A vacina em pauta: a produção de
sen�dos na cobertura da Folha de S. Paulo
The vaccine on the agenda: the produc�on
of meanings in Folha de S. Paulo’s coverage
LUISA MASSARANI
Edição v. 40
número 1 / 2021
Contracampo e-ISSN 2238-2577
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Instituto Nacional de Comunicação Pública
da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) – Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
E-mail: luisa.massarani7@gmail.com. ORCID: 0000-0002-5710-7242.
TATIANE LEAL
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Instituto Nacional de Comunicação Pública
da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) – Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
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Niterói (RJ), 40 (1)
jan/2021-abr/2021
IGOR WALTZ
A Revista Contracampo é uma
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da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) – Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
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AO CITAR ESTE ARTIGO, UTILIZE A SEGUINTE REFERÊNCIA:
MASSARANI, Luisa; LEAL, Tatiane; WALTZ, Igor; MODESTO, Michelle; BROTAS, Antonio Marcos Pereira. A vacina
em pauta: a produção de sentidos na cobertura da Folha de S. Paulo. Contracampo, Niterói, v. 40, n. 1, p. XXX-YYY, jan./abr. 2021.
Enviado em: 02/12/2020. Revisor A: 08/02/2021; Revisor B: 16/03/2021. Aceite em: 16/03/2021.
DOI – http://doi.org/10.22409/contracampo.v40i1.47457
Resumo
A mídia é uma das principais fontes para o consumo de informações sobre as
vacinas. Com o crescimento da desinformação e da hesitação vacinal, é fundamental
compreender como o jornalismo produz sentidos sobre esse recurso de saúde pública.
Neste artigo, analisamos a cobertura da Folha de S. Paulo durante um ano com o
objetivo de investigar de que formas as vacinas são pautadas pelo jornal. Observamos
aspectos como enquadramentos, fontes, explicação de conceitos, benefícios e riscos
da vacina. Os resultados mostram que as matérias analisadas assumem importante
papel ao aproximar a vacinação do cotidiano e promover seus benefícios. No entanto,
a abordagem de riscos e controvérsias e a participação cidadã aparecem em menor
escala, demonstrando que há espaço para ampliar as relações entre jornalismo,
ciência e sociedade.
Palavras-chave
Vacina; Mídia e ciência; Jornalismo científico; Comunicação em saúde.
Abstract
The media is one of the main sources for the consumption of information about
vaccines. With the growth of misinformation and vaccine hesitation, it is essential to
understand how journalism produces meanings about this public health resource. In
this paper, we analyzed Folha de S. Paulo’s coverage for a year to investigate how the
newspaper addresses vaccines. We observed aspects such as frameworks, sources,
explanation of concepts, and benefits and risks of the vaccine. The results show that
the analyzed articles play an essential role in bringing vaccination closer to everyday
life and promoting its benefits. However, the approach to risks and controversies and
citizen participation appears on a smaller scale, demonstrating room to expand the
relationship between journalism, science, and society.
Keywords
Vaccine; Media and science; Science journalism; Health communication.
Introdução
Temá�cas relacionadas à saúde e à ciência tradicionalmente ocupam um importante espaço
no campo da mídia (RAMALHO et al., 2012). Reportagens, capas de revistas, programas especializados,
colunas e seções fixas e atuação de profissionais da área como comentaristas e colunistas evidenciam a
existência de uma demanda do público por informações sobre saúde (CATALÁN-MATAMOROS e PEÑAFIELSAIZ, 2019c; LERNER, 2015). Em um cenário em que as mídias se apresentam como uma das principais
fontes de informações sobre saúde, ciência e tecnologia, seus conteúdos influenciam decisões co�dianas
relacionadas a esse âmbito. Assim, ao lado de especialistas e instituições do campo científico, a mídia se
apresenta como um dos principais agentes de construção do imaginário contemporâneo sobre a saúde
(CGEE, 2019; OLIVEIRA, 2014).
Nesse contexto, uma temá�ca tem se destacado em debates contemporâneos: a vacina (CATALÁNMATAMOROS e PEÑAFIEL-SAIZ, 2019c). De relevância central em coberturas jornalís�cas e conversações
nas redes sociais, esse assunto ganhou ainda mais destaque diante da crise causada pela pandemia de
COVID-19 em 2020, em que a vacina tem sido considerada como símbolo de esperança para o controle
da doença e o restabelecimento de uma possível normalidade após o distanciamento social. Entretanto,
a presença das vacinas na mídia não se deve apenas às suas potencialidades para erradicar, prevenir e
controlar doenças. Pelo contrário, ela tem sido atribuída à proliferação de informações falsas ou distorcidas
sobre sua segurança, confiabilidade e necessidade (CATALÁN-MATAMOROS e PEÑAFIEL-SAIZ, 2019c). Esse
quadro de desinformação (WARDLE e DERAKSHAN, 2017) tem sido associado, em diversos países, a um
crescimento da hesitação vacinal, ou a relutância ou recusa à vacinação apesar da sua disponibilidade
(OMS, 2014).
No Brasil, se desde a década de 1990 as coberturas vacinais infan�s ultrapassavam 95%, elas
declinaram de 10 a 20 pontos percentuais desde 2016. A ocorrência de surtos de doenças anteriormente
controladas, como os de sarampo em 2018, explicitam os riscos e danos da hesitação vacinal no país.
No entanto, vários fatores podem contribuir para reduzir a cobertura vacinal, desde a influência da
desinformação à dificuldade de obter a vacina (por exemplo, causada por restrições de horário e problemas
de acesso aos postos de saúde), além do próprio êxito das polí�cas de vacinação em massa, causando a
falsa sensação de que não é mais necessário vacinar e de que as doenças não seriam tão graves (SATO,
2018).
