associação profunda que estabeleceu
entre a nova política externa brasileira e uma política
doméstica conservadora, defendeu a política do governo
Bolsonaro, inclusive em relação ao “tratamento precoce” e
contra o isolamento social, chegando a associar o lema “fica
em casa” com favorecimento ao narcotráfico. (Bahia, 2021, p.
22)
Em segundo lugar, a dificuldade em historiar e analisar a incompetência
demonstrada pela diplomacia bolsonarista no tratamento da pandemia – tanto em sua
primeira fase, de discussão da questão nos foros multilaterais, quanto na segunda, de
lenta e agônica busca por vacinas – se deve a que todos os expedientes relativos à
questão foram classificados como confidenciais ou secretos, e apenas no período
recente alguns deles estão sendo revelados aos poucos e de forma parcial. Trata-se,
portanto, de uma análise que deverá ser feita em momento ulterior, quando, e se,
forem conhecidas todas as informações recebidas dos postos no exterior e instruções
expedidas aos mesmos postos. Por outro lado, os próprios funcionários do ministério
da Saúde – nem sempre de carreira ou especialistas no assunto – foram envolvidos
em obscuras negociações com fornecedores estrangeiros, ou com intermediários
internos, o que vem sendo revelado, por jornalistas e pela CPI da Pandemia, como
uma formidável confusão de critérios técnicos e de manobras financeiras não isentas
de corrupção.
104
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
O que tudo isso revela, no tocante a esta lenta e longa marcha do Brasil em
direção a uma ou mais vacinas, é a falta total de uma estratégia do governo em
relação a um programa nacional unificado capaz de enfrentar os desafios
institucionais, materiais e operacionais da pandemia, nos três níveis da federação.
Não apenas não se teve, até o segundo ano quase completo da pandemia, um
programa bem-sucedido e coordenado de enfrentamento da covid-19, como se viram
frustrados todos os especialistas e técnicos do setor engajados nessa luta em face da
ausência de diretrizes claras emanadas da principal autoridade do setor, quando o
próprio presidente se encarregava de sabotar os esforços locais, em nível técnico e
regulatório. De toda forma, todo este assunto deverá ser retomado, analisado
novamente e explicitado em todos os seus aspectos, domésticos e internacionais,
uma vez que se disponha de um quadro mais claro sobre o que ocorreu,
efetivamente, nessa frente, tanto por parte da presidência da República quanto por
parte do ministério da Saúde, quando dirigido por um incompetente general
ignorante na área.
3 CONCLUSÃO: BOLSONARO, O ÚLTIMO NEGACIONISTA
DO PLANETA E A TRAGÉDIA BRASILEIRA
A tragédia brasileira se refere, obviamente, ao número anormalmente elevado
de vítimas da covid-19, o que reflete, parcialmente, o negacionismo do presidente.
As conclusões a serem provisoriamente, e preliminarmente, retiradas do exercício
aqui conduzido podem ser colocadas, à falta de um quadro mais claro de todos os
aspectos da questão, sobretudo no plano internacional, ao abrigo de dois conceitos
subjetivos: incompetência e agonia. Incompetência no tratamento da questão por
parte das autoridades máximas do Brasil, a começar pelo chefe de governo, quando
vista, justamente, numa perspectiva comparada com países dispondo de menos
experiência e da arquitetura institucional do que o Brasil (Sistema Único de Saúde,
Programa Nacional de Imunização, longo histórico de vacinações de largas faixas da
população). A agonia deve ter sido ressentida – e ainda subsiste – pelos técnicos
engajados no enfrentamento do problema e, sobretudo, pela sociedade; todos tiveram
de contemplar, e amargar, um número adicional e “desnecessário” de mortos, caso
105
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
outras medidas tivessem sido tomadas pelo governo em tempo hábil e de modo
adequado.
A incompetência do governo deriva diretamente do total despreparo do seu
chefe nos mais comezinhos aspectos das políticas públicas. Para isso contou sua
ignorância abissal em matéria de políticas de saúde e, talvez principalmente, seu
desprezo evidente pelas vidas humanas que estavam em jogo. A incompetência
também está ligada ao primeiro aspecto “internacional” referido neste ensaio: um
negacionismo importado, totalmente caudatário do negacionismo de Trump, a quem
Bolsonaro sempre demonstrou incontida adesão, ou até uma deplorável submissão,
num grau jamais visto em toda a história do Brasil, em qualquer época ou regime.
Não se tratava, porém, de um negacionismo doutrinal, como podem exibir
certos “teóricos” do conservadorismo mais extremado, aqueles que rejeitam
inclusive o legado do humanismo do século XVIII, o do Iluminismo como filosofia,
ou dos seus contributos de caráter político-constitucional. Bolsonaro e seus
seguidores imediatos seriam incapazes de uma reflexão de cunho político-filosófico,
sendo mais propensos a aceitar os argumentos de caráter político expelidos pelo guru
presidencial, o pensador e polemista Olavo de Carvalho, mas apenas aqueles
relativos ao anticomunismo primário, de quem ainda acha que a principal ameaça do
Brasil e do mundo é o comunismo.
Esse foi aliás o sentido da primeira alocução de Bolsonaro na abertura dos
debates da Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2019. Seu discurso, inédito
nos anais da diplomacia brasileira – que tem o privilégio de dar início a esses
debates desde a primeira AGNU, em 1946 –, começou justamente pela “informação”
surpreendente de que seu governo tinha “salvo o Brasil do comunismo”,
independentemente do fato de que a época do Partido dos Trabalhadores –
teoricamente socialista, mas na prática socialdemocrata e fracamente reformista – já
tinha terminado desde 2016 e que o partido nunca tratou de implantar o “socialismo”
no Brasil. Toda a gestão do primeiro chanceler se colocou sob a insígnia desse
anticomunismo primário, além da luta ideológica contra os supostos horrores do
“globalismo”, o monstro metafísico que estaria ameaçando a soberania dos Estados
106
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
nacionais, segundo as teorias conspiratórias defendidas pelos cruzados desse
conservadorismo extremado.
Tais expedientes representam espantalhos políticos que servem para
conquistar e manter uma claque eleitoral comprometida com tal visão do mundo,
entre eles aqueles saudosistas da ditadura militar, que deixou muitas marcas no
Brasil ao longo dos seus 21 anos de regime autoritário. Bolsonaro, na verdade,
representa a fração mais extremada e repressora dos militares que comandaram o
Estado e dirigiam também os seus aparelhos de informação, de censura e de
repressão política: ele elogiou diversas vezes o mais conhecido torturador das
catacumbas do regime militar e se orgulha disso. Por acaso, o chanceler acidental é
filho de um dos quadros políticos da ditadura militar, que se exerceu na censura e na
defesa jurídica do regime, legando ao filho estudante o fundamentalismo de caráter
religioso que explica, em parte, uma concepção cruzadista de defesa do “Ocidente
cristão”, conceito que não se ouvia mais no Brasil desde a fase inicial da ditadura
militar.
O negacionismo direitista de Bolsonaro é, assim, apenas superficial, ou seja,
sem qualquer fundamento político mais elaborado, servindo apenas para congregar
certo número de fiéis em apoio a uma visão messiânica e salvacionista do Brasil,
contra a ameaça do comunismo, servindo também para identificá-lo com seu ídolo e
modelo, o negacionista Trump. O mais incrível é que ele tenha persistido no
negacionismo, e num comportamento anti-ciência, quando seus supostos aliados
internacionais abandonaram tais posturas, a partir de certo momento, em favor de
uma adesão pragmática a campanhas nacionais de vacinação, inclusive por uma
espécie de cálculo político oportunista, o que Bolsonaro se revelou incapaz de exibir
(em seu próprio detrimento).
Com isso, Bolsonaro converteu-se no último negacionista no planeta, aquele
que levou sua postura até as últimas consequências, e com isso produziu boa parte da
tragédia brasileira, que já ceifou, na data em que se finaliza este breve ensaio, mais
de 533 mil vítimas, com potencial para vitimar alguns milhares a mais (segundo
dados atualizados constantemente, coletados pela Johns Hopkins University, no
seguinte
link:
https://github.com/CSSEGISandData/COVID-19;
acesso
em
107
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
12/07/2021). As estimativas sobre o “surplus” de mortes variam enormemente, mas
um epidemiologista quantificou esse potencial em seus limites máximos: Pedro
Hallal, professor na Universidade Federal de Pelotas estimou que o Brasil poderia ter
salvado 400 mil vidas – o que corresponde a aproximadamente 80% das mortes por
covid-19 – se o governo tivesse adotado medidas mais rígidas de contenção e dado
início mais cedo a um programa de imunização (UOL, 29/06/2021).
Em qualquer hipótese, e considerando que a tragédia ainda não se encerrou, o
governo Bolsonaro representou, não apenas na questão da pandemia, mas
especialmente no caso mais emblemático da política externa, um ponto
extremamente baixo no conjunto das políticas públicas nacionais, diminuindo
terrivelmente a imagem do Brasil no exterior e o prestígio de sua diplomacia. A
análise oferecida à CPI da Pandemia pelo grupo de especialistas já citado concluiu
seu relatório com argumentos que podem igualmente servir como conclusão a este
breve ensaio sobre os aspectos internacionais da questão da pandemia no Brasil:
Ou seja, também no âmbito da política externa e das relações
internacionais, o Brasil adota postura negacionista,
minimalista e contrária aos direitos humanos e constitucionais
do povo brasileiro. Aqui também se evidencia a necessidade
de reverter esse curso e criar as condições para que a
população brasileira tenha seus direitos respeitados e nosso
país passe a colaborar com o combate à pandemia do
coronavírus e à disseminação da Covid-19, deixando de ser
um problema e uma ameaça global. A CPI do Senado
igualmente deste ângulo deve ponderar o imperativo da
responsabilização administrativa e política do governo federal,
a qual, segundo nossa opinião, deve culminar com o
impeachment do presidente da república [sic], principal
responsável, ainda que não o único, pelas ações, omissões e
desgoverno, que levaram tamanha tragédia a se abater sobre o
povo brasileiro. (Bahia, 2021, p. 26)
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, P. R. de. “Impacto da pandemia sobre a diplomacia mundial e no
Brasil”, revista Sapientia, ano 9, n. 40, maio-junho 2021, p. 16-19; ISSN: 24468827; disponível no link: https://conteudo.cursosapientia.com.br/mai21-typagerevista-sapientia-ed-40-org; acesso em 12/07/2021.
BAHIA, L. et alii. A tragédia brasileira do coronavírus/covid-19: Uma análise do
desgoverno do governo federal, 2020-2021. Documento entregue à Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid-19 do Senado Federal (28 de abril, 2021),
108
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
elaborado por: Ligia Bahia (médica especialista em saúde pública); Jamil Chade
(jornalista); Claudio S. Dedecca (economista); José Maurício Domingues
(sociólogo); Guilherme Leite Gonçalves (sociólogo do Direito); Monica Herz
(cientista social); Lena Lavinas (economista); Carlos Ocké-Reis (economista); María
Elena Rodríguez Ortiz (advogada e socióloga); Fabiano Santos (cientista spolítico);
disponível no link: https://www.unicamp.br/unicamp/sites/default/files/202105/tragedia-brasileira-covid_final.pdf ; acesso em 11/07/2021.
SOARES, G. “Cidades em que Bolsonaro venceu em 2018 têm mais por mortes por
covid, diz estudo”. Poder 360, 7/05/2021; disponível no link:
https://www.poder360.com.br/coronavirus/cidades-em-que-bolsonaro-venceu-em2018-tem-mais-mortes-por-covid-diz-estudo/; acesso em 11/07/2021
SOUSA, A. T. M. de et alii. “Relações Brasil-China durante a pandemia: abalos no
pragmatismo”, in AZZI, D. A. et alii (orgs.), A política externa de Bolsonaro na
pandemia. São Bernardo do Campo, Observatório Política Externa Brasileira,
Friedrich Ebert Stiftung, 2020, p. p. 31-45; disponível no link:
https://www.academia.edu/47509310/Rela%C3%A7%C3%B5es_Brasil_China_dura
nte_a_pandemia_balos_no_pragmatismo?email_work_card=title; acesso em
8/07/2021.
TEITELBAUM, B. R. War for Eternity: Inside Bannon’s Far-Right Circle of Global
Power Brokers. Nova York, Harper Collins, 2020.
UOL. “Brasil poderia ter impedido 400 mil mortes por covid, diz epidemiologista”,
VivaBem UOL, 29/06/2021; disponível no link:
https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/06/29/brasil-covid-19mortes-pedro-hallal.htm ; acesso em 12/07/2021.
109
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
THE UNITED NATIONS COMMITTEE ON
ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL
RIGHTS AND THE FIGHT AGAINST
COVID-19
Renato Zerbini Ribeiro Leão1
ABSTRACT
The fight against the Covid-19 pandemic has means of protection that take
human rights into account. The International Covenant on Economic, Social and
Cultural Rights (ICESCR) provides a consolidated regime for the affirmation and
protection of these rights. It consists of institutions such as the Committee on
Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), of standards (ICESCR and its
Protocol), principles (good faith; equality and non-discrimination; pro homine;
complementarity, indivisibility, and universality of human rights), documents
(CESCR Declaration to leave no one behind in light of the 2030 Agenda for
Sustainable Development; General Observations #14 and #25; the Covid-19
Pandemic Declaration; and, the Declaration on Universal and Equitable Access to
Vaccines from Covid-19) and rules (Pacta Sunt Servanda; the rule of the most
favorable standard and the rule of exhaustion of domestic remedies) that enshrine the
existence of a true health protection regime stemming from the ICESCR.
Keywords: United Nations; Committee on Economic, Social and Cultural Rights;
pandemic; Covid-19; human rights.
1 INTRODUCTION
In 2020 humanity experienced an atrocious pandemic that continues to
threaten and claim lives incessantly. The current generation has never faced a health
situation of this magnitude. One year later, in 2021, the scenario is still very
worrying. Despite the vaccines presented, the year began with new waves of
contamination by an even more ruthless Coronavirus, found in innovative mutant
variants of its original in different corners of the planet.
1
Member since 2010 and actual Chair of Committee on Economic, Social and Cultural Rights of United
Nations. Ph.D. in International Law and International Relations: Doctor “Sobresaliente Cum Laude” by
Universidad Autónoma de Madrid. Professor at Universitario Center of Brasília – CEUB. Orcid: 00000002-0896-3624
110
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
The Covid-19 pandemic, by overflowing public health systems and
devastating different sectors of life - such as the economy, education, food
production, and social security, among others - is a clear threat to human rights.
These, for a successful confrontation of the virus, must be observed from their
indivisible and interdependent perspectives. If countries do not act in accordance
with human rights, the risk that economic, social, and cultural rights will be
undermined, thereby the increasing suffering of the most marginalized and
vulnerable groups, is significantly increased.
The International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights
(ICESCR or Covenant) provides a consolidated regime for the affirmation and
protection of these rights, notably the right to health. It consists of institutions such
as the Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), of standards
(ICESCR and its Protocol), principles (good faith; equality and non-discrimination;
pro homine; complementarity, indivisibility, and universality of human rights),
documents (CESCR Declaration to leave no one behind in light of the 2030 Agenda
for Sustainable Development; General Observations #14 and #25; the Covid-19
Pandemic Declaration; and, the Declaration on Universal and Equitable Access to
Vaccines from Covid-19) and rules (Pacta Sunt Servanda; the rule of the most
favorable standard and the rule of exhaustion of domestic remedies) that enshrine the
existence of a true health protection regime stemming from the ICESCR.
Since a regime is a set of institutions, norms, principles, and rules capable of
influencing countries, international organizations, and individuals on a given agenda
or theme, generating a standard of conduct 2, the CESCR is the central organ of the
robust protection regime for the right to health, built on the ICESCR and
amalgamated by the principles of complementarity, indivisibility, and universality of
human rights. These are a harmonic whole; they have a reciprocal dependence in
such a way that they complement each other 3. To contribute to this joint effort to
2
LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. O regime de proteção aos migrantes, refugiados e solicitantes de refúgio
do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas em Revista
Interdisciplinar da Mobilidade Humana (REMHU). Brasília: CSEM, vol. 27, nº 57, dezembro de
2019, p. 175. Disponível em http://remhu.csem.org.br/index.php/remhu/article/view/1236.
3
LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. Os 50 anos dos dois pactos internacionais da ONU: um olhar especial
sobre o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em CANÇADO TRINDADE, Antônio
111
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
combat Covid-19, the CESCR illuminates the pillars of this regime capable of
adding to the global mobilization against the ruthless Coronavirus, indicating,
moreover, that the responses to the pandemic must be based on the best scientific
knowledge available for the protection of public health, according to the right of
every person to enjoy the benefits of scientific progress and its applications, explicit
in article 15, paragraph 1, subparagraph b of the Covenant.
The ICESCR is legally binding. Its states parties have the obligation to adopt
measures to avoid or mitigate the effects of the pandemic's impacts. These measures
must be based on the best scientific knowledge to effectively protect the health that
every human being has the right to enjoy. Brazil has been a State Party to the
Covenant since 1992 and, therefore, in line with the principle of good faith that
governs international law, is obliged to follow the guidelines indicated by the
CESCR on the matter.
The importance of this article is to identify and recognize this regime, little
known to the public, but which, in terms of concerns and recommendations for the
development of public policies on the subject, the affirmation of the right to health
and the responsibility of countries to confront Covid-19 is very robust from the
perspective of international human rights protection. For the CESCR, the
interpretation, supervision, and monitoring body of the ICESCR, all persons within
the jurisdiction of a state party to the Covenant can enjoy the rights recognized
therein.
To identify and recognize this regime, the article is structured around the
central characteristics of the ICESCR and the CESCR, as well as the legal pillars of
the right to health from the perspective of international human rights law. It then
dives into the presentation of the main argumentative and conclusive lines of three
important documents recently approved by the Committee on the subject: the
General Observation number 25 of 2020, concerning science and the ESCR; as well
as the Declaration on the Coronavirus pandemic (Covid-19) and the ESCR of April
17, 2020; the Declaration on universal and equitable access to vaccines for the
Augusto; LEAL, César Barros e LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro (Coord.). O cinquentenário dos dois
pactos de direitos humanos da ONU. Fortaleza: IBDH, p. 259-278, 2016, p. 261.
112
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
treatment of HIV/AIDS; and the Declaration on the right to health from the
perspective of international human rights law.
2 THE INTERNATIONAL COVENANT ON ECONOMIC,
SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS (ICESCR)
The ICESCR is a multilateral international treaty of the UN human rights
system. It is one of the essential pillars of the International Bill of Human Rights: a
set of international documents that in addition to the ICESCR includes the
International Covenant on Civil and Political Rights (ICCPR) and the Universal
Declaration of Human Rights (UDHR) of December 10, 1948. The ICESCR and
ICCPR were adopted by the United Nations General Assembly on December 16,
1966 (Resolution 2200 A XXI), entering into force in 1976.
The ICESCR identifies three responsibilities that States have for the
protection of the rights contained within them: to respect, that is, States must refrain
from interfering directly or indirectly with these rights; to protect, that is, States must
take measures to ensure that other actors, such as business, political, religious, or
anyone else can interfere with these rights; and, to enjoy, that is, States must take
measures for the realization of these rights. By respecting, protecting, and realizing
the rights in the Covenant, states parties will be able to fulfill their promises to make
sure that no one is left behind4 in the collective effort for a transformed world, in
accordance with the United Nations 2030 Agenda 5.
The ICESCR standards provide for the equal rights of men and women, the
right to work, the right to just and favorable conditions of work, the right to form
and join trade unions, the right to social security, the right to family protection and
assistance, the right to an adequate standard of living, the right to the highest
attainable standard of physical and mental health, the right to education, and the
4
ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2019/1. La promesa de no dejar a nadie atrás: el Pacto
Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, y la Agenda 2030 para el Desarrollo
Sostenible - Declaración del Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 05/04/2019, §
20, p.7.
5
The 2030 Agenda for Sustainable Development constitutes the renewed common global commitment of
states to eradicate poverty in all its forms and dimensions, including extreme poverty, by promoting
equitable, inclusive, and sustainable societies.
113
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
right to culture and to enjoy the benefits of scientific progress. These, considering
the principles of free determination, equality, and non-discrimination.
The first paragraph of article 2 of the ICESCR requires states parties to take
immediate measures to ensure to all persons within their jurisdiction the full exercise
of the rights guaranteed therein. Such measures are to be owned or achieved through
international assistance and cooperation. The San Francisco Charter or UN Charter
(from the literalness of its articles 1.3 and 55, items "a" and "c", read together with
article 56) consecrates the extensive interpretation that the international protection of
human rights must be considered as a matter linked to the interests of the
international community. Therefore, for the sake of affirming human dignity,
international cooperation will constitute a source of restrictions on state discretion.
The restriction of any of the current levels of international human rights protection,
including those issued by the CESCR, could be interpreted as a violation of
fundamental principles of international protection of the human being, such as the
principle of non-reduction of human rights protection parameters, the principle of
the most favorable standard and the pro homine principle6. This understanding
guides the members of the CESCR in the application and interpretation of the
ICESCR in matters related to the rights to health and scientific progress.
Not by chance, in paragraph 15 of its Declaration on the Coronavirus
Pandemic (Covid-19) and Economic, Social and Cultural Rights, the Committee
indicates that the States parties to the ICESCR must adopt urgent, special, and
specific measures, including through international cooperation, to protect and
mitigate the effects of the pandemic on vulnerable groups. These include older
persons, persons with disabilities, refugees, as well as communities and groups
subjected to discrimination and structural disadvantages. Among such measures, the
CESCR points out, for example, the adoption of those specially adapted to protect
6
LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações
Unidas e o enfrentamento à Covid-19 in Review of Inter-American Institute of Human Rights.
Costa Rica: IIDH, 2021, nº 72, p.20.
114
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
the health and livelihoods of vulnerable minority groups, such as indigenous
peoples7.
As an illustration of the two previous paragraphs, on 07/21/2020 the 27
member countries of the European Union signed the European Recovery Plan
(ERP), a historic economic recovery agreement, through which these States
allocated 750 billion Euros to rebuild the bloc's economy, affected by the Covid-19
pandemic. Among its main foundations are the allocation of 312.5 billion euros to
finance reform and investment programs that each beneficiary country must define
in a national recovery plan, and the establishment of a target that 30% of its
spending should be dedicated to the fight against climate change 8.
In this context, international cooperation implies sharing research,
professionals, medicines, and medical equipment, as well as best practices for
halting Coronavirus. In addition, to coordinate the measures adopted to reduce the
economic and social effects of the crisis generated because of the pandemic. In
addition, coordinate the measures adopted to reduce the economic and social effects
of the crisis generated because of the pandemic, assuming joint efforts by all
countries for an effective and equitable economic recovery. Otherwise, at the heart
of these international initiatives must be the needs of vulnerable, disadvantaged
groups, and fragile countries9.
Article 2.1 of the ICESCR deals with the progressive realization of rights.
The very expression "undertakes to take steps, by all appropriate means, including
the adoption of legislative measures" requires all States parties to begin to adopt
immediate measures to achieve the full enjoyment of the rights contained in the
Covenant10. These include, but are not limited to, administrative, financial,
educational, and social measures. In this sense, States parties are legally obliged to
7
ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/1. Declaración sobre la pandemia de enfermedad por
coronavirus (COVID-19) y los derechos económicos, sociales y culturales. Declaración del Comité de
Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 17/04/2020, §15, p.4.
8
EU. Sítio Web oficial da União Europeia: https://europa.eu/european-union/ index_pt , access in
22/07/2020, at 10:45 a.m..
9
ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/1. Declaración sobre la pandemia de enfermedad por
coronavirus (COVID-19) y los derechos económicos, sociales y culturales. Declaración del Comité de
Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 17/04/2020, §19, p.5.
10
CESCR. Observação Geral nº 3. ONU. Instrumentos Internacionales de Derechos Humanos.
Documento HRI/GEN/1/Rev.9 (Vol. I), de 27 de maio de 2008, §7, p.18.
115
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
adopt legislative measures, especially when existing laws are clearly incompatible
with the obligations contracted under the ICESCR.
The expression "to ensure progressively the full realization of rights" obliges
states parties, regardless of their level of development or national wealth, to move
immediately and as quickly as possible to make ESCR effective. About nondiscrimination provisions and the obligation of states parties to refrain from
violating, by action or omission, legal or other protective measures that require
immediate compliance. The CESCR has even stated that this obligation exists
regardless of an increase in available resources. This is because all existing resources
must be dedicated to the effectiveness of the rights proclaimed by the ICESCR 11. In
times of pandemic, which can affect the core of the human right to health, this
understanding must prevail without restrictions of any legal, normative, or political
order12.
The CESCR has identified as obligations of immediate effect the adoption of
measures for the full realization of the rights recognized in the ICESCR and the
prohibition of discrimination. Their existence or non-existence offers pillars for
evaluating alleged violations by the state, whether by action or omission. ESCR are
not purely programmatic. On the contrary, they impose direct operative obligations.
Non-compliance with them may be justifiable. For example, the existence of laws or
state practices that discriminate based on gender, race, disability, sexual orientation,
or nationality, among others, imposing barriers to the enjoyment of ESCR, constitute
violations of obligations of immediate effect. Also, the lack of public policies for the
realization of rights or the delay in derogating discriminatory legislation or practices
constitute violations of this type13.
In fact, the CESCR, in its General Comment No. 1, noted that the ICESCR
attaches particular importance to the concept of progressive realization of ESCR.
Indeed, States parties were urged to include in their reports data capable of
11
Ibidem. Documento HRI/GEN/1/Rev.9 (Vol. I), §7-10, p.11.
LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações
Unidas e o enfrentamento à Covid-19 in Review of Inter-American Institute of Human Rights.
Costa Rica: IIDH, 2021, nº 72, p.21.
13
ONU. ECOSOC. Document E/C.12/GC/20. Observación general num. 20 (2009). La no
discriminación y los derechos económicos, sociales y culturales (artículo 2, párrafo 2 del Pacto
Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales). 23/11/2009, §30, p.10.
12
116
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
evaluating the progress achieved as to the effective application of these rights within
reasonable timeframes14. This progressive realization demands a reflection on the
real-world difficulties in enforcing ESCR considering states' obligations to achieve
these goals as effectively as possible. All deliberately retroactive measures should be
considered carefully and only be justified when they concern the maximum available
resources. This does not mean, however, that states parties may indefinitely prolong
the adoption of measures to guarantee the rights of persons subject to their
jurisdiction.
Article 2.2 of the ICESCR obliges states parties to refrain from
discriminatory behavior by modifying laws and practices that permit discrimination.
It prohibits individuals and public bodies from engaging in discriminatory practices.
In cases of discrimination, judicial procedures and other methods of redress must be
guaranteed15.
Even states parties have extraterritorial obligations related to worldwide
efforts to address covid-19. Developed countries must avoid making decisions-such
as imposing limits on medical equipment exports-that impede access to vital
equipment for the pandemic's poorest victims. Likewise, states parties should ensure
that unilateral border measures do not hinder the movement of necessary and
essential goods, especially basic foodstuffs, and health equipment. Finally, any
restriction based on the objective of securing national supplies must be proportionate
and address the urgent needs of other countries 16.
In its concluding observations, the CESCR had the opportunity to highlight
the inseparability between the environment, indigenous peoples, adequate standard
of living and the right to health, as they form an interactive ring for the affirmation
14
On the legal requirement by the judicial supervision bodies of international human rights treaties to
apply a reasonable term in their decisions, especially in cases involving violations of economic, social
and cultural rights, see: LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro, La construcción jurisprudencial de los
Sistemas Europeo e Interamericano de Protección de los Derechos Humanos en materia de derechos
económicos, sociales y culturales, Núria Fabris Editora: Porto Alegre, 2009, p. 119-120.
15
ONU. Los Derechos Económicos, Sociales y Culturales – Manual para las Instituciones Nacionales
de Derechos Humanos. Serie de Capacitación Profesional nº 12 – Derechos Humanos. ACNUDH:
Genebra, 2004, p. 15.
16
ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/1. Declaración sobre la pandemia de enfermedad por
coronavirus (COVID-19) y los derechos económicos, sociales y culturales. Declaración del Comité de
Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 17/04/2020, §20, p.5.
117
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
of human dignity. Thus, after the constructive dialogue following Canada's sixth
periodic report, the Committee was concerned that the indigenous peoples of this
State party were living confined in substandard conditions, causing them severe
health problems. In addition, the fact that they had limited access to safe drinking
water and sanitation services was also of great concern. Consequently, the
Committee urged the State party to intensify its efforts to address the crisis of
adequate housing for indigenous peoples, in consultation with their respective
governments and organizations. Today, free, prior and informed consent is a
cornerstone of international indigenous peoples' law. Likewise, the CESCR insisted
on the fulfillment of the countries commitment to guarantee access to safe drinking
water and sanitation services, while ensuring the active participation of indigenous
peoples in the planning and management of water resources. In this sense, the State
Party should take into consideration not only the economic right of indigenous
peoples, but also the cultural value that water has for them17. For the CESCR, article
11 of the Covenant, the right to an adequate standard of living, does not denote a
stationary situation but rather a continuous improvement of the conditions of
existence of every human being, and is inexorably linked, therefore, to the right to
health. Such concerns of the Committee towards indigenous peoples should be taken
seriously into account by all States parties to the ICESCR, especially in times of the
Coronavirus that has indigenous peoples as one of its most vulnerable targets.
3 THE COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND
CULTURAL RIGHTS (CESCR)
The CESCR is an international body of the UN system that is made up of 18
independent experts. It applies, interprets, and monitors the ICESCR. It was
established by resolution 1985/17 of the UN Economic and Social Council
(ECOSOC) on May 28, 1985.
All states parties to the ICESCR are obliged to submit reports to the CESCR
on the implementation and enforcement of the rights set out in the Covenant. The
first report must be submitted after the initial two years of the ICESCR's validity.
17
ONU. ECOSOC. Document E/C.12/CAN/CO/6. Observaciones finales sobre el sexto informe
periódico del Canadá. 23/03/2016.
118
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Then, every five years they must submit their follow-up reports to that first report.
The CESCR will examine each report, enter into a constructive dialogue with States
parties, and address its concerns and recommendations to them in the form of
concluding observations.
The CESCR meets in Geneva at annual session periods, adopting its
interpretation of the ICESCR provisions in the form of general observations. It also
issues letters and declarations on a wide variety of matters of necessity for the
affirmation of ESCR in the international arena.
Since 2013, with the entry into force of the Optional Protocol to the
Covenant,
the
Committee
has
been
empowered
to
consider
individual
communications involving alleged violations of the rights contained in the ICESCR.
The fourth article of the Protocol's regulations states that communications may be
submitted by persons or groups of persons who are under the jurisdiction of a state
party, alleging that they are victims of a violation of any of the rights set forth in the
Covenant. This gives the CESCR a special position in relation to other international
non-judicial and judicial bodies for the protection of economic, social and cultural
rights. The possibility for citizens of States parties to the Optional Protocol to the
ICESCR to individually denounce their countries makes the CESCR the only
international body currently able to receive individual complaints regarding
violations of the economic, social and cultural rights contained in the Covenant18.
Brazil, for example, is a state party to the ICESCR, but has not yet signed its
Optional Protocol, which is why it cannot forward individual complaints to the
CESCR. Therefore, the Brazilian State, at this moment, is obliged to comply with
the provisions of article 16 of the Covenant, that is, to present reports on the
measures it has adopted, as well as the progress made, to ensure respect for the rights
contained in the ICESCR. Therefore, after constructive dialogue with the
Committee, it will publish its concluding observations, with concerns and
recommendations, which must be accepted by Brazil. In this sense, it is important to
18
The Optional Protocol to the ICESCR is an international treaty unanimously adopted by the UN
General Assembly on December 10, 2008 (Resolution A/ RES/63/117). It was opened for signature in
2009 and has been in force since May 5, 2013, three months after Uruguay, the tenth State Party to
ratify it, proceeded with its deposit, as stated in the text of the Protocol.
119
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
highlight that on 06/04/2020 the Brazilian State forwarded its Third Follow-up
Report to the CESCR19. It will be this document that the Committee will take as a
basis for the constructive dialogue that should be celebrated in 2021 or 2022,
depending on the internal calendar that will emerge from the effects of the pandemic
on the work of the supervisory bodies of the human rights treaties of the United
Nations system.
The above does not mean that the general citizenry and organized civil
society in Brazil are marginalized from the entire official reporting process before
the before the CESCR. The so-called shadow reports, those produced by civil
society in opposition to or filling gaps in the official reports of the States parties, are
always very welcome by the Committee, since they are excellent sources of
information and essential counterpoints to the official information that can positively
qualify the constructive dialogue with the States parties20. Therefore, the CESCR
encourages the participation of civil society in all stages of preparation and
submission of official reports by States parties. And when it is time for the analysis
of the Third Follow-up Report of the Brazilian State, as well as the measures taken
by Brazil in the fight against the Coronavirus, the shadow reports produced by the
Brazilian civil society will be very important for the Committee to formulate clear
conclusions and recommendations on the relevant issues.
As a direct consequence of the effects of the Covid-19 pandemic, the face-toface sessions of the Committee that were to be held during October 2020 and
February/March 2021, at the UN's Swiss headquarters in Geneva, have been
cancelled and the CESCR will work remotely, in online mode, with its members in
their home countries. For this reason, the constructive dialogues with States Parties
to the ICESCR scheduled for these sessions were exceptionally postponed, except in
two cases in which States Parties were able to engage in remote dialogues by virtual
19
20
CESCR. Document E/C.12/BRA/3, 08/06/2020. Third periodic report submitted by Brazil under
articles 16 and 17 of the Covenant, due in 2014. 08/06/2020. Disponível em:
https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=E%2fC.12%2fB
RA%2f3&Lang=en.
On the importance of civil society for the affirmation of economic, social and cultural rights, see
LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. El rol de la sociedad civil organizada para el fortalecimiento de la
protección de los derechos humanos en el siglo XXI: un enfoque especial sobre los DESC in
Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos. San José: IIDH, nº 51, p. 249-271, 2010.
120
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
means, as decided by the CESCR Steering Committee in November 2020 21. The
Committee, therefore, for as long as it remains impossible to meet in person in
Geneva due to the pandemic, has decided to focus primarily on the general
observations in development, the individual complaints submitted under the
Optional Protocol, the formulations of the list of preliminary issues for countries that
will still submit their reports in the near future, and different declarations such as
those virtually approved during the year 2020, most of which are presented
throughout this article. Thus, the Coronavirus has also impacted the essence of the
work of the CESCR.
4 THE HUMAN RIGHT TO HEALTH IN THE CESCR
For the CESCR, health is a fundamental human right and indispensable for
the full exercise of all other human rights. Every human being has the right to enjoy
the highest attainable standard of health adequate for the enjoyment of a life of
dignity, according to article 12 of the ICESCR. The interpretation of this article by
the CESCR recognizes the obligation of States parties to ensure their citizens the
enjoyment of the highest attainable standard of health, a concept that encompasses
everything from equitable access to minimum guarantees of health care in case of
illness. Moreover, the right to health is closely linked to and dependent upon the
exercise of other human rights, such as an adequate standard of living, food,
housing, work, education, human dignity, life, non-discrimination, equality, freedom
from torture, privacy, access to information, and freedom of association, assembly,
21
Of the UN human rights treaty body system, only the Human Rights Committee and the CESCR have
decided to engage in virtual dialogue with States parties at their inaugural sessions in 2021. In the case
of the CESCR, constructive virtual dialogue with only 2 States parties to the ICESCR was approved for
the February/March 2021 session, the first of the year. Countries have been contacted, but only a few
have expressed interest or technical conditions to move forward with the virtual constructive dialogue
with the Committee. The Committee is nevertheless awaiting confirmation from these countries.
Nevertheless, there were many technical problems during the internal virtual meetings held by the
Committee during 2020. If these continue, they will constitute serious impediments to the quality of a
constructive dialogue with the States Parties. Such problems, also observed by the other Committees,
have been and are the subject of recurrent concerns by the Chairs of the different human rights treaty
bodies of the UN system. These concerns are reflected in several of their official documents.
121
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
and movement. These, as well as other rights and freedoms contained in the
International Bill of Human Rights, make up the integrality of the right to health 22.
In its General Comment No. 14, which deals with the right to the enjoyment
of the highest attainable standard of health, the Committee warned that States have
an obligation to respect this right, in particular by refraining from denying or
limiting equal access to preventive, curative and palliative health services for all; by
not imposing discriminatory practices as State policies; and by refusing to impose
discriminatory practices regarding the health and needs of women and other groups
of special concern23.
In addressing the normative content of article 12 of the Covenant, the CESCR
indicates that the right to health should not be understood simply as a right to be
healthy, as this entails both freedoms and rights. Among the freedoms are the right
of every person to control their health and body, including sexual and reproductive
freedoms, as well as the right to be free from interference, such as the right to not be
subjected to torture or to non-consented medical treatment or experiments. On the
other hand, the rights include the right to a health protection system capable of
offering equal opportunity to persons to enjoy the highest attainable standard of
health, a concept that encompasses both the biological and essential socioeconomic
conditions of persons, including the resources available to the State. The Committee
has therefore alerted States parties to their obligations to respect the right to health,
in particular by refraining from denying or limiting equal access to preventive,
curative, and palliative health services for all people; by not imposing discriminatory
practices as State policies; and by refusing to impose them in health and the needs of
women and other groups that require special attention. The right to health must be
understood as a right to the enjoyment of the full range of facilities, goods, services,
and conditions necessary to achieve the highest attainable standard of health 24.
22
ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2000/4. Observación general num. 14 (2000) sobre el derecho al
disfrute del más alto nível posible de salud (artículo 12 del Pacto Internacional de Derechos
Económicos, Sociais y Culturales). 11/05/2000, §3, p.1.
23
Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §34, p.13.
24
Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §8-9, p.3.
122
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Not only that, the CESCR interprets the right to health as an inclusive right
that comprises not only timely and appropriate health care, but also the key
determinants of health, such as access to clean drinking water and adequate
sanitation, adequate provision of healthy environments, proper nutrition, adequate
housing, healthy working conditions and the environment, access to education and
information on health-related issues, including sexual and reproductive health. In
addition, the decision-making process on health-related issues at the community,
national, and international levels must involve the participation of the population at
all stages25.
The right to health contains four essential and interrelated elements whose
application is subject to the conditions prevailing in each State Party. Availability
means that each State party must have enough health care facilities, goods,
programs, services, beds, and centers. Accessibility requires States parties to make
health care facilities, goods, and services accessible to all without discrimination of
any kind. Acceptability means that all health care facilities, goods and services
should respect medical ethics and cultures in an appropriate way, i.e., observing the
culture of individuals, minorities, peoples, and communities, illuminated by gender
and life cycle requirements, and should be designed to respect confidentiality and
improve people's health status. Finally, quality, that is, health facilities, goods and
services should be appropriate from a scientific and medical point of view. If not,
they must be of good quality, such as trained health personnel, medicines, and
equipment26.
The CESCR recommends that States Parties incorporate a gender perspective
into their health policies, programs, and research to better promote the health of men
and women. A gender perspective approach recognizes the importance of biological
and socio-cultural factors in their health. In particular, the elimination of
discrimination against women requires the development and implementation of a
comprehensive national strategy to promote women's right to health throughout their
lives. This should focus on the prevention and treatment of diseases that affect
25
26
Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §11, p.4.
Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §12, p.4-6.
123
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
women, as well as policies aimed at providing women with access to affordable,
high quality health care, including sexual and reproductive services 27.
The CESCR has also identified a right to health specific to indigenous
peoples. They are entitled to specific measures to improve their access to health
services and care, which must be culturally appropriate, considering preventive care,
curative practices, and traditional medicines. It is the duty of the States parties to the
ICESCR to provide resources for indigenous peoples to establish, organize and
monitor these services so that they may enjoy the highest attainable standard of
physical and mental health. They should also protect the medicinal plants, animals,
and minerals necessary for the full enjoyment of the health of indigenous peoples.
Therefore, the umbilical link between them and the environment is non-negotiable.
In carrying out its functions, the Committee notes that in indigenous communities,
the health of the individual is connected to the health of society, thus presenting a
collective dimension. Consequently, development-related activities that lead to the
displacement of indigenous peoples, against their will, from their traditional
territories and surroundings, resulting in the loss of their food resources and the
disruption of their symbiotic relationship with the land, have a detrimental effect on
the health of these indigenous peoples28.
The CESCR has repeatedly concluded, and science has demonstrated, that the
link between the environment and human beings is unbreakable, and that their
futures are inexorably connected and interdependent. This connection is even deeper
in the relationship between indigenous peoples and the environment because they
have in the environment the entity that welcomes and shelters them, providing
everything necessary for their existence with dignity. Respect for nature, for fauna
and flora, is essential for human beings to live in balance and harmony with
themselves and with their fellow human beings, enjoying good health and wellbeing. enjoying spiritual, physical, and mental health.
27
28
Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §20-21, p.9.
Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §27, p.11.
124
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
5 GENERAL OBSERVATION NUMBER 25 (2020) ON
SCIENCE AND ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL
RIGHTS (ARTICLE 15, §§ 1.B, 2, 3 AND 4, ICESCR)29
As of July 2020, the CESCR has adopted 25 general observations. These
assist States parties and the community at large to understand the scope and meaning
of each of the articles of the ICESCR. They provide guidance to countries, courts of
law, administrative bodies and the public about the human rights, fundamental
rights, and freedoms that every human being is entitled to enjoy under the Covenant.
In their substantiation process, the general observations rely on a rapporteur or corapporteurs, support from the technical secretariat of the Office of the United
Nations High Commissioner for Human Rights (OHCHR), dialogues with other
agencies of the UN system, public hearings with civil society partners and interested
entities, debates with universities and foundations related to the specific theme. Its
last draft version is available to the public on the CESCR website for a reasonable
period to receive pertinent comments and suggestions before the Committee
approves its final version.
General Comment No. 25 (GL25) is a key contribution of the CESCR to the
global effort to address Covid-19. Through it, the Committee makes it clear that the
right to enjoy the benefits of scientific progress and its applications, article 15, §1,
paragraph b of the ICESCR, is in deep connection with the right to health, article 12
of the Covenant30. And this inexorable relationship is built on four pillars. The first
one states that scientific progress generates medical advances and applications, such
as vaccines, which prevent and treat diseases. In the Committee's understanding, the
States parties to the ICESCR should promote scientific research, through financial
support or other incentives, creating new medical applications, especially for the
most vulnerable (e.g., children, migrants, women, indigenous peoples, refugees,
etc.). As stated in article 12, paragraph 2, c of the Covenant, the States parties should
give priority to the promotion of scientific progress in order to facilitate better and
29
Adopted by the CESCR at its 67th session, held in Geneva from February 17 to March 6, 2020.
Published on April 30, 2020.
30
ONU. ECOSOC. Document E/C.12/GC/25. Observación general num. 25 (2020), relativa a la ciencia
y los derechos económicos, sociales y culturales (artículo 15, párrafos 1b), 2, 3 y 4 del Pacto
Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales). 30/04/2020, §67, p.16.
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
more effective means, as well as more accessible means, for the prevention and
treatment of epidemic, endemic, and other diseases. This understanding is the fruit of
repeated constructive dialogues of the CESCR with States parties regarding the right
to health and is currently emerging as one of the main lessons learned in the fight
against pandemics, and should therefore, in light of a fine interconnection between
health, science, and human rights, be applied in the fight against Covid-19.
A second basis of understanding builds on the fact that some applications of
scientific progress are protected by intellectual property regimes. The CESCR
believes that these should not be held to the detriment of the right to health. On the
contrary, such regimes should be interpreted and applied to support the duty of
countries to protect public health, particularly by promoting universal access to
medicines. In this regard, States parties to the ICESCR should refrain from granting
disproportionately long patent protection periods for new medicines to allow, within
a reasonable time, the production of safe and effective generic medicines for the
same diseases31.
The third pillar is the duty to make available to all people, without
discrimination of any kind, and with special attention to the most vulnerable, the best
available applications of the scientific progress needed for the enjoyment of the
highest attainable standard of health. Such action should also avail itself of
international assistance and cooperation. Finally, as a fourth pillar, it is understood
that States parties to the Covenant should make every effort to ensure that drugs and
medical treatments are based on scientific experiments and evidence, that the risks
arising from them are adequately evaluated, and that patients can give their consent
based on clear and transparent information32.
The CESCR believes that the principles of transparency and participation are
essential for science to be objective and reliable, and not a subject to interests that
are not scientific or incompatible with the fundamental principles of human rights
and the welfare of society. Countries should harmonize their policies with the best
31
32
Ibidem. Document E/C.12/GC/25, §69, p.17.
Ibidem. Document E/C.12/GC/25, §70-71, p.17.
126
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
available scientific knowledge, fostering trust and support throughout society for the
available scientific knowledge33.
As previously alerted, it is in times like these, of intense and worrisome
vulnerability of public health due to pandemic consequences, that the actions of
institutions and political agents are chosen between two very clear and distinct paths
regarding the transparency of information34:
...one centered on the production of reliable data gathered
scientifically, used by decision makers, and made available to
the public, recognized as active transparency. And another
suppressing or restricting the production, decision-making use,
or public access to information, dubbed refuted transparency.
Taking an attitude of active transparency will require the
production and sincere search for credible data, its use in
decision making, and honest disclosure to the population,
subjecting public authorities to the support, rejection, and
criticism inherent in the democratic process. The other path is
to adopt political and institutional decisions based on
ignorance and permeated by mechanisms of low democratic
scrutiny. The choice is simple and will involve lives and
deaths; the difference will only be in the future numbers of a
reality that is implacable to a greater or lesser extent...
Active transparency is what international human rights law prescribes for
dealing with pandemics in general, including Covid-19.
6
THE CORONAVIRUS PANDEMIC DECLARATION
(COVID-19) AND ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL
RIGHTS35
The CESCR calls upon States parties to the ICESCR to enhance and improve
based on timely and transparent information, early warning mechanisms for
emerging epidemics capable of becoming pandemics. Such a call was made within
the framework of the Committee Declaration on the Coronavirus pandemic
published on April 17, 2020, through which it is highlighted that pandemic are a
clear example of the need for international scientific cooperation in the face of
33
Ibidem. Document E/C.12/GC/25, §10-11, p.3.
LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro e RESENDE, Ranieri Lima. Pandemia de coronavírus: um teste para a
transparência de instituições e agentes políticos in O Estado de São Paulo, São Paulo, 30/3/2020,
política, blogs Fausto Macedo. Disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/faustomacedo/pandemia-decoronavirus-um-teste-para-a-transparencia-de-instituicoes-e-agentes-politicos/
35
Approved by the CESCR on April 6, 2020.
34
127
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
transnational threats, since a local epidemic can quickly turn into a pandemic of
devastating consequences if adequate measures are not adopted 36.
These appropriate measures must be taken urgently and based on the best
scientific knowledge to protect public health. If it is necessary to limit any of the
rights contained in the ICESCR, the measures must be reasonable, proportionate,
and taken exclusively to combat the Covid-19 public health crisis. They should also
be withdrawn as soon as they are no longer necessary for that purpose. Otherwise,
access to justice and effective legal remedies must be fully guaranteed, especially for
the most vulnerable and marginalized groups37.
The Committee reminds States parties that indigenous peoples, refugees and
people living in conflict-affected areas are especially vulnerable during the Covid-19
pandemic. These are groups that often lack adequate access to water, soap, or
disinfectant. In addition, they cannot access the infrastructure to test for the virus.
They have little or no access to health services and information, and their
populations have very high percentages of chronic illnesses and various health
disorders, making them a high-risk group for Covid-19 infection38.
As if this were not enough, this pandemic exacerbates gender inequalities as
the responsibilities for the care of children, the family, the elderly, and the home fall
disproportionately on women. Women, in circumstances of confinement or social
isolation, are more likely to experience domestic violence. States parties should take
the necessary measures to combat all types of gender-based violence39.
Among the CESCR recommendations for combating the Covid-19 pandemic
is also the need to adopt appropriate regulatory measures so that health care
resources in both the public and private sectors are mobilized and shared across the
population to ensure a comprehensive and coordinated response to the crisis. All
health care workers must have easy access to the appropriate protective clothing and
36
ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/1. Declaración sobre la pandemia de enfermedad por
coronavirus (COVID-19) y los derechos económicos, sociales y culturales. Declaración del Comité de
Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 17/04/2020, §23, p.5.
37
Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §9, p.3.
38
Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §23, p.5.
39
Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §8, p.3.
128
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
materials to prevent contagion. It is essential that decision makers in States Parties
consult and pay due regard to the recommendations of these professionals in
developing their actions40.
Special and specific measures of an urgent nature should be taken to protect
and mitigate the effects of the pandemic on vulnerable groups such as the elderly,
persons with disabilities, refugees, conflict-affected populations, women, indigenous
peoples, as well as communities and groups subjected to discrimination and
structural disadvantage. Such measures could include, among others, providing
water and soap to communities in need; initiating specific programs to protect the
jobs, wages and pensions of all workers, including undocumented migrant workers;
imposing a moratorium on forced evictions or housing foreclosures during a
pandemic; adopting specially tailored measures to protect the health and livelihoods
of vulnerable minority groups such as indigenous peoples; and ensuring affordable
and equitable access for all to Internet services for educational purposes 41.
States parties should also strive to ensure that all workers are protected from
the risks of infection in the workplace. To this end, they should take appropriate
measures to ensure that employees minimize the risks of infection in accordance
with best practices in public health standards. Similarly, to protect the jobs,
pensions, and other social benefits of workers during a pandemic, and even to
mitigate its economic effects, States Parties should take immediate measures such as
wage subsidies, tax breaks, and the establishment of supplemental social security
and wage protection programs42.
In a pandemic scenario, speculation with food, hygiene products, medicines,
and any other essential product should be avoided. To reduce the risk of
transmission of the Coronavirus, as well as to protect the population from the danger
posed by misinformation, it is essential to have accurate and accessible information
about the Covid-19 pandemic43.
40
Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §13, p.3.
Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §15, p.4.
Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §16, p.4.
43
Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §17-18, p.4.
41
42
129
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
For the CESCR, Covid-19 highlighted the importance of investing adequately
in public health systems, comprehensive social protection programs, decent work,
housing, food, water and sanitation systems, as well as institutions to promote
gender equality. Finally, the Committee urges States parties to the ICESCR to ensure
that the extraordinary mobilization of resources to confront the Covenant's pandemic
provides the necessary impetus to mobilize long-term resources for the full and
equal enjoyment of the economic, social and cultural rights enshrined in the
Covenant44.
7 DECLARATION ON UNIVERSAL AND EQUITABLE
ACCESS TO COVID-19 VACCINES & DECLARATION ON
UNIVERSAL AFFORDABLE VACCINATION FOR COVID19,
INTERNATIONAL
COOPERATION
AND
INTELLECTUAL PROPERTY
The CESCR adopted on November 27, 2020, the Declaration on Universal
and Equitable Access to Covid-19 Vaccines. It illuminates, from a human rights
perspective, the main obligations of States parties to the ICESCR to address the
current pandemic considering scientifically developed vaccines. Every human being
has the right to the highest attainable standard of physical and mental health. This
includes access to immunization programs against infectious diseases. Likewise,
people have the right to enjoy the benefits of scientific progress, which includes
access to an effective and safe vaccine developed from the best scientific knowledge.
In pandemics, such as the one caused by the Coronavirus, it is science that should
guide all knowledge capable of fighting them.
There are several scientific reasons (of an exact, human, medical and social
nature) for every human being to be vaccinated. Among these, not exhausting all the
benefits and advantages of vaccination, it is underlined that statistically vaccines
save lives and protect health; protect the vulnerable and future generations; protect
and support health services; save time, money, and various resources; and, in the age
of fake news, prevent the spread of fake news.
44
Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §24-25, p.6.
130
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
According to the CESCR, access to vaccines for all people should be
guaranteed by countries to the maximum of their available resources and according
to the necessary measures for universal vaccination and without any discrimination.
The duty to immunize against major infectious diseases and to prevent and control
epidemics is a priority obligation because of the right to health. Therefore, in the
current pandemic scenario, countries must give top priority to making available
vaccines that can contribute to the fight against Covid-19. This access is a human
right and must be facilitated by countries, especially when they are parties to the
ICESCR. These countries have the obligation to provide reliable, transparent, and
scientifically sound information for citizens to decide whether to be vaccinated. In
this sense, all administrative and bureaucratic obstacles must be overcome in favor
of fast and effective public policies for universal and equitable access to vaccines 45.
The right to health requires countries to make health care facilities, services,
and goods, including vaccines, accessible, acceptable, and of good quality. Vaccines
must not only be produced and made available, but they must also, in accordance
with the principle of equality and non-discrimination, be accessible to all: reasons
such as religion, nationality, sexual orientation, gender, race, ethnic identity, age,
disability, migratory status, social origin, poverty, or any other reason must not be
impediments. On the contrary, physical accessibility to vaccines, especially for
marginalized and disadvantaged groups, through state or private channels, notably
by strengthening the capacity for their delivery and distribution, must be guaranteed.
Otherwise, the free provision of vaccines, especially for people on low incomes and
in poverty, must be ensured. Moreover, especially in this digital and fake news era,
access to relevant information, through credible scientific information about the
safety and efficacy of different vaccines, enhanced by public campaigns able to
protect people against false, misleading, or pseudoscientific information, must be
robustly guaranteed. Finally, no one should be left behind if they decide to get a
vaccine46.
45
ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/2. Statement on universal and equitable access to vaccines
for COVID-19 by the Committee on Economic, Social and Cultural Rights of 27/11/2020, §1-3, p.1-2.
46
Ibidem. Document E/C.12/2020/2, §4, p.2.
131
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
The CESCR further recalls that many vaccines on the verge of approval have
been developed by private companies and may be subject to the intellectual property
regime. These companies expect to make a profit, and it is only fair that they receive
reasonable compensation for their investment. However, intellectual property is a
social product with a social function, therefore, the law can subordinate its use and
enjoyment to the social interest. Consequently, countries have a duty to prevent
intellectual property and patent law regimes from undermining the enjoyment of
human rights. Thus, it is also incumbent upon business entities to refrain from
invoking intellectual property rights that are incompatible with the human right of
access to a safe and effective Covid-19 vaccine. Countries have an obligation to
ensure universal and equitable access to vaccines as soon as possible by all means
necessary, including through international assistance and cooperation 47.
Prioritization of access to vaccines should be supported by all and should be
organized through transparent and participatory mechanisms that ensure global
distribution based on actual medical needs and scientific public health
considerations. Every human being who so desires can and should be vaccinated.
This is crucial for the control of the Covid-19 pandemic. And the Heads of States
and Governments, especially of those countries that are signatories to the ICESCR,
must ensure that this is the case.
In the wake of the previous premises, the CESCR adopted on March 12,
2021, the Declaration on Universal Affordable Vaccination for COVID-19,
International Cooperation and Intellectual Property. For the Committee, the
intellectual property regime must be interpreted and applied in a way that supports
the duty of States Parties to the ICESCR to protect public health. The right to health
requires countries to make health facilities, services, and goods, including vaccines,
accessible, acceptable and of good quality. Vaccines must be produced and made
available considering the principle of equality and non-discrimination, i.e., they must
be accessible to all, thus including migrants, and without obstacles. In addition,
physical accessibility to vaccines, especially for marginalized and disadvantaged
groups, must be ensured through state or private channels, especially by
47
Ibidem. Document E/C.12/2020/2, §6-11, p.2-3.
132
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
strengthening delivery and distribution capacity. The obligation of countries to
provide access to vaccines is a reality in international human rights law; however, in
the face of obstacles capable of affecting such state compliance, there are viable
private avenues that can be pursued considering the principle of subsidiarity in
human rights and states should not only facilitate but also guarantee them. Similarly,
ensuring that vaccines are free of charge is a duty, especially for people with low
incomes areas and in poverty. And particularly in this digital and fake news era, it
reiterates the need to access relevant and scientifically proven information on the
importance of vaccines. Finally, it underlines the essentiality of international
cooperation for the success of all these actions 48.
8 FINAL CONSIDERATIONS
The existence of a true protection regime for the human right to health
derived from the ICESCR is a reality. A set of solid norms (the ICESCR and its
Protocol), institutions (UN, CESCR and States parties), recognized principles (good
faith, equality and non-discrimination, pro homine, complementarity, indivisibility
and universality of human rights), documents officially recognized by the States
parties (concluding observations, general observations, letters and declarations),
capable of generating a standard of conduct in the States parties to the ICESCR and
contributing to the affirmation of the human dignity of the people under their
jurisdiction, can be observed. The CESCR directed this regime to contribute to the
confrontation of the Coronavirus pandemic. Such contribution should be
accompanied by joint action among countries, international organizations, and
individuals to stop or mitigate the effects of Covid-19. The regime that emerged
from the ICESCR can illuminate the path to be followed by these central actors of
international relations and contemporary subjects of public international law.
Finally, when it comes to the affirmation of human dignity in international law, the
fate of each person is inexorably connected to that of others, as well as to that of the
planet. Especially when the threat is universal because of a pandemic caused by a
virus.
48
ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2021/1. Statement on universal affordable vaccination for
COVID-19, international cooperation and intellectual property by the Committee on Economic, Social
and Cultural Rights of 12/03/2021.
133
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Therefore, it is primarily the responsibility of the States Parties to the
ICESCR to adopt public policies, administrative measures, and legislation oriented
to the effective enjoyment of the rights and duties contained in the ICESCR. They
are the ones who, in good faith, have made this international commitment.
The CESCR is the main and final interpreter of the ICESCR. It is the one
empowered by the Covenant to explain and state the scope of the content of its
articles. Therefore, it is the one that is concerned with the fulfillment of the articles
by the States parties, recommending administrative, executive, judicial, and
legislative actions of all kinds, without any discrimination, so that they are in line
with the most up-to-date standards of international human rights law regarding
economic, social, and cultural rights. Specifically, regarding the Covid-19 pandemic,
the Committee stated that the States parties to the ICESCR have an obligation to
adopt measures to prevent, or at least mitigate, the effects of the Coronavirus on the
enjoyment of economic, social and cultural rights, especially on the right to health of
the most vulnerable groups in society. Finally, no one can be left behind.
To fulfill the obligations and rights contained in the ICESCR, States parties
must adopt a series of measures, including urgent ones, based on the best scientific
knowledge available for the protection of public health, thereby fostering confidence
in and support for the available scientific knowledge throughout society. Moreover,
active transparency should govern the information shared by States Parties with
society at large.
International cooperation must also be enshrined as an important pillar in the
fight against Covid-19. This implies sharing research, professionals, medicines, and
medical equipment, as well as best practices for halting the Coronavirus. It also
coordinates the measures to be adopted to reduce the economic and social effects of
the crisis generated by the pandemic, assuming joint efforts by all countries for an
effective and equitable economic recovery.
Universal and free access to vaccines for all people who want them faces
challenges of all kinds, whether in countries with more resources or in those
experiencing shortages. Public officials must do their utmost to ensure that states,
especially those that are parties to the ICESCR, can fulfill their obligations to
134
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
facilitate such access. Otherwise, the civilizational and generational duty imposes on
every human being to contribute to this collective health effort also individually. In
this way, while vaccine immunization does not reach the entire world population,
each person must be attentive, spreading and cooperating with the less fortunate
ones, as to the practices of the measures prescribed by science to face Covid-19,
such as social distancing, epidemiological surveillance, the use of masks, body
hygiene, and the non-proliferation of false information or fake news. Finally, the
present and the future of each of us are inexorably connected.
Therefore, public officials, from any of the three powers of the Republic and
regardless of the administrative spheres of their mandates, must guide their actions,
decisions, and manifestations to combat the pandemic in line with the best scientific
knowledge available (in this area, immediate vaccination is the main challenge) and
in light of the State's commitments on human rights, especially, fully observing the
protection regime of the right to health emanating from the International Covenant
on Economic, Social and Cultural Rights.
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ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2021/1. Statement on universal affordable
vaccination for COVID-19, international cooperation and intellectual property by the
Committee on Economic, Social and Cultural Rights of 12/03/2021.
136
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NO
PRIMEIRO ANO DE GESTÃO DA
PANDEMIA DE COVID-19: QUEBRA DOS
PADRÕES TRADICIONAIS DA
DIPLOMACIA NACIONAL
Elisa de Sousa Ribeiro1
André Mendes Pini2
Júlio Edstron S. Santos3
RESUMO
O presente artigo tem como finalidade apresentar a forma como a diplomacia
brasileira abordou os temas ligados à pandemia de Covid-19 perante as Nações
Unidas, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Mundial do Comércio.
Em posicionamentos paradigmáticos, o país quebrou padrões tradicionais de sua
política externa em benefício de uma visão ideológica voltada a um suposto
liberalismo (mais econômico que político) mas que refletiu, na realidade,
concepções ideológicas de ultradireita, expressas por meio, sobretudo, do Ministro
Ernesto Araújo e alinhadas ao governo Bolsonaro. Citam-se os exemplos da
oposição à quebra de patentes da vacina, na OMC; da defesa à liberdade de ir e vir e
de trabalho em oposição ao isolamento social, ao confinamento e o direito à saúde,
na ONU; e das diversas dissidências com as orientações da OMS, além da decisão de
não requisitar a integridade de sua cota no mecanismo Covax Facility. Ressalta-se,
assim, as contradições inerentes a concepções da PEB bolsonarista, de caráter
1
2
3
Doutora e Mestre em Ciências Sociais pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação Sobre as Américas da
Universidade de Brasília (CEPPAC/UnB). Mestre em Direito Internacional e Relações Exteriores e
Internacionais pelo Instituto Europeu Campus Stellae (Espanha). Especialista em Relações
Internacionais e em Direito Internacional pela Faculdade Damásio. Bacharel em Direito pelo
UniCEUB. Advogada internacionalista Pesquisadora do Grupo de Estudos do Mercosul (2008-atual).
Membro do Grupo de Estudos do Mercosul (2005-atual). Pesquisadora do Geo$mundo - Geografia
Econômica Mundial da UTF/PR (2016-atual). Membro da Academia Brasileira de Direito
Internacional (ABDI).
Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre e Especialista em
Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Professor Substituto do curso de
Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB)
Doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB. Mestre em Direito
Internacional Econômico pela UCB/DF. Diretor Geral do Instituto de Contas do Tribunal de Contas do
Tocantins. Professor do IDASP e Uninassau em Palmas. Membro dos grupos de pesquisa Núcleo de
Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor (NEPATS) da UCB/DF, Políticas Públicas e
Juspositivismo, Jusmoralismo e Justiça Política do UNICEUB.
137
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
nacionalista e anti-globalista, em meio a uma pandemia mundial que demandou
esforços multilaterais, gerando constrangimento internacional e dificuldades na
cooperação em prol do combate à pandemia do coronavírus.
Palavras-chave: política externa brasileira, discurso, pandemia, covid-19,
soberania, Organização das Nações Unidas, Organização Mundial da Saúde.
1 INTRODUÇÃO
Neste artigo é abordada a forma como a gestão do Ministro das Relações
Exteriores Ernesto Araújo lidou com a pandemia Covid-19. O foco da análise não é
toda a sua atuação, mas sim os pontos de ruptura com os tradicionais paradigmas da
diplomacia brasileira. Para tanto, foi realizado um levantamento documental, com as
Notas à Imprensa emitidas pelo Itamaraty entre março de 2020 e março de 2021, os
discursos proferidos pelo Ministro de Estado, seus artigos, manifestações diante da
mídia e excertos de seu blog pessoal, intitulado “Metapolítica 17 Contra o
Globalismo”.
Este trabalho tem como foco os discursos e as ações brasileiras – sob a gestão
de Ernesto Araújo no MRE - relacionados às Nações Unidas, a Organização Mundial
da Saúde e a Organização Mundial do Comércio, haja vista que em posicionamentos
paradigmáticos, o país quebrou padrões tradicionais de sua política externa em
benefício de uma visão ideológica de ultradireita e uma orientação voltada à
prevalência de um liberalismo alinhado aos interesses dos Estados Unidos, de matriz
mais econômica do que política. Dentre os principais pontos estão a oposição à
quebra de patentes da vacina para Covid-19, na OMC; a defesa à liberdade de ir e vir
e de trabalho em oposição às medidas de isolamento social, ao confinamento e o
direito à saúde, na ONU; e as diversas dissidências com as orientações da OMS,
além da decisão de não requisitar a integridade de sua cota no mecanismo Covax
Facility.
Com vistas a introduzir a base ideológica sobre a qual se assentam as
discussões acerca das ações governamentais no âmbito externo, é promovida uma
revisão teórica sobre os conceitos de soberania, nacionalismo e cooperação
internacional. Ademais, são apresentadas as fundamentações do discurso de Ernesto
Araújo e suas origens, bem como a conceitualização de termos utilizados pelo
chanceler, como “Globalismo”.
138
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Nesse sentido, destaca-se que poucos temas vêm sendo tão debatidos e
revisitados atualmente, tanto no plano interno quanto no internacional, como a
soberania estatal. Isso se dá, em especial por causa das suas repercussões, seja por
força de uma visão clássica, como a de Thomas Hobbes (2015); contemporânea,
identificada por Hans Kelsen (1989), ou crítica, tal como proposto por Zigmunt
Bauman (2001). Parcela relevante das discussões em torno da soberania vem sendo
suscitadas especialmente por aqueles que pregam a sua defesa face ao que entendem
ser uma ameaça à autonomia e aos poderes do Estado. Essa ameaça estaria em redes
transnacionais; organismos internacionais; países altamente conectados a redes e
cadeias
globalizadas
de
produção
e
distribuição;
instituições
financeiras
internacionais e agrupamentos supranacionais. O Brasil não vem se furtando a essa
tendência de defesa de uma visão diferente da soberania, principalmente capitaneada
por alguns grupos de direita e ultradireita. Cabe, portanto, antes de apresentar as
consequências desse pensamento na política externa nacional em face dos desafios
globais trazidos pela pandemia de covid-19, tecer considerações teóricas sobre o
conceito de soberania e das implicações da criação de organismos internacionais aos
poderes do Estado.
2
PROBLEMATIZANDO
GLOBALIZAÇÃO
A
SOBERANIA
E
A
As duas lições propedêuticas sobre a soberania estatal são que essa nasce do
reconhecimento jurídico emanado pelos tratados internacionais conhecidos como
Paz de Vestefália de 1648, documento que consolidou o fim da Guerra dos Trinta
Anos, e que a aceitação da soberania irradia efeitos no plano internacional com a
ideia de igualdade soberana e da supremacia dos órgãos estatais na ordem jurídica
interna.
Pode-se afirmar que a ideia de soberania estatal clássica teria alcançado seu
auge na primeira metade do século XX, isto porque além do seu raio de atuação
jurídica, ocorreu o recrudescimento de movimentos ultranacionalistas que
reivindicaram desde a manutenção de colônias ultramarinas, o reconhecimento de
pretensões territoriais e até a imposição de supremacia racial – que infelizmente
apresenta efeitos deletérios em nossa sociedade até os dias atuais. Invariavelmente
139
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
essas ambições causaram conflitos armados em diversas escalas, culminando na
Primeira e na Segunda Guerras Mundiais. O severo problema em se afirmar que o
apogeu da soberania estatal ocorreu nesse período é que na África, América e Ásia
as populações presenciaram atrocidades por meio de apropriação, expropriação e
violências de todos os tipos, muito por causa de uma mentalidade colonizadora,
própria de seu tempo. A soberania, aliada ao ultranacionalismo, era utilizada como
justificativa para a barbárie e a violação dos direitos humanos mais básicos. Ao
mesmo passo, com os horrores presenciados na Segunda Guerra Mundial, sobretudo,
o holocausto imposto a judeus, ciganos, homoafetivos e outros grupos sociais, a
comunidade internacional se viu obrigada a revisitar os limites de atuação interna e
internacional dos países, mais uma vez discutindo as fronteiras da soberania.
Com essa mudança paradigmática os extremismos do ultranacionalismo,
linhas de pensamentos excludentes e da própria atuação do Estado estão em
constante adaptações. Os países já não são os únicos sujeitos de Direito Internacional
e as vezes há de se ponderar que “o Estado ficou muito grande para as pequenas
coisas e pequeno para as grandes coisas” (FERRAJOLI, 2002, p. 85). Em apertada
síntese, após a Segunda Guerra Mundial a humanidade continuou a presenciar
horrores impostos pelos agentes estatais a pessoas ou grupos, porém a atuação dos
países foi autolimitada pela assinatura e ratificação de tratados, ou ainda pelo
reconhecimento de aplicação de costumes internacionais 4. Aliado aos avanços – e
retrocessos – democráticos vivenciados desde então, houve um constante progresso
dos meios de comunicação e de transportes, o que vem possibilitando movimentos
denominados de globalização, tal como detalhado por Arnaldo Godoy (2005).
Também há de se perceber, ademais, que, na segunda metade do século XX,
houve um constante incentivo aos movimentos de integração entre os países, sob
diversas matrizes, como é o caso da União Europeia e do Mercosul, blocos regionais
com configurações próprias que, em maior ou menor medida envolvem cessão de
exercício de competências soberanas (Cf. RIBEIRO, 2010). Também há de se
perceber tais processos de integração envolvem o comércio, trânsito de pessoas e a
4
A Carta da ONU assinala, em suma, o nascimento de um novo direito internacional e o fim do velho
paradigma – o modelo Vestfália -. Que afirmara três séculos antes com o término de outra guerra
europeia dos trinta anos. Tal carta equivale a um verdadeiro contrato social internacional.
(FERRAJOLI, 2002, p. 41).
140
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
proteção jurídica e social das pessoas. Um ponto muitas vezes não mencionado, é
que, além das reconhecidas vantagens, tais como o incremento no comércio,
expansão do mercado consumidor, aumento da economia de escala e ganho de
relevância geopolítica, há também, na integração regional, a acomodação de diversos
problemas, que se antes se restringiam às esferas nacionais – ou que sequer existiam
antes –, passam a tomar um contorno mais amplo, na medida em que diferentes
países se agrupam. Isso demanda por vezes uma resposta concertada e coordenada
dos Estados, algo que exige um esforço diplomático não raramente complexo.
Não somente os organismos internacionais de integração comercial, mas
também os de cooperação internacional, de concertação política e de natureza
técnica se veem diante dos mesmos desafios, na medida em que a resposta a algum
revés dependa de uma solução comum entre seus membros. Esse foi o caso da
pandemia de Covid-19, uma doença que nasceu em uma localidade, mas que, com os
movimentos globalizantes, alcançou todo o mundo, impactando toda a sociedade
internacional. Como efeitos nefastos da pandemia mundial, verificou-se o aumentou
do medo, da insegurança, do protecionismo e, infelizmente, também das inverdades
disseminadas por grupos com interesses específicos e pouco republicanos. É
apregoada nas redes sociais a extinção de foros internacionais como a Organização
Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU), tidos por
esses grupos como contrários aos interesses e à autonomia nacionais, mantenedores
de uma ordem supostamente “globalista” ou de interesses escusos.
Problemas causados – ou amplificados – pela globalização passaram a ter
uma maior ressonância no cotidiano dos indivíduos por meio das redes sociais e de
aplicativos de comunicação pela internet. Situações locais passaram a ganhar maior
visibilidade e os descontentamentos, por motivos mais diversos, alcançaram
horizontes longínquos. A situação da reverberação dos problemas por meio da
internet é tão grave que já vem sendo colocada como um risco a própria democracia
ocidental, como demonstraram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2020), bem como
há a preocupação com disseminação de fake News, pós-verdade e de imposição de
um “Estado pós-democrático”.
141
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Com esse ambiente complexo, há um risco de que as atuações dos Estado
Nacionais voltem a patamares presenciados no início do século XX – ou seja, de
nacionalismo exacerbado e de defesa de uma soberania absoluta –, isto porque
democracias consolidadas aceitaram flagrantes retrocessos em suas ações,
principalmente sobre temas capazes de causar danos irreparáveis à própria
humanidade.
Especificamente no Brasil esse contexto não é muito diferente. No país vêm
se instaurando movimentos que advogam em prol do ultranacionalismo, de posições
políticas extremadas e da atuação estatal deficitária, seja em ações governamentais
internas, como no caso da proteção ao direito à saúde, e também no contexto das
políticas públicas internacionais de apoio no combate à pandemia de Covid-19, tais
quais demonstram as análises apresentadas mais adiante.
Para que sejam analisadas as ações adotadas pela gestão do Ministro das
Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, será promovida, antes, uma
exposição da finalidade dos organismos internacionais e da cooperação, de acordo
com a Teoria Institucionalista.
3 O NACIONALISMO, A SOBERANIA E OS ORGANISMOS
INTERNACIONAIS
A formação de entidades internacionais pode ser entendida como o ápice da
correlação identitária entre um grupo de Estados. Elas seriam criadas a partir do
entendimento de que a cooperação diminui a probabilidade de conflito entre os
membros congregados, gera um sistema de apoio em caso de agressões externas –
como controvérsias, conflitos ou até mesmo uma pandemia – e, em última instância,
viabiliza a sobrevivência do próprio Estado. Esse ambiente, por meio de uma relação
progressiva de contato, cria um espaço propício para a negociação. A constituição
desses processos, ocorre em um marco internacional liberal, no qual os Estados
cooperam em um sistema aberto e baseado em regras (IKENBERRY, 2010, p. 19).
É possível compartimentalizar a ordem liberal do século XX em cinco
dimensões: âmbito participativo; independência soberana; igualdade soberana;
Estado de Direito; e amplitude e profundidade da política (IKENBERRY, 2010, p.
142
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
20). A independência soberana diz respeito ao grau de ingerência nos assuntos
internos do Estado, no sentido de impor restrições a sua autoridade dentro do seu
próprio território; a igualdade soberana é a relação horizontal entre os Estados dentro
da ordem liberal; o Estado de Direito diz respeito à conformidade com as regras e
instituições adotadas; e a amplitude e profundidade das políticas podem variar de
acordo com o estabelecido pelo conjunto de Estados (IKENBERRY, 2010, p. 2022).
Percebe-se que “A crescente interdependência dos Estados também está
criando demandas crescentes para normas e instituições de governança” e que a
forma de se conciliar as visões liberais doméstica e internacional (IKENBERRY,
2010, p. 37, tradução nossa) encontra-se no modelo de Westfalia, na medida em que
Estados podem ter total soberania jurídica westfaliana e
interagir com outros Estados nessas bases, ou acordos e
instituições podem ser constituídas de forma a envolver a
partilha e a diminuição da soberania estatal: Estados podem
ceder autoridade soberana para instituições supranacionais ou
reduzir a autonomia da tomada de decisão delas (das
instituições) por meio de compromissos com outros Estados,
ou eles podem reter seus direitos jurídicos e políticos dentro de
estruturas mais abrangentes de cooperação interestatal.
(IKENBERRY, 2010, p. 20-21, tradução nossa)
A justificativa para que os Estados busquem agrupar-se e renunciar ao
exercício de parte das suas competências soberanas para exercê-la de forma
compartilhada encontra-se na autonomia de ação dos Estados no ambiente
internacional (KEOHANE, 2002, p. 64). No entanto, devido à diversidade de
interesses nacionais em jogo, não é possível prever se os Estados agirão de forma
favorável aos interesses uns dos outros ou mesmo se manterão seus compromissos.
Ao mesmo tempo em que são entidades independentes, os Estados vivem em um
sistema de interdependência em relação uns aos outros. Essa interdependência se
consubstancia nos diferentes interesses internos e externos aos Estados que, não
raramente, são conflitantes (KEOHANE, 2002. p. 73). Para que seja possível
compatibilizar esses interesses, é necessário que, mais do que harmonia, haja
cooperação entre eles. Na harmonia, os atores agem segundo seus interesses, sem
levar em conta os interesses dos demais, ao passo que na cooperação, os atores
buscam coordenar suas políticas (KEOHANE, 2005, p. 51-52). A cooperação é
essencial em momentos como o vivenciado desde 2020, no qual uma pandemia
assolou todo o mundo, haja vista que a solução para o problema se encontra em uma
143
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
resposta conjunta e concertada dos diferentes países. Para tanto, no ano de 2020, os
Estados passaram a buscar diferentes formas de cooperação. Sejam elas técnicas,
sejam elas políticas.
A cooperação pode se dar mediante delegação ou coordenação. A
coordenação pressupõe uma confluência de ações em determinado sentido, ao passo
que a delegação demanda compartilhamento de competências. Os Estados possuem
diversos motivos para delegar, dentre eles, especialização e conhecimento
especializado possuído pelos agentes; presença de externalidades políticas que
afetam muitos Estados; paradoxos da tomada de decisão coletiva que podem ser
resolvidos através da concessão de poder e adoção de uma agenda para os agentes;
resolução de litígios entre Estados; reforço da credibilidade da política cedendo
autoridade para agentes com preferências mais extremas; e locking in policy por
meio da criação de uma agência autônoma (LAKE; MCCUBBINS, 2006, p. 342).
Para justificar a delegação, pode-se, ainda, remontar ao conceito de anarquia (Cf.
HAWKINS, 2006, p.4-5).
A delegação a um organismo internacional pode trazer três benefícios: gestão
de externalidades políticas; facilitação da tomada de decisão coletiva; resolução de
controvérsias; reforço da credibilidade; e criação de tendências políticas
(HAWKINS, 2006, p. 13). Esse último ponto é um importante fator da delegação,
haja vista que a incerteza política intrínseca à arena internacional pode ser mitigada
ao se estabelecerem padrões e vieses políticos (HAWKINS, 2006, p. 19). Quanto
maiores os benefícios da delegação, mais os Estados estão propensos a delegar
(HAWKINS, 2006, p. 13). Os benefícios da delegação, bem como a probabilidade
de que ela ocorra, são afetados por dois fatores: “heterogeneidade de preferências” e
balança de poderes. (HAWKINS, 2006, p. 13). Se as preferências dos Estados são
muito díspares, o incentivo para que eles deleguem são menores, pois o resultado das
decisões tem uma maior probabilidade de não ser satisfatório. No sentido contrário,
se as preferências são homogêneas, haverá maior interesse no processo,
especialmente porque a especialização de foros também traz ganhos como a
previsibilidade (HAWKINS, 2006, p. 13). Tem-se como exemplo, a Organização
Mundial da Saúde que, durante todo o ano de 2020 direcionou sua expertise e seus
esforços no sentido de buscar uma solução conjunta entre os Estados para o combate
144
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
à Covid-19, colocando ao seu dispor médicos e cientistas, bem como adotando
diretrizes que buscassem harmonizar os esforços multilaterais5.
4 INSTITUIÇÕES E REGIMES INTERNACIONAIS
A forma como os Estados interagem para formar instâncias internacionais e
como são seus desenhos institucionais afeta o padrão das negociações realizadas em
seu âmbito. Apesar da oposição entre o Realismo, Institucionalismo e
Construtivismo no que tange a esse assunto, optou-se neste artigo por abandonar as
delimitações entre as diferentes correntes e focar nos argumentos apresentados pelos
principais autores que as representam, pois eles podem ser complementares,
conforme asseveram Krasner e Keohane (KEOHANE, 2013, p. 28).
