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Academia.eduAcademia.edu
Organização Gleisse Ribeiro Alves Gabriel Blouin Genest Eric Champagne Nathalie Burlone A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Brasília 2021 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA - CEUB Reitor Getúlio Américo Moreira Lopes Diagramação Biblioteca Reitor João Herculino Capa Marcos Vianna DAREL/CEUB Disponível no link: repositório.uniceub.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) A crise da COVID-19 no Brasil e seus reflexos. / organizadores, Gleisse Ribeiro Alves [et al]. – Brasília: CEUB, 2021. 437 p. ISBN 978-65-87823-87-4 1. Políticas públicas. I. Centro Universitário de Brasília. II. Título. CDU 34:32 Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitor João Herculino Centro Universitário de Brasília – CEUB SEPN 707/709 Campus do CEUB Tel. (61) 3966-1335 / 3966-1336 PREFÁCIO Hoje, mais do que nunca, faz-se necessário termos consciência do papel e do destino que nos é reservado enquanto cidadãos e enquanto sociedade civil brasileira. Os problemas sociais existem. Os avanços também. Talvez até os problemas da humanidade sejam maiores e, portanto, mais desafiadores, tornando a vida mais complexa e requerendo maiores capacitações de todos para superá-los. Até porque a pandemia da Covid-19 precipitou uma profunda reformulação na forma de atuação das instituições públicas que, direta ou indiretamente, lidam com o enfrentamento de uma das maiores crises sanitárias vivenciadas pela humanidade. O ineditismo da situação, associado à acelerada disseminação do desconhecido vírus entre a população, obrigou diferentes governos de diferentes localidades e esferas a promover um rápido ajuste na máquina pública, que, por força da difícil e inesperada conjuntura, precisou ser preparada às pressas para lidar com os inúmeros problemas que emergiram em razão da crise. O Brasil e o Distrito Federal, entidade federativa que abriga os poderes da República, não fugiu à regra. Como em outras partes do mundo, aqui os efeitos da pandemia foram rapidamente sentidos, com a explosão do aumento de casos de infecção pela SARS-COV-2 e seu rastro sinistro de internações hospitalares e mortes. O quadro obrigou os Governos Federal, Estadual e Distrital a adotar uma série de medidas administrativas para lidar com a delicada circunstância. O mesmo ocorreu com outras instituições. Antes mesmo da declaração pública de pandemia, realizada em 11 de março de 2020 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a gravidade da situação já batera à porta do Ministério Público brasileiro e do próprio Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT). Cabendo a este Procurador Distrital dos Direitos do Cidadão a coordenação da Força-Tarefa, que teve como principal fundamento de sua criação a necessidade de fortalecer a integração entre procuradorias, promotorias, núcleos e grupos do MPDFT na defesa dos direitos coletivos e no controle das políticas públicas no contexto de crise sanitária de grande impacto socioeconômico. E neste contexto recebi, com muita satisfação, de Gleisse Ribeiro Alves, querida Professora e Doutora em Direito Internacional pela Universidade Lorraine da França, professora do CEUB e colaboradora do nosso Núcleo de Estudos e Pesquisas Avançadas no Terceiro Setor (NEPATS), o honroso convite para prefaciar obra por ela organizada, em conjunto com os dedicados Professores Gabriel Blouin Genest, da Universidade de Sherbrooke, e de Eric Champagne e Nathalie Burlone, ambos da Universidade de Ottawa. A Obra intitulada “A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS” foi gestada a partir de pesquisas realizadas pelo Grupo de Pesquisa do CEUB sobre Governança Global, coordenada pela diligente Professora Gleisse Ribeiro, e que integrou o projeto de pesquisa intitulado: “The influence of multilevel governance, transnational actors and public health information during COVID-19” liderado pelo atuante Professor Gabriel Blouin Genest da École de Politique appliquée, Université de Sherbrooke/Canadá. Destaque-se que para realização dos artigos, duas grandes frentes de trabalho foram realizadas ao longo dos últimos dois anos. A primeira com os estudantes do CEUB (curso de Relações internacionais e Direito) e mesmo egressos convidados a integrarem o projeto, divididos em grupos temáticos tais como: COVID-19 aspectos econômicos; COVID-19 aspectos políticos; COVID-19 aspectos sociais; COVID-19 aspectos jurídicos. Frentes estas coordenadas por diversos professores para que os estudantes tivessem uma orientação na pesquisa e redação dos trabalhos. A segunda com uma Chamada Pública para envio de trabalhos, cujos artigos devidamente submetidos e aprovados compõem também esta obra coletiva. Confesso que ao ler os artigos e nas conversas que tive com a Professora Gleisse, constatei significativo esforço dos estudantes e dos próprios professores que muito se dedicaram, durante a pandemia, na realização da pesquisa. Inclusive, com reuniões em grupo para debate dos temas da própria pesquisa, tudo a propiciar um ambiente de partilha e até de angústias, inclusive para superação de desafios e obstáculos que todos tiveram. Constato também a importância de uma Chamada Pública para envio de trabalhos que foram avaliados pelos organizadores. Tem como tópico que permeia todos os artigos a visão de que toda contribuição acadêmica é importante para trazer a lume os desafios pelos quais passaram e ainda passam os nossos governos e a própria sociedade no desafio de superar a Pandemia provocada pela Covid-19. Portanto, a obra é, indubitavelmente, fruto de um esforço coletivo e solidário de muitos. Posso dizer que a obra apresenta-se, no contexto dos artigos produzidos pelos Grupos de Pesquisas, em 5 (cinco) partes. A primeira, que inclusive abre a coletânea, denominada “AS TRÊS FASES DA POLÍTICA SANITÁRIA NACIONAL DURANTE A GRIPE ESPANHOLA: ELEMENTO CATALISADOR DE MUDANÇAS (1918-1920)”, dos autores Adan Martins Caetano e Jefferson Seidy Sonobe Hable, traz a lume fatos ocorridos no Rio de Janeiro e no Brasil, há pouco mais de 100 anos, que servem de lição e orientação para nossos gestores de hoje, vez que trata do processo histórico de formação da política nacional de saúde pública brasileira, tendo a gripe espanhola como elemento catalizador e motivador de mudanças e avanços na proteção à saúde coletiva. A segunda “A ODISSEIA SOCIOECONÔMICA BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA CONTADA A PARTIR DA DÉCADA 60 E DESEMBOCADA NA PANDEMIA DO COVID-19”, trabalho coordenado pela professora Patrícia Prego e escrito pelos alunos Marco Vinicius Quevedo e Tiago Rezende Alves, oferece interessante análise do histórico econômico brasileiro, a partir da década de 60, com seus planos econômicos e políticos, com a abordagem das ações e reflexos na economia do país e, por fim, aborda os impactos da Pandemia no âmbito social e econômico, com análise e decisões das ações de enfrentamento e seus impactos a curto e a longo prazo. O terceiro trata do “PARLIAMENTARY INQUIRY COMMITTEE (CPI) ON COVID-19 PANDEMIC IN BRAZIL AND THE DEFENSE OF DEMOCRACY IN CRISIS”, escrito pela Professora Gleisse Ribeiro Alves, em conjunto com as alunas Fernanda Lopes de Oliveira e Letícia Mendes Silva, cujo título em português pode ser traduzido como: “Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI) sobre a pandemia de Covid-19 no Brasil e a defesa da democracia em crise”, aponta o processo legislativo brasileiro como uma importante ferramenta de políticas públicas para criação de novas propostas de legislação. Destacam as autoras que a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a pandemia Covid-19, instalada em 2021, expôs o governo brasileiro falhas em lidar com a pandemia global, acumulando mais de 600 mil mortes. Esclarecem qual é o papel da CPI e o que ela significa para o Brasil e a democracia, explicando inclusive sua competência e seus impactos na política, e demonstrando como se torna uma importante ferramenta para democracia do Brasil em crise. O quarto artigo “A PARADIPLOMACIA: ALTERNATIVA DE FINANCIAMENTO VIÁVEL PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE?”, sob a coordenação da Professora Gleisse Ribeiro Alves, reúne os alunos: Eryck Chaves Tavares, Helohane Rodrigues Carneiro Pereira, Pedro Carvalho de Holanda Rodrigues, Victor Hugo Xavier dos Santos, Laura Luiza Gonçalves Teixeira, Leticia Rodrigues de Carvalho, Carlos Eduardo Soares e Victor Jak van Erven Sigaud. Neste trabalho, os autores destacam a disparidade de resposta à crise realizada pelo Brasil, no tangente à pouca sinergia entre as diversas dimensões políticas realizadas por cada ente federativo. Discorrem também sobre as dificuldades do Estado brasileiro em prover o direito fundamental à saúde e, também, identificam e apontam as atuações da paradiplomacia, por parte dos entes federativos, no enfrentamento e subfinanciamento da saúde pública no Brasil. O quinto “ENTRE CIÊNCIA, DIREITO E POLÍTICA: ACESSO E UTILIZAÇÃO PRIORITÁRIA DE EQUIPAMENTOS E SERVIÇOS DE SAÚDE POR PESSOAS COM DEFICIÊNCIA EM TEMPOS DE PANDEMIA”, escrito por Ana Cláudia M. de Figueiredo, Ana Cláudia Brandão, Isabela Sousa, Letícia Mares Antunes e coordenado pela Professora Luciana Barbosa Musse, aborda e enfoca o tema do acesso aos equipamentos e serviços de saúde por pessoas com deficiência em tempos de pandemia, destacando e identificando que não houve priorização do acesso prioritário a equipamentos e serviços, face a não concretização de políticas públicas apresentadas em projetos de lei nos vários âmbitos federativos. A obra como fiz menção ao iniciar esta apresentação compõe de artigos oriundos de estudos de Grupos de Pesquisas e de artigos oriundos de Chamada Pública, chamada esta que ocorreram e foram avaliados textos dos mais variados temas, tudo no contexto da Covid-19, constantes da presente obra. O primeiro de autoria de Carolina Reis Jatobá Coêlho, com o título de “DISTRIBUTION NATIONAL OF ADMINISTRATIVE AUTHORITIES IN COMPETENCES BRAZILIAN FEDERATIVE BETWEEN HEALTH SYSTEM: INTERNATIONAL VACCINE PURSHASE CONTRACTS AND PARADIPLOMACY”, que pode ser livremente traduzido como: “Distribuição de competências administrativas entre autoridades no Brasil sistema de saúde federativo: compra de vacina internacional, contratos e paradiplomacia”, e que apresenta importantes reflexões a respeito do federalismo brasileiro, destacando a importância de que haja uma entidade central não apenas responsável por tomar suas próprias decisões administrativas (especialmente quando a política pública precisa ser uniforme em todo país) ou quando mesmo como diferenças regionais no tratamento administrativo e legislativo, mas também que apresenta orientação mínima é essencial quanto às premissas a serem adotadas pelas outras entidades federal, estados-membros, Distrito Federal e municípios. Observou o artigo que os Estados-Membros desempenharam um papel de liderança, atuação na negociação, compra e aplicação de imunizantes (vacinas). Ao observar que os Estados-Membros assumiram a liderança na implementação de políticas de saúde, percebeu-se um adensamento do fenômeno da paradiplomacia, o que não é novo no cenário brasileiro, mas que foi amplamente utilizado como instrumento político na crise do Covid-19. O segundo artigo da chamada pública é de autoria de Paulo Roberto de Almeida, com o título: “O Brasil e a pandemia de Covid-19: aspectos internacionais”, apresenta ensaio acadêmico com abordagem das ações do Governo e da diplomacia atuais, destacando na visão do autor seu posicionamento ideológico e negacionista no enfrentamento da crise. O terceiro artigo de Renato Zerbini Ribeiro Leão, sob o título “The UNITED NATIONS COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGTHS AND THE FIGTH AGAINST COVID-19”, que pode ser livremente traduzido por “O controle das Nações Unidas para assuntos econômicos, sociais e culturais e direitos na luta contra a Covid-19”, destaca que o combate à pandemia de Covid-19 conta com meios de proteção que levam os direitos humanos em consideração e que o Pacto Internacional sobre Economia, Social e Direitos Culturais (PIDESC), que inclusive fornece um regime consolidado para a afirmação e proteção desses direitos, tanto pela sua composição como pelos seus princípios consagrando a existência de um verdadeiro regime de proteção à saúde. O quarto artigo “O POSICIONAMENTO DO BRASIL PERANTE ÀS NAÇÕES UNIDAS, A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE E A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMÉRCIO DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19: QUEBRA DOS PADRÕES TRADICIONAIS DA DIPLOMACIA NACIONAL”, dos autores Elisa de Sousa Ribeiro, André Mendes Pini e Júlio Edstron S. Santos, destacam como a diplomacia brasileira abordou os temas ligados à pandemia de Covid-19 perante às Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Mundial do Comércio. Em posicionamentos paradigmáticos, o país quebrou padrões tradicionais de sua política externa em benefício de uma visão ideológica voltada a um suposto liberalismo (econômico e político, ligado a direitos de primeira geração) e a um alinhamento aos interesses estadunidenses. O quinto artigo do Pós-Doutor Marcus Firmino Santiago, intitulado “CHAMEM O ESTADO! A CRISE SOCIAL E ECONÔMICA CAUSADA PELA PANDEMIA DO COVID-19 É A OPORTUNIDADE PARA ENTERRAR A AUSTERIDADE FISCAL”, traz abordagem atual e reflexiva sustentando que a gravidade do quadro social vivido hoje foi potencializada pelas escolhas da década anterior com sua aposta na redução do papel estatal como garantidor do bem estar social e que a saída para esta e outras crises humanitárias que possam surgir reside no fortalecimento da capacidade interventiva e regulatória do Estado. Concluindo por muito bem afirmar que “Combater as consequências sociais decorrentes da pandemia exige uma ação estatal ampla e constante. Os mercados privados não socorreram e não socorrerão as famílias que passam fome, as pessoas que ficaram sem emprego, que caíram doentes, que carregarão sequelas físicas e emocionais”. “OS CONTRATOS DE VENDA FUTURA DE COMMODITIES EM TEMPOS PANDÊMICOS: QUESTÕES SOBRE IMPREVISIBILIDADE E ALEATORIEDADE”, de Danilo Porfírio de Castro Vieira e Daniella Rebelo dos Santos Chaves é o sétimo artigo oriundo da chamada pública e busca expor que os eventos pandêmicos não são suportados pela alea negocial, mas pela imprevisibilidade, ao analisar os contratos de compra e venda futura de cereais, feitos anteriormente ao surto pandêmico, sofreram efeitos inesperados e supervenientes, em função da dimensão global da doença, gerando perdas e prejuízos superiores a média de mercado, transcendendo os riscos suportados em uma alea negocial. “SEXUALIDADE E INTERAÇÕES VIRTUAIS NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID 19” é o título do trabalho de Breno Ribeiro Custódio de Carvalho e Aline Sapiezinskas Kras Borges. Abordam tema novo oriundo das consequências e do próprio medo de contágio do vírus, questionando os possíveis impactos dessa situação de aumento das interações virtuais sobre a sexualidade dos indivíduos solteiros. Hédel de Andrade Torres e Barbara Tude de Souza Ferreira trazem a baila uma das formas mais graves de violação de direitos humanos que é o tráfico de pessoas, tanto no Brasil como no mundo. E, com o contexto “REFLEXOS DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19) NO AUMENTO DE VÍTIMAS DE TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL E NO MUNDO” o artigo analisa o crime de tráfico de pessoas de maneira a apresentar de quais maneiras a pandemia tem influenciado os diversos indicadores desse crime e colaborado para o aumento de suas vítimas em todo o mundo. Como bem colocado por Alexandre Pereira da Rocha, Mayara Lima Tachy, Welliton Caixeta Maciel e Valéria Vânia Costa da Silva, no artigo “SEGURANÇA PÚBLICA, PERSECUÇÃO PENAL E PRISÕES NO DISTRITO FEDERAL EM TEMPOS DE PANDEMIA DE COVID-19”, “a pandemia do novo Coronavírus atingiu o Brasil em proporções preocupantes. Nesse cenário, os campos da segurança pública, da persecução penal e das prisões no Distrito Federal também estão inseridos”. E tal constatação motivaram os autores a pesquisarem relevante tema, concluindo por afirmar que os direitos, por si só, não consegue solucionar os problemas de saúde pública dos presídios do DF. Rodrigo Augusto Lima de Medeiros, com o artigo “PARTICIPAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO NO ÂMBITO DO CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE: O CONAMA ENQUANTO TERMÔMETRO DOS INSTRUMENTOS DE POLÍTICA AMBIENTAL BRASILEIRA DURANTE A EMERGÊNCIA SANITÁRIA COVID19”, faz excelente abordagem e explora dimensões simbólicas da institucionalização da política ambiental e privilegia a interpretação de tais mudanças gerenciais no âmbito do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) por meio do exame de discursos, leis, decretos, resoluções, gráficos e tabelas, discutindo a importância e a efetividade da participação da sociedade civil na efetividade das decisões do Colegiado. O artigo “COMPLEXO REGULADOR E ERA COVID: ESTUDO PRELIMINAR”, de Simone Luzia Fidélis de Oliveira, Marcela Vilarim Muniz, Domitília Bonfim de Macêdo Mihaliuc e Lúcia Helena Bueno da Fonseca, aborda questão vital no âmbito da saúde. A Central de Regulação de Internação Hospitalar do Complexo Regulador de Saúde do Distrito Federal que tem, dentre suas funções, a priorização, controle e gestão de acesso a leitos de Unidade de Terapia Intensiva. Com a pandemia da COVID-19, houve crescimento exponencial na busca por esses leitos, oriundo da demanda do sistema de atendimento nas unidades públicas e do sistema de judicialização. A pesquisa de Joaquim Pedro Ribeiro Vasconcelos, Bruna Carvalho Barros Rosa Nobre, Izabel Cristina Bruno Bacellar Zaneti e Sílvia Maria Ferreira Guimarães, com o título “PANDEMIA DE COVID-19 E A VULNERABILIDADE DOS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS NO BRASIL”, revela a situação complexa dos catadores de materiais recicláveis diante da pandemia de Covid-19 no âmbito nacional e distrital. E os resultados demonstram que a realidade imposta pela pandemia do novo coronavírus agravou mais ainda o contexto de vulnerabilidade social dos catadores. A crise sanitária instaurada pela proliferação do SARS-COV-2 mostrou que esses trabalhadores são os mais vulneráveis no ciclo da reciclagem, o que intensifica a necessidade da proteção social do Estado em suas vidas, tanto no momento da pandemia quanto póspandemia de Covid-19. . Assim, este livro composto pela coletânea de excelentes artigos realizados pelos Grupos de Pesquisas e pela Chamada Pública, vem, pelo seu conteúdo, justamente se harmonizar com os desafios sempre presentes em nossa sociedade, que busca, a cada dia, ser mais justa e que só o será, em sua plenitude, com a contribuição de todos, por meio de um comportamento ético, transparente e responsável. Por tudo, concluo ser fundamental estarmos todos nós, cidadãos, sensíveis às transformações da sociedade, para sermos, com dignidade e ética, capazes de mantermos permanente compromisso com um mundo mais justo, em que a paz e o respeito mútuo sejam a tônica e o corolário de nossas relações pessoais, sociais e profissionais, independente de qual situação que possa impactar nossas vidas. Tenham todos uma excelente leitura! José Eduardo Sabo Paes Procurador de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pelo Centro de Estudos Interdisciplinares, do Ius Gentium Conimbrigae, Coimbra - Portugal Doutor em Direito pela Universidade Complutense de Madri SUMÁRIO AS TRÊS FASES DA POLÍTICA SANITÁRIA NACIONAL DURANTE A GRIPE ESPANHOLA: ELEMENTO CATALISADOR DE MUDANÇAS (1918-1920) ................................................................... 15 Alan Wruck Garcia Rangel; Adan M. Caetano; Jefferson Seidy Sonobe Hable A ODISSEIA DA SOCIOECONOMIA BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA CONTADA A PARTIR DA DÉCADA 60 E DESEMBOCADA NA PANDEMIA DO COVID-19 ............................. 41 Marco Vinicius Quevedo; Tiago Rezende Alves DISTRIBUTION OF ADMINISTRATIVE COMPETENCES BETWEEN NATIONAL AUTHORITIES IN BRAZILIAN FEDERATIVE HEALTH SYSTEM: INTERNATIONAL VACCINE PURSHASE CONTRACTS AND PARADIPLOMACY ...................................................................................................................... 60 Carolina Reis Jatobá Coêlho PARLIAMENTARY INQUIRY COMMITTEE (CPI) ON COVID-19 PANDEMIC IN BRAZIL AND THE DEFENSE OF DEMOCRACY IN CRISIS ........................................................................................................ 73 Gleisse Ribeiro Alves; Fernanda Lopes de Oliveira; Letícia Mendes Silva O BRASIL E A PANDEMIA DA COVID-19: ASPECTOS INTERNACIONAIS .................................................................................. 85 Paulo Roberto de Almeida THE UNITED NATIONS COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS AND THE FIGHT AGAINST COVID-19 .................................................................................................................... 110 Renato Zerbini Ribeiro Leão A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NO PRIMEIRO ANO DE GESTÃO DA PANDEMIA DE COVID-19: QUEBRA DOS PADRÕES TRADICIONAIS DA DIPLOMACIA NACIONAL ............................ 137 Elisa de Sousa Ribeiro; André Mendes Pini; Júlio Edstron S. Santos A PARADIPLOMACIA: ALTERNATIVA DE FINANCIAMENTO VIÁVEL PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE? ............. 172 Gleisse Ribeiro Alves; Eryck Chaves Tavares; Helohane Rodrigues Carneiro Pereira; Pedro Carvalho de Holanda Rodrigues; Victor Hugo Xavier dos Santos; Laura Luiza Gonçalves Teixeira; Leticia Rodrigues de Carvalho; Carlos Eduardo Soares; Victor Jak van Erven Sigaud CHAMEM O ESTADO! A CRISE SOCIAL E ECONÔMICA CAUSADA PELA PANDEMIA DO COVID-19 É A OPORTUNIDADE PARA ENTERRAR A AUSTERIDADE FISCAL ............................... 201 Marcus Firmino Santiago OS CONTRATOS DE VENDA FUTURA DE COMMODITIES EM TEMPOS PANDÊMICOS: QUESTÕES SOBRE IMPREVISIBILIDADE E ALEATORIEDADE .................................. 225 Danilo Porfírio de Castro Vieira; Daniella Rebelo dos Santos Chaves SEXUALIDADE E INTERAÇÕES VIRTUAIS NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID 19 .................................................................... 237 Breno Ribeiro Custódio de Carvalho; Aline Sapiezinskas Kras Borges A EPIDEMIA DE DIVÓRCIOS: MAIS UMA CONSEQUÊNCIA DA COVID-19? ............................................................................................... 248 Aline Sapiezinskas Kras Borges Canani; Ronald Henrique Leal Acipreste REFLEXOS DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS (COVID-19) NO AUMENTO DE VÍTIMAS DE TRÁFICO DE PESSOAS NO BRASIL E NO MUNDO ............................................................................................. 258 Hédel de Andrade Torres; Barbara Tude de Souza Ferreira ENTRE CIÊNCIA, DIREITO E POLÍTICA: ACESSO E UTILIZAÇÃO PRIORITÁRIA DE EQUIPAMENTOS E SERVIÇOS DE SAÚDE POR PESSOAS COM DEFICIÊNCIA EM TEMPOS DE PANDEMIA ............................................................................................. 297 Luciana Barbosa Musse; Ana Cláudia M. de Figueiredo; Ana Cláudia Brandão; Isabela Sousa; Letícia Mares Antunes SEGURANÇA PÚBLICA, PERSECUÇÃO PENAL E PRISÕES NO DISTRITO FEDERAL EM TEMPOS DE PANDEMIA DE COVID-19 .................................................................................................................... 327 Alexandre Pereira da Rocha; Mayara Lima Tachy; Welliton Caixeta Maciel; Valéria Vânia Costa da Silva PARTICIPAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO NO ÂMBITO DO CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE: O CONAMA ENQUANTO TERMÔMETRO DOS INSTRUMENTOS DE POLÍTICA AMBIENTAL BRASILEIRA DURANTE A EMERGÊNCIA SANITÁRIA COVID19. ............................................. 364 Rodrigo Augusto Lima de Medeiros COMPLEXO REGULADOR E ERA COVID: ESTUDO PRELIMINAR ......................................................................................... 385 Simone Luzia Fidélis de Oliveira; Marcela Vilarim Muniz; Domitília Bonfim de Macêdo Mihaliuc; Lúcia Helena Bueno da Fonseca PANDEMIA DE COVID-19 E A VULNERABILIDADE DOS CATADORES DE MATERIAIS RECICLÁVEIS NO BRASIL .................................................................................................................... 411 Joaquim Pedro Ribeiro Vasconcelos; Bruna Carvalho Barros Rosa Nobre; Izabel Cristina Bruno Bacellar Zaneti; Sílvia Maria Ferreira Guimarães AS TRÊS FASES DA POLÍTICA SANITÁRIA NACIONAL DURANTE A GRIPE ESPANHOLA: ELEMENTO CATALISADOR DE MUDANÇAS (1918-1920) Alan Wruck Garcia Rangel1 Adan M. Caetano2 Jefferson Seidy Sonobe Hable3 RESUMO Trata-se de pequena contribuição sobre o processo histórico de formação da política nacional de saúde pública, tendo a epidemia da gripe espanhola como elemento catalisador. Demonstramos, com base na legislação e nos jornais da época, a ocorrência de diferentes reações sociais e políticas ante à crise sanitária instaurada no período indicado que contribuíram à centralização da burocracia estatal no tocante à saúde pública. O estudo também aborda, ainda que de modo indireto, a relação entre ciência, saúde e política através das transformações ocorridas, em um curto espaço tempo, no tratamento administrativo da questão sanitária, e emergência de características do Estado-Cientista. Palavras-chave: História do Direito Social; Saúde Pública; Epidemia. ABSTRACT It is a contribution to the historical process of formation of national public health, having the “Spanish flu epidemic” as a catalyst. Based on the legislation and newspapers of the time, we demonstrate the occurrence of different social and political reactions to the sanitary crisis established in the indicated period, which contributed to the centralization of the state bureaucracy with regard to public health. The study also refers, indirectly, to the relationship between science, health and politics through the transformations that occurred, in a short space of time, in the 1 2 3 Doutor em História do Direito e das Instituições pela Universidade de Estrasburgo, França. Pósdoutorando na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador vinculado ao Laboratório Interdisciplinar de História do Direito. E-mail: alan.wruck@gmail.com Internacionalista. Graduado em Relações Internacionais pelo UniCEUB - Brasília/DF. Email: adanm.caetano@sempreceub.com Advogado. Aluno pesquisador pela Graduate School of Environmental Studies na Universidade de Nagoya/Japão. Graduado em Direito pelo UniCEUB Brasília/DF. Email: jefferson.sh@sempreceub.com A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS administrative treatment of the sanitary issue, and the emergence of characteristics of the State-Scientist. Keywords: History of Social Law; Public Health; Epidemic 1 INTRODUÇÃO A pandemia da COVID-19 pegou o mundo de surpresa. Ninguém poderia imaginar que cem anos depois - em pleno século XXI! -, desde a epidemia da gripe espanhola de 1918, ainda passaríamos por uma crise sanitária dessa envergadura, deixando sofrimento e muitas mortes na população do globo. Os avanços na ciência médica e toda a tecnologia desenvolvida nas últimas décadas não foram suficientes para estancar o novo vírus que se alastrou rapidamente em escala planetária, e levou à formação de uma cooperação internacional no seu enfrentamento. No entanto, apesar das tentativas de se estabelecer uma política sanitária internacional comum, coordenada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), com recomendações e diretrizes uniformizadas, na prática, os governantes de cada país adotavam diferentes posturas diante da pandemia. No Brasil, a postura adotada pelo presidente da República causou bastante polêmica, ao negar explicitamente a gravidade de um vírus até então desconhecido pela própria classe médica. Mais de 500 mil mortes e milhares de infectados, protestos da população, várias trocas feitas na chefia do Ministério da Saúde, abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito contra o governo para investigar supostos crimes de responsabilidade, tudo isto revela um cenário generalizado de crise, não só sanitária, mas também institucional, política e social, desde que a pandemia chegou no território brasileiro em março de 2020. Algo semelhante o Brasil vivenciou durante a eclosão da gripe espanhola, em um contexto completamente diferente do atual. A crise sanitária instaurada em 1918 devastou a população, com alto número de óbitos e infectados, e se transformou em crise política, abalando as instituições, muito por causa da postura adotada pelo governo nacional no início da epidemia, o que alavancou contestações e reações das mais diversas. O presente artigo tem, portanto, como escopo estudar a política sanitarista desenvolvida no Rio de Janeiro - à época Distrito Federal - nos dois anos que 16 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS transcorreram o surto da gripe espanhola 4. A análise se concentra em um período curto, mas de grande drama social, compreendido entre 1918 e 1920, e tenta demonstrar como a epidemia da gripe espanhola impactou a população carioca e o cenário político republicano e, ao mesmo tempo, alavancou o desenvolvimento de planos de ação mais amplos, de espectro nacional, para enfrentar uma doença até então completamente desconhecida. A historiografia assinala que a gripe espanhola promoveu verdadeiro despertar de consciência à questão sanitária, e a década de 1920 marca o início da nacionalização das políticas de saúde e saneamento5. Com efeito, se inaugura, nesta década, uma fase de intervencionismo estatal que relativiza os preceitos do liberalismo clássico fundado no princípio do laissez-faire e base de sustentação da ideologia política da Primeira República. A necessidade de intervencionismo do governo federal, em um setor até então de competência dos Estados, e imiscuído à “política dos governadores”6, revela a fragilidade dos serviços de saúde locais à época7. Até a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em janeiro de 1920, não havia, portanto, uma administração nacional consistente, centralizada, no campo da saúde pública. O estudo tenta estabelecer, através das fontes pesquisadas, diálogo entre história do direito social e história política, e conhecer os impactos nos campos sociais e políticos, e medir o intervencionismo federal através da produção 4 Os principais trabalhos sobre a gripe espanhola no Rio de Janeiro são: a dissertação de mestrado de Adriana Goulart, Um cenário mefistofélico: a gripe espanhola no Rio de Janeiro, de 2003, que depois foi sintetizado no artigo Revisitando a Espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro (2005) em que a autora analisa os impactos da gripe nos campos médico e político. O recente livro de Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2020), A bailarina da morte, que aborda de modo amplo os efeitos políticos e sociais da gripe espanhola nas principais capitais do Brasil, e no Distrito Federal, em que retoma muitos elementos mencionados no estudo de Goulart. Um estudo já antigo, mas que serviu de ponto de partida para os dois trabalhos acima, é o de Nísia Lima e Gilberto Hochman (1998), Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil redescoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República que, apesar de não situar a gripe no centro da análise, traz informações importantes sobre o movimento sanitarista no Rio de Janeiro. 5 HOCHMAN; LIMA, 1998, p. 36. 6 A Primeira República é marcada pela descentralização, com grande autonomia conferida aos Estados. Os governadores dos Estados consentiam em manter sua independência em face do Distrito Federal, e como moeda de troca firmavam acordo político no qual os Estados economicamente mais expressivos alternavam a cadeira de presidente da República. Os trabalhos historiográficos que analisam a Primeira República a partir do marco teoria centro/periferia são abundantes. A grande autonomia administrativa na periferia levou Schwarcz e Starling (2020) a compreender as diferentes reações sociais e políticas em face da gripe espanhola a partir dos Estados. 7 Com exceção do Estado de São Paulo que possuía legislação modelo neste setor. 17 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS legislativa. Não se trata, portanto, de dar apenas enfoque à política, centrar a análise em alguns personagens e retraçar as diferentes medidas tomadas pelas autoridades da época, nem tampouco utilizar apenas as leis promulgadas como fio condutor da análise, mas também de colocar em relevo os diferentes questionamentos e reações em face da epidemia da gripe espanhola. A “gripe espanhola”, expressão, na verdade, equívoca, pois, como se sabe, não teve origem na Espanha, é uma doença respiratória provocada pelo vírus Influenza A (H1N1)8. Não se sabe ao certo onde o vírus surgiu 9, e nem a quantidade exata de infectados na população do planeta no período pandêmico, entre 1918 e 1919. Há estimativa de que 500 milhões de pessoas tenham sido contaminadas, deixando 50 milhões de vitimados10, ultrapassando o número de óbitos de civis e militares durante a guerra. A gripe desembarcou no Brasil por intermédio da tripulação do navio inglês Demerara, deixando rastros da doença em todos os portos que atracou. Em setembro de 1918, o “navio da morte”, como depois ficou conhecido, aportou no Recife, depois em Salvador, Rio de Janeiro e Santos, para em seguida partir para Montevidéu. Em questão de meses a doença se alastrava por todo o país, e o Brasil registrou 35 mil mortes, com a cidade do Rio de Janeiro tendo o maior número de vítimas11. No século XIX, os surtos epidêmicos - da febre amarela de 1850 e de 1870, os mais devastadores -, deixavam rastro de morte e sofrimento, e eram marcados pelo desconhecimento da ciência médica sobre a sua transmissão. Doenças como a tuberculose e varíola, que assolaram a população brasileira por séculos, eram 8 A primeira notícia do aspecto epidêmico da gripe aconteceu na Espanha, onde a imprensa não sofria censura devido ao não envolvimento do país na Primeira Guerra. Tendo em vista que, discutir sobre a possibilidade de suas tropas serem afetadas pela enfermidade poderia significar uma demonstração de fraqueza, muitos Estados censuraram a gravidade do problema e classificaram a doença como uma epidemia espanhola. 9 Alguns estudos atribuem que a moléstia tenha surgido em campos de treinamento militar de países com envolvimento direto com a guerra 10 MARTINI et alli., 2019, p. 66. 11 SCHWARCZ; STARLING, 2020. p. 65. 18 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS constantemente associadas à pobreza por uma linguagem médica “centrada nas noções de meio ambiente e aclimatação” 12. As ações do governo no setor da saúde eram pautadas pelo conceito de “hygiene”, bastante ambíguo, capaz de justificar uma intervenção sob pretexto de “interesse público” e, ao mesmo tempo, promover segregações 13 - o exemplo mais conhecido o Bota-Abaixo da reforma urbana do prefeito carioca Pereira Passos. Pobreza, sujeira e epidemia estavam frequentemente associadas nas justificações de um intervencionismo estatal “conservador, excludente e sem nenhuma sensibilidade para a questão social”14. No entanto, naquele ano de 1918 ninguém imaginava uma pandemia dessa envergadura. Os avanços da medicina científica, com descobertas importantes da bacteriologia para cura de antigas moléstias, dava esperança de dias melhores 15. A Primeira República havia conhecido uma campanha bem sucedida de erradicação da varíola, colocada em prática na cidade do Rio de Janeiro pelo médico higienista Oswaldo Cruz16. Essa experiência, muito embora maculada pela Revolta da Vacina, transmitia certo otimismo, ao menos entre cientistas e a elite republicana, e serviu de pontapé inicial no lento desenvolvimento do setor de saúde nacional. Em sentido contrário ao triunfo de qualquer política sanitária da época, a gripe espanhola devastou a população brasileira em escalas nunca vistas antes, e revelou a irresponsabilidade dos governantes e as fragilidades dos serviços de saúde. Ao infectar todas as classes sociais, e fugir da lógica da “ditadura sanitarista” dos primeiros anos da República, os governantes foram obrigados a rever suas políticas, diante de um cenário inquietante de aumento progressivo do número de óbitos na população. A medida que o vírus se disseminava a mortandade aumentava, o que chamou a atenção da imprensa de todo o mundo, colocando a “Influenza espanhola” nas primeiras páginas dos jornais. No Rio de Janeiro, os principais jornais noticiaram, 12 CHALHOUB, 2017, p. 108. SEELAENDER, 2006, p. 14, e 2021, p. 180. 14 SCHWARCZ; STARLING, 2020. p. 18. 15 SILVEIRA, 2005, p. 93. 16 A obrigatoriedade da vacina não foi bem recebida pela população carioca que reagiu de modo violento e brutal, causando verdadeira revolta urbana (CHALHOUB, 2017, p. 69 e s.). 13 19 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS cada um à sua maneira, os incidentes causados pela gripe, e a situação caótica que tomou conta da cidade, com perda diária de vidas, interrupção de diversos serviços essenciais, e aumento da fome e miséria. Isto tudo causou imensa comoção social e provocou diferentes questionamentos e reações, perceptíveis nas fontes trabalhadas, contra o conservadorismo da política sanitarista republicana. É a partir da identificação e análise desses questionamentos e reações que pudemos identificar três fases da política sanitarista organizada em torno da gripe espanhola. Em cada uma delas, a figura do diretor geral - responsável pelo setor da saúde - aparece como peça-chave caracterizadora da postura do governo diante da epidemia. Para tanto, a pesquisa está apoiada na legislação produzida no campo da saúde durante o período indicado, e nos jornais cariocas A Noite, Correio da Manhã, O Paiz e Gazeta de Notícias. Nessas fontes, pudemos coletar dados sobre as três fases da política sanitarista entre 1918 e 1920, tendo a gripe espanhola como fator de impacto e gatilho que contribuiu para reforma administrativa na área da saúde. Convém, portanto, dividir o estudo em três partes. Na primeira, relatar a fase de incerteza, desconhecimento e subestimação da gravidade da doença (I), seguida de uma crise sanitária sem precedentes e caracterizada pela mudança de postura e implemento de ações de enfrentamento (II). E, finalmente, uma terceira e última fase de incremento e reforma das instituições e dos serviços federais, que culmina com a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (III). 2 O “MAL DE SEIDL”: A SUBESTIMAÇÃO DA GRIPE ESPANHOLA A expressão “mal de Seidl”, forjada pelo Gazeta de Notícias, em matéria publicada no dia 16 de outubro de 1918, é ilustrativa desse período 17. Carlos Pinto Seidl, médico paraense, formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, membro titular da Academia Nacional de Medicina, ocupou a Diretoria Geral de Saúde Pública entre 1912 e 1918. Quando a epidemia eclodiu na capital federal, era, portanto, ele o responsável pela gestão e tomada de decisões em matéria de saúde pública, transformando-se, posteriormente, no principal alvo de ataques e 17 Gazeta de Notícias, 16.10.1918. 20 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS responsável pela crise sanitária. Sua saída da direção da Saúde Pública, em 18 de outubro de 1918, marca o fim desse período. A sensação geral à época era de que o governo não havia dado a devida importância à “influenza espanhola”, e por isto não havia tomado com “antecedência as medidas preventivas que o caso requeria”18. Quando o número de óbitos começou a crescer assustadoramente, o pouco caso do governo com a doença foi interpretado como má administração. O Gazeta de Notícias não poupou adjetivos para criticar: “Inércia culposa”, “imprevidência criminosa”, “mal administrador”, “médico sem clinica e burocrata” que estava ali “unicamente contando tempo para a aposentadoria”, foram os termos empregados para desqualificar o diretor geral 19. Talvez o jornal tenha exagerado no tom, com emprego de palavras fortes, o que acabou gerando enorme mal-estar, e o governo, a pedido de Seidl, reagiu, aplicando censura ao jornal20. Isto só fez piorar a situação. O periódico carioca noticiou a censura em palavras garrafais e com deboche: “Que beleza! Agora... a grippe hespanhola cessará completamente (...). A população pode ficar descansada, porque o governo está providenciando, de maneira que já hoje ninguém verá publicados os nomes das pessoas mortas”21. Seidl não foi, entretanto, o único alvo de ataques da imprensa. Jayme Silvado, responsável pelo Serviço de Profilaxia do Porto, uma seção da Diretoria Geral de Saúde Pública, foi também acusado de falhar na inspeção de navios contaminados e favorecer a entrada da doença, sob o argumento de que “positivista, não acredita em micróbios” 22. A indisposição do governo para tomar medidas eficazes de enfrentamento não estava relacionada à falta de experiência para lidar com epidemias. Existia à época legislação com medidas de profilaxia geral e especial para combater doenças transmissíveis23. O Código Sanitário de São Paulo, por exemplo, previa um protocolo bastante completo quando detectado alguém contaminado24: notificação 18 Ibidem. Ibidem. 20 Gazeta de Notícias, 18.10.1918. 21 Ibidem. 22 GOULART, 2005, p. 106. 23 O Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894, depois reformado em abril de 1918, com acréscimo de novas regulamentações, era o que se tinha de mais sofisticado à época na matéria. 24 Decreto n° 2.918, 9 de abril de 1918. 19 21 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS da autoridade sanitária (art. 555), o isolamento do infectado (art. 568), desinfecção dos locais e objetos contaminados (art. 583), e vigilância médica com exame diário durante o período máximo de incubação da doença (art. 602). Em seguida, orientava um procedimento específico a ser adotado a cada doença transmissível: varíola, escarlatina, peste, cholera, febre amarela, diphteria, febres typhoide, tuberculose, lepra, impaludismo, ancylostomose, coqueluche, etc. A gripe, obviamente, não figurava no rol de doenças transmissíveis. Até então as moléstias que mais matavam e faziam a população sofrer não eram as gripes. Talvez isso explique o ceticismo de Seidl, sua descrença, quanto à gravidade de uma doença que todos desconheciam, inclusive a classe médica. No entanto, ao invés de adotar uma postura de precaução, ele preferiu contemporizar, fazendo a população acreditar que se tratava de uma doença “benigna”. Isto fica nítido na sua fala em conferência à Academia de Medicina, cujas conclusões foram publicadas no jornal A Noite25. Nas palavras de Seidl, se tratava apenas de “uma simples influenza, synonymia de grippe”, sendo desnecessária medidas de “profilaxia geral”, pois “em sua marcha caprichosa e vagabunda, a influenza teria... menosprezado em todos os países, os regulamentos, medidas administrativas e todas as quarentenas” 26. E assim concluía: qualquer medida que tentasse “impedir a invasão pela gripe... de uma região ou de uma cidade, é procurar resolver um problema atualmente insolúvel, um sonho, uma utopia científica”27. Considerava, portanto, o isolamento social como “irrealizável”, e recomendava, apenas, medidas de “prophylaxia individual”, como higienização da boca e fossas nasais, e a ingestão de “saes de quinino, em dose útil, como preventivo”28. A especulação comercial aproveitou essas recomendações oficiais para vender produtos. Dois dias depois da conferência de Carlos Seidl, o Correio da Manhã anuncia o produto “Calmettina”, líquido para assepsia da boca e das fossas nasais29. A publicidade trazia, ainda, um texto, destinado “ao povo sensato”, no qual 25 A Noite, 10.10.1918. Ibidem. 27 Ibidem. 28 Ibidem. 29 Correio da Manhã, 12.10.1918. 26 22 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS lembrava que o próprio Diretor Geral de Saúde Publica, “em suas doutas considerações apresentadas... à ilustre e benemérita Academia de Medicina, chega a conclusão de que, para defender a população da pandemica, gripe (influenza hespanhola), importa, sobretudo, cuidar da prophylaxia individual” 30. Em outro anúncio se vendia “capsulas reguladoras do aparelho digestivo” com a transcrição ipsis litteris de trecho da fala de Carlos Seidl para ganhar a credibilidade dos seus fregueses: “Diz o ilustre Director da Saude Publica: “...trazer o aparelho digestivo regulado é uma das condições contra esta moléstia” 31. Os sais de quinino, igualmente recomendados pelo diretor de Saúde Pública, ganharam uma atenção especial nos jornais. O Dr. Raul Leite escrevia à redação do Correio da Manhã, em outubro de 1918, relatando o uso dos “saes de quinino” na sua casa habitada por doze pessoas, sendo seis de sua família e seis do serviço doméstico32. Segundo o relato do médico, dez pessoas tomaram o tal medicamento, e nada sentiram, ao passo que as outras duas que se opuseram a tomar, “foram fortemente attingidas”33. Dizia, ainda, que estava “absolutamente convencido de que este poderoso medicamento e um pouco de menthol e acido bórico para o nariz, previnem completamente a “grippe hespanhola” (...)”34. A desinformação sobre as causas e males da gripe espanhola era generalizada35. No meio da população o recurso à medicina popular, com recomendações de chás, emplastros, e todo tipo de remédios caseiros, além de simpatias e produtos de limpeza, passaram a ser comercializados como receitas milagrosas. Os anúncios nos jornais pululavam: “perfumador Tehivona”, “específicos homeopáticos” (Antipanpyrus”, “Albapenitum”), fortificantes (“Satosin”, “Emulsão de Scott”, “Vanadiol”), “água de colônia Odean”, comprimidos de aspirina da Bayer, desinfetantes de ambiente e objetos, até uso do alcatrão. O Dr. Guilherme Elseniohr, que se apresentava como especialista em moléstias respiratórias, havia elaborado um “específico” milagroso administrado por 30 Ibidem. Correio da Manhã, 13.10.1918. 32 Correio da Manhã, 21.10.1918. 33 Ibidem. 34 Ibidem. 35 Ainda em 1919, circulou rumores de que Carlos Chagas havia encontrado a bactéria transmissora da gripe. Ninguém à época parecia perceber que se tratava de um vírus! Somente em 1930 o vírus H1N1 é descoberto. 31 23 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS meio de injeções, e prometia que de 4 a 16 horas após a primeira dose o doente estaria salvo36. A exploração comercial era tamanha que haviam remédios milagrosos para “depois da Influenza”. As “Pílulas Rosadas do Dr. Williams” recomendadas às pessoas atacadas pela gripe evitava que elas ficassem “debeis e nervosas depois de desaparecer a febre”, e sua eficácia estava assegurada depois de 30 anos de experiência em epidemias na Europa e América 37. O resultado não poderia ser outro, além de números preocupantes. O Correio da Manhã estampava, em 15 de outubro de 1918, a seguinte manchete: “A grippe estende os seus tentáculos a todos os cantos da cidade”, e trazia uma extensa lista de “casos fatais”, pessoas que faleceram na Santa Casa de Misericórdia, ou em suas residências38. O Gazeta de Notícias, deste mesmo dia, imprimiu na primeira página manchete estarrecedora: “O Rio é um vasto hospital” 39. Alertava que não havia médicos suficientes na cidade, e que os remédios sumiram das prateleiras das farmácias. Contavam-se doentes em todas as principais repartições públicas: exército, marinha, nos ministérios, nos correios, na brigada policial, no Senado, no fórum de justiça, e a companhia de fornecimento de luz (Light) tinha mais de 1.200 empregados infectados40. Com efeito, devido ao rápido período de incubação da doença, houve aumento de 2.000% na taxa de mortalidade no Rio de Janeiro, observados 930 óbitos pela gripe até a segunda metade do mês de outubro de 1918, em comparação aos 48 casos de morte por gripe comum no mês anterior 41. Com tantos mortos, a população presenciava cenas sombrias, com cadáveres em decomposição nas casas ou depositados nas ruas, onde ficavam por horas, dias, diante de um serviço de remoção em colapso42. Quando transportados, eram carregados amontoados, uns por cima dos outros, e desprendiam “horrível fétido”43. Isto durou por oito dias. Tomado pelo 36 Correio da Manhã, 28.10.1918. Correio da Manhã, 17.10.1918. 38 Correio da Manhã, 15.10.1918. 39 Gazeta de Notícias, 15.10.1918. 40 Ibidem. 41 GOULART, 2005, p. 105. 42 Gazeta de Notícias, 23.10.1918. 43 Ibidem. 37 24 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS desespero e medo da doença desconhecida, um sujeito preferiu tirar a própria vida com um tiro na cabeça do que contrair a gripe44. O médico higienista Carlos Moncorvo Filho, que esteve na linha de frente durante a epidemia, relatou, no seu O Pandemônio de 1918, um cenário aterrorizante nos hospitais: “havia gente de todas as classes sociais, indivíduos brancos e de cor, velhos, moços e crianças carregados [...] cambaleando, esquálidos, ardendo em febre, e até mesmo a expirar na via pública” 45. A influenza havia impossibilitado a maioria dos profissionais de saúde, e relata que se sentiu arruinado e, por vezes, com o “ímpeto de fugir das cenas macabras e dos meus ouvidos lancinantes gemidos que me dilaceravam a alma”46. Com tantas mortes, e cenas apocalípticas, que pareciam anunciar o fim do mundo, a sociedade civil, através dos jornais, e os políticos, no Congresso Nacional, continuavam a atacar Seidl pela incompetência e morosidade nas ações, e o governo Wenceslau Brás sangrava à reboque. Na Câmara, alguns deputados, liderados por Nicanor do Nascimento, davam vazão à comoção dos cariocas, e criticavam abertamente o governo e seu diretor geral de saúde pública 47. Sob pressão, e buscando evitar prejuízos políticos, o presidente Wenceslau Brás culpou o diretor geral pela situação de calamidade, o que forçou Carlos Seidl a pedir demissão do cargo em 18 de outubro de 191848. Em momentos de crise, as falhas, bem como os acertos, ficam expostos, em evidência, gerando tensão e impasse, e é naturalmente que se procure por responsáveis, ainda que apenas para servir de bode expiatórios. Como chefe da diretoria, e primeira autoridade sanitária da capital federal, era de se esperar que a culpa recaísse sobre os ombros de Carlos Seidl. No entanto, vale ressaltar que apesar das grandes dificuldades e fragilidades dos veículos sanitários durante a epidemia, o diretor geral não detinha total responsabilidade pelas consequências com a saúde pública, pois havia “clara falta de autonomia [...] para desenvolver as atividades a 44 Correio da Manhã, 11.10.1918; Gazeta de Notícias, 11.10.1918. FILHO, 1924, p. 49. 46 Ibidem 47 SCHWARCZ; STARLING, 2020, p. 147. 48 Ibid., p. 148. 45 25 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS seu cargo”49. A atuação da Saúde Pública não era, portanto, autônoma, e estava vinculada Ministério da Justiça e Negócios Interiores que reunia uma série de outras pastas – administração da justiça, da polícia, da guarda nacional, catequização dos povos indígenas, saúde e assistência pública, menores abandonados, alienados etc 50. – e “destinava às questões de saúde menor atenção do que elas necessitavam” 51. Alguns anos mais tarde, a imagem de Carlos Seidl foi defendida pelo colega Moncorvo Filho, acreditando que ele serviu de bode expiatório para a designação de um culpado pela crise sanitária: “é portanto evidentíssimo não caber ao Diretor Federal de Saúde [Carlos Seidl] na órbita das suas funções normais e regulamentares, nem a lembrança da execução da totalidade das medidas precisas, na conjuntura criada pela invasão da gripe epidêmica” 52. 3 O ENFRENTAMENTO DA GRIPE ESPANHOLA Em 19 de outubro de 1918, Theóphilo Torres foi nomeado o novo Diretor Geral de Saúde Publica53. Dias depois, Carlos Chagas seria integrado à diretoria geral, sob aplausos da elite política e da imprensa. A mudança deu nova esperança no combate à epidemia. Poderíamos pensar que essa mudança teria sido crucial para provocar a queda no número de infectados e de mortes. No entanto, o estudo de Adriana Goulart deixa entender que a principal causa do abrandamento da disseminação da doença esteve menos atrelada a uma alteração substancial no quadro administrativo do que o próprio comportamento da gripe que atuava em ondas epidêmicas. O estudo sugere que o fato de Carlos Chagas ter assumido o cargo em um momento de rarefação natural do número de infectados e de mortos foi uma coincidência que adensou bastante “capital político e social” à sua pessoa, e concorreu para sua mitificação como “salvador da pátria”54. 49 GOULART, 2005, p. 107. O Ministério da Justiça e Negócios Interiores havia sido estruturado em 30 de outubro de 1891, por meio da lei nº 23, como proposta do governo federal de reorganizar os serviços da Administração Federal. 51 GOULART, 2005, p. 107. 52 FILHO, 1924, p. 37. 53 Gazeta de Notícias, 19.10.1918. 54 GOULART, 2005, p. 127. 50 26 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Num período de conhecimento científico bastante limitado, em que se achava, inclusive, que a gripe espanhola poderia ser propagada por micróbios 55, a coincidência favorecia Chagas. Sem contestar as conclusões do estudo de Goulart, pretendemos nesta seção testar, com apoio na legislação produzida no período indicado, se as ações planificadas e projetadas nas leis, após a saída de Carlos Seidl, constituíram ou não mudanças significativas no modo de enfrentar a gripe espanhola. Como já dito, para substituir Seidl, o presidente Wenceslau Brás nomeou Theóphilo de Almeida Torres para o cargo de Diretor Geral de Saúde Pública. Formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e membro da Academia Nacional de Medicina, tinha reconhecida liderança da bem sucedida Comissão de Profilaxia da Febre Amarela em Manaus em 1913. Sua nomeação não teve, entretanto, aceitação unânime na opinião pública, ao menos aquela expressada na imprensa e entre os parlamentares. Se, para alguns jornais, o novo diretor geral não poupava esforços para obter “a normalização de determinadas seções de Saúde Pública”, ao fomentar, inclusive, o “estudo contínuo... sobre novas medidas para serem colocadas em prática” 56, para alguns parlamentares, como o deputado Nicanor do Nascimento, a escolha de Torres era bastante contestável. Com claro propósito de mostrar a todos que uma nova administração surgiria, e evitar mais desgaste político, o governo decretou, como medida de profilaxia geral, feriado os dias 19, 20, 21 e 22 de outubro. No entanto, os jornais continuaram a divulgar números alarmantes, com mais de 500 mortes em um único dia, e mais da metade da população contaminada57. Torres, por sua vez, parecia empenhado em enfrentar o desafio. Um dia antes de assumir ao cargo, havia convencido o Ministério da Justiça e Negócios Interiores a solicitar adiantamento financeiro a fim de dar efetividade aos serviços de combate à epidemia58. Ainda naquele dia, 18 de outubro de 1918, a Diretoria de Saúde 55 SILVEIRA, 2005, p. 92. Gazeta de Notícias, 23.10.1918. Gazeta de Notícias, 22.10.1918. 58 Gazeta de Notícias, 18.10.1918. 56 57 27 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Pública recebeu uma comissão de médicos estrangeiros - Argentina, Peru e Bolívia que se ofereceu para ajudar a reestruturar o sistema sanitário da capital federal, pois, naquele momento, enfrentava sérias dificuldades. Nessa ocasião, Torres apoiara a iniciativa59. Para solucionar o grave problema da remoção de cadáveres, Torres requisitou “todas as ambulâncias existentes nos polos de infecção, para o transporte e socorro de enfermos”60. Mobilizou, igualmente, “todos os profissionais da saúde pública, inclusive médicos dermatologistas, microscopistas e bacteriologistas, [para que] estivessem ocupados na investida à influenza espanhola”61. E deu início ao estabelecimento dos hospitais provisórios, segundo orientações anteriores, que seriam, posteriormente, “ampliadas com a nomeação de Carlos Chagas” 62. A comunicação aberta foi definitivamente um dos pontos fortes da nova gestão. Por meio da imprensa se passava à população informações necessárias para a prevenção do contágio da doença e de procedência nos casos de infecção, ao mesmo tempo em que levava os resultados das medidas profiláticas ao governo federal. A pedido do Gazeta de Notícias, Torres deu “alguns conselhos uteis às classes dos pobres”, em que reforçou a necessidade de cautela e ressaltou maior atenção aos sintomas, como dores de cabeça, tosses e fraquezas musculares, além de ter indicado o consumo moderado de xaropes, aspirinas e uma dieta rica em vitaminas e outros nutrientes63. Muito embora Theophilo Torres tenha envidado esforços no combate à epidemia, a escolha do seu nome havia sido recebida com desconfiança, e muitos o viam como “um burocrata da escola de Carlos Seidl” 64. O Correio da Manhã havia acusado o governo de “acefalia”, e de ter compactuado com a incompetência do antigo diretor geral, e questionava o fato de ter esperado Seidl pedir demissão, ao invés de demiti-lo65. Neste mesmo dia 19 de outubro, o deputado Nicanor do Nascimento subia a tribuna para questionar a competência do novo diretor para o 59 Ibidem. Gazeta de Notícias, 19.10.1918. Ibidem. 62 GOULART, 2005, p. 124. 63 Gazeta de Notícias, 19.10.1918. 64 GOULART, 2005, p. 124. 65 Correio da Manhã, 19.10.1918. 60 61 28 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS cargo, e relembrar o legado de Oswaldo Cruz, deixando a entender que haviam no país cientistas mais bem preparados: “Foi esse homem, o Sr. Theophilo Torres, que o Sr. encontrou para o cargo. (...) há neste país alguém que saiba que esse nome equivale aos de Arthur Neiva ou Carlos Chagas?”66 Para apaziguar os ânimos e evitar maiores atritos, o governo logo providenciou integrar Carlos Chagas à Diretoria Geral de Saúde Pública, lhe nomeando no comando dos socorros públicos. Formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e pesquisador no Instituto Manguinhos desde 1908, Carlos Ribeiro Justiniano das Chagas destacou-se ao descobrir o protozoário tripanossoma em 1909 a partir do sangue de uma criança infectada do inseto hematófago, popularmente conhecido como “barbeiro”. Isto possibilitou o desenvolvimento do antígeno para a cura dessa doença que matava milhares de pessoas no Brasil. Além dessa louvável contribuição científica, Chagas havia sido aluno de Oswaldo Cruz, o promotor da erradicação da varíola em 1904, e fundador do instituto de pesquisa de Manguinhos. Ele reunia, portanto, todas as credenciais para ser considerado como “o único cientista capaz de solucionar os transtornos advindos da espanhola assassina”67. Com efeito, o ingresso de Chagas à diretoria geral dava legitimidade social às ações governamentais no campo da saúde. Ocorreu, de fato, uma mudança de postura dentro do governo, com relação à Diretoria Geral de Saúde Pública, que passa ao centro das atenções, e obter maior operacionalidade dentro da burocracia estatal. A Diretoria conseguiu, por exemplo, autorização do governo para impor diversas medidas: quarentena de navios, notificação compulsória de casos, criação de hospitais emergenciais, novos postos de atendimento, além do fechamento de escolas e teatros, paralisação de eventos esportivos como o futebol, redução de missas de igrejas e o encerramento de parte do comércio.68 Houve, também, preocupação maior com o avanço da doença nos subúrbios, devido aos altos índices de infecção e ausência de medicamentos nessa localidade. Com o apoio do Ministério da Justiça e Negócios Interiores, a Diretoria Geral pôde 66 GOULART, 2005, p. 125. Ibid., p. 127. 68 A Noite, 21.10.1918. 67 29 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS inaugurar a comissão de socorros domiciliares, para tratar pessoas infectadas nas proximidades de seus lares, “por meio da obtenção de medicamentos, transporte de doentes, hospitalização de enfermos, e quaisquer outras medidas, que incluíam a própria assistência médica domiciliar” 69. Segundo o jornal O Paiz, a comissão de socorros domiciliares foi um precioso complemento dos serviços operantes, atendendo com a máxima “solicitude e presteza” todos os pedidos de socorro que surgissem.70 Chagas aparecia nos jornais convocando médicos e estudantes de medicina para cooperar na pesquisa e combate à gripe espanhola.71 Reclamava pela necessidade de salvaguarda da vida da população, expressando a importância de regularizar a distribuição do trabalho e auxílio dos colegas da medicina nos postos de saúde instalados durante sua gestão72. A instauração de casas e postos de atendimento foram elogiadas pelos veículos de mídia, atribuindo a Carlos Chagas o qualificativo de “incansável trabalhador e distribuidor de socorros”.73 Muito embora as ações tenham sido coordenadas pela Diretoria Geral, era a imagem de Chagas que ficava em evidência, assumindo o papel de liderança na ofensiva contra a gripe espanhola. Seu protagonismo era alimentado pela imprensa que, ao contrário do que fazia com Seidl e Torres, rasgava elogios às suas ações. Os mecanismos de enfrentamento da doença não sofreram alterações substanciais, porém em novembro de 1918 o número de mortes começou a declinar 74. 4 O LEGADO INSTITUCIONAL DO ENFRENTAMENTO DA GRIPE ESPANHOLA Essa terceira fase da política sanitarista é marcada por reformas substanciais que deixaram um legado institucional importante porque fez a elite republicana repensar o modo de organização do setor da saúde, até então entregue aos Estados por conta do modelo federalista. Esta fase está, igualmente, caracterizada pelo fortalecimento do movimento sanitarista - iniciado em 1909 e marcado pela gestão 69 O Paiz, 24.10.1918. Ibidem 71 A Noite, 21.10.1918. 72 A Noite, 26.10.1918. 73 A Noite, 31.10.1918. 74 SCHWARTZ; STARLING, 2020, p. 151. 70 30 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS de Oswaldo Cruz frente aos serviços federais de saúde 75 - que culminou com a criação da Liga Pró-Saneamento do Brasil em 11 de fevereiro de 1918. Com a reputação em alta, Carlos Chagas e sua equipe de higienistas deram maior visibilidade à Liga Pró-Saneamento do Brasil ao chamar atenção para a necessidade de cuidar da saúde dos indivíduos e desenvolver o saneamento do interior do país76. Para a Liga, as doenças que grassavam o país deveriam ser tratadas como problema político, pois sua permanência era sinônimo de atraso, incivismo e abandono da população. Belisário Penna, sanitarista de renome à época e líder da Liga entre 1918 e 1930, afirmava que o sistema federalista constituía obstáculo ao implemento de ações de saneamento unificadas e coordenadas, reflexo da falta de “consciência sanitária” das classes dirigentes 77. Não acreditava que a “autonomia dos estados pudesse contribuir para a unidade das práticas judiciais, administrativas, educacionais e sanitárias”78, e propunha projeto nacional de saneamento vigiado por uma administração estatal centralizada 79. A preocupação com a falta de saneamento nas zonas rurais do país veio com as expedições científicas, organizadas pelos pesquisadores do Instituo Manguinhos – Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Belisário Penna, Artur Neiva, Clementino Fraga -, ao percorrerem, durante a primeira década do século XX, as regiões norte e nordeste do Brasil. Após a epidemia da gripe espanhola, o trabalho de pesquisa e assistência que vinha sendo desenvolvido pelos cientistas de Manguinhos junto à população do interior do país passa a ser pensado como projeto de política pública. Em janeiro de 1919, o governo restabelece antigos postos de desinfecção nos estados do Pará, Pernambuco e Bahia, que haviam servido de sede para trabalhos científicos 80. No mês de abril desse mesmo ano, o Serviço de Profilaxia Rural foi reestruturado e 75 LIMA; PINTO, 2003, p. 1040. Ibid., p. 1041. 77 A ideia de “consciência sanitária” está expressa no seu principal livro Saneamento no Brasil, de 1918, que reúne artigos seus publicados no Correio da Manhã. Com uma linguagem informal e crítica, denuncia o descaso com a saúde pública, e aponta vários problemas, desde a doença generalizada na população rural, a fome, a miséria até a escassez de verba no orçamento dos municípios. Considerava que a falta de saneamento era uma questão política, e propunha a criação da Liga Pró-Saneamento para sanar os males da República. 78 LIMA; PINTO, 2003, p. 1041. 79 CARVALHO, 2021, p. 4. 80 Decreto nº 3.750, 09 de agosto de 1919. 76 31 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS passa a ser diretamente vinculado ao Ministério da Justiça81, e um laboratório de vacinas e soros fora instalado no Maranhão 82. A crise também impulsionou a regulamentação do antigo Instituto Manguinhos, agora renomeado Instituto Oswaldo Cruz, em homenagem ao médico sanitarista que falecera em 191783. Sua regulação foi um passo importante para a distribuição de vacinas entre os Estados. O regulamento previa que, por ocasião de epidemias, se deveria fornecer gratuitamente às autoridades sanitárias, que o requisitarem, os soros terapêuticos e as vacinas (art. 7). Apenas as vacinas, os soros e produtos congêneres não requisitados seriam vendidos pelo Instituto, de acordo com a tabela de preços organizada pelo diretor e aprovada pelo ministro da Justiça e Negócios Interiores (art. 8). Com efeito, se percebe mudança de postura no governo federal frente à saúde pública que se torna, aos poucos, uma questão nacional. No orçamento de 1919, publicado em janeiro deste mesmo ano, fixando a despesa geral da República dos Estados Unidos do Brasil, se nota aumento de recursos ao Instituto Oswaldo Cruz, para equipar seu “laboratório de vacinas e soros” e custear “instalações indispensáveis”, além de subvenções destinadas ao “Instituto de Hygiene de Pelotas para fabricação de vacinas”84. Nesse mesmo orçamento, estão, também, previstos recursos adicionais para compra de “material para reconstrução do hospital de doenças tropicais”85. O aumento do orçamento federal foi, entretanto, insuficiente para cobrir as despesas acarretadas durante o período de pico da gripe espanhola. Em dezembro de 1918, os funcionários públicos afetados pelo combate da doença haviam sido beneficiados com acréscimo de um ano de serviço na contagem do tempo da aposentadoria. Uma forma de agraciar aqueles que colocaram suas vidas em risco para salvar outras. Em razão da alta despesa, um “crédito extraordinário” foi aberto ao Ministério da Justiça em maio de 1919 “para pagamento de despesas realizadas, 81 HOCHMAN; LIMA, 1998, p. 36. Decreto 13.565, 23 de abril de 1919. 83 Decreto nº 13.527, 26 de março de 1919. 84 Lei n° 3.674 de 7 de janeiro de 1919. Fixa a Despeza Geral da República dos Estados Unidos do Brasil para o exercício de 1919. 85 Ibidem. 82 32 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS em 1918, em consequência da epidemia de gripe que reinou ultimamente nesta capital, nos estados e no território do Acre”86. Ademais, a questão sanitária passou a integrar o orçamento de outros ministérios, e um “crédito suplementar” fora concedido ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio para “aquisição de vacinas e outros”87. Os maiores atingidos pela epidemia foram os pobres residentes dos subúrbios88. Pessoas desabrigadas, desemprego, crianças órfãs, acarretava miséria e fome. Além da situação social caótica e de penúria da população, o governo tinha motivos para temer os flagelados. Durante o surto da doença, a população carioca, em “desespero de fome”, como relatou o jornal Gazeta de Notícias, havia invadido a estação Praia Formosa no Rio de Janeiro, e assaltado todas as galinhas encontradas em um trem, para alimentar “seus doentes queridos” 89. Em junho de 1919, o governo abre, por decreto, “crédito extraordinário”, em caráter urgente e inadiável, para auxiliar as populações flageladas de diversas zonas do país”90. A gripe espanhola havia, igualmente, ensinado que os portos marítimos eram a principal porta de entrada das moléstias. Isto justificava o direcionamento de mais recursos para “assegurar a defesa sanitária de todos os portos da República” com adoção de medidas de profilaxia, agora consideradas como indispensáveis, ao controle das moléstia que reinavam em vários pontos do país, e ameaçavam seriamente a capital91. Um giro importante ocorre em 5 de outubro de 1919 quando Carlos Chagas assume o cargo de Diretor Geral de Saúde Pública 92. Seu prestígio profissional à época, com vários prêmios e títulos conferidos a ele por entidades nacionais e internacionais, favoreceu a aprovação da Convenção Sanitária Internacional, 86 Decreto n° 13.593, 7 de maio de 1919. Decreto n° 13.594, 9 de maio de 1919. 88 Uma matéria do Gazeta de Notícias chamava atenção para a “Trágica situação de Bangu”, onde reinava “morte, luto, desolação!”, essa “infeliz localidade abandonada de todo dos poderes públicos” (23.10.1918). 89 Gazeta de Notícias, 23.10.1918. 90 Decreto n° 13.645, 13 de junho de 1919. 91 Ibid. Em janeiro de 1920, sob ameaça de uma nova onda da gripe, a inspeção dos portos foi a primeira medida a ser tomada (Correio da Manhã, 22.01.1920). 92 O Paiz, 05.10.1918. 87 33 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS celebrada entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai 93. Ainda no âmbito da cooperação internacional, ficou estabelecido que os telegramas expedidos pelo governo do Brasil ou por seus agentes no continente americano, comunicando o aparecimento de alguma epidemia ou fatos de notória calamidade pública, deveriam ser encaminhados com a maior brevidade possível e de forma gratuita 94. Apesar dos esforços administrativos para tornar o setor da saúde pública mais robusto e atuante, a competência assessória do governo federal dificultava a planificação de soluções mais amplas e de largo alcance. A revisão da competência trazia subjacente a contestação do modelo federalista, já que cabia aos Estados organizar o setor da saúde em âmbito local. A Câmara dos Deputados havia vetado o projeto do deputado Azevedo Sodré de criação do Ministério da Saúde 95. Em dezembro de 1919, com o contexto político jogando a favor, o Congresso aprova, depois de intensos debates na Câmara dos Deputados e no Senado, a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) que passa a contar com mecanismos de financiamento federal amplos, ainda que fosse mantida a necessidade de acordo com os Estados no caso de trabalhos de profilaxia rural 96. A lei n° 3.987 de 02 de janeiro de 1920 pode ser considerada como a certidão de nascimento do primeiro órgão administrativo, em caráter nacional, responsável pela saúde pública. O presidente da República não teve dificuldades para escolher, “dentre os médicos de reconhecido saber” – conforme exigência da lei -, Carlos Chagas como primeiro diretor do DNSP. Com a nova lei, diferentes serviços que se encontravam dispersos em órgãos ministeriais são reunidos em um único lugar: serviços de profilaxia geral e específica de doenças transmissíveis, serviços sanitários dos portos, profilaxia rural, estudos de etiologia, fornecimento de soros, vacina e medicamentos, inspeção médica de imigrantes, fiscalização de produtos farmacêuticos, etc. 93 Decreto nº 4.170, 30 de outubro de 1920. Isto facilitará a ratificação da Convenção Sanitária Internacional, assinada em janeiro de 1921, na cidade de Paris, dispondo sobre protocolos de comunicação em casos de possível proliferação de pandemias (decreto nº 4.349, de outubro de 1921). 94 Decreto nº 13.833, 23 de outubro de 1919. Cláusula XX. 95 HOCHMAN; LIMA, 1998, p. 34-35. 96 Ibid., p. 35-36. 34 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A criação do Departamento Nacional de Saúde Pública é resultado da formação de uma “consciência sanitária”, postulada no interior da Liga PróSaneamento do Brasil,97 e impulsionada pela eclosão da gripe espanhola, que demonstrou, na prática, a necessidade do consórcio do governo federal no enfrentamento de epidemias na esfera dos Estados. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa tentou demonstrar que a crise sanitária de 1918 fez surgir problemas sociais gravíssimos, nunca antes vistos, que teve reflexos políticos importantes, levando a discussão sobre o desenvolvimento de novas políticas públicas no campo da saúde. A falta de preparo e incapacidade do governo federal de lidar com a crise sanitária fez com que a sociedade civil e a classe política exigissem mudanças de postura e medidas urgentes para impedir que o caos fosse maior. Neste sentido, a epidemia da gripe espanhola se apresenta como um elemento catalisador das mudanças ocorridas no período. Certo, outros fatores também contribuíram ao processo de desenvolvimento da política sanitarista de cunho nacional, e o presente trabalho buscou apenas ressaltar, pela análise da produção de leis, e dos questionamentos e reações expressadas nos jornais da época, que houve, entre 1918 e 1920, uma aceleração desse processo, devido a eclosão da epidemia que fez acentuar antigas mazelas e revelar um “país doente”. A mudança de postura do governo pode ser identificada na própria legislação produzida, seja pelo aumento de investimento no setor sanitário (o que se verifica pela comparação entre os orçamentos de 1918 e 1919), seja pela integração da pesquisa científica à política de governo. Neste último ponto, estamos diante da emergência do Estado-Cientista, resultado do processo de fusão entre ciência e sociedade, através da dominação da natureza, sobretudo com o desenvolvimento da bacteriologia. Através do Estado, o saber científico passa a se relacionar com o poder político, e faz emergir uma nova cadeia de relações. 97 Após a criação do DNSP, a Liga foi extinta, com seus membros incorporados à Administração Pública. 35 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Entre janeiro e novembro de 1918, a legislação produzida pelo governo federal esteve prioritariamente voltada para a capital federal e se preocupava em aparelhar outras instituições que prestavam serviços relacionados ao sanitarismo e higiene dos indivíduos, tais como a Santa Casa da Misericórdia98 e o Instituto Oswaldo Cruz99. Duas leis foram elaboradas para conceder auxílios a pesquisadores em congressos científicos de Hygiene, Microbiologia e Pathologia 100. Havia, portanto, nítida separação entre produção científica e política pública, uma vez que a administração estatal pesava pouco, ou quase nada, na organização desses serviços, e nem aproveitava de modo satisfatório os resultados obtidos com a produção científica. Havia, igualmente, desinteresse com o saneamento rural, com o interior do país. Entre janeiro de 1919 até a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública em 1920, o perfil da legislação se alterou. Há maior gerência do governo federal em um setor que se expande para outros Estados, ainda que timidamente. Laboratórios são criados no Maranhão, em Pelotas, e um orçamento é inteiramente destinado para auxiliar as “populações flageladas” de todo o país, e cobrir despesas geradas durante a epidemia de 1918. A cooperação internacional é, também, aquecida, e o Brasil assina compromissos com países da América Latina, até a formalização e aprovação da Convenção Sanitária Internacional, em outubro de 1920101. Com a criação do DNSP, quase todos os médicos higienistas da Liga PróSaneamento do Brasil foram integrados ao órgão, que passa a concentrar diversos serviços, o que aproxima e confunde funcionalismo público e ciência, para criar a categoria de “médicos especializados em saúde pública”. O pessoal do DNSP constituirá a base institucional que, anos mais tarde, já no governo Vargas, ajudará na criação do Ministério da Saúde em 1930. 98 Lei n° 12.934, 20 de março de 1918. Lei n° 3.453, 2 de janeiro de 1918; e Lei n° 12.796, do mesmo mês. Lei 3.547, 9 de outubro de 1918; e Decreto n° 13.226, do mesmo mês. 101 Decreto n° 4.170, 30 de outubro de 1920. 99 100 36 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS REFERÊNCIAS CHALHOUB, S. (2017). Cidade febril. 2a ed. São Paulo: Companhia das letras. GOULART, A. (2005). Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 12, n. 1, jan.-abr., p. 101142. HOCHMAN, G.; LIMA, N. (1998). Condenado pela raça, absolvido pela medicina: o Brasil redescoberto pelo movimento sanitarista da primeira república. In: MAIO, Marcos C. e SANTOS, R. Ventura (orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro, Fiocruz/CCBB, p. 23-40. LIMA, A. L.; PINTO, M. M. (2003). Fontes para a história dos 50 anos do Ministério da Saúde. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, vol. 10(3), set-dez., p 1037-51. MARTINI, M.; GAZZANIGA, V.; BRAGAZZI, N.L.; e BARBERI, I. (2019). The Spanish Influenza Pandemic: a lesson from history 100 years after 1918. Journal of Preventive Medicine HYG, 60, p. 64-67. MONCORVO FILHO, C. A. (1924). O Pandemônio de 1918. Subsídio ao histórico da epidemia de gripe que em 1918 assolou o território do Brasil. Rio de Janeiro: Departamento da Criança no Brasil. SANTOS, L. A. (1985). O pensamento sanitarista na Primeira República: Uma ideologia de construção da nacionalidade. Dados. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v.28, n° 2, p.193-210. 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Lei n° 3453, de 2 de janeiro de 1918. Autoriza o Poder Executivo a abrir, pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores, o crédito de 349: 482$800, para conclusão das obras do Instituto Oswaldo Cruz e instalação de um hospital destinado ao estudo do tratamento de molestias tropicais. BRASIL. Lei n° 3454, 6 de janeiro de 1918. Fixa a despeza geral da República dos Estados Unidos do Brasil para 1918. BRASIL. Lei nº 12.934, de 20 de março de 1918. Abre ao Ministerio da Justiça e Negocios Interiores o credito especial de 700:000$, para auxiliar a Santa Casa da Misericordia desta Capital. BRASIL. Decreto nº 2.918, de 09 de abril de 1918. Abre ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores o credito especial de 700:000$, para auxiliar a Santa Casa da Misericordia desta Capital. BRASIL. Lei n° 3.674 de 7 de janeiro de 1919. Fixa a Despeza Geral da Republica dos Estados Unidos do Brasil para exercício de 1919. BRASIL. Decreto nº 13.527, de 26 de março de 1919. Reorganiza o Instituto Oswaldo Cruz. BRASIL. Decreto 13.565 de 23 de abril de 1919. Abre ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, o crédito especial de 50:000$, para auxiliar a instalação de um laboratório de vacinas e soros no Maranhão. BRASIL. Decreto n° 13.593 de 7 de maio de 1919. Abre ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores o crédito extraordinário de 206: 645$997, para pagamento de despesas realizadas, em 1918, em consequência da epidemia de gripe que reinou ultimamente nesta capital, nos estados e no território do Acre. BRASIL. Decreto n° 13.594 de 9 de maio de 1919. Abre ao Ministério da Agricultura, Indústria e Comercio, o crédito de 70:000$, suplementar à subconsignação "aquisição de vacinas e outros", da verba 15a do art. 96 da lei 3.454, de 6 de janeiro de 1918. BRASIL. Decreto n° 13.645 de 13 de junho de 1919. Abre ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores o crédito extraordinário de 5.000: 000$, para auxiliar as populações flageladas de diversas zonas do país, para assegurar a defesa sanitária dos portos e procede à prophylaxia de molestias que reiam vários pontos da República. 38 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS BRASIL. Decreto nº 3.750, de 09 de agosto de 1919. Autoriza o Poder Executivo a restabelecer os antigos postos de desinfecção nos Estados do Pará, Pernambuco e Bahia. BRASIL. Decreto nº 13.833, de 23 de outubro de 1919. Torna sem effeito as clausulas que baixaram com o decreto número 13.524, de 26 de março de 1919, e concede a Frank Carney, representante da Central de South American Telegraph Company, para si ou empreza que organizar, permissão para lançar, aterrar na costa do Brasil, manter e trafegar um cabo telegraphico submarino ligando a cidade do Rio de Janeiro á ilha de Cuba. Cláusula XX. BRASIL. Lei nº 3.987, de 02 de janeiro de 1920. Reorganiza os serviços da Saúde Pública. BRASIL. Decreto nº 4.170, de 30 de outubro de 1920. Approva a Convenção Sanitaria Internacional celebrada entre as Republicas Argentina, Estados Unidos do Brasil, Paraguay e Oriental do Uruguay. Jornais A EPIDEMIA CAUSOU ONTEM MAIS DE QUINHENTAS MORTES. Gazeta de Notícias, 22 out. 1918, primeira pág. A EPIDEMIA: O GOVERNO TOMA PROVIDÊNCIAS. Correio da Manhã, 19 out. 1918, p. 3. A GRANDE EPIDEMIA. OS SOCORROS À POPULAÇÃO COMEÇAM A SER PRESTADOS. Gazeta de Notícias, 19 out. 1918, p. 3. A GRIPPE ESTENDE OS SEUS TENTACULOS A TODOS OS CANTOS DA CIDADE. Correio da Manhã, 15 out. 1918, p. 3. A NECESSIDADE DE URGENTES PROVIDÊNCIAS. O FLAGELLO CONTINUA FAZENDO CENTENAS DE VICTIMAS. A Noite, 21 out. 1918, p. 1. A POSSE DO NOVO DIRECTOR DE SAUDE. O Paiz, 5 out. 1919, p. 4. AINDA É MUITO SÉRIA A SITUAÇÃO EPIDÊMICA. O GRANDE FLAGELLO. A Noite, 26 out. 1918, p. 1. AOS SRS. MEDICOS. AO POVO SENSATO. Correio da Manhã, 12 out. 1918. Publicidade, p. 7. AS AUTORIDADES MEDICAS VOLTAM A AFFIRMAR QUE O ESTADO 39 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS CARLOS SEIDL EM CONFERÊNCIA. CONSIDERAÇÕES DO SR. DIRETOR GERAL DE SAÚDE PÚBLICA À ACADEMIA DE MEDICINA. A Noite, 10 out. 1918, p. 3. COMMISÃO DE SOCCORROS DOMICILIARES. O Paiz, 24 out. 1918, p. 4. DEPOIS DA INFLUENZA. Correio da Manhã, 17 out. 1918. Publicidade, p. 3. HEPATOLAXINA E A INFLUENZA HESPANHOLA. Correio da Manhã, 13 out. 1918. Publicidade, p. 3. INFLUENZA HESPANHOLA. ANTIPANPYRUS. Correio da Manhã, 12 out. 1918. Publicidade, p. 3. O DR. CARLOS CHAGAS TRABALHA, ESPERANÇADO EM DESCOBRIR O GERMEN DO FLAGELLO. ENSAIOS CLÍNICOS PARA A CURA DA PESTE. A Noite, 31 out. 1918, p. 1. O MAL DE SEIDL PROGRIDE ASSUSTADORAMENTE. Gazeta de Notícias, 16 out. 1918, p. 1. O NOVO DIRETOR DA SAÚDE PÚBLICA NO CATTETE. Gazeta de Notícias, 19 out. 1918, p. 3. O RIO É UM VASTO HOSPITAL. Gazeta de Notícias, 15 out. 1918, primeira pág. O TRANSPORTE DE CADAVERES. SCENAS QUE ENLOUQUECEM. Gazeta de Notícias, 23 out. 1918, p. 5. OS SOFRIMENTOS DA CIDADE. O SERVIÇO NORMALIZA-SE NA SAÚDE PÚBLICA. Gazeta de Notícias, 23 out. 1918, p. 4. PARA FUGIR À INFLUENZA HESPANHOLA DEU UM TIRO NA CABEÇA! Gazeta de Notícias, 11 out. 1918, p. 3. PARA QUE POSSA SER EVITADA UMA NOVA INVASÃO DA INFLUENZA. Correio da Manhã, 22 jan. 1920, p. 3. SAES DE QUININO COMO PODEROSO PREVENTIVO DA GRIPPE. Correio da Manhã, 21 out. 1918. Publicidade, p. 1. SANITARIO DA CAPITAL MELHORA. Correio da Manhã, 28 out. 1918, p. 3. TRÁGICA SITUAÇÃO DE BANGU. MORTE, LUTO, DESOLAÇÃO! Gazeta de Notícias, 23 out. 1918, p. 2. UM MAR DE ROSAS…. ADIANTAMENTO DE DINHEIRO AO DR. THEOPHILO TORRES. Gazeta de Notícias, 18 out. 1918, p. 1. 40 A ODISSEIA DA SOCIOECONOMIA BRASILEIRA: UMA HISTÓRIA CONTADA A PARTIR DA DÉCADA 60 E DESEMBOCADA NA PANDEMIA DO COVID-19 Marco Vinicius Quevedo1 Tiago Rezende Alves2 1 INTRODUÇÃO O presente artigo pretende analisar o histórico da econômico brasileiro a partir da década de 60 e a ampliação de suas fragilidades devido ao alastramento da Pandemia do Covid-19. Os estudos serão divididos em três áreas macro. A primeira delas apresentará uma explicação, análise e descrição dos principais planos políticos econômicos brasileiros e suas ferramentas de cunho macroeconômico, seja de âmbito monetário, fiscal ou cambial, como prerrogativa para contextualizar a tentativa de planejamento de contenção da grande crise econômica e sanitária da atualidade no Brasil. Em um segundo nível, serão abordados as ações e reflexos visíveis na socioeconomia do país até os dias de hoje, a partir da crise mundial de 2008. Por fim, serão abordados os impactos da Pandemia no social e no econômico, assim como uma análise e descrição das ações de enfrentamento realizadas pelo governo, concluindo com a afirmação da instabilidade e insustentabilidade socioeconômica brasileira arrastada pelas últimas décadas, geradas pela falta de 1 Pós-graduando em Engenharia Econômica Financeira (Universidade Federal Fluminense). Bacharel em Relações Internacionais (Centro Universitário de Brasília). 2 Mestrando em Comércio Internacional e Inovação, (Universidad Santa Isabel I e Escuela de Negocios de Barcelona). Graduado em relações Internacionais (UNICEUB). Fundador da Rural Commerce. Elaborador de Projetos de Cooperação Técnica Internacional (RZD Cooperation). A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS gestão no desenvolvimento de Políticas de Estado de longo prazo que respondam à complexidade do sistema político, econômico, social, jurídico e territorial brasileiro. 2 AS POLÍTICAS MACROECONÕMICAS DE 1960 A 1980 A década de 1960, foi um período conturbado tanto no âmbito político quanto no econômico. Essa época foi caracterizada pela instauração do golpe militar em 1964, e pelos contornos tomados na crise econômica que assolou o país. Como medida foram formulados dois planos econômico para tentar eliminar a inflação e reestruturar o Brasil para o desenvolvimento e o crescimento industrial que muito foi aplicado no governo JK. O Plano econômico de Celso Furtado foi criado a partir da ótica das consequências econômicas advindas da gestão de JK e da política conservadora do rápido governo de Jânio Quadros. Nos padrões da época, de 1960 à 1964, o Brasil passava por uma grave crise inflacionária e política, onde acentuou ainda mais o fracasso da conjuntura de objetivos do Plano Trienal. Joao Goulart tomou posse como Presidente da República em 1962, após a renúncia de Jânio Quadros e aprovação do plesbicito definindo o restabelecimento do regime presidencialista. Logo em seguida foi apresentado por Celso Furtado, então Ministro Extraordinário para Assuntos do Desenvolvimento Econômico, uma resposta para a aceleração inflacionária e crescente deterioração econômica externa, o Plano Trienal. Este que viria a ser o primeiro plano econômico totalmente bem estruturado da história brasileira. O Plano Trienal tinha o objetivo do combate à inflação, criar condições para que os ganhos advindos do desenvolvimento fossem distribuídos de maneira ampla entre a população destinando-se ao crescimento salarial a partir da produtividade, criar soluções visando o pagamento da dívida externa e várias metas para a produção industrial (PRESIDENCIA DA REPUBLICA, 1962). Em um contexto macro, a principal ambição do plano era em estabilizar a economia sem comprometer o crescimento econômico, viabilizando suporte para as bases sindicais. Neste sentido, para conter todo o agravamento inflacionário as principais medidas propostas foram as de contenção de gasto e crédito. Todavia, devido ao alto 42 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS endividamento brasileiro no exterior, a falta de ajuda financeira externa para tentar realocar os seus credores internacionais, o aumento exponencial inflacionário de demanda que impactava no acirramento entre as forças sindicais e o governo, fizeram com que o Plano fracassasse e abrisse espaço para o golpe militar que estava por acontecer em 1964. Com a tomada do poder, através de um golpe de estado, pelos militares, em 1964, logo foi instituído um novo plano econômico, com o intuito primordial de frear a grave crise inflacionária. Os militares assumiram o poder com um discurso desenvolvimentista, com foco no crescimento econômico. O marechal Castello Branco tomou posse como presidente e nomeou Octavio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos para os cargos de ministro da Fazenda e do Planejamento. Sob uma orientação ditatorial e conservadora, foi lançado o Programa de Ação Econômica do Governo (PAEG) o qual tinha objetivos específicos para a retomada do desenvolvimento e estabilidade econômica do Brasil. O Plano baseava-se sobre as causas da inflação apontando para três fatores: os déficits públicos, a expansão do crédito às empresas e os aumentos salariais por cima dos ganhos da produtividade (BASTIAN, 2012). Designando o problema inflacionário como uma inflação de demanda. Diante disso o plano previa uma estratégia gradualista de combate à inflação, não praticando, num primeiro momento, tratamento de choque para solucionar o problema inflacionário. A estratégia era retomar o desenvolvimento sem afetar o estado de devedor de prestações públicas empresariais e não podendo ameaçar os investimentos econômicos (BASTIAN, 2012). Desta forma, o foco estava voltado para a prioridade na estabilidade de preços, o aumento de investimentos diretos, reformas bancárias e tributárias, acertar o déficit da balança de pagamentos e a diminuição dos desequilíbrios regionais (KERECKI, SANTOS, 2009). A PAEG conseguiu estabilizar a economia brasileira e foi um plano que notoriamente angariou projeções positivas. O planejamento econômico que foi inserido no Programa forneceu forças para que conseguisse reduzir a inflação para a faixa de 20% ao ano. No mesmo sentido, conseguiu implementar reformas 43 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS institucionais e criou bases para o crescimento desenvolvimentista econômico que estava sendo efetivado (LACERDA et al., 2014). As novas medidas ganharam grandes contornos de notoriedade e foram amplamente apoiadas no setor internacional, principalmente pelos EUA. Proporcionando em parte para a estabilização inflacionária nos próximos governos Costa e Silva e Médici. O período de 1967 a 1973 é caracterizado pelo crescimento e desenvolvimento econômico do Brasil, chamado de ‘’Milagre Econômico’’. Esta nova perspectiva que o país se inseria demonstrava os ganhos das medidas tomadas pelo PAEG e a atuação dos novos Governos para o desenvolvimento econômico. Diferente das gestões anteriores, o governo Costa e Silva acreditava que ao longo do curso dos anos a inflação brasileira da década de 60, tinha tomado um novo curso de natureza inflacionária, diferente da inflação de demanda na qual estava inserida. Sendo assim, Delfim Netto, ministro da economia à época, instituiu que para a retomada do crescimento seria necessário a implementação do desenvolvimento industrial econômico o mais breve possível, ou seja, o Estado deveria injetar medidas para o crescimento empresarial imediatamente. Logo foram inseridas medidas de alto valor expansionista (LACERDA et al., 2014). Com a intromissão dessas medidas, entre os anos de 1968 a 1973, o Brasil alcançou saldos favoráveis de crescimento, as exportações triplicaram, as empresas privadas cresceram rapidamente aumentando o nível empregatício, tornando o Brasil em uma das nações mais promissoras da América Latina (MACARINI, 2006). A este ponto o Governo brasileiro conseguiu contornar em parte a situação de crise, à custa de um investimento agressivo em crescimento e desenvolvimento pautado em empresas privadas. Entretanto, é importante frisar a falta de planejamento do governo brasileiro neste período para o âmbito social, sendo um crescimento voltado apenas para a elite econômica do Brasil. O general Geisel assumiu a presidência em 1974, com a responsabilidade de renovar toda a linha de planejamento de crescimento até então implementada. O país sul americano apresentava sinais de esgotamento, de exaustão do modelo de 44 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS crescimento agressivo que vinha sendo implementado desde o governo JK. Como medida para contornar a situação foi executado o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), com o intuito de equilibrar as contas e dar continuidade ao intenso desenvolvimento brasileiro. Todavia o esforço foi em vão, acabando por acelerar o processo inflacionário que já estava começando a assolar, novamente, o país. O II PND, surgiu como uma resposta à crise internacional que se passava, sendo um programa com intuitos ambiciosos de substituição de importações, com base em grandes projetos na área de bens de produção. O intuito do plano era em conduzir a economia brasileira, em um curto período de tempo, ao nível das economias desenvolvidas (SILVA, 2017). O plano foi elaborado pelo então ministro do Planejamento, João Paulo dos Reis Velloso, sendo um projeto bem estruturado onde assumia os riscos de aumentar os déficits comerciais e a dívida externa, porém tinha o propósito de construir uma estrutura industrial avançada que permitiria superar a crise e o subdesenvolvimento. Para lidar com as demandas econômicas domesticas e as crises internacionais, como a crise do Petróleo, o governo Geisel acreditava na capacidade do II PND como fonte para o contato empresarial. O intuito era em contar com o apoio empresarial. Dessa forma, através do Conselho de Desenvolvimento Econômico (CDE) o governo militar delimita uma série de incentivos fiscais para as empresas privadas, com o intuito de angariar apoio e principalmente diminuir a dependência externa brasileira. No mesmo segmento as empresas públicas ficaram a cargo de criarem diversos programas voltados para as áreas de infraestrutura e energia, tendo todos os empréstimos e financiamentos sendo subsidiados por grandes bancos privados internacionais (ARIENTI, 2008). Neste sentido, o fato de não poderem recorrer aos bancos brasileiros, deliberou de maneira agressiva para o aumento da dívida externa. Em 1974, a participação do setor público no total da dívida era de 50%, já em 1980, atingiu cerca de 69%, ou seja, a dívida exterior tornava-se de total responsabilidade do governo (SILVA, 2017). O que conflagra em uma grande guinada para a volta da 45 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS inflação de forma mais atenuante e ainda tendo que contornar toda a situação de crise que estava sendo gerada pelas crises do Petróleo. Sendo assim, mesmo com o crescimento do PIB o plano não consegue dar margem para o crescimento com taxas parecidas as colocadas pelo milagre econômico. A instabilidade macroeconômica internacional, a partir da inflação que persistia posteriormente tornou-se frequente, muito devido ao endividamento das empresas estatais, sendo o principal percalço para que o plano se tornasse apenas um induto com medidas paliativas para que o Brasil conseguisse atravessar os dois choques do petróleo de maneira plena. Dessa forma, é visível a tentativa governamental de criar uma conjuntura econômica de comunicação entre os governos sucessores. Todavia, o método na qual foi implantado fez com que a economia brasileira ficasse suscetível as demandas internacionais o que de certo modo impulsionou para que o II PND não se desenvolvesse, inflando a economia brasileira a uma dívida externa gigantesca e a deterioração da inflação. É com este contexto que a década de 80 se inicia. Sendo um período marcado como a década perdida para a histórica econômica brasileira, muito devido as políticas macroeconômicas que estavam sendo implantadas no II PND. A década de 1980 foi um período na qual sofreu o reflexo das políticas desenvolvimentistas econômicas implantadas nas gestões anteriores, onde foi marcada pela grande inflação, endividamento externo e desiquilíbrios na balança comercial. Para tentar contornar a situação, autoridades passaram a implementar políticas econômicas com instruções ortodoxas com o intuito de controlar as despesas públicas e os gastos das empresas estatais, aumentar a arrecadação do imposto de renda e do imposto sobre Operações Financeiras nas operações de câmbio para importação e uma contração da violação do crédito, com a única exceção para o setor da agricultura. Em 1980, acontece o crescimento da dívida externa brasileira onde muito impulsionada pelas gestões anteriores, piora principalmente por conta da alta dos juros comerciais internacionais realocadas pelo governo norte americano. Outro agravante foi à alta constante da inflação, introduzindo um novo pacote de medidas 46 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS econômicas em 1980, tendo Delfim Netto como o precursor. Foram colocadas medidas de austeridade ao setor público e privado, novas medidas de restrição monetária e de crédito, aumento dos juros, corte dos gastos públicos, alteração na lei salarial e grande incentivo às exportações. Os novos projetos de investimento foram todos revistos e adequados de acordo com as condições de crédito disponível (SILVA, 2017). O intuito do Governo brasileiro com as novas medidas de cunho heterodoxo estava em derrubar a inflação que crescia em larga escala e conseguir conduzir a balança de pagamento (KASZNAR, 2006). Com o investimento em medidas para influenciar o crescimento das exportações, como as inferências realizadas na taxa de câmbio, o governo consegue provocar certo aumento da balança comercial, o que se observa um aumento passando de um déficit, em 1980, para superávits de US$ 6,5 bilhões, em 1983, e um recorde de US$ 13 bilhões, em 1984. A causa do crescimento nas exportações deveu-se à própria recessão, onde pode ser visto uma queda nas importações e estímulo para o aumento das exportações. Todavia, o índice de inflação aumentou de maneira agressiva, sendo um reflexo da mudança dos preços relativos combinado ao sistema de indexação da economia. O Brasil não conseguia angaria um meio termo de estabilização, ao passo que conseguia crescer em suas exportações devido a incentivos governamentais as indústrias, no âmbito interno o país ainda passava por sérias dificuldades. Para tentar contornar esta situação, foi proposto o Plano de Estabilização, pelo então ministro Dilson Funaro. O Plano previa uma nova correção monetária igual a inflação correspondente ao mês anterior, a redução da taxa de juros em 30% pagas aos títulos públicos, renegociação dos compromissos da dívida externa, buscando o afastamento do FMI e explorar soluções para a resolução do problema do desequilíbrio financeiro sem precisar necessariamente realizar o corte dos gastos públicos. Entretanto, no final de 1985 para 1986, a inflação alcança a incrível margem de 230%, levando o governo a incluir uma série de medidas heterodoxas através do congelamento total e generalizado de preços, acompanhados por políticas monetária e fiscal passivas (SILVA, 2017). 47 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Com a realização do primeiro congelamento de preços, as empresas passaram a antecipar os novos congelamentos, pois o intuito era em se prevenir diante da possibilidade de estar com os preços defasados. Nesse sentido, a inflação tornou-se paliativamente continua e iniciou-se a financeirização dos preços através das taxas de juros que eram utilizadas como critério para o reajuste dos preços, porém este critério estimulava a remuneração das moedas que eram indexadas, transformandose em ativos financeiros. A partir deste cenário, o Plano Cruzado não consegue se manter, sendo impossibilitado de gerar superávits comerciais sem conter o âmbito interno da economia (NOZAKI, 2010). No ano seguinte, em 1987, é lançado o Plano Bresser, seguindo praticamente as mesmas prerrogativas de congelamento de preços, o que foi o motor para o fracasso do Plano Cruzado. O que obviamente, elevou ainda a inflação no Brasil, deturpou o câmbio através das tentativas de desvalorização e ocasionou instabilidade crescente na taxa de juros (SILVA, 2017). Com isso, num contexto geral, os anos 80, representou uma quebra de expansão econômica, vivida na década de 1970. Este período deu margem para uma estrutura produtiva que pouco evoluiu, com o seu crescimento estagnado e pouco investimento tecnológico para o aperfeiçoamento da malha industrial brasileira. Dessa forma, é perceptível a falta de gestão brasileira no escancaramento da criação de Planos econômicos com o pensamento a longo prazo, o que continua se alastrando até a atualidade. 3 PANDEMIA DO COVID-19: O ESTOPIM DA HISTÓRICA CRISE POLÍTICO-ECONÔMICA BRASILEIRA EVIDENCIADA A PARTIR CRISE GLOBAL DE 2008 Em suma, no que diz respeito aos fatos apresentados, a economia política brasileira havia patinado entre as décadas de 60 e 80. Entre movimentos antidemocráticos, alternância de governança e ausência de políticas públicas de longo prazo, fortalecendo a debilidade da economia brasileira. 48 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Por outro lado, na década de 90, em uma tentativa de restaurar a economia foi lançado o plano real, movimento inicial que contribuiu para movimentos ocorridos posteriormente. O Governo do Ex-Presidente Lula propôs, conforme descrito por Calixtre, Biancarelli e Cintra, era um modelo de desenvolvimento inclusivo, baseado em quatro pilares. Primeiro, o crescimento econômico impulsionado pelo aumento do emprego, do salário mínimo real e pela redistribuição da renda salarial. Segundo, o avanço na consolidação de um Estado de bem-estar social estabelecido, por meio da implementação de políticas públicas universais e direcionadas aos grupos sociais mais pobres (transferência de renda) (estimativas indicam que as “transferências públicas de assistência e previdência social” agregadas atingiram mais de 15% do produto interno bruto (PIB), com impactos relevantes no consumo das famílias). Terceiro, a expansão do ciclo de crédito com queda da taxa de juros e aumento real nos salários. Quarto, um conjunto de investimentos públicos, direta e indiretamente (através de bancos públicos). (CALIXTRE, BIANCARELLI e CINTRA, 2014) Nesse sentido, a autora Laura de Carvalho menciona que entre 2003 e 2011, o Brasil alcançou um crescimento nunca visto e a diminuição da desigualdade interna. Entretanto, a autora afirma que esses movimentos só ocorreram pelo aumento dos preços das commodities exportadas e que passado esse período a socioeconomia brasileira voltou a despencar. (CARVALHO, 2018). Os fatos mencionados anteriormente nos fazem perceber que a economia política brasileira está atrelada a uma instabilidade caótica, mascarada, por diversas vezes, por alterações das moedas nacionais, planos de governo, planos de aceleração do crescimento e do falso poder econômico social, que potencializam ainda mais as discrepâncias brasileiras. Desde 2008, os sintomas da esquizofrenia socioeconômica brasileira têm chamado a atenção. Em um momento de recessão econômica, onde as principais economias do mundo repensaram suas políticas, estruturaram suas economias e criaram estratégias de recuperação e sustentabilidade a longo prazo, o Brasil decidiu realizar testes de laboratório para acelerar o seu crescimento socioeconômico. 49 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Os resultados negativos dessas ações começaram a ganhar força em 2014. Dados do IPEA de 2018 mostraram que o crescimento do PIB brasileiro que antes andava na média positiva de 4%, começou a contabilizar taxas negativas de 3,85% (2015), 3,6% (2016) e 0,01% (2017). Dados do IBGE de 2019 e 2020, mostraram o ensaio para o aquecimento da economia, atingindo um PIB de +1,8% em 2018 e +1,4% em 2019, que, ainda assim, demonstram uma equação negativa de 4,26%, se comparada com o retrocesso ocorrido nos anos anteriores. Mesmo nos anos de maior investimento na aceleração socioeconômica, o país nunca foi capaz de deixar de estar na zona de países com mais desigualdade no mundo. Segundo o indicador GINI, entre 2008 e 2014, o melhor posicionamento brasileiro foi em 2014 com 52,1 na escala de desigualdade. Nas últimas décadas as crises socioeconômicas brasileiras, conforme cita o autor Lauro Mattei, foram apenas financeiras, derivadas da própria gestão da estrutura econômica. Entretanto, o Brasil e o Mundo mergulharam na nova década com um cenário completamente diferente. Em 2020 o mundo foi surpreendido com o surgimento do coronavírus (COVID-19). Esta crise sanitária, de proporções mundiais e aterradoras, que gerou um caos nos sistemas socioeconômicos mundiais. No caso brasileiro, esse cenário escancarou sua fragilidade, patenteou o alto índice de desigualdade, a pobreza, a miséria, a pouca capacidade de resiliência e o falso desenvolvimento e crescimento visto em algumas décadas. A Jornalista econômica, Thais Carrança, salienta que a Pandemia agravou o que já se desenhava como a pior década de crescimento nos últimos séculos, sinalizando um encolhimento de 4,1% em 2020, aproximando aos efeitos de 4,4% do Plano Collor de 1990 e superando os 3,5% de 2015 e os 3,3% de 2016. No ano anterior à pandemia, o Brasil atingiu a marca de 53,8 no coeficiente GINI, estado alarmante, que demonstra a recorrência negativa na desigualdade de distribuição de ingressos. 50 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS No que diz respeito ao índice de Desenvolvimento Humano, o Brasil, em 2019, ocupava a 84ª posição do ranking, atrás de países da região como México e Colômbia, com 0,765. A situação já caótica, com a chegada da pandemia se torna insuportável e insustentável no país. A partir desse fenômeno e como consequência o aumento do número de contágios, se instaurou um debate sobre as medidas sanitárias que deveriam ocorrer. Entretanto, tratando-se de uma pandemia esse debate nunca se limita à esfera sanitária. Isso, porque, inevitavelmente, todas as experiências mundiais anteriores, relacionadas com epidemias e pandemias provocadas por doenças virais, é de conhecimento que a ação mais estratégica é realizar o isolamento social, evitando o espalhamento do contágio e permitindo a investigação científica e a criação de medidas sanitárias de controle, prevenção e enfrentamento. As ações de contingências afetam todas as áreas da sociedade, tendo sempre, como ponto de gargalo e atenção, as consequências socioeconômicas. No início de março de 2020, período onde acentuou-se as preocupações com o vírus no Brasil, o Governo já diminuiu as expectativas relativas ao crescimento da economia e as incertezas socioeconômicas ganharam proporções inigualáveis no país. Em 16/03/2020, o governo publicou pela primeira vez, no site do Ministério da Economia (ME) medidas que seriam adotadas relativas ao enfrentamento da crise econômica que se conflagrava devido a pandemia. Podendo-se destacar a injeção de R$ 147,3 bilhões na economia para atender a idosos e para a manutenção de empregos; suspensão do pagamento do FGTS por três meses para empresas; suspensão por três meses da parcela da união no Simples Nacional; R$ 5 bilhões de crédito para micro e pequenas empresas; contribuições do Sistema S com desconto de 50% por três meses O mais preocupante das medidas supramencionadas é que elas não consideravam os mais de 12 milhões desempregados, os mais de 35 milhões de 51 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS trabalhadores informais e autônomos, e os mais de 92 milhões de trabalhadores formais, segundo dados do Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD/IBGE). Após dias de caos e muita movimentação da sociedade civil para conseguir apoio para estes grupos e para a população mais vulnerável, o governo anunciou a liberação de um auxílio emergencial no valor de R $200,00 por CPF, abarcado nos parâmetros definidos, como, por exemplo, ter mais de 18 anos, durante 3 meses. Segundo o próprio site do governo, essa medida iria beneficiar de 15 a 20 milhões de pessoas, correspondente a uma injeção de R$ 5 bilhões na economia. O valor mencionado, em níveis proporcionais, representa: ⅓ do valor solicitado pela sociedade civil, 31% do preço da cesta básica e 18% do Salário mínimo. Uma das ações mais polêmicas do governo foi a criação do chamado “Programa Antidesemprego”, que permitiria a negociação para redução de jornada de trabalho e salário em até 50%, não permitindo que o valor seja inferior a um salário mínimo e a proposição da Medida Provisória que permitiria a suspensão dos contratos de trabalho por quatro meses. Claramente uma das ações menos práticas, objetivas e efetivas propostas pelo governo, reduzindo a renda das populações mais pobres e o dinheiro circulando na economia, mas, principalmente, desviando completamente das medidas eficientes comprovadas ao longo da história de aumento do investimento público. Em 19/03/2020, o governo informou no site do ME um acréscimo de 22 bilhões de reais no plano de enfrentamento à pandemia, totalizando R$ 169,6 bilhões, cerca de 2.32% do PIB de 2020, dos quais R$ 98,4 bilhões seria para as populações mais vulneráveis, R$ 59,4 bilhões para a manutenção dos empregos e R$ 11,8 bilhões para o combate à pandemia. Também anunciou que 1 bilhão do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) seria destinado em formato de crédito para as micro, pequenas e médias empresas com faturamento bruto anual de até R$ 10 milhões. 52 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS O autor Lauro Mattei comentou que até este período as medidas anunciadas eram genéricas, salientando que o ministro voltou a tratar do tema das reformas (administrativa e tributária), afirmando que a melhor resposta para conter a crise era aprovar as reformas no Congresso Nacional (CN) que, se isso fosse feito, a economia brasileira iria crescer 2,55% em 2020. Justificou-se afirmando que somente as reformas poderiam conter as turbulências que vêm de fora. (MATTEI, 2020) Com relação aos municípios, em 23/03/2020, o governo anunciou um repasse de R$ 88,2 bilhões para os setores da saúde, Recomposição FPE e FPM, Assistência Social, Suspensão de dívidas dos Estados com a União, Renegociação com bancos e Operações de crédito. Dia 03/04/2020, o ME anunciou um empréstimo de R$ 34 bilhões para que as empresas pudessem manter as folhas de pagamento. Logo após, dia 29/04/2020, o ME criou doze forças-tarefas com o objetivo de monitorar o setor produtivo e propor medidas de apoio e enfrentamento aos impactos econômicos durante a pandemia. Em maio de 2020 (13/05/2020), o Ministério da economia informou que os custos da paralisação da economia seriam de R$ 20 bilhões por semana, projetando uma retração de 4,7% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020. É importante ressaltar que essas projeções foram feitas considerando que as paralisações terminariam em 31/05/2020. Após muitas críticas sobre a obsessão do ministro pelas reformas e dois dias após as projeções apresentadas, o Ministro da economia informou que as reformas estruturantes da economia foram interrompidas devido ao enfrentamento à pandemia. Também vale salientar, que nesse pronunciamento foi apresentado o vídeo e site “500 dias de Governo - Governo Jair Bolsonaro”, desenvolvidos com recursos públicos para promoção do governo em meio à maior crise sanitária e econômica das últimas décadas. Foi ressaltado no vídeo a compra exorbitante de 2,9 milhões de unidades de Cloroquina e Hidroxicloroquina, medicamentos sem comprovação científica para o tratamento da COVID-19. 