Ainda que as causas da hesitação vacinal sejam mul�fatoriais, há consenso de que a informação
midiá�ca tem um papel central para a promoção da saúde e o engajamento do público em relação às
vacinas (CANCIAN, 2020; CATALÁN-MATAMOROS e PEÑAFIEL-SAIZ, 2019b; SATO, 2018). Um estudo da
Avaaz em parceria com a Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) apontou que “mídias tradicionais”,
como televisão, rádio e portais de no�cias, são a principal fonte de informação sobre vacinas (68%), à
frente inclusive das midias sociais (48%) (AVAAZ, 2019). Dentre essas mídias, o jornalismo assume um
papel central, uma vez que as coberturas jornalis�cas sobre vacinação são importantes fatores de impacto
sobre a percepção pública frente às campanhas de vacinação (CANCIAN, 2020; SATO, 2018).
Diante desse cenário, analisamos neste ar�go a cobertura jornalís�ca da Folha de S. Paulo sobre
as vacinas no período de um ano. A par�r do protocolo analí�co proposto pela Rede Ibero-americana
de Monitoramento e Capacitação em Jornalismo Cien�fico (MASSARANI e RAMALHO, 2012), o obje�vo
geral é compreender os modos como um dos jornais mais lidos do país produz sen�dos sobre as vacinas.
Inves�gamos, assim, quais os principais enquadramentos operados, as fontes acionadas para legi�mar as
matérias e de que formas riscos, controvérsias e bene�cios das vacinas, bem como a divulgação cien�fica
de pesquisas e conceitos relacionados à imunização foram (ou não) abordados nessa cobertura.
A pesquisa se jus�fica pela relevância social do tema no contemporâneo, em que a�tudes de
hesitação vacinal que ameaçam a saúde pública têm sido associadas ao consumo de informação na mídia.
Diante da centralidade do jornalismo para a construção do imaginário sobre saúde, analisar a cobertura
acerca da vacinação pode fornecer subsídios para compreender como essa temá�ca tem sido tratada na
produção no�ciosa e contribuir para a reflexão sobre as interseções entre os campos da Comunicação,
Divulgação Cien�fica e Saúde.
Jornalismo e vacinação: a produção de sen�do
O jornalismo é um importante aliado dos campos da saúde e da ciência e tecnologia (C&T) na
popularização de informações sobre pesquisas cien�ficas, prevenção e cuidados de saúde, e polí�cas
públicas (OLIVEIRA, 2014). A prá�ca jornalís�ca também fomenta a par�cipação cidadã, ao aproximar
a C&T do co�diano e demonstrar suas interseções com as a�vidades socioeconômicas (OLIVEIRA,
2007). No que se refere às vacinas, o jornalismo assume funções sociais relevantes, como a prestação
de serviço, ao informar sobre campanhas de vacinação; a divulgação científica, ao explicar conceitos e
pesquisas; e a promoção da saúde, ao reafirmar a importância da imunização para a prevenção e controle
de doenças. Além disso, ele fiscaliza e avalia agentes governamentais no campo da saúde em nome do
interesse público. No contexto de crescimento da desinformação sobre vacinas, o jornalismo tem ainda
uma atuação fundamental na checagem de informações e no mapeamento de temas presentes nas redes
(CANCIAN, 2020; OLIVEIRA, 2014).
Para compreender a cobertura jornalís�ca sobre a vacinação, uma série de questões deve
ser levada em conta. Os sen�dos da saúde e da ciência que aparecem nos jornais não são dados, mas
produzidos discursivamente por diversos elementos da narra�va jornalí�ca e de seus modos de produção.
A própria divisão em editorias e os sistemas de nomeação dos espaços são elementos importantes para a
construção do sen�do. Apesar de Ciência e Saúde contarem com editorias específicas em diversos veículos,
esses temas são transversais e inves�gar sua abordagem entre diferentes seções fornece pistas sobre
como o assunto é (ou não) tratado nesses espaços (LERNER, 2015). No caso das vacinas, a transversalidade
da temá�ca, que se refere a diferentes doenças, pesquisas cien�ficas, questões econômicas e polí�cas,
acontecimentos locais e internacionais, a análise dos principais temas abordados, bem como sua
localização nessas editorias contribui para o entendimento dos sen�dos produzidos pela cobertura.
Além disso, em um contexto mul�mídia, a produção discursiva do jornalismo também engloba
recursos imagé�cos e audiovisuais que par�cipam da construção de sen�do (OLIVEIRA, 2014). Uma análise
de cinco anos da cobertura jornalís�ca espanhola sobre vacinas encontrou como imagens predominantes
fotografias de aplicações da vacina a par�r de seringas, especialmente em bebês. Em seguida, apareceram
imagens de doses de vacinas, seguidas por elementos associados à vacinação, como vírus e bactérias,
e fotos de cien�stas. Os autores destacam a subrepresentação de infográficos e visualizações de dados
(CATALÁN-MATAMOROS e PEÑAFIEL-SAIZ, 2019a). Esses elementos fornecem pistas sobre o imaginário
acerca da vacinação naquele país; portanto, uma análise dos recursos mul�mídia da cobertura jornalís�ca
brasileira seria oportuna para compreender os significados engendrados em nosso contexto.
Ainda sobre a narra�va jornalís�ca, a análise de enquadramentos permite observar os processos
de produção de sen�do presentes em um texto, por meio de operações como seleção, ênfase ou
silenciamento de determinadas ideias (ENTMAN, 1993). Esse entendimento é baseado no conceito de
“quadros”, compreendidos como “marcos interpreta�vos” que permitem aos atores sociais iden�ficar,
organizar e dar sen�do às interações vividas em determinados contextos norma�vos (FRANÇA, 2012;
PORTO, 2004). De tal modo, inves�gar os enquadramentos possibilita compreender a relação entre valores
socialmente par�lhados e os processos de seleção e construção jornalís�ca dos acontecimentos (SILVA e
FRANÇA, 2017).
Em relação a pautas de saúde, os enquadramentos ar�culados pelas no�cias podem influenciar
a opinião pública, as a�tudes individuais e as polí�cas de saúde, uma vez que ele define não apenas a
abordagem do tema, mas também possíveis soluções, o que atravessa os rumos do debate público. Como
lembra Rothberg (2010), não é possível afirmar que a mídia determine percepções e comportamentos
dos indivíduos, mas, ao introduzir e salientar certas ideias, seus efeitos não podem ser totalmente
desconsiderados. Assim, no campo da saúde, as soluções discu�das no debate público podem servir de
base para a formação de polí�cas púbicas futuras, enquanto aquelas que derivariam de enquadramentos
não u�lizados poderiam ficar apagadas nesses espaços (LIMA e SIEGEL, 1999; MENACHE, 1998).
