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UNIVERSID 2 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS ESTUDOS DE GRADUAÇÃO: GRACILIANO RAMOS, GUIMARÃES ROSA E CLARICE LISPECTOR Jaime Ginzburg (org.) DOI: 10.11606/9788575063637 Está autorizada a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. Proibido o uso para fins comerciais. 3 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor: Prof. Dr. Tahan Agopyan Vice-Reitor: Prof. Dr. Antonio Carlos Hernandes Diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas: Profa. Dra. Maria Arminda do Nascimento Arruda Chefe do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas: Prof. Dr. Manoel Mourivaldo Santiago Almeida Coordenadora da área de Literatura Brasileira: Profa. Dra. Eliane Robert Moraes Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira: Prof. Dr. Augusto Massi Grupo de Pesquisa Literatura e cinema no Brasil contemporâneo Coordenação: Prof. Dr. Jaime Ginzburg 4 5 Organização: Prof. Jaime Ginzburg Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo Autores: Alice Santana de Lima Allan Monteiro Pessoa Beatriz Rodrigues de Souza Bianca Novaki Ferrari Diogo Moreira Martini João Vitor Guimarães Sérgio Larissa dos Santos Rocha Pedro Oswaldo Horta Martins Pena Vitor Kenzo Kadowaki Vitoria Cordeiro Belinato Vitória Tonetti Martini Estudantes do curso de Letras Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo Prefácio: Ariadne Tadeu Pinheiro Arruda Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo 6 Este livro é dedicado a todos os alunos, funcionários e professores do curso de Letras da USP. 7 AGRADECIMENTOS Agradeço ao Prof. Dr. Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, chefe do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP, que apoiou esta proposta, e conduz a gestão do Departamento com excelência, incentivando a realização de atividades voltadas para o ensino de graduação; ao Serviço de Editoração e Distribuição da FFLCH, pelo apoio na configuração da ficha catalográfica; à Ariadne Tadeu Pinheiro Arruda, que ajudou os alunos, com seriedade e generosidade, na elaboração e revisão de seus textos; ao CNPq, pelo apoio através de uma bolsa de produtividade de pesquisa, que ajuda a desenvolver iniciativas novas; aos membros do Grupo de pesquisa Literatura e cinema no Brasil contemporâneo, que contribuíram para esta proposta; a meus orientandos e pós-doutorandos; aos colegas da área de Literatura Brasileira. 8 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO ..................................................................................................................................... 9 PREFÁCIO - ARIADNE TADEU PINHEIRO ARRUDA .............................................................................. 16 AS PERCEPÇÕES DE VIOLÊNCIA NAS NARRATIVAS DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE GUIMARÃES ROSA, E SÃO BERNARDO, DE GRACILIANO RAMOS - DIOGO MOREIRA MARTINI ................................ 24 A VIOLÊNCIA DECORRENTE DAS RELAÇÕES DE PODER EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS E EM SÃO BERNARDO - ALICE SANTANA DE LIMA ................................................................................................... 41 A AGRESSIVIDADE E A VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS E SÃO BERNARDO - VITÓRIA TONETTI MARTINI ........................................................................................ 50 A EDUCAÇÃO E A AUTORIDADE EM SÃO BERNARDO E EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS - BIANCA NOVAKI FERRARI..................................................................................................................................................... 57 A VIRILIDADE NAS SOCIEDADES PATRIARCAIS DE S. BERNARDO E GRANDE SERTÃO: VEREDAS - ALLAN MONTEIRO PESSOA ................................................................................................................................... 65 O DOMINADOR E O DOMINADO: AS RELAÇÕES DE PODER EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS E A HORA DA ESTRELA - JOÃO VITOR GUIMARÃES SÉRGIO ......................................................................................... 75 DESEJO E TRANSFORMAÇÃO – UM ESTUDO SOBRE O MISTICISMO EM A HORA DA ESTRELA E GRANDE SERTÃO: VEREDAS - VITOR KENZO KADOWAKI ..................................................................................... 84 LETRAMENTO, LITERATURA E EDUCAÇÃO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS E A HORA DA ESTRELA: UMA COMPARAÇÃO - LARISSA DOS SANTOS ROCHA ....................................................................................... 91 O NOME E A PALAVRA: LINGUAGEM E FORMAÇÃO DO SUJEITO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS E A HORA DA ESTRELA = PEDRO OSWALDO HORTA MARTINS PENA.................................................................... 101 A REPRESSÃO COMO IMPEDIMENTO: O FRACASSO DAS RELAÇÕES AMOROSAS EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE GUIMARÃES ROSA E A HORA DA ESTRELA, DE CLARICE LISPECTOR - BEATRIZ RODRIGUES DE SOUZA ............................................................................................................................ 109 O TEMPO DA EVOCAÇÃO EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS E A HORA DA ESTRELA: BREVE ANÁLISE SOBRE O PRENÚNCIO DA MORTE E A BUSCA PELO SENTIDO DO SER NO MUNDO - VITORIA CORDEIRO BELINATO ................................................................................................................................................ 118 9 APRESENTAÇÃO Jaime Ginzburg Este livro contém textos de análise e interpretação de obras literárias brasileiras do século XX. Eles foram redigidos durante as atividades de duas turmas da disciplina FLC 0201, no curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, no segundo semestre letivo de 2017. Objetivamente, o livro não apresenta o que, como professor, eu gostaria de trazer a público: as condições nas quais, durante um período de poucas semanas, os estudantes construíram suas propostas, estudaram seus materiais, discutiram as etapas de reflexão, iniciaram a redação, reelaboraram o que fizeram, e apresentaram os resultados. Estamos acostumados a descrever a presença de mérito em um trabalho acadêmico com registros em históricos escolares. A meu ver, os processos de reflexão sempre são mais importantes do que as notas, porque neles ocorrem as transformações que poderão levar ou não um estudante a uma vocação profissional consciente. De professores, em cursos de Letras nos mais variados locais do país, é esperada uma produção acadêmica, expressa em indicadores quantitativos. A cada nova situação, podemos ser chamados para prestar contas sobre o número de trabalhos, a quantidade de disciplinas ou os prazos de nossos orientandos. Para os alunos, quando cursam em média oito disciplinas diferentes por semestre, obter aprovação em todas elas, dando conta das mais variadas necessidades, exige um regime de contenção, em que a distribuição de atenção para cada tarefa precisa ser quantificada. A sociedade cobra resultados, que em determinados momentos são avaliados na forma de números. Porém, um curso de Letras não é uma linha de montagem, e a produção acadêmica nessa área não é alinhada com uma concepção teleológica imediatista de desenvolvimento tecnológico. Quem está interessado em cobrar resultados em forma de números pode, talvez, perder de vista os processos de construção de conhecimento acadêmico. E é neles que cabe prestar atenção, neste momento, em maio de 2019, pois é tempo de valorizar o que fazemos. Não é tanto nos resultados finais, mas nos processos de reflexão que aparece a singularidade dos estudos literários. É nos modos de ler, nas práticas de análise, nas questões interpretativas, nas referências para o andamento do pensamento, que estudantes de Letras às vezes encontram uma razão para construir uma vida de reflexões, e estabelecer um perfil profissional compatível para isso. Critérios de atribuição de mérito acadêmico podem variar, de disciplina a disciplina, de instituição a instituição. No caso deste livro, foi realizada uma seleção entre os trabalhos 10 apresentados em duas turmas de Literatura Brasileira II. A seleção poderia ter sido mais abrangente. Entre as aulas da disciplina e a configuração do livro, estes textos foram expostos oralmente, lidos por alunos de pós-graduação, e absorveram críticas e sugestões de revisão. Para além disso, eles expressam que muito pode ser feito, em condições de tempo limitadas, com a dedicação ampla de estudantes a reflexões sobre temas que despertam sua motivação. Um elemento comum aos textos reunidos é a perspectiva interdisciplinar. De variados modos, os autores se apropriaram de conhecimentos em áreas afins (filosofia, história, sociologia, psicanálise, entre outras), indo além de práticas habituais de estudo. Com isso, encontraram pertinência no emprego de conceitos. Por orientação em aula, alguns elementos constitutivos são recorrentes nos escritos: o uso de exemplificação, demonstrando o andamento da argumentação; a fidelidade a fontes consultadas; a consideração de textos da fortuna crítica. Cabe destacar que o estudo de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, é um desafio, pela complexidade e singularidade desse romance, e que os alunos enfrentaram com pertinência esse desafio. Todos os textos se voltam para ele. Cinco trabalhos realizam comparações entre S.Bernardo, de Graciliano Ramos, e a obra de Rosa. Seis textos elaboram comparações entre A hora da estrela, de Clarice Lispector, e o mesmo romance rosiano. A escolha por estudos comparativos é uma característica a ser destacada no livro, uma vez que, embora os três livros tenham sido objeto de ampla fortuna crítica, construída ao longo de décadas, o espaço para comparações entre essas obras de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice Lispector ainda sustenta muitas possibilidades abertas. É surpreendente como, guardadas as muitas diferenças entre as obras, os autores tenham encontrado analogias em aspectos relevantes. A educação pública tem sido, na história recente do país, constantemente atacada. Entre cortes orçamentários e desrespeitos, e entre acusações ofensivas e incompreensões sobre sua importância social, instituições voltadas para o ensino, em todos os seus níveis, resistem continuamente aos ataques. Sem essa resistência, não seria possível oferecer formação qualificada. As incertezas sobre o futuro da educação brasileira impactam sobre todas as categorias envolvidas – alunos, funcionários e professores – e também sobre as suas respectivas famílias. A insistência desses ataques contra escolas e universidades, em âmbito federal, estadual e/ou municipal, tem resultado em danos para os estudantes. No caso específico do ensino de literatura, atualmente, uma tendência comum em escolas é organizá-lo de maneira instrumental, para a preparação de estudantes que farão exames vestibulares para entrar em universidades. Guardadas as exceções devidas, muitos alunos encerram sua formação escolar sem cumprirem um processo qualificado de desenvolvimento de condições para leitura e escrita. Leituras de obras literárias, algumas vezes, são descartadas para que o tempo em aula seja utilizado para o acesso a resumos e esquemas, como se fosse dispensável conhecer diretamente a literatura, para responder questões sobre ela com propriedade. Isso resulta 11 em um problema para o ensino superior, uma vez que alunos de quaisquer cursos universitários precisam utilizar habilidades de leitura e escrita, e muitos podem ter dificuldades com essas tarefas. É esperado que, no ensino médio, alunos aprendam a compreender diversos gêneros textuais, da notícia de jornal ao discurso político, ou de um texto científico a uma biografia, entre outros exemplos. Com isso, seria constituído um repertório amplo de possibilidades de emprego de recursos de linguagem. Alunos que conhecem a diferença entre expor uma ideia de maneira breve e apresentá-la com detalhamento, por exemplo, provavelmente conseguirão, no ensino superior e no exercício profissional, utilizar esse saber em acordo com as necessidades de cada situação. O ensino de literatura em escolas, dentro de contextos em que a formação de leitores é valorizada, desempenha funções intelectuais prioritárias. A polissemia de textos literários abre horizontes para reflexões a respeito de variações no significado das palavras. O estudo de estilos motiva inquietações sobre como elementos formais são articulados com temas. Cada texto literário pode despertar questionamentos, e em uma sala de aula, cada estudante pode ter os seus próprios interesses de discussão. Um debate sobre um texto literário, no ensino médio, pode apontar para conexões com campos de outras disciplinas escolares. As produções artísticas, incluindo a literatura, o cinema, a música, as artes plásticas e a dança, entre outras, merecem extrema e contínua atenção social. Obras de arte articulam vivências individuais e coletivas, constituindo formas extraordinárias de diálogo com memórias coletivas. Na literatura são encontradas diversas formas de pensamento, e ler obras literárias consiste em produzir conhecimentos. A contínua desvalorização do ensino de literatura, no contexto dos ataques à educação no Brasil, frequentemente é expressa por posicionamentos como: “literatura não traz desenvolvimento social”, “literatura não tem futuro”, “ler literatura não é que nem construir um prédio, fazer alguma coisa útil”, entre outros. É um equívoco sustentar que poderiam ser dispensados os profissionais de Ciências Humanas, Filosofia, Letras e Artes. As decisões que reprimem e tentam aniquilar essas áreas, diversas vezes, estão fundamentadas em orientações autoritárias de controle na produção e circulação de ideias. Para diversos grupos sociais, o conhecimento acadêmico nesses campos é importante para construir pautas em políticas públicas, inclusive no que se refere a direitos civis. Reprimindo profissionais dessas áreas, esvaziando os investimentos no ensino, e utilizando mídias para difundir imagens negativas de professores e estudantes, lideranças políticas conservadoras e seus defensores podem favorecer a sua própria preservação ou seus privilégios, no domínio de seus espaços de poder, diminuindo as chances de que a sociedade tenha de elaborar reflexões que podem resultar em oposição a essas lideranças. 12 Além de salários baixos e de falta de estímulo social, profissionais dedicados à literatura precisam lidar com condições de trabalho inadequadas, riscos de desemprego por falta de valorização institucional, preços altos de livros e, em alguns casos, assédio moral por parte daqueles que defendem ideias regressivas e conservadoras a respeito da atuação de professores. Em qualquer área, um curso universitário pode trazer exigências e dificuldades para alunos que não se prepararam suficientemente, no ensino médio, para lidar com desafios complexos. No caso de Letras, e também em outros casos específicos, as dificuldades esperadas são somadas à ausência de perspectivas de valorização no exercício profissional. Cabe, neste ano de 2019, escutar as respostas possíveis ao seguinte questionamento: o que a sociedade espera de estudantes de Letras? Desde as políticas para essa área no Estado Novo, no Brasil, a área de Letras foi alvo de políticas injustas, e foi objeto de um elevado nível de apatia social, como se fosse um campo pouco relevante. A essa apatia corresponde, muitas vezes, a falsa percepção de que é um curso fácil de fazer, com disciplinas em que é fácil obter aprovação. Não surpreende que, em universidades, estudantes expressem sofrimento por essa apatia, ou pelos ataques por parte de lideranças políticas. O impacto coletivo dessas ocorrências produz um fenômeno inquietante, que é um nível muito baixo de autoestima acadêmica, espraiado pelas salas de aula em diversas instituições. Em um nível intenso do fenômeno, é possível, às vezes, surgir a percepção de que não faz diferença ler textos acadêmicos ou não; redigir bem ou não é irrelevante; e conhecer conceitos e hipóteses de pesquisa não levaria a nada. É como se, em grande parte, a vida acadêmica fosse inútil, para corresponder, internamente, à apatia social quanto ao curso de Letras e ao ato de ler. Nesse horizonte estão conflitos éticos, como nos casos de pessoas que se orgulham de terem enganado seus professores na escola ou na universidade, fingindo ter lido o que foi pedido; ou ainda, nos casos em que, como ocorre hoje frequentemente na internet, prevalece o “não li e não gostei” ou “não li, mas acho que”, isto é, a legitimação da dispensa da leitura sem prejuízo da vaidade em sustentar uma opinião. Em cursos de Letras, a operação que converte as leituras solicitadas para alunos em irrelevância está diretamente associada a procedimentos de auto-aniquilação acadêmica. Isso ocorre quando a nota importa mais para um estudante do que o percurso, isto é, quando a aprovação em uma disciplina significa libertar-se de um problema, e não reconhecer uma aquisição de conhecimentos. Uma nota produz uma imagem acadêmica em um currículo, ou em um histórico escolar. Em algumas situações específicas, a obtenção de uma imagem positiva pode ser considerada muito mais oportuna do que o enfrentamento de dificuldades em um processo de aprendizagem. Os ataques contra o ensino de literatura, incluindo, por exemplo, o contingenciamento de verbas e a supressão de bolsas de pesquisa, têm constituído uma ampla desmotivação para professores em exercício e estudantes da área. Muitos professores em cursos de Letras trabalham 13 conscientemente em favor de que o conhecimento seja valorizado, que os alunos desenvolvam, o máximo possível, suas capacidades intelectuais, e que o espaço público da universidade seja amplamente utilizado (desde a biblioteca até as cadeiras nas salas de aula) para um ensino com alto nível, qualificado, atualizado, capaz de abrir os melhores horizontes possíveis no futuro. Isso deve continuar, pois os alunos podem encontrar em seus professores motivações para resistir à apatia social e à desvalorização da área. Dentro da universidade, podem ocorrer transformações favoráveis aos processos educacionais, contrariando os ataques ao ensino. Diante deste livro, talvez ocorra a alguém uma pergunta como “Por que ler textos de alunos de graduação, em caso de interesse pelo conhecimento de literatura brasileira? ”. Existem vozes críticas, surgidas em meio a processos de formação, que merecem ser escutadas. Ocorrem situações em que um estudante de iniciação científica ou de mestrado faz um movimento de pensamento que seu orientador não esperava; ou que uma pergunta em sala de aula, na graduação, instala uma base para uma reflexão inesperada. Às vezes o mérito acadêmico aparece, em um seminário ou um trabalho final de disciplina de um curso de Letras, e é importante ter a atenção para notá-lo, sem se limitar a registrar esse mérito na forma de uma nota no histórico escolar. É possível que os autores destes textos, com os mesmos materiais, dois ou quatro anos depois, poderiam escrever trabalhos melhores do que estes, aqui publicados. A especulação sobre o amadurecimento intelectual pode potencialmente valer para todos os professores e alunos; com mais tempo, todos poderíamos redigir textos melhores. Isso não impede que seja dada atenção acadêmica a passos iniciais de formação. Às vezes, e sei por experiência própria, uma palavra de um professor, em um momento certeiro, muda tudo que um estudante faz na universidade para melhor. É triste pensar que, diversas vezes, um estudante apresente uma intensa dedicação, com responsabilidade, no desenvolvimento de um trabalho final, espere comentários, em um retorno acadêmico, para saber como melhorar, e por qualquer razão isso não ocorre. Potencialmente, talvez tenham passado por minhas mãos dezenas de trabalhos com nível acadêmico elevado, que mereceriam ser lidos por outros, circular, contribuindo para a área, e não tive a concentração ou a capacidade para reconhecer isso como deveria. É importante compreender que estudantes em geral têm prazos breves para iniciar, elaborar e concluir um trabalho final; e precisam cuidar de avaliações nas várias disciplinas em que estão matriculados. Além de um mérito acadêmico, esses trabalhos se particularizam pelas condições limitadas de tempo em que foram elaborados. Ao longo de minha trajetória profissional, tive alguns momentos especialmente marcantes, em que as adversidades externas e internas não conseguiram impedir que estudantes reconhecessem o valor de seus próprios estudos. Um desses momentos corresponde ao segundo semestre de 2017, em que ministrei, em duas turmas, a disciplina FLC 0201 – Literatura Brasileira 14 II. Estudantes apresentaram propostas para seus trabalhos finais, em compatibilidade com o programa da disciplina e, de acordo com seus interesses, receberam sugestões para desenvolvêlos. Os resultados, na forma de trabalhos finais, tiveram, em média, uma boa qualidade acadêmica. Para além disso, recebi alguns trabalhos que chamaram a atenção, por alcançarem resultados que não se limitavam ao que é habitual para um quarto semestre de um curso de graduação. Os autores desses trabalhos receberam recomendações de Ariadne Tadeu Pinheiro Arruda, que em 2017 realizava Iniciação Científica, com bolsa PIBIC/CNPq, sobre Guimarães Rosa e Glauber Rocha. A meu pedido, Ariadne fez leituras detalhistas e sugestões cuidadosas. Com essas recomendações, eles foram formatados de maneira que pudessem ser apresentados em uma publicação universitária. Em geral, revistas acadêmicas da área de Letras priorizam trabalhos de doutores. Em alguns casos, de mestres e mestrandos e, em pouca frequência, textos de estudantes de graduação. É importante que existam espaços, no quadro dos periódicos da área, para que graduandos publiquem seus trabalhos. No caso dos materiais aqui reunidos, é fundamental compreender, com perspectiva temporal clara, a situação de origem. Estes textos foram escritos por alunos de segundo ano do curso de Letras da USP. Como professor, minha percepção é de que são trabalhos relevantes, que incluem ideias que podem interessar, eventualmente, a professores e pós-graduandos; sem dúvida, um livro como este pode ajudar estudantes de cursos de Letras que têm interesse em escrever estudos literários, e estão aprendendo a fazer isso. Sendo dirigido aos diversos interessados em Literatura Brasileira, este livro, sendo disponibilizado gratuitamente pela Universidade de São Paulo, pode ser útil para refletir sobre escritores brasileiros e, ao mesmo tempo, para que alunos reconheçam que é possível desenvolver um trabalho de disciplina com mérito acadêmico, e ver isso reconhecido no espaço público. Em um contexto acadêmico atravessado por competitividade e disputa de visibilidade, para além dos ataques políticos e da apatia social, foi muito bom ver, nas duas turmas da disciplina, surgir um movimento solidário, em que estudantes conversavam entre si sobre seus trabalhos, discutindo como suas ideias seriam apresentadas, e recebendo críticas com respeito, tendo a clareza de que críticas e sugestões podem efetivamente contribuir para tornar os textos mais próximos de suas próprias expectativas. Às vezes as palavras parecem insuficientes, como se existissem distâncias entre linguagem e pensamento. Nesses momentos a recepção de críticas é fundamental, para que o autor diminua essa distância, encontrando maneiras adequadas de expor o que pensa. Estudos de graduação: Graciliano Ramos, Guimarães Rosa e Clarice Lispector, como foi exposto inicialmente, tem como ponto de partida trabalhos apresentados para avaliação em Literatura Brasileira II, que foram revisados e adaptados. Esta publicação prova que a seriedade, 15 a dedicação e a capacidade de pesquisa estão dentro das salas de aula do curso de Letras. É necessário dar visibilidade a isso. É sempre oportuno conversar sobre o que está sendo escrito por estudantes e professores. Este livro pode ser útil para professores da rede escolar, na preparação de aulas; para estudantes, em elaboração de trabalhos; e para interessados, em geral, nas obras desses três escritores. Para além disso, é um livro importante para a área de literatura brasileira, por mostrar um interesse forte por textos literários. No âmbito da Universidade, a publicação expressa, com veemência, a percepção de que vale a pena estar nas salas de aula e ter o pensamento respeitado. 