53 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Por outro lado (28/05/2020), foi sancionada a Lei Complementar nº 173/2020 com o objetivo de repassar para os estados, municípios e o Distrito Federal mais de R$ 60 bilhões para dar suporte no enfrentamento à pandemia. No início do mês de junho de 2020 o Ministério da Economia, juntamente com o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) lançaram o Programa de facilitação de acesso a crédito para pequenas e médias empresas (PMEs). Em 30/06/2020 foi anunciado a prorrogação do auxílio emergencial por mais dois meses. O Ministério da economia anunciou (02/07/2020) que até a data R$ 521,3 bilhões já haviam sido investidos na economia para enfrentamento aos impactos da pandemia, sendo R$ 508,5 bilhões injetados e R$ 12,8 bilhões em redução de receitas. No dia 13/07/2020, quatro meses depois do início da pandemia, os estados e municípios receberam a primeira parcela do auxílio de enfrentamento à pandemia e no dia 19/08/2020, cinco meses após o início da pandemia, o governo federal sancionou as Medidas provisórias (MP 944, que institui o Programa Emergencial de Suporte a Empregos, e da MP 975 que institui o Programa Emergencial de Acesso a Crédito) de facilitação do acesso ao crédito pelas micro, pequenas e médias empresas. Como podemos ver, várias das medidas tomadas pelo governo foram de respostas lentas. É possível afirmar isso, pois o país foi um dos últimos a ser afetado com o espalhamento do vírus, tendo as possibilidades de haver desenvolvido respostas de mitigação. Nesse sentido, também podemos citar o fato de tomarem medidas contando com o fim da pandemia dois meses após a chegada no Brasil e uma retomada da economia entre três e cinco meses. Em publicação de 2020, transcrevemos, o autor Lauro Matei (2020): “O governo não tem um Plano de Ações organizado e articulado para amenizar os efeitos da pandemia nas atividades econômicas. O que se viu até o momento foram anúncios espalhafatosos e a conta gotas de montantes de recursos, porém sempre com poucos efeitos práticos, uma vez que os encaminhamentos para que de fato esses montantes 54 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS anunciados cheguem aos agentes econômicos (empresários e trabalhadores) normalmente continuam paralisados até o momento (MATTEI, 2020, pag 4)” O Ministério da Economia informou no dia 23/12/2020 que, até a data de 18/12/2020, o impacto fiscal com a Pandemia já havia alcançado o patamar de R$ 620,5 bilhões, sendo R$ 374,2 bilhões (60,3%) destinados aos vulneráveis e à saúde, R$ 140,8 bilhões (22,7%), para manutenção dos empregos e empresas e R$ 105,5 bilhões (17%) aos entes nacionais. Nesse sentido, informou em 31/12/2020 que o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (PRONAMPE) concedeu crédito de mais de R$ 37,5 bilhões a 517 mil empresas. Apesar das medidas apresentadas com relação a facilitação e acesso a crédito para as pequenas empresas, a realidade era um pouco distinta. O processo e as condições eram complexos, logo, muitos empreendimentos levaram meses para acessá-lo e outras nunca o acessaram. Em termos gerais, os pouco mais de 8% do PIB de 2020 injetados na economia foram míseros comparados com as necessidades provocadas pela pandemia do Covid-19. Esses fatos são corroborados com os dados apresentados anteriormente sobre os aumentos intensivos do número de desempregos, empresas fechadas, da desigualdade e da população na linha da pobreza e da insegurança alimentar. 4 CONCLUSÃO É demasiadamente perceptível que as gestões econômicas brasileiras nunca conseguiram realizar um plano econômico para com o pensamento de longo prazo sobre o sistema estrutural da economia do Brasil. Desde a década de 1960, todas as medidas econômicas lançadas, foram criadas pra solução de problemas macroeconômicos imediatos para a gestão que estava no poder. A crise sanitária devido a propagação do vírus do Coronavírus é apenas mais um dos exemplos de crises que influenciam na criação de projetos econômicos para solução imediata, o que vem depois, pode ser resolvido pela próxima gestão. Já a questão social é um ponto na qual estava fora das premissas de urgências impostas sobre os planos 55 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS econômicos até então já lançados, sendo um fator que provavelmente seja o motivo para o fracasso de todas os projetos econômicos até então implementados. No início da década de 60, é visível que o país não conseguia sustentar o seu rápido crescimento imposto pelo Governo anterior. O Plano Trienal veio como uma excelente ferramenta para solucionar os problemas econômicos advindos do Governo JK, sendo o primeiro Plano econômico brasileiro altamente estruturado e com medidas que iriam provocar alcances a longo prazo. No entanto, o golpe militar interrompe o desenvolvimento do Plano, tendo em seguida a implementação do PAEG, que, praticamente, tinha as mesmas medidas colocadas pelo Plano Trienal. Neste sentido é visto que neste período o Governo brasileiro tentou realizar a intromissão de políticas vindouras da gestão anterior, sendo o que de fato foi feito até 1975. Contudo, podemos observar que o Brasil apresentou grande crescimento econômico no período entre a década de 1960 a 1970, devido à uma gestão econômica na qual demonstrou certo diálogo entre os governos sucessores para que as medidas até então impostas continuassem no rumo certo para o desenvolvimento do país. Todavia, é a partir do meio da década de 1970, que observamos que a gestão não consegue atualizar as suas medidas para enfrentar a grave crise internacional que passava, o que os impõem criar um Plano econômico com o proposito de solucionar os problemas vindouros naquele instante e, novamente, não pensando em soluções estruturais de impacto a longo prazo. Posteriormente, foi apenas na gestão do Governo Lula, que o Brasil conseguiu realizar projetos com o intuito obter impactos a logo prazo. Na realidade mais recente, a condução da crise sanitária brasileira provocada pelo coronavírus é mais um exemplo de caso brasileiro de criar políticas econômicas sobre ótica emergencialmente na tentativa de encontrar soluções com impactos de curto prazo, deixando aquém medidas que teriam relevância e predominância maior a longo prazo, com soluções imediatas. No mesmo passo as políticas econômicas até então criadas no início da instalação da crise, foram medidas que excluíram a classe mais pobre o que retoma as medidas criadas na gestão dos militares na qual não demonstraram a necessidade de uma visão para o âmbito social, tendo como maior foco o desenvolvimento de um capitalismo ferrenho, não dando qualquer margem 56 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS para uma maioria marginalizada, o que foi demonstrado amplamente nos ganhos do milagre econômico. A partir disso, pelo período de grave crise econômica e as suas consequências, como a pressão inflacionária, baixo poder aquisitivo e pouco crescimento econômico dão margens para à tomada de grandes medidas públicas econômicas, porém essas medidas teriam que ser tomadas com a percepção da demanda populacional. A criação de novas tributações, arrocho salarial e o fornecimento de capital para indústrias, com o intuito de frear a inflação, foram medidas tomadas para uma classe especifica. A percepção do governo em não implantar essas novas medidas de maneira como ‘’medidas de choque’’ tinha o claro intuito em não desestabilizar ainda mais a economia brasileira, porém, para as várias famílias brasileiras as novas medidas econômicas tiveram um grande choque em suas vidas. A construção de infraestruturas públicas, apenas demonstram maiores pavimentos para a indústria, principalmente privada, onde se teria o básico para o mantimento do desenvolvimento industrial. Observa-se, também, que governo Costa e Silva, apenas ampliou o estimulo ao desenvolvimento agro exportador não abrindo nenhuma porta para o desenvolvimento social, o que é rapidamente demonstrado com a colheita dos frutos das novas medidas econômicas, no governo Médici com o ‘’ Milagre econômico’’, o qual foi um grande milagre para uma minoria, tendo grande concentração de capital, e uma grande desvantagem para uma maioria, não obtendo investimentos sociais. O Governo Bolsonaro, cria políticas econômicas com o mesmo viés implementado durante a gestão militar. É perceptível a inerência de criação de políticas públicas voltada para a grande maioria populacional que pertence a classe mais pobre do Brasil. Dessa forma, conclui-se que as gestões governamentais brasileira procuram criar Planos econômicos para gerir problemas macroeconômicos de imediato, deixando de lado a visão de criar uma estrutura para sólida que provocará impactos coesas a longo prazo. 57 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS REFERÊNCIAS ARIANTI, Wagner Leal. Autoritarismo, Desenvolvimentismo e Relação EstadoEmpresariado: tensão na implementação do II PND, 1974-85. Universidade Federal de Santa Catarina, Espírito Santo, 2008. BASTIAN, Eduardo. O PAEG e o Plano Trienal: Uma Análise Comparativa de suas Políticas de Estabilização de Curto Prazo. Est. Economia, São Paulo, vol. 43, n.1, p.139-166, 2012. LACERDA, Antônio. BOCCHI, João. REGO, José. BORGES, Maria. MARQUES, Rosa. Economia Brasileira. São Paulo: Saraiva, 2014. MACARINI, José. A política econômica do governo Médici: 1970-1973. R. Nova Economia, Belo Horizonte, p 53-92, 2005. MACARINI, José. A política econômica do governo Costa e Silva 1967-1969. R. 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Disponível em: <https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/noticias/noticiascoronavirus-covid-19?b_start:int=60>. 59 DISTRIBUTION OF ADMINISTRATIVE COMPETENCES BETWEEN NATIONAL AUTHORITIES IN BRAZILIAN FEDERATIVE HEALTH SYSTEM: INTERNATIONAL VACCINE PURSHASE CONTRACTS AND PARADIPLOMACY Carolina Reis Jatobá Coêlho1 1 INTRODUCTION On January 20, 2020, the World Health Organization declared that the world was facing a"public health emergency of international interest", which led Brazil to enact Law No. 13,979, of February 6, 2020, which was later modified on March 20, 2020, after a new WHO declaration that reclassified that current moment as a global pandemic, caused by the advance of the new coronavirus that causes a disease called COVID-19. The legislation guides coordinated actions by all entities of federation, highlighting measures that may be adopted by the authorities in health issues only provided if they are within limites of their competence. Citizens shall be subject to compliance with sanitary measures and their non-compliance will lead to liability and all system should assure full respect for dignity, human rights and fundamental freedoms. In order to face the public health crises, the authorities may adopt, within the scope of their competences, the following measures, among others: isolation; quarantine; determination of compulsory performance of: a) medical exams; b) 1 Phd in Administrative Law at PUC-SP. Master in Law of International Relations at University Center of Brasília. Specialist in Constitutional Law at IDP/DF. Specialist of Public Law at Fundação Escola Superior do Ministério Público/DF. Legal Consultant/Attorney at Law at Caixa Econômica Federal in Brasília/DF. Professor at the University Center of Brasília. A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS laboratory tests; c) collection of clinical samples; d) vaccination and other prophylactic measures; or e) specific medical treatments; epidemiological study or investigation; exhumation, necropsy, cremation and handling of corpses; exceptional and temporary restriction, according to the technical and substantiated recommendation of the National Health Surveillance Agency, by highways, ports or airports from: a) entry and exit from the country; b) interstate and intercity transportation; c) requisition of goods and services from natural and legal persons, in which case the subsequent payment of fair compensation will be guaranteed; and exceptional and temporary authorization for the import of products subject to sanitary surveillance without registration with Anvisa, provided that: a) registered by a foreign sanitary authority; and b) provided for in an act of the Ministry of Health. To compose the hole legislative framework, in addition to Law No. 13,979, already explained, we should be mentioned Law No. 14,121, Law No. 14,124 and Law No 14,125 all of them published in March 2021 and that guide actions to combat and prevent COVID-19. First one provides for exceptional measures related to the acquisition of vaccines, authorizes the federal executive branch to adhere to the Covid-19 Global Access to Vaccines Instrument (Covax Facility) and establishes guidelines for the immunization of the population. Second one also provides for exceptional measures relating to the acquisition of vaccines, but also for supplies and the contracting of goods and services in logistics, information and communication technology, social and public communication and technical training for vaccination against covid-19 and on the Covid-19 National Immunization Operational Plan. In this legislation, there is an exemption from bidding of contracts or similar instruments, but it does not remove the need for an administrative process that contains the technical elements required to choose the contracting option and to justify the applicable price. The third of them is the most important for the subject of this paper. According to Law 14,125, entities of federation (the Federal, Member-States and Municipalities) are authorized to acquire vaccines and to assume the risks related to civil liability, under the terms of the instrument of acquisition or supply of vaccines. 61 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS This guidance is consistent with the understanding that the coordination of all federative entities is one of the premises underlying Law No. 13,979. The coherence of coordination also exists within the National Immunization Program (NIP), established by Law No. 6.259/1975. The NIP began its first National Vaccination Campaign against Poliomyelitis in 1980, with the goal of vaccinating all children under the age of 05 in one day. This program have been internationally known as part of the World Health Organization Program, with technical, operational and financial support from UNICEF, and contributions from Rotary International and the United Nations Development Program (UNDP). The problem that arises in this paper discussion is that even facing a unified health system in Brazil, which covers the entire national territory and is coordinated by a central unit, there is inequality in the health universe, highlighting regional differences, that reveal marked disparities between member states with regard to equipment and human resources in the area of health. Additionally, the pace of vaccination was not the same for all federation entities. There were advances and setbacks when considering member states. Although the public policy on vaccination is considered broad and covers the entire national territory, member states have their own public budgets and the forms of decentralization of material, personal and administrative resources and it leds to greater advances in vaccination in richer states and a delay in poorest states. This combination of coordination by a central entity and the execution of public policies by federative entities ends up generating a model that intends to be cooperative. However, what was noticed were member states taking the lead in negotiating, purchasing, and executing international contracts, including national entities, which characterizes the phenomenon of paradiplomacy. This article intends to analyze the individual actions of the Member States of the Brazilian federation in light of the Brazilian legal system and also the jurisprudential readings of the Brazilian Supreme Court. The questions that arise are: i) are member states acting legally in the design of the distribution of administrative powers provided for in the Brazilian Constitution for Public Health issues? ii) is the 62 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS phenomenon of paradiplomacy observed in the negotiations of international contracts conducted by state governors? To answer the questions, this article is divided into two parts, each one intended to address each of the questions. The first one proposes to describe how administrative and legislative competences are designed to deal with public health issues in the Brazilian legal system. This item is also intended to present how the Brazilian Federal Supreme Court interpreted the issues of competence distribution in the execution of public policies regarding the treatment and prevention of COVID19. The second part introduces the concept of paradiplomacy and justifies the negotiation of international contracts for the purchase of vaccines by governors, given the administrative vacuum that occurred in the health crisis due to the delay in approving purchases. Finally, it is concluded that it is possible to consider the legitimacy and legality of negotiation and contracting acts carried out by governors. 2 BRAZILIAN FEDERATIVE MODEL AND REPERCUSSIONS ON THE PUBLIC HEALTH POLICY AGENDA. Brazil is a republic whose State adopts the form of federalism. Traditionally, federalist states divide power into administrative and legislative decision-making spheres that must be united for common collaboration 2..Thus, the exercise of power is carried out jointly by the larger entity, the federal sphere, and between smaller entities, the Member States, which have a certain autonomy in relation to the latter, mainly in matters of regional characteristics. However, Brazil is not a two-tier federation3, like most federative models in the world. This is because, in addition to national and regional power, there is a 2 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998, p. 178 e ss. In Hesse's traditional view, federalism is the free unification of different political totalities, fundamentally with the same rights, into regional rules that, in this way, must be united for common collaboration”. Although the author considers that there is a conceptual uniformity in the theme, the distinction is due to the concrete-historical particularities and individualities of each social and legal formation. 3 Most Federated States adopt dual or classic federalism, which has a North American origin and presents a centripetal model (which starts from the base or from the center to the ends), in which there is a decentralization of competences distributed to the Member States. In Brazil, this logic was already implemented in the Federal Constitution of 1891, which established the Union's competences expressly 63 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS division of local power, which also represents autonomy for even smaller entities, the municipalities. The division of powers in the federation, therefore, is a presumption and the forms of exercising such powers are designated by competences: whether administrative or legislative. So, first of all, it is important to afirmm that competence, in the technical sense of the term used in Brazil, is considered as a complex of powers that are performed through attributions that limit them, so that no public authority is absolute. Assume that premisse, the division of competence in Brazilian Constitution of 19884 addresses the legislative competences (to legislate), and administrative competences (to manage). In the scope of legislative competences, there are within the scope of legislative competence, there are two types that can be considered: i) private competence (art. 22) and ii) concurrent competence (art. 24). Private competence is that exclusive to the federative entity. For exemple, it is the exclusive competence of the federal sphere to legislate on sovereign issues or those matters that need homogeneous treatment throughout the national territory. In this sense, article 21 of the Brazilian Constitution of 1988 provides that some of the following themes are legislative matters of the federal sphere: i) civil, commercial, criminal, procedural, electoral, agrarian, maritime, aeronautical, space and labor law; ii) expropriation; iii) civil and military requisitions, in case of imminent danger and in time of war; iv) water, energy, information technology, telecommunications and broadcasting, and much others itens, including foreign and interstate trade. Concurrent competence, in turn, is that which is attributed not to a single entity of the federation, but which can be performed by all of them, within the limits in an exhaustive list, and, by a contrario sensu interpretation, all other undetermined competences were attributed to the Member States, who had greater political autonomy. Such was the autonomy of the Member States that it ended up generating an undesirable alternation of government polarized between São Paulo and Minas Gerais, and was baptized by historians as “República Café com Leite” (a reference to the two main economic products produced by those Member States). 4 BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República. Avaiable in: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Conferred on 08th October of 2021. 64 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS of their territorial scope. Therefore, pursuant to article 24 of the Brazilian Constitution it is incumbent upon the Nacional Entity, the States and the Federal District to legislate concurrently on, for exemple: itax, financial, penitentiary, economic and urban law; ii) budget; iii) commercial boards; iv) costs of forensic services; vproduction and consumption; ix)education, culture, teaching, sport, science, technology, research, development, and, especially for the purposes of this paper, social security, health protection and defense. In order to preserve the state's competence, within the scope of concurrent legislation, the competence of the Nacional Entity will be limited to the establishment of general rules. Regarding administrative competence, it is possible to perceive two types of competence: exclusive (art. 21) and common (art. 23). The exclusive administrative competence is that which cannot be delegated, that is, it cannot be performed by any entity other than the one to which the Constitution has granted powers. To exemplify this exclusive competence, it is mentioned that the national entity is in charge of matters of relevant value to the nation-state, such as maintaining relations with foreign states, declaring war, issuing currency, among others provided for in article 21, it is noteworthy that the exclusive competence of the union is undelegable, so its delegation to any other being prohibited. Similar to the logic of concurrent legislative competences, it is the common competences of federative entities (the Federal sphere, the States sphere, the Federal District and the Municipalities). The difference between the competences is that the first is related to legislative actions, while the other is related to the administration and execution of public policies. However, in both, there is a limitation on the attributions of the federation's entities. Concurrent and common competence, therefore, are specific words in the language of the Brazilian Constitution. And it was established that if the Constitution speaks of concurrent competence, it will be referring to the act of legislating by each of the federative entities, each in its sphere of action. Similarly, if the adoption of the term is in reference to common competence, it is talking about the attributions that fall to the Executive Power and its representatives in each of the Brazilian federative 65 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS spheres. Basically, common competences are administrative and concurrent competences are legislative. The actions and public policies common to all federative entities and that express typical activities of the Executive Power are, among others, the safeguard and protection of the Constitution, laws and democratic institutions, in addition to the preservation of public property, and for the purposes of the article, the guarantee of public health and assistance. Health care is understood as a set of diagnostic, therapeutic and interventional services. In Brazil, it is provided both by the Public Power and by private institutions, albeit under the logic of the Unified Health System, and its guidelines are decentralization, comprehensive care and community participation. Thus, it is the obligation of the entire Brazilian federation (common competence of the Federal Sphere, States, Federal District and Municipalities) to care for health, which is compatible with what is called the Unified Health System, created by the Constitution, in its art. 198, based on the following considerations previously seen: health is a duty of all and a duty of all brazilian entities; access to actions and services to promote prevention and recovery is universal and equal, that is, everyone has the right. The Unified Health System is organized through the integration of the actions and health services of a federative entity with another, in the network of these actions and services. This demonstrates that federative entities, although enjoying the same federative autonomy, are interdependent within the Unified Health System, and should integrate their services with each other in the health region. The health system is composed of the services of different entities, in the health region or between health regions, which are integrated in a network. Article 7 § II of Law nº 8.080/1990 defines the integrality of health care, saying that it is a articulated and continuous set of actions and services that must be guaranteed in the system. The integration of federative entities characterizes the unified health system and gives rise to a program with an interdependent format in which an entity of the federation does not carry out any activity on its own. He is 66 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS always helped by other entities and the actions are coordinated by the Federal Sphere, which must ensure integrity and standardization of the system. These guidelines were the object of analysis by the STF in concentrated control of the constitutionality of the legislation (ADI 6.341), in which the Court expressed its opinion, considering that the matter of public health is a concurrent administrative competence of the federative entities as per the diction of article 23, II , of the Federal Constitution, and, in an injunction for a monocratic decision (to be confirmed by the Plenary), understood that the measures of isolation, quarantine and compulsory examinations do not rule out measures taken by federative entities. Therefore, in practical terms, measures relating to isolation, quarantine and restriction on entry and exit from the country and locomotion may be taken in different administrative spheres of the Federal Sphere and several Federated States have implemented their own measures, using the judicial authorization given by the interpretation of the STF to manage within its federative unit. According to the Constitution, the correct interpretation of Law No. 13,979 is confirmation of the concurrent competence of the Union, States, Federal District and Municipalities over public health. The laws enacted by the Union were considered constitutional, respecting its competences, but even so this does not remove or weaken the power of each of the other federative entities. The conclusion of the paradigmatic judgment demonstrates that federative model to address the issue of public health works in a cooperative between subnational entities and coordinating role of the nacional entity. 3 COOPERATIVE FEDERALISM IN HEALTH, THE LEADING ROLE OF THE MEMBER STATES IN MANAGING THE CRISIS AND THE INEVITABLE PARADIPLOMACY In the view of the Brazilian Federal Supreme Court, subnational entities end up acquiring greater responsibilities. As a result, the central entity would be responsible for coordinating public policies and directing assumptions and guidelines to other entities. However, what was noticed was a greater role for the Member States, which replaced more central roles in the conduct of policies to fight 67 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS the pandemic. In this regard, the Constitutional Court recognized the roles of subnational entities and reinforced their need for cooperation. According to this context, the protagonism of some Member States in front of the health crisis is justified, which, in many cases, generated an intensification of the phenomenon of paradiplomacy, which, in Brazil, has been relatively constant over time and it encompasses time space beyond constituted governments or policy agendas. As a rule, diplomatic activities, because they involve representation of the Sovereign Unit, are carried out by public servants who belong to their own professional careers and are admitted through a public examination for exams and titles. The complexity and scope of the contents provided for in the public tender indicates that the occupants of this specific career are servants molded to serve the public function representing Brazil abroad, in forums of the most diverse themes and having meetings with relevant interlocutors such as Heads of State and Government, congresses of parliamentarians, business meetings, technical seminars, conferences of non-governmental organizations. This indication clarifies that international issues are of increasing interest to a greater number of representatives of society in technical matters. However, the actors and themes of international dialogues have been diversified, and it is no longer exclusive for career diplomats or heads of state to represent sovereign interests. This decentralization of diplomatic activities has been called paradiplomacy and adding not only technical entities, academics, NGOs (nongovernmental organizations) and other actors to the debates, but also subnational representatives. Subnational government interest have been constituted by agents that, in the traditional level of Law International would not represent the State in international relations through the establishment of formal and informal, permanent or provisional contacts with entities public or private foreign companies. 68 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS This patent and irreversible movement is a logical consequence of the degree of complexity and specialization of subjects, typical of contemporary times, which raises the decision-making power of such agents and their respective institutional links, which modifies the logic of relationship structures and fields of power in international relations, with considerable limitation of the sovereignty of the National States, in view of the traditional formatting of classical international law 5. In modeling Brazilian cooperative federalism, the intention of the constituent was to establish a cooperative federalism from which the three levels could collaborate reciprocally to guarantee the provision of quality public services and the scarcity of resources was overcome by its efficient application, allowing the realization of more with less investment. However, this reality did not take shape in practice, as the financial and administrative capacity of the Member States is not uniform and there is a great centralization of revenues in the federal entity. For this reason, when it comes to public health policies, it is essential to have a certain centralization, which is consolidated by the Unified Health System, including the distribution of immunization agents and transfer of budget funds. An emblematic example was the negotiation between the governor of São Paulo directly with the Chinese laboratory Sinovac, which culminated in a contract that provided for the supply of 46 million doses of CoronaVac vaccine to the São Paulo government, in addition to the technological transfer of the vaccine from Sinovac to the Butantan Institute. Despite negotiations and final contracting by São Paulo, the National Health Surveillance Agency (Anvisa) had to approve the use of the vaccine and make it available for vaccination throughout Brazil. 5 CASTELO BRANCO, Álvaro Chagas. Paradiplomacia e entes não-centrais no cenário internacional. Curitiba: Juruá, 2008. PIETRO, Noé Cornago. O outro lado do novo regionalismo pós-soviético e da Ásia Pacífico. In: VEGEVANI, Tullo (Org.) A dimensão subnacional e as relações internacionais. São Paulo: UNESP, 2004, p, 251; MAIA, José Nelson Bessa. SARAIVA, José Flávio Sombra. A paradiplomacia financeira no Brasil da República Velha, 1890-1930. In Revista Brasileira de Política Internacional. N. 55 69 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS According to the National Immunization Program of the Unified Health System, despite the individual actions of Member States, the distribution of immunizing agents does not fail to indicate the centralization of activities in agreements at the federal level. Along with paradiplomacy, it should be noted that Brazil adhered to some instruments, especially the COVAX facility consortium through Provisional Measure nº 1003 of 2020, later converted into Law nº 14,121, of March 1, 2021. Provisional Measure No. 1026 was edited, which provided for exceptional measures related to the acquisition of vaccines, converted into Law 14,124, of March 10, 2021. The then Minister of Health consulted the TCU on the exegesis of some of the articles in these regulations. The analysis of the Provisional Measures and the resulting Laws are necessary to understand the instrument and the contracts signed through them. COVAX Facility's financing mechanism is the International Finance Facility for Immunization (IFFIm) and is built on the partnership between donor countries, private investors, the World Bank and the Gavi Alliance. Donor countries contribute long-term, legally binding pledges from donor countries, and the World Bank turns them into vaccine bonds, which promote immediate financing for the Gavi Alliance's immunization programs. The administrator of this fund is the World Bank and with the pledges of donation from the countries, it managed to raise approximately 6.9 billion dollars from 2006 to 2020. Brazil has become one of the countries that contribute to the Gavi Alliance, linking to a donation from US$ 20,000,000.00 (twenty million US dollars) in equal and subsequent installments over 20 years, being an example of a pledge of contribution that will be converted into vaccine titles, even before the IFFIm actually receives these features. The pace of public contracts for the acquisition of vaccines was not the same for all Member States and even centralized purchases by the National State were not sufficient. After long political differences, a Parliamentary Inquiry Commission indicted national authorities in 80 crimes, the long and apprehensive year of 2021 seems to be heading to an end. Number of admissions and deaths dropped with most 70 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS of the adult population vaccinated and some member states are already planning to stop forcing people to wear masks in open spaces. In September, during a meeting with the ministers of health of the countries that make up the G20, in Rome, Italy, the director general of the World Health Organization (WHO), and the country will begin to appear as an exporter of vaccines. 4 CONCLUSION Brazilian federalism is established on the premise of 03 levels of decisionmaking spheres both at the legislative and administrative: a central entity, which is not only responsible for taking its own administrative decisions with national coverage (especially when public policy needs to be uniform in all of country) or when even with regional differences in administrative and legislative treatment, some minimum guidance is essential as to the premises to be adopted by other national entities. Unlike other federative systems, which generally have 02 levels, the Brazilian system adds the municipality and also an entity such as the Federal District, which brings together powers of the States and Municipalities.With regard to public health policies, cooperative and coordinated action is very relevant for the effectiveness of constitutional instruments and the existing model. The COVID-19 crisis added some complexities to this scenario, in addition to the urgency of action. In this sense, given the population and financial inequality and organizational and administrative capacity of federative entities, the contribution of the sovereign central entity is essential. Contrary to what was expected from the normative model, what was observed was that the Member States played a leading role in the negotiation, purchase and application of immunizing agents (vaccines). When observing that Member States took the lead in the implementation of health policies, it was noticed a densification of the phenomenon of paradiplomacy, which is not new in the Brazilian scenario, but which was widely used as a political instrument in the COVID-19 crisis. 71 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS REFERENCES CASTELO BRANCO, Álvaro Chagas. Paradiplomacia e entes não-centrais no cenário internacional. Curitiba: Juruá, 2008 HEILMANN, Maria de Jesus Rodrigues Araújo. Globalização e o Novo Direito Administrativo. Curitiba: Juruá Editora, 2010. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998 LUFT, Rosangela Marina. Os municípios na Constituição de 1988: (nem) todos autônomos nos termos desta Constituição. In: Direito constitucional brasileiro: organização do estado e dos poderes. CLÈVE, Clèmerson Merlin (coord.) São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. 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The Parliamentary Inquiry Committee (CPI) on the Covid-19 pandemic installed in 2021 exposed the Brazilian government’s failures in dealing with the global pandemic, accumulating over 600 thousand deaths. To clarify what is the role of the CPI and what it means for Brazilian democracy, this paper aims to describe the legislative procedure law on the creation of this CPI, explaining their legal competence and their impacts on the political sphere, and demonstrating how it becomes an important tool for the Brazilian democracy in crisis. Keywords: CPI; Parliamentary Inquiry Committee; Covid-19; Brazil; democracy. 1 INTRODUCTION The Brazilian legislative process as a tool for public policy has a complex number of rules and procedures. Part of it is oriented to the parliamentary committee’s function, which is responsible for constructing national rules of law and public policy more rationally and technically. In that view, those committees are places where civil society – as a Brazilian democracy - can hold discussions on crucial topics concerning the national public agenda as well as exercise their 1 Doctor in International Law (Université Lorraine, France); Law and International Relations Professor (University Center of Brasília, Brazil); Visiting Professor (Université Lorraine, France). 2 International Relations bachelor by University Center of Brasília (UniCEUB, Brazil) and post-graduate on Public Policy by Fundação Getúlio Vargas (FGV). 3 Political Science bachelor by University of Brasília (UnB, Brazil) and post-graduate on Public Policy by Fundação Getúlio Vargas (FGV). 73 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS democratic right through social participation. Seeing as the main directions of Brazilian public policy and all the legislative decision-making processes are made within those committees, such as the government budget issue, some of those committees can also play an auditing and inspection role as the Parliamentary Inquiry Committee (CPI). This type of collegial body is a specific type within the Brazilian legislative process that has the purpose of investigating public authorities and forwarding their conclusions to the judiciary power for the execution of civil or criminal charges. This type of CPI has increasingly gained attention worldwide during the Covid-19 pandemic and the Brazilian political institution crisis. To clarify what the role of the CPI is and what it means for the Brazilian democracy, this paper aims to describe the legislative procedure law for the creation of this CPI, by explaining their legal competence and their impacts on the political sphere and demonstrating how it has become an important tool for a Brazilian democracy in crisis. 2 CONCEPT OF PARLIAMENTARY COMMITTEE The decision-making process within the Brazilian legislative power has various levels of decision so that it is quicker and more effective. seeing the need for deliberative rationalization inside legislative bodies in the National Congress bicameral system, the Brazilian Federal Constitution of 1988 established institutional mechanisms to develop public policy and law. Thereafter, the parliamentary committees started being defined as collegial bodies to promote discussions, voting, presentations, and deliberations of legal propositions and relevant themes or events to society. In this view, the parliament committees came about to strengthen the Brazilian democratic participation, seen as they promote smaller political groups of discussion for a reduced number of congressmen in the decision-making process on a certain proposed subject, just as established in many other countries such as the United States and Germany. At that, the enormous number of themes to be deliberated are structured in a more cohesive form, as it provides space for congressmen to participate in several areas accordingly with their agendas and main political areas of interest. 74 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS In terms of definition, Casseb (2008) sets the parliamentary committee’s concept as a congressmen reunion, in a reduced setting, to act jointly on a specific matter. Sharing a similar view, Andrade and Coutinho (2016) describe those committees as bodies that aim to examine and vote for legal propositions in a decisive sphere with a reduced number of congressmen. To Coelho (2007), the parliamentary committees aim to discuss and vote for draft legislations and are part of the internal delegation process of each house of the National Congress to simplify the legislative process and diminish the excess of matters destined to the Congress plenary4. The Brazilian Federal Constitution on its article nº. 58 covers the committee’s creation in the National Congress and it can be divided into two types: permanent and temporary committees, which is the most common classification criteria. It is also important to stress out that those committees can be formed by congressmen of the two houses, called Joint Committees, or be formed by members of each house, either representatives-only or senators-only. The Permanent Committees are collegial bodies that do not have a predetermined time for closure and are fixed in the Internal Regiments of the House of Representatives, the Senate, or the National Congress as a whole. They are part of the administrative structure that analyzes technically legal propositions, following up the government plans and programs, and supervising actions of the Executive power. Examples of this kind of committee are the Agriculture, Livestock, Supply and Rural Development Committee (CAPADR); Constitution, Justice and Citizenship Committee (CCJC); Finance and Taxation Committee (CFT) and Foreign Affairs and National Defense Committee (CREDN) on the House of Representatives, and the Economic Affairs Committee (CAE), Social Affairs Committee (CAS) and Constitution, Justice and Citizenship Committee (CCJ) in the Senate. On the other hand, the temporary committees have a predetermined time for closure. They are responsible for technically analyzing a specific matter, and can be 4 The maximum deliberative body inside each National Congress house - the House of Representatives and the Senate - that has sovereignty on its decision-making and integrates all the congressmen or senators on the same reunion called Plenary Sessions. 75 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS classified on Special Temporary Committees, External Committees, Parliamentary Inquiry Committees (CPI), and working groups as stated by the article nº 33 of the Internal Regiment of the House of Representatives (RICD) and by the article nº 74 of the Internal Regiment of the Senate (RISF). The Special Committees are deliberative bodies to analyze Constitutional Amendment Propositions, Legal Code Projects, and Law Propositions (Complementary and Ordinary law, according to the Brazilian legal classification). The External Committees deal with Congress external affairs such as the External Committee for the Combat of Covid-19. The Parliament Inquiry Committee (CPI), which is the subject of this paper, aims to inquire about a relevant matter or fact in public life that is susceptible to Legislative power inspection, legislation, and control. They are also an important tool for public representation when society can evaluate the actions of the public administration. During its period of operation, the collegial bodies can carry out witness questioning, suspects hearings, authorities’ testimonies, require documents or breach of financial and fiscal secrecy, and also have police powers to request for arrest in flagrante delicto. Their final report, approved at the end of the CPI, must be forwarded to the Judiciary power by the Federal Public Prosecutor’s Office (MPF) or the Federal Attorney General’s Office (AGU) for public responsibility and judicial measures5. 3 THE CPI’S COMPOSITION AND COMPETENCE The Parliament Inquiry Committee (CPI) is set to investigate facts related to the actions of the public administration to change specific legislation or actions concerning public power. They can be created by the House of Representatives, the Senate, or by both houses composed of senators and congressmen alike when a requirement signed by at least ⅓ of its members is presented to the house or the Congress Presiding Office for the creation and establishment of the CPI when the minimal requirements are attended. 5 “ The Parliamentary Inquiry Committee, which will have judiciary authorities investigation powers of its own besides others foreseen on the regiment of each [legislative] Houses, will be created by the House of Representatives and by the Senate, jointly or separately, on one-third of its members request to verify a determined fact and an on certain time with its conclusion, if applicable, forwarded to Federal Prosecutor’s Office to promote civil or criminal responsibility to violators.” Article 58, the third paragraph of the Brazilian Federal Constitution. 76 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Besides the minimal quorum of ⅓, those requirements are verifying the veracity of the fact and its opportune temporality (Article 35 of the House of Representatives Internal Regiment - RICD). The CPIs have their function based on the Law nº 1579 of 1952 and additionally by the Decree-Law nº 2848/1940 of the Criminal Code; Decree-Law nº 3689/1941 of the Criminal Process Code; Law nº 9296/1996 on interception of phone, computer, and telecommunications; Law nº 10001/2000 that determines the priority in the procedures to be adopted by the Federal Prosecutor’s Office and other offices based on the CPI’s conclusions; Complementary Law nº 105/2001 on financial operations breach of secrecy; and the Federal Supreme Court jurisprudence. The CPI is considered among the other committees the one with a greater level of urgency, which can be installed even during the congressional recess. The CPI has 120 days to complete its work and can be extended up to 60 days with no fixed number of extensions within a legislature period6. As stated before in this article, the CPI has investigation power as that of the judiciary authority but is limited only to the case files instructions which include the accused interrogation, witness testimony, documents requirement, and technical expertise or diligence to clarify important issues (Silva, 2009 apud Andrade and Coutinho, 2016). According to article 36 of the House of Representatives Internal Regiment (RICD), the CPI can carry out a few actions to investigate facts and to elaborate its report: “Observing specific legislation, the Parliamentary Inquiry Committee can: 6 1. Require the House of Representatives administrative service employees as those coming from any office or public direct, indirect, or foundational administrative entity, or the Judiciary power, necessary to the execution of its work. 2. Determine diligences, hear suspects, inquiry witnesses under oath, require from public administration pieces of information and documents, require an audience with congressmen and state ministers, take federal, state, and Period of time that comprehends the congressmen's regular mandate in a total of four years. 77 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS municipal authorities’ testimony, and require services from any authority including the police. 3. Assign any of its members or required employees from the House administrative services to conduct inquiry or diligence process needed with the previous consent of the House Presiding Office. 4. Move to any point of the national territory to perform investigation and public hearings. 5. Stipulate a deadline to meet any providence or to execute any diligence under the law’s penalty, except when it is under the judiciary authority. 6. Discuss the inquired object-related facts separately if those are diverse, even before the end of the other facts investigation. 7. Single paragraph. The Parliamentary Inquiry Committees will additionally resort from norms of the Criminal Process Code.”7 Thus, according to Andrade and Coutinho (2016), the CPI has the same powers of instruction as the magistrates but not the judicial power, seeing as the verification and penalty is the Judiciary’s exclusive competence. In addition, the Brazilian Federal Supreme Court monitors the CPI’s work to prevent any authority abuse, illegal conduct, or offense to the constitutional law. In the case of public hearings and witnesses, suspects, or culprits’ hearings those are invited or present themselves (in the case of public hearing) or summoned to testify. An invitation can be refused, but a summoned person needs to justify their absence that will only be permitted under judicial review to ensure a habeas-corpus or the constitutional right to be silent. A situation such as this is often judged by the Federal Supreme Court. If the justification is not acceptable or the absence has no justification, the CPI can require the Federal Police for coercive conduction of the person under investigation. In addition to that, the CPI can also carry out search and apprehension procedures as long as they are justified to obtain proof, apprehend culprits or any kind of object obtained by illicit practice, and require a breach of personal information or communications secrecy. The CPI cannot disclose any confidential 7 Free translation of Article 36 of the House of Representatives Internal Regiment done by the authors. 78 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS information required to the process, which must be available only to the CPI members, those being investigated, and their defendants (Andrade and Coutinho, 2016). Although the CPI does not have a penalty and coercive powers, it can determine an arrest in flagrante delicto as stated by the Law nº 2848/1940 of the Criminal Code under the justification of public service legal order disobedience; defiance; active corruption; resistance by violence, threat or violent obstruction of the CPI’s attributions; and false testimony (this includes the continuous spreading of fake news). 4 THE FINAL REPORT AND THE IMPORTANT ROLE OF THE CPI`S RAPPORTEUR At the end of the CPI’s work period, a final thorough report containing all the collegial bodies inquiry working roadmap, presented requirements, public hearing presented, testimonies, diligence, main document analysis, conclusions, and judiciary forwarding are approved (Andrade and Coutinho, 2016). The CPI members can reject a report proposition and can suggest alterations but not amendments since this kind of report does not accept this kind of adjustment. The CPI can also produce partial reports when there are various related facts. Usually, the CPI has only one rapporteur, however, if the case is based on a complex number of facts, partial rapporteurs can be indicated to provide aid to the draft of a single report. The rapporteur is a key figure in a parliamentary committee. He or she is nominated by the committee’s president according to his/her attributions, as stated in article 41 item VI of the RICD. The rapporteur’s function is to foster a thorough study on the proposed matter and present conclusions upon which decisions should be made by the committee. The selection criteria are generally by the party proportion principle, to which the rapporteur is indicated based on negotiations between the political groups or blocs (FEDERAL SENATE, 2021). In the House of Representatives case, following this principle is not clearly stated in its internal regiment, besides the guarantee of free choice independent of any political leadership, but the negotiations on this indication common practice surround this representation proportion principle (De Oliveira, 2015). There is the possibility of a 79 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS previous rapporteur nomination to speed the CPI’s work after analysis of those interested congressmen according to the internal regiment norms. In special cases, the committees’ president can also become a rapporteur when there are various issues in the committee to be dealt with. A proposition author can never be its rapporteur. Typically, temporary committees like the CPI have only one rapporteur. After the matter is distributed by the committee’s secretary to the rapporteur, he/she will collect information on that area. All the presented information must have its technical foundation and relevance properly justified avoiding errors and misunderstandings. This data can be brought forward by specialized consulting, public hearings, or civil society participation represented by organized entities or any Brazilian citizen. In this process, the rapporteur works as a channel by receiving information from society and groups of interest. The study and examination of data period are equal to half of the committee’s term, and it can be extended to the same amount of time, except urgent cases (article 52 1st paragraph of RICD). After finalizing the initial report, the committee’s members will discuss the points brought by the rapporteur and then deliberate to approve the document. In the deliberation phase, the voting to approve the rapporteur’s conclusions occurs, entirely or partially; and not the judgment of the matter itself. In the total approval of the report text, all committee members agree with the information and arguments presented; otherwise, in a partial approval scenario, congressmen will suggest additions or alterations to the report which can or cannot be accepted by the rapporteur. In the case of a tie, the rapporteur should cast the decisive vote. In other situations, in which the report is not approved, or the demanding alterations are denied by the rapporteur, the committee’s president can indicate a new rapporteur, although this is very rare to happen. When the report is finally approved, it is forwarded to the next committee or the Plenary’s voting. In the case of the CPI after the report conclusion and approval, it is published and forwarded to the Congress Plenary for its competent providences; to the Federal Public Prosecutor’s Office (MPF); to the Union General-Defense Office (AGU), or the Union GeneralAttorney’s Office (PGR); to the Executive power for administrative providence implementation; to the permanent committee with greater links with the report subject; to the Union Accounting Court (TCU); and the Congress Joint Permanent 80 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Committee to inspect financial accounting and governmental programs and plans. The CPI can also submit legislative proposals, decrees, and resolutions propositions that will go through the legislative process. Considering that, the rapporteur’s figure is fundamental to the parliamentary appreciation of society’s great interest issues, for it is through him/her that information on a specific subject is made available to the committee and social participation is exercised. Aside from that, the proposition direction intimately depends on the rapporteur’s bond with the matter and his/her disposition to carry it out along the committees’ terms and approvals. He/she is also the link between groups of interest, the organized civil society, the government, and several economic sectors. 5 IMPACTS OF THE CPI ON THE BRAZILIAN POLITICAL SPHERE AND DEMOCRACY IN TIMES OF CRISIS The Covid-19 Pandemic Parliamentary Inquiry Committee was installed on April 27th of 2021 under the requirement of Senator Randolffe Rodrigues from the state of Amapá moved by his preoccupation with public administration actions in Manaus, which had a catastrophic pivot of Covid-19 infections and hospital admissions at the beginning of 2021, and where several people died due to the lack of air respirators. Thus, the CPI’s main objective was to discuss the federal government action on the fight against Covid-19, analyzing Jair Bolsonaro’s administration approach on sanitary measures, such as obligatory use of facial masks, social distancing, delay in the purchasing of vaccines, and promotion and defense of the use of Covid-19 medical treatments with no scientific evidence, such as hydroxychloroquine, chloroquine, and ivermectin. In addition to that, it is also inquired the reason behind the constant changes to the head of the Minister of Health during the pandemic, the lack of respirators in Manaus, the irregular acquisitions of Covaxin vaccines produced by Bharat Biotech (India), and the supposed negligence on Pfizer and Jansen’s vaccines acquisition when the government did not reply to at least 81 e-mails concerning the acquisition contract of those vaccines. Seeing this scenario, the Covid-19 Pandemic CPI had two main lines of investigation: the adoption of herd immunity strategy adopted by the Bolsonaro’s 81 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS government and its allegedly “parallel cabinet”8 to combat the pandemic, and the supposed corruption and prevarication infractions on hospital utensils and vaccines acquisition by the government and private companies. Among the several authorities heard at the CPI’s hearings were all the previous Ministers of Health in Jair Bolsonaro’s administration: Luis Henrique Mandetta, Nelson Teich, and Eduardo Pazuello; the former Minister of Foreign Affairs, Ernesto Araújo; the State Governor of Amazonas, Wilson Lima; Prevent Senior9’s director, Pedro Benedito Batista Junior; and the current Minister of Health, Marcelo Queiroga. The government reactions to the CPI inquiry by president Bolsonaro himself and his supporters inside and outside the government deepened the longstanding political-institutional crisis. The president’s participation in the corruption on Covaxin vaccines acquisition was mentioned by two witnesses, Luis Miranda, and Luís Ricardo Miranda, that confirmed Bolsonaro’s previous consent to the whole corruption scheme. His response was to diminish and attack the CPI’s work and its members, especially the committee rapporteur Senator Renan Calheiros. The Armed Forces, a strong pillar of the current government political structure, have also allegedly tried to intimidate the CPI collegial bodies by releasing a threatening toned press note on responding to CPI’s accusations. On October 20th, the report was submitted by the rapporteur Senator Renan Calheiros which contemplated all the information dealt with during the five months of inquiry and indicted 65 people and 2 private companies, Prevent Senior and VTC logistic company. Among those investigated are the last and the current Minister of Health, Eduardo Pazuello and Marcelo Queiroga, respectively; the former Minister of Foreign Affairs, Ernesto Araújo; the former advisor of the Presidency, Arthur Weintraub; two of Bolsonaro’s sons, Congressman Eduardo Bolsonaro and Senator Flávio Bolsonaro; and the President Jair Bolsonaro himself. The crimes attributed to the President totalized 29 types such as epidemy crime; quackery; sanitary measure violation; active corruption; fraudulent misrepresentation; incitement to crime; 8 Alleged group formed by government authorities close to President Jair Bolsonaro that acted as a private administrative council in a parallel way to the norms of the Brazilian state of law. 9 Health Insurance Company accused of carrying out illegal tests on its patients, mostly elders, with the “Covid Kit” which contained medications without scientific evidence proven efficacy, such as hydroxychloroquine, chloroquine, azithromycin, and ivermectin. 82 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS private documents fraud; irregular employment of public funds; prevarication; crimes against humanity as extermination, persecution, and inhuman acts to cause intentional suffering; and liability crimes. 6 CONCLUSIONS The Parliamentary Committees are the mechanism by which social participation can be exercised on the main themes of public interest contemplation. The legislative process guarantees the thorough appreciation of legal propositions aiming at the economic, social, and political spheres as a means of transparency on the legislative proposals and the public policies development process, respecting the Brazilian Federal Constitution. The Parliamentary Inquiry Committee is nonetheless a political response to the institutional crisis provoked by the Covid-19 pandemic. Their results and the whole process of inquiring the witnesses and investigating authorities had an enormous impact on Brazilian economic and political spheres, which affected the institutional crisis and increased economic vulnerability such as the rise of investments risk and state institutional insecurity. Although the work of the Covid-19 Pandemic CPI has been a significant measure to Brazilian politics, especially against corruption and democracy deterioration happening in Brazil due to the intense political polarization, it cannot fully guarantee the judiciary inquiry expected outcomes, or even promote a great stability sensation, but it is surely the beginning. REFERENCES Agência Senado Notícias. Representante da Pfizer confirma: governo não respondeu ofertas feitas em agosto de 2020. Brasília: Agência Senado Notícias May 13th, 2021. Available in: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2021/05/13/representante-da-pfizerconfirma-governo-nao-respondeu-ofertas-feitas-em-agosto-de-2020>. Access on: October 25th, 2021. Andrade AM, Coutinho RLF. The House of Representatives Internal Regiment applied to the committees (in Portuguese). Edições Câmara; 2016. Câmara dos Deputados. Conduct of proposition (entry in Portuguese). Assessoria de Imprensa da Câmara dos Deputados; 2021. 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Por um lado, o fato, relativamente subjetivo, de o presidente brasileiro eleito em outubro de 2918, Jair Bolsonaro, ter colocado suas ações e posturas (internas e externas) no contexto ideológico da chamada “nova direita americana”, ou seja, o movimento que presidiu à ascensão à presidência americana de Donald Trump, em 2016, e que já vinha se manifestando, sob outras roupagens, no continente europeu e em outros continentes em torno de ideias altamente conservadoras: fundamentalismo religioso, antiglobalismo, rejeição da imigração de povos “exóticos” e agenda de costumes, de maneira geral (antiaborto, ideologia de gênero, minorias sexuais, etc.); essas ideias, ademais das próprias posturas e declarações do presidente Trump pautaram, e de certa forma moldaram, o comportamento e as posturas do seu colega brasileiro – chamado pelos jornalistas americanos de “Trump dos trópicos”– no enfrentamento (ou falta de, mais corretamente) da pandemia. De outro lado, num contexto mais objetivo, uma visão, mesmo perfunctória, em escala comparativa internacional confirma os resultados nitidamente negativos registrados pelo governo Bolsonaro no enfrentamento do desafio da pandemia quando colocados no contexto mundial, sendo imediatamente visível o mau desempenho do governo federal ao se confrontarem os números de infectados e 1 Doutor em Ciências Sociais, mestre em planejamento econômico, diplomata de carreira; diretor de publicações e editor da Revista do Instituto Histórico e Geográfico e Geográfico do Distrito Federal; autor de numerosos trabalhos sobre relações econômicas internacionais, política externa e diplomacia do Brasil. E-mail. pralmeida@me.com 85 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS mortos (em proporção da população, não de modo absoluto) com países relativamente similares. Comparações internacionais, feitas em forma de gráficos, tabelas ou simples alinhamentos estatísticos, revelam a performance deplorável do governo de Bolsonaro, até meados de 2021, no tocante ao acúmulo de milhares de vítimas “excedentárias” (em relação ao número de habitantes), do que se observou ser o caso, quando verificados os mesmos indicadores em países cujos governantes empreenderam ações mais decisivas nessa área. Nesse sentido, Bolsonaro se distanciou, neste quesito, em relação à postura de outros dirigentes nacionais, mesmo declaradamente de direita, como ele pretende ser. Todavia, mesmo num registro mais linear, são impactantes os indicadores brasileiros no confronto com outros países, o que vem sendo registrado por algumas instituições internacionais dedicadas ao cômputo dos dados relativos à incidência da pandemia. Em diversos momentos desde o início da pandemia, em 2020, o Brasil foi sucessivamente apresentado como o “homem doente da América do Sul”, como um possível super spreader de novas variantes do vírus e como um país irresponsável no tratamento da sua própria população, tendo enfrentado o fechamento de diversas fronteiras e de aeroportos em conexões internacionais para outros continentes. Esses aspectos internacionais merecem, portanto, uma atenção especial neste ensaio sintético. Três países se destacam relativamente aos vínculos internacionais do governo Bolsonaro na questão da pandemia da covid-19: os Estados Unidos, em primeiro lugar, ou mais especificamente o presidente Trump, pelo menos durante a ascensão e propagação no novo vírus, no decorrer de 2020; a China “comunista”, objeto do desconforto aberto ou implícito da diplomacia “bolsonarista”, quando não sujeita à hostilidade explícita por parte de “responsáveis” do setor – oficialmente da parte do primeiro chanceler, de modo oficioso pelo filho deputado do presidente –, sendo o gigante asiático o principal parceiro comercial e potencial grande investidor no Brasil, ademais de fornecedor de primeira grandeza de todo tipo de equipamentos médico-sanitários, bem como de vacinas e insumos para a fabricação de vacinas no Brasil; a Índia, finalmente, em posição relativamente secundária, mas elevada ocasionalmente à condição de grande parceira na área vacinal, já em 2021, justamente em função das antipatias acima referidas. 86 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Esses três países estiveram e estão presentes em grande parte do debate interno – do governo com a sociedade, assim como dentro do Parlamento – na sequência registrada quanto ao conteúdo mesmo desse “debate” (bastante confuso, por sinal): o presidente Trump, na origem do negacionismo de Bolsonaro durante toda a fase ascensional da pandemia; a China, como a primeira fornecedora confiável de equipamentos e vacinas entre o final de 2020 e o início de 2021, mas com a qual (e com o seu embaixador em Brasília) foram travados diversos embates pouco diplomáticos em diversos episódios, sendo que estes também exibem conteúdo político doméstico, dado o relacionamento próximo do governador de São Paulo, candidato à presidência em 2021, com os chineses (o estado possui um escritório oficial de representação em Xangai); a Índia, finalmente, já no decorrer do primeiro semestre de 2021, em direção da qual são feitas tentativas desesperadas do governo federal de aquisição de vacinas, justamente para diminuir o papel da China nesse fornecimento, sendo que as iniciativas revelaram demonstrações evidentes de corrupção, em análise na Comissão Parlamentar de Inquérito (de âmbito senatorial), após duas fases iniciais dedicadas a “tratamento precoce” e a falhas do governo federal no atendimento de demandas dos estados. Antes de analisar esses aspectos “internacionais” da pandemia no Brasil, cabe, preliminarmente, evidenciar o cenário normal do atendimento médicohospitalar no Brasil, especialmente em termos de campanhas de vacinação em massa, políticas que funcionaram de modo relativamente satisfatório até o advento do governo Bolsonaro. O Brasil sempre foi conhecido internacionalmente por dispor de um programa regular, bem estruturado e abrangente de vacinação geral da sua população, sobretudo de sua faixa infantil. Tal programa, nacional, existe desde os anos 1970 – sob a ditadura militar, portanto, quando se manifestou uma epidemia de meningite – e foi reforçado no plano federal a partir da Constituição de 1988, que instituiu um Sistema Universal de Saúde (SUS), aberto a todas as faixas da população, mas absolutamente crucial para os seus estratos mais pobres. O SUS foi reconhecido como um exemplo exitoso entre países em desenvolvimento e, ao lado da cobertura vacinal dispensada pelos programas nacionais de imunização, permitiu que o país erradicasse por completo ou controlasse de forma adequada diversas epidemias mais comuns na população infantil no último meio século, o que garantiu 87 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS uma progressão regular da esperança de vida até a recente pandemia da covid-19 (que ocasionou um retrocesso pela primeira vez na história). Cabe ainda notar a existência de vários outras iniciativas em favor dos estratos mais idosos (contra a gripe, por exemplo). Os esforços dispendidos desde a irrupção da epidemia da Aids, no início dos anos 1980, com o fornecimento público e gratuito de diversos retrovirais (inclusive os obtidos graças à flexibilização de patentes, uma das vitórias alcançadas no âmbito da OMC, em 2001) foram amplamente reconhecidos e aplaudidos pela comunidade internacional. Nesse mesmo plano, o Brasil sempre teve uma participação exemplar nas iniciativas multilaterais coordenadas pela OMS e, no plano regional, pela OPAS, com diversos especialistas brasileiros de destaque exercendo altos cargos nas duas organizações. Com esses antecedentes, seria de se esperar que o enfrentamento da nova pandemia, a da covid-19, seguisse os mesmos padrões de prontidão, de qualidade no atendimento da população mais frágil e com a mesma eficiência já demonstrados em todas as experiências anteriores, inclusive, mais recentemente, nos casos da dengue, da zika e da chikungunya, não apenas em termos de cobertura no atendimento em postos de saúde, mas igualmente no plano das pesquisas de laboratório em prol de vacinas. Não foi, contudo, o que se observou desde o início da pandemia no Brasil, em torno de março de 2020, com uma reversão inesperada das políticas públicas e um retrocesso inaceitável na implementação dos padrões recomendados pela OMS, pela comunidade de pesquisadores internacionais, assim como pelos próprios cientistas e equipes médicas do setor no próprio Brasil. No caso, não houve nenhuma falha ou incompetência por parte do pessoal especializado, mas sim uma atitude completamente negacionista e anticientífica por parte do chefe do governo, o presidente Bolsonaro. Sua atitude específica em relação à pandemia não difere, porém, de sua postura geral em relação às relações exteriores do Brasil, que foram rebaixadas a um nível inédito para os padrões elevados de profissionalismo diplomático exibidos pelo Brasil ao longo dos anos. Com menos de 3% da população do globo (cerca de 2,7%, mais exatamente), o governo Bolsonaro conseguiu exibir um recorde inaceitável no número de infectados (cerca de 10% do total do planeta), assim como em relação ao número de 88 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS vítimas fatais, de aproximadamente 13% do total mundial (dados da Universidade Johns Hopkins, reportados na Newsletter Veja Coronavirus de 8/07/2021). Numa fase em que o número de casos, nas duas vertentes, parece diminuir no mundo, após o início de um processo mais ativo de vacinação nos diversos países, um aspecto talvez até mais assustador é o fato de que a média móvel das mortes por covid no Brasil ainda representa 20% do total mundial. Existe, portanto, um “adicional” de vítimas e de mortos, no Brasil, que só pode ser explicado pela incúria do governo central e por uma descoordenação completa das diversas esferas envolvidas no enfrentamento da pandemia, em termos de esforços não conjugados – na verdade, divergentes, na maior parte dos casos – entre o governo federal e as demais unidades da federação. Ainda que a maior parte dos fatores na origem desse cenário estarrecedor seja de origem propriamente interna, cabe não descurar a importação de “ideias erradas” no enfrentamento do maior desafio que enfrenta a Humanidade desde a chamada “gripe espanhola” (de fato americana), ao final da Grande Guerra (Almeida, 2021). Com efeito, uma das razões para essa performance deplorável se situa precisamente no plano das relações exteriores e da diplomacia de Bolsonaro, ações e opções que as tornaram caudatárias das ações e orientações externas dos Estados Unidos e da diplomacia de Trump – em uma escala jamais vista nos anais da diplomacia brasileira –, assim como terminaram por consolidar um isolamento internacional e regional igualmente inédito nas relações internacionais do Brasil. Mal guiado por suas concepções primárias no terreno da política internacional e das relações exteriores do país, o presidente foi assistido por uma diplomacia especialmente inepta, a despeito de ter ficado a cargo de um diplomata profissional, inclusive por ter sido completamente submissa, nos seus dois primeiros anos, ao despreparo do presidente e de seus conselheiros mais próximos (membros da própria família, ou assessores amadores em seu círculo palaciano) nos lances mais relevantes de sua ação prática: Venezuela, integração regional e Mercosul, Oriente Médio, relações com os principais parceiros (como EUA, Argentina, países europeus e China), sem esquecer a própria pandemia. Ridicularizado pelo fato de ter pronunciado um surpreendente “I love you Trump”, por ocasião de sua primeira participação na abertura dos debates da Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2019, o 89 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS presidente brasileiro continuou apoiando o derrotado presidente americano até o último minuto do processo de aferição dos resultados das eleições de novembro de 2020, tendo se destacado, inclusive, por ser o grande e último negacionista do planeta. 2 A LENTA E LONGA MARCHA DO BRASIL EM DIREÇÃO À VACINA: UM PROGRAMA FRUSTRADO Os aspectos internacionais do problema da pandemia no Brasil se manifestam em todas as fases e episódios do percurso ainda não terminado da covid-19 no país, embora ênfases e interações externas tenham variado ao longo dos quinze meses (de março de 2020 a julho de 2021) durante os quais as políticas do governo acompanharam seu itinerário especialmente doloroso, para uma nação que tinha enfrentado ameaças sanitárias com excelente prontidão médica e epidemiológica para um país emergente. Esse período foi sobretudo marcado pela inação do governo central, ou por orientações equivocadas no seu enfrentamento inicial – uma primeira fase dominada pela “novela da cloroquina” e de um ineficiente “tratamento precoce” –, por uma sabotagem evidente – embora não formalizada – da busca de vacinas, numa segunda fase, e, finalmente, na sua terceira fase, ainda em curso, pela incompetência e corrupção de autoridades e encarregados de prover o país de vacinas em quantidades suficientes para a imunização da população. Em todas essas fases, as conexões internacionais foram subjacentes, por vezes proeminentes, no encaminhamento do problema, como agora se poderá expor. O reconhecimento inicial da pandemia da covid-19 foi provavelmente tardio e tal designação só lhe foi atribuída bem depois que as evidências foram bem detectadas na China, seguindo-se sua rápida disseminação pelo resto do mundo. A partir do momento em que ela deixou de ser uma “epidemia chinesa” para converterse, de fato e oficialmente, em uma pandemia, com toda a atenção que ela passou a merecer por parte dos países vizinhos, dos ocidentais e sobretudo da própria OMS, as respostas dos diferentes governos, nos diversos continentes, não foram uniformes, o que explica as grandes disparidades de taxas de incidência entre a Europa ocidental e nas Américas e, de outro lado, as dos países da Ásia Pacífico, nestes com menores índices de infecção e, consequentemente, de mortos. 90 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Dois países se destacaram pelos seus trágicos indicadores: os Estados Unidos e o Brasil, por acaso dirigidos por dois dirigentes negacionistas em relação à ciência e “antiglobalistas” no plano das relações internacionais. Na verdade, os impulsos mais negativos vinham do presidente americano, implementando uma agenda conservadora extremada que reproduzia posturas da alt-right, como identificado, por exemplo, no livro de Benjamin Teitelbaum, War for Eternity (2020), focando mais detidamente nos ideólogos principais desse movimento, o americano Steve Bannon, o brasileiro Olavo de Carvalho e o russo Alexander Dugin. O presidente brasileiro importou, sem qualquer originalidade, essa agenda negacionista e antiglobalista e ela se manteve fiel durante toda a extensão da pandemia em 2020 e 2021, mesmo depois que Trump moderou, em parte, sua objeção a qualquer programa nacional de controle e às recomendações dos especialistas em termos de medidas profiláticas e de aplicação de vacinas. A diplomacia negacionista e obscurantista do chefe de governo do Brasil, e de seu submisso primeiro chanceler, à época, adotou como sua e seguiu a fielmente a postura obstrucionista de Trump contra a OMS ou contra qualquer outro esforço de coordenação global para a luta contra a pandemia. Sob Trump os EUA abandonaram a Unesco, por razões claramente ideológicas, e chegaram a sair da OMS, por acusações de ineficiência na condução da política contra a pandemia, gesto quase seguido pelo governo de Bolsonaro, que, no entanto, foi contido pelo que ainda restou de racionalidade em alguns poucos outros setores de seu governo. Na prática, o que se assistiu no Brasil, durante todo o ano de 2020, enquanto se processava no mundo um retorno ao nacionalismo sanitário e profilático – pois cada um dos países, mesmo na União Europeia, tentava assegurar suprimentos adequados de equipamentos de proteção e de tratamento – foi um nacionalismo de inação, com uma carência notável de medidas preventivas e, sobretudo, curativas, o que explica o aumento exponencial dos casos no país, ao longo de toda a agonia das diversas ondas da pandemia. De maneira clara, o governo Bolsonaro, já tendo se identificado com líderes de extrema direita em certos países do mundo – Mateo Salvini, ministro do Interior do breve governo de coalizão heteróclita na Itália; Benjamin Netanyahu, de Israel; Viktor Orban, da Hungria, e colegas do Grupo de Visegrad; Narendra Modi, da Índia; Trump, dos EUA –, acompanhou a ofensiva 91 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS antimultilateralista levada a cabo por esses líderes e até os superou, numa oposição às principais recomendações feitas pela OMS e por grupos de cientistas e pesquisadores ao redor do mundo; caso provavelmente único e inédito em sua história editorial, uma das revistas mais prestigiosas da área de pesquisa científica na medicina, The Lancet, chegou a publicar um editorial de primeira página, expressamente dedicado a condenar a postura do presidente brasileiro no trato da pandemia. O que ocorreu, no plano mundial, desde o início da primeira fase, alarmante, devido ao aumento súbito de casos, sobretudo na Europa ocidental, foi uma corrida sem qualquer coordenação multilateral ou regional em busca de equipamentos e esforços de pesquisa e desenvolvimento. A comunidade científica e os grandes laboratórios privados ou universitários responderam bastante bem aos desafios de um vírus especialmente virulento, registrando-se um progresso fantasticamente rápido nas pesquisas e testes com modalidades tradicionais e inovadoras de antivirais. No plano da produção e distribuição de equipamentos de proteção e de tratamento, o que se viu, porém, foi uma retração nacionalista tristemente danosa para os países menos preparados para enfrentar a asfixia dos hospitais e centros de atendimento. A Itália, por exemplo, se sentiu traída pelos seus vizinhos do bloco europeu, que vetaram exportações de determinados itens de atendimento emergencial. Os Estados Unidos de Trump organizaram um sequestro dos mesmos equipamentos ao redor do mundo, quando os casos apresentaram um súbito aumento no país. Exportações para o Brasil foram desviadas de terceiros aeroportos pelo poder do dinheiro americano, e as mais diversas gangues de fraudadores, nacionais e internacionais, se inseriram nesses circuitos para fraudar as importações, oferecendo equipamentos inadequados, superfaturados ou simplesmente inexistentes. Nessa fase inicial, ocorreu uma corrida para a frente na busca de expedientes exclusivamente nacionais, tanto no plano produtivo, quanto na área comercial, durante a qual foram reveladas fragilidades estruturais nas respectivas bases industriais, quanto evidências de descoordenação estatal nas medidas preventivas e curativas, inclusive em países dotados de maiores recursos orçamentários. À diferença de países europeus e do próprio Brasil, um dos países mais frágeis nessa vertente foram os EUA, que é 92 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS completamente desprovido de um sistema nacional de saúde, como possuem as nações mais bem dotadas de instituições oficiais voltadas para a saúde em nível nacional. A chamada “desglobalização”, que já era uma tendência vários anos antes da pandemia, foi extraordinariamente reforçada nos primeiros meses da pandemia, até que novos circuitos de produção e de distribuição passassem a atender às demandas oficiais de cada país. O Secretário-Geral da ONU, o português Antonio Guterres tentou, de modo desesperado, estabelecer alguma forma de coordenação mundial em favor de um tratamento minimamente racional em prol da cooperação nesse terreno, mas não logrou sucesso, especialmente em razão da animosidade entre as grandes potências, no caso bem mais estimulada pela atitude agressiva e até belicosa de Trump em relação à China. O fato é que nenhuma coordenação logrou estabelecer-se entre os órgãos máximos da ONU, suas agências especializadas – a OMS e as regionais –, o G20, as organizações de Bretton Woods (para o financiamento de programas em prol de países mais pobres), a OMC e a Ompi (para tratar das questões de patentes e licenciamentos), ou até órgão mais restritos, como o CADOCDE (para assistência humanitária, ao lado de ONGs dessa área). Nenhuma mobilização internacional se reproduziu, como em casos anteriores, a exemplo da luta contra o ebola, na África ocidental. O máximo que se logrou foi a constituição de um consórcio duramente negociado entre a OMS e os principais países e laboratórios produtores, a Covax Facility, com vistas a diminuir a evidência das brutais disparidades na aquisição de vacinas entre países produtores ou detentores de tesouros abastecidos e os mais pobres, desprovidos inclusive dos meios mais rudimentares de prevenção e tratamento. Ainda assim, o governo Bolsonaro relutou vergonhosamente em aderir à iniciativa, e quando o fez, depois de muita pressão da comunidade científica e dos meios parlamentares, optou por estabelecer padrões e quantidades mínimas de fornecimento vacinal, em total desproporção ao tamanho da população brasileira e ao que lhe era permitido pelas regras do consórcio. Esse aspecto também foi explorado por uma comissão de inquérito estabelecido no âmbito do Senado Federal, ao serem revelados telegramas do ministério das Relações Exteriores que indicavam a clara má disposição do governo Bolsonaro em se juntar à iniciativa (mais uma vez 93 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS pelos mesmos pruridos antiglobalistas importados, já manifestados numa série de outros contextos diplomáticos). Nessa mesma época, o primeiro chanceler do governo Bolsonaro insinuava até que o Brasil poderia seguir o exemplo de Donald Trump e retirar o Brasil da OMS. A fonte dos clamorosos erros registrados no Brasil durante todo o primeiro ano da pandemia pode ser apontada única e exclusivamente na pessoa do chefe de governo, que manteve sua postura inflexivelmente negacionista e obscurantista, contra todas as recomendações de cientistas da área e epidemiologistas em ação ao longo de todo o período; a mesma atitude estendeu-se no decorrer do segundo ano, sempre desafiando as práticas a serem observadas nos protocolos recomendados para tais circunstâncias. O comportamento do presidente Bolsonaro foi classificado por diversos observadores como propriamente criminoso, surgindo inclusive sugestões de denúncia ao Tribunal Penal Internacional por “crimes contra a humanidade”, em especial no tocante à situação dramática de tribos indígenas colocados em contato com exploradores ilegais (madeireiros e garimpeiros) de suas reservas na região amazônica e alhures. A postura é tanto mais contraditória, ou inexplicável, em face da atitude próciência de seus “aliados” de direita – por exemplo, Netanyahu, de Israel, Pinera, do Chile, e até, a partir de certo momento, o próprio Trump, depois de muitas hesitações iniciais –, que todos saíram afanosamente à cata de vacinas, quaisquer que fossem, de quaisquer produtores ao redor do mundo, com vistas a alcançar o maior grau de vacinação possível em seus países respectivos. O que se assistiu no Brasil foi exatamente o contrário, e até uma postura totalmente improvisada de recusa de se engajar num programa nacional de imunização, quando não de sabotagem em face dos esforços dos governadores e prefeitos que intentavam – contra as palavras e exemplos do presidente negacionista – adotar medidas preventivas de isolamento social e de obrigatoriedade de uso de máscaras, quando não de iniciativas limitadas e muito parciais de lockdowns temporários em determinadas atividades produtivas e de serviços. Estimativas de epidemiologistas colocam o número excessivamente elevado de vítimas no Brasil – bem acima das características do país em termos de 94 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS experiências anteriores no trato de epidemias e de aparelhamento hospitalar público e privado – na conta das ações contrarianistas do presidente, estimulando ajuntamentos, contatos políticos, marchas eleitorais e todo tipo de provocação contrária às recomendações dos especialistas ou de simples bom senso no plano do civismo. De fato, depois dos Estados Unidos – onde ocorreu uma resistência de origem nitidamente política às medidas preventivas recomendadas pelas autoridades da saúde –, o Brasil foi o país que mais desafiou os protocolos recomendados no caso da pandemia da covid-19, daí o volume anormalmente desproporcional de infectados e de mortos em relação à população total. O mais surpreendente é que diversos membros de uma delegação presidencial que acompanhou Bolsonaro, no início da pandemia, numa visita a Trump, na residência de Mar-A-Lago, na Florida, inclusive o embaixador em Washington, foram infectados pelo vírus, sem que a sua postura negacionista fosse em qualquer momento revertida. O próprio Bolsonaro foi contaminado logo adiante – certamente o resultado das frequentes incursões irresponsáveis que fazia todo fim de semana, por motivos eleitoreiros, pelos mais diversos cantos do país –, tendo sido brevemente internado num hospital das Forças Armadas. Antes, durante e depois de sua contaminação pelo vírus da covid-19 não houve qualquer mudança em sua atitude negacionista, de desprezo pela pandemia e de minimização de seus efeitos sobre a população, continuando a prática constante das aglomerações, da recomendação para o não uso de máscaras e do distanciamento social e, mais grave, repetidas tentativas de sabotar, por proclamas ou pedidos à Justiça, as poucas decisões de governadores e prefeitos em favor de medidas de contenção da abertura de negócios ou outras atividades concentradoras de pessoas. O aspecto provavelmente mais nefasto, e possivelmente criminoso, revelouse na sabotagem de qualquer programa nacional de vacinação, ignorando inclusive ofertas feitas por laboratórios privados ou até por um instituto estadual, de São Paulo (sede de um dos possíveis concorrentes presidenciais), que se dispunha a entregar praticamente toda a sua produção de uma vacina, fabricada em cooperação com produtor da China, a um programa federal de imunização. A despeito de terem recebido propostas de aquisição de vacinas – de diversas origens, ocidentais, chinesas ou indianas – no auge da primeira onda, em meados de 2020, as autoridades 95 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS da saúde, com repetidas interferências do presidente, foram extremamente relutantes em negociar concretamente esse fornecimento, registrando-se, o tempo todo, o desprezo do presidente por um programa efetivo de vacinação nacional. Este talvez se converta no objeto principal das investigações em curso da comissão parlamentar de inquérito, ao lado de fraudes detectadas e de inúmeros casos de corrupção, envolvendo tanto funcionários públicos e intermediários privados, quanto responsáveis em cargos comissionados no ministério da Saúde, inclusive diversos militares da ativa ou da reserva que acompanharam o terceiro ministro da área, na pessoa de um general da ativa, agora denunciado. Ao se lograr o estabelecimento de uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a pandemia, no âmbito do Senado Federal – mas apenas em abril de 2021 –, se detectou uma das possíveis fontes do negacionismo e da sabotagem tanto nas medidas preventivas quanto no terreno das vacinas: a existência de um “gabinete paralelo”, e independente de órgãos de especialistas, no aconselhamento equivocado do presidente, ao reforçar suas próprias convicções de que a saída para o Brasil estaria numa suposta “imunidade de rebanho”, a ser alcançada com a contaminação de uma larga proporção da população. Tal crença, não observada em nenhum outro país dotado de estruturas adequadas de saúde pública, está provavelmente na origem da mortandade incontrolada ainda registrada no Brasil, que ainda ameaça ultrapassar, nos próximos meses, o quantitativo alcançado nos EUA da gestão Trump e remanescente nas primeiras semanas da administração Biden. O caso do Brasil é ainda mais deplorável pois que, ao atraso deliberado na decisão de se passar à aquisição de vacinas – o que foi em grande medida adotado por simples cálculo político eleitoral, ao se ter um possível candidato nas eleições de 2022 na figura do governador de São Paulo, que se tinha adiantado na aquisição de vacinas chinesas e na contratação de insumos daquele país –, se agregou a incompetência fenomenal de gestores militares do Ministério da Saúde, absolutamente despreparados para a tarefa e ainda tendo de contornar ou se submeter à oposição do presidente à negociação de vacinas e insumos com a “China comunista”, a fonte de todo mal, na visão canhestra dos ideólogos despreparados que estão no poder no Brasil. Daí também as poucas tentativas canhestras, mal improvisadas e não isentas de golpes fraudulentos, que se registraram quando de 96 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS importações – geralmente frustradas – de vacinas ou de insumos a partir da Índia, cujo chefe de governo seria supostamente um aliado de Bolsonaro, o também nacionalista de direita, e ultra religioso, Narendra Modi. As decepções e falcatruas, nesses e em outros casos, foram registradas pela CPI da Pandemia, e podem fundamentar indiciamentos até criminosos contra todas as autoridades envolvidas no cenário deplorável a que se assistiu no Brasil desde o início da pandemia, um quadro ainda não debelado, podendo inclusive se agravar a partir de uma possível terceira onda ainda mais alarmante. A CPI perdeu muito tempo, em suas semanas iniciais, na investigação de uma das principais obsessões do presidente – não superada de todo no segundo ano da pandemia – no sentido de se obter “curas precoces” a partir de um coquetel de medicamentos totalmente inadequado para o tratamento da infecção viral, sobretudo à base de cloroquina – e de alguns vermífugos –, o que motivou inclusive recomendação do ministério da Saúde por esses métodos “preventivos”, cuja ineficácia já estava provada desde o segundo semestre de 2020. No conjunto caótico de medidas improvisadas, e sempre reativas a partir de “recomendações” do “gabinete paralelo” de aconselhamento do presidente, a “política” oficial do governo federal foi de uma inconsistência criminosa durante a longa persistência de níveis alarmantes de contaminação – estimuladas pela práticas de aglomerações eleitorais do “candidato precoce” – e de mortos, que se acumularam em proporções inaceitáveis no comparativo com países da região. A existência desse “gabinete paralelo” tornou-se a atenção da CPI da Pandemia, numa segunda fase de seus trabalhos, depois da concentração sobre aspectos menos relevantes das políticas de governo, se é possível falar em “políticas de governo”, quando se está no quarto ministro da Saúde desde o início do terceiro ano da administração Bolsonaro, sendo o terceiro um general do Exército sem qualquer competência nessa área e extremamente complacente com o cenário caótico registrado nessa pasta. Depois das primeiras semanas tratando de uma questão secundária – a obsessão do presidente com o chamado “tratamento precoce”, por meio de um coquetel não aprovado pelos especialistas composto de medicamentos ineficientes –, 97 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS a CPI finalmente enveredou pela questão das vacinas, necessariamente conectada às relações exteriores do Brasil, e objeto de um tratamento confuso durante todo o ano de 2020 e nos primeiros meses de 2021. Na primeira fase, o negacionismo quanto à importância da pandemia, assim como a busca insana por tratamentos totalmente inadequados, foi diretamente importado de Trump por Bolsonaro; o mais surpreendente, porém, é que quando Trump deixa de ser negacionista vacinal e engaja seu governo na aquisição de quantas vacinas estivessem sendo testadas e oportunamente introduzidas no mercado – menos as chinesas, evidentemente –, Bolsonaro continua a exibir um viés objetivamente contrário a uma adequada cobertura vacinal dos brasileiros, confiante, talvez, numa hipotética “imunidade de rebanho” (recomendada aparentemente pelos amadores que compunham o seu “gabinete paralelo”), que seria adquirida a partir da contaminação de aproximadamente 70% da população; daí as inúmeras aglomerações planejadas e implementadas pelo próprio presidente, sem qualquer cuidado (ou até em desafio às) recomendações de especialistas quanto aos protocolos a serem seguidos. Aparentemente o presidente não se importou nunca quanto ao número de vítimas fatais que decorreriam de sua “opção” pela “imunidade de rebanho”, considerada uma completa ilusão pela maior parte dos especialistas da área. A CPI ouviu alguns pesquisadores a esse respeito, quando se estimou que parte significativa do volume de mortos poderia ter sido evitada, caso fossem outras as posturas do presidente e de sua equipe próxima. Mas, o trabalho d CPI também tem sido caracterizado por “golpes políticos” – de evidente efeito eleitoral – o que dificulta uma avaliação ponderada do que poderá emergir ao cabo de seus trabalhos, nos primeiros três meses de atividades, que serão renovados por período igual, e que podem se prolongar no ano eleitoral de 2022, com todos os impactos prováveis sobre o calendário da campanha presidencial. O fato é que superada a fase dos tratamentos inadequados e do negacionismo trumpista importado pelo presidente – que continua a exibir a mesma postura, sem qualquer remissão –, os trabalhos da CPI adentraram no terreno mais objetivo da estratégia governamental para a aquisição de vacinas, suas fontes externas e um calendário de aplicação. Mais uma vez, falar de “estratégia governamental” é altamente ilusório no caso do governo Bolsonaro, pois estava 98 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS claro que não havia nenhuma, e que as primeiras medidas preventivas sugeridas pelos dois ministros iniciais da Saúde – dois médicos – foram solenemente ignoradas pelo presidente e até confrontadas abertamente por meio de seus ajuntamentos políticos todos os finais de semana, nos mais diversos cantos do país. Foi preciso que a própria suprema corte, o Superior Tribunal Federal (STF) obrigasse o governo a publicar um documento estabelecendo um programa nacional de imunização calendarizado, o que só foi obtido depois de muitas tergiversações e com um cumprimento abaixo do aceitável, sob a gestão do ministro militar da Saúde. Na verdade, o governo federal passou todo o ano de 2020 opondo-se a qualquer iniciativa de aquisição de vacinas, só tendo iniciado débeis esforços nesse sentido quando o seu “inimigo político”, o governador de São Paulo aplicou a primeira dose de uma vacina “chinesa” em uma trabalhadora estadual da saúde, em janeiro de 2021. Tem início aí, e apenas a partir desse momento, a movimentação frenética do governo federal em busca de vacinas – preferencialmente não chinesas – para não ficar atrás do governo de São Paulo nesse particular, ativismo que também coincide com incompetência, má gestão e possíveis atos de corrupção no âmbito do ministério da Saúde nessas importações improvisadas, aceleradas e feitas pelos canais os mais bizarros (como revelado na terceira fase de trabalhos da CPI da Pandemia). Numa decisão anterior, a corte constitucional já tinha sido chamada a dirimir uma pendência (criada pelo presidente) relativamente às competências concorrentes e cooperativas do governo central e dos governos estaduais e municipais no tocante a eventuais políticas de restrição de atividades econômicas que estavam sendo implementadas (contra a vontade do presidente) pelas administrações subfederais em atendimento às recomendações de especialistas no quadro de medidas de distanciamento social e de uso de máscaras. Não apenas o presidente se empenhou em desafiar essas medidas – e de fato as contrariou, organizando atos políticos em diversos estados, em total desobediência às normas locais de uso de máscaras e nãoaglomeração –, como também tentou, mais de uma vez, obter uma decisão as suprema corte dando-lhe a autoridade exclusiva na regulamentação das políticas de contenção da pandemia. Ele de fato obteve “sucesso” nas suas investidas, uma vez que vários milhares de seguidores, organizados por militantes e redes sociais coniventes, se empenharam em desafiar as normas locais editadas pelos 99 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS governadores – ou comportamentos de simples bom senso – em sair às ruas em ruidosos comícios políticos, o que pode ter contribuído para aumentar os tristes números globais exibidos pelo Brasil em número de vítimas. Um outro aspecto, que tem a ver apenas incidentalmente com quaisquer exemplos externos, mas que tem tudo a ver com o negacionismo importado do presidente Bolsonaro, foi registrado no tocante à distribuição geográfica do número de vítimas da infecção ou de mortos pela covid-19. Jornalistas investigadores cruzaram os mapas de votação das eleições presidenciais de 2018 com os números de hospitalizados e de mortos por covid-19 desde o seu início: a “descoberta” – estarrecedora, mas não surpreendente – foi a de que os municípios e estados que mais forneceram votos para o candidato vencedor também foram aqueles cujos registros de enfermos e de vítimas fatais são os mais elevados, relativamente e absolutamente, na comparação com outros distritos eleitorais menos “aderentes” ao candidato Bolsonaro. Tratou-se, na interpretação desses jornalistas e analistas, de uma clara correlação entre a adesão ao exemplo e às palavras do presidente e os comportamentos mais propensos a causar o maior número de vítimas da covid-19, numa proporção muito superior às médias locais ou nacional. Segundo pesquisas efetuadas por respeitáveis institutos educacionais – Insper, Ibmec e Universidade de Toronto – as cidades que tiveram mais de 51% dos votos para Bolsonaro registraram números de casos até 299% maior e até 415% mais mortes um ano depois do início da pandemia (Soares, 2021). Um ano e meio depois de registrado o primeiro caso de pandemia no Brasil, em fevereiro de 2020 – seguido da primeira morte, um mês depois –, seis meses depois de iniciada a aplicação descoordenada das poucas vacinas disponíveis, o país segue sem um programa definido, previsível, calendarizado e racional de imunização nacional mediante vacinas, sendo que o presidente Bolsonaro não recuou uma única vez de sua postura negacionista e de seus comportamentos obstrutores em relação às medidas que vêm sendo implementadas pelos governadores dos estados ou prefeitos de municípios na contenção ou em prol da imunização da população sob suas jurisdições respectivas. Aliás, desde a demissão do segundo ministro da Saúde, substituído por um general incompetente e submisso ao negacionismo do presidente, o país não dispõe sequer de estatísticas unificadas comportando os indicadores mais 100 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS relevantes em termos de número de infectados, hospitalizados, recuperados e mortos, uma vez que o ministério da Saúde deixou de computar esses dados desde a assunção do terceiro ministro da área (substituído sob pressão do Parlamento por um médico, em março de 2021, mas também relativamente complacente em relação à postura obstrucionista do presidente). As informações disponibilizadas diariamente pelos veículos de informação e comunicação são coletadas por um consórcio nacional de empresas de mídia, em contato direto com cada uma das secretarias estaduais da saúde. O pequeno ativismo demonstrado pelo governo federal desde o segundo trimestre de 2021– na verdade, unicamente pelo ministério da Saúde, não pelo governo como um todo e muito menos pela presidência da República, que manteve sua tradicional postura obstrucionista – se deve, em grande medida, à pressão da opinião pública, das entidades da sociedade civil vinculadas à saúde pública e, com cada vez maior peso, da CPI da Pandemia, desde o seu início relativamente tardio. Não existem previsões fiáveis, neste momento (meados de julho de 2021), sobre quando, exatamente, a maior parte da população adulta brasileira poderá estar imunizada com alguma das muitas vacinas atualmente em oferta no mercado (mas principalmente CoronaVac, Astrazeneca, Pfizer e Janssen); no estado atual das iniciativas dispersas de vacinação – fracamente coordenadas pelo ministério da Saúde, que tem a competência legal por um Programa Nacional de Imunização – e do atraso já acumulado na contratação das vacinas que estavam sendo ofertadas, por cada um dos fabricantes, nas fases intermediárias de testes clínicos. O Instituto Butantã, do estado de São Paulo, finaliza os testes e preparativos para a introdução de sua própria vacina contra o vírus, a ButanVac, que representará a primeira iniciativa totalmente nacional nessa área, no plano da tecnologia e dos insumos, ainda que em cooperação com institutos estrangeiros de pesquisa, com os quais foram compartilhadas patentes. Um capítulo especial de qualquer ensaio dedicado aos aspectos internacionais do problema da pandemia deveria ser dedicado a um exame especial do comportamento de seus responsáveis e das ações institucionais do ministério das Relações Exteriores, o que, no entanto, não será oferecido do modo detalhado que tal questão requereria, por diferentes razões aqui sumariadas. Em primeiro e mais 101 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS importante lugar, o Itamaraty, sob a presidência Bolsonaro, deixou de ser o centro formulador e executor das principais ações no domínio da política externa; estas foram, desde o início, apropriadas por um restrito círculo de amadores ignaros em política internacional, mas detentores de um poder decisório efetivo muito acima do chanceler escolhido ou do corpo profissional de diplomatas. Na verdade, o chanceler, escolhido num obscuro processo de seleção no curso da campanha presidencial de 2018, representou, enquanto exerceu o cargo – entre janeiro de 2019 e março de 2021 – a peça de menor importância no bizarro processo de tomada de decisões na área externa do governo Bolsonaro. Admitindo-se que o próprio presidente estivesse no comando – algo extremamente duvidoso, tendo em vista sua notória ignorância nessas matérias –, o escalão seguinte estava representado por um assessor presidencial em assuntos internacionais e pelo filho deputado do presidente, ambos discípulos de um guru presidencial expatriado, de quem receberam as concepções extremistas da “direita alternativa” americana, entre as quais as teorias conspiratórias do antiglobalismo e da ameaça comunista internacional. Alguns assessores militares palacianos se envolvem, ocasionalmente, nesse confuso processo de tomada de decisões, mas de modo muito improvisado e mesmo caótico, uma vez que ministros e altos funcionários foram sendo substituídos ao longo dos primeiros dois anos e meio de mandato, segundo os humores do presidente. Apenas em terceiro ou quarto escalão se inseria o primeiro chanceler nesse processo decisório, uma vez que várias “decisões” eram tomadas externamente e independentemente do que pudessem sugerir os quadros profissionais do ministério. O mais dramático nesse cenário altamente errático é que tais “decisões” podiam envolver aspectos sensíveis da política externa – relações com os principais parceiros do Brasil, em especial os vizinhos regionais, como a Argentina, a China e as potências ocidentais – em temas de grande importância para os interesses do país. O que se assistiu, na primeira metade do mandato presidencial foi um crescente isolamento internacional do Brasil, em virtude de desentendimentos políticos – até o ponto de atitudes descorteses e até ofensivas – com alguns desses parceiros (a Argentina, a China e os grandes países da Europa continental) e de um alinhamento inédito, até o limite da subserviência, não exatamente aos Estados Unidos, mas a Trump, enquanto este foi presidente (até 102 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS janeiro de 2021), inclusive nos minutos finais da contestação aos resultados das eleições. No aspecto específico da questão da pandemia, o chanceler acidental não apenas se alinhou inteiramente ao negacionismo e à incompetência do presidente, e de seus assessores mais chegados (que eram os seus verdadeiros chefes), como se submeteu totalmente às diretivas e orientações que emanavam do presidente americano e de seu Secretário de Estado. Isso significou, mesmo nos momentos mais dramáticos da pandemia, o mesmo desprezo que exibia o presidente brasileiro pelo número de vítimas que se acumulavam durante a primeira e a segunda onda, bem como uma postura contrária a qualquer coordenação multilateral dos esforços que estavam sendo precariamente empreendidos pela OMS, e pelo próprio Secretário Geral da ONU, para se lograr um mínimo de cooperação entre os principais países produtores e fabricantes de vacinas (notadamente os EUA, os grandes da União Europeia, a China e a Índia), Numa determinada fase, se cogitou inclusive abandonar a OMS – como feito por Trump – e não integrar o consórcio Covax Facility, constituído pela OMS para distribuir as vacinas disponibilizadas pelos grandes laboratórios e fabricantes. Anteriormente, o inepto chanceler – provavelmente para alinhar o seu anticomunismo às concepções políticas primárias do círculo presidencial – já tinha se referido desdenhosamente a um “comunavirus”, como sendo um plano de enfraquecimento do Ocidente pela grande potência “comunista” da Ásia. Ele também interferiu nos embates entre o filho deputado do presidente e o embaixador da China em Brasília, chegando ao cúmulo de solicitar secretamente à chancelaria chinesa a retirada do embaixador do posto. Os principais episódios das turbulentas relações entre o Brasil de Bolsonaro e a China estão refletidos e analisados em artigo coletivo cobrindo ao ano de 2020 (Sousa et ali, in: Azzi et alii, 2020, p. 31-45). Um relatório mais recente, produzido como subsídio à CPI da Pandemia por um grupo de pesquisadores, coordenado pela médica especialista em saúde pública Ligia Bahia, cuja parte internacional recebeu colaboração do jornalista Jamil Chade, sublinhou o papel negativo do ministério das Relações Exteriores no decorrer da crise: 103 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A política global tem sido marcada pela pandemia de diversas formas, com a exacerbação de nacionalismo e ênfase na ajuda sanitária. A diplomacia da vacina tornou-se uma prática comum no contexto da atual pandemia. China, Rússia, Índia, entre outros países, utilizaram a doação de vacinas como forma de aumentar sua influência internacional e regional. Neste contexto, o isolamento internacional brasileiro tem ainda como resultado não poder acessar com fluidez estas vacinas. O Ministro Ernesto Araújo, ao contrário, participou ativamente do esforço coletivo de promoção de teorias conspiratórias visando a mobilização permanente da base bolsonarista, em detrimento de sua função constitucional de construção de pontes com o universo internacional. Ele ignorou as tratativas internacionais para viabilizar vacinas. Chamou de “comunavírus” o novo coronavírus e afirmou que se tratava de uma armadilha globalista para instaurar o socialismo mundial. O ministro apontou ainda o que chamou de “covidismo” como um inimigo a ser combatido e associou a epidemia a uma conspiração contra a liberdade, tema ao qual retornou insistentemente. Fiel à associação profunda que estabeleceu entre a nova política externa brasileira e uma política doméstica conservadora, defendeu a política do governo Bolsonaro, inclusive em relação ao “tratamento precoce” e contra o isolamento social, chegando a associar o lema “fica em casa” com favorecimento ao narcotráfico. (Bahia, 2021, p. 22) Em segundo lugar, a dificuldade em historiar e analisar a incompetência demonstrada pela diplomacia bolsonarista no tratamento da pandemia – tanto em sua primeira fase, de discussão da questão nos foros multilaterais, quanto na segunda, de lenta e agônica busca por vacinas – se deve a que todos os expedientes relativos à questão foram classificados como confidenciais ou secretos, e apenas no período recente alguns deles estão sendo revelados aos poucos e de forma parcial. Trata-se, portanto, de uma análise que deverá ser feita em momento ulterior, quando, e se, forem conhecidas todas as informações recebidas dos postos no exterior e instruções expedidas aos mesmos postos. Por outro lado, os próprios funcionários do ministério da Saúde – nem sempre de carreira ou especialistas no assunto – foram envolvidos em obscuras negociações com fornecedores estrangeiros, ou com intermediários internos, o que vem sendo revelado, por jornalistas e pela CPI da Pandemia, como uma formidável confusão de critérios técnicos e de manobras financeiras não isentas de corrupção. 