A escolha das fontes também é relevante, uma vez que o jornal promove um arranjo par�cular
dessas falas e legi�ma determinados atores (em detrimento de outros) como emissores autorizados a
discorrer sobre determinado tema (LERNER, 2015). Em uma análise da cobertura da imprensa portuguesa
sobre a vacinação, Gomes e Lopes (2019) encontraram uma predominância de fontes oficiais e matérias
com uma única fonte, o que indica uma menor pluralidade de perspec�vas, com a sub-representação de
pacientes e organizações da sociedade civil. O papel dos cien�stas como fontes nesse �po de matérias
também é um importante aspecto a ser considerado na perspec�va do jornalismo como espaço para a
divulgação cien�fica e mediação entre esses especialistas e a sociedade.
Outros aspectos fundamentais na produção de sen�do das no�cias sobre C&T consistem na
explicação de conceitos, bene�cios, riscos e controvérsias da ciência. O jornalismo é considerado um
dos principais braços da divulgação cien�fica, exercendo importante papel na difusão de conhecimentos
muitas vezes não acessíveis à população apenas pela educação formal (AMORIM e MASSARANI, 2008).
Contudo, mais do que transmi�r informações em um modelo de déficit, em que especialistas que detêm
o saber transferem-no a quem supostamente não sabe, a divulgação cien�fica deve contribuir para o
engajamento do público em relação à C&T, promovendo o diálogo com as audiências, fomentando seu
protagonismo e facilitando a apropriação dessas questões em seu co�diano (MASSARANI, 2012). O
jornalismo tem um potencial significa�vo para a promoção desse modelo dialógico, uma vez que suas
informações podem aproximar a população de debates públicos na área e contribuir para elucidar causas
e consequências, a par�r de um referencial cien�fico, para questões que as pessoas enfrentam em suas
vidas, como problemas de saúde (AMORIM e MASSARANI, 2008; OLIVEIRA, 2007).
No caso das vacinas, a divulgação cien�fica pode contribuir para a promoção da saúde pública.
Ainda que sua eficácia seja largamente comprovada dentro da comunidade cien�fica, o crescimento da
hesitação vacinal demonstra que as pessoas têm dúvidas em relação às vacinas ou desconfiam dos agentes
responsáveis por sua produção ou aplicação. Sato (2020) reforça que essas preocupações não podem
ser menosprezadas e precisam ser acolhidas e explicadas por profissionais e especialistas. Estratégias de
comunicação em saúde que focam somente nos bene�cios das vacinas, sem buscar responder a essas
inquietações, podem falhar em promover sua aceitação por parte do público (DIXON e CLARKE, 2012).
Isso não significa que o jornalismo deve realizar um falso balanço entre argumentos pró e contra
vacina. Análises da cobertura jornalís�ca norte-americana demonstram que a correlação entre au�smo e
vacinação, já descartada por diversos estudos, aparece frequentemente como um entre dois (ou múl�plos)
lados da questão. Isso gera uma falsa equivalência entre as evidências cien�ficas que comprovam a eficácia
e a segurança da vacinação e uma afirmação que a ciência já comprovou ser improcedente. Entretanto,
a saída não é ignorar essas controvérsias, mas contextualizá-las, trazendo um background cien�fico de
pesquisas e evidências (DIXON e CLARKE, 2012).
Além disso, conceitos cien�ficos relacionados à vacinação, bem como possíveis riscos e danos
envolvidos em sua aplicação precisam ser esclarecidos. Pesquisas desenvolvidas no Brasil demonstram
que o modo como a cobertura sobre vacina é realizada é um dos fatores que impactam a a�tude do
público frente a campanhas de vacinação. A cobertura do surto de febre amarela de 2007-2008 como uma
epidemia descontrolada cuja única salvação seria a vacina, sem explicar sua ocorrência silvestre, é um dos
fatores que pode ser relacionado à busca indiscriminada pela imunização por pessoas para as quais ela
seria contraindicada (SATO, 2018). Já no surto de 2017-2018, destacou-se uma preocupação da cobertura
em detalhar as indicações e contra-indicações da vacina contra a febre amarela e explicar que os macacos
não seriam transmissores da doença, e sim “animais sen�nela”, que alertam sobre o seu espraiamento
(CANCIAN, 2020). Essa atuação jornalís�ca se destacou em um contexto marcado pela proliferação de fake
news sobre a doença em mídias sociais (SACRAMENTO e PAIVA, 2020).
Portanto, uma cobertura jornalís�ca capaz de explicar conceitos em torno da vacinação, reforçar
seus bene�cios e discu�r seus danos e riscos a par�r de uma contextualização cien�fica e social pode
contribuir para afastar uma visão maniqueísta da ciência e construir uma cultura cien�fica par�cipa�va
(OLIVEIRA, 2007), em que a vacinação possa ser vista como um direito a ser apropriado pelos cidadãos na
promoção de seu bem-estar e da saúde pública. Assim, ainda que a relação entre jornalismo e sociedade
envolva diferentes processos, inclusive dinâmicas de recepção das no�cias, a análise do conjunto desses
aspectos em uma cobertura jornalís�ca pode contribuir para compreender a produção de sen�do sobre
vacinação no contemporâneo.
Metodologia
Neste estudo, optamos por analisar a Folha de S. Paulo, por ser líder de circulação
entre os jornais do país, considerando a soma de suas versões impressa e digitais,
segundo o Ins�tuto Verificador de Comunicação.1 A posição destacada do jornal no
cenário midiá�co brasileiro o localiza como um importante agente formador da opinião
pública, entendida como o repertório de posicionamentos, juizos e hipóteses próprio
do público (GOMES, 2011). A opinião pública é construída a par�r de representações e
imagens compar�lhadas por diferentes grupos de interesses e atores sociais (LIPPMAN,
1922), entre os quais a mídia exerce um importante poder de agendamento (MCCOMBS
e GHANEM, 2008; ROTHBERG, 2010).