16 PREFÁCIO Ariadne Tadeu Pinheiro Arruda Os onze ensaios que compõem este volume nasceram da articulação entre o desejo de conhecimento, por parte de um grupo de alunos dedicados, e a disposição de um docente profundamente comprometido para com o ensino. Os textos agrupados neste livro têm sua origem enquanto trabalhos de conclusão da disciplina denominada Literatura Brasileira II – matéria obrigatória da grade curricular prevista para o curso de Letras da Universidade de São Paulo -, ministrada pelo Professor Jaime Ginzburg no segundo semestre de 2017. Apesar de os ensaios terem como premissa fundamental a revisão do conteúdo bibliográfico discutido ao longo dos meses letivos e o encerramento da disciplina, o que se tornou evidente a partir da leitura dos textos foi o fato de que os alunos encararam seus respectivos trabalhos menos como uma etapa conclusiva e muito mais como um ponto de partida para a elaboração de novos questionamentos e estudos aprofundados. Em meio a um contexto em que a universidade pública e o incentivo à pesquisa vêm sofrendo ataques constantes, o engajamento dos alunos sob a forma de comprometimento para com o estudo aprofundado das obras previstas no currículo de disciplina e com a tessitura dos ensaios aqui presentes se mostra, de fato, como uma postura de resistência frente à tentativa de desmonte da educação. Nos ensaios aqui presentes, o leitor reconhecerá uma pluralidade de vozes, mas que concordam unanimemente quanto ao reconhecimento da literatura enquanto instrumento de transformação social. Entrelaçam-se, portanto, vozes diversas, mas que partilham de uma mesma arquitetura, presente em cada um dos ensaios: há o narrador que lê e estuda e aquele que ensina, preocupado com o outro e com o que esse deve aprender - ou seja, o diálogo respeitoso para com o leitor opera como eixo de sustentação dos textos, análogo ao respeito que o professor, para quem o conhece, manifesta pelos alunos. A violência constitutiva das relações sociais aparece como o chão comum dos comentários e análises, bem como o tema dos direitos humanos. Ambos os tópicos são abordados por meio de uma perspectiva que os situa como campos de forças em luta, tanto em relação à teoria quanto à história. Ainda assim um pacifismo incondicional norteia todos e cada um dos ensaios, funcionando como princípio agregador do conjunto de temas percorridos. Percebe-se, assim, que, claramente, os autores foram orientados por uma pedagogia que contempla o valor ético como dispositivo fundamental. 17 Os ensaios combinam densidade e leveza ao colocarem o leitor diante de pensadores cujas obras são de grande relevância de maneira orgânica. A presença dessas referências da área das Humanidades - Theodor Adorno, Walter Benjamin, Michel Foucault, Pierre Bourdieu, Sigmund Freud, Karl Marx e, dentre o conjunto dos críticos brasileiros, Sérgio Buarque de Holanda, Alfredo Bosi e Antonio Candido - vem sempre no sentido de esclarecer e fortalecer a ideia que, no momento, se discute, jamais como demonstração gratuita de erudição. As obras percorridas se caracterizam como três romances canônicos da literatura brasileira: A hora da estrela, de Clarice Lispector, Grande sertão: veredas, de autoria de João Guimarães Rosa, e S.Bernardo, escrito por Graciliano Ramos. As narrativas em questão constavam no programa bibliográfico da disciplina cursada pelos estudantes como leituras obrigatórias, no entanto, o entrelaçamento das comparações e a seleção dos temas a serem abordados partiu de escolhas individuais. Publicada pouco antes de sua morte, em 1977, A Hora da Estrela é a última obra de Clarice Lispector. Nesse livro, que tem como narrador Rodrigo S.M., há o retrato de uma jovem nordestina, Macabéa, que tenta sobreviver na cidade grande. Raquítica na infância, órfã aos dois anos e criada pela tia, que a maltratava, Macabéa vem ao Rio trazida pela mesma tia, que morre deixando-a empregada como datilógrafa e morando num cortiço da rua Acre. Suas "fracas aventuras" se reduzirão a um namoro inócuo com Olímpico de Jesus, paraibano e metalúrgico, que desejava ser deputado por seu estado. Destituída da palavra e do simbólico ("ela falava, sim, mas era extremamente muda"), Macabéa se encontra à mercê dos outros, principalmente do narrador. A alienação da personagem percorre todo o romance — "Não sei bem o que sou... Não sei o que está dentro do meu nome", diz para Olímpico —, e não há circunstância que lhe permita se reconhecer como cidadã, como mulher, como indivíduo dotado de consciência de si. Segundo Benedito Nunes1, em A hora da estrela, a trajetória dessa moça anônima constituir apenas um dos planos da narrativa. O romance conjuga mais dois relatos entrecruzados: um deles é a história do próprio narrador, Rodrigo M.S., que se faz personagem, narrando-se a si mesmo e competindo com a protagonista; o outro diz respeito à própria história da narração, que conta a si mesma problematizando a difícil tarefa de narrar. Assim, a discussão se arma a partir de estórias que se entrecruzam: a da vida de Macabéa, imigrante nordestina que vive desajustada no Rio de Janeiro; a do Autor do livro que se deixar conhecer nos comentários que faz; e ainda a estória do próprio ato de escrever. Em verdade, esta última estória promove o grande elo entre todas as narrativas. Escrever o livro, escrever Macabéa e, sobretudo, escrever a si mesmo, eis o grande desafio. Dessa proposta cria a dramaticidade da NUNES, Benedito. “Clarice Lispector ou o naufrágio da introspecção”. Remate de Males, Campinas, SP, v. 9, p. 63-70, jun. 2015. 1 18 narrativa, pois a escrita envolve múltiplas e complexas relações: entre escritor e seu texto, entre escritor e seu público, entre escritor e esta personagem tão distante de seu universo. A linguagem, instrumento de comunicação entre os homens, ganha traços de personagem. Nesse sentido, A Hora da Estrela conjuga, pelo menos, três níveis de narrativa: o resgate de elementos do romance social dos anos 30, adaptando-os, agora, ao contexto da cidade grande, para tratar da saga dos migrantes; uma face que projeta as personagens numa dimensão universalizante maior, ainda que estejam profundamente enraizadas em seus simples cotidianos; e, por fim, uma continuidade com a linha existencial da ficção clariciana, que trata da linguagem e do ser a partir de uma perspectiva opaca, questionando o ato da escrita e a representação do sujeito. S.Bernardo é o segundo romance de Graciliano Ramos, lançado em 1934, um ano após a publicação de Caetés. A narrativa, que se passa na década de 1930, apresenta o drama de Paulo Honório, sujeito que, aos cinquenta anos, resolve revisitar o passado a fim de atribuir um significado às vivências que o conduziram à decadência. Nem a fazenda S.Bernardo, que Paulo Honório comprou por preço irrisório, nem a professora Madalena, a quem contratou para alfabetizar as crianças do seu empreendimento rural e com quem acaba se casando, deram-lhe o sossego que tanto buscava. O proprietário de terra faz uso da escrita como uma última tentativa de restaurar a ordem em sua vida. Há, assim, em função desse tipo de narrativa, uma constante transição entre passado e presente, já que o narrador, além de nós, leitores, é também o destinatário da história que ele tenta reeditar. Narrado em primeira pessoa, todo o romance irá se desenvolver, portanto, centrado em dois planos diferentes: o de Paulo Honório narrador e o de Paulo Honório personagem. Essa fragmentação temporal opera de maneira que o narrador se debruça sobre seu passado, tentando entender a si mesmo, ao mundo e como ele se relaciona com esse universo exterior. O narrador expõe, já no primeiro capítulo, como ele planejava contar sua história, delegando funções para pessoas mais cultas. Porém, Paulo Honório descobre que este método de narração é falho, - sobretudo porque vê uma clara distinção entre linguagem oral e escrita e porque sente que outra pessoa não seria capaz de representá-lo de maneira fiel - e, partir de então, ele mesmo resolve tomar a frente e escrever suas próprias lembranças, chegando a assumir que está efetuando seleções e processos de distorção em relação aos eventos originais de acordo com seu interesse. Nota-se, dessa forma, que através desse processo metalinguístico de exposição do projeto de escrita do livro coloca-se o próprio ato de escrever em discussão. S.Bernardo introduz o leitor a um narrador disposto a agir violentamente ao confrontar uma posição oposta à sua e cuja visão de mundo é totalmente centrada em relações de poder pautadas na opressão. Para ele, o que importa é ter. Paulo Honório, portanto, estabelece relações reificadas, isto é, o protagonista lida com outras pessoas reduzindo-as a objetos, os quais ele 19 acredita que pode controlar. A linguagem mobilizada pelo narrador é substancialmente afetada pela perspectiva de reificação que dita os comportamentos de Paulo Honório. De acordo com Antonio Candido, “O mundo áspero, as relações diretas e decisivas, os atos bruscos, a dureza de sentimentos, tudo que forma a atmosfera de S.Bernardo decorre da visão pessoal do narrador”2, ou seja, todo o contexto social representado pelo narrador se encontra submetido ao seu drama íntimo. Nota-se, assim, que a percepção dos acontecimentos é estabelecida a partir dos modos específicos pelos quais o personagem compreende o que ocorre. O ciúme submete o dominador Paulo Honório. Ele, que até então soubera dominar a sua vida e sobretudo a dos outros, tropeça na própria existência e entra no plano da sujeição. Essa sujeição se dá em relação à Madalena e a sua própria imaginação, bem como aos elementos deletérios que, pouco a pouco, decompõem sua razão. Paulo Honório mostra-se, portanto, longe de configurar um personagem monolítico: ele se transforma ao longo do relato, sofrendo o impacto, por exemplo, do suicídio da esposa. É justamente em decorrência do trauma referente à morte de Madalena que a própria narrativa se transforma, revelando uma dificuldade, por parte de Paulo Honório, em narrar objetivamente suas memórias. Outra narrativa construída a partir da perspectiva de rememoração de eventos vivenciados por um sujeito diz respeito à Grande sertão: veredas. Desde sua publicação em 1956, no mesmo ano de lançamento do conjunto de novelas Corpo de Baile, Grande sertão: veredas, único romance de João Guimarães Rosa, chama atenção da crítica literária, seja por sua dimensão - a obra conta, na maior parte das edições, com mais de seiscentas páginas e não apresenta quaisquer divisões interiores sob a forma de capítulos -, seja por seu caráter inovador em relação à linguagem. O foco narrativo de Grande Sertão: veredas está em primeira pessoa. Riobaldo, na condição de rico fazendeiro, revive as pelejas, angústias, amores e dúvidas enfrentadas enquanto jagunço. A obra se estrutura por meio de um diálogo entre Riobaldo e um interlocutor, o qual não se manifesta diretamente na narrativa. Portanto, só é possível identificá-lo e caracterizá-lo por meio dos próprios comentários feitos pelo protagonista. A narrativa, longa e labiríntica, em decorrência das digressões do narrador, tem como cenário o sertão, espaço onde se desenrola toda a história. Grande sertão: veredas se constitui, em termos de estrutura, a partir do entrelaçamento de diversos planos nos quais a ambiguidade se faz presente como matéria central, instituindo um princípio geral de reversibilidade que acaba por reger o romance como um todo. Em O homem dos avessos, texto publicado pela primeira vez cerca de um ano após o romance de Rosa vir a público, Antonio Candido evidencia o caráter complexo e polissêmico do romance. O crítico literário tece as seguintes considerações acerca de tal perspectiva: 2 CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34, 1999. p.77. 20 Estes diversos planos da ambiguidade compõem um deslizamento entre os polos, uma fusão de contrários, uma dialética extremamente viva, - que nos suspende entre o ser e o não ser para sugerir formas mais ricas de integração do ser. E todos se exprimem na ambiguidade inicial e final do estilo, a grande matriz, que é popular e erudito, arcaico e moderno, claro e obscuro, artificial e espontâneo.3 Elementos tais como a oscilação da consciência dos personagens em relação à violência, os sentimentos dúbios de Riobaldo em relação à Diadorim - objeto de afeto do narrador que o conduz a experimentar, constantemente, sentimentos de atração e repulsa - e a própria impossibilidade de afirmação categórica acerca da efetividade de um pacto metafísico configuram exemplos de temáticas que permeiam o romance e que se caracterizam por serem abordadas por meio do deslizamento entre ideias opostas. Essa reversibilidade, no entanto, se manifesta também na própria estrutura do romance. Depois de encerrar sua vida de jagunço guerreiro, Riobaldo dispõe-se a narrar suas experiências. Essa narração, porém, não é construída por meio da simples utilização dos recursos referenciais de discurso: para transmitir a pulsação e as dúvidas relativas aos sentimentos que assolam Riobaldo, João Guimarães Rosa explora as potencialidades da linguagem poética, o que resultaria, segundo Alfredo Bosi, na abolição das “fronteiras entre narrativa e lírica". Grande sertão: veredas pauta-se, ainda, na estruturação de uma dialética envolvendo o espaço sertanejo. A narrativa se caracteriza por integrar elementos de representação da realidade histórico-social brasileira e uma força de invenção que transfigura a paisagem do sertão, ampliando seu alcance. Segundo Antonio Candido, João Guimarães Rosa “subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares comuns, sem os quais a arte não sobrevive”4 de maneira a demonstrar que o pitoresco é acessório e que, na verdade, o sertão é o mundo. Grande sertão: veredas seria definido, portanto, como uma obra solidamente plantada na concepção de universalidade da região, ou seja, que se caracteriza por transmutar a particularidade do pitoresco regional a fim de transformá-lo em ficção pluridimensional. O romance mostra como o indivíduo vê-se enredado em meio a situações em que pratica e sofre violência ao alçar-se à jagunçagem - núcleo de sociabilidade calcado no exercício privado e organizado da violência -, tal como Riobaldo o faz. Seria, sobretudo, em decorrência dessa constituição subjetiva oscilante em relação às práticas de violência que a ambiguidade se consolida enquanto princípio organizador do romance, atravessando todos os seus níveis, de modo que em CANDIDO, Antonio. “O homem dos avessos”. In: Tese e antítese: ensaios. São Paulo: T.A. Queiroz, 2002. p. 134135. 4 CANDIDO, Antonio. “O homem dos avessos”. In: Tese e antítese: ensaios. São Paulo: T.A. Queiroz, 2002. p.122. 3 21 Grande sertão: veredas “tudo se passa como se ora fosse ora não fosse, as coisas às vezes são e às vezes não são”5 . A polissemia dos romances, aliada a um interesse genuíno pelas obras descritas, motivou o fato de que, apesar de o corpus de estudo contar com um número pré-determinado de narrativas, a pluralidade de temas abordados pelos autores dos ensaios se fizesse presente de maneira pungente. Múltiplos são os enfoques selecionados, de modo que os temas discutidos vão desde a caracterização da violência nas narrativas em questão, até as relações desenvolvidas por personagens para com o misticismo e a educação. As análises e interpretações tecidas neste livro aproximam tais narrativas, tão díspares no que diz respeito ao tempo e ao espaço, por meio da comparação, a fim de lançar luz sobre pontos obscurecidos das obras e, assim, permitir a elucidação de certos aspectos que podem contribuir para o panorama crítico acerca dos autores e para ampliar a nossa compreensão acerca da pertinência desses romances na contemporaneidade. A fim de evidenciar a violência enquanto elemento constitutivo do processo de modernização do Brasil e a perpetuação de estruturas de organização social herdadas a partir do sistema colonialista, os ensaios A violência decorrente das relações de poder em “Grande sertão: veredas” e “S.Bernardo”, As percepções de violência nas narrativas “Grande sertão: veredas” e “S.Bernardo” e A agressividade e a violência nas relações interpessoais em “Grande sertão: veredas” e “S.Bernardo”, de autoria de Alice Santana Lima, Diogo Moreira Martini e Vitória Tonetti Martini respectivamente, lançam luz sobre as performances de Riobaldo e Paulo e Honório em meio aos contextos nos quais esses protagonistas se inserem. Nesses textos, discute-se como o poder se estabelece não somente nas macro, mas também nas microrrelações, e como a violência desponta, nesses cenários, ora como meio através do qual o sujeito alcança e afirma sua autoridade de mando, ora como manifestação inata à conduta dos indivíduos, impactando, em ambos os casos, as relações interpessoais dos protagonistas com outros personagens das narrativas. A discussão acerca da violência se desdobra, ainda, em estudos sobre a influência do patriarcalismo em relação às estruturas sociais representadas nos romances de Clarice Lispector, João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Nos ensaios intitulados A repressão como impedimento: o fracasso das relações amorosas em “Grande sertão: veredas” e “A hora da estrela”, de Beatriz Rodrigues de Souza, e A virilidade nas sociedades patriarcais de “S.Bernardo” e “Grande sertão: veredas”, de Allan Monteiro Pessoa, são elaboradas, portanto, interpretações sobre os processos de recalcamento de sentimentos vivenciados pelos protagonistas dos romances, sem deixar de considerar a forte distinção entre gêneros masculino e feminino que se faz presente em sociedades de cunho patriarcal. Os textos procuram ponderar, ainda, sobre os diversos modos de manifestação da repressão da sexualidade, motivados pela imposição de um 5 GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972. P.13. 22 padrão de virilidade a ser seguido, bem como discutem a relação de amor-ódio dos personagens para com seus corpos e objetos de afeto. Em Desejo e transformação: um estudo sobre o misticismo em “A hora da estrela” e “Grande sertão: veredas”, escrito por Vitor Kenzo Kadowaki, e O tempo da evocação em “Grande sertão: veredas” e “A hora da estrela”: breve análise sobre o prenúncio da morte e busca pelo sentido do ser no mundo, de autoria de Vitoria Cordeiro Belinato, elaboram-se considerações acerca da relação dos personagens para com elementos vinculados ao plano da transcendência. Discute-se, assim, como os protagonistas das duas narrativas recorrem a figuras metafísicas - Riobaldo busca realizar um pacto com o Diabo, e Macabéa realiza uma consulta com uma cartomante - a fim de superar dificuldades ou mesmo atribuir sentido a suas experiências. Por fim, o último conjunto de textos centra-se em debater como a linguagem aparece, nos três romances, como instrumento mobilizado pelos narradores, em diversas circunstâncias, a fim de legitimar sua autoridade, em maior ou menor grau, em relação a outros personagens. Além disso, os ensaios propõem também uma discussão acerca da importância da educação formal, de modo a ponderar sobre como a presença ou ausência desse processo de instrução influencia diretamente as reflexões dos protagonistas sobre si próprios e sobre os contextos nos quais se inserem. Questões envolvendo a relação entre verdade e poder se encontram explícitas em O dominador e o dominado: as relações de poder em “Grande sertão: veredas” e “A hora da estrela”, de João Vitor Guimarães Sérgio, e em A educação e a autoridade em “S.Bernardo” e em “Grande sertão: veredas”, de Bianca Novaki Ferrari, enquanto que Letramento, literatura e educação em “Grande sertão: veredas” e “A hora da estrela: uma comparação”, escrito por Larissa dos Santos Rocha, e O nome e palavra: linguagem e formação do sujeito em “Grande sertão: veredas” e “A hora da estrela”, cuja autoria é de Pedro Oswaldo Horta Martins Pena, focam em construir problematizações acerca dos papéis da linguagem no processo de constituição do indivíduo. Entre tantas lições e sugestões que este livro traz, destaco que o mesmo constitui um marco intelectual relevante, pois dá voz a uma geração de novos leitores que, por acreditar na literatura como instrumento de transformação social, promove um debate que extrapola os muros da universidade. Seus autores vão se firmando como exemplo para os alunos que estão porvir, demonstrando a capacidade de resistência das Ciências Humanas. Recordo, a fim de concluir este posfácio por meio de uma reflexão, um pensamento postulado por Theodor Adorno: “Quanto mais totalitária for a sociedade, tanto mais reificada será também o espírito, e tanto mais paradoxal será o seu intento de escapar por si mesmo da reificação”6. O livro à nossa vista nos oferece a chance e o prazer de nos lançarmos à desafiante 6 ADORNO, Theodor. Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998. p.26. 23 aventura do pensamento, conferindo-nos a oportunidade de nos tornarmos bem mais críticos em relação aos valores do mundo que nos cerca. 24 As percepções de violência nas narrativas de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, e São Bernardo, de Graciliano Ramos Diogo Moreira Martini As relações entre violência e literatura são importantes, do ponto de vista da crítica literária, pois fazem vir à tona aspectos que subjazem às obras. Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, e São Bernardo, de Graciliano Ramos, são ambos romances em que é possível apreender as percepções e reações das personagens, diante de mostras de violência. O modo através do qual a narrativa é construída, em ambos os livros, corrobora para essa possibilidade, já que apresenta momentos de visão subjetiva do narrador. Este trabalho, portanto, pretende-se uma análise das especificidades de cada obra, com relação à violência, e a busca de um fio condutor por meio do qual algumas relações possam ser traçadas entre elas. Para tanto, utilizar-se-ão textos críticos sobre os dois autores, com ênfase no tema da violência, além de algumas ideias de Marx e de teoria da narrativa. Riobaldo e Paulo Honório compõem, respectivamente, os narradores de Grande Sertão: Veredas e São Bernardo, e podem ser entendidos como narradores-protagonistas, visto que encerram o que Romberg considera o "aspecto dual do narrador” (1962, apud DAL FARRA, 1978, 40). Essa característica é definida como o movimento no qual existe, no narrador, a "ambivalência como sujeito e objeto da ação: o narrador é personagem da própria estória que conta" (1962, apud DAL FARRA, 1978, 40). Com efeito, a matéria narrada nos dois romances é apresentada, ao leitor, na forma da recuperação de experiências nas quais o dono da voz que as enuncia é o mesmo ser que as presenciou outrora. Essa atitude narrativa, de narrar-se a si mesmo, é explícita: Tenciono contar a minha história. Difícil. Talvez deixe de mencionar particularidades úteis, que me pareçam acessórias e dispensáveis. Também pode ser que, habituado a tratar com matutos, não confie suficientemente na compreensão dos leitores e repita passagens insignificantes." (RAMOS, 2011, p. 7). E tudo conto, como está dito. Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase igual a perder dinheiro." (ROSA, 1994, p. 579). E estou contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente." (ROSA, 1994, p. 134). Eu estou contando assim, porque é o meu jeito de contar [...]. A lembrança da vida da 25 gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância." (ROSA, 1994, p. 132). À importância atribuída ao ato de narrar, partida dos dois narradores, agrega-se a descrição do método de contar sua história, adotado por cada um deles: Paulo Honório teme, pela falta de instrução, ser malsucedido ao concatenar as ideias às quais se propõe, ao passo que Riobaldo é analítico: conta de forma detalhada cada passagem, inseguro de que se lhe escape algo. Tanto no narrar de Riobaldo como no de Paulo Honório, estão impressas as fortes imagens fruto da memória, da lembrança. É através destes protagonistas que se tem acesso aos demais personagens e às situações diversas nas quais se concentra a matéria narrada. É o que Pouillon chama de "visão avec" do narrador (apud DAL FARRA, 1978, 35), em que "o personagem narrador será sondado e revelado ao leitor através da investigação que empreender sobre as o u t r a s personagens e a vida" (idem, 35). Sendo assim, "o interior destas (das personagens) será vasculhado pelo interior desse narrador" (idem, 35), em quem o leitor está ancorado. Essas considerações acerca do ato de narrar, nas duas obras, são imprescindíveis, pois suscitam vicissitudes próprias de cada romance, essenciais para a inquirição dos traços de violência. Os monólogos que essas personagens travam nos romances – com a ressalva devida à ambiguidade em Grande Sertão, em que Riobaldo narra para um "senhor", suscitando dúvidas em direção à possibilidade de a obra toda ser um grande diálogo, ainda que este interlocutor nunca enuncie uma palavra sequer – são motivados pela morte e, por extensão, pela perda. São Bernardo nasce da necessidade de Paulo Honório narrar sua história, a partir do fatídico evento do suicídio de sua esposa, Madalena. Grande Sertão: Veredas, por sua vez, tem gênese impulsionada pela morte, em combate, de Diadorim, ser amado de Riobaldo. Em ambas as motivações para o ato de narrar, encontra-se, de antemão, o signo da violência, objeto deste trabalho. Cada uma das modalidades dessa espécie de imperativo inicial pode ser desenvolvida sob a égide das próprias percepções de violência que são plasmadas no decorrer dos romances. No caso de São Bernardo, o suicídio pode ser entendido de duas maneiras complementares: ou como a violência do ser sobre si mesmo – argumento para o qual Marx oferece subsídio: "Vê-se que, na ausência de algo melhor, o suicídio é o último recurso contra os males da vida privada."7 –, isto é, Madalena decide antes pela própria morte a ter que se submeter a uma ordem com a qual não concorda, a saber, o autoritarismo expresso na figura de Paulo Honório; ou como a violência de Paulo Honório em direção à Madalena, manifestada através do relacionamento abusivo que havia entre ambos, no qual Paulo demonstrava ciúmes excessivos, que teriam culminado na morte da esposa. Veja-se que o sentido das duas interpretações dialoga entre si. No caso de Diadorim, em 7 MARX, Karl. Sobre o Suicídio. Tradução: ENDERLE, Rubens e FONTANELLA, Francisco. São Paulo: Boitempo, 2008. p. 48. 