104 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS O que tudo isso revela, no tocante a esta lenta e longa marcha do Brasil em direção a uma ou mais vacinas, é a falta total de uma estratégia do governo em relação a um programa nacional unificado capaz de enfrentar os desafios institucionais, materiais e operacionais da pandemia, nos três níveis da federação. Não apenas não se teve, até o segundo ano quase completo da pandemia, um programa bem-sucedido e coordenado de enfrentamento da covid-19, como se viram frustrados todos os especialistas e técnicos do setor engajados nessa luta em face da ausência de diretrizes claras emanadas da principal autoridade do setor, quando o próprio presidente se encarregava de sabotar os esforços locais, em nível técnico e regulatório. De toda forma, todo este assunto deverá ser retomado, analisado novamente e explicitado em todos os seus aspectos, domésticos e internacionais, uma vez que se disponha de um quadro mais claro sobre o que ocorreu, efetivamente, nessa frente, tanto por parte da presidência da República quanto por parte do ministério da Saúde, quando dirigido por um incompetente general ignorante na área. 3 CONCLUSÃO: BOLSONARO, O ÚLTIMO NEGACIONISTA DO PLANETA E A TRAGÉDIA BRASILEIRA A tragédia brasileira se refere, obviamente, ao número anormalmente elevado de vítimas da covid-19, o que reflete, parcialmente, o negacionismo do presidente. As conclusões a serem provisoriamente, e preliminarmente, retiradas do exercício aqui conduzido podem ser colocadas, à falta de um quadro mais claro de todos os aspectos da questão, sobretudo no plano internacional, ao abrigo de dois conceitos subjetivos: incompetência e agonia. Incompetência no tratamento da questão por parte das autoridades máximas do Brasil, a começar pelo chefe de governo, quando vista, justamente, numa perspectiva comparada com países dispondo de menos experiência e da arquitetura institucional do que o Brasil (Sistema Único de Saúde, Programa Nacional de Imunização, longo histórico de vacinações de largas faixas da população). A agonia deve ter sido ressentida – e ainda subsiste – pelos técnicos engajados no enfrentamento do problema e, sobretudo, pela sociedade; todos tiveram de contemplar, e amargar, um número adicional e “desnecessário” de mortos, caso 105 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS outras medidas tivessem sido tomadas pelo governo em tempo hábil e de modo adequado. A incompetência do governo deriva diretamente do total despreparo do seu chefe nos mais comezinhos aspectos das políticas públicas. Para isso contou sua ignorância abissal em matéria de políticas de saúde e, talvez principalmente, seu desprezo evidente pelas vidas humanas que estavam em jogo. A incompetência também está ligada ao primeiro aspecto “internacional” referido neste ensaio: um negacionismo importado, totalmente caudatário do negacionismo de Trump, a quem Bolsonaro sempre demonstrou incontida adesão, ou até uma deplorável submissão, num grau jamais visto em toda a história do Brasil, em qualquer época ou regime. Não se tratava, porém, de um negacionismo doutrinal, como podem exibir certos “teóricos” do conservadorismo mais extremado, aqueles que rejeitam inclusive o legado do humanismo do século XVIII, o do Iluminismo como filosofia, ou dos seus contributos de caráter político-constitucional. Bolsonaro e seus seguidores imediatos seriam incapazes de uma reflexão de cunho político-filosófico, sendo mais propensos a aceitar os argumentos de caráter político expelidos pelo guru presidencial, o pensador e polemista Olavo de Carvalho, mas apenas aqueles relativos ao anticomunismo primário, de quem ainda acha que a principal ameaça do Brasil e do mundo é o comunismo. Esse foi aliás o sentido da primeira alocução de Bolsonaro na abertura dos debates da Assembleia Geral da ONU, em setembro de 2019. Seu discurso, inédito nos anais da diplomacia brasileira – que tem o privilégio de dar início a esses debates desde a primeira AGNU, em 1946 –, começou justamente pela “informação” surpreendente de que seu governo tinha “salvo o Brasil do comunismo”, independentemente do fato de que a época do Partido dos Trabalhadores – teoricamente socialista, mas na prática socialdemocrata e fracamente reformista – já tinha terminado desde 2016 e que o partido nunca tratou de implantar o “socialismo” no Brasil. Toda a gestão do primeiro chanceler se colocou sob a insígnia desse anticomunismo primário, além da luta ideológica contra os supostos horrores do “globalismo”, o monstro metafísico que estaria ameaçando a soberania dos Estados 106 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS nacionais, segundo as teorias conspiratórias defendidas pelos cruzados desse conservadorismo extremado. Tais expedientes representam espantalhos políticos que servem para conquistar e manter uma claque eleitoral comprometida com tal visão do mundo, entre eles aqueles saudosistas da ditadura militar, que deixou muitas marcas no Brasil ao longo dos seus 21 anos de regime autoritário. Bolsonaro, na verdade, representa a fração mais extremada e repressora dos militares que comandaram o Estado e dirigiam também os seus aparelhos de informação, de censura e de repressão política: ele elogiou diversas vezes o mais conhecido torturador das catacumbas do regime militar e se orgulha disso. Por acaso, o chanceler acidental é filho de um dos quadros políticos da ditadura militar, que se exerceu na censura e na defesa jurídica do regime, legando ao filho estudante o fundamentalismo de caráter religioso que explica, em parte, uma concepção cruzadista de defesa do “Ocidente cristão”, conceito que não se ouvia mais no Brasil desde a fase inicial da ditadura militar. O negacionismo direitista de Bolsonaro é, assim, apenas superficial, ou seja, sem qualquer fundamento político mais elaborado, servindo apenas para congregar certo número de fiéis em apoio a uma visão messiânica e salvacionista do Brasil, contra a ameaça do comunismo, servindo também para identificá-lo com seu ídolo e modelo, o negacionista Trump. O mais incrível é que ele tenha persistido no negacionismo, e num comportamento anti-ciência, quando seus supostos aliados internacionais abandonaram tais posturas, a partir de certo momento, em favor de uma adesão pragmática a campanhas nacionais de vacinação, inclusive por uma espécie de cálculo político oportunista, o que Bolsonaro se revelou incapaz de exibir (em seu próprio detrimento). Com isso, Bolsonaro converteu-se no último negacionista no planeta, aquele que levou sua postura até as últimas consequências, e com isso produziu boa parte da tragédia brasileira, que já ceifou, na data em que se finaliza este breve ensaio, mais de 533 mil vítimas, com potencial para vitimar alguns milhares a mais (segundo dados atualizados constantemente, coletados pela Johns Hopkins University, no seguinte link: https://github.com/CSSEGISandData/COVID-19; acesso em 107 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 12/07/2021). As estimativas sobre o “surplus” de mortes variam enormemente, mas um epidemiologista quantificou esse potencial em seus limites máximos: Pedro Hallal, professor na Universidade Federal de Pelotas estimou que o Brasil poderia ter salvado 400 mil vidas – o que corresponde a aproximadamente 80% das mortes por covid-19 – se o governo tivesse adotado medidas mais rígidas de contenção e dado início mais cedo a um programa de imunização (UOL, 29/06/2021). Em qualquer hipótese, e considerando que a tragédia ainda não se encerrou, o governo Bolsonaro representou, não apenas na questão da pandemia, mas especialmente no caso mais emblemático da política externa, um ponto extremamente baixo no conjunto das políticas públicas nacionais, diminuindo terrivelmente a imagem do Brasil no exterior e o prestígio de sua diplomacia. A análise oferecida à CPI da Pandemia pelo grupo de especialistas já citado concluiu seu relatório com argumentos que podem igualmente servir como conclusão a este breve ensaio sobre os aspectos internacionais da questão da pandemia no Brasil: Ou seja, também no âmbito da política externa e das relações internacionais, o Brasil adota postura negacionista, minimalista e contrária aos direitos humanos e constitucionais do povo brasileiro. Aqui também se evidencia a necessidade de reverter esse curso e criar as condições para que a população brasileira tenha seus direitos respeitados e nosso país passe a colaborar com o combate à pandemia do coronavírus e à disseminação da Covid-19, deixando de ser um problema e uma ameaça global. A CPI do Senado igualmente deste ângulo deve ponderar o imperativo da responsabilização administrativa e política do governo federal, a qual, segundo nossa opinião, deve culminar com o impeachment do presidente da república [sic], principal responsável, ainda que não o único, pelas ações, omissões e desgoverno, que levaram tamanha tragédia a se abater sobre o povo brasileiro. (Bahia, 2021, p. 26) REFERÊNCIAS ALMEIDA, P. R. de. “Impacto da pandemia sobre a diplomacia mundial e no Brasil”, revista Sapientia, ano 9, n. 40, maio-junho 2021, p. 16-19; ISSN: 24468827; disponível no link: https://conteudo.cursosapientia.com.br/mai21-typagerevista-sapientia-ed-40-org; acesso em 12/07/2021. 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It consists of institutions such as the Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), of standards (ICESCR and its Protocol), principles (good faith; equality and non-discrimination; pro homine; complementarity, indivisibility, and universality of human rights), documents (CESCR Declaration to leave no one behind in light of the 2030 Agenda for Sustainable Development; General Observations #14 and #25; the Covid-19 Pandemic Declaration; and, the Declaration on Universal and Equitable Access to Vaccines from Covid-19) and rules (Pacta Sunt Servanda; the rule of the most favorable standard and the rule of exhaustion of domestic remedies) that enshrine the existence of a true health protection regime stemming from the ICESCR. Keywords: United Nations; Committee on Economic, Social and Cultural Rights; pandemic; Covid-19; human rights. 1 INTRODUCTION In 2020 humanity experienced an atrocious pandemic that continues to threaten and claim lives incessantly. The current generation has never faced a health situation of this magnitude. One year later, in 2021, the scenario is still very worrying. Despite the vaccines presented, the year began with new waves of contamination by an even more ruthless Coronavirus, found in innovative mutant variants of its original in different corners of the planet. 1 Member since 2010 and actual Chair of Committee on Economic, Social and Cultural Rights of United Nations. Ph.D. in International Law and International Relations: Doctor “Sobresaliente Cum Laude” by Universidad Autónoma de Madrid. Professor at Universitario Center of Brasília – CEUB. Orcid: 00000002-0896-3624 110 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS The Covid-19 pandemic, by overflowing public health systems and devastating different sectors of life - such as the economy, education, food production, and social security, among others - is a clear threat to human rights. These, for a successful confrontation of the virus, must be observed from their indivisible and interdependent perspectives. If countries do not act in accordance with human rights, the risk that economic, social, and cultural rights will be undermined, thereby the increasing suffering of the most marginalized and vulnerable groups, is significantly increased. The International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights (ICESCR or Covenant) provides a consolidated regime for the affirmation and protection of these rights, notably the right to health. It consists of institutions such as the Committee on Economic, Social and Cultural Rights (CESCR), of standards (ICESCR and its Protocol), principles (good faith; equality and non-discrimination; pro homine; complementarity, indivisibility, and universality of human rights), documents (CESCR Declaration to leave no one behind in light of the 2030 Agenda for Sustainable Development; General Observations #14 and #25; the Covid-19 Pandemic Declaration; and, the Declaration on Universal and Equitable Access to Vaccines from Covid-19) and rules (Pacta Sunt Servanda; the rule of the most favorable standard and the rule of exhaustion of domestic remedies) that enshrine the existence of a true health protection regime stemming from the ICESCR. Since a regime is a set of institutions, norms, principles, and rules capable of influencing countries, international organizations, and individuals on a given agenda or theme, generating a standard of conduct 2, the CESCR is the central organ of the robust protection regime for the right to health, built on the ICESCR and amalgamated by the principles of complementarity, indivisibility, and universality of human rights. These are a harmonic whole; they have a reciprocal dependence in such a way that they complement each other 3. To contribute to this joint effort to 2 LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. O regime de proteção aos migrantes, refugiados e solicitantes de refúgio do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas em Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana (REMHU). Brasília: CSEM, vol. 27, nº 57, dezembro de 2019, p. 175. Disponível em http://remhu.csem.org.br/index.php/remhu/article/view/1236. 3 LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. Os 50 anos dos dois pactos internacionais da ONU: um olhar especial sobre o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em CANÇADO TRINDADE, Antônio 111 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS combat Covid-19, the CESCR illuminates the pillars of this regime capable of adding to the global mobilization against the ruthless Coronavirus, indicating, moreover, that the responses to the pandemic must be based on the best scientific knowledge available for the protection of public health, according to the right of every person to enjoy the benefits of scientific progress and its applications, explicit in article 15, paragraph 1, subparagraph b of the Covenant. The ICESCR is legally binding. Its states parties have the obligation to adopt measures to avoid or mitigate the effects of the pandemic's impacts. These measures must be based on the best scientific knowledge to effectively protect the health that every human being has the right to enjoy. Brazil has been a State Party to the Covenant since 1992 and, therefore, in line with the principle of good faith that governs international law, is obliged to follow the guidelines indicated by the CESCR on the matter. The importance of this article is to identify and recognize this regime, little known to the public, but which, in terms of concerns and recommendations for the development of public policies on the subject, the affirmation of the right to health and the responsibility of countries to confront Covid-19 is very robust from the perspective of international human rights protection. For the CESCR, the interpretation, supervision, and monitoring body of the ICESCR, all persons within the jurisdiction of a state party to the Covenant can enjoy the rights recognized therein. To identify and recognize this regime, the article is structured around the central characteristics of the ICESCR and the CESCR, as well as the legal pillars of the right to health from the perspective of international human rights law. It then dives into the presentation of the main argumentative and conclusive lines of three important documents recently approved by the Committee on the subject: the General Observation number 25 of 2020, concerning science and the ESCR; as well as the Declaration on the Coronavirus pandemic (Covid-19) and the ESCR of April 17, 2020; the Declaration on universal and equitable access to vaccines for the Augusto; LEAL, César Barros e LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro (Coord.). O cinquentenário dos dois pactos de direitos humanos da ONU. Fortaleza: IBDH, p. 259-278, 2016, p. 261. 112 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS treatment of HIV/AIDS; and the Declaration on the right to health from the perspective of international human rights law. 2 THE INTERNATIONAL COVENANT ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS (ICESCR) The ICESCR is a multilateral international treaty of the UN human rights system. It is one of the essential pillars of the International Bill of Human Rights: a set of international documents that in addition to the ICESCR includes the International Covenant on Civil and Political Rights (ICCPR) and the Universal Declaration of Human Rights (UDHR) of December 10, 1948. The ICESCR and ICCPR were adopted by the United Nations General Assembly on December 16, 1966 (Resolution 2200 A XXI), entering into force in 1976. The ICESCR identifies three responsibilities that States have for the protection of the rights contained within them: to respect, that is, States must refrain from interfering directly or indirectly with these rights; to protect, that is, States must take measures to ensure that other actors, such as business, political, religious, or anyone else can interfere with these rights; and, to enjoy, that is, States must take measures for the realization of these rights. By respecting, protecting, and realizing the rights in the Covenant, states parties will be able to fulfill their promises to make sure that no one is left behind4 in the collective effort for a transformed world, in accordance with the United Nations 2030 Agenda 5. The ICESCR standards provide for the equal rights of men and women, the right to work, the right to just and favorable conditions of work, the right to form and join trade unions, the right to social security, the right to family protection and assistance, the right to an adequate standard of living, the right to the highest attainable standard of physical and mental health, the right to education, and the 4 ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2019/1. La promesa de no dejar a nadie atrás: el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, y la Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible - Declaración del Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 05/04/2019, § 20, p.7. 5 The 2030 Agenda for Sustainable Development constitutes the renewed common global commitment of states to eradicate poverty in all its forms and dimensions, including extreme poverty, by promoting equitable, inclusive, and sustainable societies. 113 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS right to culture and to enjoy the benefits of scientific progress. These, considering the principles of free determination, equality, and non-discrimination. The first paragraph of article 2 of the ICESCR requires states parties to take immediate measures to ensure to all persons within their jurisdiction the full exercise of the rights guaranteed therein. Such measures are to be owned or achieved through international assistance and cooperation. The San Francisco Charter or UN Charter (from the literalness of its articles 1.3 and 55, items "a" and "c", read together with article 56) consecrates the extensive interpretation that the international protection of human rights must be considered as a matter linked to the interests of the international community. Therefore, for the sake of affirming human dignity, international cooperation will constitute a source of restrictions on state discretion. The restriction of any of the current levels of international human rights protection, including those issued by the CESCR, could be interpreted as a violation of fundamental principles of international protection of the human being, such as the principle of non-reduction of human rights protection parameters, the principle of the most favorable standard and the pro homine principle6. This understanding guides the members of the CESCR in the application and interpretation of the ICESCR in matters related to the rights to health and scientific progress. Not by chance, in paragraph 15 of its Declaration on the Coronavirus Pandemic (Covid-19) and Economic, Social and Cultural Rights, the Committee indicates that the States parties to the ICESCR must adopt urgent, special, and specific measures, including through international cooperation, to protect and mitigate the effects of the pandemic on vulnerable groups. These include older persons, persons with disabilities, refugees, as well as communities and groups subjected to discrimination and structural disadvantages. Among such measures, the CESCR points out, for example, the adoption of those specially adapted to protect 6 LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas e o enfrentamento à Covid-19 in Review of Inter-American Institute of Human Rights. Costa Rica: IIDH, 2021, nº 72, p.20. 114 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS the health and livelihoods of vulnerable minority groups, such as indigenous peoples7. As an illustration of the two previous paragraphs, on 07/21/2020 the 27 member countries of the European Union signed the European Recovery Plan (ERP), a historic economic recovery agreement, through which these States allocated 750 billion Euros to rebuild the bloc's economy, affected by the Covid-19 pandemic. Among its main foundations are the allocation of 312.5 billion euros to finance reform and investment programs that each beneficiary country must define in a national recovery plan, and the establishment of a target that 30% of its spending should be dedicated to the fight against climate change 8. In this context, international cooperation implies sharing research, professionals, medicines, and medical equipment, as well as best practices for halting Coronavirus. In addition, to coordinate the measures adopted to reduce the economic and social effects of the crisis generated because of the pandemic. In addition, coordinate the measures adopted to reduce the economic and social effects of the crisis generated because of the pandemic, assuming joint efforts by all countries for an effective and equitable economic recovery. Otherwise, at the heart of these international initiatives must be the needs of vulnerable, disadvantaged groups, and fragile countries9. Article 2.1 of the ICESCR deals with the progressive realization of rights. The very expression "undertakes to take steps, by all appropriate means, including the adoption of legislative measures" requires all States parties to begin to adopt immediate measures to achieve the full enjoyment of the rights contained in the Covenant10. These include, but are not limited to, administrative, financial, educational, and social measures. In this sense, States parties are legally obliged to 7 ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/1. Declaración sobre la pandemia de enfermedad por coronavirus (COVID-19) y los derechos económicos, sociales y culturales. Declaración del Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 17/04/2020, §15, p.4. 8 EU. Sítio Web oficial da União Europeia: https://europa.eu/european-union/ index_pt , access in 22/07/2020, at 10:45 a.m.. 9 ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/1. Declaración sobre la pandemia de enfermedad por coronavirus (COVID-19) y los derechos económicos, sociales y culturales. Declaración del Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 17/04/2020, §19, p.5. 10 CESCR. Observação Geral nº 3. ONU. Instrumentos Internacionales de Derechos Humanos. Documento HRI/GEN/1/Rev.9 (Vol. I), de 27 de maio de 2008, §7, p.18. 115 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS adopt legislative measures, especially when existing laws are clearly incompatible with the obligations contracted under the ICESCR. The expression "to ensure progressively the full realization of rights" obliges states parties, regardless of their level of development or national wealth, to move immediately and as quickly as possible to make ESCR effective. About nondiscrimination provisions and the obligation of states parties to refrain from violating, by action or omission, legal or other protective measures that require immediate compliance. The CESCR has even stated that this obligation exists regardless of an increase in available resources. This is because all existing resources must be dedicated to the effectiveness of the rights proclaimed by the ICESCR 11. In times of pandemic, which can affect the core of the human right to health, this understanding must prevail without restrictions of any legal, normative, or political order12. The CESCR has identified as obligations of immediate effect the adoption of measures for the full realization of the rights recognized in the ICESCR and the prohibition of discrimination. Their existence or non-existence offers pillars for evaluating alleged violations by the state, whether by action or omission. ESCR are not purely programmatic. On the contrary, they impose direct operative obligations. Non-compliance with them may be justifiable. For example, the existence of laws or state practices that discriminate based on gender, race, disability, sexual orientation, or nationality, among others, imposing barriers to the enjoyment of ESCR, constitute violations of obligations of immediate effect. Also, the lack of public policies for the realization of rights or the delay in derogating discriminatory legislation or practices constitute violations of this type13. In fact, the CESCR, in its General Comment No. 1, noted that the ICESCR attaches particular importance to the concept of progressive realization of ESCR. Indeed, States parties were urged to include in their reports data capable of 11 Ibidem. Documento HRI/GEN/1/Rev.9 (Vol. I), §7-10, p.11. LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas e o enfrentamento à Covid-19 in Review of Inter-American Institute of Human Rights. Costa Rica: IIDH, 2021, nº 72, p.21. 13 ONU. ECOSOC. Document E/C.12/GC/20. Observación general num. 20 (2009). La no discriminación y los derechos económicos, sociales y culturales (artículo 2, párrafo 2 del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales). 23/11/2009, §30, p.10. 12 116 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS evaluating the progress achieved as to the effective application of these rights within reasonable timeframes14. This progressive realization demands a reflection on the real-world difficulties in enforcing ESCR considering states' obligations to achieve these goals as effectively as possible. All deliberately retroactive measures should be considered carefully and only be justified when they concern the maximum available resources. This does not mean, however, that states parties may indefinitely prolong the adoption of measures to guarantee the rights of persons subject to their jurisdiction. Article 2.2 of the ICESCR obliges states parties to refrain from discriminatory behavior by modifying laws and practices that permit discrimination. It prohibits individuals and public bodies from engaging in discriminatory practices. In cases of discrimination, judicial procedures and other methods of redress must be guaranteed15. Even states parties have extraterritorial obligations related to worldwide efforts to address covid-19. Developed countries must avoid making decisions-such as imposing limits on medical equipment exports-that impede access to vital equipment for the pandemic's poorest victims. Likewise, states parties should ensure that unilateral border measures do not hinder the movement of necessary and essential goods, especially basic foodstuffs, and health equipment. Finally, any restriction based on the objective of securing national supplies must be proportionate and address the urgent needs of other countries 16. In its concluding observations, the CESCR had the opportunity to highlight the inseparability between the environment, indigenous peoples, adequate standard of living and the right to health, as they form an interactive ring for the affirmation 14 On the legal requirement by the judicial supervision bodies of international human rights treaties to apply a reasonable term in their decisions, especially in cases involving violations of economic, social and cultural rights, see: LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro, La construcción jurisprudencial de los Sistemas Europeo e Interamericano de Protección de los Derechos Humanos en materia de derechos económicos, sociales y culturales, Núria Fabris Editora: Porto Alegre, 2009, p. 119-120. 15 ONU. Los Derechos Económicos, Sociales y Culturales – Manual para las Instituciones Nacionales de Derechos Humanos. Serie de Capacitación Profesional nº 12 – Derechos Humanos. ACNUDH: Genebra, 2004, p. 15. 16 ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/1. Declaración sobre la pandemia de enfermedad por coronavirus (COVID-19) y los derechos económicos, sociales y culturales. Declaración del Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 17/04/2020, §20, p.5. 117 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS of human dignity. Thus, after the constructive dialogue following Canada's sixth periodic report, the Committee was concerned that the indigenous peoples of this State party were living confined in substandard conditions, causing them severe health problems. In addition, the fact that they had limited access to safe drinking water and sanitation services was also of great concern. Consequently, the Committee urged the State party to intensify its efforts to address the crisis of adequate housing for indigenous peoples, in consultation with their respective governments and organizations. Today, free, prior and informed consent is a cornerstone of international indigenous peoples' law. Likewise, the CESCR insisted on the fulfillment of the countries commitment to guarantee access to safe drinking water and sanitation services, while ensuring the active participation of indigenous peoples in the planning and management of water resources. In this sense, the State Party should take into consideration not only the economic right of indigenous peoples, but also the cultural value that water has for them17. For the CESCR, article 11 of the Covenant, the right to an adequate standard of living, does not denote a stationary situation but rather a continuous improvement of the conditions of existence of every human being, and is inexorably linked, therefore, to the right to health. Such concerns of the Committee towards indigenous peoples should be taken seriously into account by all States parties to the ICESCR, especially in times of the Coronavirus that has indigenous peoples as one of its most vulnerable targets. 3 THE COMMITTEE ON ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS (CESCR) The CESCR is an international body of the UN system that is made up of 18 independent experts. It applies, interprets, and monitors the ICESCR. It was established by resolution 1985/17 of the UN Economic and Social Council (ECOSOC) on May 28, 1985. All states parties to the ICESCR are obliged to submit reports to the CESCR on the implementation and enforcement of the rights set out in the Covenant. The first report must be submitted after the initial two years of the ICESCR's validity. 17 ONU. ECOSOC. Document E/C.12/CAN/CO/6. Observaciones finales sobre el sexto informe periódico del Canadá. 23/03/2016. 118 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Then, every five years they must submit their follow-up reports to that first report. The CESCR will examine each report, enter into a constructive dialogue with States parties, and address its concerns and recommendations to them in the form of concluding observations. The CESCR meets in Geneva at annual session periods, adopting its interpretation of the ICESCR provisions in the form of general observations. It also issues letters and declarations on a wide variety of matters of necessity for the affirmation of ESCR in the international arena. Since 2013, with the entry into force of the Optional Protocol to the Covenant, the Committee has been empowered to consider individual communications involving alleged violations of the rights contained in the ICESCR. The fourth article of the Protocol's regulations states that communications may be submitted by persons or groups of persons who are under the jurisdiction of a state party, alleging that they are victims of a violation of any of the rights set forth in the Covenant. This gives the CESCR a special position in relation to other international non-judicial and judicial bodies for the protection of economic, social and cultural rights. The possibility for citizens of States parties to the Optional Protocol to the ICESCR to individually denounce their countries makes the CESCR the only international body currently able to receive individual complaints regarding violations of the economic, social and cultural rights contained in the Covenant18. Brazil, for example, is a state party to the ICESCR, but has not yet signed its Optional Protocol, which is why it cannot forward individual complaints to the CESCR. Therefore, the Brazilian State, at this moment, is obliged to comply with the provisions of article 16 of the Covenant, that is, to present reports on the measures it has adopted, as well as the progress made, to ensure respect for the rights contained in the ICESCR. Therefore, after constructive dialogue with the Committee, it will publish its concluding observations, with concerns and recommendations, which must be accepted by Brazil. In this sense, it is important to 18 The Optional Protocol to the ICESCR is an international treaty unanimously adopted by the UN General Assembly on December 10, 2008 (Resolution A/ RES/63/117). It was opened for signature in 2009 and has been in force since May 5, 2013, three months after Uruguay, the tenth State Party to ratify it, proceeded with its deposit, as stated in the text of the Protocol. 119 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS highlight that on 06/04/2020 the Brazilian State forwarded its Third Follow-up Report to the CESCR19. It will be this document that the Committee will take as a basis for the constructive dialogue that should be celebrated in 2021 or 2022, depending on the internal calendar that will emerge from the effects of the pandemic on the work of the supervisory bodies of the human rights treaties of the United Nations system. The above does not mean that the general citizenry and organized civil society in Brazil are marginalized from the entire official reporting process before the before the CESCR. The so-called shadow reports, those produced by civil society in opposition to or filling gaps in the official reports of the States parties, are always very welcome by the Committee, since they are excellent sources of information and essential counterpoints to the official information that can positively qualify the constructive dialogue with the States parties20. Therefore, the CESCR encourages the participation of civil society in all stages of preparation and submission of official reports by States parties. And when it is time for the analysis of the Third Follow-up Report of the Brazilian State, as well as the measures taken by Brazil in the fight against the Coronavirus, the shadow reports produced by the Brazilian civil society will be very important for the Committee to formulate clear conclusions and recommendations on the relevant issues. As a direct consequence of the effects of the Covid-19 pandemic, the face-toface sessions of the Committee that were to be held during October 2020 and February/March 2021, at the UN's Swiss headquarters in Geneva, have been cancelled and the CESCR will work remotely, in online mode, with its members in their home countries. For this reason, the constructive dialogues with States Parties to the ICESCR scheduled for these sessions were exceptionally postponed, except in two cases in which States Parties were able to engage in remote dialogues by virtual 19 20 CESCR. Document E/C.12/BRA/3, 08/06/2020. Third periodic report submitted by Brazil under articles 16 and 17 of the Covenant, due in 2014. 08/06/2020. Disponível em: https://tbinternet.ohchr.org/_layouts/15/treatybodyexternal/Download.aspx?symbolno=E%2fC.12%2fB RA%2f3&Lang=en. On the importance of civil society for the affirmation of economic, social and cultural rights, see LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. El rol de la sociedad civil organizada para el fortalecimiento de la protección de los derechos humanos en el siglo XXI: un enfoque especial sobre los DESC in Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos. San José: IIDH, nº 51, p. 249-271, 2010. 120 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS means, as decided by the CESCR Steering Committee in November 2020 21. The Committee, therefore, for as long as it remains impossible to meet in person in Geneva due to the pandemic, has decided to focus primarily on the general observations in development, the individual complaints submitted under the Optional Protocol, the formulations of the list of preliminary issues for countries that will still submit their reports in the near future, and different declarations such as those virtually approved during the year 2020, most of which are presented throughout this article. Thus, the Coronavirus has also impacted the essence of the work of the CESCR. 4 THE HUMAN RIGHT TO HEALTH IN THE CESCR For the CESCR, health is a fundamental human right and indispensable for the full exercise of all other human rights. Every human being has the right to enjoy the highest attainable standard of health adequate for the enjoyment of a life of dignity, according to article 12 of the ICESCR. The interpretation of this article by the CESCR recognizes the obligation of States parties to ensure their citizens the enjoyment of the highest attainable standard of health, a concept that encompasses everything from equitable access to minimum guarantees of health care in case of illness. Moreover, the right to health is closely linked to and dependent upon the exercise of other human rights, such as an adequate standard of living, food, housing, work, education, human dignity, life, non-discrimination, equality, freedom from torture, privacy, access to information, and freedom of association, assembly, 21 Of the UN human rights treaty body system, only the Human Rights Committee and the CESCR have decided to engage in virtual dialogue with States parties at their inaugural sessions in 2021. In the case of the CESCR, constructive virtual dialogue with only 2 States parties to the ICESCR was approved for the February/March 2021 session, the first of the year. Countries have been contacted, but only a few have expressed interest or technical conditions to move forward with the virtual constructive dialogue with the Committee. The Committee is nevertheless awaiting confirmation from these countries. Nevertheless, there were many technical problems during the internal virtual meetings held by the Committee during 2020. If these continue, they will constitute serious impediments to the quality of a constructive dialogue with the States Parties. Such problems, also observed by the other Committees, have been and are the subject of recurrent concerns by the Chairs of the different human rights treaty bodies of the UN system. These concerns are reflected in several of their official documents. 121 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS and movement. These, as well as other rights and freedoms contained in the International Bill of Human Rights, make up the integrality of the right to health 22. In its General Comment No. 14, which deals with the right to the enjoyment of the highest attainable standard of health, the Committee warned that States have an obligation to respect this right, in particular by refraining from denying or limiting equal access to preventive, curative and palliative health services for all; by not imposing discriminatory practices as State policies; and by refusing to impose discriminatory practices regarding the health and needs of women and other groups of special concern23. In addressing the normative content of article 12 of the Covenant, the CESCR indicates that the right to health should not be understood simply as a right to be healthy, as this entails both freedoms and rights. Among the freedoms are the right of every person to control their health and body, including sexual and reproductive freedoms, as well as the right to be free from interference, such as the right to not be subjected to torture or to non-consented medical treatment or experiments. On the other hand, the rights include the right to a health protection system capable of offering equal opportunity to persons to enjoy the highest attainable standard of health, a concept that encompasses both the biological and essential socioeconomic conditions of persons, including the resources available to the State. The Committee has therefore alerted States parties to their obligations to respect the right to health, in particular by refraining from denying or limiting equal access to preventive, curative, and palliative health services for all people; by not imposing discriminatory practices as State policies; and by refusing to impose them in health and the needs of women and other groups that require special attention. The right to health must be understood as a right to the enjoyment of the full range of facilities, goods, services, and conditions necessary to achieve the highest attainable standard of health 24. 22 ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2000/4. Observación general num. 14 (2000) sobre el derecho al disfrute del más alto nível posible de salud (artículo 12 del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociais y Culturales). 11/05/2000, §3, p.1. 23 Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §34, p.13. 24 Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §8-9, p.3. 122 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Not only that, the CESCR interprets the right to health as an inclusive right that comprises not only timely and appropriate health care, but also the key determinants of health, such as access to clean drinking water and adequate sanitation, adequate provision of healthy environments, proper nutrition, adequate housing, healthy working conditions and the environment, access to education and information on health-related issues, including sexual and reproductive health. In addition, the decision-making process on health-related issues at the community, national, and international levels must involve the participation of the population at all stages25. The right to health contains four essential and interrelated elements whose application is subject to the conditions prevailing in each State Party. Availability means that each State party must have enough health care facilities, goods, programs, services, beds, and centers. Accessibility requires States parties to make health care facilities, goods, and services accessible to all without discrimination of any kind. Acceptability means that all health care facilities, goods and services should respect medical ethics and cultures in an appropriate way, i.e., observing the culture of individuals, minorities, peoples, and communities, illuminated by gender and life cycle requirements, and should be designed to respect confidentiality and improve people's health status. Finally, quality, that is, health facilities, goods and services should be appropriate from a scientific and medical point of view. If not, they must be of good quality, such as trained health personnel, medicines, and equipment26. The CESCR recommends that States Parties incorporate a gender perspective into their health policies, programs, and research to better promote the health of men and women. A gender perspective approach recognizes the importance of biological and socio-cultural factors in their health. In particular, the elimination of discrimination against women requires the development and implementation of a comprehensive national strategy to promote women's right to health throughout their lives. This should focus on the prevention and treatment of diseases that affect 25 26 Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §11, p.4. Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §12, p.4-6. 123 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS women, as well as policies aimed at providing women with access to affordable, high quality health care, including sexual and reproductive services 27. The CESCR has also identified a right to health specific to indigenous peoples. They are entitled to specific measures to improve their access to health services and care, which must be culturally appropriate, considering preventive care, curative practices, and traditional medicines. It is the duty of the States parties to the ICESCR to provide resources for indigenous peoples to establish, organize and monitor these services so that they may enjoy the highest attainable standard of physical and mental health. They should also protect the medicinal plants, animals, and minerals necessary for the full enjoyment of the health of indigenous peoples. Therefore, the umbilical link between them and the environment is non-negotiable. In carrying out its functions, the Committee notes that in indigenous communities, the health of the individual is connected to the health of society, thus presenting a collective dimension. Consequently, development-related activities that lead to the displacement of indigenous peoples, against their will, from their traditional territories and surroundings, resulting in the loss of their food resources and the disruption of their symbiotic relationship with the land, have a detrimental effect on the health of these indigenous peoples28. The CESCR has repeatedly concluded, and science has demonstrated, that the link between the environment and human beings is unbreakable, and that their futures are inexorably connected and interdependent. This connection is even deeper in the relationship between indigenous peoples and the environment because they have in the environment the entity that welcomes and shelters them, providing everything necessary for their existence with dignity. Respect for nature, for fauna and flora, is essential for human beings to live in balance and harmony with themselves and with their fellow human beings, enjoying good health and wellbeing. enjoying spiritual, physical, and mental health. 27 28 Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §20-21, p.9. Ibidem. Document E/C.12/2000/4, §27, p.11. 124 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 5 GENERAL OBSERVATION NUMBER 25 (2020) ON SCIENCE AND ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS (ARTICLE 15, §§ 1.B, 2, 3 AND 4, ICESCR)29 As of July 2020, the CESCR has adopted 25 general observations. These assist States parties and the community at large to understand the scope and meaning of each of the articles of the ICESCR. They provide guidance to countries, courts of law, administrative bodies and the public about the human rights, fundamental rights, and freedoms that every human being is entitled to enjoy under the Covenant. In their substantiation process, the general observations rely on a rapporteur or corapporteurs, support from the technical secretariat of the Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights (OHCHR), dialogues with other agencies of the UN system, public hearings with civil society partners and interested entities, debates with universities and foundations related to the specific theme. Its last draft version is available to the public on the CESCR website for a reasonable period to receive pertinent comments and suggestions before the Committee approves its final version. General Comment No. 25 (GL25) is a key contribution of the CESCR to the global effort to address Covid-19. Through it, the Committee makes it clear that the right to enjoy the benefits of scientific progress and its applications, article 15, §1, paragraph b of the ICESCR, is in deep connection with the right to health, article 12 of the Covenant30. And this inexorable relationship is built on four pillars. The first one states that scientific progress generates medical advances and applications, such as vaccines, which prevent and treat diseases. In the Committee's understanding, the States parties to the ICESCR should promote scientific research, through financial support or other incentives, creating new medical applications, especially for the most vulnerable (e.g., children, migrants, women, indigenous peoples, refugees, etc.). As stated in article 12, paragraph 2, c of the Covenant, the States parties should give priority to the promotion of scientific progress in order to facilitate better and 29 Adopted by the CESCR at its 67th session, held in Geneva from February 17 to March 6, 2020. Published on April 30, 2020. 30 ONU. ECOSOC. Document E/C.12/GC/25. Observación general num. 25 (2020), relativa a la ciencia y los derechos económicos, sociales y culturales (artículo 15, párrafos 1b), 2, 3 y 4 del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales). 30/04/2020, §67, p.16. 125 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS more effective means, as well as more accessible means, for the prevention and treatment of epidemic, endemic, and other diseases. This understanding is the fruit of repeated constructive dialogues of the CESCR with States parties regarding the right to health and is currently emerging as one of the main lessons learned in the fight against pandemics, and should therefore, in light of a fine interconnection between health, science, and human rights, be applied in the fight against Covid-19. A second basis of understanding builds on the fact that some applications of scientific progress are protected by intellectual property regimes. The CESCR believes that these should not be held to the detriment of the right to health. On the contrary, such regimes should be interpreted and applied to support the duty of countries to protect public health, particularly by promoting universal access to medicines. In this regard, States parties to the ICESCR should refrain from granting disproportionately long patent protection periods for new medicines to allow, within a reasonable time, the production of safe and effective generic medicines for the same diseases31. The third pillar is the duty to make available to all people, without discrimination of any kind, and with special attention to the most vulnerable, the best available applications of the scientific progress needed for the enjoyment of the highest attainable standard of health. Such action should also avail itself of international assistance and cooperation. Finally, as a fourth pillar, it is understood that States parties to the Covenant should make every effort to ensure that drugs and medical treatments are based on scientific experiments and evidence, that the risks arising from them are adequately evaluated, and that patients can give their consent based on clear and transparent information32. The CESCR believes that the principles of transparency and participation are essential for science to be objective and reliable, and not a subject to interests that are not scientific or incompatible with the fundamental principles of human rights and the welfare of society. Countries should harmonize their policies with the best 31 32 Ibidem. Document E/C.12/GC/25, §69, p.17. Ibidem. Document E/C.12/GC/25, §70-71, p.17. 126 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS available scientific knowledge, fostering trust and support throughout society for the available scientific knowledge33. As previously alerted, it is in times like these, of intense and worrisome vulnerability of public health due to pandemic consequences, that the actions of institutions and political agents are chosen between two very clear and distinct paths regarding the transparency of information34: ...one centered on the production of reliable data gathered scientifically, used by decision makers, and made available to the public, recognized as active transparency. And another suppressing or restricting the production, decision-making use, or public access to information, dubbed refuted transparency. Taking an attitude of active transparency will require the production and sincere search for credible data, its use in decision making, and honest disclosure to the population, subjecting public authorities to the support, rejection, and criticism inherent in the democratic process. The other path is to adopt political and institutional decisions based on ignorance and permeated by mechanisms of low democratic scrutiny. The choice is simple and will involve lives and deaths; the difference will only be in the future numbers of a reality that is implacable to a greater or lesser extent... Active transparency is what international human rights law prescribes for dealing with pandemics in general, including Covid-19. 6 THE CORONAVIRUS PANDEMIC DECLARATION (COVID-19) AND ECONOMIC, SOCIAL AND CULTURAL RIGHTS35 The CESCR calls upon States parties to the ICESCR to enhance and improve based on timely and transparent information, early warning mechanisms for emerging epidemics capable of becoming pandemics. Such a call was made within the framework of the Committee Declaration on the Coronavirus pandemic published on April 17, 2020, through which it is highlighted that pandemic are a clear example of the need for international scientific cooperation in the face of 33 Ibidem. Document E/C.12/GC/25, §10-11, p.3. LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro e RESENDE, Ranieri Lima. Pandemia de coronavírus: um teste para a transparência de instituições e agentes políticos in O Estado de São Paulo, São Paulo, 30/3/2020, política, blogs Fausto Macedo. Disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/faustomacedo/pandemia-decoronavirus-um-teste-para-a-transparencia-de-instituicoes-e-agentes-politicos/ 35 Approved by the CESCR on April 6, 2020. 34 127 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS transnational threats, since a local epidemic can quickly turn into a pandemic of devastating consequences if adequate measures are not adopted 36. These appropriate measures must be taken urgently and based on the best scientific knowledge to protect public health. If it is necessary to limit any of the rights contained in the ICESCR, the measures must be reasonable, proportionate, and taken exclusively to combat the Covid-19 public health crisis. They should also be withdrawn as soon as they are no longer necessary for that purpose. Otherwise, access to justice and effective legal remedies must be fully guaranteed, especially for the most vulnerable and marginalized groups37. The Committee reminds States parties that indigenous peoples, refugees and people living in conflict-affected areas are especially vulnerable during the Covid-19 pandemic. These are groups that often lack adequate access to water, soap, or disinfectant. In addition, they cannot access the infrastructure to test for the virus. They have little or no access to health services and information, and their populations have very high percentages of chronic illnesses and various health disorders, making them a high-risk group for Covid-19 infection38. As if this were not enough, this pandemic exacerbates gender inequalities as the responsibilities for the care of children, the family, the elderly, and the home fall disproportionately on women. Women, in circumstances of confinement or social isolation, are more likely to experience domestic violence. States parties should take the necessary measures to combat all types of gender-based violence39. Among the CESCR recommendations for combating the Covid-19 pandemic is also the need to adopt appropriate regulatory measures so that health care resources in both the public and private sectors are mobilized and shared across the population to ensure a comprehensive and coordinated response to the crisis. All health care workers must have easy access to the appropriate protective clothing and 36 ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/1. Declaración sobre la pandemia de enfermedad por coronavirus (COVID-19) y los derechos económicos, sociales y culturales. Declaración del Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 17/04/2020, §23, p.5. 37 Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §9, p.3. 38 Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §23, p.5. 39 Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §8, p.3. 128 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS materials to prevent contagion. It is essential that decision makers in States Parties consult and pay due regard to the recommendations of these professionals in developing their actions40. Special and specific measures of an urgent nature should be taken to protect and mitigate the effects of the pandemic on vulnerable groups such as the elderly, persons with disabilities, refugees, conflict-affected populations, women, indigenous peoples, as well as communities and groups subjected to discrimination and structural disadvantage. Such measures could include, among others, providing water and soap to communities in need; initiating specific programs to protect the jobs, wages and pensions of all workers, including undocumented migrant workers; imposing a moratorium on forced evictions or housing foreclosures during a pandemic; adopting specially tailored measures to protect the health and livelihoods of vulnerable minority groups such as indigenous peoples; and ensuring affordable and equitable access for all to Internet services for educational purposes 41. States parties should also strive to ensure that all workers are protected from the risks of infection in the workplace. To this end, they should take appropriate measures to ensure that employees minimize the risks of infection in accordance with best practices in public health standards. Similarly, to protect the jobs, pensions, and other social benefits of workers during a pandemic, and even to mitigate its economic effects, States Parties should take immediate measures such as wage subsidies, tax breaks, and the establishment of supplemental social security and wage protection programs42. In a pandemic scenario, speculation with food, hygiene products, medicines, and any other essential product should be avoided. To reduce the risk of transmission of the Coronavirus, as well as to protect the population from the danger posed by misinformation, it is essential to have accurate and accessible information about the Covid-19 pandemic43. 40 Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §13, p.3. Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §15, p.4. Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §16, p.4. 43 Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §17-18, p.4. 41 42 129 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS For the CESCR, Covid-19 highlighted the importance of investing adequately in public health systems, comprehensive social protection programs, decent work, housing, food, water and sanitation systems, as well as institutions to promote gender equality. Finally, the Committee urges States parties to the ICESCR to ensure that the extraordinary mobilization of resources to confront the Covenant's pandemic provides the necessary impetus to mobilize long-term resources for the full and equal enjoyment of the economic, social and cultural rights enshrined in the Covenant44. 7 DECLARATION ON UNIVERSAL AND EQUITABLE ACCESS TO COVID-19 VACCINES & DECLARATION ON UNIVERSAL AFFORDABLE VACCINATION FOR COVID19, INTERNATIONAL COOPERATION AND INTELLECTUAL PROPERTY The CESCR adopted on November 27, 2020, the Declaration on Universal and Equitable Access to Covid-19 Vaccines. It illuminates, from a human rights perspective, the main obligations of States parties to the ICESCR to address the current pandemic considering scientifically developed vaccines. Every human being has the right to the highest attainable standard of physical and mental health. This includes access to immunization programs against infectious diseases. Likewise, people have the right to enjoy the benefits of scientific progress, which includes access to an effective and safe vaccine developed from the best scientific knowledge. In pandemics, such as the one caused by the Coronavirus, it is science that should guide all knowledge capable of fighting them. There are several scientific reasons (of an exact, human, medical and social nature) for every human being to be vaccinated. Among these, not exhausting all the benefits and advantages of vaccination, it is underlined that statistically vaccines save lives and protect health; protect the vulnerable and future generations; protect and support health services; save time, money, and various resources; and, in the age of fake news, prevent the spread of fake news. 44 Ibidem. Document E/C.12/2020/1, §24-25, p.6. 130 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS According to the CESCR, access to vaccines for all people should be guaranteed by countries to the maximum of their available resources and according to the necessary measures for universal vaccination and without any discrimination. The duty to immunize against major infectious diseases and to prevent and control epidemics is a priority obligation because of the right to health. Therefore, in the current pandemic scenario, countries must give top priority to making available vaccines that can contribute to the fight against Covid-19. This access is a human right and must be facilitated by countries, especially when they are parties to the ICESCR. These countries have the obligation to provide reliable, transparent, and scientifically sound information for citizens to decide whether to be vaccinated. In this sense, all administrative and bureaucratic obstacles must be overcome in favor of fast and effective public policies for universal and equitable access to vaccines 45. The right to health requires countries to make health care facilities, services, and goods, including vaccines, accessible, acceptable, and of good quality. Vaccines must not only be produced and made available, but they must also, in accordance with the principle of equality and non-discrimination, be accessible to all: reasons such as religion, nationality, sexual orientation, gender, race, ethnic identity, age, disability, migratory status, social origin, poverty, or any other reason must not be impediments. On the contrary, physical accessibility to vaccines, especially for marginalized and disadvantaged groups, through state or private channels, notably by strengthening the capacity for their delivery and distribution, must be guaranteed. Otherwise, the free provision of vaccines, especially for people on low incomes and in poverty, must be ensured. Moreover, especially in this digital and fake news era, access to relevant information, through credible scientific information about the safety and efficacy of different vaccines, enhanced by public campaigns able to protect people against false, misleading, or pseudoscientific information, must be robustly guaranteed. Finally, no one should be left behind if they decide to get a vaccine46. 45 ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/2. Statement on universal and equitable access to vaccines for COVID-19 by the Committee on Economic, Social and Cultural Rights of 27/11/2020, §1-3, p.1-2. 46 Ibidem. Document E/C.12/2020/2, §4, p.2. 131 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS The CESCR further recalls that many vaccines on the verge of approval have been developed by private companies and may be subject to the intellectual property regime. These companies expect to make a profit, and it is only fair that they receive reasonable compensation for their investment. However, intellectual property is a social product with a social function, therefore, the law can subordinate its use and enjoyment to the social interest. Consequently, countries have a duty to prevent intellectual property and patent law regimes from undermining the enjoyment of human rights. Thus, it is also incumbent upon business entities to refrain from invoking intellectual property rights that are incompatible with the human right of access to a safe and effective Covid-19 vaccine. Countries have an obligation to ensure universal and equitable access to vaccines as soon as possible by all means necessary, including through international assistance and cooperation 47. Prioritization of access to vaccines should be supported by all and should be organized through transparent and participatory mechanisms that ensure global distribution based on actual medical needs and scientific public health considerations. Every human being who so desires can and should be vaccinated. This is crucial for the control of the Covid-19 pandemic. And the Heads of States and Governments, especially of those countries that are signatories to the ICESCR, must ensure that this is the case. In the wake of the previous premises, the CESCR adopted on March 12, 2021, the Declaration on Universal Affordable Vaccination for COVID-19, International Cooperation and Intellectual Property. For the Committee, the intellectual property regime must be interpreted and applied in a way that supports the duty of States Parties to the ICESCR to protect public health. The right to health requires countries to make health facilities, services, and goods, including vaccines, accessible, acceptable and of good quality. Vaccines must be produced and made available considering the principle of equality and non-discrimination, i.e., they must be accessible to all, thus including migrants, and without obstacles. In addition, physical accessibility to vaccines, especially for marginalized and disadvantaged groups, must be ensured through state or private channels, especially by 47 Ibidem. Document E/C.12/2020/2, §6-11, p.2-3. 132 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS strengthening delivery and distribution capacity. The obligation of countries to provide access to vaccines is a reality in international human rights law; however, in the face of obstacles capable of affecting such state compliance, there are viable private avenues that can be pursued considering the principle of subsidiarity in human rights and states should not only facilitate but also guarantee them. Similarly, ensuring that vaccines are free of charge is a duty, especially for people with low incomes areas and in poverty. And particularly in this digital and fake news era, it reiterates the need to access relevant and scientifically proven information on the importance of vaccines. Finally, it underlines the essentiality of international cooperation for the success of all these actions 48. 8 FINAL CONSIDERATIONS The existence of a true protection regime for the human right to health derived from the ICESCR is a reality. A set of solid norms (the ICESCR and its Protocol), institutions (UN, CESCR and States parties), recognized principles (good faith, equality and non-discrimination, pro homine, complementarity, indivisibility and universality of human rights), documents officially recognized by the States parties (concluding observations, general observations, letters and declarations), capable of generating a standard of conduct in the States parties to the ICESCR and contributing to the affirmation of the human dignity of the people under their jurisdiction, can be observed. The CESCR directed this regime to contribute to the confrontation of the Coronavirus pandemic. Such contribution should be accompanied by joint action among countries, international organizations, and individuals to stop or mitigate the effects of Covid-19. The regime that emerged from the ICESCR can illuminate the path to be followed by these central actors of international relations and contemporary subjects of public international law. Finally, when it comes to the affirmation of human dignity in international law, the fate of each person is inexorably connected to that of others, as well as to that of the planet. Especially when the threat is universal because of a pandemic caused by a virus. 48 ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2021/1. Statement on universal affordable vaccination for COVID-19, international cooperation and intellectual property by the Committee on Economic, Social and Cultural Rights of 12/03/2021. 133 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Therefore, it is primarily the responsibility of the States Parties to the ICESCR to adopt public policies, administrative measures, and legislation oriented to the effective enjoyment of the rights and duties contained in the ICESCR. They are the ones who, in good faith, have made this international commitment. The CESCR is the main and final interpreter of the ICESCR. It is the one empowered by the Covenant to explain and state the scope of the content of its articles. Therefore, it is the one that is concerned with the fulfillment of the articles by the States parties, recommending administrative, executive, judicial, and legislative actions of all kinds, without any discrimination, so that they are in line with the most up-to-date standards of international human rights law regarding economic, social, and cultural rights. Specifically, regarding the Covid-19 pandemic, the Committee stated that the States parties to the ICESCR have an obligation to adopt measures to prevent, or at least mitigate, the effects of the Coronavirus on the enjoyment of economic, social and cultural rights, especially on the right to health of the most vulnerable groups in society. Finally, no one can be left behind. To fulfill the obligations and rights contained in the ICESCR, States parties must adopt a series of measures, including urgent ones, based on the best scientific knowledge available for the protection of public health, thereby fostering confidence in and support for the available scientific knowledge throughout society. Moreover, active transparency should govern the information shared by States Parties with society at large. International cooperation must also be enshrined as an important pillar in the fight against Covid-19. This implies sharing research, professionals, medicines, and medical equipment, as well as best practices for halting the Coronavirus. It also coordinates the measures to be adopted to reduce the economic and social effects of the crisis generated by the pandemic, assuming joint efforts by all countries for an effective and equitable economic recovery. Universal and free access to vaccines for all people who want them faces challenges of all kinds, whether in countries with more resources or in those experiencing shortages. Public officials must do their utmost to ensure that states, especially those that are parties to the ICESCR, can fulfill their obligations to 134 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS facilitate such access. Otherwise, the civilizational and generational duty imposes on every human being to contribute to this collective health effort also individually. In this way, while vaccine immunization does not reach the entire world population, each person must be attentive, spreading and cooperating with the less fortunate ones, as to the practices of the measures prescribed by science to face Covid-19, such as social distancing, epidemiological surveillance, the use of masks, body hygiene, and the non-proliferation of false information or fake news. Finally, the present and the future of each of us are inexorably connected. Therefore, public officials, from any of the three powers of the Republic and regardless of the administrative spheres of their mandates, must guide their actions, decisions, and manifestations to combat the pandemic in line with the best scientific knowledge available (in this area, immediate vaccination is the main challenge) and in light of the State's commitments on human rights, especially, fully observing the protection regime of the right to health emanating from the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights. BIBLIOGRAPHY CESCR. Observação Geral nº 3. ONU. Instrumentos Internacionales de Derechos Humanos. Documento HRI/GEN/1/Rev.9 (Vol. I), de 27 de maio de 2008. LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro, La construcción jurisprudencial de los Sistemas Europeo e Interamericano de Protección de los Derechos Humanos en materia de derechos económicos, sociales y culturales, Núria Fabris Editora: Porto Alegre, 2009. LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. El rol de la sociedad civil organizada para el fortalecimiento de la protección de los derechos humanos en el siglo XXI: un enfoque especial sobre los DESC in Revista del Instituto Interamericano de Derechos Humanos. San José: IIDH, nº 51. LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. Os 50 anos dos dois pactos internacionais da ONU: um olhar especial sobre o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais em CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto; LEAL, César Barros e LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro (Coord.). O cinquentenário dos dois pactos de direitos humanos da ONU. Fortaleza: IBDH, p. 259-278, 2016. LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. O regime de proteção aos migrantes, refugiados e solicitantes de refúgio do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e 135 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Culturais das Nações Unidas em Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana (REMHU). Brasília: CSEM, vol. 27, nº 57, dezembro de 2019. LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro e RESENDE, Ranieri Lima. Pandemia de coronavírus: um teste para a transparência de instituições e agentes políticos in O Estado de São Paulo, São Paulo, 30/3/2020, política, blogs Fausto Macedo. LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. O Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas e o enfrentamento à Covid-19 in Review of InterAmerican Institute of Human Rights. Costa Rica: IIDH, 2021, nº 72. ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2000/4. Observación general num. 14 (2000) sobre el derecho al disfrute del más alto nível posible de salud (artículo 12 del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociais y Culturales) de 11/05/2000. ONU. ECOSOC. Document E/C.12/GC/20. Observación general num. 20 (2009). La no discriminación y los derechos económicos, sociales y culturales (artículo 2, párrafo 2 del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales) de 23/11/2009. ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2019/1. La promesa de no dejar a nadie atrás: el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, y la Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible - Declaración del Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 05/04/2019. ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/1. Declaración sobre la pandemia de enfermedad por coronavirus (COVID-19) y los derechos económicos, sociales y culturales. Declaración del Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales de 17/04/2020. ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2020/2. Statement on universal and equitable access to vaccines for COVID-19 by the Committee on Economic, Social and Cultural Rights of 27/11/2020. ONU. ECOSOC. Document E/C.12/2021/1. Statement on universal affordable vaccination for COVID-19, international cooperation and intellectual property by the Committee on Economic, Social and Cultural Rights of 12/03/2021. 136 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA NO PRIMEIRO ANO DE GESTÃO DA PANDEMIA DE COVID-19: QUEBRA DOS PADRÕES TRADICIONAIS DA DIPLOMACIA NACIONAL Elisa de Sousa Ribeiro1 André Mendes Pini2 Júlio Edstron S. Santos3 RESUMO O presente artigo tem como finalidade apresentar a forma como a diplomacia brasileira abordou os temas ligados à pandemia de Covid-19 perante as Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Mundial do Comércio. Em posicionamentos paradigmáticos, o país quebrou padrões tradicionais de sua política externa em benefício de uma visão ideológica voltada a um suposto liberalismo (mais econômico que político) mas que refletiu, na realidade, concepções ideológicas de ultradireita, expressas por meio, sobretudo, do Ministro Ernesto Araújo e alinhadas ao governo Bolsonaro. Citam-se os exemplos da oposição à quebra de patentes da vacina, na OMC; da defesa à liberdade de ir e vir e de trabalho em oposição ao isolamento social, ao confinamento e o direito à saúde, na ONU; e das diversas dissidências com as orientações da OMS, além da decisão de não requisitar a integridade de sua cota no mecanismo Covax Facility. Ressalta-se, assim, as contradições inerentes a concepções da PEB bolsonarista, de caráter 1 2 3 Doutora e Mestre em Ciências Sociais pelo Centro de Pesquisa e Pós-Graduação Sobre as Américas da Universidade de Brasília (CEPPAC/UnB). Mestre em Direito Internacional e Relações Exteriores e Internacionais pelo Instituto Europeu Campus Stellae (Espanha). Especialista em Relações Internacionais e em Direito Internacional pela Faculdade Damásio. Bacharel em Direito pelo UniCEUB. Advogada internacionalista Pesquisadora do Grupo de Estudos do Mercosul (2008-atual). Membro do Grupo de Estudos do Mercosul (2005-atual). Pesquisadora do Geo$mundo - Geografia Econômica Mundial da UTF/PR (2016-atual). Membro da Academia Brasileira de Direito Internacional (ABDI). Doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Mestre e Especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). Professor Substituto do curso de Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) Doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB. Mestre em Direito Internacional Econômico pela UCB/DF. Diretor Geral do Instituto de Contas do Tribunal de Contas do Tocantins. Professor do IDASP e Uninassau em Palmas. Membro dos grupos de pesquisa Núcleo de Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor (NEPATS) da UCB/DF, Políticas Públicas e Juspositivismo, Jusmoralismo e Justiça Política do UNICEUB. 137 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS nacionalista e anti-globalista, em meio a uma pandemia mundial que demandou esforços multilaterais, gerando constrangimento internacional e dificuldades na cooperação em prol do combate à pandemia do coronavírus. Palavras-chave: política externa brasileira, discurso, pandemia, covid-19, soberania, Organização das Nações Unidas, Organização Mundial da Saúde. 1 INTRODUÇÃO Neste artigo é abordada a forma como a gestão do Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo lidou com a pandemia Covid-19. O foco da análise não é toda a sua atuação, mas sim os pontos de ruptura com os tradicionais paradigmas da diplomacia brasileira. Para tanto, foi realizado um levantamento documental, com as Notas à Imprensa emitidas pelo Itamaraty entre março de 2020 e março de 2021, os discursos proferidos pelo Ministro de Estado, seus artigos, manifestações diante da mídia e excertos de seu blog pessoal, intitulado “Metapolítica 17 Contra o Globalismo”. Este trabalho tem como foco os discursos e as ações brasileiras – sob a gestão de Ernesto Araújo no MRE - relacionados às Nações Unidas, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Mundial do Comércio, haja vista que em posicionamentos paradigmáticos, o país quebrou padrões tradicionais de sua política externa em benefício de uma visão ideológica de ultradireita e uma orientação voltada à prevalência de um liberalismo alinhado aos interesses dos Estados Unidos, de matriz mais econômica do que política. Dentre os principais pontos estão a oposição à quebra de patentes da vacina para Covid-19, na OMC; a defesa à liberdade de ir e vir e de trabalho em oposição às medidas de isolamento social, ao confinamento e o direito à saúde, na ONU; e as diversas dissidências com as orientações da OMS, além da decisão de não requisitar a integridade de sua cota no mecanismo Covax Facility. Com vistas a introduzir a base ideológica sobre a qual se assentam as discussões acerca das ações governamentais no âmbito externo, é promovida uma revisão teórica sobre os conceitos de soberania, nacionalismo e cooperação internacional. Ademais, são apresentadas as fundamentações do discurso de Ernesto Araújo e suas origens, bem como a conceitualização de termos utilizados pelo chanceler, como “Globalismo”. 138 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Nesse sentido, destaca-se que poucos temas vêm sendo tão debatidos e revisitados atualmente, tanto no plano interno quanto no internacional, como a soberania estatal. Isso se dá, em especial por causa das suas repercussões, seja por força de uma visão clássica, como a de Thomas Hobbes (2015); contemporânea, identificada por Hans Kelsen (1989), ou crítica, tal como proposto por Zigmunt Bauman (2001). Parcela relevante das discussões em torno da soberania vem sendo suscitadas especialmente por aqueles que pregam a sua defesa face ao que entendem ser uma ameaça à autonomia e aos poderes do Estado. Essa ameaça estaria em redes transnacionais; organismos internacionais; países altamente conectados a redes e cadeias globalizadas de produção e distribuição; instituições financeiras internacionais e agrupamentos supranacionais. O Brasil não vem se furtando a essa tendência de defesa de uma visão diferente da soberania, principalmente capitaneada por alguns grupos de direita e ultradireita. Cabe, portanto, antes de apresentar as consequências desse pensamento na política externa nacional em face dos desafios globais trazidos pela pandemia de covid-19, tecer considerações teóricas sobre o conceito de soberania e das implicações da criação de organismos internacionais aos poderes do Estado. 2 PROBLEMATIZANDO GLOBALIZAÇÃO A SOBERANIA E A As duas lições propedêuticas sobre a soberania estatal são que essa nasce do reconhecimento jurídico emanado pelos tratados internacionais conhecidos como Paz de Vestefália de 1648, documento que consolidou o fim da Guerra dos Trinta Anos, e que a aceitação da soberania irradia efeitos no plano internacional com a ideia de igualdade soberana e da supremacia dos órgãos estatais na ordem jurídica interna. Pode-se afirmar que a ideia de soberania estatal clássica teria alcançado seu auge na primeira metade do século XX, isto porque além do seu raio de atuação jurídica, ocorreu o recrudescimento de movimentos ultranacionalistas que reivindicaram desde a manutenção de colônias ultramarinas, o reconhecimento de pretensões territoriais e até a imposição de supremacia racial – que infelizmente apresenta efeitos deletérios em nossa sociedade até os dias atuais. Invariavelmente 139 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS essas ambições causaram conflitos armados em diversas escalas, culminando na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais. O severo problema em se afirmar que o apogeu da soberania estatal ocorreu nesse período é que na África, América e Ásia as populações presenciaram atrocidades por meio de apropriação, expropriação e violências de todos os tipos, muito por causa de uma mentalidade colonizadora, própria de seu tempo. A soberania, aliada ao ultranacionalismo, era utilizada como justificativa para a barbárie e a violação dos direitos humanos mais básicos. Ao mesmo passo, com os horrores presenciados na Segunda Guerra Mundial, sobretudo, o holocausto imposto a judeus, ciganos, homoafetivos e outros grupos sociais, a comunidade internacional se viu obrigada a revisitar os limites de atuação interna e internacional dos países, mais uma vez discutindo as fronteiras da soberania. Com essa mudança paradigmática os extremismos do ultranacionalismo, linhas de pensamentos excludentes e da própria atuação do Estado estão em constante adaptações. Os países já não são os únicos sujeitos de Direito Internacional e as vezes há de se ponderar que “o Estado ficou muito grande para as pequenas coisas e pequeno para as grandes coisas” (FERRAJOLI, 2002, p. 85). Em apertada síntese, após a Segunda Guerra Mundial a humanidade continuou a presenciar horrores impostos pelos agentes estatais a pessoas ou grupos, porém a atuação dos países foi autolimitada pela assinatura e ratificação de tratados, ou ainda pelo reconhecimento de aplicação de costumes internacionais 4. Aliado aos avanços – e retrocessos – democráticos vivenciados desde então, houve um constante progresso dos meios de comunicação e de transportes, o que vem possibilitando movimentos denominados de globalização, tal como detalhado por Arnaldo Godoy (2005). Também há de se perceber, ademais, que, na segunda metade do século XX, houve um constante incentivo aos movimentos de integração entre os países, sob diversas matrizes, como é o caso da União Europeia e do Mercosul, blocos regionais com configurações próprias que, em maior ou menor medida envolvem cessão de exercício de competências soberanas (Cf. RIBEIRO, 2010). Também há de se perceber tais processos de integração envolvem o comércio, trânsito de pessoas e a 4 A Carta da ONU assinala, em suma, o nascimento de um novo direito internacional e o fim do velho paradigma – o modelo Vestfália -. Que afirmara três séculos antes com o término de outra guerra europeia dos trinta anos. Tal carta equivale a um verdadeiro contrato social internacional. (FERRAJOLI, 2002, p. 41). 140 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS proteção jurídica e social das pessoas. Um ponto muitas vezes não mencionado, é que, além das reconhecidas vantagens, tais como o incremento no comércio, expansão do mercado consumidor, aumento da economia de escala e ganho de relevância geopolítica, há também, na integração regional, a acomodação de diversos problemas, que se antes se restringiam às esferas nacionais – ou que sequer existiam antes –, passam a tomar um contorno mais amplo, na medida em que diferentes países se agrupam. Isso demanda por vezes uma resposta concertada e coordenada dos Estados, algo que exige um esforço diplomático não raramente complexo. Não somente os organismos internacionais de integração comercial, mas também os de cooperação internacional, de concertação política e de natureza técnica se veem diante dos mesmos desafios, na medida em que a resposta a algum revés dependa de uma solução comum entre seus membros. Esse foi o caso da pandemia de Covid-19, uma doença que nasceu em uma localidade, mas que, com os movimentos globalizantes, alcançou todo o mundo, impactando toda a sociedade internacional. Como efeitos nefastos da pandemia mundial, verificou-se o aumentou do medo, da insegurança, do protecionismo e, infelizmente, também das inverdades disseminadas por grupos com interesses específicos e pouco republicanos. É apregoada nas redes sociais a extinção de foros internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização das Nações Unidas (ONU), tidos por esses grupos como contrários aos interesses e à autonomia nacionais, mantenedores de uma ordem supostamente “globalista” ou de interesses escusos. Problemas causados – ou amplificados – pela globalização passaram a ter uma maior ressonância no cotidiano dos indivíduos por meio das redes sociais e de aplicativos de comunicação pela internet. Situações locais passaram a ganhar maior visibilidade e os descontentamentos, por motivos mais diversos, alcançaram horizontes longínquos. A situação da reverberação dos problemas por meio da internet é tão grave que já vem sendo colocada como um risco a própria democracia ocidental, como demonstraram Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (2020), bem como há a preocupação com disseminação de fake News, pós-verdade e de imposição de um “Estado pós-democrático”. 141 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Com esse ambiente complexo, há um risco de que as atuações dos Estado Nacionais voltem a patamares presenciados no início do século XX – ou seja, de nacionalismo exacerbado e de defesa de uma soberania absoluta –, isto porque democracias consolidadas aceitaram flagrantes retrocessos em suas ações, principalmente sobre temas capazes de causar danos irreparáveis à própria humanidade. Especificamente no Brasil esse contexto não é muito diferente. No país vêm se instaurando movimentos que advogam em prol do ultranacionalismo, de posições políticas extremadas e da atuação estatal deficitária, seja em ações governamentais internas, como no caso da proteção ao direito à saúde, e também no contexto das políticas públicas internacionais de apoio no combate à pandemia de Covid-19, tais quais demonstram as análises apresentadas mais adiante. Para que sejam analisadas as ações adotadas pela gestão do Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, será promovida, antes, uma exposição da finalidade dos organismos internacionais e da cooperação, de acordo com a Teoria Institucionalista. 3 O NACIONALISMO, A SOBERANIA E OS ORGANISMOS INTERNACIONAIS A formação de entidades internacionais pode ser entendida como o ápice da correlação identitária entre um grupo de Estados. Elas seriam criadas a partir do entendimento de que a cooperação diminui a probabilidade de conflito entre os membros congregados, gera um sistema de apoio em caso de agressões externas – como controvérsias, conflitos ou até mesmo uma pandemia – e, em última instância, viabiliza a sobrevivência do próprio Estado. Esse ambiente, por meio de uma relação progressiva de contato, cria um espaço propício para a negociação. A constituição desses processos, ocorre em um marco internacional liberal, no qual os Estados cooperam em um sistema aberto e baseado em regras (IKENBERRY, 2010, p. 19). É possível compartimentalizar a ordem liberal do século XX em cinco dimensões: âmbito participativo; independência soberana; igualdade soberana; Estado de Direito; e amplitude e profundidade da política (IKENBERRY, 2010, p. 142 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 20). A independência soberana diz respeito ao grau de ingerência nos assuntos internos do Estado, no sentido de impor restrições a sua autoridade dentro do seu próprio território; a igualdade soberana é a relação horizontal entre os Estados dentro da ordem liberal; o Estado de Direito diz respeito à conformidade com as regras e instituições adotadas; e a amplitude e profundidade das políticas podem variar de acordo com o estabelecido pelo conjunto de Estados (IKENBERRY, 2010, p. 2022). Percebe-se que “A crescente interdependência dos Estados também está criando demandas crescentes para normas e instituições de governança” e que a forma de se conciliar as visões liberais doméstica e internacional (IKENBERRY, 2010, p. 37, tradução nossa) encontra-se no modelo de Westfalia, na medida em que Estados podem ter total soberania jurídica westfaliana e interagir com outros Estados nessas bases, ou acordos e instituições podem ser constituídas de forma a envolver a partilha e a diminuição da soberania estatal: Estados podem ceder autoridade soberana para instituições supranacionais ou reduzir a autonomia da tomada de decisão delas (das instituições) por meio de compromissos com outros Estados, ou eles podem reter seus direitos jurídicos e políticos dentro de estruturas mais abrangentes de cooperação interestatal. (IKENBERRY, 2010, p. 20-21, tradução nossa) A justificativa para que os Estados busquem agrupar-se e renunciar ao exercício de parte das suas competências soberanas para exercê-la de forma compartilhada encontra-se na autonomia de ação dos Estados no ambiente internacional (KEOHANE, 2002, p. 64). No entanto, devido à diversidade de interesses nacionais em jogo, não é possível prever se os Estados agirão de forma favorável aos interesses uns dos outros ou mesmo se manterão seus compromissos. Ao mesmo tempo em que são entidades independentes, os Estados vivem em um sistema de interdependência em relação uns aos outros. Essa interdependência se consubstancia nos diferentes interesses internos e externos aos Estados que, não raramente, são conflitantes (KEOHANE, 2002. p. 73). Para que seja possível compatibilizar esses interesses, é necessário que, mais do que harmonia, haja cooperação entre eles. Na harmonia, os atores agem segundo seus interesses, sem levar em conta os interesses dos demais, ao passo que na cooperação, os atores buscam coordenar suas políticas (KEOHANE, 2005, p. 51-52). A cooperação é essencial em momentos como o vivenciado desde 2020, no qual uma pandemia assolou todo o mundo, haja vista que a solução para o problema se encontra em uma 143 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS resposta conjunta e concertada dos diferentes países. Para tanto, no ano de 2020, os Estados passaram a buscar diferentes formas de cooperação. Sejam elas técnicas, sejam elas políticas. A cooperação pode se dar mediante delegação ou coordenação. A coordenação pressupõe uma confluência de ações em determinado sentido, ao passo que a delegação demanda compartilhamento de competências. Os Estados possuem diversos motivos para delegar, dentre eles, especialização e conhecimento especializado possuído pelos agentes; presença de externalidades políticas que afetam muitos Estados; paradoxos da tomada de decisão coletiva que podem ser resolvidos através da concessão de poder e adoção de uma agenda para os agentes; resolução de litígios entre Estados; reforço da credibilidade da política cedendo autoridade para agentes com preferências mais extremas; e locking in policy por meio da criação de uma agência autônoma (LAKE; MCCUBBINS, 2006, p. 342). Para justificar a delegação, pode-se, ainda, remontar ao conceito de anarquia (Cf. HAWKINS, 2006, p.4-5). A delegação a um organismo internacional pode trazer três benefícios: gestão de externalidades políticas; facilitação da tomada de decisão coletiva; resolução de controvérsias; reforço da credibilidade; e criação de tendências políticas (HAWKINS, 2006, p. 13). Esse último ponto é um importante fator da delegação, haja vista que a incerteza política intrínseca à arena internacional pode ser mitigada ao se estabelecerem padrões e vieses políticos (HAWKINS, 2006, p. 19). Quanto maiores os benefícios da delegação, mais os Estados estão propensos a delegar (HAWKINS, 2006, p. 13). Os benefícios da delegação, bem como a probabilidade de que ela ocorra, são afetados por dois fatores: “heterogeneidade de preferências” e balança de poderes. (HAWKINS, 2006, p. 13). Se as preferências dos Estados são muito díspares, o incentivo para que eles deleguem são menores, pois o resultado das decisões tem uma maior probabilidade de não ser satisfatório. No sentido contrário, se as preferências são homogêneas, haverá maior interesse no processo, especialmente porque a especialização de foros também traz ganhos como a previsibilidade (HAWKINS, 2006, p. 13). Tem-se como exemplo, a Organização Mundial da Saúde que, durante todo o ano de 2020 direcionou sua expertise e seus esforços no sentido de buscar uma solução conjunta entre os Estados para o combate 144 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS à Covid-19, colocando ao seu dispor médicos e cientistas, bem como adotando diretrizes que buscassem harmonizar os esforços multilaterais5. 4 INSTITUIÇÕES E REGIMES INTERNACIONAIS A forma como os Estados interagem para formar instâncias internacionais e como são seus desenhos institucionais afeta o padrão das negociações realizadas em seu âmbito. Apesar da oposição entre o Realismo, Institucionalismo e Construtivismo no que tange a esse assunto, optou-se neste artigo por abandonar as delimitações entre as diferentes correntes e focar nos argumentos apresentados pelos principais autores que as representam, pois eles podem ser complementares, conforme asseveram Krasner e Keohane (KEOHANE, 2013, p. 28). A necessidade de exercer poder é intrínseca à própria existência do Estado. Em um sistema com diversos Estados, busca-se balancear ou sobrepor seu poder com relação ao do outro. Uma definição de poder é “[...] a habilidade de levar outros a fazerem o que eles não fariam de outra maneira” (DAHL Apud KEOHANE, 2013, p. 29, tradução nossa). Ele possui três faces: usar recursos como incentivos positivos ou negativos; afetar a agenda de tomada de decisões; afetar o que as pessoas querem e acreditam. O exercício dessas faces não exige o uso do poder coercitivo, mas sim a indução (KEOHANE, 2013, p. 29). Em uma arena internacional sem coalizões, o uso do soft power se dá de forma dispersa em diferentes âmbitos de interesse do Estado. No entanto, quando Estados se unem para cooperar e delegar poderes a um ente, a forma de exercício do poder se dá pelo desenho das instituições. Nesse contexto, são importantes os conceitos de: instituições; regimes; regimes internacionais; organizações internacionais; convenções. Instituições podem ser definidas como “conjuntos persistentes e conectados de regras (formais e informais) que prescrevem papéis comportamentais, restringem atividades e moldam expectativas” (KEOHANE, 1989, p. 03, tradução nossa). Por sua vez, regimes são definidos por Keohane como “instituições com regras específicas, estabelecidas por governos, que pertencem a conjuntos particulares de temas nas relações internacionais” (KEOHANE, 1989, p. 04, tradução nossa); por Krasner como “[...] 5 Pode-se acompanhar os relatórios no link https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus2019 145 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS princípios, normas, regras e procedimentos de tomada de decisão em torno dos quais as expectativas dos atores convergem” (FINNEMORE; GOLDSTEIN, 2013, p. 21, tradução nossa) e por John Ruggie (Apud KEOHANE, 2005, p. 57, tradução nossa) como “um conjunto de expectativas mútuas, regras e regulamentações, planos, energias organizacionais e compromissos financeiros, os quais foram aceitos por um grupo de Estados”. O conceito de regime abarca quatro componentes: princípios; normas; regras; e procedimentos de tomada de decisão (KEOHANE, 2005, p. 59). Esses quatro conceitos relacionam-se com as ações e comportamentos das entidades internacionais, uma vez que delimitam o âmbito de atuação dos Estados, permitindo e proibindo determinados comportamentos (KEOHANE, 2005, p. 59). Princípios são normas, regras e procedimentos vistos em um contexto único, de prescrições comportamentais gerais. A diferença entre normas e regras é bastante tênue, haja vista que regras indicam direitos e obrigações de forma mais pormenorizada, ao passo que as normas são projeções de legitimidade e ilegitimidade a respeito do comportamento dos membros de determinado regime, definindo, ademais, responsabilidades e obrigações em termos gerais. Apesar de as regras serem mais específicas – ou talvez, precisamente por isso –, elas são mais fáceis de alterar do que normas ou princípios (KEOHANE, 2005, p. 58-59). No âmbito da Organização das Nações Unidas, por exemplo, existem regimes em diferentes matérias, como meio ambiente, sustentabilidade, paz, defesa, desenvolvimento e saúde. A tomada de decisão para a adoção desses regimes internacionais vai diferir de acordo com o órgão ou convenção na qual o tema se encontra sendo debatido. De toda sorte, a ONU não pode impor suas vontades e interesses aos Estados, haja vista que, à exceção do Conselho de Segurança, do Tribunal Penal Internacional e da Corte Internacional de Justiça, esse organismo não possui competência para obrigar os Estados a cumprirem suas decisões. A forma com que é possível cobrar ações dos Estados é política, por meio da pressão feita pelos pares. Portanto, não há que se falar, por exemplo, em uma ordem internacional imposta pelas Nações Unidas. 146 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Regimes internacionais “[...] também afetam os custos de transação no mais mundano dos sentidos de tornar mais barato aos governos se reunir para negociar acordos. É mais conveniente negociar acordos dentro de um regime do que fora dele” (KEOHANE, 2005, p. 90, tradução nossa). Dessa forma, torna-se mais benéfico ao Estado fazer parte de um regime do que estar fora dele, levando em consideração que ele reduz o custo marginal das negociações, se beneficiando de uma economia de escala (KEOHANE, 2005, p. 90). Ademais, dentro de um regime, os Estados se beneficiam “do relativamente alto e simétrico nível de informação que ele gera, e dos meios pelos quais torna mais fácil concluir as barganhas para sustentação do regime” (KEOHANE, 2005, p. 100, tradução nossa). É mais fácil, portanto, negociar com os demais países dentro de um regime estabelecido do que fora dele. Por isso, os foros e organismos internacionais são recursos positivos para a realização de transações. A adesão ao regime pode ser vista como uma estratégia para redução de custos no relacionamento internacional. Essa estratégia trará, contudo, consequências colaterais, na medida em que os relacionamentos ocorridos no contexto do regime desenvolverão uma nova dinâmica, capaz de interferir e alterar a própria forma como o relacionamento direto entre entidades internacionais ocorre. Assim, o estabelecimento de arranjos cooperativos gera novas formas de relacionamento nas relações internacionais. Uma análise de contornos mais realista acaba por não levar devidamente em consideração a capacidade de atores de menor poder relativo de influenciarem a conformação dos regimes: “Krasner argumentava que a organização de regimes se referia menos sobre como resolver problemas comuns enfrentados pelos signatários de um acordo e mais sobre como regras específicas favoreciam determinados membros (normalmente poderosos)” (FINNEMORE; GOLDSTEIN, 2013, p. 22, tradução nossa). Essa visão se afasta da análise da criação de regimes por atores internacionais de menor poder relativo entre si, como se sempre houvesse algum membro capaz de moldar as regras de relacionamento estabelecidas nos diferentes regimes. Diversamente, pode-se argumentar que a constituição de regimes é momento importante para os atores de menor poder negociarem regras que os beneficiem (FINNEMORE; GOLDSTEIN, 2013, p. 22). Esse é o caso, por exemplo, de uma negociação que envolva os Estados 147 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Unidos e Tuvalu. Em uma negociação direta, o poder relativo de um poderia se sobrepor ao do outro, mas no âmbito de um regime internacional, com regras definidas, nos quais o peso relativo do voto dos países é igual, é possível viabilizar uma negociação em que Tuvalu se beneficie mais dessa estrutura do que os EUA. Por isso, deixar de fazer parte de organismos internacionais relevantes, como é o caso da ONU e da OMS, pode afetar de forma negativa principalmente os países com menor poder relativo. Cabe recordar que em 2020, os Estados Unidos de Trump anunciaram sua saída da OMS, decisão revertida pelo governo Biden (Agência Brasil 2020; CNN BRASIL, 2021a). Inserido no contexto de regimes, está o conceito de convenção. Convenções são “instituições informais, com regras e interpretações implícitas, que definem as expectativas dos atores. (...) Convenções não são apenas abrangentes na política internacional, mas também temporal e logicamente prévias aos regimes ou às organizações internacionais formais” (KEOHANE, 1989, p. 04, tradução nossa). Assim, convenções podem ser compreendidas como momento anterior à constituição de regimes, não somente no tempo, mas em sua lógica. Ainda que existam regimes em vigor, convenções podem surgir em seu seio como regras não escritas e comportamentos socialmente esperados dos atores (Cf. KEOHANE, 2005, p. 89, tradução nossa). No sentido oposto, encontram-se as organizações internacionais. De maneira a moldar de forma mais efetiva os processos de tomada de decisão e de cooperação, podem surgir organizações internacionais, que complementam e estão de acordo com os princípios do regime no qual se inserem. As organizações internacionais podem, assim, ser vistas como meio de sistematizar princípios, normas e regras dentro de um regime. Adicionalmente, organizações internacionais tendem a prever em seus tratados constitutivos quais atores internacionais delas participam e os meios como suas regras poderão ser modificadas ou emendadas. Regimes não possuem regras escritas para sua própria modificação, pois elas resultam da própria interação entre os atores. No contexto internacional, pode-se afirmar que “regimes não conseguem se adaptar ou se transformar. Na ausência de organizações internacionais, regimes internacionais são integralmente a expressão dos interesses dos Estados constituintes” (KEOHANE, 1989, p. 05, tradução nossa). 148 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A intensificação das relações internacionais, principalmente, das trocas comerciais em seus estágios mais avançados ensejou (ou demandou) regras mais precisas, que permitissem maior grau de eficiência e menor custo de oportunidade, reduzindo a desconfiança entre os atores envolvidos (KEOHANE, 2005, p. 90). Na análise da relação entre instituições internacionais e interesses estatais, há pontos relevantes a serem observados com respeito a como os Estados atuam, pois eles: agem para alcançar seus objetivos; utilizam as instituições internacionais para realizar seus objetivos; desenham instituições de acordo seus objetivos; e disputam para influenciar no desenho institucional (MITCHELL, 2009, p. 66). Os Estados, com o objetivo de influenciar nos resultados das negociações realizadas no âmbito de uma instituição internacional, buscam definir seu desenho, de forma que ele produza resultados favoráveis aos seus interesses. Nesse jogo de poder e influência, a sensibilidade e a vulnerabilidade dos atores envolvidos influenciam no resultado. Esses conceitos se relacionam com a interdependência dos Estados. A sensibilidade significa a capacidade de resposta de um ator diante de uma estrutura de políticas, ela pode ter um caráter social, político ou econômico (KEOHANE; NYE JR., 1997, p. 10-11). Já a vulnerabilidade se refere à relativa gama de alternativas e de custos da qual os atores dispõem, a “vulnerabilidade pode ser definida como a capacidade de um ator arcar com custos impostos por eventos externos, após as políticas serem alteradas” (KEOHANE; NYE JR., 1997, p. 11, tradução nossa). Nesse sentido, os atores com menor vulnerabilidade, teriam maior capacidade de definir as regras do jogo (KEOHANE; NYE JR., 1997, p. 13). Embora essa conclusão aproxime-se do argumento de Krasner de que são as potências que definem a estrutura das organizações, é preciso recordar que os atores de menor poder relativo detêm o poder de barganha de deixar as negociações para formação do organismo internacional ou até mesmo, posteriormente, quando esse já estiver em vigor, abandoná-lo. Não obstante, acaso os interesses dos atores de menor poder relativo sejam centrais na futura organização internacional, esse poder de barganha é diminuído consideravelmente. Para uma real compreensão do papel das instituições nos arranjos internacionais, é necessário realizar análises nos dois níveis: política interna dos 149 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Estados; e política externa, levando em consideração a balança de poder. Nesse sentido, o comportamento estatal pode ser estudado de “dentro para fora” ou de “fora para dentro”. Explicações de “dentro para fora”, ou explicações ao nível da unidade, localizam as fontes do comportamento internamente ao ator – por exemplo, nos sistemas político ou econômico de um país, os atributos de seus líderes, ou sua cultura política doméstica. Explicações de “fora para dentro”, ou explicações sistêmicas, explicam o comportamento estatal com base em características do sistema como um todo (KEOHANE, 2005, p. 25, tradução nossa). Dentre as razões que motivam os Estados a delegarem competência estão: especialização e conhecimento especializado; presença de externalidades políticas; paradoxos da tomada de decisão coletiva; resolução de litígios; reforço da credibilidade da política; e locking in policy (LAKE; MCCUBBINS, 2006, p. 342). Os benefícios da delegação incluem: gestão de externalidades políticas; facilitação da tomada de decisão coletiva; resolução de controvérsias; reforço da credibilidade; e criação de tendências políticas (HAWKINS, 2006, p. 13). Assim (KEOHANE, 2005, p. 79, tradução nossa), “os incentivos para formar regimes internacionais será maior em espaços políticos mais densos do que nas zonas com menor densidade”. Isso ocorre porque em espaços políticos com maior densidade pode haver interferência, duplicidade ou antinomia entre as diferentes normas adotadas, gerando insegurança nas relações, a menos que sejam baseados em “um conjunto comum de princípios e regras”. Ao fazer uso de um espaço institucional com regras predeterminadas, há uma maior previsibilidade dos resultados, uma vez que todos os envolvidos conhecem as regras e procedimentos de tomada de decisão aplicáveis. Isso reduz o custo de transação para os Estados. No entanto, cabe afirmar que “já que governos valorizam a manutenção de sua própria autonomia, é geralmente impossível constituir instituições internacionais que exerçam autoridade sobre os Estados” (KEOHANE, 2005, p. 88, tradução nossa). A tradição diplomática brasileira vem demonstrando desde o Barão do Rio Branco o interesse em aderir aos mais diversos regimes internacionais e a participar de organismos internacionais multilaterais, como forma de levar a visão nacional para essas instâncias e para se beneficiar deles, na medida em que reduzem os custos 150 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS de transação e viabilizam uma estrutura estável e previsível para a atuação da sua diplomacia. Com base no supramencionado, cabe verificar de que forma a gestão de Ernesto Araújo modificou a Política Externa Brasileira (PEB). 