A etapa de coleta foi realizada a par�r do acervo digital da Folha. Realizamos
uma busca pelas palavras-chave “vacina”, “imunização” e correlatas, como vacinação,
vacinado(a) e an�vacina. Estabelecemos um recorte temporal entre os dias 1º de agosto
de 2018 e 31 de julho de 2019, de modo que a amostra abarcasse um ano completo e
fosse possível observar circunstâncias sazonais na cobertura. Optamos por inves�gar um
momento anterior à pandemia de COVID-19, contexto cujas especificidades demandam
uma análise específica, que está em curso.
Esses parâmetros geraram um corpus inicial de 603 matérias. Foram eliminadas
as duplicadas, as que foram publicadas em subsites da Folha de S. Paulo (como Livraria
da Folha) e textos de autoria de leitores. Foram excluídas também as publicações que
usassem a imunização de maneira metafórica, como no contexto de reality shows, e as
matérias em que as vacinas eram citadas rapidamente, mas não eram o tema central da
discussão. Após a aplicação desses critérios de exclusão, chegamos a um corpus de 132
matérias.
Na etapa de codificação, as matérias foram subme�das ao protocolo analí�co
desenvolvido pela Rede Ibero-Americana de Capacitação e Monitoramento em
Jornalismo Cien�fico (MASSARANI e RAMALHO, 2012). Essa ferramenta metodológica
foi escolhida por permi�r o mapeamento de diversos aspectos da cobertura jornalís�ca,
tais como enquadramentos, fontes, editorias e recursos mul�mídia; incluindo questões
relevantes para temá�cas de C&T, como a explicação de conceitos, a abordagem de
controvérsias, bene�cios, promessas, danos e riscos; e a representação de cien�stas nas
Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/01/folha-cresce-e-lidera-circulacao-entre-jornais-do-pais-em-2019.shtml. Acesso em: 17 nov. 2020.
1
matérias.
Para esta pesquisa, as categorias analí�cas como enquadramentos, bene�cios, danos, promessas
e riscos foram adaptadas à temá�ca da vacinação. Por fim, a codificação do material a par�r do protocolo
permi�u análises quan�ta�vas e qualita�vas da cobertura sobre vacinação na Folha de S. Paulo.
Mídia, saúde e co�diano: a vacina na Folha
No período de um ano analisado, as vacinas es�veram presentes na cobertura jornalís�ca da Folha
de S. Paulo em todos os meses, com maior concentração entre agosto e outubro, período das campanhas
contra pólio e sarampo, e em fevereiro e março, meses da vacinação contra gripe e do crescimento de
casos de febre amarela em 2019 (Gráfico 1).
Gráfico 1 – A presença de matérias sobre vacina em cada mês do período analisado
Fonte: Produzido pelos autores
Apesar de as campanhas terem sido ganchos importantes, a presença da temá�ca
durante todo o ano confirma a relevância da pauta das vacinas para o jornal. Das 132
matérias, foram 115 no�cias e reportagens (87,2%), 13 ar�gos (9,8%) de colunistas fixos
e convidados, três editoriais (2,2%) e uma entrevista (0,8%) com o pesquisador Akira
Homma, assessor cien�fico sênior da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Um total de 69 matérias (52,3%) esteve inserido na editoria “Co�diano”, voltada
para “a cobertura dos principais fatos nas áreas de educação, urbanismo, violência,
saúde pública, ambiente, administração pública e comportamento”. 2 Outras 29
matérias (21,9%) foram classificadas na editoria “Equilíbrio e Saúde”, que na definição
do jornal, é direcionada ao “bem-estar �sico e mental, informando e inspirando o leitor
que busca uma vida mais harmoniosa e saudável”. 3 Por outro lado, nenhuma matéria
foi publicada na seção “Ciência”, cujo obje�vo declarado é “tornar compreensível às
2
Disponivel em: h�p://www.publicidade.folha.com.br/folhadigital/editorias/. Acesso em: 15 out. 2020.
3
Idem.
pessoas leigas o trabalho de setores especializados”.4 Observa-se que a inserção das
vacinas como questões do cotidiano é predominante, o que demonstra que a vacinação
é compreendida como um recurso incorporado à vida das pessoas, destacando-se a
função do jornal de prestação de serviço sobre campanhas e ações governamentais.
Essa abordagem se relaciona à ampliação do conceito de saúde, que deixa de ser vista
apenas como a intervenção médica sobre doenças para ser compreendida como recurso
para a promoção do bem-estar na vida co�diana (BATISTELLA, 2008).
Analisamos ainda os enquadramentos sobre as vacinas privilegiados pela Folha e
os modos como o veículo (re)produz ideias e abordagens sobre esse importante recurso
de saúde pública. Foi possível iden�ficar no corpus dez enquadramentos, sendo que cada
matéria poderia apresentar um ou mais deles. No Quadro 1 sistema�zamos a descrição
de cada enquadramento, o número total de matérias em que eles aparecem e o número
de matérias em são iden�ficados como o enquadramento principal.
Quadro 1 – Descrição e presença dos enquadramentos sobre vacinas identificados na Folha
Enquadramento
Polí�cas públicas
Impacto da C&T
Sociocultural
Econômico
Bioé�co e/ou
jurídico
Novo
desenvolvimento
tecnológico
4
Idem.