26 Grande Sertão, o ambiente da batalha suscita, em si, o emblema violento, de guerra e terror. O estudo das percepções de violência deve levar em conta, pois, essas características dos narradores e a maneira como elas se articulam com o entendimento da psicologia de cada personagem. Em São Bernardo, romance de 1934, de Graciliano Ramos, o narrador-personagem, Paulo Honório, é um homem tenaz diante do objetivo a que se propõe: conquistar as terras em que um dia trabalhara, a fazenda São Bernardo. A problemática que envolve essa tenacidade é a de que, para o protagonista, atingir o fim é uma questão que ignora totalmente a ética e a justiça dos meios. Em outras palavras: a preocupação de Paulo Honório com o outro e sua integridade é reduzida a zero, quando a conquista e o acúmulo do capital estão em jogo. "Acompanhando a natureza do personagem, tudo em S. Bernardo é seco, bruto e cortante"8, observa Antonio Candido a respeito das qualidades de Paulo Honório que se impregnam em toda a obra, inclusive a nível da linguagem: um falar áspero é o que caracteriza Paulo. Os semas que são relacionados à personalidade do protagonista corroboram para a construção de sua imagem enquanto um homem cruel e agressivo, o que será demonstrado nas páginas do próprio romance. A conquista da fazenda, o "fito da vida"9 de Paulo Honório, é, em si, um evento em que o seu caráter violento salta à vista. Concebendo Paulo Honório com base na teoria marxista, pode-se compreendê-lo como metonímia do homem capitalista, para o qual o acúmulo do capital é tão importante a ponto de empreender relações com os outros, com vistas ao benefício e lucro que virão adjuntos. É o caso da cena em que Paulo Honório se aproxima e estreita relações com Padilha, herdeiro e então dono de São Bernardo, manipulando-o, sem que este se dê conta, na intenção de angariar as terras. Poder-se-ia, em alguma medida, dizer que é, neste contexto também, que surge uma das primeiras manifestações de violência do protagonista. Quando vai cobrar Padilha pela hipoteca da casa, que já havia vencido, e termina conseguindo a assinatura da escritura, Paulo o trata de forma agressiva: "Cheguei a ameaçá-lo com as mãos".10 Entender a personagem por esse viés é importante, porque Paulo Honório realiza um movimento descrito por Marx em Fundamentos da História. O capitalista do sertão alagoano, cenário em que se passa o romance, ascende de classe social e se torna “o emblema contraditório do capitalismo nascente, empreendedor, cruel, que não vacila diante dos meios e se apossa do que tem pela frente, dinâmico e transformador”11, como descreve acertadamente Lafetá. Deixa de ser um trabalhador, um operário e servidor e torna-se um proprietário de terras: o chefe. Para Marx: "toda classe que aspire ao domínio deve, portanto, esta classe conquistar antes o poder político, 8 CANDIDO, Antonio. Os Bichos do Subterrâneo. In: _____. Tese e Antítese. São Paulo: Nacional, 1978. p. 103. RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011. p. 8. 10 Ibidem, p.18. 11 LAFETÁ, João Luiz. O mundo à revelia. In:_____. A dimensão da noite. São Paulo: Editora 34, 2004. p. 200. 9 27 para representar, por sua vez, o seu próprio interesse como sendo o Universal." 12 Nesse sentido, tem-se um Paulo Honório que baseia o poder ao qual ascende em uma relação de autoridade excessiva por sobre os seus empregados. O protagonista admite e instaura uma ordem hierarquizante em São Bernardo, em que há seres superiores e inferiores, de acordo com a posição social que ocupam. É como se, de fato, ele representasse o poder político da fazenda e esse interesse Universal supracitado fosse, de forma ilusória, contemplado. Essa manobra de ilusão fica evidente quando, ao estabelecer que o salário de seu Ribeiro é baixo, Madalena é respondida por Paulo Honório da seguinte forma: "Que maluqueira! Quando ele estava com o Brito, ganhava cento e cinquenta a seco. Hoje tem duzentos, casa, mesa e roupa lavada”13. Isto é, seus interesses particulares estão sempre em primeiro lugar, no entanto, aparecem mascarados sob a propaganda dissimulatória de um interesse coletivo atendido. A violência em São Bernardo ganha lugar quando Paulo Honório narra o seu “primeiro ato digno de referência”14: ter abusado sexualmente de uma menina, cujo nome era Germana, dando-lhe “um beliscão retorcido na popa da bunda. Ela ficou-se mijando de gosto”15. Nessas linhas, vê-se que, desde esse momento, a violência já é vista com naturalidade e, do ponto de vista de Paulo Honório, o que era prazer (“gosto”), ao leitor atento, pela imagem transmitida pelo “mijando”, parece, antes, relativo ao medo. Depois, continua narrando Paulo Honório que, por conta dessa mesma Germana, o protagonista brigou com um tal João Fagundes, por este ter se metido com a menina: “O resultado foi eu arrumar uns cocorotes na Germana e esfaquear João Fagundes”16. Os semas do ciúme e da violência aparecem unidos nesse trecho em que, considerando a violência como digna de referência, o protagonista a coloca em posição de destaque e importância. Não se esquece de mencioná-la e, mais do que isso, indica a imprescindibilidade de sua narração. Da perspectiva de seu método de narrar, como exposto acima, isso significa que a matéria tem algum valor para ele. Ele se demonstra a favor de sua prática. Pensando ainda na acepção marxista do comportamento de Paulo Honório, tanto é verdade que seus interesses são sobrepostos aos dos demais, que isso fica claro em uma passagem do livro. Trata-se da cena em que o signo da violência, alicerçado pela ordem instaurada na fazenda, assume seu grau máximo de evidência. Paulo Honório se dá conta de que o serviço que estivera designado ao seu funcionário Marciano, ainda não estava pronto e parte em direção a este: - Marciano! Gritei em vão. Desci a ladeira, com raiva. Lá embaixo, à porta da escola, 12 MARX, Karl. Fundamentos da História. In: Sociologia. IANNI, Octavio, org. São Paulo: Ática, 1946. p. 58. RAMOS, op. cit., p. 75. 14 RAMOS, op. cit., p.10. 15 RAMOS, loc. cit. 16 RAMOS, loc. cit. 13 28 descobri Marciano escanchado num tamborete, taramelando com Padilha. Já para as suas obrigações, safado. Acabei o serviço, Seu Paulo, gaguejou Marciano perfilando-se. Acabou nada! Acabei, senhor sim. Juro por esta luz que nos alumia. Mentiroso. Os animais estão morrendo de fome, roendo a madeira. Marciano teve um rompante: Ainda agorinha os cochos estavam cheios. Nunca vi gado comer tanto. E ninguém aguenta mais viver nesta terra. Não se descansa. Era verdade, mas nenhum morador me havia ainda falado de semelhante modo. Você está se fazendo besta, seu corno? Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bambeando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A última deixou-o esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e saiu de cabeça baixa, trocando os passos e limpando com a manga o nariz, que escorria sangue. Estive uns minutos soprando [...]" (RAMOS, 2011, p. 81). A cena carrega, na forma e no conteúdo, elementos que fazem referência ao que é tratado nas linhas do diálogo. Paulo Honório se dirige a Marciano utilizando o termo "safado"; nisso já há traços de violência sendo marcados. Marciano atua de forma respeitosa e entende seu lugar na hierarquia estabelecida por Paulo Honório, de modo que, em elementos formais, pode-se destacar sua gagueira, oriunda da tensão, e o pronome de tratamento "senhor", através do qual se dirige a Paulo. O patrão o contraria, ao que Marciano responde com um juramento, demonstrando a fragilidade do servidor diante do autoritário patrão. Paulo o chama de "mentiroso" e, neste movimento, deslegitima todo o discurso do empregado. Sob pressão constante, tenso e insatisfeito com a falta de credibilidade que seu patrão lhe atribui, Marciano se dirige a Paulo Honório, num comportamento inesperado e que balança a ordem estabelecida entre eles. Marciano atua de maneira a cobrar seu patrão pelas condições de vida em que se trabalha, em suas terras. Rebelase. Esta atitude, aos olhos de Paulo Honório, resultou extremamente subversiva e incabível, afinal, seu sistema hierarquizante fora desestabilizado: Marciano esboçara um vislumbre rápido de consciência que, do ponto de vista marxista, pode ser subversiva da ordem vigente: Para que se torne (essa alienação) uma força ‘insuportável’, isto é, uma força contra a qual se faz uma revolução, é necessário que tenha feito da massa da humanidade uma massa totalmente ‘privada de propriedade’, que se acha simultaneamente em contradição a um mundo existente da riqueza. (MARX, 2008, p. 48). É como se Marciano concebesse sua situação como insuportável e percebesse a contradição entre ele e o patrão; como se engendrasse uma consciência de classe, enfim. Paulo Honório percebe esse movimento e, para brecá-lo, desfere uma série de golpes no funcionário e o rebaixa, atirando-o ao solo, em um movimento metafórico de sua situação: inferior, enquanto pertencente a uma classe social mais baixa. A descrição que o narrador, Paulo Honório, faz da situação, demonstra muito de como ele lida com a violência. A sordidez ao dar detalhes, como a presença de sangue, revela um certo 29 contentamento em afirmar sua autoridade diante do outro, que lhe é subalterno. Dessa análise estilística e da conversa que Paulo Honório tem com Madalena, pouco após o ocorrido, depreendese, de fato, a percepção de violência da personagem principal. - É horrível! bradou Madalena. Como? Horrível! insistiu. Que é? O seu procedimento. Que barbaridade! Despropósito. Que diabo de história... Estaria tresvariando? Não: estava bem acordada, com os beiços contraídos, uma ruga entre as sobrancelhas. - Não entendo. Explique-se. Indignada, a voz trêmula: Como tem coragem de espancar uma criatura daquela forma? Ah! sim! por causa do Marciano. Pensei que fosse coisa séria. Assustoume. Naquele momento não supus que um caso tão insignificante pudesse provocar desavença entre pessoas razoáveis. (RAMOS, 2011, p. 82-3). Ao ser criticado por Madalena, Paulo Honório mostra-se completamente incrédulo diante da indignação da esposa em relação a "um caso tão insignificante"17. Pois fica bem delineado, agora, que Paulo Honório naturaliza a violência, dado que a concebe como parte integradora de uma ordem e entende que ela deve ser usada para a manutenção de seu poder; além, é claro, para o acúmulo incessante do capital. Declara o protagonista: "Pensei que fosse coisa séria". Ora, espancar alguém é, para ele, algo extremamente trivial, pois é justificável dentro da ordem. Paulo Honório ainda admite: “- Ninharia, filha. Está você aí se afogando em pouca água. Essa gente faz o que se manda, mas não vai sem pancada. E Marciano não é propriamente um homem.”18 Os termos “ninharia” e “pouca água”, além do processo de desumanização da personagem agredida, deixam claro sua função de legitimadores da violência: se não é propriamente um homem, qual seria o problema caso apanhasse? E, ainda, poder-se-ia pensar, do ponto de vista de Marx, que Marciano é reificado por Paulo Honório, pois o seu “sentimento de propriedade leva-o a considerar todos que o cercam como coisas que se manipula à vontade e se possui.”19 É como se Marciano, por ser seu empregado, se tornasse, de imediato, um objeto, uma mercadoria - cujo valor de troca é superior ao valor de uso -, do qual pode valer-se como queira o patrão. A reação de Paulo Honório diante da violência chega a ser afirmativa, positiva, pois vê nela um instrumento para que o trabalho ordenado seja realizado. Portanto, podemos entender, em Paulo Honório, uma naturalização e uma legitimação da violência, contra aqueles que, de alguma maneira, possam ameaçar a ordem alcançada com a ascensão de classe. 17 RAMOS, op. cit., p. 83. RAMOS, loc. cit. 19 LAFETÁ, op. cit., p. 206. 18 30 Entretanto, a passagem discutida suscita também outro aspecto imprescindível para o presente trabalho. É possível, a partir das informações que o narrador oferece, realizar um mapeamento das percepções de violência por parte de uma outra personagem: Madalena. A esposa de Paulo Honório reage, na conversa que trava com o marido, de forma indignada diante do seu comportamento violento para com Marciano. Ao contrário do fazendeiro, Madalena não concebe a violência de forma natural; ela se posiciona de forma antagônica à conduta de Paulo Honório e adjetiva seu procedimento: "Horrível!"; já nisso, reside o juízo de valor em relação às ações do outro. Mais do que condoer-se pelo funcionário, Madalena está longe de compreender as justificativas do marido e infere que, se Marciano é um molambo, deve ser porque sempre apanhou muito. O que também é contrastante à opinião de Paulo, pois este nem sequer considera Marciano completamente humano, muito menos busca uma justificativa para sua condição. Apoia-se, antes, no determinismo: "Foi vontade de Deus"20. A violência em São Bernardo não se limita apenas às relações de trabalho, isto é, entre Paulo Honório e seus empregados; ela estende-se para as demais relações, inclusive à que tem com Madalena, sua esposa. Paulo Honório casou-se com Madalena baseado na lógica capitalista, entendendo o casamento antes como uma aquisição, um investimento, que lhe traria: "um herdeiro para as terras de São Bernardo"21, do que como um laço afetivo. Vendo que todos se submetiam ao seu domínio, o protagonista naturalmente o impõe à Madalena. Para seu desgosto, entretanto, as coisas não se dão assim. Ainda que Paulo Honório conceba Madalena através do "sentimento de propriedade", aludido por João Luiz Lafetá, é, ainda, do ponto de vista desse teórico que se pode ver como "Madalena se recusa a alienar-se", propondo um "novo obstáculo"22 para o marido. Esse desgarrar-se da ordem, apresentado na figura de Madalena, é força motriz para que Paulo Honório se encontre desconfiado da mulher e sinta por ela um ciúme arrebatador, visto que sua posse se lhe podia escapar das mãos. O medo de perdê-la, ou antes, de perder a propriedade que tem sobre ela, faz com que o protagonista cunhe sobre a esposa um controle excessivo e questionamentos insuportáveis. Comportamento tal que culmina no suicídio de Madalena, destruída pela violência imposta em um relacionamento dessa estirpe: abusivo. Na cena da conversa que travam, ambos, marido e mulher, na noite do acontecimento fatal, há referência à agressividade de Paulo Honório em direção à esposa: "Meia-volta, gritei segurando-lhe um braço. Temos negócio”.23 Desse modo, as percepções de violência em São Bernardo são encontradas, na relação entre Madalena e Paulo Honório: cada um dos personagens concebe a violência de maneira completamente antagônica ao outro. Madalena expressa compaixão e se posiciona totalmente 20 RAMOS, op. cit., p. 83. Ibidem, p. 43. 22 LAFETÁ, op. cit., p. 207-8. 23 RAMOS, op. cit., p. 122. 21 31 contrária à violência. Paulo Honório, por sua vez, entende a violência como essencial para atender aos seus interesses particulares: para ele, a violência é vista com naturalidade e em atos completamente justificáveis, em nome da manutenção da ordem em sua fazenda. Sem a violência, a conservação deste sistema ordenado estaria em risco. Grande Sertão: Veredas, romance de João Guimarães Rosa, publicado em 1956, entendese como o narrar de uma vida de experiências, do ponto de vista do narrador-protagonista, Riobaldo. A partir dos comentários desta personagem, o leitor é convidado a adentrar o Sertão de Minas Gerais e conhecer as peculiaridades de um “sistema jagunço”, como determina o autor, e as vicissitudes de uma vida sob a perspectiva do amor, das dúvidas e questionamentos acerca da vida, da existência ou não de uma entidade detentora do mal: o diabo; do medo, da guerra e de outros temas inesgotáveis - dado o caráter irresolúvel e enigmático do romance - que invadem a atmosfera do livro, e entre os quais está impregnado o ícone da violência. O romance é, desde o seu cerne, ambíguo e polissêmico. A análise da violência em suas passagens, portanto, deve centrar-se nas percepções do fenômeno pelo personagem principal, Riobaldo, levando em conta seu caráter ambíguo e inquiridor em relação à verdade. Jaime Ginzburg escreve como essa ambiguidade é percebida no modo como Riobaldo se relaciona com a vida jagunça: “Sua posição oscila entre a identificação e o estranhamento, a aceitação e a revolta”.24 No início do romance, Riobaldo elucida a ambiguidade que lhe é inerente, já inserida no âmbito da violência. O protagonista comenta, acerca da força de Diadorim: Ah, ele gostava de mandar, primeiro mandava suave, depois, visto que não fosse obedecido, com as sete-pedras. Aquela força de opinião dele mais me prazia? Aposto que não. Mas eu concordava, quem sabe por essa moleza, que às vezes a gente tem... (ROSA, 1944, p. 204). As “sete-pedras” são o símbolo da violência de Diadorim, companheiro jagunço, diante da desobediência de uma ordem: traço de um autoritarismo característico de um componente do sistema jagunço. Riobaldo posiciona-se no ponto medial entre ser contrário e ser favorável à conduta de Diadorim, posição plasmada na concordância contrariada da personagem. Essa oscilação em relação à violência é parte fundamental para a compreensão das reações diante de atos violentos, no corpo do romance. Em outro trecho, Riobaldo apresenta uma visão negativa em relação à violência, colocando-se contrário ao fato de que, para Diadorim, o assassinato de uma outra pessoa pudesse ser visto de forma tão natural. É o caso da possibilidade de se matar à Ana Duzuza, mãe de Nhorinhá, por ela saber sobre a passagem do bando pelo Liso do Sussuarão: “Diadorim era assim: 24 GINZBURG, Jaime. A violência em Grande Sertão: Veredas. Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros, (34), 87-99, 1992, p. 87. 32 matar, se matava – era para ser um preparo. O judas algum? – na faca! Tinha de ser nosso costume”25. Aqui, alude Riobaldo à condição jagunça, ao mesmo tempo em que observa o comportamento de Diadorim com pouca empatia, tanto que sente pena da senhora e objeta a seu favor, preservando-lhe a vida. Essa visão aversiva em relação à violência fundamenta-se também no trecho: “O Reinaldo. Diadorim, digo. Eh, ele sabia ser homem terrível”26. “Terrível” remete, de antemão, ao juízo de valor adverso ao caráter violento da personagem. Essa inconstância e volubilidade do protagonista de Grande Sertão: Veredas marca um dos motivos de sua crise existencial, em que Riobaldo assume uma duplicidade, colocando-se, em trechos críticos, inclusive, favorável à violência. Em relação ao ódio que sente de Hermógenes, Riobaldo postula: “Surgidamente, aí, principiou um desejo que tive – que era o de destruir alguém, a certa pessoa.”27 e “Eu podia rechear de balas aquele nagã próprio, e descarregar nele tiros, entre os todos olhos.”28 A coexistência de um sentimento favorável e contrário à violência compõe o caráter de Riobaldo que, em verdade, não se sente totalmente adaptado à ordem a que é submetido: a jagunçagem. Nem todas as leis que conformam esse universo são correspondentes ao seu feitio. A duplicidade de seu âmago se fortalece e Riobaldo desculpa-se pelas palavras odiosas referidas ao Hermógenes: “O senhor tolere e releve estas palavras minhas de fúria; mas, disto, sei, era assim que eu sentia, sofria. Eu era assim. Hoje em dia, nem sei se sou assim mais”29. Ainda que haja, em relação a Hermógenes, uma violência fundamentada em um certo senso de justiça, dado que Riobaldo o descreve de modo a mostrar que “Ele gostava de matar, por seu miúdo regozijo”30 e que “A gente podia caçar a alegria pior nos olhos dele”31, em cena em que tortura e mata um homem, ainda assim, a ambivalência da personagem se mantém. Riobaldo está entre o saber e o não saber de sua essência. Em muitas passagens, a personagem diz não se sentir parte do contexto em que está inserido: Ser ruim, sempre, às vezes é custoso, carece de perversos exercícios de experiência.[...] Eu tinha receio de que me achassem de coração mole, soubessem que eu não era feito para aquela influição, que tinha pena de toda cria de Jesus. (ROSA, 1944, p. 234). Esse temor de ser descoberto em seus sentimentos de compaixão e empatia se configura com base na maneira através da qual Antonio Candido classifica o universo jagunço: “um mundo onde a violência é uma norma de conduta” (apud GINZBURG, 1992, 90). Considerada assim, a 25 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Nova Aguilar, 1994, p. 44. Ibidem, p. 217. 27 Ibidem, p. 233. 28 Ibidem, p.259. 29 ROSA, loc. cit. 30 Ibidem, p. 235. 31 ROSA, loc. cit. 26 33 violência é parte estrutural do sistema jagunço, da qual Riobaldo, se aceitar permanecer nele, como parte conformadora, não poderá escapar. Para o bem (entendido como justiça) ou para o mal, a violência é elemento constituinte do sertão em que está intermetido Riobaldo. Dado este panorama sobre a personagem principal e seus dilemas com relação à (não)identificação com a jagunçagem, nota-se que há um contraste de percepções da violência no romance, no interior mesmo do protagonista. De tal forma é pungente essa contradição recôndita, que pode ser interpretada como um choque entre percepções internas. A mesma personagem enxerga e entende a violência de modo dual e avesso. Esse entendimento da violência por parte de Riobaldo toma uma dimensão ainda mais conspícua em uma passagem que se encontra, para usar uma imagem roseana, quase ao final da “travessia”. Riobaldo potencializa seu dilema interior e o manifesta em linhas cada vez mais irresolúveis. Trata-se do momento em que, trilhando rota, recém saídos do Currais do Padre e após terem passado pelos Valados, Diadorim, Riobaldo e Sidurino conversam, estando já nas Corujas, lugar emblemático do romance, posto que evoca a questão do pacto com o diabo. Estando esses jagunços reunidos, Sidurino enuncia: “A gente carecia agora era de um vero tiroteio, para exercício de não se minguar... A alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, depois, vadiando...”32. Estando alijados das batalhas, dado que esperavam por novas recomendações do chefe, Zé Bebelo, a hipótese levantada por Sidurino é a de que um tiroteio seria essencial para que não se perdesse o costume da destruição e da violência, tão característicos da vida jagunça. É interessante observar que o advérbio “depois” denota a diversão e o prazer sentidos após a feita de matar pessoas em “vila sertaneja dessas”. Tudo isso é peça estrutural da jagunçagem, na qual a violência é parte da lógica de um sistema “onde a brutalidade impõe técnicas brutais de viver.”33 O narrador, então, manifesta-se frente ao enunciado: “Ao assaz confirmamos, todos estávamos de acordo com o sistema. Aprovei, também.”34 Riobaldo mostra-se, em um primeiro movimento, favorável ao sistema e, consequentemente, à violência que o compõe. No entanto, a próxima manifestação do narrador-protagonista inicia-se com uma adversativa: Mas, mal acabei de pronunciar, eu despertei em mim um estar de susto, entendi uma dúvida, de arpejo; [...]. Aqueles, ali, eram com efeito os amigos bondosos, se ajudando uns aos outros com sinceridade nos obséquios e arriscadas garantias, mesmo não refugando a sacrifícios para socorros. (ROSA, 1944, p. 578). Riobaldo sente incerteza em relação à concordância que expressou e faz uma reflexão sobre a união cúmplice entre os jagunços e a bondade entre os constituintes. Mas a dúvida que 32 ROSA, op. cit., p. 577. CANDIDO, Antonio. O Homem dos Avessos. In: ______. Tese e Antítese. São Paulo: Nacional, 1978, p. 132. 34 ROSA, op. cit., p. 578. 