5 A POLÍTICA EXTERNA DO GOVERNO BOLSONARO NA GESTÃO DE ERNESTO ARAÚJO O governo Bolsonaro demonstrou disposição, desde o início de sua gestão, para promover sucessivas inflexões no modo de se fazer política no Brasil. A política externa não ficou alheia a esse processo, sendo conveniente analisar a Política Externa do período, em particular, sob a gestão Ernesto Araújo. Desse modo, poderá se perceber que muitos dos elementos vinculados às concepções analisadas nos capítulos anteriores - acerca da soberania, cooperação internacional, instituições e regimes internacionais - são colocadas em xeque a partir de um aparato ideológico nacionalista e cético com relação à ordem global. A Política Externa Brasileira, conduzida pelo Poder Executivo, como garante o texto constitucional, tem no Ministério das Relações Exteriores (MRE) seu principal órgão de formulação e execução. O debate acerca da centralidade do Itamaraty nesse processo é denso, tendo em vista seu insulamento burocrático, que, historicamente, garantiu ao MRE um grau elevado de autonomia, garantindo à PEB um aspecto de continuidade coerente à sua concepção enquanto Política de Estado. No entanto, percebe-se que, junto da redemocratização do país ao final da década de 1980, desenvolveu-se uma tendência de descentralização relativa dessas responsabilidades para outros órgãos e Ministérios dentro do Poder Executivo (OLIVEIRA, 2005). Nesse sentido, Cason e Power (2009) argumentam que, de fato, desde a década de 1990, além dessa pluralização de atores que marcou a PEB, outra tendência demonstrou-se evidente: a influência crescente que o Presidente da República detém na determinação dos eixos de sua diplomacia. Percebe-se que o Presidente Jair Bolsonaro atuou individualmente para promover uma flagrante inflexão na PEB, o que ficou evidenciado com a nomeação de Ernesto Araújo para a chancelaria a partir da indicação do principal ideólogo da direita radical brasileira: o autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho. Ernesto Araújo, diplomata de carreira, publicou em 2017, nos Cadernos de Política Exterior 151 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), um artigo intitulado “Trump e o Ocidente” (Cf. ARAÚJO, 2017), em que alçava o então presidente norte-americano a uma posição heróica de salvador de um Ocidente supostamente em declínio. Posteriormente, Araújo consolidaria seu alinhamento ao então candidato Jair Bolsonaro em sua página pessoal na internet, intitulada “Metapolítica 17 Contra o Globalismo”6. Recorre-se, portanto, a essa página pessoal de Ernesto Araújo e ao artigo “Trump e o Ocidente” (Cf. ARAÚJO, 2017) enquanto fontes primárias importantes para a compreensão dos princípios e ideologias que orientaram a PEB bolsonarista enquanto ele foi Ministro das Relações Exteriores. Considera-se que a compreensão da dimensão ideológica da PEB sob a gestão Araújo é fundamental para, posteriormente, se compreender a maneira pela qual o Brasil, sob Bolsonaro, portouse perante a pandemia do coronavírus. A princípio deve-se elucidar o título do blog do ex-chanceler para a compreensão dos marcos teóricos que guiaram Araújo e, consequentemente, a PEB bolsonarista. A alusão ao 17 faz referência ao número do Partido Social Liberal (PSL), pelo qual Jair Bolsonaro concorreu à presidência em 2018, enquanto o termo “Metapolítica” e “Contra o Globalismo” são indicadores dos componentes ideológicos presentes no pensamento de Ernesto Araújo e impresso ao longo de sua gestão à frente do Itamaraty. Recorre-se, portanto, à definição que Araújo traz sobre si próprio em sua página pessoal para expressar diversos elementos de seu pensamento: Quero ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista. Globalismo é a globalização econômica que passou a ser pilotada pelo marxismo cultural. Essencialmente é um sistema anti-humano e anti-cristão. A fé em Cristo significa, hoje, lutar contra o globalismo, cujo objetivo último é romper a conexão entre Deus e o homem, tornado o homem escravo e Deus irrelevante. O projeto metapolítico significa, essencialmente, abrir-se para a presença de Deus na política e na história. (ARAÚJO, 2017) O trecho destacado acima apresenta, de modo sucinto, a miríade ideológica que compõe o pensamento de Araújo, explorando conceitos como “Metapolítica”, 6 Disponível em [https://www.metapoliticabrasil.com/]. Acesso em 25/5/2021 152 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS “Globalismo”, “Marxismo Cultural”, além de um aspecto religioso bastante intenso. Esses conceitos correspondem a uma rede semântica típica de círculos de ultradireita7, indo ao encontro da posição política representada por Jair Bolsonaro. Deve-se, assim, elucidar esses conceitos e contextualizar a maneira pela qual influenciaram a gestão Araújo no MRE. A “metapolítica” pode ser considerada um conceito vinculado à ultradireita em âmbito global, que enfatiza uma estratégia de promoção de mudanças sociais por meio do foco em aspectos culturais prioritariamente, para, depois, lograr mudanças políticas. Esse conceito tem suas origens na Europa do pós-guerra, inicialmente, a partir da ação da Nova Direita Francesa e de autores como Guillaume Faye e Alain de Benoist (BAR-ON, 2019; TEITELBAUM, 2019). A premissa fundamental da metapolítica é que mudanças políticas são originadas, inicialmente, nos meios educacionais, na mídia e nas artes em geral, para, somente depois, reverberar na política (TEITELBAUM, 2019). Autores como Alain de Benoist e Guillaume Faye defendiam que, na Europa do Pós-Guerra, valores liberais como a liberdade e a igualdade tornaram-se parâmetros indiscutíveis nas sociedades ocidentais, adquirindo características hegemônicas que converteram quaisquer críticas a esses princípios como inaceitáveis (TEITELBAUM, 2019). Seus objetivos, desse modo, eram o estabelecimento de um novo denominador político comum que questionasse as premissas arraigadas nas sociedades ocidentais liberais, influenciando, contemporaneamente, círculos de ultradireita dedicados ao enfrentamento do “politicamente correto”, do “marxismo cultural” e do “globalismo”. A afinidade de Ernesto Araújo com essas concepções fica expressa em sua produção intelectual, sendo o artigo “Trump e o Ocidente” paradigmático nesse sentido, tendo como base o entendimento de que a originalidade de Donald Trump advinha justamente desse desafio ao “politicamente correto” e aos princípios do “globalismo”. 7 A Ultradireita pode ser compreendida como movimentos – violentos ou não violentos - cujas pautas elencam ao menos três dos seguintes temas: nacionalismo, racismo, xenofobia, anti-democracia e autoritarismo (MUDDE, 2000). A Ultradireita, em sentido amplo, compartilha elementos como o repúdio ao pluralismo sociocultural e um sentimento contrário às imigrações e às elites do establishment político (MINKENBERG, 2000; GREVEN, 2016). 153 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS O termo “Globalismo”, ao qual Ernesto Araújo faz referência no título de sua página pessoal, também se insere em uma rede semântica de ultradireita, fazendo parte de uma concepção vinculada ao suposto “marxismo cultural”. O “marxismo cultural” é uma ideia desenvolvida e introduzida ao debate público por Minnicino (1992) no artigo “New Dark Age: Frankfurt School and Political Correctness”, publicado na revista Fidelio do Schiller Institute. Minnicino (1992, sem página) atribuía aos comunistas, sionistas e freudianos da Escola de Frankfurt a tarefa de “enfraquecer o legado judaico-cristão por meio de uma “abolição da cultura” e determinação de novas formas culturais8”. O repúdio a esse suposto “marxismo cultural” e suas implicações “globalistas” passam, então, a compor a miríade ideológica de círculos de ultradireita, estando presente, recorrentemente, nos discursos e produções intelectuais do ex-chanceler brasileiro. Araújo, em sua página pessoal, defende que os “marxistas” vêm substituindo, há 30 anos, o socialismo pelo globalismo como o estágio preparatório ao comunismo, e que o Globalismo: Trata-se da globalização econômica capturada pelo marxismo, fenômeno que começou logo após o fim do bloco soviético e se intensificou a partir do ano 2000 [...] O globalismo nasceu quando a globalização capitalista, ao esquecer o espírito, entregou-se inconscientemente ao comunismo em sua metástase pós-soviética, ou seja, o marxismo de Gramsci e da New Left, da Revolução Cultural (tanto a ocidental quanto a chinesa), que sempre almejou ocupar o capitalismo por dentro em vez de enfrentá-lo de fora [...] Vemos o processo de uma estranha alquimia ao inverso, que vai conseguindo transformar o ouro espiritual em chumbo inerte. Que escraviza as melhores energias do ser humano - a ciência, a tecnologia, o pensamento, a arte [...] em favor de uma cultura da morte, da mentira e da maldade. (ARAÚJO, 2017) Já as concepções ideológicas voltadas à religiosidade, vinculadas à ultradireita, e presentes no pensamento de Ernesto Araújo, possuem respaldo histórico sobretudo no chamado “Tradicionalismo”. Esse é um movimento ideológico pouco estruturado, sendo definido como uma espécie de “esoterismo religioso” conservador, prezando pela manutenção de práticas “tradicionais”, as quais teriam sido supostamente substituídas ao longo da modernidade (SEDGWICK, 8 Do original “The task of the Frankfurt School, then, was first, to undermine the Judeo-Christian legacy through an "abolition of culture" (Aufhebung der Kultur in Lukacs' German); and, second, to determine new cultural forms” (MINNICINO, 1992). 154 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 2004). Os Tradicionalistas se apegam a tradições, conhecimentos e práticas atemporais supostamente originárias de autoridades divinas, interpretando que o Ocidente moderno teria se afastado desse passado e dificultado a transmissão dessas tradições, desconectando-se, assim, de sua essência espiritual “metafísica” (SEDGWICK, 2004; TEITELBAUM, 2020). As origens intelectuais desse movimento advém de autores como Julius Évola, René Guénon e Oswald Spengler, sendo a obra deste, “A Decadência do Ocidente”, de 1918, referenciado diretamente por Ernesto Araújo em "Trump e o Ocidente”, que a considera, em suas palavras, “magnífica”. Sedgwick (2020) atribui a Olavo de Carvalho a incorporação do Tradicionalismo ao conjunto ideológico da ultradireita no Brasil, adaptando esse pensamento a concepções vinculadas ao catolicismo romano-germânico. O Tradicionalismo traz uma concepção temporal cíclica, na qual após os ciclos de declínio, aos quais os adeptos dessa ideologia acreditam que estaríamos contemporaneamente em um ciclo de resgate dos valores “Tradicionais”, que retomariam as origens da essência religiosa humana e colocariam fim aos princípios modernos, como as noções de igualdade e universalidade, que teriam afastado a humanidade de seus valores espirituais (SEDGWICK, 2004; TEITELBAUM, 2020). Sendo assim, Araújo interpreta que Trump seria o responsável por consolidar essa nova era reacionária no plano global, a partir da projeção global norte-americana, reverberando, assim, na figura de Jair Bolsonaro, que seria o responsável por conduzir esse novo ciclo no Brasil. Novamente aqui se percebe a influência de Olavo de Carvalho, que considera os EUA como o último bastião de resistência do cristianismo no Ocidente (SEDGWICK, 2020). A retórica de Araújo se inspira na narrativa estrategicamente elaborada pelo ideólogo de Trump ao longo do ciclo eleitoral norte-americano de 2016, Steve Bannon, que via em Trump um “disruptor” capaz de acelerar a transição para uma nova “Era de Ouro”. Bannon desenvolveu uma adaptação populista do “Tradicionalismo” à conjuntura política, social e econômica dos EUA ao associar a classe trabalhadora norte-americana à “Tradição”, ao passo que as elites globalizadas seriam o paradigma da modernidade a ser combatida (TEITELBAUM, 2020). Esse 155 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS tipo de construção se adequa ao que Mudde (2017) define como “Populismo Radical de Direita” (PRD). Define-se o populismo como uma ideologia que considera a sociedade dividida em dois grupos homogêneos e antagônicos – as “pessoas puras” e “a elite corrupta” – sendo que o populista clama para si a expressão da vontade geral do povo. Somada a essa concepção populista, estaria o nativismo e o autoritarismo, que compõem o que se compreende como PRD (MUDDE, 2004). Ernesto Araújo estava servindo em Washington em meio às eleições norteamericanas de 2016, testemunhando a ascensão de Trump e a construção de sua campanha Populista Radical de Direita. Nesse sentido, fica claro que Araújo buscou respaldar intelectualmente o então candidato à presidência Jair Bolsonaro à semelhança do que Bannon fizera na campanha de Trump. Em setembro de 2018, um mês antes do primeiro turno das eleições presidenciais, em sua página pessoal, Araújo atribuía a Bolsonaro a “voz do povo” em contraponto ao que chamava “classe instruída”. Esta seria composta por intelectuais e elites “materialistas”, “antipatrióticas”, “politicamente corretas” e “desconectadas de Deus”. Por outro lado, o “povo”, autêntico, deteria o amor genuíno a Deus e ao Brasil. Denota-se, assim, a busca pelo estabelecimento de uma retórica populista adaptada à realidade brasileira e associada a valores Tradicionalistas, a partir da definição de populismo de Mudde (2004) elucidada acima. Araújo, portanto, seria o artífice da estruturação de um Populismo Radical de Direita Bolsonarista. Ao tomar posse como Ministro das Relações Exteriores, de fato, Araújo deixara claro que estava disposto a promover inflexões substanciais em sua gestão, citando Olavo de Carvalho9, exaltando Israel e os EUA, e aplicando seu ideal antiglobalista e Tradicionalista: Não estamos aqui para trabalhar pela ordem global [...] O Itamaraty existe para o Brasil, não existe para a ordem global [...] Nós buscaremos as parcerias e as alianças que nos permitam chegar onde queremos, não pediremos permissão à ordem global [...] O problema do mundo não é a xenofobia, mas a oikofobia – de oikos, oikía, o lar. Oikofobia é odiar o próprio lar, o próprio povo, repudiar o próprio passado [...] deveria preocupar‑nos, também, cada vez mais, a teofobia, o 9 Em seu discurso de posse como Ministro das Relações Exteriores, em Brasília (02/01/2019), Araújo definiu Olavo de Carvalho como “um homem que, após o Presidente Jair Bolsonaro, talvez seja o grande responsável pela imensa transformação que o Brasil está vivendo”. (FUNAG, 2019) 156 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS ódio contra Deus. Para destruir a humanidade é preciso acabar com as nações e afastar o homem de Deus, [...] e é contra isso que nos insurgimos. O globalismo constitui-se no ódio, através das suas várias ramificações ideológicas e seus instrumentos contrários à nação, contrários à natureza humana, [...] Nós vamos lutar para reverter o globalismo. (ARAÚJO, 2019) A partir desse conjunto de princípios, valores e ideias estabelecidos como fundamentos teóricos da gestão Araújo à frente do MRE, pode-se começar a compreender algumas das posições do governo com relação à atuação do Brasil nas OIs no contexto da pandemia de Covid-19. Emblemático nesse sentido é o artigo de Ernesto Araújo, publicado em sua página pessoal em 22 de abril de 2020, ainda no cargo de chanceler, intitulado “Chegou o Comunavírus” (Cf. ARAÚJO, 2020). Ernesto Araújo argumenta que a situação de emergência gerada pela pandemia seria apropriada pela esquerda globalista de modo a “subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado, escravizar o ser humano e transformá-lo em um autômato desprovido de dimensão espiritual”. Araújo afirma ainda que organizações internacionais como a Organização Mundial da Saúde, representantes do globalismo, seriam utilizadas para reduzir a soberania dos Estados, em um processo de “desnacionalização”, que ele considera pressuposto do comunismo. Araújo vai além, e afirma: “Agora o politicamente correto incorpora o sanitariamente correto (...) Controlar a linguagem para matar o espírito, eis a essência do comunismo atual, esse comunismo que de repente encontrou no coronavírus um tesouro de opressão”. Por fim, Araújo conclui: O globalismo é o novo caminho do comunismo. O vírus aparece, de fato, como imensa oportunidade para acelerar o projeto globalista. Este já se vinha executando por meio do climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de gênero, do dogmatismo politicamente correto, do imigracionismo, do racialismo ou reorganização da sociedade pelo princípio da raça, do antinacionalismo, do cientificismo. São instrumentos eficientes, mas a pandemia, colocando indivíduos e sociedades diante do pânico da morte iminente, representa a exponencialização de todos eles. (ARAÚJO, 2020) Com efeito, infere-se que a compreensão de grande parte das ações do governo Bolsonaro em meio à pandemia do coronavírus pode ser vinculada aos elementos ideológicos supracitados que orientaram a gestão Ernesto Araújo à frente do Itamaraty. 157 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 6 A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA E A PANDEMIA DE COVID-19 As diretrizes adotadas pelo MRE ao longo da pandemia divergiram em parte de tradicionais parâmetros adotados pela diplomacia brasileira. A Política Externa Brasileira, historicamente, orienta-se a partir de um eixo de continuidade composto por princípios como a autonomia decisória, a autodeterminação dos povos e a defesa do multilateralismo. A concepção da PEB enquanto política de Estado é uma marca desse processo, formalizada no texto constitucional a partir do artigo IV da Constituição Federal e de seus princípios que regem as relações internacionais do Brasil. No entanto, ao longo da gestão Araújo à frente do Itamaraty, a incorporação de uma ideologia de ultradireita nacionalista e antiglobalista colocou em xeque os eixos tradicionais da diplomacia do país. Desse modo, identifica-se uma contradição inerente à incorporação dos componentes ideológicos vinculados a Ernesto Araújo, que denunciam o globalismo e as instituições internacionais, e o exercício do cargo de chanceler de um país cujas tradições diplomáticas advêm do apreço ao multilateralismo e às instituições internacionais. Soma-se a isso, a necessidade de coordenação e diálogo em instâncias internacionais em meio a uma pandemia global, que teve na Organização Mundial da Saúde o principal órgão dedicado a estudar o coronavírus, propor políticas públicas de modo a combatê-lo e fomentar a corrida pelas vacinas. Ao longo de 2020, o Brasil cooperou com outros Estados para a repatriação de seus nacionais e para a importação de insumos médicos essenciais para o tratamento da Covid-19, bem como para a vacinação da população. No entanto, o que salta aos olhos são alguns discursos proferidos pelo Ministro de Estado, bem como ações que destoam do alto padrão previamente estabelecido. São elas: se opor à quebra de patentes de vacinas para Covid-19, na Organização Mundial do Comércio; as diversas dissidências com as orientações da Organização Mundial da Saúde, acusando-a de defender interesses chineses; a decisão de não requisitar a integridade de sua cota no mecanismo Covax Facility; as controvérsias diplomáticas com a China, devido ao discurso de que a doença teria sido causada pelo “comunavírus”. 158 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Na reunião do Grupo de Coordenação Ministerial sobre Covid-19, em 10 de setembro de 2020, Ernesto Araújo apontou a existência do que chamou de uma “ideologia sanitariamente correta”, atrelada ao pensamento “politicamente correto”, que, para ele, inviabilizaria o debate interno sobre a necessidade de confinamento e que definia um posicionamento claramente pró ou contra o governo a partir da opinião exercida a respeito do uso da hidroxicloroquina como tratamento precoce (MRE, 2020k). A difusão do uso do medicamento e as críticas ao trabalho das OIs foram reforçadas na Reunião Informal Ministerial da Comunidade de Países de Língua Portuguesa – CPLP, em 28 de setembro de 2020, na qual afirmou que “Não pode ser a mídia nem nenhum organismo internacional que decidam o que é verdade.” (MRE, 2020l). A fala de Araújo se opõe às diretrizes posteriormente adotadas pela OMS, que se pronunciou em março de 2021 sobre a eficácia do medicamento no tratamento da Covid-19 (CNN BRASIL, 2021b). A própria Organização havia sido alvo da crítica do ministro, na reunião virtual da Iniciativa Política Externa e Saúde Global (FPGH), em 03 de setembro de 2020, na qual apesar de reconhecer seu importante papel, asseverou que “continuamos críticos em relação à resposta geral à crise”, propondo uma “[...] uma avaliação abrangente, objetiva e oportuna da resposta internacional à pandemia, a fim de identificar lacunas, falhas e fragilidades, bem como propor as medidas necessárias para uma reforma.” (MRE, 2020h). Por seu turno, na abertura do Diálogo Trilateral Brasil-EUA-Japão, em novembro de 2020, o chanceler expressou sua preocupação com o uso político da pandemia como ferramenta para um processo de “dominação” internacional a partir do remodelamento das instituições internacionais, conforme transcreve-se: Isso é muito mais fundamental agora, com a pandemia de COVID e todas as suas ameaças e desafios. Claro, essa é uma questão de saúde acima de tudo, mas ela não deve servir de pretexto para um tipo errado de remodelação do mundo. Não deve ser um pretexto para substituir as soberanias nacionais por algum tipo de esquema burocrático internacional. Não deve ser um pretexto para moldar as sociedades na direção de sociedades de controle total. Isso é algo que começa a pairar sobre nós e que, acredito, devemos abordar. (MRE, 2020m) Na Cúpula Presidencial do Prosul, de 12 de dezembro, Araújo felicitou os trabalhos do foro internacional que, “respeitando a soberania dos países participantes 159 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS e provando a agilidade para qual foi concebido [...]”, teria cumprido com seus objetivos por meio de “resultados práticos e contribuições para as respostas nacionais à doença” (MRE, 2020n). Por meio desse discurso, é possível depreender que em sua ótica, o ideal seria que os Estados cooperassem no âmbito internacional, mas que mantivessem o controle soberano sobre as decisões a serem tomadas, de forma que as ações adotadas fossem nacionais e não regionais. Ainda no âmbito sulamericano, na reunião do Conselho do Mercado Comum, do Mercosul, realizada em 15 de dezembro, Ernesto Araújo contrapôs a noção de democracia às de desenvolvimento sustentável e de enfrentamento à Covid-19, dando a entender que a “perda de liberdade em nome da saúde” poderia dar origem a regimes totalitários, uma vez que, segundo ele A ideia de que se necessita promover desenvolvimento sustentável e enfrentamento à Covid mais do que defender as liberdades fundamentais e propagar a democracia contraria os nossos valores e princípios mais profundos, e a rechaçamos. Se perdermos a liberdade em nome da saúde, não teremos liberdade nem saúde. Se sacrificarmos a democracia em nome do desenvolvimento sustentável, não teremos nem democracia, nem desenvolvimento sustentável, mas uma sociedade de controle totalitário nas mãos de elites não eleitas. (MRE, 2020o) No mesmo sentido, na 46ª Sexta Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 22 de fevereiro de 2021, o chanceler afirmou mais uma vez que a saúde não poderia ser uma justificativa para a limitação de liberdades, denunciando que “Sociedades inteiras estão se habituando à ideia de que é preciso sacrificar a liberdade em nome da saúde” (MRE, 2021b). Por seu turno, em intervenção por ocasião da reunião informal do Conselho de Segurança das Nações Unidas relativa aos 75 anos do fim da 2ª Guerra Mundial, realizada em 8 de maio de 2020, Araújo fez duras críticas ao multilateralismo, comparando o momento atual com o totalitarismo dos anos 1940, propondo a liberdade e a soberania como valores maiores, a serem buscados, além de criticar a atuação da ONU que poderia se desvirtuar ao realizar suposta violação totalitária da soberania nacional: Estamos comprometidos a trabalhar de maneira construtiva em fóruns internacionais. Mas creio que devemos evitar a palavra "multilateralismo" ao falar de instituições internacionais ou de multilaterais. Palavras terminadas em "ismo" 160 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS normalmente designam ideologias: Fascismo, Nazismo e Comunismo. Não vamos fazer do "multilateralismo" uma ideologia. O oposto de todas as ideologias não é outra ideologia. O oposto de todas as ideologias é a liberdade. Note que não dizemos "liberdadismo". Dizemos liberdade. Portanto, não tornemos o multilateralismo outro sistema de pensamento que nega a realidade e que tenta impor-se à realidade. Vamos fazer das instituições multilaterais uma plataforma para trabalhar pela verdade e pela liberdade.A pandemia do COVID é provavelmente a maior crise desde a Segunda Guerra Mundial. Não vamos deixar outra forma de totalitarismo emergir agora, como a que emergiu após a Segunda Guerra Mundial. De fato, uma nova ordem certamente emergirá desta crise, só não sabemos ainda o formato que assumirá. (MRE, 2020f, grifo nosso) Araújo segue, criticando o papel da ONU a partir de seus princípios antiglobalistas: [...] Nações não são o problema. As nações são os bons moços nesta foto. Nações, agindo em coordenação, obviamente, por meio desta ONU e de outros foros. A Organização das Nações Unidas deve, portanto, ser um espaço de coordenação entre nações independentes, e não um instrumento para substituí-las. Os países aqui reunidos devem fazer uso deste espaço para identificar os desafios enfrentados atualmente pela humanidade. Se a Organização das Nações Unidas ignorar os desafios reais de hoje e, em vez disso, optar por jargões politicamente corretos, seu papel estará diminuído. A ONU não deve ser um esforço para encontrar uma base comum entre liberdade e totalitarismo, e muito menos para promover o totalitarismo sub-repticiamente. A liberdade e a democracia devem estar no centro das ações da ONU. E a fonte da democracia são as pessoas. Pessoas organizadas nos Estados-nação, com sua soberania, orgulhosas de si mesmas (MRE, 2020f, grifo nosso). Posteriormente, o ex-chanceler discursa em prol de concepções nacionalistas: O Brasil, hoje, coloca-se inequivocamente em favor da democracia e da soberania. A soberania do povo livre. Não caiamos no equívoco de vilipendiar aqueles que defendem a soberania, não desprezemos os que defendem o sentimento nacional. Sem nações soberanas, não há liberdade. Esse postulado não deriva da lógica abstrata, e sim da história, do sacrifício real de milhões de pessoas, da natureza das coisas, da essência do ser humano. Portanto, o sentimento nacional 161 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS não é o problema do mundo atual. Ao contrário, o problema é a erosão da soberania, que deixa as nações sujeitas à perda de liberdade. (MRE, 2020f, grifo nosso) Representando o Presidente da República, na V Reunião Extraordinária de Presidentes do PROSUL, de 25 de fevereiro de 2021, o Ministro das Relações Exteriores realizou uma crítica ao multilateralismo puro, ao passo em que apresentou o Brasil como defensor do acesso “universal e equitativo” a medicamentos, vacinas e produtos médicos, conforme trecho de seu discurso: Ao mesmo tempo, voltando à questão específica da pandemia, redobramos nossos esforços para garantir o direito à vacinação em toda a região, como sabemos. Promover o acesso universal e equitativo a medicamentos, vacinas e outros produtos médicos seguros, eficazes e acessíveis tem sido uma prioridade estratégica para o Brasil em sua atuação, mesmo antes da pandemia, em fóruns internacionais e regionais. O que fazemos hoje no Brasil é seguir essa orientação. Favorecemos a promoção do acesso equitativo às vacinas para todos os países, especialmente aqueles com menor desenvolvimento relativo. E nos opomos a qualquer barreira que impeça esse acesso. [...] Isso indica que há e deve ser buscada uma complementação entre as dimensões nacional e multilateral. São dimensões que não se opõem, na realidade, mas se complementam. Vemos, por exemplo, um processo profundo, antigo, de integração multilateral, como a União Europeia, que ainda não conseguiu vacinar sua população em alta velocidade, como vimos por aqueles números, e que sofre críticas muito severas de seus estados-membros e do público em geral na Europa. Isso indica que o simples conceito de multilateralismo não é suficiente para que haja eficiência no combate à pandemia. Multilateralismo não é uma palavra mágica, deve ser implementado em conexão com as realidades nacionais e com os esforços nacionais.” (MRE, 2021d, grifo nosso) Não obstante, o Brasil vinha se posicionando de forma contrária à quebra de patentes de vacinas de Covid-19, que viria a beneficiar os países de menor desenvolvimento relativo, em uma ação contrária ao seu histórico papel dentro da OMC, na qual o país foi um dos principais atores que viabilizaram a quebra da patente de remédios para o tratamento de AIDS (CHADE, 2021a, 2021b). Essa nova diretiva do MRE transparece no discurso realizado na videoconferência Ministerial do Grupo de Ottawa, no âmbito da OMC, em 22 de março de 2021, no qual o chanceler “[...] destaca a importância de conciliar os direitos de propriedade 162 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS intelectual com as atuais necessidades de saúde pública” (MRE, 2021c). O Brasil tradicionalmente se apresenta como um país do mundo em desenvolvimento, em busca de uma distribuição justa dos meios do progresso (Cf. RICUPERO, 2017, CERVO; BUENO, 2015). Por essa razão, para além da questão das patentes, a decisão de não utilizar toda a quota a que teria direito na Covax Facility também foge da prática nacional (CNN BRASIL 2021c). 7 CONCLUSÃO A pandemia do coronavírus é paradigmática acerca da necessidade de uma coordenação em âmbito global frente a uma ameaça que não respeita fronteiras, estados ou ideologias. Se, por um lado, a sociedade internacional, desde meados do século XX, avançou no estabelecimento de uma ordem internacional – composto por instituições e regimes internacionais bastante robustos –, a conjuntura contemporânea vem demonstrando os limites e os desafios de se endereçar problemas coletivos a nível global. Isso se torna particularmente evidente ao se analisar os componentes ideológicos que compõem a ultradireita global, evidentes em atores importantes para a ordem mundial, como os EUA, que estavam sob a liderança de Donald Trump em meio ao primeiro ano da pandemia, e, também, o Brasil de Jair Bolsonaro. Outrora um Estado marcado por uma política externa voltada a princípios como a defesa do multilateralismo, o Brasil sob a gestão de Ernesto Araújo pautou sua inserção internacional por ideais como o repúdio ao globalismo e ao “politicamente correto”. Evidenciam-se, desse modo, as contradições evidentes da ideologia marcada por uma conotação de ultradireita, que parece não ser capaz de superar seu caráter metapolítico. Os auspícios da realidade, portanto, se impõem perante esse corpo ideológico, na forma de problemas coletivos e globais, como o da covid-19, desafiando as retóricas radicais acostumadas a lutas contra inimigos imaginários. As tentativas de incorporação do leque ideológico de ultradireita às vicissitudes oriundas da pandemia deram corpo a construções intelectuais como as denúncias acerca do “totalitarismo dos organismos internacionais”, do “sanitariamente correto” e do “comunavírus”, desenvolvidas por Ernesto Araújo e proferidas, 163 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS recorrentemente, em reuniões e encontros multilaterais ao longo da pandemia. Essas construções marcaram uma quebra da tradicional política externa brasileira, cuja vocação sempre foi pautada pela busca de soluções concertadas no âmbito multilateral e na confiança em organismos internacionais, em especial de vocação universal, como é o caso das Nações Unidas, (Cf. RICUPERO, 2017, CERVO; BUENO, 2015). REFERÊNCIAS AGÊNCIA BRASIL. Saída dos Estados Unidos da OMS ocorrerá em julho de 2021. Publicado em 08/07/2020 por Michelle Nichols - Repórter da Reuters - Nova York. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/202007/saida-dos-estados-unidos-da-oms-ocorrera-em-julho-de-2021 ARAÚJO, Ernesto Henrique Fraga. Chegou o Comunavírus. In: ARAÚJO, Ernesto Henrique Fraga. Política externa: soberania, democracia e Liberdade. Coletânea de discursos, artigos e entrevistas do Ministro das Relações Exteriores. Brasília: FUNAG, 2020. ARAÚJO, Ernesto Henrique Fraga. 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Londres: Oxford University Press, 2019. 171 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A PARADIPLOMACIA: ALTERNATIVA DE FINANCIAMENTO VIÁVEL PARA AS POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE? Gleisse Ribeiro Alves1 Eryck Chaves Tavares2 Helohane Rodrigues Carneiro Pereira Pedro Carvalho de Holanda Rodrigues Victor Hugo Xavier dos Santos Laura Luiza Gonçalves Teixeira Leticia Rodrigues de Carvalho Carlos Eduardo Soares Victor Jak van Erven Sigaud RESUMO A recente conjuntura do COVID-19 vem demonstrando que, apesar da coordenação da governança mundial, países federativos respondem de formas díspares na implementação das estratégias globais. O Brasil mesmo com uma política estatal universal e coordenada de saúde pública (SUS) tem sido menos efetivo na implementação das medidas globais devido à pouca sinergia entre as diversas dimensões políticas realizadas por cada ente federativo. Verifica-se de forma cada vez mais crescente a impotência dos Estados em suprir as necessidades dos indivíduos. O Estado brasileiro não foge a essa regra ao ser muitas vezes omisso na implementação de políticas públicas capazes de promover de serviços públicos de saúde a todos. Nesse sentido, a atuação da paradiplomacia pelos entes federados tem se tornado uma das alternativas viáveis para fazer frente à crescente demanda de ações para prover os serviços do SUS. Dessa forma, o presente trabalho buscará num primeiro momento discorrer sobre a falência estatal brasileira em prover do Direito fundamental à saúde e finalmente identificar e apontar as atuações da paradiplomacia no enfrentamento ao sub-financiamento da saúde pública no Brasil. Palavras-chave: Financiamento SUS; Direito fundamental à saúde no Brasil; Ações da paradiplomacia 1 2 Doctor in International Law (Université Lorraine, France); Law and International Relations Professor (University Center of Brasília, Brazil); Visiting Professor (Université Lorraine, France). Email: gleisse@yahoo.com Membros do grupo de pesquisa sobre Governança Global do CEUB, alunos egressos e graduandos do Curso de Relações internacionais do CEUB/Brasília. 172 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 1 INTRODUÇÃO Em janeiro de 2020 o mundo deparou-se com o desafio a ser superado após o pronunciamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre a declaração de que surto de COVID-19 constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. A Pandemia de COVID-19 teve origem em 08/12/2019 na cidade de Wuhan, localizada na província de Hubei, na China. No início, o ponto em comum era uma “pneumonia de causa desconhecida” e em todos os casos havia relação com consumo de frutos do mar e de animais vivos. Em 5 de janeiro de 2020 a OMS é alertada pela China sobre os 44 casos de uma “pneumonia de causa desconhecida”. No dia 9 de janeiro 2020 houve a divulgação do código genético do vírus: coronavírus (SARS-CoV-2). Desde 30 de janeiro de 2020 com a declaração a nível global de que se tratava de um surto, o mundo tem lutado para combater a pandemia. Serviços de saúde são cada vez mais demandados e os protocolos de crise não são suficientemente eficazes para garantir a atuação urgente do enfrentamento da COVID-19. Para o provimento de tais serviços o Estado necessitou de forma cada vez mais urgente desenhar e implementar políticas públicas. É importante salientar que a execução de políticas públicas depende de gastos públicos, logo é no processo político-jurídico de definição do dispêndio público onde se encontra a gênese das políticas públicas. É nas leis orçamentárias, nas diretrizes orçamentárias e nos planos plurianuais, todos de iniciativa exclusiva do Poder Executivo e aprovados pelo Poder Legislativo, o ponto de partida das políticas públicas. O resultado final do procedimento é a real prestação de serviços públicos à população. Ocorre que o Estado Brasileiro, por exemplo, deparou-se com uma pandemia sem precedentes e que cada vez mais mostra a ineficiência e o sucateamento dos serviços de saúde tão necessários aos cidadãos. O que se presencia diariamente nos hospitais ou nos noticiários é a crescente incapacidade Estatal em prover os serviços de saúde. Alguns pensarão e defenderão que tal crise decorre do grande volume da demanda por serviços de saúde e que tal crescimento, não se deu somente no Brasil. Na verdade a crise de saúde no Brasil antecede a pandemia. 173 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS O presente trabalho tem por problema de pesquisa demonstrar como a paradiplomacia pode ser uma alternativa viável para que o Estado brasileiro possa superar tal crise e assim buscar financiamentos para o provimento do direito fundamental à saúde. Para tanto, utilizar-se-á a seguinte estrutura de análise: primeiramente demonstrar-se-á o preceito da política estatal brasileira em prover do Direito fundamental à saúde. Posteriormente, demonstrar-se-á como a COVID-19 aumentou e a crise estatal brasileira no que se refere à elaboração de políticas públicas garantidoras do direito fundamental à saúde. Por fim, buscar-se-á, por meio de exemplos, demonstrar como a Paradiplomacia pode atuar e contribuir para o enfrentamento da COVID-19 no Brasil. 2 O BRASIL E A POLÍTICA PÚBLICA DE PROMOÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE Mesmo que se tenha no Brasil a Constituição Federal como marco da garantia dos Direitos fundamentais, mister se faz assinalar, a seguir, as mudanças estatais na promoção de políticas públicas de garantias de direito à saúde. 2.1 Conceito de Direito Fundamental Direito fundamental é considerado pela doutrina um conceito muitas vezes ambíguo e de difícil consenso terminológico já que muitas vezes muitas expressões são utilizadas para representá-lo tais como: direitos humanos fundamentais, liberdades públicas, direitos individuais, direitos subjetivos públicos. E muitas dessas expressões aparecem no texto Constitucional brasileiro de 1988, a saber: direitos humanos (art. 4, inc. II); direitos e garantias fundamentais (título II, y art. 5, § 1); direitos e liberdades constitucionais (art. 5, inc. LXXI) e direitos e garantias individuais (art. 60, § 4, inc. IV). (SARLET, 2019, p. 38, tradução livre). Para o presente trabalho consideraremos Direito fundamental segundo visão de MENDES; BRANCO (2020. p. 139-140): Os direitos fundamentais são pretensões que, em cada momento histórico, se descobrem a partir da perspectiva do valor da dignidade humana [...] pois essa é capaz de formular 174 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS limitações ao exercício do poder e assim prevenir o arbítrio e a injustiça. Ou seja, direitos fundamentais são aqueles direitos que atendem às exigências do respeito à vida, à liberdade, à integridade física e íntima de cada ser humano, ao postulado da igualdade em dignidade de todos os homens e à segurança. Assim, dependendo do período e do aperfeiçoamento da pessoa humana os direitos fundamentais tornam-se exigências específicas de cada momento histórico. Dessa forma, classificar que tipos de direitos são considerados fundamentais torna-se tarefa árdua e que não se tende à homogeneidade. (MENDES; BRANCO, 2020, p. 139). Cabe ressaltar, que também confuso é a data do surgimento dos direitos fundamentais. DIMOULIS (2014, p. 10) salienta que para se detectar a origem de tais direitos mister se faz observar os três elementos formadores quais sejam: a) Estado, b) indivíduo e c) texto normativo regulador da relação entre Estado e indivíduos. Assim, somente com a existência do Estado Moderno passou-se a se poder falar em “direitos fundamentais”. Mesmo que se tenha esse marco na existência dos Direitos fundamentais, mister se faz assinalar que o maior atenção e concretização desses direitos deu-se no pós Segunda Guerra Mundial quando se teve mudanças estatais na promoção de políticas públicas e de garantias de direitos sociais no desenvolvimento dos textos constitucionais e principalmente com a internacionalização desses direitos fundamentais. Com essa internacionalização deu-se a designação de direitos humanos. No Brasil, por exemplo, a Constituição do Império de 1824 no seu artigo 179 elencava os direitos fundamentais. Contudo, esses eram limitados devido à criação do Poder Moderador concedido ao Imperador. Na Constituição de 1891 também se tem no artigo 72 o rol dos Direitos Fundamentais com o reconhecimento dos direitos de reunião e de associação. Demais Constituições como de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969 também apresentavam um rol sistematizado de Direitos Fundamentais. Grande expressividade a esses direitos fundamentais foi dada na Constituição de 1988 que no Título II regulamenta “Dos direitos e garantias fundamentais”. Contudo, tais direitos fundamentais estão referenciados em diversas partes do texto constitucional (DIMOULIS, 2014, p. 24). 175 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Importante ainda comentar que a Constituição de 1988 trouxe por meio das “cláusulas pétreas” a proteção aos direitos fundamentais. Ou seja, há a limitação do “poder de reforma” no sentido de impedir que tais direitos sejam abolidos ou suprimidos. 2.2 A promoção do Direito fundamental à saúde no Brasil Políticas Públicas são as medidas administrativas a serem realizadas pelo Estado para se alcançar objetivos específicos conforme explicitado abaixo: O termo “políticas públicas” é entendido como um conjunto e programas ou ações governamentais necessárias e suficientes, integradas e articuladas para a provisão de bens ou serviços à sociedade, financiadas por recursos orçamentários ou por benefícios de natureza tributária, creditícia e financeira. (BRASIL/IPEA et al, 2018, p. 14) Verificar-se-á nas linhas a seguir a sistemática das etapas que dão ensejo à formação e execução das políticas públicas. Esses passos são importantes para que ocorra uma boa elaboração e aplicação de uma política pública. Assim, esta deve seguir/cumprir algumas etapas quando do seu processo de elaboração, a saber: i) identificação e definição da agenda pública, ii) formulação e escolha das políticas públicas, iii) implementação pelo órgão competente, iv) avaliação por mecanismos contidos na Constituição e nas leis (FONTE, 2013, p. 50). i) Identificação da agenda pública Nessa fase se identifica e se define as prioridades e a forma de se alcançar o objetivo ou, no caso específico, a realização de determinado serviço público. Como salienta FONTES (2013, p. 50-51), essa agenda depende da percepção estatal sobre como deve ser tratada determinada demanda social. Mister se faz esclarecer que muitas vezes essa visão estatal é direcionada seguindo a capacidade de mobilização/reivindicação da massa pública. Agentes como associações privadas, sindicatos, mídia, grupos de lobby conseguem muitas vezes influenciar e mesmo definir a agenda pública. 176 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS ii) Formulação e escolha de políticas públicas No que se refere à formulação de políticas públicas tem-se a estruturação e desenho da política. Ou seja, descreve-se como ela será estruturada. Na maioria dos casos para essa formulação encontra-se limites nos textos legislativos. No caso específico do Brasil, essa formulação encontra limites no texto constitucional. Os poderes legislativo e executivo possuem papel fundamental nessa etapa pois dialogam para que se concretize o passo a passo de como cada etapa será desenvolvida bem como o orçamento que será destinado para tal feito. Como salienta FONTE (2013, p.53), o agente público deve manter o compromisso com os critérios sociais e não individuais quando da escolha e formulação da política pública. iii) Implementação Como implementação entende-se a realização concreta dos planos estabelecidos nas etapas anteriores. Muitas vezes para a concretização e implementação da política necessita-se da estreita relação entre todos os envolvidos: agentes públicos, entes privados, entidades financiadoras, sociedade civil e demais atores envolvidos para a boa realização da política pública. Convém, por oportuno, ressaltar que em todas as fases da implementação há a necessidade da análise cuidadosa da medida a ser aplicada para verificação da coerência existente entre o ajustamento dos objetivos da política pública com a realidade social. Como salienta FONTE (2013, p. 57), a não realização dessa análise é um dos pontos que muitas vezes explicam o insucesso das políticas públicas. iv) Avaliação Avaliar uma política pública significa analisar a eficácia ou não da execução dos objetivos fixados no projeto inicial da política. Ou seja: A avaliação deve ser um processo objetivo de exame e diagnóstico da política pública sob análise. Devem ser considerados, dentre outros aspectos, a forma como a política está sendo implementada, seus efeitos desejados e adversos, os principais stakeholders, e a forma como os recursos públicos 177 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS estão sendo utilizados. [...]. A avaliação deve ser conduzida preferencialmente por outros órgãos independentes, não diretamente responsáveis pela execução da política pública, como os órgãos centrais (Casa Civil; Ministério da Fazenda – MF; Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão – MP; e o Ministério da Transparência e Controladoria-Geral da União – CGU), o Ipea e o Tribunal de Contas da União (TCU), bem como pelas universidades e fundações privadas, mediante interação com o gestor responsável pela política pública. (BRASIL/IPEA et al, 2018, p. 14) Nosso texto constitucional estabelece alguns mecanismos legais de avaliação de políticas públicas: são quatro os mecanismos de avaliação de políticas públicas, cujos parâmetros de controle são distintos e envolvem diversas esferas, a saber: i) Político-eleitoral, ii) Administrativo-interno, iii) Legislativo, iv) Judicial (FONTE, 2013, p. 59). O autor FONTE (2013, p. 59-65) explica que o método Político-eleitoral permite que cidadãos julguem as entidades públicas e seus planos de ação. O processo de avaliação por via Administrativo-interno significa que avaliação é realizada pelos próprios mecanismos internos da Administração pública. O mecanismo de avaliação por via legislativa é o controle de políticas públicas exercido pelo Poder Legislativo e pelos Tribunais de Contas. Por fim, o método de avaliação via judiciário ocorre quando este é provocado para analisar a constitucionalidade/inconstitucionalidade de políticas públicas. A partir dessa descrição da avaliação das políticas públicas, percebe-se que é comum nas democracias contemporâneas o envolvimento dos três poderes distribuídos de forma equitativa e equilibrada para a efetivação de uma política pública. No que que refere à promoção do Direito fundamental à saúde, MENDES (2020, p. 742) cita que a Constituição Brasileira de 1988 foi a primeira a consagrar a questão da saúde como direito fundamental. Ou seja, ela estabelece que a saúde está no rol dos direitos de prestação em sentido amplo. HÄBERLE (2019, 20-21) sintetiza que esse direito prestacional é a relação entre o cidadão e o Estado. Acrescenta que é fundamental se deixar em primeiro plano que essa interação seja permeada de planejamento, de comunicação, de cooperação, de participação. 178 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS O Brasil optou por garantir ao povo um acesso universal, gratuito aos serviços de saúde que precisam ser prestados com equidade e integralidade. As ações e serviços de saúde no Brasil3 são regulados por normas infraconstitucionais que disciplinam o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS): Lei nº 8.080/90 e seus regulamentos e diversas diretrizes 4. O SUS é constituído pelo conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público. (art. 4, Lei 8080/90). Conforme explica REIS (2012, p. 8), as disposições infraconstitucionais que instituíram o SUS, a Lei nº 8.080 de 19/9/90 detalha a organização, as atribuições de cada ente da Federação (federal, estadual e municipal), a gestão financeira e o orçamento bem como a participação complementar do sistema privado. Já a Lei nº 8.142 de 28/12/90 disciplina as transferências intergovernamentais de recursos financeiros, a participação da comunidade na gestão do SUS. Também, instituiu os Conselhos de Saúde. REIS (2012, p.8) ressalta que ao longo dos anos várias outras políticas foram sendo implementadas para o aperfeiçoamento do SUS. 3 Sabe salientar que o SUS é a concretização da Reforma Sanitária iniciada no Brasil na década de 70. “Reforma Sanitária” é a designação que se dá à plataforma política defendida pelo “Movimento Sanitário Brasileiro”, que representou uma ampla articulação de atores sociais, incluindo membros dos departamentos de medicina preventiva de várias universidades, entidades como o Centro Brasileiro de Estudos (CEBES), fundado em 1978, movimentos sociais de luta por melhores condições de saúde, autores e pesquisadores, militantes do movimento pela redemocratização do país nos anos 1970 e 1980 e parlamentares que faziam a crítica às políticas de saúde existentes no Brasil. A “Reforma Sanitária” incluía em sua pauta uma nova organização do sistema de saúde no país – com várias características que o SUS afinal adotou –, em particular uma concepção ampliada dos determinantes sociais do processo saúde-doença e a criação de um sistema público de assistência à saúde, gratuito com garantia de acesso universal do cuidado para todos os brasileiros. REIS (2012 p. 3). 4 Como exemplo vale citar algumas Diretrizes do SUS: • Diretrizes para a Atenção Psicossocial: Portaria MS/GM no 678, de 30/3/2006 • Diretrizes nacionais para o saneamento básico: Lei no 11.445, de 05/01/2007 • Diretrizes Nacionais para a Atenção à Saúde das Pessoas Ostomizadas (instituídas pela Portaria MS/SAS no 400,de 16/11/2009) • Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal, 2004 • Diretrizes para execução e financiamento das ações de Vigilância em Saúde pela União, Estados, Distrito Federal. e Municípios. Portaria no 3.252/2009 • Diretrizes para a Programação Pactuada e Integrada da Assistência à Saúde • Diretrizes para a Implantação de Complexos Reguladores • Diretrizes para a implementação do Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (PROFAPS). Portaria no 3.189/2009 • Diretrizes para Implementação do Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas, 2006 [...] 179 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Contudo, a “Política Nacional de Promoção de Saúde (PNPS) só entrou em vigor em 2006 e teve o Conselho Nacional de Saúde em 2014. Dessa forma, a continuidade dos programas foi mantida e o Brasil passou cada vez mais a ser referência do cuidado à saúde nos fóruns internacionais: A redução da prevalência do tabagismo em 30% constitui meta do Plano de Ações Estratégicas para o Enfrentamento das Doenças Crônicas Não Transmissíveis no Brasil: 2011 – 20229, do Plano Global de DCNT 2015-2025 e da Agenda 2030, dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. O Brasil foi considerado referência global pelo êxito alcançado e recebeu prêmios da Organização Mundial de Saúde (OMS), Fundação Bloomberg e Organização Pan-americana de Saúde (OPAS). As medidas implementadas estão em sintonia com as boas práticas preconizadas pela OMS. (MALTA, 2018) Ocorre que, em 2015, os acontecimentos políticos no Brasil deixaram cicatrizes no processo de reformas ministeriais no âmbito da saúde. Durante governo da Presidente Dilma Rousseff houve mudança na gestão do Ministério da Saúde e publicação de várias portarias ministeriais 958 e 959, de 10 de maio de 2016 que trouxeram mais instabilidade à gestão de saúde no Brasil. Com o impeachment da Presidente em agosto de 2016, sendo o cargo assumido pelo então Vice-Presidente da República, Michel Temer, a crise na saúde seguiu a instabilidade políticoinstitucional brasileira. Em 2017, em meio à crise política- econômica do Brasil, entra em vigor o Plano Nacional de Atenção Básica (PNAB 2017 e como salienta ALMEIDA (2018) “ele foi fruto da arena de disputas travadas no campo da gestão interfederativa, em que prevaleceram os interesses de parte dos atores, ao passo que algumas inovações defendidas tecnicamente foram incorporadas à Política de forma tímida e superficial”. Ocorre que para a implementação das políticas preconizadas no PNAB 2017 havia a necessidade de grande indução financeira federal e o que houve na prática foi redução desses insumos econômicos com a entrada em vigor da Emenda Constitucional 95/20165. 5 Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. EC limitou os gastos governamentais até 2036 como única medida capaz de retornar o crescimento da economia. 180 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Dessa forma, verifica-se diversos impasses da política estatal brasileira préCOVID-19 em prover do Direito fundamental à saúde. As políticas de destaque realizadas pelo Brasil em crises sanitárias anteriores como: “a ação coordenada de gestão, ao dar resposta à Emergência de Saúde Pública Internacional diante do vírus Zika e sua relação com surto de microcefalia; As ações de prevenção/controle das arboviroses (dengue, chikungunya), influenza, H1N1 e, mais recentemente, sarampo” (ARAÚJO 2020) não foram suficientes para garantir uma melhor gestão da pandemia COVID-19 como veremos a seguir. 2.3 A Constituição Brasileira e os investimentos mínimos obrigatórios destinados à saúde Convém evidenciar que o constituinte brasileiro positivou o Direito à saúde como um direito fundamental. Além dessa preocupação em dispor os direitos sociais como garantia fundamental, também estabeleceu constitucionalmente os investimentos mínimos nas áreas de educação e saúde: Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais. [...] Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade. [...] § 1º O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. § 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre. 181 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS I - no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento); II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios III – no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º. § 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá: I - os percentuais de que tratam os incisos II e III do § 2º; [Brasil. Constituição Federal 1988] Importante ainda acrescentar que esses dispositivos constitucionais foram regulamentados/alterados por diversas legislações, a saber: Lei 8080 de 19 de setembro de 1990: Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços; Lei 8142 de 28 de dezembro de 1990: Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Vale lembrar que esses investimentos mínimos estão delineados no sistema orçamentário. A Constituição brasileira definiu que todo o ciclo orçamentário (elaboração, apreciação legislativa, execução, controle e avaliação) terá a participação do equilíbrio de forças estabelecido entre os poderes Executivo e Legislativo (OLIVEIRA E FERREIRA, 2017). Como resultado espera-se que mais do que um jogo de poder, o orçamento seja um mecanismo capaz de promover a concretização dos direitos fundamentais. Como bem salienta SANTOS e GAPARINI (2020, p. 381) o Presidente da República tem o papel de apresentar seu plano de governo e o Congresso Nacional o aperfeiçoará no momento da apreciação podendo modificá-lo por meio de emendas parlamentares. Importante acrescentar que nesse processo de apreciação, a propositura de emendas não pode criar despesas e sim tão somente realocá-las. 182 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Assim cada Poder tem papel específico e complementar no que se refere à elaboração no processo de decisão orçamentária: As Casas Legislativas devem apreciar as leis orçamentarias (PPA, LDO e LOA), autorizar os créditos adicionais, deliberar sobre medidas provisórias, controlar e fiscalizar a atuação do governo. Além disso, é vedado ao Executivo atuar em diversas frentes sem a participação do Congresso, a exemplo do que dispõe o art. 167 da Carta de 1988. Somando-se a isso, conflitos a esse respeito estão sujeitos ao controle jurisdicional. (SANTOS e GAPARINI 2020, p. 381) Ademais, cabe frisar que o planejamento orçamentário definido no art. 165 da Constituição brasileira estabelece três espécies de leis orçamentárias: Plano Plurianual (PPA); Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e Lei Orçamentária Anual (LOA). HARADA (2000) explica que o PPA estabelece diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal, para período superior a um ano; A LDO, nos termos do § 2º do art. 165, “compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro subsequente, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento”. Por fim, a LOA é aquela que abarca o orçamento fiscal referente aos três Poderes da União, fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, além do orçamento de investimentos das empresas estatais (§ 5º do art. 165 da CF); Assim, nesse ciclo orçamentário os poderes Legislativo e Executivo devem atuar de forma complementar para a aprovação da proposta orçamentária. Ocorre que no Brasil esse processo passou a ser conhecido como presidencialismo de coalisão. Como salienta SANTOS e GAPARINI (2020, p. 340) o “Presidente da República faz alianças com diversos partidos, a fim de obter maioria no Congresso e aprovar suas propostas”. Esse sistema favorece a governabilidade mas ao mesmo tempo induz o excesso de barganhas que muitas vezes não viabiliza a eficiência de ações públicas. Com a finalidade de se proporcionar a governabilidade e um melhor gerenciamento do processo legislativo orçamentário, o Executivo tem a iniciativa das leis orçamentárias que são apreciadas pelas Casas do Congresso (om discussão 183 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS parlamentar, emendas, votação, aprovação, veto, sanção). Cabe salientar que nos anos de 1990 a 1993, antes da aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias, definiu-se que 30%, no mínimo, do orçamento da seguridade social seria destinado ao setor de saúde. Contudo, esse percentual nunca foi cumprido! (MARTINIANO, C. et al, 2011, p. 90). Ao longo dos anos o SUS foi marcado por um constante declínio no financiamento de suas atividades. Apresenta-se na Tabela 1 abaixo os investimentos em serviços públicos de saúde em alguns países da OCDE. Percebe-se há uma média de variação de aplicação acima de 5% do PIB dos países. A Colômbia, por exemplo, há uma média de 7% do PIB destinado para financiamento dos serviços de saúde. O Chile tem tido aplicações crescentes no sistema de saúde. Quando observamos o Brasil o valor é inferior a 5% !6 Tabela 1 - Aplicação PIB (%) serviços públicos de saúde Fonte: https://stats.oecd.org/Index.aspx?DataSetCode=SHA&lang=fr Muitas propostas surgiram para se tentar obter a alocação de recursos para a área da saúde: Propostas de Emendas Constitucionais chegaram ao Congresso Nacional em 1999. Uma por iniciativa do Deputado 6 Brasil aplicou 3,8% do PIB em saúde pública em 2016. Fonte: https://www.conjur.com.br/2021-set30/stf-fixa-regra-pagamento-servico-hospitalar-ordem-judicial 184 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Chafick Farah (PPR/SP) que propôs que a União destinasse à saúde 18% de toda sua receita de impostos e contribuições. A outra propositura, de autoria dos Deputados Waldir Pires (PT/BA) e Eduardo Jorge (PT/SP), reitera a destinação dos 30% do OSS para o setor saúde, e ainda 10% da receita de impostos do Tesouro Nacional, o que deveria ser seguido também pelas demais esferas de governo. Ambas as propostas são modestas em relação ao comprometimento do PIB, já que os recursos advindos da primeira equivalem a 1,8% e a segunda a 2,66% do PIB (MARTINIANO, C. et al, 2011, p. 96). Dessa forma, por meio de proposições de Emendas à Constituição tem-se buscado a legalidade e o estabelecimento de vinculação de recursos para a saúde: - Somente após seis anos, desde a apresentação da PEC Nº. 169 na Câmara de Deputados, pelos Deputados Eduardo Jorge e Waldir Pires, em 1993, e sua aglutinação com a PEC Nº. 86, de autoria do Deputado Carlos Mosconi, em 1995, é aprovada a Emenda Constitucional Nº. 29 (EC Nº. 29), em 13/09/2000, que vincula recursos para a saúde nas três esferas de governo, de forma progressiva até o ano de 2004 e estabelece percentuais mínimos de participação das receitas dos estados e dos municípios em 7%, a partir do ano de sua implantação. No caso dos estados e municípios, a destinação deveria crescer anualmente até atingir de 12 e 15 %, respectivamente, do produto da arrecadação dos impostos e transferências constitucionais; - No ano de 2007, houve um bloqueio de R$ 16,4 bilhões, do que estava previsto no Orçamento Geral da União. Desta verba contingenciada, 46% correspondia à área social. As despesas para as políticas sociais (saúde, assistência social, educação, saneamento, entre outras) estavam previstas em R$ 65,1 bilhões e passaram a ser R$ 57,4 bilhões. O principal corte foi no Ministério da Saúde, que teve um orçamento diminuído de R$ 40,6 bilhões para R$ 34,8 bilhões. O controle e acompanhamento do cumprimento da aplicação dos recursos em ações e serviços de saúde são gerenciados pelo SIOPS7 (Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde). Desde sua criação em 2000, verifica-se que o mínimo constitucional a ser investido em políticas de saúde ainda é um desafio a ser perseguido (MARTINIANO, C. et al, 2011, p. 106). 7 O SIOPS é o sistema informatizado, de alimentação obrigatória e acesso público, operacionalizado pelo Ministério da Saúde, instituído para coleta, recuperação, processamento, armazenamento, organização, e disponibilização de informações referentes às receitas totais e às despesa s com saúde dos orçamentos públicos em saúde. O sistema possibilita o acompanhamento e monitoramento da aplicação de recursos em saúde, no âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, sem prejuízo das atribuições próprias dos Poderes Legislativos e dos Tribunais de Contas. Fonte: http://antigo.saude.gov.br/repasses-financeiros/siops 185 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Além da EC n. 29 de 2000, SANTOS e GAPARINI (2020, p. 365) explicam que outras Emendas constitucionais foram promulgadas: EC n. 86 de 2015; EC n. 100 de 2019; EC n. 105 de 2019. A Emenda Constitucional n. 86 de 2015, por exemplo, que instituiu montantes obrigatórios de execução orçamentária para a área de saúde tendo como base de cálculo a Receita Corrente Líquida (RCL) do ano anterior. Em resumo, embora hoje se tenha o preceito constitucional de aplicação de recursos mínimos, o relatório da OCDE “Relatório Econômico para o Brasil – maio 2021” aponta que o gasto com saúde representa 4,7% do PIB do Brasil, percentual que deve ser elevado, até 2060, para 12% do PIB. (OCDE, 2021). É inegável, conforme explicita CAVALCANTE (2018) o SUS é um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo: a assistência do SUS atinge milhões de pessoas, desde a assistência básica e preventiva até tratamentos que envolvem complexidade tecnológica média e alta, inclusive com células-tronco. Embora, com toda a capilaridade, a pandemia COVID-19 tem ressaltado os pontos frágeis do SUS e acima de tudo tem apontado as limitações presentes no federalismo brasileiro, pontos que serão abordados nos tópicos a seguir. 3 A PARADIPLOMACIA: ALTERNATIVA VIÁVEL PARA A EXECUÇÃO ORÇAMENTÁRIA DO SUS A crise estatal brasileira vai além de problemas de saúde pública, há cada vez mais no país uma crise multidimensional e sistêmica. Crise esta que não foi iniciada pelo governo atual do Presidente Jair Bolsonaro e nem com pandemia. Muitos especialistas (DWECK; MORETTI; MELO 2021) descrevem que a pandemia COVID-19 no Brasil veio a aprofundar mais ainda a crise econômica (se arrasta no Brasil desde 2014), institucional (há uma desintegração política). Desde a Constituição de 1988 tenta-se consolidar a democracia e o fortalecimento das instituições públicas e sanitárias (Fiocruz explica que Covid-19 é a maior crise sanitária e hospitalar que o Brasil já enfrentou8). 8 Fonte: https://drauziovarella.uol.com.br/coronavirus/covid-19-e-a-maior-crise-sanitaria-e-hospitalarque-o-brasil-ja-enfrentou/ 186 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A pandemia COVID-19 tem acentuado de forma crescente as incapacidades do Estado em lidar com crises globais. Percebe-se, nessas crises globais, que o Estado de forma unitária não dispõe de instrumentos capazes de controlar e mesmo mitigar as consequências e intervenções da crise em outros setores tais como o econômico, político, social. Nem mesmo a concertação internacional foi capaz de gerenciar todas as ramificações da pandemia COVID-19. Dessa maneira, pode-se assistir à atuação de agentes públicos ou privados que tentam propor, almejam implementar ações possíveis para o enfrentamento da pandemia. 3.1 As ações de paradiplomacia desenvolvidas pelos entes subnacionais A complexidade e o crescimento das necessidades dos entes subnacionais fizeram com que o Estado relativizasse sua soberania nacional e com esse processo deu-se a criação do fenômeno conhecido como Paradiplomacia. KUZNETSOV (2014) conceitua Paradiplomacia como “uma forma de cooperação desenhada por meio de ações auto-sustentadas entre governos regionais e atores governamentais e não governamentais que buscam alcançar benefícios econômicos, culturais, políticos ou quaisquer outros”. Esse fenômeno proporcionou a inserção de novos atores no âmbito das Relações Internacionais. Conforme salienta VARELLA (2019) a soberania estatal tem sido cada vez mais relativizada ao longo dos anos. A paradiplomacia tem sido um dos mecanismos que proporcionou essa relativização. Cada vez mais autores demonstram que a paradiplomacia é uma maneira de se atingir a boa governança [...] e um desenvolvimento de políticas públicas capaz de solucionar problemas e de atingir bons resultados sem, contudo, se excluir por completo a ação Estatal (ALDECOA, 1999). Os primeiros estudos na área datam da década de 70 e a análise deu-se por meio dos casos práticos existentes na América do Norte, principalmente em Quebec e posteriormente no caso no federalismo Norte-Americano. Estudos mais detalhados sobre Paradiplomacia datam dos anos 80 quando o tema passou a ter ramificações 187 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS além América do Norte, e começou também a ser estudado na América Latina e na Ásia. Na década de 90, com vários acontecimentos mudando a política mundial, como a queda do muro de Berlin, o fim da URSS e a criação da União Europeia, aumentou-se o interesse no estudo do tema na Europa. Os anos 90 ficaram marcado segundo o autor Alexander (2015) como da expansão global dos estudos paradiplomáticos e de seus respectivos casos de estudo. O cenário académico desde os anos 70 até meados dos anos 90 foi dominado pela agremiação norte americana, com a ressalva de alguns teóricos canadenses, não só a concentração dos pesquisadores eram dessas regiões citadas como os estudos de casos de regiões fora da América do Norte eram escritos pelos mesmos pesquisadores e não por teóricos locais. Segundo Alexander (2015), ao longo dos anos 90 essa realidade passou a mudar com o aparecimento de estudos feitos por pesquisadores sobre os casos regionais europeus. Esta realidade se deve muito pela mudança política global e os efeitos catalisadores oriundos dos efeitos da globalização e da regionalização. A atividade subnacional começou a ganhar atenção da comunidade internacional entre 1980 e 1990, nessa época foram consolidadas entidades subnacionais europeias, muito por conta dos efeitos políticos e económicos da globalização e pela melhora da integração europeia (aqui entra dentro do fenômeno “novo regionalismo”). Essa importante independência ganha pelos membros locais europeus foi um dos motivos desse crescimento acadêmico dessa década (TAVARES, 2016). O pesquisador Alvarez (2020), chama atenção para o fato de que os estudos eram focalizados na Europa e nos Estados Unidos, visto que, a maioria dos países da América Latina não despertava interesse dos estudiosos porque eles não consideravam que os governos locais fossem capazes e pudessem realizar uma atividade paradiplomática, considerando que eles não proviam de grande autonomia política até os anos 90. Os governos não-centrais latino americanos buscavam ter o mesmo sucesso que os do eixo americano-europeu e assim incitar pesquisas sobre o tema na região, porém, o aumento das tensões nas regiões de fronteira além das políticas de 188 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS segurança e defesa dominantes na época dos anos 80 e 90 frearam essa intenção de avanço nos estudos (ALVAREZ,2020). Cabe salientar, ainda, que na Europa a paradiplomacia é mais observada sob o viés do processo de regionalização que ocorre em todo o espaço europeu e não como um tema voltado para a questão do sistema federativo como é comumente interpretado nos EUA ou no Canadá. TAVARES (2016) cita, por exemplo, o caso da Califórnia e suas atividades internacionais capazes de captar a atenção de várias iniciativas estrangeiras de financiamento de suas ações. Há alguns estudos que buscam demonstrar quais os fatores que têm contribuído à expansão das atividades internacionais dos atores subnacionais. ALDECOA (1999) detectou que as atividades internacionais dos governos subnacionais estão ligadas ao desenvolvimento econômico e a questões como o ambiente, recursos naturais, desenvolvimento sustentável, segurança, cultura, educação, ciência e tecnologia. Dessa forma, a paradiplomacia tem consistido em uma forma de governança (ROSENAU, 2006) capaz de solucionar as ausências estatais. LECOURS (2002) ressalta, no entanto, que os Estados buscam uma boa administração da paradiplomacia para se evitar a desagregação das regiões subnacionais e formação de estados independentes. A pandemia da COVID-19 apresenta desafios sem precedentes principalmente no que se refere à necessidade de ações conjuntas e imediatas. Autores (PHELAN, A. L. e KATZ, R, 2020) relatam que o mundo enfrenta a pandemia mais grave já vivida em amplitude global. As desigualdades geram impactos diferentes das políticas de resposta, e estas exacerbam as desigualdades. O número de pacientes doentes por causa do surto, colapsa os Sistemas de saúde, e se estende para outros setores da sociedade. Essa realidade apresentou ao mundo desafios cruciais a serem superados tais como a coordenação das lideranças existentes em nível mundial e nacional. Essa cooperação tem exigido ampla colaboração e coordenação dos vários indivíduos e organizações envolvidos. Estudos (WEIBLE, 2020) demonstram que as respostas acontecem em dois níveis: um Estratégico e outro Operacional, sendo respectivamente realizadas por líderes políticos-administrativos e profissionais da área da saúde. Alguns exemplos 189 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS do que vem acontecendo nos países ilustram alguns fatores que influenciam na realização das ações necessárias para combate a pandemia tais como: falhas de comunicação, valores diferenciados presentes em cada sociedade, fragilidade de instituições estatais, visões dispares presentes nas lideranças, políticas, econômicas e científicas. Esses fatores presentes em maior ou menor grau podem minar os esforços para se obter uma resposta coletiva à crise. A colaboração internacional intensificou-se e o mundo tem buscado combater a pandemia da COVID-19 por meio da governança global. Percebe-se diversas estratégias orientadas para fazer frente aos desafios sem precedentes. Alguns autores salientam (LECOURS, 2002; KUZNETSOV, 2014) que uma das medidas é a coordenação de uma rede global de atores: sejam eles estatais, privados ou instituições internacionais. Esse arranjo de governança permite a participação de diversos atores que buscam desenvolver ações políticas dirigidas pontualmente para o combate da pandemia da COVID-19. Diante dos desafios colocados pela pandemia, a chamada Diplomacia de Saúde Global e a “Paradiplomacia" tornaram-se ferramentas essenciais frente ao cenário encontrado, especialmente para atores não-estatais e subnacionais. Ao passo que, a pandemia tomava maiores proporções e os países se encontravam em uma crise sanitária mais profunda, as mudanças geopolíticas pareciam nunca ter estado tão presentes no dia a dia dos cidadãos como um todo. Percebe-se que apesar da governança mundial exercida pela OMS no combate à COVID-19, países federativos respondem de formas distintas quando da implementação das estratégias recomendadas pela OMS. No Brasil, por exemplo, as políticas públicas foram formuladas tanto no âmbito federal como nos âmbitos estaduais e municipais. Cabe citar por exemplo a medida federal tomada desde fevereiro 2020 para combate à pandemia (Lei n° 13.979 de 6 de fevereiro de 2020) que foi sucedida por diversas outras regulamentações seja o âmbito federal ou estadual. Contudo, tais regulamentações não foram suficientes para garantir a assimetria entre os entes federados e a instabilidade e falta de respostas coordenadas trouxe grave instabilidade e dificuldade em estabelecer respostas coordenadas para 190 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS enfrentamento do vírus. A combinação dessas circunstâncias atípicas permitiu ver a crescente prática da Paradiplomacia no país, como foi o caso do governo do Maranhão9 e de tantas outras unidades subnacionais. Mesmo diante do esforço dos Estados e municípios em conseguir ajuda internacional, somente no dia 10 de março de 2021 foi sancionada a Lei nº 14.125 de 10/03/2021, que permitiu ao setor privado, municípios e aos estados a compra de imunizantes permitindo maior entrada de vacinas de combate à Covid-19 no país. Assim, a lei concedeu segurança jurídica para que laboratórios internacionais pudessem ser contratados para o fornecimento de produtos, equipamentos diretamente pelos entes da federação, ficando a esses também a responsabilidade em responder pelos atos contratados sem que essa obrigação recaísse sobre a União. A lei acima citada, ainda estabelece sobre vacinas com registro ou autorização temporária de uso no Brasil, desde que sejam validadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Tais vacinas ainda deveriam, segundo a lei, serem doadas de forma integral ao Sistema Único de Saúde (SUS), durante o tempo em que os grupos prioritários estivessem sendo vacinados, depois disso o setor privado poderia reter metade das vacinas que adquiridas, e a outra parte sendo enviada ao SUS. Estados e municípios ainda devem ter um seguro privado como garantia contra eventuais riscos das condições colocadas pelos fornecedores, como Pfizer/BioNTech e Janssen. No entanto, o presidente da república ao sancionar a lei, vetou que os municípios e estados comprassem vacinas de forma suplementar, independente se fossem com recurso federal ou não, caso descumprissem o Plano Nacional de Imunização (PNI) ou se a União não conseguisse garantir uma cobertura imunológica adequada. Os motivos apresentados para tal veto, foi o de haver outra lei que sobre o mesmo o assunto, com a justificativa de evitar despesas adicionais à 9 O Nordeste já vinha se destacando em questões paradiplomáticas desde 2019, com a criação do Consórcio do Nordeste : uma iniciativa que visava atrair investimentos e utilizar projetos de forma integrada. O consórcio foi formado por nove das vinte e sete unidades da federação brasileira. Vários eram os objetivos: a) realização de compras conjuntas/ compartilhadas; b) promoção da integração regional por meio da articulação e implementação de políticas públicas integradas; c) ampliação e modernização da infraestrutura de exploração dos recursos naturais da região; d) atração de investimentos internos e externos para região Nordeste; etc. e) modernizar a gestão dos Estados Membros e promover parcerias com o setor privado; etc. 191 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS União. O governo federal vetou também a obrigatoriedade de o Ministério da Saúde atualizar, no prazo de 48 horas, os painéis de informação das vacinas adquiridas e aplicadas pelo setor privado. Sob o pretexto de que a Constituição Federal só permite por meio de um projeto de lei do presidente da República. Com esses fatos podemos entender como ausência de uma ação centralizada, e quando a mesma aconteceu foi de modo tardio, do Governo Federal para atuação no combate à Covid-19, deu espaço para que os entes federativos pudessem buscar ajuda internacional que estava à disposição. Nesse sentido, apresentamos algumas ações de paradiplomacia, a saber: 3.1.1 Paradiplomacia e o caso do Maranhão O Estado do Maranhão, por exemplo, negociou diretamente com a China a compra de respiradores e máscaras de proteção. Assim, o Estado recebeu em abril de 2020 da China 107 respiradores e 200 mil máscaras. A carga fez o trajeto até o aeroporto de Guarulhos-SP e depois foi fretado um transporte até chegar à São Luís. O governador do Maranhão despachou equipamentos médicos para a Etiópia. Ao desembarcar em São Paulo, a mercadoria foi embarcada diretamente para o Maranhão só onde poderia passar pelos trâmites da Receita Federal, evitando assim que a mercadoria ficasse em São Paulo sob ordem do Governo Federal. Tal estratégia foi organizada para se evitar a apreensão da compra pelo Ministério da Saúde, que estava centralizando os insumos e acabou por apreender equipamentos comprados pelo Estado de Santa Catarina. “A ‘operação de guerra’ maranhense foi montada após três tentativas frustradas do governo estadual para comprar respiradores de uso em cuidados hospitalares intensivos; a logística para transportar 107 respiradores e 200 mil máscaras, ao custo de R$ 6 milhões doados por empresários locais, envolveu 30 pessoas.” (ALVARENGA, 2020) Sob a liderança de Flavio Dino (PCdoB), o governo local optou por descentralizar a saúde e dividir o estado em 18 sub-regiões antes da pandemia. Cada uma dessas áreas possuía pelo menos um hospital administrado pelo estado, distante até 70 quilômetros da cidade em que está localizado. Portanto, São Luís, a capital, 192 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS não correria o risco de colapsar devido à chegada de pacientes do interior, assim como aconteceu em Manaus. Dino também transformou alguns hospitais de campanha em instalações permanentes e usou recursos adicionais do Governo Federal para expandir os centros de enfermagem existentes ou concluir projetos em andamento. E assim o Maranhão, antes visto como o estado mais pobre da federação, conseguiu surpreender com a menor taxa de óbitos durante a pandemia (EDOARDO GHIROTTO e CASTRO 2021) 3.1.2 Paradiplomacia e o caso do Estado Amazonas No Amazonas existem vários motivos que justifiquem, desde antes da pandemia, já possuir um comportamento voltado para o cenário internacional, um desses motivos pode ser demostrado por suas questões de fronteiras, de desenvolvimento do Polo Industrial de Manaus e por outros motivos, proporcionando um ambiente de constituição da Secretaria Adjuntas de Relações Internacionais (SEARI). Essa Secretaria tem o objetivo de dar tecnicidade, responsabilidade e legalidade para atuação do estado no ambiente internacional. Ela que presta auxílio ao Governador à outras secretarias, em temas que sejam de interesse no meio internacional, sejam elas advindas de instituições governamentais ou da sociedade civil, ou ainda da iniciativa privada. As diversas articulações realizadas pelo o Estado do Amazonas surtiram efeitos positivos: houve ajuda do Conselho Federal da OAB e do Comitê de Crise do Congresso Nacional, da Embaixada da China e do Instituto Sociocultural Brasil/China (Ibrachina). Com isto conseguiram ser entregues ao Estado do Amazonas 700 cilindros de oxigênio e aproximadamente duas mil seringas. A crise que sufocou a rede de saúde, comprometendo a rede de abastecimento de oxigênio em Manaus, levando muitos a óbitos nos hospitais, foi a cauda de uma resposta da chinesa, que resultou em doações financeiras imediatas para a compra de oxigênio e material hospitalar. Fruto de ações revertidas dos termos definidos e sustentados pela 193 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS ação humanitária firmado entre a Ibrachina a OAB Amazonas e a Coordenação Brasil/China da OAB Nacional.10 Além do governo estadual o prefeito da capital amazonense, Arthur Virgílio Neto (PSDB), utilizou da Paradiplomacia para conseguir ajuda internacional de aproximadamente 21 chefes de Estado tais como: EUA, França e Alemanha e outros. Essa iniciativa foi batizada com o nome de ‘S.O.S. Manaus – Help the guardians of the rainforest’.11 Cabe salientar que tais ações paradiplomáticas que acontecem no Estado de Amazonas são auxiliadas por uma estrutura instituída na SERFI – Secretaria de Estado de Relações Federativas e Internacionais. A instituição possui sede em Brasília e foi criada desde 2019, por força de lei estadual, e tem o objetivo de criar diálogo entre o Estado do Amazonas e outros entes federativos e outros atores nacionais e internacionais.12 Esta estrutura ao ser criada demonstra interesse do Estado em buscar ativamente soluções entre o relacionamento no cenário internacional, sem abandonar o doméstico. A instituição amazonense possui frutos concretos e publicados de sua atuação como a que aconteceu em fevereiro de 2021, quando houve um encontro destinado para se verificar as ações capazes de se viabilizar a aquisição de insumos tais como o ingrediente farmacêutico ativo (IFA) necessário para a produção das vacinas contra a Covid-19. Participaram dessa reunião: o secretário de Relações Federativas e Internacionais, Adriano Mendonça, representante do governador do Amazonas, Wilson Lima, durante o Fórum dos Governadores em conjunto com a Embaixada da China. 13 Há ainda registros de que em 27 de maio de 2021 o governador estadual Wilson Lima, em conjunto ao secretário de Relações Federativas e Internacionais (SERFI), Adriano Mendonça, reuniuniram-se em uma cerimônia virtual, com o embaixador Todd Chapman para o recebimento de 1,1 milhão de Equipamentos de 10 https://www.oabam.org.br/2021/01/16/oab-am-busca-apoio-internacional-para-fortalecer-socorro-asvitimas-da-covid_19/ acessado em 24/07/2021. 11 https://noticias.r7.com/prisma/r7-planalto/em-video-prefeito-de-manaus-pede-ajuda-de-21-chefes-deestado-06052020 acessado em 24/07/2021. 12 http://www.serfi.am.gov.br/ acessado em 24/07/2021. 13 http://www.serfi.am.gov.br/reuniao-com-a-embaixada-da-china/ acessado em 24/07/2021. 194 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Proteção Individual (EPIs) frutos de uma doação vinda da Embaixada dos Estados Unidos em prol do Hospital e Pronto-Socorro Delphina Aziz, que foi o hospital referência no combate à Covid-19 em Amazonas.14 É perceptível como o Estado do Amazonas não reserva esforços para angariar, no cenário internacional, colaboração para encontrar soluções em seus problemas internos. A própria estrutura burocrática que existe em Brasília demonstra que o Governo de maneira sistemática utiliza da Paradiplomacia para conquistar um espaço de atuação. Cada vez mais a paradiplomacia tem sido utilizada pelos entes subnacionais para atender as necessidades do estado tais como: modernização e especialização de secretarias, hospitais, profissionais de saúde. Assim, os governos subnacionais tomaram a responsabilidade para si, pois a demora por parte do governo central/federal em tomar medidas levou a população da exigir medidas mais pontuais e providências necessárias por parte dos estados e municípios. Os Estudos demonstram que São Paulo, Bahia, Pernambuco e Ceará são os estados que possuem os maiores números de projetos realizados por meio da paradiplomacia e da cooperação internacional” (CORREA, 2020). Além da temática de saúde outros temas também são destaques nesses tipos de projetos: o desenvolvimento econômico e social, comércio e turismo. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A pandemia da COVID-19 no Brasil e no Mundo vem demonstrando que o sistema mundo de globalização precisa ser revisto para que se possa buscar novas alternativas de enfrentamento de temas globais. Verificou-se por meio do presente trabalho que a dificuldade não paira somente no que se refere à complexidade que o tema da pandemia da COVID-19 trouxe ao sistema internacional. O Brasil mesmo com uma política estatal universal e coordenada de saúde pública (SUS) tem sido menos efetivo na implementação das medidas globais devido à pouca sinergia entre as diversas dimensões das instituições estatais. Percebe-se 14 http://www.serfi.am.gov.br/cerimonia-virtual-com-a-embaixada-americana/ acessado em 24/07/2021. 195 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS cada vez mais a falta de coordenação entre os entes subnacionais o que acaba por não promover o desenvolvimento de politicas públicas efetivas para o combate à pandemia. Pôde-se perceber que na realidade, a dimensão da cooperação internacional existente entre diversos entes internacionais (OMS, ONU, OMPI, OMC...) não foi possível trazer a solução aos entes nacionais. Na realidade, cabe ainda acrescentar que a efetiva aplicação de políticas internacionais só ocorre quando se tem na esfera local/estatal uma infraestrutura básica capaz de aplicar as recomendações globais. No caso brasileiro, por exemplo, não foi a falta de recomendações internacionais e nem a falta de um sistema de saúde universal como o que ocorreu em outros países. No Brasil a problemática maior deu-se em torno da falta de coordenação entre as instituições governamentais em todos os níveis: federal, estadual, municipal. Nesse cenário de crise, o presente trabalho apresentou uma alternativa mediana para o enfrentamento da pandemia. Ou seja, ações não somente Estatais e nem ações unicamente propostas pela comunidade internacional, mas o caminho do meio. Analisou-se, assim, a utilização de alternativas como a paradiplomacia que possibilitou a realização ações pontuais, mais adaptadas às necessidades e às realidades de cada parte do Brasil tão dispare em sua geografia, em sua política e em sua estrutura. REFERÊNCIAS ALDECOA, Francisco; KEATING, Michael. Paradiplomacy in action: the foreign relations of subnational governments. Taylor & Francis, 1999. ALMEIDA, Erika Rodrigues de et al. Política Nacional de Atenção Básica no Brasil: uma análise do processo de revisão (2015–2017). 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A CRISE SOCIAL E ECONÔMICA CAUSADA PELA PANDEMIA DO COVID-19 É A OPORTUNIDADE PARA ENTERRAR A AUSTERIDADE FISCAL Marcus Firmino Santiago1 RESUMO Em resposta à Grande Recessão que se abateu sobre o mundo em 2008, diversos países adotaram medidas alinhadas com a austeridade fiscal a fim de conter os desequilíbrios orçamentários decorrentes, de um lado, das medidas de socorro ao sistema financeiro e, de outro, da enorme queda de arrecadação causada pelo colapso da economia. Os cortes de gastos públicos afetaram especialmente as redes de proteção social, onde se incluem sistemas previdenciários, mecanismos de proteção aos trabalhadores, programas assistenciais ou de moradia, por exemplo. Assim, a chegada da pandemia do Covid-19, com seus profundos impactos sanitários, sociais e econômicos, encontrou populações vulneráveis e países incapazes de oferecer respostas adequadas – ao menos não na proporção necessária. Sustenta-se que a gravidade do quadro social vivido hoje foi potencializada pelas escolhas da década anterior com sua aposta na redução do papel estatal como garantidor do bem estar social e que a saída para esta e outras crises humanitárias que possam surgir reside no fortalecimento da capacidade interventiva e regulatória do Estado. Palavras chave: Bem-estar social. Austeridade fiscal. Crise social. Pandemia Covid19 1 INTRODUÇÃO O ano de 2020 certamente será lembrado por muito tempo como um divisor de águas, sob vários aspectos. A explosão da epidemia do Covid-19 mudou as perspectivas e planos que vinham sendo feitos, seja nas vidas individuais, seja na gestão estatal. 1 Pós-doutor em Direito, Estado e Sociedade pela UnB. Doutor em Direito do Estado. Mestre em Direito Público. Professor de Direito Constitucional, Teoria do Estado e Direitos Humanos. Advogado especialista em Direito e Jurisdição Constitucional. Sócio do Soraia Mendes, Marcus Santiago & Advogadas Associadas. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8405313313388657 E-mail: marcusfsantiago@gmail.com 201 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A década anterior foi difícil para a maioria dos países, ainda afetados pela Grande Recessão de 2008. Pobreza, desemprego e desigualdade social crescentes são alguns dos legados de um longo período de crescimento econômico baixo e predominantemente concentrador de riquezas. Havia, contudo, esperança de que a nova década finalmente traria a retomada há tanto anunciada. Em janeiro de 2020, o FMI previa que a renda mundial iria crescer em cerca de 3%. No início de maio, com o mundo já mergulhado no colapso sanitário, social e econômico, estimava uma retração de 3%, montante muito maior do que o verificado em 2008.2 Ao final, o tombo alcançou 4,3%, segundo dados do Banco Mundial. 3 A julgar pela forma persistente como a doença tem se disseminado, apesar dos esforços para realizar a vacinação em massa, o golpe será muito pior do que tais números podem traduzir, especialmente para aqueles que já se encontravam em situação de fragilidade. Afinal, não se pode esquecer, médias mascaram a realidade daqueles que estão nos extremos do espectro de análise e o cenário presente já é de ampliação contínua da quantidade de pessoas em condição de vulnerabilidade. É evidente que nenhum país estava preparado para enfrentar problemas de tal magnitude, porém, a capacidade de reação de vários tinha sido particularmente reduzida. Isto porque, em razão da Grande Recessão, muitos optaram por buscar a retomada do crescimento pela via da austeridade fiscal, apostando nos mercados como agentes promotores de desenvolvimento. Viram-se, então, comprometidos com a redução do custo de manutenção do Estado, tendo adotado medidas orçamentárias restritivas que afetaram particularmente as redes de proteção social. A epidemia do Covid-19 trouxe uma pressão imensa sobre a saúde pública, a previdência e a assistência social, o amparo ao desemprego e a educação. Porém, as pessoas afetadas encontraram sistemas protetivos esvaziados, com abrangência reduzida, acesso limitado e financiamento restrito. Mais ainda, se viram confrontadas em suas necessidades por governos cujas opções ideológicas nem 2 FURCERI, Davide; LOUNGANI, Prakash; OSTRY, Jonathan D. Como as pandemias deixam os pobres mais pobres. IMF Blog. Diálogo a Fondo. Disponível em <https://www.imf.org/pt/News/Articles/2020/05/11/blog051120-how-pandemics-leave-the-poor-evenfarther-behind?sc_mode=1> Acesso em 11 de maio de 2020. 3 THE WORLD BANK. Perspectivas Econômicas Globais. Disponível em < https://www.worldbank.org/pt/publication/global-economic-prospects > Acesso em 03 abr. 2021. 202 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS sempre permitem uma abertura à adoção de medidas de amparo abrangentes. E, como de hábito, os mais pobres sofrem mais. Os dados já compilados no Brasil e em vários cantos do mundo mostram a ampliação da pobreza, das privações e da desigualdade. Estima-se que cerca de 100 milhões de pessoas foram empurradas para uma condição de pobreza extrema, 4 o que, em algumas regiões, representa um retrocesso de 30 anos! 5 Diante deste quadro, o presente estudo se propõe a analisar a realidade econômico social construída na última década a fim de compreender, em linhas gerais, como a opção pelos modelos de austeridade fiscal restringem a capacidade de resposta dos governos em momentos como o atual e afetam as pessoas. Pretende-se, com isso, defender a reversão deste quadro, apostando-se no contínuo intervencionismo estatal como caminho para superar a tragédia humanitária vivida hoje e construir sociedades mais equilibradas e melhor aparelhadas para lidar com adversidades. Este é o rumo que está sendo apontado por um número cada vez maior de vozes que, depois de um longo período sufocadas pelos mantras entoados em prol do liberalismo econômico, da austeridade fiscal e da deificação do livre mercado, começam a se fazer ouvir. 2 DESENVOLVIMENTO 2.1 O pêndulo do intervencionismo estatal: a opção pelas políticas de austeridade como resposta à crise econômica de 2008 e os impactos sociais decorrentes desta escolha O mundo chegou em 2020 ainda sob o trauma da Grande Recessão, que deixou como legado toda uma década de retração - ou, no melhor dos casos, 4 5 Segundo parâmetros definidos pelo Banco Mundial, as linhas de pobreza são definidas pela renda individual diária, medida em dólar paridade poder de compra, forma de estabelecer uma cotação da moeda comparável entre os diferentes países. Assim, pessoas pobres são as que contam com menos de $ 3,20 dólares por dia, enquanto as extremamente pobres dispõem de menos de $ 1,90 dólares por dia. Dados disponíveis em The World Bank. Understanding poverty. < https://www.worldbank.org/en/understanding-poverty > SENHADJI, Abdelhak et alli. Lograr los Objetivos de Desarrollo Sostenible exigirá un esfuerzo extraordinario por parte de todos. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 29 de abril de 2021. Disponível em < https://blog-dialogoafondo.imf.org/?p=15594&utm_medium=email&utm_source=govdelivery > Acesso em 29 abr. 2021. 203 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS estagnação - econômica e severos impactos sociais. Havia a expectativa de uma retomada que finalmente se anunciava vigorosa, mas as previsões caíram por terra diante da hecatombe que a pandemia do Covid-19 se revelou. O que parecia ser a saída de um longo e persistente ciclo revelou-se o início de uma nova debacle de proporções desconhecidas.6 A Grande Recessão global, que se iniciou na virada de 2007 para 2008, originou-se no colapso do sistema bancário norte-americano e teve por causa uma longa cadeia de ações especulativas, estimuladas por uma lógica de caça à renda possível graças à fragilidade regulatória. A magnitude do problema, que logo ultrapassou aquele setor específico e contaminou uma ampla rede de agentes financeiros, levou diversos governos a promover seu resgate, socializando os prejuízos advindos da especulação desenfreada que promoveram durante anos. Embora não tenha havido qualquer “orgia de despesa governamental”, como Mark Blyth destaca,7 o ônus da salvação do sistema bancário, que incluiu o resgate de títulos irrecuperáveis e a recapitalização de várias instituições financeiras, acabou nas contas dos governos e da sociedade.8 O socorro veio ao custo da forte expansão da dívida pública. O ato seguinte revelou um absurdo paradoxo: os mercados financeiros, aqueles salvos graças à injeção de recursos públicos, passaram a desconfiar da capacidade de vários países continuarem rolando suas dívidas. Sem confiança, o fluxo de recursos para os Estados foi restrito e o que era uma crise dos mercados privados se tornou uma crise fiscal orçamentária. Sob pressão daqueles agentes, vários Estados entraram em colapso. Pôs-se em marcha, então, um amplo processo voltado a convencer as pessoas de que a culpa era dos Estados, pouco importando se a causa primária do problema não residisse neles.9 Segundo esta narrativa, a única saída para a recessão 6 CERRA, Valerie; SAXENA, Sweta C. As cicatrizes econômicas das crises e recessões. IMF Blog. Insights and Analysis on Economics & Finances. 21 de março de 2018. Disponível em <https://www.imf.org/external/lang/portuguese/np/blog/2018/032118p.pdf> Acesso em 02 abr. 2018, p. 2. 7 BLYTH, Mark. Austeridade. A história de uma ideia perigosa. Trad. Freitas e Silva. São Paulo: Autonomia Literária, 2017, p. 28-29. 8 BLYTH, Mark. Austeridade. Op. cit., p. 27. 9 BLYTH, Mark. Austeridade. Op. cit., p. 28-29. Como explica Paulo Mota: “(...) o aumento muito significativo e abrupto do rácio de dívida em percentagem do PIB em vários países desenvolvidos em 204 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS disseminada viria pela via das medidas de austeridade fiscal e esvaziamento da sua capacidade interventiva. Neste ponto, importante definir o que é austeridade fiscal. A expressão denomina um conjunto de ações que visam reequilibrar o orçamento estatal, de um lado reduzindo o gasto e, de outro, incrementando a arrecadação. Esta, contudo, não deve vir na forma de aumento de tributos, mas pela retomada da atividade produtiva, estimulada pelo aumento da competitividade das empresas, o que se alcançaria reduzindo seus custos, como os regulatórios (com medidas de proteção ambiental, por exemplo) e os com mão de obra.10 Assim, a austeridade aposta nos agentes privados como atores centrais no processo de retomada do ciclo produtivo, pelo que pressupõe a supressão de mecanismos de intervenção estatal nos mercados, seja no plano regulatório, seja no da ação direta.11 Os resultados alcançados pelos países que fizeram semelhante opção nunca se mostraram positivos, seja na perspectiva das condições de vida de seu povo, seja quanto ao sonhado equilíbrio fiscal. Mark Blyth demonstra como os países europeus mais afetados pela recessão (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha, conhecidos como PIIGS) até 2015 não tinham conseguido revertê-la, apesar de terem seguido firmemente a cartilha da austeridade.12 Estudo posterior, de 2018, mostra que todos continuavam seguindo pelo mesmo rumo, salvo Portugal que, a partir de 2016, apostou no Estado como vetor de desenvolvimento e, desde então, começou a colher frutos bastante positivos.13 Quando a gestão estatal se pauta em modelos de austeridade, perde de mira a preocupação com a natureza distributiva do crescimento e com o direcionamento dos investimentos públicos para o combate às várias formas de desigualdade, seja por meio de ações imediatas (como programas de moradia ou proteção ao emprego), seja geral (...) deve ser encarado mais como um sintoma, ou como um efeito colateral, do que propriamente como uma causa da crise. Por isso é seguro afirmar que foi a crise financeira internacional que causou a crise das dívidas soberanas e não o contrário (...)” MOTA, Paulo. Austeridade Expansionista. Como matar uma ideia zombie? Coimbra: Almedina, 2017, p. 52. 10 MOTA, Paulo. Austeridade Expansionista. Op. cit., p. 44. 11 BLYTH, Mark. Austeridade. Op. cit., p. 22. 12 BLYTH, Mark. Austeridade. Op. cit., p. 24. 13 GASPAR, Vitor; JARAMILLO, Laura. Reduzir a dívida elevada. IMF Blog. Insights and Analysis on Economics & Finance. 18 abr. 2018. Disponível em < https://blogs.imf.org/ > Acesso em 25 abr. 2018. 205 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS no longo prazo (garantindo a participação política ou assegurando uma boa educação).14 Assim, tem-se um impacto direto nas redes de proteção social, fragilizadas ante a pressão dos mercados financeiros, ávidos pela redução de gastos não raro rotulados como verdadeiras extravagâncias. 15 Se os investimentos sociais são reduzidos, as possibilidades de desenvolvimento se esvaem. Isto se dá porque as causas tradicionais de exclusão se expandem, aumentando a distância e a diferenciação entre os indivíduos. Assim, vários são alijados do mercado de trabalho, menos pessoas têm possibilidade de empreender e inovar, a renda média segue deprimida, reduzindo a capacidade de consumo e a demanda por produtos e serviços, a mobilidade geracional é comprometida.16 Consequentemente, mergulha-se em um ciclo vicioso no qual a atividade produtiva segue deprimida, assim como a arrecadação estatal, fazendo com que os déficits orçamentários continuem e o problema originário siga intocado. O caminho prioritário para superar a crise fiscal que acomete os Estados não deveria ser o da supressão de investimentos sociais, pois o risco deste modelo para a vida das pessoas é demasiado alto. A falta de um colchão de proteção social abrangente amplia a vulnerabilidade que já acomete partes significativas da população, especialmente em países com índices tão alarmantes e persistentes de desigualdade como o Brasil. A gestão orçamentária, reflexo das prioridades coletivas e, consequentemente, das opções alocatícias, precisa ser orientada não apenas ao curto prazo, mas especialmente para os desafios futuros, afinal, o desenvolvimento de um país não se mede apenas por indicadores econométricos – como PIB e renda per capita – mas igualmente pela melhoria contínua nos padrões de vida das pessoas.17 14 SEN, Amartya. Temas-chave do Século XXI. in SEN, Amartya; KLIKSBERG, Bernardo. As Pessoas em Primeiro Lugar. A ética do desenvolvimento e os problemas do mundo globalizado. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 101-102. 15 KERSTENETZKY, Celia Lessa; GUEDES, Graciele Pereira. O Welfare State Resiste? Desenvolvimentos recentes do estado social nos países da OCDE. Ciência & Saúde Coletiva. Vol. 23, n. 7, 2018. p. 2098. 16 FERRAJOLI, Luigi. Manifiesto por la Igualdad. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez. Madrid: Trotta, 2019, p. 86. 17 GASPAR, Vitor; JARAMILLO, Laura. Reduzir a dívida elevada. Op. cit. 206 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Quando se busca o reequilíbrio orçamentário apenas pela via da redução de despesas, perde-se a perspectiva abrangente de desenvolvimento, conceito que certamente transcende ao crescimento econômico. Como sustenta Amartya Sen, desenvolvimento é reflexo da evolução individual e coletiva, segundo aspectos que se somam ao crescimento econômico. Afinal, não é apenas a baixa renda que torna uma vida miserável. Sistemas de saúde pública precários, falta de água tratada, de moradia decente ou de empregos formais e protegidos são exemplos de privações não financeiras que amplificam a exclusão e impactam decisivamente na qualidade de vida.18 E a pandemia do Covid-19 mostrou, para quem não queria ver, como tais privações efetivamente colocam as pessoas em risco. Quando se compreende desenvolvimento nesta dimensão, fica clara sua incompatibilidade com modelos econômicos que apostam nos mercados e fragilizam a capacidade de ação estatal. O mesmo liberalismo que defende as políticas de austeridade entende que benefícios sociais devem ser disputados no livre mercado, cabendo ao Estado apenas o estritamente essencial para evitar que as pessoas caiam em uma condição de miséria absoluta. A expansão desta forma de compreender o papel do Estado, aliada ao cenário de baixo crescimento generalizado, fez com que os países reduzissem os investimentos sociais, fragilizando as redes de proteção. Olhando para o Brasil, percebe-se que semelhante opção foi incorporada não apenas aos discursos, mas já vem produzindo resultados concretos. É notável o declínio dos recursos federais destinados aos sistemas de proteção. Bom exemplo se encontra em estudo elaborado pela OXFAM com base em dados relativos aos anos de 2016 e 2017 que mostra como, imediatamente após a aprovação da Emenda Constitucional n. 95/2016, “(...) as parcelas das dotações orçamentárias com saúde e educação do orçamento federal caíram, respectivamente, 17% e 19%.”19 O gráfico abaixo ilustra as variações orçamentárias nominais experimentadas por diferentes programas sociais mantidos pelo Governo Federal e demonstra a redução 18 19 SEN, Amartya. Temas-chave do Século XXI. Op. cit., p. 95. OXFAM. Brasil: Direitos Humanos em Tempos de Austeridade. Disponível em < http://www.oxfam.org.br> Acesso em 25 abr. 2019, p. 4. 207 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS generalizada nos investimentos realizados, em uma comparação entre os anos de 2014 e 2017:20 No que tange especificamente à saúde pública, ao final de 2019, a Secretaria do Tesouro Nacional constatou que a área deixou de receber quase R$ 9 bilhões em razão do teto de gastos. Chegou-se a este valor compulsando a expansão que se deu entre os anos de 2018 e 2019 e aquela que deveria ter ocorrido caso ainda em vigor a regra anterior (percentual de gasto com saúde incidente sobre a receita corrente líquida).21 Enfim, o país chegou em 2020 preso a um quadro de estagnação persistente, com boa parte de sua população fortemente empobrecida e fragilizada e com investimentos sociais deprimidos. Em outras palavras, um quando de severa vulnerabilidade social. Porém, em que pese a imensa necessidade de uma ampla rede protetiva, a escolha feita pelos dois últimos governos foi no sentido de reduzi-la, optando pelo modelo da austeridade fiscal para retomar o crescimento. O que não 20 21 Disponível em: OXFAM. Brasil: Direitos Humanos em Tempos de Austeridade. Op. cit., p. 4. Os dados foram extraídos do Relatório Resumido da Execução Orçamentária, elaborado pela Secretaria do Tesouro Nacional e disponível no site < https://www.tesourotransparente.gov.br > Acesso em 27 fev. 2020. 208 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS aconteceu até agora e certamente não acontecerá, diante da hecatombe que a crise do Covid-19 promoveu. 2.2 A Pandemia do COVID-19: um cataclisma sanitário, social e econômico, especialmente para os mais pobres A fragilidade financeira vivida pelo Brasil está presente, com igual intensidade, na região da América Latina e do Caribe, segundo estudos do Banco Mundial e da CEPAL. De fato, como destaca o primeiro organismo em relatório disponibilizado em abril de 2020, nos últimos cinco anos a média de crescimento nesta área ficou próxima a zero. A maior parte dos países – dentre os quais o Brasil – tem na exportação de commodities sua principal fonte de recursos, o que os torna extremamente vulneráveis às variações de preços, que já seguiam trajetória de baixa e agora, ante a profunda retração de demanda causada pela epidemia do Covid-19, se deprimiram em níveis impressionantes. Vale registrar que em 2019, quase toda a região foi assolada por mobilizações sociais, em regra motivadas por críticas à desigualdade, à fragilidade dos sistemas de proteção social e às medidas voltadas a reduzir sua abrangência, como as reformas dos sistemas previdenciários. Já estava claro “(...) o crescente hiato entre as expectativas do povo e as realidades econômicas e sociais de cada país.” 22 O caso chileno é significativo: “In early 2020, even prior to the start of the Covid-19 pandemic, Chile was experiencing a serious economic crisis, which put strong pressure on the government to deal with issues of inequality and welfare improvements.”23 Naquele momento, contudo, o interesse em acolher semelhantes reivindicações parecia bastante restrito, visto o comprometimento da maioria dos governos com a agenda liberal. Um vírus novo, porém, mudou tudo. 22 23 THE WORLD BANK. A Economia nos Tempos de Covid-19. Relatório semestral sobre a região da América Latina e Caribe. Banco Mundial. 12 de abril de 2020. Disponível em <https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/33555/9781464815706.pdf> Acesso em 04 jun. 2020, p. 5. J-PAL. The Abdul Latif Jameel Poverty Action Lab. Designing a social protection program during Covid-19. Disponível em https://www.povertyactionlab.org/case-study/designing-social-protectionprogram-during-covid-19 Acesso em 30 mar. 2021. 209 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS É sabido que recessões causam estragos disseminados, especialmente em um contexto no qual as economias mundiais são entrelaçadas, com cadeias de produção e consumo espalhadas por todo o globo. A atual, contudo, foge a tudo que se vivenciou até agora. Como explicam Sonali Das e Philippe Wingender, “Em comparação com crises mundiais anteriores, a contração foi súbita e profunda: com base em dados trimestrais, verifica-se que o produto mundial diminuiu cerca de três vezes mais do que na crise financeira mundial [iniciada em 2008], na metade do tempo.”24 Junto com um enorme custo direto em vidas humanas, a pandemia também provocou um verdadeiro desastre econômico global, profundo e persistente, e que coloca ainda mais pessoas em risco. Ainda se está tentando quantificar as perdas humanas e econômicas vividas até aqui e não se faz ideia de suas repercussões futuras.25 Fato é que a rápida expansão da epidemia do Covid-19 e os intensos impactos que gerou na sociedade e na economia obrigaram a uma brusca revisão nas prioridades, abrindo espaço para que, finalmente, se quebre a resistência disseminada quanto à necessidade de investimentos públicos e medidas contracíclicas severas: “(...) a maioria dos governos optou, de forma sensata, por salvar vidas ‘a qualquer custo’, se necessário.” 26 Foram adotadas ações contracíclicas expressivas, levando à injeção sem precedentes de recursos públicos na economia, o que permitiu minimizar os danos decorrentes da paralisia que se abateu no sistema produtivo face à necessidade de medidas protetivas de distanciamento social.27 Apesar de certa relutância inicial, o Brasil acabou por adotar um programa de transferência de renda que produziu resultados significativos, embora transitórios: durante o primeiro ciclo de pagamento do auxílio emergencial (instituído pela Lei n. 13.982, de 02/04/2020), no segundo semestre de 2020, apesar da queda exponencial do número de pessoas ocupadas, a 24 DAS, Sonali; WINGENDER, Philippe. Cicatrizes que perduram: O legado da pandemia. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 31 de março de 2021. Disponível em < https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/03/31/blog-slow-healing-scars-the-pandemic-legacy> Acesso em 31 mar. 2021. 25 THE WORLD BANK. La Pobreza y la Prosperidad Compartida 2020. Un cambio de suerte. p. 2. Disponível em < https://openknowledge.worldbank.org/bitstream/handle/10986/34496/211602ovSP.pdf?sequence=21&i sAllowed=y > Acesso em 12 mai. 2021. 26 THE WORLD BANK. A Economia nos Tempos de Covid-19. Op. cit., p. 5. 27 DAS, Sonali; WINGENDER, Philippe. Cicatrizes que perduram: O legado da pandemia. Op. cit. 210 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS pobreza e a pobreza extrema foram reduzidas. E, ainda, considerando que famílias de menor renda têm maior propensão a gastar a integralidade de seus rendimentos, outro efeito percebido foi a atenuação do ritmo de queda do PIB e da arrecadação de tributos, evidenciando o efeito multiplicador dos benefícios sociais.28 Tudo isso, contudo, não foi suficiente para impedir, de um lado, uma redução ainda significativa nos níveis de emprego e renda e, de outro, a continuidade da debacle econômica que se instalou. Há razoável consenso de que a trajetória até uma efetiva recuperação será longa e não linear, especialmente em países que já vinham sofrendo com o aumento da desigualdade e da pobreza. O caso da América Latina - e do Brasil, por certo - é marcante, pois a região entrou na pandemia já na condição de detentora dos maiores níveis de diferenciação e exclusão social e, “(...) como grande parte do resto do mundo, sairá dela mais pobre e mais desigual. Segundo estimativas iniciais, mais 19 milhões de pessoas na região caíram na pobreza e a desigualdade aumentou 5% em relação aos níveis anteriores à crise.”29 Em termos de PIB, a contração foi de 7%, a pior do mundo e bastante acima da média global, que ficou em 3,3%, e a renda per capita não deverá se recuperar antes de 2024.30 No Brasil, entre o início e o final do ano de 2020, a força de trabalho ocupada caiu de 53,3% para 47,1%, impacto sem precedentes na história nacional, e atingiu com especial severidade os trabalhadores informais. Para estes, a perda chegou a 18%, ao passo que o fechamento de empregos formais ficou em 5,4%. Assim, 28 SANCHES, Marina; CARDOMINGO, Matias; CARVALHO, Laura. Quão mais fundo poderia ter sido esse poço? Analisando o efeito estabilizador do Auxílio Emergencial em 2020. MADE. Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades. Nota de política econômica. 08/02/2021. Disponível em < https://madeusp.com.br/wp-content/uploads/2021/02/NPE007_site.pdf > Acesso em 18 fev. 2021. 29 SAYEH, Antoinette et alii. O que vem depois do superciclo das commodities e da pandemia? Políticas para enfrentar a pobreza e a desigualdade na América Latina. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 27 de abril de 2021. Disponível em < https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/04/27/blog-what-comes-afterthe-commodity-super-cycle-and-the-pandemic > Acesso em 28 abr. 2021. 30 WERNER, Alejandro; KOMATSUZAKI, Takuji; PIZZINELLI, Carlo. Um reforço a curto prazo e uma cura duradoura para a América Latina e o Caribe. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 15 de abril de 2021. Disponível em < https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/04/15/blog-short-term-shot-and-longterm-healing-for-latin-america-and-the-caribbean > Acesso em 16 abr. 2021. 211 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS percebe-se o quão desiguais são os efeitos econômicos e sociais da pandemia, que obviamente não atinge a todos da mesma forma. 31 De fato, embora os trabalhadores inseridos no mercado formal encontrem uma seguridade social esvaziada, com programas de apoio ao desemprego reduzidos em sua abrangência, valores e duração, ao menos ainda contam com algum tipo de amparo, que também se destina às empresas nas quais trabalham. Pior é a situação da enorme massa de trabalhadores informais, que sobrevivem à margem dos sistemas de proteção. A análise do Banco Mundial destaca como os países da região “(...) são caracterizadas por níveis mais altos de informalidade, o que reduz, para muitas empresas e famílias, o impacto de certas medidas de apoio, tais como adiamentos de impostos e subsídios salariais.” 32 A epidemia do Covid-19 ajudou a trazer à luz um enorme contingente de pessoas invisíveis, formado principalmente por trabalhadores informais que vivem à margem de qualquer controle estatal, que não constam em qualquer cadastro oficial.33 Na terminologia utilizada pela Organização Internacional do Trabalho, são pessoas que compõem o missing middle, contingente não abrangido nem pela assistência, nem pela previdência social.34 Este grupo constitui “(...) comunidades marginadas, que a menudo permanecen invisibles y se enfrentan a luchas vitales similares. No se sabe dónde viven, ni cómo se ven afectadas por la pandemia.” 35 Quando da criação do Auxílio Emergencial, por meio da referida Lei n. 13.982, de 02/04/2020, benefício destinado especialmente a pessoas sem vínculo 31 CORSEUIL, Carlos Henrique et alii. The behaviour of the Brazilian labour market across two recessions: An analysis of the period 2015-2017 and the COVID-19 pandemic. International Policy Center for Inclusive Growth. Research brief n. 73, April 2021. Disponível em < http://www.ipcig.org/sites/default/files/pub/en/PRB73_The_behaviour_of_the_Brazilian_labour.pdf > Acesso em 23 abr. 2021. 32 THE WORLD BANK. A Economia nos Tempos de Covid-19. Op. cit., p. 6. 33 O GLOBO. ‘Invisíveis’ precisam de atenção social permanente, dizem especialistas. 19 de abril de 2020. Disponível em < https://oglobo.globo.com/economia/invisiveis-precisam-de-atencao-socialpermanente-dizem-especialistas-24381445> Acesso em 11 mai. 2020. 34 ILO. International Labour Organization. Extending social security to workers in the informal economy. Key lessons learned from international experience. Social Protection Spotlight, março 2021, p. 2. Disponível em < https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/---ed_protect/--soc_sec/documents/publication/wcms_749482.pdf > Acesso em 13 mai. 2021. 35 DAS, Maitreyi Bordia et alii. El rostro humano de la Covid-19: seis aspectos que considerar para una recuperación inclusiva. The World Bank. Notícias, 22 de outubro de 2020, p. 6. Disponível em < https://www.bancomundial.org/es/news/immersive-story/2020/10/22/the-human-face-of-covid-19-sixthings-to-consider-for-an-inclusive-recovery > acesso em 12 mai. 2021. 212 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS formal de emprego e, portanto, sem acesso à Previdência, o governo estimava em 54,1 milhões o contingente de beneficiados com o pagamento do benefício de R$ 600,00. No início de maio, havia quase 97 milhões de pedidos.36 Naturalmente, tal número não representava o total de pessoas que efetivamente atendem os requisitos legais, mas a imensa discrepância mostra a existência de uma quantidade notável de trabalhadores esquecidos pelos sistemas tradicionais, ainda quase exclusivos daqueles que têm empregos formais. Lembre-se, como destacado anteriormente, que a informalidade é a regra no mercado de trabalho latino-americano, alcançando a maior parte da população ocupada, o que avulta a necessidade de estratégias diferenciadas. As estratégias tradicionais de transferência de renda dificilmente alcançam as pessoas que vivem na informalidade e, em regra, de forma extremamente precária, carecendo “(...) dos recursos básicos para sobreviver aos bloqueios e quarentenas necessários para conter a propagação da epidemia.” 37 O grande desafio, portanto, é não apenas conceber mecanismos de amparo, mas assegurar que estes alcancem a todos, a fim de ao menos minimizar o risco de reduzir tantos à pobreza que, estima a CEPAL, chegou a 33,7% da população da América Latina no final de 2020, sendo 12,5% no patamar da extrema pobreza. Estes números representam um montante de 209 milhões de pessoas pobres (22 milhões a mais que no final de 2019) e 78 milhões (aumento de 8 milhões, face a 2019) extremamente pobres.38 Semelhantes dados mostram que a epidemia afeta desigualmente a população, representando um impacto social e econômico muito maior para aqueles que já se encontravam na base da pirâmide. Os riscos de toda natureza são maiores para os segmentos mais vulneráveis. Aqui se pensa não só na redução ou mesmo privação de renda, mas também na possibilidade de contágio, que cresce na medida da 36 G1. Auxílio Emergencial: de 96,9 milhões de cadastros processados pela Dataprev, 50,5 milhões foram aprovados. 01 de maio de 2020. Disponível em < https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/05/01/auxilio-emergencial-de-969-milhoes-de-cadastrosprocessados-pela-dataprev-505-milhoes-foram-aprovados.ghtml> Acesso em 05 jun. 2020. 37 THE WORLD BANK. A Economia nos Tempos de Covid-19. Op. cit., p. 6. 38 CEPAL. Pandemia provoca aumento nos níveis de pobreza sem precedentes nas últimas décadas e tem um forte impacto na desigualdade e no emprego. Comunicado de imprensa. 04 de março de 2021. Disponível em < https://www.cepal.org/pt-br/comunicados/pandemia-provoca-aumento-niveispobreza-sem-precedentes-ultimas-decadas-tem-forte > Acesso em 13 abr. 2021. p. 2. 213 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS precariedade das condições de moradia, adensamento populacional e saneamento que caracterizam as regiões pobres das cidades. E, também, pela menor adesão às precauções de distanciamento social, ante a premência da sobrevivência que impulsiona as pessoas a retomar suas atividades produtivas. A desigualdade de gênero também tende a ser agudizada, pois o trabalho de cuidado segue sendo preponderantemente feminino e as demandas em razão do fechamento das escolas ou do aumento da quantidade de pessoas doentes aumentaram exponencialmente. A consequência, além da óbvia sobrecarga de trabalho não remunerado, é uma maior dificuldade para as mulheres manterem suas atividades profissionais.39 O mesmo se diga quanto aos abismos educacionais que apartam os que têm acesso ao ensino privado daqueles que dependem das escolas públicas. A transição abrupta do ensino presencial para o feito à distância, por meio de ferramentas tecnológicas, alijou todos aqueles que não têm acesso à internet, quantitativo estimado em 20% dos lares brasileiros. Mais ainda, escancarou a fragilidade do financiamento da rede pública de ensino, desprovida de recursos para migrar as aulas para plataformas virtuais. 40 Enfim, é evidente que o desafio não diz respeito apenas a ampliar o colchão de proteção, mas também levá-lo às pessoas que precisam. Em síntese: Ter acesso a benefícios como licença médica, seguro desemprego e assistência de saúde é bom para todos (...), mas é fundamental para os segmentos mais pobres da sociedade, que não possuem economias e, assim, vivem em condições precárias. Esse tipo de ‘New Deal’ é importante em setores da economia, e em regiões, em que o trabalho informal e por conta própria é generalizado e os sistemas de proteção social são escassos.41 Há que se ter em mira, ainda, que os efeitos de uma retração econômica tão severa tendem a ser duradouros. Estudo elaborado tendo por base apenas as crises 39 CEPAL. Pandemia provoca aumento nos níveis de pobreza sem precedentes nas últimas décadas... Op. cit., p. 3. 40 CEPAL. Panorama Social de América Latina 2020. CEPAL: Santiago, 2021, p. 24-25. Disponível em < https://www.cepal.org/sites/default/files/publication/files/46687/S2100150_es.pdf > Acesso em 11 mar. 2021. 41 FURCERI, Davide; LOUNGANI, Prakash; OSTRY, Jonathan D. Como as pandemias deixam os pobres mais pobres. IMF Blog. Diálogo a Fondo. Disponível em <https://www.imf.org/pt/News/Articles/2020/05/11/blog051120-how-pandemics-leave-the-poor-evenfarther-behind?sc_mode=1> Acesso em 11 de maio de 2020. 214 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS originadas em epidemias anteriores verificou como, em todos os casos, os pobres ficaram ainda mais pobres. Mesmo os esforços redistributivos realizados pelos governos não foram capazes de impedir impactos diferenciados – e mais graves – naqueles que ocupam os degraus inferiores da pirâmide socioeconômica. Em termos concretos, verificou-se que “Após cinco anos, o coeficiente de Gini líquido aumenta quase 1,5%, o que representa um impacto elevado (...)” 42 A explicação para isto é que o principal espaço afetado é o trabalho, especialmente os postos que exigem baixo grau de qualificação. Os autores do estudo referido demonstram que “A disparidade é nítida: em relação à população, o emprego daqueles com alto nível de escolaridade quase não é afetado, enquanto o emprego daqueles com escolaridade básica cai drasticamente, mais de 5% ao final de cinco anos.”43 As evidências identificadas em recessões passadas já vêm se confirmando. De fato, os trabalhadores com menor qualificação sofrem múltiplos golpes: (...) têm maior probabilidade de atuarem nos setores mais prejudicados pela pandemia; estão mais propensos a ficarem desempregados em períodos de retração e, para aqueles que conseguem se recolocar, é mais provável que precisem mudar de ocupação e sofram uma queda na renda.44 Registre-se que nenhuma das epidemias analisadas teve a magnitude que a do Covid-19 já alcançou, seja quanto à paralização da atividade produtiva ou à quantidade de infectados e mortos. A saída, por óbvio, tem que passar por medidas imediatas, voltadas a mitigar os choques sociais e econômicos que estão deixando famílias sem renda alguma, mas não pode se restringir a elas. A lição é antiga: “As políticas econômicas devem ser orientadas de modo a evitar crises e recessões graves e responder com estímulos 42 FURCERI, Davide; LOUNGANI, Prakash; OSTRY, Jonathan D. Como as pandemias deixam os pobres mais pobres. Op. cit. 43 FURCERI, Davide; LOUNGANI, Prakash; OSTRY, Jonathan D. Como as pandemias deixam os pobres mais pobres. Op. cit. 44 BLUEDORN, John. Resolver as diferenças: Políticas trabalhistas para uma recuperação mais justa. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 31 de março de 2021. Disponível em < https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/03/31/blog-working-out-the-differences-labor-policies-fora-fairer-recovery> Acesso em 31 mar. 2021. 215 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS apropriados e redes de proteção.”45, mas parece ter sido esquecida. O papel dos Estados como regulador dos espaços produtivos não se limita aos momentos de crise. Antes, cabe a eles prevenir os colapsos (ao menos aqueles minimamente previsíveis). E, caso, esses se mostrem inevitáveis, suas ações devem ser orientadas a, na maior medida possível, eliminar seus impactos deletérios presentes e futuros. Como destacado pelo Banco Mundial, “Uma pergunta-chave é quem, ao final de tudo isso, deverá arcar com as perdas.”46 Ora, a resposta é simples: todos, na inversa proporção dos prejuízos sofridos. Quando se imputa ao Estado a tarefa de assumir franco protagonismo no combate à crise e seus efeitos sociais, não se está terceirizando a responsabilidade. Não se pode esquecer que o Estado existe pela vontade coletiva e se destina a zelar pelo bem de todos. Assim, quando os governos centralizam as medidas de combate à epidemia e seus males socioeconômicos, quando contraem dívidas para custear sistemas de saúde pública ou de assistência social, cumprem seu papel como gestores dos interesses coletivos. A dívida pública não é um problema só dos governos, ela é de todos. Da mesma forma como a miséria, a doença ou a morte de alguns não é problema apenas destes, é de todos. 2.3 Chamem o Estado! Recuperação inclusiva: esta é a expressão que sintetiza o objetivo maior a ser perseguido pelos países e que vem sendo repetida em diferentes estudos. É tempo de mirar “(…) una recuperación inclusiva más allá de la protección de los pobres o de quienes están en riesgo de caer en la pobreza, aunque eso sea esencial.” Neste sentido, a recuperação inclusiva “(…) consiste en abordar la exclusión y las desigualdades sistémicas ya existentes desde hace tiempo y que la COVID-19 ha puesto en evidencia.”47 A insistência em que se adote esta concepção se justifica por dois principais fatores. O primeiro deriva da constatação de que para os mais ricos – e ainda mais 45 CERRA, Valerie; SAXENA, Sweta C. As cicatrizes econômicas das crises e recessões. IMF Blog. Insights and Analysis on Economics & Finances. 21 de março de 2018. Disponível em < https://www.imf.org/external/lang/portuguese/np/blog/2018/032118p.pdf> Acesso em 02 abr. 2018. 46 THE WORLD BANK. A Economia nos Tempos de Covid-19. Op. cit., p. 7. 47 DAS, Maitreyi Bordia et alii. El rostro humano de la Covid-19: seis aspectos que considerar para una recuperación inclusiva. Op. cit, p. 3. 216 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS para os muito ricos – os impactos da pandemia já estão sendo superados, o que projeta uma recuperação em forma de K. Ou seja, as pessoas e os países ricos retomam a trajetória de crescimento (a perna superior do K) enquanto os pobres seguem em declínio, esmagados pela crise persistente. 48 É evidente que cada país seguirá um ritmo diferente de recuperação, mas para a maioria as sequelas serão persistentes e se estenderão pelos próximos anos. 49 Isso se deve, principalmente, ao fato de a maior parte das medidas contracíclicas e de apoio social adotadas terem natureza temporária e não virem acompanhadas de mudanças estruturais – ou seja, o abandono do paradigma econômico liberal e sua aposta na austeridade fiscal. Para que o mundo consiga recompor as perdas trazidas pela pandemia, é fundamental que as medidas adotadas em caráter temporário sejam transformadas em mecanismos permanentes, voltados a assegurar uma proteção social efetiva para todos. 50 Uma recuperação inclusiva não se limita a remediar circunstancialmente a situação de pobreza enfrentada pelos mais agudamente afetados, e aqui entra o segundo fator. Ela deve ir além e olhar para as causas pretéritas de desigualdade, pobreza e exclusão. Daí a defesa que se faz quanto à necessidade de os países ampliarem o acesso a educação e saúde de alta qualidade, expandirem suas redes de proteção social e colocarem o combate à desigualdade como prioridades em suas agendas de desenvolvimento.51 É importante ter em conta que a pandemia criou um novo universo de pessoas pobres, pois afetou com particular rigor os trabalhadores informais (o missing middle identificado pela Organização Internacional do Trabalho), pessoas que até então 48 SPENCE, Michael; STIGLITZ, Joseph; GHOSH, Jayati. Como evitar uma recuperação global em forma de K. Project Syndicate. 24 mar. 2021. Disponível em < https://www.projectsyndicate.org/commentary/global-economy-avoiding-k-shaped-recovery-by-michael-spenceet-al-2021-03/portuguese > Acesso em 07 mai. 2021. 49 DAS, Sonali; WINGENDER, Philippe. Cicatrizes que perduram: O legado da pandemia. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 31 de março de 2021. Disponível em < https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/03/31/blog-slow-healing-scars-the-pandemic-legacy> Acesso em 31 mar. 2021 50 ILO. International Labour Organization. Extending social security to workers in the informal economy. Op. cit., p. 2. 51 WERNER, Alejandro; KOMATSUZAKI, Takuji; PIZZINELLI, Carlo. Um reforço a curto prazo e uma cura duradoura para a América Latina e o Caribe. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 15 de abril de 2021. Disponível em < https://www.imf.org/pt/News/Articles/2021/04/15/blog-short-term-shot-and-longterm-healing-for-latin-america-and-the-caribbean > Acesso em 16 abr. 2021. 217 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS estavam fora dos sistemas assistenciais não contributivos e que, em regra, não acessam os sistemas previdenciários de natureza contributiva. Como sustenta estudo divulgado pelo Banco Mundial, “(…) la crisis está reduciendo drásticamente los ingresos y el bienestar de personas que ya eran pobres, al tiempo que está empobreciendo a decenas de millones más que, en muchos casos, se diferencian del primer grupo (…)”52 Subitamente, um enorme contingente, predominantemente vinculado ao setor de serviços, se viu fortemente exposto ao contágio, dada a impossibilidade de suspenderem suas atividades ou as desempenharem de forma remota. Seus filhos tiveram que ficar em casa, o que sobrecarregou especialmente as mulheres, desde sempre obrigadas, com primazia, aos trabalhos de cuidado.53 Muitos eram pequenos empregadores que subcontratavam serviços de outros trabalhadores igualmente informais. Para esses novos pobres, as políticas sociais tradicionais - tais como requalificação profissional ou auxílios financeiros pontuais - não funcionam, obrigando a concepção de modos diferentes de inclusão. 54 De toda sorte, sejam quais forem os caminhos adotados, fato é que, diante da premência de implementar novos e mais abrangentes sistemas de proteção social, entende-se que os países estão diante da oportunidade de investir fortemente em um modelo de crescimento que seja efetivamente inclusivo e sustentável. Pensar em não apenas remediar a crise sanitária, social e econômica vivida, mas criar condições para que novos dramas, com tal dimensão, não se repitam e que as mazelas do passado finalmente comecem a ser corrigidas. Há que se ter em conta que sistemas robustos de proteção social geram ganhos para todos, e não apenas para seus beneficiários diretos. Sob uma perspectiva meramente econômica, funcionam como uma forma de assegurar que as pessoas 52 THE WORLD BANK. La Pobreza y la Prosperidad Compartida 2020. Un cambio de suerte. Op. cit., p. 17. 53 ILO. International Labour Organization. Extending social security to workers in the informal economy. Op. cit., p. 2. 54 Algumas propostas defendidas por organismos como o Banco Mundial contemplam o apoio financeiro a micro e pequenas empresas, em regra os maiores empregadores e o elo mais frágil da cadeia produtiva (pelo lado do capital), o que pode vir na forma de subsídios salariais ou benefícios tributários, por exemplo. THE WORLD BANK. La Pobreza y la Prosperidad Compartida 2020. Un cambio de suerte. Op. cit., p. 18. 218 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS tenham alguma renda em casos de desemprego em massa como o atualmente vivido, assegurando a continuidade do ciclo de produção e consumo. Mas a questão não se limita à dimensão econômica estrita. Sistemas de proteção social são um investimento que um país faz em seu povo, pois não há desenvolvimento apenas para alguns: ou todos prosperam, ou a disputa permanente por benefícios que só uns poucos auferem acabará provocando um nível insustentável de conflito social. 55 Neste sentido, vale destacar a perspectiva defendida pela Organização Internacional do Trabalho, mais um dentre vários organismos que defendem a conexão necessária que deve existir entre crescimento econômico e desenvolvimento social: This approach is based on the expectation that ‘investing in people’ through social protection helps to facilitate access to health and education, enhance income security and enable workers to take greater risks, thereby generating positive results in terms of human capital and productivity that will facilitate the formalization of employment in the medium and long terms.56 A recuperação inclusiva pressupõe que as redes de proteção social estejam permanentemente estendidas. A pandemia ensinou que, por mais rápidas que sejam as respostas concebidas para restaurar ou criar novos programas de proteção social, o tempo de reação foi demasiado e a amplitude restrita. E, mais ainda, partiu-se de um patamar protetivo muito raso, culpa da opção generalizada feita em favor da austeridade fiscal e seu receituário de redução dos papeis interventor e provedor do Estado. Desta forma, na busca por limitar as sequelas deixadas pela pandemia do Covid-19, que na verdade agravou um quadro que já vinha se desenhando de aumento da desigualdade, da pobreza e da exclusão, é preciso ter em mira dois pontos centrais: (i) a necessidade imperiosa de as medidas de apoio serem mantidas até que se verifique uma recuperação consolidada da atividade produtiva; (ii) a oportunidade que se apresenta para apostar em um novo modelo de desenvolvimento, que seja fundamentalmente inclusivo e sustentável. 55 56 ILO. International Labour Organization. Extending social security to workers in the informal economy. Op. cit., p. 5. ILO. International Labour Organization. Extending social security to workers in the informal economy. Op. cit., p. 5. 219 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Os governos de todo o mundo, mas com especial ênfase os de regiões mais vulneráveis como a América Latina, têm pela frente uma tarefa gigantesca. É hora, portanto, de "(...) reorientar el gasto público hacia la creación de empleo y las actividades que son transformadoras y ambientalmente sostenibles.” O manejo dos recursos públicos precisa priorizar os investimentos, a garantia de renda mínima, a proteção social universal, o apoio a micro e pequenas empresas, a inclusão digital, o desenvolvimento de tecnologias ambientalmente sustentáveis.57 Tais lições, aqui apresentadas a partir de estudo divulgado pela CEPAL, têm sido defendidas por diversos autores e centros de pesquisa e se alinham com a noção de que só existe desenvolvimento quando este é inclusivo e sustentável. Ainda é cedo para saber se as medidas sugeridas são efetivamente capazes de resolver ou, ao menos, minorar os problemas vividos, mas já há indícios – colhidos nas experiências de diferentes países – de que estão produzindo resultados.58 3 CONCLUSÃO A crise social e econômica vivida em razão da pandemia do Covid-19 exige que novas soluções sejam pensadas para proteger as pessoas não só do vírus, mas também de todos os males individuais e coletivos que ele trouxe consigo. Demanda, também, que se perceba o grau de vulnerabilidade a que largas parcelas da população mundial estão expostas, em muito por conta de escolhas que foram feitas e que levaram à contínua redução do papel protetivo do Estado. A miséria de tantos não é fruto do acaso. Combater as consequências sociais decorrentes da pandemia exige uma ação estatal ampla e constante. Os mercados privados não socorreram e não socorrerão as famílias que passam fome, as pessoas que ficaram sem emprego, que caíram doentes, que carregarão sequelas físicas e emocionais. O capital não é solidário. 57 58 CEPAL. Financiamiento para el desarrollo en la era de la pandemia de COVID-19 y después. Prioridades de América Latina y el Caribe en la agenda de políticas mundial en materia de financiamiento para el desarrollo. Informe especial n.º 10, 11 de março de 2021, p. 19. Disponível em < https://www.cepal.org/sites/default/files/publication/files/46710/S2100064_es.pdf > Acesso em 30 abr. 2021. THE WORLD BANK. La Pobreza y la Prosperidad Compartida 2020. Un cambio de suerte. Op. cit., p. 20. 220 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A reação por meio do Estado, contudo, não é um processo simples. Existem diversos fatores que restringem a retomada do papel ativo e protetivo tão necessário. A ideologia econômica liberal, com seu repúdio ao intervencionismo social estatal, segue presente; o uso populista e eleitoreiro dos mecanismos de apoio - como políticas de transferência de renda - cria dúvidas sobre a conveniência de serem perenizados; o elevado endividamento dos países restringe sua capacidade de realizar investimentos robustos e contínuos. Tais dificuldades, contudo, não devem ser empecilhos para que o clamor crescente por mais solidariedade seja ouvido e produza resultados. Os problemas trazidos pela pandemia afetam a todos e devem ser enfrentados por todos. A ação coletiva organizada em torno do Estado é o único caminho capaz de permitir que os desafios imediatos e de longo prazo – tanto os novos trazidos pelo Covid-19, quanto os antigos – sejam enfrentados e superados.59 Há que se buscar caminhos que permitam fortalecer os vínculos de solidariedade tanto dentro de cada sociedade quanto entre os países, afinal, enquanto tantos ainda estiverem vulneráveis à doença e a seus males físicos, emocionais e econômicos, ninguém estará realmente bem. A Covid-19 pode representar a oportunidade para colocar em marcha a construção de sociedades e modelos econômicos mais inclusivos e preocupados com sua própria sustentabilidade. A necessidade é evidente, as condições estão presentes. Resta saber para qual lado oscilará o pêndulo: o do dinheiro, ou o dos seres humanos? REFERÊNCIAS BLUEDORN, John. Resolver as diferenças: Políticas trabalhistas para uma recuperação mais justa. IMF Blog. Diálogo a Fondo. 31 de março de 2021. 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O artigo busca expor que os eventos pandêmicos não são suportados pela alea negocial, mas pela imprevisibilidade. Palavra-chave: contratos rurais; aleatoriedade; imprevisibilidade; covid; pandemia. ABSTRACT Whereas the contracts for the future purchase and sale of cereals, made prior to the outbreak of the pandemic, suffered unexpected and supervening effects, due to the global dimension of the disease, generating losses and damages above the market average, transcending the risks borne in a negotiation alea. That on the other hand, the purchasers are obtaining excessive advantages, since the fixed price agreed in the 1 Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2000), mestrado em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2003), doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2018) e Pós-doutorado em Letras Orientais pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor titular de Relações Internacionais e Direito no Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e professor de Direito no Instituto de Direto Público do Distrito Federal (IDP). Tem experiência na área de Teoria Geral do Direito, Direito Civil, Direito Internacional e Filosofia do Direito. Sócio da Chaves, Porfírio Vieira Advogados. 2 Possui graduação pelo Centro Universitário de Brasília (2007) é pós graduanda lato sensu em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Foi assessora jurídica do Instituto de Previdência dos Servidores do Distrito Federal - IPREV/DF. Atualmente é advogada, com atuação na área de Direito Privado, com ênfase em Direito de Família e Sucessões, e Orientadora de Núcleo de Prática da Universidade Paulista - UNIP (2013-2020). Sócia da Chaves, Porfírio Vieira Advogados 225 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS contract was far below the successive increases in times of pandemic (far beyond the average market value in recent years). The article seeks to expose that pandemic events are not supported by alea negocial, but by unpredictability. Keywords: rural contracts; randomness; unpredictability; covid; pandemic 1 DA TEORIA DA IMPREVISÃO COMO INSTRUMENTO DE GARANTIA DE FUNCIONALIDADE SOCIAL DO CONTRATO E COMUTATIVIDADE A economia e o direito, formalmente, diante da situação em que consumidores ou produtores são tomadores de preço, presumem mercados perfeitamente competitivos e comutativos. Presume-se, assim, que o preço estabelecido pelo mercado não seria afetado por decisões peculiares de consumo ou produção. Porém, os mercados possuem suas limitações e podem não ser eficientes, apresentando, problemas supervenientes, necessitando assim da intervenção regulatória estatal em prol do bem estar da sociedade (função social dos contratos). Após a 1ª Guerra Mundial, a compreensão sobre a força vinculante das convenções e o princípio da lex contractus ou pacta sunt servanda foi sujeita a relativização, sendo o conflito armado considerado um fato extraordinário, tornandose insustentável o cumprimento dos contratos, por causarem onerosidade excessiva para um ou outro contratante. O entendimento é que não havia mais lugar para a obrigatoriedade absoluta dos contratos, pois a liberdade contratual, inclusive na disposição do devido cumprimento, estaria prejudicada. Nesse sentido, seria legítima a intervenção judicial motivada, no intuito de reequilibrar ou atenuar amenizar as relações jurídicas e suas prestações. Prevalece, a partir de então, no direito contemporâneo, a tese que o Estado deve intervir nas relações contratuais, prevalecendo o princípio da ordem jurídicojurídico social (estabilidade do sistema jurídico-social) e o princípio da função social do contrato (sanidade do sistema econômico pelo zelo ao equilíbrio, benefício do interesse coletivo). 226 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS No direito pátrio, a função social do contrato e a mitigação da força vinculante foram devidamente reconhecidas no Código Civil vigente, em seu artigo 421, que dita: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” Seja na relação consumo, na relação civil ou empresarial, se reconhece, em prol da funcionalidade do contrato (que assume dimensão massificada, com repercussão difusa de efeitos) e sua dimensão econômico social, a adoção da teoria da imprevisão, pela resolução por onerosidade excessiva. Mais do que nunca, os contratos adquirem papel principal na economia, sendo o instrumento preferido dos agentes econômicos para materializar suas vontades e efetivar a circulação de riquezas, devendo existir mecanismos restauradores de equilíbrio, em que caso de eventos supervenientes e não calculáveis. A Teoria da Imprevisão no Código Civil, vem disciplinada nos artigos 478, 479 e 480: Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato. Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva. No intuito de combater eventos não calculados, que transcendem a qualquer alea suportável, e que são inevitáveis, expondo uma das partes a desequilíbrio excessivo, o Estado Jurisdicional, quando chamado, em função do não entendimento das partes, deve resolver parcialmente (revisão de condições) no intuito de restaurar a sanidade contratual. A resolução total é a última e lamentável, porém salutar possilidade. É imprescindível que haja uma notável alteração circunstancial entre as prestações, decorrente de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, que 227 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS modifiquem o valor de uma parcela em relação à outra. Por meio da resolução do contrato, busca-se superar situações incompatíveis com a justiça comutativa, fundamentando-se na boa-fé e no exercício regular e funcional dos direitos. É importante salientar que a Imprevisão não se confunde com o caso fortuito e a força maior. Embora a resolução por onerosidade excessiva se assemelhe ao caso fortuito ou força maior, pois todos estão vinculados a um evento futuro e incerto, distinguem-se teleologicamente, pois no caso fortuito e na força maior há o impedimento absoluto de se cumprir o contrato (impossibilitas praestandi), enquanto na Imprevisão há dificuldade de se cumprir, a excessiva onerosidade, admitindo que a resolução seja evitada se ocorrer a restauração da comutatividade/equidade nas condições do contratuais. O Código Civil de 2002 consolidou o direito de se alterar o contrato em situações pontuais, dedicando os artigos 478 a 480 à resolução das avenças por onerosidade excessiva. A redação normativa exige que além da ocorrência do acontecimento extraordinário, imprevisível e excessivamente oneroso para uma das partes, a revisão judicial só será possível se o fato resultar em extrema vantagem ao outro contratante. Os requisitos, portanto, para a invocação da Teoria da Imprevisão, segundo o Código Civil de 2002, são: a vigência de um contrato comutativo de execução diferida ou de trato sucessivo; a ocorrência de uma situação imprevisível e extraordinária; uma alteração real da situação fática existente no momento da execução, em confronto com aquela que existia à época da celebração; o nexo causal entre o fato superveniente e a respectiva onerosidade excessiva. O primeiro pressuposto é que se trate de contratos de duração, nos quais há um lapso temporal considerável entre a sua celebração e a completa execução. Não podem, portanto, ser contratos de execução instantânea, e sim de execução diferida ou de realização em momento futuro, como é o caso dos contratos de venda futura de commodities agrícolas. O segundo requisito é a ocorrência de evento superveniente, extraordinário e imprevisível, que tenha alterado a situação fático-contratual, gerando empobrecimento de uma das partes, causado pelo cumprimento. Para configurar-se o 228 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS excesso de onerosidade da prestação é mister uma sensível alteração da relação originária entre as prestações, com a mudança em sua correspectividade, ou perda ou diminuição de sua utilidade. A terceira condição, chamada subjetiva, para a aplicação da Teoria da Imprevisão, que é a razoável alteração da situação de fato existente no momento da execução, em confronto com aquela havida no momento da celebração do acordo. O quarto e último pressuposto é o nexo de causalidade entre o evento superveniente e a respectiva onerosidade excessiva. É necessário que esta última decorra de uma alteração da condição subjetiva, de tal forma que, como dito, o cumprimento do contrato, por si mesmo, implique no empobrecimento de um dos celebrantes. Logo, a imprevisão não pode ser confundida com a aleatoriedade contratual. 2 DISTINÇÃO ENTRE ALEATORIEDADE IMPREVISIBILIDADE E Na aleatoriedade, as partes reconhecem que a substância negocial (suas condicionantes) ou até a prestação são sujeitas ordinariamente a sortilégios e inconstâncias, fazendo com que as partes consciente e calculadamente (pois faz parte do jogo do mercado) suportem variações quantitativas e até inexistência. Na aleatoriedade, o negócio é racional e razoavelmente exposto a eventos incertos e futuros, inerentes à natureza da relação jurídica firmada, a exemplo da compra coisa incerta ou futura (compra de colheita futura), aquisição de títulos mobiliários (bolsa de valores), sujeitos a variação monetária diariamente, ou o contrato de seguro, em que a contraprestação do segurador só é devida se ocorrer um evento futuro. O contrato aleatório apresenta, portanto, um risco assumido sobre prestação de uma ou de mais parte. O que se prevê e reconhece é que o negócio firmado está naturalmente exposto a um evento futuro e incerto (causalidade/ordem natural das coisas, parafraseando Orlando Gomes), possível de acontecer (alea ou sorte). Não se podendo antecipar o seu quantum (extensão incerta). Em suma, previsível é o evento (possível/esperado), imprevisível é a variação do quantum. 229 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS O risco, porém, pode ser suportado de forma total ou absoluta (quando uma das partes apenas cumpre sua prestação sem perceber nada em troca) e parcial ou relativa (quando cada um dos contratantes se responsabiliza por alguma prestação independente de serem iguais ou não). Existem duas modalidades de contratos aleatórios então, aqueles que se referem a coisas futuras e aqueles que versam sobre coisas já existentes mas que estão sujeitas a riscos futuros. O risco suportado deve estar expresso no contrato, e o silêncio sobre a alea presume comutatividade na relação, conforme artigo 483 do Código Civil: Art. 483. A compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório. No artigo 458 do Código Civil o risco anunciado é o existencial sobre coisa futura (emptio spei - a venda esperada), cabendo ao alienante receber todo o valor, mesmo se a coisa não venha a existir. Há casos em que venda de colheita futura, pode ser exposta ao risco de inexistência da safra, em que o comprador deve assumir o risco da completa frustração da safra, salvo se o risco cumprir-se por dolo ou culpa do vendedor. O artigo 459 também trata de casos sobre coisas futuras, porém os riscos são quantitativos, podendo recair sobre a prestação, a contraprestação ou ambas (emptio rei speratae – a venda de coisas esperadas). A probabilidade estimada (previsão) para o suporte de riscos encontra-se na quantidade e não mais na existência, como também acontece na compra de safra futura. A emptio rei speratae pode recair, inclusive, sobre a contraprestação, a quantificação do preço, como previstos nos artigos: Art. 486. Também se poderá deixar a fixação do preço à taxa de mercado ou de bolsa, em certo e determinado dia e lugar. Art. 487. É lícito às partes fixar o preço em função de índices ou parâmetros, desde que suscetíveis de objetiva determinação. Além das duas categorias de aleas sobre coisa futura, há também a modalidade de contrato aleatório às coisas já existentes, mas que estão sujeitas a se 230 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS danificarem, depreciarem, até mesmo desvalorizarem ou perderem, como previstos nos artigos 460 e 461 do Código Civil. A imprevisibilidade, portanto, ocorrerá quando não existirem razões normais para que o contratante médio tenha considerado a possibilidade de ocorrência do fato causador do desequilíbrio. 3 PANDEMIA COVID 19 E A IMPREVISIBILIDADE A pandemia ocasionada pela propagação incontrolável da Covid-19, gerando medo, insegurança e recolhimento necessário pelo isolamento social, repercutiu no mercado financeiro mundial, que sente fortes impactos recessivos da crise econômica. A Lei nº4.010/2020, em seu "Capítulo IV - Da Resilição, Resolução e Revisão dos Contratos", em seus artigos 6º. e 7º. propõe que "não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos art. 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário" (artigo 7º) . A bem da verdade, os dispositivos em epígrafe acabam por serem contraditórios, pois reconhecem crise mundial sem precedentes que afeta a todos os mercados; porém cerceiam os efeitos da revisão contratual e da Teoria da Imprevisão, como se o câmbio, a inflação ou a desvalorização monetária não guardassem nenhuma relação com a pandemia. Não se trata de extinguir uma relação jurídica e rechaçar sua eficácia, mas de simplesmente atender a máxima : cuique suum tribuere. A pandemia da Covid-19, impõe a aplicação da Teoria da Imprevisão e da Onerosidade Excessiva aos contratos de prestação continuada vigentes nas relações civis, empresariais e, principalmente, financeiras, de extensão global, sem precedentes e sem previsão para término. Os efeitos no mercado financeiro, como inflação e variação cambial, decorrentes da pandemia, não podem ser desconsiderados e tratados como ordinários (álea suportável). 231 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A variação cambial e a desvalorização do padrão monetário não serão considerados fatos imprevisíveis, impossibilitando a revisão contratual frente à desenfreada oscilação do mercado e resultando na manutenção da desproporção entre as partes e na impossibilidade de cumprimento das obrigações, na forma acordada originalmente. A exemplo, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1.433.434/DF, em consonância com preceitos constitucionais que visam garantir a manutenção das condições em contratos celebrados com a Administração Pública e por expressa previsão da Lei de Licitações, reconheceu a possibilidade da revisão contratual sob fundamento e aplicação da teoria da imprevisão. O TJSP (Agr. Instr. 2061905-74.2020.8.26.0000) reconheceu a aplicação da teoria da imprevisão, para justificar a resolução ou revisão de contratos empresariais, em função do evento pandêmico global, que afeta a sociedade e pode desequilibrar contratos sendo comparado a "tempo de guerra". O desembargador Cesar Ciampolini, da 1ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, autorizou o diferimento das parcelas de abril, maio e junho em um contrato de cessão de quotas. O valor deverá ser pago em dez prestações mensais, com primeiro vencimento em 15 dias após a publicação da decisão, destacando que, após a 1ª Guerra Mundial, os países viveram uma situação econômica absolutamente inesperada, que "tornou deveras ruinosos e inexequíveis todos os contratos a longo prazo e de execução sucessiva ou diuturna". Logo, "em tempo de guerra, que é, mutatis mutandis, aquele que vivemos em face da pandemia do coronavírus, assim deve realmente ser". 4 IMPREVISÃO NOS CONTRATOS AGRÍCOLAS Os contratos de venda futura podem ser enquadrados, seja no preço ou na oferta da bem como bilaterais, comutativos ou aleatórios. Sendo em todo ou em parte aleatórios, em que as partes assumem risco calculados, previsíveis, de ganho ou de perda para qualquer das partes, já que o resultado depende de um evento futuro e incerto que pode alterar o seu montante. 232 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS No caso em questão existe uma emptio rei speratae na entrega das sacas, e uma aceitação de valor fixo, independentemente das nuances ordinárias de mercado. Atualmente, a venda antecipada da produção agrícola é uma forma de financiamento para os produtores, dado a antecipação de recursos. É uma alternativa que favorece o incentivo da agricultura. Commodities, em simples termos, são produtos de alta liquidez comprados e vendidos em grandes quantidades a todo o momento em escala global. Seu valor é determinado no mercado internacional e varia conforme e oferta e demanda, dentro dos padrões ordinários (repisando o termo de Orlando Gomes: ordem das coisas). A agricultura, portanto, é uma atividade que difere das atividades da indústria e comércio, pois possui riscos próprios, tais como o fator climático, o tempo necessário para que a produção ofereça retorno econômico, a oscilação dos preços, além da dificuldade de comercialização devido ao grau de perecibilidade dos produtos. É aqui que se encontra a alea da atividade! Por ser a agricultura e a pecuária atividades com enormes riscos, o mercado futuro foi uma maneira encontrada para gerenciar os riscos financeiros envolvidos na comercialização. Os riscos financeiros que determinam a variação dos preços são muitas vezes determinados pelos riscos decorrentes da própria atividade que podem vir a ser incertos, como uma estiagem prolongada além da prevista, uma praga nova que se desenvolve e que não pode ser previamente combatida, até mesmo os gostos e sabores dos consumidores. Todos esses fatores são riscos que influenciam os preços e, portanto, geram temeridades financeiras. Existem duas formas de se comercializar no mercado futuro: a primeira é a venda a termo, na qual o contrato é firmado na data presente e a entrega da coisa acontece no futuro em data pré-estabelecida no instrumento. Nesse caso, o vendedor pode receber o valor negociado no momento da contratação ou no momento da 233 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS entrega do produto avençado; a segunda forma são os contratos futuros negociados em bolsas de valores. Nas duas modalidades apresentadas, ambas as partes se protegem contra eventual oscilação de preço no futuro. O mercado futuro constitui uma forma de amenizar os riscos possibilitando ao produtor, maior prejudicado em épocas de adversidade, programar sua atividade e executá-la com maior segurança. Entretanto, os mecanismos sujeitam-se a aleatoriedade dos negócios, das variantes “próprias da ordem das coisas”, da álea de mercado, não de evento superveniente e imprevisível, que não é próprio da relação jurídico-econômica, mas que atinge inexoravelmente a relação, a exemplo da pandemia da COVID19. Como determinado no art. 317 do Código Civil, na imprevisibilidade não existe risco assumido, mas excepcionalidade que foge da razão e do controle das partes: Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação. A Justiça brasileira vem admitindo com mais frequência a revisão das condições contratuais em situações excepcionais. A imutabilidade da lex contractus abre espaço à sociabilidade, economicidade, estabilidade e ao bom senso da revisão, onde a sentença pode substituir, no caso concreto, a vontade das partes contratantes. A revisão contratual ocorre quando há enriquecimento sem causa de uma das partes em detrimento da outra (não se está falando em enriquecimento ilícito!), em alinhamento ao art. 421 do Código Civil: Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Portanto, a imprevisão que justifique a revisão contratual fundamentar-se em situações absolutamente imprevisíveis aos olhos das partes, não se admitindo intervenções judiciais em casos que fugirem dessa presunção e que corresponderem a fatores externos perfeitamente previsíveis (alea). 234 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Na IV Jornada de Direito Civil, quando analisou o art. 478, fez-se constar o entendimento expresso por meio do enunciado nº 366: "o fato extraordinário e imprevisível causador de onerosidade excessiva é aquele que não está coberto objetivamente pelos riscos próprios da contratação". Há também: O enunciado no. 176: “Em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual”; O enunciado no. 365: “A extrema vantagem do art. 478 deve ser interpretada como elemento acidental da alteração de circunstâncias, que comporta a incidência da resolução ou revisão do negócio por onerosidade excessiva, independentemente de sua demonstração plena”; e o enunciado no. 367: “Em observância ao princípio da conservação do contrato, nas ações que tenham por objeto a resolução do pacto por excessiva onerosidade, pode o juiz modificá-lo equitativamente, desde que ouvida a parte autora, respeitada a sua vontade e observado o contraditório”. Antes da pandemia, a Jurisdição já reconhecia a aplicação da resolução total ou parcial (revisão) do contrato por onerosidade excessiva/imprevisão: EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA DE RESOLUÇÃO DE CONTRATO. COMPRA E VENDA DE SOJA COM ENTREGA FUTURA. INVOCAÇÃO DA TEORIA DA IMPREVISÃO. CONTRATO ALEATÓRIO. NECESSIDADE DE EXTINÇÃO DO PACTO. OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ OBJETIVA E DA FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO. I Procedente é a pretensão de resolver contrato de compra e venda de soja com entrega futura, sob a alegação de superveniência de fatores externos imprevisíveis e onerosos, tais como as variações climáticas, como oexcesso de chuvas, pragas (ferrugem asiática) na lavoura, alteração de preços de insumos aplicáveis na plantação, porquanto afiguram-se estes fatos situações imprevistas, principalmente porque, em sendo o contrato aleatório, por se referir a coisas ou fatos futuros, cuja álea de não virem a existir é previsível para ambos os contratantes, onde a contraente assume a possibilidade de nada ser colhido bem como o risco consequente.[...] RECURSO DE APELAÇÃO CÍVEL CONHECIDO, MAS IMPROVIDO (APELAÇÃO CÍVEL nº 127602-1/188–GO (200802460563). Publicado em: Dje/Go 07/11/2008. Julgado em: 23/07/2008). 235 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A 4ª. Turma do STJ, em REsp nº 860277/GO (2006/0087509-3), mesmo não provendo os argumentos da parte produtora/recorrida deixou claro que: "É inaplicável a contrato de compra futura de soja a teoria da imprevisão, porquanto o produto vendido, cuja entrega foi diferida a um curto espaço de tempo, possui cotação em bolsa de valores e a flutuação diária do preço é inerente ao negócio entabulado" (ministro-relator Luis Felipe Salomão). Logo, na situação em pauta, a pandemia não é um simples risco produtivo/mercadológico, a variação de preço e de custos produtivos, nem de uma mera variação de índices cambiais resultantes de uma crise global e superveniente, não estava previsto nem coberto no contrato ou imaginado pelos contratantes e que na inaplicabilidade só ocorreria em contratos de curto prazo, o que não se aplica ao caso em questão. Deve-se, em nome da função social do contrato, da ordem jurídica social e da boa-fé, buscar mediadamente reequilibrar o contrato ou em último caso a Jurisdição assuma postura interventiva na resolução parcial (revisão) do contrato. BIBLIOGRAFIA FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Teoria Geral e Contratos em Espécie. 11 ed. Salvador: Jus Podium, 2021. FRANTZ, Laura Coradini . Revisão dos contratos . São Paulo , Saraiva, 2007 GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro. Forense. 2007. NEVES, Geraldo Serrano. Teoria da imprevisão e cláusula rebus sic stantibus. www.ebooksbrasil.org/eLibris/teoriarebus.html RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. Rio Janeiro: Forense, 2010 ROSENVALD, Nelson. Código civil comentado. Coord: Cezar Peluso. Barueri: Manole, 2013 WALD, Arnold. Direito Civil: Direito das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 22 ed. São Paulo, Saraiva, 2015 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: contratos. São Paulo , Atlas, 2013, volume 3 236 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS SEXUALIDADE E INTERAÇÕES VIRTUAIS NO CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID 19 Breno Ribeiro Custódio de Carvalho Aline Sapiezinskas Kras Borges RESUMO Com a pandemia, a necessidade de aumentar o distanciamento social tem transformado os hábitos das populações e novas formas de interação têm ganhado espaço. A ameaça de contágio do vírus conhecido como COVID19 e o desconhecimento a respeito dos impactos da doença tem disseminado medo na população. A recomendação geral para a contenção do vírus é manter o distanciamento social. Isso impacta na sexualidade e na possibilidade de interações sociais. Como consequência, a procura por sexo virtual tem crescido, visando conciliar os desejos naturais dos seres humandos com a conciencia de se manter seguro, obedecendo ao distanciamento físico, em época de pandemia. Questiona-se os possíveis impactos dessa situação de aumento das interações virtuais sobre a sexualidade dos indivíduos solteiros, restringidos nas dinâmicas próprias de interação social, olhando também para as oportunidades de se reinventar em termos de dinâmicas e práticas, para aqueles que são trabalhadores do sexo. Palavras-chave: Pandemia, Sexo, Covid, Práticas sociais, interação, Sexualidade, Profissionais do sexo. ABSTRACT With the pandemic new habits have emerged, the fear of catching COVID19 has created fear in the population, with this the tendency of people to maintain a certain social distance has increased, due to this the sexual intercourse with physical contact has reduced. As a result, virtual sex has grown, aiming to reconcile the natural desires of human beings with the awareness of keeping safe in times of pandemic. Accompanying this, the addi ction to pornography and the risks that this can cause in the psychological field has been increasing, creating psychological problems for individuals. And for those who are sex workers, who cannot reinvent themselves, we will analyze the life situation of these people, who, without any support from the State, have to maintain and protect themselves from the risks that the pandemic originated. Keywords Pandemic, Sex, Covid, Social practices, Interaction, Sexuality, Sex workers 237 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 1 INTRODUÇÃO A pandemia que teve início em 2019 obrigou muitas pessoas a se colocarem em isolamento social, como única forma de contenção do contágio da doença causada pelo Corona Virus. Dessa forma, grande parte da população se viu forçada a abdicar das interações físicas e sociais. Para quem se encontra solteiro nesse período, uma vez privado das interações sociais e das formas de sociabilidade habituais, se fez necessário procurar por outras formas de interação e contato humano. É fácil compreender uma redução na possibilidade de interação sexual devido ao isolamento social, e um movimento em direção a modalidades virtuais de interação e contato. Diante dessa nova realidade, observou-se, por exemplo, que sites de pornografia no período de pandemia registraram aumento de 600% no numero de acessos. O levantamento foi feito pela empresa Netskope Security Cloud no primeiro semestre de 2020. O isolamento social, entretanto, não tem como única consequência o aumento do consumo de pornografia, mas também impacta de modo mais amplo en termos de interaçoes e sociabilidade, e em relação a vida sexual dos individuos como um todo. Alem dos novos consumidores de produtos sexuais, também surgem durante o períodonovas modalidades de encontro virtual, novas plataformas interativas, grande número de novos trabalhadores do sexo, e a necessidade de se reinventar em suas práticas. Questiona-se se durante a pandemia teria aumentando a vulnerabilidade desse grupo de trabalhadores ligados ao consumo de sexo, e se teria havido aumento do risco de contágio nesse processo de adaptação a outras formas de interação. 2 O CONSUMO DE CONTEÚDO SEXUAL NA PANDEMIA O consumo de pornografia não é algo novo na sociedade. Considera-se que uma boa parcela da população já o consome, entretanto com a pandemia elevou-se o consumo e a frequência do uso dos sites, de acordo com a pesquisa da Kaspersky no ano de 2020. Com o isolamento e adoção do teletrabalho, a linha entre vida profissional e vida pessoal se tornou mais tênue. A pesquisa aponta que o uso de máquinas de trabalho para fins pessoais chega a 97%. Com isso o acesso a sites de pornografia que tem pouca segurança no controle das informações dos usuarios, 238 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS representando um risco não apenas ao individuo, mas para as corporações como um todo, que acabam tendo seus dados mais expostos a ataque de virus e malwares. Entre os impactos envolvidos no aumento do consumo de material pornográfico podemos observar uma mudança na forma de interação e nas práticas ligadas ao exercício da sexualidade, que vai se tornando cada vez mais solitária e individualizada. Em entrevista ao jornal da USP, Carmita Abdo, fundadora do ProSex, manifesta a preocupação de especialistas em relação a esse tema. “As pessoas vão perdendo o controle aos poucos e só o percebem quando de fato não conseguem mais seguir com seu cotidiano (...) A busca pela pornografia como uma situação rápida, sem a necessidade da sedução ou da consensualidade, com estímulos os mais diversos e excitantes. (...) “Isso torna o relacionamento comum mais complicado: quem está do outro lado não é tão exuberante ou interessante, e então o sexo consensual fica menos interessante, seja virtual ou presencialmente” Carmita destaca o contraste entre o modo de interação entre dois indivíduos dispostos a experiência sexual, que precisarão buscar um entendimento, em face da experiência sexual virtual e individual, que parece tornar obsoleto o esforço do encontro e da troca com o outro. Carmita comenta ainda: “A enorme oferta, a facilidade de acesso e a rapidez de satisfação sem o trabalho da interação, tudo isso contribui para que quem tenha disposição fique mais preso a essa atividade.” (Jornal da USP, 2020. Pandemia agravou os riscos da pornografia e do vício em sexo pela internet. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/__trash ed-6/. Acesso em 25 abril 2021). A facilidade de acesso a pornografia pode ser entendida como um elemento que contribui para uma mudança nas formas de interação, interferindo na propria disposição dos indivíduos para investir em buscar formas de sociabilidade e modelos de interação mais diretos. Pode ser observada também a busca por uma resposta imediata, resultando num interesse focado apenas na finalidade, sem a existência de etapas intermediarias de contato humano ou de aproximação. O imediatismo e a individualidade da experiência acaba por transformar a sociabilidade, as relações humanas e a socialização dos indivíduos. Os jovens, que estão em processo de iniciação na vida sexual, podem ser considerados os mais prejudicados nesse contexto, uma vez que carecem de experiências e modelos prévios em que se basear, 239 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS e enfrentam grande dificuldade para ingressar em novas redes de sociabilidade e convívio social, devido a pandemia. Os efeitos de experimentar a iniciação sexual por meio da pornografia ainda carece de estudos mais aprofundados, entretanto, é possível perceber uma perda de interesse generalizada nas relações interpessoais e grande distanciamento, podendo caminhar para o desenvolvimento de quadros depressivos, com baixas expectativas em relação ao ambiente social e interacional. “Isso significa que quando o corpo quer, por exemplo, alimento ou sexo, o cérebro recorda o que deve fazer para obter o mesmo prazer que em ocasiões anteriores. Em vez de se dirigir ao parceiro ou parceira para obter uma gratificação sexual, os consumidores habituais de pornografia recorrem ao seu celular ou computador quando o desejo bate à porta.” (Rachel Ane Barr, 2020. O consumo de pornografia faz o cérebro regredir a um estágio infantil. Disponível em: https://www.semprefamilia.com.br/saud e/o-consumo-depornografia-faz-o-cere bro-regredir-a-um-estagio-infantil/. Acesso em 25 abril 2021). Desta forma, o consumo exacerbado de pornografia podem gerar mudanças de comportamento bastante intensas, tanto no que se refere a iniciação dos jovens na vida sexual, resultando em desinteresse por outras formas de interaçnao não mediada pela ambiente virtual, como também para a sexualidade dos adultos, que acabam desenvolvimento hábito e predileção ao consumo de conteúdo pornografico, em detrimento das relações sexuais com o parceiro, prejudicando assim a relação afetiva de casal. Considera-se que o aumento do consumo de conteúdo sexual durante o período de pandemia esteja relacionado a necessidade de se manter em isolamento social. Com isso as próprias interações entre os indivíduos tiveram que se atualizar para se adaptar às necessidades do momento. Pesquisa do Instituto Kinsey, têm apontado o aumento do interesse das pessoas em ter conversas sexuais ou sexo virtual. A motivação apontada pelo instituto leva em conta uma propensão maior das pessoas a se sentirem solitárias e em decorrência disso tenderiam a buscar novas sensações e experiências. Além disso, a pesquisa revelou que quase metade dos adultos admite ter praticado menos sexo por causa do estresse e do distanciamento imposto pelo coronavírus. Um estudo feito pela Khoros, plataforma de marketing digital, mostra 240 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS que a busca por palavras chaves como “nudes” e “fotos de pénis" aumentou 384% no twitter de março para abril, no ano de 2020. A pesquisa indica que houve crescimento também na compra de brinquedos sexuais. Um levantamento feito pelo Mercado Erótico entre lojistas e revendedores em 2020 estima que, desde março, a venda de vibradores aumentou 50% em relação ao mesmo período de 2019. Observando a tendência no aumento do consumo de produtos e da busca por conteúdo sexual na internet, muitas pessoas encontraram nesse meio uma oportunidade para obtenção de renda. Em meio a pandemia, observa-se a possibilidade de ingresso nesse mercado por meio de venda de nudes e vídeos sexuais de autoria própria. Em março e abril, por exemplo, o OnlyFans, site famoso pela geração de conteúdo adulto virtual independente por parte de seus usuários, teve um crescimento de 75% em novos usuários e criadores de conteúdo. O site possui um sistema de assinatura onde o assinante paga para consumir o conteúdo do produtor de conteúdo, com isso gerando renda aos criadores de conteúdo. Apesar de tanto a rede quanto seus criadores serem bastante reservados em relação aos valores praticados, o OnlyFans afirma que pelo menos 100 criadores já receberam mais de US$ 1 milhão (R$5,68 milhões) por conteúdos ofertados na plataforma. (Kaique Lima, 2021. OnlyFans: como funciona a plataforma que já tem mais de 100 milhões de usuários. Disponível em:https://olhardigital.com.br/2021/04/0 1/internet-e-redes-sociais/only-fans-atin ge-100-milhoes-deusuarios/.Acesso em 25 abril 2021). A industria da pornografia movimenta bilhões por ano, e suas divisões dos lucros é geralmente desproporcinal, ficando os atores geralmente com a menor parcela. Um exemplo é o fenômeno pornô Mia Khalifa, que recebeu um total de US$ 12 mil para participar de alguns filmes - uma fração minúscula do que seu conteúdo gerou para distribuidores como o Pornhub. O aplicativo Only fans possibilitou que os profissionais vendam diretamente suas fotos e vídeos, ou assinaturas para fornecimento de conteúdo, tornando mais rentável para os profissionais, pois permite maior independência e controle sobre a remuneração. De acordo com o tabloide britânico DailyStar, “Mia Khalifa arrecada sozinha 10 vezes mais do que recebia de produtoras por vídeos pornôs protagonizados pela jovem.” O Only Fans, enquanto rede social, está criando uma categoria de agentes sociais conhecidos como “influencer do sexo”, que 241 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS seriam as pessoas que criam a conta para compartilhar com o público a propria relação sexual. Observa-se que há registros de inúmeros perfis nessa categoria, inclusive de casais, que encontraram uma oportunidade, inclusive com ganhos financeiros consideráveis, na exposição da relação sexual durante a pandemia, possibilitada pelo aumento do consumo do conteúdo sexual na internet. Fabricio Viana, escritor e produtor de conteúdo adulto fala sobre a sua experiência no Only Fans: “Tenho muitos amigos e amigas que são super conhecidos na noite e não tem muitos assinantes, e eu falo como!?. Se você não é uma pessoa conhecida você precisa se tornar conhecida para aquelas pessoas(...) A resposta se vale a pena criar a conta, a resposta é depende muito, se você já tem todo um público e uma base de dados, e você é conhecido e desejado, vai fundo, conheço amigos que são médicos e advogados que criaram o Only Fans como eu, que criaram por criar e agora estão ganhando uma renda extra, não porque elas precisam, mas porque elas são safadas, são pessoas resolvidas com a própria sexualidade e não tem problema em expor ela” 3 PROTISTUIÇÃO, VULNERABILIDADE E COVID 19 A protituição é uma situação que envolve riscos e vulnerabilidade, na maioria das vezes sem amparo social, sofrendo repressão por parte do Estado, o estigma da profissão por parte da sociedade e correndo risco de vida. As pessoas nesta profissão enfrentam muitos desafios, e a pandemia só serviu para agravar a situação destes profissionais. A pandemia representou um momento de dificuldade para a garota de programa, para as prostitutas e os profissionais do sexo de um modo geral. Além dos riscos que fazem parte da rotina da profissão, o trabalho, que envolve contato físico direto, durante a pandemia representou grande risco de contaminação também pelo coronavírus. Para aqueles profissionais que trabalham nas ruas, o isolamento social representou o esvaziamento dos espaços de encontro da clientela, com redução significativa dos clientes. “Sem dinheiro para divulgar o serviço, restou apenas o movimento esvaziado da rua. “Eu vivi lascada se você quer saber”. Com medo do coronavírus, a maioria de seus clientes habituais não apareceram. Perguntei se ela não tinha receio de 242 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS se infectar. “Não, porque eu tomo vodka, aí é álcool dentro e álcool fora”, emendou a resposta com uma risada.” (Agência de Notícias UniCEUB, 2021. Prostitutas revelam rotina mais difícil durante pandemia. Disponível em: http://www.agenciadenoticias.uniceub.br/? p=26049. Acesso em 27 de abril 2021 A necessidade de trabalhar e a falta de políticas que amparem essa parcela da população faz com que a situação social tenha uma degradação maior, resultando no aumento da vulnerabilidade social. Durante o isolamento social resultante da pandemia foi percebida redução do número dos clientes, reprimindo a principal fonte de renda da maioria dessas pessoas, cuja clientela já não está tão disponível como antes. A crise de saúde tem prejudicado a grande maioria das pessoas, podendo ser observado que milhares de pessoas perderam o emprego ou tiveram sua renda reduzida. De acordo com as pesquisas, várias mulheres desempregadas estão encontrando muitas dificuldades para encontrar trabalho e garantir alguma renda durante a crise gerada pela pandemia. Pérola Pets, que se identifica assim em seu novo ramo de atuação, trabalhava como atendente da rede de fast food Burguer King até março, quando o surto do novo coronavírus chegou e mudou o rumo de sua vida profissional. “Começou a vir a crise, tudo começou a fechar e eu perdi o meu emprego. Comecei a pensar no aluguel, nas contas”, conta ela. Em meio à necessidade, Pérola é uma das várias mulheres que viram no mercado do sexo uma maneira de sobreviver à pandemia. (YAHOO FINANÇAS, 2020. Prostituição de mulheres aumentou na quarentena, mostra pesquisa. Disponível em: https://br.financas.yahoo.com/noticias/p rostituicao-de-mulheres-aumentou-na-q uarentena-080016645.html. Acesso em 28 abril 2021) Com menos clientes e com mais concorrentes a renda das trabalhadoras do sexo reduziu muito, precarizando ainda mais sua situação financeira e além disso correndo o risco de pegar COVID 19. A paraense Maria Elias, 43 anos, e a maranhense Luza Maria, 49, se prostituem há mais de duas décadas e dependem desse trabalho para se sustentarem. Com a pandemia do coronavírus, elas e outras trabalhadoras sexuais viram o número de clientes diminuir — e o dinheiro sumir. Sem outra fonte de renda e 243 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS sem poder fazer isolamento social, tiveram que voltar às ruas mesmo sabendo do alto risco de se infectarem. (UOL, 2020. Sem beijo, de máscara: prostitutas criam regras para trabalhar na pandemia. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticia s/redacao/2021/03/25/so-de-costas-trabalhadoras-sexuaisadotam-protocolo para-poder-trabalhar.htm?cmpid=copia ecola. Acesso em 27 de abril 2021) Mesmo com o aumento do número de pessoas que tem usado do sexo virtual para ganhar dinheiro, a realidade é que no Brasil cerca de 20 milhões de lares não tem acesso a internet de acordo com a pesquisa realizada pelo Cetic.br (Centro Regional de Estudos para o Desen volvimento da Sociedade da Informação), órgão vinculado ao CGI.br. Sem a possibilidade de tentar realizar o trabalho de forma remota, as prostitutas têm se arriscado constantemente ao realizar encontros com os seus clientes. A Presidente do Coletivo Coisa de Puta +, que atua pelos direitos das trabalhadoras sexuais, Maria Elias conta que, em um ano, perdeu dez amigas de trabalho para a covid-19. A solução encontrada por ela, Luza e outras colegas para trabalhar com menos riscos de contrair o coronavírus, já que o distanciamento social é impossível no sexo, foi criar uma espécie de protocolo de segurança. Ao kit de cuidados que carregam para evitar as ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis), com camisinha e gel lubrificante, acrescentaram a máscara e passaram a sair de casa com até cinco peças de roupas para trocar após os programas. Além disso, estabeleceram regras para a relação sexual: os clientes não podem beijá-las e elas precisam ficar de costas durante o ato. Quem se recusa a seguir o protocolo é posto para fora do quarto, garantem elas. A dificuldade maior, segundo ela, é convencer os clientes a seguirem o protocolo. "Antes, era difícil negociar o uso de preservativo, agora essa dificuldade dobrou ao tentar fazer o cliente usar máscara e não nos beijar", fala. "Já aconteceu de não aceitarem e tivemos que chamar um segurança do local onde estávamos trabalhando ou sair do quarto e desistir do programa. E fazendo isso ficamos só com a metade do pouco dinheiro que ganhamos hoje. Isso é rotineiro, infelizmente." (Referência) Mesmo a instituição de apoio as trabalhadoras do sexo recomendando protocolos, o seu alcance continua sendo limitado, o trabalho sexual é um trabalho informal, logo estão totalmente fora das prioridades governamental para a criação de políticas públicas, para amenizar e dar suporte e evitar a contaminação deste grupo. Em tempos de desemprego se elevando, recessão econômica e ainda uma pandemia, a situação de quem usa do sexo não como um hobbie, como o caso dos 244 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS influenciarores do sexo, mas como uma necessidade e unica fonte de renda, a situação destas pessoas tem se precarizado ainda mais. 4 CONCLUSÃO Durante a pandemia, verificou-se um aumento no consumo de pornografia, e com isso todos as letalidades que o consumo exacerbado pode proporcionar. Contudo a pandemia ressignificou e remodelou as interações sociais e as relações sexuais, possibilitando uma atualização nas tecnologias vigentes, nos hábitos de uso de redes socias e de consumo virtual, criando a tendencia do sexo virtual, que já existia há tempos, mas se viu potencializado devido ao isolamento. Essa modalidade de interação observou grande aumento do número de adeptos, conforme indicam as pesquisas realizadas. Na medida em que ocorre uma normalização das condutas sexuais na modalidade virtual, observa-se uma transformação no modo de se praticar a relação, mediado pelas redes de internet, resultando em todo um novo campo para consumo de nudes e videos, bem como no surgimento de novos atores socias nesse campo, tais como o fornecedor de conteúdo regular para as assinaturas e os influencers. Apesar disso, a crise gerada pela pandemia do coronavirus representou um aumento de pessoas desempregadas, e com isso tiveram que buscar novas oportunidade de se inserir em algum campo de trabalho para obter uma renda e sobreviver. No campo da prostituição e do comércio sexual não seria diferente, Além de conviver com o estigma e o perigo que a profissão representa, as pessoas precisam também adotar protocolos de cuidados em relação ao risco de contágio do coronavirus, aumentando os riscos envolvidos na profissão e a vulnerabilidade de sua posição. REFERÊNCIAS Sexo virtual ganha novos adeptos após pandemia do coronavírus, conclui pesquisa. O Dia, 9 de maio. de 2020. Disponível em: https://odia.ig.com.br/brasil/2020/05/59136 55-sexo-virtual-ganha-novos-adeptosapos-pandemia-do-coronavirus--conclui-pesq uisa.html ATIK, Marcia. Pandemia estimula a prática e o descobrimento do sexo virtual. Atribuna, 22 de outubro de 2020. 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Aline Sapiezinskas Kras Borges Canani Ronald Henrique Leal Acipreste RESUMO Por meio de revisão bibliográfica, este artigo obtiva refletir acerca da conjugalidade desenvolvida pelo casal durante o distanciamento social resultado da pandemia da COVID-19. Segundo o Colégio Notarial do Brasil — Conselho Federal (CNB/CF), o número de divórcios no segundo semestre de 2020 foi 15% maior em relação ao mesmo período de 2019. Os dados apontam para uma dificuldade em estabelecer novas formas de se relacionar na intimidade do casal, considerando o maior tempo de convivência, seja pelo trabalho em casa, pelo aumento do desemprego, ou outros fatores envolvidos. Questiona-se o impacto da publicação da Resolução nº 100/2020, do Conselho Nacional de Justiça, que estabeleceu o procedimento em cartório de modo virtual desde que o divórcio seja consensual e que o casal não tenha filhos menores, facilitando, assim, o processo de encerramento formal da relação. O artigo aponta estratégias de enfrentamento dos impactos da pandemia, visando contribuir para o processo de transição para o novo normal. Palavras-chave: conjugalidade, covid-19, casamento, sexualidade, enfrentamento. 1 INTRODUÇÃO Começou na China em dezembro de 2019, o que nos próximos meses se tornaria a pandemia do Sars-Covid-19, com consequências trágicas para a população, conforme o que se sabe até o momento. Desde o aspecto da saúde pública, até as questões econômicas e financeiras, a pandemia trouxe inúmeras e variadas consequências, impactando também sobre as relações humanas (Silber, 2020). Por ser uma doença desconhecida, possivelmente letal, e altamente contagiosa, a medida mais urgente a ser tomada pelas autoridades sanitárias consistiu em restringir a circulação de pessoas com o objetivo de frear a transmissão do vírus. 248 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Tal estratégia foi traçada levando em conta os aspectos históricos, considerando a experiência em outras situações de pandemias, e os aspectos técnicocientíficos, ouvindo especialistas das mais diversas áreas que poderiam contribuir para que as taxas de transmissão desacelerassem até que medicamos e vacinas fossem descobertos e/ou desenvolvidos (Silber, 2020). O distanciamento social seria a única medida comprovadamente eficaz naquele momento e ainda hoje. Diferente de outros países, o Brasil seguiu por outra via: optou por um discurso negacionista que prega, ainda hoje, a normalidade cotidiana e que a doença recém-descoberta teria pouco impacto na saúde pública, na economia e no dia a dia da população. Até o dia 30 de abril de 2021, o Brasil, segundo o portal G1 1, contabilizou 404.287 mortes em decorrência da pandemia do novo Coronavírus. Os números crescentes e ainda não estabilizados refletem negativamente no número de desempregados e vulneráveis sociais. (mencionar proibição de divulgação de dados, tentativas de suspender a contagem de doentes e mortos, a dificuldade em manter registros estatísticos que deem conta de mostrar a dimensão da epidemia no Brasil, em face da estratégia negacionista) As famílias também sofreram e sofrem as consequências da pandemia. Com o distanciamento social e o aumento do desemprego, muitas famílias tiveram que se reorganizar e se reconhecer do dia para a noite. O encontro que antes era só durante algumas horas da noite passou a ser 24h por dia. A complexidade de duas individualidades que constituem a identidade conjugal (Porreca, 2019), precisou rapidamente ser repensada e ressignificada. Dados do Colégio Notarial do Brasil — Conselho Federal (CNB/CF) divulgados pela Revista IstoÉ Dinheiro2, afirmam que no segundo semestre de 2020, os cartórios registraram 43,8 mil processos o que representa um aumento de 15% quando comparado ao mesmo período de 2019. Segundo a reportagem, a hipótese levantada para explicar o aumento foi a implantação do processo digital de pedido de divórcio realizado pelos cartórios e 1 2 https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/04/30/brasil-completa-100-dias-com-mediamovel-de-mortes-por-covid-acima-de-1-mil-periodo-teve-quase-metade-dos-obitos-da-pandemia.ghtml https://www.istoedinheiro.com.br/numero-de-divorcios-cresce-na-pandemia-e-gera-oportunidades-denegocio/ 249 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS oficializado pelo Tabelião, o que torna mais prático e rápido o pedido em caso de casais sem filhos menores ou incapazes e aqueles com filhos menores em que questões como pensão, guarda e visitas estejam previamente resolvidas no âmbito judicial. Além disso, também é necessário que não exista litígio entre o casal. Este trabalho objetiva investigar, por meio dados estatísticos e de revisão bibliográfica de trabalhos publicados sobre tema, as possíveis causas do aumento do número de divórcios durante a pandemia do novo coronavírus, e problematizar essa questão, adotando o ponto de vista das dinâmicas familiares e considerando as mudanças ocorridas em decorrência dessa nova realidade. 2 AS MUDANÇAS NA ROTINA DA FAMÍLIA E DO CASAL O processo de divórcio em si, geralmente não é fácil. O sistema familiar se subdivide e novas regras passam a compor a rotina da família, agora dividida em subsistemas, no caso de o casal ter filhos. Afinal, existe ex-marido e ex-esposa, mas não existe “ex-pai” e “ex-mãe”. A vida conjugal é influenciada por vários fatores, como o aparelho intrapsíquico, pela transgeracionalidade dos indivíduos, aspectos culturais, sociais, temporais, regionais, financeiros, econômicos e com a realidade da pandemia da COVID-19 não seria diferente, afinal, todos esses impactos sociais, econômicos e emocionais apresentam-se às famílias como estressores, intensificando sua vulnerabilidade e demandando um processo de reorganização estrutural (Silva et al., 2020). Uma nova realidade foi criada do dia para noite e a adaptação foi necessária, como Porreca (2019), estabeleceu: A relação conjugal, entendida como uma “dança” simétrica e assimétrica, abarca uma série de fatores que a constituem, a dinamizam e a mantêm. Assim, ela pode ser compreendida como um processo a dois, uma adequação de diferentes que buscam e desejam um projeto comum por meio do companheirismo, do cuidado, da dedicação e do bem-estar do outro (Porreca, 2019). Com a analogia do autor, podemos considerar que à medida que a música muda, a “dança” de seus parceiros precisa também sofrer ajustes e adaptações para acompanhar. É inegável que a pandemia do novo coronavírus é uma importante alteração nesse ritmo. Com as negociações, ressignificação e conciliação de desejos 250 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS e expectativas individuais é que a conjugalidade e a relação à dois é construída, num processo dinâmico e complexo, pois são duas pessoas se relacionando e não se fundindo para formar uma só (Porreca, 2019). Para melhor compreender como a situação de pandemia pode influenciar o funcionamento das famílias e dos casais recém divorciados, Carter e McGoldrick (1995), consideram o fluxo de ansiedade em uma família como sendo tanto “vertical”, como “horizontal”. As autoras entendem o fluxo vertical como os padrões de relacionamento e funcionamento que são transmitidos para as gerações seguintes, principalmente através do mecanismo de triangulação emocional – conceito de herança transgeracional e triangulação trabalhados por Bowen (Nichols e Schwaz, 2007). Já o fluxo horizontal no sistema inclui a ansiedade produzida pelos estresses da família conforme ela avança no tempo. Isso inclui também os estresses do processo de desenvolvimento esperado e das surpresas da vida, aquilo que não é possível controlar. Um exemplo disso é a pandemia mundial do vírus Sars-CoV-2, causador da COVID-19. A Figura 1, baseada em Carter e McGoldrick (1995), representa como a interação dos fatores estressores influencia os níveis de estresse no sistema. Figura 1: Estressores horizontais e verticais (Carter e McGoldrick, 1995). 251 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS As autoras também enfatizam que o estresse de “viver neste lugar, neste momento” (Carter e McGoldrick, 1995), são importantes e precisam ser considerados. O contexto espaço-tempo, social, político e cultural vão influenciar os fatores estressores e essas famílias precisarão se adaptar à realidade do desemprego crescente, inflação descontrolada, aumento dos alimentos da cesta básica, aumento de subempregos e informalidade, entre outros (Silber, 2020). Sobretudo, quando há perda de emprego ou renda, a manutenção do padrão de vida e a subsistência familiar podem ser prejudicadas, o que vulnerabiliza os membros da família e requer renegociações entre os pais ou cuidadores divorciados (Lebow, 2020). Ademais, em pesquisa realizada por Almeida et al. (2020), que investigou as mudanças nas condições socioeconômicas e de saúde dos brasileiros durante a pandemia de COVID-19, houve apontamento que 50,5% dos entrevistados seguiram trabalhando ou iniciaram um novo trabalho durante a pandemia, no entanto 20,6% perderam o emprego ou ficou sem trabalhar. Dados que apontam para a forte mudança na rotina da família. Outro fato estressante identificado em pesquisa realizada por Malta et al. (2020), com 45.161 participantes, indicou maior consumo de bebida alcoólica durante a restrição social, na população adulta com 17,6% dos entrevistados afirmando que aumentou o consumo de álcool neste período. Na mesma pesquisa, os autores identificaram outras mudanças relevantes na rotina das famílias, como a diminuição da prática de atividades físicas, o maior consumo de alimentos industrializados e ultra processados, aumento do sedentarismo em conjunto do maior tempo gasto em dispositivos eletrônicos, como celulares, computadores ou tabletes Malta et al. (2020). Vários estudos associam o abuso de álcool pelos homens como fator associado à violência doméstica (Curia et al., 2020; Silva & Oliveira, 2015, apud Campos, Tchalekian & Paiva, 2020). Além disso, Marques et al. (2020), afirmam que houve um aumento de 17% de ligações com relatos de violência doméstica utilizando o Ligue 180 disponibilizados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Houve, ainda, maior número de chamados da Polícia Militar com 252 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS queixa de violência doméstica nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Pernambuco e Ceará, sendo no primeiro, o número alarmante de 50%. Várias hipóteses podem ser levantadas para compreender o aumento do número de divórcios na pandemia. O primeiro fator relevante é a possibilidade dada pela Lei Federal nº11.441/2007 (2007), que permitiu a realização de separações e divórcios em cartórios e com a situação de pandemia, esse procedimento passou a ser feito totalmente on-line após autorização da Resolução nº100 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) (2020), e com o prazo de até sete dias, em caso de divórcios consensuais e sem filhos menores ou incapazes. Lebow (2020), diz que para a maioria das famílias a pandemia da COVID-19 aumenta o estresse e cria limites mais rígidos entre a família nuclear e os demais membros de parentesco ampliado. O limite agora frequentemente borrado entre trabalho e casa aumenta e intensifica as oportunidades de conflito, assim como sobrecarrega o exercício do papel de pai ou de mãe, no controle de atividades realizadas em casa ao longo do dia, e no gerenciamento do tempo. Observa-se também a prevalência de outros fatores estressores, como desemprego e redução de renda. As oportunidades para encontrar novos trabalhos também se encontram reduzidas. Tais fatores demonstram enfaticamente que os conflitos conjugais foram maximizados pela situação de pandemia. Com o aumento do tempo em casa, muitos casais perderam seus mecanismos de triangulação natural, como descrito por Bowen (Nichols e Schwarts, 2007). Os mecanismos de triangulação consistem em estratégias psicológicas de manutenção do equilíbrio dinâmico no interior do sistema familiar. Tal mecanismo de resposta costuma ocorrer nos processos relacionais que se encontrem diante de situações estressantes. Uma menor ou nenhuma interação com amigos, colegas de trabalho e espaços de lazer externo e individuais fizeram com que pensamentos sobre as vantagens da separação e divórcio fossem intensificadas (Lebow, 2020). De acordo com Martins, Rabinovich e Silva (2008), a triangulação se refere a um sistema inter-relacional entre três pessoas, envolvendo sempre uma díade e um terceiro, que será convocado a participar quando o nível de desconforto e de ansiedade aumentar entre o par. Uma delas tende a buscar a terceira pessoa para 253 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS aliviar a tensão. Os triângulos aparecem no processo emocional interacional que se estabelece no sistema familiar e transgeracional. Como exemplo desse processo de triangulação para fora do sistema nuclear, podemos supor o encontro com familiares ou amigos, ou mesmo a interação com colegas de trabalho, algo que constitua um espaço de abertura para expressão individual fora do núcleo familiar, constituindose numa estratégia de liberação da ansiedade e contribuindo para restaurar o equilíbrio do sistema. Durante a pandemia, com o emprego do isolamento social como estratégia de enfrentamento, tais mecanismos de reequilíbrio da ansiedade dentro do sistema deixa de ser possível, muitas vezes gerando uma sobrecarga no núcleo familiar, como se pode supor. Ainda considerando esse contexto de aumento do estresse e ansiedade crônica no interior do sistema familiar, outros fatores como o aumento da violência doméstica, consumo excessivo de álcool e outras drogas também podem contribuir para o crescimento dos números de casais divorciados. Associado a isso, o desemprego e a consequente diminuição de renda familiar são problemas enfrentados pelas famílias brasileiras de classes sociais mais vulneráveis e assalariadas, fatos que foram exponencializados pela pandemia (Campos, Tchalekian & Paiva, 2020). Segundo Walsh (2005, apud Silva, et al., 2020), s recursos familiares podem ser divididos em três categorias principais (a) os modelos organizacionais; (b) o sistema de crenças; e (c) o processo comunicacional ou de resolução de problemas. Contudo, esses padrões de interação que se desenvolvem em determinadas famílias podem apresentar um risco para a forma de lidar com os estressores, como por exemplo, questões relacionadas à comunicação, tolerância, frustração e outros sentimentos negativos (Henry et al., 2015; Walsh, 1995, apud Silva, et al., 2020). Quando a família não consegue lidar com os fatores estressores que geram crises, o divórcio pode ser a solução encontrada. Pasquali e Moura (2003), identificaram em pesquisa realizada com 310 participantes que existe a crença de que as questões relacionadas ao divórcio e separação do casal devem ser tratadas no âmbito íntimo, sendo assim, sofrendo mais influências internas e externas. Contudo, Carter e McGoldick (1995), destacam a 254 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS influência dos estressores horizontais nos sistemas familiares. Isto é, a influência de situações imprevisíveis, como a pandemia, é um fator de estresse e que deve ser trabalhado dentro do âmbito familiar. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS É necessário considerar, ainda, os fatores subjetivos de como os indivíduos estão lidando com o bombardeio de fatores estressantes externos, como já foi dito. Barros et al. (2020), em pesquisa que objetivou analisar a frequência de tristeza, nervosismo e alterações do sono durante a pandemia de COVID-19 no Brasil, constatou que 40,4% dos entrevistados se sentiram frequentemente tristes ou deprimidos, e 52,6%, frequentemente ansiosos ou nervosos; 43,5% relataram início de problemas de sono, e 48,0%, problema de sono preexistente agravado. A pesquisa apontou que adultos jovens, mulheres e pessoas com histórico de depressão apresentaram mais sentimentos negativos durante o período de pandemia. O casal é composto por dois indivíduos únicos que não se tornam uma pessoa só. Cada um carrega sua história, dores, medos, anseios, sonhos e particularidades. A partir dessa interação, a construção do “nós” é dada diariamente com a convivência e o estabelecimento de limites e regras para os dois (Porreca, 2019). Considerar tanto os fatores subjetivos de cada membro familiar, quanto os fatores externos de estresse, é um caminho importante a ser seguido para problematizar e pensar em hipóteses para compreender o motivo do aumento dos divórcios na pandemia. A pandemia do novo coronavírus vem trazendo inúmeras consequências negativas no âmbito econômico, financeiro, social e psicológico. Com o número crescente de mortes, a sensação de medo da população é real e assola indivíduos de diversas maneiras. O distanciamento social possui custos para a saúde mental das pessoas, contudo, ainda é a melhor forma de controle da pandemia no Brasil, considerando a lentidão do processo de imunização da população brasileira. Vale ressaltar que este trabalho objetivou investigar as possíveis hipóteses para o aumento do número de divórcios no Brasil identificado pelo Colégio Notarial do Brasil — Conselho Federal (CNB/CF), no segundo semestre de 2020, na modalidade de formalizações realizadas em cartórios. Se faz necessária a realização 255 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS de outros estudos utilizando diferentes metodologias a fim de identificar as causas reais que motivaram esse aumento no contexto de pandemia no cenário brasileiro. REFERÊNCIAS Almeida, Wanessa da Silva de, Szwarcwald, Célia Landmann, Malta, Deborah Carvalho, Barros, Marilisa Berti de Azevedo, Souza Júnior, Paulo Roberto Borges de, Azevedo, Luiz Otávio, Romero, Dália, Lima, Margareth Guimarães, Damacena, Giseli Nogueira, Machado, Ísis Eloah, Gomes, Crizian Saar, Pina, Maria de Fátima de, Gracie, Renata, Werneck, André Oliveira, & Silva, Danilo Rodrigues Pereira da. (2020). Mudanças nas condições socioeconômicas e de saúde dos brasileiros durante a pandemia de COVID-19. Revista Brasileira de Epidemiologia, 23, e200105. 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Desde 2020, o mundo vem sofrendo as consequências dramáticas geradas pela COVID-19, com milhões de infectados em todo o planeta. Em abril de 2021, já se somavam mais de 3 milhões de mortes em todo o mundo, sendo que a América do Sul tem sido uma das regiões que mais tem sofrido com o aumento de casos e, consequentemente, o Brasil um dos países mais afetados no planeta. Assim, o presente artigo analisará o crime de tráfico de pessoas de maneira a apresentar de quais maneiras a pandemia tem influenciado os diversos indicadores desse crime e colaborado para o aumento de suas vítimas em todo o mundo. Palavras-chave: Tráfico de Pessoas. Tráfico Humano. Direitos Humanos. Vulnerabilidade. Pandemia do coronavírus (COVID-19). ABSTRACT Human trafficking is one of the most serious forms of human rights violations. It is transnational organized crime that affects the most different social 1 Hédel de Andrade Torres: Mestrado em Direito das Relações Internacionais (Centro Universitário de Brasília/DF – UniCEUB, 2011), Pós-Graduação em Direito Legislativo (Instituto Legislativo Brasileiro do Senado Federal – ILB/DF, 2016), Graduação em Direito (Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus/BA – UESC/BA, 1998). E-mail: HedelTorres@hotmail.com. 2 Barbara Tude de Souza Ferreira: Pós-graduação em Direito Internacional Aplicado (Escola Brasileira de Direito – EBRADI, 2021), Graduação em Administração de Sistemas de Informação (União Educacional de Brasília/DF – UNEB, 2002). E-mail: BarbaraTudeFerreira@hotmail.com. 258 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS groups of which women and children continue to be the main victims. Despite existing since ancient times, human trafficking is always gaining new contours given the fact that it is a dynamic and multifaceted crime that challenges the authorities of the most varied countries. This illicit modality is improved with globalization and with technology, even in times of pandemic, generating ever higher numbers for recruiters and traffickers in human beings. Since 2020, the world has been suffering the dramatic consequences generated by COVID-19, with millions of people infected across the planet. In April 2021, there were already more than 3 million deaths worldwide, and South America has been one of the regions that has suffered most from the increase in cases and, consequently, Brazil is one of the most affected countries in Planet. Thus, this article will analyze the crime of trafficking in persons in order to present how the pandemic has influenced the various indicators of this crime and contributed to the increase in its victims worldwide. Keywords: Trafficking in Persons. Human Vulnerability. Coronavirus pandemic (COVID-19). Trafficking. Human rights. 1 INTRODUÇÃO O tráfico de pessoas é antigo na sociedade. Embora não haja uma data certa para o seu início, a história da humanidade é marcada por inúmeros conflitos e lutas, onde desde a antiguidade os povos vencedores das batalhas escravizavam os perdedores. Inclusive, antes mesmo dos tempos bíblicos já se relatava a escravidão como prática permitida e legítima na época. Porém, com o passar dos anos, toda e qualquer forma de escravidão passou a ser vista como ilícita, muito embora, ainda existam países na atualidade onde essa conduta não é criminalizada e nem penalizada. Já no Brasil, por exemplo, desde a Lei Áurea – Lei nº 3.353 de 13 de maio de 1888, assinada pela princesa Isabel, a escravidão passou a ser proibida, muito embora, na prática, não é exatamente isso que acontece. Assim, existem vários tipos de escravidão nos dias de hoje, sendo o tráfico de pessoas considerado como apenas uma dessas formas. Ou seja, o tráfico de pessoas, enquanto forma moderna de escravidão, tem recebido novos contornos constantemente e continua atingindo milhões de pessoas não apenas no Brasil mas em todo o mundo. O tráfico de pessoas faz vítimas em todo o planeta, de maneira a gerar alta lucratividade para os traficantes e aprisionar pessoas muitas vezes a partir de seus próprios sonhos. Assim, o tráfico humano viola os direitos mais fundamentais do ser 259 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS humano, dentre eles, o direito de ir e vir, o direito à dignidade humana, o direito à saúde, o direito à vida, dentre outros. De modo divergente, no entanto, a pandemia do coronavírus não é antiga na sociedade e surgiu no final de dezembro de 2019 na China, de modo que logo se espalhou por todo o mundo fazendo milhares de vítimas em todo o planeta. Os números atuais somam mais de 4 milhões de óbitos em todos os continentes, sendo o Brasil um dos países mais gravemente atingidos pela doença. Com a pandemia, e, agora de maneira similar ao tráfico de pessoas, os direitos fundamentais das pessoas, dentre eles o direito de liberdade, o direito à dignidade humana, o direito à saúde, o direito à vida, dentre outros, passaram a ser cerceados e limitados. Em alguns países, agentes de saúde se viam obrigados a escolher os doentes com maiores chances de sobrevivência em prol de outros que nem sequer puderam ter a chance de terem seus direitos resguardados e preservados. Assim, quando se fala em restrição de direitos e garantias fundamentais, fica clara a semelhança entre o crime de tráfico humano e a Covid-19. Mais de um ano após o início da pandemia, os números crescentes de casos em diversos cantos espalhados pelo mundo continuam assombrando as pessoas que, com medo, se privam da vida que tinham antes de todo esse caos iniciar. Atualmente, vacinas já estão sendo oferecidas à população, muito embora, o fato é que a situação que ainda se observa está longe do que até 2019 se considerava como normal. Dessa maneira, a partir do “novo normal” promovido pela doença que vem afetando toda a população mundial e, procurando relacionar os temas em tela – tráfico de pessoas e o surgimento da Covid-19, observa-se que com a dificuldade de se lidar com o problema em nível mundial, a vulnerabilidade das pessoas, de modo geral, acaba por aumentar, o que acaba favorecendo o aumento de vítimas desse crime e, inclusive, piora o estado das que já se encontram nessa condição. Assim, o objetivo do presente artigo será o de trazer à tona os reflexos da pandemia do coronavírus em relação ao aumento do número de vítimas do tráfico de pessoas. É de fundamental importância analisar as causas e as consequências para as vítimas desse crime tão cruel que é o tráfico humano em meio à pandemia causada 260 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS pela Covid-19 que desde 2020 vem afetando todo o planeta de maneira incalculável e aumentando o caos no cenário global. 2 BREVE HISTÓRICO: DA ESCRAVIDÃO NA ANTIGUIDADE AO TRÁFICO DE PESSOAS NA MODERNIDADE A escravidão é remota e está presente há séculos na história e em muitas culturas da sociedade. Acredita-se que a escravidão tenha tido início durante a Revolução Neolítica que ocorreu há mais de 10 mil anos e é onde a agricultura teria sido inventada. Na medida em que a agricultura era expandida, maior era a necessidade de trabalhadores importados das regiões próximas do antigo Oriente que pudessem atuar junto às plantações, o que teria desencadeado a mão-de-obra escrava no momento em que a agricultura alcançou seu nível mais avançado de produção. Civilizações antigas como as da Suméria, Egito, Grécia, Babilônia, Império Romano, as pré-colombianas das Américas (incas, astecas e maias), dentre outras, possuem inúmeros casos da presença da escravidão entre seus povos, desde escravidão por dívida, prisioneiros de guerra, crianças abandonadas que se tornavam escravas, bem como, outras que já nasciam escravas são alguns dos exemplos de situações que levavam à escravidão desde a sociedade mais remota (Harris, 1999). Bonjovani (2004) afirma que as disputas por territórios durante o período antigo favoreciam a comercialização dos povos perdedores dessas batalhas pelos povos vencedores e que tal comercialização ocorria por meio da escravidão. Da mesma forma, Santos (2003) aponta que desde os primórdios, em razão dos conflitos existentes entre as tribos e os diversos povos, que já havia indícios de trabalho escravo, muito embora, no Egito, na Grécia e em Roma é que a escravidão teve grandes proporções, uma vez que nessas culturas os próprios filhos dos prisioneiros de guerra já nasciam escravos. De acordo com o autor (Santos, 2003), no Egito havia uma divisão na sociedade entre dominantes e dominados. No primeiro grupo estavam os escribas, os nobres e os sacerdotes, enquanto que artesões, escravos e camponeses compunham o segundo grupo. Já na Grécia, registra-se a presença da escravidão desde o período Homérico que durou do século XV até o século VIII a.C., e, inclusive, também no 261 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS período Helenístico, este ocorrido nos séculos V e VI a.C, e, segundo Silva (2010), a escravidão era atribuída tanto aos prisioneiros de guerra quanto a aqueles que não pagavam suas dívidas. Ainda sobre a Grécia, era comum o rapto de crianças e, inclusive, aquelas que eram abandonadas pelos pais eram mais facilmente suscetíveis à escravidão. Já em Roma, segundo o mesmo autor (Silva, 2010), uma vez que os escravos eram considerados como coisas (res), estes, em sua maioria, não possuíam direitos de cidadania nem civis. Sobre Roma, Porchat (1915) complementa que a lei romana previa a existência do cidadão romano e, nesse sentido, alguns nasciam em liberdade, enquanto que outros eram escravos, mas que, contudo, poderiam ser libertos dessa condição legal imposta pela escravidão. Com o surgimento do Cristianismo, de acordo com Alonso (1986), a prática da escravidão foi legal durante todo o período que atravessou a Sagrada Escritura, desde a presença dos patriarcas até o primeiro século da então Era Cristã. Segundo explicações apresentadas por Gasda (2013), em seu artigo "Tráfico de Pessoas na Sagrada Escritura", “Não há dúvidas a respeito da compra e venda de pessoas no patriarcalismo. Era prática comum para a época. Entretanto, o escravo adquirido no mercado pelo agricultor não era visto como mercadoria, pois se buscava mais uma mão-de-obra para trabalhar ao seu lado na lavoura e não alguém que fizesse o trabalho por ele. Os patriarcas bíblicos (também na Grécia, e os pater famílias de Roma), submetiam seus filhos e parentes ao trabalho compulsório na unidade familiar. Todos aqueles que estavam subordinados aos patriarcas, como os membros da família e os escravos, eram obrigados a trabalhar para garantir o sustento do grupo”. Nesse sentido, um dos exemplos mais clássicos envolvendo a escravidão nos tempos bíblicos é revelado na história de José, filho predileto de Jacó, e que foi vendido como escravo pelos seus próprios irmãos e que veio a se tornar, anos mais tarde, o governador do Egito (Bíblia Sagrada, GN 37-50). Apesar da presença de escravos também nessa época bíblica, Santos (2003) explica que aos poucos a escravidão foi sendo enfraquecida a partir dos princípios de igualdade, fraternidade e liberdade já observados pela Revolução Francesa, assim 262 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS como, pelas propostas de um tratamento envolvendo maior dignidade e caridade por São Tomás de Aquino e Santo Agostinho. Já na Idade Média, prevaleceu-se o regime de servidão e, apesar dos servos não serem considerados como coisas (res) nem escravos, eram vistos como acessórios pertencentes aos senhores feudais. Estes servos viviam sob condições desumanas e tinham uma série de limitações em seus direitos, dentre eles, no que diz respeito ao direito de ir e vir (Santos, 2003). Silva (2010) complementa que neste período da Idade Média os senhores feudais também prendiam os derrotados dos conflitos de maneira a comercializarem estes como escravos. O mesmo autor afirma ainda que a Turquia já promovia uma espécie de tráfico de escravos durante este período. Ao final da Idade Média e com o declínio do feudalismo, a escravidão voltou ao cenário já no início da Idade Moderna com as grandes navegações promovidas pelos europeus, principalmente pelos portugueses e espanhóis com os ideais do denominado Novo Mundo. Os indígenas nativos encontrados nas Américas, e principalmente, no Brasil, pelos europeus foram escravizados principalmente para a produção de café e canade-açúcar e, com o passar do tempo, visando a manutenção da mão-de-obra que já se encontrava escassa nas colônias, escravizou-se também os negros africanos promovendo-se assim o tráfico negreiro. Segundo explicam os autores Bonacchi e Groppi (1995), no século XVIII, nos anos de 1789 e 1791 respectivamente, foram proclamadas a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, ambas regidas sob os princípios de liberdade, igualdade e dignidade. Conforme ensinam os autores Dodge (2002) e Melo e Lorentz (2011), somente com o decorrer do tempo, a partir da existência de influência advinda da Inglaterra, e com as Leis do Ventre Livre, dos Sexagenários e com a Lei Áurea, é que o sistema escravagista, adotado até o século XIX, foi abolido definitivamente de maneira formal do território brasileiro. 263 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Com a Revolução Industrial e a imensa necessidade de grande quantitativo de pessoas para operar as máquinas, Garcia (2011) descreve que foi nesse momento da história que houve a substituição da mão-de-obra escrava e servil por trabalhadores assalariados, dando início então ao trabalho livre. Delgado (2013) afirma que é a partir desse cenário que tem início o Direito do Trabalho, onde trabalhadores encontram-se subordinados, porém, por meio de relações de emprego e salários, diferentemente do que acontecia antes. Apesar disso, não era visível à época uma grande oferta de trabalho renumerado, assalariado e livre. Ressalta-se, ainda, de acordo com Silva (2010), que enquanto na Europa se introduzia o trabalho livre com vistas ao desenvolvimento do capitalismo, no Brasil, o real interesse era a manutenção do sistema agrícola e territorial onde o contexto da escravidão estava implantado. Uma vez que a escravatura foi abolida, o Brasil passou a usufruir da mão-de-obra de imigrantes europeus, tendo sido promulgada no ano de 1850 uma lei com o intuito de que se desenvolvesse uma política de imigração de estrangeiros. Embora os negros tivessem conquistado sua liberdade, conforme destacam Melo e Lorentz (2011), estes foram excluídos socialmente e marginalizados uma vez que se encontravam sem possibilidade de trabalhar de maneira remunerada. Com o passar dos tempos até a chegada da atualidade, o que se observa no Brasil (dentre outros países no mundo) é que embora não haja mais uma escravidão formal como nos tempos antigos, há ainda registros de uma escravidão de forma camuflada e moderna ou contemporânea. E é aí, a partir dessa visão moderna, que a escravidão e o tráfico de pessoas acabam sendo vistos como coisas distintas, sendo o trabalho escravo, o trabalho servil, dentre outros, como apenas algumas das formas de exploração ao ser humano, ou seja, como algumas das maneiras pelas quais o tráfico de pessoas acontece. Em meados do século XIX, a prostituição ultrapassava as fronteiras internacionais com o tráfico de mulheres brancas trazendo grandes preocupações humanitárias à época, fazendo com que surgisse no ano de 1904 o primeiro instrumento internacional voltado à inibir as práticas da escravidão sexual que acontecia nas Américas que era o Tratado Internacional para a Eliminação do 264 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Tráfico de Escravas Brancas. Venson e Pedro (2013) complementam que na virada para o século XX a prostituição já ameaçava várias searas, entre elas, o corpo, a família, o casamento, a propriedade e o trabalho. Em 1926, a Convenção das Nações Unidas sobre a Escravatura definiu a escravidão como “o estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercem, total ou parcialmente, os atributos do direito de propriedade” (Organização das Nações Unidas – ONU, 1926). A Organização Internacional do Trabalho – OIT estipulou, em 1930, por meio de suas Convenções nº 29 e 105, as terminologias de trabalho forçado ou obrigatório. Segundo a Convenção nº 29, “a expressão trabalho forçado ou obrigatório designará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade” (OIT, 1930). Ressalta-se, contudo, no artigo 2º da Convenção em referência que os serviços militar e cívico em país autônomo, bem como, as obrigações decorrentes de condenações judiciais, emergenciais e de serviços comunitários não são vistos como formas de trabalho forçado ou obrigatório. No ano de 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ficou definido que nenhum ser humano deve ser mantido em regime de servidão, nem escravidão e nem de tráfico de pessoas e foi expressamente estipulado na Declaração, ainda, que ninguém deverá ser submetido à tortura, castigo cruel, degradante ou desumano. Em 1956, ampliou-se a Convenção das Nações Unidas sobre a Escravatura a partir da Convenção Suplementar sobre Abolição da Escravatura, do Tráfico de Escravos e de Instituições e Práticas Análogas à Escravatura com o objetivo de que os esforços no combate a essas práticas fossem aprimorados, tendo o Brasil assinado este tratado no ano de 1966, por meio do Decreto n. 58.563. Já a respeito das Convenções n. 29 e 105, ambas da Organização Internacional do Trabalho – OIT, como acima destacado, salienta-se, que o Brasil é signatário dessas Convenções desde 1957 de acordo com o Decreto n. 41.721 e que representa mais esforços no que diz respeito ao combate do trabalho escravo. 265 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Posteriormente, no ano de 1969 foi promulgada a Convenção Americana sobre Direitos Humanos que também proibiu expressamente a servidão, a escravidão e o tráfico humano, especialmente o de mulheres e é por meio do Decreto n. 678, datado de 1992, que se incorpora esta Convenção no Brasil. Para Melo (2003), trabalho forçado tem relação com a exploração do trabalhador que esteja impedido de maneira moral, psicológica ou física a abandonar o serviço ainda que tenha inicialmente aceito a trabalhar de maneira livre. Brito Filho (2004) assevera que o trabalho degradante, assim como o trabalho forçado, é uma espécie de trabalho em condições análogas à escravidão e caracteriza como sendo aquele que não possui garantias mínimas de segurança, saúde, moradia, respeito, higiene e alimentação. Para Sento-Sé (2000), o trabalho forçado é apenas uma das espécies de trabalho análogo ao de escravo, enquanto que, para Melo (2003) o trabalho forçado e o trabalho escravo estão equiparados. Vários instrumentos internacionais surgiram com o intuito de se eliminar a escravidão e o tráfico, porém, restaram-se frustrados. Na sequência, no ano 2000, na cidade de Palermo, na Itália, foi elaborado o documento mais importante envolvendo a questão do tráfico de pessoas no mundo. Tratava-se do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças. Este Protocolo ficou mais conhecido como Protocolo de Palermo e sua finalidade é a prevenir e combater tal crime dando mais atenção tanto para mulheres quanto para crianças já que são os grupos mais vulneráveis à exploração. Este Protocolo ainda visa o respeito dos direitos humanos das vítimas e promove uma cooperação entre os Estados-membros com o intuito de se alcançar seus objetivos, tendo sido foi ratificado pelo Brasil em março de 2004 por meio do Decreto n. 5.017. Este instrumento internacionalmente aceito por vários países no mundo define o tráfico de pessoas como: “A expressão ‘tráfico de pessoas’ significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de 266 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá. No mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos” (Brasil, 2004). Como observa-se no conceito de tráfico de pessoas, internacionalmente aceito e ratificado pelo Brasil em março de 2004, o trabalho escravo passa a ser apenas uma das várias espécies de tráfico de pessoas. Pouco antes, em 2003, no entanto, a Lei n. 10.803 incluía no Código Penal Brasileiro a tipificação do crime de redução à condição análoga ao de escravo: “Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.” Melo e Lorentz (2011) entendem que a definição da lei penal se aplica ao artigo 8º da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT de maneira a equiparar o trabalho análogo ao de escravo com o trabalho forçado e incluindo também a jornada exaustiva e degradante nesse tipo de situação. Finalmente, vários são os dispositivos espalhados na legislação brasileira que demonstram que o Brasil é intolerante quanto ao trabalho análogo à escravidão, entre eles, o artigo 1º, incisos III e IV da Constituição Federal de 1988 – CF/1988 que definem que a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho estão 267 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS entre os fundamentos da República Federativa do Brasil. Há ainda o artigo 4º, inciso II, da CF/1988 que mostra a importância da prevalência dos direitos humanos como um dos princípios que rege o Brasil em suas relações internacionais. Outros exemplos estão no artigo 5º da CF/1988, mais especificamente no inciso III, que elenca como direito fundamental a garantia de que ninguém deverá ser submetido a tratamento degradante ou desumano. No mesmo artigo 5º, inciso XXIII, da CF/1988, ainda se fala sobre a função social da propriedade. Outro exemplo é o artigo 170, ainda da CF/1988, que define que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho e que, portanto, objetiva assegurar a todos uma existência digna e de justiça social. Já o artigo 7º da Carta Magna de 1988, inciso VI, veda a possibilidade de redução salarial com o intuito de inibir a servidão por dívidas, dentre outros exemplos (CF, 1988). 