Descrição
Ações, programas e estratégias
governamentais sobre
desenvolvimento, produção
e distribuição de vacinas;
campanhas, cobertura vacinal e
serviços disponíveis no SUS
Impacto que o desenvolvimento
cien�fico e tecnológico pode
gerar na sociedade e na qualidade
de vida de indivíduos e da
cole�vidade
Aspectos culturais e sociais
relacionados à vacinação
Âmbito econômico e
mercadológico do setor de
biotecnologia, envolvendo
investimentos, patentes e ações
de marketing
Princípios legais, é�cos e
morais envolvendo a produção,
distribuição e aplicação de vacinas
Anúncio de descobertas, de
resultados experimentais, de
ensaios clínicos e de novas vacinas
Número total
de matérias
em que está
presente
Número de
matérias em que é
o enquadramento
principal
93
64
85
24
43
15
20
9
14
9
10
6
Background
cien�fico
Incertezas
cien�ficas
Nova pesquisa
Controvérsia
cien�fica
Antecedentes cien�ficos gerais
sobre as vacinas, como pesquisas
anteriores, recapitulação dos
resultados e conclusões já
conhecidas
Riscos à saúde, efeitos adversos
e limites da ciência na produção
de conhecimento e na gestão de
riscos presentes e futuros
Bases cien�ficas e médicas das
novas pesquisas e descobertas
sobre vacina
Controvérsias cien�ficas
relacionadas às vacinas
6
1
4
1
3
2
1
1
Fonte: Produzido pelos autores
Como iden�ficado acima, “polí�cas públicas” foi o enquadramento predominante,
presente em 93 matérias (70,5%) e sendo o principal em 64 (48,5% do total), com o
grande enfoque trazido pelo jornal sobre ações públicas para imunização de populaçõesalvo. Esse dado vai ao encontro de trabalhos anteriores a respeito dos debates sobre
vacinas em redes sociais no Brasil, que também iden�ficaram uma concentração
das conversações em torno das ações governamentais (MASSARANI et al., 2020). No
Brasil, o Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado em 1973, foi responsável pela
unificação do calendário vacinal e ampliação da cobertura demográfica, etária e de
vacinas, consis�ndo em um programa de saúde pública internacionalmente reconhecido
e concentrando 90% das demandas por vacinas humanas no setor público (SILVA JUNIOR,
2013; GADELHA et al., 2020). Portanto, a cobertura de ações estatais reflete e reforça
a importância do Estado brasileiro no estabelecimento de uma “cultura da imunização”
no país, por meio de introdução de novas vacinas e de ações de vacinação em massa
(HOCHMAN, 2011).
Isso fica evidente, por exemplo, em matérias que destacam a atuação de entes
públicos em nível federal, estadual e municipal, como Ministério da Saúde alerta para
risco de surto de febre amarela no verão;5 Estados usam shopping, vacina à noite e busca
em casa para atingir meta;6 e Prefeitura vai visitar 13 mil casas para vacinar contra febre
amarela em SP.7 Essas matérias priorizaram a voz de representantes da área médica e
dos órgãos de saúde, com pouco ou nenhum espaço à fala dos cidadãos.
Além das “polí�cas públicas”, o enquadramento sobre os “impactos da C&T”
também teve destaque, aparecendo em 85 matérias (64,4%) e sendo o principal
em 24 (18,2% do total). A importância das vacinas para a saúde e qualidade de vida
aparecem especialmente em matérias sobre as quedas nos índices de cobertura vacinal
5 Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/co�diano/2018/08/ministerio-da-saude-alerta-para-risco-de-novo-surto-da-febre-amarela-no-verao.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
6 Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/co�diano/2018/09/estados-usam-shopping-vacina-a-noite-e-busca-em-casa-para-a�ngir-meta.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/co�diano/2019/02/prefeitura-vai-visitar-13-mil-casas-para-vacinar-contra-febre-amarela-em-sp.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
7
e a emergência de doenças já controladas, como em Com surto no Norte do país, total
de casos de sarampo já é o maior desde 1999;8 Casos de febre amarela põem cidades
do litoral paulista em alerta no feriado;9 Sarampo se alastra entre os ianomâmis na
Venezuela e mata 72;10 e República Democrática do Congo vive segundo maior surto
de ebola.11 A importância da imunização também é reforçada em matérias sobre
movimentos an�vacina, enfa�zando os riscos trazidos pela hesitação vacinal.
Na cobertura, destacam-se também algumas temá�cas rela�vas às vacinas. As
campanhas de vacinação e surtos no Brasil e no exterior fizeram do sarampo a doença
com maior espaço na Folha, mencionada em 40 matérias (30,3%). Além disso, também
foram abordadas a poliomielite e a gripe (incluindo H1N1), presentes cada uma em 16
matérias (12,1%) e a febre amarela, mencionada em 13 (9,8%). Essas menções es�veram
relacionadas a pautas sobre campanhas e ações de vacinação e o risco de reemergência
pela queda na cobertura vacinal.
Também foram recorrentes debates sociais em torno das vacinas. A questão da
obrigatoriedade foi discu�da em 11 textos (8,3%), incluindo três editoriais e ar�gos de
opinião. O debate se concentrou em torno da exigência de vacinação para matrícula de
crianças em escolas, a possibilidade de multa para pais que deixam de vacinar seus filhos
e o argumento da liberdade religiosa. A desinformação e os movimentos an�vacina
também se fizeram presentes em nove e seis matérias (9,8% e 4,5%), respec�vamente,
com ênfase nos riscos trazidos por esses fenômenos. Na matéria Governo mapeia 14
notícias falsas em média por dia só relacionadas à saúde, a Folha apresenta inclusive
um “manual” para evitar a propagação de fake news, incluindo tópicos como “Faça uma
busca na internet”; “Cheque a data”; “Leia a no�cia inteira” e “Se a no�cia não tem
fonte, não repasse”.12
Outra temá�ca relevante foi a cobertura vacinal. A Folha dedicou 37 matérias
(28%) à dificuldade de as campanhas a�ngirem as metas de imunização, especialmente
contra sarampo, pólio e gripe H1N1. As matérias se concentraram notadamente no
enquadramento “polí�cas públicas” (31 matérias), enfocando as ações do ministério
e das secretarias, como antecipação e prolongamento de campanhas, vacinação nas
escolas e em domicílios e até mesmo resgate do Zé Go�nha, personagem criado nos
anos 1980 para conscien�zação sobre a importância das vacinas. Contudo, apenas uma
matéria analisa os possíveis mo�vos da baixa adesão e propõe soluções para ampliar a
vacinação.