A necessidade de exercer poder é intrínseca à própria existência do Estado.
Em um sistema com diversos Estados, busca-se balancear ou sobrepor seu poder
com relação ao do outro. Uma definição de poder é “[...] a habilidade de levar outros
a fazerem o que eles não fariam de outra maneira” (DAHL Apud KEOHANE, 2013,
p. 29, tradução nossa). Ele possui três faces: usar recursos como incentivos positivos
ou negativos; afetar a agenda de tomada de decisões; afetar o que as pessoas querem
e acreditam. O exercício dessas faces não exige o uso do poder coercitivo, mas sim a
indução (KEOHANE, 2013, p. 29). Em uma arena internacional sem coalizões, o
uso do soft power se dá de forma dispersa em diferentes âmbitos de interesse do
Estado. No entanto, quando Estados se unem para cooperar e delegar poderes a um
ente, a forma de exercício do poder se dá pelo desenho das instituições.
Nesse contexto, são importantes os conceitos de: instituições; regimes;
regimes internacionais; organizações internacionais; convenções. Instituições podem
ser definidas como “conjuntos persistentes e conectados de regras (formais e
informais) que prescrevem papéis comportamentais, restringem atividades e moldam
expectativas” (KEOHANE, 1989, p. 03, tradução nossa). Por sua vez, regimes são
definidos por Keohane como “instituições com regras específicas, estabelecidas por
governos, que pertencem a conjuntos particulares de temas nas relações
internacionais” (KEOHANE, 1989, p. 04, tradução nossa); por Krasner como “[...]
5
Pode-se acompanhar os relatórios no link https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus2019
145
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão em torno dos quais
as expectativas dos atores convergem” (FINNEMORE; GOLDSTEIN, 2013, p. 21,
tradução nossa) e por John Ruggie (Apud KEOHANE, 2005, p. 57, tradução nossa)
como “um conjunto de expectativas mútuas, regras e regulamentações, planos,
energias organizacionais e compromissos financeiros, os quais foram aceitos por um
grupo de Estados”.
O conceito de regime abarca quatro componentes: princípios; normas; regras;
e procedimentos de tomada de decisão (KEOHANE, 2005, p. 59). Esses quatro
conceitos relacionam-se com as ações e comportamentos das entidades
internacionais, uma vez que delimitam o âmbito de atuação dos Estados, permitindo
e proibindo determinados comportamentos (KEOHANE, 2005, p. 59). Princípios são
normas, regras e procedimentos vistos em um contexto único, de prescrições
comportamentais gerais. A diferença entre normas e regras é bastante tênue, haja
vista que regras indicam direitos e obrigações de forma mais pormenorizada, ao
passo que as normas são projeções de legitimidade e ilegitimidade a respeito do
comportamento dos membros de determinado regime, definindo, ademais,
responsabilidades e obrigações em termos gerais. Apesar de as regras serem mais
específicas – ou talvez, precisamente por isso –, elas são mais fáceis de alterar do
que normas ou princípios (KEOHANE, 2005, p. 58-59).
No âmbito da Organização das Nações Unidas, por exemplo, existem regimes
em diferentes matérias, como meio ambiente, sustentabilidade, paz, defesa,
desenvolvimento e saúde. A tomada de decisão para a adoção desses regimes
internacionais vai diferir de acordo com o órgão ou convenção na qual o tema se
encontra sendo debatido. De toda sorte, a ONU não pode impor suas vontades e
interesses aos Estados, haja vista que, à exceção do Conselho de Segurança, do
Tribunal Penal Internacional e da Corte Internacional de Justiça, esse organismo não
possui competência para obrigar os Estados a cumprirem suas decisões. A forma
com que é possível cobrar ações dos Estados é política, por meio da pressão feita
pelos pares. Portanto, não há que se falar, por exemplo, em uma ordem internacional
imposta pelas Nações Unidas.
146
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Regimes internacionais “[...] também afetam os custos de transação no mais
mundano dos sentidos de tornar mais barato aos governos se reunir para negociar
acordos. É mais conveniente negociar acordos dentro de um regime do que fora
dele” (KEOHANE, 2005, p. 90, tradução nossa). Dessa forma, torna-se mais
benéfico ao Estado fazer parte de um regime do que estar fora dele, levando em
consideração que ele reduz o custo marginal das negociações, se beneficiando de
uma economia de escala (KEOHANE, 2005, p. 90). Ademais, dentro de um regime,
os Estados se beneficiam “do relativamente alto e simétrico nível de informação que
ele gera, e dos meios pelos quais torna mais fácil concluir as barganhas para
sustentação do regime” (KEOHANE, 2005, p. 100, tradução nossa). É mais fácil,
portanto, negociar com os demais países dentro de um regime estabelecido do que
fora dele. Por isso, os foros e organismos internacionais são recursos positivos para a
realização de transações.
A adesão ao regime pode ser vista como uma estratégia para redução de
custos
no
relacionamento
internacional.
Essa
estratégia
trará,
contudo,
consequências colaterais, na medida em que os relacionamentos ocorridos no
contexto do regime desenvolverão uma nova dinâmica, capaz de interferir e alterar a
própria forma como o relacionamento direto entre entidades internacionais ocorre.
Assim, o estabelecimento de arranjos cooperativos gera novas formas de
relacionamento nas relações internacionais. Uma análise de contornos mais realista
acaba por não levar devidamente em consideração a capacidade de atores de menor
poder relativo de influenciarem a conformação dos regimes: “Krasner argumentava
que a organização de regimes se referia menos sobre como resolver problemas
comuns enfrentados pelos signatários de um acordo e mais sobre como regras
específicas
favoreciam
determinados
membros
(normalmente
poderosos)”
(FINNEMORE; GOLDSTEIN, 2013, p. 22, tradução nossa). Essa visão se afasta da
análise da criação de regimes por atores internacionais de menor poder relativo entre
si, como se sempre houvesse algum membro capaz de moldar as regras de
relacionamento estabelecidas nos diferentes regimes. Diversamente, pode-se
argumentar que a constituição de regimes é momento importante para os atores de
menor poder negociarem regras que os beneficiem (FINNEMORE; GOLDSTEIN,
2013, p. 22). Esse é o caso, por exemplo, de uma negociação que envolva os Estados
147
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Unidos e Tuvalu. Em uma negociação direta, o poder relativo de um poderia se
sobrepor ao do outro, mas no âmbito de um regime internacional, com regras
definidas, nos quais o peso relativo do voto dos países é igual, é possível viabilizar
uma negociação em que Tuvalu se beneficie mais dessa estrutura do que os EUA.
Por isso, deixar de fazer parte de organismos internacionais relevantes, como é o
caso da ONU e da OMS, pode afetar de forma negativa principalmente os países
com menor poder relativo. Cabe recordar que em 2020, os Estados Unidos de Trump
anunciaram sua saída da OMS, decisão revertida pelo governo Biden (Agência
Brasil 2020; CNN BRASIL, 2021a).
Inserido no contexto de regimes, está o conceito de convenção. Convenções
são “instituições informais, com regras e interpretações implícitas, que definem as
expectativas dos atores. (...) Convenções não são apenas abrangentes na política
internacional, mas também temporal e logicamente prévias aos regimes ou às
organizações internacionais formais” (KEOHANE, 1989, p. 04, tradução nossa).
Assim, convenções podem ser compreendidas como momento anterior à constituição
de regimes, não somente no tempo, mas em sua lógica. Ainda que existam regimes
em vigor, convenções podem surgir em seu seio como regras não escritas e
comportamentos socialmente esperados dos atores (Cf. KEOHANE, 2005, p. 89,
tradução nossa). No sentido oposto, encontram-se as organizações internacionais. De
maneira a moldar de forma mais efetiva os processos de tomada de decisão e de
cooperação, podem surgir organizações internacionais, que complementam e estão
de acordo com os princípios do regime no qual se inserem. As organizações
internacionais podem, assim, ser vistas como meio de sistematizar princípios,
normas e regras dentro de um regime.
Adicionalmente, organizações internacionais tendem a prever em seus
tratados constitutivos quais atores internacionais delas participam e os meios como
suas regras poderão ser modificadas ou emendadas. Regimes não possuem regras
escritas para sua própria modificação, pois elas resultam da própria interação entre
os atores. No contexto internacional, pode-se afirmar que “regimes não conseguem
se adaptar ou se transformar. Na ausência de organizações internacionais, regimes
internacionais são integralmente a expressão dos interesses dos Estados
constituintes” (KEOHANE, 1989, p. 05, tradução nossa).
148
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A intensificação das relações internacionais, principalmente, das trocas
comerciais em seus estágios mais avançados ensejou (ou demandou) regras mais
precisas, que permitissem maior grau de eficiência e menor custo de oportunidade,
reduzindo a desconfiança entre os atores envolvidos (KEOHANE, 2005, p. 90).
Na análise da relação entre instituições internacionais e interesses estatais, há
pontos relevantes a serem observados com respeito a como os Estados atuam, pois
eles: agem para alcançar seus objetivos; utilizam as instituições internacionais para
realizar seus objetivos; desenham instituições de acordo seus objetivos; e disputam
para influenciar no desenho institucional (MITCHELL, 2009, p. 66). Os Estados,
com o objetivo de influenciar nos resultados das negociações realizadas no âmbito
de uma instituição internacional, buscam definir seu desenho, de forma que ele
produza resultados favoráveis aos seus interesses.
Nesse jogo de poder e influência, a sensibilidade e a vulnerabilidade dos
atores envolvidos influenciam no resultado. Esses conceitos se relacionam com a
interdependência dos Estados. A sensibilidade significa a capacidade de resposta de
um ator diante de uma estrutura de políticas, ela pode ter um caráter social, político
ou econômico (KEOHANE; NYE JR., 1997, p. 10-11). Já a vulnerabilidade se refere
à relativa gama de alternativas e de custos da qual os atores dispõem, a
“vulnerabilidade pode ser definida como a capacidade de um ator arcar com custos
impostos por eventos externos, após as políticas serem alteradas” (KEOHANE; NYE
JR., 1997, p. 11, tradução nossa).
Nesse sentido, os atores com menor
vulnerabilidade, teriam maior capacidade de definir as regras do jogo (KEOHANE;
NYE JR., 1997, p. 13). Embora essa conclusão aproxime-se do argumento de
Krasner de que são as potências que definem a estrutura das organizações, é preciso
recordar que os atores de menor poder relativo detêm o poder de barganha de deixar
as negociações para formação do organismo internacional ou até mesmo,
posteriormente, quando esse já estiver em vigor, abandoná-lo. Não obstante, acaso
os interesses dos atores de menor poder relativo sejam centrais na futura organização
internacional, esse poder de barganha é diminuído consideravelmente.
Para uma real compreensão do papel das instituições nos arranjos
internacionais, é necessário realizar análises nos dois níveis: política interna dos
149
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Estados; e política externa, levando em consideração a balança de poder. Nesse
sentido,
o comportamento estatal pode ser estudado de “dentro para
fora” ou de “fora para dentro”. Explicações de “dentro para
fora”, ou explicações ao nível da unidade, localizam as fontes
do comportamento internamente ao ator – por exemplo, nos
sistemas político ou econômico de um país, os atributos de
seus líderes, ou sua cultura política doméstica. Explicações de
“fora para dentro”, ou explicações sistêmicas, explicam o
comportamento estatal com base em características do sistema
como um todo (KEOHANE, 2005, p. 25, tradução nossa).
Dentre as razões que motivam os Estados a delegarem competência estão:
especialização e conhecimento especializado; presença de externalidades políticas;
paradoxos da tomada de decisão coletiva; resolução de litígios; reforço da
credibilidade da política; e locking in policy (LAKE; MCCUBBINS, 2006, p. 342).
Os benefícios da delegação incluem: gestão de externalidades políticas; facilitação
da tomada de decisão coletiva; resolução de controvérsias; reforço da credibilidade;
e criação de tendências políticas (HAWKINS, 2006, p. 13). Assim (KEOHANE,
2005, p. 79, tradução nossa), “os incentivos para formar regimes internacionais será
maior em espaços políticos mais densos do que nas zonas com menor densidade”.
Isso ocorre porque em espaços políticos com maior densidade pode haver
interferência, duplicidade ou antinomia entre as diferentes normas adotadas, gerando
insegurança nas relações, a menos que sejam baseados em “um conjunto comum de
princípios e regras”. Ao fazer uso de um espaço institucional com regras
predeterminadas, há uma maior previsibilidade dos resultados, uma vez que todos os
envolvidos conhecem as regras e procedimentos de tomada de decisão aplicáveis.
Isso reduz o custo de transação para os Estados.
No entanto, cabe afirmar que “já que governos valorizam a manutenção de
sua própria autonomia, é geralmente impossível constituir instituições internacionais
que exerçam autoridade sobre os Estados” (KEOHANE, 2005, p. 88, tradução
nossa).
A tradição diplomática brasileira vem demonstrando desde o Barão do Rio
Branco o interesse em aderir aos mais diversos regimes internacionais e a participar
de organismos internacionais multilaterais, como forma de levar a visão nacional
para essas instâncias e para se beneficiar deles, na medida em que reduzem os custos
150
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
de transação e viabilizam uma estrutura estável e previsível para a atuação da sua
diplomacia. Com base no supramencionado, cabe verificar de que forma a gestão de
Ernesto Araújo modificou a Política Externa Brasileira (PEB).
5 A POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO BOLSONARO NA
GESTÃO DE ERNESTO ARAÚJO
O governo Bolsonaro demonstrou disposição, desde o início de sua gestão,
para promover sucessivas inflexões no modo de se fazer política no Brasil. A
política externa não ficou alheia a esse processo, sendo conveniente analisar a
Política Externa do período, em particular, sob a gestão Ernesto Araújo. Desse
modo, poderá se perceber que muitos dos elementos vinculados às concepções
analisadas nos capítulos anteriores - acerca da soberania, cooperação internacional,
instituições e regimes internacionais - são colocadas em xeque a partir de um aparato
ideológico nacionalista e cético com relação à ordem global.
A Política Externa Brasileira, conduzida pelo Poder Executivo, como garante
o texto constitucional, tem no Ministério das Relações Exteriores (MRE) seu
principal órgão de formulação e execução. O debate acerca da centralidade do
Itamaraty nesse processo é denso, tendo em vista seu insulamento burocrático, que,
historicamente, garantiu ao MRE um grau elevado de autonomia, garantindo à PEB
um aspecto de continuidade coerente à sua concepção enquanto Política de Estado.
No entanto, percebe-se que, junto da redemocratização do país ao final da década de
1980,
desenvolveu-se
uma
tendência
de
descentralização
relativa
dessas
responsabilidades para outros órgãos e Ministérios dentro do Poder Executivo
(OLIVEIRA, 2005). Nesse sentido, Cason e Power (2009) argumentam que, de fato,
desde a década de 1990, além dessa pluralização de atores que marcou a PEB, outra
tendência demonstrou-se evidente: a influência crescente que o Presidente da
República detém na determinação dos eixos de sua diplomacia.
Percebe-se que o Presidente Jair Bolsonaro atuou individualmente para
promover uma flagrante inflexão na PEB, o que ficou evidenciado com a nomeação
de Ernesto Araújo para a chancelaria a partir da indicação do principal ideólogo da
direita radical brasileira: o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho. Ernesto
Araújo, diplomata de carreira, publicou em 2017, nos Cadernos de Política Exterior
151
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), um artigo intitulado
“Trump e o Ocidente” (Cf. ARAÚJO, 2017), em que alçava o então presidente
norte-americano a uma posição heróica de salvador de um Ocidente supostamente
em declínio. Posteriormente, Araújo consolidaria seu alinhamento ao então
candidato Jair Bolsonaro em sua página pessoal na internet, intitulada “Metapolítica
17 Contra o Globalismo”6.
Recorre-se, portanto, a essa página pessoal de Ernesto Araújo e ao artigo
“Trump e o Ocidente” (Cf. ARAÚJO, 2017) enquanto fontes primárias importantes
para a compreensão dos princípios e ideologias que orientaram a PEB bolsonarista
enquanto ele foi Ministro das Relações Exteriores. Considera-se que a compreensão
da dimensão ideológica da PEB sob a gestão Araújo é fundamental para,
posteriormente, se compreender a maneira pela qual o Brasil, sob Bolsonaro, portouse perante a pandemia do coronavírus.
A princípio deve-se elucidar o título do blog do ex-chanceler para a
compreensão dos marcos teóricos que guiaram Araújo e, consequentemente, a PEB
bolsonarista. A alusão ao 17 faz referência ao número do Partido Social Liberal
(PSL), pelo qual Jair Bolsonaro concorreu à presidência em 2018, enquanto o termo
“Metapolítica” e “Contra o Globalismo” são indicadores dos componentes
ideológicos presentes no pensamento de Ernesto Araújo e impresso ao longo de sua
gestão à frente do Itamaraty. Recorre-se, portanto, à definição que Araújo traz sobre
si próprio em sua página pessoal para expressar diversos elementos de seu
pensamento:
Quero ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia
globalista. Globalismo é a globalização econômica que passou
a ser pilotada pelo marxismo cultural. Essencialmente é um
sistema anti-humano e anti-cristão. A fé em Cristo significa,
hoje, lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper
a conexão entre Deus e o homem, tornado o homem escravo e
Deus irrelevante. O projeto metapolítico significa,
essencialmente, abrir-se para a presença de Deus na política e
na história. (ARAÚJO, 2017)
O trecho destacado acima apresenta, de modo sucinto, a miríade ideológica
que compõe o pensamento de Araújo, explorando conceitos como “Metapolítica”,
6
Disponível em [https://www.metapoliticabrasil.com/]. Acesso em 25/5/2021
152
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
“Globalismo”, “Marxismo Cultural”, além de um aspecto religioso bastante intenso.
Esses conceitos correspondem a uma rede semântica típica de círculos de
ultradireita7, indo ao encontro da posição política representada por Jair Bolsonaro.
Deve-se, assim, elucidar esses conceitos e contextualizar a maneira pela qual
influenciaram a gestão Araújo no MRE.
A “metapolítica” pode ser considerada um conceito vinculado à ultradireita
em âmbito global, que enfatiza uma estratégia de promoção de mudanças sociais por
meio do foco em aspectos culturais prioritariamente, para, depois, lograr mudanças
políticas. Esse conceito tem suas origens na Europa do pós-guerra, inicialmente, a
partir da ação da Nova Direita Francesa e de autores como Guillaume Faye e Alain
de Benoist (BAR-ON, 2019; TEITELBAUM, 2019). A premissa fundamental da
metapolítica é que mudanças políticas são originadas, inicialmente, nos meios
educacionais, na mídia e nas artes em geral, para, somente depois, reverberar na
política (TEITELBAUM, 2019).
Autores como Alain de Benoist e Guillaume Faye defendiam que, na Europa
do Pós-Guerra, valores liberais como a liberdade e a igualdade tornaram-se
parâmetros indiscutíveis nas sociedades ocidentais, adquirindo características
hegemônicas que converteram quaisquer críticas a esses princípios como
inaceitáveis (TEITELBAUM, 2019). Seus objetivos, desse modo, eram o
estabelecimento de um novo denominador político comum que questionasse as
premissas
arraigadas
nas
sociedades
ocidentais
liberais,
influenciando,
contemporaneamente, círculos de ultradireita dedicados ao enfrentamento do
“politicamente correto”, do “marxismo cultural” e do “globalismo”. A afinidade de
Ernesto Araújo com essas concepções fica expressa em sua produção intelectual,
sendo o artigo “Trump e o Ocidente” paradigmático nesse sentido, tendo como base
o entendimento de que a originalidade de Donald Trump advinha justamente desse
desafio ao “politicamente correto” e aos princípios do “globalismo”.
7
A Ultradireita pode ser compreendida como movimentos – violentos ou não violentos - cujas pautas
elencam ao menos três dos seguintes temas: nacionalismo, racismo, xenofobia, anti-democracia e
autoritarismo (MUDDE, 2000). A Ultradireita, em sentido amplo, compartilha elementos como o
repúdio ao pluralismo sociocultural e um sentimento contrário às imigrações e às elites do
establishment político (MINKENBERG, 2000; GREVEN, 2016).
153
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
O termo “Globalismo”, ao qual Ernesto Araújo faz referência no título de sua
página pessoal, também se insere em uma rede semântica de ultradireita, fazendo
parte de uma concepção vinculada ao suposto “marxismo cultural”. O “marxismo
cultural” é uma ideia desenvolvida e introduzida ao debate público por Minnicino
(1992) no artigo “New Dark Age: Frankfurt School and Political Correctness”,
publicado na revista Fidelio do Schiller Institute. Minnicino (1992, sem página)
atribuía aos comunistas, sionistas e freudianos da Escola de Frankfurt a tarefa de
“enfraquecer o legado judaico-cristão por meio de uma “abolição da cultura” e
determinação de novas formas culturais8”. O repúdio a esse suposto “marxismo
cultural” e suas implicações “globalistas” passam, então, a compor a miríade
ideológica de círculos de ultradireita, estando presente, recorrentemente, nos
discursos e produções intelectuais do ex-chanceler brasileiro.
Araújo, em sua página pessoal, defende que os “marxistas” vêm substituindo,
há 30 anos, o socialismo pelo globalismo como o estágio preparatório ao
comunismo, e que o Globalismo:
Trata-se da globalização econômica capturada pelo marxismo,
fenômeno que começou logo após o fim do bloco soviético e
se intensificou a partir do ano 2000 [...] O globalismo nasceu
quando a globalização capitalista, ao esquecer o espírito,
entregou-se inconscientemente ao comunismo em sua
metástase pós-soviética, ou seja, o marxismo de Gramsci e da
New Left, da Revolução Cultural (tanto a ocidental quanto a
chinesa), que sempre almejou ocupar o capitalismo por dentro
em vez de enfrentá-lo de fora [...] Vemos o processo de uma
estranha alquimia ao inverso, que vai conseguindo transformar
o ouro espiritual em chumbo inerte. Que escraviza as melhores
energias do ser humano - a ciência, a tecnologia, o
pensamento, a arte [...] em favor de uma cultura da morte, da
mentira e da maldade. (ARAÚJO, 2017)
Já as concepções ideológicas voltadas à religiosidade, vinculadas à
ultradireita, e presentes no pensamento de Ernesto Araújo, possuem respaldo
histórico sobretudo no chamado “Tradicionalismo”. Esse é um movimento
ideológico pouco estruturado, sendo definido como uma espécie de “esoterismo
religioso” conservador, prezando pela manutenção de práticas “tradicionais”, as
quais teriam sido supostamente substituídas ao longo da modernidade (SEDGWICK,
8
Do original “The task of the Frankfurt School, then, was first, to undermine the Judeo-Christian legacy
through an "abolition of culture" (Aufhebung der Kultur in Lukacs' German); and, second, to
determine new cultural forms” (MINNICINO, 1992).
154
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
2004). Os Tradicionalistas se apegam a tradições, conhecimentos e práticas
atemporais supostamente originárias de autoridades divinas, interpretando que o
Ocidente moderno teria se afastado desse passado e dificultado a transmissão dessas
tradições, desconectando-se, assim, de sua essência espiritual “metafísica”
(SEDGWICK, 2004; TEITELBAUM, 2020).
As origens intelectuais desse movimento advém de autores como Julius
Évola, René Guénon e Oswald Spengler, sendo a obra deste, “A Decadência do
Ocidente”, de 1918, referenciado diretamente por Ernesto Araújo em "Trump e o
Ocidente”, que a considera, em suas palavras, “magnífica”. Sedgwick (2020) atribui
a Olavo de Carvalho a incorporação do Tradicionalismo ao conjunto ideológico da
ultradireita no Brasil, adaptando esse pensamento a concepções vinculadas ao
catolicismo romano-germânico.
O Tradicionalismo traz uma concepção temporal cíclica, na qual após os
ciclos de declínio, aos quais os adeptos dessa ideologia acreditam que estaríamos
contemporaneamente em um ciclo de resgate dos valores “Tradicionais”, que
retomariam as origens da essência religiosa humana e colocariam fim aos princípios
modernos, como as noções de igualdade e universalidade, que teriam afastado a
humanidade de seus valores espirituais (SEDGWICK, 2004; TEITELBAUM, 2020).
Sendo assim, Araújo interpreta que Trump seria o responsável por consolidar essa
nova era reacionária no plano global, a partir da projeção global norte-americana,
reverberando, assim, na figura de Jair Bolsonaro, que seria o responsável por
conduzir esse novo ciclo no Brasil. Novamente aqui se percebe a influência de
Olavo de Carvalho, que considera os EUA como o último bastião de resistência do
cristianismo no Ocidente (SEDGWICK, 2020).
A retórica de Araújo se inspira na narrativa estrategicamente elaborada pelo
ideólogo de Trump ao longo do ciclo eleitoral norte-americano de 2016, Steve
Bannon, que via em Trump um “disruptor” capaz de acelerar a transição para uma
nova “Era de Ouro”. Bannon desenvolveu uma adaptação populista do
“Tradicionalismo” à conjuntura política, social e econômica dos EUA ao associar a
classe trabalhadora norte-americana à “Tradição”, ao passo que as elites globalizadas
seriam o paradigma da modernidade a ser combatida (TEITELBAUM, 2020). Esse
155
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
tipo de construção se adequa ao que Mudde (2017) define como “Populismo Radical
de Direita” (PRD). Define-se o populismo como uma ideologia que considera a
sociedade dividida em dois grupos homogêneos e antagônicos – as “pessoas puras” e
“a elite corrupta” – sendo que o populista clama para si a expressão da vontade geral
do povo. Somada a essa concepção populista, estaria o nativismo e o autoritarismo,
que compõem o que se compreende como PRD (MUDDE, 2004).
Ernesto Araújo estava servindo em Washington em meio às eleições norteamericanas de 2016, testemunhando a ascensão de Trump e a construção de sua
campanha Populista Radical de Direita. Nesse sentido, fica claro que Araújo buscou
respaldar intelectualmente o então candidato à presidência Jair Bolsonaro à
semelhança do que Bannon fizera na campanha de Trump. Em setembro de 2018,
um mês antes do primeiro turno das eleições presidenciais, em sua página pessoal,
Araújo atribuía a Bolsonaro a “voz do povo” em contraponto ao que chamava
“classe instruída”. Esta seria composta por intelectuais e elites “materialistas”,
“antipatrióticas”, “politicamente corretas” e “desconectadas de Deus”. Por outro
lado, o “povo”, autêntico, deteria o amor genuíno a Deus e ao Brasil. Denota-se,
assim, a busca pelo estabelecimento de uma retórica populista adaptada à realidade
brasileira e associada a valores Tradicionalistas, a partir da definição de populismo
de Mudde (2004) elucidada acima. Araújo, portanto, seria o artífice da estruturação
de um Populismo Radical de Direita Bolsonarista.
Ao tomar posse como Ministro das Relações Exteriores, de fato, Araújo
deixara claro que estava disposto a promover inflexões substanciais em sua gestão,
citando Olavo de Carvalho9, exaltando Israel e os EUA, e aplicando seu ideal antiglobalista e Tradicionalista:
Não estamos aqui para trabalhar pela ordem global [...] O
Itamaraty existe para o Brasil, não existe para a ordem global
[...] Nós buscaremos as parcerias e as alianças que nos
permitam chegar onde queremos, não pediremos permissão à
ordem global [...] O problema do mundo não é a xenofobia,
mas a oikofobia – de oikos, oikía, o lar. Oikofobia é odiar o
próprio lar, o próprio povo, repudiar o próprio passado [...]
deveria preocupar‑nos, também, cada vez mais, a teofobia, o
9
Em seu discurso de posse como Ministro das Relações Exteriores, em Brasília (02/01/2019), Araújo
definiu Olavo de Carvalho como “um homem que, após o Presidente Jair Bolsonaro, talvez seja o
grande responsável pela imensa transformação que o Brasil está vivendo”. (FUNAG, 2019)
156
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
ódio contra Deus. Para destruir a humanidade é preciso acabar
com as nações e afastar o homem de Deus, [...] e é contra isso
que nos insurgimos. O globalismo constitui-se no ódio, através
das suas várias ramificações ideológicas e seus instrumentos
contrários à nação, contrários à natureza humana, [...] Nós
vamos lutar para reverter o globalismo. (ARAÚJO, 2019)
A partir desse conjunto de princípios, valores e ideias estabelecidos como
fundamentos teóricos da gestão Araújo à frente do MRE, pode-se começar a
compreender algumas das posições do governo com relação à atuação do Brasil nas
OIs no contexto da pandemia de Covid-19. Emblemático nesse sentido é o artigo de
Ernesto Araújo, publicado em sua página pessoal em 22 de abril de 2020, ainda no
cargo de chanceler, intitulado “Chegou o Comunavírus” (Cf. ARAÚJO, 2020).
Ernesto Araújo argumenta que a situação de emergência gerada pela
pandemia seria apropriada pela esquerda globalista de modo a “subverter
completamente a democracia liberal e a economia de mercado, escravizar o ser
humano e transformá-lo em um autômato desprovido de dimensão espiritual”.
Araújo afirma ainda que organizações internacionais como a Organização Mundial
da Saúde, representantes do globalismo, seriam utilizadas para reduzir a soberania
dos Estados, em um processo de “desnacionalização”, que ele considera pressuposto
do comunismo. Araújo vai além, e afirma: “Agora o politicamente correto incorpora
o sanitariamente correto (...) Controlar a linguagem para matar o espírito, eis a
essência do comunismo atual, esse comunismo que de repente encontrou no
coronavírus um tesouro de opressão”. Por fim, Araújo conclui:
O globalismo é o novo caminho do comunismo. O vírus
aparece, de fato, como imensa oportunidade para acelerar o
projeto globalista. Este já se vinha executando por meio do
climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de gênero, do
dogmatismo politicamente correto, do imigracionismo, do
racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio da
raça, do antinacionalismo, do cientificismo. São instrumentos
eficientes, mas a pandemia, colocando indivíduos e sociedades
diante do pânico da morte iminente, representa a
exponencialização de todos eles. (ARAÚJO, 2020)
Com efeito, infere-se que a compreensão de grande parte das ações do
governo Bolsonaro em meio à pandemia do coronavírus pode ser vinculada aos
elementos ideológicos supracitados que orientaram a gestão Ernesto Araújo à frente
do Itamaraty.
157
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
6 A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A PANDEMIA DE
COVID-19
As diretrizes adotadas pelo MRE ao longo da pandemia divergiram em parte
de tradicionais parâmetros adotados pela diplomacia brasileira. A Política Externa
Brasileira, historicamente, orienta-se a partir de um eixo de continuidade composto
por princípios como a autonomia decisória, a autodeterminação dos povos e a defesa
do multilateralismo. A concepção da PEB enquanto política de Estado é uma marca
desse processo, formalizada no texto constitucional a partir do artigo IV da
Constituição Federal e de seus princípios que regem as relações internacionais do
Brasil. No entanto, ao longo da gestão Araújo à frente do Itamaraty, a incorporação
de uma ideologia de ultradireita nacionalista e antiglobalista colocou em xeque os
eixos tradicionais da diplomacia do país.
Desse modo, identifica-se uma contradição inerente à incorporação dos
componentes ideológicos vinculados a Ernesto Araújo, que denunciam o globalismo
e as instituições internacionais, e o exercício do cargo de chanceler de um país cujas
tradições diplomáticas advêm do apreço ao multilateralismo e às instituições
internacionais. Soma-se a isso, a necessidade de coordenação e diálogo em
instâncias internacionais em meio a uma pandemia global, que teve na Organização
Mundial da Saúde o principal órgão dedicado a estudar o coronavírus, propor
políticas públicas de modo a combatê-lo e fomentar a corrida pelas vacinas.
Ao longo de 2020, o Brasil cooperou com outros Estados para a repatriação
de seus nacionais e para a importação de insumos médicos essenciais para o
tratamento da Covid-19, bem como para a vacinação da população. No entanto, o
que salta aos olhos são alguns discursos proferidos pelo Ministro de Estado, bem
como ações que destoam do alto padrão previamente estabelecido. São elas: se opor
à quebra de patentes de vacinas para Covid-19, na Organização Mundial do
Comércio; as diversas dissidências com as orientações da Organização Mundial da
Saúde, acusando-a de defender interesses chineses; a decisão de não requisitar a
integridade de sua cota no mecanismo Covax Facility; as controvérsias diplomáticas
com a China, devido ao discurso de que a doença teria sido causada pelo
“comunavírus”.
158
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Na reunião do Grupo de Coordenação Ministerial sobre Covid-19, em 10 de
setembro de 2020, Ernesto Araújo apontou a existência do que chamou de uma
“ideologia sanitariamente correta”, atrelada ao pensamento “politicamente correto”,
que, para ele, inviabilizaria o debate interno sobre a necessidade de confinamento e
que definia um posicionamento claramente pró ou contra o governo a partir da
opinião exercida a respeito do uso da hidroxicloroquina como tratamento precoce
(MRE, 2020k). A difusão do uso do medicamento e as críticas ao trabalho das OIs
foram reforçadas na Reunião Informal Ministerial da Comunidade de Países de
Língua Portuguesa – CPLP, em 28 de setembro de 2020, na qual afirmou que “Não
pode ser a mídia nem nenhum organismo internacional que decidam o que é
verdade.” (MRE, 2020l). A fala de Araújo se opõe às diretrizes posteriormente
adotadas pela OMS, que se pronunciou em março de 2021 sobre a eficácia do
medicamento no tratamento da Covid-19 (CNN BRASIL, 2021b). A própria
Organização havia sido alvo da crítica do ministro, na reunião virtual da Iniciativa
Política Externa e Saúde Global (FPGH), em 03 de setembro de 2020, na qual apesar
de reconhecer seu importante papel, asseverou que “continuamos críticos em relação
à resposta geral à crise”, propondo uma “[...] uma avaliação abrangente, objetiva e
oportuna da resposta internacional à pandemia, a fim de identificar lacunas, falhas e
fragilidades, bem como propor as medidas necessárias para uma reforma.” (MRE,
2020h).
Por seu turno, na abertura do Diálogo Trilateral Brasil-EUA-Japão, em
novembro de 2020, o chanceler expressou sua preocupação com o uso político da
pandemia como ferramenta para um processo de “dominação” internacional a partir
do remodelamento das instituições internacionais, conforme transcreve-se:
Isso é muito mais fundamental agora, com a pandemia de
COVID e todas as suas ameaças e desafios. Claro, essa é uma
questão de saúde acima de tudo, mas ela não deve servir de
pretexto para um tipo errado de remodelação do mundo. Não
deve ser um pretexto para substituir as soberanias nacionais
por algum tipo de esquema burocrático internacional. Não
deve ser um pretexto para moldar as sociedades na direção de
sociedades de controle total. Isso é algo que começa a pairar
sobre nós e que, acredito, devemos abordar. (MRE, 2020m)
Na Cúpula Presidencial do Prosul, de 12 de dezembro, Araújo felicitou os
trabalhos do foro internacional que, “respeitando a soberania dos países participantes
159
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
e provando a agilidade para qual foi concebido [...]”, teria cumprido com seus
objetivos por meio de “resultados práticos e contribuições para as respostas
nacionais à doença” (MRE, 2020n). Por meio desse discurso, é possível depreender
que em sua ótica, o ideal seria que os Estados cooperassem no âmbito internacional,
mas que mantivessem o controle soberano sobre as decisões a serem tomadas, de
forma que as ações adotadas fossem nacionais e não regionais. Ainda no âmbito sulamericano, na reunião do Conselho do Mercado Comum, do Mercosul, realizada em
15 de dezembro, Ernesto Araújo contrapôs a noção de democracia às de
desenvolvimento sustentável e de enfrentamento à Covid-19, dando a entender que a
“perda de liberdade em nome da saúde” poderia dar origem a regimes totalitários,
uma vez que, segundo ele
A ideia de que se necessita promover desenvolvimento
sustentável e enfrentamento à Covid mais do que defender as
liberdades fundamentais e propagar a democracia contraria os
nossos valores e princípios mais profundos, e a rechaçamos.
Se perdermos a liberdade em nome da saúde, não teremos
liberdade nem saúde. Se sacrificarmos a democracia em nome
do desenvolvimento sustentável, não teremos nem democracia,
nem desenvolvimento sustentável, mas uma sociedade de
controle totalitário nas mãos de elites não eleitas. (MRE,
2020o)
No mesmo sentido, na 46ª Sexta Sessão do Conselho de Direitos Humanos da
ONU, em 22 de fevereiro de 2021, o chanceler afirmou mais uma vez que a saúde
não poderia ser uma justificativa para a limitação de liberdades, denunciando que
“Sociedades inteiras estão se habituando à ideia de que é preciso sacrificar a
liberdade em nome da saúde” (MRE, 2021b). Por seu turno, em intervenção por
ocasião da reunião informal do Conselho de Segurança das Nações Unidas relativa
aos 75 anos do fim da 2ª Guerra Mundial, realizada em 8 de maio de 2020, Araújo
fez duras críticas ao multilateralismo, comparando o momento atual com o
totalitarismo dos anos 1940, propondo a liberdade e a soberania como valores
maiores, a serem buscados, além de criticar a atuação da ONU que poderia se
desvirtuar ao realizar suposta violação totalitária da soberania nacional:
Estamos comprometidos a trabalhar de maneira construtiva em fóruns
internacionais. Mas creio que devemos evitar a palavra "multilateralismo" ao falar
de instituições internacionais ou de multilaterais. Palavras terminadas em "ismo"
160
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
normalmente designam ideologias: Fascismo, Nazismo e Comunismo. Não vamos
fazer do "multilateralismo" uma ideologia. O oposto de todas as ideologias não é
outra ideologia. O oposto de todas as ideologias é a liberdade. Note que não dizemos
"liberdadismo". Dizemos liberdade. Portanto, não tornemos o multilateralismo outro
sistema de pensamento que nega a realidade e que tenta impor-se à realidade. Vamos
fazer das instituições multilaterais uma plataforma para trabalhar pela verdade e pela
liberdade.A pandemia do COVID é provavelmente a maior crise desde a Segunda
Guerra Mundial. Não vamos deixar outra forma de totalitarismo emergir
agora, como a que emergiu após a Segunda Guerra Mundial. De fato, uma nova
ordem certamente emergirá desta crise, só não sabemos ainda o formato que
assumirá. (MRE, 2020f, grifo nosso)
Araújo segue, criticando o papel da ONU a partir de seus princípios antiglobalistas:
[...] Nações não são o problema. As nações são os bons moços
nesta foto. Nações, agindo em coordenação, obviamente, por
meio desta ONU e de outros foros. A Organização das
Nações Unidas deve, portanto, ser um espaço de
coordenação entre nações independentes, e não um
instrumento para substituí-las.
Os países aqui reunidos devem fazer uso deste espaço para
identificar os desafios enfrentados atualmente pela
humanidade. Se a Organização das Nações Unidas ignorar
os desafios reais de hoje e, em vez disso, optar por jargões
politicamente corretos, seu papel estará diminuído.
A ONU não deve ser um esforço para encontrar uma base
comum entre liberdade e totalitarismo, e muito menos
para promover o totalitarismo sub-repticiamente.
A liberdade e a democracia devem estar no centro das ações da
ONU. E a fonte da democracia são as pessoas. Pessoas
organizadas nos Estados-nação, com sua soberania, orgulhosas
de si mesmas (MRE, 2020f, grifo nosso).
Posteriormente, o ex-chanceler discursa em prol de concepções nacionalistas:
O Brasil, hoje, coloca-se inequivocamente em favor da
democracia e da soberania. A soberania do povo livre. Não
caiamos no equívoco de vilipendiar aqueles que defendem a
soberania, não desprezemos os que defendem o sentimento
nacional. Sem nações soberanas, não há liberdade. Esse
postulado não deriva da lógica abstrata, e sim da história, do
sacrifício real de milhões de pessoas, da natureza das coisas,
da essência do ser humano. Portanto, o sentimento nacional
161
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
não é o problema do mundo atual. Ao contrário, o problema é
a erosão da soberania, que deixa as nações sujeitas à perda
de liberdade. (MRE, 2020f, grifo nosso)
Representando o Presidente da República, na V Reunião Extraordinária de
Presidentes do PROSUL, de 25 de fevereiro de 2021, o Ministro das Relações
Exteriores realizou uma crítica ao multilateralismo puro, ao passo em que apresentou
o Brasil como defensor do acesso “universal e equitativo” a medicamentos, vacinas e
produtos médicos, conforme trecho de seu discurso:
Ao mesmo tempo, voltando à questão específica da pandemia,
redobramos nossos esforços para garantir o direito à vacinação
em toda a região, como sabemos. Promover o acesso
universal e equitativo a medicamentos, vacinas e outros
produtos médicos seguros, eficazes e acessíveis tem sido
uma prioridade estratégica para o Brasil em sua atuação,
mesmo antes da pandemia, em fóruns internacionais e
regionais. O que fazemos hoje no Brasil é seguir essa
orientação.
Favorecemos a promoção do acesso equitativo às vacinas
para todos os países, especialmente aqueles com menor
desenvolvimento relativo. E nos opomos a qualquer
barreira que impeça esse acesso. [...]
Isso indica que há e deve ser buscada uma complementação
entre as dimensões nacional e multilateral. São dimensões que
não se opõem, na realidade, mas se complementam. Vemos,
por exemplo, um processo profundo, antigo, de integração
multilateral, como a União Europeia, que ainda não conseguiu
vacinar sua população em alta velocidade, como vimos por
aqueles números, e que sofre críticas muito severas de seus
estados-membros e do público em geral na Europa. Isso indica
que o simples conceito de multilateralismo não é suficiente
para que haja eficiência no combate à pandemia.
Multilateralismo não é uma palavra mágica, deve ser
implementado em conexão com as realidades nacionais e
com os esforços nacionais.” (MRE, 2021d, grifo nosso)
Não obstante, o Brasil vinha se posicionando de forma contrária à quebra de
patentes de vacinas de Covid-19, que viria a beneficiar os países de menor
desenvolvimento relativo, em uma ação contrária ao seu histórico papel dentro da
OMC, na qual o país foi um dos principais atores que viabilizaram a quebra da
patente de remédios para o tratamento de AIDS (CHADE, 2021a, 2021b). Essa nova
diretiva do MRE transparece no discurso realizado na videoconferência Ministerial
do Grupo de Ottawa, no âmbito da OMC, em 22 de março de 2021, no qual o
chanceler “[...] destaca a importância de conciliar os direitos de propriedade
162
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
intelectual com as atuais necessidades de saúde pública” (MRE, 2021c). O Brasil
tradicionalmente se apresenta como um país do mundo em desenvolvimento, em
busca de uma distribuição justa dos meios do progresso (Cf. RICUPERO, 2017,
CERVO; BUENO, 2015). Por essa razão, para além da questão das patentes, a
decisão de não utilizar toda a quota a que teria direito na Covax Facility também
foge da prática nacional (CNN BRASIL 2021c).
7 CONCLUSÃO
A pandemia do coronavírus é paradigmática acerca da necessidade de uma
coordenação em âmbito global frente a uma ameaça que não respeita fronteiras,
estados ou ideologias. Se, por um lado, a sociedade internacional, desde meados do
século XX, avançou no estabelecimento de uma ordem internacional – composto por
instituições
e
regimes
internacionais
bastante
robustos
–,
a
conjuntura
contemporânea vem demonstrando os limites e os desafios de se endereçar
problemas coletivos a nível global.
Isso se torna particularmente evidente ao se analisar os componentes
ideológicos que compõem a ultradireita global, evidentes em atores importantes para
a ordem mundial, como os EUA, que estavam sob a liderança de Donald Trump em
meio ao primeiro ano da pandemia, e, também, o Brasil de Jair Bolsonaro. Outrora
um Estado marcado por uma política externa voltada a princípios como a defesa do
multilateralismo, o Brasil sob a gestão de Ernesto Araújo pautou sua inserção
internacional por ideais como o repúdio ao globalismo e ao “politicamente correto”.
Evidenciam-se, desse modo, as contradições evidentes da ideologia marcada
por uma conotação de ultradireita, que parece não ser capaz de superar seu caráter
metapolítico. Os auspícios da realidade, portanto, se impõem perante esse corpo
ideológico, na forma de problemas coletivos e globais, como o da covid-19,
desafiando as retóricas radicais acostumadas a lutas contra inimigos imaginários. As
tentativas de incorporação do leque ideológico de ultradireita às vicissitudes
oriundas da pandemia deram corpo a construções intelectuais como as denúncias
acerca do “totalitarismo dos organismos internacionais”, do “sanitariamente correto”
e
do
“comunavírus”,
desenvolvidas
por
Ernesto
Araújo
e
proferidas,
163
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
recorrentemente, em reuniões e encontros multilaterais ao longo da pandemia. Essas
construções marcaram uma quebra da tradicional política externa brasileira, cuja
vocação sempre foi pautada pela busca de soluções concertadas no âmbito
multilateral e na confiança em organismos internacionais, em especial de vocação
universal, como é o caso das Nações Unidas, (Cf. RICUPERO, 2017, CERVO;
BUENO, 2015).
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA BRASIL. Saída dos Estados Unidos da OMS ocorrerá em julho de
2021. Publicado em 08/07/2020 por Michelle Nichols - Repórter da Reuters - Nova
York. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/202007/saida-dos-estados-unidos-da-oms-ocorrera-em-julho-de-2021
ARAÚJO, Ernesto Henrique Fraga. Chegou o Comunavírus. In: ARAÚJO, Ernesto
Henrique Fraga. Política externa: soberania, democracia e Liberdade. Coletânea
de discursos, artigos e entrevistas do Ministro das Relações Exteriores. Brasília:
FUNAG, 2020.
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171
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A PARADIPLOMACIA: ALTERNATIVA DE
FINANCIAMENTO VIÁVEL PARA AS
POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE?
Gleisse Ribeiro Alves1
Eryck Chaves Tavares2
Helohane Rodrigues Carneiro Pereira
Pedro Carvalho de Holanda Rodrigues
Victor Hugo Xavier dos Santos
Laura Luiza Gonçalves Teixeira
Leticia Rodrigues de Carvalho
Carlos Eduardo Soares
Victor Jak van Erven Sigaud
RESUMO
A recente conjuntura do COVID-19 vem demonstrando que, apesar da
coordenação da governança mundial, países federativos respondem de formas
díspares na implementação das estratégias globais. O Brasil mesmo com uma
política estatal universal e coordenada de saúde pública (SUS) tem sido menos
efetivo na implementação das medidas globais devido à pouca sinergia entre as
diversas dimensões políticas realizadas por cada ente federativo. Verifica-se de
forma cada vez mais crescente a impotência dos Estados em suprir as necessidades
dos indivíduos. O Estado brasileiro não foge a essa regra ao ser muitas vezes omisso
na implementação de políticas públicas capazes de promover de serviços públicos de
saúde a todos. Nesse sentido, a atuação da paradiplomacia pelos entes federados tem
se tornado uma das alternativas viáveis para fazer frente à crescente demanda de
ações para prover os serviços do SUS. Dessa forma, o presente trabalho buscará
num primeiro momento discorrer sobre a falência estatal brasileira em prover do
Direito fundamental à saúde e finalmente identificar e apontar as atuações da
paradiplomacia no enfrentamento ao sub-financiamento da saúde pública no Brasil.
Palavras-chave: Financiamento SUS; Direito fundamental à saúde no Brasil; Ações
da paradiplomacia
1
2
Doctor in International Law (Université Lorraine, France); Law and International Relations Professor
(University Center of Brasília, Brazil); Visiting Professor (Université Lorraine, France). Email:
gleisse@yahoo.com
Membros do grupo de pesquisa sobre Governança Global do CEUB, alunos egressos e graduandos do
Curso de Relações internacionais do CEUB/Brasília.
172
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
1 INTRODUÇÃO
Em janeiro de 2020 o mundo deparou-se com o desafio a ser superado após o
pronunciamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a declaração de
que
surto de COVID-19 constituía uma Emergência de Saúde Pública de
Importância Internacional.
A Pandemia de COVID-19 teve origem em 08/12/2019 na cidade de Wuhan,
localizada na província de Hubei, na China. No início, o ponto em comum era uma
“pneumonia de causa desconhecida” e em todos os casos havia relação com
consumo de frutos do mar e de animais vivos. Em 5 de janeiro de 2020 a OMS é
alertada pela China sobre os 44 casos de uma “pneumonia de causa desconhecida”.
No dia 9 de janeiro 2020 houve a divulgação do código genético do vírus:
coronavírus (SARS-CoV-2). Desde 30 de janeiro de 2020 com a declaração a nível
global de que se tratava de um surto, o mundo tem lutado para combater a pandemia.
Serviços de saúde são cada vez mais demandados e os protocolos de crise não
são suficientemente eficazes para garantir a atuação urgente do enfrentamento da
COVID-19. Para o provimento de tais serviços o Estado necessitou de forma cada
vez mais urgente desenhar e implementar políticas públicas. É importante salientar
que a execução de políticas públicas depende de gastos públicos, logo é no processo
político-jurídico de definição do dispêndio público onde se encontra a gênese das
políticas públicas. É nas leis orçamentárias, nas diretrizes orçamentárias e nos planos
plurianuais, todos de iniciativa exclusiva do Poder Executivo e aprovados pelo Poder
Legislativo, o ponto de partida das políticas públicas. O resultado final do
procedimento é a real prestação de serviços públicos à população.
Ocorre que o Estado Brasileiro, por exemplo, deparou-se com uma pandemia
sem precedentes e que cada vez mais mostra a ineficiência e o sucateamento dos
serviços de saúde tão necessários aos cidadãos. O que se presencia diariamente nos
hospitais ou nos noticiários é a crescente incapacidade Estatal em prover os serviços
de saúde. Alguns pensarão e defenderão que tal crise decorre do grande volume da
demanda por serviços de saúde e que tal crescimento, não se deu somente no Brasil.
Na verdade a crise de saúde no Brasil antecede a pandemia.
173
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
O presente trabalho tem por problema de pesquisa demonstrar como a
paradiplomacia pode ser uma alternativa viável para que o Estado brasileiro possa
superar tal crise e assim buscar financiamentos para o provimento do direito
fundamental à saúde.
Para tanto, utilizar-se-á a seguinte estrutura de análise: primeiramente
demonstrar-se-á o preceito da política estatal brasileira em prover do Direito
fundamental à saúde. Posteriormente, demonstrar-se-á como a COVID-19 aumentou
e a crise estatal brasileira no que se refere à elaboração de políticas públicas
garantidoras do direito fundamental à saúde. Por fim, buscar-se-á, por meio de
exemplos, demonstrar como a Paradiplomacia pode atuar e contribuir para o
enfrentamento da COVID-19 no Brasil.
2 O BRASIL E A POLÍTICA PÚBLICA DE PROMOÇÃO DO
DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
Mesmo que se tenha no Brasil a Constituição Federal como marco da garantia
dos Direitos fundamentais, mister se faz assinalar, a seguir, as mudanças estatais na
promoção de políticas públicas de garantias de direito à saúde.
2.1 Conceito de Direito Fundamental
Direito fundamental é considerado pela doutrina um conceito muitas vezes
ambíguo e de difícil consenso terminológico já que muitas vezes muitas expressões
são utilizadas para representá-lo tais como: direitos humanos fundamentais,
liberdades públicas, direitos individuais, direitos subjetivos públicos. E muitas
dessas expressões aparecem no texto Constitucional brasileiro de 1988, a saber:
direitos humanos (art. 4, inc. II); direitos e garantias fundamentais (título II, y art. 5,
§ 1); direitos e liberdades constitucionais (art. 5, inc. LXXI) e direitos e garantias
individuais (art. 60, § 4, inc. IV). (SARLET, 2019, p. 38, tradução livre).
Para o presente trabalho consideraremos Direito fundamental segundo visão
de MENDES; BRANCO (2020. p. 139-140):
Os direitos fundamentais são pretensões que, em cada
momento histórico, se descobrem a partir da perspectiva do
valor da dignidade humana [...] pois essa é capaz de formular
174
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
limitações ao exercício do poder e assim prevenir o arbítrio e a
injustiça. Ou seja, direitos fundamentais são aqueles direitos
que atendem às exigências do respeito à vida, à liberdade, à
integridade física e íntima de cada ser humano, ao postulado
da igualdade em dignidade de todos os homens e à segurança.
Assim, dependendo do período e do aperfeiçoamento da pessoa humana os
direitos fundamentais tornam-se exigências específicas de cada momento histórico.
Dessa forma, classificar que tipos de direitos são considerados fundamentais torna-se
tarefa árdua e que não se tende à homogeneidade. (MENDES; BRANCO, 2020, p.
139).
Cabe ressaltar, que também confuso é a data do surgimento dos direitos
fundamentais. DIMOULIS (2014, p. 10) salienta que para se detectar a origem de
tais direitos mister se faz observar os três elementos formadores quais sejam: a)
Estado, b) indivíduo e c) texto normativo regulador da relação entre Estado e
indivíduos. Assim, somente com a existência do Estado Moderno passou-se a se
poder falar em “direitos fundamentais”.
Mesmo que se tenha esse marco na existência dos Direitos fundamentais,
mister se faz assinalar que o maior atenção e concretização desses direitos deu-se no
pós Segunda Guerra Mundial quando se teve mudanças estatais na promoção de
políticas públicas e de garantias de direitos sociais no desenvolvimento dos textos
constitucionais e principalmente com a internacionalização desses direitos
fundamentais. Com essa internacionalização deu-se a designação de direitos
humanos.
No Brasil, por exemplo, a Constituição do Império de 1824 no seu artigo 179
elencava os direitos fundamentais. Contudo, esses eram limitados devido à criação
do Poder Moderador concedido ao Imperador. Na Constituição de 1891 também se
tem no artigo 72 o rol dos Direitos Fundamentais com o reconhecimento dos direitos
de reunião e de associação. Demais Constituições como de 1934, 1937, 1946, 1967
e 1969 também apresentavam um rol sistematizado de Direitos Fundamentais.
Grande expressividade a esses direitos fundamentais foi dada na Constituição de
1988 que no Título II regulamenta “Dos direitos e garantias fundamentais”.
Contudo, tais direitos fundamentais estão referenciados em diversas partes do texto
constitucional (DIMOULIS, 2014, p. 24).
175
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Importante ainda comentar que a Constituição de 1988 trouxe por meio das
“cláusulas pétreas” a proteção aos direitos fundamentais. Ou seja, há a limitação do
“poder de reforma” no sentido de impedir que tais direitos sejam abolidos ou
suprimidos.
2.2 A promoção do Direito fundamental à saúde no Brasil
Políticas Públicas são as medidas administrativas a serem realizadas pelo
Estado para se alcançar objetivos específicos conforme explicitado abaixo:
O termo “políticas públicas” é entendido como um conjunto e
programas ou ações governamentais necessárias e suficientes,
integradas e articuladas para a provisão de bens ou serviços à
sociedade, financiadas por recursos orçamentários ou por
benefícios de natureza tributária, creditícia e financeira.
(BRASIL/IPEA et al, 2018, p. 14)
Verificar-se-á nas linhas a seguir a sistemática das etapas que dão ensejo à
formação e execução das políticas públicas. Esses passos são importantes para que
ocorra uma boa elaboração e aplicação de uma política pública. Assim, esta deve
seguir/cumprir algumas etapas quando do seu processo de elaboração, a saber: i)
identificação e definição da agenda pública, ii) formulação e escolha das políticas
públicas, iii) implementação pelo órgão competente, iv) avaliação por mecanismos
contidos na Constituição e nas leis (FONTE, 2013, p. 50).
i) Identificação da agenda pública
Nessa fase se identifica e se define as prioridades e a forma de se alcançar o
objetivo ou, no caso específico, a realização de determinado serviço público. Como
salienta FONTES (2013, p. 50-51), essa agenda depende da percepção estatal sobre
como deve ser tratada determinada demanda social. Mister se faz esclarecer que
muitas vezes essa visão estatal é direcionada seguindo a capacidade de
mobilização/reivindicação da massa pública. Agentes como associações privadas,
sindicatos, mídia, grupos de lobby conseguem muitas vezes influenciar e mesmo
definir a agenda pública.
176
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
ii) Formulação e escolha de políticas públicas
No que se refere à formulação de políticas públicas tem-se a estruturação e
desenho da política. Ou seja, descreve-se como ela será estruturada. Na maioria dos
casos para essa formulação encontra-se limites nos textos legislativos. No caso
específico do Brasil, essa formulação encontra limites no texto constitucional. Os
poderes legislativo e executivo possuem papel fundamental nessa etapa pois
dialogam para que se concretize o passo a passo de como cada etapa será
desenvolvida bem como o orçamento que será destinado para tal feito.
Como salienta FONTE (2013, p.53), o agente público deve manter o
compromisso com os critérios sociais e não individuais quando da escolha e
formulação da política pública.
iii) Implementação
Como implementação entende-se a realização concreta dos planos
estabelecidos nas etapas anteriores. Muitas vezes para a concretização e
implementação da política necessita-se da estreita relação entre todos os envolvidos:
agentes públicos, entes privados, entidades financiadoras, sociedade civil e demais
atores envolvidos para a boa realização da política pública.
Convém, por oportuno, ressaltar que em todas as fases da implementação há a
necessidade da análise cuidadosa da medida a ser aplicada para verificação da
coerência existente entre o ajustamento dos objetivos da política pública com a
realidade social. Como salienta FONTE (2013, p. 57), a não realização dessa análise
é um dos pontos que muitas vezes explicam o insucesso das políticas públicas.
iv) Avaliação
Avaliar uma política pública significa analisar a eficácia ou não da execução
dos objetivos fixados no projeto inicial da política. Ou seja:
A avaliação deve ser um processo objetivo de exame e
diagnóstico da política pública sob análise. Devem ser
considerados, dentre outros aspectos, a forma como a política
está sendo implementada, seus efeitos desejados e adversos, os
principais stakeholders, e a forma como os recursos públicos
177
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
estão sendo utilizados. [...]. A avaliação deve ser conduzida
preferencialmente por outros órgãos independentes, não
diretamente responsáveis pela execução da política pública,
como os órgãos centrais (Casa Civil; Ministério da Fazenda –
MF; Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão –
MP; e o Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da
União – CGU), o Ipea e o Tribunal de Contas da União
(TCU), bem como pelas universidades e fundações privadas,
mediante interação com o gestor responsável pela política
pública. (BRASIL/IPEA et al, 2018, p. 14)
Nosso texto constitucional estabelece alguns mecanismos legais de avaliação
de políticas públicas: são quatro os mecanismos de avaliação de políticas públicas,
cujos parâmetros de controle são distintos e envolvem diversas esferas, a saber: i)
Político-eleitoral, ii) Administrativo-interno, iii) Legislativo, iv) Judicial (FONTE,
2013, p. 59).
O autor FONTE (2013, p. 59-65) explica que o método Político-eleitoral
permite que cidadãos julguem as entidades públicas e seus planos de ação. O
processo de avaliação por via Administrativo-interno significa que avaliação é
realizada pelos próprios mecanismos internos da Administração pública. O
mecanismo de avaliação por via legislativa é o controle de políticas públicas
exercido pelo Poder Legislativo e pelos Tribunais de Contas. Por fim, o método de
avaliação via judiciário ocorre quando este é provocado para analisar a
constitucionalidade/inconstitucionalidade de políticas públicas.
A partir dessa descrição da avaliação das políticas públicas, percebe-se que é
comum nas democracias contemporâneas o envolvimento dos três poderes
distribuídos de forma equitativa e equilibrada para a efetivação de uma política
pública.
No que que refere à promoção do Direito fundamental à saúde, MENDES
(2020, p. 742) cita que a Constituição Brasileira de 1988 foi a primeira a consagrar a
questão da saúde como direito fundamental. Ou seja, ela estabelece que a saúde está
no rol dos direitos de prestação em sentido amplo.
HÄBERLE (2019, 20-21)
sintetiza que esse direito prestacional é a relação entre o cidadão e o Estado.
Acrescenta que é fundamental se deixar em primeiro plano que essa interação seja
permeada de planejamento, de comunicação, de cooperação, de participação.
178
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
O Brasil optou por garantir ao povo um acesso universal, gratuito aos
serviços de saúde que precisam ser prestados com equidade e integralidade.
As ações e serviços de saúde no Brasil3 são regulados por normas
infraconstitucionais que disciplinam o funcionamento do Sistema Único de Saúde
(SUS): Lei nº 8.080/90 e seus regulamentos e diversas diretrizes 4. O SUS é
constituído pelo conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e
instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e
indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público. (art. 4, Lei 8080/90).
Conforme explica REIS (2012, p. 8), as disposições
infraconstitucionais que instituíram o SUS, a Lei nº 8.080 de 19/9/90 detalha
a organização, as atribuições de cada ente da Federação (federal, estadual e
municipal), a gestão financeira e o orçamento bem como a participação
complementar do sistema privado. Já a Lei nº 8.142 de 28/12/90 disciplina as
transferências intergovernamentais de recursos financeiros, a participação da
comunidade na gestão do SUS. Também, instituiu os Conselhos de Saúde.
REIS (2012, p.8) ressalta que ao longo dos anos várias outras políticas foram
sendo implementadas para o aperfeiçoamento do SUS.
3
Sabe salientar que o SUS é a concretização da Reforma Sanitária iniciada no Brasil na década de 70.
“Reforma Sanitária” é a designação que se dá à plataforma política defendida pelo “Movimento
Sanitário Brasileiro”, que representou uma ampla articulação de atores sociais, incluindo membros dos
departamentos de medicina preventiva de várias universidades, entidades como o Centro Brasileiro de
Estudos (CEBES), fundado em 1978, movimentos sociais de luta por melhores condições de saúde,
autores e pesquisadores, militantes do movimento pela redemocratização do país nos anos 1970 e 1980
e parlamentares que faziam a crítica às políticas de saúde existentes no Brasil. A “Reforma Sanitária”
incluía em sua pauta uma nova organização do sistema de saúde no país – com várias características
que o SUS afinal adotou –, em particular uma concepção ampliada dos determinantes sociais do
processo saúde-doença e a criação de um sistema público de assistência à saúde, gratuito com garantia
de acesso universal do cuidado para todos os brasileiros. REIS (2012 p. 3).
4
Como exemplo vale citar algumas Diretrizes do SUS:
• Diretrizes para a Atenção Psicossocial: Portaria MS/GM no 678, de 30/3/2006
• Diretrizes nacionais para o saneamento básico: Lei no 11.445, de 05/01/2007
• Diretrizes Nacionais para a Atenção à Saúde das Pessoas Ostomizadas (instituídas pela Portaria
MS/SAS no 400,de 16/11/2009)
• Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal, 2004
• Diretrizes para execução e financiamento das ações de Vigilância em Saúde pela União, Estados,
Distrito Federal. e Municípios. Portaria no 3.252/2009
• Diretrizes para a Programação Pactuada e Integrada da Assistência à Saúde
• Diretrizes para a Implantação de Complexos Reguladores
• Diretrizes para a implementação do Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a
Saúde (PROFAPS). Portaria no 3.189/2009
• Diretrizes para Implementação do Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas, 2006 [...]
179
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Contudo, a “Política Nacional de Promoção de Saúde (PNPS) só entrou em
vigor em 2006 e teve o Conselho Nacional de Saúde em 2014. Dessa forma, a
continuidade dos programas foi mantida e o Brasil passou cada vez mais a ser
referência do cuidado à saúde nos fóruns internacionais:
A redução da prevalência do tabagismo em 30% constitui meta
do Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das
Doenças Crônicas Não Transmissíveis no Brasil: 2011 –
20229, do Plano Global de DCNT 2015-2025 e da Agenda
2030, dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. O
Brasil foi considerado referência global pelo êxito alcançado e
recebeu prêmios da Organização Mundial de Saúde (OMS),
Fundação Bloomberg e Organização Pan-americana de Saúde
(OPAS). As medidas implementadas estão em sintonia com as
boas práticas preconizadas pela OMS. (MALTA, 2018)
Ocorre que, em 2015, os acontecimentos políticos no Brasil deixaram
cicatrizes no processo de reformas ministeriais no âmbito da saúde. Durante governo
da Presidente Dilma Rousseff houve mudança na gestão do Ministério da Saúde e
publicação de várias portarias ministeriais 958 e 959, de 10 de maio de 2016 que
trouxeram mais instabilidade à gestão de saúde no Brasil. Com o impeachment da
Presidente em agosto de 2016, sendo o cargo assumido pelo então Vice-Presidente
da República, Michel Temer, a crise na saúde seguiu a instabilidade políticoinstitucional brasileira.
Em 2017, em meio à crise política- econômica do Brasil, entra em vigor o
Plano Nacional de Atenção Básica (PNAB 2017 e como salienta ALMEIDA (2018)
“ele foi fruto da arena de disputas travadas no campo da gestão interfederativa, em
que prevaleceram os interesses de parte dos atores, ao passo que algumas inovações
defendidas tecnicamente foram incorporadas à Política de forma tímida e
superficial”.
Ocorre que para a implementação das políticas preconizadas no PNAB 2017
havia a necessidade de grande indução financeira federal e o que houve na prática
foi redução desses insumos econômicos com a entrada em vigor da Emenda
Constitucional 95/20165.
5
Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá
outras providências. EC limitou os gastos governamentais até 2036 como única medida capaz de
retornar o crescimento da economia.
180
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Dessa forma, verifica-se diversos impasses da política estatal brasileira préCOVID-19 em prover do Direito fundamental à saúde. As políticas de destaque
realizadas pelo Brasil em crises sanitárias anteriores como: “a ação coordenada de
gestão, ao dar resposta à Emergência de Saúde Pública Internacional diante do vírus
Zika e sua relação com surto de microcefalia; As ações de prevenção/controle das
arboviroses (dengue, chikungunya), influenza, H1N1 e, mais recentemente,
sarampo” (ARAÚJO 2020) não foram suficientes para garantir uma melhor gestão
da pandemia COVID-19 como veremos a seguir.
2.3 A Constituição Brasileira e os investimentos mínimos
obrigatórios destinados à saúde
Convém evidenciar que o constituinte brasileiro positivou o Direito à saúde
como um direito fundamental. Além dessa preocupação em dispor os direitos sociais
como
garantia
fundamental,
também
estabeleceu
constitucionalmente
os
investimentos mínimos nas áreas de educação e saúde:
Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a
sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei,
mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes
contribuições sociais. [...]
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma
rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema
único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de
governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades
preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade. [...]
§ 1º O sistema único de saúde será financiado, nos termos do
art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
além de outras fontes.
§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde
recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais
calculados sobre.
181
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
I - no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo
exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15%
(quinze por cento);
II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da
arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos
recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e
inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos
respectivos Municípios
III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto
da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos
recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e §
3º.
§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada
cinco anos, estabelecerá:
I - os percentuais de que tratam os incisos II e III do § 2º;
[Brasil. Constituição Federal 1988]
Importante ainda acrescentar que esses dispositivos constitucionais foram
regulamentados/alterados por diversas legislações, a saber:
Lei 8080 de 19 de setembro de 1990: Dispõe sobre as
condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde,
a organização e o funcionamento dos serviços;
Lei 8142 de 28 de dezembro de 1990: Dispõe sobre a
participação da comunidade na gestão do Sistema Único de
Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de
recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências.
Vale lembrar que esses investimentos mínimos estão delineados no sistema
orçamentário. A Constituição brasileira definiu que todo o ciclo orçamentário
(elaboração, apreciação legislativa, execução, controle e avaliação) terá a
participação do equilíbrio de forças estabelecido entre os poderes Executivo e
Legislativo (OLIVEIRA E FERREIRA, 2017).
Como resultado espera-se que mais do que um jogo de poder, o orçamento
seja um mecanismo capaz de promover a concretização dos direitos fundamentais.
Como bem salienta SANTOS e GAPARINI (2020, p. 381) o Presidente da
República tem o papel de apresentar seu plano de governo e o Congresso Nacional o
aperfeiçoará no momento da apreciação podendo modificá-lo por meio de emendas
parlamentares.
Importante acrescentar que nesse processo de apreciação, a
propositura de emendas não pode criar despesas e sim tão somente realocá-las.
182
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Assim cada Poder tem papel específico e complementar no que se refere à
elaboração no processo de decisão orçamentária:
As Casas Legislativas devem apreciar as leis orçamentarias
(PPA, LDO e LOA), autorizar os créditos adicionais, deliberar
sobre medidas provisórias, controlar e fiscalizar a atuação do
governo. Além disso, é vedado ao Executivo atuar em diversas
frentes sem a participação do Congresso, a exemplo do que
dispõe o art. 167 da Carta de 1988. Somando-se a isso,
conflitos a esse respeito estão sujeitos ao controle
jurisdicional. (SANTOS e GAPARINI 2020, p. 381)
Ademais, cabe frisar que o planejamento orçamentário definido no art. 165 da
Constituição brasileira estabelece três espécies de leis orçamentárias: Plano
Plurianual (PPA); Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual
(LOA). HARADA (2000) explica que o PPA estabelece diretrizes, objetivos e metas
da administração pública federal, para período superior a um ano; A LDO, nos
termos do § 2º do art. 165, “compreenderá as metas e prioridades da administração
pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro
subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as
alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências
financeiras oficiais de fomento”. Por fim, a LOA é aquela que abarca o orçamento
fiscal referente aos três Poderes da União, fundos, órgãos e entidades da
administração direta e indireta, fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público,
além do orçamento de investimentos das empresas estatais (§ 5º do art. 165 da CF);
Assim, nesse ciclo orçamentário os poderes Legislativo e Executivo devem
atuar de forma complementar para a aprovação da proposta orçamentária. Ocorre
que no Brasil esse processo passou a ser conhecido como presidencialismo de
coalisão. Como salienta SANTOS e GAPARINI (2020, p. 340) o “Presidente da
República faz alianças com diversos partidos, a fim de obter maioria no Congresso e
aprovar suas propostas”. Esse sistema favorece a governabilidade mas ao mesmo
tempo induz o excesso de barganhas que muitas vezes não viabiliza a eficiência de
ações públicas.
Com a finalidade de se proporcionar a governabilidade e um melhor
gerenciamento do processo legislativo orçamentário, o Executivo tem a iniciativa
das leis orçamentárias que são apreciadas pelas Casas do Congresso (om discussão
183
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
parlamentar, emendas, votação, aprovação, veto, sanção). Cabe salientar que nos
anos de 1990 a 1993, antes da aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias,
definiu-se que 30%, no mínimo, do orçamento da seguridade social seria destinado
ao setor de saúde. Contudo, esse percentual nunca foi cumprido! (MARTINIANO,
C. et al, 2011, p. 90).
Ao longo dos anos o SUS foi marcado por um constante declínio no
financiamento de suas atividades.
Apresenta-se na Tabela 1 abaixo os investimentos em serviços públicos de
saúde em alguns países da OCDE. Percebe-se há uma média de variação de
aplicação acima de 5% do PIB dos países. A Colômbia, por exemplo, há uma média
de 7% do PIB destinado para financiamento dos serviços de saúde. O Chile tem tido
aplicações crescentes no sistema de saúde. Quando observamos o Brasil o valor é
inferior a 5% !6
Tabela 1 - Aplicação PIB (%) serviços públicos de saúde
Fonte: https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=SHA&lang=fr
Muitas propostas surgiram para se tentar obter a alocação de recursos para a
área da saúde:
Propostas de Emendas Constitucionais chegaram ao
Congresso Nacional em 1999. Uma por iniciativa do Deputado
6
Brasil aplicou 3,8% do PIB em saúde pública em 2016. Fonte: https://www.conjur.com.br/2021-set30/stf-fixa-regra-pagamento-servico-hospitalar-ordem-judicial
184
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Chafick Farah (PPR/SP) que propôs que a União destinasse à
saúde 18% de toda sua receita de impostos e contribuições. A
outra propositura, de autoria dos Deputados Waldir Pires
(PT/BA) e Eduardo Jorge (PT/SP), reitera a destinação dos
30% do OSS para o setor saúde, e ainda 10% da receita de
impostos do Tesouro Nacional, o que deveria ser seguido
também pelas demais esferas de governo. Ambas as propostas
são modestas em relação ao comprometimento do PIB, já que
os recursos advindos da primeira equivalem a 1,8% e a
segunda a 2,66% do PIB (MARTINIANO, C. et al, 2011, p.
96).
Dessa forma, por meio de proposições de Emendas à Constituição tem-se
buscado a legalidade e o estabelecimento de vinculação de recursos para a saúde:
- Somente após seis anos, desde a apresentação da PEC Nº.
169 na Câmara de Deputados, pelos Deputados Eduardo Jorge
e Waldir Pires, em 1993, e sua aglutinação com a PEC Nº. 86,
de autoria do Deputado Carlos Mosconi, em 1995, é aprovada
a Emenda Constitucional Nº. 29 (EC Nº. 29), em 13/09/2000,
que vincula recursos para a saúde nas três esferas de governo,
de forma progressiva até o ano de 2004 e estabelece
percentuais mínimos de participação das receitas dos estados e
dos municípios em 7%, a partir do ano de sua implantação. No
caso dos estados e municípios, a destinação deveria crescer
anualmente até atingir de 12 e 15 %, respectivamente, do
produto da arrecadação dos impostos e transferências
constitucionais;
- No ano de 2007, houve um bloqueio de R$ 16,4 bilhões, do
que estava previsto no Orçamento Geral da União. Desta verba
contingenciada, 46% correspondia à área social. As despesas
para as políticas sociais (saúde, assistência social, educação,
saneamento, entre outras) estavam previstas em R$ 65,1
bilhões e passaram a ser R$ 57,4 bilhões. O principal corte foi
no Ministério da Saúde, que teve um orçamento diminuído de
R$ 40,6 bilhões para R$ 34,8 bilhões.
O controle e acompanhamento do cumprimento da aplicação dos recursos em
ações e serviços de saúde são gerenciados pelo SIOPS7 (Sistema de Informações
sobre Orçamentos Públicos em Saúde). Desde sua criação em 2000, verifica-se que o
mínimo constitucional a ser investido em políticas de saúde ainda é um desafio a ser
perseguido (MARTINIANO, C. et al, 2011, p. 106).
7
O SIOPS é o sistema informatizado, de alimentação obrigatória e acesso público, operacionalizado pelo
Ministério da Saúde, instituído para coleta, recuperação, processamento, armazenamento, organização,
e disponibilização de informações referentes às receitas totais e às despesa
s com saúde dos orçamentos públicos em saúde. O sistema possibilita o acompanhamento e
monitoramento da aplicação de recursos em saúde, no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e
Municípios, sem prejuízo das atribuições próprias dos Poderes Legislativos e dos Tribunais de Contas.
Fonte: http://antigo.saude.gov.br/repasses-financeiros/siops
185
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Além da EC n. 29 de 2000, SANTOS e GAPARINI (2020, p. 365) explicam
que outras Emendas constitucionais foram promulgadas: EC n. 86 de 2015; EC n.
100 de 2019; EC n. 105 de 2019. A Emenda Constitucional n. 86 de 2015, por
exemplo, que instituiu montantes obrigatórios de execução orçamentária para a área
de saúde tendo como base de cálculo a Receita Corrente Líquida (RCL) do ano
anterior.
Em resumo, embora hoje se tenha o preceito constitucional de aplicação de
recursos mínimos, o relatório da OCDE “Relatório Econômico para o Brasil – maio
2021” aponta que o gasto com saúde representa 4,7% do PIB do Brasil, percentual
que deve ser elevado, até 2060, para 12% do PIB. (OCDE, 2021).
É inegável, conforme explicita CAVALCANTE (2018) o SUS é um dos
maiores sistemas públicos de saúde do mundo: a assistência do SUS atinge milhões
de pessoas, desde a assistência básica e preventiva até tratamentos que envolvem
complexidade tecnológica média e alta, inclusive com células-tronco.
Embora, com toda a capilaridade, a pandemia COVID-19 tem ressaltado os
pontos frágeis do SUS e acima de tudo tem apontado as limitações presentes no
federalismo brasileiro, pontos que serão abordados nos tópicos a seguir.
3 A PARADIPLOMACIA: ALTERNATIVA VIÁVEL PARA A
EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA DO SUS
A crise estatal brasileira vai além de problemas de saúde pública, há cada vez
mais no país uma crise multidimensional e sistêmica. Crise esta que não foi iniciada
pelo governo atual do Presidente Jair Bolsonaro e nem com pandemia. Muitos
especialistas (DWECK; MORETTI;
MELO 2021) descrevem que a pandemia
COVID-19 no Brasil veio a aprofundar mais ainda a crise econômica (se arrasta no
Brasil desde 2014), institucional (há uma desintegração política). Desde a
Constituição de 1988 tenta-se consolidar a democracia e o fortalecimento das
instituições públicas e sanitárias (Fiocruz explica que Covid-19 é a maior crise
sanitária e hospitalar que o Brasil já enfrentou8).
8
Fonte:
https://drauziovarella.uol.com.br/coronavirus/covid-19-e-a-maior-crise-sanitaria-e-hospitalarque-o-brasil-ja-enfrentou/
186
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A pandemia COVID-19 tem acentuado de forma crescente as incapacidades
do Estado em lidar com crises globais. Percebe-se, nessas crises globais, que o
Estado de forma unitária não dispõe de instrumentos capazes de controlar e mesmo
mitigar as consequências e intervenções da crise em outros setores tais como o
econômico, político, social.
Nem mesmo a concertação internacional foi capaz de gerenciar todas as
ramificações da pandemia COVID-19. Dessa maneira, pode-se assistir à atuação de
agentes públicos ou privados que tentam propor, almejam implementar ações
possíveis para o enfrentamento da pandemia.
3.1 As ações de paradiplomacia desenvolvidas pelos entes
subnacionais
A complexidade e o crescimento das necessidades dos entes subnacionais
fizeram com que o Estado relativizasse sua soberania nacional e com esse processo
deu-se a criação do fenômeno conhecido como Paradiplomacia. KUZNETSOV
(2014) conceitua Paradiplomacia como “uma forma de cooperação desenhada por
meio de ações auto-sustentadas entre governos regionais e atores governamentais e
não governamentais que buscam alcançar benefícios econômicos, culturais, políticos
ou quaisquer outros”. Esse fenômeno proporcionou a inserção de novos atores no
âmbito das Relações Internacionais.
Conforme salienta VARELLA (2019) a soberania estatal tem sido cada vez
mais relativizada ao longo dos anos. A paradiplomacia tem sido um dos mecanismos
que proporcionou essa relativização. Cada vez mais autores demonstram que a
paradiplomacia é uma maneira de se atingir a boa governança [...] e um
desenvolvimento de políticas públicas capaz de solucionar problemas e de atingir
bons resultados sem, contudo, se excluir por completo a ação Estatal (ALDECOA,
1999).
Os primeiros estudos na área datam da década de 70 e a análise deu-se por
meio dos casos práticos existentes na América do Norte, principalmente em Quebec
e posteriormente no caso no federalismo Norte-Americano. Estudos mais detalhados
sobre Paradiplomacia datam dos anos 80 quando o tema passou a ter ramificações
187
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
além América do Norte, e começou também a ser estudado na América Latina e na
Ásia. Na década de 90, com vários acontecimentos mudando a política mundial,
como a queda do muro de Berlin, o fim da URSS e a criação da União Europeia,
aumentou-se o interesse no estudo do tema na Europa.