2.1 Breve evolução normativa e legislativa a respeito do tráfico de pessoas no Brasil Já a respeito do crime de tráfico de pessoas, e que o Brasil, no momento em que ratificou internacionalmente o compromisso de prevenir o ilícito, bem como de proteger suas vítimas, demorou a elaborar uma lei com esse intuito tendo perdurado por muitos anos os já abolidos artigos 131 e 131-A no Código Penal Brasileiro e que até 2016 eram os únicos artigos do Código Penal a abordarem o tema do tráfico humano, mais especificamente e unicamente sobre tráfico de pessoas para fins sexuais, ou seja, as outras formas de exploração narradas pelo Protocolo de Palermo não eram protegidas pela nação brasileira apesar do compromisso firmado frente às Nações Unidas desde o ano de 2004. Com o Protocolo de Palermo ratificado pelo Brasil em 2004, inicialmente no ano de 2006 o País promulgou a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial – GTI cuja finalidade era a de criar o I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – I PNETP (Brasil, 2006). A partir da Política Nacional, elaborada em 2006, no ano de 2008, o Decreto n. 6.347 promulgou então o I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – I PNETP com a finalidade de prevenir e reprimir o tráfico de pessoas em 268 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS território nacional, bem como o de responsabilizar os agentes causadores do ilícito. Várias foram as ações desse I Plano que contaram com a integração de diversos órgãos governamentais, organismos internacionais e membros da sociedade civil para juntos enfrentarem o problema. Onze prioridades foram definidas e o I Plano foi executado até o ano de 2010 (Brasil, 2008). Sequencialmente, em fevereiro de 2013, o II Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – II PNETP foi aprovado pela Portaria Interministerial n. 634 que contou com os mesmos objetivos do I Plano e se estruturou a partir de cinco linhas de operação. Este segundo Plano foi executado de 2013 a 2016 (Brasil, 2013a). Além disso, também em 2013, por meio do Decreto n. 7.901, instituiu-se a Coordenação Tripartite da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e o Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – CONATRAP (Brasil, 2013b). Em 2011, no entanto, formou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI no Senado Federal para investigar o crime de tráfico de pessoas no Estado brasileiro e cujo resultado foi o Projeto de Lei do Senado – PLS n. 479 de 2012 que tinha por finalidade a elaboração de uma lei de enfrentamento ao tráfico de pessoas em território nacional. O Projeto foi encaminhado para a Câmara dos Deputados sob a denominação do Projeto de Lei n. 7370 de 2014 onde sofreu algumas alterações e voltou ao Senado Federal com a denominação de Substitutivo n. 2 de 2015. O texto alterado foi rejeitado, prevalecendo-se o texto original que acabou por ser sancionado em outubro de 2016 como a Lei n. 13.344. Dentre os diversos objetivos da Lei, conforme explicam os autores Smith, Oliveira, Ferreira, Scandola e Torres (2020), o principal destes objetivos era o de equiparar a legislação brasileira ao Protocolo de Palermo. Dessa forma, a Lei n. 13.344 representou assim um imenso avanço uma vez que passou a proteger todas as formas de exploração previstas pelo Protocolo de Palermo, tendo sido inserido o artigo 149-A no Código Penal Brasileiro com a seguinte tipificação: 269 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS “Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual. Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa. § 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se: I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las; II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional. § 2o A pena é reduzida de um a dois terços se o agente for primário e não integrar organização criminosa” (Brasil, 2016). De modo continuado com vistas à prevenção do crime de tráfico de pessoas no Brasil e a proteção de suas vítimas, no ano de 2018 foi promulgado o Decreto n. 9.440 com o III Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas – III PNETP trazendo maiores desafios multidisciplinares e estruturando-se em seis eixos temáticos que são: gestão da política, gestão da informação, capacitação, responsabilização, assistência à vítima e, também, prevenção e conscientização pública. Ressalta-se, ainda, que este III Plano ainda se encontra vigente e tem previsão de implementar suas metas até o ano de 2022 nas diversas esferas em colaboração com os vários atores que visam igualmente este fim. Já no ano de 2019, com a promulgação do Decreto n. 9.796, instituiu-se o Grupo Interministerial de Monitoramento e Avaliação do III Plano (Brasil, 2019). 3 DADOS E ESTATÍSTICAS RECENTES DO TRÁFICO DE PESSOAS, CASOS DE COVID-19 E OUTROS RELACIONADOS, NO BRASIL E NO MUNDO 270 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A análise de dados e estatísticas é um importante indicador dos fatos que estão acontecendo acerca dessas temáticas e, uma vez analisados de forma criteriosa, podem repercutir em valiosas estratégias que possam permitir a redução do problema. Assim, é fundamental que tais informações sejam mantidas em constante atualização cujo objetivo maior é o de traçar metas realistas visando a diminuição de casos, em especial, de tais situações que contam com a vulnerabilidade dos indivíduos e que acabam por acarretar, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, o crescimento dos números também de casos envolvendo o tráfico de pessoas e suas diversas formas de exploração. A Organização Mundial da Saúde – OMS informa que globalmente, até às 18h06 do dia 6 de agosto de 2021, foram confirmados 200.840.180 casos de COVID-19, tendo sido registrados 4.265.903 mortes notificadas à OMS. Até o dia 5 de agosto de 2021, um quantitativo de 3.984.596.440 doses da vacina foi administrado em todo o mundo (OMS, 2021). Desses números relatados à OMS, já foram confirmados 78.118.399 casos nas Américas (com 2;023.469 mortes), demonstrando ser a localidade mais atingida pela pandemia do coronavírus em todo o planeta. Na sequência aparece a Europa com 60.941.033 casos (com 1.227.956 mortes), o Sudeste da Ásia com 38.961.269 casos (com 585.063 mortes), o Mediterrâneo Oriental com 12.949.856 casos (com 240.395 mortes), a África com 5.087.597 casos (com 120.721 mortes) e, finalmente, o Pacifico Ocidental com 4.781.263 casos confirmados (com 68.286 mortes) (OMS, 2021). Ainda no intuito de se exemplificar alguns países, áreas e territórios cujos índices são bastante altos, há os Estados Unidos com um total de 35.229.302 casos confirmados (e 610.180 mortes), a Índia com 31.856.757 casos (e 426.754 mortes), o Brasil com 20.026.533 casos confirmados (e 559.607 mortes), a Federação Russa com 22.660 casos (e 163.301 mortes), a França com 6.093.653 casos (e 111.007 mortes), o Reino Unido com 5.982.585 casos (e 130.086 mortes), a Turquia com 5.846.784 casos, a Argentina com 4.975.616 casos (e 106.747 mortes), a Colômbia com 4.815.063 casos (e 121.695 mortes), a Espanha com 4.566.571 casos, a Itália com 4.377.188 casos (e 128.163 mortes), a República Islâmica do Irã com 4.057.758 271 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS casos, o México com 242.547 mortes, o Peru com 196.673 mortes e a Indonésia com 104.010 mortes confirmadas (OMS, 2021). De posse desses dados acima informados pela OMS em agosto de 2021, resta analisar também alguns dos mais importantes relatórios nacionais e internacionais com dados quantitativos de vítimas de tráfico em suas diferentes modalidades de exploração com a finalidade de se compreender mais sobre o fenômeno da vulnerabilidade como sério fator de risco que impulsiona o aumento do número de vítimas traficadas em todo o mundo. Assim, um dos materiais analisados com o intuito de se obter maiores informações sobre o tráfico de pessoas no Brasil foi o Relatório Nacional contendo dados de 2017 a 2020 desenvolvido em parceria pela Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes do Departamento de Migrações da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça e Segurança Pública – CGETP/SENAJUS/MJSP juntamente com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes – UNODC. Ressalta-se, segundo o próprio Relatório Nacional, que trata-se de um projeto financiado pelo Governo sueco e sua finalidade é a de “aprimorar dados e informações, com base em evidências, sobre o fenômeno do tráfico de pessoas no Brasil, incluindo questões como resposta a fluxos migratórios, pandemia da COVID-19, e aspectos de gênero (Relatório Nacional, 2021). Também serão analisados dados recentes de 2020 do Relatório Global de Tráfico de Pessoas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes – UNODC e do Relatório “Trafficking in persons” de 2021 promovido pelo Governo Norte-Americano, além de outros dados paralelos vinculados à temática. Segundo o Relatório Global de Tráfico de Pessoas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes de 2020, as principais vítimas de tráfico humano continuam sendo mulheres e crianças, especialmente meninas, totalizando 65%. Em relação às diversas finalidades, a exploração sexual é a que ocorre com maior frequência no mundo, cerca de 50% dos casos, e fundamentalmente envolve vítimas do sexo feminino em 92% das situações (UNODC, 2020). 272 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, é atributo dos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, a feminização da pobreza e que inclui, também, questões raciais. Nesse sentido, as mulheres pardas ou pretas e que são extremamente pobres representam 39,8% do território brasileiro. São as mulheres, em sua maioria quando comparadas aos homens, inclusive, que interrompem seus estudos para cuidar da casa, dos afazeres domésticos e das pessoas que nela vivem (IBGE, 2020). Segundo o Relatório “The gender dimensions of human trafficking”, de 2017, “Tradicionalmente, as mulheres estão concentradas em atividades de baixas qualificação e remuneração, e em setores com pouca ou nenhuma regulamentação, como o trabalho doméstico, por exemplo. Essas condições as deixam particularmente vulneráveis à exploração, ao trabalho forçado, à extorsão, à servidão por dívida e à violência. Em contextos migratórios, inclusive quando migram e residem de forma regular, essas especificidades se agravam, o que torna as mulheres mais vulneráveis ao tráfico de pessoas”. Suzuki (2020), em pesquisa relacionada envolvendo trabalho escravo e gênero, demonstrou que no período de 2003 a 2018, das mulheres trabalhadoras resgatadas de condição análoga à escravidão,53% eram negras, sendo dessas 42% pardas e 11% pretas. Além da cor, 62% delas não haviam concluído o ensino fundamental e 71,3% foram resgatadas a partir do trabalho no campo. Outras atividades secundárias mostraram que as mulheres estavam envolvidas em atividades vinculadas à cozinha e à costura, enquanto que os homens costumam estar vinculados às atividades envolvendo trabalho braçal mais pesado. Nesse sentido, o Relatório do UNODC, de 2020, aponta que entre as vítimas mulheres, 77% delas foram traficadas para a exploração sexual, 14% para a exploração laboral e 9% para outras finalidades e, em consonância às pesquisas citadas, notou-se que o trabalho doméstico abarca especialmente as vítimas do sexo feminino (UNODC, 2020). O Relatório “The gender dimensions of human trafficking”, de 2017, demonstra também as mulheres também sofrem violência sexual como maneira de exercício de coerção e controle sobre elas. 273 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Além disso, dados revelam que quando se referem à mulheres ou meninas transexuais, a violência é ainda maior. O Brasil é, ao mesmo tempo, o país que mais consome pornografia trans e também o país que tem a maior quantidade de homicídios envolvendo esta situação de acordo com o Dossiê Assassinatos e Violência de 2020 (BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim). A esse respeito, inclusive, o Ministério Público do Trabalho – MOT e a Organização Internacional do Trabalho no Brasil – OIT, lançaram recentemente um manual para orientar casos envolvendo aspectos de proteção e atendimentos para travestis e transexuais em busca de um caminho mais digno e humano e, quanto a isso, o material também traz aspectos de vulnerabilidade, dentre eles, o de serem mais facilmente vítimas de tráfico humano e de trabalho análogo à escravidão (OIT, 2021). Exemplificam-se, ainda, registros de situações envolvendo tráfico de mulheres trans para fins sexuais, tanto interno quanto internacional, das operações policiais denominadas “Operação Fada Madrinha” e “Operação Cinderela” (MPF). Outros fatores responsáveis por agravar a situação do indivíduo e que facilita o seu caminho para se tornar uma vítima de tráfico de pessoas, inclusive em tempos de pandemia, é a questão envolvendo a vulnerabilidade econômica. Dados do 3º trimestre de 2020, da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD/IBGE demonstram que na atualidade 14,6% da população encontra-se desempregada (IBGE, 2020) e outros dados recentes, de 2019, também do IBGE demonstram que 24,7% vive abaixo da linha da pobreza, 6,5% abaixo da extrema pobreza, além dos índices que relacionam raça e pobreza deixando claro que os pobres e pretos são muito mais pobre do que os brancos (IBGE, 2019). Sobre isso, o Relatório Global de Tráfico de Pessoas do UNODC, de 2020, indicam justamente que 51% das situações envolvendo o tráfico de pessoas tem como fator de risco exatamente a questão da vulnerabilidade econômica, o que favorece a todos os tipos de exploração, em especial durante a pandemia (UNODC, 2020). Outro Relatório da ONU, especialmente vinculado à COVID-19, deixa claro que quando se trata de vulnerabilidade econômica não é preciso nem mesmo coagir a vítima, nem mesmo enganá-la ou usar de força física para inserir ela em um contexto 274 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS de exploração, pois o próprio fator econômico já facilita para que isso ocorra, demonstrando, com isso, que a pobreza e o desemprego são situações de vulnerabilidade que mais inserem vítimas a aceitarem uma condição de exploração seja pelo tráfico de pessoas interno ou internacional, facilitando inclusive fluxos migratórios inseguros em busca de oportunidades de trabalho por parte de suas vítimas (UNODC, 2020). Em relação aos dados quantitativos da Pesquisa Nacional de Tráfico de Pessoas com dados de 2017 a 2020, destacam-se: a) Quanto ao perfil das vítimas no que diz respeito ao gênero e à idade das vítimas resgatadas em operações da Polícia Federal, em 2018 foram resgatadas 30 mulheres, 60 homens, 11 crianças e adolescentes (até 18 anos), ou seja, 101 pessoas no total. Em 2019, o número de mulheres caiu para 10, o de homens para 54, o de crianças e adolescentes aumentaram para 19, resultando um total de 83 pessoas resgatadas. Em 2020, com a pandemia, os números foram ainda menores: apenas 2 mulheres, 15 homens, 2 menores, ou seja, um total de 19 pessoas foram resgatados pela Polícia Federal. b) De acordo com o número de possíveis vítimas de tráfico humano, de acordo com o Ministério da Cidadania e atendidas pelos Centros de Serviços Sociais Especializados – CREAS foram atendidas 161 mulheres e 234 homens em 2017, 154 mulheres e 223 homens em 2018, 217 mulheres e 328 homens em 2019 e 91 mulheres e 403 homens em 2020, sugerindo um aumento no número de vítimas do sexo masculino durante a pandemia e uma diminuição na quantidade de vítimas do sexo feminino na mesma situação. c) Já o Ministério da Saúde apresentou dados opostos ao Ministério da Cidadania, sugerindo que mais vítimas do sexo feminino foram traficadas: 121 mulheres e 45 homens em 2017, 128 mulheres e 55 homens em 2018, 134 mulheres e 35 homens e 73 mulheres e 24 homens durante 2020, embora estes últimos dados estejam em revisão. d) Quanto à finalidade da exploração, o número de possíveis vítimas atendidas nos Núcleos e Postos de atendimento revelam em 2020 uma maior quantidade de homens do que de mulheres, apontando 33 mulheres e 98 homens 275 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS vítimas de tráfico interno e 12 mulheres e 13 homens vítimas de tráfico internacional. 2 vítimas não tiveram o sexo informado. e) Segundo os Núcleos e Postos de atendimento às vítimas de tráfico de pessoas, no ano de 2020, informou-se que 25 pessoas (equivalente a 16%) foram vítimas de tráfico internacional, enquanto que 131 (equivalente a 83%) foram vítimas de tráfico interno. Apenas 2 casos (1%) não foram informados. Dessas vítimas, no mesmo período, registrou-se que 111 são homens (equivalente a 70%) e 45 mulheres (equivalente a 29%) e 2 não tiveram o sexo revelado (equivalente a 1%). f) A respeito das finalidades de exploração, segundo os Postos e Núcleos de atendimento, de 2017 a 2020, nenhuma foi explorada para remoção de órgãos. No ano de 2017 foram registrados: 104 para trabalhos análogos à escravidão, 1 pessoa para servidão, 16 para adoção ilegal, 21 para exploração sexual e 5 para outras finalidades totalizando 147 pessoas. Em 2018: 9 pessoas para trabalho análogo à escravidão, 22 para exploração sexual e 16 para outras finalidades sem que fosse para servidão e adoção ilegal, totalizando 47 pessoas. Em 2019 registrou-se: 81 para trabalhos análogos à escravidão, 2 para adoção ilegal, 31 para exploração sexual e 33 para outras finalidades totalizando 147 pessoas. Em 2020, no ano da pandemia, foram registrados 115 casos de trabalho análogo à escravidão, 12 para servidão, 2 para adoção ilegal e 29 para exploração sexual, totalizando 158 casos, o que demonstra que durante o surto da COVID-19 mais pessoas foram traficadas para trabalharem em situações análogas à escravidão. g) Quanto ao gênero e idade de possíveis vítimas, segundo a Defensoria Pública da União – DPU, em 2018, foram registrados 9 mulheres, 6 homens para o tráfico interno e 1 mulher para o tráfico internacional. Em 2019, foram detectados 15 mulheres, 30 homens e 2 crianças e adolescentes (até 18 anos) para o tráfico interno e 3 mulheres para o tráfico internacional. E no ano de 2020, foram registrados 10 mulheres e 11 homens para o tráfico interno e nenhum caso para o tráfico internacional, demonstrando, que no período de 2018 a 2020 foram 5% dos casos envolvendo o tráfico internacional e 95% o tráfico interno. 276 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS h) A respeito da quantidade de processos por finalidade de exploração de acordo com a DPU, em 2018 foram 10 processos para trabalho em condição análoga à escravidão e 1 para exploração sexual. Em 2019, foram 27 processos em condição análoga à escravidão, 2 para adoção ilegal e 11 para exploração sexual e, em 2020, no ano da pandemia, foram 5 processos para trabalho em situação análoga à de escravo e 10 para exploração sexual. i) Quanto ao número de denúncias recebidas pelo Ligue 180 referente ao tráfico de mulheres, em 2017 foram registrados 6 casos de remoção de órgãos, 67 para trabalho em condição análoga à de escravo, 8 para adoção e 128 para exploração sexual. Em 2019 foram 7 para remoção de órgãos, 47 para trabalho análogo à escravo, 9 para adoção e 78 para exploração sexual. E em 2019 foram 7 para trabalho análogo à de escravo e 31 para exploração sexual. Não há resultados para o ano de 2020. Ou seja, dos números apresentados, no período de 2017 a 2019, 3% das denúncias foram para remoção de órgãos, 5% para fins de adoção, 31% para trabalho análogo à escravidão e 61% para exploração sexual. j) Já o Disque 100, a respeito do gênero e da idade de possíveis vítimas, trouxe os seguintes dados: em 2017 foram 37 casos não informados, 18 mulheres, 6 homens, 36 meninas e 5 meninos, totalizando 102 pessoas. Em 2019, foram 24 casos não informados, 21 mulheres, 2 homens, 31 meninas e 6 meninos, totalizando 84 pessoas. Em 2019, foram 17 casos não informados, 25 mulheres, 2 homens, 19 meninas e 6 meninos, totalizando 69 pessoas. O total neste período foi de 255 pessoas e não foram apresentados dados no ano de 2020. k) Quanto ao tráfico interno, o Disque 100 recebeu nesse mesmo período de 2017 a 2019 um total de 176 denúncias assim distribuídas: em 2017, 7 de trabalho análogo à escravo, 20 de adoção ilegal, 36 de exploração sexual e 6 de outras formas. Em 2018, foram 11 de trabalho análogo à escravo, 1 de remoção de órgãos 13 de adoção ilegal, 26 de exploração sexual e 8 de outros casos. Em 2019 foram 5 de trabalho análogo à escravo, 10 de adoção ilegal, 21 de exploração sexual e 12 de outros casos. Quanto ao tráfico internacional, o Disque 100 recebeu um total de 79 denúncias no período de 2017 a 2019 sendo: em 2017, 10 de trabalho análogo à escravo, 2 de adoção ilegal e 21 de exploração sexual. Em 2018 foram 2 de remoção 277 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS de órgãos, 7 de trabalho análogo à escravo, 4 de adoção ilegal e 12 de exploração sexual. Em 2019 foram 4 de trabalho análogo à escravo, 5 de adoção ilegal e 12 de exploração sexual. Ou seja, 31% dos casos envolvendo o tráfico internacional e 69% envolvendo o tráfico interno. l) A respeito da idade das vítimas, informada pelo Ministério da Cidadania, por meio dos CREAS revela que no período de 2017 a 2020, foram registrados 114 casos de 0 a 12 anos, 109 casos de 13 a 17 anos, 1081 casos de 18 a 59 anos, 260 casos de pessoas com mais de 60 anos, totalizando 1811 casos informados e 247 casos cujas idades não foram informadas. m) Já para o Ministério da Saúde, a respeito da idade das vítimas nesse mesmo intervalo de tempo (de 2017 a 2020) foram informados 142 casos de 0 a 12 anos, 87 casos de 13 a 17 anos, 349 casos de 18 a 59 anos, 34 casos de mais de 60 anos, totalizando 615 cujas idades foram informadas e apenas 3 casos onde as idades não foram reveladas. n) Em relação às raças das possíveis vítimas atendidas pelos Núcleos e Postos de atendimento, no ano de 2020, 32% eram pardas, 31% pretas, 22% brancas, 1% amarela e 14% indígenas. o) Já dados informados pelo Ministério da Saúde a respeito das raças das possíveis vítimas estão: 47% de pardos, 12% de pretos, 32% de brancos, 0,5% de amarelos e 8% de indígenas. Em 0,5% dos casos as raças não foram informadas. Muitos foram os dados apresentados pelo Relatório Nacional (2021) demonstrando que diversos foram os órgãos a oferecerem insumos para a elaboração da pesquisa a respeito do tráfico de pessoas no Brasil. Outro Relatório de grande importância e que todo ano é elaborado pelo Estado de Defesa Norte-Americano, “Trafficking in Persons (TIP)”, de 2021, também traz números e informações valiosas para vários países, dentre eles, o Brasil. Dentre as mais relevantes trazidas pelos Escritório para Monitorar e Combater o Tráfico de Pessoas estão as seguintes informações (TIP, 2021): a) governo brasileiro, embora tenha se esforçado mais que os outros anos, inclusive levando em consideração os impactos causados pelo surto do coronavírus, 278 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS ainda não conseguiu cumprir de maneira integral os padrões mínimos exigidos para o combate do tráfico de pessoas, o que faz com que o Brasil permaneça em um nível intermediário (nível 2) para a eliminação do problema. b) Com os esforços do governo brasileiro, algumas condenações finais foram conquistadas para traficantes para fins sexuais e fins laborais, assim como se deu o desenvolvimento de uma nova orientação abrangente com vistas à identificar e fornecer atenção às vítimas de trabalho análogo à escravo, porém, não foram cumpridos os padrões mínimos em outros aspectos como, por exemplo, abrigos inadequados, treinamento insuficiente para autoridades competentes e penalização de algumas das vítimas de tráfico por crimes cometidos em decorrência da sua situação de tráfico. Também foram investigados e processados menos traficantes que o esperado. c) Entre as recomendações do Relatório Norte-Americano estão, por exemplo, oferecer abrigo, bem como assistência especializada às vítimas, principalmente as exploradas sexualmente e de forma laboral, investigar de maneira mais rigorosa os casos de tráfico para fins sexuais, processar e condenar mais traficantes, treinar os aplicadores da lei para evitar penalizar as vítimas, aumentar a quantidade de escritórios especializados na eliminação do tráfico e ampliar suas coordenações, desenvolver um protocolo para melhorar a identificação das vítimas, alterar a lei existente (13.344) para criminalizar o tráfico sexual de crianças sem que haja a necessidade de força, fraude ou coerção, alocar recursos para conselhos tutelares locais, financiar esforços na conscientização do problema por meio de mais campanhas inclusive na mídia social e de forma impressa em pontos de maior circulação de pessoas, implementar o III PNETP, reforçar o CONATRAP, atualizar as referências da lei de tráfico. d) Sobre a condenação de casos envolvendo o artigo 149-A do Código Penal brasileiro, os esforços na aplicação da lei foram diminuídos, embora alguns casos foram relatados como, por exemplo, o início de 206 novas investigações acerca do trabalho análogo a escravo, embora não relataram novas investigações para o tráfico sexual em 2020, em comparação às 296 investigações narradas em 2019. O número de casos de suspeita de tráfico sexual em 2020 caiu em relação à 2019 quanto aos 279 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS tribunais inferiores. Foram relatados 512 processos em andamento em tribunais de primeira e segunda instância, sendo 3 condenações finais em 2020. Também houve atrasos judiciais e o Brasil acabou permitindo alguns casos de apelações, além de alguns dos presos poderem trabalhar durante o dia e ficarem presos somente à noite, revelando que as punições não eram proporcionais aos crimes praticados. Foi relatado, pelo governo brasileiro, que “atrasos relacionados à pandemia no sistema judicial retardaram o processamento de processos e apelações, incluindo tráfico de pessoas e processos de trabalho escravo, punições que não eram proporcionais à seriedade do crime e não impediam efetivamente o tráfico de pessoas”. Outra dificuldade encontrada foi o tratamento do trabalho forçado ter sido tratado de forma distinta ao tráfico de pessoas, além da falta de uma comunicação eficiente entre as Polícias Estaduais e a Polícia Federal. Não foram relatadas investigações no caso de funcionários públicos cúmplices. e) Em relação à proteção, o governo manteve seus esforços nesse sentido oferecendo proteção a 494 vítimas em potencial do crime de tráfico de pessoas. Vários órgãos informaram dados coletados com relação aos perfis das vítimas do crime. Em 2020, as autoridades da fiscalização do trabalho, por exemplo, realizaram uma fiscalização em 266 empresas e identificaram 942 vítimas de exploração laboral, quase os mesmos números de 2019 que foram um pouco maiores. Além disso, novos procedimentos operacionais foram elaborados pelo governo com vistas a identificar e atender essas vítimas de trabalho escravo. Apesar disso, a aplicação da lei, no que diz respeito à implementação de abrigo temporário, foi inconsistente nos Estados brasileiros. Inclusive, não foram detectados abrigos especializados no atendimento de vulneráveis, a exemplo de vítimas de violência doméstica, idosos, dentre outros. Os Núcleos de atendimento às vítimas de trafico atenderam mais vítimas em potenciais no ano de 2020 do que em 2019. Também em 2020 o governo manteve mais parcerias com uma organização LGBTQI+ com vistas à aumentar a proteção às vítimas do tráfico transgênero. As autoridades acabaram penalizando as vítimas de tráfico de pessoas que cometeram atos ilícitos forçados pelos traficantes. f) Sobre a prevenção, o governo diminuiu os esforços para prevenir o crime reduzindo os orçamentos voltados ao III Plano Nacional, assim como, a CONATRAP também reduziu seu quadro de funcionários. Os esforços quanto à 280 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS conscientização do crime se concentraram no trabalho infantil ou escravo de forma mais ampla, porém, houve poucas campanhas com vistas a aumentar a conscientização sobre o tráfico sexual e o turismo sexual infantil. Até mesmo as celebrações pelo Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas foram cancelados em vários locais por conta das restrições impostas pela pandemia. Apesar disso, foram publicadas orientações por parte do governo sobre a realização de inspeções de trabalho durante a pandemia, além do fornecimento de equipamentos de proteção individual aos inspetores de trabalho e testes para detecção do COVID-19. g) Quanto ao perfil do tráfico de pessoas, nos últimos 5 anos são relatadas a exploração de vítimas nacionais e estrangeiras no Brasil e, ainda, de vítimas brasileiras que se encontram no exterior. Mulheres e crianças brasileiras são muito exploradas sexualmente na América do Sul, principalmente por parte do Paraguai que tem submetido mulheres e meninas especialmente do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, além de brasileiras que se encontram na Europa Ocidental e na China. Também foram atraídas mulheres brasileiras para a Coreia do Sul principalmente para a finalidade sexual. Homens brasileiros e transgêneros também se encontram em vulnerabilidade na Espanha e na Itália. O turismo sexual infantil também continua a ser um problema em vista de crianças que são exploradas com frequência incluindo as BR-386, 116 e 285, principalmente por turistas sexuais infantis da Europa e dos Estados Unidos. Migrantes também se encontram vulneráveis ao tráfico de pessoas e há também muitas vítimas identificadas que são afro-brasileiras ou afdrodescendentes. Além da grande quantidade de vítimas para fins sexuais, também é muito comum a exploração para fins laborais. Finalmente, a respeito da proteção, conscientização e prevenção por parte do governo brasileiro, no final de 2019, com a disseminação do coronavírus (COVID19) que veio a atingir o mundo e o Brasil mais precisamente no ano de 2020, novas medidas precisaram ser tomadas visando a garantia dos direitos humanos das pessoas que se encontravam em situação de vulnerabilidade, a exemplo das vítimas brasileiras de tráfico humano, inclusive as que se encontram em território estrangeiro. 281 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Com isso, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – MMFDH procurou, desde então, elaborar várias medidas e ações com o intuito de garantir a promoção dos direitos humanos a essas pessoas vulneráveis, conforme explicado acima, em relação a inúmeros brasileiros que encontram-se fora do País e que enfrentam, diante da pandemia, maiores dificuldades de retorno ao território nacional, uma vez que acabam sofrendo com uma maior restrição em seus direitos, a exemplo da limitação de sua liberdade. Nesse intuito, dentre outros guias e materiais que vêm sendo criados desde o início da pandemia, um deles trata de uma cartilha para orientar os cidadãos brasileiros, principalmente os que não se encontram dentro do território brasileiro cujo objetivo é o de oferecer orientação como uma maneira de acolher estes cidadãos que estão em situação de vulnerabilidade. Conforme explicam os já citados no presente trabalho, Ferreira e Torres (2020), muitos grupos de indivíduos vulneráveis são abordados pela cartilha, dentre elas, as vítimas de tráfico humano que se encontram espalhadas pelo mundo em situação de risco e de insegurança, o que acaba por potencializar ações de grupos criminosos voltados para estes fins. Finalmente, a respeito da cartilha acima especificada proposta pelo MMFDH, dentre suas finalidades estão a de orientar os agentes envolvidos com o crime de tráfico de pessoas, de modo a abordar, identificar, acolher e encaminhar essas vítimas aos seus países de origem. Essas orientações, no entanto, devem estar de acordo com o Protocolo de Palermo, ressaltando, contudo que todo e qualquer consentimento da vítima em relação ao crime é considerado irrelevante. A cartilha também tem o propósito de manter tais atores envolvidos em vigilância no caso de haver propostas suspeitas envolvendo aspectos como transporte, trabalho e abrigo. Outras medidas e ações têm sido tomadas em nível nacional e internacional, a exemplo, também, da nova campanha Coração Azul promovida pelo UNODC e que teve seu início no último dia 30 de julho de 2021, data esta de comemoração do Dia Mundial contra o Tráfico de Pessoas. Essa campanha tem o lema “As vozes das vítimas mostram o caminho” e tem o objetivo de colocar as vítimas sobreviventes desse crime no centro das respostas pelas graves violações sofridas aos seus direitos 282 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS humanos. Uma vez que os índices demonstram que aproximadamente dois terços das vítimas que foram identificadas são mulheres e meninas e a quantidade de crianças triplicou nos últimos 15 anos, além do fato que o crime de tráfico de pessoas tende a prosperar cada vez mais por conta da instabilidade econômica e política, pelo déficit por parte do Estado em fornecer estruturas dignas, à violência de gênero, às dificuldades familiares, desigualdade e discriminação, as vítimas do crime costumam apresentar profundos traumas durante e depois de sofrerem abusos e exploração (UNODC, 2021). Os próprios migrantes representam mais da metade de todas as vítimas traficadas segundo ficou demonstrado no último relatório do UNODC e, com a pandemia da COVID-19, os riscos de exploração ficaram ainda mais graves e aumentados favorecendo o desemprego e a ausência de proteção e, diante de tudo isso, a proposta da campanha é também a de relembrar os compromissos firmados no Pacto Global voltados a uma Migração Segura, Ordenada e Regular – GCM e também no Plano Global de Ação contra o Tráfico de Pessoas de acordo com os direitos humanos internacionais e as normas trabalhistas (UNODC, 2021). 4 REFLEXOS DA PANDEMIA DO CORONAVÍRUS NO AUMENTO DE VÍTIMAS DE TRÁFICO DE PESSOAS A COVID-19 se espalhou rapidamente por todo o planeta. Essa doença surgiu no final de 2019 na China e causa uma insuficiência respiratória aguda nos seres humanos, tendo levado uma grande quantidade à óbito. Desde 30 de janeiro de 2020, o surto da doença em todo o mundo provocou um estado de emergência em nível de alerta máximo para toda a população mundial que precisou se isolar em casa com o intuito de inibir a contaminação do vírus. Segundo explicações de Ferreira e Torres (2020) em seu artigo “Impactos da Pandemia do novo coronavírus (COVID-19) na violação de direitos humanos e no agravamento da situação de vulnerabilidade das vítimas de tráfico de pessoas no Brasil e no mundo”, destaca-se que “com a propagação do coronavírus, as vítimas de tráfico de pessoas que já eram vulneráveis somente pelo fato de serem vítimas do crime, encontram-se ainda mais vulneráveis uma vez que estão expostas a uma 283 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS maior exploração e limitadas no que diz respeito ao acesso de serviços considerados essenciais”. Com isso, o ano de 2020 trouxe uma grande crise sanitária ao mundo de forma geral, inclusive no Brasil, gerada pelo caos provocado pelo surto do coronavírus (COVID-19), de maneira a gerar impactos, muitos irreversíveis, a toda a população. Inúmeras mortes e casos graves foram apenas algumas das consequências brutais da desordem causada pela pandemia. Outras consequências como o grande aumento do desemprego, aumentando assim as limitações econômicas, restrição de viagens, limitações também no direito de ir e vir dos indivíduos, elevação nos valores de artigos de consumo básico bem como alimentação, dentre outras situações foram também consequências da situação caótica provocada pela disseminação do vírus no mundo. Uma análise realizada pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes – UNODC expõe que com os bloqueios, as limitações impostas para se trabalhar, os cortes de recursos diversos que visam dar apoio ao combate do tráfico de pessoas e, ainda, com as viagens limitadas, as consequências para as vítimas desse ilícito acabam sendo ainda mais perigosas. Segundo o UNODC: “As medidas inéditas adotadas para achatar a curva de infecção incluem quarentena forçada, toque de recolher e lockdowns, restrições de viagem e limitações às atividades econômicas e da vida pública. À primeira vista, essas medidas de fiscalização e o aumento da presença policial nas fronteiras e nas ruas parece dissuadir o crime. Em tráfico de pessoas, os criminosos estão ajustando seus modelos de negócio para o ‘novo normal’ criado pela pandemia, especialmente pelo abuso das modernas tecnologias de comunicação. Ao mesmo tempo, a COVID-19 impacta a capacidade das autoridades estatais e organizações não-governamentais de prestar serviços essenciais às vítimas desse crime” (UNODC, 2020). Conforme o Banco Mundial, por conta da pandemia do coronavírus, a situação enfrentada representa a recessão econômica mundial mais profunda desde a Segunda Guerra Mundial e que acarretará situações ainda mais complicadas para aqueles indivíduos que vivem em situação de maior precariedade. Além disso, dentre as consequências, segundo previsões do Banco Mundial, haverá ainda um maior 284 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS aumento da vulnerabilidade socioeconômica favorecendo ainda mais o aumento de vítimas de tráfico de pessoas em todo o planeta (Banco Mundial, 2021). Observando-se a redução dos serviços sociais e públicos e o desvio dos recursos para minimizar a disseminação do vírus, as chances das vítimas de fugirem de seus traficantes e de obterem ajuda é ainda menor. Várias fronteiras foram fechadas no intuito de se conter a pandemia, da mesma forma que vários abrigos facilitando assim para que o crime de tráfico de seres humanos ganhe maior dimensão e suas vítimas sofram significantes violações de seus direitos humanos e fundamentais. O acesso à justiça e os procedimentos legais também encontram-se em atraso aumentando assim a vulnerabilidade das vítimas que estão em poder dos aliciadores com maiores riscos de sofrer explorações e negligências (UNODC, 2020). Em decorrência do caos já observado até o momento e das previsões de maior agravamento da situação, segundo Ramos (2020) buscou-se inclusive fechar as fronteiras na tentativa de conter o aumento de pessoas contaminadas pelo vírus, uma vez que tal medida facilita, também, a ação de contrabandistas de migrantes. Apesar disso, de acordo com o Relatório da ONU, quando há fechamento de fronteiras e limitações nas travessias dessas fronteiras, o uso de rotas alternativas, com maiores riscos e custos, acabam por expor migrantes e refugiados a situações ainda mais graves de abuso, de exploração e também de tráfico de pessoas (UNODC, 2020). Durante a pandemia, segundo Fagundes (2021), observou-se que a quantidade de vítimas no Brasil resgatadas envolvendo trabalho forçado ou análogo à escravidão se manteve na média dos últimos quatro anos anteriores, sugerindo que a pandemia do coronavírus não provocou aumento no que diz respeito ao trabalho laboral. Já segundo Lazzeri (2020), a respeito da exploração laboral de trabalhadores durante a pandemia, ressalta-se que a emergência sanitária deu forças ao discurso envolvendo coerção em relação ao confinamento e à ausência de contatos com o mundo exterior. 285 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Quanto ao que diz respeito às situações envolvendo a exploração sexual e à servidão doméstica, ambas que afetam muito mais mulheres, além de adolescentes e crianças do sexo feminino, de acordo com outro material produzido pelo UNODC a respeito do impacto da pandemia, a partir de indicadores de aumento nos níveis de violência doméstica que se relatou em uma grande quantidade de países, acredita-se que com a pandemia houve agravamento nesse tipo de tráfico de pessoas (UNODC, 2020). Os diversos Relatórios produzidos pelo UNODC demonstram que “Desde a indústria de vestuário, agricultura e agropecuária, passando pela manufatura e pelo trabalho doméstico, milhões de pessoas que viviam em condições de subsistência perderam seus salários. Aqueles que continuam trabalhando nesses setores, onde o tráfico é frequentemente detectado, também podem enfrentar mais exploração devido à necessidade de diminuir os custos de produção em função de dificuldades econômicas, bem como menos controle por parte das autoridades” (UNODC, 2020). O crescente aumento do desemprego e a consequente redução da renda, em especial daqueles que já possuíam salários baixos e que pertenciam ao setor informal aumentou a vulnerabilidade de maneira que estas pessoas pioram quanto à situação de precariedade. Com isso, entre as vítimas, Organizações Não Governamentais que atuam em conjunto com o UNODC expõem que esses indivíduos estão ainda mais suscetíveis à serem explorados e a contraírem dívidas com o objetivo de garantir seu sustento e o de seus parentes (UNODC, 2020). A respeito de crianças e adolescentes, com o fechamento das escolas, o processo educativo acabou sendo prejudicado, trazendo prejuízos ainda em relação à oferta de abrigo e alimentos para esses menores. Muitas aulas que eram presenciais se tornaram apenas virtuais, o que acabou favorecendo o maior contato desses indivíduos com o mundo virtual, onde tem tido um grande aumento de aliciadores que a cada dia mais usam e abusam da tecnologia proporcionada pela internet para aliciar maior quantidade de vítimas. Além disso, com muitas escolas que ainda permanecem fechadas, acaba favorecendo que mais crianças e adolescentes vá para as ruas, muitas obrigadas pelas próprias famílias, em busca de comida, mantimentos e renda, o que propicia um 286 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS maior contato com o vírus e também com a exploração, repercutindo em maiores danos e aumento da vulnerabilidade, o que gera como consequência o aumento de vítimas de tráfico de seres humanos. Assim, as crianças, principalmente, acabaram interrompendo também o ciclo escolar e se tornaram ainda mais vulneráveis a abusos e diferentes formas de exploração. De acordo com a análise do UNODC, as escolas eram vistas, também, como locais de abrigo e proteção, bem como fonte de nutrição para essas crianças (UNODC, 2020). Segundo informa o UNODC, no que diz respeito às vítimas confinadas, as ações para se resolver o problema do vírus ainda piora o estado dessas vítimas uma vez que o aumento da violência doméstica em diversas nações no mundo é um forte indicador que repercute em grandes preocupações no que diz respeito às condições de vida de muitas vítimas que sofrem abuso e exploração. Há uma quantidade desproporcional de meninas e mulheres voltadas para a exploração sexual e a servidão doméstica (UNODC, 2020). Também de acordo com o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano, por meio da seção Migrantes e Refugiados, crianças também estão entre os maiores casos de aumento do tráfico humano. O Dicastério tem realizado um boletim desde 2020, o qual confirma que neste período de pandemia “os migrantes, os refugiados, as pessoas deslocadas e as vítimas de tráfico de seres humanos continuam sendo uma preocupação porque estão ainda mais vulneráveis com o surgimento do vírus (...) sujeitos a vários tipos de injustiça e discriminação que ameaçam seus direitos, a segurança e a saúde” (VATICAN NEWS, 2020). O mesmo boletim afirma também que as crianças são as mais expostas durante o surto da doença e que tal exposição eleva a possibilidade de exploração por meio da comunicação virtual, cada vez utilizada com maior frequência pelos traficantes de pessoas (VATICAN NEWS, 2020). Assim, quanto ao uso da internet por parte de aliciadores e traficantes de pessoas, Rodrigues (2020) afirma ser possível “supor que aqueles que exploram estão adaptando suas estratégias de aliciamento à nova realidade gerada pela 287 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS pandemia, especialmente por meio de abuso das modernas tecnologias de comunicação”. No território brasileiro, segundo especialistas na área de Segurança Pública, um dos muitos reflexos da pandemia afirma a possibilidade do aumento das atividades de organizações criminosas que atuam com o tráfico de seres humanos, em especial os voltados para a exploração sexual de mulheres, devido ao aumento da vulnerabilidade, principalmente a partir dos aspectos que envolvem a economia e a sociedade do Brasil. As vítimas, muitas levadas à acreditar em uma perspectiva melhor de qualidade vida, se tornam ainda mais vulneráveis ao crime que vem sendo cada vez mais praticado com o apoio da tecnologia com vistas a atrair vítimas, principalmente mulheres mais jovens e adolescentes do sexo feminino para sofrerem exploração e abuso (R7, 2020). Todas essas situações acabam por dificultar a ação das autoridades competentes, uma vez que todos os setores acabam por se encontrar prejudicados em vista de estarem sensivelmente afetados em termos de oferecer condições que corroborem com a prestação adequada de serviços essenciais no que diz respeito à atenção às vítimas do tráfico humano. Além disso, esses individuos submetidos ao tráfico humano estão mais sujeitos a serem infectados pelo novo coronavírus e não receberem assistência médica por estarem em poder dos traficantes (ONUBR, 2020). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A pandemia mudou drasticamente todo o cenário global trazendo graves consequências em todos os aspectos para a população, em especial no que diz respeito para as pessoas mais vulneráveis, acarretando maiores riscos, não apenas pela contaminação do vírus, mas também facilitando a sua exploração em condições desumanas e degradantes, o que facilita o tráfico de pessoas. Antes da pandemia, identificar as vítimas de tráfico de pessoas já era uma tarefa difícil, o que acabou por piorar com o caos causado pelo coronavírus, uma vez que exige-se grande habilidade dos profissionais e autoridades competentes para a situação. 288 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Além disso, nesse novo cenário mundial que conta com a suspensão de atividades básicas e presenciais e diminui também o contato de profissionais qualificados psicossociais e seus usuários, acaba por tornar o processo de reconhecimento de casos de tráfico humano ainda mais difícil e complexo. O próprio isolamento social da população traz danos severos à saúde mental, podendo piorar os diversos tipos de transtornos, especialmente daqueles que já se encontravam na situação de vítimas e que acabam tendo interrompidos todo e qualquer acesso, inclusive, às redes também informais de apoio. É preciso urgentemente que haja uma reorganização no que diz respeito aos investimentos tanto humanos quanto financeiros por parte dos Estados e organismos nacionais e internacionais para as mais diversas áreas e setores prejudicados em vista da pandemia, dentre eles os voltados às emergência de saúde e social com vistas a se aumentar as intervenções e fiscalizações de casos de tráfico de pessoas, bem como, a correta e rápida aplicação da lei aos mais diferentes casos. Também se faz necessário mobilizar a todos por meio de campanhas de prevenção que não devem ser esquecidas durante o caos em que se encontram os países, principalmente os mais afetados pelas crises sanitárias causadas pela COVID-19 com vistas a enfraquecer o crime de tráfico de pessoas. Enfim, é necessário o compromisso e a união dos governos com o intuito de que os esforços sejam mantidos e, inclusive aumentados, a exemplo de fornecimento de vacinas e assistência de saúde e sociais, com vistas a garantir que os direitos e as garantias humanas e fundamentais possam ser respeitados e fornecidos a todos sem distinção e, em especial às vítimas de tráfico humano, para que não se piore nem aumente o caos até o momento instaurado pela pandemia em estudo. REFERÊNCIAS ALONSO, Carlos Fontella. La esclavitud a través de la Biblia. Madrid: CSIC, 1986. BANCO MUNDIAL. Comunicado à imprensa: O COVID-19 lança a economia mundial na pior recessão desde a Segunda Guerra Mundial. Disponível em: https://www.worldbank.org/pt/news/press-release/2020/06/08/covid-19-to-plungeglobal-economy-into-worst-recession-since-world-war-ii Acesso em: 07 jul. 2021. 289 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim. 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Disponível em: <https://www.vaticannews.va/pt/vaticano/news/202005/coronavirus-trafico-sereshumanos-boletim-secao-migrantes.html>. Acesso em: 07 jul. 2021. VENSON, Anamaria Marcon; PEDRO, Joana Maria. Tráfico de pessoas: uma história do conceito. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 33, nº 65, p. 61-83, 2013. W.V. Harris. Demography, Geography and the Sources of Roman Slaves. The Journal of Roman Studies, 1999. 296 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS ENTRE CIÊNCIA, DIREITO E POLÍTICA: ACESSO E UTILIZAÇÃO PRIORITÁRIA DE EQUIPAMENTOS E SERVIÇOS DE SAÚDE POR PESSOAS COM DEFICIÊNCIA EM TEMPOS DE PANDEMIA Luciana Barbosa Musse1 Ana Cláudia M. de Figueiredo2 Ana Cláudia Brandão3 Isabela Sousa4 Letícia Mares Antunes5 RESUMO A pesquisa exposta neste capítulo tem como foco levantar, descrever e avaliar se há, onde existem e como vêm sendo operacionalizadas políticas públicas federais, distritais e/ou estaduais de acesso e de utilização prioritários a/de serviços públicos e privados de saúde, para e por pessoas com deficiência, durante a pandemia da covid19, no Brasil. É uma reflexão interdisciplinar e interseccional. A interdisciplinaridade concretiza-se a partir do diálogo entre pesquisadoras, documentos e literatura do direito, da medicina, de políticas públicas e de relações internacionais. A interseccionalidade, por sua vez, é materializada pela interlocução entre deficiência e fases do desenvolvimento humano: infância, adolescência, juventude e velhice, que, de acordo com normativas internacionais e nacionais, devem receber atendimento prioritário em saúde. A abordagem metodológica apoia1 Doutora e Mestre em Direito. Graduada em Direito e Psicologia. Professora Universitária. Pesquisadora. Advogada com atuação na área de Direito de Família. http://lattes.cnpq.br/9787779004343257 2 Pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. Graduada em Letras e Direito. Advogada. Coordenadora da Autodefensoria da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down. Idealizadora da Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - Rede-In. Ex-conselheira no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência. Integrante da Comissão da Pessoa com Deficiência da OAB-DF. 3 Pediatra com expertise em crianças e adolescentes com síndrome de Down. Médica do Centro de Especialidades Pediátricas do Hospital Albert Einstein. Coordenadora do Grupo de Estudos sobre as Crianças e Adolescentes com Deficiência da Sociedade de Pediatria de São Paulo. Membro do Comitê Técnico Científico da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down. Coordenadora do Estudo Covid19 e síndrome de Down (no centro brasileiro) de iniciativa da T21 Research Society. 4 Graduada em Relações Internacionais pelo CEUB. Pesquisadora e Membro do grupo de pesquisa sobre Governança do CEUB. 5 Graduanda em Relações Internacionais pelo CEUB. Pesquisadora e Membro do grupo de pesquisa sobre Governança do CEUB. 297 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS se em pesquisa teórica e documental, cujas referências estão disponíveis em bibliotecas e bases de dados nacionais e internacionais, notadamente a base legislativa sobre a covid-19, do site da Presidência do Planalto, biblioteca do CEUB, Ebsco e Dynamed. Conclui-se que foram e desenhadas políticas públicas e propostos projetos de lei, quer no âmbito federal, quer no nível subnacional, para o acesso e utilização prioritária a/de equipamentos ou serviços de saúde por pessoas com deficiência, durante a pandemia da covid-19, contudo tais políticas não receberam tratamento prioritário. Palavras-chave: Pessoas com deficiência. covid-19. Prioridade em saúde. 1 INTRODUÇÃO Em dezembro de 2019, a República Popular da China alertou a Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre vários casos de pneumonia que estavam ocorrendo na cidade de Wuhan. Após uma semana do alerta, foi confirmado que se tratava de um novo tipo de vírus da família coronavírus, a Síndrome Respiratória Aguda Grave Coronavírus - 2 (SARS-CoV-2), nomeada de covid-19 (coronavirus diseases 2019). Em vista da alta incidência de casos na China, no dia 30 de janeiro de 2020, a OMS declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional II (ESPII), que significa o reconhecimento da ocorrência de um evento extraordinário que pode constituir um risco aos outros países devido à sua rápida disseminação e, assim, requer uma resposta internacional imediata e coordenada, de acordo com o Regulamento Sanitário Internacional (RSI).6 Entretanto, a doença se espalhou por vários países ao redor do mundo, alcançando uma elevada dispersão geográfica no dia 11 de março de 2020 (OPAS, 2020) e, em razão disso, a OMS declarou estado de pandemia. A covid-19 é uma doença com alta transmissão, podendo apresentar sintomas leves ou severos dependendo da sua manifestação no organismo de seres humanos. Os sintomas mais comuns são febre, cansaço e tosse seca, mas alguns pacientes podem apresentar dores, dor de cabeça, dor de garganta, diarréia, perda de paladar ou olfato. Além disso, pessoas idosas e as que possuem condições de saúde delicadas, tais como comorbidades ou deficiência, são consideradas de alto risco, pois, em virtude da sua condição, correm o risco de ficarem em estado grave ou 6 O Decreto n. 10.212, de 30 de janeiro de 2020, promulgou o texto revisado do referido Regulamento Sanitário Internacional (RSI). 298 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS virem a óbito embora qualquer pessoa infectada seja propensa a ter a mesma chance de desenvolver esse estado. De acordo com os últimos dados estatísticos oficiais, do Banco Mundial e da Organização Mundial de Saúde (OMS) O mundo conta com mais de um bilhão de pessoas no mundo em situação de deficiência. Isso corresponde a uma pessoa com deficiência em cada sete pessoas. Nas Américas, estimase um total de 85 milhões de pessoas com deficiência. E, como ressaltado pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe, CEPAL, a prevalência de deficiências aumenta em mulheres, populações afrodescendentes, povos indígenas, idosos e famílias de vivem na pobreza. (OEA/Secretaría de Acceso a Derechos y Equidad, 2020, p. 30-31). No Brasil, o primeiro caso confirmado e registrado ocorreu no dia 26 de fevereiro de 2020, quando um brasileiro viajou à Itália e se infectou com a doença naquele país. A partir disso, o governo brasileiro estabeleceu uma lista de países que estavam em alerta para a covid-19. Em março de 2020, foi registrada a primeira transmissão interna no país, exigindo que os governos federal, distrital e estaduais adotassem medidas protetivas, tais como: estímulo ao isolamento social e uso de máscaras, bem como compra de respiradores, testes rápidos e outros insumos. Porém, as medidas tomadas pelo governo federal brasileiro para prevenir e conter a disseminação da covid-19 - isolamento e distanciamento social, uso de máscaras e álcool - acabaram não abrangendo, em um primeiro momento, alguns grupos minoritários como é o caso das pessoas com deficiência, que, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018) somam 6,7% da população brasileira7. Isso porque muitas dessas medidas não abarcavam as suas necessidades ou não foram difundidas com acessibilidade, deixavam-nas expostas e alheias ao contexto sanitário, provocando, assim, maior exclusão e risco à saúde e à vida desse grupo. Desse modo, pode-se dizer que houve um retrocesso na garantia e no gozo do direito à saúde - física e mental - às pessoas com deficiência no território 7 O IBGE fez uma releitura dos dados de pessoas com deficiência no Censo Demográfico 2010, à luz das recomendações do Grupo de Washington GW), o que resultou em uma modificação em torno do percentual da população com deficiência. “Sendo assim, ao aplicar esta linha de corte, a população total de pessoas com deficiência residentes no Brasil captada pela amostra do Censo Demográfico 2010 não se faz representada pelas 45.606.048 pessoas, ou 23,9% das 190.755.048 pessoas recenseadas nessa última operação censitária, mas sim por um quantitativo de 12.748.663 pessoas, ou 6,7% do total da população registrado pelo Censo Demográfico 2010”. (IBGE, 2018, p. 5). 299 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS nacional, o que caracteriza violação do direito à saúde, que, enquanto um direito humano e fundamental, é protegido pela vedação ao retrocesso. E, privar ou dificultar que uma pessoa com deficiência se beneficie do direito à saúde é colocar em risco sua própria vida física, psíquica e comunitária. Em razão disso, esta pesquisa tem como foco levantar, descrever e avaliar se há, onde existem e como vêm sendo operacionalizadas políticas públicas federais, distritais e estaduais de acesso e de utilização prioritários a/de serviços públicos e privados de saúde, para e por pessoas com deficiência, durante a pandemia da covid19, no Brasil. É uma reflexão interdisciplinar e interseccional. A interdisciplinaridade concretiza-se a partir do diálogo entre pesquisadoras, documentos e literatura do direito, da medicina, de políticas públicas e de relações internacionais. A interseccionalidade, por sua vez, é materializada pela interlocução entre deficiência e fases do desenvolvimento humano: infância, adolescência, juventude e velhice, que, de acordo com normativas internacionais e nacionais, devem receber atendimento prioritário em saúde. A abordagem metodológica apoiase em pesquisa teórica e documental, cujas referências estão disponíveis em bibliotecas e bases de dados nacionais e internacionais, notadamente a base legislativa sobre a covid-19, do site da Presidência do Planalto, biblioteca do CEUB, Ebsco e Dynamed. A síntese e o percurso da pesquisa serão expostos em três seções primárias. Na primeira, buscar-se-á responder à seguinte indagação: que pessoas com deficiência? a partir da descrição dos critérios jurídicos para o acesso e a utilização prioritária dos equipamentos ou serviços de saúde para as crianças e adolescentes, jovens e idosos com deficiência. A segunda é dedicada à análise do seguinte questionamento: que estratégias e serviços de saúde?, por intermédio da descrição das políticas públicas para o acesso prioritário aos serviços e equipamentos de saúde para pessoas com deficiência, em especial o acesso às Unidades de Tratamento Intensivos (UTIs) e à imunização. E, por fim, na terceira seção objetiva-se identificar se há e qual é ou quais são as deficiências que exigem o acesso e a utilização prioritária de equipamentos ou serviços de saúde para pessoas com deficiência, de acordo com critérios e evidências científicas. 300 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 2 REALIDADE OU MITO: O ACESSO E A UTILIZAÇÃO PRIORITÁRIA DE SERVIÇOS DE SAÚDE POR PESSOAS COM DEFICIÊNCIA DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19 Partimos da premissa de que a deficiência é um conceito em permanente transformação, multifacetado e construído socialmente. Por isso, a deficiência deve ser vista como uma questão social - que interessa e afeta a todos - e não meramente uma problemática de caráter individual - e, portanto, deve ser avaliada de acordo com o modelo biopsicossocial8. Como desdobramento imediato desse novo paradigma e critério de avaliação, tem-se uma ampliação no rol de pessoas com deficiência, que pode incluir, ainda, pessoas com deficiência mental ou psicossocial em decorrência de transtorno mental ou sofrimento psíquico. 2.1 Quem são as pessoas com deficiência? Diante disso e conforme a CDPD (art. 1) “Pessoas com incapacidades incluem aquelas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (tradução livre nossa). 9 Para a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) (art. 2o), por sua vez, a pessoa com deficiência é [...] aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. (grifos nossos) A diferença entre um conceito e outro é bem sutil. O da CDPD tem um caráter mais abrangente que o da LBI, pois "disabilities"/"incapacidades'' é 8 9 Este modelo - também denominado modelo social - supera as visões moral ou estritamente médica historicamente vigentes ao compreender a deficiência como resultante de uma interação entre impedimentos singulares de cada pessoa (de natureza física, sensorial, mental ou intelectual) com as barreiras sociais e ambientais, de diversas naturezas (físicas, ambientais, legais, tecnológicas e de representações sociais discriminatórias), que geram limitações e constrangimentos à sua participação plena e ao acesso aos direitos na sociedade, em condições equitativas às das demais pessoas. Persons with disabilities include those who have long-term physical, mental, intellectual or sensory impairments which in interaction with various barriers may hinder their full and effective participation in society on an equal basis with others. (grifos nossos). 301 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS expressão mais ampla e abrangente que “deficiência”. Adicionalmente, o conceito da CDPD diz que “as pessoas com incapacidade incluem”, enquanto a LBI afirma que “pessoa com deficiência é”. Com base nas considerações anteriores, é intuitivo que o grupo das “pessoas com deficiência” é amplo e heterogêneo, mesmo quando se adota um critério prevalentemente biomédico, como ainda faz o Brasil, em desconformidade com a CDPC e a LBI, que utilizam o modelo biopsicossocial de deficiência. 10 Sob a perspectiva biomédica, as deficiências são: física, intelectual, mental ou psicossocial, sensorial (visual e auditiva) e múltiplas deficiências. Podem ser congênitas ou adquiridas e se manifestam em diferentes fases da vida do indivíduo. As pessoas com deficiência, considerando esse novo enfoque, devem ter acesso aos equipamentos ou serviços de saúde e utilizá-los em caráter de prioridade, nos termos do artigo 9º da LBI. Portanto, além de assegurar “[...] atenção integral à saúde da pessoa com deficiência em todos os níveis de complexidade, por intermédio do SUS, garantido acesso universal e igualitário”, nos moldes do exigido pelo art. 18 da LBI, o Estado e as entidades privadas que prestam serviços de saúde devem adequar seu olhar, a escuta, os cuidados e os tratamentos às singularidades e necessidades distintas das pessoas com deficiência, inclusive e especialmente durante a pandemia, em respeito à sua dignidade, à sua autonomia e à sua condição. No tocante às especificidades da garantia do direito à saúde das pessoas com deficiência, em seu aspecto geral, não há o que diferenciar o direito das demais pessoas em gozar de boa saúde. A questão está exatamente na garantia de atendimento das especificidades de cada pessoa, em decorrência de deficiências genéticas ou adquiridas. Se isso não for levado em conta, não for atendido, jogaremos por terra a genérica garantia do direito à saúde em razão da incompletude que acabará por ferir o princípio da equidade em saúde. (SANTOS, 2016, p. 53). 10 Dizemos que o Brasil ainda adota um critério prevalentemente biomédico porque a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e a aposentadoria da pessoa com deficiência são políticas pautadas no modelo biopsicossocial. 302 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Neste texto, adotamos a idade como critério jurídico para justificar a priorização dos cuidados de determinados segmentos de pessoas com deficiência durante a pandemia da covid-19, em especial crianças, adolescentes, jovens e idosos. 2.2 Critério considerado para definição da pessoa com deficiência alvo da prioridade legal Serão consideradas crianças as pessoas com deficiência até onze anos de idade e adolescentes com deficiência os que tiverem entre doze e dezoito anos de idade, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). 11 O ECA assegura-lhes acesso integral ao SUS, “observado o princípio da equidade no acesso a ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde”, devendo ser atendidos “sem discriminação ou segregação, em suas necessidades gerais de saúde e específicas de habilitação e reabilitação”, segundo o art. 11, § 1º. Jovens com deficiência são, para fins legais, pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade, consoante o Estatuto da Juventude no art. 1º, § 1º da Lei nº 12.851/2013. Contudo, para fins de proteção integral do adolescente, como no caso da saúde, serão considerados adolescentes com deficiência os jovens com idade entre 15 e 18 anos12, pois a legislação vigente não estabelece atendimento prioritário para os jovens. Idoso com deficiência é, de acordo com a Lei nº 10.741/2003 - Estatuto do Idoso - a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos. Enquanto tal, tem a garantia de acesso prioritário à rede de serviços de saúde e de assistência social locais. Entre os idosos, os que têm 80 anos ou mais têm prioridade em relação aos de menor idade conforme o art. 3º, VIII e § 2º do Estatuto do Idoso. Esse Estatuto assegura, ainda, a todos os idosos com deficiência, atendimento especializado em saúde, além do mencionado atendimento prioritário, visto no art. 15, § 4º. 11 A Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989) considera como criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade, salvo quando, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes, o que não é o caso da legislação brasileira. (grifos nossos). 12 § 2º Aos adolescentes com idade entre 15 (quinze) e 18 (dezoito) anos aplica-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) e, excepcionalmente, o Estatuto da Juventude, quando não conflitar com as normas de proteção integral do adolescente. 303 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Essas faixas etárias foram eleitas porque, além da deficiência, estão mais expostas à covid-19, seja em razão da maior dificuldade de utilizarem máscaras, praticar higiene das mãos e manterem o distanciamento e o isolamento social (crianças e adolescentes), quer por serem refratárias ao isolamento social ou circularem nos espaços públicos em virtude do trabalho (jovens), seja em razão do “[...] risco maior de mortalidade e doenças graves após a infecção, como os idosos. Entre as pessoas acima de 80 anos, a taxa de mortalidade é cinco vezes maior.” (ONU, 2020a). Para concluir esta seção, é importante destacar que, além do critério etário, será considerado o fato de que pessoas com deficiência podem ter o processo de envelhecimento mais precocemente, o que os coloca em riscos semelhantes às pessoas idosas, em termos de complicações e mortalidade. 2.3 Políticas públicas para o acesso e utilização prioritária a/de serviços de saúde por pessoas com deficiência durante a pandemia da covid-19 As pessoas com deficiência são reconhecidas no direito brasileiro, desde a Constituição Federal de 1988, como sujeitos de direito e, como tais, vêm lutando pela efetivação dos seus direitos sociais, entre os quais o direito à saúde. Ao longo desses mais de 30 anos, o Estado brasileiro criou e implementou várias políticas públicas voltadas para a referida população. A Lei nº 7.853/89, por exemplo, dispõe sobre o apoio às pessoas com deficiência e sua integração social por meio da criação de uma rede de serviços especializados em reabilitação e habilitação, do acesso à saúde e do desenvolvimento de programas voltados às pessoas com deficiência. Somente, porém, por meio da Portaria n. 1.060/2002, do Ministério da Saúde, foi instituída a Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência, a qual orienta as ações do setor Saúde voltadas a esse segmento da população, com o objetivo último de promover sua inclusão plena em todas as esferas da vida social. Outra importante iniciativa foi o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Viver sem Limites -, criado por intermédio do Decreto n. 7. 612/2011 e por influência da CDPD. Como desdobramento do Plano foi criada, pela Portaria n. 793, de 24 de 304 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS abril de 2012, a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, que estabelece ações de reabilitação, promoção à saúde, identificação precoce de deficiências, prevenção dos agravos e tratamento. Não obstante os avanços já apresentados, as ações para garantir a integralidade do cuidado às pessoas com deficiência ainda se mostram marginalizadas e distantes de solucionar as verdadeiras demandas sociais desses indivíduos. Isso ocorre porque ao longo desse processo verificam-se várias objeções burocráticas, desconhecimento das normas garantidoras dos direitos das pessoas com deficiência, poucos profissionais qualificados e capazes de dar a assistência necessária às pessoas com deficiência, falta de informação ou informação acessível e ausência de acessibilidade na comunicação - Libras, Braille, linguagem simples, entre outros. A pandemia da covid-19 vem, a partir de 2020, agravar ainda mais esse cenário no Brasil. Em 11 de março de 2020, quando foi declarado o estado de pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) orientou os países e suas populações a seguirem as medidas essenciais para prevenção da disseminação da covid-19, mencionadas em outras partes do texto. Entretanto, as estratégias de cuidado propostas pela OMS e adotadas por alguns governos não abarcaram as especificidades das pessoas com deficiência, como por exemplo a necessidade de auxílio de outras pessoas para tais cuidados, a utilização de equipamentos para realizar atividades rotineiras, como a bengala e a cadeira de rodas, e o uso do tato para a identificação de contextos físicos. Essas especificidades dificultam ou impossibilitam o isolamento, o distanciamento físico de outras pessoas e o uso de máscaras, expondo esses indivíduos a mais chances de serem infectados. Além do mais, o isolamento total desencadeou a suspensão de prestação de serviços essenciais para essas pessoas como, por exemplo, as sessões de fisioterapia, terapia ocupacional ou fonoaudiologia e, por outro lado, dificultou o acesso a outros ambientes e equipamentos de saúde necessários ao atendimento das suas necessidades médicas e pessoais, o que pode ter ocasionado o retrocesso dos tratamentos médicos contínuos, como por exemplo às pessoas com distrofias musculares (LEITE; LOPES, 2020). 305 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Nesse mesmo sentido, o isolamento e o distanciamento social, assim como as mudanças de rotinas em decorrência desse contexto, contrapõem-se ao que as pessoas com transtorno do espectro autista (TEA), doravante apenas “autistas” ou pessoas com autismo, necessitam, tendo em vista que, em sua maioria, já tendem a se isolar, apresentam dificuldade em estabelecer ou manter relações sociais com outras pessoas e se limitam a interagir apenas com familiares ou pessoas que estão presentes no seu cotidiano. Além do mais, os autistas têm necessidades específicas de comportamento e de aprendizagem, o que requer uma rotina que estimule o seu desenvolvimento, de acordo com as singularidades de cada indivíduo. Por essas razões, medidas como o isolamento social acabam ocasionando irritabilidade, desorganização mental, agressividade e transtornos psicológicos em grande parte dos casos. Outras pessoas com deficiência, por sua vez, apresentam episódios de engasgo, alterações musculares e sensitivas na região orofacial e/ou dificuldades relacionadas à comunicação como na emissão da fala ou compreensão da informação falado por terceiros, o que é agravado pelo uso obrigatório de máscaras, que aumenta a dificuldade de comunicação e de transferência de cuidados em relação a esse grupo. (BARBOSA et. al., 2020; COURA; ALMEIDA, 2020). Somando-se aos problemas anteriormente elencados, a telemedicina, regulamentada pelo Ministério da Saúde (MS), por intermédio da Portaria n. 467, de março de 2020 - e o atendimento psicológico on-line - disciplinado pela Resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) n. 04/2020 - que se apresentam como medidas alternativas de acesso e cuidado em saúde e saúde mental durante o período de isolamento, têm limitações, principalmente no que tange às pessoas com deficiência. São exemplos das limitações vivenciadas por essa população histórica e reiteradamente excluída a dificuldade ou falta de acesso a computadores e a softwares específicos, especialmente no caso de pessoas com deficiência auditiva ou visual de crianças e adolescentes com deficiência, a dificuldade ou falta de acesso à internet; a inexistência de um ambiente privativo para realizar consultas e o despreparo da grande maioria dos profissionais da saúde brasileiros, em relação às necessidades específicas das pessoas com deficiência, como a necessidade de uma comunicação acessível, por meio do uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e de 306 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS linguagem simples. Os mencionados obstáculos subsistem apesar do que dispõe a CDPD e a LBI sobre acessibilidade. Em relação à dificuldade da adoção da telemedicina como estratégia de cuidado em saúde das pessoas com deficiência, a senadora Mara Gabrilli (PSDBSP), destacou a importância [D]O uso de uma plataforma e de uma tecnologia que permita a mediação dessas consultas com a presença de um intérprete de libras. Também as orientações aos médicos de como atuar de maneira mais explicativa, no caso de uma pessoa com deficiência intelectual ou autismo, e de uma maneira mais descritiva às pessoas cegas, para entender o contexto — afirmou Mara, apresentando uma lista de medidas que segundo ela devem ser observadas. A senadora pediu também a disponibilidade de intérpretes para os surdos-cegos, e uma plataforma que seja acessível aos leitores de tela, utilizada pelas pessoas com deficiência visual. (LEITE; LOPES, 2020; SENADO, 2020). As primeiras medidas concretas, no nível federal para efetivar o direito à saúde das pessoas com deficiência durante a pandemia, começaram a ser conhecidas em 19 de março de 2020, data em que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) lançou uma cartilha informativa sobre os cuidados que as pessoas com deficiência devem tomar durante esse período, com textos informativos e vídeos em Libras. Dando continuidade às medidas, no dia 23 de abril de 2020, o MMFDH iniciou o cadastramento de instituições a fim de que pudessem auxiliar pessoas com deficiência a enfrentar o período da pandemia (MMFDH, 2020). Já as orientações emitidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) - via Nota Técnica GVIMS/GGTES/ANVISA nº 05/2020, de 21 de março de 2020 - para a prevenção e o controle de infecções pela covid-19 em instituições de longa permanência para idosos (ILPI) não asseguraram, mesmo em relação aos protocolos de higiene, acessibilidade comunicacional e à informação e tampouco declinaram instruções para que essa fosse garantida, violando direitos e medidas garantidas pela LBI, conforme já mencionado anteriormente, uma vez que há interseccionalidade, muitas vezes, entre velhice e deficiência. 307 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS No dia 3 de abril de 2020, a Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD) lançou a “Nota em defesa da vida durante a pandemia de COVID-19 no Brasil”, manifestando repúdio à discriminação contra pessoas com deficiência noticiada no Reino Unido e nos Estados Unidos e defendendo a preservação da vida dessas pessoas “em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, em todo e qualquer cenário, inclusive nas situações de insuficiência de recursos médicos, incluídos o atendimento adequado e o acesso a ventiladores mecânicos”. No mesmo mês, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) editou duas recomendações destinadas a garantir os direitos e a proteção social das pessoas com deficiência e de seus familiares no contexto da covid. A primeira delas - a nº 19, de 6 de abril de 2020 - apresenta fluxos e alternativas ao acesso a medicamentos e outros itens necessários à preservação da vida das pessoas com deficiência (CNS, 2020a). Na segunda, a Resolução nº. 31, de 30 de abril de 2020, recomendou que fosse garantido o atendimento às pessoas com deficiência e com doenças raras [...] em situações emergenciais com isonomia, condenando atitudes e comportamentos discriminatórios e que, na hipótese de necessidade de definição de prioridade para a distribuição de leitos de UTI, em face da insuficiência de recursos materiais e/ou profissionais de saúde, pessoas com deficiência não sejam preteridas com base nos impedimentos nas funções ou estruturas de seus corpos, sob pena de violação de princípios como a dignidade humana, a igualdade, a aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e configuração de prática de discriminação por motivo de deficiência, conduta esta punível nos termos da legislação vigente. (CNS, 2020b). É importante ressaltar, na seara legislativa federal, a propositura de Projetos de Lei (PLs) para abarcar as necessidades das pessoas com deficiência no contexto de pandemia. Alguns foram aprovados e outros estão em andamento ou sem tramitação recente. A seguir, destacamos alguns que versam sobre saúde: (a) Projeto de Lei nº 4318/2020 - altera a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento de emergência de saúde pública em decorrência da covid-19, para designar como serviço essencial as entidades sem fins lucrativos que prestam ação social ou atendimento a pessoas com 308 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS deficiência. Encontra-se, desde 30/06/2021, aguardando parecer do Relator na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), da Câmara dos Deputados; (b) Projeto de Lei nº 3022/2020 - estabelece a criação do auxílio-cuidador para pessoas idosas e/ou com deficiência que necessitarem de terceiros para realização das atividades diárias. O último andamento foi em 08/04/2021. Aguardando despacho do presidente da Câmara dos Deputados; (c) Projeto de Lei nº 5556/2020 - altera a Lei nº 6259/1975, que estabelece normas sobre notificação compulsória de doenças para inclusão de informações das pessoas com deficiência. Apensado ao PL 2726/2020, em 25/03/2021; (d) Projeto de Lei nº 2178/2020 - de autoria da Senadora Mara Gabrilli (PSDB/SP), propõe a disposição de fornecimento de transporte - pelo Distrito Federal e por municípios com mais de 20.000 habitantes - para atender os cuidadores de idosos e de pessoas com deficiência ou doenças raras, até janeiro de 2021. Parecer da Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF), de agosto de 2021, sugeriu a alteração do tempo do benefício previsto no caput do art. 2º, dando-lhe a seguinte redação: "Art. 2º Enquanto durar a Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da Infecção Humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV) [...]. O último andamento desse PL foi em 19/08/2021. Aguardando designação de relator na Comissão de Viação e Transportes (CVT). (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021); (e) Projeto de Lei nº 2551/2020 - altera o art. 22 e inclui o § 3o no citado artigo da Lei nº 13.146/2015. A proposta de alteração do caput do art. 22 traz o direito a acompanhante ou a atendimento pessoal à pessoa com deficiência internada ou em observação, “[...] ainda que decretado estado de calamidade pública, sítio, defesa ou emergência, devendo o órgão ou a instituição de saúde proporcionar condições adequadas para sua permanência em tempo integral”. O novo parágrafo 3o dispõe sobre a garantia de “[...] plano de contingência para emergências, com equipes técnicas preparadas para lidarem com pacientes com deficiência intelectual ou cognitiva. O último andamento é de 06/4/2021. Aguardando parecer do relator na Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência (CPD). 309 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS (f) Projeto de Lei nº 3563/2020 - altera a Lei nº 13.979/2020 para inclusão do atendimento acessível e humanizado às pessoas com deficiência durante a pandemia da covid-19. O último andamento desse PL foi em 08/09/2021. Aguardando designação de relator na Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021). (g) Projeto de Lei nº 5377/2020 - altera a Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975, para inclusão das pessoas com deficiência no grupo de pessoas prioritárias no Programa de Vacinação contra a covid-19 no Programa Nacional de Imunizações (PNI). Foi apensado ao PL-4992/2020 e teve um último andamento em 17/06/2021, oportunidade em que foi declarado prejudicado em face da aprovação da Submenda Substitutiva Global ao PL n. 1.011/2020, adotada pela Relatora da Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF). (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021). (h) Projeto de Lei nº 1011/2020 - estabelece prioridade para 16 grupos dentro do plano de vacinação contra a Covid-19, dentre os quais as pessoas com deficiência. O último andamento desse PL foi em 23/06/2021, quando foi remetido ao Senado Nacional, onde segue aguardando apreciação. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2021). As matérias abordadas nos PLs anteriormente expostos são de extrema importância para o asseguramento dos direitos à vida e à saúde de pessoas com deficiência. Entretanto, o tempo entre a propositura e a eventual aprovação desses e de outros PLs, mesmo aqueles que tramitam com prioridade, como o PL nº 2178/2020, é incompatível com a urgência e a gravidade do momento, o que poderá tornar inócuos seus efeitos positivos, ou seja, sua efetividade, caso sejam aprovados. No âmbito dos estados, do Distrito Federal e dos municípios brasileiros, identificamos as seguintes ações voltadas para os cuidados em saúde de pessoas com deficiência, durante a pandemia. Em São Paulo, foram criados centros de contenção da disseminação da covid-19 em seis regiões - Sé, Santo Amaro, Santana, Mooca, Luz e Lapa - para pessoas com deficiência e um serviço de atendimento 24 horas às pessoas com deficiência auditiva pela Central de Intermediação em Libras da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência. Além disso, na região da Luz, foi criado um Centro de abrigo para as pessoas com deficiência e idosas sem moradia, 310 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS que fornece kits de higiene, refeições e orientações de cuidado e prevenção. No dia 23 de junho de 2020, a Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência e a Secretária da Saúde do estado de São Paulo publicaram uma resolução conjunta Resolução SS n. 01 - que traz recomendações sobre a internação de pessoa com deficiência, durante a pandemia da covid-19, para em especial garantir: (a) a prioridade no seu tratamento, sempre que possível; (b) o direito a acompanhante, se ela não se comunicar ou depender de terceiros para alimentação e locomoção e (c) sua internação “[...] preferencialmente, em Hospitais exclusivos COVID, preferencialmente COVID e preferencialmente não COVID (tipologia dos estabelecimentos conforme pacto da Comissão Intergestores Bipartite CIB SP). A internação em Hospital de Campanha poderá ocorrer em situação excepcional ditada unicamente pela falta de leitos nos demais serviços hospitalares de atendimento COVID 19”. (SÃO PAULO, 2020). No litoral de São Paulo, Santos, foram criados dois serviços de referência para pessoas com deficiência auditiva. O primeiro assegura atendimento por Whatsapp - uma plataforma de mensagens simultâneas, por meio de vídeo-chamadas com intérpretes de Libras - e o segundo, pela conta do Instagram - Central de Libras de Santos -, onde há a divulgação, de maneira acessível, das decisões tomadas pelo município, para o enfrentamento da covid-19. No Rio de Janeiro, o governo do estado - Lei nº 8.859, de 03 de junho de 2020, art. 4o; decreto nº 47.576, de 19 de abril de 2021, art. 3o, § 2o - e municípios, como Santa Maria Madalena - Decreto n. 2805, de 24 de março de 2021, art. 3o, § 2o - autorizaram a não utilização de máscaras para as pessoas que têm patologia respiratória e pessoas com deficiência, “[...] mediante apresentação de documento médico que ateste o risco de utilização de máscaras nos casos aqui especificados”. (LEITE; LOPES, 2020; ACRE, 2020; RIO DE JANEIRO (Estado), 2021). Ainda no estado do Rio de Janeiro, em 05 de maio de 2020, entidades de classe, trabalhadores, movimentos sociais, Conselhos Municipais dos Direitos das Pessoas com Deficiência, Grupos de Pesquisa e Acadêmicos, entre outros, produziram o documento “Todas as vidas importam”, requerendo a elaboração de políticas públicas voltadas para a execução do atendimento prioritário de pessoas 311 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS com deficiência, consoante previsto na LBI, e, ao mesmo tempo, alertando o Poder Executivo estadual e a própria sociedade acerca da inconstitucionalidade e da ilegalidade de não garantir o acesso de pessoas com deficiência ao tratamento em UTIs, quando necessário, durante a pandemia. O governo do estado do Acre promulgou a Lei nº 3.688, de 18 de dezembro de 2020, que prevê a criação do programa emergencial de testagem para a covid-19, na modalidade “drive thru”, a fim de atender, preferencialmente [...] “pessoas com deficiência e dificuldade de locomoção” (art. 2o, II). (LEITE; LOPES, 2020; ACRE, 2020; RIO DE JANEIRO (Estado), 2021). Alguns estados, regiões metropolitanas e municípios brasileiros adotaram a paradiplomacia, consistente em relação internacional com outros governos nacionais, cidades e organizações internacionais, visando a resultados para fins técnicos, financeiros, industriais e comerciais. Um exemplo disso foi a criação da plataforma Cities for Global Health - proposta liderada pela Associação das Grandes Metrópoles, Aliança Eurolatinoamericana de Cooperação entre as cidades, cidades e governos locais e ONU Habitat - para administrar o impacto da crise provocada pela pandemia, por um espaço de compartilhamento de experiências entre governos locais e regionais do mundo. Entre os participantes dessa iniciativa estão Curitiba, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo e Brasília. Uma das iniciativas de ações sociais elogiadas foi a disponibilização de vídeos em Libras sobre a covid-19, promovida pelo governo do Distrito Federal. (AGÊNCIA BRASÍLIA, 2021). 2.4 Critérios clínicos e políticas públicas para o acesso e a utilização prioritária de leitos de Unidades de Tratamento Intensivos por pessoas com deficiência durante a pandemia No cenário pandêmico da covid-19 houve um aumento da demanda de leitos em UTIs, uma vez que o agravamento da doença requer tratamento e suporte de equipamentos específicos, bem como atuação profissional qualificada, dirigida e continuada. Nessa perspectiva, com o descontrole da doença, os hospitais ao redor do mundo, inclusive no Brasil, tiveram que enfrentar um problema de disponibilidade de leitos aos pacientes necessitados, haja vista que aqui, mesmo em condições normais, há déficit de leitos para todos os que deles necessitam. 312 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A busca de alternativas para essa questão levou à construção de hospitais temporários, conhecidos como hospitais de campanha, em estádios, parques e outros ambientes propícios. Com isso, evidenciou-se ainda mais a questão da necessidade de priorizar a disponibilidade de leitos em UTIs para aqueles que necessitavam de um atendimento imediato e ainda mais específico, como é o caso das pessoas com doenças crônicas ou deficiência. (MATIUZO, 2020). Contudo, em situações de catástrofes como a caracterizada pela pandemia da covid-19, existe na ética médica um posicionamento moral consequencialista em torno da necessidade de se promover, em caso de escassez de recursos biotecnológicos e humanos, uma “triagem” sobre quem deve ser priorizado, por apresentar mais condições de sobreviver, ou preterido. Exemplo disso pode ser visto no agravamento do controle da covid-19 nos EUA, em que estados como Washington, Utah, Tennessee e Arizona publicaram protocolos de emergência segundo os quais pessoas com lesões cerebrais, deficiência intelectual ou mental poderiam ser preteridas na hora da disputa por suporte com ventilador/respirador 13 (FELT et. al., 2021). Essa possibilidade gerou e ainda gera muita controvérsia lá fora e aqui. Por isso, apontaremos na sequência alguns critérios científicos que, aliados aos fatores associados à faixa etária, já expostos, robustecem a garantia jurídica e independente do contexto de pandemia, de acesso e utilização prioritária a serviços de saúde por crianças, adolescentes e idosos com deficiência. Muitas pessoas com deficiência, de qualquer idade, dependem do uso de objetos, como bengalas ou têm questões sensoriais que os fazem ter maior contato com superfícies potencialmente contaminadas. Por outro lado, alguns tipos de deficiência, como a deficiência intelectual14, incluída a síndrome de Down, têm se mostrado mais suscetíveis à contaminação e ao falecimento em razão da covid-19, o 13 The study, published in Disaster Medicine and Public Health Preparedness, found that some states had emergency protocols saying that individuals with brain injuries, cognitive disorders or other intellectual disabilities may be poor candidates for ventilator support. (FELT et. al., 2021). 14 Podemos usar dificuldade de aprendizagem (aspectos que podem interferir na aprendizagem como: metodologia, motivação, problemas emocionais…) ou transtorno de aprendizagem (dislexia, discalculia… essa situação é mais grave). 313 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS que reforça a relevância e a urgência de se efetivar o direito ao atendimento prioritário em saúde às pessoas com deficiência e, em especial, aos leitos de UTI. Dados divulgados na The Lancet em março deste ano (2021) apontam o “triplo risco” da pandemia da covid-19 às pessoas com deficiência. O primeiro deles é o desenvolvimento de quadros mais graves. As pessoas com síndrome de Down apresentam dez vezes mais chances de virem a óbito em relação às demais e, na Inglaterra, estudo aponta que as com deficiência intelectual têm índice de mortalidade oito vezes maior, de acordo com o The Guardian (2021). A interrupção ou a descontinuidade dos cuidados em saúde ou reabilitação caracterizam o segundo risco. O terceiro abrange os prejuízos sociais [e psíquicos] decorrentes das regras de isolamento social e lockdown. (MAGALHÃES; WAGNER, 2021). No nosso país, antes da pandemia, os critérios de admissão e alta de pacientes em UTI, em caso de insuficiência de oferta de leitos, eram balizados pela Resolução nº 2.156, 17 de novembro de 2016, do Conselho Federal de Medicina (CFM). Esses critérios sofreram mudanças em virtude de Recomendação da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) e da Associação Brasileira de Medicina de Emergência (ABRAMEDE), que lançaram o “Protocolo de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por covid-19”. Assim, os critérios para a ocupação de leitos de UTI - que envolvem um somatório de notas - durante a pandemia, são: (a) Salvar mais vidas - avalia uma série de parâmetros de dados vitais, de 1 a 4 pontos; (b) Salvar mais anos de vida - avalia a presença de comorbidade grave com probabilidade inferior a um ano soma-se 3 pontos caso tenha e; (c) Capacidade do paciente, avalia em escala do “completamente ativo” até “completamente incapaz de realizar auto-cuidados básicos" - de 0 a 4 pontos. Ou seja, uma soma de notas para ter o acesso atendimento. (ASSOCIAÇÃO MÉDICA BRASILEIRA, 2020) Esses novos critérios, por não fazerem menção direta a nenhum tipo de morbidade ou condição, como a deficiência, geram insegurança e reações negativas. (SISEJUFE, 2020). Por outro lado, os critérios para indicação são praticamente 314 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS universais, pois são critérios clínicos, que dependem também das comorbidades que a pessoa apresenta, tenham ou não deficiência. Então, com base nos critérios anteriormente elencados, há que se verificar se a negativa para o acesso de pessoa com deficiência a leitos de UTI é discriminação em virtude da sua deficiência, o que é vedado expressamente pela CDPD.15 2.5 Critérios científicos e políticas públicas para a vacinação prioritária por pessoas com deficiência durante a pandemia A pandemia da covid-19 gerou uma corrida em prol do desenvolvimento de imunizantes para a população mundial. Altos investimentos em pesquisa e a conjugação de esforços de diferentes instituições e países como Rússia, China, Estados Unidos, Reino Unido e Brasil buscam conciliar respostas rápidas e eficazes contra o vírus e ganho econômico, ensejando um fenômeno denominado por Yasmeen Serhan, de “nacionalismo da vacina”. (SENHORAS, 2021). O art. 18, § 4°, IV, da LBI estabelece, dentre as ações e os serviços de saúde pública destinados à pessoa com deficiência, a garantia de campanhas de vacinação. Somado a essa exigência, já temos várias publicações, dentre elas as recomendações da International Disability Alliance (2021) e o parecer técnico sobre vacinação contra a covid-19, de autoria do professor da Unifesp Eduardo de Medeiros (2020), que demonstram a maior vulnerabilidade das pessoas com deficiência à covid-19 e, em especial, das pessoas com síndrome de Down, e, portanto reforçam a urgência de se efetivar o direito ao atendimento prioritário desse grupo, no processo de imunização, pois as condições do seu sistema imunológico podem afetar a resposta à vacina da covid-19 (TOMA; DIERSSEN, 2021; MEDEIROS, 2021). Relativamente ao estabelecimento - pelo Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação - de grupos prioritários para fins de imunização, o Brasil elegeu os idosos (Recomendação CNS nº 003/2021). Entretanto, considerando 15 “Discriminação por motivo de deficiência” significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável;” (grifo nosso) 315 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS a insuficiência de imunizantes no país, por razões essencialmente políticas, é inafastável a necessidade de estabelecimento de grupos prioritários, ao lado e além dos idosos. O critério etário adotado pelo Brasil, contudo, deixou à margem, desamparados, milhões de pessoas com deficiência que, em face das características da deficiência ou da doença, deveriam ter sido incluídos prioritariamente, juntamente com os idosos (PIOVESAN, 2021). Em face desses estudos, no dia 3 de dezembro de 2020, foi apresentado o Projeto de Lei 5377/2020 para alteração da Lei nº 6.259, de 30 de outubro de 1975, para inclusão das pessoas com deficiência no grupo de pessoas prioritárias no Programa de Vacinação contra a covid-19 no Programa Nacional de Imunizações (PNI). Ademais, no dia 12 de abril de 2021, os deputados da Comissão dos Direitos das Pessoas com Deficiência defenderam a ampliação do Projeto de Lei nº 1011/20 para a inclusão dos cidadãos com deficiência como prioritário. O PNI determina que as pessoas com deficiência somente seriam vacinadas após a conclusão dos idosos maiores de 60 anos, com exceção das pessoas com Síndrome de Down, pois foram incluídas entre os portadores de comorbidades. Durante a audiência, os especialistas lamentaram os critérios e a secretária nacional substituta dos Direitos das Pessoa com Deficiência do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Ana Paula Nedavaska citou a LBI, que, como já mencionado, garante o atendimento prioritário dos cidadãos com deficiência em situação de risco (CNS, 2021a). Na mesma audiência, a representante do Conselho Nacional da Saúde, Vitória Bernardes, criticou a explicação do Consultor do PNI sobre o critério da idade para a vacinação e alertou sobre a falta de dados que identifiquem o número de pessoas com deficiência contaminadas pela covid-19 e os óbitos pela doença (CNS, 2021a). Com efeito, ainda em 2020, na divulgação do PNV proposto pelo Ministério da Saúde, as pessoas com deficiência foram completamente olvidadas das etapas de vacinação, fato amplamente condenado pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos AMPID (MENDES apud AMPID, 2020). Tal fato implicou negligência e desrespeito aos direitos das pessoas com deficiência, que devem ser resguardadas e 316 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS amparadas por políticas de saúde que garantam qualidade e inclusão sem descontinuidade e imprecisão. Diante disso, percebe-se que, além de inexistir uma efetiva estratégia nacional de vacinação para pessoas com deficiência, têm-se impasses em torno da consideração desse público como grupo prioritário, da garantia de acesso à informação e da lentidão da vacinação para essas pessoas, como tem sido para outros milhares de brasileiros. De outro lado, faz-se necessário o estabelecimento de uma comunicação esclarecedora para a população, no que diz respeito aos grupos a serem vacinados e/ou priorizados, a fim de evitar aglomeração nos postos de vacinação (DOMINGUES, 2021). Com efeito, não podemos deixar de citar que se soma à falta de acesso e equidade na vacinação, a ausência/insuficiência de segurança, saneamento e instalações de higiene adequadas às pessoas com deficiência, cuja vulnerabilidade socioeconômica se soma à condição de pessoas com deficiência (MAGALHÃES; WAGNER, 2021). 3 CONCLUSÃO Verificamos que, na fase inicial da pandemia - quando ainda pouco se sabia sobre a covid-19 e não se tinha uma vacina - os governos federal e estaduais não investiram em campanhas publicitárias voltadas para as pessoas com deficiência, que, por não terem acesso a informação acessível à sua condição - deficiência intelectual ou sensorial - sobre como prevenir a covid-19, podem ter sofrido maior exposição ao vírus. Restou demonstrado que, diversamente da nossa hipótese inicial, não faltam políticas públicas federais ou estaduais voltadas para a atenção à saúde das pessoas com deficiência, durante e em razão da pandemia da covid-19. Entretanto, há um hiato significativo entre o desenho da política pública e a implementação das ações, dos programas e dos projetos nelas estabelecidos, bem como falta concretização da prioridade que a legislação brasileira lhes garante, tanto em razão da deficiência, como em virtude da idade - crianças e adolescentes e idosos -, a fim de concretizar o direito à vida e à saúde dessas pessoas. 317 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Não identificamos, ao longo da coleta dos dados, nenhuma política pública federal ou estadual voltada para a prevenção ou tratamento de jovens, com ou sem deficiência, no Brasil. Os jovens, em regra, não recebem tratamento jurídiconormativo prioritário. Entretanto, tendo-se em vista a necessidade de se deslocarem para o trabalho, a participação em festas e em aglomerações promovidas por eles, talvez não seja tarde para se desenhar e implementar uma, sobretudo porque a prevenção em saúde é mais barata e eficiente do que o tratamento e a recuperação. Este foi o posicionamento adotado por países como a Indonésia, ao priorizarem a vacinação de pessoas entre 18 e 59 anos, que, por se deslocarem e aglomerarem mais, quer para trabalhar, quer para se divertir, têm sido apontados como os principais transmissores da covid-19, ao lado das crianças. Aliado ao anteriormente exposto, tem-se verificado que os sobreviventes à covid-19 vêm apresentando inúmeras sequelas, independentemente da idade, e essas sequelas podem resultar em deficiência ou incapacidade. (BARIFOUSE, 2021). Do mesmo modo, constatamos que o Poder Legislativo Federal apresentou vários e importantes projetos de lei que objetivam resguardar o direito à saúde das pessoas com deficiência e seu atendimento prioritário, inclusive em relação à imunização prioritária desse grupo. O problema é, como assevera Casagrande e Freitas Filho (2010, p. 28; p. 29), o tempo - entendido como um fenômeno histórico e sociocultural, tal como proposto por François Ost e não meramente cronológico. Ao abandonar sua feição cronológica e adotar uma dimensão operativa, o tempo passa a “[...] realizar diferentes performances, dependendo de como se lhe opera em um determinado processo”. A governabilidade demanda do gestor público maior agilidade na tomada de decisão - enquanto formulador e implementador de políticas públicas. O legislador na qualidade de produtor de normas jurídicas - tem outro ritmo. E o tempo da vida, por sua vez, é totalmente diverso do tempo de ambos os poderes, razão pela qual muitas dessas políticas públicas e projetos de lei podem não mais cumprir suas finalidades. Diante disso e, mais uma vez, nos socorrendo das contribuições de Casagrande e Freitas Filho (2010, p. 33): Ao funcionar segundo lógicas distintas, Executivo, Legislativo e Judiciário operam de forma assíncrona as funções 318 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS institucionais dos poderes, que ganha visibilidade como o conflito entre os princípios da legalidade constitucional, expresso no caso pelo respeito aos dogmas do processo legislativo, e da eficiência da implementação das políticas públicas. Há uma incompatibilidade axiológica intrínseca entre os valores da legalidade constitucional e da realização eficiente de políticas públicas, dados os focos formal daquele e consequencialista deste. A consecução eficiente de políticas públicas que materializam as previsões constitucionais sobre direitos sociais depende de uma mínima sincronia entre os Poderes, tendo em vista a complexidade desse objetivo. (CASAGRANDE; FREITAS FILHO, 2010, p. 33; grifos nossos) Não vislumbramos, ao longo desses quase dois anos de pandemia, esforços dos Poderes Públicos - Executivo e Legislativo - e dos entes federais - união, estados, distrito federal e municípios - no sentido de sincronizar seus tempos em prol da vida, da segurança e da saúde da população com deficiência. Muito pelo contrário, o descompasso, que tem gerado intensos conflitos, tem orquestrado a atuação das autoridades públicas brasileiras no combate à pandemia da covid-19, resultando em perdas de vidas e de capacidade. REFERÊNCIAS AGÊNCIA BRASÍLIA. Ações do DF no combate à Covid-19 são destaque. Escritório de Assuntos Internacionais do Distrito Federal, 02 de abril de 2020. 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Disponível em: https://docs.bvsalud.org/biblioref/2020/04/1095106/anvisa_05_2020-1.pdf. Acesso em: 01 ago. 2021. 319 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS BARBOSA, André Machado et. al. Os impactos da pandemia COVID-19 na vida das pessoas com transtorno do espectro autista. Revista da SJRJ, v.24, n.48, p. 91105, março/junho de 2020. Rio de Janeiro. Disponível em: http://lexcultccjf.trf2.jus.br/index.php/revistasjrj/article/view/357. Acesso em: 01 jul. 2021. BARIFOUSE, Rafael. Vacinas para jovens ou idosos primeiro? Os prós e contras de diferentes estratégias de imunização contra a covid-19. BBC News Brasil, São Paulo, p. 1, 1 fev. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil55866061. Acesso em: 12 set. 2021. BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, DF. 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No sistema prisional, por sua vez, pela situação alarmante de superlotação do complexo penitenciário do DF, bem como devido ao não atendimento dos protocolos de saúde pública e às recomendações do * 1 2 3 4 A ideia de escrever este texto partiu das discussões tecidas durante live homônima, realizada no dia 10 de julho de 2020, na coluna Crítica Republicana, do canal Resistência Contemporânea, com a moderação do prof. Carlos Federico Domínguez Avila (UNIEURO) e da estudante de Jornalismo Itria Corrêa (UFT). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=SEpICoVvC0U&feature=share# . Doutor em Ciências Sociais pelo Centro de Pesquisa e Pós-graduação sobre as Américas (CEPPAC) – atualmente, Departamento de Estudos Latino-americanos, do Instituto de Ciências Sociais (ELA/ICS/UnB); mestre e graduado em Ciência Política, pelo Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL/UnB). Agente Policial e Professor da Escola Superior de Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF). E-mail: alxroch@yahoo.com.br . Graduada em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), Defensora Pública na Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF). Mestranda em Direito, Estado e Constituição (PPGD/FD/UnB) E-mail: mayaratachy@gmail.com . Doutorando em Direito, Estado e Constituição (PPGD/FD/UnB), mestre em Antropologia Social (PPGAS/DAN/UnB), graduado em Antropologia e Sociologia pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília (ICS/UnB), e em Direito pela Faculdade de Direito do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF). Professor substituto/voluntário da Faculdade de Direito da UnB. E-mail: wellitonmaciel@gmail.com . Graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD/UnB). E-mail: valeriavaniacostasilva@gmail.com . 327 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Conselho Nacional de Justiça, a realidade das unidades prisionais expôs internos e agentes institucionais à disseminação da doença. Diante desse cenário, a partir de um levantamento que se pautou pela uma abordagem qualitativa de pesquisa, apresentamos um panorama interinstitucional e refletimos acerca da adoção (ou não) de medidas relativas à gestão da pandemia de Covid-19, pelo governo local, pelas instituições do Estado e pela sociedade. O estudo considerou as inserções institucionais (profissionais/acadêmicas) dos/as autores/as, analisando informações a partir da Polícia Civil, da Defensoria Pública e de pesquisas acadêmicas junto ao sistema penitenciário do Distrito Federal. Palavras-chaves: pandemia; segurança pública; polícia civil; defensoria pública; prisões. 1 INTRODUÇÃO A pandemia Covid-19 atingiu o Brasil em proporções preocupantes, sendo o segundo país do mundo em números absolutos de infectados e mortos. Nesse cenário, os campos segurança pública, persecução penal e prisões no Distrito Federal também estão inseridos. No que se refere à segurança pública, especificamente às Polícias, na condição de prestadoras de serviço público essencial, encontram-se em atuação e com a exposição de riscos para seus integrantes. Essa situação, por certo, impacta na prestação dos serviços. Na esfera da persecução penal pelas instituições do Sistema de Justiça Criminal e, mais especificamente, no tocante à Defensoria Pública, instituição essencial para garantia de direitos individuais, procurou-se adotar medidas de proteção aos seus membros e manutenção do atendimento ao público. Entretanto, frequentemente o direito à saúde tem sido confrontado com a busca por eficiência do Poder Judiciário, que busca retomar suas atividades, mesmo durante o momento mais grave da disseminação da doença. Já no que pertine ao sistema prisional, pela situação alarmante de superlotação do complexo penitenciário do Distrito Federal, bem como devido ao não atendimento dos protocolos de saúde pública e às recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a realidade das unidades prisionais expôs internos e agentes institucionais à disseminação da doença. Diante desse cenário, este ensaio busca apresentar um panorama preliminar e inconclusivo da situação real da Covid-19 e, a partir de uma perspectiva histórica e 328 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS crítica, avaliar as diversas medidas implementadas (ou não) e suas consequências nos âmbitos da segurança pública, da persecução penal e das prisões no Distrito Federal frente à pandemia. Parte-se, portanto, da análise de agentes e pesquisadores/as envolvidos/as no processo, sendo: Alexandre Rocha, da Polícia Civil do Distrito Federal; Mayara Lima Tachy, da Defensoria Pública do Distrito Federal; bem como do levantamento realizado por Welliton Caixeta Maciel e Valéria Vânia Costa da Silva, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, quanto às informações acerca da gestão da pandemia no sistema penitenciário do Distrito Federal. A partir de uma abordagem qualitativa, buscamos, neste ensaio, refletir acerca da adoção (ou não) de medidas relativas à gestão da pandemia de Covid-19, pelo governo local, pelas instituições do Estado e pela sociedade. O estudo compreendeu, portanto, duas fases: 1) levantamento de documentos oficiais (tais como: relatórios, informativos, boletins epidemiológicos, entre outros) e outros tipos de fontes (como: matérias jornalísticas, entre outras); 2) análise crítica do material coletado, considerando as inserções institucionais (profissionais/acadêmicas) dos/as autores/as. No que tange ao recorte temporal de ocorrência e levantamento do material analisado, consideramos o período de março de 2020 a setembro de 2021, haja vista a situação da Covid-19 em diferentes momentos. Passemos aos dados e às respetivas reflexões que, adiantamos, não se pretendem exaustivas e conclusivas nem, tampouco, representativas de todo panorama e da realidade interinstitucional do Distrito Federal. 2 A POLÍCIA CIVIL DO DISTRITO FEDERAL E A COVID-195 A Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) não abrange toda a organicidade da segurança pública do Distrito Federal, a qual ainda é composta pela Polícia Militar, Corpo de Bombeiros, Departamento de Trânsito e, inclusive, Sistema Penitenciário6. Todavia, neste relato trato das vicissitudes da pandemia Covid-19 na 5 6 Parte escrita por Alexandre Rocha a partir de sua atuação como Agente Policial e Professor da Escola Superior de Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF). Note-se que, tradicionalmente, o sistema penitenciário no Distrito Federal esteve a cargo da Secretaria de Estado de Segurança Pública, tendo inclusive servidores da PCDF, PMDF, CBMDF. Por sua vez, hoje o sistema penitenciário possui administração própria. Vide: Sistema Penitenciário do DF ganha 329 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS PCDF como uma forma de representar essa situação nas agências de segurança pública do Distrito Federal. Para tanto, observo algumas tratativas realizadas pela PCDF no período da pandemia, a fim de resguardo de seus servidores e de suas atividades. Analiso tais tratativas tendo como referência o documento “10 medidas para a segurança pública durante a pandemia da Covid-197” desenvolvido por especialistas da área de segurança pública. Com isso, pretendo avaliar como a PCDF está se adaptando às mudanças impostas pela pandemia. Destaco que, o presente relato não é uma visão institucional – não falo pela PCDF –, tampouco representa a opinião da totalidade dos servidores da instituição. Assim, como noutras organizações da sociedade brasileira, a percepção sobre a Covid-19 não é uniforme. É fato. A PCDF também não está imune ao embate político sobre o discurso da Covid-19, que vai de abordagens atentas à gravidade da pandemia até às negacionistas do vírus8. Há diversas mentalidades e ações de policiais frente à Covid-19, portanto. O que trago aqui é tão-só uma percepção pessoal sobre a Covid-19, a visão de um policial que considera a gravidade da pandemia e avalia que ela gera impactos ainda não compreendidos para as polícias e para o campo da segurança pública. 