Em Medo de reação, falsa sensação de segurança e estrutura esvaziam
vacinação,13 a Folha afirma ter ouvido durante semanas “pais, mães, profissionais de
Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/co�diano/2018/08/com-surto-no-norte-do-pais-total-de-casos-de-sarampo-ja-e-o-maior-desde-1999.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
8
Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/co�diano/2018/09/casos-de-febre-amarela-poem-cidades-do-litoral-paulista-em-alerta-no-feriado.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
9
10 Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/10/sarampo-se-alastra-entre-os-ianomamis-na-venezuela-e-mata-72.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/mundo/2018/12/ebola-chega-a-grandes-cidades-do-congo-que-vive-o-segundo-maior-surto-da-doenca.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
11
12 Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/co�diano/2018/10/governo-mapeia-14-no�cias-falsas-em-media-por-dia-so-relacionadas-a-saude.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
13 Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/co�diano/2018/09/medo-de-reacao-falsa-sensacao-de-seguranca-e-estrutura-esvaziam-vacinacao.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
saúde, especialistas e gestores”. Contudo, a reportagem elenca uma série de explicações
— falsa sensação de segurança, incompreensão da necessidade de revacinação, horários
limitados de funcionamento dos postos etc. — principalmente a par�r da voz das
autoridades públicas. Apenas uma única personagem citada nominalmente não é ligada
a um órgão de saúde: uma mãe da zona oeste de São Paulo que expressou preocupações
sobre possíveis reações adversas. Ou seja, nem quando o jornal diz ouvir familiares e
profissionais do atendimento em saúde, a voz desses personagens aparece de modo
explícito.
De modo geral, a cobertura sobre vacina na Folha privilegia fontes
governamentais, sendo as mais recorrentes vinculadas ao governo federal (65 matérias,
49,2%), seguidas pelo estadual (41 matérias, 31,1%) e municipal (27 matérias, 20,5%).
Como já evidenciado, o enquadramento predominante de “polí�cas públicas” coloca
os entes governamentais como atores principais nesse debate, à frente inclusive de
representantes do campo cien�fico e dos profissionais de saúde. A seleção de fontes
cons�tui um importante processo de enquadramento na produção jornalís�ca, ao
legi�mar informações e construir representações sociais acerca das vacinas. Contudo,
as no�cias são também resultado de interações entre jornalistas e outros atores sociais,
nas quais as fontes ins�tucionais têm maior poder de agendamento, influenciando a
maneira como informações em saúde são tratadas na produção jornalís�ca (GOMES e
LOPES, 2019).
Também foram fontes das no�cias médicos (30 matérias, 22,7%), pesquisadores (28 matérias,
21,2%), organismos internacionais, como a OMS (20 matérias, 15,1%), sociedades cien�ficas (17 matérias,
12,9%) e profissionais de saúde (cinco matérias, 3,8%). Como já dito, é importante avaliar a forma como
cien�stas são enquadrados na produção jornalís�ca. Na cobertura de temas de ciência, esses profissionais
aparecem especialmente para conferir credibilidade às informações presentes nas matérias. Nesse
sen�do, no corpus analisado há um privilégio de pesquisadores de áreas como imunologia, infectologia,
medicina tropical e epidemiologia, além de polí�cas públicas em saúde.
Além disso, as 28 matérias que �veram cien�stas como fontes ouviram 35 pesquisadores homens
e 11 mulheres, o que explicita uma disparidade de gênero: cien�stas homens aparecem mais do que o
triplo de vezes que cien�stas mulheres, tendência já verificada em estudos anteriores com telejornais
brasileiros, em que eles aparecem o dobro de vezes e tem maior tempo de fala que elas. Essa assimetria
nas representações contribui para reforçar o imaginário predominante no senso comum que associa a
figura do cien�sta ao gênero masculino, invisibilizando e afastando mulheres da ciência (CARVALHO e
MASSARANI, 2017, MASSARANI et al., 2019; RAMALHO et al., 2012).
Já os usuários do SUS, pacientes e seus familiares foram significa�vamente menos ouvidos,
presentes em apenas dez matérias (7,5%). Esses cidadãos, em geral, são incorporados às no�cias para
personalizar e humanizar os conteúdos cien�ficos e de saúde, em um esforço de aproximá-los com o
co�diano dos leitores. Contudo, esse esforço é limitado a menos de um décimo do corpus. Frente ao
crescimento da desinformação no debate acerca das vacinas, é compreensível por um lado o privilégio
de fontes governamentais, ins�tucionais e profissionais, mas por outro a baixa presença cidadã nesses
espaços indica que há ainda oportunidades para ampliar a par�cipação social nos debates públicos sobre
vacinas.
Outro importante elemento de produção de sen�do são os recursos mul�mídia. As fotografias
foram muito recorrentes, usadas em 128 matérias (97%). Também houve o emprego de ilustrações, como
infográficos e diagramas (18 matérias, 13,6%), mapas (cinco matérias, 3,8%) e vídeos (3 matérias, 2,3%).
Em sua maioria, as fotografias nas matérias da Folha mostram crianças recebendo as vacinas, algumas
delas chorando, ou as mãos de profissionais de saúde manuseando seringas e ampolas. É importante
observar a forma como essas imagens são empregadas de modo a reforçar o imaginário social a respeito
das vacinas (OLIVEIRA, 2014). Por exemplo, fotografias de crianças chorando aparecem repe�damente em
diferentes matérias, inclusive em textos sobre a vacinação de idosos. Há também casos de cien�stas que
aparecem nas fotos e não são mencionados no texto, apenas fazem parte da galeria de imagens que foi
reaproveitada de matérias anteriores.
Buscamos observar ainda de que forma a cobertura do jornal contribuiu à difusão do conhecimento
cien�fico, por meio da apresentação de conceitos, controvérsias e desdobramentos do atual progresso da
ciência. Entre o corpus analisado, 45 textos (34,1%) explicaram algum conceito rela�vo à imunização.