Os anos 90 ficaram marcado segundo o autor Alexander (2015) como da
expansão global dos estudos paradiplomáticos e de seus respectivos casos de estudo.
O cenário académico desde os anos 70 até meados dos anos 90 foi dominado pela
agremiação norte americana, com a ressalva de alguns teóricos canadenses, não só a
concentração dos pesquisadores eram dessas regiões citadas como os estudos de
casos de regiões fora da América do Norte eram escritos pelos mesmos
pesquisadores e não por teóricos locais.
Segundo Alexander (2015), ao longo dos anos 90 essa realidade passou a
mudar com o aparecimento de estudos feitos por pesquisadores sobre os casos
regionais europeus. Esta realidade se deve muito pela mudança política global e os
efeitos catalisadores oriundos dos efeitos da globalização e da regionalização.
A atividade subnacional começou a ganhar atenção da comunidade
internacional entre 1980 e 1990, nessa época foram consolidadas entidades
subnacionais europeias, muito por conta dos efeitos políticos e económicos da
globalização e pela melhora da integração europeia (aqui entra dentro do fenômeno
“novo regionalismo”). Essa importante independência ganha pelos membros locais
europeus foi um dos motivos desse crescimento acadêmico dessa década
(TAVARES, 2016).
O pesquisador Alvarez (2020), chama atenção para o fato de que os estudos
eram focalizados na Europa e nos Estados Unidos, visto que, a maioria dos países da
América Latina não despertava interesse dos estudiosos porque eles não
consideravam que os governos locais fossem capazes e pudessem realizar uma
atividade paradiplomática, considerando que eles não proviam de grande autonomia
política até os anos 90.
Os governos não-centrais latino americanos buscavam ter o mesmo sucesso
que os do eixo americano-europeu e assim incitar pesquisas sobre o tema na região,
porém, o aumento das tensões nas regiões de fronteira além das políticas de
188
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
segurança e defesa dominantes na época dos anos 80 e 90 frearam essa intenção de
avanço nos estudos (ALVAREZ,2020).
Cabe salientar, ainda, que na Europa a paradiplomacia é mais observada sob
o viés do processo de regionalização que ocorre em todo o espaço europeu e não
como um tema voltado para a questão do sistema federativo como é comumente
interpretado nos EUA ou no Canadá.
TAVARES (2016) cita, por exemplo, o caso da Califórnia e suas atividades
internacionais capazes de captar a atenção de várias iniciativas estrangeiras de
financiamento de suas ações. Há alguns estudos que buscam demonstrar quais os
fatores que têm contribuído à expansão das atividades internacionais dos atores
subnacionais. ALDECOA (1999) detectou que as atividades internacionais dos
governos subnacionais estão ligadas ao desenvolvimento econômico e a questões
como o ambiente, recursos naturais, desenvolvimento sustentável, segurança,
cultura, educação, ciência e tecnologia. Dessa forma, a paradiplomacia tem
consistido em uma forma de governança (ROSENAU, 2006) capaz de solucionar as
ausências estatais. LECOURS (2002) ressalta, no entanto, que os Estados buscam
uma boa administração da paradiplomacia para se evitar a desagregação das regiões
subnacionais e formação de estados independentes.
A
pandemia
da
COVID-19
apresenta
desafios
sem
precedentes
principalmente no que se refere à necessidade de ações conjuntas e imediatas.
Autores (PHELAN, A. L. e KATZ, R, 2020) relatam que o mundo enfrenta a
pandemia mais grave já vivida em amplitude global. As desigualdades geram
impactos diferentes das políticas de resposta, e estas exacerbam as desigualdades. O
número de pacientes doentes por causa do surto, colapsa os Sistemas de saúde, e se
estende para outros setores da sociedade. Essa realidade apresentou ao mundo
desafios cruciais a serem superados tais como a coordenação das lideranças
existentes em nível mundial e nacional. Essa cooperação tem exigido ampla
colaboração e coordenação dos vários indivíduos e organizações envolvidos.
Estudos (WEIBLE, 2020) demonstram que as respostas acontecem em dois
níveis: um Estratégico e outro Operacional, sendo respectivamente realizadas por
líderes políticos-administrativos e profissionais da área da saúde. Alguns exemplos
189
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
do que vem acontecendo nos países ilustram alguns fatores que influenciam na
realização das ações necessárias para combate a pandemia tais como: falhas de
comunicação, valores diferenciados presentes em cada sociedade, fragilidade de
instituições estatais, visões dispares presentes nas lideranças, políticas, econômicas e
científicas. Esses fatores presentes em maior ou menor grau podem minar os
esforços para se obter uma resposta coletiva à crise.
A colaboração internacional intensificou-se e o mundo tem buscado combater
a pandemia da COVID-19 por meio da governança global. Percebe-se diversas
estratégias orientadas para fazer frente aos desafios sem precedentes. Alguns autores
salientam (LECOURS, 2002; KUZNETSOV, 2014) que uma das medidas é a
coordenação de uma rede global de atores: sejam eles estatais, privados ou
instituições internacionais. Esse arranjo de governança permite a participação de
diversos atores que buscam desenvolver ações políticas dirigidas pontualmente para
o combate da pandemia da COVID-19.
Diante dos desafios colocados pela pandemia, a chamada Diplomacia de
Saúde Global e a “Paradiplomacia" tornaram-se ferramentas essenciais frente ao
cenário encontrado, especialmente para atores não-estatais e subnacionais. Ao passo
que, a pandemia tomava maiores proporções e os países se encontravam em uma
crise sanitária mais profunda, as mudanças geopolíticas pareciam nunca ter estado
tão presentes no dia a dia dos cidadãos como um todo.
Percebe-se que apesar da governança mundial exercida pela OMS no
combate à COVID-19, países federativos respondem de formas distintas quando da
implementação das estratégias recomendadas pela OMS. No Brasil, por exemplo, as
políticas públicas foram formuladas tanto no âmbito federal como nos âmbitos
estaduais e municipais. Cabe citar por exemplo a medida federal tomada desde
fevereiro 2020 para combate à pandemia (Lei n° 13.979 de 6 de fevereiro de 2020)
que foi sucedida por diversas outras regulamentações seja o âmbito federal ou
estadual.
Contudo, tais regulamentações não foram suficientes para garantir a
assimetria entre os entes federados e a instabilidade e falta de respostas coordenadas
trouxe grave instabilidade e dificuldade em estabelecer respostas coordenadas para
190
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
enfrentamento do vírus. A combinação dessas circunstâncias atípicas permitiu ver a
crescente prática da Paradiplomacia no país, como foi o caso do governo do
Maranhão9 e de tantas outras unidades subnacionais.
Mesmo diante do esforço dos Estados e municípios em conseguir ajuda
internacional, somente no dia 10 de março de 2021 foi sancionada a Lei nº 14.125 de
10/03/2021, que permitiu ao setor privado, municípios e aos estados a compra de
imunizantes permitindo maior entrada de vacinas de combate à Covid-19 no país.
Assim, a lei concedeu segurança jurídica para que laboratórios internacionais
pudessem ser contratados para o fornecimento de produtos, equipamentos
diretamente pelos entes da federação, ficando a esses também a responsabilidade em
responder pelos atos contratados sem que essa obrigação recaísse sobre a União.
A lei acima citada, ainda estabelece sobre vacinas com registro ou
autorização temporária de uso no Brasil, desde que sejam validadas pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Tais vacinas ainda deveriam, segundo a
lei, serem doadas de forma integral ao Sistema Único de Saúde (SUS), durante o
tempo em que os grupos prioritários estivessem sendo vacinados, depois disso o
setor privado poderia reter metade das vacinas que adquiridas, e a outra parte sendo
enviada ao SUS. Estados e municípios ainda devem ter um seguro privado como
garantia contra eventuais riscos das condições colocadas pelos fornecedores, como
Pfizer/BioNTech e Janssen.
No entanto, o presidente da república ao sancionar a lei, vetou que os
municípios e estados comprassem vacinas de forma suplementar, independente se
fossem com recurso federal ou não, caso descumprissem o Plano Nacional de
Imunização (PNI) ou se a União não conseguisse garantir uma cobertura
imunológica adequada. Os motivos apresentados para tal veto, foi o de haver outra
lei que sobre o mesmo o assunto, com a justificativa de evitar despesas adicionais à
9
O Nordeste já vinha se destacando em questões paradiplomáticas desde 2019, com a criação do
Consórcio do Nordeste : uma iniciativa que visava atrair investimentos e utilizar projetos de forma
integrada. O consórcio foi formado por nove das vinte e sete unidades da federação brasileira. Vários
eram os objetivos: a) realização de compras conjuntas/ compartilhadas; b) promoção da integração
regional por meio da articulação e implementação de políticas públicas integradas; c) ampliação e
modernização da infraestrutura de exploração dos recursos naturais da região; d) atração de
investimentos internos e externos para região Nordeste; etc. e) modernizar a gestão dos Estados
Membros e promover parcerias com o setor privado; etc.
191
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
União. O governo federal vetou também a obrigatoriedade de o Ministério da Saúde
atualizar, no prazo de 48 horas, os painéis de informação das vacinas adquiridas e
aplicadas pelo setor privado. Sob o pretexto de que a Constituição Federal só
permite por meio de um projeto de lei do presidente da República.
Com esses fatos podemos entender como ausência de uma ação centralizada,
e quando a mesma aconteceu foi de modo tardio, do Governo Federal para atuação
no combate à Covid-19, deu espaço para que os entes federativos pudessem buscar
ajuda internacional que estava à disposição.
Nesse sentido, apresentamos algumas ações de paradiplomacia, a saber:
3.1.1 Paradiplomacia e o caso do Maranhão
O Estado do Maranhão, por exemplo, negociou diretamente com a China a
compra de respiradores e máscaras de proteção. Assim, o Estado recebeu em abril
de 2020 da China 107 respiradores e 200 mil máscaras. A carga fez o trajeto até o
aeroporto de Guarulhos-SP e depois foi fretado um transporte até chegar à São Luís.
O governador do Maranhão despachou equipamentos médicos para a Etiópia. Ao
desembarcar em São Paulo, a mercadoria foi embarcada diretamente para o
Maranhão só onde poderia passar pelos trâmites da Receita Federal, evitando assim
que a mercadoria ficasse em São Paulo sob ordem do Governo Federal. Tal
estratégia foi organizada para se evitar a apreensão da compra pelo Ministério da
Saúde, que estava centralizando os insumos e acabou por apreender equipamentos
comprados pelo Estado de Santa Catarina.
“A ‘operação de guerra’ maranhense foi montada após três
tentativas frustradas do governo estadual para comprar
respiradores de uso em cuidados hospitalares intensivos; a
logística para transportar 107 respiradores e 200 mil máscaras,
ao custo de R$ 6 milhões doados por empresários locais,
envolveu 30 pessoas.” (ALVARENGA, 2020)
Sob a liderança de Flavio Dino (PCdoB), o governo local optou por
descentralizar a saúde e dividir o estado em 18 sub-regiões antes da pandemia. Cada
uma dessas áreas possuía pelo menos um hospital administrado pelo estado, distante
até 70 quilômetros da cidade em que está localizado. Portanto, São Luís, a capital,
192
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
não correria o risco de colapsar devido à chegada de pacientes do interior, assim
como aconteceu em Manaus. Dino também transformou alguns hospitais de
campanha em instalações permanentes e usou recursos adicionais do Governo
Federal para expandir os centros de enfermagem existentes ou concluir projetos em
andamento. E assim o Maranhão, antes visto como o estado mais pobre da
federação, conseguiu surpreender com a menor taxa de óbitos durante a pandemia
(EDOARDO GHIROTTO e CASTRO 2021)
3.1.2 Paradiplomacia e o caso do Estado Amazonas
No Amazonas existem vários motivos que justifiquem, desde antes da
pandemia, já possuir um comportamento voltado para o cenário internacional, um
desses motivos pode ser demostrado por suas questões de fronteiras, de
desenvolvimento do Polo Industrial de Manaus e por outros motivos,
proporcionando um ambiente de constituição da Secretaria Adjuntas de Relações
Internacionais (SEARI). Essa Secretaria tem o objetivo de dar tecnicidade,
responsabilidade e legalidade para atuação do estado no ambiente internacional. Ela
que presta auxílio ao Governador à outras secretarias, em temas que sejam de
interesse no meio internacional, sejam elas advindas de instituições governamentais
ou da sociedade civil, ou ainda da iniciativa privada.
As diversas articulações realizadas pelo o Estado do Amazonas surtiram
efeitos positivos: houve ajuda do Conselho Federal da OAB e do Comitê de Crise
do Congresso Nacional, da Embaixada da China e do Instituto Sociocultural
Brasil/China (Ibrachina). Com isto conseguiram ser entregues ao Estado do
Amazonas 700 cilindros de oxigênio e aproximadamente duas mil seringas. A crise
que sufocou a rede de saúde, comprometendo a rede de abastecimento de oxigênio
em Manaus, levando muitos a óbitos nos hospitais, foi a cauda de uma resposta da
chinesa, que resultou em doações financeiras imediatas para a compra de oxigênio e
material hospitalar. Fruto de ações revertidas dos termos definidos e sustentados pela
193
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
ação humanitária firmado entre a Ibrachina a OAB Amazonas e a Coordenação
Brasil/China da OAB Nacional.10
Além do governo estadual o prefeito da capital amazonense, Arthur Virgílio
Neto (PSDB), utilizou da Paradiplomacia para conseguir ajuda internacional de
aproximadamente 21 chefes de Estado tais como: EUA, França e Alemanha e outros.
Essa iniciativa foi batizada com o nome de ‘S.O.S. Manaus – Help the guardians of
the rainforest’.11
Cabe salientar que tais ações paradiplomáticas que acontecem no Estado de
Amazonas são auxiliadas por uma estrutura instituída na SERFI – Secretaria de
Estado de Relações Federativas e Internacionais. A instituição possui sede em
Brasília e foi criada desde 2019, por força de lei estadual, e tem o objetivo de criar
diálogo entre o Estado do Amazonas e outros entes federativos e outros atores
nacionais e internacionais.12 Esta estrutura ao ser criada demonstra interesse do
Estado em buscar ativamente soluções entre o relacionamento no cenário
internacional, sem abandonar o doméstico.
A instituição amazonense possui frutos concretos e publicados de sua atuação
como a que aconteceu em fevereiro de 2021, quando houve um encontro destinado
para se verificar as ações capazes de se viabilizar a aquisição de insumos tais como o
ingrediente farmacêutico ativo (IFA) necessário para a produção das vacinas contra a
Covid-19. Participaram dessa reunião: o secretário de Relações Federativas e
Internacionais, Adriano Mendonça, representante do governador do Amazonas,
Wilson Lima, durante o Fórum dos Governadores em conjunto com a Embaixada da
China. 13
Há ainda registros de que em 27 de maio de 2021 o governador estadual
Wilson Lima, em conjunto ao secretário de Relações Federativas e Internacionais
(SERFI), Adriano Mendonça, reuniuniram-se em uma cerimônia virtual, com o
embaixador Todd Chapman para o recebimento de 1,1 milhão de Equipamentos de
10
https://www.oabam.org.br/2021/01/16/oab-am-busca-apoio-internacional-para-fortalecer-socorro-asvitimas-da-covid_19/ acessado em 24/07/2021.
11
https://noticias.r7.com/prisma/r7-planalto/em-video-prefeito-de-manaus-pede-ajuda-de-21-chefes-deestado-06052020 acessado em 24/07/2021.
12
http://www.serfi.am.gov.br/ acessado em 24/07/2021.
13
http://www.serfi.am.gov.br/reuniao-com-a-embaixada-da-china/ acessado em 24/07/2021.
194
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Proteção Individual (EPIs) frutos de uma doação vinda da Embaixada dos Estados
Unidos em prol do Hospital e Pronto-Socorro Delphina Aziz, que foi o hospital
referência no combate à Covid-19 em Amazonas.14
É perceptível como o Estado do Amazonas não reserva esforços para
angariar, no cenário internacional, colaboração para encontrar soluções em seus
problemas internos. A própria estrutura burocrática que existe em Brasília demonstra
que o Governo de maneira sistemática utiliza da Paradiplomacia para conquistar um
espaço de atuação.
Cada vez mais a paradiplomacia tem sido utilizada pelos entes subnacionais
para atender as necessidades do estado tais como: modernização e especialização de
secretarias, hospitais, profissionais de saúde. Assim, os governos subnacionais
tomaram a responsabilidade para si, pois a demora por parte do governo
central/federal em tomar medidas levou a população da exigir medidas mais pontuais
e providências necessárias por parte dos estados e municípios.
Os Estudos demonstram que São Paulo, Bahia, Pernambuco e Ceará são os
estados que possuem os maiores números de projetos realizados por meio da
paradiplomacia e da cooperação internacional” (CORREA, 2020). Além da temática
de saúde outros temas também são destaques nesses tipos de projetos: o
desenvolvimento econômico e social, comércio e turismo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pandemia da COVID-19 no Brasil e no Mundo vem demonstrando que o
sistema mundo de globalização precisa ser revisto para que se possa buscar novas
alternativas de enfrentamento de temas globais. Verificou-se por meio do presente
trabalho que a dificuldade não paira somente no que se refere à complexidade que o
tema da pandemia da COVID-19 trouxe ao sistema internacional.
O Brasil mesmo com uma política estatal universal e coordenada de saúde
pública (SUS) tem sido menos efetivo na implementação das medidas globais devido
à pouca sinergia entre as diversas dimensões das instituições estatais. Percebe-se
14
http://www.serfi.am.gov.br/cerimonia-virtual-com-a-embaixada-americana/ acessado em 24/07/2021.
195
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
cada vez mais a falta de coordenação entre os entes subnacionais o que acaba por
não promover o desenvolvimento de politicas públicas efetivas para o combate à
pandemia.
Pôde-se perceber que na realidade, a dimensão da cooperação internacional
existente entre diversos entes internacionais (OMS, ONU, OMPI, OMC...) não foi
possível trazer a solução aos entes nacionais. Na realidade, cabe ainda acrescentar
que a efetiva aplicação de políticas internacionais só ocorre quando se tem na
esfera local/estatal uma infraestrutura básica capaz de aplicar as recomendações
globais.
No caso brasileiro, por exemplo, não foi a falta de recomendações
internacionais e nem a falta de um sistema de saúde universal como o que ocorreu
em outros países. No Brasil a problemática maior deu-se em torno da falta de
coordenação entre as instituições governamentais em todos os níveis: federal,
estadual, municipal.
Nesse cenário de crise, o presente trabalho apresentou uma alternativa
mediana para o enfrentamento da pandemia. Ou seja, ações não somente Estatais e
nem ações unicamente propostas pela comunidade internacional, mas o caminho do
meio. Analisou-se, assim, a utilização de alternativas como a paradiplomacia que
possibilitou a realização ações pontuais, mais adaptadas às necessidades e às
realidades de cada parte do Brasil tão dispare em sua geografia, em sua política e em
sua estrutura.
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200
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
CHAMEM O ESTADO! A CRISE SOCIAL E
ECONÔMICA CAUSADA PELA PANDEMIA
DO COVID-19 É A OPORTUNIDADE PARA
ENTERRAR A AUSTERIDADE FISCAL
Marcus Firmino Santiago1
RESUMO
Em resposta à Grande Recessão que se abateu sobre o mundo em 2008,
diversos países adotaram medidas alinhadas com a austeridade fiscal a fim de conter
os desequilíbrios orçamentários decorrentes, de um lado, das medidas de socorro ao
sistema financeiro e, de outro, da enorme queda de arrecadação causada pelo colapso
da economia. Os cortes de gastos públicos afetaram especialmente as redes de
proteção social, onde se incluem sistemas previdenciários, mecanismos de proteção
aos trabalhadores, programas assistenciais ou de moradia, por exemplo. Assim, a
chegada da pandemia do Covid-19, com seus profundos impactos sanitários, sociais
e econômicos, encontrou populações vulneráveis e países incapazes de oferecer
respostas adequadas – ao menos não na proporção necessária. Sustenta-se que a
gravidade do quadro social vivido hoje foi potencializada pelas escolhas da década
anterior com sua aposta na redução do papel estatal como garantidor do bem estar
social e que a saída para esta e outras crises humanitárias que possam surgir reside
no fortalecimento da capacidade interventiva e regulatória do Estado.
Palavras chave: Bem-estar social. Austeridade fiscal. Crise social. Pandemia Covid19
1 INTRODUÇÃO
O ano de 2020 certamente será lembrado por muito tempo como um divisor
de águas, sob vários aspectos. A explosão da epidemia do Covid-19 mudou as
perspectivas e planos que vinham sendo feitos, seja nas vidas individuais, seja na
gestão estatal.
1
Pós-doutor em Direito, Estado e Sociedade pela UnB. Doutor em Direito do Estado. Mestre em Direito
Público. Professor de Direito Constitucional, Teoria do Estado e Direitos Humanos. Advogado
especialista em Direito e Jurisdição Constitucional. Sócio do Soraia Mendes, Marcus Santiago &
Advogadas Associadas. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8405313313388657 E-mail:
marcusfsantiago@gmail.com
201
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A década anterior foi difícil para a maioria dos países, ainda afetados pela
Grande Recessão de 2008. Pobreza, desemprego e desigualdade social crescentes
são alguns dos legados de um longo período de crescimento econômico baixo e
predominantemente concentrador de riquezas. Havia, contudo, esperança de que a
nova década finalmente traria a retomada há tanto anunciada. Em janeiro de 2020, o
FMI previa que a renda mundial iria crescer em cerca de 3%. No início de maio,
com o mundo já mergulhado no colapso sanitário, social e econômico, estimava uma
retração de 3%, montante muito maior do que o verificado em 2008.2 Ao final, o
tombo alcançou 4,3%, segundo dados do Banco Mundial. 3
A julgar pela forma persistente como a doença tem se disseminado, apesar
dos esforços para realizar a vacinação em massa, o golpe será muito pior do que tais
números podem traduzir, especialmente para aqueles que já se encontravam em
situação de fragilidade. Afinal, não se pode esquecer, médias mascaram a realidade
daqueles que estão nos extremos do espectro de análise e o cenário presente já é de
ampliação contínua da quantidade de pessoas em condição de vulnerabilidade.
É evidente que nenhum país estava preparado para enfrentar problemas de tal
magnitude, porém, a capacidade de reação de vários tinha sido particularmente
reduzida. Isto porque, em razão da Grande Recessão, muitos optaram por buscar a
retomada do crescimento pela via da austeridade fiscal, apostando nos mercados
como agentes promotores de desenvolvimento. Viram-se, então, comprometidos
com a redução do custo de manutenção do Estado, tendo adotado medidas
orçamentárias restritivas que afetaram particularmente as redes de proteção social.
A epidemia do Covid-19 trouxe uma pressão imensa sobre a saúde pública, a
previdência e a assistência social, o amparo ao desemprego e a educação. Porém, as
pessoas afetadas encontraram sistemas protetivos esvaziados, com abrangência
reduzida, acesso limitado e financiamento restrito. Mais ainda, se viram
confrontadas em suas necessidades por governos cujas opções ideológicas nem
2
FURCERI, Davide; LOUNGANI, Prakash; OSTRY, Jonathan D. Como as pandemias deixam os pobres
mais
pobres.
IMF
Blog.
Diálogo
a
Fondo.
Disponível
em
<https://www.imf.org/pt/News/Articles/2020/05/11/blog051120-how-pandemics-leave-the-poor-evenfarther-behind?sc_mode=1> Acesso em 11 de maio de 2020.
3
THE
WORLD
BANK.
Perspectivas
Econômicas
Globais.
Disponível
em
<
https://www.worldbank.org/pt/publication/global-economic-prospects > Acesso em 03 abr. 2021.
202
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
sempre permitem uma abertura à adoção de medidas de amparo abrangentes. E,
como de hábito, os mais pobres sofrem mais.
Os dados já compilados no Brasil e em vários cantos do mundo mostram a
ampliação da pobreza, das privações e da desigualdade. Estima-se que cerca de 100
milhões de pessoas foram empurradas para uma condição de pobreza extrema, 4 o
que, em algumas regiões, representa um retrocesso de 30 anos! 5
Diante deste quadro, o presente estudo se propõe a analisar a realidade
econômico social construída na última década a fim de compreender, em linhas
gerais, como a opção pelos modelos de austeridade fiscal restringem a capacidade de
resposta dos governos em momentos como o atual e afetam as pessoas. Pretende-se,
com isso, defender a reversão deste quadro, apostando-se no contínuo
intervencionismo estatal como caminho para superar a tragédia humanitária vivida
hoje e construir sociedades mais equilibradas e melhor aparelhadas para lidar com
adversidades.
Este é o rumo que está sendo apontado por um número cada vez maior de
vozes que, depois de um longo período sufocadas pelos mantras entoados em prol do
liberalismo econômico, da austeridade fiscal e da deificação do livre mercado,
começam a se fazer ouvir.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 O pêndulo do intervencionismo estatal: a opção pelas políticas
de austeridade como resposta à crise econômica de 2008 e os
impactos sociais decorrentes desta escolha
O mundo chegou em 2020 ainda sob o trauma da Grande Recessão, que
deixou como legado toda uma década de retração - ou, no melhor dos casos,
4
5
Segundo parâmetros definidos pelo Banco Mundial, as linhas de pobreza são definidas pela renda
individual diária, medida em dólar paridade poder de compra, forma de estabelecer uma cotação da
moeda comparável entre os diferentes países. Assim, pessoas pobres são as que contam com menos de
$ 3,20 dólares por dia, enquanto as extremamente pobres dispõem de menos de $ 1,90 dólares por dia.
Dados
disponíveis
em
The
World
Bank.
Understanding
poverty.
<
https://www.worldbank.org/en/understanding-poverty >
SENHADJI, Abdelhak et alli. Lograr los Objetivos de Desarrollo Sostenible exigirá un esfuerzo
extraordinario por parte de todos. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 29 de abril de 2021. Disponível em <
https://blog-dialogoafondo.imf.org/?p=15594&utm_medium=email&utm_source=govdelivery
>
Acesso em 29 abr. 2021.
203
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
estagnação - econômica e severos impactos sociais. Havia a expectativa de uma
retomada que finalmente se anunciava vigorosa, mas as previsões caíram por terra
diante da hecatombe que a pandemia do Covid-19 se revelou. O que parecia ser a
saída de um longo e persistente ciclo revelou-se o início de uma nova debacle de
proporções desconhecidas.6
A Grande Recessão global, que se iniciou na virada de 2007 para 2008,
originou-se no colapso do sistema bancário norte-americano e teve por causa uma
longa cadeia de ações especulativas, estimuladas por uma lógica de caça à renda
possível graças à fragilidade regulatória. A magnitude do problema, que logo
ultrapassou aquele setor específico e contaminou uma ampla rede de agentes
financeiros, levou diversos governos a promover seu resgate, socializando os
prejuízos advindos da especulação desenfreada que promoveram durante anos.
Embora não tenha havido qualquer “orgia de despesa governamental”, como
Mark Blyth destaca,7 o ônus da salvação do sistema bancário, que incluiu o resgate
de títulos irrecuperáveis e a recapitalização de várias instituições financeiras, acabou
nas contas dos governos e da sociedade.8 O socorro veio ao custo da forte expansão
da dívida pública. O ato seguinte revelou um absurdo paradoxo: os mercados
financeiros, aqueles salvos graças à injeção de recursos públicos, passaram a
desconfiar da capacidade de vários países continuarem rolando suas dívidas. Sem
confiança, o fluxo de recursos para os Estados foi restrito e o que era uma crise dos
mercados privados se tornou uma crise fiscal orçamentária. Sob pressão daqueles
agentes, vários Estados entraram em colapso.
Pôs-se em marcha, então, um amplo processo voltado a convencer as pessoas
de que a culpa era dos Estados, pouco importando se a causa primária do problema
não residisse neles.9 Segundo esta narrativa, a única saída para a recessão
6
CERRA, Valerie; SAXENA, Sweta C. As cicatrizes econômicas das crises e recessões. IMF Blog.
Insights and Analysis on Economics & Finances. 21 de março de 2018. Disponível em
<https://www.imf.org/external/lang/portuguese/np/blog/2018/032118p.pdf> Acesso em 02 abr. 2018,
p. 2.
7
BLYTH, Mark. Austeridade. A história de uma ideia perigosa. Trad. Freitas e Silva. São Paulo:
Autonomia Literária, 2017, p. 28-29.
8
BLYTH, Mark. Austeridade. Op. cit., p. 27.
9
BLYTH, Mark. Austeridade. Op. cit., p. 28-29. Como explica Paulo Mota: “(...) o aumento muito
significativo e abrupto do rácio de dívida em percentagem do PIB em vários países desenvolvidos em
204
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
disseminada viria pela via das medidas de austeridade fiscal e esvaziamento da sua
capacidade interventiva.
Neste ponto, importante definir o que é austeridade fiscal. A expressão
denomina um conjunto de ações que visam reequilibrar o orçamento estatal, de um
lado reduzindo o gasto e, de outro, incrementando a arrecadação. Esta, contudo, não
deve vir na forma de aumento de tributos, mas pela retomada da atividade produtiva,
estimulada pelo aumento da competitividade das empresas, o que se alcançaria
reduzindo seus custos, como os regulatórios (com medidas de proteção ambiental,
por exemplo) e os com mão de obra.10 Assim, a austeridade aposta nos agentes
privados como atores centrais no processo de retomada do ciclo produtivo, pelo que
pressupõe a supressão de mecanismos de intervenção estatal nos mercados, seja no
plano regulatório, seja no da ação direta.11
Os resultados alcançados pelos países que fizeram semelhante opção nunca se
mostraram positivos, seja na perspectiva das condições de vida de seu povo, seja
quanto ao sonhado equilíbrio fiscal. Mark Blyth demonstra como os países europeus
mais afetados pela recessão (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha, conhecidos
como PIIGS) até 2015 não tinham conseguido revertê-la, apesar de terem seguido
firmemente a cartilha da austeridade.12 Estudo posterior, de 2018, mostra que todos
continuavam seguindo pelo mesmo rumo, salvo Portugal que, a partir de 2016,
apostou no Estado como vetor de desenvolvimento e, desde então, começou a colher
frutos bastante positivos.13
Quando a gestão estatal se pauta em modelos de austeridade, perde de mira a
preocupação com a natureza distributiva do crescimento e com o direcionamento dos
investimentos públicos para o combate às várias formas de desigualdade, seja por
meio de ações imediatas (como programas de moradia ou proteção ao emprego), seja
geral (...) deve ser encarado mais como um sintoma, ou como um efeito colateral, do que propriamente
como uma causa da crise. Por isso é seguro afirmar que foi a crise financeira internacional que causou a
crise das dívidas soberanas e não o contrário (...)” MOTA, Paulo. Austeridade Expansionista. Como
matar uma ideia zombie? Coimbra: Almedina, 2017, p. 52.
10
MOTA, Paulo. Austeridade Expansionista. Op. cit., p. 44.
11
BLYTH, Mark. Austeridade. Op. cit., p. 22.
12
BLYTH, Mark. Austeridade. Op. cit., p. 24.
13
GASPAR, Vitor; JARAMILLO, Laura. Reduzir a dívida elevada. IMF Blog. Insights and Analysis on
Economics & Finance. 18 abr. 2018. Disponível em < https://blogs.imf.org/ > Acesso em 25 abr.
2018.
205
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
no longo prazo (garantindo a participação política ou assegurando uma boa
educação).14 Assim, tem-se um impacto direto nas redes de proteção social,
fragilizadas ante a pressão dos mercados financeiros, ávidos pela redução de gastos
não raro rotulados como verdadeiras extravagâncias. 15
Se
os
investimentos
sociais
são
reduzidos,
as
possibilidades
de
desenvolvimento se esvaem. Isto se dá porque as causas tradicionais de exclusão se
expandem, aumentando a distância e a diferenciação entre os indivíduos. Assim,
vários são alijados do mercado de trabalho, menos pessoas têm possibilidade de
empreender e inovar, a renda média segue deprimida, reduzindo a capacidade de
consumo e a demanda por produtos e serviços, a mobilidade geracional é
comprometida.16 Consequentemente, mergulha-se em um ciclo vicioso no qual a
atividade produtiva segue deprimida, assim como a arrecadação estatal, fazendo com
que os déficits orçamentários continuem e o problema originário siga intocado.
O caminho prioritário para superar a crise fiscal que acomete os Estados não
deveria ser o da supressão de investimentos sociais, pois o risco deste modelo para a
vida das pessoas é demasiado alto. A falta de um colchão de proteção social
abrangente amplia a vulnerabilidade que já acomete partes significativas da
população, especialmente em países com índices tão alarmantes e persistentes de
desigualdade como o Brasil. A gestão orçamentária, reflexo das prioridades coletivas
e, consequentemente, das opções alocatícias, precisa ser orientada não apenas ao
curto prazo, mas especialmente para os desafios futuros, afinal, o desenvolvimento
de um país não se mede apenas por indicadores econométricos – como PIB e renda
per capita – mas igualmente pela melhoria contínua nos padrões de vida das
pessoas.17
14
SEN, Amartya. Temas-chave do Século XXI. in SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As Pessoas
em Primeiro Lugar. A ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, p. 101-102.
15
KERSTENETZKY, Celia Lessa; GUEDES, Graciele Pereira. O Welfare State Resiste?
Desenvolvimentos recentes do estado social nos países da OCDE. Ciência & Saúde Coletiva. Vol. 23,
n. 7, 2018. p. 2098.
16
FERRAJOLI, Luigi. Manifiesto por la Igualdad. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2019,
p. 86.
17
GASPAR, Vitor; JARAMILLO, Laura. Reduzir a dívida elevada. Op. cit.
206
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Quando se busca o reequilíbrio orçamentário apenas pela via da redução de
despesas, perde-se a perspectiva abrangente de desenvolvimento, conceito que
certamente transcende ao crescimento econômico. Como sustenta Amartya Sen,
desenvolvimento é reflexo da evolução individual e coletiva, segundo aspectos que
se somam ao crescimento econômico. Afinal, não é apenas a baixa renda que torna
uma vida miserável. Sistemas de saúde pública precários, falta de água tratada, de
moradia decente ou de empregos formais e protegidos são exemplos de privações
não financeiras que amplificam a exclusão e impactam decisivamente na qualidade
de vida.18 E a pandemia do Covid-19 mostrou, para quem não queria ver, como tais
privações efetivamente colocam as pessoas em risco.
Quando se compreende desenvolvimento nesta dimensão, fica clara sua
incompatibilidade com modelos econômicos que apostam nos mercados e fragilizam
a capacidade de ação estatal. O mesmo liberalismo que defende as políticas de
austeridade entende que benefícios sociais devem ser disputados no livre mercado,
cabendo ao Estado apenas o estritamente essencial para evitar que as pessoas caiam
em uma condição de miséria absoluta. A expansão desta forma de compreender o
papel do Estado, aliada ao cenário de baixo crescimento generalizado, fez com que
os países reduzissem os investimentos sociais, fragilizando as redes de proteção.
Olhando para o Brasil, percebe-se que semelhante opção foi incorporada não
apenas aos discursos, mas já vem produzindo resultados concretos. É notável o
declínio dos recursos federais destinados aos sistemas de proteção. Bom exemplo se
encontra em estudo elaborado pela OXFAM com base em dados relativos aos anos
de 2016 e 2017 que mostra como, imediatamente após a aprovação da Emenda
Constitucional n. 95/2016, “(...) as parcelas das dotações orçamentárias com saúde e
educação do orçamento federal caíram, respectivamente, 17% e 19%.”19 O gráfico
abaixo ilustra as variações orçamentárias nominais experimentadas por diferentes
programas sociais mantidos pelo Governo Federal e demonstra a redução
18
19
SEN, Amartya. Temas-chave do Século XXI. Op. cit., p. 95.
OXFAM. Brasil: Direitos Humanos em Tempos de Austeridade. Disponível em <
http://www.oxfam.org.br> Acesso em 25 abr. 2019, p. 4.
207
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
generalizada nos investimentos realizados, em uma comparação entre os anos de
2014 e 2017:20
No que tange especificamente à saúde pública, ao final de 2019, a Secretaria
do Tesouro Nacional constatou que a área deixou de receber quase R$ 9 bilhões em
razão do teto de gastos. Chegou-se a este valor compulsando a expansão que se deu
entre os anos de 2018 e 2019 e aquela que deveria ter ocorrido caso ainda em vigor a
regra anterior (percentual de gasto com saúde incidente sobre a receita corrente
líquida).21
Enfim, o país chegou em 2020 preso a um quadro de estagnação persistente,
com boa parte de sua população fortemente empobrecida e fragilizada e com
investimentos sociais deprimidos. Em outras palavras, um quando de severa
vulnerabilidade social. Porém, em que pese a imensa necessidade de uma ampla rede
protetiva, a escolha feita pelos dois últimos governos foi no sentido de reduzi-la,
optando pelo modelo da austeridade fiscal para retomar o crescimento. O que não
20
21
Disponível em: OXFAM. Brasil: Direitos Humanos em Tempos de Austeridade. Op. cit., p. 4.
Os dados foram extraídos do Relatório Resumido da Execução Orçamentária, elaborado pela Secretaria
do Tesouro Nacional e disponível no site < https://www.tesourotransparente.gov.br > Acesso em 27
fev. 2020.
208
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
aconteceu até agora e certamente não acontecerá, diante da hecatombe que a crise do
Covid-19 promoveu.
2.2 A Pandemia do COVID-19: um cataclisma sanitário, social e
econômico, especialmente para os mais pobres
A fragilidade financeira vivida pelo Brasil está presente, com igual
intensidade, na região da América Latina e do Caribe, segundo estudos do Banco
Mundial e da CEPAL. De fato, como destaca o primeiro organismo em relatório
disponibilizado em abril de 2020, nos últimos cinco anos a média de crescimento
nesta área ficou próxima a zero. A maior parte dos países – dentre os quais o Brasil –
tem na exportação de commodities sua principal fonte de recursos, o que os torna
extremamente vulneráveis às variações de preços, que já seguiam trajetória de baixa
e agora, ante a profunda retração de demanda causada pela epidemia do Covid-19, se
deprimiram em níveis impressionantes.
Vale registrar que em 2019, quase toda a região foi assolada por mobilizações
sociais, em regra motivadas por críticas à desigualdade, à fragilidade dos sistemas de
proteção social e às medidas voltadas a reduzir sua abrangência, como as reformas
dos sistemas previdenciários. Já estava claro “(...) o crescente hiato entre as
expectativas do povo e as realidades econômicas e sociais de cada país.” 22 O caso
chileno é significativo: “In early 2020, even prior to the start of the Covid-19
pandemic, Chile was experiencing a serious economic crisis, which put strong
pressure on the government to deal with issues of inequality and welfare
improvements.”23
Naquele
momento,
contudo,
o
interesse
em
acolher
semelhantes
reivindicações parecia bastante restrito, visto o comprometimento da maioria dos
governos com a agenda liberal. Um vírus novo, porém, mudou tudo.
22
23
THE WORLD BANK. A Economia nos Tempos de Covid-19. Relatório semestral sobre a região da
América Latina e Caribe. Banco Mundial. 12 de abril de 2020. Disponível em
<https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/33555/9781464815706.pdf> Acesso
em 04 jun. 2020, p. 5.
J-PAL. The Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab. Designing a social protection program during
Covid-19. Disponível em https://www.povertyactionlab.org/case-study/designing-social-protectionprogram-during-covid-19 Acesso em 30 mar. 2021.
209
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
É sabido que recessões causam estragos disseminados, especialmente em um
contexto no qual as economias mundiais são entrelaçadas, com cadeias de produção
e consumo espalhadas por todo o globo. A atual, contudo, foge a tudo que se
vivenciou até agora. Como explicam Sonali Das e Philippe Wingender, “Em
comparação com crises mundiais anteriores, a contração foi súbita e profunda: com
base em dados trimestrais, verifica-se que o produto mundial diminuiu cerca de três
vezes mais do que na crise financeira mundial [iniciada em 2008], na metade do
tempo.”24
Junto com um enorme custo direto em vidas humanas, a pandemia também
provocou um verdadeiro desastre econômico global, profundo e persistente, e que
coloca ainda mais pessoas em risco. Ainda se está tentando quantificar as perdas
humanas e econômicas vividas até aqui e não se faz ideia de suas repercussões
futuras.25 Fato é que a rápida expansão da epidemia do Covid-19 e os intensos
impactos que gerou na sociedade e na economia obrigaram a uma brusca revisão nas
prioridades, abrindo espaço para que, finalmente, se quebre a resistência
disseminada quanto à necessidade de investimentos públicos e medidas
contracíclicas severas: “(...) a maioria dos governos optou, de forma sensata, por
salvar vidas ‘a qualquer custo’, se necessário.” 26
Foram adotadas ações contracíclicas expressivas, levando à injeção sem
precedentes de recursos públicos na economia, o que permitiu minimizar os danos
decorrentes da paralisia que se abateu no sistema produtivo face à necessidade de
medidas protetivas de distanciamento social.27 Apesar de certa relutância inicial, o
Brasil acabou por adotar um programa de transferência de renda que produziu
resultados significativos, embora transitórios: durante o primeiro ciclo de pagamento
do auxílio emergencial (instituído pela Lei n. 13.982, de 02/04/2020), no segundo
semestre de 2020, apesar da queda exponencial do número de pessoas ocupadas, a
24
DAS, Sonali; WINGENDER, Philippe. Cicatrizes que perduram: O legado da pandemia. IMF Blog.
Diálogo
a
Fondo.
31
de
março
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25
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26
THE WORLD BANK. A Economia nos Tempos de Covid-19. Op. cit., p. 5.
27
DAS, Sonali; WINGENDER, Philippe. Cicatrizes que perduram: O legado da pandemia. Op. cit.
210
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
pobreza e a pobreza extrema foram reduzidas. E, ainda, considerando que famílias
de menor renda têm maior propensão a gastar a integralidade de seus rendimentos,
outro efeito percebido foi a atenuação do ritmo de queda do PIB e da arrecadação de
tributos, evidenciando o efeito multiplicador dos benefícios sociais.28
Tudo isso, contudo, não foi suficiente para impedir, de um lado, uma redução
ainda significativa nos níveis de emprego e renda e, de outro, a continuidade da
debacle econômica que se instalou. Há razoável consenso de que a trajetória até uma
efetiva recuperação será longa e não linear, especialmente em países que já vinham
sofrendo com o aumento da desigualdade e da pobreza.
O caso da América Latina - e do Brasil, por certo - é marcante, pois a região
entrou na pandemia já na condição de detentora dos maiores níveis de diferenciação
e exclusão social e, “(...) como grande parte do resto do mundo, sairá dela mais
pobre e mais desigual. Segundo estimativas iniciais, mais 19 milhões de pessoas na
região caíram na pobreza e a desigualdade aumentou 5% em relação aos níveis
anteriores à crise.”29 Em termos de PIB, a contração foi de 7%, a pior do mundo e
bastante acima da média global, que ficou em 3,3%, e a renda per capita não deverá
se recuperar antes de 2024.30
No Brasil, entre o início e o final do ano de 2020, a força de trabalho ocupada
caiu de 53,3% para 47,1%, impacto sem precedentes na história nacional, e atingiu
com especial severidade os trabalhadores informais. Para estes, a perda chegou a
18%, ao passo que o fechamento de empregos formais ficou em 5,4%. Assim,
28
SANCHES, Marina; CARDOMINGO, Matias; CARVALHO, Laura. Quão mais fundo poderia ter sido
esse poço? Analisando o efeito estabilizador do Auxílio Emergencial em 2020. MADE. Centro de
Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades. Nota de política econômica. 08/02/2021.
Disponível em < https://madeusp.com.br/wp-content/uploads/2021/02/NPE007_site.pdf > Acesso em
18 fev. 2021.
29
SAYEH, Antoinette et alii. O que vem depois do superciclo das commodities e da pandemia? Políticas
para enfrentar a pobreza e a desigualdade na América Latina. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 27 de abril
de 2021. Disponível em < https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/04/27/blog-what-comes-afterthe-commodity-super-cycle-and-the-pandemic > Acesso em 28 abr. 2021.
30
WERNER, Alejandro; KOMATSUZAKI, Takuji; PIZZINELLI, Carlo. Um reforço a curto prazo e uma
cura duradoura para a América Latina e o Caribe. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 15 de abril de 2021.
Disponível em < https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/04/15/blog-short-term-shot-and-longterm-healing-for-latin-america-and-the-caribbean > Acesso em 16 abr. 2021.
211
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
percebe-se o quão desiguais são os efeitos econômicos e sociais da pandemia, que
obviamente não atinge a todos da mesma forma. 31
De fato, embora os trabalhadores inseridos no mercado formal encontrem
uma seguridade social esvaziada, com programas de apoio ao desemprego reduzidos
em sua abrangência, valores e duração, ao menos ainda contam com algum tipo de
amparo, que também se destina às empresas nas quais trabalham. Pior é a situação
da enorme massa de trabalhadores informais, que sobrevivem à margem dos
sistemas de proteção. A análise do Banco Mundial destaca como os países da região
“(...) são caracterizadas por níveis mais altos de informalidade, o que reduz, para
muitas empresas e famílias, o impacto de certas medidas de apoio, tais como
adiamentos de impostos e subsídios salariais.” 32
A epidemia do Covid-19 ajudou a trazer à luz um enorme contingente de
pessoas invisíveis, formado principalmente por trabalhadores informais que vivem à
margem de qualquer controle estatal, que não constam em qualquer cadastro
oficial.33 Na terminologia utilizada pela Organização Internacional do Trabalho, são
pessoas que compõem o missing middle, contingente não abrangido nem pela
assistência, nem pela previdência social.34 Este grupo constitui “(...) comunidades
marginadas, que a menudo permanecen invisibles y se enfrentan a luchas vitales
similares. No se sabe dónde viven, ni cómo se ven afectadas por la pandemia.” 35
Quando da criação do Auxílio Emergencial, por meio da referida Lei n.
13.982, de 02/04/2020, benefício destinado especialmente a pessoas sem vínculo
31
CORSEUIL, Carlos Henrique et alii. The behaviour of the Brazilian labour market across two
recessions: An analysis of the period 2015-2017 and the COVID-19 pandemic. International Policy
Center for Inclusive Growth. Research brief n. 73, April 2021. Disponível em <
http://www.ipcig.org/sites/default/files/pub/en/PRB73_The_behaviour_of_the_Brazilian_labour.pdf >
Acesso em 23 abr. 2021.
32
THE WORLD BANK. A Economia nos Tempos de Covid-19. Op. cit., p. 6.
33
O GLOBO. ‘Invisíveis’ precisam de atenção social permanente, dizem especialistas. 19 de abril de
2020. Disponível em < https://oglobo.globo.com/economia/invisiveis-precisam-de-atencao-socialpermanente-dizem-especialistas-24381445> Acesso em 11 mai. 2020.
34
ILO. International Labour Organization. Extending social security to workers in the informal economy.
Key lessons learned from international experience. Social Protection Spotlight, março 2021, p. 2.
Disponível
em
<
https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/--soc_sec/documents/publication/wcms_749482.pdf > Acesso em 13 mai. 2021.
35
DAS, Maitreyi Bordia et alii. El rostro humano de la Covid-19: seis aspectos que considerar para una
recuperación inclusiva. The World Bank. Notícias, 22 de outubro de 2020, p. 6. Disponível em <
https://www.bancomundial.org/es/news/immersive-story/2020/10/22/the-human-face-of-covid-19-sixthings-to-consider-for-an-inclusive-recovery > acesso em 12 mai. 2021.
212
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
formal de emprego e, portanto, sem acesso à Previdência, o governo estimava em
54,1 milhões o contingente de beneficiados com o pagamento do benefício de R$
600,00. No início de maio, havia quase 97 milhões de pedidos.36
Naturalmente, tal número não representava o total de pessoas que
efetivamente atendem os requisitos legais, mas a imensa discrepância mostra a
existência de uma quantidade notável de trabalhadores esquecidos pelos sistemas
tradicionais, ainda quase exclusivos daqueles que têm empregos formais. Lembre-se,
como destacado anteriormente, que a informalidade é a regra no mercado de trabalho
latino-americano, alcançando a maior parte da população ocupada, o que avulta a
necessidade de estratégias diferenciadas.
As estratégias tradicionais de transferência de renda dificilmente alcançam as
pessoas que vivem na informalidade e, em regra, de forma extremamente precária,
carecendo “(...) dos recursos básicos para sobreviver aos bloqueios e quarentenas
necessários para conter a propagação da epidemia.” 37 O grande desafio, portanto, é
não apenas conceber mecanismos de amparo, mas assegurar que estes alcancem a
todos, a fim de ao menos minimizar o risco de reduzir tantos à pobreza que, estima a
CEPAL, chegou a 33,7% da população da América Latina no final de 2020, sendo
12,5% no patamar da extrema pobreza. Estes números representam um montante de
209 milhões de pessoas pobres (22 milhões a mais que no final de 2019) e 78
milhões (aumento de 8 milhões, face a 2019) extremamente pobres.38
Semelhantes dados mostram que a epidemia afeta desigualmente a população,
representando um impacto social e econômico muito maior para aqueles que já se
encontravam na base da pirâmide. Os riscos de toda natureza são maiores para os
segmentos mais vulneráveis. Aqui se pensa não só na redução ou mesmo privação de
renda, mas também na possibilidade de contágio, que cresce na medida da
36
G1. Auxílio Emergencial: de 96,9 milhões de cadastros processados pela Dataprev, 50,5 milhões foram
aprovados.
01
de
maio
de
2020.
Disponível
em
<
https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/01/auxilio-emergencial-de-969-milhoes-de-cadastrosprocessados-pela-dataprev-505-milhoes-foram-aprovados.ghtml> Acesso em 05 jun. 2020.
37
THE WORLD BANK. A Economia nos Tempos de Covid-19. Op. cit., p. 6.
38
CEPAL. Pandemia provoca aumento nos níveis de pobreza sem precedentes nas últimas décadas e
tem um forte impacto na desigualdade e no emprego. Comunicado de imprensa. 04 de março de
2021. Disponível em < https://www.cepal.org/pt-br/comunicados/pandemia-provoca-aumento-niveispobreza-sem-precedentes-ultimas-decadas-tem-forte > Acesso em 13 abr. 2021. p. 2.
213
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
precariedade das condições de moradia, adensamento populacional e saneamento
que caracterizam as regiões pobres das cidades. E, também, pela menor adesão às
precauções de distanciamento social, ante a premência da sobrevivência que
impulsiona as pessoas a retomar suas atividades produtivas.
A desigualdade de gênero também tende a ser agudizada, pois o trabalho de
cuidado segue sendo preponderantemente feminino e as demandas em razão do
fechamento das escolas ou do aumento da quantidade de pessoas doentes
aumentaram exponencialmente. A consequência, além da óbvia sobrecarga de
trabalho não remunerado, é uma maior dificuldade para as mulheres manterem suas
atividades profissionais.39 O mesmo se diga quanto aos abismos educacionais que
apartam os que têm acesso ao ensino privado daqueles que dependem das escolas
públicas. A transição abrupta do ensino presencial para o feito à distância, por meio
de ferramentas tecnológicas, alijou todos aqueles que não têm acesso à internet,
quantitativo estimado em 20% dos lares brasileiros. Mais ainda, escancarou a
fragilidade do financiamento da rede pública de ensino, desprovida de recursos para
migrar as aulas para plataformas virtuais. 40
Enfim, é evidente que o desafio não diz respeito apenas a ampliar o colchão
de proteção, mas também levá-lo às pessoas que precisam. Em síntese:
Ter acesso a benefícios como licença médica, seguro
desemprego e assistência de saúde é bom para todos (...), mas
é fundamental para os segmentos mais pobres da sociedade,
que não possuem economias e, assim, vivem em condições
precárias. Esse tipo de ‘New Deal’ é importante em setores da
economia, e em regiões, em que o trabalho informal e por
conta própria é generalizado e os sistemas de proteção social
são escassos.41
Há que se ter em mira, ainda, que os efeitos de uma retração econômica tão
severa tendem a ser duradouros. Estudo elaborado tendo por base apenas as crises
39
CEPAL. Pandemia provoca aumento nos níveis de pobreza sem precedentes nas últimas décadas...
Op. cit., p. 3.
40
CEPAL. Panorama Social de América Latina 2020. CEPAL: Santiago, 2021, p. 24-25. Disponível
em < https://www.cepal.org/sites/default/files/publication/files/46687/S2100150_es.pdf > Acesso em
11 mar. 2021.
41
FURCERI, Davide; LOUNGANI, Prakash; OSTRY, Jonathan D. Como as pandemias deixam os pobres
mais
pobres.
IMF
Blog.
Diálogo
a
Fondo.
Disponível
em
<https://www.imf.org/pt/News/Articles/2020/05/11/blog051120-how-pandemics-leave-the-poor-evenfarther-behind?sc_mode=1> Acesso em 11 de maio de 2020.
214
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
originadas em epidemias anteriores verificou como, em todos os casos, os pobres
ficaram ainda mais pobres. Mesmo os esforços redistributivos realizados pelos
governos não foram capazes de impedir impactos diferenciados – e mais graves –
naqueles que ocupam os degraus inferiores da pirâmide socioeconômica. Em termos
concretos, verificou-se que “Após cinco anos, o coeficiente de Gini líquido aumenta
quase 1,5%, o que representa um impacto elevado (...)” 42
A explicação para isto é que o principal espaço afetado é o trabalho,
especialmente os postos que exigem baixo grau de qualificação. Os autores do
estudo referido demonstram que “A disparidade é nítida: em relação à população, o
emprego daqueles com alto nível de escolaridade quase não é afetado, enquanto o
emprego daqueles com escolaridade básica cai drasticamente, mais de 5% ao final de
cinco anos.”43
As evidências identificadas em recessões passadas já vêm se confirmando. De
fato, os trabalhadores com menor qualificação sofrem múltiplos golpes:
(...) têm maior probabilidade de atuarem nos setores mais
prejudicados pela pandemia; estão mais propensos a ficarem
desempregados em períodos de retração e, para aqueles que
conseguem se recolocar, é mais provável que precisem mudar
de ocupação e sofram uma queda na renda.44
Registre-se que nenhuma das epidemias analisadas teve a magnitude que a do
Covid-19 já alcançou, seja quanto à paralização da atividade produtiva ou à
quantidade de infectados e mortos.
A saída, por óbvio, tem que passar por medidas imediatas, voltadas a mitigar
os choques sociais e econômicos que estão deixando famílias sem renda alguma,
mas não pode se restringir a elas. A lição é antiga: “As políticas econômicas devem
ser orientadas de modo a evitar crises e recessões graves e responder com estímulos
42
FURCERI, Davide; LOUNGANI, Prakash; OSTRY, Jonathan D. Como as pandemias deixam os pobres
mais pobres. Op. cit.
43
FURCERI, Davide; LOUNGANI, Prakash; OSTRY, Jonathan D. Como as pandemias deixam os pobres
mais pobres. Op. cit.
44
BLUEDORN, John. Resolver as diferenças: Políticas trabalhistas para uma recuperação mais justa.
IMF Blog. Diálogo a Fondo. 31 de março de 2021. Disponível em <
https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/03/31/blog-working-out-the-differences-labor-policies-fora-fairer-recovery> Acesso em 31 mar. 2021.
215
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
apropriados e redes de proteção.”45, mas parece ter sido esquecida. O papel dos
Estados como regulador dos espaços produtivos não se limita aos momentos de
crise. Antes, cabe a eles prevenir os colapsos (ao menos aqueles minimamente
previsíveis). E, caso, esses se mostrem inevitáveis, suas ações devem ser orientadas
a, na maior medida possível, eliminar seus impactos deletérios presentes e futuros.
Como destacado pelo Banco Mundial, “Uma pergunta-chave é quem, ao final
de tudo isso, deverá arcar com as perdas.”46 Ora, a resposta é simples: todos, na
inversa proporção dos prejuízos sofridos. Quando se imputa ao Estado a tarefa de
assumir franco protagonismo no combate à crise e seus efeitos sociais, não se está
terceirizando a responsabilidade. Não se pode esquecer que o Estado existe pela
vontade coletiva e se destina a zelar pelo bem de todos. Assim, quando os governos
centralizam as medidas de combate à epidemia e seus males socioeconômicos,
quando contraem dívidas para custear sistemas de saúde pública ou de assistência
social, cumprem seu papel como gestores dos interesses coletivos. A dívida pública
não é um problema só dos governos, ela é de todos. Da mesma forma como a
miséria, a doença ou a morte de alguns não é problema apenas destes, é de todos.
2.3 Chamem o Estado!
Recuperação inclusiva: esta é a expressão que sintetiza o objetivo maior a ser
perseguido pelos países e que vem sendo repetida em diferentes estudos. É tempo de
mirar “(…) una recuperación inclusiva más allá de la protección de los pobres o de
quienes están en riesgo de caer en la pobreza, aunque eso sea esencial.” Neste
sentido, a recuperação inclusiva “(…) consiste en abordar la exclusión y las
desigualdades sistémicas ya existentes desde hace tiempo y que la COVID-19 ha
puesto en evidencia.”47
A insistência em que se adote esta concepção se justifica por dois principais
fatores. O primeiro deriva da constatação de que para os mais ricos – e ainda mais
45
CERRA, Valerie; SAXENA, Sweta C. As cicatrizes econômicas das crises e recessões. IMF Blog.
Insights and Analysis on Economics & Finances. 21 de março de 2018. Disponível em <
https://www.imf.org/external/lang/portuguese/np/blog/2018/032118p.pdf> Acesso em 02 abr. 2018.
46
THE WORLD BANK. A Economia nos Tempos de Covid-19. Op. cit., p. 7.
47
DAS, Maitreyi Bordia et alii. El rostro humano de la Covid-19: seis aspectos que considerar para una
recuperación inclusiva. Op. cit, p. 3.
216
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
para os muito ricos – os impactos da pandemia já estão sendo superados, o que
projeta uma recuperação em forma de K. Ou seja, as pessoas e os países ricos
retomam a trajetória de crescimento (a perna superior do K) enquanto os pobres
seguem em declínio, esmagados pela crise persistente. 48
É evidente que cada país seguirá um ritmo diferente de recuperação, mas para
a maioria as sequelas serão persistentes e se estenderão pelos próximos anos. 49 Isso
se deve, principalmente, ao fato de a maior parte das medidas contracíclicas e de
apoio social adotadas terem natureza temporária e não virem acompanhadas de
mudanças estruturais – ou seja, o abandono do paradigma econômico liberal e sua
aposta na austeridade fiscal. Para que o mundo consiga recompor as perdas trazidas
pela pandemia, é fundamental que as medidas adotadas em caráter temporário sejam
transformadas em mecanismos permanentes, voltados a assegurar uma proteção
social efetiva para todos. 50
Uma recuperação inclusiva não se limita a remediar circunstancialmente a
situação de pobreza enfrentada pelos mais agudamente afetados, e aqui entra o
segundo fator. Ela deve ir além e olhar para as causas pretéritas de desigualdade,
pobreza e exclusão. Daí a defesa que se faz quanto à necessidade de os países
ampliarem o acesso a educação e saúde de alta qualidade, expandirem suas redes de
proteção social e colocarem o combate à desigualdade como prioridades em suas
agendas de desenvolvimento.51
É importante ter em conta que a pandemia criou um novo universo de pessoas
pobres, pois afetou com particular rigor os trabalhadores informais (o missing middle
identificado pela Organização Internacional do Trabalho), pessoas que até então
48
SPENCE, Michael; STIGLITZ, Joseph; GHOSH, Jayati. Como evitar uma recuperação global em
forma de K. Project Syndicate. 24 mar. 2021. Disponível em < https://www.projectsyndicate.org/commentary/global-economy-avoiding-k-shaped-recovery-by-michael-spenceet-al-2021-03/portuguese > Acesso em 07 mai. 2021.
49
DAS, Sonali; WINGENDER, Philippe. Cicatrizes que perduram: O legado da pandemia. IMF Blog.
Diálogo
a
Fondo.
31
de
março
de
2021.
Disponível
em
<
https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/03/31/blog-slow-healing-scars-the-pandemic-legacy>
Acesso em 31 mar. 2021
50
ILO. International Labour Organization. Extending social security to workers in the informal economy.
Op. cit., p. 2.
51
WERNER, Alejandro; KOMATSUZAKI, Takuji; PIZZINELLI, Carlo. Um reforço a curto prazo e uma
cura duradoura para a América Latina e o Caribe. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 15 de abril de 2021.
Disponível em < https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/04/15/blog-short-term-shot-and-longterm-healing-for-latin-america-and-the-caribbean > Acesso em 16 abr. 2021.
217
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
estavam fora dos sistemas assistenciais não contributivos e que, em regra, não
acessam os sistemas previdenciários de natureza contributiva. Como sustenta estudo
divulgado pelo Banco Mundial, “(…) la crisis está reduciendo drásticamente los
ingresos y el bienestar de personas que ya eran pobres, al tiempo que está
empobreciendo a decenas de millones más que, en muchos casos, se diferencian del
primer grupo (…)”52
Subitamente, um enorme contingente, predominantemente vinculado ao setor
de serviços, se viu fortemente exposto ao contágio, dada a impossibilidade de
suspenderem suas atividades ou as desempenharem de forma remota. Seus filhos
tiveram que ficar em casa, o que sobrecarregou especialmente as mulheres, desde
sempre obrigadas, com primazia, aos trabalhos de cuidado.53 Muitos eram pequenos
empregadores que subcontratavam serviços de outros trabalhadores igualmente
informais. Para esses novos pobres, as políticas sociais tradicionais - tais como
requalificação profissional ou auxílios financeiros pontuais - não funcionam,
obrigando a concepção de modos diferentes de inclusão. 54
De toda sorte, sejam quais forem os caminhos adotados, fato é que, diante da
premência de implementar novos e mais abrangentes sistemas de proteção social,
entende-se que os países estão diante da oportunidade de investir fortemente em um
modelo de crescimento que seja efetivamente inclusivo e sustentável. Pensar em não
apenas remediar a crise sanitária, social e econômica vivida, mas criar condições
para que novos dramas, com tal dimensão, não se repitam e que as mazelas do
passado finalmente comecem a ser corrigidas.
Há que se ter em conta que sistemas robustos de proteção social geram
ganhos para todos, e não apenas para seus beneficiários diretos. Sob uma perspectiva
meramente econômica, funcionam como uma forma de assegurar que as pessoas
52
THE WORLD BANK. La Pobreza y la Prosperidad Compartida 2020. Un cambio de suerte. Op.
cit., p. 17.
53
ILO. International Labour Organization. Extending social security to workers in the informal economy.
Op. cit., p. 2.
54
Algumas propostas defendidas por organismos como o Banco Mundial contemplam o apoio financeiro
a micro e pequenas empresas, em regra os maiores empregadores e o elo mais frágil da cadeia
produtiva (pelo lado do capital), o que pode vir na forma de subsídios salariais ou benefícios
tributários, por exemplo. THE WORLD BANK. La Pobreza y la Prosperidad Compartida 2020. Un
cambio de suerte. Op. cit., p. 18.
218
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
tenham alguma renda em casos de desemprego em massa como o atualmente vivido,
assegurando a continuidade do ciclo de produção e consumo. Mas a questão não se
limita à dimensão econômica estrita. Sistemas de proteção social são um
investimento que um país faz em seu povo, pois não há desenvolvimento apenas
para alguns: ou todos prosperam, ou a disputa permanente por benefícios que só uns
poucos auferem acabará provocando um nível insustentável de conflito social. 55
Neste sentido, vale destacar a perspectiva defendida pela Organização
Internacional do Trabalho, mais um dentre vários organismos que defendem a
conexão necessária que deve existir entre crescimento econômico e desenvolvimento
social:
This approach is based on the expectation that ‘investing in
people’ through social protection helps to facilitate access to
health and education, enhance income security and enable
workers to take greater risks, thereby generating positive
results in terms of human capital and productivity that will
facilitate the formalization of employment in the medium and
long terms.56
A recuperação inclusiva pressupõe que as redes de proteção social estejam
permanentemente estendidas. A pandemia ensinou que, por mais rápidas que sejam
as respostas concebidas para restaurar ou criar novos programas de proteção social, o
tempo de reação foi demasiado e a amplitude restrita. E, mais ainda, partiu-se de um
patamar protetivo muito raso, culpa da opção generalizada feita em favor da
austeridade fiscal e seu receituário de redução dos papeis interventor e provedor do
Estado.
Desta forma, na busca por limitar as sequelas deixadas pela pandemia do
Covid-19, que na verdade agravou um quadro que já vinha se desenhando de
aumento da desigualdade, da pobreza e da exclusão, é preciso ter em mira dois
pontos centrais: (i) a necessidade imperiosa de as medidas de apoio serem mantidas
até que se verifique uma recuperação consolidada da atividade produtiva; (ii) a
oportunidade que se apresenta para apostar em um novo modelo de
desenvolvimento, que seja fundamentalmente inclusivo e sustentável.
55
56
ILO. International Labour Organization. Extending social security to workers in the informal economy.
Op. cit., p. 5.
ILO. International Labour Organization. Extending social security to workers in the informal economy.
Op. cit., p. 5.
219
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Os governos de todo o mundo, mas com especial ênfase os de regiões mais
vulneráveis como a América Latina, têm pela frente uma tarefa gigantesca. É hora,
portanto, de "(...) reorientar el gasto público hacia la creación de empleo y las
actividades que son transformadoras y ambientalmente sostenibles.” O manejo dos
recursos públicos precisa priorizar os investimentos, a garantia de renda mínima, a
proteção social universal, o apoio a micro e pequenas empresas, a inclusão digital, o
desenvolvimento de tecnologias ambientalmente sustentáveis.57
Tais lições, aqui apresentadas a partir de estudo divulgado pela CEPAL, têm
sido defendidas por diversos autores e centros de pesquisa e se alinham com a noção
de que só existe desenvolvimento quando este é inclusivo e sustentável. Ainda é
cedo para saber se as medidas sugeridas são efetivamente capazes de resolver ou, ao
menos, minorar os problemas vividos, mas já há indícios – colhidos nas experiências
de diferentes países – de que estão produzindo resultados.58
3 CONCLUSÃO
A crise social e econômica vivida em razão da pandemia do Covid-19 exige
que novas soluções sejam pensadas para proteger as pessoas não só do vírus, mas
também de todos os males individuais e coletivos que ele trouxe consigo. Demanda,
também, que se perceba o grau de vulnerabilidade a que largas parcelas da
população mundial estão expostas, em muito por conta de escolhas que foram feitas
e que levaram à contínua redução do papel protetivo do Estado. A miséria de tantos
não é fruto do acaso.
Combater as consequências sociais decorrentes da pandemia exige uma ação
estatal ampla e constante. Os mercados privados não socorreram e não socorrerão as
famílias que passam fome, as pessoas que ficaram sem emprego, que caíram
doentes, que carregarão sequelas físicas e emocionais. O capital não é solidário.
57
58
CEPAL. Financiamiento para el desarrollo en la era de la pandemia de COVID-19 y después.
Prioridades de América Latina y el Caribe en la agenda de políticas mundial en materia de
financiamiento para el desarrollo. Informe especial n.º 10, 11 de março de 2021, p. 19. Disponível em <
https://www.cepal.org/sites/default/files/publication/files/46710/S2100064_es.pdf > Acesso em 30 abr.
2021.
THE WORLD BANK. La Pobreza y la Prosperidad Compartida 2020. Un cambio de suerte. Op.
cit., p. 20.
220
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A reação por meio do Estado, contudo, não é um processo simples. Existem
diversos fatores que restringem a retomada do papel ativo e protetivo tão necessário.
A ideologia econômica liberal, com seu repúdio ao intervencionismo social estatal,
segue presente; o uso populista e eleitoreiro dos mecanismos de apoio - como
políticas de transferência de renda - cria dúvidas sobre a conveniência de serem
perenizados; o elevado endividamento dos países restringe sua capacidade de
realizar investimentos robustos e contínuos.
Tais dificuldades, contudo, não devem ser empecilhos para que o clamor
crescente por mais solidariedade seja ouvido e produza resultados. Os problemas
trazidos pela pandemia afetam a todos e devem ser enfrentados por todos. A ação
coletiva organizada em torno do Estado é o único caminho capaz de permitir que os
desafios imediatos e de longo prazo – tanto os novos trazidos pelo Covid-19, quanto
os antigos – sejam enfrentados e superados.59
Há que se buscar caminhos que permitam fortalecer os vínculos de
solidariedade tanto dentro de cada sociedade quanto entre os países, afinal, enquanto
tantos ainda estiverem vulneráveis à doença e a seus males físicos, emocionais e
econômicos, ninguém estará realmente bem. A Covid-19 pode representar a
oportunidade para colocar em marcha a construção de sociedades e modelos
econômicos mais inclusivos e preocupados com sua própria sustentabilidade. A
necessidade é evidente, as condições estão presentes. Resta saber para qual lado
oscilará o pêndulo: o do dinheiro, ou o dos seres humanos?
REFERÊNCIAS
BLUEDORN, John. Resolver as diferenças: Políticas trabalhistas para uma
recuperação mais justa. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 31 de março de 2021.
Disponível em < https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/03/31/blog-workingout-the-differences-labor-policies-for-a-fairer-recovery> Acesso em 31 mar. 2021.
BLYTH, Mark. Austeridade. A história de uma ideia perigosa. Trad. Freitas e Silva.
São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
59
CEPAL. Financiamiento para el desarrollo en la era de la pandemia de COVID-19 y después. Op.
cit., p. 18.
221
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
CEPAL. Financiamiento para el desarrollo en la era de la pandemia de COVID19 y después. Prioridades de América Latina y el Caribe en la agenda de políticas
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224
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
OS CONTRATOS DE VENDA FUTURA DE
COMMODITIES EM TEMPOS
PANDÊMICOS: QUESTÕES SOBRE
IMPREVISIBILIDADE E ALEATORIEDADE
Danilo Porfírio de Castro Vieira1
Daniella Rebelo dos Santos Chaves2
RESUMO
Considerando que os contratos de compra e venda futura de cereais, feitos
anteriormente ao surto pandêmico, sofreram efeitos inesperados e supervenientes,
em função da dimensão global da doença, gerando perdas e prejuízos superiores a
média de mercado, transcendendo os riscos suportados em uma alea negocial. Que
em contraponto os adquirentes estão obtendo vantagens excessivas, pois o preço fixo
firmado em contrato ficou muito aquém aos aumentos sucessivos em tempos de
pandemia (muito além do valor médio de mercado dos últimos anos). O artigo busca
expor que os eventos pandêmicos não são suportados pela alea negocial, mas pela
imprevisibilidade.
Palavra-chave: contratos rurais; aleatoriedade; imprevisibilidade; covid; pandemia.
ABSTRACT
Whereas the contracts for the future purchase and sale of cereals, made prior
to the outbreak of the pandemic, suffered unexpected and supervening effects, due to
the global dimension of the disease, generating losses and damages above the market
average, transcending the risks borne in a negotiation alea. That on the other hand,
the purchasers are obtaining excessive advantages, since the fixed price agreed in the
1
Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000),
mestrado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2003), doutorado em
Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2018) e Pós-doutorado
em Letras Orientais pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor titular de Relações
Internacionais e Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e professor de Direito no
Instituto de Direto Público do Distrito Federal (IDP). Tem experiência na área de Teoria Geral do
Direito, Direito Civil, Direito Internacional e Filosofia do Direito. Sócio da Chaves, Porfírio Vieira
Advogados.
2
Possui graduação pelo Centro Universitário de Brasília (2007) é pós graduanda lato sensu em Direito de
Família e Sucessões pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Foi assessora jurídica do Instituto de
Previdência dos Servidores do Distrito Federal - IPREV/DF. Atualmente é advogada, com atuação na
área de Direito Privado, com ênfase em Direito de Família e Sucessões, e Orientadora de Núcleo de
Prática da Universidade Paulista - UNIP (2013-2020). Sócia da Chaves, Porfírio Vieira Advogados
225
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
contract was far below the successive increases in times of pandemic (far beyond the
average market value in recent years). The article seeks to expose that pandemic
events are not supported by alea negocial, but by unpredictability.
Keywords: rural contracts; randomness; unpredictability; covid; pandemic
1 DA TEORIA DA IMPREVISÃO COMO INSTRUMENTO DE
GARANTIA
DE
FUNCIONALIDADE
SOCIAL
DO
CONTRATO E COMUTATIVIDADE
A economia e o direito, formalmente, diante da situação em que
consumidores ou produtores são tomadores de preço, presumem mercados
perfeitamente competitivos e comutativos. Presume-se, assim, que o preço
estabelecido pelo mercado não seria afetado por decisões peculiares de consumo ou
produção.
Porém, os mercados possuem suas limitações e podem não ser eficientes,
apresentando, problemas supervenientes, necessitando assim da intervenção
regulatória estatal em prol do bem estar da sociedade (função social dos contratos).
Após a 1ª Guerra Mundial, a compreensão sobre a força vinculante das
convenções e o princípio da lex contractus ou pacta sunt servanda foi sujeita a
relativização, sendo o conflito armado considerado um fato extraordinário, tornandose insustentável o cumprimento dos contratos, por causarem onerosidade excessiva
para um ou outro contratante.
O entendimento é que não havia mais lugar para a obrigatoriedade absoluta
dos contratos, pois a liberdade contratual, inclusive na disposição do devido
cumprimento, estaria prejudicada. Nesse sentido, seria legítima a intervenção
judicial motivada, no intuito de reequilibrar ou atenuar amenizar as relações
jurídicas e suas prestações.
Prevalece, a partir de então, no direito contemporâneo, a tese que o Estado
deve intervir nas relações contratuais, prevalecendo o princípio da ordem jurídicojurídico social (estabilidade do sistema jurídico-social) e o princípio da função social
do contrato (sanidade do sistema econômico pelo zelo ao equilíbrio, benefício do
interesse coletivo).
226
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
No direito pátrio, a função social do contrato e a mitigação da força
vinculante foram devidamente reconhecidas no Código Civil vigente, em seu artigo
421, que dita: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da
função social do contrato.”
Seja na relação consumo, na relação civil ou empresarial, se reconhece, em
prol da funcionalidade do contrato (que assume dimensão massificada, com
repercussão difusa de efeitos) e sua dimensão econômico social, a adoção da teoria
da imprevisão, pela resolução por onerosidade excessiva.
Mais do que nunca, os contratos adquirem papel principal na economia,
sendo o instrumento preferido dos agentes econômicos para materializar suas
vontades e efetivar a circulação de riquezas, devendo existir mecanismos
restauradores de equilíbrio, em que caso de eventos supervenientes e não
calculáveis.
A Teoria da Imprevisão no Código Civil, vem disciplinada nos artigos 478,
479 e 480:
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se
a prestação de uma das partes se tornar excessivamente
onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de
acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o
devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença
que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a
modificar equitativamente as condições do contrato. Art. 480.
Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das
partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou
alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade
excessiva.
No intuito de combater eventos não calculados, que transcendem a qualquer
alea suportável, e que são inevitáveis, expondo uma das partes a desequilíbrio
excessivo, o Estado Jurisdicional, quando chamado, em função do não entendimento
das partes, deve resolver parcialmente (revisão de condições) no intuito de restaurar
a sanidade contratual. A resolução total é a última e lamentável, porém salutar
possilidade.
É imprescindível que haja uma notável alteração circunstancial entre as
prestações, decorrente de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, que
227
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
modifiquem o valor de uma parcela em relação à outra. Por meio da resolução do
contrato, busca-se superar situações incompatíveis com a justiça comutativa,
fundamentando-se na boa-fé e no exercício regular e funcional dos direitos.
É importante salientar que a Imprevisão não se confunde com o caso fortuito
e a força maior. Embora a resolução por onerosidade excessiva se assemelhe ao caso
fortuito ou força maior, pois todos estão vinculados a um evento futuro e incerto,
distinguem-se teleologicamente, pois no caso fortuito e na força maior há o
impedimento absoluto de se cumprir o contrato (impossibilitas praestandi), enquanto
na Imprevisão há dificuldade de se cumprir, a excessiva onerosidade, admitindo que
a resolução seja evitada se ocorrer a restauração da comutatividade/equidade nas
condições do contratuais.
O Código Civil de 2002 consolidou o direito de se alterar o contrato em
situações pontuais, dedicando os artigos 478 a 480 à resolução das avenças por
onerosidade excessiva. A redação normativa exige que além da ocorrência do
acontecimento extraordinário, imprevisível e excessivamente oneroso para uma das
partes, a revisão judicial só será possível se o fato resultar em extrema vantagem ao
outro contratante.
Os requisitos, portanto, para a invocação da Teoria da Imprevisão, segundo o
Código Civil de 2002, são: a vigência de um contrato comutativo de execução
diferida ou de trato sucessivo; a ocorrência de uma situação imprevisível e
extraordinária; uma alteração real da situação fática existente no momento da
execução, em confronto com aquela que existia à época da celebração; o nexo causal
entre o fato superveniente e a respectiva onerosidade excessiva.
O primeiro pressuposto é que se trate de contratos de duração, nos quais há
um lapso temporal considerável entre a sua celebração e a completa execução. Não
podem, portanto, ser contratos de execução instantânea, e sim de execução diferida
ou de realização em momento futuro, como é o caso dos contratos de venda futura
de commodities agrícolas.
O segundo requisito é a ocorrência de evento superveniente, extraordinário e
imprevisível,
que
tenha
alterado
a
situação
fático-contratual,
gerando
empobrecimento de uma das partes, causado pelo cumprimento. Para configurar-se o
228
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
excesso de onerosidade da prestação é mister uma sensível alteração da relação
originária entre as prestações, com a mudança em sua correspectividade, ou perda ou
diminuição de sua utilidade.
A terceira condição, chamada subjetiva, para a aplicação da Teoria da
Imprevisão, que é a razoável alteração da situação de fato existente no momento da
execução, em confronto com aquela havida no momento da celebração do acordo.
O quarto e último pressuposto é o nexo de causalidade entre o evento
superveniente e a respectiva onerosidade excessiva. É necessário que esta última
decorra de uma alteração da condição subjetiva, de tal forma que, como dito, o
cumprimento do contrato, por si mesmo, implique no empobrecimento de um dos
celebrantes.
Logo, a imprevisão não pode ser confundida com a aleatoriedade contratual.
2
DISTINÇÃO
ENTRE
ALEATORIEDADE
IMPREVISIBILIDADE
E
Na aleatoriedade, as partes reconhecem que a substância negocial (suas
condicionantes) ou até a prestação são sujeitas ordinariamente a sortilégios e
inconstâncias, fazendo com que as partes consciente e calculadamente (pois faz parte
do jogo do mercado) suportem variações quantitativas e até inexistência.