33 34 cerca Riobaldo, ganha corpo na próxima linha, em que há, novamente, a presença da adversativa, reforçando a ambiguidade intrínseca da personagem: Mas, no fato, por alguma ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães – eles achavam questão natural, que podiam ir salientemente cumprir, por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem. O horror que me deu – o senhor me entende? Eu tinha medo de homem humano (ROSA, 1994, p. 578). Riobaldo assusta-se diante da ideia de que faz parte de uma ordem em que seus companheiros jagunços concebem como natural, o assassinar inocentes: “madrinhas e mães”35, apenas para cumprir as leis impostas pelo próprio sistema. Seu acordo com a ideia é esvaziado nesse instante. Riobaldo é contra. Riobaldo sente horror e expressa sentir “medo de homem humano”36, categoria em que está incluído, de modo que parece já não se reconhecer: teme a própria essência. A reflexão segue: e quantas outras doideiras assim haviam de estar regendo o costume da vida da gente, e eu não era capaz de acertar com elas todas, de uma vez!” “[...] parecia que era só eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo; confiança eu mais não depositava, em ninguém (ROSA, 1994, p. 578). Riobaldo caracteriza com o sema da “doideira”, a atitude jagunça de matar à toa, pelo simples comprazer da ordem. Ele não se sente capaz de adequar-se a tantas condições impostas; não se sente parte do grupo e o declara: “parecia que era só eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo”37. Ao diferenciar-se dos companheiros nesse mundo, que é o sertão – Sertão-mundo –, pela presença, em si, de uma responsabilidade, é como se se desprendesse por um momento desse sistema: deixa de fazer parte dele e é contra os princípios que o integram. Em pensamento, Riobaldo observa, afastado, com perspicácia analítica, o comportamento dos seus colegas. Chega o momento, então, em que o protagonista faz um movimento de alteridade: coloca-se no lugar do outro: Mas eu ficava imaginando: se fosse eu tivesse tido sina outra, sendo só um coitado morador, em povoado qualquer, sujeito à instância dessa jagunçada? A ver, então, aqueles que agorinha eram meus companheiros, podiam chegar lá, façanhosos, avançar em mim, cometer ruindades. Então? Mas, se isso sendo assim possível, como era pois que agora eles podiam estar meus amigos?! (ROSA, 1944, p. 579). Riobaldo questiona-se sobre como era possível que aqueles homens fossem seus amigos, dado que, se o protagonista fosse apenas um morador qualquer e não parte do sistema, estaria à mercê dos ataques repletos de maldades do grupo de jagunços. Riobaldo faz uma reflexão que não é comum a um homem jagunço, o que mostra a complexidade da personagem. Ele possui um 35 ROSA, loc. cit. ROSA, loc. cit. 37 ROSA, loc. cit. 36 35 senso de justiça e de empatia em relação ao outro: translada-se à posição do outro e cria teorias sobre a própria condição e, por extensão, acerca desse sistema que, agora, lhe aparece como cruel e violento. Riobaldo termina a reflexão posicionando-se contrário à violência do meio jagunço, que faz vítimas inocentes e se diverte no matar. O protagonista sente-se apartado do restante do grupo, pois não entende como pode fazer parte de um bando, tendo como única garantia de segurança contra suas maldades o pertencimento a ele. Como poder sentir-se parte de um grupo que seria capaz de matar ao próprio Riobaldo, em outras circunstâncias? Essa é a pergunta fulcral que coloca a personagem entre a aceitabilidade ou não da vida jagunça, entre estar de acordo ou não com a violência exercida: natural para os companheiros, estigmatizada e, em momentos nem tanto, para Riobaldo. Riobaldo é o ser dual, entre o sim e o não. Outra ambiguidade pungente na obra de Guimarães Rosa é a questão do pacto com o diabo. Riobaldo permanece em constante dúvida sobre a realização ou não do feito. No começo do romance enuncia: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum!”38 e termina o romance fomentando a ambiguidade: “O diabo não há! É o que eu digo se for… Existe é homem humano.”39 Sendo assim, Riobaldo passa todo o romance indagando-se sobre a legitimidade ou não do pacto que, supostamente, fizera com o diabo. A importância do pacto, para a análise da violência, se dá no sentido de que ele só foi realizado para que Riobaldo tivesse a força e a coragem, subsídios essenciais, para travar um combate contra os “Judas”, entre os quais figurava a chefia de Hermógenes. Antes do pacto, Riobaldo não se considerava capaz de empreender luta contra os inimigos: faltava-lhe o tino. Entretanto, após o pacto, o protagonista expressa uma nova concepção da violência, que até então não havia sido suscitada. As posições favoráveis à violência passam a ter mais predominância em sua composição enquanto personagem, embora ainda mantenha sua ambiguidade nesse sentido. Quando Riobaldo assume a chefia do bando ao qual pertencia, após insistência e certa brutalidade no impor: “Quem é que é o chefe?”40, recebe de Zé Bebelo o seguinte comentário: “Tu é terrível, que nem um urutu branco...”41. O mesmo “terrível” que outrora Riobaldo utilizara para qualificar as ações violentas de Diadorim, mostrando uma percepção contrária ao movimento, é agora atribuído ao mesmo protagonista, que se lisonjeia pelo epíteto e não o nega: é favorável. Essa posição favorável é conferível, inclusive, em uma passagem na qual Riobaldo usase da violência como ratificação de sua chefia. No entanto, é claro que essa atitude de Riobaldo se centraria em meio a uma ambiguidade. Veja-se que, no início da cena, o protagonista diz que: 38 ROSA, op. cit., p. 7. Ibidem, p. 875. 40 Ibidem, p. 622. 41 Ibidem, p. 625. 39 36 “Aí, era só eu forçar calma, tenteador; depois, com palavras de energia boa, eu acautelava evitando a jerimbamba, e daí repreendia esse Treciziano, revoltoso, próprio por autoridade minha, mas sem pau nem pedra.”42 Nesse primeiro movimento, Riobaldo não se usa de violência, mas de sua autoridade. Em um segundo movimento, manifesta a mesma autoridade com violência: “em dura mão, peguei por baixo o outro, encorteirecortei desde o princípio da nuca – ferro ringiu rodeando em ossos, deu o assovião esguichado, no se lesar o cano-do-ar, e mijou alto o sangue dele”43, “E o que olhei? Sangue na minha faca – bonito brilho, feito um verniz veludo…”44. Riobaldo vê a violência desde um ponto de vista da beleza que ela pode encerrar; é glorioso para o protagonista, ter matado Treciziano. Essa opinião oscila entre a repulsa e a defesa à violência, respectivamente: “Um frio profundíssimo me tremeu. Sofri os pavores disso – da mão da gente ser capaz de ato sem o pensamento ter tempo.” e “Fosse de tiro, tanto não admiravam a tanto, porque a minha fama no gatilho já era a qual; à faca, eh, fiz!”45, diz Riobaldo, se gabando pelo que terminara de fazer. Grande Sertão: Veredas, portanto, encerra a contradição íntima da personagem principal, em relação a diversos temas, entre os quais figura a violência. Riobaldo é, ao mesmo tempo, favorável e contrário à violência imposta no sistema jagunço, da qual é, valendo-se dos termos de Ginzburg46, agente e vítima: apesar de matar, está suscetível à morte, estando inserido em uma ordem de guerras e batalhas. A ambientação do romance é, em certa medida, muito violenta e envolve a personagem principal em meio a antíteses e perguntas, para as quais, nem sempre, é possível obter-se uma resposta. Riobaldo é uma personagem dual que manifesta suas percepções de violência e a reação diante desse fenômeno de forma ambígua, durante todo o livro. O personagem mostra-se sempre de uma forma e de outra: partes distintas que conformam uma personagem tão completa e tão peculiar, ao mesmo tempo. Examinar as condições em que as percepções de violência se dão, separadamente em São Bernardo e Grande Sertão: Veredas é um movimento muito produtivo, mas que pode ser potencializado e fortalecido pela observação das conjunções e disjunções em relação a esse mesmo objeto de análise, entre os dois livros. Trata-se de uma interpretação comparativa, a partir da qual elementos encobertos podem vir à tona, ao colocar-se em choque as questões de um e de outro romance. Elementos que, talvez, permanecessem subjacentes, tomadas as obras de maneira particular. Tanto em Grande Sertão: Veredas como em São Bernardo, há traços de violência e, quanto a isso, não resta a menor dúvida, de acordo com a análise realizada. No entanto, as maneiras 42 Ibidem, p. 733. ROSA, op. cit., p. 734. 44 ROSA, loc. cit. 45 ROSA, op. cit., 735. 46 GINZBURG, op. cit., p. 89. 43 37 como as diferentes personagens percebem a violência são diversas e devem ser estudadas com cautela. Há também similitudes entre uma obra e outra nessa mesma direção, o que torna a comparação ainda mais intrincada. Ainda assim, as observações de dissonâncias e consonâncias entre as obras é extremamente prolífica. Em São Bernardo, tem-se a violência sendo percebida por dois personagens: Paulo Honório e Madalena. Embora a percepção de Madalena seja conhecida através da explanação do próprio narrador protagonista, Paulo Honório, que não se propõe jamais a ser neutro, ainda assim é possível verificar que há um contraste de assimilação do fenômeno. Isto é, a violência é encarada e percebida de formas distintas, entre duas personagens diferentes. Paulo Honório concebe a mesma violência de forma natural e lhe é favorável, ao passo em que Madalena a enxerga como injusta e se posiciona contrariamente diante dela. Se por um lado assim se dá em São Bernardo, por outro, em Grande Sertão: Veredas, as percepções contrastantes, que se chocam a todo momento no romance, do fenômeno da violência, estão no nível interno da personagem. Ou seja, no interior de uma única personagem, a violência é considerada de maneira favorável e contrária. No íntimo de Riobaldo, personagem principal ao qual se refere esse parágrafo, coexistem a naturalização da violência e sua aceitação, e a repulsa e a contrariedade diante dela. Esse embate de ideias totalmente contrastantes e inconciliáveis permeia as crises existenciais de Riobaldo e as perguntas de cunho metafísico que compõem o romance. Tanto Grande Sertão: Veredas quanto São Bernardo são obras do Modernismo Brasileiro. Essa situação supracitada, com relação às personagens pode, em alguma medida, ser analisada do ponto de vista de Anatol Rosenfeld, que defende, em seu Reflexões sobre o Romance Moderno, que: “Há, portanto, plena interdependência entre a dissolução da cronologia, da motivação causal, do enredo e da personalidade”47. Anatol alude ao fato de que o romance moderno funde os tempos passado, presente e futuro, abandonando a ordem lógico-causal praticada no romance realista de outrora, estendendo para o personagem a mesma distensão, porém, em relação à sua psicologia: “Devido à focalização ampliada de certos mecanismos psíquicos perde-se a noção da personalidade total e do seu caráter.”48 Isto é, as personagens deixam de ser apresentadas de forma nítida e completa, com descrições minuciosas: é o mergulho em sua consciência que as representa. Em movimento análogo à teoria, estão Riobaldo e Paulo Honório, buscando no arcabouço da memória e da psiqué, a matéria que será vertida nos romances. É certo que Riobaldo é um personagem ambíguo. É evidente também que Paulo Honório queira imprimir objetividade em 47 ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ______. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 85. 48 ROSENFELD, loc. cit. 38 seu discurso, embora fracasse em seu objetivo durante algumas passagens, em que perde o controle sobre tudo, como nunca imaginou que aconteceria; chegando, inclusive, a perdê-lo sobre a sintaxe, usando-se de formas reflexivas como “não consigo mexer-me”49, no final do capítulo XIX, emblemático no livro, em que o verbo é que subordina o pronome e não o contrário, naturalmente mais autoritário. Ainda assim e, justamente por isso, é que se tem acesso aos seus dramas internos e à percepção de violência expressa por cada um deles, no âmago. Entre Grande Sertão e São Bernardo é possível encontrar, nessa mesma perspectiva, a consonância que os une no signo da violência. Refere-se às manobras de justificativa e legitimação da violência nas duas obras. Paulo Honório que, como quer Candido, levou uma “vida que se quis violentamente plena e acabou destruída pela ignorância dos valores essenciais”50, procurou ratificar e validar a violência que empregou aos personagens de seu círculo social, aos quais reificou, sob a justificativa da sua condição de homem agreste: “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste”51. Paulo Honório atribui ao seu meio e, por consequência, ao seu modo de vida “agreste”, a culpa por sua conduta em relação aos demais, inclusive, à luz da violência. Dessa forma, o sertão agreste, que condicionara suas ações, serviu-lhe para naturalizar seus atos agressivos. Essa vida agreste encerra “as lutas pela propriedade, pelo rebanho, pelas plantações de algodão e mamona, pelo poder e pelo capital. O ʽhomem agresteʼ é aquele ser no qual se transformou Paulo Honório: egoísta e brutal”52. Visto que Paulo Honório deixou-se levar pelo processo de modernização do Sertão, sem pensar sobre suas ações, apenas agindo e indo em busca de seus objetivos, suas atitudes foram sendo moldadas conforme seu estilo de vida. Segundo Vilaça (2003, apud JUAREZ FILHO, 2006, 108), “ao ultrapassar seus próprios limites, os coronéis do agreste e do Sertão foram cavando, inadvertidamente, suas próprias sepulturas.” Talvez se possa pensar na justificativa com base na vida agreste, a partir desse fragmento do ensaísta. Tomando a figura de Paulo Honório como esse coronel autoritário, é intuitivo assinalar a relação entre a irrelevância que os limites éticos representaram para o protagonista e a sua destruição. O personagem perdeu completamente o controle de si: “Agir, mandar, cultivar S. Bernardo, nada disso terá mais sentido para ele”53, pontua Lafetá. Se fora violento, Paulo Honório deposita esta responsabilidade em suas condições de vida e ao ambiente hostil e bruto ao qual esteve submetido: onde a força modernizadora do sertão arrebatou suas ações e o tornaram um homem de ação, transformação e com vistas à conquista de propriedades, a qualquer custo. 49 RAMOS, op. cit., p. 78. CANDIDO, op. cit., p. 105. 51 RAMOS, op. cit., p. 79. 52 LAFETÁ, op. cit., p. 208. 53 LAFETÁ, op. cit., p. 211. 50 39 Em Grande Sertão: Veredas, na figura de Riobaldo, tem-se um movimento análogo. O protagonista também procura em suas condições de existência e em seu modo de vida, por consequência, a legitimação de seus atos violentos. Riobaldo assume: “não sabia pensar com poder, por isso matava”54. Sendo simples jagunço, parte constituinte dessa ordem em que a violência é estrutural e intrínseca, Riobaldo apenas segue os preceitos e premissas que se esperam de um homem nestas condições. Ao tratar de Riobaldo, entretanto, não se pode ignorar a ambiguidade que o conforma. Ao tornar-se líder e, portanto, ao alcançar o poder, ele também demonstra atos violentos e continua matando: isso é parte da dualidade do personagem. A ideia da ratificação da violência permanece, também, de tal maneira que ele próprio julga legítimos os seus atos de violência, sob a absolvição do seu pertencimento a um grupo que, por natureza, é violento: a jagunçagem. Riobaldo tem, do ponto de vista de Antonio Candido (2004 apud CORPAS, 2007, 78), o “reconhecimento da condição de jagunço como forma de viver, modo de existência no mundo-sertão, realização ontológica”. Essas condições são às quais está exposto o protagonista, em meio a um grupo que deve fazer as vezes do Estado, “[...] onde a pressão da lei não se faz sentir, e onde a ordem privada desempenha funções que em princípio caberiam ao poder público” (2004, apud CORPAS, 2007, 78). Portanto, a justiça e, por extensão, a vingança e o bem-estar, são todos serviços que estão nas mãos dos jagunços que, sempre que necessário, recorrem à violência para cumprir sua função. Além do que, não se esqueça, seu estatuto é também ambivalente, como a própria personagem, pois há passagens do livro que revelam mais do que uma intenção de justiça, antes uma disposição a matar e guerrear, por prazer da atividade. No entanto, Riobaldo faz reflexões acerca da sua condição dentro da jagunçagem e é crítico em relação ao que faz: arrepende-se, pensa, repensa, muda de ideia acerca de algo que antes tinha por definido, se convence e desconvence em poucas linhas; os movimentos de pensamento são muitos. Paulo Honório, pelo contrário, embora justifique sua violência pelo meio, o sertão seco que lhe fez assim: um homem bruto e preocupado em superar as adversidades, por meio de estratégias muitas vezes violentas, “ele nada problematiza de nada duvida, em ponto algum vacila. Tudo que importa é possuir e dirigir o mundo”55. Segundo a professora Rita Terezinha Schmidt “é necessário compreender que não se pode assumir uma visão ingênua sobre a violência como se fosse um fenômeno externo à academia. A violência sempre esteve entranhada no campo da produção do conhecimento” 56. De fato, isso pôde ser corroborado por esse trabalho, a partir do qual, a análise das percepções de violência em Grande Sertão: Veredas e São Bernardo propiciaram um debate prolífico 54 ROSA, op. cit., p. 489. LAFETÁ, op. cit., p. 200. 56 SCHMIDT, Rita Terezinha. Entrevista. Teresa. Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira. N.17, 2017. 55 40 acerca das ideias de percepção contrastante, ambiguidade, legitimação, ordem hierarquizante, condições impostas por realidades sociais – o Sertão Agreste e Sertão Jagunço –, tudo isso, frente à violência e a agressividade, nas duas obras. A comparação entre ambos os romances permitiu que se inferissem questões relativas aos movimentos estilísticos e concernentes ao conteúdo, através dos quais os escritores lançaram mão da discussão acerca da violência, na literatura brasileira. REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In: escritos. 4.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2004. . Vários CANDIDO, Antonio. Os Bichos do Subterrâneo. Tese e Antítese. São Paulo: Nacional, 1978. CORPAS, Danielle. Transcendência do Regional e Modo de Ser Jagunço: Observações de Antonio Candido sobre Grande Sertão: Veredas. Itinerários. Araraquara, n. 25, 2007. DAL FARRA, Maria Lúcia. O Narrador Ensimesmado. São Paulo: Ática, 1978. GINZBURG, Jaime. A violência em Grande Sertão: Veredas. Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros, n.34, 1992. JUAREZ FILHO, Edmundo. História e alegoria em São Bernardo de Graciliano Ramos. 2006. 258 fls. Dissertação de Mestrado - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Universidade de São Paulo. São Paulo. LAFETÁ, João Luiz. O mundo à revelia. In: 34, 2004. . A dimensão da noite. São Paulo: Editora MARX, Karl. Fundamentos da História. In: _____. Sociologia. São Paulo: Ática, 1946. MARX, Karl. Sobre o Suicídio. Tradução: ENDERLE, Rubens e FONTANELLA, Francisco. São Paulo: Boitempo, 2008. RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2011. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Nova Aguilar, 1994. ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o Romance Moderno. In: Paulo: Perspectiva, 1996. . Texto/Contexto. São SCHMIDT, Rita Terezinha. Entrevista. Teresa. Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira. N.17, 2017. VILLAÇA, Marcus Vinícius & ALBUQUERQUE, Roberto de Cavalcanti. Coronel, Coronéis. Apogeu e declínio do coronelismo no Nordeste. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 41 A violência decorrente das relações de poder em Grande sertão: veredas e em São Bernardo Alice Santana de Lima RELAÇÕES DE PODER E VIOLÊNCIA As personagens Riobaldo e Paulo Honório, protagonistas dos romances Grande Sertão: veredas e São Bernardo, respectivamente, representam figuras de autoridade nos determinados contextos em que estão inseridas. Dadas as diferentes circunstâncias em que estas se encontram, representam, consequentemente, tipos distintos de liderança: Riobaldo ascende à posição de líder jagunço e encabeça a vingança contra Hermógenes pela morte do chefe antecessor, Joca Ramiro; o latifundiário Paulo Honório, por outro lado, comanda os negócios em sua vasta propriedade de maneira intransigente. As duas lideranças têm um ponto em comum, no entanto, no que se refere a um dos resultados diretos das relações de poder que estabelecem: a violência. Bourdieu (1998), ao discorrer sobre o poder, classifica-o como um campo de forças no qual diferentes atores sociais, em determinados contextos históricos, tentam reproduzir relações de poder e, consequentemente, suas relações sociais. Nesse sentido, considerando que, segundo Foucault (1989), o poder se estabelece não apenas nas macro, mas nas microrrelações, desdobrase, também, das mais variadas formas. A violência, nesse cenário, pode, eventualmente, servir como um meio através do qual o sujeito alcança e afirma o poder ou, simplesmente, manifestarse como inata à conduta de quem o detém em determinada conjuntura. Ainda sobre o poder, Foucault afirma que este não é algo que se possui; ele circula entre os indivíduos, permeando todos os espaços sociais. Segundo o autor: Nunca está localizado aqui e ali, nunca está em mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas, os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder, e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles (FOUCAULT, 1989, p. 183). Esse caráter disperso caracteriza as relações de poder - que podem ser estabelecidas entre os mais variados grupos — cuja premissa é, sobretudo, uma determinada hierarquia entre os indivíduos e, assim, a predominância da vontade do dominante sobre a do dominado. A partir disso, portanto, podem se tornar conflituosas e, consequentemente, violentas, a exemplo das que, dentro das obras literárias em questão, serão analisadas. JAGUNÇAGEM, VIOLÊNCIA E CHEFIA: RECUSA E ACEITAÇÃO DE RIOBALDO 42 A relação de Riobaldo com a jagunçagem é inconstante, pois há passagens em que ele acredita que o ofício lhe fora imposto: "[...] no meio onde eu estava obrigado, naquele grau de gente” (ROSA, 2001, p. 196). Logo em seguida, revolta-se: "E eu não tardei no meu querer: lá eu não podia mais ficar. Donde eu tinha vindo para ali, e por que causa, e, sem paga de preço, me sujeitava àquilo? Eu ia-me embora” (ROSA, 2001, p.197). Posteriormente, declara que "tinha vindo jagunço só mesmo por conta da amizade!” (ROSA, 2001, p. 244). Referindo-se ao amigo Diadorim e, ainda, a respeito dos jagunços, diz: "Como é que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso” (ROSA, 2001, p. 406). Nestas passagens, em um movimento inconstante, Riobaldo atribui diferentes razões para sua adesão à jagunçagem, além de colocar o homem sertanejo como um ser desvirtuado por natureza, incapaz de exercer a bondade. Essa instabilidade nas percepções se transforma no eixo central de sua narrativa e evoca outros dois de seus grandes dilemas: a existência ou não do diabo (além da dúvida sobre a concretização do pacto que tentou fazer com este) e a recusa/ aceitação da liderança do seu bando. Após o fracasso da travessia do Liso do Sussuarão, a dura volta pelo sertão acaba vitimando o chefe jagunço Medeiro Vaz. Riobaldo, convidado pelo próprio para substituí-lo, recusa-se: “Me queriam governando. Assim estremeci por interno, me gelei de não poder palavra. Eu não queria, não queria. Aquilo revi muito por cima das minhas capacidades" (ROSA, 2001, p. 96). Posteriormente, no entanto, durante o julgamento de Zé Bebelo, enquanto observava uma fala do então líder Joca Ramiro, o jagunço passa a imaginar qual seria a sensação de ser um chefe. "Ali naquel'horinha – meu senhor – foi que eu lambi ideia de como às vezes devia de ser bom ter grande poder de mandar em todos, fazer a massa do mundo rodar e cumprir os desejos bons da gente" (ROSA, 2001, p. 287). Ainda durante o julgamento, Riobaldo decide falar em defesa de Zé Bebelo. Concluído o discurso, Diadorim lhe diz quão bem havia se pronunciado: "tinha sido menos por minhas tantas palavras, do que pelo rompante brabo com que falei, acendido, exportando uma espécie de autoridade que em mim veio" (ROSA, 2001, p. 293). Posteriormente, com a notícia de que Joca Ramiro havia sido assassinado por Hermógenes, uma nova guerra é deflagrada. Quase imediatamente, os jagunços pegam em suas armas e Riobaldo convoca: "Mas, agora, temos de vingar a morte do falecido!" (p. 315). Diante dessa postura, Alaripe o exorta: "Mano velho Tatarana, você sabe. Você tem sustância para ser um chefe, tem a bizarria..." (ROSA, 2001, p. 316). O protagonista, no entanto, volta a se recusar: "De ser chefe, mesmo, era o que eu tinha menos vontade" (ROSA, 2001, p. 316). Ainda durante o desenrolar do conflito e entre a desconfiança de uma suposta traição por parte de Zé Bebelo, a relação de Riobaldo com a questão da autoridade segue instável. "[...] de homem ou de chefe nenhum eu não tinha medo" (ROSA, 2001, p. 351). Esse movimento de 43 insubordinação à liderança atual, aliada ao respeito adquirido pelos colegas depois de assassinar alguns homens do grupo inimigo, como conta no trecho "todos em minha pontaria punham prezado valor" (ROSA, 2001, p. 353), parece apontar para a sua subsequente ascensão à chefia do bando e para a conduta que irá adotar. Riobaldo negava a posição através tanto da recusa de exercê-la quanto da de submeter-se a alguém que a ocupasse, mas seu discurso e suas aptidões indicam, de antemão, o surgimento do Urutú-Branco. Após contar mais episódios da guerra, Riobaldo narra a crescente mudança que passou a acometê-lo, mudança essa que não ficou sequer despercebida pelos companheiros. "Todos em antes me davam por normal, conforme eu era, e agora, instantaneamente, de dia em dia eu ia ficando demudado. Com uma raiva, espalhada em tudo [...] Dormia pouco, com esforços. [...] minha cabeça estava cheia de ideias" (ROSA, 2001, p. 428). Em seguida, diz ter descoberto, através de Lacrau, que Hermógenes era pactário. Duvida da informação, reflete e, por fim, decide: na companhia de Diadorim, era seu destino "dar cabo do Filho do Demo" (ROSA, 2001, p. 425). Era isso que o inquietava. Como Riobaldo poderia derrotar Hermógenes, assassino de Joca Ramiro, tomando para si a vingança pretendida pelo amigo Diadorim? Movido por esse espírito de justiça, Riobaldo encontra no pacto com o demônio a solução para igualar-se ao inimigo e assim derrotá-lo. Na encruzilhada das Veredas-Mortas, o jagunço tenta firmar o trato, a princípio sem saber ao certo o porquê: “E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era — ficar sendo!” (ROSA, 2001, p. 436). Depois conclui: "Eu queria ser mais do que eu" (ROSA, 2001, p. 437). Tornar-se "mais do que era" demandava, portanto, sujeitar-se a essa ação extrema. Riobaldo ambiciona poder tanto quanto o seu oponente. Firmado o pacto, novas mudanças em seu comportamento ficam evidentes. "Uai, tão falante, Tatarana? Quem te veja..." (ROSA, 2001, p. 441), dizia Alaripe. Não tardou, então, para que começasse a dar ordens e reconhecer-se autoridade, não admitindo ser contrariado: "[...] eu naquela hora achava Zé Bebelo inferior; e, porque, que alguém falasse contra, por cima das minhas palavras, me dava raiva" (ROSA, 2001, p. 442). Com a chegada de mais homens para compor o bando, questiona: "Agora quem é que é o chefe?" (ROSA, 2001, p. 451). Todos ficam em silêncio e ele decide: "porque o chefe já era eu" (ROSA, 2001, p. 452). Em seguida, acreditando ter sido contestado pelo jagunço Rasga-em-Baixo quando esse fez um mínimo movimento após essa fala, Riobaldo o mata. Não satisfeito, mata também o irmão dele. Sua perversidade ganha novas proporções quando, além de assassiná-los, não permite sequer que fossem enterrados, pois isso seria faltar-lhe com o respeito. A conduta causa perplexidade em todos. Nesse cenário, Zé Bebelo, antes de partir, o reconhece como novo chefe do bando, dando-lhe a alcunha de "Urutú-Branco". O novo líder, então, é aclamado pelos demais em um misto de temor e respeito e, assim, toca a vingança contra Hermógenes. 