2.1 Entre incertezas e medo: um sentimento pessoal No instante que escrevo, estou consternado com a notícia de um colega que veio a falecer em decorrência da Covid-19. Não erámos amigos, não conhecia sua família, aliás eu o vi poucas vezes, pois era de atividade distinta da qual exerço. No entanto, esse colega tinha minha idade, o mesmo tempo de serviço na PCDF do que eu. Inclusive, realizamos o mesmo curso de formação. Posteriormente, outro colega, 7 8 independência. Agência Brasília, 27/05/2020. Disponível em: https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2020/05/27/sistema-penitenciario-do-df-ganha-independencia/ Acessado em: 13/10/2020. “Especialistas elaboram 10 medidas para a segurança pública durante a pandemia da Covid-19.” Instituto Sou da Paz. 04/05/2020. Disponível em: https://soudapaz.org/noticias/especialistas-elaboram10-medidas-para-a-seguranca-publica-durante-a-pandemia-da-covid-19/ Acessado em: 13/10/2020. “Um Governo negacionista e doente de covid-19”. El País. 20/07/2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-20/um-governo-negacionista-e-doente-de-covid-19.html. Acessado em: 10/12/2020. 330 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS agora próximo, pois trabalhamos juntos, veio a falecer em consequência da Covid19, em agosto de 2021. Nesse último caso, infelizmente ele se opôs à vacinação, embora o imunizante tenha sido disponibilizado pela rede de saúde pública. Essas mortes me impactaram. É fato. A PCDF e seus servidores também foram atingidos pela Covid-19. Até setembro de 2021, segundo dados da própria polícia, em termos de vítimas fatais, quatro policiais da ativa morreram. Outros policiais vieram a falecer, mas já estavam aposentados. Pode parecer pouca a quantidade de vítimas fatais na PCDF, sendo dois policiais num universo de 3.964 servidores9. Contudo, ao se observar a quantidade policiais civis mortos em serviço, entre 2017 e 2018, não houve nenhum caso 10. Em 2020, também não ocorreram mortes de policias civis em serviço 11. Ou seja, em pouco mais de cinco meses, a pandemia de Covid-19 vitimou mais policiais civis do que a quantidade policiais mortos em serviço num intervalo de quase três anos 12. Por certo, não é possível atribuir que os policiais civis vitimados pela Covid19 tenham contraído a doença no ambiente de serviço. Logo, as situações são distintas, mas, para efeito de comparação, a letalidade de policiais civis por conta da Covid-19 teve mais gravidade do que os riscos inerentes à atividade policial. Isso é impactante, para policiais e seus familiares. A pandemia Covid-19 colocou todos num momento de incertezas e medo. Nesse panorama, procuro relatar ações da PCDF frente ao drama da Covid-19, confrontando com o documento 10 medidas para a segurança pública durante a pandemia da Covid-19, a fim de observar como é possível preservar a integridade dos policiais e continuar atendendo à população nas demandas de segurança. 9 Perfil Efetivo PCDF 2020. Req. Informação 14/2020. Fonte: PCDF/DGI/DATE/Polaris Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wpcontent/uploads/2019/10/Anuario-2019-FINAL_21.10.19.pdf . Acessado em: 13/10/2020. 11 Letalidade Policial. Estatística 299/2020. Fonte: PCDF/DGI/DATE/SE/Polaris. 12 No caso da Polícia Militar do Distrito Federal, a quantidade policiais mortos pela Covid-19, até 20 de julho de 2020, somava 6 vítimas (“Mais um policial militar do DF morre de Covid-19. Corporação tem 6 óbitos”. Metrópoles. 20/07/2020). Disponível em: https://www.metropoles.com/distrito-federal/maisum-policial-militar-do-df-morre-de-covid-19-corporacao-tem-6-obitos. Acessado em 3/10/2020. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019, foram registradas 4 mortes de policiais militares no Distrito Federal, entre 2017 e 2018. 10 331 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 2.2 As 10 medidas e as ações da PCDF frente à pandemia da Covid-19 As 10 medidas para a segurança pública durante a pandemia da Covid-19 foram elaboradas por especialistas, como, por exemplo, Bruno Paes Manso, Cláudio Beato e Renato Sérgio de Lima; e centros de pesquisa no tema segurança pública, como Instituto Sou da Paz e Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (CRISP/UFMG), com objetivo de propor apontamentos que promovessem a integridade física dos profissionais de segurança pública, conforme: “A segurança pública não pode ser negligenciada. Inicialmente, é fundamental pensar na proteção de seus profissionais, que desempenham um serviço essencial, estando na linha de frente do atendimento direto à população. Em geral, são os agentes policiais que irão cuidar para que as medidas de isolamento social sejam adequadamente cumpridas pelos cidadãos, o que suscita tensões ante a esse novo papel da polícia (...). Essa realidade coloca em risco milhares de apenados, agentes e profissionais que trabalham nas penitenciárias, muitas vezes sem equipamentos adequados”13. A despeito das realidades distintas das instituições e das atividades de segurança pública frente à Covid-19, tais medidas podem ser usadas como parâmetro a fim de medir como a PCDF está enfrentando a pandemia, seja no âmbito de seus servidores ou no atendimento ao público. Nesse sentido, como ação inicial desenvolvida pela PCDF para tratar com a pandemia, foi estabelecido Plano de Contingência e medidas temporárias de prevenção ao contágio pelo Novo Coronavírus (Covid-19), por meio da Portaria Nº 25, de 18 de março de 2020. Em seguido, foi instituído um Gabinete Integrado de Acompanhamento à Epidemia de Covid-19. Tais ações serviram de norteadoras de diversas outras ações que foram sendo aplicadas ao longo da pandemia. De imediato, a PCDF colocou à disposição de seus servidores equipamentos básicos de proteção, como álcool gel e máscaras, além de estabelecer orientações aos servidores para que observem as medidas de segurança. De forma regular foi estabelecida programa de desinfecção das unidades policiais, com empresa 13 “Especialistas elaboram 10 medidas para a segurança pública durante a pandemia de Covid-19”. Instituto Sou da Paz. Aborda-se trechos desse documento, a fim de comparação com as ações da PCDF. Para acesso à integrado ao documento, consulte: https://soudapaz.org/noticias/especialistas-elaboram10-medidas-para-a-seguranca-publica-durante-a-pandemia-da-covid-19/ . Acessado em: 13/10/2020. 332 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS especializada no ramo. Assim, em itens básicos de proteção no ambiente de trabalho, a PCDF realizou o que foi necessário. Ainda, a fim de preservar a saúde dos servidores, a Policlínica da instituição passou a acompanhar o impacto da Covid-19 nos policiais, sobretudo realizando exames e testagem. A Policlínica da instituição não é hospital, mas realiza procedimentos médicos mais simples. Com efeito, quanto á realização de exames Covid-19, por exemplo, até setembro ela tinha realizado 2.712 testes pelo método PCR e 3.695 testes rápidos, sendo que foram identificados 404 servidores infectados14. Ou seja, até setembro de 2020, cerca de 10,0% do efetivo da PCDF foi infectado pelo novo coronavírus. O plano de contingenciamento da PCDF também estabeleceu que os servidores deveriam zelar para que permanecesse o mínimo possível de pessoas no ambiente, a critério do dirigente de cada unidade, de modo a evitar aglomerações no interior da unidade policial. Ademais, foi disponibilizado ao cidadão material para higienização das mãos e marcações de distanciamento social. Aos servidores classificados como integrantes do grupo de maior risco para o contágio da Covid-19, segundo critérios administrativos e médicos avaliados pela Policlínica, foi permitido o teletrabalho15. Assim, por exemplo, servidoras gestantes ou lactantes, servidores com algum risco de saúde passaram a exercer suas funções remotamente16. Nessa situação, em 09 de outubro de 2020, tinha 210 servidores em teletrabalho, o que corresponde a aproximadamente 5,0% do efetivo da instituição 17. Em virtude da natureza do trabalho policial, que na maior parte, necessita da interação presencial, o teletrabalho na PCDF foi uma exceção. Ademais, diante das particularidades do trabalho policial que demanda interação com o público, na PCDF a contaminação da Covid-19 teve a possibilidade 14 Relatório Estatístico Covid-19, de 09 de outubro de 2020. Os testes realizados pela Policlínica não correspondem ao total de policiais infectados, visto que há testes realizados pelo próprio servidor noutras instituições de saúde. Nesse sentido, até setembro, 550 policiais civis tinham sido infectados. De toda forma, a Policlínica consolida esses números nos relatórios de COVID-19. Fonte: PCDF 15 Decreto nº 40.546/2020 estabeleceu o teletrabalho, em caráter excepcional e provisório, para os órgãos da administração pública direta, indireta, autárquica e fundacional a partir de 23 de março de 2020. 16 Portaria nº 25, de 18 de março de 2020 (PCDF). Fonte: PCDF 17 Relatório Estatístico Covid-19, de 09 de outubro de 2020. Fonte: PCDF 333 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS de ser considerara como acidente em serviço, por gerar dano físico ou mental ao servidor, desde que esteja relacionado direta ou indiretamente, com as atribuições do cargo ou função exercidos18. Essa situação não é imediata, pois depende de avaliação de comissão de apuração de acidente em serviço e de doença profissional. Essas ações iniciais da PCDF se alinham a itens das 10 medidas, por exemplo: o fornecimento de EPIs e as condições sanitárias e de higiene para o desempenho das funções dos profissionais da segurança pública; elaboração de protocolos de ação para minimizar risco de contágio e planos de contingência; viabilização de tecnologias que garantam a proteção dos profissionais que atendem diretamente ao público nas situações não emergenciais, como teletrabalho; proporcionar testagens aos policiais. A fim de atender à sociedade em tempos de isolamento social, já em meados de março de 2020, a PCDF ampliou o rol de naturezas criminais a serem registradas pela internet, por meio da Delegacia Eletrônica. Assim, em razão da pandemia de Covid-19, o registro de ocorrências policiais passou preferencialmente a ser realizado via Delegacia Eletrônica, excetuando-se a necessidade de atendimento presencial nas Delegacias de Polícias físicas para registro de casos urgentes, por exemplo, homicídio19. Vale destacar que foi estabelecida a inclusão da violência doméstica no rol dos registros online. Particularmente, essa ação da PCDF, por exemplo, está em sintonia com outra sugestão das 10 medidas, a que trata da priorização e desenvolvimento de metodologia específica para violência doméstica, com o estabelecimento de novas rotinas para preenchimento das medidas protetivas, com atenção ao feminicídio. Ainda necessitando a avaliação mais acurada, é possível verificar o impacto na criminalidade, ou pelo menos, no registro policial dela. Com efeito, em virtude do isolamento social20, houve retração dos registros presenciais nas delegacias 18 Portaria nº 58, de 25 de junho de 2020 (PCDF). Fonte: PCDF Delegacia Eletrônica PCDF. Disponível em: https://delegaciaeletronica.pcdf.df.gov.br/ . 20 Decreto n° 40.539, de 19 de março de 2020, do Governo do Distrito Federal. Disponível em: http://www.sinj.df.gov.br/sinj/Norma/ac087b76d5f34e38a5cf3573698393f6/Decreto_40539_19_03_20 20.html Acesso em 10/12/2020. Revogado pelo Decreto 40550 de 23/03/2020. Como se nota, o referido decreto está revogado, mas à época do início da pandemia, estabeleceu medidas para 19 334 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS presenciais. No período da pandemia, numa comparação entre março e setembro de 2019 e 2020, houve redução de 45,2% de roubo em comércio, 37,8% de roubo a pedestres e 14,0% de homicídio21. Por outro lado, crimes registrados via Delegacia Eletrônica apresentaram alta significativa. Numa comparação entre março e setembro de 2019 e 2020, a Delegacia Eletrônica teve alta de 173,6% na quantidade de ocorrências policiais, enquanto as unidades presenciais reduziram em 34,2%. Ressalta-se, por exemplo, em termos do estelionato, em 2019, foram registradas on-line 1.606 ocorrências entre abril e setembro, já em 2020, o número passou para 11.121 ocorrências, ou seja, acréscimo de 592,4%22. Ademais, por exemplo, no comparativo 2019-2020, houve aumento de 115,8% das ocorrências criminais 23. Outros crimes, como ameaças, praticados pela internet, contra idosos também tiveram altas expressivas. Além disso, ressalta-se a violência doméstica registrada pela Delegacia Eletrônica, que por exemplo, entre março de 2020 a 16 de setembro de 2021, a registrou 1.494 ocorrências24. Destaca-se que, a violência doméstica não era registrada online antes da pandemia, mas passou a ser possível o registro via Delegacia Eletrônica, inclusive com a expedição de medidas protetivas para as vítimas. Dessa forma, os crimes mais relacionados aos movimentos presenciais de pessoas, como homicídio e roubos, tiveram redução. Contudo, crimes oportunizados do fenômeno da pandemia Covid-19, por exemplo, o estelionato, em especial o realizado via internet, tiveram aumento. Ou seja, houve certa migração das dinâmicas criminais, que estão no convívio da casa ou na internet, justamente os espaços mais transitados pelas pessoas em tempos da pandemia. enfrentamento da emergência de saúde pública /de importância internacional decorrente do novo coronavírus. 21 “Casos de homicídio, roubo e feminicídio no DF caem durante pandemia do novo coronavírus”. G1. 12/10/2020. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/10/12/casos-dehomicidio-roubo-e-feminicidio-no-df-caem-durante-pandemia-do-novo-coronavirus.ghtml. Acessado em: 13/10/2020. 22 Delegacia Eletrônica 2019-2020. Estatística 436/2020. Fonte: PCDF/DGI/DATE/SE/Polaris. 23 Delegacia Eletrônica 2019-2020. Informativo Criminal 30/2021. Fonte: PCDF/DGI/DATE/SE/Polaris. 24 Informativo Criminal 31/2021. Fonte: PCDF/DGI/DATE/SE/Polaris. 335 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A fim de acatar o isolamento social, por exemplo, no caso de oitivas e entrevistas, a PCDF passou a priorizar os meios tecnológicos, como telefone e videoconferência, exceto para casos em flagrantes, urgentes, graves e instrução de medidas cautelares25. Ademais, casos de autos em prisão em flagrantes, somente passaram a ser encaminhados ao Instituto Médico Legal para realização de exame de corpo de delito quando o autuado afirmar ter sido agredido fisicamente ou que apresentar lesões aparentes26. No caso de audiências de custódia, no que compete à PCDF, a apresentação de presos em flagrantes passou a seguir as recomendações do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ)27. Assim, em princípio, houve suspensão das atividades presencial 28, mas sem seguida os procedimentos foram realizados prioritariamente pelos meios escrito, telefone ou videoconferência. Em caso presencial, medidas sanitárias e de isolamento social foram estabelecidas, por exemplo, as audiências passaram a ser realizadas de forma individualizada, evitando-se a realização de audiência de custódia com mais de uma pessoa presa29. Atualmente a PCDF não possui presos em suas delegacias cumprindo alguma espécie de prisão, mas concentra na Divisão de Controle e Custódia de Presos (DCCP). Nessa unidade, há presos aguardando audiências de custódia, em situações preventivas e temporárias, por exemplo. Os indivíduos aí presos, a fim de evitar a circulação de pessoas, tiveram alguns direitos limitados, por exemplo, o recebimento de visitas. Não obstante, assistências jurídica e de saúde, recebimento de gêneros alimentícios e itens de necessidades básicas entregues pelos parentes dos presos não foram interrompidos, o que se ajusta a outra sugestão das 10 medidas. 25 Norma de Serviço nº 9, de 03 de abril de 2020 (PCDF). Fonte: PCDF Norma de Serviço nº 7, de 20 de março de 2020 (PCDF). Fonte: PCDF 27 Resolução Nº 329 de 30/07/2020 CNJ. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3400 Acessado em: 10/12/2020. 28 Portaria Conjunta 32 de 19/03/2020 TJDFT. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/publicacoes/publicacoes-oficiais/portarias-conjuntas-gpr-e-cg/2020/portariaconjunta-32-de-19-03-2020 Acessado em: 10/12/2020. 29 Portaria Conjunta 116 de 03/11/2020 TJDFT. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/publicacoes/publicacoes-oficiais/portarias-conjuntas-gpr-e-cg/2020/portariaconjunta-116-de-03-11-2020 Acessado em: 10/12/2020. 26 336 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Há outras ações sendo realizadas pela PCDF frente à Covid-19. Portanto, o que se ilustra aqui é apenas uma amostra de como a instituição tem procurado prosseguir suas atividades em meio à pandemia. De toda forma, a PCDF, mesmo sem se fundamentar nas 10 medidas para a segurança pública durante a pandemia da Covid-19, possui pontos de encontros com esse documento, mas poderia aprofundá-los como forma de mensurar suas ações na situação da pandemia Covid19. Enfim, a despeito dos esforços da PCDF para manter as atividades em funcionamento, a Covid-19 alcança seus servidores, por certo, com consequências físicas e psicológicas30, o que afeta as condições de prestação de serviço. Afinal, afastamentos de policiais e impedimentos ou restrições de certas atividades atingem o serviço de polícia judiaria, com prejuízos à sociedade. Diante disso, as consequências da Covid-19 não podem ser mensuradas apenas por meio de números de policiais infectados, mas também por fatores ainda não compreendidos que impactarão na própria forma de atuar da PCDF. 3 A DEFENSORIA PÚBLICA, FUNDAMENTAIS E A COVID-1931 OS DIREITOS A Defensoria Pública, conforme definição constitucional, é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados. No Distrito Federal, cinco salários mínimos32 definem o universo de atuação da instituição, resultando em 77,5% de potenciais usuários da Defensoria Pública do 30 Vide Nota Técnica sobre avaliação de policiais e Covid-19, em: Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Nota técnica. A pandemia de Covid-19 e os policiais brasileiros. FGV/FBSP. Disponível em: Acesso https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/05/policias-covid-19-v3.pdf. Acessado em: 13/10/2020. 31 Parte escrita a partir da atuação de Mayara Lima Tachy como Defensora Pública da Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF). 32 Resolução 140/2015. Disponívem em http://www.defensoria.df.gov.br/wpcontent/uploads/2020/02/RESOLU%C3%87%C3%83O-n%C2%BA-140-de-24-06-2015- 337 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Distrito Federal - DPDF, dados revelados pela Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios do Distrito Federal – PDADDF, de 201833, desconsiderada a atuação da Defensoria em relação aos grupos vulneráveis, mas que não se enquadram no critério de hipossuficiência econômica. Com essa missão institucional, o atendimento ao público é intrínseco à atuação funcional do Defensor Público e indissociável de suas atividades. Estas, ainda, ocorrem eminentemente perante o Poder Judiciário, seja por meio de petições ou por meio dos atos coletivos que impulsionam a vida judicial, como audiências e sessões de julgamento, incluindo-se os plenários de Tribunal do Júri. Essas atividades, por regra, ocorriam de forma presencial previamente à pandemia de Covid-19. O atendimento presencial, com a decretação do isolamento social, se tornou inviável. Em 19 de março de 2020, a Defensoria Pública editou a Portaria Conjunta nº 3/202034, dispondo sobre o exercício laboral em regime especial e outras medidas relacionadas à redução da transmissão do coronavírus causador de Covid-19 aos profissionais à serviço da instituição, considerando a natureza essencial das atividades prestadas pela Defensoria Pública e a necessidade de se assegurarem condições mínimas para sua continuidade, compatibilizando-a com a preservação da saúde dos profissionais a seu serviço e da comunidade vulnerável. A portaria instituiu regime de Plantão Extraordinário, por meio da suspensão do trabalho presencial de membros(as), servidores(as), estagiários(as) e colaboradores(as) nas unidades da DPDF, priorizando-se o trabalho remoto e mantendo o atendimento presencial apenas para casos urgentes. As pessoas identificadas como componentes de grupos de risco foram excluídas da escala de atendimento presencial. A instituição passou ainda a admitir os atendimentos à distância, por e-mail, por meio dos formulários eletrônicos, por telefone ou por WhatsApp, por meio de 33 34 Hipossufici%C3%AAncia-CONSOLIDADA-Resolu%C3%A7%C3%A3o-212-1.pdf . Acessado em: 13/12/2020. Disponível em: http://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2019/03/PDAD_DF-Grupo-deRenda-compactado.pdf. Acessado em: 13/12/2020. Disponível em: http://www.defensoria.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/Portaria-Conjuntan%C2%BA-2-de-19-de-mar%C3%A7o-de-2020.pdf . Acessado em: 13/12/2020. 338 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS números telefônicos atribuídos a cada Núcleo de Assistência Jurídica35, para evitar que os assistidos e assistidas da Defensoria Pública tivessem de se deslocar fisicamente para pequenos atendimentos e consultas, havendo casos em que o atendimento passou a ser feito de forma inteiramente remota. O artigo 5º da mesma Portaria determinou a realização de plantão presencial a todas as Defensorias de Atendimento Inicial, bem como as Defensorias que integram os Núcleos de Assistência Jurídica de Defesa da Saúde, de Execuções Penais, da Infância e Juventude, de Execução de Medidas Socioeducativas e do Plantão, das Audiências de Custódia e da Tutela Coletiva dos Presos Provisórios, para atuação em casos urgentes, quando o atendimento não possa ser realizado remotamente. Para os atendimentos iniciais, foi criada uma escala de serviço composta por todos os Defensores com atuação na elaboração de petições iniciais, atuando de forma centralizada para atender a todas as demandas urgentes do Distrito Federal. Internamente, foi ainda instituído o Gabinete de Acompanhamento à Epidemia do Coronavírus-19, no âmbito da DPDF (GAEC/DPDF), de natureza consultiva, a fim de identificar as melhores formas de contenção da disseminação da Covid-19, mantendo a prestação de serviços à sociedade. Com o retorno de algumas atividades presenciais, o atendimento presencial de casos urgentes, de casos previamente agendados por WhatsApp, por e-mail ou por formulários eletrônicos ou de pessoas sem acesso a essas tecnologias passou a ocorrer também nos Núcleos de Assistência Jurídica situados fora dos fóruns judiciais, pois estes não autorizaram o atendimento presencial nos núcleos da Defensoria Pública situados no seu interior. A Portaria Conjunta DPDF nº 15/202036, de 28 de outubro de 2020, buscou restabelecer gradualmente algumas atividades presenciais, em sintonia com o retorno das atividades iniciado pelo Judiciário, porém, mantendo ainda a excepcionalidade do atendimento presencial. 35 36 Disponível em: http://www.defensoria.df.gov.br/atendimento-virtual/ . Acessado em: 13/12/2020. Disponível em: http://www.defensoria.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/10/PORTARIACONJUNTA-N%C2%BA-15-DE-28-DE-OUTUBRO-DE-2020.pdf. Acessado em: 13/12/2020. 339 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Na atuação judicial, inicialmente, houve a suspensão integral das atividades imediatamente. Audiências foram desmarcadas sem previsão de retorno e os Tribunais fecharam suas portas. Prazos também foram suspensos37. As demandas em juízo ficaram em suspensão por período indeterminado. Com a evolução da pandemia no Distrito Federal e a determinação de isolamento social, não havia qualquer previsão de retorno. Então, os problemas começaram. Diante da suspensão dos processos, especialmente de réus presos, as prisões cautelares também passaram a se estender por prazo indeterminado, tornando-se desarrazoadas, porém, o Judiciário permaneceu relutante em determinar a soltura de réus encarcerados que estivessem respondendo por crimes considerados graves, em uma balança vida/segurança pública que atribui esses valores de forma extremamente desigual aos corpos racializados e subalternizados, pendendo para o segundo, ainda que ao custo do primeiro. Nesse mesmo sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) expediu a Recomendação nº 62/202038 sugerindo a reavaliação das prisões provisórias, nos termos do art. 316, do Código de Processo Penal, priorizando-se: a) mulheres gestantes, lactantes, mães ou pessoas responsáveis por criança de até doze anos ou por pessoa com deficiência, assim como idosos, indígenas, pessoas com deficiência ou que se enquadrem no grupo de risco; b) pessoas presas em estabelecimentos penais que estejam com ocupação superior à capacidade, que não disponham de equipe de saúde lotada no estabelecimento, que estejam sob ordem de interdição, com medidas cautelares determinadas por órgão do sistema de jurisdição internacional, ou que disponham de instalações que favoreçam a propagação do novo coronavírus; c) prisões preventivas que tenham excedido o prazo de 90 (noventa) dias ou que estejam relacionadas a crimes praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa. 37 38 Art. 5º Ficam suspensos os prazos processuais a contar da publicação desta Resolução, até o dia 30 de abril de 2020. O CNJ suspendeu os prazos judiciais em todo o país. O prazo da Resolução 313/2020 foi prorrogado posteriormente pelo CNJ. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/resolucao-313-19marco-2020-cnj-cnj.pdf. Acessado em: 13/12/2020. A Recomendação 62/2020 foi o primeiro normativo a orientar o Poder Judiciário em todo o Brasil. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3246 . Acessado em: 14/12/2020. 340 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Cabe salientar que os itens “a" e “b” foram objetos de deliberações anteriores à pandemia no Supremo Tribunal Federal, diante do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário nacional, com o objetivo de reduzir a superlotação carcerária. No primeiro caso, foi expedida ordem em Habeas Corpus coletivo nº 143.64139, a fim de converter prisões preventivas em prisões domiciliares de mulheres presas grávidas e mães de crianças com até 12 anos de idade que não tivessem praticado crime com violência ou grave ameaça ou contra seus dependentes. A ordem no Habeas Corpus coletivo foi estendida, ainda, aos pais e responsáveis por crianças e pessoas com deficiência, por meio do também coletivo HC nº 165.70440. Para estabelecimentos penais com ocupação superior à capacidade, o STF se manifestou no Habeas Corpus 143.988/ES41, para determinar que as unidades de execução de medida socioeducativa de internação de adolescentes não ultrapassem a capacidade projetada de internação prevista para cada unidade, com a reavaliação das internações em andamento, em um país em que o óbvio não precisa apenas ser dito, como repetido. Além disso, houve a suspensão do dever de apresentação periódica ao juízo das pessoas em liberdade provisória ou suspensão condicional do processo, pelo prazo de 90 (noventa) dias, mantendo-se as demais obrigações legais. Tais comparecimentos geram grande aglomeração nas Varas de Execução Penal e passaram a ser realizados de forma mais espaçada no tempo, tendo permanecido integralmente suspensos inicialmente, mas retomados de forma progressiva recentemente em calendário por idade divulgado pela Portaria VEPERA nº 08, de 14 de maio de 202142. 39 Andamento e acórdão disponíveis em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5183497 . Acessado em: 14/12/2020. 40 Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?base=acordaos&sinonimo=true&plural=tr ue&page=1&pageSize=10&queryString=165704&sort=_score&sortBy=desc. Acessado em: 25/10/2021. 41 Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur430955/false. Acessado em: 14/12/2020. 42 Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/informacoes/execucoes-penais/vepera/portaria-vepera-08-de14-05-2021 . Acesso de 25 de outubro de 2021. 341 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Por fim, recomendou ainda aquilo que já deveria ser a regra geral: a máxima excepcionalidade de novas ordens de prisão preventiva. A prisão preventiva, por sua natureza, deve ser considerada medida extrema, apenas quando outras menos graves não possam ser aplicadas para acautelar o feito 43. Quatro meses se passaram sem que atos fundamentais ao processo criminal pudessem ser realizados, mas a colocação em liberdade daqueles cautelarmente recolhidos nunca foi cogitada de forma séria e generalizada. Em um país em que 31% dos presos brasileiros ali estão recolhidos sem que haja efetiva condenação 44, essa discussão precisava ter sido travada em uma pandemia de efeitos tão devastadores. Ali, todavia, estamos diante de corpos matáveis, para os quais a justiça parece vestir a sua venda. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), por suas próprias razões traduzidas em metas, buscou retomar suas atividades após cerca de um mês e meio, por meio da Portaria nº 52/202045. Os processos se avolumavam, não é possível impedir o livre acesso à justiça. A videoconferência pareceu ser a grande solução e, junto com ela, a utilização da tecnologia para flexibilizar alguns atos processuais a bem da administração da justiça, permitindo que citações e intimações também sejam feitas por meio eletrônico, com graves riscos aos direitos de acusados em processo penal. Os Tribunais há algum tempo já tentavam implementar as videoconferências, mas ainda não tinham obtido sucesso. Com o processo judicial eletrônico, essa realidade parecia cada vez mais próxima, porém, faltava o elemento motivador. A pandemia foi o acelerador desse processo, mas não sem atropelar direitos e garantias dos indivíduos, usuários do Poder Judiciário. Tudo pela eficiência. 43 CPP. Art. 282. (…) § 6º A prisão preventiva somente será determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar, observado o art. 319 deste Código, e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada. 44 Dados obtidos em pesquisa divulgada em: https://g1.globo.com/monitor-daviolencia/noticia/2020/02/19/em-um-ano-percentual-de-presos-provisorios-cai-no-brasil-esuperlotacao-diminui.ghtml . Acessado em: 13/12/2020. 45 Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/publicacoes/publicacoes-oficiais/portarias-conjuntas-gpr-ecg/2020/portaria-conjunta-52-de-08-05-2020. Acessado em: 13/12/2020. 342 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Vários problemas surgiram com a nova prática. As partes, em grande número, são economicamente hipossuficientes e não tem acesso à internet de qualidade. Com isso, quedas de conexão no meio do ato são frequentes. Assim, audiências que duravam cerca de trinta minutos passaram a durar cerca de duas horas. Além disso, a falta de solenidade do ato gerou situações inusitadas, com advogados realizando audiências deitados em redes ou tomando cerveja e fumando cigarros - essa última situação presenciada por essa que vos escreve em uma audiência criminal numa sexta-feira. O risco de nulidades aumentou exponencialmente. Com a restrição da imagem apenas ao rosto do interlocutor, tornou-se impossível impedir influências externas no ambiente que possam interferir no depoimento da testemunha a ser ouvida. Novamente, presenciei agentes policiais, testemunhas no processo criminal em apuração, se comunicando com outros agentes policiais durante a oitiva judicial, por estarem todos em uma mesma sala dentro da Delegacia de Polícia Civil. Ora, a prova deixa de ser isenta e passa a ser influenciável por toda a sorte de elementos, gerando alto risco de coação ou fraude, totalmente fora da legalidade 46. Além disto, o interrogatório de réus presos começou a ser realizado em uma sala de videoconferência no próprio presídio, impedindo a entrevista pessoal prévia e reservada entre o acusado e o seu defensor, que passou a ser realizada por meio de uma linha telefônica ou por meio do sistema de videoconferência, porém, sem grandes garantias de sigilo, pois a sala reservada é de responsabilidade de própria Vara Criminal, que movimenta seus participantes livremente. Tal “avanço", ainda, 46 CPP. Art. 203. A testemunha fará, sob palavra de honra, a promessa de dizer a verdade do que souber e Ihe for perguntado, devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau, de alguma das partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que souber, explicando sempre as razões de sua ciência ou as circunstâncias pelas quais possa avaliar-se de sua credibilidade. Art. 204. O depoimento será prestado oralmente, não sendo permitido à testemunha trazê-lo por escrito. Art. 210. As testemunhas serão inquiridas cada uma de per si, de modo que umas não saibam nem ouçam os depoimentos das outras, devendo o juiz adverti-las das penas cominadas ao falso testemunho. Parágrafo único. Antes do início da audiência e durante a sua realização, serão reservados espaços separados para a garantia da incomunicabilidade das testemunhas. 343 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS não passou por uma adaptação em todo o sistema de justiça, havendo apenas um defensor público para cada réu preso, em clara violação ao preceito legal 47. Nas audiências de custódia, problemas mais graves se identificaram, pois elas efetivamente constituem importante porta de entrada ao sistema penitenciário, local com baixa higiene e pobre sistema de saúde, potencial foco de alastramento da pandemia, fator que se confirmou nos primeiros meses de Covid-19. A audiência de custódia foi implementada em dezembro de 2015 pelo CNJ, que regulamentou as audiências de custódia, em caráter nacional, por meio da Resolução nº 213. Essa Resolução, a par de se preocupar com o encarceramento em massa, também trouxe o enfoque de prevenção da tortura policial, em atenção ao art. 5.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos e ao art. 2.1 da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. No início da quarentena, o CNJ proibiu a realização das audiências de custódia por videoconferência. Segundo o Ministro Dias Toffoli48, "audiência de custódia por videoconferência não é audiência de custódia e não se equiparará ao padrão de apresentação imediata de um preso a um juiz, em momento consecutivo a sua prisão, estandarte, por sinal, bem definido por esse próprio Conselho Nacional de Justiça quando fez aplicar em todo o país as disposições do Pacto de São José da Costa Rica”. Isso porque, em que pese poder apresentar algum grau de efetividade para evitar o encarceramento em massa, não atende ao segundo objetivo de prevenção de tortura policial. A solução resultou em mais um retrocesso em termos de direitos dos indivíduos: o preso em flagrante no Distrito Federal não mais era apresentado à autoridade judicial. Passou-se a realizar uma análise qualificada do auto de prisão em flagrante, com a participação de todos os atores, menos o protagonista: a pessoa com a liberdade cerceada. Posteriormente, essa análise passou a não mais contar CPP. Art. 185. (…) §5º Em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor; se realizado por videoconferência, fica também garantido o acesso a canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do Fórum, e entre este e o preso. 48 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-10/cnj-proibe-audiencias-custodiavideoconferencia . Acessado em: 13/12/2020. 47 344 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS com a presença física desses atores, retornando o trabalho aos gabinetes, com um esvaziamento temporário de direitos duramente conquistados. Em 24 de novembro, entretanto, o CNJ voltou atrás e passou a admitir a audiência de custódia por meio de videoconferência. Com defesa do Ministro Luiz Fux, presidente do Conselho, não há mais necessidade de audiências de custódia presenciais49. Embora a intenção declarada seja a de atender ao momento excepcional da pandemia, a fim de permitir que algum tipo de audiência de custódia seja realizado, preocupam os efeitos deletérios que essa autorização deixará em uma herança nefasta da pandemia. Atualmente, as audiências de custódia contam com autorização para realização por videoconferência durante a pandemia decorrente de decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6.84150, que analisou a constitucionalidade do artigo 3º-B, §1º51, recém inserido no Código de Processo Penal pela Lei nº 13.964/2019. Até mesmo o Tribunal do Júri, instituição bastante peculiar do sistema de justiça brasileiro, que julga os crimes dolosos contra a vida, infligindo altíssimas penas, também foi colocado em estudo para a transição virtual. O Tribunal do Júri é uma instituição de estatura constitucional, prevista no artigo 5º, referente aos direitos e garantias fundamentais, e representa o exercício da democracia no Poder Judiciário, por meio da decisão soberana dos jurados. É previsto como um direito fundamental, permitindo que o cidadão seja julgado pelos seus pares. O julgamento se fundamenta na plenitude de defesa, que assegura uma defesa menos limitada que a ampla defesa, pois pode se sustentar em fundamentos filosóficos, sociológicos, históricos, sociais ou até mesmo sentimentais, tendo em 49 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-24/cnj-passa-permitir-audiencias-custodiavideoconferencia . Acessado em: 13/12/2020. 50 Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6169033 . Acesso em 25 de out. 2021. 51 Art. 3º-B. (…) § 1º O preso em flagrante ou por força de mandado de prisão provisória será encaminhado à presença do juiz de garantias no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, momento em que se realizará audiência com a presença do Ministério Público e da Defensoria Pública ou de advogado constituído, vedado o emprego de videoconferência. 345 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS vista que o jurado não fundamenta seu voto, adotando-se o sistema da íntima convicção. Por esse motivo, toda e qualquer tese trazida pelo defensor ou pelo próprio acusado deve ser submetida ao Conselho de Sentença formado pelos jurados, sob pena de cerceamento de defesa. O sigilo das votações tem como objetivo preservar esse sistema da íntima convicção, mas também garantir a segurança e a isenção dos jurados de que seus votos individuais não serão violados, admitindo-se os resultados por maioria. As votações são realizadas em “sala secreta”, admitindo-se apenas a presença dos jurados, do Juiz presidente, Ministério Público, Defensor e demais serventuários da justiça. O artigo 466, §1º, do CPP52, prevê a incomunicabilidade dos jurados, do início ao final do julgamento, para que se evite a violação do sigilo ou a influência indevida de um jurado sobre outro. Além disso, impede que manifestem sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do Conselho e multa. Assim, caso um jurado se manifeste durante a sessão de julgamento, após a dispensa dos jurados suplentes, é o caso de dissolução do Conselho de Sentença, com o adiamento do julgamento. O excesso de solenidades desse procedimento não é desmedido: os jurados votam de acordo com sua íntima convicção, o que significa que qualquer elemento pode influenciá-lo positiva ou negativamente. Assim, é fundamental que não lhes seja subtraído nenhum elemento relevante do processo. A proposta de realização de plenários por videoconferência já foi submetida ao CNJ e rejeitada antes da pandemia pelo Ministro Dias Toffoli, então Presidente. No início da quarentena, um novo formato foi proposto, prevendo julgamentos semipresenciais. Ministério Público, Defesa técnica, réus soltos, vítimas e testemunhas poderiam escolher se desejariam participar presencialmente ou por meio virtual. O acusado preso obrigatoriamente participaria em uma sala de dentro do presídio. Os jurados seriam sorteados das suas casas e, após o sorteio, se encaminhariam ao Tribunal, pondo em risco a incomunicabilidade. A publicidade 52 CPP. Art. 466. (…) § 1º O juiz presidente também advertirá os jurados de que, uma vez sorteados, não poderão comunicar-se entre si e com outrem, nem manifestar sua opinião sobre o processo, sob pena de exclusão do Conselho e multa, na forma do § 2o do art. 436 deste Código. 346 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS seria restrita, não ocorrendo de forma presencial, mas tão somente pelos meios virtuais. Esse julgamento, entretanto, não é semelhante a um julgamento perante o juiz togado. Como dito, ali vigora a plenitude de defesa, que permite a utilização de fundamentos jurídicos e metajurídicos. Assim, é pautado pela oralidade, em que os discursos buscam o convencimento de juradas e jurados. Os discursos são o elemento central das Sessões Plenárias e ficariam esvaziados caso Ministério Público ou Defesa tivessem que permanecer em suas residências, falando para os jurados por meio de uma projeção em tela, pois não apenas a linguagem verbal influencia no resultado do julgamento. A ausência de apenas uma das partes ainda tem o efeito de violar a paridade de armas, elemento central do processo penal a ser assegurado justamente pelo Poder Judiciário. Além dos discursos, a leitura da prova a ser realizada e da própria pessoa do acusado pelos jurados ficaria prejudicada. A linguagem corporal de uma testemunha que falta com a verdade ficaria oculta. Por outro lado, o estigma de presidiário do réu preso ficaria escancarado, com a sua imagem transmitida de dentro do presídio, com vestes típicas e altamente escoltado. Em 26 de junho, auge da pandemia, o TJDFT editou a Portaria nº 72/202053, buscando a retomada gradual dos trabalhos presenciais, autorizando a realização de audiências presenciais de processos de réus presos nos juízos de competência Criminal e Tribunais do Júri, bem como aquelas envolvendo adolescentes internados e de justificação em caso de descumprimento de medida socioeducativa. Essa medida decorre da regulamentação expedida pelo CNJ, por meio das Resoluções nº 322/202054, 329/202055 e 330/202056, estabelecendo regras mínimas para a retomada dos serviços jurisdicionais presenciais no âmbito do Poder Judiciário nacional. 53 Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/publicacoes/publicacoes-oficiais/portarias-conjuntas-gpr-ecg/2020/portaria-conjunta-72-de-26-06-2020. Acessado em: 13/12/2020. 54 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3333 Acessado em: 13/12/2020. 55 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3400 Acessado em: 13/12/2020. 56 Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3435 Acessado em: 13/12/2020. 347 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Embora ausente regulamentação específica do TJDFT, os Plenários de Tribunal do Júri estão sendo realizados quase na sua integralidade presencialmente, com maior atenção às regras sanitárias e de distanciamento pessoal para preservação dos presentes, com restrição de publicidade. Apenas se fazem presentes as partes essenciais do julgamento, especialmente o acusado. A proposta referente à realização de Plenários do Tribunal do Júri por videoconferência submetida ao CNJ foi retirada de pauta 57, porém, algumas Unidades da Federação têm realizado sem regulamentação 58 com fundamento na Resolução nº 329/2020, inclusive com a presença virtual dos acusados. A Portaria Conjunta 116/202059, de 3 de novembro, também trouxe regramento para a retomada das audiências de custódia no âmbito do Distrito Federal, com a regular apresentação do preso, mas houve nova suspensão com o incremento de casos decorrentes de novas ondas da pandemia do novo coronavírus. O panorama atual é de retomada gradual à normalidade da atividade judicial e da prestação de serviços à comunidade pela Defensoria Pública, porém, algumas perdas de direitos serão irreparáveis. As prisões cautelares que se estenderam excessivamente em decorrência da pandemia não serão indenizadas. Da mesma forma, as mortes dos internos que poderiam ter sido evitadas não serão revertidas. Em matéria processual penal, as audiências por videoconferência são uma realidade irrevogável. Os Tribunais dificilmente retornarão ao modelo presencial de audiências, o que traz enorme prejuízo ao contraditório e à ampla defesa. A pandemia evidenciou a fragilidade do nosso sistema de garantias constitucionais. Quando tensionadas com qualquer outro direito fundamental, as garantias processuais cedem. E quando elas cedem, as desigualdades ficam ainda 57 58 59 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-23/adocao-teleconferencia-tribunal-juri-retiradapauta-cnj . Acessado em: 13/12/2020. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/tribunal-do-juri-inova-para-seguir-julgando-crimes-dolososcontra-a-vida-em-meio-a-pandemia/ Acesso de 25/10/2021. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/relacoes-institucionais/arquivos/portaria-conjunta116-covid-nac.pdf. Acessado em: 13/12/2020. 348 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS mais claras. E é sempre o mesmo grupo que absorve as consequências: o subalterno e periférico. 4 GESTÃO DA PANDEMIA NO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO DISTRITO FEDERAL60 Segundo dados do INFOPEN de dezembro de 2019, elaborado Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça e Segurança Pública (DEPEN/MJSP), o Distrito Federal possuía um total de 16.636 pessoas privadas de liberdade, sendo que 17,4% são presos provisórios, população essa ainda exposta e vulnerabilizada diante ao contágio pela Covid-19. Até às 17h do dia 31 de outubro de 2020, o Boletim Epidemiológico nº 243 da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal (SES/DF)61 informou que a população privada de liberdade representava o número de 1.868 contaminados pela Covid-19 e 4 mortes em decorrência da doença. Se comparado com o número de incidência por 100 mil habitantes, chega-se ao cômputo de 13.913,30. A cidade de Ceilândia, por sua vez, possuía 26.265 casos e liderava a lista de locais com mais contaminados. Ainda assim, a incidência por 100 mil habitantes chegava a 5.917,89 na cidade. Há 8 meses, em 7 de abril de 2020, a Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (VEP/TJDFT) publicou uma nota esclarecendo que não havia casos de Covid-19 nos detentos no sistema prisional do DF (TJDFT, 2020)62. Aliás, a VEP reforça o discurso de que está “tudo sob controle” nos presídios do DF, uma vez que em 1º de junho de 2020 era o responsável por 77,8% de todos os testes de Coronavírus em penitenciárias do Brasil (TJDFT, 2020)63. Além disso, em reunião da Comissão de Direitos Humanos e 60 61 62 63 Parte escrita a partir do levantamento de dados e informações oficiais realizado por Welliton Caixeta Maciel e Valéria Vânia Costa da Silva. GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. Boletim Epidemiológico nº 243. Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Diretoria de Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância em Saúde (DIVEP/SVS). Brasília. 2020. Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wpconteudo/uploads/2020/03/Boletim-COVID_DF_243.pdf>. Acessado em: 31/10/2020. TJDFT. COVID-19: VEP/DF esclarece que não há presos contaminados no sistema prisional do DF. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/abril/covid-19-nao-ha-presoscontaminados-no-sistema-prisional-do-df> Acessado em: 14/11/2020. TJDFT. COVID-19: Juíza da VEP/DF inspeciona penitenciárias do Complexo da Papuda. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em: < 349 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Minorias da Câmara dos Deputados (CDHM) 64, o representante do CNJ elogiou o trabalho da VEP e relatou que o DF estaria sendo “vítima de sua própria eficiência”. Mesmo que os números de outras Unidades da Federação sejam subnotificados, isso não afasta o enorme número de contaminados sob tutela do Estado no DF. Considerando o problema social e jurídico acima colocado, bem como a questão da transparência (ou não) na produção e publicidade das informações e da accountability, trazemos um breve panorama de como foi conduzida a gestão da epidemia de Covid-19 nos presídios do DF, da deflagração do primeiro caso no complexo prisional do DF até outubro de 2020 (recorte temporal escolhido para o levantamento do material, quando houve maior mobilização interinstitucional) e, mais recentemente, quase um ano depois, com informações pontuais de episódios específicos e desdobramentos da situação da Covid-19 nos presídios do DF. Neste sentido, analisamos as medidas tomadas pelas diversas instituições públicas envolvidas na questão penitenciária local, sobretudo a atuação da VEP/TJDFT, diante desta situação de emergência sanitária. Para tanto, foi realizada pesquisa exploratória em fontes primárias, tais como: documentos oficiais, legislação, boletins informativos e epidemiológicos, bases de dados e painéis eletrônicos sobre a situação da pandemia nos presídios, notas técnicas e decisões judiciais e outras fontes oficiais, principalmente sites do/a: Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Governo do Distrito Federal (SEAPE/GDF), DEPEN, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT); bem como pesquisa informacional sobre o tema nos noticiários locais, tais como: G1, Correio Braziliense, Portal Metrópoles e Jornal de Brasília. https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/junho/juiza-da-vep-df-inspecionapenitenciarias-e-conversa-com-detentos> Acessado em: 12/10/2020. 64 CDHM. Reunião sobre o Covid-19 no Sistema Penitenciário do Distrito Federal. Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://web.facebook.com/cdhmcamara/videos/1206893239703976/?_rdc=1&_rdr> Acessado em: 14/11/2020. 350 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Como medida de contenção da doença, por intermédio da ordem de serviço nº 5 de 202065, as visitas foram suspensas em todas as unidades prisionais do DF, quais sejam, Centro de Detenção Provisória (CDP), Centro de Internamento e Reeducação (CIR), Penitenciária do Distrito Federal I (PDF I), Penitenciária do Distrito Federal II (PDF II) e Penitenciária Feminina do Distrito Federal (PFDF); pelo então subsecretário do Sistema Penitenciário, Adval Cardoso de Matos. A princípio, os encontros seriam suspensos somente entre os dias 12 de março de 2020 e 22 de março de 2020. Entretanto, até o início de outubro de 2020, as visitas ainda se encontravam proibidas. No período de suspensão, as visitas teoricamente ocorreriam de forma virtual. Em 19 de junho de 2020, supostamente foi dado início ao projeto de encontros da PFDF. Sete detentas puderam utilizar o sistema para se comunicar com a família por até três minutos. A VEP/TJDFT comunicou que outras mulheres privadas de liberdade iriam ser beneficiadas e que a ideia seria o encontro virtual ocorrer uma vez por mês. Já no complexo da Papuda, supostamente foi realizado um mutirão de visitas virtuais para celebrar o dia dos pais. A iniciativa começou a ocorrer em 10 de agosto de 2020 e se estendeu pelo período de duas semanas. Diante da demanda, caso a SEAPE considerasse necessário, poderia reduzir o tempo das visitas entre um e três minutos66. A Vara de Execuções Penais em Regime Aberto (VEPERA/TJDFT), por sua vez, dispensou os apenados de se apresentarem desde o início da pandemia no DF, devendo se apresentar, a priori, somente em dezembro de 2020. Trabalho externo, saídas temporárias e saídas em feriados ou datas festivas também estavam 65 SSP/DF. Ordem de Serviço nº 05, de 12 de março de 2020. Subsecretaria do Sistema Penitenciário. Brasília. 2020. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/arquivos/sei_00050_00012719_2020_69.pdf> Acesso em: 13 out. 2020. 66 TJDFT. Projeto de visitas virtuais de presos é implementado na Penitenciária Feminina do DF. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/junho/projeto-de-visitas-virtuais-eimplementado-na-penitenciaria-feminina> Acesso em: 13 out. 2020. ______. Dia dos Pais: VEP autoriza mutirão de encontros virtuais entre pais e filhos nos presídios do DF. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/agosto/vep-pais-detentos-vao-recebervisitas-virtuais-de-filhos-e-familiares-a-partir-de-hoje> Acessado em: 14/11/2020. 351 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS suspensos. Somente em 10 de setembro de 2020, a VEP/DF resolveu autorizar o retorno gradual da normalidade. A primeira morte no sistema penitenciário do DF ocorreu em 17 de maio de 2020. O policial penal, Francisco Pires de Souza, era lotado na PDF I, possuía 45 anos, não tinha histórico de outras doenças e estava internado no Hospital Regional da Asa Norte (HRAN). No dia de registro da morte, havia 495 detentos e 110 policiais penais doentes pelo novo Coronavírus; sendo que 5 agentes estavam internados67. Já a primeira morte de detento ocorreu em 19 de maio de 2020. Tratava-se de Álvaro Henrique Nascimento de Sousa de 32 anos. Ele estava internado desde o dia 3 de maio de 2020 também no HRAN e lotado na PDF I. Em relação às comorbidades de Álvaro há divergências nas informações. A SESIPE informou que o homem era portador de tuberculose e Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), a VEP, entretanto divulgou que não havia doenças pré-existentes em seu prontuário. A família de Álvaro, por sua vez, informou que teve conhecimento em relação ao HIV, somente após o internamento68. Nas duas ocasiões, a VEP se manifestou. No caso do policial penal, a VEP/DF relatou que realiza “um trabalho incansável e desafiante”; no caso do detento, a Vara informou que “não foi registrada nenhuma doença pré-existente em nenhuma das vezes em que foi preso, tampouco foi por ele declinada” 69. 67 GALVÃO, Walder. Papuda registra primeira morte por coronavírus; vítima é um policial penal. Correio Braziliense. Brasília. 2020. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/05/17/interna_cidadesdf,855784/pap uda-registra-primeira-morte-por-coronavirus-vitima-e-um-policial.shtml> Acessado em: 21/09/2020. 68 G1 DF. Detento de 32 anos é 1ª morte por coronavírus no sistema prisional do DF. G1 DF. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2020/05/19/detento-de32-anos-e-1a-morte-por-coronavirus-no-sistema-prisional-do-df.ghtml> Acessado em: 21/09/2020. FERREIRA, Afonso. 'Última vez que o vi foi ano passado', diz irmã de 1º detento morto pela Covid-19 na Papuda. G1 DF. Distrito Federal. 2020. Disponível: < https://g1.globo.com/df/distritofederal/noticia/2020/05/20/ultima-vez-que-o-vi-foi-ano-passado-diz-irma-de-1o-detento-morto-pelacovid-19-na-papuda.ghtml> Acessado em: 16/12/2020. 69 TJDFT. COVID-19: VEP/DF divulga nota pelo falecimento de policial penal. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/maio/covid-19-vep-df-divulga-notapelo-falecimento-de-policial-penal> Acessado em: 21/09/2020. ______. VEP/DF divulga nota pelo falecimento de detento contaminado pelo COVID-19. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/maio/vep-df-divulga-nota-pelofalecimento-de-detento-contaminado-pelo-covid-19> Acessado em: 21/09/2020. 352 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Em todo o DF, o governo informa que realizou o total de 541.583 testes até 19 de setembro de 2020. Sendo 432.867 de testes rápidos e 108.716 do tipo PCR, conforme divulgado no Portal Covid. Nos relatórios 8 e 9 “Testagem para SARS COV-2 no DF”70, o GDF informa que nas unidades prisionais, até 21 de setembro de 2020, foram realizados 11.483 testes. Sendo que na penitenciária feminina não existem casos positivos. Já no complexo da Papuda, entre internos, agentes e outros trabalhadores, realizou-se 8.183 testes. Comparando os relatórios de testagem 8 e 9, o que se observa é que no intervalo de tempo de 13 dias não houve teste em massa nas unidades prisionais (08/09/20 - 21/09/20). De acordo com o relatório da Diretoria de Inteligência Penitenciária (DIP), até 26 de junho de 2020, 257 policiais penais testaram positivo para o novo Coronavírus (DIP, 2020)71. O Boletim Epidemiológico nº 223 da SES/DF72 informou que, até às 18h do dia 11 de outubro de 2020, a população privada de liberdade representava o número de 1.844 contaminados por Covid-19. Conforme pontuamos acima, segundo o DEPEN, a população carcerária do DF tem cerca de 16 mil pessoas. Da análise do Boletim Epidemiológico nº 223, observa-se que a Região Administrativa (RA) da Candangolândia possuía 1.162 casos e incidência de 7.112,25 por 100 mil habitantes. Tal comparação faz-se necessária, uma vez que a população de Candangolândia é de um pouco mais de 16 mil indivíduos, de acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios Candangolândia 2015 (PDAD), realizada pela Companhia de Planejamento do 70 GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. RELATÓRIO 8 - TESTAGEM PARA SARS COV-2 NO DF. Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <http://www.coronavirus.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/09/Relato%CC%81rio-Testagem-8.pdf> Acessado em: 18/11/2020. ______. RELATÓRIO 9 - TESTAGEM PARA SARS COV-2 NO DF. Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <http://www.coronavirus.df.gov.br/wpcontent/uploads/2020/09/Relato%CC%81rio-Testagem-9-.pdf> Acessado em: 18/11/2020. 71 DIP. Painel de casos de COVID-19 no SPDF – 25.06.2020. Secretaria de Estado de Administração Penitenciária. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wpconteudo/uploads/2020/02/Relatorio_42512836_Painel_de_COVID_19_25.06.2020.pdf> Acessado em: 21/09/2020. 72 GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO Nº 223. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Diretoria de Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância em Saúde (DIVEP/SVS). Brasília. 2020. Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wpconteudo/uploads/2020/03/Boletim-COVID_DF223.pdf>. Acessado em: 31/10/2020. 353 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Distrito Federal (Codeplan)73, logo, muito aproximada da população carcerária. Ainda na análise do Boletim Epidemiológico nº 223, a RA com o número de infectados próximo da população privada de liberdade é o Lago Norte, com 1.847 e incidência por 100 mil habitantes de 4.974,82. Segundo o PDAD Lago Norte 2015/2016, a população estimada para 2016 era de 37.455 habitantes 74. Em abril de 2020, a VEP publicou uma nota esclarecendo que não havia casos de detentos infectados pela Covid-19 no sistema prisional do DF. Aliás, a VEP reforça o discurso de que está tudo sob controle nos presídios do DF, uma vez que em 1º de junho de 2020 era a responsável por 77,8% de todos os testes de Coronavírus em penitenciárias do Brasil. Adicionalmente, vê-se que “Considerando que a densidade demográfica dentro do Complexo da Papuda é três vezes maior que a dos demais espaços territoriais do DF no que se refere ao número de habitantes por Km2, a VEP/DF acredita que as medidas que vêm sendo adotadas têm sido acertadas”75. Além da questão da transparência de dados no sistema carcerário, em 26 de maio de 2020, o Governador do DF, Ibaneis Rocha, pelo Decreto nº 40.833 criou a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (SEAPE). Segundo o então secretário Adval Cardoso, a SEAPE: “É um sonho tanto dos servidores como do próprio Ministério Público e da Vara de Execuções Penais. A partir de agora, temos independência administrativa e orçamentária”76. Ocorre que a administração penitenciária passou por diversas mudanças em meio ao caos instalado pela Covid- 73 CODEPLAN. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios Candangolândia 2015 (PDAD). Secretaria de Estado de Planejamento, Orçamento e Gestão - SEPLAG, Distrito Federal. 2015. Disponível em: <http://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/PDAD-Candangol%C3%A2ndia-1.pdf> Acessado em: 12/10/2020. 74 CODEPLAN. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios Lago Norte 2015/2016 (PDAD). Secretaria de Estado de Planejamento, Orçamento e Gestão - SEPLAG, Distrito Federal. 2016. Disponível em: <http://www.codeplan.df.gov.br/wp-content/uploads/2018/02/PDAD-Lago-Norte-1.pdf> Acessado em: 12/10/2020. 75 TJDFT. COVID-19: Juíza da VEP/DF inspeciona penitenciárias do Complexo da Papuda. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/junho/juiza-da-vep-df-inspecionapenitenciarias-e-conversa-com-detentos> Acessado em: 12/10/2020. 76 MOURA, Renata. Sistema Penitenciário do DF ganha independência. Agência Brasília. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2020/05/27/sistemapenitenciario-do-df-ganha-independencia/> Acessado em: 14/09/2020. 354 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 19 e, em 9 de setembro de 2020, o Governador do DF exonerou 10 integrantes da SEAPE77. Atualizando as fontes e respectivas análises referentes aos últimos meses, o painel do DEPEN sobre a Covid-19 nos presídios informa que, até o fim de outubro de 2020, a população carcerária do DF era de 15.090 presos. Desses, apenas 40 pessoas estão no presídio federal. Segundo o GDF, até 31 de outubro de 2020, 1.868 presos foram contaminados pela Covid-19, sendo que na PFDF não houve casos da doença. A informação acerca dos dados é divulgada pela Secretaria de Saúde do DF por intermédio de boletins epidemiológicos. As únicas informações passadas sobre a população privada de liberdade são o número de casos positivos, percentagem, número por 100 mil habitantes e os óbitos em uma linha denominada “população privada de liberdade”. Os boletins informam apenas o número de casos, mas não há uma divisão por cada unidade prisional. Até 31 de outubro, o GDF emitiu 243 boletins epidemiológicos. Os boletins começaram em 26 de fevereiro de 2020, entretanto, a população privada de liberdade apareceu de forma expressa somente em 20 de abril de 2020 computando 85 casos. Nos dias 18 e 19 de abril de 2020, os casos foram contabilizados na RA de São Sebastião. No dia 18 de abril de 2020, foram notificados 60 casos da doença no Complexo da Papuda (BOLETINS EPIDEMIOLÓGICOS Nº 47-49)78. Antes desse período, a Agência Brasília, com informações da Subsecretaria do Sistema Penitenciário do Distrito Federal (SESIPE/DF), informava acerca da situação dos 77 FERREIRA, Afonso. Ibaneis exonera secretário e integrantes da cúpula do sistema penitenciário no DF. G1 DF. Brasília. 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/df/distritofederal/noticia/2020/09/09/ibaneis-exonera-secretario-e-integrantes-da-cupula-do-sistemapenitenciario-no-df.ghtml> Acessado em: 15/09/2020. 78 GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO Nº 47. Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Diretoria de Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância em Saúde (DIVEP/SVS). Brasília. 2020. Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wpconteudo/uploads/2020/03/Boletim-COVID_DF-18.04.2020.pdf>. Acessado em: 31/10/2020. ______. BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO Nº 48. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Diretoria de Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância em Saúde (DIVEP/SVS). Brasília. 2020. Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2020/04/Boletim-COVID_DF19.04.2020.pdf>. Acessado em: 31/10/2020. ______. BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO Nº 49. Secretaria de Saúde do Distrito Federal. Diretoria de Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância em Saúde (DIVEP/SVS). Brasília. 2020.. Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2020/03/Boletim-COVID_DF20.04.2020_prisional-separado.pdf>. Acessado em: 31/10/2020. 355 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS presídios no DF. Em 17 de abril de 2020, 41 pessoas haviam se infectado com a doença79. Ressalte-se que os dados mudam bastante e a secretaria de saúde, nos boletins epidemiológicos, informa apenas que “Dados sujeitos à alteração após investigação epidemiológica” e não argumenta o que ocorreu com os casos que sumiram das estatísticas. O IBGE estima que a população do DF em 2020 seja de 3.055.149. Até 31 de outubro de 2020, o DF registrou 186.994 casos confirmados de residentes na capital federal80. Assim, tem-se o percentual de aproximadamente 6,12% da população infectada. Em 31 de outubro de 2020, os casos confirmados de Covid-19 dos detentos do DF eram de 1.868, isso equivale a aproximadamente 12,37% da população privada de liberdade. Ou seja, mais que o dobro do percentual em relação à população geral do DF. O TJDFT criou em seu site uma aba intitulada “ENFRENTAMENTO À COVID-19 NO SISTEMA PENITENCIÁRIO”. O espaço é destinado para divulgar as ações do Tribunal acerca do tema 81. Diversas ações foram realizadas nesse período, entre elas a instituição, em 27 de abril de 2020, pela Portaria Conjunta 28 do TJDFT, de Comissão Provisória para acompanhamento situacional da doença no sistema prisional do DF. A comissão é composta por, conforme seu art. 2º, I – Juiz Assistente da Presidência do TJDFT, que presidirá a comissão; II – Juiz Assistente da Corregedoria de Justiça do TJDFT, que substituirá o presidente nos impedimentos; III – Juiz de Direito Titular da Vara de Execução Penal do Distrito Federal; IV – Representante do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios; V – Representante da Defensoria Pública do Distrito Federal; VI – Representante da Ordem dos Advogados do Brasil; VII – Representante da SESIPE AGÊNCIA BRASÍLIA. Balanço sobre a Covid-19 no sistema penitenciário – sexta-feira (17/4). Governo do Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://agenciabrasilia.df.gov.br/2020/04/17/balanco-sobre-a-covid-19-no-sistema-penitenciariosexta-feira-17-4/> Acessado em: 07/11/2020. 80 GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO Nº 243. Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Diretoria de Vigilância Epidemiológica da Subsecretaria de Vigilância em Saúde (DIVEP/SVS). Brasília. 2020. Disponível em: <http://www.saude.df.gov.br/wpconteudo/uploads/2020/03/Boletim-COVID_DF_243.pdf>. Acessado em: 31/10/2020 81 TJDFT. Enfrentamento à COVID-19 no sistema prisional do DF. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2020/maio/coronavirus-comissao-do-tjdft-iraacompanhar-situacao-nas-penitenciarias> Acessado em: 14/11/2020. 79 356 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS e VIII – Representante da PCDF. Nesse ponto, salienta-se que a comissão é composta somente por juristas e/ou iniciados no Direito. A Secretaria de Estado de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF) publicou em sua página 44 balanços diários acerca da Covid-19 no sistema carcerário, com início em 1 de abril de 2020 e fim em 17 de junho de 2020. No último documento, informam que desde meados de maio, os números são divulgados pela SES/DF e algumas ações mais recentes como por exemplo, todos os servidores e pessoas privadas de liberdade da PFDF foram testados. A SEAPE, por sua vez, informa que para ter acesso ao exame de Covid-19 de algum detento é necessário autorização judicial e preenchimento de requerimento com os dados 82. Tanto SSP/DF, quanto SEAPE não possuem uma aba específica nos sites acerca das informações sobre a doença. Por mais que o TJDFT tenha demonstrado diversas ações, o que se observa é que o número de contaminados nos presídios do DF aumentou. A comunicação de até 3 minutos não é suficiente para sanar a falta de comunicabilidade extramuros com o intramuros. Nota-se que com o discurso de segurança pública, soltura indiscriminada e preconceito com pessoas privadas de liberdade, a pandemia nos presídios do DF está sendo gerida com políticas de segurança pública, e não por políticas penitenciárias. O encarceramento torna-se mais importante do que admitir que o sistema não tem condições, pessoas e instrumentos suficientes para cumprir as medidas de segurança de forma efetiva e tratar dos detentos caso venham a contrair a doença dentro dos presídios. A Comissão provisória instituída pelo TJDFT é um exemplo disso, uma vez que há apenas operadores do direito e representantes da segurança pública, não há um representante dos familiares para trazer à tona questões de quem necessita de informações e que realmente vivem aquele ambiente e ações que funcionem na prática. Não é necessária apenas uma ação, o essencial é a transversalidade de políticas públicas com temas que afetam a questão prisional, tais como, por exemplo, 82 SEAPE. Requisição de resultado de exame de COVID-19 de pessoa presa. Secretaria de Estado de Administração Penitenciária. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <http://seape.df.gov.br/requisicaode-exame-de-covid-19-de-pessoa-presa/> Acessado em: 09/11/2020. 357 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS saúde pública, seguranças, para enfrentamento da pandemia dentro do sistema prisional do DF. Outro exemplo de ação que não está baseada na realidade dos presídios do DF é o “Plano de Ação Emergencial em Saúde Pública no Sistema Prisional - Surtos e Múltiplas Vítimas” elaborado pela Gerência de Saúde do Sistema Prisional (GESSP) para ações em conjunto com a Diretoria Regional de Atenção Primária à Saúde (DIRAPS), Gerência de Saúde (GESAU/SESIPE), Núcleo de Assistência à Saúde/Gerência de Assistência Social da Penitenciária (NUS/GEAIT/SESIPE). Logo de início é possível notar que, na prática, o plano não é realista, uma vez que há a necessidade de uma equipe de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem para atuar em casos de surto e em casos de eventuais várias vítimas, além da necessidade de reservar um lugar espaçoso para fazer o atendimento 83. Entretanto, como podemos resgatar da fala da Gerente de Saúde Prisional na reunião da CDHM, o sistema contava apenas com metade dos médicos, seja por doença, seja porque eram do grupo de risco, entre outros problemas. Não é factível afirmar que uma equipe com poucos médicos e provavelmente com poucos outros profissionais da saúde poderá cuidar de uma população prisional de mais de 15 mil pessoas, além do mais é complexo demandar por espaço em um local com déficit de vagas. As decisões são tomadas pelos operadores de direito a partir de dados fornecidos por profissionais da saúde, porém o que se observa é que no período de um mês, o número de testes nos relatórios do GDF nada se modificou quando comparados os relatórios 9 e 1084, o que reflete no aumento diferente de casos nos meses de setembro e outubro. Com o aumento no número de casos no Complexo da Papuda, foi informado que o GDF construiria um hospital de campanha no local. Inicialmente, a 83 84 TJDFT. PLANO DE AÇÃO EMERGENCIAL EM SAÚDE PÚBLICA NO SISTEMA PRISIONAL SURTOS E MÚLTIPLAS VÍTIMAS. Plano de Contingência. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/arquivos/plano-de-acao-emergencial-emsaude-publica-nos-presidios-do-df.pdf> Acessado em: 19/11/2020. GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL. RELATÓRIO 10 - TESTAGEM PARA SARS COV-2 NO DF. Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <http://www.coronavirus.df.gov.br/wp-content/uploads/2020/11/Relato%CC%81rio-Testagem10.pdf>. Acessado em: 18/11/2020. 358 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS informação era de que a entrega aconteceria em dez dias. Posteriormente, em abril, o Portal Metrópoles informou que o intuito da SES/DF era a entrega em 1 mês, logo, aconteceria entre meados e fim de maio de 202085. Já em junho de 2020, o Correio Braziliense noticiou, a partir de informações da SEAP, que o hospital poderia ficar pronto na semana do dia 15 de junho de 202086. Fato é que o hospital de campanha previsto para o início da pandemia, até meados do mês de setembro de 2020, não havia sido utilizado e já se falava em uso para uma possível segunda onda de contaminação87. Informações mais recentes, relativas à 2021, evidenciam que medidas foram tomadas na tentativa de gerir a epidemia de Covid-19 nos presídios do DF, porém a situação da propagação do vírus não foi completa e devidamente contida 88. Em face da intensificação das medidas de segurança e os protocolos preventivos, ainda em outubro de 2020, as autoridades locais noticiaram um suposto controle da situação, considerando a baixa no número de internações 89. Contudo, pouco tempo depois, já no começo de 2021, mais casos de infecção e óbitos foram noticiados. Em abril, treze meses após confirmação do primeiro caso de coronavírus no DF, o sistema penitenciário local somava 2126 infectados, sendo que 4 detentos haviam morrido por causa da doença. Além destes, dois policiais penais, um agente de custódia e um 85 CARDIM, Nathália. GDF prevê um mês para entrega de Hospital de Campanha na Papuda. Metrópoles. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.metropoles.com/distrito-federal/gdf-preve-ummes-para-entrega-de-hospital-de-campanha-na-papuda> Acessado em: 20/11/2020. 86 DIOGO, Darcianne. Hospital de campanha na Papuda deve ser entregue nesta semana. Correio Braziliense. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/06/15/interna_cidadesdf,863734/hos pital-de-campanha-na-papuda-deve-ser-entregue-nesta-semana.shtml> Acessado em: 20/11/2020. 87 CHARLSON, Freddy. Hospital de Campanha da Papuda recebe visita de gestores da Saúde. Agência Brasília. Distrito Federal. 2020. Disponível em: <https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2020/11/14/hospital-de-campanha-da-papuda-recebe-visita-degestores-da-saude/> Acesso em: 20 nov. 2020. 88 DUTRA, Francisco. Faltam máscaras e itens de proteção contra a Covid em presídios do DF, 2021. https://www.metropoles.com/distrito-federal/faltam-mascaras-e-itens-de-protecao-contra-a-covid-empresidios-do-df>Acesso em: 24 out. 2021. 89 OLIVEIRA, Ana Paula. Covid-19 controlada nos presídios do DF. 2020. Disponível em: https://www.politicadistrital.com.br/2020/10/06/covid-19-controlada-nos-presidios-do-df/ Acesso em: 24 out. 2021. 359 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS enfermeiro que atuava no complexo carcerário também morreram de Covid-19, sendo informações da SEAPE/GDF90. Em julho de 2021, com a disponibilidade de vacinas, 14.954 pessoas privadas de liberdade e cerca de 600 policiais penais puderam receber a dose única da vacina Janssen, disponibilizada pela Secretaria de Saúde, já na sétima e última fase da vacinação. O governo local, na tentativa de transformar o fato em uma pauta positiva politicamente, noticiou que o DF era a primeira Unidade da Federação a concluir a vacinação no sistema prisional, garantindo a imunização massiva de custodiados e profissionais em todas as unidades, o que foi reconhecido, inclusive pelo DEPEN/MJSP. Todavia, como se percebe pelo Plano Nacional e Distrital de Vacinação, a inclusão das pessoas privadas de liberdade na campanha de vacinação se deu tardiamente, devido à disputa para inclusão da população prioritária (com comorbidades, por exemplo) e a quantidade de imunizantes disponíveis naquele momento, bem como pela falta de priorização. A vacinação no sistema prisional deu-se devido também à necessidade de se atender aos interesses da categoria profissional dos policiais penais e, consequentemente, a população carcerária.91 Ressalte-se que a juíza titular da VEP/TJDFT, Dra. Leila Cury, foi informada do cronograma de vacinação contra a Covid-19 dos custodiados nas unidades penais do DF, no que acompanhou presencialmente a abertura do mutirão promovido pela Comissão de Execução de Atendimento Móvel da Defensoria Pública do DF92. Depois da vacinação em massa, as atividades de visitação foram sendo gradativamente retomadas nas unidades prisionais do DF. Todavia, percebemos que as medidas e os protocolos sanitários adotados não têm sido capazes de conter a propagação do vírus no sistema penitenciário local; a exemplo do que aconteceu mais recentemente, em setembro de 2021, na Penitenciária Feminina (Colmeia), 90 91 92 GALVÃO, Walder. Presídios do DF registram 2.126 casos e quatro mortes de detentos por Covid-19. 2021. <https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2021/04/13/presidios-do-df-registram-2126casos-e-quatro-mortes-de-detentos-por-covid-19.ghtml> Acesso em: 24 out. 2021. CHARLSON, Freddy. DF é o 1º do país a concluir a vacinação no sistema prisional. 2021. https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2021/07/25/df-e-o-1o-do-pais-a-concluir-a-vacinacao-nosistema-prisional/ Acesso em: 24 out. 2021. TJDFT. Covid-19: juíza da VEP/DF realiza inspeção na Papuda e acompanha vacinação. 2021. <https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2021/julho/covid-19-juiza-da-vep-df-realizainspecao-no-complexo-da-papuda-e-acompanha-vacinacao> Acesso em: 24 out. 2021. 360 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS onde foram confirmados diversos casos de contaminação das internas, uma espécie de surto (não confirmado oficialmente, por razões óbvias), obrigando a VEP/TJDFT a suspender uma série de atividades, entre elas a visitação 93. Segundo informações recentes, de 21 de setembro de 2021, desde o início da pandemia, o complexo penitenciário do DF (todas as unidades) registrou 2209 casos de infecção e sete mortes de internos por Covid-1994. 5 CONSIDERAÇÕES (IN)CONCLUSIVAS CONTEXTO AINDA PANDÊMICO EM UM Diante do atual contexto de pandemia de Covid-19, as instituições do sistema de justiça criminal do DF responsáveis pela investigação, persecução e execução penal se viram profundamente afetadas pelas consequências da disseminação da doença em suas respectivas esferas e âmbitos. Ressalte-se, todavia, que focamos em nossa análise apenas PCDF, DPDF e TJDFT, haja vista o âmbito de atuação e/ou interesse de pesquisa atual dos/as autores/as, o que não significa que igual importância deve ser dada às demais instituições envolvidas no tema, como: PMDF, MPDFT etc.; além das iniciativas que têm partido da sociedade civil organizada, associações e entidades. A partir das diversas fontes de informações e dos dados oficiais aqui analisados, percebemos a existência de forte resistência entre os operadores do Direito e gestores públicos quanto ao atendimento às demandas dos presos e de seus familiares, bem como a persistência de um discurso punitivista que se utiliza do argumento da manutenção da prisão por conta da pandemia como evidência de uma política criminal e de segurança pública, e não em política de gestão penitenciária, quando, na verdade, medidas de desencarceramento em meio à pandemia deveriam ser vistas também como política de saúde pública. 93 94 MANSUR, Ana Isabel. Penitenciária Feminina do DF tem mais 28 casos de covid-19; total sobe para 48. 2021. <https://www.correiobraziliense.com.br/cidades-df/2021/09/4950860-penitenciaria-femininado-df-tem-mais-28-casos-de-covid-19-total-sobe-para-48.html> Acesso em: 24 out. 2021. NANINI, Lucas. Após Covid, visitas na Penitenciária Feminina do DF são suspensas. 2021. <https://noticias.r7.com/brasilia/apos-covid-visitas-na-penitenciaria-feminina-do-df-sao-suspensas16092021> Acesso em: 24 out. 2021. G1 DF e TV Globo. Com surto de Covid-19, Penitenciária Feminina do DF registra mais 36 presas infectadas em menos de uma semana. 2021. <https://g1.globo.com/df/distritofederal/noticia/2021/09/22/com-surto-de-covid-19-penitenciaria-feminina-registra-mais-36-presasinfectadas-em-menos-de-uma-semana.ghtml> Acesso em: 26 out. 2021. 361 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Aliás, observamos a persistência entre as instituições envolvidas de um discurso de pseudo normalidade da situação, uma espécie de acordo ou alinhamento interinstitucional no sentido de que “está tudo sob controle” nos presídios do DF, quando, na realidade, até às 17h, do dia 31 de outubro de 2020, havia 1.868 contaminados pela Covid-19 e 4 mortes em decorrência da doença nos presídios. Todas essas evidências nos permitem concluir que a gestão por parte das principais instituições envolvidas deve ser questionada, haja vista medidas insuficientes para o combate à disseminação do novo Coronavírus, sobretudo nos presídios. Não houve gestão penitenciária adequada. Pelo contrário, tem sido priorizada estratégia da falta de transparência e da manutenção do segredo com relação aos dados e informações, havendo também, em alguns momentos, dissonâncias de entendimentos entre as instituições (destaque-se as incongruências e omissões no Painel Covid do DEPEN/MJSP). Além do manejo desses dados e informações que revelam estratégias de disputa pela gestão do segredo, percebemos o uso de múltiplos discursos (médico, jurídico, administrativo/burocrático, de segurança pública, punitivista etc.) para (re)atualizar violações de direitos. Todavia, percebemos que a PCDF tem realizado esforços para preservar seus servidores e continuar a prestação do serviço de segurança que lhe compete. Para tanto, tem realizado ajustes em suas atividades, por exemplo, com protocolos sanitários em suas unidades, proteção dos policiais, facilitação dos registros online. Com efeito, há evidentes encontros com as 10 medidas para a segurança pública durante a pandemia da Covid-19.No entanto, convém avaliar se a PCDF está tendo prejuízos nas atividades investigativas e de elucidação de crimes, em virtude das restrições causadas Covid-19. Da mesma forma, analisar se a PCDF está atenta às mudanças das dinâmicas criminais, por exemplo, com crimes mais no âmbito doméstico e na internet. Afinal, a partir do turbilhão da Covid-19, compreender a situação das polícias e dos policiais, bem como de suas atividades e das dinâmicas criminais, decerto está entre os novos normais dos dias de hoje. Já no que diz respeito à DPDF, além de se empenhar na preservação de seus servidores e membros, também tem atuado exaustivamente na preservação dos direitos das partes assistidas pela DPDF, diante da vulneração de direitos e garantias 362 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS fundamentais decorrente da pandemia. O tensionamento com a necessidade de eficiência do Poder Judiciário, entretanto, tem sido o grande desafio da instituição, que raramente é chamada para o debate acerca da retomada das atividades e das medidas paliativas a serem tomadas até que isso ocorra de forma plena. Convém ressaltar que as medidas adotadas pelo TJDFT têm sido insuficientes. Mentiras e omissões do por parte do Governo do Distrito Federal devem ser responsabilizadas, vez que o colapso do sistema já era anunciado, mas preferiu-se arriscar a vida dos detentos à necessidade de punir em vez de adotar medidas desencarceradoras. Diante desse cenário de gestão do caos da pandemia, concluímos que o direito por si só não consegue solucionar os problemas de saúde pública dos presídios do DF colocados pela emergência sanitária da pandemia de Covid-19 e que o discurso de que está “tudo sob controle” continua corroborando e sendo insumo nos processos de tomadas de decisão. 363 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS PARTICIPAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO NO ÂMBITO DO CONSELHO NACIONAL DO MEIO AMBIENTE: O CONAMA ENQUANTO TERMÔMETRO DOS INSTRUMENTOS DE POLÍTICA AMBIENTAL BRASILEIRA DURANTE A EMERGÊNCIA SANITÁRIA COVID19 Rodrigo Augusto Lima de Medeiros1 1 INTRODUÇÃO A política do Governo Federal (2019-2022) modificou a dinâmica da agenda ambiental (KINGDON, 2003; CAPELLA, 2013; DI GIOVANNI & NOGUEIRA, 2013; HOWLETT & RAMESH, 2013; RUA, 2014) no âmbito do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e de suas vinculadas 2. A situação de emergência sanitária referente à pandemia da Covid19 evidenciou o planejamento político de desarticulação de alguns processos técnico-administrativos consolidados desde a década de 1980. É intenção deste trabalho explorar dimensões simbólicas da institucionalização da política ambiental (TEIXEIRA, C. et al., 2019) e privilegiar a interpretação de tais mudanças gerenciais no âmbito do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) por meio do exame de discursos, leis, decretos, resoluções, gráficos e tabelas. A fim de examinar os processos técnico-administrativos que consolidam o enfraquecimento da agenda ambiental no Brasil (VALE, M. et al., 2021; SANTANA, 2019), este artigo parte do pressuposto de que a efetividade da Política 1 2 Professor Titula do Centro Universitário de Brasília (CEUB). Servidor Público do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB). Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais - Ibama e Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio. 364 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Nacional do Meio Ambiente depende da aderência de segmentos da sociedade civil e dos governos estaduais e municipais para um mesmo propósito (SOUZA, 2000; CIRNE, 2013). É nesse contexto político-administrativo que este artigo objetiva examinar a relação entre participação e produtividade no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Analisaremos o Conama como termômetro para medir a temperatura da política ambiental no Brasil, na medida em que é órgão consultivo e deliberativo de normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado. Ao rastrear as normas que modificaram a representação do Conselho ao logo de sua história, pretendemos propor reflexões sobre a potencialidade construtora da diversidade de atores sociais na condução de empreendimentos coletivos (LÉVISTRAUSS, 1993; GEERTZ, 1989)3. Sugerimos a seguinte proposição como problema de pesquisa: existe uma relação direta entre participação e produtividade, ou seja, quanto mais conselheiros mais produção técnico-normativa no Conselho Nacional do Meio Ambiente. Essa proposição é inversamente proporcional as justificativas que procuraram legitimar as mudanças na configuração do Conama. Apesar de não haver exposições de motivos para o decreto nº 9.806/2019 que dispõe sobre “a composição e o funcionamento do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama”, a justificativa prolatada pelo Governo Federal e seus porta-vozes era a de que seria necessário reduzir o tamanho do Conama para que houvesse mais “racionalidade” na regulamentação ambiental. Desse modo, a convicção política da gestão 2019-2022 é que a diminuição de assentos no Conama traria mais efetividade às deliberações. Efetividade entendida como mais celeridade, assim, em última instância, haveria mais produção, ou seja, maior número de atos do Conselho (resoluções, proposições, recomendações e moções)4. O discurso político da diminuição do Colegiado vendia a promessa de 3 Durkheim (1995) ao estabelecer os conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica afirma que quanto maior da diferenciação entre os indivíduos maior a divisão social do trabalho. Apesar de sua verve evolucionista, não se quer neste trabalho reviver qualquer tese anacrônica sobre taxonomia sociológica referente a complexidade das sociedades. Apenas se chama a atenção para o papel da diversidade ampliação da escala social. 4 Segundo o art. 9º do Regimento Interno (Portaria nº 630/2019), são atos do Conama: “I - Resolução; II Proposição: quando se tratar de proposta sobre matéria ambiental a ser encaminhada ao Conselho de Governo; III - Recomendação: quando se tratar de manifestação acerca da implementação de políticas, 365 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS que a mudança traria mais “coerência” a política ambiental. Em síntese, para a gestão 2019-2022, a quantidade elevada de conselheiros e de segmentos no Conama impactaria negativamente no debate técnico da política ambiental. Este artigo irá examinar isso. Neste trabalho, propormos exame significados por trás dos instrumentos legais que aumentam ou diminuem os assentos no Conama, avaliando conjecturas técnico-administrativas. Simultaneamente, faremos uma verificação quantitativa dos dados referentes as mudanças de composição do Conselho e a relação disso com o número de resoluções aprovadas em cada período presidencial específico. Não será possível mensurar a efetividade do Conama no cumprimento de suas atribuições legais, entretanto, este artigo examinará as alterações na composição do Conselho ao longo dos 38 anos de sua existência, a fim propor reflexão sobre essas mudanças. Neste período, conseguimos identificar onze (11) mudanças na composição do Conselho com alteração de representatividade dos segmentos e no número de conselheiros5. Em termos da execução de políticas públicas no âmbito do Governo Federal brasileiro, a participação ao longo de 38 anos de Conama (de 1984 a 2022) será examinada com base nas leis, decretos e regimentos que regulamentaram sua composição. Propomos aqui examinar essas normas para registrar o histórico das participações. Não é intenção do artigo fazer qualquer inferência qualitativa dos atos do Conselho. O rastreamento de decretos, regimentos, discursos que definiram os segmentos e o número de conselheiros para o Conama será realizado na perspectiva de uma antropologia das instituições ou do Estado (TEIXEIRA et al., 2019). Procuraremos encontrar padrões técnicos, administrativos e discursivos na condução das transformações representativas do Conselho. Não é o objetivo deste trabalho fazer levantamento bibliográfico exaustivo. Pretende-se apenas instrumentalizar alguns conceitos, para elaborar uma análise 5 programas públicos e demais temas com repercussão na área ambiental, inclusive sobre os termos de parceria de que trata a Lei nº 9.790, de 23 de março de 1999; e IV - Moção: quando se tratar de manifestação relevante, relacionada com a temática ambiental”. Algumas mudanças são muito sutis. Representa a alteração de um assento no conselho por conta de mudança na estrutura do Poder Executivo, por exemplo, criação ou extinção de Ministério. Outras mudanças são mais significativas e alteram a composição do Conselho. 366 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS empírica da situação de representação do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). O tratamento técnico-administrativo das demandas dos diversos grupos de interesses existentes na sociedade é interpretado de diferente maneira por autores que pensam a democracia, tais como: Talcott Parsons (2010), Gaetano Mosca (1992), Robert Michels (2011), Robert Dahl (1997), Charles W. Mills (1973) e Carole Pateman (1992). Essa literatura especializada levanta questionamentos fundamentais para as concepções contemporâneas de democracia: a democracia está para além dos direitos políticos de votar e ser votado, i.e., para além do autogoverno liberal de ter representantes eleitos que estabeleçam normas e tomem decisões reguladoras da vida sob a jurisdição no Estado-nação. Em termos conceituais, aponta-se para a própria necessidade da diversidade de atores sociais na produção da eficácia da democracia. É nesse sentido que a democracia não é somente as garantias eleitorais de votar e ser votado (direitos políticos), garantidos pelas regras procedimentais da Justiça Eleitoral, mas principalmente é a legitimidade no processo de formulação de regras que devem ser cumpridas por todos, nos termos de uma legitimidade procedimental, na perspectiva weberiana (WEBER, 1921). As alterações no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) deram a tônica da política ambiental na atual gestão do Governo Federal (2019-2022). A pandemia Covid19 evidenciou as mudanças. Trata-se de planejamento de governo que ao atingir o comando central da política ambiental no MMA, no Ibama e no ICMBio, afeta a capacidade da burocracia especializada atuar no cumprimento de suas prorrogativas legais, desmantelando a capilaridade de ação no território nacional. Esse processo atingiu diversos níveis operacionais da fiscalização, da gestão de Unidades de Conservação (UCs), dos compromissos internacionais com convenções sobre mudança do clima e sobre biodiversidade biológica, entre outros. É nesse sentido que esse rearranjo institucional impactou sobremaneira a política ambiental brasileira. O Governo Federal (2019-2022) tentou afastar a política ambiental de pautas mais rurais e aproximá-la de agendas mais urbana (principalmente, a política nacional de resíduos sólidos), sendo a principal marca da atual gestão. Portanto, este artigo examinará as mudanças no Conselho Nacional do Meio Ambiente no período de 1984 a 2022, priorizando o significado das últimas 367 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS alterações na legislatura 2019 a 2022 e suas reverberações para a política ambiental. Tanto o decreto nº 9.806/2019, que modifica a composição do Conama, quanto a Portaria nº 630/2019, que aprova novo regimento interno para o Conselho, mostraram suas limitações operativas durante o confinamento compulsório imposto pela emergência sanitária da SARS-CoV-2. A redução do número de assentos destinados às entidades ambientalistas produziu desequilíbrio representativo entre os segmentos do conselho. O novo regimento interno amarrou mais as participações, dificultando interações promotoras de consensos. Houve equívocos conceituais que justificou distorção na representação dos segmentos, gerando lesão à preceitos da democracia participativa de um colegiado consultivo e deliberativo. Desde março de 2019, os equívocos ficaram evidencias quando o Conselho reiniciou suas reuniões plenárias remotamente. Desde então, o Ministério Público Federal (MPF) tem impetrado ações judiciais contra os gestores públicas à frente da agenda ambiental.6 Em suma, este artigo divide-se em quatro seções, sendo uma introdução, uma conclusão e duas seções de desenvolvimento. A primeira seção do desenvolvimento apresenta breve análise sobre a composição do Conama, contextualizando o histórico da participação, a fim de apresentar o impacto da mudança realizada em 2019. Por exemplo, a representação das entidades ambientais teve seus assentos reduzidos em mais de 80% (de 22 para 4 vagas), havendo completo esvaziamento de representações dos trabalhadores, dos povos indígenas, das populações tradicionais e da comunidade científica, ou seja, houve a extinção desses assentos. A segunda seção do desenvolvimento é sobre as resoluções e a investigação histórica da relação entre participação e produtividade dos atos do Conselho. Por fim, as considerações finais procuram endereçar o problema da investigação traçando algumas características do desequilíbrio na composição da atual política ambiental (gestão 2019-2022), demostrando o equívoco conceitual no estabelecimento político da relação direta entre redução do conselho e aumento de eficácia da política ambiental. 6 Exemplo, Inquérito Civil n° 1.16.000.000912/2020-18. Improbidade Administrativa contra o ex-ministro Ricardo Salles. Outro exemplo é a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº 623) em que se pede a anulação do decreto 9.806/2019 que modificou a representação no Conama. 368 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 2 O CONAMA ENQUANTO TERMÔMETRO PARA AS POLÍTICAS AMBIENTAIS NO BRASIL: MUDANÇAS EM PERSPECTIVA Diferentemente da publicação “The COVID-19 pandemic as an opportunity to weaken environmental protection in Brazil” (VALE et al., 2021), em que os autores destacam o processo de desregulamentação, diminuição na aplicação de multas pela fiscalização ambiental e o crescimento do desmatamento, esta seção pretende colocar em perspectiva histórica as mudanças no Conselho Nacional do Meio Ambiente. O processo político de amadurecimento da agenda ambiental no Brasil remonta a década de 1970 com a instituição das primeiras normas mais estruturantes da agenda ambiental. Na análise de Renato Santos de Souza (2000), o Brasil não possui sistema de proteção ambiental tão antigo e organizado quando de alguns países desenvolvidos, entretanto, ele é um dos pioneiros dentre os países em desenvolvimento na instituição de uma política ambiental (2000, p. 274-313)7. Na década de 1980, a Lei nº 6.938/1981 instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) e o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA). O Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), órgão superior do SISNAMA, possui a missão de implantar a lógica de governança na elaboração de atos ambientais (SOUZA, 2000; MEDEIROS, 2018; SANTANA, 2019). Posteriormente, a edição da Lei Complementar nº 140/2011 atribuiu mais organicidade a Política Pública (BUCCI, 2006) ambiental ao ajustar a cooperação entre os entes federados (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) no que tange ações administrativas decorrentes do exercício de competências constitucionais comuns relacionadas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição e à preservação das florestas, da fauna e da flora (MEDEIROS, 2019). É possível ter uma perspectiva confiável das mudanças no Conama, caso façamos a devida comparação histórica na composição do Conselho. O histórico de 7 Mesmo que as décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960 tenham testemunhado algumas regulamentações ambientais (Código das Águas, Código Florestal, Código de Pesca, Código de Mineração), é a década de 1970 com a influência da Conferência de Estocolmo (1972) que cresce a preocupação legislativa com os “problemas ambientais do desenvolvimento” (SOUZA, 2000). 369 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS mudanças que fundamenta a participação no Conselho Nacional do Meio Ambiente está registrada em legislação específica. Ou seja, leis, decretos, portarias e resoluções são os instrumentos normativos que regulamentam a participação no Conselho. Iremos rastrear a composição do Conama ao se analisar os regimentos internos e os decretos que regulamentam o funcionamento do Conselho. O Conama teve ao longo de sua existência seis (6) regimentos internos, são eles: 1º Regimento Interno. Resolução CONAMA Nº 001/1984 - "Aprova o Regimento Interno do CONAMA" - Data da legislação: 05/06/1984 - Publicação Boletim de Serviço/MI, de 20/07/1984; 2º Regimento Interno. Resolução CONAMA Nº 025/1986 - "Dispõe sobre a aprovação do novo Regimento Interno do CONAMA". - Data da legislação: 03/12/1986. Alterada pelas Resoluções nº 12, de 1987, nº 07, de 1989, nº 08, de 1989, e 07, de 1991); 3º Regimento Interno. Resolução CONAMA Nº 007/1991 - "Dispõe sobre alterações no Regimento Interno do CONAMA" – Data da legislação: 19/09/1991; 4º Regimento Interno. Portaria MMA Nº 168/2005 - "Regimento Interno do CONAMA" - Data da legislação: 10/06/2005. Revogada pela Portaria nº 452, de 17 de novembro de 2011; 5º Regimento Interno. Portaria MMA Nº 452/2011 - "Regimento Interno do CONAMA" - Data da legislação: 17/11/2011 - Revogada pela Portaria n° 630, de 05 de novembro de 2019; 6º Regimento Interno. Portaria MMA Nº 630/2019 - "Regimento Interno do CONAMA" - Data da legislação: 05/11/2019. Observamos que no início os regimentos internos (RI) eram aprovados por Resolução do próprio colegiado. A dinâmica muda no 4º RI quando se começa instituir por Portaria do Ministério do Meio Ambiente. Em outra ocasião, valerá a pena investigar se houve mitigação na autonomia do Conselho ou apenas uma mudança de instrumento jurídico. Por enquanto, fiquemos com a potencial comparação entre as diversas composições do Conama, utilizamos a mesma divisão por segmentos que os regimentos internos utilizam. Há variações entre os 370 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Regimentos Internos. A principal diferença é a denominação atribuída ao segmento da sociedade civil. Em alguns momentos, os representantes da sociedade civil são denominados “entidades de trabalhadores e da sociedade civil” e, em outros, são denominadas “entidades ambientalistas”. Outro detalhe relevante é a gradual substituição das entidades de trabalhadores por entidades ambientalistas. Para viabilizar a comparação a composição do Colegiado entre os períodos presidenciais, foi necessário fazer algumas generalizações em suas categorias. Denominaremos “entidades de trabalhadores” e “entidades ambientalistas” como “sociedade civil”. Assim, teremos os seguintes segmentos que compõe, historicamente, o Conama: a) Sociedade Civil b) Entidades Empresariais c) Governos Municipais d) Governos Estaduais e) Governo Federal Ainda restam alguns detalhes de padronização, a fim de propor uma comparação adequada. Algumas categorias são dúbias e podem ser caraterizadas como um segmento ou outro. Por exemplo, as entidades de representação dos Estados e Municípios, respectivamente, ABEMA (Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente) e ANAMMA (Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente), possuem caráter ambíguo porque ao mesmo tempo que representa Estados e Municípios (entes federados) são associações civis de direito privado, sem fins econômicos. Ou seja, poderiam ser tanto governo estadual ou municipal quanto sociedade civil. O gráfico abaixo tenta sistematizar a participação dos segmentos ao longo dos 38 anos de existência do Conama (1984-2022). A criação do Conselho pela lei 6.938/1981 traz em seu bojo a primeira composição que é replicado na 1ª Reunião Ordinária, em 05 de junho de 1984. 371 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS GRÁFICO 1 – Número de Conselheiro por Período Presidencial Fonte: próprio autor. Observamos no gráfico 1 o número total de membros do Conama ao longo do tempo. É evidente a redução drástica proposta pela gestão 2019-2022. A atual configuração é a com menos conselheiros. É importante explorar um pouco mais a primeira composição do colegiado porque ela servirá de referência para as seguintes. A composição do Conama posta na Lei nº 6.938/1981 é replicada no 1º Regimento Interno (Resolução nº 001, 05 de junho de 1984). Em tal diploma, estabeleceu-se que integrariam o Plenário do Conama os representantes dos seguintes Ministérios: i. Interior (Ministro que preside o conselho); ii. Justiça; iii. Marinha; iv. Relações Exteriores; v. Fazenda; vi. Transportes; vii. Agricultura; 372 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS viii. Educação e Cultura; ix. Trabalho; x. Saúde; xi. Indústria e Comércio; xii. Minas e Energia; xiii. Chefe da Secretaria de Planejamento da Presidência da República; xiv. Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas; xv. Extraordinário para Assuntos Fundiários; Ainda de acordo com o 1º Regimento Interno (Resolução nº 001, 05 de junho de 1984), a composição do conselho também contava com os seguintes conselheiros: i. Secretário Especial do Meio Ambiente (secretário executivo do conselho); ii. Representantes dos Governos dos Estados onde existam áreas críticas de poluição declaradas por Decreto Federal; (13)8 iii. Um representante de cada uma das regiões Norte, Nordeste e CentroOeste do país, indicados, em rodízio anual, pelos respectivos Governadores; (3) iv. Os presidentes das Confederações Nacionais do Comércio, da Indústria e da Agricultura; (3) v. Os presidentes das Confederações Nacionais dos Trabalhadores no Comércio, na Indústria e na Agricultura; (3) vi. Os presidentes da Associação Brasileiras de Engenharia Sanitária e Ambiental (ABES) e da Fundação Brasileira para a Conservação da Natureza; (2) 8 Para viabilizar a comparação, atribuímos a metade do número possível de Estados no item, ou seja, 13. Não conseguimos apurar com maior precisão quantos conselheiros efetivamente foram nomeados nesse item. A normatização, em tese, permitiria que todos tivessem, mas seria improvável. 373 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Os Presidentes de duas associações legalmente constituídas para vii. a defesa dos recursos ambientais e combate à poluição, de livre escolha do Presidente da República. (2) Destacaremos as três últimas categorias, somando sete (7) cadeiras. O Conselho abriu vaga para as Confederações Nacionais dos Trabalhadores no Comércio, na Indústria e na Agricultura. Também havia vagas para os presidentes da ABES e da FBCN. Aos quinze assentos dos titulares dos Ministérios, somam-se a vaga do Secretário Especial do Meio Ambiente. Essa é uma constante na representação do Conselho, sempre houve supremacia numérica do Governo Federal no Conselho. Historicamente, essa hipertrofia na representação do Poder Executivo Federal cresce em número absoluto nos anos seguintes. O Conselho teve sua primeira composição determinada pela própria lei que o criou. Tendo como referência. Depois as mudanças foram operadas por meio de Decretos. Os Decretos são os seguintes: 1. João Figueiredo (Gestão de 1979 a 1985). Instalação do Conama pela lei nº 6.938/1981. A composição inicial foi estabelecida na própria lei de criação e no Regimento Interno. 2. José Sarney (Gestão de 1985 a 1990). A composição inicial foi estabelecida na própria lei de criação e no Regimento Interno. 3. Collor de Melo (Gestão de 1990 a 1992). A composição de 1991 a 1994 foi regida pelos Decreto nº 99.274/1990 e nº 99.355/1990; 4. Itamar Franco (Gestão de 1992 a 1994). A composição de 1991 a 1994 foi regida pelos Decreto nº 99.274/1990 e nº 99.355/1990; 5. Fernando Henrique Cardoso I (Gestão 1995 a 1998). A composição de 1995 a 1998 foi regida pelo Decretos nº 1.523/1995, nº 1.542/1995 e nº 2.120/1997; 6. Fernando Henrique Cardoso (Gestão 1999 a 2002). A composição de 1999 a 2002 pelo Decreto nº 3.942/2001; 374 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 7. Luís Inácio Lula da Silva (Gestão 2003 a 2006) Composição 20032006 pelo Decreto nº 3.942/2001; 8. Dilma Rousseff (Gestão 2007 a 2010). Composição 2007-2010 pelo Decreto nº 6.792/2009; 9. Dilma Rousseff (Gestão 2011 a 2016). A composição de 2011 a 2014 pelo Decreto nº 6.792/2009; 10. Michel Temer (Gestão 2016 a 2018). Composição 2016-2018 pelo Decreto nº 6.792/2009. 11. Jair Bolsonaro (2019 a 2022). A composição de 2019 até o presente está sendo regulada pelos Decretos nº 9.806/2019 e nº 9.939/2019. O gráfico 2 traz a representação do Governo Federal no Conama. O Governo Federal sempre teve supremacia representativa no colegiado ambiental. Em alguns momentos específicos o Governo Federal teve mais voto do que em outros momentos, contudo, sempre mantém boa margem de vantagem. Isso revela algumas fragilidades do pacto federativo e alguns gargalos da política ambiental. GRÁFICO 2 – Representação do Governo Federal no Conama (Fonte: próprio autor) 375 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS O pacto federativo e as disputas constitucionais em torno das competências comuns nunca foram devidamente trabalhados no âmbito do Conama. Em alguns momentos, o Governo Federal demonstra algum interesse em estabelecer expedientes administrativos para conciliar os interesses entre os entes federados. Contudo, têm sido constantes as dúvidas inerentes a falta de definição evidente das competências dos entes federados. Isso acarreta conflitos interfederativos. Falta interesse político para descentralizar o Sistema Nacional do Meio Ambiente, a fim de potencializar a agenda ambiental nos estados e municípios. Observamos é a constante da supremacia do Governo Federal que sempre possui, proporcionalmente, o maior segmento de votos no Conama. Proporcionalmente, dividindo o número de conselheiros do Governo Federal pelo número de membros do Conselho, os governos Figueiredo e Sarney tiveram a menor proporção de votos em seus períodos. Período de transição entre o Regime Militar e a Redemocratização que talvez tenha suscitado questionamentos sobre o pacto federativo e a necessidade de maior autonomia aos entes federados na regulamentação das questões ambientais. A supremacia do Governo Federal cresceu e se estabilizou. Mesmo no Governo Bolsonaro que nomeou 10 conselheiros ao Conama, proporcionalmente, eles representam 43,48% dos votos, proporcionalmente, uma das maiores proporções (Gráfico 3). GRÁFICO 3 – % de voto do Governo Federal (Fonte: próprio autor) 376 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A emergência sanitária da Covid19 evidenciou o planejamento da agenda ambiental no âmbito do Governo Federal. As mudanças promovidas no Conama deram a tônica das políticas ambientais na atual gestão do Governo Federal (20192022). A tentativa de diminuir atribuições do Ministério do Meio Ambiente relacionadas às pautas rurais e de priorizar as pautas urbanas é a principal marca dessa gestão9. As mudanças promovidas pelo Governo Federal, em 2019, no Conselho, podem ser consideradas “mudanças sínteses” e que se quedaram evidenciadas durante o período de confinamento. Apesar de o Decreto nº 9.806, de maio de 2019, que alterou o Decreto 99.274, de 6 de junho de 1990, modificando a composição e o funcionamento do Conama, ser anterior à decretação da pandemia, as mudanças mostraram seu potencial de desarticulação e sua ineficácia para lidar com as questões ambientais durante o confinamento compulsório. A redução do número de assentos destinados às entidades ambientalistas no Conama produziu desequilíbrio representativo entre os segmentos do conselho. Houve distorção do órgão colegiado, gerando lesão à preceitos da democracia participativa e das Políticas Públicas de Estado. A distorção na representação do conselho evidenciou-se com as reuniões plenárias online. O gráfico abaixo demostra o número de representantes da sociedade civil nos períodos presidenciais. É evidente a diminuição drástica na gestão 2019-2022. As representações são muito estáveis mesmo na transição presidencial. Observamos longos períodos de estabilidades. As presidências de Figueiredo, Sarney, Collor e Itamar mantêm o mesmo número de representantes da sociedade civil. O primeiro governo FHC quase dobra o número de representantes e o segundo coloca no maior patamar que será reproduzido nos próximos cinco períodos presidenciais. A mudança drástica ficou a cargo do Governo Bolsonaro que baixou a representação da Sociedade Civil para patamares muito abaixo dos governos anteriores. 9 Medida Provisória nº 870/2019 que estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Posteriormente, transformada na Lei nº 13.844/2019. 377 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS GRÁFICO 4 – Representação da Sociedade Civil (Fonte: próprio autor) A composição do Conselho foi afetada de modo que a representação do segmento Sociedade Civil teve seus assentos reduzidos em mais de 80% (de 22 para 4 vagas), refletindo em perda de participação nas Câmaras Técnicas. Também houve total esvaziamento das representações dos trabalhadores, dos povos indígenas, das populações tradicionais e da comunidade científica, ou seja, houve a extinção desses assentos. Passar em revista esse processo de participação é fundamental para compreendermos os desequilíbrios na composição da atual política ambiental do Governo Federal (gestão 2019-2022). A concepção de uma democracia mais participativa que promova a autocomposição na execução de políticas públicas, enquanto etapa de aperfeiçoamento do Estado democrático de direito, parece estar sofrendo retrocessos significativos na agenda ambiental. 