A catapora, também conhecida como varicela, é uma infecção viral que causa
erupção cutânea, coceira e febre. Em casos graves, pode levar a complicações
como inflamação do cérebro, pneumonia e até a morte.14
As duas doses iniciais u�lizam um composto criado a par�r de um vírus
de resfriado modificado e que não causa a doença para “entregar” quatro
imunógenos — substância que induz respostas imunológicas.15
Por isso, antes do surto, a vacina tríplice viral, que protege contra sarampo,
caxumba e rubéola, já era oferecida gratuitamente durante todo ano pelo SUS
(grifos nossos). 16
Observar se e como conceitos cien�ficos são apresentados é um importante meio para entender
como o veículo presume que seu público está familiarizado com as vacinas e de que forma ele atua para
popularizar a ciência e qualificar os debates públicos. Hoje, o volume excessivo de conteúdos sobre ciência
e saúde disponíveis na rede dificulta a avaliação da qualidade das informações e da confiabilidade das
fontes, o que pode levar os usuários a conclusões infundadas (NAVAS-MARTÍN et al., 2012). Nesse cenário,
o jornalismo se cons�tui como um ator fundamental para a divulgação cien�fica. No entanto, a explicação
de conceitos se restringiu a 45 matérias (34,1%), o que pode indicar que no restante do corpus as vacinas
foram compreendidas como assuntos já dominados pela população. Por outro lado, um número maior
de matérias (58, ou 43,9% do total) oferece algum �po de recomendação de saúde aos seus leitores, por
exemplo, manter ambientes arejados, higienizar as mãos, evitar contato com pessoas contaminadas, estar
em dia com o calendário de vacinação e informar-se sobre vacinas antes de viajar.
Buscamos ainda inves�gar se os textos mencionam bene�cios e danos concretos, assim como
promessas e riscos potenciais da imunização. Na amostra, 63 matérias (47,7%) mencionam explicitamente
um ou mais bene�cios das vacinas e 55 (41,7%) citam uma ou mais promessas. Por outro lado, riscos são
bem menos presentes, aparecendo em 23 matérias (17,4%), e apenas uma cita um dano (Quadro 2).
Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2018/11/comunidade-an�vacina-esta-por-tras-do-maior-surto-de-catapora-em-decadas-em-estado-americano.shtml. Acesso em: 10 out.
2020.
14
Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2019/07/brasil-par�cipara-de-fase-avancada-de-teste-de-vacina-contra-hiv.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
15
16 Disponível em: h�ps://www1.folha.uol.com.br/co�diano/2019/07/baixa-imunizacao-contra-sarampo-faz-sao-paulo-levar-campanha-para-escolas.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
Quadro 2 – Descrição e presença dos benefícios, danos, promessas e riscos das vacinas
identificados na Folha de S. Paulo
Categoria
Bene�cios
Promessas
Riscos
Danos
Número de matérias em
que está presente
A vacina previne uma ou mais doenças
33
A vacina bloqueia a transmissão de uma doença
19
A vacina erradica uma doença
18
A vacina evita mortes
5
A vacina é eficaz
4
A vacina evita o sofrimento causado por uma doença
3
A vacina cura
1
A vacina é uma conquista
1
A vacina ameniza uma doença
1
A vacina irá prevenir uma ou mais doenças
40
A vacina irá bloquear a transmissão de uma doença
7
A vacina irá erradicar a doença
4
Novas vacinas estão a caminho
2
A vacina não irá causar doença
1
A vacina irá evitar mortes
1
A vacina irá evitar sofrimento causado por uma doenca
1
A vacina irá recuperar o setor pecuário
1
A vacina irá amenizar uma doença
1
A vacina pode fazer mal
17
A vacina pode causar uma doença
3
A vacina pode falhar
2
A vacina pode ser usada como arma biológica
1
A vacina agrava uma doença
1
Menções
Fonte: Produzido pelos autores
Como exposto no quadro acima, apenas uma matéria no período apresenta um
dano concreto. A no�cia Vacina contra dengue não deve ser tomada por quem nunca
teve o vírus, diz Anvisa17 aborda a decisão da agência de contraindicar a vacina para
pessoas soronega�vas, que podem desenvolver formas mais graves da doença caso
venham a ser infectadas pelo mosquito Aedes aegypti. Apesar da importância de
enfa�zar bene�cios e promessas das vacinas para reforçar sua relevância para a saúde
pública, o esclarecimento de possíveis dúvidas sobre riscos e danos é necessário diante
da proliferação da desinformação. A menor ocorrência desses aspectos na cobertura
demonstra que essa lacuna ainda pode ser mais enfa�camente explorada pelo jornalismo.
Por fim, também foi considerada significa�va a abordagem de possíveis
controvérsias em torno das vacinas, presentes em 36 matérias (27,3%). Uma controvérsia
pode ser compreendida como o embate de ideias e teorias ou a falta de consenso em
17 Disponível em h�ps://www1.folha.uol.com.br/co�diano/2018/08/vacina-contra-dengue-nao-deve-ser-tomada-por-quem-nunca-teve-o-virus-diz-anvisa.shtml. Acesso em: 10 out. 2020.
torno de determinados temas (RAMALHO et al., 2017). Entre os tópicos com maior
expressão, estão o movimento an�vacina; a hesitação vacinal; obrigatoriedade da vacina
versus liberdades individuais; efeitos adversos e as fake news. Discu�r abertamente
essas controvérsias pode contribuir para esclarecer possíveis dúvidas das audiências e
para ampliar o debate público.
Contudo, em apenas uma matéria uma controvérsia aparece como enquadramento
principal: Vacina contra sarampo não causa autismo, reafirma novo estudo com big data.
De acordo com a reportagem, “um novo e importante estudo publicado nesta semana
não aponta para associação entre a vacina contra o sarampo e o au�smo — um dos
mo�vos que pais invocam para não vacinar seus filhos” (grifo nosso).18 Ou seja, mesmo
que pesquisas anteriores já tenham descartado o risco, um novo estudo é considerado
“importante” frente aos ainda elevados índices de recusa vacinal. Assim, a controvérsia
é abordada, mas sem promover um falso balanço, apresentando um contexto dado por
pesquisas cien�ficas. Essa prá�ca, verificada em menor escala na cobertura, poderia
contribuir para sanar dúvidas do público sobre a vacinação.