44 Mas até que ponto Riobaldo almeja o poder em nome apenas de fazer justiça? Em diversas passagens atribui seu ódio a Hermógenes pelo assassinato de Joca Ramiro. Em outras, reconhece que a raiva que sente por ele não tem razão de ser: "Aí dele me lembrei, na hora: e esse Hermógenes eu odiasse! [...] para essa aversão não carecia de compor explicação e causa, mas era assim, eu era assim" (ROSA, 2001, p. 410). Nessa segunda concepção, o protagonista se aproxima muito mais de uma conduta violenta irracional do que de uma busca por um ideário de justiça (GINZBURG, 1992):57 como se se aproveitasse da nova posição de poder para exercer a violência sem ser contestado, sem um fim específico, usando o pacto como um pretexto para tal. Quando reconhece, ainda no início da narrativa, que "mesmo pessoa amiga e cortês, virando patrão da gente, vira mais rude e reprovante" (ROSA, 2001, p. 141), parece fazer um prenúncio da sua própria atuação como chefe, que será mais tarde relatada. A legitimidade do pacto com o diabo é uma grande incógnita para Riobaldo. Sem ter certeza se o fez ou não, vai da negação à afirmação durante toda a narrativa. É conveniente dizer que "o diabo vige dentro do homem" (ROSA, 2001, p.26) para colocá-lo, nessa perspectiva, como responsável pela iniquidade humana. Por outro lado, ao afirmar que "o diabo não há" (ROSA, 2001, p. 624), coloca na conta do indivíduo a causa e a consequência da perversidade do mundo, essa expressa de maneira mais primitiva na situação de guerra por ele vivida: "Existe é homem humano" (ROSA, 2001, p.624). PAULO HONÓRIO E A FACE DO CAPITALISMO A ascensão e a derrocada de Paulo Honório são por ele relatadas de maneira bastante objetiva, tal qual sua personalidade. A narração rápida e rítmica embasa a caracterização do narrador como um elemento dinâmico por natureza (LAFETÁ, 1979). Essa dinamicidade é o que o impulsiona, desde o início, a superar as dificuldades do meio onde vive servindo-se de “bons negócios”. Foi como um "bom negócio", portanto, que o protagonista viu não apenas a aquisição da fazenda São Bernardo, mas também o casamento com a professora Madalena. A partir dessa mesma concepção de poder convive com seus funcionários de maneira bastante autoritária. De acordo com Candido: Em Paulo Honório, o sentimento de propriedade, mais do que simples instinto de posse, é uma disposição total do espírito, uma atitude geral diante das coisas. Por isso engloba todo o seu modo de ser, colorindo as próprias relações afetivas. Colorindo e deformando. Uma personalidade forte, nucleada por paixão duradoura - avareza, paternidade, ambição, crueldade (...) (CANDIDO, 2006, p. 39). . A vida de Paulo Honório foi regida através dessa força desde o início de uma busca obstinada pelo capital: desenvolve as mais variadas atividades, dá um golpe em Luís Padilha para 57 A violência em Grande Sertão Veredas, Jaime Ginzburg. 45 adquirir sua grande propriedade e manda seu capanga, Casimiro Lopes, assassinar Mendonça quando esse parece representar uma ameaça para a expansão de suas terras. Através dessa perspectiva, se volta para seus subordinados, de modo especial para Marciano, a quem agride de maneira cruel, ao achar que este não havia cumprido com suas tarefas. Quando questionado pela esposa, justifica-se: "Fiz aquilo porque achei que devia fazer aquilo" (RAMOS, 2014, p. 129). Está posta, portanto, uma relação de poder entre patrão e empregado. Dentro da lógica capitalista, quem detém o capital e os meios de produção detém o poder. A divisão do trabalho e a consequente relação assimétrica entre a classe dominante e a classe dominada, nesse sistema, implica na exploração de uma pela outra. É essa exploração da mão-de-obra que garante a manutenção do privilégio de Paulo Honório, alcançado através de roubos, trapaças e até mesmo um assassinato. Conquistado de maneira violenta, é também preservado de maneira violenta: sentindo-se contrariado pela suposta indisciplina de Marciano em não cumprir com suas obrigações na fazenda, emprega a força física para puni-lo. É curioso pensar também, nesse sentido, como Paulo Honório acredita serem legítimas suas ações. Madalena insiste no horror da conduta do esposo; ele, no entanto, pensa: "Estaria tresvariando?" (RAMOS, 2014, p. 128). Considera impensável que esteja errado, como se tivesse direito de agir assim enquanto patrão. Além de tudo, comprova sua crueldade, que isso lhe pareça corriqueiro: "Naquele momento não supus que um caso tão insignificante pudesse provocar desavença entre pessoas razoáveis" (RAMOS, 2014, p. 126). A opressão resultado desse sistema de propriedade privada, é acentuada, também, através da relação entre Paulo Honório e Padilha. O capitalismo determina seus diferentes papéis sociais: depois de perder suas posses para Paulo Honório em um golpe, Padilha é por ele contratado para lecionar na escola de São Bernardo - construída apenas com o objetivo de agradar as autoridades políticas locais. Em uma de suas inúmeras crises de ciúmes, Paulo Honório, desconfiado da esposa, vinga-se do funcionário atrasando seu salário: Estive quatro meses sem lhe pagar o ordenado. E quando o vi sucumbido, magro, com o colarinho sujo e o cabelo crescido, pilheriei: “- Tenha paciência. Logo você se desforra. Você é um apostolo. Continue a escrever os contozinhos sobre proletário.” O infeliz defendia-se. Com as humilhações continuadas, limitava-se por fim a engolir em seco. Um dia chorou, pediu-me soluçando que lhe arranjasse uma colocação no fisco estadual. (RAMOS, 2014, p. 158). Essa passagem evidencia a crueldade do fazendeiro em não hesitar quanto a adiar o pagamento do funcionário, sobretudo em privá-lo da satisfação de suas necessidades primordiais, consideradas por Marx em seu texto Fundamentos da História como sendo as do corpo. Entre castigos físicos e salários irrisórios, o trabalho na propriedade São Bernardo se assemelha muito com um regime de escravidão. 46 A truculência de Paulo Honório tem seus desdobramentos também no que se refere ao modo como se volta para a natureza. Durante uma visita de Azevedo Godim, Nogueira e Padre Silvestre, conversam: - Realmente deve ser uma delícia viver neste paraíso. Que beleza! - Para quem vem de fora. Aqui a gente se acostuma. Afinal não cultivo isto como enfeite. É para vender. - As flores também? - Tudo. Flores, hortaliça, fruta... (RAMOS, 2014, p. 149). Seus interesses capitalistas imperam por meio de uma atitude predatória que enxerga a natureza apenas como mais um meio de se fazer dinheiro. A busca pela recompensa imediata, pela produção massiva e intensa pela exploração da mão-de-obra barata que, alienada, não vê alternativa de sobrevivência a não ser sujeitar-se a esse ofício, caracterizam a conduta de Paulo Honório enquanto chefe: intransigente, cruel e autoritário no momento em que sua liderança só consegue se impor através da força; quando acredita-se superior devido a seus bens materiais em detrimento dos demais indivíduos que com ele convivem – que, nesse sentido, também passam a ser tratados como algo a se possuir. Para Paulo Honório, todos vivem em função dele e de suas vontades: "Pobre do Casimiro Lopes. Ia-me esquecendo dele. Calado, fiel, pau para toda a obra, era a única pessoa que me compreendia." (RAMOS, 2014, p. 144). Espanca Marciano porque esse "não é propriamente um homem" (RAMOS, 2014, p. 128). Sobre Mestre Caetano, diz: "Não obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar" (RAMOS, 2014, p. 119). Em um movimento intenso de desumanização, é como se o outro lhe servisse apenas à medida que sua contribuição laboral lhe favorecesse. Esse processo de reificação do outro, acionado pelo protagonista, incide também com grande intensidade em Madalena. Segundo Lafetá (1979, p. 204/205), "[...] na medida em que ela é capaz de apiedar-se dos trabalhadores miseráveis que vivem na fazenda, na medida em que Madalena se afasta de seu universo de proprietário e escapa, portanto, à sua compreensão, Paulo Honório sente ciúmes". Esse ciúmes, nada mais do que uma das modalidades do sentimento de propriedade de Paulo Honório, acaba firmando um conflito indissolúvel entre os dois que a leva à atitude extrema do suicídio. O simples fato de Madalena ter se sujeitado a casar com ele, em primeira instância, já constituía uma opressão: firmou o compromisso apenas por razões financeiras, uma vez que a união com o latifundiário lhe seria vantajosa diante da miséria que enfrentava na companhia da tia. Sofre, portanto, enquanto mulher tanto quanto sofre por ser pobre. Decidir pôr fim à própria vida, então, evidencia que Madalena já estava na situação limite da convivência com alguém cujos valores morais distinguiam-se tanto dos seus e, mais do que isso, com alguém que personificava toda a violência que a prejudicava. A VIOLÊNCIA E AS RELAÇÕES DE PODER DE RIOBALDO E DE PAULO HONÓRIO 47 As performances de poder de Riobaldo e de Paulo Honório se aproximam e se distanciam em muitos aspectos. Os dois, em algum momento, empregam a força para reafirmar suas posições. Diferem-se, no entanto, quanto à reincidência dessas condutas e do juízo que fazem delas posteriormente. Riobaldo revela-se, desde o início, como um contraponto no que se refere aos seus companheiros de bando. Diferente dos demais, assume ter recebido certa instrução: estudou gramática, geografia, estudos pátrios e até mesmo latim. Nesse sentido, o protagonista distanciase em certo grau do que é esperado para um jagunço além de, à medida em que conta sua história, conseguir refletir sobre ela de maneira crítica, sobretudo no que se refere às próprias atitudes violentas. Essas atitudes, inscritas dentro do curto período em que esteve na liderança, são mais tarde vistas por ele sob uma nova perspectiva: "Chefe não era para arrecadar vantagens, mas para emendar o defeituoso" (ROSA, 2001, p. 510). A natureza mutável do poder, salientada por Foucault e já citada anteriormente, é bem explícita através de sua figura e do próprio sistema jagunço em si. O grupo do qual participa o protagonista enfrenta diversos deslocamentos de liderança ao longo da narrativa por inúmeros motivos. Ele mesmo se insere nessas alternâncias: A liderança conquistada por intermédio do pacto é usada para justificar sua violência; mais que isso, é como se Riobaldo não conseguisse incorporar totalmente uma postura de autoridade e passasse a buscar, através da violência, um recurso para impor respeito. Eu era o chefe. Vez minha de dar comando e estar por mais alto. Zé Bebelo tinha de todo desaparecido. Agora, o que se carecia, era de se pegar mais munição. Todos deviam de me obedecer completamente. Só eu não queria abusar. Por que não queria? Ah, então, eu estava em dúvidas. (ROSA, 2001, p. 485) Quando ascende ao poder, não deseja apenas tocar a vingança pela morte de Joca Ramiro, mas igualar-se a ele: pretende que Diadorim o admire tanto quanto admira o ex-chefe – que mais tarde é descoberto ser, na verdade, o pai de Diadorim. É por isso, também, que sua atitude enquanto líder passa por tantas mutações. A atitude paternal que incorpora ao final ("E, todos, tinha vez eu achava que queria-bem o meu pessoal, feito fossem irmãos meus, da semente dum pai e na madre de uma mãe gerados num tempo. Meus filhos" ROSA, 2001, p. 559) se espelha muito na que Joca Ramiro sempre adotou: "Joca Ramiro era quem dispunha. Bastava vozear curto e mandar. Ou fazer aquele bom sorriso, debaixo dos bigodes, e falar, como falava constante, com um modo manso muito proveitoso: – “Meus meninos... Meus filhos...”(ROSA, 2001, p. 277). A performance de seu poder, portanto, transita entre a imitação tanto do ex-líder, nos momentos em que assume uma atitude mais pacífica, quanto do inimigo Hermógenes, quando age de maneira mais destrutiva, violenta. 48 Nessa imprecisão, é como se a sua agressividade fosse ensaiada, "[...] eu tornei a xingar [...] para os meus homens não me acharem aparvo" (ROSA, 2001, p. 491), mais pontual e hesitante do que a de Paulo Honório. Esse, por sua vez, acha adequado e legítimo impor a força para corrigir seus funcionários. Ainda ao definir o que é uma relação de poder, afirma Foucault em seu artigo Como se exerce o poder? que este "é um modo de ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas que age sobre sua própria ação" (1995, p. 243). Esse aspecto apresenta desdobramentos evidentes no que se refere aos relacionamentos do fazendeiro. O poder exercido por ele, pautado em seu autoritarismo, é um fenômeno de coação à medida que a violência o reafirma chefe. Suas ações incidem sobre as ações de seus subordinados quando as anula, pois manipula a todos conforme suas vontades. Paulo Honório, por outro lado, não se dá conta de seus excessos: "A verdade é que nunca soube quais foram os meus atos bons e quais foram os maus" (RAMOS, 2014, p. 48). Não distingue também essa violência, que vai da esfera pública, enquanto um chefe que agride os próprios funcionários, ao ambiente privado, onde hostiliza a própria esposa. Sua imponderação sobre a origem e a razão dessas atitudes, tanto no momento de executá-las quanto no momento em que as relata, evidencia sua falta de discernimento moral. Durante um dos principais confrontos com Madalena, afirma a si mesmo que "matá-la era ação justa. Para que deixar viver mulher tão cheia de culpa? Quando ela morresse, eu lhe perdoaria os defeitos" (RAMOS, 2014, p. 188). A violência, para ele, aqui traduzida na grave consequência de um assassinato, vem novamente como meio de solucionar o impasse. O arrefecimento que toma conta de Paulo Honório depois do suicídio da esposa lhe traz uma breve reflexão: "Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente." No entanto, reconhece: "Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige" (RAMOS, 2014, p. 220). O momento da enunciação nas duas obras não é o mesmo que o momento do enunciado. Paulo Honório mostra-se agressivo em praticamente toda a sua trajetória: antes de ascender ao poder, é através da força que atinge seus objetivos. Uma vez rico, continua adotando a mesma conduta. Enquanto conta a própria história, não consegue enxergar isso como um problema. Nesse sentido, Riobaldo parece ter desenvolvido, a posteriori, uma distinção moral mais criteriosa que a do fazendeiro. A soberania de Riobaldo finda com a morte de Hermógenes. Ver o inimigo derrotado, entretanto, implicou ver seu companheiro morrer também. Foi em nome do enorme afeto por Diadorim que tomou para si a vingança e empossou-se chefe para concluí-la; sem a companhia do amigo depois de alcançado o objetivo e com o fim dos conflitos entre os bandos, a jagunçagem já não tem razão de ser. Declina o ofício ao qual se dedicou longos anos e segue esmiuçando a própria vida. Paulo Honório também decai: com a morte de Madalena, todos com quem convivia o 49 abandonam e o estopim da revolução faz sua fazenda sofrer uma drástica decadência. Só lhe resta, então, narrar sua trajetória. Em algumas passagens, os protagonistas parecem dizer que assimilaram características do meio: "Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias" (Rosa, 2001, p.35), diz Riobaldo, parecendo aludir à própria perspicácia no enfrentamento de seus combates depois do pacto; “A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste" (RAMOS, 2014, p.117), reflete Paulo Honório, referindo-se à rispidez que demonstra em suas ações. Até que ponto o ambiente interfere em seus comportamentos agressivos pode ser pensado futuramente; procurou-se aqui, no entanto, justificar que essa índole, nos dois personagens, está ligada diretamente ao exercício de um poder, embora de maneiras, por razões e em intensidades diferentes. REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1989. FOUCAULT, Michel. Como se exerce o poder? In: RABINOW, Paul & DREYFUS, Hubert, orgs. Michel Foucault, uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. GINZBURG, Jaime. A violência em Grande Sertão: Veredas. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. V.34, 1992. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. LAFETÁ, João Luiz. O mundo à revelia. In: RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1979. IANNI, Octavio. (Org.). Karl Marx. Sociologia. 6. ed. São Paulo: Ática, 1980. RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2014. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. 50 A agressividade e a violência nas relações interpessoais em Grande Sertão: Veredas e São Bernardo Vitória Tonetti Martini INTRODUÇÃO Os romances Grande Sertão: Veredas e São Bernardo caracterizam-se por apresentarem agressividade e violência como elementos pertinentes em suas composições. Nestes romances de João Guimarães Rosa e Graciliano Ramos, respectivamente, a agressividade e a violência são tidas como constituintes das relações interpessoais dos protagonistas com outros personagens das narrativas. Desse modo, neste trabalho serão analisadas a agressividade e a violência no âmbito das relações interpessoais, entre Riobaldo e Diadorim e entre Paulo Honório, Madalena e Marciano. Para fundamentar as análises serão utilizados textos de Antônio Candido e Sigmund Freud, entre outros autores. ANÁLISE SOBRE GRANDE SERTÃO: VEREDAS Na obra de Guimarães Rosa, o personagem Riobaldo apresenta uma dualidade constitutiva, que faz com que sua opinião sobre múltiplos assuntos mude várias vezes ao longo do romance. Essa ambiguidade do protagonista ocorre de diversas maneiras, mas principalmente no âmbito da agressividade e da violência. Essa última ocorre em momentos quando Riobaldo sente prazer em matar – como pode ser visto no trecho: “Surgidamente, aí, principiou um desejo que tive – que era o destruir alguém, a certa pessoa. (...) Se não, por que era que já me vinha a ideia desejável: que joliz havia de ser era se meter um balaço no baixo da testa do Hermógenes?” (ROSA, 2006, p. 170) –, enquanto que, em outros períodos, o protagonista sente repulsa em relação à atividade violenta da jagunçagem, assim exemplificado em “Eu tinha de obedecer a ele, fazer o que mandasse. Mandava matar. Meu querer não correspondia ali, por conta nenhuma. Eu nem conhecia aqueles inimigos, tinha raiva nenhuma deles.” (ROSA, 2006, p. 207). Em relação à agressividade, essa aparece em Riobaldo principalmente em sua relação com Diadorim (também apresentado como Reinaldo), a qual também é permeada pela dualidade, pois o protagonista apresenta dificuldade em lidar com os sentimentos que tem por Diadorim. Além disso, o fato de Riobaldo não poder assumir seus sentimentos para Reinaldo faz com que eles sejam continuamente reprimidos. Tais sensações afetuosas de Riobaldo para com Reinaldo aparecem no romance aceitas em certos momentos pelo protagonista e, desse modo, sem 51 apresentar agressividade, como pode ser observado nos seguintes excertos: “Meu corpo gostava de Diadorim” (ROSA, 2006, p. 182) e “Ele gostava, destinado, de mim. E eu – como posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim.” (ROSA, 2006, p. 193). Entretanto, em outros momentos, esses sentimentos são renunciados pelo personagem principal, o que gera nele uma maior repressão, fazendo com que Riobaldo assuma sua postura agressiva. Essa renúncia aos sentimentos pode ser exemplificada no trecho “Eu tinha renegado Diadorim, travei o que tive vergonha.” (ROSA, 2006, p. 194), enquanto que a postura agressiva pode ser vista em “Diadorim não me acusava, mas padecia. Ao que me acostumei, não me importava. (...) Às vezes Diadorim me olhasse com um desdém, fosse eu caso perdido de lei, descorrigido em bandalho. Me dava raiva. Desabafei, disse a ele coisas pesadas. — ‘Não sou o nenhum, não sou o frio, não...Tenho minha força de homem!’ Gritei, disse, mesmo ofendendo. Ele saiu para longe de mim, desconfio que com mais, até ele chorasse.” (ROSA, 2006, p. 192). Com isso, nota-se que essa reação agressiva de Riobaldo gera, em Diadorim, um desconforto e um sofrimento, mas que também é refletido no protagonista. Desse modo, vê-se que os excertos expostos acima, tanto em relação à agressividade como em relação à violência, evidenciam a importância dessa dualidade como parte do personagem, que realiza “um deslizamento entre os polos, uma fusão de contrários, uma dialética extremamente viva, – que nos suspende entre o ser e o não ser (...)” (CANDIDO, 1978, p. 135). Essa suspensão “entre o ser e o não ser” do protagonista persiste durante todo o romance, inclusive em questões relativas à identificação de Riobaldo como jagunço e à violência que esse papel envolve. Portanto, tem-se que o ambiente da jagunçagem, conhecidamente violento, influencia a vida do personagem principal, reforçando o polo da agressividade nele, ao mesmo tempo em que a dúvida relacionada à sensação de pertencimento à essa mesma atividade faz Riobaldo recuar em sua postura violenta, como ocorre no seguinte trecho: “Fugi. De repente, eu vi que não podia mais, me governou um desgosto. Não sei se era porque eu reprovava aquilo: de se ir, com tanta maioria e largueza, matando e prendendo gente, na constante brutalidade.” (ROSA, 2006, p. 135). Outra questão de forte relevância no romance refere-se às consequências dessa dualidade na relação de Riobaldo e Diadorim. A bilateralidade dos sentimentos desses personagens, juntamente com a repressão, gera um movimento cíclico em que ambos os fatores – afeição e repressão – são realizados pelos dois personagens, mas também os afetam. O fato de Riobaldo e Reinaldo serem afetados negativamente por essa situação e a postura agressiva adotada por ambos diante do recalque de sentimentos gera neles um sofrimento perante tal situação. Assim como estabelecido por Freud, as origens do sofrimento humano são: a vulnerabilidade do corpo (a possibilidade de doenças e a velhice), os desastres naturais e as relações sociais malsucedidas. O 52 sofrimento proveniente dessa última origem é o que ocorre, na obra de Guimarães Rosa, como consequência da relação de Riobaldo e Diadorim e que o psicanalista afirma ser o sofrimento que “nós experimentamos talvez mais dolorosamente que qualquer outro” (FREUD, 2017, p. 20). ANÁLISE SOBRE SÃO BERNARDO No romance de Graciliano Ramos, o protagonista Paulo Honório se apresenta, desde o início, como um personagem com grande determinação e foco, porém não demonstra qualquer escrúpulo para atingir seu maior objetivo: o de adquirir a fazenda São Bernardo. Tal característica do protagonista pode ser observada no seguinte trecho de João L. Lafetá, em O mundo à revelia: “À imagem de seu estilo, é direto e sem rodeios, concentrado sobre si mesmo e sobre seu trabalho, decidido, brusco.” (LAFETÁ, 2004, p. 75). Essa ausência de escrúpulo no personagem o torna, perceptivelmente, uma pessoa violenta e agressiva, visto que Paulo Honório não valoriza e não percebe os demais como indivíduos, a menos que esses possam lhe oferecer algum benefício. Nesta obra, a agressividade é percebida através da narração da história, feita pelo próprio protagonista. O acesso aos pensamentos e opiniões de Paulo Honório reforça no leitor o sentimento negativo relacionado ao protagonista, visto que ele exibe pensamentos como: “O meu desejo era pegar Madalena e dar-lhe pancada até no céu da boca. Pancada em d. Glória também, que tinha gasto anos trabalhando como cavalo de matuto para criar aquela cobrinha.” (RAMOS, 2017, p. 163). Tal pensamento evidencia o caráter brusco de Paulo Honório, assim como foi observado por Lafetá, no trecho: “Sem nenhuma análise psicológica, mas graças à modulação do tom narrativo, ficamos conhecendo o caráter violento e maciço do herói.” (LAFETÁ, 2004, p. 77). Já a violência, no personagem em questão, aparece em diversos âmbitos, sendo eles o do campo físico, como quando Paulo Honório agride fisicamente seu empregado, Marciano; e o do âmbito psicológico, que ocorre principalmente entre o protagonista e sua esposa, Madalena. Esta violência física, especialmente a de Paulo Honório para com Marciano, exibe o abuso de poder do protagonista, que se aproveita da sua posição de dono da fazenda e, portanto, o mais alto na hierarquia, para maltratar seu empregado, evidenciando seu caráter autoritário. Tal cena de violência ocorre no seguinte trecho: — Já para as suas obrigações, safado. — Acabei o serviço, seu Paulo, gaguejou Marciano perfilando-se. — Acabou nada! — Acabei, senhor sim. Juro por esta luz que vos alumia. — Mentiroso. Os animais estão morrendo de fome, roendo a madeira. Marciano teve um rompante: — Ainda agorinha os cochos estavam cheios. Nunca vi gado comer tanto. E ninguém aguenta mais viver nesta terra. Não se descansa. Era verdade, mas nenhum morador me havia ainda falado de semelhante modo. — Você está se fazendo besta, seu corno? 