Na aleatoriedade, o negócio é racional e razoavelmente exposto a eventos
incertos e futuros, inerentes à natureza da relação jurídica firmada, a exemplo da
compra coisa incerta ou futura (compra de colheita futura), aquisição de títulos
mobiliários (bolsa de valores), sujeitos a variação monetária diariamente, ou o
contrato de seguro, em que a contraprestação do segurador só é devida se ocorrer um
evento futuro.
O contrato aleatório apresenta, portanto, um risco assumido sobre prestação
de uma ou de mais parte. O que se prevê e reconhece é que o negócio firmado está
naturalmente exposto a um evento futuro e incerto (causalidade/ordem natural das
coisas, parafraseando Orlando Gomes), possível de acontecer (alea ou sorte). Não se
podendo antecipar o seu quantum (extensão incerta). Em suma, previsível é o evento
(possível/esperado), imprevisível é a variação do quantum.
229
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
O risco, porém, pode ser suportado de forma total ou absoluta (quando uma
das partes apenas cumpre sua prestação sem perceber nada em troca) e parcial ou
relativa (quando cada um dos contratantes se responsabiliza por alguma prestação
independente de serem iguais ou não).
Existem duas modalidades de contratos aleatórios então, aqueles que se
referem a coisas futuras e aqueles que versam sobre coisas já existentes mas que
estão sujeitas a riscos futuros. O risco suportado deve estar expresso no contrato, e o
silêncio sobre a alea presume comutatividade na relação, conforme artigo 483 do
Código Civil:
Art. 483. A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou
futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier
a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato
aleatório.
No artigo 458 do Código Civil o risco anunciado é o existencial sobre coisa
futura (emptio spei - a venda esperada), cabendo ao alienante receber todo o valor,
mesmo se a coisa não venha a existir. Há casos em que venda de colheita futura,
pode ser exposta ao risco de inexistência da safra, em que o comprador deve assumir
o risco da completa frustração da safra, salvo se o risco cumprir-se por dolo ou culpa
do vendedor.
O artigo 459 também trata de casos sobre coisas futuras, porém os riscos são
quantitativos, podendo recair sobre a prestação, a contraprestação ou ambas (emptio
rei speratae – a venda de coisas esperadas). A probabilidade estimada (previsão)
para o suporte de riscos encontra-se na quantidade e não mais na existência, como
também acontece na compra de safra futura.
A emptio rei speratae pode recair, inclusive, sobre a contraprestação, a
quantificação do preço, como previstos nos artigos:
Art. 486. Também se poderá deixar a fixação do preço à taxa
de mercado ou de bolsa, em certo e determinado dia e lugar.
Art. 487. É lícito às partes fixar o preço em função de índices
ou parâmetros, desde que suscetíveis de objetiva
determinação.
Além das duas categorias de aleas sobre coisa futura, há também a
modalidade de contrato aleatório às coisas já existentes, mas que estão sujeitas a se
230
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
danificarem, depreciarem, até mesmo desvalorizarem ou perderem, como previstos
nos artigos 460 e 461 do Código Civil.
A imprevisibilidade, portanto, ocorrerá quando não existirem razões normais
para que o contratante médio tenha considerado a possibilidade de ocorrência do fato
causador do desequilíbrio.
3 PANDEMIA COVID 19 E A IMPREVISIBILIDADE
A pandemia ocasionada pela propagação incontrolável da Covid-19, gerando
medo, insegurança e recolhimento necessário pelo isolamento social, repercutiu no
mercado financeiro mundial, que sente fortes impactos recessivos da crise
econômica.
A Lei nº4.010/2020, em seu "Capítulo IV - Da Resilição, Resolução e
Revisão dos Contratos", em seus artigos 6º. e 7º. propõe que "não se consideram
fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 478, 479 e 480 do Código Civil,
o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do
padrão monetário" (artigo 7º) .
A bem da verdade, os dispositivos em epígrafe acabam por serem
contraditórios, pois reconhecem crise mundial sem precedentes que afeta a todos os
mercados; porém cerceiam os efeitos da revisão contratual e da Teoria da
Imprevisão, como se o câmbio, a inflação ou a desvalorização monetária não
guardassem nenhuma relação com a pandemia.
Não se trata de extinguir uma relação jurídica e rechaçar sua eficácia, mas de
simplesmente atender a máxima : cuique suum tribuere.
A pandemia da Covid-19, impõe a aplicação da Teoria da Imprevisão e da
Onerosidade Excessiva aos contratos de prestação continuada vigentes nas relações
civis, empresariais e, principalmente, financeiras, de extensão global, sem
precedentes e sem previsão para término.
Os efeitos no mercado financeiro, como inflação e variação cambial,
decorrentes da pandemia, não podem ser desconsiderados e tratados como ordinários
(álea suportável).
231
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A variação cambial e a desvalorização do padrão monetário não serão
considerados fatos imprevisíveis, impossibilitando a revisão contratual frente à
desenfreada oscilação do mercado e resultando na manutenção da desproporção
entre as partes e na impossibilidade de cumprimento das obrigações, na forma
acordada originalmente.
A exemplo, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp
1.433.434/DF, em consonância com preceitos constitucionais que visam garantir a
manutenção das condições em contratos celebrados com a Administração Pública e
por expressa previsão da Lei de Licitações, reconheceu a possibilidade da revisão
contratual sob fundamento e aplicação da teoria da imprevisão.
O TJSP (Agr. Instr. 2061905-74.2020.8.26.0000) reconheceu a aplicação da
teoria da imprevisão, para justificar a resolução ou revisão de contratos empresariais,
em função do evento pandêmico global, que afeta a sociedade e pode desequilibrar
contratos sendo comparado a "tempo de guerra".
O desembargador Cesar Ciampolini, da 1ª Câmara de Direito Empresarial do
Tribunal de Justiça de São Paulo, autorizou o diferimento das parcelas de abril, maio
e junho em um contrato de cessão de quotas. O valor deverá ser pago em dez
prestações mensais, com primeiro vencimento em 15 dias após a publicação da
decisão, destacando que, após a 1ª Guerra Mundial, os países viveram uma situação
econômica absolutamente inesperada, que "tornou deveras ruinosos e inexequíveis
todos os contratos a longo prazo e de execução sucessiva ou diuturna". Logo, "em
tempo de guerra, que é, mutatis mutandis, aquele que vivemos em face da pandemia
do coronavírus, assim deve realmente ser".
4 IMPREVISÃO NOS CONTRATOS AGRÍCOLAS
Os contratos de venda futura podem ser enquadrados, seja no preço ou na
oferta da bem como bilaterais, comutativos ou aleatórios. Sendo em todo ou em
parte aleatórios, em que as partes assumem risco calculados, previsíveis, de ganho
ou de perda para qualquer das partes, já que o resultado depende de um evento
futuro e incerto que pode alterar o seu montante.
232
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
No caso em questão existe uma emptio rei speratae na entrega das sacas, e
uma aceitação de valor fixo, independentemente das nuances ordinárias de mercado.
Atualmente, a venda antecipada da produção agrícola é uma forma de
financiamento para os produtores, dado a antecipação de recursos. É uma alternativa
que favorece o incentivo da agricultura. Commodities, em simples termos, são
produtos de alta liquidez comprados e vendidos em grandes quantidades a todo o
momento em escala global.
Seu valor é determinado no mercado internacional e varia conforme e oferta e
demanda, dentro dos padrões ordinários (repisando o termo de Orlando Gomes:
ordem das coisas).
A agricultura, portanto, é uma atividade que difere das atividades da indústria
e comércio, pois possui riscos próprios, tais como o fator climático, o tempo
necessário para que a produção ofereça retorno econômico, a oscilação dos
preços, além da dificuldade de comercialização devido ao grau de
perecibilidade dos produtos.
É aqui que se encontra a alea da atividade!
Por ser a agricultura e a pecuária atividades com enormes riscos, o mercado
futuro foi uma maneira encontrada para gerenciar os riscos financeiros envolvidos na
comercialização.
Os riscos financeiros que determinam a variação dos preços são muitas
vezes determinados pelos riscos decorrentes da própria atividade que podem
vir a ser incertos, como uma estiagem prolongada além da prevista, uma praga nova
que se desenvolve e que não pode ser previamente combatida, até mesmo os gostos e
sabores dos consumidores.
Todos esses fatores são riscos que influenciam os preços e, portanto, geram
temeridades financeiras.
Existem duas formas de se comercializar no mercado futuro: a primeira é a
venda a termo, na qual o contrato é firmado na data presente e a entrega da coisa
acontece no futuro em data pré-estabelecida no instrumento. Nesse caso, o vendedor
pode receber o valor negociado no momento da contratação ou no momento da
233
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
entrega do produto avençado; a segunda forma são os contratos futuros negociados
em bolsas de valores.
Nas duas modalidades apresentadas, ambas as partes se protegem contra
eventual oscilação de preço no futuro. O mercado futuro constitui uma forma de
amenizar os riscos possibilitando ao produtor, maior prejudicado em épocas de
adversidade, programar sua atividade e executá-la com maior segurança.
Entretanto, os mecanismos sujeitam-se a aleatoriedade dos negócios, das
variantes “próprias da ordem das coisas”, da álea de mercado, não de evento
superveniente e imprevisível, que não é próprio da relação jurídico-econômica, mas
que atinge inexoravelmente a relação, a exemplo da pandemia da COVID19.
Como determinado no art. 317 do Código Civil, na imprevisibilidade não
existe risco assumido, mas excepcionalidade que foge da razão e do controle das
partes:
Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier
desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o
do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a
pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o
valor real da prestação.
A Justiça brasileira vem admitindo com mais frequência a revisão das
condições contratuais em situações excepcionais. A imutabilidade da lex contractus
abre espaço à sociabilidade, economicidade, estabilidade e ao bom senso da revisão,
onde a sentença pode substituir, no caso concreto, a vontade das partes contratantes.
A revisão contratual ocorre quando há enriquecimento sem causa de uma
das partes em detrimento da outra (não se está falando em enriquecimento
ilícito!), em alinhamento ao art. 421 do Código Civil:
Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos
limites da função social do contrato.
Portanto, a imprevisão que justifique a revisão contratual fundamentar-se em
situações absolutamente imprevisíveis aos olhos das partes, não se admitindo
intervenções judiciais em casos que fugirem dessa presunção e que corresponderem
a fatores externos perfeitamente previsíveis (alea).
234
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Na IV Jornada de Direito Civil, quando analisou o art. 478, fez-se constar o
entendimento expresso por meio do enunciado nº 366: "o fato extraordinário e
imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto
objetivamente pelos riscos próprios da contratação".
Há também:
O enunciado no. 176: “Em atenção ao princípio da conservação dos negócios
jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível,
à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual”; O enunciado no. 365:
“A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da
alteração de circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do
negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena”;
e o enunciado no. 367: “Em observância ao princípio da conservação do contrato,
nas ações que tenham por objeto a resolução do pacto por excessiva onerosidade,
pode o juiz modificá-lo equitativamente, desde que ouvida a parte autora, respeitada
a sua vontade e observado o contraditório”.
Antes da pandemia, a Jurisdição já reconhecia a aplicação da resolução total
ou parcial (revisão) do contrato por onerosidade excessiva/imprevisão:
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA DE
RESOLUÇÃO DE CONTRATO. COMPRA E VENDA DE
SOJA COM ENTREGA FUTURA. INVOCAÇÃO DA
TEORIA DA IMPREVISÃO. CONTRATO ALEATÓRIO.
NECESSIDADE
DE
EXTINÇÃO
DO
PACTO.
OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ
OBJETIVA E DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. I Procedente é a pretensão de resolver contrato de compra e
venda de soja com entrega futura, sob a alegação de
superveniência de fatores externos imprevisíveis e onerosos,
tais como as variações climáticas, como oexcesso de chuvas,
pragas (ferrugem asiática) na lavoura, alteração de preços de
insumos aplicáveis na plantação, porquanto afiguram-se estes
fatos situações imprevistas, principalmente porque, em sendo
o contrato aleatório, por se referir a coisas ou fatos futuros,
cuja álea de não virem a existir é previsível para ambos os
contratantes, onde a contraente assume a possibilidade de nada
ser colhido bem como o risco consequente.[...] RECURSO DE
APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDO, MAS IMPROVIDO
(APELAÇÃO CÍVEL nº 127602-1/188–GO (200802460563).
Publicado em: Dje/Go 07/11/2008. Julgado em: 23/07/2008).
235
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A 4ª. Turma do STJ, em REsp nº 860277/GO (2006/0087509-3), mesmo não
provendo os argumentos da parte produtora/recorrida deixou claro que: "É
inaplicável a contrato de compra futura de soja a teoria da imprevisão, porquanto o
produto vendido, cuja entrega foi diferida a um curto espaço de tempo, possui
cotação em bolsa de valores e a flutuação diária do preço é inerente ao negócio
entabulado" (ministro-relator Luis Felipe Salomão).
Logo, na situação em pauta, a pandemia não é um simples risco
produtivo/mercadológico, a variação de preço e de custos produtivos, nem de uma
mera variação de índices cambiais resultantes de uma crise global e superveniente,
não estava previsto nem coberto no contrato ou imaginado pelos contratantes e que
na inaplicabilidade só ocorreria em contratos de curto prazo, o que não se aplica ao
caso em questão.
Deve-se, em nome da função social do contrato, da ordem jurídica social e da
boa-fé, buscar mediadamente reequilibrar o contrato ou em último caso a Jurisdição
assuma postura interventiva na resolução parcial (revisão) do contrato.
BIBLIOGRAFIA
FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil:
Teoria Geral e Contratos em Espécie. 11 ed. Salvador: Jus Podium, 2021.
FRANTZ, Laura Coradini . Revisão dos contratos . São Paulo , Saraiva, 2007
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NEVES, Geraldo Serrano. Teoria da imprevisão e cláusula rebus sic stantibus.
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RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. Rio Janeiro: Forense, 2010
ROSENVALD, Nelson. Código civil comentado. Coord: Cezar Peluso. Barueri:
Manole, 2013
WALD, Arnold. Direito Civil: Direito das Obrigações e Teoria Geral dos
Contratos. 22 ed. São Paulo, Saraiva, 2015
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: contratos. São Paulo , Atlas, 2013,
volume 3
236
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
SEXUALIDADE E INTERAÇÕES
VIRTUAIS NO CONTEXTO DA
PANDEMIA DE COVID 19
Breno Ribeiro Custódio de Carvalho
Aline Sapiezinskas Kras Borges
RESUMO
Com a pandemia, a necessidade de aumentar o distanciamento social tem
transformado os hábitos das populações e novas formas de interação têm ganhado
espaço. A ameaça de contágio do vírus conhecido como COVID19 e o
desconhecimento a respeito dos impactos da doença tem disseminado medo na
população. A recomendação geral para a contenção do vírus é manter o
distanciamento social. Isso impacta na sexualidade e na possibilidade de interações
sociais. Como consequência, a procura por sexo virtual tem crescido, visando
conciliar os desejos naturais dos seres humandos com a conciencia de se manter
seguro, obedecendo ao distanciamento físico, em época de pandemia. Questiona-se
os possíveis impactos dessa situação de aumento das interações virtuais sobre a
sexualidade dos indivíduos solteiros, restringidos nas dinâmicas próprias de
interação social, olhando também para as oportunidades de se reinventar em termos
de dinâmicas e práticas, para aqueles que são trabalhadores do sexo.
Palavras-chave: Pandemia, Sexo, Covid, Práticas sociais, interação, Sexualidade,
Profissionais do sexo.
ABSTRACT
With the pandemic new habits have emerged, the fear of catching COVID19
has created fear in the population, with this the tendency of people to maintain a
certain social distance has increased, due to this the sexual intercourse with physical
contact has reduced. As a result, virtual sex has grown, aiming to reconcile the
natural desires of human beings with the awareness of keeping safe in times of
pandemic. Accompanying this, the addi ction to pornography and the risks that this
can cause in the psychological field has been increasing, creating psychological
problems for individuals. And for those who are sex workers, who cannot reinvent
themselves, we will analyze the life situation of these people, who, without any
support from the State, have to maintain and protect themselves from the risks that
the pandemic originated.
Keywords Pandemic, Sex, Covid, Social practices, Interaction, Sexuality, Sex
workers
237
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
1 INTRODUÇÃO
A pandemia que teve início em 2019 obrigou muitas pessoas a se colocarem
em isolamento social, como única forma de contenção do contágio da doença
causada pelo Corona Virus. Dessa forma, grande parte da população se viu forçada a
abdicar das interações físicas e sociais. Para quem se encontra solteiro nesse período,
uma vez privado das interações sociais e das formas de sociabilidade habituais, se
fez necessário procurar por outras formas de interação e contato humano. É fácil
compreender uma redução na possibilidade de interação sexual devido ao isolamento
social, e um movimento em direção a modalidades virtuais de interação e contato.
Diante dessa nova realidade, observou-se, por exemplo, que sites de pornografia no
período de pandemia registraram aumento de 600% no numero de acessos. O
levantamento foi feito pela empresa Netskope Security Cloud no primeiro semestre
de 2020.
O isolamento social, entretanto, não tem como única consequência o aumento
do consumo de pornografia, mas também impacta de modo mais amplo en termos de
interaçoes e sociabilidade, e em relação a vida sexual dos individuos como um todo.
Alem dos novos consumidores de produtos sexuais, também surgem durante o
períodonovas modalidades de encontro virtual, novas plataformas interativas, grande
número de novos trabalhadores do sexo, e a necessidade de se reinventar em suas
práticas. Questiona-se se durante a pandemia teria aumentando a vulnerabilidade
desse grupo de trabalhadores ligados ao consumo de sexo, e se teria havido aumento
do risco de contágio nesse processo de adaptação a outras formas de interação.
2 O CONSUMO DE CONTEÚDO SEXUAL NA PANDEMIA
O consumo de pornografia não é algo novo na sociedade. Considera-se que
uma boa parcela da população já o consome, entretanto com a pandemia elevou-se o
consumo e a frequência do uso dos sites, de acordo com a pesquisa da Kaspersky no
ano de 2020. Com o isolamento e adoção do teletrabalho, a linha entre vida
profissional e vida pessoal se tornou mais tênue. A pesquisa aponta que o uso de
máquinas de trabalho para fins pessoais chega a 97%. Com isso o acesso a sites de
pornografia que tem pouca segurança no controle das informações dos usuarios,
238
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
representando um risco não apenas ao individuo, mas para as corporações como um
todo, que acabam tendo seus dados mais expostos a ataque de virus e malwares.
Entre os impactos envolvidos no aumento do consumo de material
pornográfico podemos observar uma mudança na forma de interação e nas práticas
ligadas ao exercício da sexualidade, que vai se tornando cada vez mais solitária e
individualizada. Em entrevista ao jornal da USP, Carmita Abdo, fundadora do
ProSex, manifesta a preocupação de especialistas em relação a esse tema.
“As pessoas vão perdendo o controle aos poucos e só o
percebem quando de fato não conseguem mais seguir com seu
cotidiano (...) A busca pela pornografia como uma situação
rápida, sem a necessidade da sedução ou da consensualidade,
com estímulos os mais diversos e excitantes. (...) “Isso torna o
relacionamento comum mais complicado: quem está do outro
lado não é tão exuberante ou interessante, e então o sexo
consensual fica menos interessante, seja virtual ou
presencialmente”
Carmita destaca o contraste entre o modo de interação entre dois indivíduos
dispostos a experiência sexual, que precisarão buscar um entendimento, em face da
experiência sexual virtual e individual, que parece tornar obsoleto o esforço do
encontro e da troca com o outro. Carmita comenta ainda: “A enorme oferta, a
facilidade de acesso e a rapidez de satisfação sem o trabalho da interação, tudo isso
contribui para que quem tenha disposição fique mais preso a essa atividade.” (Jornal
da USP, 2020. Pandemia agravou os riscos da pornografia e do vício em sexo pela
internet. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/__trash ed-6/. Acesso em
25 abril 2021).
A facilidade de acesso a pornografia pode ser entendida como um elemento
que contribui para uma mudança nas formas de interação, interferindo na propria
disposição dos indivíduos para investir em buscar formas de sociabilidade e modelos
de interação mais diretos. Pode ser observada também a busca por uma resposta
imediata, resultando num interesse focado apenas na finalidade, sem a existência de
etapas intermediarias de contato humano ou de aproximação. O imediatismo e a
individualidade da experiência acaba por transformar a sociabilidade, as relações
humanas e a socialização dos indivíduos. Os jovens, que estão em processo de
iniciação na vida sexual, podem ser considerados os mais prejudicados nesse
contexto, uma vez que carecem de experiências e modelos prévios em que se basear,
239
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
e enfrentam grande dificuldade para ingressar em novas redes de sociabilidade e
convívio social, devido a pandemia. Os efeitos de experimentar a iniciação sexual
por meio da pornografia ainda carece de estudos mais aprofundados, entretanto, é
possível perceber uma perda de interesse generalizada nas relações interpessoais e
grande distanciamento, podendo caminhar para o desenvolvimento de quadros
depressivos, com baixas expectativas em relação ao ambiente social e interacional.
“Isso significa que quando o corpo quer, por exemplo,
alimento ou sexo, o cérebro recorda o que deve fazer para
obter o mesmo prazer que em ocasiões anteriores. Em vez de
se dirigir ao parceiro ou parceira para obter uma gratificação
sexual, os consumidores habituais de pornografia recorrem ao
seu celular ou computador quando o desejo bate à porta.”
(Rachel Ane Barr, 2020. O consumo de pornografia faz o
cérebro regredir a um estágio infantil. Disponível em:
https://www.semprefamilia.com.br/saud
e/o-consumo-depornografia-faz-o-cere
bro-regredir-a-um-estagio-infantil/.
Acesso em 25 abril 2021).
Desta forma, o consumo exacerbado de pornografia podem gerar mudanças
de comportamento bastante intensas, tanto no que se refere a iniciação dos jovens na
vida sexual, resultando em desinteresse por outras formas de interaçnao não mediada
pela ambiente virtual, como também para a sexualidade dos adultos, que acabam
desenvolvimento hábito e predileção ao consumo de conteúdo pornografico, em
detrimento das relações sexuais com o parceiro, prejudicando assim a relação afetiva
de casal.
Considera-se que o aumento do consumo de conteúdo sexual durante o
período de pandemia esteja relacionado a necessidade de se manter em isolamento
social. Com isso as próprias interações entre os indivíduos tiveram que se atualizar
para se adaptar às necessidades do momento.
Pesquisa do Instituto Kinsey, têm apontado o aumento do interesse das
pessoas em ter conversas sexuais ou sexo virtual. A motivação apontada pelo
instituto leva em conta uma propensão maior das pessoas a se sentirem solitárias e
em decorrência disso tenderiam a buscar novas sensações e experiências.
Além disso, a pesquisa revelou que quase metade dos adultos admite ter
praticado menos sexo por causa do estresse e do distanciamento imposto pelo
coronavírus. Um estudo feito pela Khoros, plataforma de marketing digital, mostra
240
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
que a busca por palavras chaves como “nudes” e “fotos de pénis" aumentou 384%
no twitter de março para abril, no ano de 2020. A pesquisa indica que houve
crescimento também na compra de brinquedos sexuais. Um levantamento feito pelo
Mercado Erótico entre lojistas e revendedores em 2020 estima que, desde março, a
venda de vibradores aumentou 50% em relação ao mesmo período de 2019.
Observando a tendência no aumento do consumo de produtos e da busca por
conteúdo sexual na internet, muitas pessoas encontraram nesse meio uma
oportunidade para obtenção de renda. Em meio a pandemia, observa-se a
possibilidade de ingresso nesse mercado por meio de venda de nudes e vídeos
sexuais de autoria própria. Em março e abril, por exemplo, o OnlyFans, site famoso
pela geração de conteúdo adulto virtual independente por parte de seus usuários, teve
um crescimento de 75% em novos usuários e criadores de conteúdo. O site possui
um sistema de assinatura onde o assinante paga para consumir o conteúdo do
produtor de conteúdo, com isso gerando renda aos criadores de conteúdo.
Apesar de tanto a rede quanto seus criadores serem bastante
reservados em relação aos valores praticados, o OnlyFans
afirma que pelo menos 100 criadores já receberam mais de
US$ 1 milhão (R$5,68 milhões) por conteúdos ofertados na
plataforma. (Kaique Lima, 2021. OnlyFans: como funciona a
plataforma que já tem mais de 100 milhões de usuários.
Disponível
em:https://olhardigital.com.br/2021/04/0
1/internet-e-redes-sociais/only-fans-atin ge-100-milhoes-deusuarios/.Acesso em 25 abril 2021).
A industria da pornografia movimenta bilhões por ano, e suas divisões dos
lucros é geralmente desproporcinal, ficando os atores geralmente com a menor
parcela. Um exemplo é o fenômeno pornô Mia Khalifa, que recebeu um total de US$
12 mil para participar de alguns filmes - uma fração minúscula do que seu conteúdo
gerou para distribuidores como o Pornhub. O aplicativo Only fans possibilitou que
os profissionais vendam diretamente suas fotos e vídeos, ou assinaturas para
fornecimento de conteúdo, tornando mais rentável para os profissionais, pois permite
maior independência e controle sobre a remuneração. De acordo com o tabloide
britânico DailyStar, “Mia Khalifa arrecada sozinha 10 vezes mais do que recebia de
produtoras por vídeos pornôs protagonizados pela jovem.”
O Only Fans, enquanto rede social, está criando uma categoria
de agentes sociais conhecidos como “influencer do sexo”, que
241
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
seriam as pessoas que criam a conta para compartilhar com o
público a propria relação sexual. Observa-se que há registros
de inúmeros perfis nessa categoria, inclusive de casais, que
encontraram uma oportunidade, inclusive com ganhos
financeiros consideráveis, na exposição da relação sexual
durante a pandemia, possibilitada pelo aumento do consumo
do conteúdo sexual na internet.
Fabricio Viana, escritor e produtor de conteúdo adulto fala sobre a sua
experiência no Only Fans:
“Tenho muitos amigos e amigas que são super conhecidos na
noite e não tem muitos assinantes, e eu falo como!?. Se você
não é uma pessoa conhecida você precisa se tornar conhecida
para aquelas pessoas(...) A resposta se vale a pena criar a
conta, a resposta é depende muito, se você já tem todo um
público e uma base de dados, e você é conhecido e desejado,
vai fundo, conheço amigos que são médicos e advogados que
criaram o Only Fans como eu, que criaram por criar e agora
estão ganhando uma renda extra, não porque elas precisam,
mas porque elas são safadas, são pessoas resolvidas com a
própria sexualidade e não tem problema em expor ela”
3 PROTISTUIÇÃO, VULNERABILIDADE E COVID 19
A protituição é uma situação que envolve riscos e vulnerabilidade, na maioria
das vezes sem amparo social, sofrendo repressão por parte do Estado, o estigma da
profissão por parte da sociedade e correndo risco de vida. As pessoas nesta profissão
enfrentam muitos desafios, e a pandemia só serviu para agravar a situação destes
profissionais.
A pandemia representou um momento de dificuldade para a garota de
programa, para as prostitutas e os profissionais do sexo de um modo geral. Além dos
riscos que fazem parte da rotina da profissão, o trabalho, que envolve contato físico
direto, durante a pandemia representou grande risco de contaminação também pelo
coronavírus.
Para aqueles profissionais que trabalham nas ruas, o isolamento social
representou o esvaziamento dos espaços de encontro da clientela, com redução
significativa dos clientes.
“Sem dinheiro para divulgar o serviço, restou apenas o
movimento esvaziado da rua. “Eu vivi lascada se você quer
saber”. Com medo do coronavírus, a maioria de seus clientes
habituais não apareceram. Perguntei se ela não tinha receio de
242
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
se infectar. “Não, porque eu tomo vodka, aí é álcool dentro e
álcool fora”, emendou a resposta com uma risada.” (Agência
de Notícias UniCEUB, 2021. Prostitutas revelam rotina mais
difícil
durante
pandemia.
Disponível
em:
http://www.agenciadenoticias.uniceub.br/? p=26049. Acesso
em 27 de abril 2021
A necessidade de trabalhar e a falta de políticas que amparem essa parcela da
população faz com que a situação social tenha uma degradação maior, resultando no
aumento da vulnerabilidade social. Durante o isolamento social resultante da
pandemia foi percebida redução do número dos clientes, reprimindo a principal fonte
de renda da maioria dessas pessoas, cuja clientela já não está tão disponível como
antes.
A crise de saúde tem prejudicado a grande maioria das pessoas, podendo ser
observado que milhares de pessoas perderam o emprego ou tiveram sua renda
reduzida. De acordo com as pesquisas, várias mulheres desempregadas estão
encontrando muitas dificuldades para encontrar trabalho e garantir alguma renda
durante a crise gerada pela pandemia.
Pérola Pets, que se identifica assim em seu novo ramo de atuação, trabalhava
como atendente da rede de fast food Burguer King até março, quando o surto do
novo coronavírus chegou e mudou o rumo de sua vida profissional. “Começou a vir
a crise, tudo começou a fechar e eu perdi o meu emprego. Comecei a pensar no
aluguel, nas contas”, conta ela. Em meio à necessidade, Pérola é uma das várias
mulheres que viram no mercado do sexo uma maneira de sobreviver à pandemia.
(YAHOO FINANÇAS, 2020. Prostituição de mulheres aumentou na quarentena,
mostra
pesquisa.
Disponível
em:
https://br.financas.yahoo.com/noticias/p
rostituicao-de-mulheres-aumentou-na-q uarentena-080016645.html. Acesso em 28
abril 2021)
Com menos clientes e com mais concorrentes a renda das trabalhadoras do
sexo reduziu muito, precarizando ainda mais sua situação financeira e além disso
correndo o risco de pegar COVID 19.
A paraense Maria Elias, 43 anos, e a maranhense Luza Maria,
49, se prostituem há mais de duas décadas e dependem desse
trabalho para se sustentarem. Com a pandemia do coronavírus,
elas e outras trabalhadoras sexuais viram o número de clientes
diminuir — e o dinheiro sumir. Sem outra fonte de renda e
243
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
sem poder fazer isolamento social, tiveram que voltar às ruas
mesmo sabendo do alto risco de se infectarem. (UOL, 2020.
Sem beijo, de máscara: prostitutas criam regras para trabalhar
na
pandemia.
Disponível
em:
https://www.uol.com.br/universa/noticia
s/redacao/2021/03/25/so-de-costas-trabalhadoras-sexuaisadotam-protocolo
para-poder-trabalhar.htm?cmpid=copia
ecola. Acesso em 27 de abril 2021)
Mesmo com o aumento do número de pessoas que tem usado do sexo virtual
para ganhar dinheiro, a realidade é que no Brasil cerca de 20 milhões de lares não
tem acesso a internet de acordo com a pesquisa realizada pelo Cetic.br (Centro
Regional de Estudos para o Desen volvimento da Sociedade da Informação), órgão
vinculado ao CGI.br. Sem a possibilidade de tentar realizar o trabalho de forma
remota, as prostitutas têm se arriscado constantemente ao realizar encontros com os
seus clientes.
A Presidente do Coletivo Coisa de Puta +, que atua pelos
direitos das trabalhadoras sexuais, Maria Elias conta que, em
um ano, perdeu dez amigas de trabalho para a covid-19. A
solução encontrada por ela, Luza e outras colegas para
trabalhar com menos riscos de contrair o coronavírus, já que o
distanciamento social é impossível no sexo, foi criar uma
espécie de protocolo de segurança. Ao kit de cuidados que
carregam para evitar as ISTs (Infecções Sexualmente
Transmissíveis), com camisinha e gel lubrificante,
acrescentaram a máscara e passaram a sair de casa com até
cinco peças de roupas para trocar após os programas. Além
disso, estabeleceram regras para a relação sexual: os clientes
não podem beijá-las e elas precisam ficar de costas durante o
ato. Quem se recusa a seguir o protocolo é posto para fora do
quarto, garantem elas. A dificuldade maior, segundo ela, é
convencer os clientes a seguirem o protocolo. "Antes, era
difícil negociar o uso de preservativo, agora essa dificuldade
dobrou ao tentar fazer o cliente usar máscara e não nos beijar",
fala. "Já aconteceu de não aceitarem e tivemos que chamar um
segurança do local onde estávamos trabalhando ou sair do
quarto e desistir do programa. E fazendo isso ficamos só com
a metade do pouco dinheiro que ganhamos hoje. Isso é
rotineiro, infelizmente." (Referência)
Mesmo a instituição de apoio as trabalhadoras do sexo recomendando
protocolos, o seu alcance continua sendo limitado, o trabalho sexual é um trabalho
informal, logo estão totalmente fora das prioridades governamental para a criação de
políticas públicas, para amenizar e dar suporte e evitar a contaminação deste grupo.
Em tempos de desemprego se elevando, recessão econômica e ainda uma pandemia,
a situação de quem usa do sexo não como um hobbie, como o caso dos
244
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
influenciarores do sexo, mas como uma necessidade e unica fonte de renda, a
situação destas pessoas tem se precarizado ainda mais.
4 CONCLUSÃO
Durante a pandemia, verificou-se um aumento no consumo de pornografia, e
com isso todos as letalidades que o consumo exacerbado pode proporcionar.
Contudo a pandemia ressignificou e remodelou as interações sociais e as relações
sexuais, possibilitando uma atualização nas tecnologias vigentes, nos hábitos de uso
de redes socias e de consumo virtual, criando a tendencia do sexo virtual, que já
existia há tempos, mas se viu potencializado devido ao isolamento. Essa modalidade
de interação observou grande aumento do número de adeptos, conforme indicam as
pesquisas realizadas. Na medida em que ocorre uma normalização das condutas
sexuais na modalidade virtual, observa-se uma transformação no modo de se praticar
a relação, mediado pelas redes de internet, resultando em todo um novo campo para
consumo de nudes e videos, bem como no surgimento de novos atores socias nesse
campo, tais como o fornecedor de conteúdo regular para as assinaturas e os
influencers.
Apesar disso, a crise gerada pela pandemia do coronavirus representou um
aumento de pessoas desempregadas, e com isso tiveram que buscar novas
oportunidade de se inserir em algum campo de trabalho para obter uma renda e
sobreviver. No campo da prostituição e do comércio sexual não seria diferente,
Além de conviver com o estigma e o perigo que a profissão representa, as pessoas
precisam também adotar protocolos de cuidados em relação ao risco de contágio do
coronavirus, aumentando os riscos envolvidos na profissão e a vulnerabilidade de
sua posição.
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246
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
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247
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A EPIDEMIA DE DIVÓRCIOS: MAIS UMA
CONSEQUÊNCIA DA COVID-19?
Aline Sapiezinskas Kras Borges Canani
Ronald Henrique Leal Acipreste
RESUMO
Por meio de revisão bibliográfica, este artigo obtiva refletir acerca da
conjugalidade desenvolvida pelo casal durante o distanciamento social resultado da
pandemia da COVID-19. Segundo o Colégio Notarial do Brasil — Conselho Federal
(CNB/CF), o número de divórcios no segundo semestre de 2020 foi 15% maior em
relação ao mesmo período de 2019. Os dados apontam para uma dificuldade em
estabelecer novas formas de se relacionar na intimidade do casal, considerando o
maior tempo de convivência, seja pelo trabalho em casa, pelo aumento do
desemprego, ou outros fatores envolvidos. Questiona-se o impacto da publicação
da Resolução nº 100/2020, do Conselho Nacional de Justiça, que estabeleceu o
procedimento em cartório de modo virtual desde que o divórcio seja consensual e
que o casal não tenha filhos menores, facilitando, assim, o processo de encerramento
formal da relação. O artigo aponta estratégias de enfrentamento dos impactos da
pandemia, visando contribuir para o processo de transição para o novo normal.
Palavras-chave: conjugalidade, covid-19, casamento, sexualidade, enfrentamento.
1 INTRODUÇÃO
Começou na China em dezembro de 2019, o que nos próximos meses se
tornaria a pandemia do Sars-Covid-19, com consequências trágicas para a
população, conforme o que se sabe até o momento. Desde o aspecto da saúde
pública, até as questões econômicas e financeiras, a pandemia trouxe inúmeras e
variadas consequências, impactando também sobre as relações humanas (Silber,
2020). Por ser uma doença desconhecida, possivelmente letal, e altamente
contagiosa, a medida mais urgente a ser tomada pelas autoridades sanitárias
consistiu em restringir a circulação de pessoas com o objetivo de frear a transmissão
do vírus.
248
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Tal estratégia foi traçada levando em conta os aspectos históricos,
considerando a experiência em outras situações de pandemias, e os aspectos técnicocientíficos, ouvindo especialistas das mais diversas áreas que poderiam contribuir
para que as taxas de transmissão desacelerassem até que medicamos e vacinas
fossem descobertos e/ou desenvolvidos (Silber, 2020). O distanciamento social seria
a única medida comprovadamente eficaz naquele momento e ainda hoje.
Diferente de outros países, o Brasil seguiu por outra via: optou por um
discurso negacionista que prega, ainda hoje, a normalidade cotidiana e que a doença
recém-descoberta teria pouco impacto na saúde pública, na economia e no dia a dia
da população. Até o dia 30 de abril de 2021, o Brasil, segundo o portal G1 1,
contabilizou 404.287 mortes em decorrência da pandemia do novo Coronavírus. Os
números crescentes e ainda não estabilizados refletem negativamente no número de
desempregados e vulneráveis sociais. (mencionar proibição de divulgação de dados,
tentativas de suspender a contagem de doentes e mortos, a dificuldade em manter
registros estatísticos que deem conta de mostrar a dimensão da epidemia no Brasil,
em face da estratégia negacionista)
As famílias também sofreram e sofrem as consequências da pandemia. Com o
distanciamento social e o aumento do desemprego, muitas famílias tiveram que se
reorganizar e se reconhecer do dia para a noite. O encontro que antes era só durante
algumas horas da noite passou a ser 24h por dia. A complexidade de duas
individualidades que constituem a identidade conjugal (Porreca, 2019), precisou
rapidamente ser repensada e ressignificada.
Dados do Colégio Notarial do Brasil — Conselho Federal (CNB/CF)
divulgados pela Revista IstoÉ Dinheiro2, afirmam que no segundo semestre de 2020,
os cartórios registraram 43,8 mil processos o que representa um aumento de 15%
quando comparado ao mesmo período de 2019.
Segundo a reportagem, a hipótese levantada para explicar o aumento foi a
implantação do processo digital de pedido de divórcio realizado pelos cartórios e
1
2
https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/04/30/brasil-completa-100-dias-com-mediamovel-de-mortes-por-covid-acima-de-1-mil-periodo-teve-quase-metade-dos-obitos-da-pandemia.ghtml
https://www.istoedinheiro.com.br/numero-de-divorcios-cresce-na-pandemia-e-gera-oportunidades-denegocio/
249
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
oficializado pelo Tabelião, o que torna mais prático e rápido o pedido em caso de
casais sem filhos menores ou incapazes e aqueles com filhos menores em que
questões como pensão, guarda e visitas estejam previamente resolvidas no âmbito
judicial. Além disso, também é necessário que não exista litígio entre o casal.
Este trabalho objetiva investigar, por meio dados estatísticos e de revisão
bibliográfica de trabalhos publicados sobre tema, as possíveis causas do aumento do
número de divórcios durante a pandemia do novo coronavírus, e problematizar essa
questão, adotando o ponto de vista das dinâmicas familiares e considerando as
mudanças ocorridas em decorrência dessa nova realidade.
2 AS MUDANÇAS NA ROTINA DA FAMÍLIA E DO CASAL
O processo de divórcio em si, geralmente não é fácil. O sistema familiar se
subdivide e novas regras passam a compor a rotina da família, agora dividida em
subsistemas, no caso de o casal ter filhos. Afinal, existe ex-marido e ex-esposa, mas
não existe “ex-pai” e “ex-mãe”.
A vida conjugal é influenciada por vários fatores, como o aparelho
intrapsíquico, pela transgeracionalidade dos indivíduos, aspectos culturais, sociais,
temporais, regionais, financeiros, econômicos e com a realidade da pandemia da
COVID-19 não seria diferente, afinal, todos esses impactos sociais, econômicos e
emocionais apresentam-se às famílias como estressores, intensificando sua
vulnerabilidade e demandando um processo de reorganização estrutural (Silva et al.,
2020). Uma nova realidade foi criada do dia para noite e a adaptação foi necessária,
como Porreca (2019), estabeleceu:
A relação conjugal, entendida como uma “dança” simétrica e
assimétrica, abarca uma série de fatores que a constituem, a
dinamizam e a mantêm. Assim, ela pode ser compreendida
como um processo a dois, uma adequação de diferentes que
buscam e desejam um projeto comum por meio do
companheirismo, do cuidado, da dedicação e do bem-estar do
outro (Porreca, 2019).
Com a analogia do autor, podemos considerar que à medida que a música
muda, a “dança” de seus parceiros precisa também sofrer ajustes e adaptações para
acompanhar. É inegável que a pandemia do novo coronavírus é uma importante
alteração nesse ritmo. Com as negociações, ressignificação e conciliação de desejos
250
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
e expectativas individuais é que a conjugalidade e a relação à dois é construída, num
processo dinâmico e complexo, pois são duas pessoas se relacionando e não se
fundindo para formar uma só (Porreca, 2019).
Para melhor compreender como a situação de pandemia pode influenciar o
funcionamento das famílias e dos casais recém divorciados, Carter e McGoldrick
(1995), consideram o fluxo de ansiedade em uma família como sendo tanto
“vertical”, como “horizontal”. As autoras entendem o fluxo vertical como os padrões
de relacionamento e funcionamento que são transmitidos para as gerações seguintes,
principalmente através do mecanismo de triangulação emocional – conceito de
herança transgeracional e triangulação trabalhados por Bowen (Nichols e Schwaz,
2007).
Já o fluxo horizontal no sistema inclui a ansiedade produzida pelos estresses
da família conforme ela avança no tempo. Isso inclui também os estresses do
processo de desenvolvimento esperado e das surpresas da vida, aquilo que não é
possível controlar. Um exemplo disso é a pandemia mundial do vírus Sars-CoV-2,
causador da COVID-19. A Figura 1, baseada em Carter e McGoldrick (1995),
representa como a interação dos fatores estressores influencia os níveis de estresse
no sistema.
Figura 1: Estressores horizontais e verticais (Carter e McGoldrick, 1995).
251
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
As autoras também enfatizam que o estresse de “viver neste lugar, neste
momento” (Carter e McGoldrick, 1995), são importantes e precisam ser
considerados. O contexto espaço-tempo, social, político e cultural vão influenciar os
fatores estressores e essas famílias precisarão se adaptar à realidade do desemprego
crescente, inflação descontrolada, aumento dos alimentos da cesta básica, aumento
de subempregos e informalidade, entre outros (Silber, 2020). Sobretudo, quando há
perda de emprego ou renda, a manutenção do padrão de vida e a subsistência
familiar podem ser prejudicadas, o que vulnerabiliza os membros da família e requer
renegociações entre os pais ou cuidadores divorciados (Lebow, 2020).
Ademais, em pesquisa realizada por Almeida et al. (2020), que investigou as
mudanças nas condições socioeconômicas e de saúde dos brasileiros durante a
pandemia de COVID-19, houve apontamento que 50,5% dos entrevistados seguiram
trabalhando ou iniciaram um novo trabalho durante a pandemia, no entanto 20,6%
perderam o emprego ou ficou sem trabalhar. Dados que apontam para a forte
mudança na rotina da família.
Outro fato estressante identificado em pesquisa realizada por Malta et al.
(2020), com 45.161 participantes, indicou maior consumo de bebida alcoólica
durante a restrição social, na população adulta com 17,6% dos entrevistados
afirmando que aumentou o consumo de álcool neste período.
Na mesma pesquisa, os autores identificaram outras mudanças relevantes na
rotina das famílias, como a diminuição da prática de atividades físicas, o maior
consumo de alimentos industrializados e ultra processados, aumento do
sedentarismo em conjunto do maior tempo gasto em dispositivos eletrônicos, como
celulares, computadores ou tabletes Malta et al. (2020).
Vários estudos associam o abuso de álcool pelos homens como fator
associado à violência doméstica (Curia et al., 2020; Silva & Oliveira, 2015, apud
Campos, Tchalekian & Paiva, 2020). Além disso, Marques et al. (2020), afirmam
que houve um aumento de 17% de ligações com relatos de violência doméstica
utilizando o Ligue 180 disponibilizados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos. Houve, ainda, maior número de chamados da Polícia Militar com
252
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
queixa de violência doméstica nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná,
Pernambuco e Ceará, sendo no primeiro, o número alarmante de 50%.
Várias hipóteses podem ser levantadas para compreender o aumento do
número de divórcios na pandemia. O primeiro fator relevante é a possibilidade dada
pela Lei Federal nº11.441/2007 (2007), que permitiu a realização de separações e
divórcios em cartórios e com a situação de pandemia, esse procedimento passou a
ser feito totalmente on-line após autorização da Resolução nº100 do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) (2020), e com o prazo de até sete dias, em caso de
divórcios consensuais e sem filhos menores ou incapazes.
Lebow (2020), diz que para a maioria das famílias a pandemia da COVID-19
aumenta o estresse e cria limites mais rígidos entre a família nuclear e os demais
membros de parentesco ampliado. O limite agora frequentemente borrado entre
trabalho e casa aumenta e intensifica as oportunidades de conflito, assim como
sobrecarrega o exercício do papel de pai ou de mãe, no controle de atividades
realizadas em casa ao longo do dia, e no gerenciamento do tempo. Observa-se
também a prevalência de outros fatores estressores, como desemprego e redução de
renda. As oportunidades para encontrar novos trabalhos também se encontram
reduzidas. Tais fatores demonstram enfaticamente que os conflitos conjugais foram
maximizados pela situação de pandemia.
Com o aumento do tempo em casa, muitos casais perderam seus mecanismos
de triangulação natural, como descrito por Bowen (Nichols e Schwarts, 2007). Os
mecanismos de triangulação consistem em estratégias psicológicas de manutenção
do equilíbrio dinâmico no interior do sistema familiar. Tal mecanismo de resposta
costuma ocorrer nos processos relacionais que se encontrem diante de situações
estressantes. Uma menor ou nenhuma interação com amigos, colegas de trabalho e
espaços de lazer externo e individuais fizeram com que pensamentos sobre as
vantagens da separação e divórcio fossem intensificadas (Lebow, 2020).
De acordo com Martins, Rabinovich e Silva (2008), a triangulação se refere a
um sistema inter-relacional entre três pessoas, envolvendo sempre uma díade e um
terceiro, que será convocado a participar quando o nível de desconforto e de
ansiedade aumentar entre o par. Uma delas tende a buscar a terceira pessoa para
253
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
aliviar a tensão. Os triângulos aparecem no processo emocional interacional que se
estabelece no sistema familiar e transgeracional. Como exemplo desse processo de
triangulação para fora do sistema nuclear, podemos supor o encontro com familiares
ou amigos, ou mesmo a interação com colegas de trabalho, algo que constitua um
espaço de abertura para expressão individual fora do núcleo familiar, constituindose numa estratégia de liberação da ansiedade e contribuindo para restaurar o
equilíbrio do sistema. Durante a pandemia, com o emprego do isolamento social
como estratégia de enfrentamento, tais mecanismos de reequilíbrio da ansiedade
dentro do sistema deixa de ser possível, muitas vezes gerando uma sobrecarga no
núcleo familiar, como se pode supor.
Ainda considerando esse contexto de aumento do estresse e ansiedade crônica
no interior do sistema familiar, outros fatores como o aumento da violência
doméstica, consumo excessivo de álcool e outras drogas também podem contribuir
para o crescimento dos números de casais divorciados. Associado a isso, o
desemprego e a consequente diminuição de renda familiar são problemas
enfrentados pelas famílias brasileiras de classes sociais mais vulneráveis e
assalariadas, fatos que foram exponencializados pela pandemia (Campos, Tchalekian
& Paiva, 2020).
Segundo Walsh (2005, apud Silva, et al., 2020), s recursos familiares podem
ser divididos em três categorias principais (a) os modelos organizacionais; (b) o
sistema de crenças; e (c) o processo comunicacional ou de resolução de problemas.
Contudo, esses padrões de interação que se desenvolvem em determinadas famílias
podem apresentar um risco para a forma de lidar com os estressores, como por
exemplo, questões relacionadas à comunicação, tolerância, frustração e outros
sentimentos negativos (Henry et al., 2015; Walsh, 1995, apud Silva, et al., 2020).
Quando a família não consegue lidar com os fatores estressores que geram crises, o
divórcio pode ser a solução encontrada.
Pasquali e Moura (2003), identificaram em pesquisa realizada com 310
participantes que existe a crença de que as questões relacionadas ao divórcio e
separação do casal devem ser tratadas no âmbito íntimo, sendo assim, sofrendo mais
influências internas e externas. Contudo, Carter e McGoldick (1995), destacam a
254
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
influência dos estressores horizontais nos sistemas familiares. Isto é, a influência de
situações imprevisíveis, como a pandemia, é um fator de estresse e que deve ser
trabalhado dentro do âmbito familiar.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É necessário considerar, ainda, os fatores subjetivos de como os indivíduos
estão lidando com o bombardeio de fatores estressantes externos, como já foi dito.
Barros et al. (2020), em pesquisa que objetivou analisar a frequência de tristeza,
nervosismo e alterações do sono durante a pandemia de COVID-19 no Brasil,
constatou que 40,4% dos entrevistados se sentiram frequentemente tristes ou
deprimidos, e 52,6%, frequentemente ansiosos ou nervosos; 43,5% relataram início
de problemas de sono, e 48,0%, problema de sono preexistente agravado. A pesquisa
apontou que adultos jovens, mulheres e pessoas com histórico de depressão
apresentaram mais sentimentos negativos durante o período de pandemia.
O casal é composto por dois indivíduos únicos que não se tornam uma pessoa
só. Cada um carrega sua história, dores, medos, anseios, sonhos e particularidades. A
partir dessa interação, a construção do “nós” é dada diariamente com a convivência e
o estabelecimento de limites e regras para os dois (Porreca, 2019). Considerar tanto
os fatores subjetivos de cada membro familiar, quanto os fatores externos de
estresse, é um caminho importante a ser seguido para problematizar e pensar em
hipóteses para compreender o motivo do aumento dos divórcios na pandemia.
A pandemia do novo coronavírus vem trazendo inúmeras consequências
negativas no âmbito econômico, financeiro, social e psicológico. Com o número
crescente de mortes, a sensação de medo da população é real e assola indivíduos de
diversas maneiras. O distanciamento social possui custos para a saúde mental das
pessoas, contudo, ainda é a melhor forma de controle da pandemia no Brasil,
considerando a lentidão do processo de imunização da população brasileira.
Vale ressaltar que este trabalho objetivou investigar as possíveis hipóteses
para o aumento do número de divórcios no Brasil identificado pelo Colégio Notarial
do Brasil — Conselho Federal (CNB/CF), no segundo semestre de 2020, na
modalidade de formalizações realizadas em cartórios. Se faz necessária a realização
255
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
de outros estudos utilizando diferentes metodologias a fim de identificar as causas
reais que motivaram esse aumento no contexto de pandemia no cenário brasileiro.
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
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257
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
REFLEXOS DA PANDEMIA DO
CORONAVÍRUS (COVID-19) NO
AUMENTO DE VÍTIMAS DE TRÁFICO DE
PESSOAS NO BRASIL E NO MUNDO
Hédel de Andrade Torres1
Barbara Tude de Souza Ferreira2
RESUMO
O tráfico de pessoas é uma das formas mais graves de violação dos direitos
humanos. Trata-se de crime organizado transnacional que atinge os mais diferentes
grupos sociais dos quais mulheres e crianças continuam a ser as principais vítimas.
Apesar de existir desde a antiguidade, o tráfico humano está sempre ganhando novos
contornos dado o fato de ser um crime dinâmico e multifacetado que desafia as
autoridades dos mais variados países. Essa modalidade ilícita se aperfeiçoa com a
globalização e com a tecnologia mesmo em tempos de pandemia gerando cifras cada
vez mais altas para aliciadores e traficantes de seres humanos. Desde 2020, o mundo
vem sofrendo as consequências dramáticas geradas pela COVID-19, com milhões de
infectados em todo o planeta. Em abril de 2021, já se somavam mais de 3 milhões de
mortes em todo o mundo, sendo que a América do Sul tem sido uma das regiões que
mais tem sofrido com o aumento de casos e, consequentemente, o Brasil um dos
países mais afetados no planeta. Assim, o presente artigo analisará o crime de tráfico
de pessoas de maneira a apresentar de quais maneiras a pandemia tem influenciado
os diversos indicadores desse crime e colaborado para o aumento de suas vítimas em
todo o mundo.
Palavras-chave: Tráfico de Pessoas. Tráfico Humano. Direitos Humanos.
Vulnerabilidade. Pandemia do coronavírus (COVID-19).
ABSTRACT
Human trafficking is one of the most serious forms of human rights
violations. It is transnational organized crime that affects the most different social
1
Hédel de Andrade Torres: Mestrado em Direito das Relações Internacionais (Centro Universitário de
Brasília/DF – UniCEUB, 2011), Pós-Graduação em Direito Legislativo (Instituto Legislativo Brasileiro
do Senado Federal – ILB/DF, 2016), Graduação em Direito (Universidade Estadual de Santa Cruz, em
Ilhéus/BA – UESC/BA, 1998). E-mail: HedelTorres@hotmail.com.
2
Barbara Tude de Souza Ferreira: Pós-graduação em Direito Internacional Aplicado (Escola Brasileira de
Direito – EBRADI, 2021), Graduação em Administração de Sistemas de Informação (União
Educacional de Brasília/DF – UNEB, 2002). E-mail: BarbaraTudeFerreira@hotmail.com.
258
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
groups of which women and children continue to be the main victims. Despite
existing since ancient times, human trafficking is always gaining new contours given
the fact that it is a dynamic and multifaceted crime that challenges the authorities of
the most varied countries. This illicit modality is improved with globalization and
with technology, even in times of pandemic, generating ever higher numbers for
recruiters and traffickers in human beings. Since 2020, the world has been suffering
the dramatic consequences generated by COVID-19, with millions of people
infected across the planet. In April 2021, there were already more than 3 million
deaths worldwide, and South America has been one of the regions that has suffered
most from the increase in cases and, consequently, Brazil is one of the most affected
countries in Planet. Thus, this article will analyze the crime of trafficking in persons
in order to present how the pandemic has influenced the various indicators of this
crime and contributed to the increase in its victims worldwide.
Keywords: Trafficking in Persons. Human
Vulnerability. Coronavirus pandemic (COVID-19).
Trafficking.
Human
rights.
1 INTRODUÇÃO
O tráfico de pessoas é antigo na sociedade. Embora não haja uma data certa
para o seu início, a história da humanidade é marcada por inúmeros conflitos e lutas,
onde desde a antiguidade os povos vencedores das batalhas escravizavam os
perdedores. Inclusive, antes mesmo dos tempos bíblicos já se relatava a escravidão
como prática permitida e legítima na época.
Porém, com o passar dos anos, toda e qualquer forma de escravidão passou a
ser vista como ilícita, muito embora, ainda existam países na atualidade onde essa
conduta não é criminalizada e nem penalizada.
Já no Brasil, por exemplo, desde a Lei Áurea – Lei nº 3.353 de 13 de maio de
1888, assinada pela princesa Isabel, a escravidão passou a ser proibida, muito
embora, na prática, não é exatamente isso que acontece. Assim, existem vários tipos
de escravidão nos dias de hoje, sendo o tráfico de pessoas considerado como apenas
uma dessas formas. Ou seja, o tráfico de pessoas, enquanto forma moderna de
escravidão, tem recebido novos contornos constantemente e continua atingindo
milhões de pessoas não apenas no Brasil mas em todo o mundo.
O tráfico de pessoas faz vítimas em todo o planeta, de maneira a gerar alta
lucratividade para os traficantes e aprisionar pessoas muitas vezes a partir de seus
próprios sonhos. Assim, o tráfico humano viola os direitos mais fundamentais do ser
259
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
humano, dentre eles, o direito de ir e vir, o direito à dignidade humana, o direito à
saúde, o direito à vida, dentre outros.
De modo divergente, no entanto, a pandemia do coronavírus não é antiga na
sociedade e surgiu no final de dezembro de 2019 na China, de modo que logo se
espalhou por todo o mundo fazendo milhares de vítimas em todo o planeta. Os
números atuais somam mais de 4 milhões de óbitos em todos os continentes, sendo o
Brasil um dos países mais gravemente atingidos pela doença.
Com a pandemia, e, agora de maneira similar ao tráfico de pessoas, os
direitos fundamentais das pessoas, dentre eles o direito de liberdade, o direito à
dignidade humana, o direito à saúde, o direito à vida, dentre outros, passaram a ser
cerceados e limitados. Em alguns países, agentes de saúde se viam obrigados a
escolher os doentes com maiores chances de sobrevivência em prol de outros que
nem sequer puderam ter a chance de terem seus direitos resguardados e preservados.
Assim, quando se fala em restrição de direitos e garantias fundamentais, fica clara a
semelhança entre o crime de tráfico humano e a Covid-19.
Mais de um ano após o início da pandemia, os números crescentes de casos
em diversos cantos espalhados pelo mundo continuam assombrando as pessoas que,
com medo, se privam da vida que tinham antes de todo esse caos iniciar.
Atualmente, vacinas já estão sendo oferecidas à população, muito embora, o fato é
que a situação que ainda se observa está longe do que até 2019 se considerava como
normal.
Dessa maneira, a partir do “novo normal” promovido pela doença que vem
afetando toda a população mundial e, procurando relacionar os temas em tela –
tráfico de pessoas e o surgimento da Covid-19, observa-se que com a dificuldade de
se lidar com o problema em nível mundial, a vulnerabilidade das pessoas, de modo
geral, acaba por aumentar, o que acaba favorecendo o aumento de vítimas desse
crime e, inclusive, piora o estado das que já se encontram nessa condição.
Assim, o objetivo do presente artigo será o de trazer à tona os reflexos da
pandemia do coronavírus em relação ao aumento do número de vítimas do tráfico de
pessoas. É de fundamental importância analisar as causas e as consequências para as
vítimas desse crime tão cruel que é o tráfico humano em meio à pandemia causada
260
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
pela Covid-19 que desde 2020 vem afetando todo o planeta de maneira incalculável
e aumentando o caos no cenário global.
2 BREVE HISTÓRICO: DA ESCRAVIDÃO NA ANTIGUIDADE
AO TRÁFICO DE PESSOAS NA MODERNIDADE
A escravidão é remota e está presente há séculos na história e em muitas
culturas da sociedade. Acredita-se que a escravidão tenha tido início durante a
Revolução Neolítica que ocorreu há mais de 10 mil anos e é onde a agricultura teria
sido inventada. Na medida em que a agricultura era expandida, maior era a
necessidade de trabalhadores importados das regiões próximas do antigo Oriente que
pudessem atuar junto às plantações, o que teria desencadeado a mão-de-obra escrava
no momento em que a agricultura alcançou seu nível mais avançado de produção.
Civilizações antigas como as da Suméria, Egito, Grécia, Babilônia, Império
Romano, as pré-colombianas das Américas (incas, astecas e maias), dentre outras,
possuem inúmeros casos da presença da escravidão entre seus povos, desde
escravidão por dívida, prisioneiros de guerra, crianças abandonadas que se tornavam
escravas, bem como, outras que já nasciam escravas são alguns dos exemplos de
situações que levavam à escravidão desde a sociedade mais remota (Harris, 1999).
Bonjovani (2004) afirma que as disputas por territórios durante o período
antigo favoreciam a comercialização dos povos perdedores dessas batalhas pelos
povos vencedores e que tal comercialização ocorria por meio da escravidão.
Da mesma forma, Santos (2003) aponta que desde os primórdios, em razão
dos conflitos existentes entre as tribos e os diversos povos, que já havia indícios de
trabalho escravo, muito embora, no Egito, na Grécia e em Roma é que a escravidão
teve grandes proporções, uma vez que nessas culturas os próprios filhos dos
prisioneiros de guerra já nasciam escravos.
De acordo com o autor (Santos, 2003), no Egito havia uma divisão na
sociedade entre dominantes e dominados. No primeiro grupo estavam os escribas, os
nobres e os sacerdotes, enquanto que artesões, escravos e camponeses compunham o
segundo grupo. Já na Grécia, registra-se a presença da escravidão desde o período
Homérico que durou do século XV até o século VIII a.C., e, inclusive, também no
261
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
período Helenístico, este ocorrido nos séculos V e VI a.C, e, segundo Silva (2010), a
escravidão era atribuída tanto aos prisioneiros de guerra quanto a aqueles que não
pagavam suas dívidas. Ainda sobre a Grécia, era comum o rapto de crianças e,
inclusive, aquelas que eram abandonadas pelos pais eram mais facilmente
suscetíveis à escravidão. Já em Roma, segundo o mesmo autor (Silva, 2010), uma
vez que os escravos eram considerados como coisas (res), estes, em sua maioria, não
possuíam direitos de cidadania nem civis.
Sobre Roma, Porchat (1915) complementa que a lei romana previa a
existência do cidadão romano e, nesse sentido, alguns nasciam em liberdade,
enquanto que outros eram escravos, mas que, contudo, poderiam ser libertos dessa
condição legal imposta pela escravidão.
Com o surgimento do Cristianismo, de acordo com Alonso (1986), a prática
da escravidão foi legal durante todo o período que atravessou a Sagrada Escritura,
desde a presença dos patriarcas até o primeiro século da então Era Cristã.
Segundo explicações apresentadas por Gasda (2013), em seu artigo "Tráfico
de Pessoas na Sagrada Escritura",
“Não há dúvidas a respeito da compra e venda de pessoas no
patriarcalismo. Era prática comum para a época. Entretanto, o
escravo adquirido no mercado pelo agricultor não era visto
como mercadoria, pois se buscava mais uma mão-de-obra para
trabalhar ao seu lado na lavoura e não alguém que fizesse o
trabalho por ele. Os patriarcas bíblicos (também na Grécia, e
os pater famílias de Roma), submetiam seus filhos e parentes
ao trabalho compulsório na unidade familiar. Todos aqueles
que estavam subordinados aos patriarcas, como os membros
da família e os escravos, eram obrigados a trabalhar para
garantir o sustento do grupo”.
Nesse sentido, um dos exemplos mais clássicos envolvendo a escravidão nos
tempos bíblicos é revelado na história de José, filho predileto de Jacó, e que foi
vendido como escravo pelos seus próprios irmãos e que veio a se tornar, anos mais
tarde, o governador do Egito (Bíblia Sagrada, GN 37-50).
Apesar da presença de escravos também nessa época bíblica, Santos (2003)
explica que aos poucos a escravidão foi sendo enfraquecida a partir dos princípios de
igualdade, fraternidade e liberdade já observados pela Revolução Francesa, assim
262
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
como, pelas propostas de um tratamento envolvendo maior dignidade e caridade por
São Tomás de Aquino e Santo Agostinho.
Já na Idade Média, prevaleceu-se o regime de servidão e, apesar dos servos
não serem considerados como coisas (res) nem escravos, eram vistos como
acessórios pertencentes aos senhores feudais. Estes servos viviam sob condições
desumanas e tinham uma série de limitações em seus direitos, dentre eles, no que diz
respeito ao direito de ir e vir (Santos, 2003).
Silva (2010) complementa que neste período da Idade Média os senhores
feudais também prendiam os derrotados dos conflitos de maneira a comercializarem
estes como escravos. O mesmo autor afirma ainda que a Turquia já promovia uma
espécie de tráfico de escravos durante este período.
Ao final da Idade Média e com o declínio do feudalismo, a escravidão voltou
ao cenário já no início da Idade Moderna com as grandes navegações promovidas
pelos europeus, principalmente pelos portugueses e espanhóis com os ideais do
denominado Novo Mundo.
Os indígenas nativos encontrados nas Américas, e principalmente, no Brasil,
pelos europeus foram escravizados principalmente para a produção de café e canade-açúcar e, com o passar do tempo, visando a manutenção da mão-de-obra que já se
encontrava escassa nas colônias, escravizou-se também os negros africanos
promovendo-se assim o tráfico negreiro.
Segundo explicam os autores Bonacchi e Groppi (1995), no século XVIII,
nos anos de 1789 e 1791 respectivamente, foram proclamadas a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão e a Declaração dos Direitos da Mulher e da
Cidadã, ambas regidas sob os princípios de liberdade, igualdade e dignidade.
Conforme ensinam os autores Dodge (2002) e Melo e Lorentz (2011),
somente com o decorrer do tempo, a partir da existência de influência advinda da
Inglaterra, e com as Leis do Ventre Livre, dos Sexagenários e com a Lei Áurea, é
que o sistema escravagista, adotado até o século XIX, foi abolido definitivamente de
maneira formal do território brasileiro.
263
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Com a Revolução Industrial e a imensa necessidade de grande quantitativo de
pessoas para operar as máquinas, Garcia (2011) descreve que foi nesse momento da
história que houve a substituição da mão-de-obra escrava e servil por trabalhadores
assalariados, dando início então ao trabalho livre. Delgado (2013) afirma que é a
partir desse cenário que tem início o Direito do Trabalho, onde trabalhadores
encontram-se subordinados, porém, por meio de relações de emprego e salários,
diferentemente do que acontecia antes. Apesar disso, não era visível à época uma
grande oferta de trabalho renumerado, assalariado e livre.
Ressalta-se, ainda, de acordo com Silva (2010), que enquanto na Europa se
introduzia o trabalho livre com vistas ao desenvolvimento do capitalismo, no Brasil,
o real interesse era a manutenção do sistema agrícola e territorial onde o contexto da
escravidão estava implantado. Uma vez que a escravatura foi abolida, o Brasil
passou a usufruir da mão-de-obra de imigrantes europeus, tendo sido promulgada no
ano de 1850 uma lei com o intuito de que se desenvolvesse uma política de
imigração de estrangeiros.
Embora os negros tivessem conquistado sua liberdade, conforme destacam
Melo e Lorentz (2011), estes foram excluídos socialmente e marginalizados uma vez
que se encontravam sem possibilidade de trabalhar de maneira remunerada.
Com o passar dos tempos até a chegada da atualidade, o que se observa no
Brasil (dentre outros países no mundo) é que embora não haja mais uma escravidão
formal como nos tempos antigos, há ainda registros de uma escravidão de forma
camuflada e moderna ou contemporânea.
E é aí, a partir dessa visão moderna, que a escravidão e o tráfico de pessoas
acabam sendo vistos como coisas distintas, sendo o trabalho escravo, o trabalho
servil, dentre outros, como apenas algumas das formas de exploração ao ser humano,
ou seja, como algumas das maneiras pelas quais o tráfico de pessoas acontece.
Em meados do século XIX, a prostituição ultrapassava as fronteiras
internacionais com o tráfico de mulheres brancas trazendo grandes preocupações
humanitárias à época, fazendo com que surgisse no ano de 1904 o primeiro
instrumento internacional voltado à inibir as práticas da escravidão sexual que
acontecia nas Américas que era o Tratado Internacional para a Eliminação do
264
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Tráfico de Escravas Brancas. Venson e Pedro (2013) complementam que na virada
para o século XX a prostituição já ameaçava várias searas, entre elas, o corpo, a
família, o casamento, a propriedade e o trabalho.
Em 1926, a Convenção das Nações Unidas sobre a Escravatura definiu a
escravidão como “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem,
total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade” (Organização das
Nações Unidas – ONU, 1926).
A Organização Internacional do Trabalho – OIT estipulou, em 1930, por
meio de suas Convenções nº 29 e 105, as terminologias de trabalho forçado ou
obrigatório. Segundo a Convenção nº 29, “a expressão trabalho forçado ou
obrigatório designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça
de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”
(OIT, 1930). Ressalta-se, contudo, no artigo 2º da Convenção em referência que os
serviços militar e cívico em país autônomo, bem como, as obrigações decorrentes de
condenações judiciais, emergenciais e de serviços comunitários não são vistos como
formas de trabalho forçado ou obrigatório.
No ano de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ficou
definido que nenhum ser humano deve ser mantido em regime de servidão, nem
escravidão e nem de tráfico de pessoas e foi expressamente estipulado na
Declaração, ainda, que ninguém deverá ser submetido à tortura, castigo cruel,
degradante ou desumano.
Em 1956, ampliou-se a Convenção das Nações Unidas sobre a Escravatura a
partir da Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de
Escravos e de Instituições e Práticas Análogas à Escravatura com o objetivo de que
os esforços no combate a essas práticas fossem aprimorados, tendo o Brasil assinado
este tratado no ano de 1966, por meio do Decreto n. 58.563.
Já a respeito das Convenções n. 29 e 105, ambas da Organização
Internacional do Trabalho – OIT, como acima destacado, salienta-se, que o Brasil é
signatário dessas Convenções desde 1957 de acordo com o Decreto n. 41.721 e que
representa mais esforços no que diz respeito ao combate do trabalho escravo.
265
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Posteriormente, no ano de 1969 foi promulgada a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos que também proibiu expressamente a servidão, a escravidão
e o tráfico humano, especialmente o de mulheres e é por meio do Decreto n. 678,
datado de 1992, que se incorpora esta Convenção no Brasil.
Para Melo (2003), trabalho forçado tem relação com a exploração do
trabalhador que esteja impedido de maneira moral, psicológica ou física a abandonar
o serviço ainda que tenha inicialmente aceito a trabalhar de maneira livre.
Brito Filho (2004) assevera que o trabalho degradante, assim como o trabalho
forçado, é uma espécie de trabalho em condições análogas à escravidão e caracteriza
como sendo aquele que não possui garantias mínimas de segurança, saúde, moradia,
respeito, higiene e alimentação.
Para Sento-Sé (2000), o trabalho forçado é apenas uma das espécies de
trabalho análogo ao de escravo, enquanto que, para Melo (2003) o trabalho forçado e
o trabalho escravo estão equiparados.
Vários instrumentos internacionais surgiram com o intuito de se eliminar a
escravidão e o tráfico, porém, restaram-se frustrados. Na sequência, no ano 2000, na
cidade de Palermo, na Itália, foi elaborado o documento mais importante envolvendo
a questão do tráfico de pessoas no mundo. Tratava-se do Protocolo Adicional à
Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à
Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e
Crianças. Este Protocolo ficou mais conhecido como Protocolo de Palermo e sua
finalidade é a prevenir e combater tal crime dando mais atenção tanto para mulheres
quanto para crianças já que são os grupos mais vulneráveis à exploração. Este
Protocolo ainda visa o respeito dos direitos humanos das vítimas e promove uma
cooperação entre os Estados-membros com o intuito de se alcançar seus objetivos,
tendo sido foi ratificado pelo Brasil em março de 2004 por meio do Decreto n.
5.017. Este instrumento internacionalmente aceito por vários países no mundo define
o tráfico de pessoas como:
“A expressão ‘tráfico de pessoas’ significa o recrutamento, o
transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de
pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras
formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de
266
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou
aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o
consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra
para fins de exploração. A exploração incluirá. No mínimo, a
exploração da prostituição de outrem ou outras formas de
exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura
ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de
órgãos” (Brasil, 2004).
Como observa-se no conceito de tráfico de pessoas, internacionalmente aceito
e ratificado pelo Brasil em março de 2004, o trabalho escravo passa a ser apenas
uma das várias espécies de tráfico de pessoas.
Pouco antes, em 2003, no entanto, a Lei n. 10.803 incluía no Código Penal
Brasileiro a tipificação do crime de redução à condição análoga ao de escravo:
“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo,
quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada
exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de
trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção
em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena
correspondente à violência.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do
trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se
apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador,
com o fim de retê-lo no local de trabalho.
§ 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:
I – contra criança ou adolescente;
II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
origem.”
Melo e Lorentz (2011) entendem que a definição da lei penal se aplica ao
artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT de maneira a equiparar o
trabalho análogo ao de escravo com o trabalho forçado e incluindo também a jornada
exaustiva e degradante nesse tipo de situação.
Finalmente, vários são os dispositivos espalhados na legislação brasileira que
demonstram que o Brasil é intolerante quanto ao trabalho análogo à escravidão, entre
eles, o artigo 1º, incisos III e IV da Constituição Federal de 1988 – CF/1988 que
definem que a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho estão
267
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
entre os fundamentos da República Federativa do Brasil. Há ainda o artigo 4º, inciso
II, da CF/1988 que mostra a importância da prevalência dos direitos humanos como
um dos princípios que rege o Brasil em suas relações internacionais. Outros
exemplos estão no artigo 5º da CF/1988, mais especificamente no inciso III, que
elenca como direito fundamental a garantia de que ninguém deverá ser submetido a
tratamento degradante ou desumano. No mesmo artigo 5º, inciso XXIII, da CF/1988,
ainda se fala sobre a função social da propriedade. Outro exemplo é o artigo 170,
ainda da CF/1988, que define que a ordem econômica é fundada na valorização do
trabalho e que, portanto, objetiva assegurar a todos uma existência digna e de justiça
social. Já o artigo 7º da Carta Magna de 1988, inciso VI, veda a possibilidade de
redução salarial com o intuito de inibir a servidão por dívidas, dentre outros
exemplos (CF, 1988).
2.1 Breve evolução normativa e legislativa a respeito do tráfico de
pessoas no Brasil
Já a respeito do crime de tráfico de pessoas, e que o Brasil, no momento em
que ratificou internacionalmente o compromisso de prevenir o ilícito, bem como de
proteger suas vítimas, demorou a elaborar uma lei com esse intuito tendo perdurado
por muitos anos os já abolidos artigos 131 e 131-A no Código Penal Brasileiro e que
até 2016 eram os únicos artigos do Código Penal a abordarem o tema do tráfico
humano, mais especificamente e unicamente sobre tráfico de pessoas para fins
sexuais, ou seja, as outras formas de exploração narradas pelo Protocolo de Palermo
não eram protegidas pela nação brasileira apesar do compromisso firmado frente às
Nações Unidas desde o ano de 2004.
Com o Protocolo de Palermo ratificado pelo Brasil em 2004, inicialmente no
ano de 2006 o País promulgou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas e instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial – GTI cuja finalidade era a
de criar o I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – I PNETP
(Brasil, 2006).
A partir da Política Nacional, elaborada em 2006, no ano de 2008, o Decreto
n. 6.347 promulgou então o I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas – I PNETP com a finalidade de prevenir e reprimir o tráfico de pessoas em
268
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
território nacional, bem como o de responsabilizar os agentes causadores do ilícito.
Várias foram as ações desse I Plano que contaram com a integração de diversos
órgãos governamentais, organismos internacionais e membros da sociedade civil
para juntos enfrentarem o problema. Onze prioridades foram definidas e o I Plano
foi executado até o ano de 2010 (Brasil, 2008).
Sequencialmente, em fevereiro de 2013, o II Plano de Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas – II PNETP foi aprovado pela Portaria Interministerial n. 634 que
contou com os mesmos objetivos do I Plano e se estruturou a partir de cinco linhas
de operação. Este segundo Plano foi executado de 2013 a 2016 (Brasil, 2013a).
Além disso, também em 2013, por meio do Decreto n. 7.901, instituiu-se a
Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
e o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – CONATRAP
(Brasil, 2013b).
Em 2011, no entanto, formou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito –
CPI no Senado Federal para investigar o crime de tráfico de pessoas no Estado
brasileiro e cujo resultado foi o Projeto de Lei do Senado – PLS n. 479 de 2012 que
tinha por finalidade a elaboração de uma lei de enfrentamento ao tráfico de pessoas
em território nacional. O Projeto foi encaminhado para a Câmara dos Deputados sob
a denominação do Projeto de Lei n. 7370 de 2014 onde sofreu algumas alterações e
voltou ao Senado Federal com a denominação de Substitutivo n. 2 de 2015. O texto
alterado foi rejeitado, prevalecendo-se o texto original que acabou por ser
sancionado em outubro de 2016 como a Lei n. 13.344.
Dentre os diversos objetivos da Lei, conforme explicam os autores Smith,
Oliveira, Ferreira, Scandola e Torres (2020), o principal destes objetivos era o de
equiparar a legislação brasileira ao Protocolo de Palermo.
Dessa forma, a Lei n. 13.344 representou assim um imenso avanço uma vez
que passou a proteger todas as formas de exploração previstas pelo Protocolo de
Palermo, tendo sido inserido o artigo 149-A no Código Penal Brasileiro com a
seguinte tipificação:
269
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
“Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir,
comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça,
violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de:
I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo;
II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo;
III - submetê-la a qualquer tipo de servidão;
IV - adoção ilegal; ou
V - exploração sexual.
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.
§ 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se:
I - o crime for cometido por funcionário público no exercício
de suas funções ou a pretexto de exercê-las;
II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa
idosa ou com deficiência;
III - o agente se prevalecer de relações de parentesco,
domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência
econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica
inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou
IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território
nacional.
§ 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for
primário e não integrar organização criminosa” (Brasil, 2016).
De modo continuado com vistas à prevenção do crime de tráfico de pessoas
no Brasil e a proteção de suas vítimas, no ano de 2018 foi promulgado o Decreto n.
9.440 com o III Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – III PNETP trazendo
maiores desafios multidisciplinares e estruturando-se em seis eixos temáticos que
são: gestão da política, gestão da informação, capacitação, responsabilização,
assistência à vítima e, também, prevenção e conscientização pública. Ressalta-se,
ainda, que este III Plano ainda se encontra vigente e tem previsão de implementar
suas metas até o ano de 2022 nas diversas esferas em colaboração com os vários
atores que visam igualmente este fim.
Já no ano de 2019, com a promulgação do Decreto n. 9.796, instituiu-se o
Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do III Plano (Brasil, 2019).
3 DADOS E ESTATÍSTICAS RECENTES DO TRÁFICO DE
PESSOAS,
CASOS
DE
COVID-19
E
OUTROS
RELACIONADOS, NO BRASIL E NO MUNDO
270
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A análise de dados e estatísticas é um importante indicador dos fatos que
estão acontecendo acerca dessas temáticas e, uma vez analisados de forma criteriosa,
podem repercutir em valiosas estratégias que possam permitir a redução do
problema. Assim, é fundamental que tais informações sejam mantidas em constante
atualização cujo objetivo maior é o de traçar metas realistas visando a diminuição de
casos, em especial, de tais situações que contam com a vulnerabilidade dos
indivíduos e que acabam por acarretar, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo,
o crescimento dos números também de casos envolvendo o tráfico de pessoas e suas
diversas formas de exploração.
A Organização Mundial da Saúde – OMS informa que globalmente, até às
18h06 do dia 6 de agosto de 2021, foram confirmados 200.840.180 casos de
COVID-19, tendo sido registrados 4.265.903 mortes notificadas à OMS. Até o dia 5
de agosto de 2021, um quantitativo de 3.984.596.440 doses da vacina foi
administrado em todo o mundo (OMS, 2021).