3 A CONVICÇÃO POLÍTICA NÃO-INFORMADA E AS FALÁCIAS: PONDO A PROVA O DISCURSO DA CELERIDADE PROCESSUAL Conforme havíamos aventado na introdução, não houve considerando nem exposição de motivos na edição do decreto nº 9.806/2019 que modificou “a composição e o funcionamento do Conselho Nacional do Meio Ambiente – 378 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Conama” na gestão 2019-2022. Apesar da falta de justificativa oficial, representantes do Governo Federal em redes sociais, entrevistas ou conversas de corredor expressavam suas convicções políticas de que a redução do Conama traria, efetivamente, mais celeridade aos atos do Conselho. Em outras palavras, a convicção política era a de que a diminuição de assentos no Conama traria mais efetividade às deliberações. Efetividade entendida como mais celeridade, portanto, em última instância, haveria mais produção (ou seja, maior número de atos do Conselho: resoluções, proposições, recomendações e moções). O discurso político da diminuição do Colegiado vendia a promessa de que a mudança traria mais “coerência” a política ambiental. Em síntese, para a gestão 2019-2022, a quantidade elevada de conselheiros e de segmentos no Conama impactaria negativamente no debate técnico da política ambiental. A fala do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante evento de comemoração aos 30 anos da Embrapa, em Campinas (SP), no dia 30 de maio de 2019, ilustra perfeitamente essa convicção política. A reportagem do G1 traz a seguinte depoimento do ex-ministro: Há discussões no Conama que se arrastam por anos, portanto é importante ter uma melhoria e, aliás, nós fizemos uma consulta a todos aqueles que participam do órgão e foi no sentido unânime de que era necessário aprimorar. Claro que cada um tem a sua concepção de como aprimorar e nós procuramos fazer isso da melhor forma possível (Porta G1, 10 30/05/2019) . A melhoria que o ex-ministro se refere é a da reforma na composição do Conama que o decreto nº 9.806/2019 implementara e a reedição do novo Regimento Interno (Portaria Nº 630/2019). Ou seja, implementa a convicção política de que a redução de assentos no Conama, com menos participação da Sociedade Civil, traria mais efetividade às deliberações. Esse discurso político em defesa da diminuição do colegiado pode ser representado na seguinte equação: sendo mais fácil o consenso em grupo menor, isso traria maior “coerência” a política ambiental. Quando colocamos essa equação a prova, ela não se sustenta. 10 Portal G1. Disponível em https://g1.globo.com/sp/campinas-regiao/noticia/2019/05/30/conama-temdiscussoes-que-se-arrastam-por-anos-diz-ministro-do-meio-ambiente.ghtml Acesso em 25 de out. 21. 379 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Mesmo com a intenção declarada de modificar o regramento infralegal que o ex-ministro declarou em reunião ministerial, posteriormente, publicado por decisão do STF, o Conama na Gestão 2019-2022 teve baixo rendimento propositivo.11 Mesmo havendo algumas revogações de resoluções, em sua maioria essas resoluções já tinham sido debatidas em seus méritos nas gestões anteriores e já estavam, administrativamente, prontas para serem votadas. Houve pouco ou nenhum mérito do ex-ministro em pautá-las. O único ganho do ex-ministro foi chamar a atenção vigilante do Ministério Público Federal que resolver judicializar as deliberações do Conama, substituindo dos debates técnico-científicos de conteúdo por disputas judiciárias de forma. Para viabilizar uma análise comparativa entre as resoluções Conama com a composição do colegiado, sugerimos estabelecer uma classificação das resoluções. Mesmo que seja uma tentativa precária, na medida em que as matérias disciplinadas nas resoluções Conama são multitemáticas, optamos por nomear macrotemas que minimamente organizassem os temas e permitissem compreender a dinâmica histórica da agenda ambiental. Grosso modo, as Resoluções versam sobre os seguintes temas: i. Licenciamento de empreendimentos; ii. Unidade de conservação; iii. Gestão territorial; iv. Água, irrigação e tecnologia hidráulica; v. Biodiversidade; vi. Outros. Não é intenção apreender a conjunção de interesses diversos que edificam as resoluções Conama. Estamos mais preocupados com os arranjos institucionais, 11 Trecho da reunião ministerial em que o ex-ministro do Meio Ambiente declarou ser necessário modificar a legislação infralegal: “então, para isso, precisa ter um esforço nosso aqui enquanto estamos neste momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN, do ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de ministério daquilo. Agora é hora de unir esforços para dar de baciada a simplificação, é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos”. 380 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS assim, a composição de segmentos da sociedade civil (entidades empresariais, entidades ambientalistas, entidades civis de representação dos interesses de Estados e Municípios) e de segmentos dos Governos Federal, Estaduais e Municipais. Gráfico 5 - Quantidade de Resolução por Presidência (Gestão) (Fonte: próprio autor) A redução do número de assentos destinados às entidades ambientalistas no Conama e a diminuição significativa dos conselheiros não investiram o Conselho de maior capacidade deliberativa, como mostra o Gráfico 4. A produção de atos do Conama está muito abaixo dos outros períodos. Vários fatores precisam ser considerados, contudo, se a premissa política de que a redução do conselho levaria, necessariamente, a maior eficácia deliberativa, isso deveria, mesmo que de modo reduzido, ser expresso no gráfico 5. Não é o que vemos. Houve distorção do órgão colegiado com nenhum ganho de eficiência. Talvez por isso mesmo, a diminuição da diversidade no Conama pode ter levado a menor capacidade produtiva. Reconfigurações e rearranjos no Conama impactaram sobremaneira a política ambiental brasileira, sem, contudo, significar qualquer ganho produtivo. Desmantelamento das estruturas da fiscalização, abandono da gestão territorial de áreas protegias e pouco interesse com os compromissos climáticos são 381 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS apenas alguns exemplos dessa desestruturação. A composição do Conselho foi afetada de modo que a representação. A democracia participativa que deve promover maior eficácia legislativa na edição de atos do Conama, a fim de aperfeiçoar as políticas ambientais parece não ter sido priorizada quando se implementou a convicção política do “menos participação significa maior coerência/eficiência política”. Tal pressuposto tem se mostrado equivocado. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tentou-se evidenciar que a política ambiental tende a ser tanto mais efetiva quanto mais participação promover. A diversidade e o debate simétrico entre iguais contribuem para maior produtividade normativa, na medida em que há mais esforço na construção de convencimentos. Mesmo sendo o Conama parte de uma estrutura político-administrativa eminentemente governamental, a participação efetiva da sociedade civil e dos Estados e dos Municípios na gestão ambiental tornase elemento primordial na construção de consensos ambientais mais efetivos. Concluímos que a redução do Conama foi produto de convicção política não-informada. Não se discute aqui a boa-fé do agente político, contudo, se a convicção era genuína ou não, pouco importa, o fato é que se trata de pressuposto falso. Desde a constituição do Conama em 1984 até hoje, apesar de contribuição no aprimoramento da normativa, a agenda ambiental brasileira nunca esteve no centro das preocupações de qualquer dos presidentes que já ocuparam o Palácio do Planalto. Assim, rastreando as normas que modificaram a representação do Conselho, este artigo realizou reflexões sobre a composição do Conama, especialmente, as modificações recentes realizadas pelos Decretos nº 9.806/2019 e a Portaria MMA nº 630/2019. Apesar de não haver exposições de motivos para as modificações, a justificativa dada, informalmente, para as mudanças foram a de que a diminuição de assentos no Conama traria mais efetividade às deliberações. Efetividade entendida como mais celeridade, portanto, em última instância, haveria mais produção do Conselho. O discurso da justificativa informal dialogava com uma ideia de racionalidade, a qual traria mais “coerência” a política ambiental. Em síntese, para a 382 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS gestão 2019-2022, a quantidade elevada de conselheiros e de segmentos no Conama impactaria negativamente no debate técnico da Política Ambiental. Isso não foi observado. REFERÊNCIAS ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2014. ANTUNES, Paulo de Bessa. O que é e para que serve o CONAMA? Direito Ambiental – abr. 2019. Disponível em: <https://direitoambiental.com/o-que-e-epara-que-serve-o-conama/>. Acesso em: 23 abr. 2020. 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Este estudo preliminar observacional, retrospectivo, comparativo, transversal, com abordagem quantitativa de amostragem aleatória simples, tem como objetivo comparar a oferta e demanda de leitos de Unidade de Terapia Intensiva, suas prioridades e número de judicialização durante os meses de março de 2019, 2020 e 2021 da Central de Regulação de Internação Hospitalar. Os resultados evidenciam aumento gradual de oferta de leitos entre os anos avaliados, partindo de 329 leitos regulados em 2019, e chegando a 588 leitos em 2021. As solicitações e as judicializações tiveram aumento significativo em 2021 com os seguintes números: 2.888 solicitações, dessas, 48,16% em prioridade 1 e 825 judicializações. Houve desequilíbrio entre oferta e demanda de leitos de Unidade de Terapia Intensiva e um aumento significativo de judicialização. Este estudo ratifica a relevância da atuação da regulação de acesso a leitos hospitalares conforme preconiza os princípios do Sistema Único de Saúde, trazendo maior transparência às atividades. Sugere-se a necessidade de diálogo maior entre a área assistencial com o sistema judiciário, visando garantir acesso equânime e universal aos leitos de terapia intensiva. 1 ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8106-9584. Enfermeira da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Mestranda em Enfermagem pela Universidade de Brasília 2 ORCID: http://orcid.org/0000-0002-45681941. Enfermeira da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Mestre em Enfermagem pela Universidade de Brasília. Docente do Curso de Enfermagem da Escola Superior de Ciências da Saúde 3 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1508-0475. Enfermeira da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Mestre em Enfermagem pela Universidade de Brasília. Docente do Curso de Enfermagem da Escola Superior de Ciências da Saúde 4 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1400-4024. Enfermeira da Secretaria de Estado de Saúde do Distrito Federal. Mestre em Enfermagem pela Universidade Católica de Brasília. Docente do Curso de Enfermagem da Escola Superior de Ciências da Saúde 385 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Palavras-chave: Regulação; Judicialização; Complexo Regulador; Unidade de Terapia Intensiva; Serviços de Saúde 1 INTRODUÇÃO O Brasil possui características complexas pela sua diversidade geográfica, territorial e econômica no que diz respeito ao seu sistema de saúde5. Essas características levam à distribuição dos recursos assistenciais de acordo com a particularidade de cada região, demanda e oferta pública ou privada (BARROS; AMARAL, 2017). A Constituição Federal de 1988 garante acesso do cidadão aos serviços de saúde, permitindo a participação paralela do serviço privado de forma complementar6. Em 2008, surgiu a Política Nacional de Regulação, com o objetivo de organizar ações integradas: Regulação dos Sistemas de Saúde, Regulação da Atenção à Saúde e Regulação de Acesso à Assistência, cabendo à Regulação a ação social de regular, fiscalizar, controlar, auditar e avaliar a produção de bens e serviços de saúde (BARROS; AMARAL, 2017). No Distrito Federal (DF), com a necessidade de organizar o fluxo de pacientes para Unidade de Terapia Intensiva (UTI), criou-se, em 2006, a Central de Regulação da Secretaria do Estado de Saúde do Distrito Federal (SES/DF), organizando o fluxo de internação e instituindo o papel de autoridade sanitária. Assim, a Regulação gera o acesso dos pacientes ao serviço de saúde, respeitando os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) (BATISTA et al., 2019). 5 O Sistema Único de Saúde é reconhecido como uma política pública complexa e a mais inclusiva e que visa garantir o direito à saúde. Dentre seus princípios se encontram: a universalidade, que traduz o direito a todos os cidadãos à saúde e que deve ser assegurada pelo Estado, independente de qualquer condição; a equidade, que é traduzida pelo tratamento desigual dos cidadãos de acordo com suas necessidades, visando atingir a igualdade; e a integralidade, que permite uma assistência como um todo. Esses princípios são realizados por meio de ações que visam à promoção, à prevenção, ao tratamento e à reabilitação dos cidadãos. Sua organização segue os princípios da regionalização, hierarquização e descentralização. Tais princípios pressupõem a organização dos serviços de crescente complexidade, delimitados por áreas geográficas conforme necessidade da população, sendo o poder e a responsabilidade distribuídos entre os três entes federativos e tendo a participação popular (TEIXEIRA, 2011). 6 A Constituição Federal de 1988 traz, no caput do seu art. 199, que “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada” e no §1º que “As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.” (BRASIL, 1988). O que demonstra a complementaridade da atividade privada em saúde no Sistema Único de Saúde. 386 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Com a pandemia da COVID-19, o DF precisou lidar com o risco de uma crise no sistema de saúde provocada pelo aumento de demanda de leitos de UTI e equipamento de ventilação mecânica. Considerando a necessidade de viabilizar o acesso dos usuários ao leito de terapia intensiva, este estudo preliminar buscou comparar a oferta e demanda de leitos de UTI, suas prioridades e o número de judicialização durante os meses de março de 2019, 2020 e 2021 da Central de Regulação do Distrito Federal. A escolha do mês de março aconteceu por ser o marco inicial da pandemia de COVID-19 no Distrito Federal. Tal evidência é relevante para contribuir para que a gestão identifique as dificuldades para a efetivação do propósito do Complexo Regulador em Saúde do Distrito Federal (CRDF) e melhorar a distribuição de recursos para minimizar o desequilíbrio entre oferta/demanda. 2 DESENVOLVIMENTO 2.1 A Política Nacional de Regulação O sistema de saúde brasileiro apresenta desafios como subfinanciamento, desigualdades regionais, oferta de serviços e profissionais, características de acesso e padrões de utilização limitados. A Emenda Constitucional nº 95/2016 instituiu novo regime fiscal aos gastos públicos por 20 anos, limitando ainda mais a ampliação da atenção à saúde, assim como o planejamento de políticas e programas de assistência à saúde. (VIACAVA et al., 2018). Os desafios atingem todos os níveis de assistência e, no que tange a assistência de maior complexidade`, não é diferente. Os leitos de UTI de maior complexidade estão concentrados na Região Sul em uma proporção de 2:100.000 habitantes. Na Região Norte, a taxa é de 0,03:100.000 habitantes. Ressalta-se ainda que 90% dos leitos de UTI tipo III7 encontram-se na rede privada. Constata-se que a assistência à saúde está concentrada de acordo com as características regionais, demanda/oferta pública e privada e complexidade de recursos (CONTE et al., 2021). 7 A Portaria MS/GM nº 3.432/1998 estabelece critérios de classificação para as UTIs, trazendo – UTI tipo I, II e III. A diferença entre II e III são classificadas conforme alguns critérios referentes à especialidade do atendimento e à qualificação/capacitação do hospital (BRASIL, 1998). 387 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Frente ao exposto, com o desequilíbrio entre demanda e oferta de serviços de saúde em todos os níveis de atenção e escassez de recursos materiais e humanos, observa-se o aparecimento de uma desigualdade, também, nos processos de judicialização no sistema de assistência à saúde do Brasil. Nos meses de março/2020 a agosto/2020, em hospitais privados, se concentrava sobre a cobertura de serviços e prazos de carência. No SUS, as ações tratavam do estabelecimento de prazos de aberturas de novos leitos, hospitais de campanha e pleito de internação. Assim, na pandemia, a via judicial vinha afirmando os direitos individuais e o que se recomenda é o enfrentamento coletivo (CONTE et al., 2021). No intuito de superar esses desafios, faz-se necessária a criação de mecanismos de controle e de regulação. Para a Organização Panamericana de Saúde (OPAS), a regulação é tida como relação de atividades gestoras de um sistema de saúde que proporciona à gestão pública mecanismos de controle de acessos aos serviços, da eficiência e aplicação de recursos e tem como objetivos atender à demanda e melhorar a eficiência e efetividade no atendimento ao usuário e a aplicação de recursos (BARROS; AMARAL, 2017). A Política Nacional de Regulação (PNR) do SUS foi instituída pela Portaria nº 1.559, de 1º de agosto de 2008, e três dimensões 8: 1- Regulação sobre os Sistemas de Saúde, segundo sua atuação nos sistemas de saúde; 2- Regulação da Atenção, sobre a produção direta das ações e serviços de saúde; e 3- Regulação do Acesso, sobre o acesso do usuário no sistema (BRASIL, 2008). 8 Diferentemente, cada dimensão é responsável por ações distintas que se completam. Assim temos: Regulação de Sistemas de Saúde - controla, avalia os sistemas de saúde, regulamenta a atenção à saúde e auditora os sistemas de gestão, sendo o responsável por elaboração de decretos, normas e portarias, planeja, financia, fiscaliza os sistemas de saúde, controle social, ouvidoria, vigilância sanitária e epidemiológica, regula a saúde suplementar, auditoria assistencial e/ou clínica, avalia e incorpora as tecnologias em saúde; Regulação de Atenção à Saúde - contrata serviços de saúde, controla e avalia serviços e suas produções assistencial, regula o acesso assistencial, sendo responsável por cadastro de usuários, profissionais e estabelecimentos, contata serviços, credencia/habilita a prestação de serviços de saúde, elabora e incorpora protocolos e fluxos assistenciais, supervisiona o processamento de produção ambulatorial e hospitalar, utiliza sistemas de informação para cadastros, produção e regulação de acesso, Programa de Pactuação Integrada (PPI), avalia analiticamente a produção, avalia: o desempenho a gestão e a satisfação do usuário, a condição sanitária dos estabelecimentos de saúde e indicadores de saúde; Regulação do Acesso à Assistência disponibiliza alternativa assistencial mais adequada à necessidade do usuário no atendimento das urgências, consultas, leitos e outros quando necessários, respondendo pela regulação médica do pré-hospitalar e hospitalar às urgências, controla leitos disponíveis, agendas de consultas e procedimentos, estabelece referências entre unidades de diferentes níveis de complexidade de abrangência local, intermunicipal e interestadual (BRASIL, 2008). 388 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS A PNR no Brasil apresenta desafios relacionados à eficiência e à normativa de equidade, mas, para uma proposta mais ampliada, deve ser considerada a formação e atividades profissionais, a acessibilidade do usuário e as tecnologias em saúde, a deficiência de financiamento, a gestão, a regulação efetiva dos leitos conveniados ou contratados pelo sistema público, a coordenação ineficiente dos cuidados na atenção primária, a oferta deficiente de serviços que satisfaça às necessidades dos usuários, a solicitação desnecessária de serviços especializado e a fragmentação e limites do processo regulatório. Vale destacar que, além dos elementos já citados, ressalta-se a importância da criação de protocolos adequados para uma regulação mais humanizada e indispensável nas relações entre gestores, prestadores de serviço, sobretudo com o usuário e suas demandas (BARROS; AMARAL, 2017; BRASIL, 2008). O CRDF foi inicialmente criado em resposta à Política Nacional de Regulação em Saúde (PNRS) e à demanda social por assistência a pacientes críticos por meio do acesso à terapia intensiva, sendo a primeira Central de Regulação de Internação Hospitalar (CRIH) criada por meio das Portarias GAB/SES nº 41, de 30 de agosto de 2006, e nº 42, de 31 de agosto de 2006. Tais normativas traziam em seu escopo os fluxos operacionais relacionados ao funcionamento da Central e as competências de seus servidores. A CRIH constitui fruto de uma decisão de parceria entre a SES/DF, o Tribunal de Contas do DF (TCDF) e o Ministério Público dos Territórios e do DF (MPDFT) (BATISTA et al., 2019; DISTRITO FEDERAL, 2008; 2016). A CRIH tem como objetivo principal o controle, a monitorização e a avaliação da prestação de serviços de internação hospitalar. Os serviços devem ser pautados nas necessidades dos usuários, que estão com a saúde comprometida em busca do acesso de forma igualitária (PEITER; LANZONI; OLIVEIRA, 2017; VILARINS; SHIMIZU; GUTIERREZ, 2012). A partir de 2006, alterações foram necessárias, resultando na configuração que estabelece a Portaria nº 1.388/2018, da Política Distrital de Regulação do acesso aos serviços públicos de saúde no DF (DISTRITO FEDERAL, 2018). Essa apresentação traz ações de Regulação da Atenção à Saúde e Regulação do Acesso à 389 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Assistência, de forma integrada e perpassando os diferentes níveis de atenção à saúde, colocando a Regulação do Acesso à Assistência como responsabilidade do CRDF e suas unidades operacionais, mostrando a regulação médica como autoridade sanitária e sua ação baseada e sustentada em protocolos, classificação de risco e demais critérios de priorização definidos e pactuados entre os gestores envolvidos, visando ao acesso à assistência, controle da oferta de serviços, avaliação da assistência à saúde, bem como o gerenciamento e a priorização do acesso e dos fluxos assistenciais (DISTRITO FEDERAL, 2018). A parte operacional do CRDF é executada pela Central de Regulação (CR). Neste sentido, a Central de Regulação de Internação Hospitalar (CERIH) 9 tem a responsabilidade de gerir e monitorar a ocupação de leitos gerais e de UTI adultos, pediátricos e neonatais, mediante a aplicação dos critérios de classificação de risco, priorização de atendimentos e parâmetros de encaminhamentos. Quanto à caracterização do processo de trabalho, sabe-se que a CERIH oficialmente tem ciência de que um paciente tem necessidade de UTI quando ele é inserido pela equipe assistencial em uma fila única que aparece no serviço informacional TRAKCARE10. Sabe-se, também, que esse sistema tem abrangência local específica para a SES/DF e não se interliga com outros sistemas que compõem a rede de assistência do SUS, como o do Hospital Universitário de Brasília (HUB) e do Instituto de Gestão Estratégica de Saúde do Distrito Federal (IGESDF), bem como com os serviços do entorno, o que indica uma fragilidade para análise do quadro clínico do paciente. Cabe ressaltar que o HUB e o IGESDF possuem acesso 9 Os principais autores operacionais são os médicos reguladores e os enfermeiros controladores. Àqueles cabem a análise/reanálise da solicitação e avaliação/reavaliação das necessidades dos pacientes inseridos na lista única, visando à alocação do paciente mais crítico e com mais chance de ser beneficiado pela assistência em terapia intensiva, finalizando com a autorização para internação. Este papel se desenvolve baseado em critérios de classificação de risco pré-definidos pela SES/DF (DISTRITO FEDERAL, 2015a). Aos enfermeiros controladores cabe a monitorização e controles dos leitos sob regulação desde a ocupação, perpassando pela admissão e alta, além de relatar as questões de bloqueio e seus motivos. Tal serviço auxilia na produção de indicadores, bem como na melhoria do acesso e qualidade da assistência em terapia intensiva (DISTRITO FEDERAL, 2015a). 10 A Portaria nº 199/2015 determina como fluxo operacional que os órgãos solicitantes que assistem diretamente ao paciente deverão requerer para a CERIH, por meio de preenchimento de formulário informacional de solicitação, leito de UTI de todos os seus pacientes. Esse formulário contém a qualificação do paciente, bem como todos os dados clínicos pertinentes para a avaliação do médico regulador, desde as evoluções dos profissionais que o assistente até acesso aos exames solicitados e pendentes. 390 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS para inserção do paciente na fila única da CERIH, mas não há compartilhamento de informações sobre o quadro clínico. Após a inserção na fila única, o médico regulador avalia por turno todos os pacientes, traçando uma prioridade conforme os protocolos previamente estabelecidos entre os gestores e as unidades assistenciais. Após traçar o perfil de necessidade do paciente e sua priorização, o médico regulador avalia o perfil de vaga necessária e, estando esta disponível, direciona esse paciente para admissão naquele referido leito, passando-se a fase de transferência e ocupação do leito. No que tange à priorização11 (classificação de risco) do usuário, esta se embasa inicialmente na Portaria nº 200/2015, cujos dois critérios máximos se destacam: o quadro clínico do paciente e o seu benefício com a assistência em terapia intensiva. Os pacientes passam a ser classificados em: Prioridade 1, Prioridade 2, Prioridade 3, Prioridade 4A e Prioridade 4B, sendo esses últimos os criticamente enfermos, ou que já estão em melhora/remissão da patologia, ou não se beneficiam com internação em UTI por não existir evidências de melhora. Paralelamente à avaliação do médico regulador, a enfermeira controladora faz a busca de leitos disponíveis, via telefônica, a todos os hospitais da rede SES/DF e contratados, visando à localização de leitos disponíveis, bem como para os demais hospitais locais na busca de vagas que possam auxiliar no processo. 11 Portaria no 200/2015, Anexo I - “CRITÉRIOS DE PRIORIZAÇÃO: PRIORIDADE 01 – Inclui os pacientes gravemente doentes, instáveis, com chances significativas de recuperação, os quais necessitam de monitorização e tratamento intensivo que não podem ser prestados fora da UTI. Esses tratamentos compreendem: suporte ventilatório invasivo e não invasivo, infusão contínua de drogas vasoativas e/ou intervenções agudas. Nesses pacientes, não há limites em se iniciar ou introduzir a terapêutica necessária. PRIORIDADE 02 – Inclui pacientes sem instabilidade, mas que necessitam de monitorização intensiva pela possibilidade de descompensação e/ou potencial necessidade de intervenção imediata. Não existe limite terapêutico geralmente estabelecido para estes pacientes. PRIORIDADE 03 – Inclui pacientes instáveis, com baixa probabilidade de recuperação, seja pela doença de base e/ou natureza da sua doença aguda e/ou presença de comorbidades. Esses pacientes podem ter limites e/ou esforços terapêuticos estabelecidos como a não intubação ou a não-reanimação cardiopulmonar. PRIORIDADE 4: Inclui pacientes que apresentam pouco ou nenhum benefício com a internação em UTI. Em regra, o tratamento intensivo não é recomendado para esses pacientes e, por isso, deverão ser retirados da lista de espera por UTI pela CRIH. Podem ser classificados como: PRIORIDADE 4A – Pacientes com pouco ou nenhum benefício da admissão em UTI, devido à condição clínica não justificar internação em terapia intensiva. São aqueles pacientes que apresentam baixo risco de descompensação ou baixa necessidade de intervenção. PRIORIDADE 4B: Pacientes em terminalidade ou com doença irreversível diante da morte iminente. São aqueles que a condição clínica não justifica a necessidade de UTI devido à ausência de perspectiva terapêutica.” (DISTRITO FEDERAL, 2015b). 391 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Cabe lembrar que a CERIH não cria vaga em leito de UTI, simplesmente realiza a gestão de leitos previamente disponibilizados para a regulação. Essa gestão constitui no mapeamento do leito disponível, confirmação do cumprimento de um dos papéis da regulação quando da admissão do paciente, do monitoramento da alta e da identificação de leitos indisponíveis, conhecido como bloqueados em virtude de problemas pontuais ou mais complexos, tais como manutenção, falta de recursos materiais (equipamentos e insumos), ou indisponibilidade de recursos humanos (licenças médicas). 2.2 A pandemia da covid-19 e as estratégias dos sistemas de saúde A pandemia do SARS-CoV-2 colocou à prova os serviços de saúde do mundo inteiro, e no Brasil não foi diferente. O SUS esteve à prova no planejamento, organização, financiamento e prestação de assistência. Com o momento pandêmico, as desigualdades geográficas e a distribuição dos recursos para acesso ficaram mais evidentes (CONTE et al., 2021). A pandemia da COVID-1912 espalhou-se tão rapidamente que nem mesmo os melhores especialistas do mundo foram capazes de prever a pior crise global desde a gripe espanhola, em 1918. O evento teve um desfecho dramático para os sistemas de saúde, levou a níveis elevados de tensão emocional e uma alta demanda de recursos. Dessa forma, o desafio foi a gestão dos serviços de saúde, que precisaram se reorganizar para atender ao elevado número de pacientes graves, o que nunca antes havia sido feito (SANCHEZ-ÚBEDA et al., 2021). A principal estratégia da Organização Mundial da Saúde (OMS) ao enfrentamento da COVID-19 foi o distanciamento social e o controle epidemiológico, além do retorno gradual das atividades econômicas. Alguns direitos individuais acabaram por ser restringidos em nome do coletivo. 12 No final de março de 2020, foram notificados 450.611 casos na Europa; na Espanha, a situação foi expressivamente mais grave, com 192,22%, seguida pela Itália 122,2%, Bélgica 103%, França 56,6% e Reino Unido 40%. A Itália teve a maior taxa de mortalidade (11,7%), seguida da Espanha, com 8,9%. Com o aumento dos casos, foi necessário o rápido aumento de leitos hospitalares de internação e de UTIs para uma doença de evolução potencialmente fatal. De março a abril de 2020, houve um aumento de 26,4%, passando de 18.692 para 23.623 casos em 15 dias. A Inglaterra reorganizou seus leitos de forma a separar pacientes de COVID-19 dos não COVID-19. Essas informações são relativas aos 18 dias do mês de março de 2020 a 31 de maio de 2020 (SANCHEZ-ÚBEDA et al., 2021). 392 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Na Espanha, o aumento de pacientes internados em leitos não UTI nos últimos 13 dias do mês de março de 2020 foi de 200%, passando de 4.578 para 13.725 pacientes internados. Durante o mesmo período, as internações em leitos de UTI aumentaram 155%, de 590 para 1.502 pacientes. Durante o pico pandêmico, aumentou o tempo de internação em salas de emergências e corredores hospitalares. O aumento de leitos trouxe o aumento de profissionais especializados, a transformação de salas cirúrgicas e leitos de semi-intensiva em leitos de UTI. Mais tarde, hotéis foram transformados em leitos e a inauguração de um hospital de campanha para pacientes não críticos. Esse hospital inicialmente começou com 185 leitos e atingiu seu máximo em 3 de abril desse mesmo ano, com 1.150 leitos não UTI e 10 leitos de UTI13 (SANCHEZ-ÚBEDA et al., 2021). Nos Estados Unidos, o pico pandêmico ocorreu na primeira quinzena de abril de 2020 em cerca de um terço dos estados, incluindo Nova York que, em contraste com outros estados, experimentou um aumento gradual. Houve uma grande lacuna entre as necessidades de leitos hospitalares e a capacidade disponível, principalmente leitos de UTI, com uma falta ainda maior de ventiladores mecânicos. Com o atraso na implementação do distanciamento social por parte do governo, aumentou ainda mais a falta de recursos, o que os sistemas de saúde dos estados tiveram que administrar (ZHAO et al., 2020). A OMS declarou emergência de saúde pública em janeiro de 2020. O primeiro caso no Brasil ocorreu em fevereiro desse mesmo ano, mas somente em março o Ministério da Saúde autorizou a habilitação de leitos de UTI adulto e pediátrico para atendimento exclusivo de COVID-19, o que ocorreu apenas em abril, quando os índices de casos eram de 85.000 e 6.000 mortes e as taxas de ocupação de UTI estavam acima de 90% (CONTE et al., 2021). No Brasil, a flexibilização do isolamento estava no índice de leitos de internação e de UTI disponíveis. Com a pandemia, o SUS precisou de forma imediata de expandir leitos, adquirir equipamentos e insumos em grande quantidade. 13 Na Espanha, a capacidade de ampliação de leitos não UTI e de UTI fez operaram com dificuldade na aquisição de insumos de equipamentos individuais, reagentes de laboratório, pessoal especializado e equipamentos médicos, redução de internações de pacientes com outros tipos de comorbidades, principalmente nas UTIs. A flexibilidade de leitos foi o fator preponderante para o gerenciamento eficiente dos leitos hospitalares (SANCHEZ-ÚBEDA et al., 2021). 393 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Assim, evidenciaram-se as desigualdades regionais, e a articulação público-privada foi uma possibilidade e as potencialidades técnicas e políticas (CONTE et al., 2021). A expansão de leitos ocorreu de forma lenta e desigual: em abril foram habilitados 2.409 leitos e, em junho, a oferta totalizou 15.662 leitos públicos e hospitais de campanha. O maior número foi para a Região Sudoeste, 11,1:100.000 habitantes, na Região Norte, 7,3:100.000 habitantes. A Agência Nacional de Saúde (ANS) informou que a ocupação de leitos no serviço privado esteve em torno de 45% em abril e 61% em maio, sendo reduzidos em meses subsequentes, enquanto o SUS registrava índices acima dos 90% (CONTE et al., 2021). Alguns pontos mostram a falta de acesso ao leito do SUS durante a pandemia da COVID-19, como a demora na organização para o enfrentamento da pandemia, os leitos de hospitais de campanha que nunca saíram do papel, o atraso na liberação de recursos financeiros, a falta de integração dos leitos públicos e privados e a fila única nas Centrais de Regulação para o atendimento dos casos graves de COVID-19 (CONTE et al., 2021). Inicialmente, a unificação da fila seria controlada pelo Ministério da Saúde e articulado com estados e municípios e prestadores de serviços e pelas centrais de regulação de centrais únicas de vaga controladas pelos estados. O Senado Federal apoiou a unificação com a aprovação da Lei nº 2.324/2020, que permitia ao poder público o uso compulsório dos leitos de hospitais privados para internação de pacientes com COVID-19. Não chegou a acontecer por mobilização dos órgãos de controle dos serviços privados, que alegaram a ausência de gestão por parte do governo para controle da fila única, a desorganização da rede privada, a possibilidade de disputa judicial e o descrédito dos planos de saúde. Assim, restou ao Ministério da Saúde a opção de requisição de leitos na rede privada. Outro impasse foi o valor da diária de US$ 1,600.00 (mil e seiscentos dólares) considerado insuficiente para a cobertura dos gastos com o paciente com COVID-19 (CONTE et al., 2021). Então, as associações dos hospitais privados e dos planos de saúde, para evitar a fila única, e a requisição de leitos pelo setor público, propuseram a composição de leitos desativados nos hospitais públicos, a construção de hospitais 394 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS de campanha, a testagem da população e a contratação de leitos. Assim, a letargia do governo e a não coordenação do governo brasileiro privilegiaram o atendimento segmentado. Desse modo, a pandemia mostra as fragilidades de um sistema de saúde falido e uma imagem positiva do setor privado após as doações, que não modificou a prestação de serviço de saúde no momento da pandemia (CONTE et al., 2021). Em uma rápida projeção de casos, os hospitais precisaram aplicar estratégias imediatas para melhorar a capacidade de atendimento, incluindo a suspensão de cirurgias eletivas, a reconfiguração de profissionais médicos e leitos de UTI em todos sistema, buscando equipamentos de proteção individual e outros equipamentos, leitos adicionais, reaproveitamento de salas de pré e pós-recuperação, uso de equipamentos de anestesia, como ventiladores, e áreas de procedimentos, aumentando a capacidade em 65% (MURRAY, 2020). Outra demanda foi encontrar recursos humanos adicionais, utilizando como estratégias o aumento do número de horas extras, o treinamento de profissionais, que pequenas clínicas e até mesmo a comunidade e voluntários fizessem atendimento aos pacientes menos graves, o direcionamento de cientistas e professores para o atendimento clínico durante o surto de COVID-19; entre os profissionais, o mais difícil foram os enfermeiros de UTI. Outros problemas foram os suprimentos, a expansão de infraestrutura e a tecnologia da informação para registros médicos. Os custos financeiros foram diminuídos à medida que eram suspensos os procedimentos eletivos, como as cirurgias (MURRAY, 2020). Uma estratégia utilizada pela SES/DF foi o Plano de Mobilização de Leitos Covid-19 do Distrito Federal, que tinha como objetivo a transformação de alguns leitos existentes para atendimento de pacientes exclusivamente de COVID-19, criação de unidades de cuidados intermediários e alocação de leitos contratados na rede privada, segundo a necessidade, conforme indicadores epidemiológicos (intervalo mínimos de 14 dias entre uma fase Média Móvel de Óbitos). O fluxo de retorno também foi montado em relação ao retorno desse paciente da UTI, sendo pensado os leitos de retaguarda nas emergências e enfermarias (DISTRITO FEDERAL, 2020). 395 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 2.3 O fenômeno da judicialização Neste cenário de excesso de demandas, escassez de recursos, dificuldades de comunicação entre as autoridades, restrição de direitos, emoções negativas oriunda das dificuldades da compreensão e choque de informações sobre a pandemia e suas consequências, a judicialização teve solo fértil para uma crescente, o que não significava resolubilidade. A judicialização se caracteriza pelo fato de os cidadãos apelarem ao Poder Judiciário a fim de obter acesso aos serviços de saúde, tais como os leitos de UTI (CARVALHO; DAVID, 2013). Respaldados na Constituição Federal, muitos indivíduos recorrem ao terceiro Poder para ter resolutividade de direitos assegurados e garantindo, assim, ao cidadão, através da decisão jurídica, o que influenciou nas decisões coletivas, parecendo ser uma decisão mais política do que essencialmente jurídica, contrapondo direito individual sobre o direito coletivo. A literatura realiza uma crítica no que tange à sobreposição do direito individual sobre o direito coletivo e ao apontar que a análise jurídica, apenas centrada no manejo dos dispositivos legais, com suporte técnico centrado no relatório ou prescrição médica e na avaliação orçamentária, sem considerar o esgotamento das possibilidades existentes no SUS, parece não mais prover o acesso aos direitos perquiridos em seara judicial (NOGUEIRA; CARVALHO; DADALTO, 2017). Em complemento, é válido ratificar o quanto é onerosa a tramitação de uma demanda judicial. No entanto, ainda não existe uma ferramenta governamental capaz de dimensionar o total de recursos orçamentários executados desde a abertura da demanda até o seu trânsito em julgado. Deve-se atentar, também, ao fato de que a judicialização gera custos inesperados e altera a alocação de recursos futuros da saúde, tendo em vista que a maioria das demandas julgadas procedentes iniciam a geração de custos neste momento, e em alguns casos tais custos extrapolam o exercício fiscal em andamento (LAFFIN; BONACIM, 2017). Na tentativa de diminuir a judicialização, algumas estratégias já foram implementadas, dentre elas: apoio técnico ao Judiciário; comitês estaduais de saúde; 396 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS organização da assistência; sistemas informatizados de informação; processo administrativo diferenciado; e resolução alternativa de controvérsias. No entanto, o uso destas estratégias ainda se encontram restritas e pouco efetivas (YAMAUTI et al., 2020). 2.4 Métodos e técnicas O presente estudo é observacional, descritivo, transversal, retrospectivo, com abordagem quantitativa, e foi realizado com dados públicos, adultos e pediátricos, emitidos pela CERIH por meio do Protocolo Ouvidoria DF no 098102/2021 e do Processo SEI nº 00060-00355694/2021-39 em cumprimento à Lei Federal nº 12.527/201114, conhecida como Lei de Acesso à Informação Pública, que permite o direito à informação e publicidade aos dados públicos como regra. Sendo assim, não foi necessária a submissão para avaliação do Conselho de Ética. Os dados obtidos para este estudo foram coletados pela gerência da CERIH/CRDF, de forma informacional e manual, o que é fundamental para a produção de indicadores confiáveis. No entanto, alguns dados importantes ainda não possuem uma coleta plena, como é o exemplo do número de solicitações gerais por mês. No primeiro momento, foi realizado um levantamento bibliográfico e legislativo do tema e a caracterização do funcionamento do processo de trabalho da regulação, conforme registro em portarias e normas técnicas, documentos públicos emitidos pela SES/DF. Foram coletados dados sobre: quantitativo de leitos regulados públicos e privados, número de solicitações de leitos de UTI, número de casos judicialização, prioridade emitida de março dos anos de 2019, 2020 e 2021. Para tabulação dos dados, foi realizada planilha de Excel e, a partir dela, a análise das variáveis. Para a análise do quantitativo das solicitações judicializadas no mês de março de cada ano, foi levado em consideração o total de solicitações sob demanda judicial, independentemente da completude dos dados no registro manual da CERIH. 14 A Lei de Acesso à Informação Pública obriga os órgãos públicos a emitirem informações e dados que sejam relevantes para a produção de conhecimento, respeitados os dados que são considerados de sigilo. 397 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Entretanto, quando a análise envolveu o registro das prioridades e suas relações, foram excluídas as inserções em que a prioridade não estava devidamente preenchida. Para essa última análise, a amostra foi composta por 946 solicitações, sendo 100 delas em 2019, 95 em 2020 e 751 em 2021. Foram excluídas 94 solicitações. Os desfechos analisados foram classificados como: óbito, admitidos, retirada da lista e sem desfecho. Os classificados como óbito são os pacientes que faleceram antes que fossem admitidos em leito de terapia intensiva. Os admitidos foram os que conseguiram ser alocados em leitos intensivos. São considerados retirados da lista, os pacientes que obtiveram melhora antes da disponibilidade do leito ou que conseguiram leito intensivo por meios próprios ou por outras vias. E, finalmente, os classificados como sem desfecho, cujos dados não estavam corretamente registrados e, portanto, impossível saber o desfecho final. 2.5 Resultados Inicialmente, foram analisadas as quantidades de leitos de UTI que estavam disponíveis nos meses de março dos anos destacados, conforme mostra o Gráfico 1. Gráfico 1 - Quantidade de leitos de UTI regulados disponíveis, públicos e privados, no mês de março dos anos 2019, 2020 e 2021 Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021. O Gráfico 2 mostra que a proporção de leitos regulados disponíveis aumentou com o passar dos anos, passando de 329 leitos em 2019, para 349 em 2020, e 588 em 398 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 2021. No entanto, quanto ao financiamento, os resultados mostram que, em 2019, do total de leitos regulados, 82,37% tinham financiamento do SUS, e que este índice reduz para 47,85% em 2020, e para 30,78% em 2021, onde, gradativamente, aumentou a dependência do sistema privado para suporte dos pacientes do SUS. Gráfico 2 - Quantidade de solicitações de leitos de UTI que foram judicializadas, por ano Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021. Quando se observa o quantitativo de solicitações por leito de UTI que foram judicializadas, tem-se que 79% ocorreram em 2021, um aumento de 793,2% nos mandados judiciais entre os anos de 2020 e 2021. Quando se compara os anos de 2019 e 2021, o aumento das solicitações é de 736,6%. Após a análise geral da quantidade de solicitações judicializadas, seguiu-se para a análise levando em consideração os desfechos das mesmas, tal como mostra a Tabela 1. Tabela 1 - Quantidade de solicitações judicializadas X desfecho, por ano Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021. 399 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Embora a quantidade de solicitações tenha aumentado substancialmente no ano de 2021, esse foi o ano com pior desempenho com relação à resolutividade, pois mostra uma maior porcentagem de óbitos e menor admissão, com relação aos outros anos analisados. Observa-se, ainda, que a porcentagem de pacientes retirados da lista foi menor que dos anos anteriores. Posteriormente, foi investigada especificamente cada prioridade com relação ao desfecho a cada ano analisado, de forma a apurar melhor os dados, para melhor comparação ao que determina a Portaria no 200/2015. Sendo assim, a Tabela 2 traz os dados referentes às inserções com prioridade 1. Tabela 2 - Desfechos dos classificados como prioridade 1, por ano Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021. Ao analisar a tabela da prioridade 1, observa-se a mesma tendência mostrada na tabela anterior, na qual se tem um aumento da judicialização no ano de 2021, que não se traduziu em melhor resolutividade. A análise dos dados referentes à prioridade 2 são mostradas na Tabela 3. Tabela 3 - Desfechos dos classificados como prioridade 2, por ano Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021. Das solicitações judicializadas de prioridade 2, observa-se que houve uma queda de aproximadamente 50% nos pacientes admitidos na comparação entre os anos de 2019 e 2021. A Tabela 4 mostra a análise dos dados referentes à prioridade 3. 400 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Tabela 4 - Desfechos dos classificados como prioridade 3, por ano Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021. Quanto à prioridade 3, observa-se que a porcentagem dos admitidos foi decrescente ao longo dos anos, cuja menor porcentagem aconteceu no ano de 2021. Nota-se, adicionalmente, que a porcentagem de óbitos dos classificados como prioridade 3 é bastante expressiva. A Tabela 5 mostra a análise dos dados referentes à prioridade 4A. Tabela 5 - Desfechos dos classificados como prioridade 4A, por ano Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021. Nota-se que a porcentagem de admissão em leitos intensivos dos pacientes classificados como 4A é bem inexpressiva, ao mesmo tempo em que se observa uma maior porcentagem de retiradas da lista. A Tabela 6 mostra a análise dos dados referentes à prioridade classificada como 4B. Tabela 6 - Desfechos dos classificados como prioridade 4B, por ano Fonte: Dados CERIH/CRDF, 2021. Ao se analisar a Tabela 6, é notória a baixa quantidade de judicialização, tendo metade dos pacientes evoluído para óbito em todos os anos destacados, assim 401 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS como a porcentagem de retirados da lista. Apenas no ano de 2020 houve admissão de paciente com o perfil de classificação como 4B. 2.6 Discussão Antes de uma avaliação direta sobre os resultados, alguns eventos ocorreram nesses três anos de estudo, os quais podem explicar os resultados e merecem menção. O primeiro deles constitui a criação do IGESDF, que consiste em serviço social autônomo (SSA) criado pela Lei nº 6.270/2019 para ampliar o modelo do Instituto Hospital de Base (IHBDF), sendo responsável pela gestão do Hospital de Base e do Hospital Regional de Santa Maria, além das unidades de pronto atendimento (UPAs) do DF. Cabe ressaltar que a partir desse fato os leitos de UTI regulados desses hospitais foram considerados leitos contratados e não do SUS (Distrito Federal, 2019). Destaca-se que, em março de 2020, iniciavam-se os preparativos para a primeira onda da COVID-19 que ainda não havia chegado no DF. Em março de 2021, iniciavam-se os preparativos para a segunda onda da COVID-19, ou seja, haviam sido feitos esforços para a ampliação de leitos devido à primeira onda e já se esperava uma necessidade maior de leitos. Os resultados mostram que, conforme apontado mundialmente, o DF também aumentou substancialmente o número de leitos, tendo uma tendência em um aumento mais expressivo de leitos privados que leitos do SUS. Isto pode estar relacionado à escassez de leitos anterior à pandemia e às dificuldades já existentes em implementar novos leitos no SUS. No entanto, pelo número de óbitos apresentados nos três anos estudados, o quantitativo de leitos parece não ter sido suficientemente resolutivo. O que se pode inferir que a necessidade de investimentos no SUS merece ser gradual, conforme aponta literatura. Após os acontecimentos históricos, o que mais chama a atenção é o número expressivo de judicialização em 2021, se comparado com os demais anos. Observase um número relevante da participação do Poder Judicial em demandas individuais visando à garantia do direito constitucional à saúde. Estudos corroboram com os 402 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS resultados apresentados no ano de 2021, apontando o aumento do número de demandas judiciais e, principalmente individuais em detrimento de coletivas, que poderiam atingir o problema macro, minimizando/evitando as necessidades individuais não atendidas (DINIZ; MACHADO; PENALVA, 2014; VARGAS et al., 2018). Vargas et al. (2018), em seu estudo, apontam três categorias que fragilizaram o papel de gestão de recursos humanos com o advento da regulação, sendo classificadas por “deficiência de estrutura física e recursos humanos”, o que é evidenciado pela quantidade de leitos disponíveis nos diversos anos estudados, e com a redução do quantitativo de leitos disponibilizados com financiamento do SUS. Em seguida da “falta de políticas claras e critérios para internação de paciente na UTI”, o que é revelado pelo número de judicialização de prioridade 4A e 4B que não possuem evidência de melhoras com a internação em UTI e que deveriam ser encaminhados para unidades intermediárias ainda escassas na SES/DF, no entanto, continuam a ser inseridos na lista. Neste momento, aparece a fragilidade da dinâmica da linha de frente que, por receio do processo individual contra si, emite relatório para a judicialização e os operadores do direito que se apegam ao relatório médico e aos dispositivos legais existentes sem uma avaliação do contexto geral. A ausência uma avaliação multiprofissional ou um apoio do Núcleo de Assistência Técnica dos Tribunais pode contribuir para uma decisão sem imparcialidade (DINIZ; MACHADO; PENALVA, 2014; FREITAS; FONSECA; QUELUZ 2020; NOGUEIRA; CARVALHO; DADALTO, 2017; VARGAS et al., 2018). Ademais, Vargas et al. (2018) apontam a “Dispensa inadequada da UTI”, na qual se argumenta que os pacientes internados na UTI por ordem judicial podem não ser os beneficiados com esse tipo de assistência, e que os profissionais se sentem obrigados ao cumprimento de ordens judiciais de tal natureza, o que dificulta as possibilidades de os profissionais agirem de acordo com seus princípios éticos e de equidade. Ou seja, a aplicação da lei pode resultar em consequências não intencionais e até prejudiciais à saúde de alguns pacientes, como a transferência de um paciente mais grave de uma UTI para internar um paciente menos grave (VARGAS et al., 2018). 403 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Por fim, observa-se que nesse excesso de demanda especialmente apresentado na Era Covid, uma era marcada de restrições de direitos individuais, embora necessária a judicialização, nem sempre é eficaz, conforme demonstram os dados de óbitos e retirados da lista, e corroborando com essa ideia apontada estudo realizado com demandas no Supremo Tribunal Federal (STF) (BIEHL; PRATES; AMON, 2021). Os resultados mostram que, em sua maioria, as ordens judiciais são cumpridas de forma plena. No entanto, o registro de óbitos acima de 20% merece atenção e pode estar relacionado à gravidade da patologia na Era Covid ou, ainda, pelo uso de leitos com pacientes de prioridade 3 e 4 que não possuem tanto benefício com leito de UTI, mas que foram contemplados com ordem judicial. Nota-se que a prioridade 3 possui o maior índice de óbito se comparado às outras prioridades, independente do ano. Cabe ressaltar que, conforme expresso na legislação, os pacientes com essa classificação são instáveis e possuem baixa probabilidade de recuperação e podem ter limites e/ou esforços terapêuticos preestabelecidos que possam justificar os resultados. Por fim, quanto à prioridade 4, esses pacientes apresentam pouco ou nenhum benefício com a internação em UTI e, em regra, o tratamento intensivo não é recomendado, sendo sugerido, inclusive, que sejam retirados da lista de espera. Talvez esses pacientes fossem mais bem beneficiados com atendimento em unidade de terapia semi-intensiva. O cumprimento de ordens judiciais com pacientes de prioridade 4 dificulta o atendimento de pacientes em prioridade 1, que realmente são os pacientes com perfil ideal para UTI. Percebe-se, ainda, que apesar de todos os problemas apresentados a existência da CERIH se faz fundamental para um melhor gerenciamento e acesso dos leitos de UTI e que seu fortalecimento se faz necessário em todos os níveis de atenção à saúde visando cumprir os preceitos do SUS (FIGUEREDO; ANGULOTUESTA; HARTZ; 2019). 404 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 2.7 Limitações Uma das limitações apresentadas foi a falta de dados sobre o número de solicitações totais para internação em leito de UTI, ou seja, o sistema informacional existente não era capaz de informar quantos pacientes foram inseridos no mês na lista única. Outra limitação consiste na dificuldade de comunicação entre os diversos sistemas informacionais que suportam o registro, o prontuário eletrônico dos pacientes, tendo em vista que existem sistemas diferentes que não se interligam, o que inviabilizou a análise de todo o quadro clínico do usuário, bem como os dados administrativos de registro de judicialização. Sendo assim, o estudo se deteve aos dados de judicialização de registro manual da CERIH. 2.8 Valor e originalidade do trabalho Consiste em trabalho inovador e inicial que visa demonstrar a viabilidade e importância de realizar um estudo de maior magnitude com a intenção de relacionar demanda, leitos a UTI e os processos de judicialização durante o evento da pandemia da COVID-19, almejando a identificação de eventuais problemas e na previsão das soluções para minimizar os danos. Ademais, pode auxiliar na melhoria da formulação de indicadores e na alocação/realocação de recursos na pós-pandemia. No que tange à judicialização, pode-se evidenciar a necessidade de um diálogo mais aproximado entre justiça e saúde, assim como identificar onde nesses setores pode haver melhora para minimizar/evitar a judicialização e propiciar a resolubilidade. 2.9 Considerações finais A regulação em saúde é ferramenta de gestão que viabiliza a assistência, garantindo eficiência, eficácia, efetividade e otimização do melhor recurso. Amplia os princípios do SUS, buscando a universalidade e equidade na prestação de serviços. O evento da pandemia da COVID-19 mostra a fragilidade do SUS e sua dependência do setor privado para assistir a população do DF. Para o atendimento da população, foram necessárias a instalação de hospitais de Campanha, a criação de 405 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS leitos e a reativação de leitos não utilizados, além da contratação massiva de leitos da rede privada. Com todas as estratégias realizadas para o atendimento da população, poderse-ia esperar que essa estrutura permanecesse, mas se sabe que os hospitais de campanhas são provisórios e que a contratação dos leitos nas instituições privadas também é temporária. Resta, então, ao setor público fortalecer o Sistema de Regulação de Leitos, tornando a fila única uma modalidade de acesso aos leitos de UTI, trazendo justiça a todos conforme o preconizado pelo SUS. Este trabalho mostra as fragilidades do sistema de saúde do DF, visto o aumento dos processos de judicialização e a necessidade de o usuário recorrer ao terceiro Poder para buscar seu direito constitucional de saúde. Além disso, apoia os gestores na ampliação e fortalecimento do processo de regulação de forma intensa, permitindo que esse processo possa levar à tomada de decisões nos aspectos que envolvem a produção do cuidado, uma vez que é por meio da regulação do acesso que se torna possível conhecer as ofertas e as demandas em saúde. É notória a necessidade de um diálogo entre Executivo e Judiciário, no intuito de identificar as fragilidades de cada Poder, o que pode ser aprimorado, e de buscar soluções conjuntas aa fim de aumentar a resolubilidade de demanda do usuário, tendo em vista que essa é a ideia máxima de cada Poder. Tal proposta perpassa pela autoanálise de dos Poderes e criação de estratégias internas e conjuntas. Cabe ressaltar que se faz necessária a busca por soluções mais eficientes que repassem os mecanismos extrajudiciais antes do extremo da judicialização. E isto vai ao encontro ao desejo do Poder Judiciário, que tem estimulado a ampliação do emprego de ferramentas denominadas de Equivalentes Jurisdicionais, tais como a conciliação, que buscam a adoção de estratégias não jurisdicionais à solução de conflitos e, assim, consequentemente, a resolução consensual entre as partes e um atendimento mais imediato do usuário. O que é reforçado pela publicação da Lei nº 13.140/2015, que dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública (BRASIL, 2015). 406 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Ainda que não prospere a negociação e ocorra um consequente conflito, se faz pertinente não apenas uma avaliação do arcabouço jurídico existente, mas uma avaliação técnica e financeira mais precisa sobre a demanda para que se possa concretizar a justiça social. REFERÊNCIAS BARROS, F. P. C.; AMARAL, T. C. L. Os desafios da regulação em saúde no Brasil. Anais do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Lisboa (PT), v. 16, Supl. 3, p. S39-S45, 2017. Disponível em: https://anaisihmt.com/index.php/ihmt/article/view/42. Acesso em: 2 jul. 2021. BATISTA, S. R. et al. O Complexo Regulador em Saúde do Distrito Federal, Brasil, e o desafio da integração entre os níveis assistenciais. 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Os resultados revelam que a realidade imposta pela pandemia do novo coronavírus agravou mais ainda o contexto de vulnerabilidade social dos catadores. As questões de destaque relacionadas as vidas vulnerabilizadas em um contexto de pandemia devem-se a informalidade, precariedade e insalubridade do trabalho. A crise sanitária instaurada pela proliferação do SARS-COV-2 mostrou que esses trabalhadores são os mais vulneráveis no ciclo da reciclagem, o que intensifica a necessidade da proteção social do Estado em suas vidas, tanto no momento da pandemia quanto póspandemia de Covid-19. Palavras-chave: Catador de material reciclável. Covid-19. Vulnerabilidade. Políticas Públicas. ABSTRACT This research reveals the complex situation of waste pickers in the face of the Covid-19 pandemic at the national and district levels. The qualitative approach methodology consisted of documentary research that dealt with secondary information available on digital media (websites, blogs and social networks). We monitor and seek governmental actions; news in newspapers and magazines; and the posts on social networks of important representative entities of the category in Brazil. The results reveal that the reality imposed by the pandemic of the new 411 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS coronavirus has further aggravated the context of social vulnerability of waste pickers. The prominent issues related to vulnerable lives in a pandemic context are due to informality, precariousness and unhealthy work. The health crisis brought about by the proliferation of SARS-COV-2 showed that these workers are the most vulnerable in the recycling cycle, which intensifies the need for social protection of the State in their lives, both in the pandemic and post-pandemic Covid -19. Keywords: Waste pickers. Covid-19. Vulnerability. Public policies. 1 INTRODUÇÃO Este texto analisa, a partir das mídias digitais (sites, blogs e redes sociais), as publicações e postagens veiculadas nas redes sociais e sítios da internet do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), da Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (ANCAT) e da Central de Cooperativas de Materiais Recicláveis do DF e Entorno (CENTCOOP-DF). Além da investigação das notícias em fontes jornalísticas e nos atos governamentais do Distrito Federal (DF). As informações diagnosticadas tratavam-se a respeito do contexto vivido e de enfrentamento do novo coronavírus na realidade dos trabalhadores da catação em âmbito nacional e distrital. A finalidade busca revelar a situação complexa dos catadores de materiais recicláveis frente a pandemia de Covid-19. Segundo Urban e Nakada (2020), o sistema de reciclagem brasileiro é altamente vulnerável aos efeitos causados pela a pandemia de Covid-19, considerando os aspectos ambientais e econômicos provocados pela suspensão dos programas de reciclagem nas cidades brasileiras. De acordo com Vasconcelos et al. (2020), a base da reciclagem se configura, de maneira marcante e contraditória, pela exploração dos corpos de homens negros e principalmente mulheres negras. Eles desenvolvem suas atividades laborais em situações precárias, sem nenhum direito trabalhista, além de vivenciarem políticas sociais ineficientes, como o próprio direito à saúde pública. O que provoca a vulnerabilização de suas vidas. Em consoante com esse contexto, a pandemia de Covid-19 está revelando que os grupos populacionais que historicamente foram negligenciados, aqueles com baixa proteção ao emprego e as populações sem acesso 412 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS adequado a cuidados de saúde acessíveis estão entre os mais atingidos, especialmente ao maior risco de óbito (SANTOS et al., 2020, p. 236). Desse modo, evidencia-se que a pandemia vivida em escala global não representa a realidade cotidiana de forma homogênea ou universal, principalmente no contexto marcado pelas desigualdades sociais em saúde, haja vista que a manutenção do isolamento e distanciamento social não são aplicáveis a todos. Assim, os catadores de matérias recicláveis estão inseridos em um contexto marcado pelas desigualdades sociais de raça, gênero e classe social, sendo esses marcadores capazes de exercer influências negativas na vida desses trabalhadores, afetando também a situação de saúde dessa população (VASCONCELOS; GUIMARÃES; ZANETI, 2020, p. 3). Embora do ponto de vista biológico a doença seja padronizada, a forma como ela se revela socialmente apresenta diversidade de cunho econômico, social e cultural importantes de serem compreendidas para o entendimento e enfrentamento da crise sanitária, haja vista a vulnerabilidade social latente dos grupos de trabalhadores informais e das regiões de periferias urbanas. Segundo Ayres et al. (2009) a noção de vulnerabilidade busca responder a percepção de que a chance de exposição das pessoas ao adoecimento não é a resultante de um conjunto de aspectos apenas individuais, mas também coletivos e contextuais. Com quase a metade da população vivendo na informalidade no Brasil, desemprego e precariedade, não parece fácil impor o isolamento e distanciamento social sem criar, ao mesmo tempo, redes socioeconômicas de proteção compensatórias (CAPONI, 2020, p. 209). Em tratando-se da questão ambiental, a gestão dos resíduos sólidos, foi impactada pelas mudanças impostas pela proliferação do SARS-COV-2. Especialmente, ficou notório a importância do trabalho desempenhado pelos catadores de materiais recicláveis para coleta seletiva solidária, ao mesmo tempo que se mostraram também como os mais vulneráveis diante do ciclo da reciclagem. Essa realidade deve-se a fragilidade de subsistência dessa população, quando se encontraram sem renda durante o momento crítico da pandemia, consoante ao fechamento das usinas e dos galpões de triagem dos materiais recicláveis. Com a única fonte de renda suprimida e o contexto de vida já precarizado mesmo antes da 413 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS pandemia, esses trabalhadores demandavam uma especial atenção governamental e o reconhecimento da sociedade pelos trabalhos desempenhados em defesa do meio ambiente e da saúde nos territórios protagonizados por eles. Em contrapartida, a realidade colocada é de total ausência das políticas públicas e ações de proteção à saúde voltadas para os catadores diante de uma situação tão complexa como é a da pandemia. Ao retornarem ao trabalho vivem o dilema da quarentena do lixo reciclável e de outras medidas de proteção, principalmente pelo o risco de contaminação pelo SARS-COV-2, já que lidam diretamente com as sobras e a melindrosa insalubridade da ocupação, o que vem comprometendo a produção e a renda familiar mensal. A produção de resíduos sólidos nas principais cidades diminuiu durante o período de distanciamento social, possivelmente devido à redução da atividade nas áreas comerciais e a suspensão de programas de reciclagem (URBAN; NAKADA, 2020, p.3). Nesse sentido, no que tange a realidade dos catadores de materiais recicláveis é importante olharmos para esse grupo que já enfrentava situações complexas de precariedade do trabalho mesmo antes da disseminação do vírus, com duras rotinas de trabalho devido: a informalidade; o excesso de esforço físico; os riscos ocupacionais constantes à saúde e as doenças e sintomas cotidianos inerentes a atividade laboral; e a insalubridade do ambiente de trabalho (Vasconcelos, Guimarães e Zaneti, 2018). E que durante a pandemia foram agravadas por ficarem sem renda, terem que se reinventar em um contexto de alta do desemprego e contarem exclusivamente com a solidariedade de classe e as redes comunitárias para sobrevivência no momento crítico da pandemia de Covid-19, haja vista a desassistência por parte do Estado. Além disso, atualmente com flexibilidade e o retorno das atividades da catação nas associações e cooperativas os cuidados de proteção à saúde devem ser redobrados, haja vista o risco eminente de contágio, devido o descarte de produtos contaminados, luvas e máscaras. Os catadores de materiais recicláveis enfrentam constantemente uma realidade de precariedade do trabalho e da vida, de riscos químicos, biológicos, físicos, ergonômicos e emocionais vulneráveis, além dos acidentes (Gutberlet et al.,2013) e os agravos à saúde, a estigmatização e os preconceitos, as patologias e 414 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS sintomas provocados pelo trabalho que agravam diretamente a situação de saúde como: verminoses, infecção intestinal, gripe, leptospirose, dengue, meningite, dor de cabeça, dor de dente, febre, alergia e náusea (JÚNIOR, et al., 2013). Além disso constantemente os catadores são acostumados a trabalharem com infecções respiratórias agudas, infecções intestinais e diarreia aguda, dores nas costas e dores musculares (Ballesteros, Arango e Urrego, 2012). Historicamente, o contexto desses trabalhadores mostra a desvalorização da dimensão da vida humana (VASCONCELOS, et al., 2020, p. 108), mas que em uma situação de pandemia essas condições são intensamente agravadas, pois convivem diretamente com a falsa dicotomia protagonizada pelos governantes entre a escolha de proteção de suas vidas ou terem a manutenção da renda. Por enquanto que o Estado deveria ter dado total suporte social para manutenção do distanciamento social, além de ter intensificado nos territórios das periferias informações em saúde visando a proteção dos mesmos. Diante do período de pandemia pela falta de renda as questões econômicas e sociais aumentam a vulnerabilidade dessa população. Apesar da mudança do ambiente de trabalho, anteriormente desenvolvido nos lixões e aterros, ter propiciado melhorias significativas para a saúde ocupacional dos catadores, eles ainda sobrevivem a um contexto de desassistência do Estado, refletindo a ausência de políticas públicas de proteção social e ações em saúde direcionadas para esses trabalhadores informais. Esse cenário foi agudizado e agravado no momento da pandemia, onde os catadores ficaram em sua maioria desassistidos ou mais uma vez mal assistidos pelo poder público. Desse modo, o levantamento das informações divulgadas diretamente pelas organizações dos catadores de materiais recicláveis possibilita a busca para o entendimento mais específico das diferentes experiências dessa população em relação a doença em fontes diversas. Discute-se assim a maneira como a pandemia de Covid-19 perpassa pelo contexto dos catadores associados e cooperados, principalmente no momento mais crítico da pandemia. Ao mesmo tempo mostra a repercussão dada ao problema nas mídias digitais e jornalísticas, dando significado a complexidade do que esses trabalhadores vivenciaram e vivem diante da pandemia de Covid-19 no Brasil. 415 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS 2 METODOLOGIA Esta pesquisa constitui-se de uma abordagem qualitativa, mediante um estudo de natureza descritivo para análise retrospectiva nas mídias digitais (sites, blogs e redes sociais. Foram fontes de informações deste estudo, as publicações e postagens nas redes sociais e sítios da internet de entidades representantes dos catadores de materiais recicláveis no Brasil. Assim como investigou-se acompanhando e buscando nos jornais e revistas e nos atos governamentais elementos do contexto vivido pelos catadores na atual pandemia. As informações referem-se ao período compreendido entre o início da proliferação do vírus no Brasil, em março de 2020 tendo como marco o fechamento dos locais de trabalho a novembro de 2020, quando os catadores se encontram diante do dilema do retorno das atividades laborais de catação nas associações e cooperativas. Os estudos de abordagem qualitativa proporcionam uma interpretação da realidade a partir da perspectiva dos indivíduos e grupos, concentrando, assim na produção dos sentidos e significados, onde ocorrem os fenômenos sociais do qual faz parte o cotidiano (Minayo, 2007). Assim adaptado a realidade vivida de distanciamento social, onde apresenta limites e dificuldades relacionadas ao desenvolvimento da pesquisa de campo em loco. Este estudo tentou reproduzir os dilemas e a complexidade da pandemia na vida dos catadores frente a catastrófica crise sanitária instaurada. Nesse sentido, para realização deste trabalho, devido às medidas de distanciamento social e as medidas de proteção para diminuição da proliferação do vírus, estão sendo empregados instrumentos e técnicas de pesquisa que não exigiram a presença física ou a interação direta dos pesquisadores com os participantes. Embora acreditamos na importância de estudos empíricos realizados diretamente nas associações e cooperativas, quando estivermos em uma condição de mais segurança e contenção da pandemia. Essa readequação dos procedimentos metodológicos vem sendo empregadas em diversas pesquisas na área das ciências humanas e sociais, sendo as mídias digitais espaços potentes para estudos dessa natureza. Assim, este trabalho utilizou-se dados secundários do tipo documental, incorporando as informações nas fontes elencadas citadas anteriormente. Segundo Kripka, Scheller e 416 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Bonotto (2015) a pesquisa documental, configura-se como um procedimento para compreensão da realidade social e produção de conhecimento por meio da análise de variados tipos de documentos. Dessa maneira, as publicações, postagens e notícias veiculadas nas redes sociais e nos sítios da internet foram acompanhadas durante o período crítico da pandemia. As plataformas das redes sociais escolhidas foram o Facebook e Instagram, haja vista o intenso acesso dessas redes na atualidade. As informações divulgadas pelos principais representantes compõem a análise deste texto, tais como o MNCR, a ANCAT e a CENTCOOP/DF. Foram investigados os perfis e sítios de internet, procurando os dados e informações relacionadas a Covid-19 e a realidade dos catadores. Essas organizações foram as escolhidas por serem as principais representantes dos catadores de materiais recicláveis em âmbito nacional e distrital. Ao mesmo tempo que foi notado o engajamento desses grupos na divulgação de informações, pautas e lutas dos trabalhadores nas redes sociais no período da pandemia. Assim como também percebemos o engajamento na produção de lives no Youtube abordando o tema deste trabalho. As notícias veiculadas nas mídias digitais incorporadas foram de diferentes fontes distritais, principalmente do Correio Braziliense. As notícias, publicações e postagens tiveram seus conteúdos analisados através da metodologia de Bardin (1994), segundo esse autor a análise de conteúdo representa um instrumento de pesquisa utilizado para determinar a presença de sentidos e significados dentro de um texto ou conjunto de textos. Assim a partir da análise das informações contidas nos textos e das relações entre eles no período estudado, pode-se fazer inferências sobre a realidade enfrentada pelos catadores de materiais recicláveis no período da pandemia de Covid-19, as quais são apresentadas na próxima seção deste estudo. 3 RESULTADOS E DISCUSSÃO As mídias digitais revelam os dilemas experimentados pelos catadores de materiais recicláveis frente ao contexto da pandemia de Covid-19 ao longo do tempo no Brasil, embora cada realidade das regiões brasileiras tenha sua particularidade e os trabalhadores vivenciaram de forma diferente e singular cada contexto. 417 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Acreditamos que essa premissa se materializa justamente pelas disputas políticas e ideológicas que circunscreveram a adoção das reais medidas sanitárias necessárias para proteção da população ao vírus SARS-COV-2 e ao próprio reconhecimento da doença em si. Por essa razão, destacamos que não tivemos uniformidade em relação as medidas por parte dos entes federativos frente a realidade dos catadores na pandemia de Covid-19. Talvez isso tenha se dado dessa maneira pela inércia do governo Federal e das instâncias públicas da União junto as demandas e sensibilidades desses trabalhadores. Em consoante com esse contexto, buscamos neste trabalho discutirmos os elementos que elucidam de forma geral os momentos mais significativos e sentidos por esses trabalhadores neste período. Conforme informações divulgadas no sítio da internet oficial do Ministério da Saúde (MS), o novo coronavírus pertence a uma família de vírus e provoca a doença denominada Covid-19. Essa doença ocasiona problemas respiratórios como infecções que podem ser agravadas. Esse novo vírus foi descoberto em 31 de dezembro de 2019 na China. No Brasil, a doença teve os seus primeiros registros em janeiro de 2020. A transmissão acontece de uma pessoa que está contaminada para outro indivíduo, a partir de contato próximo entre estes. Esse contágio se dá também pelo contato com objetos e superfícies contaminadas, tosse, gotículas de saliva, espirro e aperto de mão. Em 11 de março de 2020, a Covid-19 foi caracterizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma pandemia, quando também começaram as movimentações nas mídias digitais dos representantes dos catadores de materiais recicláveis no Brasil. A pandemia de Covid-19 é um fenômeno mundial de características inigualável no sentido de sua extensão, velocidade de propagação, impactando de maneira avassaladora a população e os serviços de saúde, sobretudo as populações vulnerabilizadas (Santos et. al., 2020). A OMS pediu que todos os países intensificassem medidas emergenciais para reduzir o avanço da contaminação, entre elas recomendou a manutenção do distanciamento e isolamento social para a diminuição da proliferação do SARS-CoV-2. As recomendações para a proteção e prevenção são: usar máscaras; evitar circulação em locais propícios a aglomerações; manter o ambiente onde se vive 418 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS limpo e bem ventilado; evitar o compartilhamento de objetos pessoais (talheres, copos, toalhas, entre outros); higienizar com certa frequência o aparelho celular; evitar o contato físico; manter a distância mínima de 2 metros de qualquer pessoa; evitar o contato das mãos aos olhos e bocas; higienizar bem as mãos com água e sabão ou álcool em gel 70%. O escasso conhecimento sobre os modos de transmissão e o papel dos portadores assintomáticos na difusão do SARS-CoV-2, têm desafiado pesquisadores, gestores da saúde e governantes na busca de medidas de saúde pública não farmacológicas, na tentativa de evitar o esgotamento dos sistemas de saúde e permitir o tratamento oportuno de complicações graves, bem como evitar mortes (AQUINO, et al., 2020). Desde o início da extensão da pandemia nos países desenvolvidos a OMS alertava preocupação para quando o vírus atingisse a América Latina, cadáveres deixados abandonados nas ruas no Equador, baixo número de equipamentos ventiladores no Haiti e Guatemala, perfil epidemiológico de risco à doença como hipertensão, obesidade e diabetes no México, as condições sanitárias das favelas brasileiras superlotadas e o acesso ao saneamento básico limitado (BURKI, 2020). Esses elementos mostram a complexidade da crise sanitária instaurada nos países onde as dificuldades para se manter vivo já são infinitas. No Brasil, a Portaria Nº 188/GM/MS, de 4 de fevereiro de 2020, declarou emergência em saúde pública de importância nacional, em decorrência da infecção humana pelo novo coronavírus, mostrando preocupação com a situação demandada, o emprego urgente de medidas de prevenção, controle e contenção de riscos, danos e agravos à saúde pública. A Portaria nº 454, de 20 de março de 2020, declara em todo o território nacional, o estado de transmissão comunitária. Nesse ato fica destacado a necessidade premente de envidar todos os esforços em reduzir a transmissibilidade e oportunizar manejo adequado dos casos leves na Atenção Básica (AB) e dos graves na rede de urgência/emergência. A doença que já matou mais de 20 mil brasileiros avança nas periferias e afeta especialmente as populações vulneráveis (CAPONI, 2020). O momento complexo exigiu das autoridades sanitárias em âmbito nacional e internacional o distanciamento social da população como principal medida de 419 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS enfrentamento da doença, ao mesmo tempo que a adversidade primária gera outros problemas secundários como o comprometimento da renda dos trabalhadores informais. No Brasil, o cenário político de disputa das estratégias, no qual se soma, à crise sanitária, uma grave crise política, a implementação das medidas de controle, incluindo o distanciamento social, foi assegurada pelos governadores e prefeitos (e, por vezes, pelo Judiciário), principalmente nos estados mais afetados (Aquino et al., 2020; Caponi, 2020). A cada dia mundialmente à doença se espalha com grande potencial de transmissibilidade, sendo que os casos mais graves e a mortalidade estão associados a condições saudáveis. As comorbidades associadas mais comuns são doença pulmonar, diabetes e velhice (WESTON; FRIEMAN, 2020). Em contrapartida, qualquer ser humano pode se contaminar e também ser fonte de transmissão da doença, pois há os sintomáticos e os assintomáticos. Embora exista uma preocupação mundial maior com o grupo de pessoas de idade mais elevada, como os idosos, pois são pessoas dos grupos de risco para o desenvolvimento dos quadros mais graves da doença devido as comorbidades. No caso brasileiro outra preocupação acentuada referem-se as questões intrínsecas mais complexas as desigualdades sociais, posto que as periferias urbanas, onde vivem os catadores, possuem contextos propícios os quais facilitam a disseminação do vírus, visto a necessidade de renda, a precariedade do trabalho, as condições das moradias, a quantidade de pessoas em uma mesma casa, e tal como a escassez do saneamento básico. Nesse contexto, enquadram-se os catadores de materiais recicláveis que desde o início da pandemia de Covid-19 teve o sustento pessoal e familiar comprometidos com o fechamento dos galpões de triagem de materiais recicláveis. Esses locais de trabalho trouxeram inovação tecnológica para o processo produtivo da reciclagem no cotidiano dos milhares de catadores vinculados as associações e cooperativas de todo o Brasil. Esse processo de transformação do ambiente de trabalho da catação foi intensificado pelo poder público através da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) de 2010. Os catadores são trabalhadores informais com estreito diálogo com o poder público, demandando uma maior atenção governamental no sentido da proteção social (Vasconcelos, Guimarães e Zaneti, 2020). A necessidade de políticas 420 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS públicas e ações em saúde já era uma demanda antes mesmo do período da pandemia de Covid-19, mas que no momento oportuno intensificou tais peculiaridades relacionadas as condições de trabalho, a saúde, aos riscos de contaminação, a renda, a moradia etc. Diante desse contexto, no dia 16 de março iniciaram as postagens referentes ao novo coronavírus nas redes sociais do MNCR, inicialmente tratando-se de uma reportagem do Brasil de fato, cujo título era “Nada de pânico, mas nada de negação” diz médico sobre o coronavírus”. Ademais em 16 de março foi divulgado um vídeo de denúncia e pedido de socorro dos catadores do Distrito Federal (DF) devido às más condições de trabalho nos galpões do Governo do Distrito Federal (GDF). Em suma no vídeo uma catadora mostrava a realidade de um galpão “trabalhando no chão, muita gente doente”. Ela exigia providências do governo, alertando para os problemas de funcionamento em um dos motores das esteiras, mesmo com as dificuldades ela trabalhava para sua subsistência e da família, não podendo parar o trabalho, submetendo assim a uma condição desconfortante para ela e os colegas da associação. Esse vídeo da catadora acentua o contexto antes da pandemia de Covid-19, reclamações em relação as condições do ambiente de trabalho e a circunstância dos materiais recicláveis que chegavam sujos e eram perdidos. Além disso, mostra uma colega catadora que tinha feito uma cirurgia e mesmo com a região cirúrgica apresentando inchaço ela tinha que continuar trabalhando naquelas condições de agachamento constante devido aos problemas na esteira. No mesmo vídeo, a catadora diz não poderem paralisar o trabalho por não terem condições de pagarem multa por conta do contrato firmado com o governo. Percebemos que esse é um dilema evidente no momento da pandemia de Covid-19, onde essas fragilidades nas relações trabalhistas surgem à tona escancarando a precariedade do trabalho em suas vidas. Assim a vida dos catadores condiz com idas e vindas dessa possibilidade de submissão ao trabalho, de ausências das ações de proteção social por parte do Estado e ao mesmo tempo de resistência. Em 16 de março um outro vídeo foi divulgado, tratando-se de um caso de uma associação também do DF, o seu conteúdo expunha uma situação de 421 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS emergência, a catadora relatava “saiu um gás do meio do lixo” e os catadores começaram a passar mal devido a essa ocasião. Alertava para a necessidade de ajuda por parte do governo e mostrava preocupação em relação a saúde dos catadores. Nesse vídeo a catadora chamava atenção para o perigo da contaminação, apesar de alguns locais/comércios no DF naquele momento se encontrarem fechados os catadores continuavam trabalhando expostos aos riscos e à Covid-19 no trabalho sem nenhuma orientação até o momento por parte do governo. Devido ao incidente os catadores evacuaram o local. Em outra ocasião agora no Estado do Goiás antes do fechamento dos ambientes de trabalho pela Covid-19, mas em um contexto nacional de proliferação do vírus os catadores continuavam recebendo nos espaços das associações e cooperativas o material reciclável, sendo que neste período o poder público não ofertou nenhum Equipamento de Proteção Individual (EPI), assim como nenhuma orientação e informação em relação à pandemia de Covid-19. Ainda em 16 de março de 2020 postaram a primeira publicação diretamente relacionada a pandemia global e a proteção dos profissionais de catação de materiais recicláveis. Como ressaltado por eles as ações listadas eram complementares a outras históricas reinvindicações por melhores condições de trabalho, que cotidianamente deve ser exigido pelos poderes públicos, visando a segurança e qualidade no trabalho. Nesta publicação evidenciaram também a questão da segurança alimentar. As orientações contemplavam: 1) o cuidado na base; 2) a limpeza das áreas comuns; 3) educação ambiental e a colaboração na comunidade alertando também para o risco das arboviroses (dengue, zika e chikungunya); 4) busca de doações de produtos de higiene, máscaras e EPI junto as instâncias do poder público e no comércio das comunidades. Nesse sentido reforçavam que se o cooperado estivesse doente era para ficar em casa e procurar o atendimento no serviço de saúde, as medidas de higienização das mãos com álcool em gel 70%, a necessidade do uso contínuo durante o trabalho dos EPI, especialmente o uso das máscaras e a defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). Em um vídeo divulgado neste período um representante do MNCR do Estado de Goiás diz “A gente tá esquecido, parece que a agente não existe”, o catador mostra preocupação e medo de contaminação, haja vista a presença do vírus nos resíduos sólidos. Também fala sobre a segurança de permanecer em casa de 422 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS quarentena. Entretanto alerta para a responsabilização do poder público pelo “direito à quarentena”. Ele pontua questões relacionadas a falta de diálogo com as instâncias governamentais da prefeitura no que se refere a disponibilização dos EPI ou a ajuda de custos para poderem parar o trabalho. Uma catadora do Estado de Alagoas em outro vídeo divulgado cobra a agilidade do governador para as compras dos EPI e alerta sobre a vulnerabilidade da categoria. Em 24 de março de 2020, Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) e o Ministério Público do Trabalho, recomendam ao prefeito municipal de Belo Horizonte (BH), tendo em vista todo o cenário instaurado pela pandemia de Covid-19. A disponibilização e distribuição de Equipamentos de Proteção Coletiva (EPC) e EPI (luvas, botas, óculos, máscaras faciais, álcool em gel etc) nos ambientes de trabalho. O fornecimento de informações e treinamento para adoção das medidas de proteção à transmissão da Covid-19. Assim como a paralisação do trabalho realizado nas unidades de triagem de materiais recicláveis, principalmente pelos riscos desconhecidos e a possibilidade de disseminação do vírus para esses trabalhadores. E assim que encerram o documento pontuando sobre o auxílio financeiro temporário. Ao analisarmos as postagens das redes sociais percebemos que o mês de março e abril de 2020 foram marcados na realidade dos catadores de materiais recicláveis pela paralisação das atividades de coleta seletiva em diferentes regiões e no DF. Em algumas ocasiões os catadores paralisaram por conta própria por reconhecerem o risco que a categoria corria, tendo em vista que trabalham diretamente em um ambiente insalubre e altamente contaminante. Com os catadores suspensos das suas atividades nos galpões de triagem os materiais recicláveis estavam seguindo para os aterros sanitários, existindo também inclusive algumas associações e cooperativas pelo Brasil que não paralisaram as atividades laborais se submetendo ao risco iminente de infecção pelo SARS-COV-2, haja vista a periculosidade de contágio no contexto do trabalho na catação. No Distrito Federal (DF), as atividades de coleta seletiva de resíduos sólidos recicláveis, o recebimento e a triagem de resíduos recicláveis nos centros de triagem e o recebimento de resíduos nas usinas de compostagem foram suspensos pelo 423 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Decreto de Nº 40.548 de 20 de março de 2020. O período da suspensão é estabelecido no ato administrativo enquanto existisse o risco de transmissão do novo coronavírus. No mês seguinte, os poderes públicos, ao mesmo tempo impulsionado pela mobilização dos catadores, começaram uma articulação na tentativa de fornecerem um suporte financeiro básico por meio de pagamentos antecipados referentes aos contratos celebrados com cooperativas, autorizado pelo Decreto de Nº 40.626 de 15 de abril de 2020. Ao mesmo tempo que a pandemia culminou no fechamento dos galpões de triagem de materiais recicláveis e as usinas de compostagem do Serviço de Limpeza Urbana (SLU) do DF, com apenas três semanas sem nenhuma renda, os catadores de materiais recicláveis começaram a sofrer os efeitos da pandemia. Eles ficaram sem a única renda que sustentava as famílias, mostraram preocupação com o pagamento dos aluguéis de moradia, inquietação relacionada a manutenção financeira das associações e cooperativas; e também com a própria alimentação. Nesse período dependeram mais do apoio dos parceiros e ações comunitárias do que do próprio governo, já que foi um momento de pouco diálogo entre as instâncias públicas e a categoria. Além disso, manifestaram dificuldades para o recebimento dos auxílios financeiros prometidos a esses trabalhadores, tendo até que articularem mobilização para cobrança do auxílio junto aos órgãos da assistência social, vale destacar em um momento de distanciamento social. Desse modo, o primeiro impacto da Covid-19 na vida desses trabalhadores foi atingir significantemente na única fonte de renda e sobrevivência da maioria da categoria. Com isso, percebemos uma forte articulação de campanhas de solidariedade virtuais e comunitárias. Diferentes instituições e organizações públicas, parceiros, empresas, amigos e Universidades auxiliaram os catadores a enfrentarem esse período com a entrega nas associações e cooperativas espalhadas por todo o Brasil de cestas básicas, produtos de higiene e entre outros insumos ou na produção de informações em saúde. As campanhas solidárias e a união dos catadores tomaram conta de todo o território brasileiro Porto Alegre, Maceió, Salvador, Amazonas, Distrito Federal, Manaus, Belo Horizonte, Ceará, Curitiba, Paraíba e entre outras localidades. 424 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Ademais identificamos ações de “vaquinhas” online, mobilização nas mídias digitais, algumas com slogan do tipo “Ajude os heróis da cidade de São Paulo”; “Ajude os heróis da cidade do Rio Janeiro”, tais campanhas forneceram um apoio significativo para os catadores nos meses iniciais da pandemia, assim como as ações solidárias protagonizada pela CENTCOOP/DF nas associações e cooperativas do planalto central. Destacamos aqui a campanha em caráter emergencial protagonizada pela ANCAT, juntamente com o MNCR, a União Nacional de Catadores e Catadoras de Materiais recicláveis do Brasil (Unicatadores) e parceiros apoiadores, com slogan “Solidariedade aos catadores do Brasil Quem sempre cuidou da cidade e do meio ambiente agora precisa da sua ajuda!”, que contou com o envolvimento de artistas e atores na divulgação, cujo o objetivo principal era diminuir os efeitos dramáticos da pandemia na realidade dos catadores, pedindo alimentos, itens de higiene e EPI como suporte a esses trabalhadores no momento de pandemia vivido. Essa mesma campanha em meados do mês de junho de 2020 entregou os cartões de valealimentação para catadores de diferentes localidades. Em abril de 2020 existiu o alerta para a necessidade da renda básica emergencial, assim como os poderes públicos federais começava a se articular para auxílio emergencial no valor de 600,00 reais para adultos vulneráveis e 1.200,00 para as mães-solo. Assim como começaram a surgir alguns estudos relacionados ao tempo de permanência do SARS-CoV-2 nas superfícies dos materiais, tais como: cinco dias no plástico, 8 horas nas luvas cirúrgicas, quatro dias na madeira, quarenta e oito horas no aço, de duas a oito horas no alumínio, quatro dias no vidro e quatro a cinco dias no papel (Kampf et al., 2020). Em maio de 2020, aproximadamente dois meses após o início da pandemia e jornada sem renda de subsistência para os catadores de materiais recicláveis, os poderes públicos começaram a traçar algumas estratégias para subsidiar renda especificamente direcionada para os catadores de materiais recicláveis. Nesse momento surge também alguns planos de gestão para a atividade de catação visando a proteção e segurança no trabalho das associações e cooperativas. Ao mesmo tempo que alguns assumem o risco e retornam ao trabalho devido as necessidades 425 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS provocadas pela pandemia, assim não tiveram o direito de permanecerem em quarentena ou com mais segurança em casa. Identificamos neste momento a preparação da categoria, assim como o anseio deles para o retorno às atividades laborais, muito sentido pela necessidade de sustento das famílias. Tendo em vista esse contexto, a categoria estabelece através das lives um incansável diálogo entre os pares, com o universo acadêmico e atores governamentais. Destacamos que neste momento também continua um forte engajamento em torno da solidariedade para os catadores, mais especificamente no fomento a segurança alimentar através da entrega de cestas básicas nas associações e cooperativas. Em junho de 2020, foi um período de extrema dificuldade para os catadores de materiais recicláveis, com três meses da pandemia de Covid-19 com alta significativa no número de pessoas infectadas e óbitos no Brasil. Além desse cenário, a realidade mostrava a necessidade iminente de renda por parte desses trabalhadores que até o momento contavam com a rede de solidariedade e o auxílio emergencial, sendo que alguns ainda enfrentavam as dificuldades para o recebimento do auxílio emergencial. Paralelamente ocorria uma ameaça crescente à atividade e a finalidade das atividades dos catadores de materiais recicláveis para o meio ambiente, sendo um estágio marcado pelo interesse das usinas de incineração (PL 639/2015) e o medo do cancelamento dos contratos das associações e cooperativas junto ao poder público nas instâncias governamentais. O PL 639/2015 visa alterar a Lei nº 12.305, de 02 de agosto de 2020, que institui a PNRS, para incluir no plano municipal de gestão integrada, a queima de resíduos sólidos para geração de energia, bem como, conceder incentivo tributário para as empresas constituídas para este fim. Algumas frases marcam a ocasião de resistência dos catadores como: “Deus recicla, o diabo incinera” e “Vida saudável sem incineração: hoje e sempre”. Em uma das ocasiões na região metropolitana de SP a prefeitura cancelou o contrato de prestação de serviços de uma cooperativa de catadores de materiais recicláveis e estabeleceu um prazo de 30 dias para a desocupação do espaço. Os trabalhadores dessa unidade em um momento crítico da pandemia de Covid-19 relacionado ao número elevado de pessoas contaminadas e óbitos tiveram que iniciar uma jornada de luta e mobilização em defesa da manutenção do contrato. Assim ocuparam o local por dias e noites e iniciaram um estreito diálogo com o poder 426 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS público local. A mobilização dos catadores refletiu na renovação do contrato por mais três meses com vistas a negociação de um novo contrato definitivo. Desse modo, os catadores de materiais recicláveis iniciam diálogo com as indústrias da reciclagem, conversando mais sobre a proteção e segurança no trabalho para o retorno das atividades de catação num momento de pandemia. Algumas entidades se mobilizam para a retomada da coleta seletiva no Brasil, sendo que pontualmente neste momento algumas associações e cooperativas retornam as atividades tentando manter algumas orientações de segurança. Destacamos que ao mesmo tempo que umas já tinham retornado ao trabalho outras começavam a cobrar o poder público para o retorno ao trabalho. Ocorreu uma diminuição nas ações de fomento a segurança alimentar como a entrega de cestas básicas e começa uma rede solidária e comunitária para fomentar o trabalho como o recebimento de EPI, EPC e máscaras face shield para as associações e cooperativas visando o retorno ao trabalho. No DF o retorno ao trabalho foi permitido pelo Decreto Nº 40.847 de 30 de maio de 2020, que autorizou a continuidade dos serviços de coleta seletiva e triagem de resíduos sólidos recicláveis, desde que os prestadores de serviços apresentassem algumas exigências. As medidas requeridas pelo decreto exigem um plano de segurança e prevenção de risco para os catadores envolvidos nas atividades, a submissão a uma avaliação das autoridades sanitárias e aprovação pelo SLU. Em julho de 2020, tem relevância as ações dos Ministérios Públicos e Defensorias Públicas. Os catadores de materiais recicláveis iniciam uma luta para o retorno ao trabalho, principalmente pelo contexto complexo de dificuldades provocadas pela pandemia de Covid-19. Eles começam a defender o trabalho da catação como um serviço a ser considerado como essencial, justificando-se pelo maior consumo de embalagens descartáveis no momento da pandemia. Também destacamos que não só por uma questão ligada a Covid-19, eles se encontravam articulados realizando uma forte movimentação contra a incineração em defesa da reciclagem, do meio ambiente e da defesa do cooperativismo como uma forma de geração de trabalho e renda com oportunidade para os excluídos do mercado formal. A partir de agosto de 2020, pouco se abordou a respeito da realidade da pandemia, ganhando relevância outras pautas como a defesa e comemoração de 10 anos da PNRS que marcou o fim dos lixões e a valorização do trabalho do catador. 427 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS No DF o aterro controlado do Jóquei, popularmente conhecido como o “lixão da Estrutural”, foi fechado em 20 de janeiro de 2018 e era o maior da América Latina. De acordo com pesquisa feita por Mosna e Zaneti (2020), com o fechamento do citado lixão previsto na PNRS, a mudança dos catadores de materiais recicláveis no DF ocorreu para as Instalações de Recuperação de Resíduos (IRR), onde teve uma melhora nas condições de trabalho no que se referiu a diminuição de alguns riscos à saúde. Em contrapartida, na visão dos trabalhadores entrevistados por Mosna e Zaneti (2020), tal mudança teve um impacto negativo na renda, sendo que 80% deles preferiam correr os riscos do local de trabalho antigo do que ter tido o impacto significativo na renda. Consoante com essa realidade, atualmente a Covid19 também impactou severamente a renda desses trabalhadores, merecendo um acompanhamento e medidas a serem tomadas por parte do poder público durante a pandemia e pós-pandemia, para uma valorização do trabalho dos catadores, reconhecimento da importância da coleta seletiva e inclusão social efetiva dos catadores no mercado de trabalho e na sociedade. Em setembro de 2020, temos a primeira e única testagem gratuita para detecção de Covid-19 especificamente para catadores de materiais recicláveis no Rio Grande do Norte (RN) devido uma ação conjunta da Promotoria de Justiça do RN e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A divulgação do manual operacional reforçando a necessidade dessas medidas para proteção no trabalho. Assim como uma estratégia do governo paulista de ampliação do auxílio emergencial em São Paulo (SP), haja vista os catadores não terem retornado ao trabalho nessa região. Em outubro de 2020, temos a experiência do auxílio financeiro no Ceará. Percebemos que na medida em que as associações e cooperativas foram retornando ao trabalho, a Covid-19 não era mais um tema central de discussão, acabaram as postagens e as lives que abordavam o tema da pandemia em questão. A corrente solidária instaurada agora era para doação de EPI e EPC visando o retorno ao trabalho. Desse modo, o período de início do mês de novembro de 2020, foi marcado pelo retorno ao trabalho em SP e a retomada da coleta seletiva em Belo Horizonte 428 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS (BH). Durante todo esse período analisado percebemos um número significativo de homenagem e condolências na página do Facebook do MNCR aos colegas de categoria que partiram, alguns óbitos confirmados de Covid-19 e também por outras causas. Quadro 1- Apresentação das notícias incluídas veiculadas em algumas mídias digitais referente a realidade do DF. Nº Título da reportagem Nome da fonte Data 01 GDF proíbe coleta por cooperativas e que auxílio para catadores Metrópoles 20/03/2020 02 Governo do DF vai pagar auxílio a catadores durante pandemia da covid-19 Terra 21/03/2020 03 Catadores do DF enfrentam isolamento social dependentes de doações e sem saneamento e renda G1 14/04/2020 04 Coronavírus: Adasa reforça regras de coleta e destinação de lixo Correio Braziliense 15/04/2020 05 Ibaneis Rocha assina decreto autorizando retomada da coleta seletiva no DF Métropoles 30/05/2020 06 Contra infecção por Covid-19, catadores devem armazenar resíduos por 72h Metrópoles 01/06/2020 07 Observatório da UnB oferece diretrizes para a proteção dos catadores de material reciclável em meio à pandemia UnB 24/06/2020 08 Benefício calamidade: catadores recicláveis recebem primeira parcela de Correio Braziliense 09/09/2020 09 Pandemia causou impacto na reciclagem no Distrito Federal Correio Braziliense 20/09/2020 10 Covid-19 compromete sustento, sobrevivência e saúde de catadores de lixo Correio Braziliense 29/09/2020 11 Família de catadores de recicláveis pedem ajuda para sobreviver à pandemia Correio Braziliense 05/11/2020 Fonte: Elaboração própria. Ao acompanharmos as reportagens veiculadas na pandemia de Covid-19 referente a realidade do DF, percebemos forte mudanças nos aspectos sociais como 429 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS na lida cotidiana do modo de viver dos catadores de materiais recicláveis, ambientais como o comprometimento da vida útil do aterro sanitário de Brasília localizado na cidade de Samambaia e relacionados a saúde dos trabalhadores pelo risco de contaminação. Destacamos que para os catadores autônomos das “carrocinhas” nas ruas a rotina imposta pela disseminação do vírus não os impactaram significantemente igual os associados e cooperados, pois, ficaram mais expostos nas ruas. Entretanto, o fechamento dos comércios e os resíduos recicláveis disponíveis nos locais públicos tenham acarretado na queda da quantidade coletada influenciando na diminuição da renda também dos catadores autônomos. Os auxílios geridos pela Secretaria de Desenvolvimento Social (SEDES) do DF referente as três parcelas no valor de 408,00 reais, que alcançaram 34 entidades cerca de 1.156 trabalhadores, apresentaram dificuldades para chegar até os catadores e foram insuficientes para sobrevivência. A situação da pandemia de Covid-19 agravou mais ainda o contexto do trabalho precário, das desigualdades sociais e a mal inclusão dos catadores. O período foi marcado pela queda e ausência da renda mesmo recebendo os auxílios do governo, gerando nos trabalhadores sentimento de impotência e tristeza em presenciarem as famílias e os filhos passando por necessidades básicas, o medo de contrair o vírus, as incertezas com o futuro do trabalho. Em um momento significado pelo retorno ao trabalho vivenciaram diminuição do lucro e da produção, agravando mais ainda a realidade. Segundo reportagem intitulada “Pandemia causou impacto na reciclagem no Distrito Federal”, só no primeiro semestre do ano de 2020, houve diminuição de 45% na coleta de resíduos recicláveis no DF. Diante disso, apontamos para a necessidade urgente dos agentes públicos direcionarem políticas públicas voltadas para esse grupo social, pois esse contexto de pandemia mostra que esses trabalhadores são os mais vulneráveis no ciclo da reciclagem, embora sejam essenciais para a gestão dos resíduos sólidos urbanos. O lucro oriundo da produção e trabalho árduo nos galpões de triagem de recicláveis depende da quantidade e da qualidade do material. Assim salientamos a necessidade de a população também ter o compromisso de cuidar dos resíduos separando o material reciclável corretamente, em direção de uma vida mais sustentável. 430 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Com esse cenário complexo, fica evidente a relevância do diálogo permanente entre os poderes públicos com a categoria e de ações de prevenção de doenças e promoção da saúde direcionados especificamente para esse grupo social, perpassando por um compromisso governamental das políticas públicas e dos parceiros de instituições educacionais como o trabalho que vem sendo desenvolvido pela equipe da PrEpidemia vinculada a Universidade de Brasília (UnB), onde vem produzindo material de prevenção e proteção para os catadores. Salientamos a necessidade das testagens em massa dos catadores de materiais recicláveis para verificação e rastreamento dos casos de infecção pela Covid-19, necessitando de uma articulação estreita com os governos, Universidades e Institutos. Além da urgência do envolvimento de parceiros e das indústrias de reciclagem. Em busca de compreendermos a lógica de contaminação nesta categoria de trabalhadores das associações e cooperativas. Assim as medidas de proteção e promoção à saúde devem ser realizadas no cotidiano das associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis, não só em um momento da pandemia de Covid-19 que o cuidado à saúde desses trabalhadores deve ser colocado na agenda governamental. Os riscos à saúde são iminentes aos trabalhadores da reciclagem, mostrando sua condição de extrema vulnerabilidade, esse grupo necessita de atenção à saúde e programas específicos de saúde durante todo o ano e período. São necessidades latentes ações de violência doméstica, alimentação, oportunidades de capacitação e educação para os catadores e seus filhos, acesso as creches etc. As medidas de comunicação em saúde, sobre a importância do uso dos EPI e EPC no retorno ao trabalho, são de suma importância para o enfrentamento da pandemia na realidade da Covid-19. Assim como o fomento de informações fidedignas para esse grupo social relacionadas a pandemia, valorizando a escuta e preservando uma abordagem de educação em saúde significativa sobre o tema. Programas e ações específicos programados para catadores de materiais recicláveis na prevenção e cuidado em saúde são urgentes e necessários. As autoridades sanitárias devem alertar para as unidades básicas de saúde próximas as associações e cooperativas englobarem ações para esses trabalhadores. E também as associações e cooperativas devem ter a estratégia de elencar medidas internas para o cuidado em 431 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS saúde direcionado à própria organização do trabalho, como a instauração de uma Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A realidade de trabalho dos catadores de matérias recicláveis é marcada pela insalubridade, os riscos constantes à saúde dos trabalhadores. A renda orienta da atividade é obtida por meio da produção dos associados e cooperados. O perfil dos catadores de matérias mostra uma população de risco para a Covid-19, pois não estão incluídos na parte da sociedade que tem acesso as condições saudáveis. Nesse sentido nas associações e cooperativas encontramos facilmente trabalhadores cardíacos, doentes renais, diabético, trabalhadores com problemas pulmonares, respiratórios, gestantes e lactantes e pessoas com mais de 60 anos, constituindo assim além das vulnerabilidades sociais presentes na realidade deles também fazem parte do grupo de risco da doença. A paralisação da coleta seletiva e do trabalho nas associações e cooperativas foi necessária, tendo em vista o desconhecimento do risco de contaminação desses trabalhadores. Por outro lado, essa medida provocou a dependência de renda para subsistência, o sentimento de desemparo e os endividamentos (aluguéis de moradia, contas de luz, água e etc). Além disso, com a pandemia de Covid-19 cresceu o número de possíveis materiais contaminados como os lenços e as máscaras sujas, além das seringas com vestígios de sangue, pairando o medo de contrair o vírus, ao mesmo instante que os cuidados devem ser redobrados. Mesmo diante dessas dificuldades pouco fizeram os poderes públicos no apoio e proteção social dos catadores de materiais recicláveis no momento da pandemia de Covid-19. A renda básica emergencial do governo Federal pouco ajudou os trabalhadores, alguns governos locais ofertaram auxílio financeiro especificamente para os catadores de associações e cooperativas mais que também não se mostraram suficientes. Em face as dificuldades impostas pela pandemia de Covid-19, paralelamente os catadores tiveram que enfrentar pautas e lutas relacionadas a incineração e ao encerramento dos contratos com as instâncias públicas em algumas localidades. 432 A CRISE DA COVID-19 NO BRASIL E SEUS REFLEXOS Por fim, diante de toda essa complexidade da realidade dos catadores de materiais recicláveis em época da pandemia de Covid-19 ficou notório a potente rede de solidariedade nas mídias digitais e as ações comunitárias junto ao diálogo com os parceiros nos territórios e as instâncias governamentais. De fato, foram fundamentais para garantir minimamente a segurança alimentar das famílias desses trabalhadores e também no apoio e auxílio ao retorno em um ambiente de trabalho mais seguro protegendo mesmo que minimamente a saúde física dos mesmos. Apontamos para a necessidade urgente dos agentes públicos direcionarem políticas públicas voltadas para essa população e ações de informação em saúde eficientes sobre o SARS-COV-2 direcionadas para o ambiente de trabalho coletivo e a vida nas comunidades. O período da crise sanitária provocada pela pandemia de Covid-19 mostrou que esses trabalhadores são os mais vulneráveis no ciclo da reciclagem e intensificou a necessidade da proteção social exercida pelo Estado em suas vidas, tanto no momento da pandemia quanto pós-pandemia de Covid-19. REFERÊNCIAS AQUINO, Estela Maria Motta Lima Leão de et al. Medidas de distanciamento social no controle da pandemia de COVID-19: Potenciais impactos e desafios no Brasil. 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