53 Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bambeando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A última deixou-o esperneando na poeira. (RAMOS, 2017, p. 126 e 127) A cena acima apresenta os dois aspectos abordados neste trabalho: a agressividade e a violência. A agressividade, de acordo com Jaime Ginzburg, aparece “diante da reação convicta do subordinado, [em que] Paulo Honório reage de modo agressivo: ‘— Você está se fazendo de besta, seu corno?’” (GINZBURG, 2017, p. 227 e 228). Além disso, o uso das palavras “safado”, “mentiroso” e “seu corno” pelo protagonista para se referir a Marciano têm a função de desqualificar o empregado e reduzir a sua condição humana. Outro aspecto interessante refere-se ao fato de Paulo Honório concordar com o que Marciano disse sobre as más condições de vida na fazenda, – no trecho “Era verdade, mas nenhum morador me havia ainda falado de semelhante modo” – mas, mesmo assim, manter-se impassível em relação a tal assunto e prosseguir com as agressões. Enquanto isso, a violência, nesse trecho, aparece no momento em que o protagonista agride fisicamente Marciano, utilizando sua postura autoritária a fim de oprimir e castigar seu subordinado. Essa atitude de Paulo Honório exibe de modo claro que a percepção do outro como um indivíduo semelhante a ele não existe para o protagonista, mas sim o que Lafetá expõe em sua análise ao dizer que, na visão de Paulo Honório, o que existe é “Um mundo que se curva à sua vontade.” (LAFETÁ, 2004, p. 75). Já na relação entre o protagonista e Madalena, ocorrem a agressividade e a violência psicológica. A primeira acontece com frequência, ao longo do romance, e revela juntamente o pensamento machista do protagonista, que rebaixa a condição de sua esposa como indivíduo, por ser mulher. Essa postura agressiva de Paulo Honório pode ser percebida no seguinte trecho: Indignada, a voz trêmula: — Como tem coragem de espancar uma criatura daquela forma? — Ah! sim! por causa do Marciano. Pensei que fosse coisa séria. Assustou-me. (...) — Bater assim num homem! Que horror! Julguei que ela se aborrecesse por outro motivo, pois aquilo era uma frivolidade. — Ninharia, filha. Está você aí se afogando em pouca água. Essa gente faz o que se manda, mas não vai sem pancada. E Marciano não é propriamente um homem. — Por quê? — Eu sei lá! Foi vontade de Deus. É um molambo. (RAMOS, 2017, p. 128) No excerto acima, Paulo Honório faz o uso de palavras como “frivolidade”, “ninharia”, “filha” e “pouca água”, que servem para desqualificar o discurso de Madalena em defesa de Marciano e diminuí-la diante do protagonista. Além disso, o fato do protagonista afirmar que seu empregado “não é propriamente um homem”, mas sim um “molambo”, reforça essa atitude recorrente que Paulo Honório tem de rebaixar os demais indivíduos que trabalham para ele. Já a violência psicológica, na relação entre o personagem principal e sua esposa, decorre novamente das atitudes de Paulo Honório, que acredita que Madalena está traindo-o com um de seus empregados. Além disso, esse fator, somado ao constante rebaixamento de sua esposa, faz 54 do casamento entre o narrador e Madalena um relacionamento abusivo e predatório, visto que Paulo Honório destrói de modo brusco sua relação com Madalena. É possível observar essa violência psicológica e suas consequências negativas para a esposa do protagonista, no seguinte trecho: “Atormentava-me a ideia de surpreendê-la. Comecei a mexer-lhe nas malas, nos livros, e a abrir a correspondência. Madalena chorou, gritou, teve um ataque de nervos. Depois vieram outros ataques, outros choros, outros gritos, choveram descomposturas e a minha vida se tornou um inferno.” (RAMOS, 2017, p. 164). Nesse fragmento, fica evidente o sofrimento que Paulo Honório causa à sua esposa, visto que Madalena chora e grita enquanto seu marido revira seus objetos. O fato de o protagonista dizer que “choveram descomposturas e a minha vida se tornou um inferno” exibe que a maneira violenta do protagonista lidar com os diversos aspectos de sua vida já aparenta ser natural e normal para ele. Além disso, o fato de Madalena ter cometido suicídio pode ser visto como um resultado de toda a violência e opressão que Paulo Honório realizou em relação à sua esposa. COMPARAÇÃO ENTRE AS OBRAS ANALISADAS As obras de Guimarães Rosa e de Graciliano Ramos possuem aspectos relevantes relacionados à agressividade e à violência, que serão comparados nesta seção. Um desses aspectos refere-se à esfera em que a violência e a agressividade acontecem nos dois romances. Em Grande Sertão: Veredas, a violência acontece em um sentido mais amplo, visto que ela não é restrita a Riobaldo, pois abrange uma maior quantidade de indivíduos, os jagunços, visto que a violência está inserida nessa atividade. Em São Bernardo, o que ocorre é uma violência particularizada, pois ela se restringe somente ao personagem principal, o qual abusa de sua posição de autoridade para ser autoritário. Um outro aspecto de importância diz respeito à dualidade de Riobaldo e à certeza de Paulo Honório. O protagonista de Grande Sertão: Veredas é marcado pela sua dualidade durante todo o romance, visto que ele oscila entre se identificar como jagunço – e então aceitar a violência como parte de si – e repelir essa atividade, além de ora assumir para si os próprios sentimentos em relação a Diadorim e ora renegar os mesmos sentimentos, mesmo que tenha que reprimi-los e sofrer com tal decisão. Ao contrário de Riobaldo, Paulo Honório se mostra um personagem muito definido e inflexível quanto aos seus princípios e, por isso, se mantém sólido em relação ao que acredita, por mais violento e cruel que possa ser. O fato do narrador de São Bernardo ser incapaz de mudar sua postura agressiva e violenta com os demais indivíduos faz com que a violência e a agressividade se tornem partes fixas desse personagem. 55 O terceiro tópico de importância nos dois romances refere-se às formas de agressividade e de violência nas obras de Guimarães Rosa e de Graciliano Ramos. Na obra do primeiro autor, temse que a agressividade que ocorre na relação entre Riobaldo e Diadorim ocorre somente verbalmente, sem incluir violência física ou psicológica, enquanto que, no romance de Ramos, além da agressividade como elemento constituinte do protagonista, a violência nas relações interpessoais do protagonista ocorre de duas maneiras: a violência física e a psicológica. A primeira ocorre quando Paulo Honório decide castigar seu subordinado e a segunda quando o protagonista rebaixa a condição de indivíduo de Madalena, causando sofrimento nela, unicamente por ela ser mulher. Um último ponto está relacionado com o sofrimento gerado e sofrido pelos protagonistas em suas relações interpessoais. Em Grande Sertão: Veredas, há uma bilateralidade de sentimentos compartilhados, porém não assumidos, entre Riobaldo e Diadorim. Essa bilateralidade de sentimentos gera, também, o mesmo efeito em relação ao sofrimento dos personagens, visto que tanto Riobaldo como Reinaldo sofrem por gostarem um do outro, mas por terem que reprimir esses sentimentos, acabam por agir de forma agressiva um com o outro, criando assim um movimento cíclico de afeição e repressão. Já em São Bernardo, o que ocorre é uma unilateralidade, mas não de sentimentos afetivos. Essa unilateralidade acontece no âmbito da violência e da agressividade, visto que somente Paulo Honório é quem agride e fere os demais indivíduos, mas não sofre com tal decisão. Essa situação gera um movimento através do qual quem causa a agressão – no caso Paulo Honório – não sofre qualquer efeito negativo dela, enquanto que aqueles que são o alvo da agressão não podem reagir de modo agressivo, mas somente recebem tal ataque. Por isso, nesse aspecto, a teoria de Freud sobre as três origens do sofrimento humano se aplica: em São Bernardo, somente para aqueles que sofrem com o que Paulo Honório faz, enquanto que, em Grande Sertão: Veredas, tanto Riobaldo como Diadorim experimentam sofrimento na relação entre eles. Portanto, neste trabalho foram desenvolvidas as análises em relação à presença da agressividade e da violência nas relações interpessoais nos romances Grande Sertão: Veredas e São Bernardo, apresentando as principais relações interpessoais existentes em tais obras que mostram a presença dos dois fatores citados. Outros aspectos de grande relevância nas obras, que poderão ser desenvolvidos em um outro momento, referem-se ao amor e como este ocorre nos dois romances, bem como à construção do discurso de Riobaldo e Paulo Honório, sobre como a linguagem e outros fatores são fundamentais na construção da identidade dos protagonistas. REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio. “O homem dos avessos”. In: ______. Tese e antítese. São Paulo: Ed. Nacional, 1978, p. 121-140. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 56 GINZBURG, Jaime. “A violência na literatura brasileira: notas sobre Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa”. In: ______. Crítica em tempos de violência. São Paulo: Edusp, 2017. p. 219-234. LAFETÁ, João Luiz. “O mundo à revelia”. In: ______. A dimensão da noite. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 72-102. RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2017. ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. 57 A educação e a autoridade em São Bernardo e em Grande sertão: veredas Bianca Novaki Ferrari O presente trabalho tem por objetivo estabelecer uma relação intertextual entre as obras S. Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, e Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa, no que diz respeito à visão das personagens acerca da educação e quanto à maneira como o acesso à instrução influencia na formação dessas como personagens autoritárias ou detentoras de uma autoridade legitimada. S. Bernardo e Grande Sertão: Veredas são romances fragmentados, polissêmicos e, acima de tudo, causam choque e estranhamento no leitor, cada um a seu modo. No primeiro, o estranhamento vem do fato de que Paulo Honório – narrador e protagonista do romance – deixa claro que seleciona o que narra. E, apesar de todo romance ser seletivo em certa medida, não é natural que a seleção seja explicitada ao leitor, uma vez que isso rompe com a ilusão de verdade, gerando um narrador destituído de confiabilidade. No caso do romance de Guimarães Rosa, o estranhamento vem, também, pela falta de linearidade e pela descontinuidade dos fatos narrativos. 1 A EDUCAÇÃO E A AUTORIDADE EM S. BERNARDO 1.1 Sobre a Educação São Bernardo foi publicado pela primeira vez em 1934, quatro anos após o início da Era Vargas, a qual trouxe muitas mudanças para o cenário político, econômico e educacional brasileiro, em razão da Reforma de 1930, ano em que foi criado o Ministério de Educação e Saúde Pública. Em 1931 houve a Reforma do Ensino Secundário e do Ensino Superior. Filho (2005) afirma que, com relação ao ensino secundário, a reforma era elitista em termos de conteúdo curricular, que favorecia alunos vindos das camadas mais abastadas da sociedade, em relação ao sistema de avaliações dos alunos. Fica claro, então, que essa foi uma reforma conservadora, uma vez que havia uma conjunção ambígua de mudanças econômicas e valores conservadores. Os defensores da reforma diziam que seu objetivo era o de diminuir as desigualdades sociais, sendo que suas ações levaram ao aumento delas. Assim: A intensificação do capitalismo industrial no Brasil, que a Revolução de 30 acabou por representar, determina consequentemente o aparecimento de novas exigências educacionais. Se antes, na estrutura oligárquica, as necessidades de instrução não eram sentidas, nem pela população nem pelos poderes constituídos (pelo menos em termos de propósitos reais), a nova situação implantada na década de 30 veio modificar profundamente o quadro das aspirações sociais, em matéria de educação, e, em função disso, a ação do próprio Estado. Essa baixa demanda por educação encontra sua 58 explicação no predomínio do setor agrário na economia brasileira. (ROMANELLI, 1999, p. 59-60 [citado por FILHO, 2005, p. 63]). Paulo Honório se enquadra nessa categoria. Isso se dá porque, por viver na fazenda e construir sua vida com base na agricultura e na pecuária, não teve instrução, visto que não sentiu necessidade, como ele mesmo afirma no capítulo II: O que é certo é que, a respeito de letras, sou versado em estatística, pecuária, agricultura, escrituração mercantil, conhecimentos inúteis neste gênero. Recorrendo a eles, arriscome a usar expressões técnicas, desconhecidas do público e a ser tido por pedante. Saindo daí, a minha ignorância é completa. E não vou, está claro, aos cinquenta anos, munir-me de noções que não obtive na mocidade. Não obtive porque não me tentavam e porque me orientei num sentido diferente. (RAMOS, 2017 p.12). Sua falta de interesse acerca da educação é trazida novamente na primeira parte do capítulo XXI, na qual ele afirma que Madalena: Entrou a amolar-me reclamando um globo, mapas, outros arreios que não menciono porque não quero tomar o incômodo de examinar ali o arquivo. Um dia, distraidamente, ordenei a encomenda. Quando a fatura chegou, tremi. Um buraco: seis contos de réis. Seis contos de folhetos, cartões e pedacinhos de tábua para os filhos dos trabalhadores. Calculem. Uma dinheirama tão grande gasta por um homem que aprendeu leitura na cadeia, em carta de ABC, em almanaques, numa Bíblia de capa preta, dos bodes. Mas contive-me. Contive-me porque tinha feito tenção de evitar dissidências com minha mulher e porque imaginei mostrar aquelas complicações ao governador quando ele aparecesse aqui. Em todo o caso era despesa supérflua. (RAMOS, 2017 p.125-126) Nesse momento, Madalena pediu que fosse comprado material escolar para a escola da fazenda; Paulo Honório compra, mas quando a fatura chega, fica indignado com o preço. Percebese então um contraste entre os dois: ela valoriza a educação e ele não. Para Paulo Honório, não há sentido em gastar dinheiro com isso porque seu único objetivo é o de acumular capital, ser rico. Já a preocupação de Madalena está relacionada com o traço de solidariedade presente em sua personalidade, o qual está completamente ausente em Paulo Honório. A partir disso, é possível notar que a concepção de educação de Paulo Honório está de acordo com as ideias vigente na época, segundo as quais: De todas as iniciativas que, em matéria de ensino superior, teve o Governo Federal nenhuma sobreleva em importância a da criação do ensino superior de filosofia, ciências e letras. Veio ela corrigir a situação em que se viam todos aqueles que no Brasil desejavam orientar sua atividade para a pesquisa desinteressada. (SCHWARTZMAN, 1983, p. 370). Assim, nota-se que o Governo Federal considerava o ensino superior de filosofia, ciências e letras – isso é, aquele que forma professores do ensino básico – como desinteressado, ou seja, destituído de função social. Paulo Honório expressa essa ideia dominante, visto que a construção da escola da fazenda é, para ele, questão de conveniência: ele a constrói para que depois possa pedir favores ao governador, nada tem a ver com função social – o que mostra, ainda, desprezo pela profissão de Madalena. Mediante o exposto, vê-se que essa “bondade” de ceder a um desejo da Madalena nada tem a ver com cordialidade. Ao contrário: está ligada a uma total falta de compromisso com as 59 normas sociais e à subversão dessas em função de interesses individuais imediatos. É o que Holanda (1995) chama de personalismo, isto é, a troca de favores existente com o objetivo de benefício próprio e individual, sem considerar os interesses e as necessidades do coletivo. É o que faz Paulo Honório: constrói uma escola não para benefício dos filhos dos trabalhadores da fazenda, mas para que pudesse pedir, posteriormente, favores ao governador. 1.2. Sobre a Autoridade O capítulo XXI, além de abordar a questão da educação, traz à tona a temática da autoridade, por meio do seguinte diálogo entre Paulo Honório e Marciano: - Marciano! Gritei em vão. Desci a ladeira, com raiva. Lá embaixo, à porta da escola, descobri Marciano escanchado num tamborete, taramelando com Padilha. - Já para as suas obrigações, safado. - Acabei o serviço, Seu Paulo, gaguejou Marciano perfilando-se. - Acabou nada! - Acabei, senhor sim. Juro por esta luz que nos alumia. - Mentiroso. Os animais estão morrendo de fome, roendo a madeira. Marciano teve um rompante: - Ainda agorinha os cochos estavam cheios. Nunca vi gado comer tanto. E ninguém aguenta mais viver nesta terra. Não se descansa. Era verdade, mas nenhum morador me havia ainda falado de semelhante modo. - Você está se fazendo besta, seu corno? Mandei-lhe o braço ao pé do ouvido e derrubei-o. Levantou-se zonzo, bambeando, recebeu mais uns cinco trompaços e levou outras tantas quedas. A última deixou-o esperneando na poeira. Enfim ergueu-se e saiu de cabeça baixa, trocando os passos e limpando com a manga o nariz, que escorria sangue. Estive uns minutos soprando [...]. (RAMOS, 2017, p. 126-127). No diálogo, Paulo Honório se dirige a Marciano, trabalhador da fazenda, e diz: “já para suas obrigações, safado”, frase essa que exprime uma ordem, realçando sua função de autoridade, e que termina com um insulto. Como resposta, Marciano gagueja “acabei o serviço, Seu Paulo”, indicando que ele é submisso e respeita a hierarquia/autoridade existente, além de mostrar que ele tem consciência do trabalho. Porém, ele gaguejou: sinal de que, apesar de respeitar a hierarquia do patrão, ele a teme. Em seguida, Paulo Honório desmente o empregado, mostrando que ele controla a verdade – o que interessa é o que ele acha, não o que o empregado acha –, sendo que a exclamação no final reforça sua autoridade. Em seguida, Marciano repete que terminou o serviço, mostrando um reforço da consciência do trabalho. Contudo, ao invés de gaguejar, usa-se da religiosidade. Mas Paulo Honório o ignora, tem desdém pelo que Marciano diz e ainda o insulta novamente, chamando-o de mentiroso para em seguida apresentar sua versão dos fatos. E como ele só narra o que lhe interessa, o faz de forma a parecer que detém a verdade. Assim, diz que Marciano teve um rompante, ou seja, quebrou com a situação de respeito. O empregado, então, contrapõe os fatos do patrão com outros, criando uma situação contraditória. E sua reação vem com muitas expressões 60 negativas (nunca, ninguém, não): ao ouvir de Marciano que “ninguém aguenta mais viver nesta terra. Não se descansa”, Paulo Honório parte para a agressão física. Nesse diálogo, a agressividade de Paulo Honório vai crescendo verbalmente até que se torna física: ele começa com insultos, até que dá uma série de golpes físicos em Marciano em vez de continuar o diálogo, uma vez que não aceitou receber críticas, apesar de intimamente reconhecê-las como verdadeiras. Considerando que: A autoridade sempre exige obediência, ela é comumente confundida como alguma forma de poder ou violência. Contudo, a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção; onde a força é usada, a autoridade em si mesma fracassou. (ARENDT, 1997, p. 129). É possível concluir que Paulo Honório é um patrão autoritário, uma vez que não há reconhecimento de mérito por parte de outros em relação a ele; ele se impõe como autoridade. Por isso, as palavras não são suficientes para marcar essa autoridade. O que a legitima é ele mesmo, motivo pelo qual ele se usa da violência. Esta violência se relaciona com o predomínio do setor agrário na economia brasileira, mencionado por Romanelli (1999), já que, à época, o que gerava dinheiro para que o Brasil pudesse fazer investimentos era a exploração dos trabalhadores rurais: enriquecia-se às custas disso, o que está explícito em São Bernardo – Paulo Honório enriqueceu abusando de seus empregados. Arendt (1958) afirma ainda que dentre os modos de vida existentes, aquela dedicada à investigação e contemplação da vida terrena, típica dos filósofos da pólis grega, é superior às outras; assim, o pensamento é superior à ação, motivo pelo qual os filósofos deveriam ser os governantes da pólis. Ou seja, quem pensa é superior a quem age simplesmente. E como essa superioridade dos filósofos se refere à política, isto é, à esfera pública, na esfera privada da pólis: A força e a violência são justificadas [...] por serem os únicos meios de vencer a necessidade [...] e alcançar a liberdade. Uma vez que todos os seres humanos são sujeitos à necessidade, têm o direito de empregar a violência contra os outros; a violência é o ato pré-político de libertar-se da necessidade da vida para conquistar a liberdade do mundo (ARENDT, 2007, p.20). Dessa forma, por não ser superior em relação ao pensamento, uma vez que não tem instrução para tal, Paulo Honório usa-se da violência para legitimar sua autoridade e alcançar a liberdade (tida como saúde e riqueza), e para enriquecer, uma vez que, como afirmado, enriquece às custas da exploração de seus empregados. Os golpes físicos servem de reforço, para marcar uma autoridade que não se sustenta sozinha. Bater em Marciano vai além de ser uma atitude autoritária: é uma atitude escravocrata. E, considerando que trauma é um processo histórico que causa sofrimento coletivo em um grupo pode-se dizer que a escravidão foi um trauma coletivo. Por ter sido um trauma excessivamente intenso, ele se repete, sendo que à repetição da cena traumática dá-se o nome de fantasmagoria. Dessa forma, a presente cena é uma fantasmagoria da escravidão (o senhor que bate no escravo), 61 assim como o momento em que Paulo Honório afirma que “Marciano não é propriamente um homem”. Ao afirmar que Marciano não é um homem, Paulo Honório o diminui e o desumaniza, recurso usado por ele diversas vezes, visto que ele diminui tudo aquilo que contraria a autoridade que ele se atribui, além de reiterar o valor de verdade presente em tudo que diz. Essa reiteração é usada para reforçar o autoritarismo da personagem, uma vez que o autoritarismo vai além da tentativa de convencer o outro. Quem controla produz ideologia, ou seja, determina a forma como os outros devem pensar e/ou agir, de modo que a autoridade seja mantida. 2 A EDUCAÇÃO E A AUTORIDADE EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS 2.1 Sobre a Educação Grande Sertão: Veredas foi publicado em 1956, ano em que o Brasil ainda vivia seu processo de modernização, sendo que algumas características desse processo estão presentes na obra de Guimarães Rosa, como por exemplo a questão da educação e da autoridade. Riobaldo, personagem principal e narrador de Grande Sertão: Veredas, teve uma vida de superação, uma vez que não possuía patrimônio e, no fim da vida, não só o tinha, como contava com possibilidade de deitar na rede e refletir, especular ideias. Assim, ele divide sua vida em duas partes: a primeira, chamada por ele de “de primeiro”, diz respeito ao passado e há predominância de ações sem reflexões, uma vez que nessa época – quando ele era jagunço – tudo era muito urgente, não havia tempo para reflexões. Por esse motivo, ele não poderia narrar sua história naquela época. A segunda parte de sua vida é o “agora”, no qual predomina o pensamento. Portanto, ele sabe que, como afirma Arendt (1958), quem pensa é superior a quem age. E ele só tem conhecimento disso porque, como narra no trecho transcrito abaixo, teve acesso à educação. Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma decisão: me enviou para o Curralinho para ter escola e morar em casa de um amigo dele, Nhô Marôto [...] Vai, acontece, ele me disse: – “Baldo, você carecia mesmo de estudar e tirar carta-de-doutor, porque para cuidar do trivial você jeito não tem. Você não é habilidoso.” (ROSA, 2006, p. 113). Esse trecho mostra que há uma valorização da educação por parte de Selorico Mendes, padrinho de Riobaldo, que o envia para Curralinho para que recebesse instrução. Isso mostra uma mentalidade diferente da predominante na época, segundo a qual, como afirma Romanelli (1999), as pessoas não sentiam necessidade de instrução por causa do predomínio do setor agrário na economia brasileira. Neste caso, apesar de Riobaldo viver e trabalhar no campo, seu padrinho sentiu necessidade de dar-lhe instrução acadêmica. Riobaldo continua a narração e conta que: Assim Mestre Lucas me respondeu: – “É certo. Mas o mais certo de tudo é que um professor de mão-cheia você dava...” E, desde o começo do segundo ano, ele me determinou de ajudar no ocorrido da instrução, eu explicava aos meninos menores as letras e a tabuada (ROSA, 2006, p. 114). 62 É possível perceber aqui uma visão oposta à da lei apresentada por Schwartzman, de que a educação seria desinteressada, ou seja, seria destituída de função social. Esse trecho mostra que a instrução de Riobaldo teve função social: ele passou a ser professor dos meninos menores e ensinava-lhes as letras e a tabuada. 2.2 Sobre a Autoridade A obra de Guimarães Rosa aqui abordada foi publicada em uma época em que o Brasil passava por grandes transformações em razão da modernização iniciada na década de 1930. Contudo, como já afirmado, essa modernização é conservadora e se instala através do patriarcado, o qual pode ser definido como uma concepção de organização social caracterizada por hierarquia rígida, objetivos econômicos e liderança de homens brancos, ricos ou de classe média alta, voltados para a religião dominante, heterossexuais e quase sempre procriadores. Considerando este contexto, para tratar da autoridade em Grande Sertão: Veredas, é necessário levar em consideração que as especificidades de um regime patriarcal forte refletem na obra. Dessa forma, a primeira figura de autoridade a ser considerada aqui é Joca Ramiro, o qual se constitui como personagem com traços patriarcais. Isso porque ele é uma autoridade que tem o poder de decisão; ele conquista sua autoridade do modo apropriado, não a impõe. Além disso, ele se expressa como um pai de família, fazendo com que os jagunços o vejam como um pai protetor e inclusivo, como se vê no trecho: Joca Ramiro tinha poder sobre eles. Joca Ramiro era quem dispunha. Bastava vozear curto e mandar. Ou fazer aquele bom sorriso, debaixo dos bigodes, e falar, como falava constante, com um modo manso muito proveitoso: – “Meus meninos... Meus filhos...” (ROSA, 2006, p. 261). Assim, nota-se que há obediência por parte dos jagunços, uma vez que, como afirma Arendt (1997, p.129) a autoridade exige obediência. Mas não há aqui o uso de mecanismos de coerção nem da força, o que indica que há autoridade, não autoritarismo. Com relação ao Riobaldo, há o seguinte excerto: – “Riobaldo, tu comanda. Medeiro Vaz te sinalou com as derradeiras ordens...” Todos estavam lá, os brabos, me olhantes – tantas meninas-dos-olhos escuras repulavam: às duras – grão e grão – era como levando eu, de milhares, uma carga de chumbo grosso ou chuvas-de-pedra. Aprovavam. Me queriam governando. [...] Rentemente, que eu não desejava arreglórias, mão de mando. Engoli cuspes. Avante por fim, como que respondi às gagas, isto disse: – “Não posso... Não sirvo... [...] – “Mano velho, Riobaldo: tu crê que não merece, mas nós sabemos a tua valia...” – Diadorim retornou. (ROSA, 2006, p. 80-81). Nesse momento, fica claro que a autoridade do Riobaldo é legitimada, ele tem reconhecimento externo e é escolhido como autoridade. Todos estão dispostos a obedecer-lhe, uma vez que a autoridade exige obediência, mas não há uso de força nem de violência. E ele não só não se usa da violência como se espanta com a capacidade do homem em ser tão violento e cruel. Esse espanto aparece nas primeiras páginas do romance, nas quais ele conta ao senhor a história do Aleixo e a de Pedro Pindó. A partir delas ele percebe que os adultos 63 são maldosos assim porque podem, o são por conta própria, sem a necessidade de influências externas. E o estranhamento de Riobaldo em relação a essa violência demonstra que ele tem compaixão, característica essa crucial para que ele tenha sigo legitimado como autoridade. 