Desses números relatados à OMS, já foram confirmados 78.118.399 casos
nas Américas (com 2;023.469 mortes), demonstrando ser a localidade mais atingida
pela pandemia do coronavírus em todo o planeta. Na sequência aparece a Europa
com 60.941.033 casos (com 1.227.956 mortes), o Sudeste da Ásia com 38.961.269
casos (com 585.063 mortes), o Mediterrâneo Oriental com 12.949.856 casos (com
240.395 mortes), a África com 5.087.597 casos (com 120.721 mortes) e, finalmente,
o Pacifico Ocidental com 4.781.263 casos confirmados (com 68.286 mortes) (OMS,
2021).
Ainda no intuito de se exemplificar alguns países, áreas e territórios cujos
índices são bastante altos, há os Estados Unidos com um total de 35.229.302 casos
confirmados (e 610.180 mortes), a Índia com 31.856.757 casos (e 426.754 mortes), o
Brasil com 20.026.533 casos confirmados (e 559.607 mortes), a Federação Russa
com 22.660 casos (e 163.301 mortes), a França com 6.093.653 casos (e 111.007
mortes), o Reino Unido com 5.982.585 casos (e 130.086 mortes), a Turquia com
5.846.784 casos, a Argentina com 4.975.616 casos (e 106.747 mortes), a Colômbia
com 4.815.063 casos (e 121.695 mortes), a Espanha com 4.566.571 casos, a Itália
com 4.377.188 casos (e 128.163 mortes), a República Islâmica do Irã com 4.057.758
271
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
casos, o México com 242.547 mortes, o Peru com 196.673 mortes e a Indonésia com
104.010 mortes confirmadas (OMS, 2021).
De posse desses dados acima informados pela OMS em agosto de 2021, resta
analisar também alguns dos mais importantes relatórios nacionais e internacionais
com dados quantitativos de vítimas de tráfico em suas diferentes modalidades de
exploração com a finalidade de se compreender mais sobre o fenômeno da
vulnerabilidade como sério fator de risco que impulsiona o aumento do número de
vítimas traficadas em todo o mundo.
Assim, um dos materiais analisados com o intuito de se obter maiores
informações sobre o tráfico de pessoas no Brasil foi o Relatório Nacional contendo
dados de 2017 a 2020 desenvolvido em parceria pela Coordenação-Geral de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes do Departamento
de Migrações da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança
Pública – CGETP/SENAJUS/MJSP juntamente com o Escritório das Nações Unidas
sobre Drogas e Crimes – UNODC. Ressalta-se, segundo o próprio Relatório
Nacional, que trata-se de um projeto financiado pelo Governo sueco e sua finalidade
é a de “aprimorar dados e informações, com base em evidências, sobre o fenômeno
do tráfico de pessoas no Brasil, incluindo questões como resposta a fluxos
migratórios, pandemia da COVID-19, e aspectos de gênero (Relatório Nacional,
2021).
Também serão analisados dados recentes de 2020 do Relatório Global de
Tráfico de Pessoas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes –
UNODC e do Relatório “Trafficking in persons” de 2021 promovido pelo Governo
Norte-Americano, além de outros dados paralelos vinculados à temática.
Segundo o Relatório Global de Tráfico de Pessoas do Escritório das Nações
Unidas sobre Drogas e Crimes de 2020, as principais vítimas de tráfico humano
continuam sendo mulheres e crianças, especialmente meninas, totalizando 65%. Em
relação às diversas finalidades, a exploração sexual é a que ocorre com maior
frequência no mundo, cerca de 50% dos casos, e fundamentalmente envolve vítimas
do sexo feminino em 92% das situações (UNODC, 2020).
272
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, é
atributo dos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, a feminização da
pobreza e que inclui, também, questões raciais. Nesse sentido, as mulheres pardas ou
pretas e que são extremamente pobres representam 39,8% do território brasileiro.
São as mulheres, em sua maioria quando comparadas aos homens, inclusive, que
interrompem seus estudos para cuidar da casa, dos afazeres domésticos e das pessoas
que nela vivem (IBGE, 2020).
Segundo o Relatório “The gender dimensions of human trafficking”, de 2017,
“Tradicionalmente, as mulheres estão concentradas em
atividades de baixas qualificação e remuneração, e em setores
com pouca ou nenhuma regulamentação, como o trabalho
doméstico, por exemplo. Essas condições as deixam
particularmente vulneráveis à exploração, ao trabalho forçado,
à extorsão, à servidão por dívida e à violência. Em contextos
migratórios, inclusive quando migram e residem de forma
regular, essas especificidades se agravam, o que torna as
mulheres mais vulneráveis ao tráfico de pessoas”.
Suzuki (2020), em pesquisa relacionada envolvendo trabalho escravo e
gênero, demonstrou que no período de 2003 a 2018, das mulheres trabalhadoras
resgatadas de condição análoga à escravidão,53% eram negras, sendo dessas 42%
pardas e 11% pretas. Além da cor, 62% delas não haviam concluído o ensino
fundamental e 71,3% foram resgatadas a partir do trabalho no campo. Outras
atividades secundárias mostraram que as mulheres estavam envolvidas em atividades
vinculadas à cozinha e à costura, enquanto que os homens costumam estar
vinculados às atividades envolvendo trabalho braçal mais pesado.
Nesse sentido, o Relatório do UNODC, de 2020, aponta que entre as vítimas
mulheres, 77% delas foram traficadas para a exploração sexual, 14% para a
exploração laboral e 9% para outras finalidades e, em consonância às pesquisas
citadas, notou-se que o trabalho doméstico abarca especialmente as vítimas do sexo
feminino (UNODC, 2020).
O Relatório “The gender dimensions of human trafficking”, de 2017,
demonstra também as mulheres também sofrem violência sexual como maneira de
exercício de coerção e controle sobre elas.
273
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Além disso, dados revelam que quando se referem à mulheres ou meninas
transexuais, a violência é ainda maior. O Brasil é, ao mesmo tempo, o país que mais
consome pornografia trans e também o país que tem a maior quantidade de
homicídios envolvendo esta situação de acordo com o Dossiê Assassinatos e
Violência de 2020 (BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim).
A esse respeito, inclusive, o Ministério Público do Trabalho – MOT e a
Organização Internacional do Trabalho no Brasil – OIT, lançaram recentemente um
manual para orientar casos envolvendo aspectos de proteção e atendimentos para
travestis e transexuais em busca de um caminho mais digno e humano e, quanto a
isso, o material também traz aspectos de vulnerabilidade, dentre eles, o de serem
mais facilmente vítimas de tráfico humano e de trabalho análogo à escravidão (OIT,
2021).
Exemplificam-se, ainda, registros de situações envolvendo tráfico de
mulheres trans para fins sexuais, tanto interno quanto internacional, das operações
policiais denominadas “Operação Fada Madrinha” e “Operação Cinderela” (MPF).
Outros fatores responsáveis por agravar a situação do indivíduo e que facilita
o seu caminho para se tornar uma vítima de tráfico de pessoas, inclusive em tempos
de pandemia, é a questão envolvendo a vulnerabilidade econômica. Dados do 3º
trimestre de 2020, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD/IBGE
demonstram que na atualidade 14,6% da população encontra-se desempregada
(IBGE, 2020) e outros dados recentes, de 2019, também do IBGE demonstram que
24,7% vive abaixo da linha da pobreza, 6,5% abaixo da extrema pobreza, além dos
índices que relacionam raça e pobreza deixando claro que os pobres e pretos são
muito mais pobre do que os brancos (IBGE, 2019).
Sobre isso, o Relatório Global de Tráfico de Pessoas do UNODC, de 2020,
indicam justamente que 51% das situações envolvendo o tráfico de pessoas tem
como fator de risco exatamente a questão da vulnerabilidade econômica, o que
favorece a todos os tipos de exploração, em especial durante a pandemia (UNODC,
2020). Outro Relatório da ONU, especialmente vinculado à COVID-19, deixa claro
que quando se trata de vulnerabilidade econômica não é preciso nem mesmo coagir a
vítima, nem mesmo enganá-la ou usar de força física para inserir ela em um contexto
274
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
de exploração, pois o próprio fator econômico já facilita para que isso ocorra,
demonstrando, com isso, que a pobreza e o desemprego são situações de
vulnerabilidade que mais inserem vítimas a aceitarem uma condição de exploração
seja pelo tráfico de pessoas interno ou internacional, facilitando inclusive fluxos
migratórios inseguros em busca de oportunidades de trabalho por parte de suas
vítimas (UNODC, 2020).
Em relação aos dados quantitativos da Pesquisa Nacional de Tráfico de
Pessoas com dados de 2017 a 2020, destacam-se:
a) Quanto ao perfil das vítimas no que diz respeito ao gênero e à idade das
vítimas resgatadas em operações da Polícia Federal, em 2018 foram resgatadas 30
mulheres, 60 homens, 11 crianças e adolescentes (até 18 anos), ou seja, 101 pessoas
no total. Em 2019, o número de mulheres caiu para 10, o de homens para 54, o de
crianças e adolescentes aumentaram para 19, resultando um total de 83 pessoas
resgatadas. Em 2020, com a pandemia, os números foram ainda menores: apenas 2
mulheres, 15 homens, 2 menores, ou seja, um total de 19 pessoas foram resgatados
pela Polícia Federal.
b) De acordo com o número de possíveis vítimas de tráfico humano, de
acordo com o Ministério da Cidadania e atendidas pelos Centros de Serviços Sociais
Especializados – CREAS foram atendidas 161 mulheres e 234 homens em 2017, 154
mulheres e 223 homens em 2018, 217 mulheres e 328 homens em 2019 e 91
mulheres e 403 homens em 2020, sugerindo um aumento no número de vítimas do
sexo masculino durante a pandemia e uma diminuição na quantidade de vítimas do
sexo feminino na mesma situação.
c) Já o Ministério da Saúde apresentou dados opostos ao Ministério da
Cidadania, sugerindo que mais vítimas do sexo feminino foram traficadas: 121
mulheres e 45 homens em 2017, 128 mulheres e 55 homens em 2018, 134 mulheres
e 35 homens e 73 mulheres e 24 homens durante 2020, embora estes últimos dados
estejam em revisão.
d) Quanto à finalidade da exploração, o número de possíveis vítimas
atendidas nos Núcleos e Postos de atendimento revelam em 2020 uma maior
quantidade de homens do que de mulheres, apontando 33 mulheres e 98 homens
275
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
vítimas de tráfico interno e 12 mulheres e 13 homens vítimas de tráfico
internacional. 2 vítimas não tiveram o sexo informado.
e) Segundo os Núcleos e Postos de atendimento às vítimas de tráfico de
pessoas, no ano de 2020, informou-se que 25 pessoas (equivalente a 16%) foram
vítimas de tráfico internacional, enquanto que 131 (equivalente a 83%) foram
vítimas de tráfico interno. Apenas 2 casos (1%) não foram informados. Dessas
vítimas, no mesmo período, registrou-se que 111 são homens (equivalente a 70%) e
45 mulheres (equivalente a 29%) e 2 não tiveram o sexo revelado (equivalente a
1%).
f) A respeito das finalidades de exploração, segundo os Postos e Núcleos de
atendimento, de 2017 a 2020, nenhuma foi explorada para remoção de órgãos. No
ano de 2017 foram registrados: 104 para trabalhos análogos à escravidão, 1 pessoa
para servidão, 16 para adoção ilegal, 21 para exploração sexual e 5 para outras
finalidades totalizando 147 pessoas. Em 2018: 9 pessoas para trabalho análogo à
escravidão, 22 para exploração sexual e 16 para outras finalidades sem que fosse
para servidão e adoção ilegal, totalizando 47 pessoas. Em 2019 registrou-se: 81 para
trabalhos análogos à escravidão, 2 para adoção ilegal, 31 para exploração sexual e 33
para outras finalidades totalizando 147 pessoas. Em 2020, no ano da pandemia,
foram registrados 115 casos de trabalho análogo à escravidão, 12 para servidão, 2
para adoção ilegal e 29 para exploração sexual, totalizando 158 casos, o que
demonstra que durante o surto da COVID-19 mais pessoas foram traficadas para
trabalharem em situações análogas à escravidão.
g) Quanto ao gênero e idade de possíveis vítimas, segundo a Defensoria
Pública da União – DPU, em 2018, foram registrados 9 mulheres, 6 homens para o
tráfico interno e 1 mulher para o tráfico internacional. Em 2019, foram detectados 15
mulheres, 30 homens e 2 crianças e adolescentes (até 18 anos) para o tráfico interno
e 3 mulheres para o tráfico internacional. E no ano de 2020, foram registrados 10
mulheres e 11 homens para o tráfico interno e nenhum caso para o tráfico
internacional, demonstrando, que no período de 2018 a 2020 foram 5% dos casos
envolvendo o tráfico internacional e 95% o tráfico interno.
276
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
h) A respeito da quantidade de processos por finalidade de exploração de
acordo com a DPU, em 2018 foram 10 processos para trabalho em condição análoga
à escravidão e 1 para exploração sexual. Em 2019, foram 27 processos em condição
análoga à escravidão, 2 para adoção ilegal e 11 para exploração sexual e, em 2020,
no ano da pandemia, foram 5 processos para trabalho em situação análoga à de
escravo e 10 para exploração sexual.
i) Quanto ao número de denúncias recebidas pelo Ligue 180 referente ao
tráfico de mulheres, em 2017 foram registrados 6 casos de remoção de órgãos, 67
para trabalho em condição análoga à de escravo, 8 para adoção e 128 para
exploração sexual. Em 2019 foram 7 para remoção de órgãos, 47 para trabalho
análogo à escravo, 9 para adoção e 78 para exploração sexual. E em 2019 foram 7
para trabalho análogo à de escravo e 31 para exploração sexual. Não há resultados
para o ano de 2020. Ou seja, dos números apresentados, no período de 2017 a 2019,
3% das denúncias foram para remoção de órgãos, 5% para fins de adoção, 31% para
trabalho análogo à escravidão e 61% para exploração sexual.
j) Já o Disque 100, a respeito do gênero e da idade de possíveis vítimas,
trouxe os seguintes dados: em 2017 foram 37 casos não informados, 18 mulheres, 6
homens, 36 meninas e 5 meninos, totalizando 102 pessoas. Em 2019, foram 24 casos
não informados, 21 mulheres, 2 homens, 31 meninas e 6 meninos, totalizando 84
pessoas. Em 2019, foram 17 casos não informados, 25 mulheres, 2 homens, 19
meninas e 6 meninos, totalizando 69 pessoas. O total neste período foi de 255
pessoas e não foram apresentados dados no ano de 2020.
k) Quanto ao tráfico interno, o Disque 100 recebeu nesse mesmo período de
2017 a 2019 um total de 176 denúncias assim distribuídas: em 2017, 7 de trabalho
análogo à escravo, 20 de adoção ilegal, 36 de exploração sexual e 6 de outras
formas. Em 2018, foram 11 de trabalho análogo à escravo, 1 de remoção de órgãos
13 de adoção ilegal, 26 de exploração sexual e 8 de outros casos. Em 2019 foram 5
de trabalho análogo à escravo, 10 de adoção ilegal, 21 de exploração sexual e 12 de
outros casos. Quanto ao tráfico internacional, o Disque 100 recebeu um total de 79
denúncias no período de 2017 a 2019 sendo: em 2017, 10 de trabalho análogo à
escravo, 2 de adoção ilegal e 21 de exploração sexual. Em 2018 foram 2 de remoção
277
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
de órgãos, 7 de trabalho análogo à escravo, 4 de adoção ilegal e 12 de exploração
sexual. Em 2019 foram 4 de trabalho análogo à escravo, 5 de adoção ilegal e 12 de
exploração sexual. Ou seja, 31% dos casos envolvendo o tráfico internacional e 69%
envolvendo o tráfico interno.
l) A respeito da idade das vítimas, informada pelo Ministério da Cidadania,
por meio dos CREAS revela que no período de 2017 a 2020, foram registrados 114
casos de 0 a 12 anos, 109 casos de 13 a 17 anos, 1081 casos de 18 a 59 anos, 260
casos de pessoas com mais de 60 anos, totalizando 1811 casos informados e 247
casos cujas idades não foram informadas.
m) Já para o Ministério da Saúde, a respeito da idade das vítimas nesse
mesmo intervalo de tempo (de 2017 a 2020) foram informados 142 casos de 0 a 12
anos, 87 casos de 13 a 17 anos, 349 casos de 18 a 59 anos, 34 casos de mais de 60
anos, totalizando 615 cujas idades foram informadas e apenas 3 casos onde as idades
não foram reveladas.
n) Em relação às raças das possíveis vítimas atendidas pelos Núcleos e Postos
de atendimento, no ano de 2020, 32% eram pardas, 31% pretas, 22% brancas, 1%
amarela e 14% indígenas.
o) Já dados informados pelo Ministério da Saúde a respeito das raças das
possíveis vítimas estão: 47% de pardos, 12% de pretos, 32% de brancos, 0,5% de
amarelos e 8% de indígenas. Em 0,5% dos casos as raças não foram informadas.
Muitos foram os dados apresentados pelo Relatório Nacional (2021)
demonstrando que diversos foram os órgãos a oferecerem insumos para a elaboração
da pesquisa a respeito do tráfico de pessoas no Brasil.
Outro Relatório de grande importância e que todo ano é elaborado pelo
Estado de Defesa Norte-Americano, “Trafficking in Persons (TIP)”, de 2021,
também traz números e informações valiosas para vários países, dentre eles, o Brasil.
Dentre as mais relevantes trazidas pelos Escritório para Monitorar e Combater o
Tráfico de Pessoas estão as seguintes informações (TIP, 2021):
a) governo brasileiro, embora tenha se esforçado mais que os outros anos,
inclusive levando em consideração os impactos causados pelo surto do coronavírus,
278
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
ainda não conseguiu cumprir de maneira integral os padrões mínimos exigidos para
o combate do tráfico de pessoas, o que faz com que o Brasil permaneça em um nível
intermediário (nível 2) para a eliminação do problema.
b) Com os esforços do governo brasileiro, algumas condenações finais foram
conquistadas para traficantes para fins sexuais e fins laborais, assim como se deu o
desenvolvimento de uma nova orientação abrangente com vistas à identificar e
fornecer atenção às vítimas de trabalho análogo à escravo, porém, não foram
cumpridos os padrões mínimos em outros aspectos como, por exemplo, abrigos
inadequados, treinamento insuficiente para autoridades competentes e penalização
de algumas das vítimas de tráfico por crimes cometidos em decorrência da sua
situação de tráfico. Também foram investigados e processados menos traficantes que
o esperado.
c) Entre as recomendações do Relatório Norte-Americano estão, por
exemplo, oferecer abrigo, bem como assistência especializada às vítimas,
principalmente as exploradas sexualmente e de forma laboral, investigar de maneira
mais rigorosa os casos de tráfico para fins sexuais, processar e condenar mais
traficantes, treinar os aplicadores da lei para evitar penalizar as vítimas, aumentar a
quantidade de escritórios especializados na eliminação do tráfico e ampliar suas
coordenações, desenvolver um protocolo para melhorar a identificação das vítimas,
alterar a lei existente (13.344) para criminalizar o tráfico sexual de crianças sem que
haja a necessidade de força, fraude ou coerção, alocar recursos para conselhos
tutelares locais, financiar esforços na conscientização do problema por meio de mais
campanhas inclusive na mídia social e de forma impressa em pontos de maior
circulação de pessoas, implementar o III PNETP, reforçar o CONATRAP, atualizar
as referências da lei de tráfico.
d) Sobre a condenação de casos envolvendo o artigo 149-A do Código Penal
brasileiro, os esforços na aplicação da lei foram diminuídos, embora alguns casos
foram relatados como, por exemplo, o início de 206 novas investigações acerca do
trabalho análogo a escravo, embora não relataram novas investigações para o tráfico
sexual em 2020, em comparação às 296 investigações narradas em 2019. O número
de casos de suspeita de tráfico sexual em 2020 caiu em relação à 2019 quanto aos
279
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
tribunais inferiores. Foram relatados 512 processos em andamento em tribunais de
primeira e segunda instância, sendo 3 condenações finais em 2020. Também houve
atrasos judiciais e o Brasil acabou permitindo alguns casos de apelações, além de
alguns dos presos poderem trabalhar durante o dia e ficarem presos somente à noite,
revelando que as punições não eram proporcionais aos crimes praticados. Foi
relatado, pelo governo brasileiro, que “atrasos relacionados à pandemia no sistema
judicial retardaram o processamento de processos e apelações, incluindo tráfico de
pessoas e processos de trabalho escravo, punições que não eram proporcionais à
seriedade do crime e não impediam efetivamente o tráfico de pessoas”. Outra
dificuldade encontrada foi o tratamento do trabalho forçado ter sido tratado de forma
distinta ao tráfico de pessoas, além da falta de uma comunicação eficiente entre as
Polícias Estaduais e a Polícia Federal. Não foram relatadas investigações no caso de
funcionários públicos cúmplices.
e) Em relação à proteção, o governo manteve seus esforços nesse sentido
oferecendo proteção a 494 vítimas em potencial do crime de tráfico de pessoas.
Vários órgãos informaram dados coletados com relação aos perfis das vítimas do
crime. Em 2020, as autoridades da fiscalização do trabalho, por exemplo, realizaram
uma fiscalização em 266 empresas e identificaram 942 vítimas de exploração
laboral, quase os mesmos números de 2019 que foram um pouco maiores. Além
disso, novos procedimentos operacionais foram elaborados pelo governo com vistas
a identificar e atender essas vítimas de trabalho escravo. Apesar disso, a aplicação da
lei, no que diz respeito à implementação de abrigo temporário, foi inconsistente nos
Estados brasileiros. Inclusive, não foram detectados abrigos especializados no
atendimento de vulneráveis, a exemplo de vítimas de violência doméstica, idosos,
dentre outros. Os Núcleos de atendimento às vítimas de trafico atenderam mais
vítimas em potenciais no ano de 2020 do que em 2019. Também em 2020 o governo
manteve mais parcerias com uma organização LGBTQI+ com vistas à aumentar a
proteção às vítimas do tráfico transgênero. As autoridades acabaram penalizando as
vítimas de tráfico de pessoas que cometeram atos ilícitos forçados pelos traficantes.
f) Sobre a prevenção, o governo diminuiu os esforços para prevenir o crime
reduzindo os orçamentos voltados ao III Plano Nacional, assim como, a
CONATRAP também reduziu seu quadro de funcionários. Os esforços quanto à
280
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
conscientização do crime se concentraram no trabalho infantil ou escravo de forma
mais ampla, porém, houve poucas campanhas com vistas a aumentar a
conscientização sobre o tráfico sexual e o turismo sexual infantil. Até mesmo as
celebrações pelo Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas foram cancelados em
vários locais por conta das restrições impostas pela pandemia. Apesar disso, foram
publicadas orientações por parte do governo sobre a realização de inspeções de
trabalho durante a pandemia, além do fornecimento de equipamentos de proteção
individual aos inspetores de trabalho e testes para detecção do COVID-19.
g) Quanto ao perfil do tráfico de pessoas, nos últimos 5 anos são relatadas a
exploração de vítimas nacionais e estrangeiras no Brasil e, ainda, de vítimas
brasileiras que se encontram no exterior. Mulheres e crianças brasileiras são muito
exploradas sexualmente na América do Sul, principalmente por parte do Paraguai
que tem submetido mulheres e meninas especialmente do Rio Grande do Sul e de
Santa Catarina, além de brasileiras que se encontram na Europa Ocidental e na
China. Também foram atraídas mulheres brasileiras para a Coreia do Sul
principalmente para a finalidade sexual. Homens brasileiros e transgêneros também
se encontram em vulnerabilidade na Espanha e na Itália. O turismo sexual infantil
também continua a ser um problema em vista de crianças que são exploradas com
frequência incluindo as BR-386, 116 e 285, principalmente por turistas sexuais
infantis da Europa e dos Estados Unidos. Migrantes também se encontram
vulneráveis ao tráfico de pessoas e há também muitas vítimas identificadas que são
afro-brasileiras ou afdrodescendentes. Além da grande quantidade de vítimas para
fins sexuais, também é muito comum a exploração para fins laborais.
Finalmente, a respeito da proteção, conscientização e prevenção por parte do
governo brasileiro, no final de 2019, com a disseminação do coronavírus (COVID19) que veio a atingir o mundo e o Brasil mais precisamente no ano de 2020, novas
medidas precisaram ser tomadas visando a garantia dos direitos humanos das
pessoas que se encontravam em situação de vulnerabilidade, a exemplo das vítimas
brasileiras de tráfico humano, inclusive as que se encontram em território
estrangeiro.
281
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Com isso, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos –
MMFDH procurou, desde então, elaborar várias medidas e ações com o intuito de
garantir a promoção dos direitos humanos a essas pessoas vulneráveis, conforme
explicado acima, em relação a inúmeros brasileiros que encontram-se fora do País e
que enfrentam, diante da pandemia, maiores dificuldades de retorno ao território
nacional, uma vez que acabam sofrendo com uma maior restrição em seus direitos, a
exemplo da limitação de sua liberdade.
Nesse intuito, dentre outros guias e materiais que vêm sendo criados desde o
início da pandemia, um deles trata de uma cartilha para orientar os cidadãos
brasileiros, principalmente os que não se encontram dentro do território brasileiro
cujo objetivo é o de oferecer orientação como uma maneira de acolher estes cidadãos
que estão em situação de vulnerabilidade.
Conforme explicam os já citados no presente trabalho, Ferreira e Torres
(2020), muitos grupos de indivíduos vulneráveis são abordados pela cartilha, dentre
elas, as vítimas de tráfico humano que se encontram espalhadas pelo mundo em
situação de risco e de insegurança, o que acaba por potencializar ações de grupos
criminosos voltados para estes fins.
Finalmente, a respeito da cartilha acima especificada proposta pelo MMFDH,
dentre suas finalidades estão a de orientar os agentes envolvidos com o crime de
tráfico de pessoas, de modo a abordar, identificar, acolher e encaminhar essas
vítimas aos seus países de origem. Essas orientações, no entanto, devem estar de
acordo com o Protocolo de Palermo, ressaltando, contudo que todo e qualquer
consentimento da vítima em relação ao crime é considerado irrelevante. A cartilha
também tem o propósito de manter tais atores envolvidos em vigilância no caso de
haver propostas suspeitas envolvendo aspectos como transporte, trabalho e abrigo.
Outras medidas e ações têm sido tomadas em nível nacional e internacional, a
exemplo, também, da nova campanha Coração Azul promovida pelo UNODC e que
teve seu início no último dia 30 de julho de 2021, data esta de comemoração do Dia
Mundial contra o Tráfico de Pessoas. Essa campanha tem o lema “As vozes das
vítimas mostram o caminho” e tem o objetivo de colocar as vítimas sobreviventes
desse crime no centro das respostas pelas graves violações sofridas aos seus direitos
282
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
humanos. Uma vez que os índices demonstram que aproximadamente dois terços das
vítimas que foram identificadas são mulheres e meninas e a quantidade de crianças
triplicou nos últimos 15 anos, além do fato que o crime de tráfico de pessoas tende a
prosperar cada vez mais por conta da instabilidade econômica e política, pelo déficit
por parte do Estado em fornecer estruturas dignas, à violência de gênero, às
dificuldades familiares, desigualdade e discriminação, as vítimas do crime costumam
apresentar profundos traumas durante e depois de sofrerem abusos e exploração
(UNODC, 2021).
Os próprios migrantes representam mais da metade de todas as vítimas
traficadas segundo ficou demonstrado no último relatório do UNODC e, com a
pandemia da COVID-19, os riscos de exploração ficaram ainda mais graves e
aumentados favorecendo o desemprego e a ausência de proteção e, diante de tudo
isso, a proposta da campanha é também a de relembrar os compromissos firmados
no Pacto Global voltados a uma Migração Segura, Ordenada e Regular – GCM e
também no Plano Global de Ação contra o Tráfico de Pessoas de acordo com os
direitos humanos internacionais e as normas trabalhistas (UNODC, 2021).
4 REFLEXOS DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS NO
AUMENTO DE VÍTIMAS DE TRÁFICO DE PESSOAS
A COVID-19 se espalhou rapidamente por todo o planeta. Essa doença surgiu
no final de 2019 na China e causa uma insuficiência respiratória aguda nos seres
humanos, tendo levado uma grande quantidade à óbito. Desde 30 de janeiro de 2020,
o surto da doença em todo o mundo provocou um estado de emergência em nível de
alerta máximo para toda a população mundial que precisou se isolar em casa com o
intuito de inibir a contaminação do vírus.
Segundo explicações de Ferreira e Torres (2020) em seu artigo “Impactos da
Pandemia do novo coronavírus (COVID-19) na violação de direitos humanos e no
agravamento da situação de vulnerabilidade das vítimas de tráfico de pessoas no
Brasil e no mundo”, destaca-se que “com a propagação do coronavírus, as vítimas de
tráfico de pessoas que já eram vulneráveis somente pelo fato de serem vítimas do
crime, encontram-se ainda mais vulneráveis uma vez que estão expostas a uma
283
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
maior exploração e limitadas no que diz respeito ao acesso de serviços considerados
essenciais”.
Com isso, o ano de 2020 trouxe uma grande crise sanitária ao mundo de
forma geral, inclusive no Brasil, gerada pelo caos provocado pelo surto do
coronavírus (COVID-19), de maneira a gerar impactos, muitos irreversíveis, a toda a
população. Inúmeras mortes e casos graves foram apenas algumas das consequências
brutais da desordem causada pela pandemia.
Outras consequências como o grande aumento do desemprego, aumentando
assim as limitações econômicas, restrição de viagens, limitações também no direito
de ir e vir dos indivíduos, elevação nos valores de artigos de consumo básico bem
como alimentação, dentre outras situações foram também consequências da situação
caótica provocada pela disseminação do vírus no mundo.
Uma análise realizada pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e
Crimes – UNODC expõe que com os bloqueios, as limitações impostas para se
trabalhar, os cortes de recursos diversos que visam dar apoio ao combate do tráfico
de pessoas e, ainda, com as viagens limitadas, as consequências para as vítimas
desse ilícito acabam sendo ainda mais perigosas. Segundo o UNODC:
“As medidas inéditas adotadas para achatar a curva de
infecção incluem quarentena forçada, toque de recolher e
lockdowns, restrições de viagem e limitações às atividades
econômicas e da vida pública. À primeira vista, essas medidas
de fiscalização e o aumento da presença policial nas fronteiras
e nas ruas parece dissuadir o crime. Em tráfico de pessoas, os
criminosos estão ajustando seus modelos de negócio para o
‘novo normal’ criado pela pandemia, especialmente pelo
abuso das modernas tecnologias de comunicação. Ao mesmo
tempo, a COVID-19 impacta a capacidade das autoridades
estatais e organizações não-governamentais de prestar serviços
essenciais às vítimas desse crime” (UNODC, 2020).
Conforme o Banco Mundial, por conta da pandemia do coronavírus, a
situação enfrentada representa a recessão econômica mundial mais profunda desde a
Segunda Guerra Mundial e que acarretará situações ainda mais complicadas para
aqueles indivíduos que vivem em situação de maior precariedade. Além disso, dentre
as consequências, segundo previsões do Banco Mundial, haverá ainda um maior
284
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
aumento da vulnerabilidade socioeconômica favorecendo ainda mais o aumento de
vítimas de tráfico de pessoas em todo o planeta (Banco Mundial, 2021).
Observando-se a redução dos serviços sociais e públicos e o desvio dos
recursos para minimizar a disseminação do vírus, as chances das vítimas de fugirem
de seus traficantes e de obterem ajuda é ainda menor. Várias fronteiras foram
fechadas no intuito de se conter a pandemia, da mesma forma que vários abrigos
facilitando assim para que o crime de tráfico de seres humanos ganhe maior
dimensão e suas vítimas sofram significantes violações de seus direitos humanos e
fundamentais. O acesso à justiça e os procedimentos legais também encontram-se
em atraso aumentando assim a vulnerabilidade das vítimas que estão em poder dos
aliciadores com maiores riscos de sofrer explorações e negligências (UNODC,
2020).
Em decorrência do caos já observado até o momento e das previsões de maior
agravamento da situação, segundo Ramos (2020) buscou-se inclusive fechar as
fronteiras na tentativa de conter o aumento de pessoas contaminadas pelo vírus, uma
vez que tal medida facilita, também, a ação de contrabandistas de migrantes.
Apesar disso, de acordo com o Relatório da ONU, quando há fechamento de
fronteiras e limitações nas travessias dessas fronteiras, o uso de rotas alternativas,
com maiores riscos e custos, acabam por expor migrantes e refugiados a situações
ainda mais graves de abuso, de exploração e também de tráfico de pessoas
(UNODC, 2020).
Durante a pandemia, segundo Fagundes (2021), observou-se que a quantidade
de vítimas no Brasil resgatadas envolvendo trabalho forçado ou análogo à escravidão
se manteve na média dos últimos quatro anos anteriores, sugerindo que a pandemia
do coronavírus não provocou aumento no que diz respeito ao trabalho laboral.
Já segundo Lazzeri (2020), a respeito da exploração laboral de trabalhadores
durante a pandemia, ressalta-se que a emergência sanitária deu forças ao discurso
envolvendo coerção em relação ao confinamento e à ausência de contatos com o
mundo exterior.
285
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Quanto ao que diz respeito às situações envolvendo a exploração sexual e à
servidão doméstica, ambas que afetam muito mais mulheres, além de adolescentes e
crianças do sexo feminino, de acordo com outro material produzido pelo UNODC a
respeito do impacto da pandemia, a partir de indicadores de aumento nos níveis de
violência doméstica que se relatou em uma grande quantidade de países, acredita-se
que com a pandemia houve agravamento nesse tipo de tráfico de pessoas (UNODC,
2020).
Os diversos Relatórios produzidos pelo UNODC demonstram que
“Desde a indústria de vestuário, agricultura e agropecuária,
passando pela manufatura e pelo trabalho doméstico, milhões
de pessoas que viviam em condições de subsistência perderam
seus salários. Aqueles que continuam trabalhando nesses
setores, onde o tráfico é frequentemente detectado, também
podem enfrentar mais exploração devido à necessidade de
diminuir os custos de produção em função de dificuldades
econômicas, bem como menos controle por parte das
autoridades” (UNODC, 2020).
O crescente aumento do desemprego e a consequente redução da renda, em
especial daqueles que já possuíam salários baixos e que pertenciam ao setor informal
aumentou a vulnerabilidade de maneira que estas pessoas pioram quanto à situação
de precariedade. Com isso, entre as vítimas, Organizações Não Governamentais que
atuam em conjunto com o UNODC expõem que esses indivíduos estão ainda mais
suscetíveis à serem explorados e a contraírem dívidas com o objetivo de garantir seu
sustento e o de seus parentes (UNODC, 2020).
A respeito de crianças e adolescentes, com o fechamento das escolas, o
processo educativo acabou sendo prejudicado, trazendo prejuízos ainda em relação à
oferta de abrigo e alimentos para esses menores. Muitas aulas que eram presenciais
se tornaram apenas virtuais, o que acabou favorecendo o maior contato desses
indivíduos com o mundo virtual, onde tem tido um grande aumento de aliciadores
que a cada dia mais usam e abusam da tecnologia proporcionada pela internet para
aliciar maior quantidade de vítimas.
Além disso, com muitas escolas que ainda permanecem fechadas, acaba
favorecendo que mais crianças e adolescentes vá para as ruas, muitas obrigadas pelas
próprias famílias, em busca de comida, mantimentos e renda, o que propicia um
286
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
maior contato com o vírus e também com a exploração, repercutindo em maiores
danos e aumento da vulnerabilidade, o que gera como consequência o aumento de
vítimas de tráfico de seres humanos.
Assim, as crianças, principalmente, acabaram interrompendo também o ciclo
escolar e se tornaram ainda mais vulneráveis a abusos e diferentes formas de
exploração. De acordo com a análise do UNODC, as escolas eram vistas, também,
como locais de abrigo e proteção, bem como fonte de nutrição para essas crianças
(UNODC, 2020).
Segundo informa o UNODC, no que diz respeito às vítimas confinadas, as
ações para se resolver o problema do vírus ainda piora o estado dessas vítimas uma
vez que o aumento da violência doméstica em diversas nações no mundo é um forte
indicador que repercute em grandes preocupações no que diz respeito às condições
de vida de muitas vítimas que sofrem abuso e exploração. Há uma quantidade
desproporcional de meninas e mulheres voltadas para a exploração sexual e a
servidão doméstica (UNODC, 2020).
Também de acordo com o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento
Humano Integral do Vaticano, por meio da seção Migrantes e Refugiados, crianças
também estão entre os maiores casos de aumento do tráfico humano. O Dicastério
tem realizado um boletim desde 2020, o qual confirma que neste período de
pandemia “os migrantes, os refugiados, as pessoas deslocadas e as vítimas de tráfico
de seres humanos continuam sendo uma preocupação porque estão ainda mais
vulneráveis com o surgimento do vírus (...) sujeitos a vários tipos de injustiça e
discriminação que ameaçam seus direitos, a segurança e a saúde” (VATICAN
NEWS, 2020). O mesmo boletim afirma também que as crianças são as mais
expostas durante o surto da doença e que tal exposição eleva a possibilidade de
exploração por meio da comunicação virtual, cada vez utilizada com maior
frequência pelos traficantes de pessoas (VATICAN NEWS, 2020).
Assim, quanto ao uso da internet por parte de aliciadores e traficantes de
pessoas, Rodrigues (2020) afirma ser possível “supor que aqueles que exploram
estão adaptando suas estratégias de aliciamento à nova realidade gerada pela
287
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
pandemia, especialmente por meio de abuso das modernas tecnologias de
comunicação”.
No território brasileiro, segundo especialistas na área de Segurança Pública,
um dos muitos reflexos da pandemia afirma a possibilidade do aumento das
atividades de organizações criminosas que atuam com o tráfico de seres humanos,
em especial os voltados para a exploração sexual de mulheres, devido ao aumento da
vulnerabilidade, principalmente a partir dos aspectos que envolvem a economia e a
sociedade do Brasil. As vítimas, muitas levadas à acreditar em uma perspectiva
melhor de qualidade vida, se tornam ainda mais vulneráveis ao crime que vem sendo
cada vez mais praticado com o apoio da tecnologia com vistas a atrair vítimas,
principalmente mulheres mais jovens e adolescentes do sexo feminino para sofrerem
exploração e abuso (R7, 2020).
Todas essas situações acabam por dificultar a ação das autoridades
competentes, uma vez que todos os setores acabam por se encontrar prejudicados em
vista de estarem sensivelmente afetados em termos de oferecer condições que
corroborem com a prestação adequada de serviços essenciais no que diz respeito à
atenção às vítimas do tráfico humano.
Além disso, esses individuos submetidos ao tráfico humano estão mais
sujeitos a serem infectados pelo novo coronavírus e não receberem assistência
médica por estarem em poder dos traficantes (ONUBR, 2020).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pandemia mudou drasticamente todo o cenário global trazendo graves
consequências em todos os aspectos para a população, em especial no que diz
respeito para as pessoas mais vulneráveis, acarretando maiores riscos, não apenas
pela contaminação do vírus, mas também facilitando a sua exploração em condições
desumanas e degradantes, o que facilita o tráfico de pessoas.
Antes da pandemia, identificar as vítimas de tráfico de pessoas já era uma
tarefa difícil, o que acabou por piorar com o caos causado pelo coronavírus, uma vez
que exige-se grande habilidade dos profissionais e autoridades competentes para a
situação.
288
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Além disso, nesse novo cenário mundial que conta com a suspensão de
atividades básicas e presenciais e diminui também o contato de profissionais
qualificados psicossociais e seus usuários, acaba por tornar o processo de
reconhecimento de casos de tráfico humano ainda mais difícil e complexo.
O próprio isolamento social da população traz danos severos à saúde mental,
podendo piorar os diversos tipos de transtornos, especialmente daqueles que já se
encontravam na situação de vítimas e que acabam tendo interrompidos todo e
qualquer acesso, inclusive, às redes também informais de apoio.
É preciso urgentemente que haja uma reorganização no que diz respeito aos
investimentos tanto humanos quanto financeiros por parte dos Estados e organismos
nacionais e internacionais para as mais diversas áreas e setores prejudicados em vista
da pandemia, dentre eles os voltados às emergência de saúde e social com vistas a se
aumentar as intervenções e fiscalizações de casos de tráfico de pessoas, bem como, a
correta e rápida aplicação da lei aos mais diferentes casos.
Também se faz necessário mobilizar a todos por meio de campanhas de
prevenção que não devem ser esquecidas durante o caos em que se encontram os
países, principalmente os mais afetados pelas crises sanitárias causadas pela
COVID-19 com vistas a enfraquecer o crime de tráfico de pessoas.
Enfim, é necessário o compromisso e a união dos governos com o intuito de
que os esforços sejam mantidos e, inclusive aumentados, a exemplo de fornecimento
de vacinas e assistência de saúde e sociais, com vistas a garantir que os direitos e as
garantias humanas e fundamentais possam ser respeitados e fornecidos a todos sem
distinção e, em especial às vítimas de tráfico humano, para que não se piore nem
aumente o caos até o momento instaurado pela pandemia em estudo.
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295
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
UNODC. Tráfico de Pessoas durante a COVID-19. Disponível em:
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UNODC. Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes. Disponível em:
<https://www.unodc.org/lpo-brazil/pt/trafico-de-pessoas/index.html>. Acesso em:
07 jul. 2021.
VATICAN NEWS. Tráfico de pessoas: crianças estão mais expostas durante a
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07 jul. 2021.
VENSON, Anamaria Marcon; PEDRO, Joana Maria. Tráfico de pessoas: uma
história do conceito. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 33, nº 65, p. 61-83,
2013.
W.V. Harris. Demography, Geography and the Sources of Roman Slaves. The
Journal of Roman Studies, 1999.
296
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
ENTRE CIÊNCIA, DIREITO E POLÍTICA:
ACESSO E UTILIZAÇÃO PRIORITÁRIA DE
EQUIPAMENTOS E SERVIÇOS DE SAÚDE
POR PESSOAS COM DEFICIÊNCIA EM
TEMPOS DE PANDEMIA
Luciana Barbosa Musse1
Ana Cláudia M. de Figueiredo2
Ana Cláudia Brandão3
Isabela Sousa4
Letícia Mares Antunes5
RESUMO
A pesquisa exposta neste capítulo tem como foco levantar, descrever e avaliar
se há, onde existem e como vêm sendo operacionalizadas políticas públicas federais,
distritais e/ou estaduais de acesso e de utilização prioritários a/de serviços públicos e
privados de saúde, para e por pessoas com deficiência, durante a pandemia da covid19, no Brasil. É uma reflexão interdisciplinar e interseccional. A
interdisciplinaridade concretiza-se a partir do diálogo entre pesquisadoras,
documentos e literatura do direito, da medicina, de políticas públicas e de relações
internacionais. A interseccionalidade, por sua vez, é materializada pela interlocução
entre deficiência e fases do desenvolvimento humano: infância, adolescência,
juventude e velhice, que, de acordo com normativas internacionais e nacionais,
devem receber atendimento prioritário em saúde. A abordagem metodológica apoia1
Doutora e Mestre em Direito. Graduada em Direito e Psicologia. Professora Universitária. Pesquisadora.
Advogada com atuação na área de Direito de Família. http://lattes.cnpq.br/9787779004343257
2
Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Graduada em Letras e Direito. Advogada.
Coordenadora da Autodefensoria da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down.
Idealizadora da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - Rede-In. Ex-conselheira no
Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Integrante da Comissão da Pessoa com
Deficiência da OAB-DF.
3
Pediatra com expertise em crianças e adolescentes com síndrome de Down. Médica do Centro de
Especialidades Pediátricas do Hospital Albert Einstein. Coordenadora do Grupo de Estudos sobre as
Crianças e Adolescentes com Deficiência da Sociedade de Pediatria de São Paulo. Membro do Comitê
Técnico Científico da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down. Coordenadora do
Estudo Covid19 e síndrome de Down (no centro brasileiro) de iniciativa da T21 Research Society.
4
Graduada em Relações Internacionais pelo CEUB. Pesquisadora e Membro do grupo de pesquisa sobre
Governança do CEUB.
5
Graduanda em Relações Internacionais pelo CEUB. Pesquisadora e Membro do grupo de pesquisa sobre
Governança do CEUB.
297
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
se em pesquisa teórica e documental, cujas referências estão disponíveis em
bibliotecas e bases de dados nacionais e internacionais, notadamente a base
legislativa sobre a covid-19, do site da Presidência do Planalto, biblioteca do CEUB,
Ebsco e Dynamed. Conclui-se que foram e desenhadas políticas públicas e propostos
projetos de lei, quer no âmbito federal, quer no nível subnacional, para o acesso e
utilização prioritária a/de equipamentos ou serviços de saúde por pessoas com
deficiência, durante a pandemia da covid-19, contudo tais políticas não receberam
tratamento prioritário.
Palavras-chave: Pessoas com deficiência. covid-19. Prioridade em saúde.
1 INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2019, a República Popular da China alertou a Organização
Mundial da Saúde (OMS) sobre vários casos de pneumonia que estavam ocorrendo
na cidade de Wuhan. Após uma semana do alerta, foi confirmado que se tratava de
um novo tipo de vírus da família coronavírus, a Síndrome Respiratória Aguda Grave
Coronavírus - 2 (SARS-CoV-2), nomeada de covid-19 (coronavirus diseases 2019).
Em vista da alta incidência de casos na China, no dia 30 de janeiro de 2020, a OMS
declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional II (ESPII), que
significa o reconhecimento da ocorrência de um evento extraordinário que pode
constituir um risco aos outros países devido à sua rápida disseminação e, assim,
requer uma resposta internacional imediata e coordenada, de acordo com o
Regulamento Sanitário Internacional (RSI).6 Entretanto, a doença se espalhou por
vários países ao redor do mundo, alcançando uma elevada dispersão geográfica no
dia 11 de março de 2020 (OPAS, 2020) e, em razão disso, a OMS declarou estado de
pandemia.
A covid-19 é uma doença com alta transmissão, podendo apresentar sintomas
leves ou severos dependendo da sua manifestação no organismo de seres humanos.
Os sintomas mais comuns são febre, cansaço e tosse seca, mas alguns pacientes
podem apresentar dores, dor de cabeça, dor de garganta, diarréia, perda de paladar
ou olfato. Além disso, pessoas idosas e as que possuem condições de saúde
delicadas, tais como comorbidades ou deficiência, são consideradas de alto risco,
pois, em virtude da sua condição, correm o risco de ficarem em estado grave ou
6
O Decreto n. 10.212, de 30 de janeiro de 2020, promulgou o texto revisado do referido Regulamento
Sanitário Internacional (RSI).
298
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
virem a óbito embora qualquer pessoa infectada seja propensa a ter a mesma chance
de desenvolver esse estado.
De acordo com os últimos dados estatísticos oficiais, do Banco Mundial e da
Organização Mundial de Saúde (OMS)
O mundo conta com mais de um bilhão de pessoas no mundo
em situação de deficiência. Isso corresponde a uma pessoa
com deficiência em cada sete pessoas. Nas Américas, estimase um total de 85 milhões de pessoas com deficiência. E,
como ressaltado pela Comissão Econômica das Nações Unidas
para a América Latina e Caribe, CEPAL, a prevalência de
deficiências
aumenta
em
mulheres,
populações
afrodescendentes, povos indígenas, idosos e famílias de vivem
na pobreza. (OEA/Secretaría de Acceso a Derechos y Equidad,
2020, p. 30-31).
No Brasil, o primeiro caso confirmado e registrado ocorreu no dia 26 de
fevereiro de 2020, quando um brasileiro viajou à Itália e se infectou com a doença
naquele país. A partir disso, o governo brasileiro estabeleceu uma lista de países que
estavam em alerta para a covid-19. Em março de 2020, foi registrada a primeira
transmissão interna no país, exigindo que os governos federal, distrital e estaduais
adotassem medidas protetivas, tais como: estímulo ao isolamento social e uso de
máscaras, bem como compra de respiradores, testes rápidos e outros insumos.
Porém, as medidas tomadas pelo governo federal brasileiro para prevenir e conter a
disseminação da covid-19 - isolamento e distanciamento social, uso de máscaras e
álcool -
acabaram não abrangendo, em um primeiro momento, alguns grupos
minoritários como é o caso das pessoas com deficiência, que, de acordo com o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018) somam 6,7% da
população brasileira7. Isso porque muitas dessas medidas não abarcavam as suas
necessidades ou não foram difundidas com acessibilidade, deixavam-nas expostas e
alheias ao contexto sanitário, provocando, assim, maior exclusão e risco à saúde e à
vida desse grupo. Desse modo, pode-se dizer que houve um retrocesso na garantia e
no gozo do direito à saúde - física e mental - às pessoas com deficiência no território
7
O IBGE fez uma releitura dos dados de pessoas com deficiência no Censo Demográfico 2010, à luz das
recomendações do Grupo de Washington GW), o que resultou em uma modificação em torno do
percentual da população com deficiência. “Sendo assim, ao aplicar esta linha de corte, a população
total de pessoas com deficiência residentes no Brasil captada pela amostra do Censo Demográfico 2010
não se faz representada pelas 45.606.048 pessoas, ou 23,9% das 190.755.048 pessoas recenseadas
nessa última operação censitária, mas sim por um quantitativo de 12.748.663 pessoas, ou 6,7% do total
da população registrado pelo Censo Demográfico 2010”. (IBGE, 2018, p. 5).
299
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
nacional, o que caracteriza violação do direito à saúde, que, enquanto um direito
humano e fundamental, é protegido pela vedação ao retrocesso. E, privar ou
dificultar que uma pessoa com deficiência se beneficie do direito à saúde é colocar
em risco sua própria vida física, psíquica e comunitária.
Em razão disso, esta pesquisa tem como foco levantar, descrever e avaliar se
há, onde existem e como vêm sendo operacionalizadas políticas públicas federais,
distritais e estaduais de acesso e de utilização prioritários a/de serviços públicos e
privados de saúde, para e por pessoas com deficiência, durante a pandemia da covid19,
no
Brasil.
É
uma
reflexão
interdisciplinar
e
interseccional.
A
interdisciplinaridade concretiza-se a partir do diálogo entre pesquisadoras,
documentos e literatura do direito, da medicina, de políticas públicas e de relações
internacionais. A interseccionalidade, por sua vez, é materializada pela interlocução
entre deficiência e fases do desenvolvimento humano: infância, adolescência,
juventude e velhice, que, de acordo com normativas internacionais e nacionais,
devem receber atendimento prioritário em saúde. A abordagem metodológica apoiase em pesquisa teórica e documental, cujas referências estão disponíveis em
bibliotecas e bases de dados nacionais e internacionais, notadamente a base
legislativa sobre a covid-19, do site da Presidência do Planalto, biblioteca do CEUB,
Ebsco e Dynamed.
A síntese e o percurso da pesquisa serão expostos em três seções primárias.
Na primeira, buscar-se-á responder à seguinte indagação: que pessoas com
deficiência? a partir da descrição dos critérios jurídicos para o acesso e a utilização
prioritária dos equipamentos ou serviços de saúde para as crianças e adolescentes,
jovens e idosos com deficiência. A segunda é dedicada à análise do seguinte
questionamento: que estratégias e serviços de saúde?, por intermédio da descrição
das políticas públicas para o acesso prioritário aos serviços e equipamentos de saúde
para pessoas com deficiência, em especial o acesso às Unidades de Tratamento
Intensivos (UTIs) e à imunização. E, por fim, na terceira seção objetiva-se identificar
se há e qual é ou quais são as deficiências que exigem o acesso e a utilização
prioritária de equipamentos ou serviços de saúde para pessoas com deficiência, de
acordo com critérios e evidências científicas.
300
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
2 REALIDADE OU MITO: O ACESSO E A UTILIZAÇÃO
PRIORITÁRIA DE SERVIÇOS DE SAÚDE POR PESSOAS
COM DEFICIÊNCIA DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19
Partimos da premissa de que a deficiência é um conceito em permanente
transformação, multifacetado e construído socialmente. Por isso, a deficiência deve
ser vista como uma questão social - que interessa e afeta a todos - e não meramente
uma problemática de caráter individual - e, portanto, deve ser avaliada de acordo
com o modelo
biopsicossocial8. Como desdobramento imediato desse novo
paradigma e critério de avaliação, tem-se uma ampliação no rol de pessoas com
deficiência, que pode incluir, ainda, pessoas com deficiência mental ou psicossocial
em decorrência de transtorno mental ou sofrimento psíquico.
2.1 Quem são as pessoas com deficiência?
Diante disso e conforme a CDPD (art. 1) “Pessoas com incapacidades
incluem aquelas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental,
intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições
com as demais pessoas” (tradução livre nossa). 9
Para a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) (art. 2o),
por sua vez, a pessoa com deficiência é
[...] aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza
física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação
com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação
plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com
as demais pessoas. (grifos nossos)
A diferença entre um conceito e outro é bem sutil. O da CDPD tem um
caráter mais abrangente que o da LBI, pois "disabilities"/"incapacidades'' é
8
9
Este modelo - também denominado modelo social - supera as visões moral ou estritamente médica
historicamente vigentes ao compreender a deficiência como resultante de uma interação entre
impedimentos singulares de cada pessoa (de natureza física, sensorial, mental ou intelectual) com as
barreiras sociais e ambientais, de diversas naturezas (físicas, ambientais, legais, tecnológicas e de
representações sociais discriminatórias), que geram limitações e constrangimentos à sua participação
plena e ao acesso aos direitos na sociedade, em condições equitativas às das demais pessoas.
Persons with disabilities include those who have long-term physical, mental, intellectual or sensory
impairments which in interaction with various barriers may hinder their full and effective participation
in society on an equal basis with others. (grifos nossos).
301
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
expressão mais ampla e abrangente que “deficiência”. Adicionalmente, o conceito
da CDPD diz que “as pessoas com incapacidade incluem”, enquanto a LBI afirma
que “pessoa com deficiência é”.
Com base nas considerações anteriores, é intuitivo que o grupo das “pessoas
com deficiência” é amplo e heterogêneo, mesmo quando se adota um critério
prevalentemente biomédico, como ainda faz o Brasil, em desconformidade com a
CDPC e a LBI, que utilizam o modelo biopsicossocial de deficiência. 10 Sob a
perspectiva biomédica, as deficiências são: física, intelectual, mental ou psicossocial,
sensorial (visual e auditiva) e múltiplas deficiências. Podem ser congênitas ou
adquiridas e se manifestam em diferentes fases da vida do indivíduo.
As pessoas com deficiência, considerando esse novo enfoque, devem ter
acesso aos equipamentos ou serviços de saúde e utilizá-los em caráter de prioridade,
nos termos do artigo 9º da LBI.
Portanto, além de assegurar “[...] atenção integral à saúde da pessoa com
deficiência em todos os níveis de complexidade, por intermédio do SUS, garantido
acesso universal e igualitário”, nos moldes do exigido pelo art. 18 da LBI, o Estado e
as entidades privadas que prestam serviços de saúde devem adequar seu olhar, a
escuta, os cuidados e os tratamentos às singularidades e necessidades distintas das
pessoas com deficiência, inclusive e especialmente durante a pandemia, em respeito
à sua dignidade, à sua autonomia e à sua condição.
No tocante às especificidades da garantia do direito à saúde
das pessoas com deficiência, em seu aspecto geral, não há o
que diferenciar o direito das demais pessoas em gozar de boa
saúde. A questão está exatamente na garantia de atendimento
das especificidades de cada pessoa, em decorrência de
deficiências genéticas ou adquiridas. Se isso não for levado em
conta, não for atendido, jogaremos por terra a genérica
garantia do direito à saúde em razão da incompletude que
acabará por ferir o princípio da equidade em saúde. (SANTOS,
2016, p. 53).
10
Dizemos que o Brasil ainda adota um critério prevalentemente biomédico porque a concessão do
Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a aposentadoria da pessoa com deficiência são políticas
pautadas no modelo biopsicossocial.
302
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Neste texto, adotamos a idade como critério jurídico para justificar a
priorização dos cuidados de determinados segmentos de pessoas com deficiência
durante a pandemia da covid-19, em especial crianças, adolescentes, jovens e idosos.
2.2 Critério considerado para definição da pessoa com deficiência
alvo da prioridade legal
Serão consideradas crianças as pessoas com deficiência até onze anos de
idade e adolescentes com deficiência os que tiverem entre doze e dezoito anos de
idade, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). 11 O ECA
assegura-lhes acesso integral ao SUS, “observado o princípio da equidade no acesso
a ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde”, devendo ser
atendidos “sem discriminação ou segregação, em suas necessidades gerais de saúde
e específicas de habilitação e reabilitação”, segundo o art. 11, § 1º.
Jovens com deficiência são, para fins legais, pessoas com idade entre 15
(quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade, consoante o Estatuto da Juventude no art.
1º, § 1º da Lei nº 12.851/2013. Contudo, para fins de proteção integral do
adolescente, como no caso da saúde, serão considerados adolescentes com
deficiência os jovens com idade entre 15 e 18 anos12, pois a legislação vigente não
estabelece atendimento prioritário para os jovens.
Idoso com deficiência é, de acordo com a Lei nº 10.741/2003 - Estatuto do
Idoso - a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos. Enquanto tal, tem a garantia
de acesso prioritário à rede de serviços de saúde e de assistência social locais. Entre
os idosos, os que têm 80 anos ou mais têm prioridade em relação aos de menor idade
conforme o art. 3º, VIII e § 2º do Estatuto do Idoso. Esse Estatuto assegura, ainda, a
todos os idosos com deficiência, atendimento especializado em saúde, além do
mencionado atendimento prioritário, visto no art. 15, § 4º.
11
A Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) considera como criança todo ser humano
com menos de 18 anos de idade, salvo quando, em conformidade com a lei aplicável à criança, a
maioridade seja alcançada antes, o que não é o caso da legislação brasileira. (grifos nossos).
12
§ 2º Aos adolescentes com idade entre 15 (quinze) e 18 (dezoito) anos aplica-se o Estatuto da Criança e
do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) e, excepcionalmente, o Estatuto da Juventude, quando não conflitar
com as normas de proteção integral do adolescente.
303
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Essas faixas etárias foram eleitas porque, além da deficiência, estão mais
expostas à covid-19, seja em razão da maior dificuldade de utilizarem máscaras,
praticar higiene das mãos e manterem o distanciamento e o isolamento social
(crianças e adolescentes), quer por serem refratárias ao isolamento social ou
circularem nos espaços públicos em virtude do trabalho (jovens), seja em razão do
“[...] risco maior de mortalidade e doenças graves após a infecção, como os idosos.
Entre as pessoas acima de 80 anos, a taxa de mortalidade é cinco vezes maior.”
(ONU, 2020a).
Para concluir esta seção, é importante destacar que, além do critério etário,
será considerado o fato de que pessoas com deficiência podem ter o processo de
envelhecimento mais precocemente, o que os coloca em riscos semelhantes às
pessoas idosas, em termos de complicações e mortalidade.
2.3 Políticas públicas para o acesso e utilização prioritária a/de
serviços de saúde por pessoas com deficiência durante a
pandemia da covid-19
As pessoas com deficiência são reconhecidas no direito brasileiro, desde a
Constituição Federal de 1988, como sujeitos de direito e, como tais, vêm lutando
pela efetivação dos seus direitos sociais, entre os quais o direito à saúde. Ao longo
desses mais de 30 anos, o Estado brasileiro criou e implementou várias políticas
públicas voltadas para a referida população.
A Lei nº 7.853/89, por exemplo, dispõe sobre o apoio às pessoas com
deficiência e sua integração social por meio da criação de uma rede de serviços
especializados em reabilitação e habilitação, do acesso à saúde e do
desenvolvimento de programas voltados às pessoas com deficiência. Somente,
porém, por meio da Portaria n. 1.060/2002, do Ministério da Saúde, foi instituída a
Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência, a qual orienta as ações do
setor Saúde voltadas a esse segmento da população, com o objetivo último de
promover sua inclusão plena em todas as esferas da vida social. Outra importante
iniciativa foi o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Viver sem
Limites -, criado por intermédio do Decreto n. 7. 612/2011 e por influência da
CDPD. Como desdobramento do Plano foi criada, pela Portaria n. 793, de 24 de
304
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
abril de 2012, a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, que estabelece ações
de reabilitação, promoção à saúde, identificação precoce de deficiências, prevenção
dos agravos e tratamento.
Não obstante os avanços já apresentados, as ações para garantir a
integralidade do cuidado às pessoas com deficiência ainda se mostram
marginalizadas e distantes de solucionar as verdadeiras demandas sociais desses
indivíduos. Isso ocorre porque ao longo desse processo verificam-se várias objeções
burocráticas, desconhecimento das normas garantidoras dos direitos das pessoas com
deficiência, poucos profissionais qualificados e capazes de dar a assistência
necessária às pessoas com deficiência, falta de informação ou informação acessível e
ausência de acessibilidade na comunicação - Libras, Braille, linguagem simples,
entre outros.
A pandemia da covid-19 vem, a partir de 2020, agravar ainda mais esse
cenário no Brasil. Em 11 de março de 2020, quando foi declarado o estado de
pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) orientou os países e suas
populações a seguirem as medidas essenciais para prevenção da disseminação da
covid-19, mencionadas em outras partes do texto. Entretanto, as estratégias de
cuidado propostas pela OMS e adotadas por alguns governos não abarcaram as
especificidades das pessoas com deficiência, como por exemplo a necessidade de
auxílio de outras pessoas para tais cuidados, a utilização de equipamentos para
realizar atividades rotineiras, como a bengala e a cadeira de rodas, e o uso do tato
para a identificação de contextos físicos. Essas especificidades dificultam ou
impossibilitam o isolamento, o distanciamento físico de outras pessoas e o uso de
máscaras, expondo esses indivíduos a mais chances de serem infectados. Além do
mais, o isolamento total desencadeou a suspensão de prestação de serviços
essenciais para essas pessoas como, por exemplo, as sessões de fisioterapia, terapia
ocupacional ou fonoaudiologia e, por outro lado, dificultou o acesso a outros
ambientes e equipamentos de saúde necessários ao atendimento das suas
necessidades médicas e pessoais, o que pode ter ocasionado o retrocesso dos
tratamentos médicos contínuos, como por exemplo às pessoas com distrofias
musculares (LEITE; LOPES, 2020).
305
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Nesse mesmo sentido, o isolamento e o distanciamento social, assim como as
mudanças de rotinas em decorrência desse contexto, contrapõem-se ao que as
pessoas com transtorno do espectro autista (TEA), doravante apenas “autistas” ou
pessoas com autismo, necessitam, tendo em vista que, em sua maioria, já tendem a
se isolar, apresentam dificuldade em estabelecer ou manter relações sociais com
outras pessoas e se limitam a interagir apenas com familiares ou pessoas que estão
presentes no seu cotidiano. Além do mais, os autistas têm necessidades específicas
de comportamento e de aprendizagem, o que requer uma rotina que estimule o seu
desenvolvimento, de acordo com as singularidades de cada indivíduo. Por essas
razões, medidas como o isolamento social acabam ocasionando irritabilidade,
desorganização mental, agressividade e transtornos psicológicos em grande parte dos
casos.
Outras pessoas com deficiência, por sua vez, apresentam episódios de
engasgo, alterações musculares e sensitivas na região orofacial e/ou dificuldades
relacionadas à comunicação como na emissão da fala ou compreensão da informação
falado por terceiros, o que é agravado pelo uso obrigatório de máscaras, que
aumenta a dificuldade de comunicação e de transferência de cuidados em relação a
esse grupo. (BARBOSA et. al., 2020; COURA; ALMEIDA, 2020).
Somando-se aos problemas anteriormente elencados, a telemedicina,
regulamentada pelo Ministério da Saúde (MS), por intermédio da Portaria n. 467, de
março de 2020 - e o atendimento psicológico on-line - disciplinado pela Resolução
do Conselho Federal de Psicologia (CFP) n. 04/2020 - que se apresentam como
medidas alternativas de acesso e cuidado em saúde e saúde mental durante o período
de isolamento, têm limitações, principalmente no que tange às pessoas com
deficiência. São exemplos das limitações vivenciadas por essa população histórica e
reiteradamente excluída
a dificuldade ou falta de acesso a computadores e a
softwares específicos, especialmente no caso de pessoas com deficiência auditiva ou
visual de crianças e adolescentes com deficiência, a dificuldade ou falta de acesso à
internet; a inexistência de um ambiente privativo para realizar consultas e o
despreparo da grande maioria dos profissionais da saúde brasileiros, em relação às
necessidades específicas das pessoas com deficiência, como a necessidade de uma
comunicação acessível, por meio do uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e de
306
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
linguagem simples. Os mencionados obstáculos subsistem apesar do que dispõe a
CDPD e a LBI sobre acessibilidade.
Em relação à dificuldade da adoção da telemedicina como estratégia de
cuidado em saúde das pessoas com deficiência, a senadora Mara Gabrilli (PSDBSP), destacou a importância
[D]O uso de uma plataforma e de uma tecnologia que permita
a mediação dessas consultas com a presença de um intérprete
de libras. Também as orientações aos médicos de como atuar
de maneira mais explicativa, no caso de uma pessoa com
deficiência intelectual ou autismo, e de uma maneira mais
descritiva às pessoas cegas, para entender o contexto —
afirmou Mara, apresentando uma lista de medidas que segundo
ela devem ser observadas.
A senadora pediu também a disponibilidade de intérpretes para
os surdos-cegos, e uma plataforma que seja acessível aos
leitores de tela, utilizada pelas pessoas com deficiência visual.
(LEITE; LOPES, 2020; SENADO, 2020).
As primeiras medidas concretas, no nível federal para efetivar o direito à
saúde das pessoas com deficiência durante a pandemia, começaram a ser conhecidas
em 19 de março de 2020, data em que o Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos (MMFDH) lançou uma cartilha informativa sobre os cuidados
que as pessoas com deficiência devem tomar durante esse período, com textos
informativos e vídeos em Libras. Dando continuidade às medidas, no dia 23 de abril
de 2020, o MMFDH iniciou o cadastramento de instituições a fim de que pudessem
auxiliar pessoas com deficiência a enfrentar o período da pandemia (MMFDH,
2020).
Já as orientações emitidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(ANVISA) - via Nota Técnica GVIMS/GGTES/ANVISA nº 05/2020, de 21 de
março de 2020 - para a prevenção e o controle de infecções pela covid-19 em
instituições de longa permanência para idosos (ILPI) não asseguraram, mesmo em
relação aos protocolos de higiene, acessibilidade comunicacional e à informação e
tampouco declinaram instruções para que essa fosse garantida, violando direitos e
medidas garantidas pela LBI, conforme já mencionado anteriormente, uma vez que
há interseccionalidade, muitas vezes, entre velhice e deficiência.
307
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
No dia 3 de abril de 2020, a Federação Brasileira das Associações de
Síndrome de Down (FBASD) lançou a “Nota em defesa da vida durante a pandemia
de COVID-19 no Brasil”, manifestando repúdio à discriminação contra pessoas com
deficiência noticiada no Reino Unido e nos Estados Unidos e defendendo a
preservação da vida dessas pessoas “em igualdade de oportunidades com as demais
pessoas, em todo e qualquer cenário, inclusive nas situações de insuficiência de
recursos médicos, incluídos o atendimento adequado e o acesso a ventiladores
mecânicos”.
No mesmo mês, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) editou duas
recomendações destinadas a garantir os direitos e a proteção social das pessoas com
deficiência e de seus familiares no contexto da covid. A primeira delas - a nº 19, de
6 de abril de 2020 - apresenta fluxos e alternativas ao acesso a medicamentos e
outros itens necessários à preservação da vida das pessoas com deficiência (CNS,
2020a). Na segunda, a Resolução nº. 31, de 30 de abril de 2020, recomendou que
fosse garantido o atendimento às pessoas com deficiência e com doenças raras
[...] em situações emergenciais com isonomia, condenando
atitudes e comportamentos discriminatórios e que, na hipótese
de necessidade de definição de prioridade para a distribuição
de leitos de UTI, em face da insuficiência de recursos
materiais e/ou profissionais de saúde, pessoas com deficiência
não sejam preteridas com base nos impedimentos nas funções
ou estruturas de seus corpos, sob pena de violação de
princípios como a dignidade humana, a igualdade, a aceitação
das pessoas com deficiência como parte da diversidade
humana e configuração de prática de discriminação por motivo
de deficiência, conduta esta punível nos termos da legislação
vigente. (CNS, 2020b).
É importante ressaltar, na seara legislativa federal, a propositura de Projetos
de Lei (PLs) para abarcar as necessidades das pessoas com deficiência no contexto
de pandemia. Alguns foram aprovados e outros estão em andamento ou sem
tramitação recente. A seguir, destacamos alguns que versam sobre saúde:
(a) Projeto de Lei nº 4318/2020 - altera a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de
2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento de emergência de saúde
pública em decorrência da covid-19, para designar como serviço essencial as
entidades sem fins lucrativos que prestam ação social ou atendimento a pessoas com
308
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
deficiência. Encontra-se, desde 30/06/2021, aguardando parecer do Relator na
Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), da Câmara dos Deputados;
(b) Projeto de Lei nº 3022/2020 - estabelece a criação do auxílio-cuidador
para pessoas idosas e/ou com deficiência que necessitarem de terceiros para
realização das atividades diárias. O último andamento foi em 08/04/2021.
Aguardando despacho do presidente da Câmara dos Deputados;
(c) Projeto de Lei nº 5556/2020 - altera a Lei nº 6259/1975, que estabelece
normas sobre notificação compulsória de doenças para inclusão de informações das
pessoas com deficiência. Apensado ao PL 2726/2020, em 25/03/2021;
(d) Projeto de Lei nº 2178/2020 - de autoria da Senadora Mara Gabrilli
(PSDB/SP), propõe a disposição de fornecimento de transporte - pelo Distrito
Federal e por municípios com mais de 20.000 habitantes - para atender os cuidadores
de idosos e de pessoas com deficiência ou doenças raras, até janeiro de 2021.
Parecer da Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), de agosto de 2021,
sugeriu a alteração do tempo do benefício previsto no caput do art. 2º, dando-lhe a
seguinte redação: "Art. 2º Enquanto durar a Emergência em Saúde Pública de
importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo
Coronavírus (2019-nCoV) [...]. O último andamento desse PL foi em 19/08/2021.
Aguardando designação de relator na Comissão de Viação e Transportes (CVT).
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021);
(e) Projeto de Lei nº 2551/2020 - altera o art. 22 e inclui o § 3o no citado
artigo da Lei nº 13.146/2015. A proposta de alteração do caput do art. 22 traz o
direito a acompanhante ou a atendimento pessoal à pessoa com deficiência internada
ou em observação, “[...] ainda que decretado estado de calamidade pública, sítio,
defesa ou emergência, devendo o órgão ou a instituição de saúde proporcionar
condições adequadas para sua permanência em tempo integral”. O novo parágrafo
3o dispõe sobre a garantia de “[...] plano de contingência para emergências, com
equipes técnicas preparadas para lidarem com pacientes com deficiência intelectual
ou cognitiva. O último andamento é de 06/4/2021. Aguardando parecer do relator na
Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CPD).
309
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
(f) Projeto de Lei nº 3563/2020 - altera a Lei nº 13.979/2020 para inclusão do
atendimento acessível e humanizado às pessoas com deficiência durante a pandemia
da covid-19. O último andamento desse PL foi em 08/09/2021. Aguardando
designação de relator na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF).
(CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021).
(g) Projeto de Lei nº 5377/2020 - altera a Lei nº 6.259, de 30 de outubro de
1975, para inclusão das pessoas com deficiência no grupo de pessoas prioritárias no
Programa de Vacinação contra a covid-19 no Programa Nacional de Imunizações
(PNI). Foi apensado ao PL-4992/2020 e teve um último andamento em 17/06/2021,
oportunidade em que foi declarado prejudicado em face da aprovação da Submenda
Substitutiva Global ao PL n. 1.011/2020, adotada pela Relatora da Comissão de
Seguridade Social e Família (CSSF). (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021).
(h) Projeto de Lei nº 1011/2020 - estabelece prioridade para 16 grupos dentro
do plano de vacinação contra a Covid-19, dentre os quais as pessoas com
deficiência. O último andamento desse PL foi em 23/06/2021, quando foi remetido
ao Senado Nacional, onde segue aguardando apreciação. (CÂMARA DOS
DEPUTADOS, 2021).
As matérias abordadas nos PLs anteriormente expostos são de extrema
importância para o asseguramento dos direitos à vida e à saúde de pessoas com
deficiência. Entretanto, o tempo entre a propositura e a eventual aprovação desses e
de outros PLs, mesmo aqueles que tramitam com prioridade, como o PL nº
2178/2020, é incompatível com a urgência e a gravidade do momento, o que poderá
tornar inócuos seus efeitos positivos, ou seja, sua efetividade, caso sejam aprovados.
No âmbito dos estados, do Distrito Federal e dos municípios brasileiros,
identificamos as seguintes ações voltadas para os cuidados em saúde de pessoas com
deficiência, durante a pandemia. Em São Paulo, foram criados centros de contenção
da disseminação da covid-19 em seis regiões - Sé, Santo Amaro, Santana, Mooca,
Luz e Lapa - para pessoas com deficiência e um serviço de atendimento 24 horas às
pessoas com deficiência auditiva pela Central de Intermediação em Libras da
Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência. Além disso, na região da Luz, foi
criado um Centro de abrigo para as pessoas com deficiência e idosas sem moradia,
310
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
que fornece kits de higiene, refeições e orientações de cuidado e prevenção. No dia
23 de junho de 2020, a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência e a
Secretária da Saúde do estado de São Paulo publicaram uma resolução conjunta Resolução SS n. 01 - que traz recomendações sobre a internação de pessoa com
deficiência, durante a pandemia da covid-19, para em especial garantir: (a)
a
prioridade no seu tratamento, sempre que possível; (b) o direito a acompanhante, se
ela não se comunicar ou depender de terceiros para alimentação e locomoção e (c)
sua internação
“[...] preferencialmente, em Hospitais exclusivos COVID,
preferencialmente COVID e preferencialmente não COVID
(tipologia dos estabelecimentos conforme pacto da Comissão
Intergestores Bipartite CIB SP). A internação em Hospital de
Campanha poderá ocorrer em situação excepcional ditada
unicamente pela falta de leitos nos demais serviços
hospitalares de atendimento COVID 19”. (SÃO PAULO,
2020).
No litoral de São Paulo, Santos, foram criados dois serviços de referência
para pessoas com deficiência auditiva. O primeiro assegura atendimento por
Whatsapp - uma plataforma de mensagens simultâneas, por meio de vídeo-chamadas
com intérpretes de Libras - e o segundo, pela conta do Instagram - Central de Libras
de Santos -, onde há a divulgação, de maneira acessível, das decisões tomadas pelo
município, para o enfrentamento da covid-19.
No Rio de Janeiro, o governo do estado - Lei nº 8.859, de 03 de junho de
2020, art. 4o; decreto nº 47.576, de 19 de abril de 2021, art. 3o, § 2o - e municípios,
como Santa Maria Madalena - Decreto n. 2805, de 24 de março de 2021, art. 3o, §
2o - autorizaram a não utilização de máscaras para as pessoas que têm patologia
respiratória e pessoas com deficiência, “[...] mediante apresentação de documento
médico que ateste o risco de utilização de máscaras nos casos aqui especificados”.
(LEITE; LOPES, 2020; ACRE, 2020; RIO DE JANEIRO (Estado), 2021).
Ainda no estado do Rio de Janeiro, em 05 de maio de 2020, entidades de
classe, trabalhadores, movimentos sociais, Conselhos Municipais dos Direitos das
Pessoas com Deficiência, Grupos de Pesquisa e Acadêmicos, entre outros,
produziram o documento “Todas as vidas importam”, requerendo a elaboração de
políticas públicas voltadas para a execução do atendimento prioritário de pessoas
311
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
com deficiência, consoante previsto na LBI, e, ao mesmo tempo, alertando o Poder
Executivo estadual e a própria sociedade acerca da inconstitucionalidade e da
ilegalidade de não garantir o acesso de pessoas com deficiência ao tratamento em
UTIs, quando necessário, durante a pandemia.
O governo do estado do Acre promulgou a Lei nº 3.688, de 18 de dezembro
de 2020, que prevê a criação do programa emergencial de testagem para a covid-19,
na modalidade “drive thru”, a fim de atender, preferencialmente [...] “pessoas com
deficiência e dificuldade de locomoção” (art. 2o, II). (LEITE; LOPES, 2020; ACRE,
2020; RIO DE JANEIRO (Estado), 2021).
Alguns estados, regiões metropolitanas e municípios brasileiros adotaram a
paradiplomacia, consistente em
relação internacional com outros governos
nacionais, cidades e organizações internacionais, visando a resultados para fins
técnicos, financeiros, industriais e comerciais. Um exemplo disso foi a criação da
plataforma Cities for Global Health - proposta liderada pela Associação das Grandes
Metrópoles, Aliança Eurolatinoamericana de Cooperação entre as cidades, cidades e
governos locais e ONU Habitat - para administrar o impacto da crise provocada pela
pandemia, por um espaço de compartilhamento de experiências entre governos
locais e regionais do mundo. Entre os participantes dessa iniciativa estão Curitiba,
Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Brasília. Uma das iniciativas de ações
sociais elogiadas foi a disponibilização de vídeos em Libras sobre a covid-19,
promovida pelo governo do Distrito Federal. (AGÊNCIA BRASÍLIA, 2021).
2.4 Critérios clínicos e políticas públicas para o acesso e a
utilização prioritária de leitos de Unidades de Tratamento
Intensivos por pessoas com deficiência durante a pandemia
No cenário pandêmico da covid-19 houve um aumento da demanda de leitos
em UTIs, uma vez que o agravamento da doença requer tratamento e suporte de
equipamentos específicos, bem como atuação profissional qualificada, dirigida e
continuada. Nessa perspectiva, com o descontrole da doença, os hospitais ao redor
do mundo, inclusive no Brasil, tiveram que enfrentar um problema de
disponibilidade de leitos aos pacientes necessitados, haja vista que aqui, mesmo em
condições normais, há déficit de leitos para todos os que deles necessitam.
312
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A busca de alternativas para essa questão levou à construção de hospitais
temporários, conhecidos como hospitais de campanha, em estádios, parques e outros
ambientes propícios. Com isso, evidenciou-se ainda mais a questão da necessidade
de priorizar a disponibilidade de leitos em UTIs para aqueles que necessitavam de
um atendimento imediato e ainda mais específico, como é o caso das pessoas com
doenças crônicas ou deficiência. (MATIUZO, 2020).
Contudo, em situações de catástrofes como a caracterizada pela pandemia da
covid-19, existe na ética médica um posicionamento moral consequencialista em
torno da necessidade de se promover, em caso de escassez de recursos
biotecnológicos e humanos, uma “triagem” sobre quem deve ser priorizado, por
apresentar mais condições de sobreviver, ou preterido. Exemplo disso pode ser visto
no agravamento do controle da covid-19 nos EUA, em que
estados como
Washington, Utah, Tennessee e Arizona publicaram protocolos de emergência
segundo os quais pessoas com lesões cerebrais, deficiência intelectual ou mental
poderiam ser preteridas na hora da disputa por suporte com ventilador/respirador 13
(FELT et. al., 2021). Essa possibilidade gerou e ainda gera muita controvérsia lá fora
e aqui.