Considerações finais
A análise da cobertura da Folha de S. Paulo revelou aspectos importantes para compreender a
produção de sen�dos sobre as vacinas no jornal. Elas são tratadas, primordialmente, como aspectos do
cotidiano. Isso se reflete na proeminência dessa editoria frente às demais (52,3%), inclusive a de “Equilíbrio
e Saúde” (21,9%). Essa abordagem reforça o entendimento da saúde como conceito amplo, relacionado
não apenas a ausência de doença, mas à promoção de uma vida saudável; e o tratamento da vacinação
como questão de polí�ca e saúde pública. Destacam-se os papéis de promoção da saúde e de prestação
de serviços do jornalismo, com a ênfase na abordagem de campanhas de vacinação e de recomendações
de saúde aos leitores.
A predominância do enquadramento de políticas públicas (principal em 48,5% e presente em
70,5%) e de fontes governamentais reforça a importância da vacina como recurso de saúde pública e o
papel do Estado em sua distribuição à população brasileira. O destaque dos impactos da C&T entre os
enquadramentos (principal em 18,2% e presente em 64,4%) também demonstra que a presença ou a
ausência da vacinação interfere significa�vamente na vida das pessoas. Os principais ganchos para tratar
de impactos se referiam a momentos em que a vacinação estava ameaçada: aumento de doenças, queda
da cobertura vacinal e movimento an�vacina. Esse aspecto demonstra que a cobertura dialoga com
desafios contemporâneos à promoção da saúde pública, como a desinformação e a hesitação vacinal. O
jornalismo se posiciona como ator importante, ao lado da ciência, para conscien�zar sobre a importância
das vacinas. No entanto, a sub-representação de pessoas comuns (7,5%) demonstra que a par�cipação
cidadã pode ser mais pautada pelo jornal no que se refere à vacinação.
O jornalismo da Folha também promoveu a divulgação cien�fica com o reforço dos bene�cios das
vacinas (47,4%), o combate à desinformação e a explicação de conceitos (34,1%), ainda que esse úl�mo
aspecto possa ser ampliado. Cien�stas, médicos, e sociedades cien�ficas apareceram frequentemente
entre as fontes. Contudo, houve disparidade de gênero entre os cien�stas entrevistados, com homens
aparecendo mais que o triplo das vezes que mulheres. Além disso, os recursos mul�mídia �veram foco
nas fotografias de crianças recebendo uma injeção. O fato de que essas imagens apareceram até mesmo
quando as matérias se referiam à vacinação de adultos contribui para a construção de um imaginário
18
Disponível em h�ps://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2019/03/vacina-contra-sarampo-nao-causa-au�smo-reafirma-novo-estudo-com-big-data.shtml. Acesso em: 11 out. 2020.
limitado sobre as vacinas como restritas à infância.
Além disso, riscos (17,4%) e controvérsias (27,3%) poderiam ter sido mais abordados pela
cobertura, uma vez que a crescente hesitação vacinal demonstra que a população tem dúvidas sobre
as vacinas. Esses aspectos têm sido largamente explorados em prá�cas de desinformação, portanto,
reforça-se o papel do jornalismo em abordá-los, trazendo contextualização e pesquisas cien�ficas ao invés
de invisibilizá-los. A divulgação de pesquisas cien�ficas, por fim, também encontra espaço para crescer
na cobertura, uma vez que nenhuma das matérias foi posicionada na editoria de “Ciência”. Assim, a
predominância do tratamento da vacina como questão do co�diano, por um lado, produz sen�dos em que
o acesso a esse recurso faz parte da vida e deve ser apropriado pelas pessoas. Por outro lado, traz o risco
de invisibilizar seu enquadramento como um recurso desenvolvido e em constante aprimoramento pela
ciência, sendo alvo de pesquisas cuja divulgação poderia contribuir para sanar dúvidas. Se o imaginário
sobre saúde construído na mídia convoca as pessoas a se apropriarem desse campo como aspecto da vida,
as relações entre C&T e co�diano ainda encontram espaço para ampliação no jornalismo.
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Luisa Massarani é divulgadora científica e coordenadora do Instituto Nacional de Comunicação Pública da
Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT), sediado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e do Mestrado Acadêmico
em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). É Doutora em
Gestão, Educação e Difusão em Biociências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Mestra
em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). Neste
artigo, contribuiu com a proposta geral do estudo sobre a cobertura jornalística das vacinas; a concepção
do desenho da pesquisa; a supervisão da redação e da revisão do manuscrito e revisão da versão em
língua estrangeira.
Ta�ane Leal é pesquisadora de Pós-Doutorado do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência
e Tecnologia (INCT-CPCT), sediado na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com bolsa FAPERJ. É Doutora e
Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde também se
graduou em Comunicação Social/Jornalismo. Neste artigo, contribuiu com desenvolvimento da discussão
teórica; interpretação dos dados; apoio na revisão de texto; redação do manuscrito.
Igor Waltz é pesquisador de Pós-Doutorado do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), com bolsa PDR10 da
FAPERJ, e pesquisador do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT).
É Doutor e Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde
também se graduou em Comunicação Social/Jornalismo. Neste artigo, contribuiu com desenvolvimento da
discussão teórica; interpretação dos dados; apoio na revisão de texto; redação do manuscrito.
Michelle Modesto é Mestre em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), docente da ECDD/Infnet e pesquisadora do coLAB/UFF. Neste artigo, contribuiu com a coleta e
interpretação dos dados.
Antonio Marcos Pereira Brotas é pesquisador em saúde pública do Instituto Gonçalo Moniz (IGM/
Fiocruz Bahia). É Doutor em Cultura e Sociedade e Mestre em Comunicação e Cultura Contemporânea
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde também se graduou em Comunicação. Neste artigo,
contribuiu com a concepção do desenho da pesquisa.