3 COMPARAÇÃO ENTRE SÃO BERNARDO E GRANDE SERTÃO: VEREDAS A partir das análises expostas acima, é possível perceber que Paulo Honório não se interessa em ter acesso à educação e a desvaloriza, uma vez que acredita ser ela destituída de função social. Além disso, fica evidente que ele invejava a forma como Madalena escrevia e se expressava: por ser professora, tinha mais recursos para tal. Isso o incomodava porque ele tinha poder econômico, mas não um capital cultural correspondente, além da ciência da limitação de seu vocabulário, o que faz dele um rico diferente em relação àqueles que nascem naturalmente nas classes mais abastadas – estes, além do capital, têm acesso à educação também. O vocabulário limitado o incomoda porque o controle da língua é um mecanismo de exclusão social e de controle de poder. E, por não ter controle da língua, ele não tem poder absoluto. Para ele, os interesses individuais estão acima dos coletivos sempre. Riobaldo, por outro lado, tem acesso à educação porque seu padrinho o envia para outra cidade com a finalidade de dar-lhe instrução. Ele não só aprende como passa a ensinar os meninos mais novos, o que mostra que, aqui, a educação é valorizada e possui função social. No que diz respeito à autoridade, nos dois casos – de Joca Ramiro e de Riobaldo – a mesma não é imposta, ao contrário do que ocorre com Paulo Honório. Os dois personagens de Guimarães Rosa têm reconhecimento externo e respeito por parte dos outros, tendo sua autoridade legitimada, enquanto que a autoridade de Paulo Honório é legitimada por ele mesmo, por meio da violência. Ainda em relação à violência, Riobaldo se assemelha muito à Madalena, uma vez que ambos têm compaixão daqueles que sofrem e são agredidos: Riobaldo se compadece do mendigo morto por Aleixo e do filho que Pedro Pindó agride até quase matá-lo; Madalena tem compaixão de Marciano, que é agredido pelo patrão depois de enfrentá-lo. Além disso, os dois se assemelham em relação à maneira como veem a educação: os dois recebem instrução, valorizam a educação e tornam-se professores. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do exposto acima, tornou-se possível estabelecer uma relação entre a forma como os dois protagonistas encaram a educação e a constituição desses como personagens autoritários ou não. 64 No caso de Paulo Honório, pela pouca educação que recebeu – sendo importante ressaltar que ele não sentiu necessidade de instruir-se – tornou-se um patrão autoritário, uma vez que, por não ser capaz de formular argumentos e resolver as situações que o desagradam por meio do diálogo (visto que não possui um bom domínio da língua), usa-se da violência. Sua autoridade não se sustenta por ela mesma, ele não foi escolhido pelos outros para ocupar a posição de patrão, mas se autodeterminou como tal. No caso de Riobaldo, ao falar de si, a narração é fortemente permeada pela dúvida. Ele está constantemente em dúvida do que fazer, tem medo de tomar decisões erradas e com isso prejudicar os outros. A dúvida mostra sua capacidade de refletir, de pensar, o que o coloca em uma posição superior a Paulo Honório, que não tem essa capacidade. Riobaldo só consegue refletir porque recebeu educação, porque tem conhecimento suficiente para tal. Assim, por ter recebido educação e, dessa forma, não compactuar com o uso da violência, sendo capaz de refletir, teve sua autoridade legitimada. Ele foi, ao contrário de Paulo Honório, escolhido para ocupar a posição de líder/chefe, o que mostra que a educação tem forte influência na formação das personagens com autoridade ou autoritárias. REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. “A Condição Humana: A Expressão Vida Activa”. In: ______ A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 20-26. ARENDT, Hannah. “As Esferas Pública e Privada: A Pólis e a Família”. In: ______ A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 37-47. ARENDT, Hannah. “O que é autoridade?”. In: ______ Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. p. 127-187. HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Trabalho & Aventura”. In: ______ Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 41-66. PALMA FILHO, J. C. (org.). Pedagogia Cidadã. Cadernos de Formação: História da Educação. 3. ed. São Paulo: UNESP- Santa Clara Editora, 2005. p. 61-74. RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 99. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 1. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. SCHWARTZMAN, Simon. “Educação”. In: ______ Estado Novo, um Auto – Retrato. Brasília: Universidade de Brasília, 1983. p. 354-378. WATT, Ian. O realismo e a forma romance. In:____. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 65 A virilidade nas sociedades patriarcais de S. Bernardo e Grande Sertão: Veredas Allan Monteiro Pessoa INTRODUÇÃO Nas obras Grande Sertão: Veredas e S. Bernardo, é possível observar que há comportamentos esperados dos homens, como brutalidade e potência sexual, em acordo com uma distinção dos gêneros masculino e feminino. Os comportamentos considerados masculinos estão ligados à virilidade almejada por homens em S. Bernardo e Grande Sertão: Veredas. Para analisar o comportamento viril presente nas duas obras literárias, será utilizada uma definição de Bourdieu sobre virilidade. Para esse autor (2002), a virilidade possui tanto um aspecto voltado à potência sexual quanto à violência física. Será tratado adiante como os dois aspectos da virilidade estão presentes tanto em Grande Sertão: Veredas quanto em S. Bernardo e as implicações que estes aspectos causam nas mulheres e homens. Para se entender as visões antagônicas de homem e mulher nas obras Grande Sertão: Veredas e S. Bernardo será levado em conta o caráter patriarcal da sociedade presente em ambos os livros. Sociedade patriarcal é entendida aqui de acordo com a definição usada pelo professor Jaime Ginzburg em uma de suas aulas de Literatura Brasileira II aos alunos de Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, no segundo semestre de 2017: “Patriarcado consiste em uma concepção de sociedade caracterizada por hierarquia rígida, interesses econômicos e liderança de um homem branco ligado a uma religião dominante, rico ou de classe média alta, heterossexual e capaz de procriar”. O presente trabalho visa tratar desses comportamentos antagônicos que a sociedade espera de homens e mulheres. “Homem” e “mulher” são tratados, nesse trabalho, como uma construção social, estando, por isso, ligados ao gênero. A noção de gênero tratada neste trabalho tem como base a explicação dada por Willian Tito Maia Santos em seu texto Modelos de masculinidade na percepção de jovens homens de baixa renda: “(...) a distinção entre sexo e gênero consiste em que o primeiro se refere ao aspecto biológico, relacionado à esfera reprodutiva entre homens e mulheres, enquanto gênero refere-se aos significados socialmente construídos” (SANTOS, 2007, p. 131, grifo do autor). Assim, os aspectos usados para tratar da virilidade neste trabalho serão de cunho social e não biológico. Refletir sobre a virilidade esperada de um homem é importante, visto que por meio disso é possível compreender os motivos que levam os homens a se comportarem de forma bruta em uma sociedade patriarcal. O estudo da virilidade permite, também, observar que no 66 patriarcado, as mulheres não são as únicas a serem prejudicadas. Os homens homossexuais e heterossexuais também são prejudicados, visto que eles são hostilizados quando não se comportam de modo viril. A VIRILIDADE EM S. BERNARDO E EM GRANDE SERTÃO: VEREDAS S. Bernardo é uma obra de Graciliano Ramos publicada em 1934. O livro é narrado por Paulo Honório, um homem que vê sua situação econômica mudar após realizar diversos trabalhos, inclusive antiéticos, como comercializar a fé alheia. 58 Esses esforços foram feitos por Paulo para pertencer a uma classe econômica superior. Esse caráter individualista do narrador se mantém ao longo do livro. Brutalidade e violência são usadas por Paulo para alcançar seus objetivos, fazendo com que ele, muitas vezes, agrida verbalmente ou fisicamente seus empregados59 ou as pessoas que moram em sua casa, como sua esposa Madalena e a tia de Madalena, Dona Glória60. De acordo com Schmidt (2006), a violência está ligada a uma pressuposição de que alguns seres humanos são inferiores a outros ou de que algumas vozes valem mais que outras. Pode-se dizer, assim, que Paulo Honório usa de violência por se achar superior àqueles que ele violenta, além de achar que seus interesses são mais importantes que os interesses. Essa brutalidade praticada por Paulo Honório é um comportamento esperado dos homens em uma sociedade patriarcal. Em uma sociedade patriarcal, há uma forte distinção entre os gêneros masculino e feminino. Essa distinção se faz presente em S. Bernardo, ao passo que se é esperado que um homem seja bruto e “garanhão”, da mulher se espera a delicadeza e a submissão para com seu marido. Dessa maneira, Paulo Honório mostra a preocupação se sua futura noiva Madalena é uma moça de “bons costumes” (RAMOS, 2016, p. 96). Esses “bons costumes” englobam a fidelidade, submissão e desinteresse sexual. É notável que durante todo o livro não há um único trecho que mostre o interesse das mulheres por características físicas e/ou sexuais dos homens. Estes, entretanto, aparecem como figuras que se importam com atributos físicos da mulher: “No outro 58 A visão capitalista de Paulo Honório fez com que ele tratasse elementos sagrados para religiões de cunho cristão como mercadorias: “A princípio o capital se desviava de mim, e persegui-o sem descanso, viajando pelo sertão, negociando com redes, gado, imagens, rosários (...)” (RAMOS, 2016, p. l7, grifo meu). 59 Uma das principais cenas que mostra a violência de Paulo Honório em S. Bernardo ocorre no capítulo XXI, em que o narrador e protagonista agride fisicamente seu empregado Marciano, acusando-o de não ter terminado seu serviço e justificando a agressão dizendo que Marciano não é de fato um homem. 60 O capítulo XXVI mostra a forma violenta como Paulo Honório age com sua esposa Madalena e com a tia de sua esposa, Dona Glória. Chamando sua esposa de “galinha” e “perua”, Paulo exige que ela lhe mostre a carta que estava nas mãos, alegando que essa carta seria uma prova de uma traição cometida pela mulher. Dona Glória, buscando apartar a briga, é ameaçada de ser expulsa da casa. 67 dia, de volta do campo, encontrei no alpendre João Nogueira, Padilha e Azevedo Gondim elogiando umas pernas e uns peitos.” (RAMOS, 2016, p. 53). Esse acontecimento é narrado por Paulo Honório, que não mostra nenhuma surpresa ao avistar seus companheiros observando o corpo de uma mulher. Isso acontece porque esse é um comportamento esperado dos homens. Note que os indivíduos, nesse trecho, não só olham o corpo da mulher, mas também comentam sobre esse corpo uns com os outros, como se houvesse uma necessidade de mostrar aos outros homens o quanto são heterossexuais. Além de afirmar aos companheiros a heterossexualidade que possuem por meio de elogios às mulheres que caminham na rua, é comum que, em uma sociedade patriarcal, homens narrem acontecimentos íntimos vivenciados por eles: “Aí pratiquei o meu primeiro ato digno de referência. Numa sentinela, que acabou em furdunço, abrequei a Germana, cabritinha sarará danadamente assanhada, e arrochei-lhe um beliscão retorcido na popa da bunda. Ela ficou-se mijando de gosto.” (RAMOS, 2016, p. l6). Nota-se que, nesse trecho, Paulo Honório trata a primeira experiência de cunho sexual que teve como seu primeiro ato digno de referência. Para Paulo Honório, a partir do momento que ele entrou em contato com o corpo de uma mulher, ele passou a ser considerado um homem para a sociedade, e isso lhe é um motivo de orgulho. Essa questão de ser necessária uma experiência afetiva heterossexual para que um homem seja de fato considerado um homem, pode ser vista no capítulo XXXIV de Dom Casmurro. Nesse capítulo, o narrador Bentinho narra o beijo que deu em Capitu. Após o beijo, Bentinho diz orgulhoso: “Sou homem!” (ASSIS, 2008, p. 101). Como se pode ver, ser homem é algo construído na sociedade patriarcal, de modo que, para receber esse título, é preciso possuir comportamentos considerados brutos, como, por exemplo, mostrar controle sobre o corpo da mulher, seja através de um beijo ou de um “beliscão retorcido na popa da bunda”. Além de narrar o acontecimento vivido por ele, Paulo Honório conta como a mulher com a qual teve essa experiência sexual ficou satisfeita com o ato (“Ela ficou-se mijando de gosto”). Paulo sente, assim, a necessidade de mostrar àquele que ouve sua história a capacidade que ele tem de satisfazer sexualmente uma mulher. Se é esperado que o homem seja bruto para assim ser considerado, de fato, um homem, aqueles que não possuem essa brutalidade são estigmatizados na sociedade patriarcal. Desse modo, quando um homem possui características que a sociedade designa como “femininas”, como, por exemplo, a delicadeza ou até mesmo ser educado, ele é comparado a uma mulher, e para uma sociedade patriarcal, ser assemelhado a uma mulher é para um homem o pior dos insultos. Em S. Bernardo, um homem delicado é inclusive alvo de desdém: “Dona Glória formalizou-se, e um passageiro próximo, como eu gritava entusiasmado, pôs-se a rir. Era um mocinho de bigodinho e rubi no dedo.” (RAMOS, 2016, p. 87). Nesse trecho, Paulo Honório se refere ao homem que estava próximo como um “mocinho de bigodinho”. O uso do diminutivo mostra um possível desprezo de Paulo Honório para com o rapaz. Isso acontece porque o rapaz 68 usava um anel de rubi. Para Paulo Honório, o uso de anel de rubi deve ser exclusivo das mulheres e o menino, ao usar esse tipo de anel, passa a se comportar com uma mulher, o que para Paulo é um absurdo. Passemos agora para uma análise da virilidade na obra Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Nesta obra, Riobaldo conta sobre suas experiências no sertão. A maioria dessas experiências está ligada aos grupos de jagunços dos quais Riobaldo fez parte. Esses grupos eram compostos por homens que expressavam suas brutalidades por meio de roubos, estupros e violência física. O livro mostra, então, a perspectiva de mundo desses jagunços, incluindo a de Riobaldo. Portanto, Grande Sertão: Veredas aborda, dentre outra coisas, questões ligadas à afetividade e violência sob o ponto de vista de homens. Na obra, os jagunços aparecem como pessoas que seguem um sistema patriarcal de divisão de tarefas. Enquanto eles, homens, sentem-se obrigados a usar violência a fim de afirmarem sua postura de “homem” para a sociedade, das mulheres eles esperam que se dediquem à casa e aos filhos 61. Segundo Phillippe Ariès (1987, p. l55), uma mulher ideal, de acordo com o Antigo Testamento, é aquela capaz de gerar filhos e cuidar da casa. Logo, a visão de mulher ideal para os jagunços é resultado de uma cultura cristã, a qual se faz presente no Brasil desde a colonização. A força brutal, em Grande Sertão: Veredas, é caracterizada como sendo algo destinado aos homens de tal forma que Riobaldo diz: “Tenho minha força de homem” (ROSA, 2006, p. 192), como se os homens já possuíssem por natureza o instinto de, através da força, expressarem sua violência. Sendo vista como algo natural dos homens, a violência é, para os jagunços, um comportamento não esperado das mulheres. A violência como um comportamento esperado dos homens pode ser vista no trecho: (...) meu gosto era permitir que ele fosse s’embora, forro de qualquer castigo. Mas sabia igual que eu estava na estrita obrigação de matar - porque eu não podia voltar atrás na promessa da minha palavra declarada, que os meus cabras tinham escutado e glosado. (ROSA, João Guimarães, 2006, p. 474). Nesse trecho, Riobaldo se encontra na posição de líder dos jagunços. Os jagunços são caracterizados como sujeitos violentos, capazes de matar outros homens para obter o que desejam. Riobaldo, antes dessa reflexão, diz aos seus companheiros que mataria o primeiro homem que aparecesse em seu caminho. Então surgiu um homem montado numa égua, trazendo consigo um cachorro. Riobaldo, assim, sente-se obrigado a matar o sujeito, mesmo contra sua vontade. Pode-se ver, deste modo, que o protagonista se importa mais com a imagem que os 61 A visão de mulher ideal como sendo dona de casa e mãe aparece no trecho em que Riobaldo imagina seu futuro ao lado de Otacília. Ao imaginar como será a personagem como sua esposa, ele a vê tomando conta da casa e dos filhos que eles terão. Além disso, Riobaldo vê sua esposa como religiosa ao imaginá-la “rezando ajoelhada diante de imagem” (ROSA, João Guimarães, 2006, p. 377-378), mostrando a religião como algo ligado à moralidade e confirmando o que Ariès diz sobre essa visão de mulher estar ligada à cultura cristã. 69 jagunços de seu grupo têm dele, do que com seu desejo de poupar a vida da pessoa que passava diante do grupo. Com isso, fica evidente que a violência é algo que os jagunços esperam de seu líder, e que este, a partir dessa violência, é capaz de conseguir admiração dos jagunços e fortalecer o seu poder de líder, bem como seu papel de “verdadeiro homem”, definido pela sociedade patriarcal. Além de violência, os jagunços esperam que os homens tenham “macheza” (ROSA, 2006, p. 159). Macheza, aqui, significa, dentre outras coisas, brutalidade, sendo ela, por sua vez, o oposto de delicadeza. Em certo momento do livro, Riobaldo revela que os jagunços não encontravam essa brutalidade em Diadorim: “A fumaça dos tições deu para a cara de Diadorim – ‘Fumacinha é do lado — do delicado...’ — o Fancho-Bode teatrou.” (ROSA, 2006, p. 159). Como se pode ver a partir desse trecho, a delicadeza é algo evitado pelos jagunços, por considerarem que essa característica deve ser própria das mulheres. Para Riobaldo, Diadorim possuía delicadeza ao passo que ele era “tão galante moço, as feições finas caprichadas” (ROSA, 2006, p. 159). Assim, nota-se que a aparência física é um dos elementos usados para definir se um homem é ou não bruto, e, portanto, se é ou não um verdadeiro homem. Com isso, a vaidade deve ser algo evitado por homens. Um homem que mostra o mínimo de preocupação pela aparência física já é taxado como efeminado. Surge, assim, uma necessidade de esquivar-se da beleza e do aspecto de bem cuidado. Um outro comportamento considerado “delicado” é a expressão de sentimentos, como o choro62. Isso ocorre, porque o choro é visto como uma demonstração de fraqueza e, portanto, algo que deve ser evitado pelos homens, de acordo com a sociedade patriarcal. Quando a expressão de sentimentos acontece de um homem para outro, é ainda mais escrachada, pois assim, ocorre uma demonstração de carinho e afeto entre os indivíduos, e essa conduta não é considerada adequada: “Os mais velhos tinham vergonha de beijar” (ROSA, 2006, p. 249), diz Riobaldo, quando alguns jagunços se recusaram a beijar a mão de Joca Ramiro como sinal de respeito. A vergonha e o desprezo que um homem tem à delicadeza e a preocupação de demonstrar afeto a outro homem são o resultado da visão antagônica de masculino e feminino. Mais à frente, após Diadorim agredir Fancho-Bode (o jagunço que o insultou), Fancho-Bode trata o insulto que lhe fez como uma brincadeira e diz: “Oxente! Homem tu é, mano-velho, patrício!” (ROSA, 2006, p. 160) . Portanto, Fancho-Bode explicita que quando se referiu a Diadorim como um sujeito delicado, ele, na verdade, estava dizendo que Diadorim não era um homem, já que, para ele, um homem de verdade não pode possuir delicadeza. Por último, um comportamento marcado nos jagunços é o de discutir uns com os outros sobre experiências sexuais que tiveram e que desejam ter: “‘Saindo por aí’, - dizia um 62 “Homem não chora!” (ROSA, 2006, p. 192) 70 ‘qualquer uma que seja, não me escapole!’ Ao que contavam casos de mocinhas ensinadas por eles, aproveitavelmente, de seguida, em horas safadas.” (ROSA, 2006, p. 172). Nesse trecho, certo jagunço diz aos seus companheiros sobre o desejo que tem de ter relações sexuais com uma mulher. Ele diz isso esperando aprovação dos outros jagunços pelo seu comportamento heterossexual. Note que é usada a expressão “ensinadas por eles” para mostrar que os jagunços que contavam sobre experiências sexuais, contavam sobre como eles são experientes no sexo, o que para eles era um motivo de orgulho. O jagunço, além de expressar seu desejo em se relacionar com uma mulher, mostra a brutalidade com que tratará a moça, dizendo que possui o poder de escolher com quem terá a relação sexual, não importando se a mulher em questão irá querer se relacionar ou não com ele. Isso mostra que o jagunço que profere a frase seria capaz de obrigar a mulher com a qual ele deseja se relacionar sexualmente a se submeter à sua vontade, estando disposto, inclusive, a estuprá-la. Assim, a potência sexual não é o único motivo de orgulho desse jagunço, mas a violência e a brutalidade com que ele tratará a mulher também são elementos que, para ele, o tornam um homem de verdade e que, por isso, recebe aprovação de outros jagunços. Como se pôde ver, tanto em S. Bernardo quanto em Grande Sertão: Veredas há uma grande necessidade dos homens se afirmarem heterossexuais para os seus companheiros. Para Bordieu (2002), o homem demonstra sua virilidade aos demais, pois tem medo de perder a estima e consideração do grupo ao qual pertence. Virilidade é entendida aqui como “capacidade reprodutiva, sexual e social, mas também como aptidão ao combate e ao exercício da violência” (BORDIEU, 2002, p. 64). Assim, a afirmação da heterossexualidade por meio da capacidade sexual pode ser vista em dois dos trechos de S. Bernardo analisados nesse trabalho: tanto no trecho em que Padilha, Nogueira e Gondim comentam uns com os outros sobre as mulheres que passam diante deles quanto no trecho em que Paulo Honório narra a primeira experiência de cunho sexual que teve. Em Grande Sertão: Veredas, também há afirmações da heterossexualidade, nesse caso, por parte dos jagunços, que contam histórias uns para os outros de experiências sexuais. Esses trechos em que os homens afirmam a heterossexualidade que possuem para seus companheiros estão ligados à necessidade que o homem tem de mostrar aos seus amigos a capacidade sexual que possui. Para os homens, uma prova concreta da capacidade sexual masculina é o orgasmo feminino. Assim, em S. Bernardo, Paulo Honório revela ao leitor o quanto a mulher a qual ele beliscou o traseiro sentiu-se satisfeita com tal ato, a fim de mostrar que ele foi capaz de dar prazer a tal mulher, sendo essa atitude, uma prova de sua virilidade. O sexo toma-se, assim, o que Bourdieu chama de uma “relação de dominação”, em que o homem, na posição de ativo, toma posse do corpo da mulher, que se encontra em posição passiva. A virilidade no âmbito sexual, portanto, não consiste apenas na capacidade que o homem tem de satisfazer uma mulher, mas também na capacidade que ele tem de submeter a mulher ao 71 seu poder. A mulher é vista, assim, como um objeto. Para Lafetá (2004, p. 82), a visão de mulher como um objeto pode ser vista em S. Bernardo, ao passo que Paulo Honório considera sua esposa Madalena como uma de suas posses. O crítico diz, ainda, que Madalena, assim como um objeto, é usada. Madalena é usada para que Paulo Honório possa se casar e garantir um herdeiro para suas terras. No ato sexual, a visão da mulher como um objeto acontece ao passo que o homem passa a ver - e a usar - a mulher como algo feito para sua satisfação e para sua demonstração de poder e virilidade. Os estupros cometidos pelos jagunços em Grande Sertão: Veredas são, assim, uma forma que os jagunços encontram de mostrar que tem poder sobre o corpo da mulher através da violência. Assim, quando certo jagunço diz “qualquer uma que seja, não me escapole”, ele mostra que é viril o suficiente a ponto de dominar o corpo de uma mulher mesmo se essa mulher não desejar ter uma relação sexual com ele. Com isso, é mostrado que os dois elementos que compõem a virilidade - potência sexual e violência - podem ser demonstrados de uma única vez, como nos casos de estupro. Entremos, assim, na segunda faceta da virilidade: a violência. A ambição de provar aos companheiros sua virilidade, leva o homem a praticar atos violentos contra outras pessoas a