Por isso, apontaremos na sequência alguns critérios científicos que, aliados
aos fatores associados à faixa etária, já expostos, robustecem a garantia jurídica e
independente do contexto de pandemia, de acesso e utilização prioritária a serviços
de saúde por crianças, adolescentes e idosos com deficiência.
Muitas pessoas com deficiência, de qualquer idade, dependem do uso de
objetos, como bengalas ou têm questões sensoriais que os fazem ter maior contato
com superfícies potencialmente contaminadas. Por outro lado, alguns tipos de
deficiência, como a deficiência intelectual14, incluída a síndrome de Down, têm se
mostrado mais suscetíveis à contaminação e ao falecimento em razão da covid-19, o
13
The study, published in Disaster Medicine and Public Health Preparedness, found that some states had
emergency protocols saying that individuals with brain injuries, cognitive disorders or other intellectual
disabilities may be poor candidates for ventilator support. (FELT et. al., 2021).
14
Podemos usar dificuldade de aprendizagem (aspectos que podem interferir na aprendizagem como:
metodologia, motivação, problemas emocionais…) ou transtorno de aprendizagem (dislexia,
discalculia… essa situação é mais grave).
313
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
que reforça a relevância e a urgência de se efetivar o direito ao atendimento
prioritário em saúde às pessoas com deficiência e, em especial, aos leitos de UTI.
Dados divulgados na The Lancet em março deste ano (2021) apontam o
“triplo risco” da pandemia da covid-19 às pessoas com deficiência. O primeiro deles
é o desenvolvimento de quadros mais graves. As pessoas com síndrome de Down
apresentam dez vezes mais chances de virem a óbito em relação às demais e, na
Inglaterra, estudo aponta que as com deficiência intelectual têm índice de
mortalidade oito vezes maior, de acordo com o The Guardian (2021). A interrupção
ou a descontinuidade dos cuidados em saúde ou reabilitação caracterizam o segundo
risco. O terceiro abrange os prejuízos sociais [e psíquicos] decorrentes das regras de
isolamento social e lockdown. (MAGALHÃES; WAGNER, 2021).
No nosso país, antes da pandemia, os critérios de admissão e alta de pacientes
em UTI, em caso de insuficiência de oferta de leitos, eram balizados pela Resolução
nº 2.156, 17 de novembro de 2016, do Conselho Federal de Medicina (CFM). Esses
critérios sofreram mudanças em virtude de Recomendação da Associação de
Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) e da Associação Brasileira de Medicina de
Emergência (ABRAMEDE), que lançaram o “Protocolo de alocação de recursos
em esgotamento durante a pandemia por covid-19”. Assim, os critérios para a
ocupação de leitos de UTI - que envolvem um somatório de notas - durante a
pandemia, são:
(a) Salvar mais vidas - avalia uma série de parâmetros de
dados vitais, de 1 a 4 pontos;
(b) Salvar mais anos de vida - avalia a presença de
comorbidade grave com probabilidade inferior a um ano soma-se 3 pontos caso tenha e;
(c) Capacidade do paciente, avalia em escala do
“completamente ativo” até “completamente incapaz de realizar
auto-cuidados básicos" - de 0 a 4 pontos.
Ou seja, uma soma de notas para ter o acesso atendimento.
(ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA, 2020)
Esses novos critérios, por não fazerem menção direta a nenhum tipo de
morbidade ou condição, como a deficiência, geram insegurança e reações negativas.
(SISEJUFE, 2020). Por outro lado, os critérios para indicação são praticamente
314
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
universais, pois são critérios clínicos, que dependem também das comorbidades que
a pessoa apresenta, tenham ou não deficiência.
Então, com base nos critérios anteriormente elencados, há que se verificar se
a negativa para o acesso de pessoa com deficiência a leitos de UTI é discriminação
em virtude da sua deficiência, o que é vedado expressamente pela CDPD.15
2.5 Critérios científicos e políticas públicas para a vacinação
prioritária por pessoas com deficiência durante a pandemia
A pandemia da covid-19 gerou uma corrida em prol do desenvolvimento de
imunizantes para a população mundial. Altos investimentos em pesquisa e a
conjugação de esforços de diferentes instituições e países como Rússia, China,
Estados Unidos, Reino Unido e Brasil buscam conciliar respostas rápidas e eficazes
contra o vírus e ganho econômico, ensejando um fenômeno denominado por
Yasmeen Serhan, de “nacionalismo da vacina”. (SENHORAS, 2021).
O art. 18, § 4°, IV, da LBI estabelece, dentre as ações e os serviços de saúde
pública destinados à pessoa com deficiência, a garantia de campanhas de vacinação.
Somado a essa exigência, já temos várias publicações, dentre elas as recomendações
da International Disability Alliance (2021) e o parecer técnico sobre vacinação
contra a covid-19, de autoria do professor da Unifesp Eduardo de Medeiros (2020),
que demonstram a maior vulnerabilidade das pessoas com deficiência à covid-19 e,
em especial, das pessoas com síndrome de Down, e, portanto reforçam a urgência de
se efetivar o direito ao atendimento prioritário desse grupo, no processo de
imunização, pois as condições do seu sistema imunológico podem afetar a resposta à
vacina da covid-19 (TOMA; DIERSSEN, 2021; MEDEIROS, 2021).
Relativamente
ao
estabelecimento
-
pelo
Plano
Nacional
de
Operacionalização da Vacinação - de grupos prioritários para fins de imunização, o
Brasil elegeu os idosos (Recomendação CNS nº 003/2021). Entretanto, considerando
15
“Discriminação por motivo de deficiência” significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição
baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o
desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos
humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer
outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável;”
(grifo nosso)
315
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
a insuficiência de imunizantes no país, por razões essencialmente políticas, é
inafastável a necessidade de estabelecimento de grupos prioritários, ao lado e além
dos idosos. O critério etário adotado pelo Brasil, contudo, deixou à margem,
desamparados, milhões de pessoas com deficiência que, em face das características
da deficiência ou da doença, deveriam ter sido incluídos prioritariamente,
juntamente com os idosos (PIOVESAN, 2021).
Em face desses estudos, no dia 3 de dezembro de 2020, foi apresentado o
Projeto de Lei 5377/2020 para alteração da Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975,
para inclusão das pessoas com deficiência no grupo de pessoas prioritárias no
Programa de Vacinação contra a covid-19 no Programa Nacional de Imunizações
(PNI). Ademais, no dia 12 de abril de 2021, os deputados da Comissão dos Direitos
das Pessoas com Deficiência defenderam a ampliação do Projeto de Lei nº 1011/20
para a inclusão dos cidadãos com deficiência como prioritário. O PNI determina que
as pessoas com deficiência somente seriam vacinadas após a conclusão dos idosos maiores de 60 anos, com exceção das pessoas com Síndrome de Down, pois foram
incluídas entre os portadores de comorbidades.
Durante a audiência, os especialistas lamentaram os critérios e a secretária
nacional substituta dos Direitos das Pessoa com Deficiência do Ministério da
Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Ana Paula Nedavaska citou a LBI, que,
como já mencionado, garante o atendimento prioritário dos cidadãos com deficiência
em situação de risco (CNS, 2021a). Na mesma audiência, a representante do
Conselho Nacional da Saúde, Vitória Bernardes, criticou a explicação do Consultor
do PNI sobre o critério da idade para a vacinação e alertou sobre a falta de dados que
identifiquem o número de pessoas com deficiência contaminadas pela covid-19 e os
óbitos pela doença (CNS, 2021a).
Com efeito, ainda em 2020, na divulgação do PNV proposto pelo Ministério
da Saúde, as pessoas com deficiência foram completamente olvidadas das etapas de
vacinação, fato amplamente condenado pela Associação Nacional dos Membros do
Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos AMPID (MENDES apud AMPID, 2020). Tal fato implicou negligência e
desrespeito aos direitos das pessoas com deficiência, que devem ser resguardadas e
316
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
amparadas por políticas de saúde que garantam qualidade e inclusão sem
descontinuidade e imprecisão.
Diante disso, percebe-se que, além de inexistir uma efetiva estratégia
nacional de vacinação para pessoas com deficiência, têm-se impasses em torno da
consideração desse público como grupo prioritário, da garantia de acesso à
informação e da lentidão da vacinação para essas pessoas, como tem sido para outros
milhares de brasileiros. De outro lado, faz-se necessário o estabelecimento de uma
comunicação esclarecedora para a população, no que diz respeito aos grupos a serem
vacinados e/ou priorizados, a fim de evitar aglomeração nos postos de vacinação
(DOMINGUES, 2021). Com efeito, não podemos deixar de citar que se soma à falta
de acesso e equidade na vacinação,
a ausência/insuficiência de segurança,
saneamento e instalações de higiene adequadas às pessoas com deficiência, cuja
vulnerabilidade socioeconômica se soma à condição de pessoas com deficiência
(MAGALHÃES; WAGNER, 2021).
3 CONCLUSÃO
Verificamos que, na fase inicial da pandemia - quando ainda pouco se sabia
sobre a covid-19 e não se tinha uma vacina - os governos federal e estaduais não
investiram em campanhas publicitárias voltadas para as pessoas com deficiência,
que, por não terem acesso a informação acessível à sua condição - deficiência
intelectual ou sensorial - sobre como prevenir a covid-19, podem ter sofrido maior
exposição ao vírus.
Restou demonstrado que, diversamente da nossa hipótese inicial, não faltam
políticas públicas federais ou estaduais voltadas para a atenção à saúde das pessoas
com deficiência, durante e em razão da pandemia da covid-19. Entretanto, há um
hiato significativo entre o desenho da política pública e a implementação das ações,
dos programas e dos projetos nelas estabelecidos, bem como falta concretização da
prioridade que a legislação brasileira lhes garante, tanto em razão da deficiência,
como em virtude da idade - crianças e adolescentes e idosos -, a fim de concretizar o
direito à vida e à saúde dessas pessoas.
317
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Não identificamos, ao longo da coleta dos dados, nenhuma política pública
federal ou estadual voltada para a prevenção ou tratamento de jovens, com ou sem
deficiência, no Brasil. Os jovens, em regra, não recebem tratamento jurídiconormativo prioritário. Entretanto, tendo-se em vista a necessidade de se deslocarem
para o trabalho, a participação em festas e em aglomerações promovidas por eles,
talvez não seja tarde para se desenhar e implementar uma, sobretudo porque a
prevenção em saúde é mais barata e eficiente do que o tratamento e a recuperação.
Este foi o posicionamento adotado por países como a Indonésia, ao priorizarem a
vacinação de pessoas entre 18 e 59 anos, que, por se deslocarem e aglomerarem
mais, quer para trabalhar, quer para se divertir, têm sido apontados como os
principais transmissores da covid-19, ao lado das crianças. Aliado ao anteriormente
exposto, tem-se verificado que os sobreviventes à covid-19 vêm apresentando
inúmeras sequelas, independentemente da idade, e essas sequelas podem resultar em
deficiência ou incapacidade. (BARIFOUSE, 2021).
Do mesmo modo, constatamos que o Poder Legislativo Federal apresentou
vários e importantes projetos de lei que objetivam resguardar o direito à saúde das
pessoas com deficiência e seu atendimento prioritário, inclusive em relação à
imunização prioritária desse grupo.
O problema é, como assevera Casagrande e Freitas Filho (2010, p. 28; p. 29),
o tempo - entendido como um fenômeno histórico e sociocultural, tal como proposto
por François Ost e não meramente cronológico. Ao abandonar sua feição
cronológica e adotar uma dimensão operativa, o tempo passa a “[...] realizar
diferentes performances, dependendo de como se lhe opera em um determinado
processo”. A governabilidade demanda do gestor público maior agilidade na tomada
de decisão - enquanto formulador e implementador de políticas públicas. O
legislador na qualidade de produtor de normas jurídicas - tem outro ritmo. E o tempo
da vida, por sua vez, é totalmente diverso do tempo de ambos os poderes, razão pela
qual muitas dessas políticas públicas e projetos de lei podem não mais cumprir suas
finalidades. Diante disso e, mais uma vez, nos socorrendo das contribuições de
Casagrande e Freitas Filho (2010, p. 33):
Ao funcionar segundo lógicas distintas, Executivo, Legislativo
e Judiciário operam de forma assíncrona as funções
318
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
institucionais dos poderes, que ganha visibilidade como o
conflito entre os princípios da legalidade constitucional,
expresso no caso pelo respeito aos dogmas do processo
legislativo, e da eficiência da implementação das políticas
públicas. Há uma incompatibilidade axiológica intrínseca entre
os valores da legalidade constitucional e da realização
eficiente de políticas públicas, dados os focos formal daquele e
consequencialista deste. A consecução eficiente de políticas
públicas que materializam as previsões constitucionais
sobre direitos sociais depende de uma mínima sincronia
entre os Poderes, tendo em vista a complexidade desse
objetivo. (CASAGRANDE; FREITAS FILHO, 2010, p. 33;
grifos nossos)
Não vislumbramos, ao longo desses quase dois anos de pandemia, esforços
dos Poderes Públicos - Executivo e Legislativo - e dos entes federais - união,
estados, distrito federal e municípios - no sentido de sincronizar seus tempos em prol
da vida, da segurança e da saúde da população com deficiência. Muito pelo
contrário, o descompasso, que tem gerado intensos conflitos, tem orquestrado a
atuação das autoridades públicas brasileiras no combate à pandemia da covid-19,
resultando em perdas de vidas e de capacidade.
REFERÊNCIAS
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Escritório de Assuntos Internacionais do Distrito Federal, 02 de abril de 2020.
Disponível em: https://agenciabrasilia.df.gov.br/2020/04/02/acoes-do-df-nocombate-a-covid-19-sao-destaque-internacional/. Acesso em: 20 jun. 2021.
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deficiência para uso da telemedicina. Senado Notícias. 01 de abril de 2020.
Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/04/01/maragabrilli-pede-atencao-especial-aos-deficientes-para-uso-da-telemedicina. Acesso em:
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319
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
BARBOSA, André Machado et. al. Os impactos da pandemia COVID-19 na vida
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BARIFOUSE, Rafael. Vacinas para jovens ou idosos primeiro? Os prós e contras de
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326
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
SEGURANÇA PÚBLICA, PERSECUÇÃO
PENAL E PRISÕES NO DISTRITO
FEDERAL EM TEMPOS DE PANDEMIA
DE COVID-19*
Alexandre Pereira da Rocha1
Mayara Lima Tachy2
Welliton Caixeta Maciel3
Valéria Vânia Costa da Silva4
RESUMO
A pandemia do novo Coronavírus atingiu o Brasil em proporções
preocupantes. Nesse cenário, os campos da segurança pública, da persecução penal e
das prisões no Distrito Federal também estão inseridos. Em termos da segurança
pública, especificamente das Polícias, encontram-se em atuação e com a exposição
de riscos para seus integrantes, bem como um incremento de ocorrências de
determinados tipos de crimes. Na esfera da persecução penal pelas instituições do
Sistema de Justiça Criminal e, mais especificamente, no tocante à atuação da
Defensoria Pública, procurou-se adotar medidas de proteção aos seus membros e
manutenção do atendimento ao público. No sistema prisional, por sua vez, pela
situação alarmante de superlotação do complexo penitenciário do DF, bem como
devido ao não atendimento dos protocolos de saúde pública e às recomendações do
*
1
2
3
4
A ideia de escrever este texto partiu das discussões tecidas durante live homônima, realizada no dia 10
de julho de 2020, na coluna Crítica Republicana, do canal Resistência Contemporânea, com a
moderação do prof. Carlos Federico Domínguez Avila (UNIEURO) e da estudante de Jornalismo Itria
Corrêa
(UFT).
Disponível
em:
https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=SEpICoVvC0U&feature=share# .
Doutor em Ciências Sociais pelo Centro de Pesquisa e Pós-graduação sobre as Américas (CEPPAC) –
atualmente, Departamento de Estudos Latino-americanos, do Instituto de Ciências Sociais
(ELA/ICS/UnB); mestre e graduado em Ciência Política, pelo Instituto de Ciência Política da
Universidade de Brasília (IPOL/UnB). Agente Policial e Professor da Escola Superior de Polícia Civil
do Distrito Federal (PCDF). E-mail: alxroch@yahoo.com.br .
Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), Defensora Pública na
Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF). Mestranda em Direito, Estado e Constituição
(PPGD/FD/UnB) E-mail: mayaratachy@gmail.com .
Doutorando em Direito, Estado e Constituição (PPGD/FD/UnB), mestre em Antropologia Social
(PPGAS/DAN/UnB), graduado em Antropologia e Sociologia pelo Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Brasília (ICS/UnB), e em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário
do Distrito Federal (UDF). Professor substituto/voluntário da Faculdade de Direito da UnB. E-mail:
wellitonmaciel@gmail.com .
Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB). E-mail:
valeriavaniacostasilva@gmail.com .
327
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Conselho Nacional de Justiça, a realidade das unidades prisionais expôs internos e
agentes institucionais à disseminação da doença. Diante desse cenário, a partir de um
levantamento que se pautou pela uma abordagem qualitativa de pesquisa,
apresentamos um panorama interinstitucional e refletimos acerca da adoção (ou não)
de medidas relativas à gestão da pandemia de Covid-19, pelo governo local, pelas
instituições do Estado e pela sociedade. O estudo considerou as inserções
institucionais (profissionais/acadêmicas) dos/as autores/as, analisando informações a
partir da Polícia Civil, da Defensoria Pública e de pesquisas acadêmicas junto ao
sistema penitenciário do Distrito Federal.
Palavras-chaves: pandemia; segurança pública; polícia civil; defensoria pública;
prisões.
1 INTRODUÇÃO
A pandemia Covid-19 atingiu o Brasil em proporções preocupantes, sendo o
segundo país do mundo em números absolutos de infectados e mortos. Nesse
cenário, os campos segurança pública, persecução penal e prisões no Distrito Federal
também estão inseridos. No que se refere à segurança pública, especificamente às
Polícias, na condição de prestadoras de serviço público essencial, encontram-se em
atuação e com a exposição de riscos para seus integrantes. Essa situação, por certo,
impacta na prestação dos serviços.
Na esfera da persecução penal pelas instituições do Sistema de Justiça
Criminal e, mais especificamente, no tocante à Defensoria Pública, instituição
essencial para garantia de direitos individuais, procurou-se adotar medidas de
proteção aos seus membros e manutenção do atendimento ao público. Entretanto,
frequentemente o direito à saúde tem sido confrontado com a busca por eficiência do
Poder Judiciário, que busca retomar suas atividades, mesmo durante o momento
mais grave da disseminação da doença.
Já no que pertine ao sistema prisional, pela situação alarmante de
superlotação do complexo penitenciário do Distrito Federal, bem como devido ao
não atendimento dos protocolos de saúde pública e às recomendações do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), a realidade das unidades prisionais expôs internos e
agentes institucionais à disseminação da doença.
Diante desse cenário, este ensaio busca apresentar um panorama preliminar e
inconclusivo da situação real da Covid-19 e, a partir de uma perspectiva histórica e
328
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
crítica, avaliar as diversas medidas implementadas (ou não) e suas consequências
nos âmbitos da segurança pública, da persecução penal e das prisões no Distrito
Federal frente à pandemia.
Parte-se, portanto, da análise de agentes e pesquisadores/as envolvidos/as no
processo, sendo: Alexandre Rocha, da Polícia Civil do Distrito Federal; Mayara
Lima Tachy, da Defensoria Pública do Distrito Federal; bem como do levantamento
realizado por Welliton Caixeta Maciel e Valéria Vânia Costa da Silva, da Faculdade
de Direito da Universidade de Brasília, quanto às informações acerca da gestão da
pandemia no sistema penitenciário do Distrito Federal.
A partir de uma abordagem qualitativa, buscamos, neste ensaio, refletir
acerca da adoção (ou não) de medidas relativas à gestão da pandemia de Covid-19,
pelo governo local, pelas instituições do Estado e pela sociedade. O estudo
compreendeu, portanto, duas fases: 1) levantamento de documentos oficiais (tais
como: relatórios, informativos, boletins epidemiológicos, entre outros) e outros tipos
de fontes (como: matérias jornalísticas, entre outras); 2) análise crítica do material
coletado, considerando as inserções institucionais (profissionais/acadêmicas) dos/as
autores/as. No que tange ao recorte temporal de ocorrência e levantamento do
material analisado, consideramos o período de março de 2020 a setembro de 2021,
haja vista a situação da Covid-19 em diferentes momentos. Passemos aos dados e às
respetivas reflexões que, adiantamos, não se pretendem exaustivas e conclusivas
nem, tampouco, representativas de todo panorama e da realidade interinstitucional
do Distrito Federal.
2 A POLÍCIA CIVIL DO DISTRITO FEDERAL E A COVID-195
A Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) não abrange toda a organicidade
da segurança pública do Distrito Federal, a qual ainda é composta pela Polícia
Militar, Corpo de Bombeiros, Departamento de Trânsito e, inclusive, Sistema
Penitenciário6. Todavia, neste relato trato das vicissitudes da pandemia Covid-19 na
5
6
Parte escrita por Alexandre Rocha a partir de sua atuação como Agente Policial e Professor da Escola
Superior de Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF).
Note-se que, tradicionalmente, o sistema penitenciário no Distrito Federal esteve a cargo da Secretaria
de Estado de Segurança Pública, tendo inclusive servidores da PCDF, PMDF, CBMDF. Por sua vez,
hoje o sistema penitenciário possui administração própria. Vide: Sistema Penitenciário do DF ganha
329
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
PCDF como uma forma de representar essa situação nas agências de segurança
pública do Distrito Federal.
Para tanto, observo algumas tratativas realizadas pela PCDF no período da
pandemia, a fim de resguardo de seus servidores e de suas atividades. Analiso tais
tratativas tendo como referência o documento “10 medidas para a segurança
pública durante a pandemia da Covid-197” desenvolvido por especialistas da área
de segurança pública. Com isso, pretendo avaliar como a PCDF está se adaptando às
mudanças impostas pela pandemia.
Destaco que, o presente relato não é uma visão institucional – não falo pela
PCDF –, tampouco representa a opinião da totalidade dos servidores da instituição.
Assim, como noutras organizações da sociedade brasileira, a percepção sobre a
Covid-19 não é uniforme. É fato. A PCDF também não está imune ao embate
político sobre o discurso da Covid-19, que vai de abordagens atentas à gravidade da
pandemia até às negacionistas do vírus8.
Há diversas mentalidades e ações de policiais frente à Covid-19, portanto. O
que trago aqui é tão-só uma percepção pessoal sobre a Covid-19, a visão de um
policial que considera a gravidade da pandemia e avalia que ela gera impactos ainda
não compreendidos para as polícias e para o campo da segurança pública.
2.1 Entre incertezas e medo: um sentimento pessoal
No instante que escrevo, estou consternado com a notícia de um colega que
veio a falecer em decorrência da Covid-19. Não erámos amigos, não conhecia sua
família, aliás eu o vi poucas vezes, pois era de atividade distinta da qual exerço. No
entanto, esse colega tinha minha idade, o mesmo tempo de serviço na PCDF do que
eu. Inclusive, realizamos o mesmo curso de formação. Posteriormente, outro colega,
7
8
independência.
Agência
Brasília,
27/05/2020.
Disponível
em:
https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2020/05/27/sistema-penitenciario-do-df-ganha-independencia/
Acessado em: 13/10/2020.
“Especialistas elaboram 10 medidas para a segurança pública durante a pandemia da Covid-19.”
Instituto Sou da Paz. 04/05/2020. Disponível em: https://soudapaz.org/noticias/especialistas-elaboram10-medidas-para-a-seguranca-publica-durante-a-pandemia-da-covid-19/ Acessado em: 13/10/2020.
“Um Governo negacionista e doente de covid-19”. El País. 20/07/2020. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-20/um-governo-negacionista-e-doente-de-covid-19.html.
Acessado em: 10/12/2020.
330
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
agora próximo, pois trabalhamos juntos, veio a falecer em consequência da Covid19, em agosto de 2021. Nesse último caso, infelizmente ele se opôs à vacinação,
embora o imunizante tenha sido disponibilizado pela rede de saúde pública. Essas
mortes me impactaram.
É fato. A PCDF e seus servidores também foram atingidos pela Covid-19.
Até setembro de 2021, segundo dados da própria polícia, em termos de vítimas
fatais, quatro policiais da ativa morreram. Outros policiais vieram a falecer, mas já
estavam aposentados.
Pode parecer pouca a quantidade de vítimas fatais na PCDF, sendo dois
policiais num universo de 3.964 servidores9. Contudo, ao se observar a quantidade
policiais civis mortos em serviço, entre 2017 e 2018, não houve nenhum caso 10. Em
2020, também não ocorreram mortes de policias civis em serviço 11. Ou seja, em
pouco mais de cinco meses, a pandemia de Covid-19 vitimou mais policiais civis do
que a quantidade policiais mortos em serviço num intervalo de quase três anos 12.
Por certo, não é possível atribuir que os policiais civis vitimados pela Covid19 tenham contraído a doença no ambiente de serviço. Logo, as situações são
distintas, mas, para efeito de comparação, a letalidade de policiais civis por conta da
Covid-19 teve mais gravidade do que os riscos inerentes à atividade policial. Isso é
impactante, para policiais e seus familiares.
A pandemia Covid-19 colocou todos num momento de incertezas e medo.
Nesse panorama, procuro relatar ações da PCDF frente ao drama da Covid-19,
confrontando com o documento 10 medidas para a segurança pública durante a
pandemia da Covid-19, a fim de observar como é possível preservar a integridade
dos policiais e continuar atendendo à população nas demandas de segurança.
9
Perfil Efetivo PCDF 2020. Req. Informação 14/2020. Fonte: PCDF/DGI/DATE/Polaris
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wpcontent/uploads/2019/10/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf . Acessado em: 13/10/2020.
11
Letalidade Policial. Estatística 299/2020. Fonte: PCDF/DGI/DATE/SE/Polaris.
12
No caso da Polícia Militar do Distrito Federal, a quantidade policiais mortos pela Covid-19, até 20 de
julho de 2020, somava 6 vítimas (“Mais um policial militar do DF morre de Covid-19. Corporação tem
6 óbitos”. Metrópoles. 20/07/2020). Disponível em: https://www.metropoles.com/distrito-federal/maisum-policial-militar-do-df-morre-de-covid-19-corporacao-tem-6-obitos. Acessado em 3/10/2020.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, foram registradas 4 mortes de policiais
militares no Distrito Federal, entre 2017 e 2018.
10
331
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
2.2 As 10 medidas e as ações da PCDF frente à pandemia da
Covid-19
As 10 medidas para a segurança pública durante a pandemia da Covid-19
foram elaboradas por especialistas, como, por exemplo, Bruno Paes Manso, Cláudio
Beato e Renato Sérgio de Lima; e centros de pesquisa no tema segurança pública,
como Instituto Sou da Paz e Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança
Pública (CRISP/UFMG), com objetivo de propor apontamentos que promovessem a
integridade física dos profissionais de segurança pública, conforme:
“A segurança pública não pode ser negligenciada.
Inicialmente, é fundamental pensar na proteção de seus
profissionais, que desempenham um serviço essencial, estando
na linha de frente do atendimento direto à população. Em
geral, são os agentes policiais que irão cuidar para que as
medidas de isolamento social sejam adequadamente cumpridas
pelos cidadãos, o que suscita tensões ante a esse novo papel da
polícia (...). Essa realidade coloca em risco milhares de
apenados, agentes e profissionais que trabalham nas
penitenciárias, muitas vezes sem equipamentos adequados”13.
A despeito das realidades distintas das instituições e das atividades de
segurança pública frente à Covid-19, tais medidas podem ser usadas como parâmetro
a fim de medir como a PCDF está enfrentando a pandemia, seja no âmbito de seus
servidores ou no atendimento ao público.
Nesse sentido, como ação inicial desenvolvida pela PCDF para tratar com a
pandemia, foi estabelecido Plano de Contingência e medidas temporárias de
prevenção ao contágio pelo Novo Coronavírus (Covid-19), por meio da Portaria Nº
25, de 18 de março de 2020. Em seguido, foi instituído um Gabinete Integrado de
Acompanhamento à Epidemia de Covid-19. Tais ações serviram de norteadoras de
diversas outras ações que foram sendo aplicadas ao longo da pandemia.
De imediato, a PCDF colocou à disposição de seus servidores equipamentos
básicos de proteção, como álcool gel e máscaras, além de estabelecer orientações aos
servidores para que observem as medidas de segurança. De forma regular foi
estabelecida programa de desinfecção das unidades policiais, com empresa
13
“Especialistas elaboram 10 medidas para a segurança pública durante a pandemia de Covid-19”.
Instituto Sou da Paz. Aborda-se trechos desse documento, a fim de comparação com as ações da PCDF.
Para acesso à integrado ao documento, consulte: https://soudapaz.org/noticias/especialistas-elaboram10-medidas-para-a-seguranca-publica-durante-a-pandemia-da-covid-19/ . Acessado em: 13/10/2020.
332
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
especializada no ramo. Assim, em itens básicos de proteção no ambiente de trabalho,
a PCDF realizou o que foi necessário.
Ainda, a fim de preservar a saúde dos servidores, a Policlínica da instituição
passou a acompanhar o impacto da Covid-19 nos policiais, sobretudo realizando
exames e testagem. A Policlínica da instituição não é hospital, mas realiza
procedimentos médicos mais simples. Com efeito, quanto á realização de exames
Covid-19, por exemplo, até setembro ela tinha realizado 2.712 testes pelo método
PCR e 3.695 testes rápidos, sendo que foram identificados 404 servidores
infectados14. Ou seja, até setembro de 2020, cerca de 10,0% do efetivo da PCDF foi
infectado pelo novo coronavírus.
O plano de contingenciamento da PCDF também estabeleceu que os
servidores deveriam zelar para que permanecesse o mínimo possível de pessoas no
ambiente, a critério do dirigente de cada unidade, de modo a evitar aglomerações no
interior da unidade policial. Ademais, foi disponibilizado ao cidadão material para
higienização das mãos e marcações de distanciamento social.
Aos servidores classificados como integrantes do grupo de maior risco para o
contágio da Covid-19, segundo critérios administrativos e médicos avaliados pela
Policlínica, foi permitido o teletrabalho15. Assim, por exemplo, servidoras gestantes
ou lactantes, servidores com algum risco de saúde passaram a exercer suas funções
remotamente16. Nessa situação, em 09 de outubro de 2020, tinha 210 servidores em
teletrabalho, o que corresponde a aproximadamente 5,0% do efetivo da instituição 17.
Em virtude da natureza do trabalho policial, que na maior parte, necessita da
interação presencial, o teletrabalho na PCDF foi uma exceção.
Ademais, diante das particularidades do trabalho policial que demanda
interação com o público, na PCDF a contaminação da Covid-19 teve a possibilidade
14
Relatório Estatístico Covid-19, de 09 de outubro de 2020. Os testes realizados pela Policlínica não
correspondem ao total de policiais infectados, visto que há testes realizados pelo próprio servidor
noutras instituições de saúde. Nesse sentido, até setembro, 550 policiais civis tinham sido infectados.
De toda forma, a Policlínica consolida esses números nos relatórios de COVID-19. Fonte: PCDF
15
Decreto nº 40.546/2020 estabeleceu o teletrabalho, em caráter excepcional e provisório, para os órgãos
da administração pública direta, indireta, autárquica e fundacional a partir de 23 de março de 2020.
16
Portaria nº 25, de 18 de março de 2020 (PCDF). Fonte: PCDF
17
Relatório Estatístico Covid-19, de 09 de outubro de 2020. Fonte: PCDF
333
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
de ser considerara como acidente em serviço, por gerar dano físico ou mental ao
servidor, desde que esteja relacionado direta ou indiretamente, com as atribuições do
cargo ou função exercidos18. Essa situação não é imediata, pois depende de
avaliação de comissão de apuração de acidente em serviço e de doença profissional.
Essas ações iniciais da PCDF se alinham a itens das 10 medidas, por
exemplo: o fornecimento de EPIs e as condições sanitárias e de higiene para o
desempenho das funções dos profissionais da segurança pública; elaboração de
protocolos de ação para minimizar risco de contágio e planos de contingência;
viabilização de tecnologias que garantam a proteção dos profissionais que atendem
diretamente ao público nas situações não emergenciais, como teletrabalho;
proporcionar testagens aos policiais.
A fim de atender à sociedade em tempos de isolamento social, já em meados
de março de 2020, a PCDF ampliou o rol de naturezas criminais a serem registradas
pela internet, por meio da Delegacia Eletrônica. Assim, em razão da pandemia de
Covid-19, o registro de ocorrências policiais passou preferencialmente a ser
realizado via Delegacia Eletrônica, excetuando-se a necessidade de atendimento
presencial nas Delegacias de Polícias físicas para registro de casos urgentes, por
exemplo, homicídio19. Vale destacar que foi estabelecida a inclusão da violência
doméstica no rol dos registros online.
Particularmente, essa ação da PCDF, por exemplo, está em sintonia com
outra sugestão das 10 medidas, a que trata da priorização e desenvolvimento de
metodologia específica para violência doméstica, com o estabelecimento de novas
rotinas para preenchimento das medidas protetivas, com atenção ao feminicídio.
Ainda necessitando a avaliação mais acurada, é possível verificar o impacto
na criminalidade, ou pelo menos, no registro policial dela. Com efeito, em virtude do
isolamento social20, houve retração dos registros presenciais nas delegacias
18
Portaria nº 58, de 25 de junho de 2020 (PCDF). Fonte: PCDF
Delegacia Eletrônica PCDF. Disponível em: https://delegaciaeletronica.pcdf.df.gov.br/ .
20
Decreto n° 40.539, de 19 de março de 2020, do Governo do Distrito Federal. Disponível em:
http://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/ac087b76d5f34e38a5cf3573698393f6/Decreto_40539_19_03_20
20.html Acesso em 10/12/2020. Revogado pelo Decreto 40550 de 23/03/2020. Como se nota, o
referido decreto está revogado, mas à época do início da pandemia, estabeleceu medidas para
19
334
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
presenciais. No período da pandemia, numa comparação entre março e setembro de
2019 e 2020, houve redução de 45,2% de roubo em comércio, 37,8% de roubo a
pedestres e 14,0% de homicídio21.
Por outro lado, crimes registrados via Delegacia Eletrônica apresentaram alta
significativa. Numa comparação entre março e setembro de 2019 e 2020, a
Delegacia Eletrônica teve alta de 173,6% na quantidade de ocorrências policiais,
enquanto as unidades presenciais reduziram em 34,2%. Ressalta-se, por exemplo,
em termos do estelionato, em 2019, foram registradas on-line 1.606 ocorrências
entre abril e setembro, já em 2020, o número passou para 11.121 ocorrências, ou
seja, acréscimo de 592,4%22. Ademais, por exemplo, no comparativo 2019-2020,
houve aumento de 115,8% das ocorrências criminais 23.
Outros crimes, como ameaças, praticados pela internet, contra idosos também
tiveram altas expressivas. Além disso, ressalta-se a violência doméstica registrada
pela Delegacia Eletrônica, que por exemplo, entre março de 2020 a 16 de setembro
de 2021, a registrou 1.494 ocorrências24. Destaca-se que, a violência doméstica não
era registrada online antes da pandemia, mas passou a ser possível o registro via
Delegacia Eletrônica, inclusive com a expedição de medidas protetivas para as
vítimas.
Dessa forma, os crimes mais relacionados aos movimentos presenciais de
pessoas, como homicídio e roubos, tiveram redução. Contudo, crimes oportunizados
do fenômeno da pandemia Covid-19, por exemplo, o estelionato, em especial o
realizado via internet, tiveram aumento. Ou seja, houve certa migração das
dinâmicas criminais, que estão no convívio da casa ou na internet, justamente os
espaços mais transitados pelas pessoas em tempos da pandemia.
enfrentamento da emergência de saúde pública /de importância internacional decorrente do novo
coronavírus.
21 “Casos de homicídio, roubo e feminicídio no DF caem durante pandemia do novo coronavírus”. G1.
12/10/2020. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/10/12/casos-dehomicidio-roubo-e-feminicidio-no-df-caem-durante-pandemia-do-novo-coronavirus.ghtml. Acessado
em: 13/10/2020.
22
Delegacia Eletrônica 2019-2020. Estatística 436/2020. Fonte: PCDF/DGI/DATE/SE/Polaris.
23
Delegacia Eletrônica 2019-2020. Informativo Criminal 30/2021. Fonte: PCDF/DGI/DATE/SE/Polaris.
24
Informativo Criminal 31/2021. Fonte: PCDF/DGI/DATE/SE/Polaris.
335
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A fim de acatar o isolamento social, por exemplo, no caso de oitivas e
entrevistas, a PCDF passou a priorizar os meios tecnológicos, como telefone e
videoconferência, exceto para casos em flagrantes, urgentes, graves e instrução de
medidas cautelares25. Ademais, casos de autos em prisão em flagrantes, somente
passaram a ser encaminhados ao Instituto Médico Legal para realização de exame de
corpo de delito quando o autuado afirmar ter sido agredido fisicamente ou que
apresentar lesões aparentes26.
No caso de audiências de custódia, no que compete à PCDF, a apresentação
de presos em flagrantes passou a seguir as recomendações do Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e Territórios (TJDFT) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ)27.
Assim, em princípio, houve suspensão das atividades presencial 28, mas sem seguida
os procedimentos foram realizados prioritariamente pelos meios escrito, telefone ou
videoconferência. Em caso presencial, medidas sanitárias e de isolamento social
foram estabelecidas, por exemplo, as audiências passaram a ser realizadas de forma
individualizada, evitando-se a realização de audiência de custódia com mais de uma
pessoa presa29.
Atualmente a PCDF não possui presos em suas delegacias cumprindo alguma
espécie de prisão, mas concentra na Divisão de Controle e Custódia de Presos
(DCCP). Nessa unidade, há presos aguardando audiências de custódia, em situações
preventivas e temporárias, por exemplo. Os indivíduos aí presos, a fim de evitar a
circulação de pessoas, tiveram alguns direitos limitados, por exemplo, o recebimento
de visitas. Não obstante, assistências jurídica e de saúde, recebimento de gêneros
alimentícios e itens de necessidades básicas entregues pelos parentes dos presos não
foram interrompidos, o que se ajusta a outra sugestão das 10 medidas.
25
Norma de Serviço nº 9, de 03 de abril de 2020 (PCDF). Fonte: PCDF
Norma de Serviço nº 7, de 20 de março de 2020 (PCDF). Fonte: PCDF
27
Resolução Nº 329 de 30/07/2020 CNJ. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3400
Acessado em: 10/12/2020.
28
Portaria
Conjunta
32
de
19/03/2020
TJDFT.
Disponível
em:
https://www.tjdft.jus.br/publicacoes/publicacoes-oficiais/portarias-conjuntas-gpr-e-cg/2020/portariaconjunta-32-de-19-03-2020 Acessado em: 10/12/2020.
29
Portaria
Conjunta
116
de
03/11/2020
TJDFT.
Disponível
em:
https://www.tjdft.jus.br/publicacoes/publicacoes-oficiais/portarias-conjuntas-gpr-e-cg/2020/portariaconjunta-116-de-03-11-2020 Acessado em: 10/12/2020.
26
336
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Há outras ações sendo realizadas pela PCDF frente à Covid-19. Portanto, o
que se ilustra aqui é apenas uma amostra de como a instituição tem procurado
prosseguir suas atividades em meio à pandemia. De toda forma, a PCDF, mesmo
sem se fundamentar nas 10 medidas para a segurança pública durante a pandemia
da Covid-19, possui pontos de encontros com esse documento, mas poderia
aprofundá-los como forma de mensurar suas ações na situação da pandemia Covid19.
Enfim, a despeito dos esforços da PCDF para manter as atividades em
funcionamento, a Covid-19 alcança seus servidores, por certo, com consequências
físicas e psicológicas30, o que afeta as condições de prestação de serviço. Afinal,
afastamentos de policiais e impedimentos ou restrições de certas atividades atingem
o serviço de polícia judiaria, com prejuízos à sociedade. Diante disso, as
consequências da Covid-19 não podem ser mensuradas apenas por meio de números
de policiais infectados, mas também por fatores ainda não compreendidos que
impactarão na própria forma de atuar da PCDF.
3
A
DEFENSORIA
PÚBLICA,
FUNDAMENTAIS E A COVID-1931
OS
DIREITOS
A Defensoria Pública, conforme definição constitucional, é instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como
expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação
jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos
necessitados.
No Distrito Federal, cinco salários mínimos32 definem o universo de atuação
da instituição, resultando em 77,5% de potenciais usuários da Defensoria Pública do
30
Vide Nota Técnica sobre avaliação de policiais e Covid-19, em: Fórum Brasileiro de Segurança
Pública. Nota técnica. A pandemia de Covid-19 e os policiais brasileiros. FGV/FBSP. Disponível em:
Acesso https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/policias-covid-19-v3.pdf. Acessado
em: 13/10/2020.
31
Parte escrita a partir da atuação de Mayara Lima Tachy como Defensora Pública da Defensoria Pública
do Distrito Federal (DPDF).
32
Resolução
140/2015.
Disponívem
em
http://www.defensoria.df.gov.br/wpcontent/uploads/2020/02/RESOLU%C3%87%C3%83O-n%C2%BA-140-de-24-06-2015-
337
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Distrito Federal - DPDF, dados revelados pela Pesquisa Distrital por Amostra de
Domicílios do Distrito Federal – PDADDF, de 201833, desconsiderada a atuação da
Defensoria em relação aos grupos vulneráveis, mas que não se enquadram no critério
de hipossuficiência econômica.
Com essa missão institucional, o atendimento ao público é intrínseco à
atuação funcional do Defensor Público e indissociável de suas atividades. Estas,
ainda, ocorrem eminentemente perante o Poder Judiciário, seja por meio de petições
ou por meio dos atos coletivos que impulsionam a vida judicial, como audiências e
sessões de julgamento, incluindo-se os plenários de Tribunal do Júri. Essas
atividades, por regra, ocorriam de forma presencial previamente à pandemia de
Covid-19.
O atendimento presencial, com a decretação do isolamento social, se tornou
inviável. Em 19 de março de 2020, a Defensoria Pública editou a Portaria Conjunta
nº 3/202034, dispondo sobre o exercício laboral em regime especial e outras medidas
relacionadas à redução da transmissão do coronavírus causador de Covid-19 aos
profissionais à serviço da instituição, considerando a natureza essencial das
atividades prestadas pela Defensoria Pública e a necessidade de se assegurarem
condições mínimas para sua continuidade, compatibilizando-a com a preservação da
saúde dos profissionais a seu serviço e da comunidade vulnerável.
A portaria instituiu regime de Plantão Extraordinário, por meio da suspensão
do
trabalho
presencial
de
membros(as),
servidores(as),
estagiários(as)
e
colaboradores(as) nas unidades da DPDF, priorizando-se o trabalho remoto e
mantendo o atendimento presencial apenas para casos urgentes. As pessoas
identificadas como componentes de grupos de risco foram excluídas da escala de
atendimento presencial.
A instituição passou ainda a admitir os atendimentos à distância, por e-mail,
por meio dos formulários eletrônicos, por telefone ou por WhatsApp, por meio de
33
34
Hipossufici%C3%AAncia-CONSOLIDADA-Resolu%C3%A7%C3%A3o-212-1.pdf . Acessado em:
13/12/2020.
Disponível em: http://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2019/03/PDAD_DF-Grupo-deRenda-compactado.pdf. Acessado em: 13/12/2020.
Disponível em: http://www.defensoria.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/Portaria-Conjuntan%C2%BA-2-de-19-de-mar%C3%A7o-de-2020.pdf . Acessado em: 13/12/2020.
338
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
números telefônicos atribuídos a cada Núcleo de Assistência Jurídica35, para evitar
que os assistidos e assistidas da Defensoria Pública tivessem de se deslocar
fisicamente para pequenos atendimentos e consultas, havendo casos em que o
atendimento passou a ser feito de forma inteiramente remota.
O artigo 5º da mesma Portaria determinou a realização de plantão presencial a
todas as Defensorias de Atendimento Inicial, bem como as Defensorias que integram
os Núcleos de Assistência Jurídica de Defesa da Saúde, de Execuções Penais, da
Infância e Juventude, de Execução de Medidas Socioeducativas e do Plantão, das
Audiências de Custódia e da Tutela Coletiva dos Presos Provisórios, para atuação
em casos urgentes, quando o atendimento não possa ser realizado remotamente.
Para os atendimentos iniciais, foi criada uma escala de serviço composta por
todos os Defensores com atuação na elaboração de petições iniciais, atuando de
forma centralizada para atender a todas as demandas urgentes do Distrito Federal.
Internamente, foi ainda instituído o Gabinete de Acompanhamento à
Epidemia do Coronavírus-19, no âmbito da DPDF (GAEC/DPDF), de natureza
consultiva, a fim de identificar as melhores formas de contenção da disseminação da
Covid-19, mantendo a prestação de serviços à sociedade.
Com o retorno de algumas atividades presenciais, o atendimento presencial
de casos urgentes, de casos previamente agendados por WhatsApp, por e-mail ou
por formulários eletrônicos ou de pessoas sem acesso a essas tecnologias passou a
ocorrer também nos Núcleos de Assistência Jurídica situados fora dos fóruns
judiciais, pois estes não autorizaram o atendimento presencial nos núcleos da
Defensoria Pública situados no seu interior.
A Portaria Conjunta DPDF nº 15/202036, de 28 de outubro de 2020, buscou
restabelecer gradualmente algumas atividades presenciais, em sintonia com o retorno
das atividades iniciado pelo Judiciário, porém, mantendo ainda a excepcionalidade
do atendimento presencial.
35
36
Disponível em: http://www.defensoria.df.gov.br/atendimento-virtual/ . Acessado em: 13/12/2020.
Disponível
em:
http://www.defensoria.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/10/PORTARIACONJUNTA-N%C2%BA-15-DE-28-DE-OUTUBRO-DE-2020.pdf. Acessado em: 13/12/2020.
339
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Na atuação judicial, inicialmente, houve a suspensão integral das atividades
imediatamente. Audiências foram desmarcadas sem previsão de retorno e os
Tribunais fecharam suas portas. Prazos também foram suspensos37. As demandas em
juízo ficaram em suspensão por período indeterminado. Com a evolução da
pandemia no Distrito Federal e a determinação de isolamento social, não havia
qualquer previsão de retorno. Então, os problemas começaram.
Diante da suspensão dos processos, especialmente de réus presos, as prisões
cautelares também passaram a se estender por prazo indeterminado, tornando-se
desarrazoadas, porém, o Judiciário permaneceu relutante em determinar a soltura de
réus encarcerados que estivessem respondendo por crimes considerados graves, em
uma balança vida/segurança pública que atribui esses valores de forma
extremamente desigual aos corpos racializados e subalternizados, pendendo para o
segundo, ainda que ao custo do primeiro.
Nesse mesmo sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) expediu a
Recomendação nº 62/202038 sugerindo a reavaliação das prisões provisórias, nos
termos do art. 316, do Código de Processo Penal, priorizando-se: a) mulheres
gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até doze anos ou
por pessoa com deficiência, assim como idosos, indígenas, pessoas com deficiência
ou que se enquadrem no grupo de risco; b) pessoas presas em estabelecimentos
penais que estejam com ocupação superior à capacidade, que não disponham de
equipe de saúde lotada no estabelecimento, que estejam sob ordem de interdição,
com medidas cautelares determinadas por órgão do sistema de jurisdição
internacional, ou que disponham de instalações que favoreçam a propagação do
novo coronavírus; c) prisões preventivas que tenham excedido o prazo de 90
(noventa) dias ou que estejam relacionadas a crimes praticados sem violência ou
grave ameaça à pessoa.
37
38
Art. 5º Ficam suspensos os prazos processuais a contar da publicação desta Resolução, até o dia 30 de
abril de 2020. O CNJ suspendeu os prazos judiciais em todo o país. O prazo da Resolução 313/2020 foi
prorrogado posteriormente pelo CNJ. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/resolucao-313-19marco-2020-cnj-cnj.pdf. Acessado em: 13/12/2020.
A Recomendação 62/2020 foi o primeiro normativo a orientar o Poder Judiciário em todo o Brasil.
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3246 . Acessado em: 14/12/2020.
340
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Cabe salientar que os itens “a" e “b” foram objetos de deliberações anteriores
à pandemia no Supremo Tribunal Federal, diante do estado de coisas
inconstitucional do sistema penitenciário nacional, com o objetivo de reduzir a
superlotação carcerária. No primeiro caso, foi expedida ordem em Habeas Corpus
coletivo nº 143.64139, a fim de converter prisões preventivas em prisões domiciliares
de mulheres presas grávidas e mães de crianças com até 12 anos de idade que não
tivessem praticado crime com violência ou grave ameaça ou contra seus
dependentes. A ordem no Habeas Corpus coletivo foi estendida, ainda, aos pais e
responsáveis por crianças e pessoas com deficiência, por meio do também coletivo
HC nº 165.70440.
Para estabelecimentos penais com ocupação superior à capacidade, o STF se
manifestou no Habeas Corpus 143.988/ES41, para determinar que as unidades de
execução de medida socioeducativa de internação de adolescentes não ultrapassem a
capacidade projetada de internação prevista para cada unidade, com a reavaliação
das internações em andamento, em um país em que o óbvio não precisa apenas ser
dito, como repetido.
Além disso, houve a suspensão do dever de apresentação periódica ao juízo
das pessoas em liberdade provisória ou suspensão condicional do processo, pelo
prazo de 90 (noventa) dias, mantendo-se as demais obrigações legais. Tais
comparecimentos geram grande aglomeração nas Varas de Execução Penal e
passaram a ser realizados de forma mais espaçada no tempo, tendo permanecido
integralmente suspensos inicialmente, mas retomados de forma progressiva
recentemente em calendário por idade divulgado pela Portaria VEPERA nº 08, de 14
de maio de 202142.
39
Andamento e acórdão disponíveis em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5183497 .
Acessado em: 14/12/2020.
40
Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&sinonimo=true&plural=tr
ue&page=1&pageSize=10&queryString=165704&sort=_score&sortBy=desc.
Acessado
em:
25/10/2021.
41
Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur430955/false. Acessado em:
14/12/2020.
42
Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/informacoes/execucoes-penais/vepera/portaria-vepera-08-de14-05-2021 . Acesso de 25 de outubro de 2021.
341
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Por fim, recomendou ainda aquilo que já deveria ser a regra geral: a máxima
excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva. A prisão preventiva, por sua
natureza, deve ser considerada medida extrema, apenas quando outras menos graves
não possam ser aplicadas para acautelar o feito 43.
Quatro meses se passaram sem que atos fundamentais ao processo criminal
pudessem ser realizados, mas a colocação em liberdade daqueles cautelarmente
recolhidos nunca foi cogitada de forma séria e generalizada. Em um país em que
31% dos presos brasileiros ali estão recolhidos sem que haja efetiva condenação 44,
essa discussão precisava ter sido travada em uma pandemia de efeitos tão
devastadores. Ali, todavia, estamos diante de corpos matáveis, para os quais a justiça
parece vestir a sua venda.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), por suas
próprias razões traduzidas em metas, buscou retomar suas atividades após cerca de
um mês e meio, por meio da Portaria nº 52/202045. Os processos se avolumavam,
não é possível impedir o livre acesso à justiça. A videoconferência pareceu ser a
grande solução e, junto com ela, a utilização da tecnologia para flexibilizar alguns
atos processuais a bem da administração da justiça, permitindo que citações e
intimações também sejam feitas por meio eletrônico, com graves riscos aos direitos
de acusados em processo penal.
Os Tribunais há algum tempo já tentavam implementar as videoconferências,
mas ainda não tinham obtido sucesso. Com o processo judicial eletrônico, essa
realidade parecia cada vez mais próxima, porém, faltava o elemento motivador. A
pandemia foi o acelerador desse processo, mas não sem atropelar direitos e garantias
dos indivíduos, usuários do Poder Judiciário. Tudo pela eficiência.
43
CPP. Art. 282. (…)
§ 6º A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra
medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra
medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso
concreto, de forma individualizada.
44
Dados
obtidos
em
pesquisa
divulgada
em:
https://g1.globo.com/monitor-daviolencia/noticia/2020/02/19/em-um-ano-percentual-de-presos-provisorios-cai-no-brasil-esuperlotacao-diminui.ghtml . Acessado em: 13/12/2020.
45
Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/publicacoes/publicacoes-oficiais/portarias-conjuntas-gpr-ecg/2020/portaria-conjunta-52-de-08-05-2020. Acessado em: 13/12/2020.
342
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Vários problemas surgiram com a nova prática. As partes, em grande número,
são economicamente hipossuficientes e não tem acesso à internet de qualidade. Com
isso, quedas de conexão no meio do ato são frequentes. Assim, audiências que
duravam cerca de trinta minutos passaram a durar cerca de duas horas.
Além disso, a falta de solenidade do ato gerou situações inusitadas, com
advogados realizando audiências deitados em redes ou tomando cerveja e fumando
cigarros - essa última situação presenciada por essa que vos escreve em uma
audiência criminal numa sexta-feira.
O risco de nulidades aumentou exponencialmente. Com a restrição da
imagem apenas ao rosto do interlocutor, tornou-se impossível impedir influências
externas no ambiente que possam interferir no depoimento da testemunha a ser
ouvida. Novamente, presenciei agentes policiais, testemunhas no processo criminal
em apuração, se comunicando com outros agentes policiais durante a oitiva judicial,
por estarem todos em uma mesma sala dentro da Delegacia de Polícia Civil. Ora, a
prova deixa de ser isenta e passa a ser influenciável por toda a sorte de elementos,
gerando alto risco de coação ou fraude, totalmente fora da legalidade 46.
Além disto, o interrogatório de réus presos começou a ser realizado em uma
sala de videoconferência no próprio presídio, impedindo a entrevista pessoal prévia e
reservada entre o acusado e o seu defensor, que passou a ser realizada por meio de
uma linha telefônica ou por meio do sistema de videoconferência, porém, sem
grandes garantias de sigilo, pois a sala reservada é de responsabilidade de própria
Vara Criminal, que movimenta seus participantes livremente. Tal “avanço", ainda,
46
CPP. Art. 203. A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e
Ihe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão,
lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas
relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as
circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade.
Art. 204. O depoimento será prestado oralmente, não sendo permitido à testemunha trazê-lo por escrito.
Art. 210. As testemunhas serão inquiridas cada uma de per si, de modo que umas não saibam nem
ouçam os depoimentos das outras, devendo o juiz adverti-las das penas cominadas ao falso testemunho.
Parágrafo único. Antes do início da audiência e durante a sua realização, serão reservados espaços
separados para a garantia da incomunicabilidade das testemunhas.
343
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
não passou por uma adaptação em todo o sistema de justiça, havendo apenas um
defensor público para cada réu preso, em clara violação ao preceito legal 47.
Nas audiências de custódia, problemas mais graves se identificaram, pois elas
efetivamente constituem importante porta de entrada ao sistema penitenciário, local
com baixa higiene e pobre sistema de saúde, potencial foco de alastramento da
pandemia, fator que se confirmou nos primeiros meses de Covid-19.
A audiência de custódia foi implementada em dezembro de 2015 pelo CNJ,
que regulamentou as audiências de custódia, em caráter nacional, por meio da
Resolução nº 213. Essa Resolução, a par de se preocupar com o encarceramento em
massa, também trouxe o enfoque de prevenção da tortura policial, em atenção ao art.
5.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos e ao art. 2.1 da Convenção
contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
No início da quarentena, o CNJ proibiu a realização das audiências de
custódia por videoconferência. Segundo o Ministro Dias Toffoli48, "audiência de
custódia por videoconferência não é audiência de custódia e não se equiparará ao
padrão de apresentação imediata de um preso a um juiz, em momento consecutivo a
sua prisão, estandarte, por sinal, bem definido por esse próprio Conselho Nacional
de Justiça quando fez aplicar em todo o país as disposições do Pacto de São José da
Costa Rica”. Isso porque, em que pese poder apresentar algum grau de efetividade
para evitar o encarceramento em massa, não atende ao segundo objetivo de
prevenção de tortura policial.
A solução resultou em mais um retrocesso em termos de direitos dos
indivíduos: o preso em flagrante no Distrito Federal não mais era apresentado à
autoridade judicial. Passou-se a realizar uma análise qualificada do auto de prisão
em flagrante, com a participação de todos os atores, menos o protagonista: a pessoa
com a liberdade cerceada. Posteriormente, essa análise passou a não mais contar
CPP. Art. 185. (…) §5º Em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o direito de
entrevista prévia e reservada com o seu defensor; se realizado por videoconferência, fica também
garantido o acesso a canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que esteja no
presídio e o advogado presente na sala de audiência do Fórum, e entre este e o preso.
48
Disponível
em:
https://www.conjur.com.br/2020-jul-10/cnj-proibe-audiencias-custodiavideoconferencia . Acessado em: 13/12/2020.
47
344
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
com a presença física desses atores, retornando o trabalho aos gabinetes, com um
esvaziamento temporário de direitos duramente conquistados.
Em 24 de novembro, entretanto, o CNJ voltou atrás e passou a admitir a
audiência de custódia por meio de videoconferência. Com defesa do Ministro Luiz
Fux, presidente do Conselho, não há mais necessidade de audiências de custódia
presenciais49. Embora a intenção declarada seja a de atender ao momento
excepcional da pandemia, a fim de permitir que algum tipo de audiência de custódia
seja realizado, preocupam os efeitos deletérios que essa autorização deixará em uma
herança nefasta da pandemia.
Atualmente, as audiências de custódia contam com autorização para
realização por videoconferência durante a pandemia decorrente de decisão do
Supremo Tribunal Federal na ADI 6.84150, que analisou a constitucionalidade do
artigo 3º-B, §1º51, recém inserido no Código de Processo Penal pela Lei nº
13.964/2019.
Até mesmo o Tribunal do Júri, instituição bastante peculiar do sistema de
justiça brasileiro, que julga os crimes dolosos contra a vida, infligindo altíssimas
penas, também foi colocado em estudo para a transição virtual.
O Tribunal do Júri é uma instituição de estatura constitucional, prevista no
artigo 5º, referente aos direitos e garantias fundamentais, e representa o exercício da
democracia no Poder Judiciário, por meio da decisão soberana dos jurados. É
previsto como um direito fundamental, permitindo que o cidadão seja julgado pelos
seus pares.
O julgamento se fundamenta na plenitude de defesa, que assegura uma defesa
menos limitada que a ampla defesa, pois pode se sustentar em fundamentos
filosóficos, sociológicos, históricos, sociais ou até mesmo sentimentais, tendo em
49
Disponível
em:
https://www.conjur.com.br/2020-nov-24/cnj-passa-permitir-audiencias-custodiavideoconferencia . Acessado em: 13/12/2020.
50
Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6169033 . Acesso em 25 de out.
2021.
51
Art. 3º-B. (…) § 1º O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será
encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se
realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado
constituído, vedado o emprego de videoconferência.
345
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
vista que o jurado não fundamenta seu voto, adotando-se o sistema da íntima
convicção. Por esse motivo, toda e qualquer tese trazida pelo defensor ou pelo
próprio acusado deve ser submetida ao Conselho de Sentença formado pelos jurados,
sob pena de cerceamento de defesa.
O sigilo das votações tem como objetivo preservar esse sistema da íntima
convicção, mas também garantir a segurança e a isenção dos jurados de que seus
votos individuais não serão violados, admitindo-se os resultados por maioria. As
votações são realizadas em “sala secreta”, admitindo-se apenas a presença dos
jurados, do Juiz presidente, Ministério Público, Defensor e demais serventuários da
justiça.
O artigo 466, §1º, do CPP52, prevê a incomunicabilidade dos jurados, do
início ao final do julgamento, para que se evite a violação do sigilo ou a influência
indevida de um jurado sobre outro. Além disso, impede que manifestem sua opinião
sobre o processo, sob pena de exclusão do Conselho e multa. Assim, caso um jurado
se manifeste durante a sessão de julgamento, após a dispensa dos jurados suplentes,
é o caso de dissolução do Conselho de Sentença, com o adiamento do julgamento.
O excesso de solenidades desse procedimento não é desmedido: os jurados
votam de acordo com sua íntima convicção, o que significa que qualquer elemento
pode influenciá-lo positiva ou negativamente. Assim, é fundamental que não lhes
seja subtraído nenhum elemento relevante do processo.
A proposta de realização de plenários por videoconferência já foi submetida
ao CNJ e rejeitada antes da pandemia pelo Ministro Dias Toffoli, então Presidente.
No início da quarentena, um novo formato foi proposto, prevendo julgamentos
semipresenciais. Ministério Público, Defesa técnica, réus soltos, vítimas e
testemunhas poderiam escolher se desejariam participar presencialmente ou por
meio virtual. O acusado preso obrigatoriamente participaria em uma sala de dentro
do presídio. Os jurados seriam sorteados das suas casas e, após o sorteio, se
encaminhariam ao Tribunal, pondo em risco a incomunicabilidade. A publicidade
52
CPP. Art. 466. (…) § 1º O juiz presidente também advertirá os jurados de que, uma vez sorteados, não
poderão comunicar-se entre si e com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de
exclusão do Conselho e multa, na forma do § 2o do art. 436 deste Código.
346
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
seria restrita, não ocorrendo de forma presencial, mas tão somente pelos meios
virtuais.
Esse julgamento, entretanto, não é semelhante a um julgamento perante o juiz
togado. Como dito, ali vigora a plenitude de defesa, que permite a utilização de
fundamentos jurídicos e metajurídicos. Assim, é pautado pela oralidade, em que os
discursos buscam o convencimento de juradas e jurados.
Os discursos são o elemento central das Sessões Plenárias e ficariam
esvaziados caso Ministério Público ou Defesa tivessem que permanecer em suas
residências, falando para os jurados por meio de uma projeção em tela, pois não
apenas a linguagem verbal influencia no resultado do julgamento. A ausência de
apenas uma das partes ainda tem o efeito de violar a paridade de armas, elemento
central do processo penal a ser assegurado justamente pelo Poder Judiciário.
Além dos discursos, a leitura da prova a ser realizada e da própria pessoa do
acusado pelos jurados ficaria prejudicada. A linguagem corporal de uma testemunha
que falta com a verdade ficaria oculta. Por outro lado, o estigma de presidiário do
réu preso ficaria escancarado, com a sua imagem transmitida de dentro do presídio,
com vestes típicas e altamente escoltado.
Em 26 de junho, auge da pandemia, o TJDFT editou a Portaria nº 72/202053,
buscando a retomada gradual dos trabalhos presenciais, autorizando a realização de
audiências presenciais de processos de réus presos nos juízos de competência
Criminal e Tribunais do Júri, bem como aquelas envolvendo adolescentes internados
e de justificação em caso de descumprimento de medida socioeducativa.
Essa medida decorre da regulamentação expedida pelo CNJ, por meio das
Resoluções nº 322/202054, 329/202055 e 330/202056, estabelecendo regras mínimas
para a retomada dos serviços jurisdicionais presenciais no âmbito do Poder
Judiciário nacional.
53
Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/publicacoes/publicacoes-oficiais/portarias-conjuntas-gpr-ecg/2020/portaria-conjunta-72-de-26-06-2020. Acessado em: 13/12/2020.
54
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3333 Acessado em: 13/12/2020.
55
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3400 Acessado em: 13/12/2020.
56
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3435 Acessado em: 13/12/2020.
347
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Embora ausente regulamentação específica do TJDFT, os Plenários de
Tribunal do Júri estão sendo realizados quase na sua integralidade presencialmente,
com maior atenção às regras sanitárias e de distanciamento pessoal para preservação
dos presentes, com restrição de publicidade. Apenas se fazem presentes as partes
essenciais do julgamento, especialmente o acusado.
A proposta referente à realização de Plenários do Tribunal do Júri por
videoconferência submetida ao CNJ foi retirada de pauta 57, porém, algumas
Unidades da Federação têm realizado sem regulamentação 58 com fundamento na
Resolução nº 329/2020, inclusive com a presença virtual dos acusados.
A Portaria Conjunta 116/202059, de 3 de novembro, também trouxe
regramento para a retomada das audiências de custódia no âmbito do Distrito
Federal, com a regular apresentação do preso, mas houve nova suspensão com o
incremento de casos decorrentes de novas ondas da pandemia do novo coronavírus.
O panorama atual é de retomada gradual à normalidade da atividade judicial e
da prestação de serviços à comunidade pela Defensoria Pública, porém, algumas
perdas de direitos serão irreparáveis.
As prisões cautelares que se estenderam excessivamente em decorrência da
pandemia não serão indenizadas. Da mesma forma, as mortes dos internos que
poderiam ter sido evitadas não serão revertidas. Em matéria processual penal, as
audiências por videoconferência são uma realidade irrevogável. Os Tribunais
dificilmente retornarão ao modelo presencial de audiências, o que traz enorme
prejuízo ao contraditório e à ampla defesa.
A pandemia evidenciou a fragilidade do nosso sistema de garantias
constitucionais. Quando tensionadas com qualquer outro direito fundamental, as
garantias processuais cedem. E quando elas cedem, as desigualdades ficam ainda
57
58
59
Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-23/adocao-teleconferencia-tribunal-juri-retiradapauta-cnj . Acessado em: 13/12/2020.
Disponível em: https://www.cnj.jus.br/tribunal-do-juri-inova-para-seguir-julgando-crimes-dolososcontra-a-vida-em-meio-a-pandemia/ Acesso de 25/10/2021.
Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/relacoes-institucionais/arquivos/portaria-conjunta116-covid-nac.pdf. Acessado em: 13/12/2020.
348
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
mais claras. E é sempre o mesmo grupo que absorve as consequências: o subalterno
e periférico.
4 GESTÃO DA PANDEMIA NO SISTEMA PENITENCIÁRIO
DO DISTRITO FEDERAL60
Segundo dados do INFOPEN de dezembro de 2019, elaborado Departamento
Penitenciário
Nacional
do
Ministério
da
Justiça
e
Segurança
Pública
(DEPEN/MJSP), o Distrito Federal possuía um total de 16.636 pessoas privadas de
liberdade, sendo que 17,4% são presos provisórios, população essa ainda exposta e
vulnerabilizada diante ao contágio pela Covid-19. Até às 17h do dia 31 de outubro
de 2020, o Boletim Epidemiológico nº 243 da Secretaria de Estado de Saúde do
Distrito Federal (SES/DF)61 informou que a população privada de liberdade
representava o número de 1.868 contaminados pela Covid-19 e 4 mortes em
decorrência da doença. Se comparado com o número de incidência por 100 mil
habitantes, chega-se ao cômputo de 13.913,30. A cidade de Ceilândia, por sua vez,
possuía 26.265 casos e liderava a lista de locais com mais contaminados. Ainda
assim, a incidência por 100 mil habitantes chegava a 5.917,89 na cidade.
Há 8 meses, em 7 de abril de 2020, a Vara de Execuções Penais do Tribunal
de Justiça do Distrito Federal e Territórios (VEP/TJDFT) publicou uma nota
esclarecendo que não havia casos de Covid-19 nos detentos no sistema prisional do
DF (TJDFT, 2020)62. Aliás, a VEP reforça o discurso de que está “tudo sob
controle” nos presídios do DF, uma vez que em 1º de junho de 2020 era o
responsável por 77,8% de todos os testes de Coronavírus em penitenciárias do Brasil
(TJDFT, 2020)63. Além disso, em reunião da Comissão de Direitos Humanos e
60
61
62
63
Parte escrita a partir do levantamento de dados e informações oficiais realizado por Welliton Caixeta
Maciel e Valéria Vânia Costa da Silva.
GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. Boletim Epidemiológico nº 243. Secretaria de Estado de
Saúde do Distrito Federal. Diretoria de Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância em
Saúde (DIVEP/SVS). Brasília. 2020. Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wpconteudo/uploads/2020/03/Boletim-COVID_DF_243.pdf>. Acessado em: 31/10/2020.
TJDFT. COVID-19: VEP/DF esclarece que não há presos contaminados no sistema prisional do DF.
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em:
<https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/abril/covid-19-nao-ha-presoscontaminados-no-sistema-prisional-do-df> Acessado em: 14/11/2020.
TJDFT. COVID-19: Juíza da VEP/DF inspeciona penitenciárias do Complexo da Papuda. Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <
349
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) 64, o representante do CNJ elogiou o
trabalho da VEP e relatou que o DF estaria sendo “vítima de sua própria eficiência”.
Mesmo que os números de outras Unidades da Federação sejam subnotificados, isso
não afasta o enorme número de contaminados sob tutela do Estado no DF.
Considerando o problema social e jurídico acima colocado, bem como a
questão da transparência (ou não) na produção e publicidade das informações e da
accountability, trazemos um breve panorama de como foi conduzida a gestão da
epidemia de Covid-19 nos presídios do DF, da deflagração do primeiro caso no
complexo prisional do DF até outubro de 2020 (recorte temporal escolhido para o
levantamento do material, quando houve maior mobilização interinstitucional) e,
mais recentemente, quase um ano depois, com informações pontuais de episódios
específicos e desdobramentos da situação da Covid-19 nos presídios do DF. Neste
sentido, analisamos as medidas tomadas pelas diversas instituições públicas
envolvidas na questão penitenciária local, sobretudo a atuação da VEP/TJDFT,
diante desta situação de emergência sanitária.
Para tanto, foi realizada pesquisa exploratória em fontes primárias, tais como:
documentos oficiais, legislação, boletins informativos e epidemiológicos, bases de
dados e painéis eletrônicos sobre a situação da pandemia nos presídios, notas
técnicas e decisões judiciais e outras fontes oficiais, principalmente sites do/a:
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Secretaria de Estado de Administração
Penitenciária do Governo do Distrito Federal (SEAPE/GDF), DEPEN, Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e Ministério Público do
Distrito Federal e Territórios (MPDFT); bem como pesquisa informacional sobre o
tema nos noticiários locais, tais como: G1, Correio Braziliense, Portal Metrópoles e
Jornal de Brasília.
https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/junho/juiza-da-vep-df-inspecionapenitenciarias-e-conversa-com-detentos> Acessado em: 12/10/2020.
64
CDHM. Reunião sobre o Covid-19 no Sistema Penitenciário do Distrito Federal. Comissão de Direitos
Humanos
e
Minorias.
Distrito
Federal.
2020.
Disponível
em:
<https://web.facebook.com/cdhmcamara/videos/1206893239703976/?_rdc=1&_rdr> Acessado em:
14/11/2020.
350
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Como medida de contenção da doença, por intermédio da ordem de serviço nº
5 de 202065, as visitas foram suspensas em todas as unidades prisionais do DF, quais
sejam, Centro de Detenção Provisória (CDP), Centro de Internamento e Reeducação
(CIR), Penitenciária do Distrito Federal I (PDF I), Penitenciária do Distrito Federal
II (PDF II) e Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF); pelo então
subsecretário do Sistema Penitenciário, Adval Cardoso de Matos. A princípio, os
encontros seriam suspensos somente entre os dias 12 de março de 2020 e 22 de
março de 2020. Entretanto, até o início de outubro de 2020, as visitas ainda se
encontravam proibidas.
No período de suspensão, as visitas teoricamente ocorreriam de forma virtual.
Em 19 de junho de 2020, supostamente foi dado início ao projeto de encontros da
PFDF. Sete detentas puderam utilizar o sistema para se comunicar com a família por
até três minutos. A VEP/TJDFT comunicou que outras mulheres privadas de
liberdade iriam ser beneficiadas e que a ideia seria o encontro virtual ocorrer uma
vez por mês. Já no complexo da Papuda, supostamente foi realizado um mutirão de
visitas virtuais para celebrar o dia dos pais. A iniciativa começou a ocorrer em 10 de
agosto de 2020 e se estendeu pelo período de duas semanas. Diante da demanda,
caso a SEAPE considerasse necessário, poderia reduzir o tempo das visitas entre um
e três minutos66.
A Vara de Execuções Penais em Regime Aberto (VEPERA/TJDFT), por sua
vez, dispensou os apenados de se apresentarem desde o início da pandemia no DF,
devendo se apresentar, a priori, somente em dezembro de 2020. Trabalho externo,
saídas temporárias e saídas em feriados ou datas festivas também estavam
65
SSP/DF. Ordem de Serviço nº 05, de 12 de março de 2020. Subsecretaria do Sistema Penitenciário.
Brasília.
2020.
Disponível
em:
<https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/arquivos/sei_00050_00012719_2020_69.pdf>
Acesso em: 13 out. 2020.
66
TJDFT. Projeto de visitas virtuais de presos é implementado na Penitenciária Feminina do DF. Tribunal
de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em:
<https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/junho/projeto-de-visitas-virtuais-eimplementado-na-penitenciaria-feminina> Acesso em: 13 out. 2020.
______. Dia dos Pais: VEP autoriza mutirão de encontros virtuais entre pais e filhos nos presídios do
DF. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em:
<https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/agosto/vep-pais-detentos-vao-recebervisitas-virtuais-de-filhos-e-familiares-a-partir-de-hoje> Acessado em: 14/11/2020.
351
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
suspensos. Somente em 10 de setembro de 2020, a VEP/DF resolveu autorizar o
retorno gradual da normalidade.
A primeira morte no sistema penitenciário do DF ocorreu em 17 de maio de
2020. O policial penal, Francisco Pires de Souza, era lotado na PDF I, possuía 45
anos, não tinha histórico de outras doenças e estava internado no Hospital Regional
da Asa Norte (HRAN). No dia de registro da morte, havia 495 detentos e 110
policiais penais doentes pelo novo Coronavírus; sendo que 5 agentes estavam
internados67. Já a primeira morte de detento ocorreu em 19 de maio de 2020.
Tratava-se de Álvaro Henrique Nascimento de Sousa de 32 anos. Ele estava
internado desde o dia 3 de maio de 2020 também no HRAN e lotado na PDF I. Em
relação às comorbidades de Álvaro há divergências nas informações. A SESIPE
informou que o homem era portador de tuberculose e Vírus da Imunodeficiência
Humana (HIV), a VEP, entretanto divulgou que não havia doenças pré-existentes em
seu prontuário. A família de Álvaro, por sua vez, informou que teve conhecimento
em relação ao HIV, somente após o internamento68.
Nas duas ocasiões, a VEP se manifestou. No caso do policial penal, a
VEP/DF relatou que realiza “um trabalho incansável e desafiante”; no caso do
detento, a Vara informou que “não foi registrada nenhuma doença pré-existente em
nenhuma das vezes em que foi preso, tampouco foi por ele declinada” 69.
67
GALVÃO, Walder. Papuda registra primeira morte por coronavírus; vítima é um policial penal. Correio
Braziliense.
Brasília.
2020.
Disponível
em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/05/17/interna_cidadesdf,855784/pap
uda-registra-primeira-morte-por-coronavirus-vitima-e-um-policial.shtml> Acessado em: 21/09/2020.
68
G1 DF. Detento de 32 anos é 1ª morte por coronavírus no sistema prisional do DF. G1 DF. Distrito
Federal. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/05/19/detento-de32-anos-e-1a-morte-por-coronavirus-no-sistema-prisional-do-df.ghtml> Acessado em: 21/09/2020.
FERREIRA, Afonso. 'Última vez que o vi foi ano passado', diz irmã de 1º detento morto pela Covid-19
na Papuda. G1 DF. Distrito Federal. 2020. Disponível: < https://g1.globo.com/df/distritofederal/noticia/2020/05/20/ultima-vez-que-o-vi-foi-ano-passado-diz-irma-de-1o-detento-morto-pelacovid-19-na-papuda.ghtml> Acessado em: 16/12/2020.
69
TJDFT. COVID-19: VEP/DF divulga nota pelo falecimento de policial penal. Tribunal de Justiça do
Distrito
Federal
e
Territórios.
Distrito
Federal.
2020.
Disponível
em:
<https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/maio/covid-19-vep-df-divulga-notapelo-falecimento-de-policial-penal> Acessado em: 21/09/2020.
______. VEP/DF divulga nota pelo falecimento de detento contaminado pelo COVID-19. Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. Distrito Federal. 2020. Disponível em:
<https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/maio/vep-df-divulga-nota-pelofalecimento-de-detento-contaminado-pelo-covid-19> Acessado em: 21/09/2020.
352
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Em todo o DF, o governo informa que realizou o total de 541.583 testes até
19 de setembro de 2020. Sendo 432.867 de testes rápidos e 108.716 do tipo PCR,
conforme divulgado no Portal Covid. Nos relatórios 8 e 9 “Testagem para SARS
COV-2 no DF”70, o GDF informa que nas unidades prisionais, até 21 de setembro de
2020, foram realizados 11.483 testes. Sendo que na penitenciária feminina não
existem casos positivos. Já no complexo da Papuda, entre internos, agentes e outros
trabalhadores, realizou-se 8.183 testes. Comparando os relatórios de testagem 8 e 9,
o que se observa é que no intervalo de tempo de 13 dias não houve teste em massa
nas unidades prisionais (08/09/20 - 21/09/20).
De acordo com o relatório da Diretoria de Inteligência Penitenciária (DIP),
até 26 de junho de 2020, 257 policiais penais testaram positivo para o novo
Coronavírus (DIP, 2020)71. O Boletim Epidemiológico nº 223 da SES/DF72
informou que, até às 18h do dia 11 de outubro de 2020, a população privada de
liberdade representava o número de 1.844 contaminados por Covid-19.
Conforme pontuamos acima, segundo o DEPEN, a população carcerária do
DF tem cerca de 16 mil pessoas. Da análise do Boletim Epidemiológico nº 223,
observa-se que a Região Administrativa (RA) da Candangolândia possuía 1.162
casos e incidência de 7.112,25 por 100 mil habitantes. Tal comparação faz-se
necessária, uma vez que a população de Candangolândia é de um pouco mais de 16
mil indivíduos, de acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios
Candangolândia 2015 (PDAD), realizada pela Companhia de Planejamento do
70
GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. RELATÓRIO 8 - TESTAGEM PARA SARS COV-2 NO DF.
Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Distrito Federal. 2020. Disponível em:
<http://www.coronavirus.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/09/Relato%CC%81rio-Testagem-8.pdf>
Acessado em: 18/11/2020.
______. RELATÓRIO 9 - TESTAGEM PARA SARS COV-2 NO DF. Secretaria de Estado de Saúde
do Distrito Federal. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <http://www.coronavirus.df.gov.br/wpcontent/uploads/2020/09/Relato%CC%81rio-Testagem-9-.pdf> Acessado em: 18/11/2020.
71
DIP. Painel de casos de COVID-19 no SPDF – 25.06.2020. Secretaria de Estado de Administração
Penitenciária. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wpconteudo/uploads/2020/02/Relatorio_42512836_Painel_de_COVID_19_25.06.2020.pdf>
Acessado
em: 21/09/2020.
72
GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO Nº 223. Secretaria de Saúde
do Distrito Federal. Diretoria de Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância em Saúde
(DIVEP/SVS).
Brasília.
2020.
Disponível
em:
<http://www.saude.df.gov.br/wpconteudo/uploads/2020/03/Boletim-COVID_DF223.pdf>. Acessado em: 31/10/2020.
353
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Distrito Federal (Codeplan)73, logo, muito aproximada da população carcerária.
Ainda na análise do Boletim Epidemiológico nº 223, a RA com o número de
infectados próximo da população privada de liberdade é o Lago Norte, com 1.847 e
incidência por 100 mil habitantes de 4.974,82. Segundo o PDAD Lago Norte
2015/2016, a população estimada para 2016 era de 37.455 habitantes 74.
Em abril de 2020, a VEP publicou uma nota esclarecendo que não havia
casos de detentos infectados pela Covid-19 no sistema prisional do DF. Aliás, a VEP
reforça o discurso de que está tudo sob controle nos presídios do DF, uma vez que
em 1º de junho de 2020 era a responsável por 77,8% de todos os testes de
Coronavírus em penitenciárias do Brasil. Adicionalmente, vê-se que “Considerando
que a densidade demográfica dentro do Complexo da Papuda é três vezes maior que
a dos demais espaços territoriais do DF no que se refere ao número de habitantes por
Km2, a VEP/DF acredita que as medidas que vêm sendo adotadas têm sido
acertadas”75.
Além da questão da transparência de dados no sistema carcerário, em 26 de
maio de 2020, o Governador do DF, Ibaneis Rocha, pelo Decreto nº 40.833 criou a
Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAPE). Segundo o então
secretário Adval Cardoso, a SEAPE: “É um sonho tanto dos servidores como do
próprio Ministério Público e da Vara de Execuções Penais. A partir de agora, temos
independência administrativa e orçamentária”76. Ocorre que a administração
penitenciária passou por diversas mudanças em meio ao caos instalado pela Covid-
73
CODEPLAN. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios Candangolândia 2015 (PDAD). Secretaria
de Estado de Planejamento, Orçamento e Gestão - SEPLAG, Distrito Federal. 2015. Disponível em:
<http://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/PDAD-Candangol%C3%A2ndia-1.pdf>
Acessado em: 12/10/2020.
74
CODEPLAN. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios Lago Norte 2015/2016 (PDAD). Secretaria
de Estado de Planejamento, Orçamento e Gestão - SEPLAG, Distrito Federal. 2016. Disponível em:
<http://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/PDAD-Lago-Norte-1.pdf> Acessado em:
12/10/2020.
75
TJDFT. COVID-19: Juíza da VEP/DF inspeciona penitenciárias do Complexo da Papuda. Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em:
<https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/junho/juiza-da-vep-df-inspecionapenitenciarias-e-conversa-com-detentos> Acessado em: 12/10/2020.
76
MOURA, Renata. Sistema Penitenciário do DF ganha independência. Agência Brasília. Distrito
Federal.
2020.
Disponível em: <https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2020/05/27/sistemapenitenciario-do-df-ganha-independencia/> Acessado em: 14/09/2020.
354
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
19 e, em 9 de setembro de 2020, o Governador do DF exonerou 10 integrantes da
SEAPE77.
Atualizando as fontes e respectivas análises referentes aos últimos meses, o
painel do DEPEN sobre a Covid-19 nos presídios informa que, até o fim de outubro
de 2020, a população carcerária do DF era de 15.090 presos. Desses, apenas 40
pessoas estão no presídio federal. Segundo o GDF, até 31 de outubro de 2020, 1.868
presos foram contaminados pela Covid-19, sendo que na PFDF não houve casos da
doença. A informação acerca dos dados é divulgada pela Secretaria de Saúde do DF
por intermédio de boletins epidemiológicos. As únicas informações passadas sobre a
população privada de liberdade são o número de casos positivos, percentagem,
número por 100 mil habitantes e os óbitos em uma linha denominada “população
privada de liberdade”. Os boletins informam apenas o número de casos, mas não há
uma divisão por cada unidade prisional.
Até 31 de outubro, o GDF emitiu 243 boletins epidemiológicos. Os boletins
começaram em 26 de fevereiro de 2020, entretanto, a população privada de liberdade
apareceu de forma expressa somente em 20 de abril de 2020 computando 85 casos.
Nos dias 18 e 19 de abril de 2020, os casos foram contabilizados na RA de São
Sebastião. No dia 18 de abril de 2020, foram notificados 60 casos da doença no
Complexo da Papuda (BOLETINS EPIDEMIOLÓGICOS Nº 47-49)78. Antes desse
período, a Agência Brasília, com informações da Subsecretaria do Sistema
Penitenciário do Distrito Federal (SESIPE/DF), informava acerca da situação dos
77
FERREIRA, Afonso. Ibaneis exonera secretário e integrantes da cúpula do sistema penitenciário no DF.
G1
DF.
Brasília.
2020.
Disponível
em:
<https://g1.globo.com/df/distritofederal/noticia/2020/09/09/ibaneis-exonera-secretario-e-integrantes-da-cupula-do-sistemapenitenciario-no-df.ghtml> Acessado em: 15/09/2020.
78
GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO Nº 47. Secretaria de Estado
de Saúde do Distrito Federal. Diretoria de Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância
em Saúde (DIVEP/SVS). Brasília. 2020. Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wpconteudo/uploads/2020/03/Boletim-COVID_DF-18.04.2020.pdf>. Acessado em: 31/10/2020.
______. BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO Nº 48. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Diretoria de
Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância em Saúde (DIVEP/SVS). Brasília. 2020.
Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2020/04/Boletim-COVID_DF19.04.2020.pdf>. Acessado em: 31/10/2020.
______. BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO Nº 49. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Diretoria de
Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância em Saúde (DIVEP/SVS). Brasília. 2020..
Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2020/03/Boletim-COVID_DF20.04.2020_prisional-separado.pdf>. Acessado em: 31/10/2020.
355
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
presídios no DF. Em 17 de abril de 2020, 41 pessoas haviam se infectado com a
doença79.
Ressalte-se que os dados mudam bastante e a secretaria de saúde, nos boletins
epidemiológicos, informa apenas que “Dados sujeitos à alteração após investigação
epidemiológica” e não argumenta o que ocorreu com os casos que sumiram das
estatísticas. O IBGE estima que a população do DF em 2020 seja de 3.055.149. Até
31 de outubro de 2020, o DF registrou 186.994 casos confirmados de residentes na
capital federal80. Assim, tem-se o percentual de aproximadamente 6,12% da
população infectada. Em 31 de outubro de 2020, os casos confirmados de Covid-19
dos detentos do DF eram de 1.868, isso equivale a aproximadamente 12,37% da
população privada de liberdade. Ou seja, mais que o dobro do percentual em relação
à população geral do DF.
O TJDFT criou em seu site uma aba intitulada “ENFRENTAMENTO À
COVID-19 NO SISTEMA PENITENCIÁRIO”. O espaço é destinado para divulgar
as ações do Tribunal acerca do tema 81. Diversas ações foram realizadas nesse
período, entre elas a instituição, em 27 de abril de 2020, pela Portaria Conjunta 28
do TJDFT, de Comissão Provisória para acompanhamento situacional da doença no
sistema prisional do DF. A comissão é composta por, conforme seu art. 2º, I – Juiz
Assistente da Presidência do TJDFT, que presidirá a comissão; II – Juiz Assistente
da Corregedoria de Justiça do TJDFT, que substituirá o presidente nos
impedimentos; III – Juiz de Direito Titular da Vara de Execução Penal do Distrito
Federal; IV – Representante do Ministério Público do Distrito Federal e dos
Territórios; V – Representante da Defensoria Pública do Distrito Federal; VI –
Representante da Ordem dos Advogados do Brasil; VII – Representante da SESIPE
AGÊNCIA BRASÍLIA. Balanço sobre a Covid-19 no sistema penitenciário – sexta-feira (17/4).
Governo
do
Distrito
Federal.
2020.
Disponível
em:
<https://agenciabrasilia.df.gov.br/2020/04/17/balanco-sobre-a-covid-19-no-sistema-penitenciariosexta-feira-17-4/> Acessado em: 07/11/2020.
80
GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO Nº 243. Secretaria de Estado
de Saúde do Distrito Federal. Diretoria de Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância
em Saúde (DIVEP/SVS). Brasília. 2020. Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wpconteudo/uploads/2020/03/Boletim-COVID_DF_243.pdf>. Acessado em: 31/10/2020
81
TJDFT. Enfrentamento à COVID-19 no sistema prisional do DF. Tribunal de Justiça do Distrito
Federal
e
Territórios.
Distrito
Federal.
2020.
Disponível
em:
<https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/maio/coronavirus-comissao-do-tjdft-iraacompanhar-situacao-nas-penitenciarias> Acessado em: 14/11/2020.
79
356
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
e VIII – Representante da PCDF. Nesse ponto, salienta-se que a comissão é
composta somente por juristas e/ou iniciados no Direito.
A Secretaria de Estado de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF)
publicou em sua página 44 balanços diários acerca da Covid-19 no sistema
carcerário, com início em 1 de abril de 2020 e fim em 17 de junho de 2020. No
último documento, informam que desde meados de maio, os números são divulgados
pela SES/DF e algumas ações mais recentes como por exemplo, todos os servidores
e pessoas privadas de liberdade da PFDF foram testados. A SEAPE, por sua vez,
informa que para ter acesso ao exame de Covid-19 de algum detento é necessário
autorização judicial e preenchimento de requerimento com os dados 82. Tanto
SSP/DF, quanto SEAPE não possuem uma aba específica nos sites acerca das
informações sobre a doença.
Por mais que o TJDFT tenha demonstrado diversas ações, o que se observa é
que o número de contaminados nos presídios do DF aumentou. A comunicação de
até 3 minutos não é suficiente para sanar a falta de comunicabilidade extramuros
com o intramuros. Nota-se que com o discurso de segurança pública, soltura
indiscriminada e preconceito com pessoas privadas de liberdade, a pandemia nos
presídios do DF está sendo gerida com políticas de segurança pública, e não por
políticas penitenciárias. O encarceramento torna-se mais importante do que admitir
que o sistema não tem condições, pessoas e instrumentos suficientes para cumprir as
medidas de segurança de forma efetiva e tratar dos detentos caso venham a contrair a
doença dentro dos presídios.
A Comissão provisória instituída pelo TJDFT é um exemplo disso, uma vez
que há apenas operadores do direito e representantes da segurança pública, não há
um representante dos familiares para trazer à tona questões de quem necessita de
informações e que realmente vivem aquele ambiente e ações que funcionem na
prática. Não é necessária apenas uma ação, o essencial é a transversalidade de
políticas públicas com temas que afetam a questão prisional, tais como, por exemplo,
82
SEAPE. Requisição de resultado de exame de COVID-19 de pessoa presa. Secretaria de Estado de
Administração Penitenciária. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <http://seape.df.gov.br/requisicaode-exame-de-covid-19-de-pessoa-presa/> Acessado em: 09/11/2020.
357
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
saúde pública, seguranças, para enfrentamento da pandemia dentro do sistema
prisional do DF.
Outro exemplo de ação que não está baseada na realidade dos presídios do
DF é o “Plano de Ação Emergencial em Saúde Pública no Sistema Prisional - Surtos
e Múltiplas Vítimas” elaborado pela Gerência de Saúde do Sistema Prisional
(GESSP) para ações em conjunto com a Diretoria Regional de Atenção Primária à
Saúde (DIRAPS), Gerência de Saúde (GESAU/SESIPE), Núcleo de Assistência à
Saúde/Gerência de Assistência Social da Penitenciária (NUS/GEAIT/SESIPE). Logo
de início é possível notar que, na prática, o plano não é realista, uma vez que há a
necessidade de uma equipe de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem para
atuar em casos de surto e em casos de eventuais várias vítimas, além da necessidade
de reservar um lugar espaçoso para fazer o atendimento 83. Entretanto, como
podemos resgatar da fala da Gerente de Saúde Prisional na reunião da CDHM, o
sistema contava apenas com metade dos médicos, seja por doença, seja porque eram
do grupo de risco, entre outros problemas. Não é factível afirmar que uma equipe
com poucos médicos e provavelmente com poucos outros profissionais da saúde
poderá cuidar de uma população prisional de mais de 15 mil pessoas, além do mais é
complexo demandar por espaço em um local com déficit de vagas.
As decisões são tomadas pelos operadores de direito a partir de dados
fornecidos por profissionais da saúde, porém o que se observa é que no período de
um mês, o número de testes nos relatórios do GDF nada se modificou quando
comparados os relatórios 9 e 1084, o que reflete no aumento diferente de casos nos
meses de setembro e outubro.
Com o aumento no número de casos no Complexo da Papuda, foi informado
que o GDF construiria um hospital de campanha no local. Inicialmente, a
83
84
TJDFT. PLANO DE AÇÃO EMERGENCIAL EM SAÚDE PÚBLICA NO SISTEMA PRISIONAL
SURTOS E MÚLTIPLAS VÍTIMAS. Plano de Contingência. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
Territórios.
Distrito
Federal.
2020.
Disponível
em:
<https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/arquivos/plano-de-acao-emergencial-emsaude-publica-nos-presidios-do-df.pdf> Acessado em: 19/11/2020.
GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. RELATÓRIO 10 - TESTAGEM PARA SARS COV-2 NO
DF. Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Distrito Federal. 2020. Disponível em:
<http://www.coronavirus.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/11/Relato%CC%81rio-Testagem10.pdf>. Acessado em: 18/11/2020.
358
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
informação era de que a entrega aconteceria em dez dias. Posteriormente, em abril, o
Portal Metrópoles informou que o intuito da SES/DF era a entrega em 1 mês, logo,
aconteceria entre meados e fim de maio de 202085. Já em junho de 2020, o Correio
Braziliense noticiou, a partir de informações da SEAP, que o hospital poderia ficar
pronto na semana do dia 15 de junho de 202086. Fato é que o hospital de campanha
previsto para o início da pandemia, até meados do mês de setembro de 2020, não
havia sido utilizado e já se falava em uso para uma possível segunda onda de
contaminação87.
Informações mais recentes, relativas à 2021, evidenciam que medidas foram
tomadas na tentativa de gerir a epidemia de Covid-19 nos presídios do DF, porém a
situação da propagação do vírus não foi completa e devidamente contida 88. Em face
da intensificação das medidas de segurança e os protocolos preventivos, ainda em
outubro de 2020, as autoridades locais noticiaram um suposto controle da situação,
considerando a baixa no número de internações 89. Contudo, pouco tempo depois, já
no começo de 2021, mais casos de infecção e óbitos foram noticiados. Em abril,
treze meses após confirmação do primeiro caso de coronavírus no DF, o sistema
penitenciário local somava 2126 infectados, sendo que 4 detentos haviam morrido
por causa da doença. Além destes, dois policiais penais, um agente de custódia e um
85
CARDIM, Nathália. GDF prevê um mês para entrega de Hospital de Campanha na Papuda. Metrópoles.
Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.metropoles.com/distrito-federal/gdf-preve-ummes-para-entrega-de-hospital-de-campanha-na-papuda> Acessado em: 20/11/2020.
86
DIOGO, Darcianne. Hospital de campanha na Papuda deve ser entregue nesta semana. Correio
Braziliense.
Distrito
Federal.
2020.
Disponível
em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/06/15/interna_cidadesdf,863734/hos
pital-de-campanha-na-papuda-deve-ser-entregue-nesta-semana.shtml> Acessado em: 20/11/2020.
87
CHARLSON, Freddy. Hospital de Campanha da Papuda recebe visita de gestores da Saúde. Agência
Brasília.
Distrito
Federal.
2020.
Disponível
em:
<https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2020/11/14/hospital-de-campanha-da-papuda-recebe-visita-degestores-da-saude/> Acesso em: 20 nov. 2020.
88
DUTRA, Francisco. Faltam máscaras e itens de proteção contra a Covid em presídios do DF, 2021.
https://www.metropoles.com/distrito-federal/faltam-mascaras-e-itens-de-protecao-contra-a-covid-empresidios-do-df>Acesso em: 24 out. 2021.
89
OLIVEIRA, Ana Paula. Covid-19 controlada nos presídios do DF. 2020. Disponível em:
https://www.politicadistrital.com.br/2020/10/06/covid-19-controlada-nos-presidios-do-df/ Acesso em:
24 out. 2021.
359
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
enfermeiro que atuava no complexo carcerário também morreram de Covid-19,
sendo informações da SEAPE/GDF90.
Em julho de 2021, com a disponibilidade de vacinas, 14.954 pessoas privadas
de liberdade e cerca de 600 policiais penais puderam receber a dose única da vacina
Janssen, disponibilizada pela Secretaria de Saúde, já na sétima e última fase da
vacinação. O governo local, na tentativa de transformar o fato em uma pauta positiva
politicamente, noticiou que o DF era a primeira Unidade da Federação a concluir a
vacinação no sistema prisional, garantindo a imunização massiva de custodiados e
profissionais em todas as unidades, o que foi reconhecido, inclusive pelo
DEPEN/MJSP. Todavia, como se percebe pelo Plano Nacional e Distrital de
Vacinação, a inclusão das pessoas privadas de liberdade na campanha de vacinação
se deu tardiamente, devido à disputa para inclusão da população prioritária (com
comorbidades, por exemplo) e a quantidade de imunizantes disponíveis naquele
momento, bem como pela falta de priorização. A vacinação no sistema prisional
deu-se devido também à necessidade de se atender aos interesses da categoria
profissional dos policiais penais e, consequentemente, a população carcerária.91
Ressalte-se que a juíza titular da VEP/TJDFT, Dra. Leila Cury, foi informada
do cronograma de vacinação contra a Covid-19 dos custodiados nas unidades penais
do DF, no que acompanhou presencialmente a abertura do mutirão promovido pela
Comissão de Execução de Atendimento Móvel da Defensoria Pública do DF92.
Depois da vacinação em massa, as atividades de visitação foram sendo
gradativamente retomadas nas unidades prisionais do DF. Todavia, percebemos que
as medidas e os protocolos sanitários adotados não têm sido capazes de conter a
propagação do vírus no sistema penitenciário local; a exemplo do que aconteceu
mais recentemente, em setembro de 2021, na Penitenciária Feminina (Colmeia),
90
91
92
GALVÃO, Walder. Presídios do DF registram 2.126 casos e quatro mortes de detentos por Covid-19.
2021.
<https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/04/13/presidios-do-df-registram-2126casos-e-quatro-mortes-de-detentos-por-covid-19.ghtml> Acesso em: 24 out. 2021.
CHARLSON, Freddy. DF é o 1º do país a concluir a vacinação no sistema prisional. 2021.
https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2021/07/25/df-e-o-1o-do-pais-a-concluir-a-vacinacao-nosistema-prisional/ Acesso em: 24 out. 2021.
TJDFT. Covid-19: juíza da VEP/DF realiza inspeção na Papuda e acompanha vacinação. 2021.
<https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2021/julho/covid-19-juiza-da-vep-df-realizainspecao-no-complexo-da-papuda-e-acompanha-vacinacao> Acesso em: 24 out. 2021.
360
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
onde foram confirmados diversos casos de contaminação das internas, uma espécie
de surto (não confirmado oficialmente, por razões óbvias), obrigando a VEP/TJDFT
a suspender uma série de atividades, entre elas a visitação 93. Segundo informações
recentes, de 21 de setembro de 2021, desde o início da pandemia, o complexo
penitenciário do DF (todas as unidades) registrou 2209 casos de infecção e sete
mortes de internos por Covid-1994.
5
CONSIDERAÇÕES
(IN)CONCLUSIVAS
CONTEXTO AINDA PANDÊMICO
EM
UM
Diante do atual contexto de pandemia de Covid-19, as instituições do sistema
de justiça criminal do DF responsáveis pela investigação, persecução e execução
penal se viram profundamente afetadas pelas consequências da disseminação da
doença em suas respectivas esferas e âmbitos. Ressalte-se, todavia, que focamos em
nossa análise apenas PCDF, DPDF e TJDFT, haja vista o âmbito de atuação e/ou
interesse de pesquisa atual dos/as autores/as, o que não significa que igual
importância deve ser dada às demais instituições envolvidas no tema, como: PMDF,
MPDFT etc.; além das iniciativas que têm partido da sociedade civil organizada,
associações e entidades.
A partir das diversas fontes de informações e dos dados oficiais aqui
analisados, percebemos a existência de forte resistência entre os operadores do
Direito e gestores públicos quanto ao atendimento às demandas dos presos e de seus
familiares, bem como a persistência de um discurso punitivista que se utiliza do
argumento da manutenção da prisão por conta da pandemia como evidência de uma
política criminal e de segurança pública, e não em política de gestão penitenciária,
quando, na verdade, medidas de desencarceramento em meio à pandemia deveriam
ser vistas também como política de saúde pública.
93
94
MANSUR, Ana Isabel. Penitenciária Feminina do DF tem mais 28 casos de covid-19; total sobe para
48. 2021. <https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2021/09/4950860-penitenciaria-femininado-df-tem-mais-28-casos-de-covid-19-total-sobe-para-48.html> Acesso em: 24 out. 2021.
NANINI, Lucas. Após Covid, visitas na Penitenciária Feminina do DF são suspensas. 2021.
<https://noticias.r7.com/brasilia/apos-covid-visitas-na-penitenciaria-feminina-do-df-sao-suspensas16092021> Acesso em: 24 out. 2021.
G1 DF e TV Globo. Com surto de Covid-19, Penitenciária Feminina do DF registra mais 36 presas
infectadas
em
menos
de
uma
semana.
2021.
<https://g1.globo.com/df/distritofederal/noticia/2021/09/22/com-surto-de-covid-19-penitenciaria-feminina-registra-mais-36-presasinfectadas-em-menos-de-uma-semana.ghtml> Acesso em: 26 out. 2021.
361
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Aliás, observamos a persistência entre as instituições envolvidas de um
discurso de pseudo normalidade da situação, uma espécie de acordo ou alinhamento
interinstitucional no sentido de que “está tudo sob controle” nos presídios do DF,
quando, na realidade, até às 17h, do dia 31 de outubro de 2020, havia 1.868
contaminados pela Covid-19 e 4 mortes em decorrência da doença nos presídios.
Todas essas evidências nos permitem concluir que a gestão por parte das
principais instituições envolvidas deve ser questionada, haja vista medidas
insuficientes para o combate à disseminação do novo Coronavírus, sobretudo nos
presídios. Não houve gestão penitenciária adequada. Pelo contrário, tem sido
priorizada estratégia da falta de transparência e da manutenção do segredo com
relação aos dados e informações, havendo também, em alguns momentos,
dissonâncias de entendimentos entre as instituições (destaque-se as incongruências e
omissões no Painel Covid do DEPEN/MJSP). Além do manejo desses dados e
informações que revelam estratégias de disputa pela gestão do segredo, percebemos
o uso de múltiplos discursos (médico, jurídico, administrativo/burocrático, de
segurança pública, punitivista etc.) para (re)atualizar violações de direitos.
Todavia, percebemos que a PCDF tem realizado esforços para preservar seus
servidores e continuar a prestação do serviço de segurança que lhe compete. Para
tanto, tem realizado ajustes em suas atividades, por exemplo, com protocolos
sanitários em suas unidades, proteção dos policiais, facilitação dos registros online.
Com efeito, há evidentes encontros com as 10 medidas para a segurança pública
durante a pandemia da Covid-19.No entanto, convém avaliar se a PCDF está tendo
prejuízos nas atividades investigativas e de elucidação de crimes, em virtude das
restrições causadas Covid-19. Da mesma forma, analisar se a PCDF está atenta às
mudanças das dinâmicas criminais, por exemplo, com crimes mais no âmbito
doméstico e na internet. Afinal, a partir do turbilhão da Covid-19, compreender a
situação das polícias e dos policiais, bem como de suas atividades e das dinâmicas
criminais, decerto está entre os novos normais dos dias de hoje.
Já no que diz respeito à DPDF, além de se empenhar na preservação de seus
servidores e membros, também tem atuado exaustivamente na preservação dos
direitos das partes assistidas pela DPDF, diante da vulneração de direitos e garantias
362
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
fundamentais decorrente da pandemia. O tensionamento com a necessidade de
eficiência do Poder Judiciário, entretanto, tem sido o grande desafio da instituição,
que raramente é chamada para o debate acerca da retomada das atividades e das
medidas paliativas a serem tomadas até que isso ocorra de forma plena.
Convém ressaltar que as medidas adotadas pelo TJDFT têm sido
insuficientes. Mentiras e omissões do por parte do Governo do Distrito Federal
devem ser responsabilizadas, vez que o colapso do sistema já era anunciado, mas
preferiu-se arriscar a vida dos detentos à necessidade de punir em vez de adotar
medidas desencarceradoras.
Diante desse cenário de gestão do caos da pandemia, concluímos que o
direito por si só não consegue solucionar os problemas de saúde pública dos
presídios do DF colocados pela emergência sanitária da pandemia de Covid-19 e que
o discurso de que está “tudo sob controle” continua corroborando e sendo insumo
nos processos de tomadas de decisão.
363
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
PARTICIPAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO
NO ÂMBITO DO CONSELHO NACIONAL
DO MEIO AMBIENTE: O CONAMA
ENQUANTO TERMÔMETRO DOS
INSTRUMENTOS DE POLÍTICA
AMBIENTAL BRASILEIRA DURANTE A
EMERGÊNCIA SANITÁRIA COVID19
Rodrigo Augusto Lima de Medeiros1
1 INTRODUÇÃO
A política do Governo Federal (2019-2022) modificou a dinâmica da agenda
ambiental (KINGDON, 2003; CAPELLA, 2013; DI GIOVANNI & NOGUEIRA,
2013; HOWLETT & RAMESH, 2013; RUA, 2014) no âmbito do Ministério do
Meio Ambiente (MMA) e de suas vinculadas 2. A situação de emergência sanitária
referente à pandemia da Covid19 evidenciou o planejamento político de
desarticulação de alguns processos técnico-administrativos consolidados desde a
década de 1980. É intenção deste trabalho explorar dimensões simbólicas da
institucionalização da política ambiental (TEIXEIRA, C. et al., 2019) e privilegiar a
interpretação de tais mudanças gerenciais no âmbito do Conselho Nacional do Meio
Ambiente (Conama) por meio do exame de discursos, leis, decretos, resoluções,
gráficos e tabelas.
A fim de examinar os processos técnico-administrativos que consolidam o
enfraquecimento da agenda ambiental no Brasil (VALE, M. et al., 2021;
SANTANA, 2019), este artigo parte do pressuposto de que a efetividade da Política
1
2
Professor Titula do Centro Universitário de Brasília (CEUB). Servidor Público do Ministério do Meio
Ambiente (MMA). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB).
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais - Ibama e Instituto Chico Mendes de
Conservação da Biodiversidade – ICMBio.
364
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Nacional do Meio Ambiente depende da aderência de segmentos da sociedade civil e
dos governos estaduais e municipais para um mesmo propósito (SOUZA, 2000;
CIRNE, 2013). É nesse contexto político-administrativo que este artigo objetiva
examinar a relação entre participação e produtividade no Conselho Nacional do
Meio Ambiente (Conama). Analisaremos o Conama como termômetro para medir
a temperatura da política ambiental no Brasil, na medida em que é órgão consultivo
e deliberativo de normas e padrões compatíveis com o meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
Ao rastrear as normas que modificaram a representação do Conselho ao logo
de sua história, pretendemos propor reflexões sobre a potencialidade construtora da
diversidade de atores sociais na condução de empreendimentos coletivos (LÉVISTRAUSS, 1993; GEERTZ, 1989)3. Sugerimos a seguinte proposição como
problema de pesquisa: existe uma relação direta entre participação e produtividade,
ou seja, quanto mais conselheiros mais produção técnico-normativa no Conselho
Nacional do Meio Ambiente. Essa proposição é inversamente proporcional as
justificativas que procuraram legitimar as mudanças na configuração do Conama.
Apesar de não haver exposições de motivos para o decreto nº 9.806/2019 que dispõe
sobre “a composição e o funcionamento do Conselho Nacional do Meio Ambiente –
Conama”, a justificativa prolatada pelo Governo Federal e seus porta-vozes era a de
que seria necessário reduzir o tamanho do Conama para que houvesse mais
“racionalidade” na regulamentação ambiental.
Desse modo, a convicção política da gestão 2019-2022 é que a diminuição
de assentos no Conama traria mais efetividade às deliberações. Efetividade
entendida como mais celeridade, assim, em última instância, haveria mais produção,
ou seja, maior número de atos do Conselho (resoluções, proposições, recomendações
e moções)4. O discurso político da diminuição do Colegiado vendia a promessa de
3
Durkheim (1995) ao estabelecer os conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica afirma
que quanto maior da diferenciação entre os indivíduos maior a divisão social do trabalho. Apesar de
sua verve evolucionista, não se quer neste trabalho reviver qualquer tese anacrônica sobre taxonomia
sociológica referente a complexidade das sociedades. Apenas se chama a atenção para o papel da
diversidade ampliação da escala social.
4
Segundo o art. 9º do Regimento Interno (Portaria nº 630/2019), são atos do Conama: “I - Resolução; II Proposição: quando se tratar de proposta sobre matéria ambiental a ser encaminhada ao Conselho de
Governo; III - Recomendação: quando se tratar de manifestação acerca da implementação de políticas,
365
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
que a mudança traria mais “coerência” a política ambiental. Em síntese, para a
gestão 2019-2022, a quantidade elevada de conselheiros e de segmentos no Conama
impactaria negativamente no debate técnico da política ambiental. Este artigo irá
examinar isso.
Neste trabalho, propormos exame significados por trás dos instrumentos
legais que aumentam ou diminuem os assentos no Conama, avaliando conjecturas
técnico-administrativas. Simultaneamente, faremos uma verificação quantitativa dos
dados referentes as mudanças de composição do Conselho e a relação disso com o
número de resoluções aprovadas em cada período presidencial específico. Não será
possível mensurar a efetividade do Conama no cumprimento de suas atribuições
legais, entretanto, este artigo examinará as alterações na composição do Conselho ao
longo dos 38 anos de sua existência, a fim propor reflexão sobre essas mudanças.
Neste período, conseguimos identificar onze (11) mudanças na composição do
Conselho com alteração de representatividade dos segmentos e no número de
conselheiros5.
Em termos da execução de políticas públicas no âmbito do Governo Federal
brasileiro, a participação ao longo de 38 anos de Conama (de 1984 a 2022) será
examinada com base nas leis, decretos e regimentos que regulamentaram sua
composição. Propomos aqui examinar essas normas para registrar o histórico das
participações. Não é intenção do artigo fazer qualquer inferência qualitativa dos atos
do Conselho. O rastreamento de decretos, regimentos, discursos que definiram os
segmentos e o número de conselheiros para o Conama será realizado na perspectiva
de uma antropologia das instituições ou do Estado (TEIXEIRA et al., 2019).
Procuraremos encontrar padrões técnicos, administrativos e discursivos na condução
das transformações representativas do Conselho.
Não é o objetivo deste trabalho fazer levantamento bibliográfico exaustivo.
Pretende-se apenas instrumentalizar alguns conceitos, para elaborar uma análise
5
programas públicos e demais temas com repercussão na área ambiental, inclusive sobre os termos de
parceria de que trata a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999; e IV - Moção: quando se tratar de
manifestação relevante, relacionada com a temática ambiental”.
Algumas mudanças são muito sutis. Representa a alteração de um assento no conselho por conta de
mudança na estrutura do Poder Executivo, por exemplo, criação ou extinção de Ministério. Outras
mudanças são mais significativas e alteram a composição do Conselho.
366
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
empírica da situação de representação do Conselho Nacional do Meio Ambiente
(Conama). O tratamento técnico-administrativo das demandas dos diversos grupos
de interesses existentes na sociedade é interpretado de diferente maneira por autores
que pensam a democracia, tais como: Talcott Parsons (2010), Gaetano Mosca
(1992), Robert Michels (2011), Robert Dahl (1997), Charles W. Mills (1973) e
Carole Pateman (1992). Essa literatura especializada levanta questionamentos
fundamentais para as concepções contemporâneas de democracia: a democracia está
para além dos direitos políticos de votar e ser votado, i.e., para além do autogoverno
liberal de ter representantes eleitos que estabeleçam normas e tomem decisões
reguladoras da vida sob a jurisdição no Estado-nação. Em termos conceituais,
aponta-se para a própria necessidade da diversidade de atores sociais na
produção da eficácia da democracia. É nesse sentido que a democracia não é
somente as garantias eleitorais de votar e ser votado (direitos políticos), garantidos
pelas regras procedimentais da Justiça Eleitoral, mas principalmente é a legitimidade
no processo de formulação de regras que devem ser cumpridas por todos, nos termos
de uma legitimidade procedimental, na perspectiva weberiana (WEBER, 1921).
As alterações no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) deram a
tônica da política ambiental na atual gestão do Governo Federal (2019-2022). A
pandemia Covid19 evidenciou as mudanças. Trata-se de planejamento de governo
que ao atingir o comando central da política ambiental no MMA, no Ibama e no
ICMBio, afeta a capacidade da burocracia especializada atuar no cumprimento de
suas prorrogativas legais, desmantelando a capilaridade de ação no território
nacional. Esse processo atingiu diversos níveis operacionais da fiscalização, da
gestão de Unidades de Conservação (UCs), dos compromissos internacionais com
convenções sobre mudança do clima e sobre biodiversidade biológica, entre outros.
É nesse sentido que esse rearranjo institucional impactou sobremaneira a política
ambiental brasileira. O Governo Federal (2019-2022) tentou afastar a política
ambiental de pautas mais rurais e aproximá-la de agendas mais urbana
(principalmente, a política nacional de resíduos sólidos), sendo a principal marca da
atual gestão.
Portanto, este artigo examinará as mudanças no Conselho Nacional do Meio
Ambiente no período de 1984 a 2022, priorizando o significado das últimas
367
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
alterações na legislatura 2019 a 2022 e suas reverberações para a política ambiental.
Tanto o decreto nº 9.806/2019, que modifica a composição do Conama, quanto a
Portaria nº 630/2019, que aprova novo regimento interno para o Conselho,
mostraram suas limitações operativas durante o confinamento compulsório imposto
pela emergência sanitária da SARS-CoV-2. A redução do número de assentos
destinados às entidades ambientalistas produziu desequilíbrio representativo
entre os segmentos do conselho. O novo regimento interno amarrou mais as
participações, dificultando interações promotoras de consensos. Houve equívocos
conceituais que justificou distorção na representação dos segmentos, gerando lesão à
preceitos da democracia participativa de um colegiado consultivo e deliberativo.
Desde março de 2019, os equívocos ficaram evidencias quando o Conselho reiniciou
suas reuniões plenárias remotamente. Desde então, o Ministério Público Federal
(MPF) tem impetrado ações judiciais contra os gestores públicas à frente da agenda
ambiental.6
Em suma, este artigo divide-se em quatro seções, sendo uma introdução, uma
conclusão e duas seções de desenvolvimento. A primeira seção do desenvolvimento
apresenta breve análise sobre a composição do Conama, contextualizando o histórico
da participação, a fim de apresentar o impacto da mudança realizada em 2019. Por
exemplo, a representação das entidades ambientais teve seus assentos reduzidos em
mais de 80% (de 22 para 4 vagas), havendo completo esvaziamento de
representações dos trabalhadores, dos povos indígenas, das populações tradicionais e
da comunidade científica, ou seja, houve a extinção desses assentos. A segunda
seção do desenvolvimento é sobre as resoluções e a investigação histórica da relação
entre participação e produtividade dos atos do Conselho. Por fim, as considerações
finais procuram endereçar o problema da investigação traçando algumas
características do desequilíbrio na composição da atual política ambiental (gestão
2019-2022), demostrando o equívoco conceitual no estabelecimento político da
relação direta entre redução do conselho e aumento de eficácia da política
ambiental.
6
Exemplo, Inquérito Civil n° 1.16.000.000912/2020-18. Improbidade Administrativa contra o ex-ministro
Ricardo Salles. Outro exemplo é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº
623) em que se pede a anulação do decreto 9.806/2019 que modificou a representação no Conama.
368
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
2 O CONAMA ENQUANTO TERMÔMETRO PARA AS
POLÍTICAS AMBIENTAIS NO BRASIL: MUDANÇAS EM
PERSPECTIVA
Diferentemente da publicação “The COVID-19 pandemic as an opportunity
to weaken environmental protection in Brazil” (VALE et al., 2021), em que os
autores destacam o processo de desregulamentação, diminuição na aplicação de
multas pela fiscalização ambiental e o crescimento do desmatamento, esta seção
pretende colocar em perspectiva histórica as mudanças no Conselho Nacional do
Meio Ambiente. O processo político de amadurecimento da agenda ambiental no
Brasil remonta a década de 1970 com a instituição das primeiras normas mais
estruturantes da agenda ambiental. Na análise de Renato Santos de Souza (2000), o
Brasil não possui sistema de proteção ambiental tão antigo e organizado quando de
alguns países desenvolvidos, entretanto, ele é um dos pioneiros dentre os países em
desenvolvimento na instituição de uma política ambiental (2000, p. 274-313)7.
Na década de 1980, a Lei nº 6.938/1981 instituiu a Política Nacional do
Meio Ambiente (PNMA) e o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA).
O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), órgão superior do SISNAMA,
possui a missão de implantar a lógica de governança na elaboração de atos
ambientais
(SOUZA,
2000;
MEDEIROS,
2018;
SANTANA,
2019).
Posteriormente, a edição da Lei Complementar nº 140/2011 atribuiu mais
organicidade a Política Pública (BUCCI, 2006) ambiental ao ajustar a cooperação
entre os entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) no que
tange
ações
administrativas
decorrentes
do
exercício
de
competências
constitucionais comuns relacionadas à proteção das paisagens naturais notáveis, à
proteção do meio ambiente, ao combate à poluição e à preservação das florestas, da
fauna e da flora (MEDEIROS, 2019).
É possível ter uma perspectiva confiável das mudanças no Conama, caso
façamos a devida comparação histórica na composição do Conselho. O histórico de
7
Mesmo que as décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960 tenham testemunhado algumas regulamentações
ambientais (Código das Águas, Código Florestal, Código de Pesca, Código de Mineração), é a década
de 1970 com a influência da Conferência de Estocolmo (1972) que cresce a preocupação legislativa
com os “problemas ambientais do desenvolvimento” (SOUZA, 2000).
369
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
mudanças que fundamenta a participação no Conselho Nacional do Meio Ambiente
está registrada em legislação específica. Ou seja, leis, decretos, portarias e
resoluções são os instrumentos normativos que regulamentam a participação no
Conselho. Iremos rastrear a composição do Conama ao se analisar os regimentos
internos e os decretos que regulamentam o funcionamento do Conselho. O Conama
teve ao longo de sua existência seis (6) regimentos internos, são eles:
1º Regimento Interno. Resolução CONAMA Nº 001/1984 - "Aprova o
Regimento Interno do CONAMA" - Data da legislação: 05/06/1984 - Publicação
Boletim de Serviço/MI, de 20/07/1984;
2º Regimento Interno. Resolução CONAMA Nº 025/1986 - "Dispõe sobre a
aprovação do novo Regimento Interno do CONAMA". - Data da legislação:
03/12/1986. Alterada pelas Resoluções nº 12, de 1987, nº 07, de 1989, nº 08, de
1989, e 07, de 1991);
3º Regimento Interno. Resolução CONAMA Nº 007/1991 - "Dispõe sobre
alterações no Regimento Interno do CONAMA" – Data da legislação: 19/09/1991;
4º Regimento Interno. Portaria MMA Nº 168/2005 - "Regimento Interno do
CONAMA" - Data da legislação: 10/06/2005. Revogada pela Portaria nº 452, de 17
de novembro de 2011;
5º Regimento Interno. Portaria MMA Nº 452/2011 - "Regimento Interno do
CONAMA" - Data da legislação: 17/11/2011 - Revogada pela Portaria n° 630, de 05
de novembro de 2019;
6º Regimento Interno. Portaria MMA Nº 630/2019 - "Regimento Interno do
CONAMA" - Data da legislação: 05/11/2019.
Observamos que no início os regimentos internos (RI) eram aprovados por
Resolução do próprio colegiado. A dinâmica muda no 4º RI quando se começa
instituir por Portaria do Ministério do Meio Ambiente. Em outra ocasião, valerá a
pena investigar se houve mitigação na autonomia do Conselho ou apenas uma
mudança de instrumento jurídico. Por enquanto, fiquemos com a potencial
comparação entre as diversas composições do Conama, utilizamos a mesma divisão
por segmentos que os regimentos internos utilizam. Há variações entre os
370
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Regimentos Internos. A principal diferença é a denominação atribuída ao segmento
da sociedade civil. Em alguns momentos, os representantes da sociedade civil são
denominados “entidades de trabalhadores e da sociedade civil” e, em outros, são
denominadas “entidades ambientalistas”. Outro detalhe relevante é a gradual
substituição das entidades de trabalhadores por entidades ambientalistas. Para
viabilizar a comparação a composição do Colegiado entre os períodos presidenciais,
foi necessário fazer algumas generalizações em suas categorias. Denominaremos
“entidades de trabalhadores” e “entidades ambientalistas” como “sociedade civil”.
Assim, teremos os seguintes segmentos que compõe, historicamente, o Conama:
a) Sociedade Civil
b) Entidades Empresariais
c) Governos Municipais
d) Governos Estaduais
e) Governo Federal
Ainda restam alguns detalhes de padronização, a fim de propor uma
comparação adequada. Algumas categorias são dúbias e podem ser caraterizadas
como um segmento ou outro. Por exemplo, as entidades de representação dos
Estados e Municípios, respectivamente, ABEMA (Associação Brasileira de
Entidades Estaduais de Meio Ambiente) e ANAMMA (Associação Nacional de
Municípios e Meio Ambiente), possuem caráter ambíguo porque ao mesmo tempo
que representa Estados e Municípios (entes federados) são associações civis de
direito privado, sem fins econômicos. Ou seja, poderiam ser tanto governo estadual
ou municipal quanto sociedade civil.
O gráfico abaixo tenta sistematizar a participação dos segmentos ao longo dos
38 anos de existência do Conama (1984-2022). A criação do Conselho pela lei
6.938/1981 traz em seu bojo a primeira composição que é replicado na 1ª Reunião
Ordinária, em 05 de junho de 1984.
371
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
GRÁFICO 1 – Número de Conselheiro por Período Presidencial
Fonte: próprio autor.
Observamos no gráfico 1 o número total de membros do Conama ao longo do
tempo. É evidente a redução drástica proposta pela gestão 2019-2022. A atual
configuração é a com menos conselheiros. É importante explorar um pouco mais a
primeira composição do colegiado porque ela servirá de referência para as seguintes.
A composição do Conama posta na Lei nº 6.938/1981 é replicada no 1º Regimento
Interno (Resolução nº 001, 05 de junho de 1984). Em tal diploma, estabeleceu-se que
integrariam o Plenário do Conama os representantes dos seguintes Ministérios:
i. Interior (Ministro que preside o conselho);
ii. Justiça;
iii. Marinha;
iv. Relações Exteriores;
v. Fazenda;
vi. Transportes;
vii. Agricultura;
372
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
viii. Educação e Cultura;
ix. Trabalho;
x. Saúde;
xi. Indústria e Comércio;
xii. Minas e Energia;
xiii. Chefe da Secretaria de Planejamento da Presidência da República;
xiv. Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas;
xv. Extraordinário para Assuntos Fundiários;
Ainda de acordo com o 1º Regimento Interno (Resolução nº 001, 05 de junho
de 1984), a composição do conselho também contava com os seguintes conselheiros:
i.
Secretário Especial do Meio Ambiente (secretário executivo do
conselho);
ii.
Representantes dos Governos dos Estados onde existam áreas críticas
de poluição declaradas por Decreto Federal; (13)8
iii.
Um representante de cada uma das regiões Norte, Nordeste e CentroOeste do país, indicados, em rodízio anual, pelos respectivos
Governadores; (3)
iv.
Os presidentes das Confederações Nacionais do Comércio, da
Indústria e da Agricultura; (3)
v.
Os presidentes das Confederações Nacionais dos Trabalhadores
no Comércio, na Indústria e na Agricultura; (3)
vi.
Os presidentes da Associação Brasileiras de Engenharia
Sanitária e Ambiental (ABES) e da Fundação Brasileira para a
Conservação da Natureza; (2)
8
Para viabilizar a comparação, atribuímos a metade do número possível de Estados no item, ou seja, 13.
Não conseguimos apurar com maior precisão quantos conselheiros efetivamente foram nomeados nesse
item. A normatização, em tese, permitiria que todos tivessem, mas seria improvável.
373
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Os Presidentes de duas associações legalmente constituídas para
vii.
a defesa dos recursos ambientais e combate à poluição, de livre
escolha do Presidente da República. (2)
Destacaremos as três últimas categorias, somando sete (7) cadeiras. O
Conselho abriu vaga para as Confederações Nacionais dos Trabalhadores no
Comércio, na Indústria e na Agricultura. Também havia vagas para os presidentes da
ABES e da FBCN. Aos quinze assentos dos titulares dos Ministérios, somam-se a
vaga do Secretário Especial do Meio Ambiente. Essa é uma constante na
representação do Conselho, sempre houve supremacia numérica do Governo Federal
no Conselho. Historicamente, essa hipertrofia na representação do Poder Executivo
Federal cresce em número absoluto nos anos seguintes.
O Conselho teve sua primeira composição determinada pela própria lei que o
criou. Tendo como referência. Depois as mudanças foram operadas por meio de
Decretos. Os Decretos são os seguintes:
1.
João Figueiredo (Gestão de 1979 a 1985). Instalação do Conama
pela lei nº 6.938/1981. A composição inicial foi estabelecida na
própria lei de criação e no Regimento Interno.
2.
José Sarney (Gestão de 1985 a 1990). A composição inicial foi
estabelecida na própria lei de criação e no Regimento Interno.
3.
Collor de Melo (Gestão de 1990 a 1992). A composição de 1991 a
1994 foi regida pelos Decreto nº 99.274/1990 e nº 99.355/1990;
4.
Itamar Franco (Gestão de 1992 a 1994). A composição de 1991 a
1994 foi regida pelos Decreto nº 99.274/1990 e nº 99.355/1990;
5.
Fernando Henrique Cardoso I (Gestão 1995 a 1998). A composição
de 1995 a 1998 foi regida pelo Decretos nº 1.523/1995, nº
1.542/1995 e nº 2.120/1997;
6.
Fernando Henrique Cardoso (Gestão 1999 a 2002). A composição de
1999 a 2002 pelo Decreto nº 3.942/2001;
374
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
7.
Luís Inácio Lula da Silva (Gestão 2003 a 2006) Composição 20032006 pelo Decreto nº 3.942/2001;
8.
Dilma Rousseff (Gestão 2007 a 2010). Composição 2007-2010 pelo
Decreto nº 6.792/2009;
9.
Dilma Rousseff (Gestão 2011 a 2016). A composição de 2011 a
2014 pelo Decreto nº 6.792/2009;
10.
Michel Temer (Gestão 2016 a 2018). Composição 2016-2018 pelo
Decreto nº 6.792/2009.
11.
Jair Bolsonaro (2019 a 2022). A composição de 2019 até o presente
está sendo regulada pelos Decretos nº 9.806/2019 e nº 9.939/2019.
O gráfico 2 traz a representação do Governo Federal no Conama. O Governo
Federal sempre teve supremacia representativa no colegiado ambiental. Em alguns
momentos específicos o Governo Federal teve mais voto do que em outros
momentos, contudo, sempre mantém boa margem de vantagem. Isso revela algumas
fragilidades do pacto federativo e alguns gargalos da política ambiental.
GRÁFICO 2 – Representação do Governo Federal no Conama
(Fonte: próprio autor)
375
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
O pacto federativo e as disputas constitucionais em torno das competências
comuns nunca foram devidamente trabalhados no âmbito do Conama. Em alguns
momentos, o Governo Federal demonstra algum interesse em estabelecer
expedientes administrativos para conciliar os interesses entre os entes federados.
Contudo, têm sido constantes as dúvidas inerentes a falta de definição evidente das
competências dos entes federados. Isso acarreta conflitos interfederativos. Falta
interesse político para descentralizar o Sistema Nacional do Meio Ambiente, a fim
de potencializar a agenda ambiental nos estados e municípios. Observamos é a
constante da supremacia do Governo Federal que sempre possui, proporcionalmente,
o maior segmento de votos no Conama. Proporcionalmente, dividindo o número de
conselheiros do Governo Federal pelo número de membros do Conselho, os
governos Figueiredo e Sarney tiveram a menor proporção de votos em seus períodos.
Período de transição entre o Regime Militar e a Redemocratização que talvez tenha
suscitado questionamentos sobre o pacto federativo e a necessidade de maior
autonomia aos entes federados na regulamentação das questões ambientais. A
supremacia do Governo Federal cresceu e se estabilizou. Mesmo no Governo
Bolsonaro que nomeou 10 conselheiros ao Conama, proporcionalmente, eles
representam 43,48% dos votos, proporcionalmente, uma das maiores proporções
(Gráfico 3).
GRÁFICO 3 – % de voto do Governo Federal
(Fonte: próprio autor)
376
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A emergência sanitária da Covid19 evidenciou o planejamento da agenda
ambiental no âmbito do Governo Federal. As mudanças promovidas no Conama
deram a tônica das políticas ambientais na atual gestão do Governo Federal (20192022). A tentativa de diminuir atribuições do Ministério do Meio Ambiente
relacionadas às pautas rurais e de priorizar as pautas urbanas é a principal marca
dessa gestão9. As mudanças promovidas pelo Governo Federal, em 2019, no
Conselho, podem ser consideradas “mudanças sínteses” e que se quedaram
evidenciadas durante o período de confinamento.
Apesar de o Decreto nº 9.806, de maio de 2019, que alterou o Decreto
99.274, de 6 de junho de 1990, modificando a composição e o funcionamento do
Conama, ser anterior à decretação da pandemia, as mudanças mostraram seu
potencial de desarticulação e sua ineficácia para lidar com as questões ambientais
durante o confinamento compulsório. A redução do número de assentos destinados
às entidades ambientalistas no Conama produziu desequilíbrio representativo entre
os segmentos do conselho. Houve distorção do órgão colegiado, gerando lesão à
preceitos da democracia participativa e das Políticas Públicas de Estado. A distorção
na representação do conselho evidenciou-se com as reuniões plenárias online.
O gráfico abaixo demostra o número de representantes da sociedade civil nos
períodos presidenciais. É evidente a diminuição drástica na gestão 2019-2022. As
representações são muito estáveis mesmo na transição presidencial. Observamos
longos períodos de estabilidades. As presidências de Figueiredo, Sarney, Collor e
Itamar mantêm o mesmo número de representantes da sociedade civil. O primeiro
governo FHC quase dobra o número de representantes e o segundo coloca no maior
patamar que será reproduzido nos próximos cinco períodos presidenciais. A
mudança drástica ficou a cargo do Governo Bolsonaro que baixou a representação
da Sociedade Civil para patamares muito abaixo dos governos anteriores.
9
Medida Provisória nº 870/2019 que estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da
República e dos Ministérios. Posteriormente, transformada na Lei nº 13.844/2019.
377
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
GRÁFICO 4 – Representação da Sociedade Civil
(Fonte: próprio autor)
A composição do Conselho foi afetada de modo que a representação do
segmento Sociedade Civil teve seus assentos reduzidos em mais de 80% (de 22
para 4 vagas), refletindo em perda de participação nas Câmaras Técnicas. Também
houve total esvaziamento das representações dos trabalhadores, dos povos
indígenas, das populações tradicionais e da comunidade científica, ou seja,
houve a extinção desses assentos. Passar em revista esse processo de participação é
fundamental para compreendermos os desequilíbrios na composição da atual política
ambiental do Governo Federal (gestão 2019-2022). A concepção de uma democracia
mais participativa que promova a autocomposição na execução de políticas públicas,
enquanto etapa de aperfeiçoamento do Estado democrático de direito, parece estar
sofrendo retrocessos significativos na agenda ambiental.
3 A CONVICÇÃO POLÍTICA NÃO-INFORMADA E AS
FALÁCIAS: PONDO A PROVA O DISCURSO DA
CELERIDADE PROCESSUAL
Conforme havíamos aventado na introdução, não houve considerando nem
exposição de motivos na edição do decreto nº 9.806/2019 que modificou “a
composição e o funcionamento do Conselho Nacional do Meio Ambiente –
378
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Conama” na gestão 2019-2022. Apesar da falta de justificativa oficial,
representantes do Governo Federal em redes sociais, entrevistas ou conversas de
corredor expressavam suas convicções políticas de que a redução do Conama traria,
efetivamente, mais celeridade aos atos do Conselho.
Em outras palavras, a convicção política era a de que a diminuição de
assentos no Conama traria mais efetividade às deliberações. Efetividade entendida
como mais celeridade, portanto, em última instância, haveria mais produção (ou seja,
maior número de atos do Conselho: resoluções, proposições, recomendações e
moções). O discurso político da diminuição do Colegiado vendia a promessa de que
a mudança traria mais “coerência” a política ambiental. Em síntese, para a gestão
2019-2022, a quantidade elevada de conselheiros e de segmentos no Conama
impactaria negativamente no debate técnico da política ambiental.
A fala do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante evento
de comemoração aos 30 anos da Embrapa, em Campinas (SP), no dia 30 de maio de
2019, ilustra perfeitamente essa convicção política. A reportagem do G1 traz a
seguinte depoimento do ex-ministro:
Há discussões no Conama que se arrastam por anos, portanto é
importante ter uma melhoria e, aliás, nós fizemos uma
consulta a todos aqueles que participam do órgão e foi no
sentido unânime de que era necessário aprimorar. Claro que
cada um tem a sua concepção de como aprimorar e nós
procuramos fazer isso da melhor forma possível (Porta G1,
10
30/05/2019) .
A melhoria que o ex-ministro se refere é a da reforma na composição do
Conama que o decreto nº 9.806/2019 implementara e a reedição do novo Regimento
Interno (Portaria Nº 630/2019). Ou seja, implementa a convicção política de que a
redução de assentos no Conama, com menos participação da Sociedade Civil,
traria mais efetividade às deliberações. Esse discurso político em defesa da
diminuição do colegiado pode ser representado na seguinte equação: sendo mais
fácil o consenso em grupo menor, isso traria maior “coerência” a política ambiental.
Quando colocamos essa equação a prova, ela não se sustenta.
10
Portal G1. Disponível em https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2019/05/30/conama-temdiscussoes-que-se-arrastam-por-anos-diz-ministro-do-meio-ambiente.ghtml Acesso em 25 de out. 21.
379
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Mesmo com a intenção declarada de modificar o regramento infralegal que o
ex-ministro declarou em reunião ministerial, posteriormente, publicado por decisão
do STF, o Conama na Gestão 2019-2022 teve baixo rendimento propositivo.11
Mesmo havendo algumas revogações de resoluções, em sua maioria essas resoluções
já tinham sido debatidas em seus méritos nas gestões anteriores e já estavam,
administrativamente, prontas para serem votadas. Houve pouco ou nenhum mérito
do ex-ministro em pautá-las. O único ganho do ex-ministro foi chamar a atenção
vigilante do Ministério Público Federal que resolver judicializar as deliberações do
Conama, substituindo dos debates técnico-científicos de conteúdo por disputas
judiciárias de forma.
Para viabilizar uma análise comparativa entre as resoluções Conama com a
composição do colegiado, sugerimos estabelecer uma classificação das resoluções.
Mesmo que seja uma tentativa precária, na medida em que as matérias disciplinadas
nas resoluções Conama são multitemáticas, optamos por nomear macrotemas que
minimamente organizassem os temas e permitissem compreender a dinâmica
histórica da agenda ambiental. Grosso modo, as Resoluções versam sobre os
seguintes temas:
i. Licenciamento de empreendimentos;
ii. Unidade de conservação;
iii. Gestão territorial;
iv. Água, irrigação e tecnologia hidráulica;
v. Biodiversidade;
vi. Outros.
Não é intenção apreender a conjunção de interesses diversos que edificam as
resoluções Conama. Estamos mais preocupados com os arranjos institucionais,
11
Trecho da reunião ministerial em que o ex-ministro do Meio Ambiente declarou ser necessário
modificar a legislação infralegal: “então, para isso, precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos
neste momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir
passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, do ministério da
Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora
de unir esforços para dar de baciada a simplificação, é de regulatório que nós precisamos, em todos os
aspectos”.
380
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
assim, a composição de segmentos da sociedade civil (entidades empresariais,
entidades ambientalistas, entidades civis de representação dos interesses de Estados
e Municípios) e de segmentos dos Governos Federal, Estaduais e Municipais.
Gráfico 5 - Quantidade de Resolução por Presidência (Gestão)
(Fonte: próprio autor)
A redução do número de assentos destinados às entidades ambientalistas no
Conama e a diminuição significativa dos conselheiros não investiram o Conselho de
maior capacidade deliberativa, como mostra o Gráfico 4. A produção de atos do
Conama está muito abaixo dos outros períodos. Vários fatores precisam ser
considerados, contudo, se a premissa política de que a redução do conselho levaria,
necessariamente, a maior eficácia deliberativa, isso deveria, mesmo que de modo
reduzido, ser expresso no gráfico 5. Não é o que vemos. Houve distorção do órgão
colegiado com nenhum ganho de eficiência. Talvez por isso mesmo, a diminuição
da diversidade no Conama pode ter levado a menor capacidade produtiva.
Reconfigurações e rearranjos no Conama impactaram sobremaneira a
política ambiental brasileira, sem, contudo, significar qualquer ganho
produtivo. Desmantelamento das estruturas da fiscalização, abandono da gestão
territorial de áreas protegias e pouco interesse com os compromissos climáticos são
381
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
apenas alguns exemplos dessa desestruturação. A composição do Conselho foi
afetada de modo que a representação. A democracia participativa que deve promover
maior eficácia legislativa na edição de atos do Conama, a fim de aperfeiçoar as
políticas ambientais parece não ter sido priorizada quando se implementou a
convicção política do “menos participação significa maior coerência/eficiência
política”. Tal pressuposto tem se mostrado equivocado.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tentou-se evidenciar que a política ambiental tende a ser tanto mais
efetiva quanto mais participação promover. A diversidade e o debate simétrico
entre iguais contribuem para maior produtividade normativa, na medida em que há
mais esforço na construção de convencimentos. Mesmo sendo o Conama parte de
uma estrutura político-administrativa eminentemente governamental, a participação
efetiva da sociedade civil e dos Estados e dos Municípios na gestão ambiental tornase elemento primordial na construção de consensos ambientais mais efetivos.
Concluímos que a redução do Conama foi produto de convicção política
não-informada. Não se discute aqui a boa-fé do agente político, contudo, se a
convicção era genuína ou não, pouco importa, o fato é que se trata de pressuposto
falso. Desde a constituição do Conama em 1984 até hoje, apesar de contribuição no
aprimoramento da normativa, a agenda ambiental brasileira nunca esteve no centro
das preocupações de qualquer dos presidentes que já ocuparam o Palácio do
Planalto.
Assim, rastreando as normas que modificaram a representação do Conselho,
este artigo realizou reflexões sobre a composição do Conama, especialmente, as
modificações recentes realizadas pelos Decretos nº 9.806/2019 e a Portaria MMA nº
630/2019. Apesar de não haver exposições de motivos para as modificações, a
justificativa dada, informalmente, para as mudanças foram a de que a diminuição de
assentos no Conama traria mais efetividade às deliberações. Efetividade entendida
como mais celeridade, portanto, em última instância, haveria mais produção do
Conselho. O discurso da justificativa informal dialogava com uma ideia de
racionalidade, a qual traria mais “coerência” a política ambiental. Em síntese, para a
382
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
gestão 2019-2022, a quantidade elevada de conselheiros e de segmentos no Conama
impactaria negativamente no debate técnico da Política Ambiental. Isso não foi
observado.
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384
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
COMPLEXO REGULADOR E ERA COVID:
ESTUDO PRELIMINAR
Simone Luzia Fidélis de Oliveira1
Marcela Vilarim Muniz2
Domitília Bonfim de Macêdo Mihaliuc3
Lúcia Helena Bueno da Fonseca4
RESUMO
A Central de Regulação de Internação Hospitalar é área operacional do
Complexo Regulador de Saúde do Distrito Federal e tem, dentre suas funções,
priorização, controle e gestão de acesso a leitos de Unidade de Terapia Intensiva.
Com a pandemia da COVID-19, houve crescimento exponencial na busca por esses
leitos, oriundo da demanda do sistema de atendimento nas unidades públicas e do
sistema de judicialização. Este estudo preliminar observacional, retrospectivo,
comparativo, transversal, com abordagem quantitativa de amostragem aleatória
simples, tem como objetivo comparar a oferta e demanda de leitos de Unidade de
Terapia Intensiva, suas prioridades e número de judicialização durante os meses de
março de 2019, 2020 e 2021 da Central de Regulação de Internação Hospitalar. Os
resultados evidenciam aumento gradual de oferta de leitos entre os anos avaliados,
partindo de 329 leitos regulados em 2019, e chegando a 588 leitos em 2021. As
solicitações e as judicializações tiveram aumento significativo em 2021 com os
seguintes números: 2.888 solicitações, dessas, 48,16% em prioridade 1 e 825
judicializações. Houve desequilíbrio entre oferta e demanda de leitos de Unidade de
Terapia Intensiva e um aumento significativo de judicialização. Este estudo ratifica a
relevância da atuação da regulação de acesso a leitos hospitalares conforme
preconiza os princípios do Sistema Único de Saúde, trazendo maior transparência às
atividades. Sugere-se a necessidade de diálogo maior entre a área assistencial com o
sistema judiciário, visando garantir acesso equânime e universal aos leitos de terapia
intensiva.
1
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8106-9584. Enfermeira da Secretaria de Estado de Saúde do
Distrito Federal. Mestranda em Enfermagem pela Universidade de Brasília
2
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-45681941. Enfermeira da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito
Federal. Mestre em Enfermagem pela Universidade de Brasília. Docente do Curso de Enfermagem da
Escola Superior de Ciências da Saúde
3
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1508-0475. Enfermeira da Secretaria de Estado de Saúde do
Distrito Federal. Mestre em Enfermagem pela Universidade de Brasília. Docente do Curso de
Enfermagem da Escola Superior de Ciências da Saúde
4
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1400-4024. Enfermeira da Secretaria de Estado de Saúde do
Distrito Federal. Mestre em Enfermagem pela Universidade Católica de Brasília. Docente do Curso de
Enfermagem da Escola Superior de Ciências da Saúde
385
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Palavras-chave: Regulação; Judicialização; Complexo Regulador; Unidade de
Terapia Intensiva; Serviços de Saúde
1 INTRODUÇÃO
O Brasil possui características complexas pela sua diversidade geográfica,
territorial e econômica no que diz respeito ao seu sistema de saúde5. Essas
características levam à distribuição dos recursos assistenciais de acordo com a
particularidade de cada região, demanda e oferta pública ou privada (BARROS;
AMARAL, 2017).
A Constituição Federal de 1988 garante acesso do cidadão aos serviços de
saúde, permitindo a participação paralela do serviço privado de forma
complementar6. Em 2008, surgiu a Política Nacional de Regulação, com o objetivo
de organizar ações integradas: Regulação dos Sistemas de Saúde, Regulação da
Atenção à Saúde e Regulação de Acesso à Assistência, cabendo à Regulação a ação
social de regular, fiscalizar, controlar, auditar e avaliar a produção de bens e serviços
de saúde (BARROS; AMARAL, 2017).
No Distrito Federal (DF), com a necessidade de organizar o fluxo de
pacientes para Unidade de Terapia Intensiva (UTI), criou-se, em 2006, a Central de
Regulação da Secretaria do Estado de Saúde do Distrito Federal (SES/DF),
organizando o fluxo de internação e instituindo o papel de autoridade sanitária.
Assim, a Regulação gera o acesso dos pacientes ao serviço de saúde, respeitando os
princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) (BATISTA et al., 2019).
5
O Sistema Único de Saúde é reconhecido como uma política pública complexa e a mais inclusiva e que
visa garantir o direito à saúde. Dentre seus princípios se encontram: a universalidade, que traduz o
direito a todos os cidadãos à saúde e que deve ser assegurada pelo Estado, independente de qualquer
condição; a equidade, que é traduzida pelo tratamento desigual dos cidadãos de acordo com suas
necessidades, visando atingir a igualdade; e a integralidade, que permite uma assistência como um
todo. Esses princípios são realizados por meio de ações que visam à promoção, à prevenção, ao
tratamento e à reabilitação dos cidadãos. Sua organização segue os princípios da regionalização,
hierarquização e descentralização. Tais princípios pressupõem a organização dos serviços de crescente
complexidade, delimitados por áreas geográficas conforme necessidade da população, sendo o poder e
a responsabilidade distribuídos entre os três entes federativos e tendo a participação popular
(TEIXEIRA, 2011).
6
A Constituição Federal de 1988 traz, no caput do seu art. 199, que “A assistência à saúde é livre à
iniciativa privada” e no §1º que “As instituições privadas poderão participar de forma complementar do
sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio,
tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.” (BRASIL, 1988). O que
demonstra a complementaridade da atividade privada em saúde no Sistema Único de Saúde.
386
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Com a pandemia da COVID-19, o DF precisou lidar com o risco de uma crise
no sistema de saúde provocada pelo aumento de demanda de leitos de UTI e
equipamento de ventilação mecânica. Considerando a necessidade de viabilizar o
acesso dos usuários ao leito de terapia intensiva, este estudo preliminar buscou
comparar a oferta e demanda de leitos de UTI, suas prioridades e o número de
judicialização durante os meses de março de 2019, 2020 e 2021 da Central de
Regulação do Distrito Federal. A escolha do mês de março aconteceu por ser o
marco inicial da pandemia de COVID-19 no Distrito Federal. Tal evidência é
relevante para contribuir para que a gestão identifique as dificuldades para a
efetivação do propósito do Complexo Regulador em Saúde do Distrito Federal
(CRDF) e melhorar a distribuição de recursos para minimizar o desequilíbrio entre
oferta/demanda.
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 A Política Nacional de Regulação
O sistema de saúde brasileiro apresenta desafios como subfinanciamento,
desigualdades regionais, oferta de serviços e profissionais, características de acesso e
padrões de utilização limitados. A Emenda Constitucional nº 95/2016 instituiu novo
regime fiscal aos gastos públicos por 20 anos, limitando ainda mais a ampliação da
atenção à saúde, assim como o planejamento de políticas e programas de assistência
à saúde. (VIACAVA et al., 2018).
Os desafios atingem todos os níveis de assistência e, no que tange a
assistência de maior complexidade`, não é diferente. Os leitos de UTI de maior
complexidade estão concentrados na Região Sul em uma proporção de 2:100.000
habitantes. Na Região Norte, a taxa é de 0,03:100.000 habitantes. Ressalta-se ainda
que 90% dos leitos de UTI tipo III7 encontram-se na rede privada. Constata-se que a
assistência à saúde está concentrada de acordo com as características regionais,
demanda/oferta pública e privada e complexidade de recursos (CONTE et al.,
2021).
7
A Portaria MS/GM nº 3.432/1998 estabelece critérios de classificação para as UTIs, trazendo – UTI tipo
I, II e III. A diferença entre II e III são classificadas conforme alguns critérios referentes à
especialidade do atendimento e à qualificação/capacitação do hospital (BRASIL, 1998).
387
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Frente ao exposto, com o desequilíbrio entre demanda e oferta de serviços de
saúde em todos os níveis de atenção e escassez de recursos materiais e humanos,
observa-se o aparecimento de uma desigualdade, também, nos processos de
judicialização no sistema de assistência à saúde do Brasil. Nos meses de março/2020
a agosto/2020, em hospitais privados, se concentrava sobre a cobertura de serviços e
prazos de carência. No SUS, as ações tratavam do estabelecimento de prazos de
aberturas de novos leitos, hospitais de campanha e pleito de internação. Assim, na
pandemia, a via judicial vinha afirmando os direitos individuais e o que se
recomenda é o enfrentamento coletivo (CONTE et al., 2021).
No intuito de superar esses desafios, faz-se necessária a criação de
mecanismos de controle e de regulação. Para a Organização Panamericana de Saúde
(OPAS), a regulação é tida como relação de atividades gestoras de um sistema de
saúde que proporciona à gestão pública mecanismos de controle de acessos aos
serviços, da eficiência e aplicação de recursos e tem como objetivos atender à
demanda e melhorar a eficiência e efetividade no atendimento ao usuário e a
aplicação de recursos (BARROS; AMARAL, 2017).
A Política Nacional de Regulação (PNR) do SUS foi instituída pela Portaria
nº 1.559, de 1º de agosto de 2008, e três dimensões 8: 1- Regulação sobre os Sistemas
de Saúde, segundo sua atuação nos sistemas de saúde; 2- Regulação da Atenção,
sobre a produção direta das ações e serviços de saúde; e 3- Regulação do Acesso,
sobre o acesso do usuário no sistema (BRASIL, 2008).
8
Diferentemente, cada dimensão é responsável por ações distintas que se completam. Assim temos:
Regulação de Sistemas de Saúde - controla, avalia os sistemas de saúde, regulamenta a atenção à saúde
e auditora os sistemas de gestão, sendo o responsável por elaboração de decretos, normas e portarias,
planeja, financia, fiscaliza os sistemas de saúde, controle social, ouvidoria, vigilância sanitária e
epidemiológica, regula a saúde suplementar, auditoria assistencial e/ou clínica, avalia e incorpora as
tecnologias em saúde; Regulação de Atenção à Saúde - contrata serviços de saúde, controla e avalia
serviços e suas produções assistencial, regula o acesso assistencial, sendo responsável por cadastro de
usuários, profissionais e estabelecimentos, contata serviços, credencia/habilita a prestação de serviços
de saúde, elabora e incorpora protocolos e fluxos assistenciais, supervisiona o processamento de
produção ambulatorial e hospitalar, utiliza sistemas de informação para cadastros, produção e
regulação de acesso, Programa de Pactuação Integrada (PPI), avalia analiticamente a produção, avalia:
o desempenho a gestão e a satisfação do usuário, a condição sanitária dos estabelecimentos de saúde e
indicadores de saúde; Regulação do Acesso à Assistência disponibiliza alternativa assistencial mais
adequada à necessidade do usuário no atendimento das urgências, consultas, leitos e outros quando
necessários, respondendo pela regulação médica do pré-hospitalar e hospitalar às urgências, controla
leitos disponíveis, agendas de consultas e procedimentos, estabelece referências entre unidades de
diferentes níveis de complexidade de abrangência local, intermunicipal e interestadual (BRASIL,
2008).
388
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
A PNR no Brasil apresenta desafios relacionados à eficiência e à normativa
de equidade, mas, para uma proposta mais ampliada, deve ser considerada a
formação e atividades profissionais, a acessibilidade do usuário e as tecnologias em
saúde, a deficiência de financiamento, a gestão, a regulação efetiva dos leitos
conveniados ou contratados pelo sistema público, a coordenação ineficiente dos
cuidados na atenção primária, a oferta deficiente de serviços que satisfaça às
necessidades dos usuários, a solicitação desnecessária de serviços especializado e a
fragmentação e limites do processo regulatório. Vale destacar que, além dos
elementos já citados, ressalta-se a importância da criação de protocolos adequados
para uma regulação mais humanizada e indispensável nas relações entre gestores,
prestadores de serviço, sobretudo com o usuário e suas demandas (BARROS;
AMARAL, 2017; BRASIL, 2008).
O CRDF foi inicialmente criado em resposta à Política Nacional de
Regulação em Saúde (PNRS) e à demanda social por assistência a pacientes críticos
por meio do acesso à terapia intensiva, sendo a primeira Central de Regulação de
Internação Hospitalar (CRIH) criada por meio das Portarias GAB/SES nº 41, de 30
de agosto de 2006, e nº 42, de 31 de agosto de 2006. Tais normativas traziam em seu
escopo os fluxos operacionais relacionados ao funcionamento da Central e as
competências de seus servidores. A CRIH constitui fruto de uma decisão de parceria
entre a SES/DF, o Tribunal de Contas do DF (TCDF) e o Ministério Público dos
Territórios e do DF (MPDFT) (BATISTA et al., 2019; DISTRITO FEDERAL,
2008; 2016).
A CRIH tem como objetivo principal o controle, a monitorização e a
avaliação da prestação de serviços de internação hospitalar. Os serviços devem ser
pautados nas necessidades dos usuários, que estão com a saúde comprometida em
busca do acesso de forma igualitária (PEITER; LANZONI; OLIVEIRA, 2017;
VILARINS; SHIMIZU; GUTIERREZ, 2012).
A partir de 2006, alterações foram necessárias, resultando na configuração
que estabelece a Portaria nº 1.388/2018, da Política Distrital de Regulação do acesso
aos serviços públicos de saúde no DF (DISTRITO FEDERAL, 2018). Essa
apresentação traz ações de Regulação da Atenção à Saúde e Regulação do Acesso à
389
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Assistência, de forma integrada e perpassando os diferentes níveis de atenção à
saúde, colocando a Regulação do Acesso à Assistência como responsabilidade do
CRDF e suas unidades operacionais, mostrando a regulação médica como autoridade
sanitária e sua ação baseada e sustentada em protocolos, classificação de risco e
demais critérios de priorização definidos e pactuados entre os gestores envolvidos,
visando ao acesso à assistência, controle da oferta de serviços, avaliação da
assistência à saúde, bem como o gerenciamento e a priorização do acesso e dos
fluxos assistenciais (DISTRITO FEDERAL, 2018).
A parte operacional do CRDF é executada pela Central de Regulação (CR).
Neste sentido, a Central de Regulação de Internação Hospitalar (CERIH) 9 tem a
responsabilidade de gerir e monitorar a ocupação de leitos gerais e de UTI adultos,
pediátricos e neonatais, mediante a aplicação dos critérios de classificação de risco,
priorização de atendimentos e parâmetros de encaminhamentos.
Quanto à caracterização do processo de trabalho, sabe-se que a CERIH
oficialmente tem ciência de que um paciente tem necessidade de UTI quando ele é
inserido pela equipe assistencial em uma fila única que aparece no serviço
informacional TRAKCARE10. Sabe-se, também, que esse sistema tem abrangência
local específica para a SES/DF e não se interliga com outros sistemas que compõem
a rede de assistência do SUS, como o do Hospital Universitário de Brasília (HUB) e
do Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do Distrito Federal (IGESDF), bem
como com os serviços do entorno, o que indica uma fragilidade para análise do
quadro clínico do paciente. Cabe ressaltar que o HUB e o IGESDF possuem acesso
9
Os principais autores operacionais são os médicos reguladores e os enfermeiros controladores. Àqueles
cabem a análise/reanálise da solicitação e avaliação/reavaliação das necessidades dos pacientes
inseridos na lista única, visando à alocação do paciente mais crítico e com mais chance de ser
beneficiado pela assistência em terapia intensiva, finalizando com a autorização para internação. Este
papel se desenvolve baseado em critérios de classificação de risco pré-definidos pela SES/DF
(DISTRITO FEDERAL, 2015a). Aos enfermeiros controladores cabe a monitorização e controles dos
leitos sob regulação desde a ocupação, perpassando pela admissão e alta, além de relatar as questões de
bloqueio e seus motivos. Tal serviço auxilia na produção de indicadores, bem como na melhoria do
acesso e qualidade da assistência em terapia intensiva (DISTRITO FEDERAL, 2015a).
10
A Portaria nº 199/2015 determina como fluxo operacional que os órgãos solicitantes que assistem
diretamente ao paciente deverão requerer para a CERIH, por meio de preenchimento de formulário
informacional de solicitação, leito de UTI de todos os seus pacientes. Esse formulário contém a
qualificação do paciente, bem como todos os dados clínicos pertinentes para a avaliação do médico
regulador, desde as evoluções dos profissionais que o assistente até acesso aos exames solicitados e
pendentes.
390
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
para inserção do paciente na fila única da CERIH, mas não há compartilhamento de
informações sobre o quadro clínico.
Após a inserção na fila única, o médico regulador avalia por turno todos os
pacientes, traçando
uma
prioridade
conforme
os protocolos previamente
estabelecidos entre os gestores e as unidades assistenciais. Após traçar o perfil de
necessidade do paciente e sua priorização, o médico regulador avalia o perfil de vaga
necessária e, estando esta disponível, direciona esse paciente para admissão naquele
referido leito, passando-se a fase de transferência e ocupação do leito.
No que tange à priorização11 (classificação de risco) do usuário, esta se
embasa inicialmente na Portaria nº 200/2015, cujos dois critérios máximos se
destacam: o quadro clínico do paciente e o seu benefício com a assistência em
terapia intensiva. Os pacientes passam a ser classificados em: Prioridade 1,
Prioridade 2, Prioridade 3, Prioridade 4A e Prioridade 4B, sendo esses últimos os
criticamente enfermos, ou que já estão em melhora/remissão da patologia, ou não se
beneficiam com internação em UTI por não existir evidências de melhora.
Paralelamente à avaliação do médico regulador, a enfermeira controladora faz
a busca de leitos disponíveis, via telefônica, a todos os hospitais da rede SES/DF e
contratados, visando à localização de leitos disponíveis, bem como para os demais
hospitais locais na busca de vagas que possam auxiliar no processo.
11
Portaria no 200/2015, Anexo I - “CRITÉRIOS DE PRIORIZAÇÃO: PRIORIDADE 01 – Inclui os
pacientes gravemente doentes, instáveis, com chances significativas de recuperação, os quais
necessitam de monitorização e tratamento intensivo que não podem ser prestados fora da UTI. Esses
tratamentos compreendem: suporte ventilatório invasivo e não invasivo, infusão contínua de drogas
vasoativas e/ou intervenções agudas. Nesses pacientes, não há limites em se iniciar ou introduzir a
terapêutica necessária. PRIORIDADE 02 – Inclui pacientes sem instabilidade, mas que necessitam de
monitorização intensiva pela possibilidade de descompensação e/ou potencial necessidade de
intervenção imediata. Não existe limite terapêutico geralmente estabelecido para estes pacientes.
PRIORIDADE 03 – Inclui pacientes instáveis, com baixa probabilidade de recuperação, seja pela
doença de base e/ou natureza da sua doença aguda e/ou presença de comorbidades. Esses pacientes
podem ter limites e/ou esforços terapêuticos estabelecidos como a não intubação ou a não-reanimação
cardiopulmonar. PRIORIDADE 4: Inclui pacientes que apresentam pouco ou nenhum benefício com a
internação em UTI. Em regra, o tratamento intensivo não é recomendado para esses pacientes e, por
isso, deverão ser retirados da lista de espera por UTI pela CRIH. Podem ser classificados como:
PRIORIDADE 4A – Pacientes com pouco ou nenhum benefício da admissão em UTI, devido à
condição clínica não justificar internação em terapia intensiva. São aqueles pacientes que apresentam
baixo risco de descompensação ou baixa necessidade de intervenção. PRIORIDADE 4B: Pacientes em
terminalidade ou com doença irreversível diante da morte iminente. São aqueles que a condição clínica
não justifica a necessidade de UTI devido à ausência de perspectiva terapêutica.” (DISTRITO
FEDERAL, 2015b).
391
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Cabe lembrar que a CERIH não cria vaga em leito de UTI, simplesmente
realiza a gestão de leitos previamente disponibilizados para a regulação. Essa gestão
constitui no mapeamento do leito disponível, confirmação do cumprimento de um
dos papéis da regulação quando da admissão do paciente, do monitoramento da alta
e da identificação de leitos indisponíveis, conhecido como bloqueados em virtude de
problemas pontuais ou mais complexos, tais como manutenção, falta de recursos
materiais (equipamentos e insumos), ou indisponibilidade de recursos humanos
(licenças médicas).
2.2 A pandemia da covid-19 e as estratégias dos sistemas de saúde
A pandemia do SARS-CoV-2 colocou à prova os serviços de saúde do mundo
inteiro, e no Brasil não foi diferente. O SUS esteve à prova no planejamento,
organização, financiamento e prestação de assistência. Com o momento pandêmico,
as desigualdades geográficas e a distribuição dos recursos para acesso ficaram mais
evidentes (CONTE et al., 2021).
A pandemia da COVID-1912 espalhou-se tão rapidamente que nem mesmo os
melhores especialistas do mundo foram capazes de prever a pior crise global desde a
gripe espanhola, em 1918. O evento teve um desfecho dramático para os sistemas de
saúde, levou a níveis elevados de tensão emocional e uma alta demanda de recursos.
Dessa forma, o desafio foi a gestão dos serviços de saúde, que precisaram se
reorganizar para atender ao elevado número de pacientes graves, o que nunca antes
havia sido feito (SANCHEZ-ÚBEDA et al., 2021).
A principal estratégia da Organização Mundial da Saúde (OMS) ao
enfrentamento da COVID-19 foi o distanciamento social e o controle
epidemiológico, além do retorno gradual das atividades econômicas. Alguns direitos
individuais acabaram por ser restringidos em nome do coletivo.
12
No final de março de 2020, foram notificados 450.611 casos na Europa; na Espanha, a situação foi
expressivamente mais grave, com 192,22%, seguida pela Itália 122,2%, Bélgica 103%, França 56,6% e
Reino Unido 40%. A Itália teve a maior taxa de mortalidade (11,7%), seguida da Espanha, com 8,9%.
Com o aumento dos casos, foi necessário o rápido aumento de leitos hospitalares de internação e de
UTIs para uma doença de evolução potencialmente fatal. De março a abril de 2020, houve um aumento
de 26,4%, passando de 18.692 para 23.623 casos em 15 dias. A Inglaterra reorganizou seus leitos de
forma a separar pacientes de COVID-19 dos não COVID-19. Essas informações são relativas aos 18
dias do mês de março de 2020 a 31 de maio de 2020 (SANCHEZ-ÚBEDA et al., 2021).
392
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Na Espanha, o aumento de pacientes internados em leitos não UTI nos
últimos 13 dias do mês de março de 2020 foi de 200%, passando de 4.578 para
13.725 pacientes internados. Durante o mesmo período, as internações em leitos de
UTI aumentaram 155%, de 590 para 1.502 pacientes. Durante o pico pandêmico,
aumentou o tempo de internação em salas de emergências e corredores hospitalares.
O aumento de leitos trouxe o aumento de profissionais especializados, a
transformação de salas cirúrgicas e leitos de semi-intensiva em leitos de UTI. Mais
tarde, hotéis foram transformados em leitos e a inauguração de um hospital de
campanha para pacientes não críticos. Esse hospital inicialmente começou com 185
leitos e atingiu seu máximo em 3 de abril desse mesmo ano, com 1.150 leitos não
UTI e 10 leitos de UTI13 (SANCHEZ-ÚBEDA et al., 2021).
Nos Estados Unidos, o pico pandêmico ocorreu na primeira quinzena de abril
de 2020 em cerca de um terço dos estados, incluindo Nova York que, em contraste
com outros estados, experimentou um aumento gradual. Houve uma grande lacuna
entre as necessidades de leitos hospitalares e a capacidade disponível,
principalmente leitos de UTI, com uma falta ainda maior de ventiladores mecânicos.
Com o atraso na implementação do distanciamento social por parte do governo,
aumentou ainda mais a falta de recursos, o que os sistemas de saúde dos estados
tiveram que administrar (ZHAO et al., 2020).
A OMS declarou emergência de saúde pública em janeiro de 2020. O
primeiro caso no Brasil ocorreu em fevereiro desse mesmo ano, mas somente em
março o Ministério da Saúde autorizou a habilitação de leitos de UTI adulto e
pediátrico para atendimento exclusivo de COVID-19, o que ocorreu apenas em abril,
quando os índices de casos eram de 85.000 e 6.000 mortes e as taxas de ocupação de
UTI estavam acima de 90% (CONTE et al., 2021).
No Brasil, a flexibilização do isolamento estava no índice de leitos de
internação e de UTI disponíveis. Com a pandemia, o SUS precisou de forma
imediata de expandir leitos, adquirir equipamentos e insumos em grande quantidade.
13
Na Espanha, a capacidade de ampliação de leitos não UTI e de UTI fez operaram com dificuldade na
aquisição de insumos de equipamentos individuais, reagentes de laboratório, pessoal especializado e
equipamentos médicos, redução de internações de pacientes com outros tipos de comorbidades,
principalmente nas UTIs. A flexibilidade de leitos foi o fator preponderante para o gerenciamento
eficiente dos leitos hospitalares (SANCHEZ-ÚBEDA et al., 2021).
393
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Assim, evidenciaram-se as desigualdades regionais, e a articulação público-privada
foi uma possibilidade e as potencialidades técnicas e políticas (CONTE et al., 2021).
A expansão de leitos ocorreu de forma lenta e desigual: em abril foram
habilitados 2.409 leitos e, em junho, a oferta totalizou 15.662 leitos públicos e
hospitais de campanha. O maior número foi para a Região Sudoeste, 11,1:100.000
habitantes, na Região Norte, 7,3:100.000 habitantes. A Agência Nacional de Saúde
(ANS) informou que a ocupação de leitos no serviço privado esteve em torno de
45% em abril e 61% em maio, sendo reduzidos em meses subsequentes, enquanto o
SUS registrava índices acima dos 90% (CONTE et al., 2021).
Alguns pontos mostram a falta de acesso ao leito do SUS durante a pandemia
da COVID-19, como a demora na organização para o enfrentamento da pandemia,
os leitos de hospitais de campanha que nunca saíram do papel, o atraso na liberação
de recursos financeiros, a falta de integração dos leitos públicos e privados e a fila
única nas Centrais de Regulação para o atendimento dos casos graves de COVID-19
(CONTE et al., 2021).
Inicialmente, a unificação da fila seria controlada pelo Ministério da Saúde e
articulado com estados e municípios e prestadores de serviços e pelas centrais de
regulação de centrais únicas de vaga controladas pelos estados. O Senado Federal
apoiou a unificação com a aprovação da Lei nº 2.324/2020, que permitia ao poder
público o uso compulsório dos leitos de hospitais privados para internação de
pacientes com COVID-19. Não chegou a acontecer por mobilização dos órgãos de
controle dos serviços privados, que alegaram a ausência de gestão por parte do
governo para controle da fila única, a desorganização da rede privada, a
possibilidade de disputa judicial e o descrédito dos planos de saúde. Assim, restou ao
Ministério da Saúde a opção de requisição de leitos na rede privada. Outro impasse
foi o valor da diária de US$ 1,600.00 (mil e seiscentos dólares) considerado
insuficiente para a cobertura dos gastos com o paciente com COVID-19 (CONTE et
al., 2021).
Então, as associações dos hospitais privados e dos planos de saúde, para
evitar a fila única, e a requisição de leitos pelo setor público, propuseram a
composição de leitos desativados nos hospitais públicos, a construção de hospitais
394
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
de campanha, a testagem da população e a contratação de leitos. Assim, a letargia do
governo e a não coordenação do governo brasileiro privilegiaram o atendimento
segmentado. Desse modo, a pandemia mostra as fragilidades de um sistema de saúde
falido e uma imagem positiva do setor privado após as doações, que não modificou a
prestação de serviço de saúde no momento da pandemia (CONTE et al., 2021).
Em uma rápida projeção de casos, os hospitais precisaram aplicar estratégias
imediatas para melhorar a capacidade de atendimento, incluindo a suspensão de
cirurgias eletivas, a reconfiguração de profissionais médicos e leitos de UTI em
todos sistema,
buscando
equipamentos de
proteção individual
e
outros
equipamentos, leitos adicionais, reaproveitamento de salas de pré e pós-recuperação,
uso de equipamentos de anestesia, como ventiladores, e áreas de procedimentos,
aumentando a capacidade em 65% (MURRAY, 2020).
Outra demanda foi encontrar recursos humanos adicionais, utilizando como
estratégias o aumento do número de horas extras, o treinamento de profissionais, que
pequenas clínicas e até mesmo a comunidade e voluntários fizessem atendimento aos
pacientes menos graves, o direcionamento de cientistas e professores para o
atendimento clínico durante o surto de COVID-19; entre os profissionais, o mais
difícil foram os enfermeiros de UTI. Outros problemas foram os suprimentos, a
expansão de infraestrutura e a tecnologia da informação para registros médicos. Os
custos financeiros foram diminuídos à medida que eram suspensos os procedimentos
eletivos, como as cirurgias (MURRAY, 2020).
Uma estratégia utilizada pela SES/DF foi o Plano de Mobilização de Leitos
Covid-19 do Distrito Federal, que tinha como objetivo a transformação de alguns
leitos existentes para atendimento de pacientes exclusivamente de COVID-19,
criação de unidades de cuidados intermediários e alocação de leitos contratados na
rede privada, segundo a necessidade, conforme indicadores epidemiológicos
(intervalo mínimos de 14 dias entre uma fase Média Móvel de Óbitos). O fluxo de
retorno também foi montado em relação ao retorno desse paciente da UTI, sendo
pensado os leitos de retaguarda nas emergências e enfermarias (DISTRITO
FEDERAL, 2020).
395
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
2.3 O fenômeno da judicialização
Neste cenário de excesso de demandas, escassez de recursos, dificuldades de
comunicação entre as autoridades, restrição de direitos, emoções negativas oriunda
das dificuldades da compreensão e choque de informações sobre a pandemia e suas
consequências, a judicialização teve solo fértil para uma crescente, o que não
significava resolubilidade.
A judicialização se caracteriza pelo fato de os cidadãos apelarem ao Poder
Judiciário a fim de obter acesso aos serviços de saúde, tais como os leitos de UTI
(CARVALHO; DAVID, 2013). Respaldados na Constituição Federal, muitos
indivíduos recorrem ao terceiro Poder para ter resolutividade de direitos assegurados
e garantindo, assim, ao cidadão, através da decisão jurídica, o que influenciou nas
decisões coletivas, parecendo ser uma decisão mais política do que essencialmente
jurídica, contrapondo direito individual sobre o direito coletivo.
A literatura realiza uma crítica no que tange à sobreposição do direito
individual sobre o direito coletivo e ao apontar que a análise jurídica, apenas
centrada no manejo dos dispositivos legais, com suporte técnico centrado no
relatório ou prescrição médica e na avaliação orçamentária, sem considerar o
esgotamento das possibilidades existentes no SUS, parece não mais prover o acesso
aos direitos perquiridos em seara judicial (NOGUEIRA; CARVALHO; DADALTO,
2017).
Em complemento, é válido ratificar o quanto é onerosa a tramitação de uma
demanda judicial. No entanto, ainda não existe uma ferramenta governamental capaz
de dimensionar o total de recursos orçamentários executados desde a abertura da
demanda até o seu trânsito em julgado. Deve-se atentar, também, ao fato de que a
judicialização gera custos inesperados e altera a alocação de recursos futuros da
saúde, tendo em vista que a maioria das demandas julgadas procedentes iniciam a
geração de custos neste momento, e em alguns casos tais custos extrapolam o
exercício fiscal em andamento (LAFFIN; BONACIM, 2017).
Na tentativa de diminuir a judicialização, algumas estratégias já foram
implementadas, dentre elas: apoio técnico ao Judiciário; comitês estaduais de saúde;
396
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
organização da assistência; sistemas informatizados de informação; processo
administrativo diferenciado; e resolução alternativa de controvérsias. No entanto, o
uso destas estratégias ainda se encontram restritas e pouco efetivas (YAMAUTI et
al., 2020).
2.4 Métodos e técnicas
O presente estudo é observacional, descritivo, transversal, retrospectivo, com
abordagem quantitativa, e foi realizado com dados públicos, adultos e pediátricos,
emitidos pela CERIH por meio do Protocolo Ouvidoria DF no 098102/2021 e do
Processo SEI nº 00060-00355694/2021-39 em cumprimento à Lei Federal nº
12.527/201114, conhecida como Lei de Acesso à Informação Pública, que permite o
direito à informação e publicidade aos dados públicos como regra. Sendo assim, não
foi necessária a submissão para avaliação do Conselho de Ética.
Os dados obtidos para este estudo foram coletados pela gerência da
CERIH/CRDF, de forma informacional e manual, o que é fundamental para a
produção de indicadores confiáveis. No entanto, alguns dados importantes ainda não
possuem uma coleta plena, como é o exemplo do número de solicitações gerais por
mês.
No primeiro momento, foi realizado um levantamento bibliográfico e
legislativo do tema e a caracterização do funcionamento do processo de trabalho da
regulação, conforme registro em portarias e normas técnicas, documentos públicos
emitidos pela SES/DF. Foram coletados dados sobre: quantitativo de leitos regulados
públicos e privados, número de solicitações de leitos de UTI, número de casos
judicialização, prioridade emitida de março dos anos de 2019, 2020 e 2021. Para
tabulação dos dados, foi realizada planilha de Excel e, a partir dela, a análise das
variáveis.
Para a análise do quantitativo das solicitações judicializadas no mês de março
de cada ano, foi levado em consideração o total de solicitações sob demanda judicial,
independentemente da completude dos dados no registro manual da CERIH.
14
A Lei de Acesso à Informação Pública obriga os órgãos públicos a emitirem informações e dados que
sejam relevantes para a produção de conhecimento, respeitados os dados que são considerados de
sigilo.
397
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Entretanto, quando a análise envolveu o registro das prioridades e suas relações,
foram excluídas as inserções em que a prioridade não estava devidamente
preenchida. Para essa última análise, a amostra foi composta por 946 solicitações,
sendo 100 delas em 2019, 95 em 2020 e 751 em 2021. Foram excluídas 94
solicitações.
Os desfechos analisados foram classificados como: óbito, admitidos, retirada
da lista e sem desfecho. Os classificados como óbito são os pacientes que faleceram
antes que fossem admitidos em leito de terapia intensiva. Os admitidos foram os que
conseguiram ser alocados em leitos intensivos. São considerados retirados da lista,
os pacientes que obtiveram melhora antes da disponibilidade do leito ou que
conseguiram leito intensivo por meios próprios ou por outras vias. E, finalmente, os
classificados como sem desfecho, cujos dados não estavam corretamente registrados
e, portanto, impossível saber o desfecho final.
2.5 Resultados
Inicialmente, foram analisadas as quantidades de leitos de UTI que estavam
disponíveis nos meses de março dos anos destacados, conforme mostra o Gráfico 1.
Gráfico 1 - Quantidade de leitos de UTI regulados disponíveis, públicos e privados, no mês
de março dos anos 2019, 2020 e 2021
Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021.
O Gráfico 2 mostra que a proporção de leitos regulados disponíveis aumentou
com o passar dos anos, passando de 329 leitos em 2019, para 349 em 2020, e 588 em
398
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
2021. No entanto, quanto ao financiamento, os resultados mostram que, em 2019, do
total de leitos regulados, 82,37% tinham financiamento do SUS, e que este índice
reduz para 47,85% em 2020, e para 30,78% em 2021, onde, gradativamente,
aumentou a dependência do sistema privado para suporte dos pacientes do SUS.
Gráfico 2 - Quantidade de solicitações de leitos de UTI que foram judicializadas, por ano
Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021.
Quando se observa o quantitativo de solicitações por leito de UTI que foram
judicializadas, tem-se que 79% ocorreram em 2021, um aumento de 793,2% nos
mandados judiciais entre os anos de 2020 e 2021. Quando se compara os anos de
2019 e 2021, o aumento das solicitações é de 736,6%.
Após a análise geral da quantidade de solicitações judicializadas, seguiu-se
para a análise levando em consideração os desfechos das mesmas, tal como mostra a
Tabela 1.
Tabela 1 - Quantidade de solicitações judicializadas X desfecho, por ano
Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021.
399
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Embora a quantidade de solicitações tenha aumentado substancialmente no
ano de 2021, esse foi o ano com pior desempenho com relação à resolutividade, pois
mostra uma maior porcentagem de óbitos e menor admissão, com relação aos outros
anos analisados. Observa-se, ainda, que a porcentagem de pacientes retirados da lista
foi menor que dos anos anteriores.
Posteriormente, foi investigada especificamente cada prioridade com relação
ao desfecho a cada ano analisado, de forma a apurar melhor os dados, para melhor
comparação ao que determina a Portaria no 200/2015. Sendo assim, a Tabela 2 traz
os dados referentes às inserções com prioridade 1.
Tabela 2 - Desfechos dos classificados como prioridade 1, por ano
Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021.
Ao analisar a tabela da prioridade 1, observa-se a mesma tendência mostrada
na tabela anterior, na qual se tem um aumento da judicialização no ano de 2021, que
não se traduziu em melhor resolutividade.
A análise dos dados referentes à prioridade 2 são mostradas na Tabela 3.
Tabela 3 - Desfechos dos classificados como prioridade 2, por ano
Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021.
Das solicitações judicializadas de prioridade 2, observa-se que houve uma
queda de aproximadamente 50% nos pacientes admitidos na comparação entre os
anos de 2019 e 2021.
A Tabela 4 mostra a análise dos dados referentes à prioridade 3.
400
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Tabela 4 - Desfechos dos classificados como prioridade 3, por ano
Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021.
Quanto à prioridade 3, observa-se que a porcentagem dos admitidos foi
decrescente ao longo dos anos, cuja menor porcentagem aconteceu no ano de 2021.
Nota-se, adicionalmente, que a porcentagem de óbitos dos classificados como
prioridade 3 é bastante expressiva.
A Tabela 5 mostra a análise dos dados referentes à prioridade 4A.
Tabela 5 - Desfechos dos classificados como prioridade 4A, por ano
Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021.
Nota-se que a porcentagem de admissão em leitos intensivos dos pacientes
classificados como 4A é bem inexpressiva, ao mesmo tempo em que se observa uma
maior porcentagem de retiradas da lista.
A Tabela 6 mostra a análise dos dados referentes à prioridade classificada
como 4B.
Tabela 6 - Desfechos dos classificados como prioridade 4B, por ano
Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021.
Ao se analisar a Tabela 6, é notória a baixa quantidade de judicialização,
tendo metade dos pacientes evoluído para óbito em todos os anos destacados, assim
401
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
como a porcentagem de retirados da lista. Apenas no ano de 2020 houve admissão
de paciente com o perfil de classificação como 4B.
2.6 Discussão
Antes de uma avaliação direta sobre os resultados, alguns eventos ocorreram
nesses três anos de estudo, os quais podem explicar os resultados e merecem
menção. O primeiro deles constitui a criação do IGESDF, que consiste em serviço
social autônomo (SSA) criado pela Lei nº 6.270/2019 para ampliar o modelo do
Instituto Hospital de Base (IHBDF), sendo responsável pela gestão do Hospital de
Base e do Hospital Regional de Santa Maria, além das unidades de pronto
atendimento (UPAs) do DF. Cabe ressaltar que a partir desse fato os leitos de UTI
regulados desses hospitais foram considerados leitos contratados e não do SUS
(Distrito Federal, 2019).
Destaca-se que, em março de 2020, iniciavam-se os preparativos para a
primeira onda da COVID-19 que ainda não havia chegado no DF. Em março de
2021, iniciavam-se os preparativos para a segunda onda da COVID-19, ou seja,
haviam sido feitos esforços para a ampliação de leitos devido à primeira onda e já se
esperava uma necessidade maior de leitos.
Os resultados mostram que, conforme apontado mundialmente, o DF também
aumentou substancialmente o número de leitos, tendo uma tendência em um
aumento mais expressivo de leitos privados que leitos do SUS. Isto pode estar
relacionado à escassez de leitos anterior à pandemia e às dificuldades já existentes
em implementar novos leitos no SUS.
No entanto, pelo número de óbitos apresentados nos três anos estudados, o
quantitativo de leitos parece não ter sido suficientemente resolutivo. O que se pode
inferir que a necessidade de investimentos no SUS merece ser gradual, conforme
aponta literatura.
Após os acontecimentos históricos, o que mais chama a atenção é o número
expressivo de judicialização em 2021, se comparado com os demais anos. Observase um número relevante da participação do Poder Judicial em demandas individuais
visando à garantia do direito constitucional à saúde. Estudos corroboram com os
402
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
resultados apresentados no ano de 2021, apontando o aumento do número de
demandas judiciais e, principalmente individuais em detrimento de coletivas, que
poderiam atingir o problema macro, minimizando/evitando as necessidades
individuais não atendidas (DINIZ; MACHADO; PENALVA, 2014; VARGAS et al.,
2018).
Vargas et al. (2018), em seu estudo, apontam três categorias que fragilizaram
o papel de gestão de recursos humanos com o advento da regulação, sendo
classificadas por “deficiência de estrutura física e recursos humanos”, o que é
evidenciado pela quantidade de leitos disponíveis nos diversos anos estudados, e
com a redução do quantitativo de leitos disponibilizados com financiamento do SUS.
Em seguida da “falta de políticas claras e critérios para internação de paciente
na UTI”, o que é revelado pelo número de judicialização de prioridade 4A e 4B que
não possuem evidência de melhoras com a internação em UTI e que deveriam ser
encaminhados para unidades intermediárias ainda escassas na SES/DF, no entanto,
continuam a ser inseridos na lista. Neste momento, aparece a fragilidade da dinâmica
da linha de frente que, por receio do processo individual contra si, emite relatório
para a judicialização e os operadores do direito que se apegam ao relatório médico e
aos dispositivos legais existentes sem uma avaliação do contexto geral. A ausência
uma avaliação multiprofissional ou um apoio do Núcleo de Assistência Técnica dos
Tribunais pode contribuir para uma decisão sem imparcialidade (DINIZ;
MACHADO; PENALVA,
2014; FREITAS; FONSECA; QUELUZ
2020;
NOGUEIRA; CARVALHO; DADALTO, 2017; VARGAS et al., 2018).
Ademais, Vargas et al. (2018) apontam a “Dispensa inadequada da UTI”, na
qual se argumenta que os pacientes internados na UTI por ordem judicial podem não
ser os beneficiados com esse tipo de assistência, e que os profissionais se sentem
obrigados ao cumprimento de ordens judiciais de tal natureza, o que dificulta as
possibilidades de os profissionais agirem de acordo com seus princípios éticos e de
equidade. Ou seja, a aplicação da lei pode resultar em consequências não
intencionais e até prejudiciais à saúde de alguns pacientes, como a transferência de
um paciente mais grave de uma UTI para internar um paciente menos grave
(VARGAS et al., 2018).
403
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Por fim, observa-se que nesse excesso de demanda especialmente
apresentado na Era Covid, uma era marcada de restrições de direitos individuais,
embora necessária a judicialização, nem sempre é eficaz, conforme demonstram os
dados de óbitos e retirados da lista, e corroborando com essa ideia apontada estudo
realizado com demandas no Supremo Tribunal Federal (STF) (BIEHL; PRATES;
AMON, 2021).
Os resultados mostram que, em sua maioria, as ordens judiciais são
cumpridas de forma plena. No entanto, o registro de óbitos acima de 20% merece
atenção e pode estar relacionado à gravidade da patologia na Era Covid ou, ainda,
pelo uso de leitos com pacientes de prioridade 3 e 4 que não possuem tanto benefício
com leito de UTI, mas que foram contemplados com ordem judicial.
Nota-se que a prioridade 3 possui o maior índice de óbito se comparado às
outras prioridades, independente do ano. Cabe ressaltar que, conforme expresso na
legislação, os pacientes com essa classificação são instáveis e possuem baixa
probabilidade de recuperação e podem ter limites e/ou esforços terapêuticos
preestabelecidos que possam justificar os resultados.
Por fim, quanto à prioridade 4, esses pacientes apresentam pouco ou nenhum
benefício com a internação em UTI e, em regra, o tratamento intensivo não é
recomendado, sendo sugerido, inclusive, que sejam retirados da lista de espera.
Talvez esses pacientes fossem mais bem beneficiados com atendimento em unidade
de terapia semi-intensiva.
O cumprimento de ordens judiciais com pacientes de prioridade 4 dificulta o
atendimento de pacientes em prioridade 1, que realmente são os pacientes com perfil
ideal para UTI.
Percebe-se, ainda, que apesar de todos os problemas apresentados a
existência da CERIH se faz fundamental para um melhor gerenciamento e acesso
dos leitos de UTI e que seu fortalecimento se faz necessário em todos os níveis de
atenção à saúde visando cumprir os preceitos do SUS (FIGUEREDO; ANGULOTUESTA; HARTZ; 2019).
404
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
2.7 Limitações
Uma das limitações apresentadas foi a falta de dados sobre o número de
solicitações totais para internação em leito de UTI, ou seja, o sistema informacional
existente não era capaz de informar quantos pacientes foram inseridos no mês na
lista única. Outra limitação consiste na dificuldade de comunicação entre os diversos
sistemas informacionais que suportam o registro, o prontuário eletrônico dos
pacientes, tendo em vista que existem sistemas diferentes que não se interligam, o
que inviabilizou a análise de todo o quadro clínico do usuário, bem como os dados
administrativos de registro de judicialização. Sendo assim, o estudo se deteve aos
dados de judicialização de registro manual da CERIH.
2.8 Valor e originalidade do trabalho
Consiste em trabalho inovador e inicial que visa demonstrar a viabilidade e
importância de realizar um estudo de maior magnitude com a intenção de relacionar
demanda, leitos a UTI e os processos de judicialização durante o evento da
pandemia da COVID-19, almejando a identificação de eventuais problemas e na
previsão das soluções para minimizar os danos. Ademais, pode auxiliar na melhoria
da formulação de indicadores e na alocação/realocação de recursos na pós-pandemia.
No que tange à judicialização, pode-se evidenciar a necessidade de um
diálogo mais aproximado entre justiça e saúde, assim como identificar onde nesses
setores pode haver melhora para minimizar/evitar a judicialização e propiciar a
resolubilidade.
2.9 Considerações finais
A regulação em saúde é ferramenta de gestão que viabiliza a assistência,
garantindo eficiência, eficácia, efetividade e otimização do melhor recurso. Amplia
os princípios do SUS, buscando a universalidade e equidade na prestação de
serviços.
O evento da pandemia da COVID-19 mostra a fragilidade do SUS e sua
dependência do setor privado para assistir a população do DF. Para o atendimento da
população, foram necessárias a instalação de hospitais de Campanha, a criação de
405
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
leitos e a reativação de leitos não utilizados, além da contratação massiva de leitos
da rede privada.
Com todas as estratégias realizadas para o atendimento da população, poderse-ia esperar que essa estrutura permanecesse, mas se sabe que os hospitais de
campanhas são provisórios e que a contratação dos leitos nas instituições privadas
também é temporária. Resta, então, ao setor público fortalecer o Sistema de
Regulação de Leitos, tornando a fila única uma modalidade de acesso aos leitos de
UTI, trazendo justiça a todos conforme o preconizado pelo SUS.
Este trabalho mostra as fragilidades do sistema de saúde do DF, visto o
aumento dos processos de judicialização e a necessidade de o usuário recorrer ao
terceiro Poder para buscar seu direito constitucional de saúde. Além disso, apoia os
gestores na ampliação e fortalecimento do processo de regulação de forma intensa,
permitindo que esse processo possa levar à tomada de decisões nos aspectos que
envolvem a produção do cuidado, uma vez que é por meio da regulação do acesso
que se torna possível conhecer as ofertas e as demandas em saúde.
É notória a necessidade de um diálogo entre Executivo e Judiciário, no intuito
de identificar as fragilidades de cada Poder, o que pode ser aprimorado, e de buscar
soluções conjuntas aa fim de aumentar a resolubilidade de demanda do usuário,
tendo em vista que essa é a ideia máxima de cada Poder. Tal proposta perpassa pela
autoanálise de dos Poderes e criação de estratégias internas e conjuntas.
Cabe ressaltar que se faz necessária a busca por soluções mais eficientes que
repassem os mecanismos extrajudiciais antes do extremo da judicialização. E isto vai
ao encontro ao desejo do Poder Judiciário, que tem estimulado a ampliação do
emprego de ferramentas denominadas de Equivalentes Jurisdicionais, tais como a
conciliação, que buscam a adoção de estratégias não jurisdicionais à solução de
conflitos e, assim, consequentemente, a resolução consensual entre as partes e um
atendimento mais imediato do usuário. O que é reforçado pela publicação da Lei nº
13.140/2015, que dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução
de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração
pública (BRASIL, 2015).
406
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Ainda que não prospere a negociação e ocorra um consequente conflito, se
faz pertinente não apenas uma avaliação do arcabouço jurídico existente, mas uma
avaliação técnica e financeira mais precisa sobre a demanda para que se possa
concretizar a justiça social.
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A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
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410
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
PANDEMIA DE COVID-19 E A
VULNERABILIDADE DOS CATADORES
DE MATERIAIS RECICLÁVEIS NO
BRASIL
Joaquim Pedro Ribeiro Vasconcelos1
Bruna Carvalho Barros Rosa Nobre2
Izabel Cristina Bruno Bacellar Zaneti3
Sílvia Maria Ferreira Guimarães4
RESUMO
Esta pesquisa revela a situação complexa dos catadores de materiais
recicláveis diante da pandemia de Covid-19 no âmbito nacional e distrital. A
metodologia de abordagem qualitativa, constituiu-se de uma pesquisa documental
que lidou com informações secundárias disponíveis nas mídias digitais (sites, blogs e
redes sociais). Acompanhamos e buscamos os atos governamentais; as notícias nos
jornais e revistas; e as postagens nas redes sociais de importantes entidades
representativas da categoria no Brasil. Os resultados revelam que a realidade
imposta pela pandemia do novo coronavírus agravou mais ainda o contexto de
vulnerabilidade social dos catadores. As questões de destaque relacionadas as vidas
vulnerabilizadas em um contexto de pandemia devem-se a informalidade,
precariedade e insalubridade do trabalho. A crise sanitária instaurada pela
proliferação do SARS-COV-2 mostrou que esses trabalhadores são os mais
vulneráveis no ciclo da reciclagem, o que intensifica a necessidade da proteção
social do Estado em suas vidas, tanto no momento da pandemia quanto póspandemia de Covid-19.
Palavras-chave: Catador de material reciclável. Covid-19. Vulnerabilidade.
Políticas Públicas.
ABSTRACT
This research reveals the complex situation of waste pickers in the face of the
Covid-19 pandemic at the national and district levels. The qualitative approach
methodology consisted of documentary research that dealt with secondary
information available on digital media (websites, blogs and social networks). We
monitor and seek governmental actions; news in newspapers and magazines; and the
posts on social networks of important representative entities of the category in
Brazil. The results reveal that the reality imposed by the pandemic of the new
411
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
coronavirus has further aggravated the context of social vulnerability of waste
pickers. The prominent issues related to vulnerable lives in a pandemic context are
due to informality, precariousness and unhealthy work. The health crisis brought
about by the proliferation of SARS-COV-2 showed that these workers are the most
vulnerable in the recycling cycle, which intensifies the need for social protection of
the State in their lives, both in the pandemic and post-pandemic Covid -19.
Keywords: Waste pickers. Covid-19. Vulnerability. Public policies.
1 INTRODUÇÃO
Este texto analisa, a partir das mídias digitais (sites, blogs e redes sociais), as
publicações e postagens veiculadas nas redes sociais e sítios da internet do
Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), da
Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT)
e da Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis do DF e Entorno
(CENTCOOP-DF). Além da investigação das notícias em fontes jornalísticas e nos
atos governamentais do Distrito Federal (DF).
As informações diagnosticadas tratavam-se a respeito do contexto vivido e de
enfrentamento do novo coronavírus na realidade dos trabalhadores da catação em
âmbito nacional e distrital. A finalidade busca revelar a situação complexa dos
catadores de materiais recicláveis frente a pandemia de Covid-19. Segundo Urban e
Nakada (2020), o sistema de reciclagem brasileiro é altamente vulnerável aos efeitos
causados pela a pandemia de Covid-19, considerando os aspectos ambientais e
econômicos provocados pela suspensão dos programas de reciclagem nas cidades
brasileiras.
De acordo com Vasconcelos et al. (2020), a base da reciclagem se configura,
de maneira marcante e contraditória, pela exploração dos corpos de homens negros e
principalmente mulheres negras. Eles desenvolvem suas atividades laborais em
situações precárias, sem nenhum direito trabalhista, além de vivenciarem políticas
sociais ineficientes, como o próprio direito à saúde pública. O que provoca a
vulnerabilização de suas vidas. Em consoante com esse contexto, a pandemia de
Covid-19 está revelando que os grupos populacionais que historicamente foram
negligenciados, aqueles com baixa proteção ao emprego e as populações sem acesso
412
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
adequado a cuidados de saúde acessíveis estão entre os mais atingidos,
especialmente ao maior risco de óbito (SANTOS et al., 2020, p. 236).
Desse modo, evidencia-se que a pandemia vivida em escala global não
representa a realidade cotidiana de forma homogênea ou universal, principalmente
no contexto marcado pelas desigualdades sociais em saúde, haja vista que a
manutenção do isolamento e distanciamento social não são aplicáveis a todos.
Assim, os catadores de matérias recicláveis estão inseridos em um contexto marcado
pelas desigualdades sociais de raça, gênero e classe social, sendo esses marcadores
capazes de exercer influências negativas na vida desses trabalhadores, afetando
também a situação de saúde dessa população (VASCONCELOS; GUIMARÃES;
ZANETI, 2020, p. 3).
Embora do ponto de vista biológico a doença seja padronizada, a forma como
ela se revela socialmente apresenta diversidade de cunho econômico, social e
cultural importantes de serem compreendidas para o entendimento e enfrentamento
da crise sanitária, haja vista a vulnerabilidade social latente dos grupos de
trabalhadores informais e das regiões de periferias urbanas. Segundo Ayres et al.
(2009) a noção de vulnerabilidade busca responder a percepção de que a chance de
exposição das pessoas ao adoecimento não é a resultante de um conjunto de aspectos
apenas individuais, mas também coletivos e contextuais. Com quase a metade da
população vivendo na informalidade no Brasil, desemprego e precariedade, não
parece fácil impor o isolamento e distanciamento social sem criar, ao mesmo tempo,
redes socioeconômicas de proteção compensatórias (CAPONI, 2020, p. 209).
Em tratando-se da questão ambiental, a gestão dos resíduos sólidos, foi
impactada pelas mudanças impostas pela proliferação do SARS-COV-2.
Especialmente, ficou notório a importância do trabalho desempenhado pelos
catadores de materiais recicláveis para coleta seletiva solidária, ao mesmo tempo que
se mostraram também como os mais vulneráveis diante do ciclo da reciclagem. Essa
realidade deve-se a fragilidade de subsistência dessa população, quando se
encontraram sem renda durante o momento crítico da pandemia, consoante ao
fechamento das usinas e dos galpões de triagem dos materiais recicláveis. Com a
única fonte de renda suprimida e o contexto de vida já precarizado mesmo antes da
413
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
pandemia, esses trabalhadores demandavam uma especial atenção governamental e o
reconhecimento da sociedade pelos trabalhos desempenhados em defesa do meio
ambiente e da saúde nos territórios protagonizados por eles.
Em contrapartida, a realidade colocada é de total ausência das políticas
públicas e ações de proteção à saúde voltadas para os catadores diante de uma
situação tão complexa como é a da pandemia. Ao retornarem ao trabalho vivem o
dilema da quarentena do lixo reciclável e de outras medidas de proteção,
principalmente pelo o risco de contaminação pelo SARS-COV-2, já que lidam
diretamente com as sobras e a melindrosa insalubridade da ocupação, o que vem
comprometendo a produção e a renda familiar mensal. A produção de resíduos
sólidos nas principais cidades diminuiu durante o período de distanciamento social,
possivelmente devido à redução da atividade nas áreas comerciais e a suspensão de
programas de reciclagem (URBAN; NAKADA, 2020, p.3).
Nesse sentido, no que tange a realidade dos catadores de materiais recicláveis
é importante olharmos para esse grupo que já enfrentava situações complexas de
precariedade do trabalho mesmo antes da disseminação do vírus, com duras rotinas
de trabalho devido: a informalidade; o excesso de esforço físico; os riscos
ocupacionais constantes à saúde e as doenças e sintomas cotidianos inerentes a
atividade laboral; e a insalubridade do ambiente de trabalho (Vasconcelos,
Guimarães e Zaneti, 2018). E que durante a pandemia foram agravadas por ficarem
sem renda, terem que se reinventar em um contexto de alta do desemprego e
contarem exclusivamente com a solidariedade de classe e as redes comunitárias para
sobrevivência no momento crítico da pandemia de Covid-19, haja vista a
desassistência por parte do Estado. Além disso, atualmente com flexibilidade e o
retorno das atividades da catação nas associações e cooperativas os cuidados de
proteção à saúde devem ser redobrados, haja vista o risco eminente de contágio,
devido o descarte de produtos contaminados, luvas e máscaras.
Os catadores de materiais recicláveis enfrentam constantemente uma
realidade de precariedade do trabalho e da vida, de riscos químicos, biológicos,
físicos, ergonômicos e emocionais vulneráveis, além dos acidentes (Gutberlet et
al.,2013) e os agravos à saúde, a estigmatização e os preconceitos, as patologias e
414
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
sintomas provocados pelo trabalho que agravam diretamente a situação de saúde
como: verminoses, infecção intestinal, gripe, leptospirose, dengue, meningite, dor de
cabeça, dor de dente, febre, alergia e náusea (JÚNIOR, et al., 2013). Além disso
constantemente os catadores são acostumados a trabalharem com infecções
respiratórias agudas, infecções intestinais e diarreia aguda, dores nas costas e dores
musculares (Ballesteros, Arango e Urrego, 2012). Historicamente, o contexto desses
trabalhadores
mostra
a
desvalorização
da
dimensão
da
vida
humana
(VASCONCELOS, et al., 2020, p. 108), mas que em uma situação de pandemia
essas condições são intensamente agravadas, pois convivem diretamente com a falsa
dicotomia protagonizada pelos governantes entre a escolha de proteção de suas vidas
ou terem a manutenção da renda. Por enquanto que o Estado deveria ter dado total
suporte social para manutenção do distanciamento social, além de ter intensificado
nos territórios das periferias informações em saúde visando a proteção dos mesmos.
Diante do período de pandemia pela falta de renda as questões econômicas e
sociais aumentam a vulnerabilidade dessa população. Apesar da mudança do
ambiente de trabalho, anteriormente desenvolvido nos lixões e aterros, ter propiciado
melhorias significativas para a saúde ocupacional dos catadores, eles ainda
sobrevivem a um contexto de desassistência do Estado, refletindo a ausência de
políticas públicas de proteção social e ações em saúde direcionadas para esses
trabalhadores informais. Esse cenário foi agudizado e agravado no momento da
pandemia, onde os catadores ficaram em sua maioria desassistidos ou mais uma vez
mal assistidos pelo poder público.
Desse modo, o levantamento das informações divulgadas diretamente pelas
organizações dos catadores de materiais recicláveis possibilita a busca para o
entendimento mais específico das diferentes experiências dessa população em
relação a doença em fontes diversas. Discute-se assim a maneira como a pandemia
de Covid-19 perpassa pelo contexto dos catadores associados e cooperados,
principalmente no momento mais crítico da pandemia. Ao mesmo tempo mostra a
repercussão dada ao problema nas mídias digitais e jornalísticas, dando significado a
complexidade do que esses trabalhadores vivenciaram e vivem diante da pandemia
de Covid-19 no Brasil.
415
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
2 METODOLOGIA
Esta pesquisa constitui-se de uma abordagem qualitativa, mediante um estudo
de natureza descritivo para análise retrospectiva nas mídias digitais (sites, blogs e
redes sociais. Foram fontes de informações deste estudo, as publicações e postagens
nas redes sociais e sítios da internet de entidades representantes dos catadores de
materiais recicláveis no Brasil. Assim como investigou-se acompanhando e
buscando nos jornais e revistas e nos atos governamentais elementos do contexto
vivido pelos catadores na atual pandemia. As informações referem-se ao período
compreendido entre o início da proliferação do vírus no Brasil, em março de 2020
tendo como marco o fechamento dos locais de trabalho a novembro de 2020, quando
os catadores se encontram diante do dilema do retorno das atividades laborais de
catação nas associações e cooperativas.
Os estudos de abordagem qualitativa proporcionam uma interpretação da
realidade a partir da perspectiva dos indivíduos e grupos, concentrando, assim na
produção dos sentidos e significados, onde ocorrem os fenômenos sociais do qual
faz parte o cotidiano (Minayo, 2007). Assim adaptado a realidade vivida de
distanciamento social, onde apresenta limites e dificuldades relacionadas ao
desenvolvimento da pesquisa de campo em loco. Este estudo tentou reproduzir os
dilemas e a complexidade da pandemia na vida dos catadores frente a catastrófica
crise sanitária instaurada.
Nesse sentido, para realização deste trabalho, devido às medidas de
distanciamento social e as medidas de proteção para diminuição da proliferação do
vírus, estão sendo empregados instrumentos e técnicas de pesquisa que não exigiram
a presença física ou a interação direta dos pesquisadores com os participantes.
Embora acreditamos na importância de estudos empíricos realizados diretamente nas
associações e cooperativas, quando estivermos em uma condição de mais segurança
e contenção da pandemia. Essa readequação dos procedimentos metodológicos vem
sendo empregadas em diversas pesquisas na área das ciências humanas e sociais,
sendo as mídias digitais espaços potentes para estudos dessa natureza. Assim, este
trabalho utilizou-se dados secundários do tipo documental, incorporando as
informações nas fontes elencadas citadas anteriormente. Segundo Kripka, Scheller e
416
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Bonotto (2015) a pesquisa documental, configura-se como um procedimento para
compreensão da realidade social e produção de conhecimento por meio da análise de
variados tipos de documentos.
Dessa maneira, as publicações, postagens e notícias veiculadas nas redes
sociais e nos sítios da internet foram acompanhadas durante o período crítico da
pandemia. As plataformas das redes sociais escolhidas foram o Facebook e
Instagram, haja vista o intenso acesso dessas redes na atualidade. As informações
divulgadas pelos principais representantes compõem a análise deste texto, tais como
o MNCR, a ANCAT e a CENTCOOP/DF. Foram investigados os perfis e sítios de
internet, procurando os dados e informações relacionadas a Covid-19 e a realidade
dos catadores. Essas organizações foram as escolhidas por serem as principais
representantes dos catadores de materiais recicláveis em âmbito nacional e distrital.
Ao mesmo tempo que foi notado o engajamento desses grupos na divulgação de
informações, pautas e lutas dos trabalhadores nas redes sociais no período da
pandemia. Assim como também percebemos o engajamento na produção de lives no
Youtube abordando o tema deste trabalho.
As notícias veiculadas nas mídias digitais incorporadas foram de diferentes
fontes distritais, principalmente do Correio Braziliense. As notícias, publicações e
postagens tiveram seus conteúdos analisados através da metodologia de Bardin
(1994), segundo esse autor a análise de conteúdo representa um instrumento de
pesquisa utilizado para determinar a presença de sentidos e significados dentro de
um texto ou conjunto de textos. Assim a partir da análise das informações contidas
nos textos e das relações entre eles no período estudado, pode-se fazer inferências
sobre a realidade enfrentada pelos catadores de materiais recicláveis no período da
pandemia de Covid-19, as quais são apresentadas na próxima seção deste estudo.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
As mídias digitais revelam os dilemas experimentados pelos catadores de
materiais recicláveis frente ao contexto da pandemia de Covid-19 ao longo do tempo
no Brasil, embora cada realidade das regiões brasileiras tenha sua particularidade e
os trabalhadores vivenciaram de forma diferente e singular cada contexto.
417
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Acreditamos que essa premissa se materializa justamente pelas disputas políticas e
ideológicas que circunscreveram a adoção das reais medidas sanitárias necessárias
para proteção da população ao vírus SARS-COV-2 e ao próprio reconhecimento da
doença em si. Por essa razão, destacamos que não tivemos uniformidade em relação
as medidas por parte dos entes federativos frente a realidade dos catadores na
pandemia de Covid-19. Talvez isso tenha se dado dessa maneira pela inércia do
governo Federal e das instâncias públicas da União junto as demandas e
sensibilidades desses trabalhadores. Em consoante com esse contexto, buscamos
neste trabalho discutirmos os elementos que elucidam de forma geral os momentos
mais significativos e sentidos por esses trabalhadores neste período.
Conforme informações divulgadas no sítio da internet oficial do Ministério da
Saúde (MS), o novo coronavírus pertence a uma família de vírus e provoca a doença
denominada Covid-19. Essa doença ocasiona problemas respiratórios como
infecções que podem ser agravadas. Esse novo vírus foi descoberto em 31 de
dezembro de 2019 na China. No Brasil, a doença teve os seus primeiros registros em
janeiro de 2020. A transmissão acontece de uma pessoa que está contaminada para
outro indivíduo, a partir de contato próximo entre estes. Esse contágio se dá também
pelo contato com objetos e superfícies contaminadas, tosse, gotículas de saliva,
espirro e aperto de mão.
Em 11 de março de 2020, a Covid-19 foi caracterizada pela Organização
Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia, quando também começaram as
movimentações nas mídias digitais dos representantes dos catadores de materiais
recicláveis no Brasil. A pandemia de Covid-19 é um fenômeno mundial de
características inigualável no sentido de sua extensão, velocidade de propagação,
impactando de maneira avassaladora a população e os serviços de saúde, sobretudo
as populações vulnerabilizadas (Santos et. al., 2020). A OMS pediu que todos os
países
intensificassem
medidas
emergenciais
para
reduzir
o
avanço
da
contaminação, entre elas recomendou a manutenção do distanciamento e isolamento
social para a diminuição da proliferação do SARS-CoV-2.
As recomendações para a proteção e prevenção são: usar máscaras; evitar
circulação em locais propícios a aglomerações; manter o ambiente onde se vive
418
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
limpo e bem ventilado; evitar o compartilhamento de objetos pessoais (talheres,
copos, toalhas, entre outros); higienizar com certa frequência o aparelho celular;
evitar o contato físico; manter a distância mínima de 2 metros de qualquer pessoa;
evitar o contato das mãos aos olhos e bocas; higienizar bem as mãos com água e
sabão ou álcool em gel 70%.
O escasso conhecimento sobre os modos de transmissão e o papel dos
portadores assintomáticos na difusão do SARS-CoV-2, têm desafiado pesquisadores,
gestores da saúde e governantes na busca de medidas de saúde pública não
farmacológicas, na tentativa de evitar o esgotamento dos sistemas de saúde e
permitir o tratamento oportuno de complicações graves, bem como evitar mortes
(AQUINO, et al., 2020). Desde o início da extensão da pandemia nos países
desenvolvidos a OMS alertava preocupação para quando o vírus atingisse a América
Latina, cadáveres deixados abandonados nas ruas no Equador, baixo número de
equipamentos ventiladores no Haiti e Guatemala, perfil epidemiológico de risco à
doença como hipertensão, obesidade e diabetes no México, as condições sanitárias
das favelas brasileiras superlotadas e o acesso ao saneamento básico limitado
(BURKI, 2020). Esses elementos mostram a complexidade da crise sanitária
instaurada nos países onde as dificuldades para se manter vivo já são infinitas.
No Brasil, a Portaria Nº 188/GM/MS, de 4 de fevereiro de 2020, declarou
emergência em saúde pública de importância nacional, em decorrência da infecção
humana pelo novo coronavírus, mostrando preocupação com a situação demandada,
o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e
agravos à saúde pública. A Portaria nº 454, de 20 de março de 2020, declara em todo
o território nacional, o estado de transmissão comunitária. Nesse ato fica destacado a
necessidade premente de envidar todos os esforços em reduzir a transmissibilidade e
oportunizar manejo adequado dos casos leves na Atenção Básica (AB) e dos graves
na rede de urgência/emergência. A doença que já matou mais de 20 mil brasileiros
avança nas periferias e afeta especialmente as populações vulneráveis (CAPONI,
2020).
O momento complexo exigiu das autoridades sanitárias em âmbito nacional e
internacional o distanciamento social da população como principal medida de
419
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
enfrentamento da doença, ao mesmo tempo que a adversidade primária gera outros
problemas secundários como o comprometimento da renda dos trabalhadores
informais. No Brasil, o cenário político de disputa das estratégias, no qual se soma, à
crise sanitária, uma grave crise política, a implementação das medidas de controle,
incluindo o distanciamento social, foi assegurada pelos governadores e prefeitos (e,
por vezes, pelo Judiciário), principalmente nos estados mais afetados (Aquino et al.,
2020; Caponi, 2020).
A cada dia mundialmente à doença se espalha com grande potencial de
transmissibilidade, sendo que os casos mais graves e a mortalidade estão associados
a condições saudáveis. As comorbidades associadas mais comuns são doença
pulmonar, diabetes e velhice (WESTON; FRIEMAN, 2020). Em contrapartida,
qualquer ser humano pode se contaminar e também ser fonte de transmissão da
doença, pois há os sintomáticos e os assintomáticos. Embora exista uma
preocupação mundial maior com o grupo de pessoas de idade mais elevada, como os
idosos, pois são pessoas dos grupos de risco para o desenvolvimento dos quadros
mais graves da doença devido as comorbidades. No caso brasileiro outra
preocupação acentuada referem-se as questões intrínsecas mais complexas as
desigualdades sociais, posto que as periferias urbanas, onde vivem os catadores,
possuem contextos propícios os quais facilitam a disseminação do vírus, visto a
necessidade de renda, a precariedade do trabalho, as condições das moradias, a
quantidade de pessoas em uma mesma casa, e tal como a escassez do saneamento
básico.
Nesse contexto, enquadram-se os catadores de materiais recicláveis que desde
o início da pandemia de Covid-19 teve o sustento pessoal e familiar comprometidos
com o fechamento dos galpões de triagem de materiais recicláveis. Esses locais de
trabalho trouxeram inovação tecnológica para o processo produtivo da reciclagem no
cotidiano dos milhares de catadores vinculados as associações e cooperativas de todo
o Brasil. Esse processo de transformação do ambiente de trabalho da catação foi
intensificado pelo poder público através da Política Nacional de Resíduos Sólidos
(PNRS) de 2010. Os catadores são trabalhadores informais com estreito diálogo com
o poder público, demandando uma maior atenção governamental no sentido da
proteção social (Vasconcelos, Guimarães e Zaneti, 2020). A necessidade de políticas
420
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
públicas e ações em saúde já era uma demanda antes mesmo do período da
pandemia de Covid-19, mas que no momento oportuno intensificou tais
peculiaridades relacionadas as condições de trabalho, a saúde, aos riscos de
contaminação, a renda, a moradia etc.
Diante desse contexto, no dia 16 de março iniciaram as postagens referentes
ao novo coronavírus nas redes sociais do MNCR, inicialmente tratando-se de uma
reportagem do Brasil de fato, cujo título era “Nada de pânico, mas nada de negação”
diz médico sobre o coronavírus”. Ademais em 16 de março foi divulgado um vídeo
de denúncia e pedido de socorro dos catadores do Distrito Federal (DF) devido às
más condições de trabalho nos galpões do Governo do Distrito Federal (GDF). Em
suma no vídeo uma catadora mostrava a realidade de um galpão “trabalhando no
chão, muita gente doente”. Ela exigia providências do governo, alertando para os
problemas de funcionamento em um dos motores das esteiras, mesmo com as
dificuldades ela trabalhava para sua subsistência e da família, não podendo parar o
trabalho, submetendo assim a uma condição desconfortante para ela e os colegas da
associação.
Esse vídeo da catadora acentua o contexto antes da pandemia de Covid-19,
reclamações em relação as condições do ambiente de trabalho e a circunstância dos
materiais recicláveis que chegavam sujos e eram perdidos. Além disso, mostra uma
colega catadora que tinha feito uma cirurgia e mesmo com a região cirúrgica
apresentando inchaço ela tinha que continuar trabalhando naquelas condições de
agachamento constante devido aos problemas na esteira. No mesmo vídeo, a
catadora diz não poderem paralisar o trabalho por não terem condições de pagarem
multa por conta do contrato firmado com o governo. Percebemos que esse é um
dilema evidente no momento da pandemia de Covid-19, onde essas fragilidades nas
relações trabalhistas surgem à tona escancarando a precariedade do trabalho em suas
vidas. Assim a vida dos catadores condiz com idas e vindas dessa possibilidade de
submissão ao trabalho, de ausências das ações de proteção social por parte do Estado
e ao mesmo tempo de resistência.
Em 16 de março um outro vídeo foi divulgado, tratando-se de um caso de
uma associação também do DF, o seu conteúdo expunha uma situação de
421
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
emergência, a catadora relatava “saiu um gás do meio do lixo” e os catadores
começaram a passar mal devido a essa ocasião. Alertava para a necessidade de ajuda
por parte do governo e mostrava preocupação em relação a saúde dos catadores.
Nesse vídeo a catadora chamava atenção para o perigo da contaminação, apesar de
alguns locais/comércios no DF naquele momento se encontrarem fechados os
catadores continuavam trabalhando expostos aos riscos e à Covid-19 no trabalho
sem nenhuma orientação até o momento por parte do governo. Devido ao incidente
os catadores evacuaram o local. Em outra ocasião agora no Estado do Goiás antes do
fechamento dos ambientes de trabalho pela Covid-19, mas em um contexto nacional
de proliferação do vírus os catadores continuavam recebendo nos espaços das
associações e cooperativas o material reciclável, sendo que neste período o poder
público não ofertou nenhum Equipamento de Proteção Individual (EPI), assim como
nenhuma orientação e informação em relação à pandemia de Covid-19.
Ainda em 16 de março de 2020 postaram a primeira publicação diretamente
relacionada a pandemia global e a proteção dos profissionais de catação de materiais
recicláveis. Como ressaltado por eles as ações listadas eram complementares a
outras históricas reinvindicações por melhores condições de trabalho, que
cotidianamente deve ser exigido pelos poderes públicos, visando a segurança e
qualidade no trabalho. Nesta publicação evidenciaram também a questão da
segurança alimentar. As orientações contemplavam: 1) o cuidado na base; 2) a
limpeza das áreas comuns; 3) educação ambiental e a colaboração na comunidade
alertando também para o risco das arboviroses (dengue, zika e chikungunya); 4)
busca de doações de produtos de higiene, máscaras e EPI junto as instâncias do
poder público e no comércio das comunidades. Nesse sentido reforçavam que se o
cooperado estivesse doente era para ficar em casa e procurar o atendimento no
serviço de saúde, as medidas de higienização das mãos com álcool em gel 70%, a
necessidade do uso contínuo durante o trabalho dos EPI, especialmente o uso das
máscaras e a defesa do Sistema Único de Saúde (SUS).
Em um vídeo divulgado neste período um representante do MNCR do Estado
de Goiás diz “A gente tá esquecido, parece que a agente não existe”, o catador
mostra preocupação e medo de contaminação, haja vista a presença do vírus nos
resíduos sólidos. Também fala sobre a segurança de permanecer em casa de
422
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
quarentena. Entretanto alerta para a responsabilização do poder público pelo “direito
à quarentena”. Ele pontua questões relacionadas a falta de diálogo com as instâncias
governamentais da prefeitura no que se refere a disponibilização dos EPI ou a ajuda
de custos para poderem parar o trabalho. Uma catadora do Estado de Alagoas em
outro vídeo divulgado cobra a agilidade do governador para as compras dos EPI e
alerta sobre a vulnerabilidade da categoria.
Em 24 de março de 2020, Ministério Público do Estado de Minas Gerais
(MPMG) e o Ministério Público do Trabalho, recomendam ao prefeito municipal de
Belo Horizonte (BH), tendo em vista todo o cenário instaurado pela pandemia de
Covid-19. A disponibilização e distribuição de Equipamentos de Proteção Coletiva
(EPC) e EPI (luvas, botas, óculos, máscaras faciais, álcool em gel etc) nos ambientes
de trabalho. O fornecimento de informações e treinamento para adoção das medidas
de proteção à transmissão da Covid-19. Assim como a paralisação do trabalho
realizado nas unidades de triagem de materiais recicláveis, principalmente pelos
riscos desconhecidos e a possibilidade de disseminação do vírus para esses
trabalhadores. E assim que encerram o documento pontuando sobre o auxílio
financeiro temporário.
Ao analisarmos as postagens das redes sociais percebemos que o mês de
março e abril de 2020 foram marcados na realidade dos catadores de materiais
recicláveis pela paralisação das atividades de coleta seletiva em diferentes regiões e
no DF. Em algumas ocasiões os catadores paralisaram por conta própria por
reconhecerem o risco que a categoria corria, tendo em vista que trabalham
diretamente em um ambiente insalubre e altamente contaminante. Com os catadores
suspensos das suas atividades nos galpões de triagem os materiais recicláveis
estavam seguindo para os aterros sanitários, existindo também inclusive algumas
associações e cooperativas pelo Brasil que não paralisaram as atividades laborais se
submetendo ao risco iminente de infecção pelo SARS-COV-2, haja vista a
periculosidade de contágio no contexto do trabalho na catação.
No Distrito Federal (DF), as atividades de coleta seletiva de resíduos sólidos
recicláveis, o recebimento e a triagem de resíduos recicláveis nos centros de triagem
e o recebimento de resíduos nas usinas de compostagem foram suspensos pelo
423
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Decreto de Nº 40.548 de 20 de março de 2020. O período da suspensão é
estabelecido no ato administrativo enquanto existisse o risco de transmissão do novo
coronavírus. No mês seguinte, os poderes públicos, ao mesmo tempo impulsionado
pela mobilização dos catadores, começaram uma articulação na tentativa de
fornecerem um suporte financeiro básico por meio de pagamentos antecipados
referentes aos contratos celebrados com cooperativas, autorizado pelo Decreto de Nº
40.626 de 15 de abril de 2020.
Ao mesmo tempo que a pandemia culminou no fechamento dos galpões de
triagem de materiais recicláveis e as usinas de compostagem do Serviço de Limpeza
Urbana (SLU) do DF, com apenas três semanas sem nenhuma renda, os catadores de
materiais recicláveis começaram a sofrer os efeitos da pandemia. Eles ficaram sem a
única renda que sustentava as famílias, mostraram preocupação com o pagamento
dos aluguéis de moradia, inquietação relacionada a manutenção financeira das
associações e cooperativas; e também com a própria alimentação. Nesse período
dependeram mais do apoio dos parceiros e ações comunitárias do que do próprio
governo, já que foi um momento de pouco diálogo entre as instâncias públicas e a
categoria. Além disso, manifestaram dificuldades para o recebimento dos auxílios
financeiros prometidos a esses trabalhadores, tendo até que articularem mobilização
para cobrança do auxílio junto aos órgãos da assistência social, vale destacar em um
momento de distanciamento social.
Desse modo, o primeiro impacto da Covid-19 na vida desses trabalhadores
foi atingir significantemente na única fonte de renda e sobrevivência da maioria da
categoria. Com isso, percebemos uma forte articulação de campanhas de
solidariedade virtuais e comunitárias. Diferentes instituições e organizações
públicas, parceiros, empresas, amigos e Universidades auxiliaram os catadores a
enfrentarem esse período com a entrega nas associações e cooperativas espalhadas
por todo o Brasil de cestas básicas, produtos de higiene e entre outros insumos ou na
produção de informações em saúde.
As campanhas solidárias e a união dos catadores tomaram conta de todo o
território brasileiro Porto Alegre, Maceió, Salvador, Amazonas, Distrito Federal,
Manaus, Belo Horizonte, Ceará, Curitiba, Paraíba e entre outras localidades.
424
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Ademais identificamos ações de “vaquinhas” online, mobilização nas mídias
digitais, algumas com slogan do tipo “Ajude os heróis da cidade de São Paulo”;
“Ajude os heróis da cidade do Rio Janeiro”, tais campanhas forneceram um apoio
significativo para os catadores nos meses iniciais da pandemia, assim como as ações
solidárias protagonizada pela CENTCOOP/DF nas associações e cooperativas do
planalto central.
Destacamos aqui a campanha em caráter emergencial protagonizada pela
ANCAT, juntamente com o MNCR, a União Nacional de Catadores e Catadoras de
Materiais recicláveis do Brasil (Unicatadores) e parceiros apoiadores, com slogan
“Solidariedade aos catadores do Brasil Quem sempre cuidou da cidade e do meio
ambiente agora precisa da sua ajuda!”, que contou com o envolvimento de artistas e
atores na divulgação, cujo o objetivo principal era diminuir os efeitos dramáticos da
pandemia na realidade dos catadores, pedindo alimentos, itens de higiene e EPI
como suporte a esses trabalhadores no momento de pandemia vivido. Essa mesma
campanha em meados do mês de junho de 2020 entregou os cartões de valealimentação para catadores de diferentes localidades.
Em abril de 2020 existiu o alerta para a necessidade da renda básica
emergencial, assim como os poderes públicos federais começava a se articular para
auxílio emergencial no valor de 600,00 reais para adultos vulneráveis e 1.200,00
para as mães-solo. Assim como começaram a surgir alguns estudos relacionados ao
tempo de permanência do SARS-CoV-2 nas superfícies dos materiais, tais como:
cinco dias no plástico, 8 horas nas luvas cirúrgicas, quatro dias na madeira, quarenta
e oito horas no aço, de duas a oito horas no alumínio, quatro dias no vidro e quatro a
cinco dias no papel (Kampf et al., 2020).
Em maio de 2020, aproximadamente dois meses após o início da pandemia e
jornada sem renda de subsistência para os catadores de materiais recicláveis, os
poderes públicos começaram a traçar algumas estratégias para subsidiar renda
especificamente direcionada para os catadores de materiais recicláveis. Nesse
momento surge também alguns planos de gestão para a atividade de catação visando
a proteção e segurança no trabalho das associações e cooperativas. Ao mesmo tempo
que alguns assumem o risco e retornam ao trabalho devido as necessidades
425
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
provocadas pela pandemia, assim não tiveram o direito de permanecerem em
quarentena ou com mais segurança em casa. Identificamos neste momento a
preparação da categoria, assim como o anseio deles para o retorno às atividades
laborais, muito sentido pela necessidade de sustento das famílias. Tendo em vista
esse contexto, a categoria estabelece através das lives um incansável diálogo entre os
pares, com o universo acadêmico e atores governamentais. Destacamos que neste
momento também continua um forte engajamento em torno da solidariedade para os
catadores, mais especificamente no fomento a segurança alimentar através da
entrega de cestas básicas nas associações e cooperativas.
Em junho de 2020, foi um período de extrema dificuldade para os catadores
de materiais recicláveis, com três meses da pandemia de Covid-19 com alta
significativa no número de pessoas infectadas e óbitos no Brasil. Além desse
cenário, a realidade mostrava a necessidade iminente de renda por parte desses
trabalhadores que até o momento contavam com a rede de solidariedade e o auxílio
emergencial, sendo que alguns ainda enfrentavam as dificuldades para o recebimento
do auxílio emergencial. Paralelamente ocorria uma ameaça crescente à atividade e a
finalidade das atividades dos catadores de materiais recicláveis para o meio
ambiente, sendo um estágio marcado pelo interesse das usinas de incineração (PL
639/2015) e o medo do cancelamento dos contratos das associações e cooperativas
junto ao poder público nas instâncias governamentais. O PL 639/2015 visa alterar a
Lei nº 12.305, de 02 de agosto de 2020, que institui a PNRS, para incluir no plano
municipal de gestão integrada, a queima de resíduos sólidos para geração de energia,
bem como, conceder incentivo tributário para as empresas constituídas para este fim.
Algumas frases marcam a ocasião de resistência dos catadores como: “Deus recicla,
o diabo incinera” e “Vida saudável sem incineração: hoje e sempre”.
Em uma das ocasiões na região metropolitana de SP a prefeitura cancelou o
contrato de prestação de serviços de uma cooperativa de catadores de materiais
recicláveis e estabeleceu um prazo de 30 dias para a desocupação do espaço. Os
trabalhadores dessa unidade em um momento crítico da pandemia de Covid-19
relacionado ao número elevado de pessoas contaminadas e óbitos tiveram que iniciar
uma jornada de luta e mobilização em defesa da manutenção do contrato. Assim
ocuparam o local por dias e noites e iniciaram um estreito diálogo com o poder
426
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
público local. A mobilização dos catadores refletiu na renovação do contrato por
mais três meses com vistas a negociação de um novo contrato definitivo.
Desse modo, os catadores de materiais recicláveis iniciam diálogo com as
indústrias da reciclagem, conversando mais sobre a proteção e segurança no trabalho
para o retorno das atividades de catação num momento de pandemia. Algumas
entidades se mobilizam para a retomada da coleta seletiva no Brasil, sendo que
pontualmente neste momento algumas associações e cooperativas retornam as
atividades tentando manter algumas orientações de segurança. Destacamos que ao
mesmo tempo que umas já tinham retornado ao trabalho outras começavam a cobrar
o poder público para o retorno ao trabalho. Ocorreu uma diminuição nas ações de
fomento a segurança alimentar como a entrega de cestas básicas e começa uma rede
solidária e comunitária para fomentar o trabalho como o recebimento de EPI, EPC e
máscaras face shield para as associações e cooperativas visando o retorno ao
trabalho. No DF o retorno ao trabalho foi permitido pelo Decreto Nº 40.847 de 30 de
maio de 2020, que autorizou a continuidade dos serviços de coleta seletiva e triagem
de resíduos sólidos recicláveis, desde que os prestadores de serviços apresentassem
algumas exigências. As medidas requeridas pelo decreto exigem um plano de
segurança e prevenção de risco para os catadores envolvidos nas atividades, a
submissão a uma avaliação das autoridades sanitárias e aprovação pelo SLU.
Em julho de 2020, tem relevância as ações dos Ministérios Públicos e
Defensorias Públicas. Os catadores de materiais recicláveis iniciam uma luta para o
retorno ao trabalho, principalmente pelo contexto complexo de dificuldades
provocadas pela pandemia de Covid-19. Eles começam a defender o trabalho da
catação como um serviço a ser considerado como essencial, justificando-se pelo
maior consumo de embalagens descartáveis no momento da pandemia. Também
destacamos que não só por uma questão ligada a Covid-19, eles se encontravam
articulados realizando uma forte movimentação contra a incineração em defesa da
reciclagem, do meio ambiente e da defesa do cooperativismo como uma forma de
geração de trabalho e renda com oportunidade para os excluídos do mercado formal.
A partir de agosto de 2020, pouco se abordou a respeito da realidade da pandemia,
ganhando relevância outras pautas como a defesa e comemoração de 10 anos da
PNRS que marcou o fim dos lixões e a valorização do trabalho do catador.
427
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
No DF o aterro controlado do Jóquei, popularmente conhecido como o “lixão
da Estrutural”, foi fechado em 20 de janeiro de 2018 e era o maior da América
Latina. De acordo com pesquisa feita por Mosna e Zaneti (2020), com o fechamento
do citado lixão previsto na PNRS, a mudança dos catadores de materiais recicláveis
no DF ocorreu para as Instalações de Recuperação de Resíduos (IRR), onde teve
uma melhora nas condições de trabalho no que se referiu a diminuição de alguns
riscos à saúde. Em contrapartida, na visão dos trabalhadores entrevistados por
Mosna e Zaneti (2020), tal mudança teve um impacto negativo na renda, sendo que
80% deles preferiam correr os riscos do local de trabalho antigo do que ter tido o
impacto significativo na renda. Consoante com essa realidade, atualmente a Covid19 também impactou severamente a renda desses trabalhadores, merecendo um
acompanhamento e medidas a serem tomadas por parte do poder público durante a
pandemia e pós-pandemia, para uma valorização do trabalho dos catadores,
reconhecimento da importância da coleta seletiva e inclusão social efetiva dos
catadores no mercado de trabalho e na sociedade.
Em setembro de 2020, temos a primeira e única testagem gratuita para
detecção de Covid-19 especificamente para catadores de materiais recicláveis no Rio
Grande do Norte (RN) devido uma ação conjunta da Promotoria de Justiça do RN e
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A divulgação do manual
operacional reforçando a necessidade dessas medidas para proteção no trabalho.
Assim como uma estratégia do governo paulista de ampliação do auxílio
emergencial em São Paulo (SP), haja vista os catadores não terem retornado ao
trabalho nessa região.
Em outubro de 2020, temos a experiência do auxílio financeiro no Ceará.
Percebemos que na medida em que as associações e cooperativas foram retornando
ao trabalho, a Covid-19 não era mais um tema central de discussão, acabaram as
postagens e as lives que abordavam o tema da pandemia em questão. A corrente
solidária instaurada agora era para doação de EPI e EPC visando o retorno ao
trabalho.
Desse modo, o período de início do mês de novembro de 2020, foi marcado
pelo retorno ao trabalho em SP e a retomada da coleta seletiva em Belo Horizonte
428
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
(BH). Durante todo esse período analisado percebemos um número significativo de
homenagem e condolências na página do Facebook do MNCR aos colegas de
categoria que partiram, alguns óbitos confirmados de Covid-19 e também por outras
causas.
Quadro 1- Apresentação das notícias incluídas veiculadas em algumas mídias digitais
referente a realidade do DF.
Nº
Título da reportagem
Nome da fonte
Data
01
GDF proíbe coleta por cooperativas e que
auxílio para catadores
Metrópoles
20/03/2020
02
Governo do DF vai pagar auxílio a
catadores durante pandemia da covid-19
Terra
21/03/2020
03
Catadores do DF enfrentam isolamento
social dependentes de doações e sem
saneamento e renda
G1
14/04/2020
04
Coronavírus: Adasa reforça regras de
coleta e destinação de lixo
Correio
Braziliense
15/04/2020
05
Ibaneis Rocha assina decreto autorizando
retomada da coleta seletiva no DF
Métropoles
30/05/2020
06
Contra infecção por Covid-19, catadores
devem armazenar resíduos por 72h
Metrópoles
01/06/2020
07
Observatório da UnB oferece diretrizes
para a proteção dos catadores de material
reciclável em meio à pandemia
UnB
24/06/2020
08
Benefício calamidade: catadores
recicláveis recebem primeira parcela
de
Correio
Braziliense
09/09/2020
09
Pandemia causou impacto na reciclagem
no Distrito Federal
Correio
Braziliense
20/09/2020
10
Covid-19
compromete
sustento,
sobrevivência e saúde de catadores de lixo
Correio
Braziliense
29/09/2020
11
Família de catadores de recicláveis pedem
ajuda para sobreviver à pandemia
Correio
Braziliense
05/11/2020
Fonte: Elaboração própria.
Ao acompanharmos as reportagens veiculadas na pandemia de Covid-19
referente a realidade do DF, percebemos forte mudanças nos aspectos sociais como
429
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
na lida cotidiana do modo de viver dos catadores de materiais recicláveis, ambientais
como o comprometimento da vida útil do aterro sanitário de Brasília localizado na
cidade de Samambaia e relacionados a saúde dos trabalhadores pelo risco de
contaminação. Destacamos que para os catadores autônomos das “carrocinhas” nas
ruas a rotina imposta pela disseminação do vírus não os impactaram
significantemente igual os associados e cooperados, pois, ficaram mais expostos nas
ruas. Entretanto, o fechamento dos comércios e os resíduos recicláveis disponíveis
nos locais públicos tenham acarretado na queda da quantidade coletada
influenciando na diminuição da renda também dos catadores autônomos. Os auxílios
geridos pela Secretaria de Desenvolvimento Social (SEDES) do DF referente as três
parcelas no valor de 408,00 reais, que alcançaram 34 entidades cerca de 1.156
trabalhadores, apresentaram dificuldades para chegar até os catadores e foram
insuficientes para sobrevivência.
A situação da pandemia de Covid-19 agravou mais ainda o contexto do
trabalho precário, das desigualdades sociais e a mal inclusão dos catadores. O
período foi marcado pela queda e ausência da renda mesmo recebendo os auxílios do
governo, gerando nos trabalhadores sentimento de impotência e tristeza em
presenciarem as famílias e os filhos passando por necessidades básicas, o medo de
contrair o vírus, as incertezas com o futuro do trabalho. Em um momento significado
pelo retorno ao trabalho vivenciaram diminuição do lucro e da produção, agravando
mais ainda a realidade. Segundo reportagem intitulada “Pandemia causou impacto na
reciclagem no Distrito Federal”, só no primeiro semestre do ano de 2020, houve
diminuição de 45% na coleta de resíduos recicláveis no DF.
Diante disso, apontamos para a necessidade urgente dos agentes públicos
direcionarem políticas públicas voltadas para esse grupo social, pois esse contexto
de pandemia mostra que esses trabalhadores são os mais vulneráveis no ciclo da
reciclagem, embora sejam essenciais para a gestão dos resíduos sólidos urbanos. O
lucro oriundo da produção e trabalho árduo nos galpões de triagem de recicláveis
depende da quantidade e da qualidade do material. Assim salientamos a necessidade
de a população também ter o compromisso de cuidar dos resíduos separando o
material reciclável corretamente, em direção de uma vida mais sustentável.
430
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Com esse cenário complexo, fica evidente a relevância do diálogo
permanente entre os poderes públicos com a categoria e de ações de prevenção de
doenças e promoção da saúde direcionados especificamente para esse grupo social,
perpassando por um compromisso governamental das políticas públicas e dos
parceiros de instituições educacionais como o trabalho que vem sendo desenvolvido
pela equipe da PrEpidemia vinculada a Universidade de Brasília (UnB), onde vem
produzindo material de prevenção e proteção para os catadores. Salientamos a
necessidade das testagens em massa dos catadores de materiais recicláveis para
verificação e rastreamento dos casos de infecção pela Covid-19, necessitando de
uma articulação estreita com os governos, Universidades e Institutos. Além da
urgência do envolvimento de parceiros e das indústrias de reciclagem. Em busca de
compreendermos a lógica de contaminação nesta categoria de trabalhadores das
associações e cooperativas.
Assim as medidas de proteção e promoção à saúde devem ser realizadas no
cotidiano das associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis, não
só em um momento da pandemia de Covid-19 que o cuidado à saúde desses
trabalhadores deve ser colocado na agenda governamental. Os riscos à saúde são
iminentes aos trabalhadores da reciclagem, mostrando sua condição de extrema
vulnerabilidade, esse grupo necessita de atenção à saúde e programas específicos de
saúde durante todo o ano e período. São necessidades latentes ações de violência
doméstica, alimentação, oportunidades de capacitação e educação para os catadores
e seus filhos, acesso as creches etc.
As medidas de comunicação em saúde, sobre a importância do uso dos EPI e
EPC no retorno ao trabalho, são de suma importância para o enfrentamento da
pandemia na realidade da Covid-19. Assim como o fomento de informações
fidedignas para esse grupo social relacionadas a pandemia, valorizando a escuta e
preservando uma abordagem de educação em saúde significativa sobre o tema.
Programas e ações específicos programados para catadores de materiais recicláveis
na prevenção e cuidado em saúde são urgentes e necessários. As autoridades
sanitárias devem alertar para as unidades básicas de saúde próximas as associações e
cooperativas englobarem ações para esses trabalhadores. E também as associações e
cooperativas devem ter a estratégia de elencar medidas internas para o cuidado em
431
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
saúde direcionado à própria organização do trabalho, como a instauração de uma
Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A realidade de trabalho dos catadores de matérias recicláveis é marcada pela
insalubridade, os riscos constantes à saúde dos trabalhadores. A renda orienta da
atividade é obtida por meio da produção dos associados e cooperados. O perfil dos
catadores de matérias mostra uma população de risco para a Covid-19, pois não
estão incluídos na parte da sociedade que tem acesso as condições saudáveis. Nesse
sentido nas associações e cooperativas encontramos facilmente trabalhadores
cardíacos, doentes renais, diabético, trabalhadores com problemas pulmonares,
respiratórios, gestantes e lactantes e pessoas com mais de 60 anos, constituindo
assim além das vulnerabilidades sociais presentes na realidade deles também fazem
parte do grupo de risco da doença.
A paralisação da coleta seletiva e do trabalho nas associações e cooperativas
foi necessária, tendo em vista o desconhecimento do risco de contaminação desses
trabalhadores. Por outro lado, essa medida provocou a dependência de renda para
subsistência, o sentimento de desemparo e os endividamentos (aluguéis de moradia,
contas de luz, água e etc). Além disso, com a pandemia de Covid-19 cresceu o
número de possíveis materiais contaminados como os lenços e as máscaras sujas,
além das seringas com vestígios de sangue, pairando o medo de contrair o vírus, ao
mesmo instante que os cuidados devem ser redobrados.
Mesmo diante dessas dificuldades pouco fizeram os poderes públicos no
apoio e proteção social dos catadores de materiais recicláveis no momento da
pandemia de Covid-19. A renda básica emergencial do governo Federal pouco
ajudou os trabalhadores, alguns governos locais ofertaram auxílio financeiro
especificamente para os catadores de associações e cooperativas mais que também
não se mostraram suficientes. Em face as dificuldades impostas pela pandemia de
Covid-19, paralelamente os catadores tiveram que enfrentar pautas e lutas
relacionadas a incineração e ao encerramento dos contratos com as instâncias
públicas em algumas localidades.
432
A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS
Por fim, diante de toda essa complexidade da realidade dos catadores de
materiais recicláveis em época da pandemia de Covid-19 ficou notório a potente
rede de solidariedade nas mídias digitais e as ações comunitárias junto ao diálogo
com os parceiros nos territórios e as instâncias governamentais. De fato, foram
fundamentais para garantir minimamente a segurança alimentar das famílias desses
trabalhadores e também no apoio e auxílio ao retorno em um ambiente de trabalho
mais seguro protegendo mesmo que minimamente a saúde física dos mesmos.
Apontamos para a necessidade urgente dos agentes públicos direcionarem
políticas públicas voltadas para essa população e ações de informação em saúde
eficientes sobre o SARS-COV-2 direcionadas para o ambiente de trabalho coletivo e
a vida nas comunidades. O período da crise sanitária provocada pela pandemia de
Covid-19 mostrou que esses trabalhadores são os mais vulneráveis no ciclo da
reciclagem e intensificou a necessidade da proteção social exercida pelo Estado em
suas vidas, tanto no momento da pandemia quanto pós-pandemia de Covid-19.
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