fim de mostrar que é capaz de usar sua força - considerada própria do homem – para se destacar como um indivíduo viril. Assim, em S. Bernardo, Paulo Honório é agressivo com sua esposa Madalena quando ele a pressiona a mostrar a carta que tinha em mãos. Os insultos e violências verbais proferidas por Paulo Honório foram um meio de mostrar à Madalena que ele, sendo seu marido e estando na posição de homem, tem direito sobre o corpo de sua esposa, e por isso pode decidir sobre o que ela deve ou não fazer. Em Grande Sertão: Veredas, Riobaldo, estando em uma posição de líder do grupo de jagunços, sente-se obrigado a usar a violência contra um homem que passava por seu caminho para mostrar aos jagunços que ele tem o poder de um verdadeiro homem, capaz de matar uma pessoa. Isso mostra que Riobaldo, nesse trecho, vê a violência como uma forma de conquistar a admiração dos jagunços de seu grupo. Além de conquistar admiração de outros homens, Riobaldo vê a violência como um instrumento que permite que ele faça parte do mundo dos homens sem fraqueza. Se em uma sociedade patriarcal o sexo heterossexual pode ser encarado como uma relação de dominação e se o homem assume diante dessa dominação uma posição de poder, o homem que se assemelha a uma mulher é visto como fraco, já que ele estaria assumindo o papel de submissão, pertencente à mulher. Assim, se um homem possui comportamentos que a sociedade considera femininos, esse homem passa a ser motivo de chacota para outros homens, pois é visto como fraco. Algumas características consideradas femininas e que devem, de acordo com a sociedade patriarcal, ser evitadas por homens estão no âmbito da aparência. Um homem elegante com traços delicados é visto como o oposto de um homem bruto e é, por isso, motivo de piadas. Em Grande Sertão: Veredas, o fato de Diadorim ser “tão galante moço”, faz com que 72 outros jagunços caçoem dele, devido à delicadeza física que possui. Além de aparência física, um homem pode ser considerado delicado e feminino de acordo com a roupa ou com os apetrechos que coloca em seu corpo. Em S. Bernardo, Paulo Honório ridiculariza um homem apenas por ele usar um anel de rubi, que para Paulo é um objeto feminino. Outro fator evitado pelos homens por considerarem delicado demais é a demonstração de afeto entre homens, como um abraço ou um beijo na mão ou no rosto. Em Grande Sertão: Veredas, alguns jagunços sentem vergonha de beijar a mão de Joca Ramiro. Isso leva os jagunços a reprimirem a demonstração de carinho por Joca Ramiro, por acharem que isso poderia comprometer a imagem de homem que eles devem carregar. CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com o que foi exposto no presente trabalho, pode-se concluir que as histórias narradas em S. Bernardo e em Grande Sertão: Veredas se ambientam numa sociedade patriarcal. Um elemento característico dessas sociedades e que está presente nas obras é a forte distinção dos gêneros masculino e feminino. Essa distinção é feita de modo que os dois gêneros sejam antagônicos um em relação ao outro. Dessa forma, a sociedade patriarcal presente em S. Bernardo e em Grande Sertão: Veredas espera que o homem possua características que o torne distinto das mulheres. As características impostas aos homens em S. Bernardo e em Grande Sertão: Veredas giram em torno dos elementos que compõem a virilidade na visão de Bourdieu: a potência sexual, a violência e a aversão à delicadeza. Sendo assim, os homens em S. Bernardo e em Grande Sertão: Veredas para serem considerados de fato homens para a sociedade, precisam mostrar o quanto são heterossexuais, violentos e brutos. A expressão da heterossexualidade em S. Bernardo e em Grande Sertão: Veredas acontece de modo que o homem precisa mostrar aos companheiros o quanto se sente atraído por mulheres. Para mostrar o quanto são heterossexuais, os homens comentam uns com os outros sobre corpos de mulheres, evidenciando o desejo que possuem de se relacionarem sexualmente com elas. Outro modo que os homens encontram para afirmar a heterossexualidade é contar sobre as experiências sexuais que viveram. Ao contarem tais experiências, os homens buscam mostrar aos companheiros o quanto são capazes de satisfazer uma mulher ao tomar seu corpo no ato sexual. “Tomar o corpo” significa fazer com que a mulher assuma um papel de submissão e passividade no ato sexual, sobrando ao homem o papel de ativo e dominador. Logo, o sexo passa a ser nas sociedades patriarcais de S. Bernardo e Grande Sertão: Veredas uma forma de dominação. Ao contarem aos companheiros o quanto são dominadores nas relações sexuais, os homens são reconhecidos como viris e, portanto, como verdadeiros homens. A violência como algo essencial aos homens é mostrada em S. Bernardo e em Grande 73 Sertão: Veredas de modo que, através dela, os homens são capazes de conquistar a admiração de outros homens a sua volta. O uso da violência em S. Bernardo e em Grande Sertão: Veredas mostra como o homem pode ser covarde e egoísta a ponto de insultar outra pessoa verbal ou fisicamente apenas para ser visto como viril e participar, assim, de um grupo de homens considerados sem fraqueza. A brutalidade como característica designada aos homens de S. Bernardo e Grande Sertão: Veredas é mostrada de tal forma que o que se opõe a ela, a delicadeza, é evitada pelos homens. Dessa forma, quando um homem apresenta características consideradas delicadas, este é motivo de chacota pelos companheiros. Essas características delicadas envolvem traços finos no rosto e o modo de se vestir. Além disso, a afetividade entre dois homens também é considerada, em uma sociedade patriarcal, algo delicado. Sendo assim, a virilidade passa a ser algo responsável pela exclusão de homens delicados. Conclui-se, assim, que o homem em S. Bernardo e Grande Sertão: Veredas se preocupa em demasia a respeito de como os homens da sociedade a qual pertence o veem. Dessa forma, a virilidade do homem precisa ser aprovada por seus companheiros. Para receber essa aprovação de virilidade, os homens precisam a todo custo mostrar o quanto são heterossexuais, violentos e brutos. Assim, dentro de uma sociedade patriarcal, o homem heterossexual que se encontra em uma posição privilegiada também é prejudicado, ao passo que é obrigado a seguir comportamentos, muitas vezes contra sua vontade, para não ser excluído de círculos sociais. Surge, assim, uma repressão comportamental, ao passo que o homem precisa evitar comportamentos que envolvam afetividade com outros homens ou comportamentos que envolvam expressão de sentimentos. Tratar sobre a virilidade, apesar de não ser algo comum no ensino brasileiro, é importante, à medida que o patriarcado passa a ser visto como algo prejudicial à mulher e também ao homem. No presente trabalho foram discutidos três pontos sobre a virilidade: potência sexual, violência e aversão à delicadeza. Uma questão interessante a ser discutida sobre a aversão à delicadeza, mas que não pude me deter já que isso comprometeria a extensão do meu trabalho, é a homofobia. Em uma sociedade que cobra uma brutalidade por parte dos homens, os mais discriminados são os gays afeminados. Assim, o tema “homofobia”, pode ser tema de um futuro trabalho meu, usando como base a teoria bourdiana sobre virilidade. REFERÊNCIAS ARIÈS, Philippe. O amor no casamento. In: ________ & BÉJIN, André. (Orgs). Sexualidades ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1987. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2008. 74 BOURDIEU. Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kuhner. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. LAFETÁ, João Luiz. O mundo à revelia. In: RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1979. RAMOS, Graciliano. S. Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 2016. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. SANTOS, Willian T. M. Modelos de masculinidade na percepção de jovens homens de baixa renda. Revista Barbarói, n. 27. jul./dez. 2007. SCHMIDT, Rita Terezinha. Entrevista. Teresa. Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira. n. 17, 2017. 75 O dominador e o dominado: as relações de poder em Grande sertão: veredas e A hora da estrela João Vitor Guimarães Sérgio Tanto em Grande sertão: veredas (1956) como em A hora da estrela (1977), os respectivos narradores Riobaldo e Rodrigo desejam ocupar uma posição dominante socialmente, apesar de motivados por razões distintas. Ao longo da narração, no entanto, o primeiro demonstra empatia por outras personagens, enquanto o segundo compactua com o poder hegemônico da elite. O recorte feito neste trabalho centra-se na relação que cada narrador estabelece com as personagens que motivam o ato de narrar e com os interlocutores de seus discursos, com a finalidade de demonstrar as ligações entre a verdade e o poder, o interesse individual e o coletivo e os recursos utilizados para a montagem de uma rede que interliga e explicita a disparidade existente entre o dominador e o dominado nas relações entre personagens das duas obras. Para a análise e comparação entre os livros, foram utilizados textos de Antônio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Karl Marx e Michel Foucault, entre outros. RIOBALDO E O PODER Para estabelecer a posição que Riobaldo delega às personagens de Grande sertão: veredas em sua narração, é necessário que, antes, analisemos a relação que ele possui com as personagens centrais do romance. Com a finalidade de tornar o estudo mais claro e objetivo, foram selecionados trechos em que Riobaldo interage com seu interlocutor direto (tratado por senhor), com o grupo de jagunços e com Diadorim. Por meio da língua, Riobaldo exerce o poder ao controlar o que narra ao senhor, com a intenção de persuadir quem o ouve e, ao mesmo tempo, sanar as dúvidas que o angustiam o. O senhor, no entanto, é tratado de forma respeitosa e cordial o que causa um efeito de impessoalidade, como no excerto abaixo: (...) Se tem alma, e tem, ela é de Deus estabelecida, nem que a pessoa queira ou não queira. Não é vendível. O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em ideia firme, além de ter carta de doutor. Lhe agradeço, por tanto. Sua companhia me dá altos prazeres. (...) (ROSA, 2015, p. 33). 76 Por mais que Riobaldo domine o turno de fala, ele propõe um diálogo com o seu interlocutor, agradecendo-lhe pela resposta e por sua companhia, além de elogiá-lo, como podemos perceber em outros excertos também: “o senhor é homem sobrevindo, sensato, fiel como papel, o senhor me ouve (...)” (ROSA, 2015, p. 92). Em relação ao grupo de jagunços, o narrador tem consciência de sua condição privilegiada, que inclui uma formação letrada e, portanto, se distancia da condição deles. Devido a esta consciência, Riobaldo não os trata como um grande grupo único, reconhecendo que cada um tem sua importância para o todo: “todos juntos, aquilo tranquilizava os ares.” (ROSA, 2015, p. 265). Em outro trecho, o narrador particulariza cada jagunço ao apresentar características centrais que situam o interlocutor a respeito de cada um: (...) Marcelino Pampa, segundo em chefe, cumpridor de tudo e senhor de muito respeito; João Concliz, que com o Sêsfredo porfiava; (...) o Quipes, sujeito ligeiro, capaz de abrir num dia suas quinze léguas, cavalos que haja; (...). (ROSA, 2015, p. 264). Uma constante no pensamento de Riobaldo é a dúvida, principalmente na ambiguidade que o sertão, o Diabo e Diadorim propõem a ele. Sua voz “se desloca constantemente do lugar onde acreditávamos observá-la e, com isso, a enunciação realiza movimentos marcados por ambiguidades ou contradições. ” (GINZBURG, 2003, p. 64). Essas contradições colocam em dúvida também a possibilidade de Riobaldo tornar-se um chefe, cuja posição supõe a clareza das ideias para tomar a melhor decisão para o grupo em determinados momentos. Abaixo, o narrador questiona-se a respeito da capacidade requisitada para tornar-se um chefe: Noção eu nem acertava, de reger; eu não tinha o tato mestre, nem a confiança dos outros, nem o cabedal de um poder ― os poderes normais para mover nos homens a minha vontade. (...) Será que eu tivesse por dever de peitar pessoas? Ah, nos curtos momentos, eu não ia explicar a eles coisas tão divagadas, e que podiam mesmo não vir a ter fundamento nenhum. Porque ― eu digo ao senhor ― eu mesmo duvidava. (ROSA: 2015, p. 302). Embora Diadorim seja quem mais traz dúvidas a Riobaldo (“Diadorim é minha neblina...” (ROSA, 2015, p. 32)), o amor que ele sente pela personagem é também a principal motivação que promove o desejo por vingança no protagonista. Este sente-se responsável por eliminar quaisquer problemas da vida de Diadorim, refletindo também sobre a injustiça existente no assassinato de Joca Ramiro. É importante ressaltar que, para Riobaldo e todo o grupo de jagunços, Joca Ramiro é figura máxima de autoridade, portanto, sua morte, além de inesperada e marcada pela traição de Hermógenes ao grupo, instaura a dúvida quanto à falta de representatividade de um poder estabelecido (ainda que distante de um Estado, não atuante no sertão): “(...) Joca Ramiro tinha poder sobre eles. Joca Ramiro era quem dispunha. Bastava vozear curto e mandar. “ (ROSA, 2015, 77 p. 218). A razão pela qual ele faz o pacto, então, é principalmente seu anseio pelo poder necessário para se vingar de Hermógenes e honrar a morte do pai de Diadorim. Antônio Candido em seu ensaio O homem dos avessos, sobre o romance de Guimarães Rosa, observa que: “Como a prece, a vigília d’armas, as provações, o pacto significa, neste livro, caminho para adquirir poderes interiores necessários à realização da tarefa. “ (CANDIDO, 2006, p. 131). Portanto, assim como a relevância religiosa, o pacto possui também uma dimensão política na obra. Após a cena do pacto, Riobaldo revela que “tudo agora era possível” (ROSA, 2015, p. 355), tornando-se o chefe logo em seguida e fomentando o discurso de honrar a morte de Joca Ramiro matando Hermógenes: Altarte abri o meu maior sentir! que eu havia de ter a vitória... Dali, o Hermógenes não saía com vida, maneira nenhuma, testamental. Tive ódio dele? Muitos ódios. Só não sabia por quê. Acho que tirava um ódio por causa de outro, cosidamente, assim seguido de diante para trás o revento todo. (ROSA, 2015, p. 465) Quem realiza o ato de matar Hermógenes, no entanto, é Diadorim, que morre na mesma ocasião e faz com que Riobaldo deixe a jagunçagem. Ao longo de diversas passagens do livro, Riobaldo centraliza o foco narrativo em Diadorim e revela que o amor que sentia pela personagem é o que o motivava a seguir como jagunço no sertão: “(...) eu ingrato não era, e que nos cuidados de meu amor Diadorim sempre estava. E amor é isso! o que bem-quer e mal faz?” (ROSA, 2015, p. 446). Riobaldo assume Diadorim como superior a ele, ressaltando a presença da personagem e seu amor por ela como pontos altos de sua própria trajetória, e revelando ao interlocutor que “sabendo deste, o senhor sabe minha vida” (ROSA, 2015, p. 264). É o amor de Riobaldo por Diadorim que exerce o poder necessário sobre o protagonista para que ele tome decisões e atitudes da melhor forma possível e o que, mais tarde, motiva-o a narrar o que viveu no sertão, como reitera Benedito Nunes ao estabelecer uma correspondência entre o pacto diabólico e uma “potência do desejo” de Riobaldo por Diadorim: Ao selar o pacto com o Demônio, Riobaldo assina o seu destino, ratificando o pacto do amor proibido: o amor a Diadorim, mediador de sua adesão ao bando de Joca Ramiro e de sua carreira de jagunço – que já assinara o destino dele. A potência estranha, demoníaca, quando evocada no desfio das recordações de Riobaldo revela-se como potência humana, que se atualizara e se cumprira – essa potência do desejo (...). (NUNES, 2013, p. 156). RODRIGO E O PODER 78 O narrador de A hora da estrela (1977), ao contrário de Riobaldo, não é o protagonista da história e se relaciona com a personagem principal (criada por ele) de forma muito mais arrogante e contundente, ao dizer que ele mesmo, Rodrigo S. M., é como uma espécie de Deus “(...) essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. (...)” (LISPECTOR, 2017, p. 65), e que se ele “tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro. “ (LISPECTOR, 2017, p. 50). Contudo, ao mesmo tempo em que Rodrigo se considera o criador da história, ele se reconhece também como personagem, posicionando indivíduos como Macabéa, Olímpico e Glória apenas como objetos e ele mesmo como sujeito e objeto: “(...) A história – que determino com falso livre-arbítrio – vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. “ (LISPECTOR, 2017, p. 48). Com isso, Rodrigo subordina as personagens, especialmente a protagonista, aos seus interesses e necessidades: “(...) preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela. “ (LISPECTOR, 2017, p. 52). O narrador então sabe que, inevitavelmente, vai se expor ao longo da narrativa – “sou um trabalhador manual. (...)” (LISPECTOR, 2017, p. 54), “faz calor neste cubículo onde me tranquei (...)” (LISPECTOR, 2017, p. 56), – assumindo que o principal aspecto que o diferencia das outras personagens é saber o que ele considera como “a verdade”: (Mas e eu? E eu que estou contando esta história que nunca me aconteceu e nem a ninguém que eu conheça? Fico abismado por saber tanto a verdade. (...)) (LISPECTOR, 2017, p. 85). Uma vez que Rodrigo S.M. diz ser portador da verdade, ele se enxerga livre para exercer poder sobre Macabéa e sobre o universo construído a partir dela. A verdade se mostra como dependente do poder e da sociedade, já que esta é responsável por validar quem tem o direito de afirmar o que é verdadeiro, como exemplifica Foucault no capítulo inicial de seu livro Microfísica do poder: (...) a verdade não existe fora do poder ou sem poder (...). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros (...); o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. (FOUCAULT, 2009, p. 5). Rodrigo S. M., portanto, encontra-se em uma posição hierarquicamente dominante na sociedade, por conhecer “adjetivos esplendorosos e carnudos substantivos (...)” (LISPECTOR, 2017, p. 50) e dizer que é “portador da verdade”, recebendo, com isso, validação do senso comum, que pode, em uma leitura desatenta, acolher seu discurso e realmente interpretar como verdade o que ele narra. 79 Reiterando sua postura de superioridade, o narrador estabelece dicotomias em que sempre ocupa a posição dominante – ou que ele considera como dominante, – opondo: seu pensamento à irracionalidade de Macabéa; sua posição de criador perante a protagonista como criatura; o autoconhecimento que ele diz ter à falta de autoconsciência da nordestina; e a posição privilegiada de “grande escritor” contrapondo-se à vida tacanha dela. Rodrigo, no entanto, não estabelece uma relação tão aprofundada com outras personagens em sua escrita, mas se utiliza de criações próprias (e de outros elementos ao longo do texto também criados por ele) para reiterar o quanto Macabéa era oprimida e submissa em diversos contextos, como aqueles que dizem respeito, por exemplo, ao trabalho, à cultura ou à religião. Como metonímia dos três itens, consideraremos, respectivamente, seu Raimundo, o rádio relógio e Madama Carlota. Na primeira instância, a breve menção à “brutalidade” (LISPECTOR, 2017, p. 58) com que seu Raimundo, chefe da firma de representante de roldanas, dirige a palavra à Macabéa é relevante para demarcar que tipo de personagem Rodrigo insere em seu texto a fim de ampliar a opressão socialmente imposta à protagonista que, de acordo com o narrador, “parecia provocar com sua cara de tola, rosto que pede tapa” (LISPECTOR, 2017, p. 58). Com isso, a desigualdade gerada pela divisão do trabalho, como retomaremos mais adiante, mostra-se central para que Rodrigo argumente a favor de seu interesse individual: livrar-se da história de Macabéa para esquecer-se da existência de problemas de uma classe social hierarquicamente inferior à posição que ele ocupa. O segundo item encontra-se na presença do rádio relógio, que mostra “hora certa, cultura e anúncios” (LISPECTOR, 2017, p. 79), de acordo com as próprias palavras de Macabéa, servindo como único artigo utilizado por ela em seus momentos de lazer. O objeto, além de demarcar o tempo para a protagonista, é a única forma que ela possui de contato com o mundo externo, ao mesmo tempo em que limita o tipo de informação, arbitrária e de “contexto alienante, dentro do qual o cotidiano se faz em um tempo meramente físico, desprovido de uma ação subjetiva que com ele interaja numa proposta de transformação (...)” (FUKELMAN, 2017, p. 204), inviabilizando as ações da protagonista. O último item transforma Macabéa: “ela estava mudada – mudada por palavras”. Após ouvir as palavras de Madama Carlota, a protagonista do romance se sente, segundo Rodrigo, “grávida do futuro” (LISPECTOR, 2017, p. 104) já que “a cartomante lhe decretara sentença de vida. (...)”. Rodrigo, então, impede que Macabéa sinta-se feliz, decretando sua morte no parágrafo seguinte à suposta “esperança violenta” que havia se apoderado de Macabéa. Com isso, ele reafirma a impossibilidade de a protagonista sentir-se feliz por meio de um artifício novamente criado por ele a fim de aniquilar qualquer sentimento positivo por parte dela em relação à vida. 80 Por meio da criação desses elementos, bem como de outras personagens coadjuvantes e do o uso de figuras de linguagem como a ironia e a hipérbole, Rodrigo cria uma rede onde Macabéa é oprimida por todos os lados, revelando também que ele próprio compactua com os interesses da classe dominante, apartada da – porém responsável pela – situação desumanizada em que se encontra o mundo de Macabéa. COMPARAÇÃO ENTRE AS OBRAS O primeiro paralelo entre a relação estabelecida por Riobaldo e Rodrigo com as personagens que os cercam diz respeito à distinção entre aquelas que motivam o ato de narrar: Diadorim interage com Riobaldo e mostra-se como aliada dele no objetivo de vencer Hermógenes, ao passo que Macabéa não sabe da existência de Rodrigo que, por sua vez, ao invés de unir-se a ela, vence-a pelo discurso. No conflito Riobaldo e Diadorim versus Hermógenes, se a principal ferramenta para exercer o poder é a força física, entre Rodrigo versus Macabéa, o mecanismo utilizado é a palavra. Na narração de Riobaldo, Diadorim é colocada como superior a ele enquanto Macabéa é inferiorizada por Rodrigo. Em Grande sertão: veredas, Diadorim e Riobaldo unem-se contra Hermógenes à medida que, em A hora da estrela, Rodrigo, sozinho, vence Macabéa, que é, ao mesmo tempo, motivadora de sua narração e objeto que por ele deve ser destruído através do discurso. Em um segundo aspecto da comparação, desta vez sobre os interlocutores de Riobaldo e de Rodrigo, observa-se que o primeiro existe dentro do próprio texto, isto é, o senhor é uma personagem incluída no romance de Guimarães Rosa, tendo como diferença central das outras personagens a presença somente o tempo da enunciação. O interlocutor de Rodrigo, porém, é polissêmico, uma vez que a projeção do narrador traz implicitamente um desdobramento pelo diálogo, ao passo que: (...) apreender a si mesmo inclui o confronto com o outro. Ao mesmo tempo, o retorno para si mesmo, quando se tenta unificar em um único sujeito individual os elementos que estão presentes nos outros seres do Universo. Entre estes dois movimentos há uma tensão permanente no interior da obra. O narrador mantém com seu interlocutor (seja ele Deus, o leitor ou Macabéa) uma postura ambivalente de identificação e afastamento. (FUKELMAN, 2017, p. 199). Rodrigo, portanto, mobiliza inúmeros elementos na narrativa que reforçam a ideia da opressão vivida por Macabéa, servindo de exemplo para a exclusão social promovida em relação aos marginalizados, vistos como escravos pela elite brasileira, conduzida a interessar-se apenas aos benefícios próprios e a seguir a “lógica da aventura” trazida pelos portugueses na época colonial do Brasil, como explicitado por Holanda (1995) em seu texto Trabalho e aventura. 81 Com isso, a linguagem agressiva e irônica de Rodrigo ainda permite a associação à ideia de reificação discutida por Karl Marx em Fundamentos da história, apontando para uma desigualdade gerada pela divisão do trabalho e defendendo os interesses da classe social a que pertence: (...) os indivíduos só procuram o seu interesse particular (que para eles não coincide com o interesse coletivo, não sendo o Universal, senão uma forma ilusória de coletividade), esse interesse é representado como um interesse que lhes é “estranho”, (...) sendo ele próprio um interesse “geral”, especial e particular ou, então, devem se defrontar eles mesmos nesse desacordo, como na democracia. (...) (MARX, 1988, p. 58). Se Rodrigo reduz Macabéa a um mero objeto, Riobaldo, pelo contrário, valoriza Diadorim sempre que possível, reiterando o domínio que ela obtinha sobre ele, tanto de forma física quanto espiritual, e interrompendo diversos momentos da narrativa para dar espaço à descrição de seus sentimentos por Diadorim, que, ao despertar a paixão no narrador, influencia-o em suas principais escolhas e decisões. Diante do senso comum como um todo – incluso no livro de 1956 pela participação dos jagunços e na obra de 1977 por personagens como Olímpico, Glória, entre outros –, existe um desejo tanto de Rodrigo quanto de Riobaldo em assumir e manter-se na posição dominante. Entretanto, percebe-se que para o segundo o anseio pelo poder está em um sentimento de injustiça quanto à impunidade da traição e do crime cometidos por Hermógenes, enquanto o primeiro compactua com as ideias hegemônicas de dominação por parte da elite. Não se trata, portanto, em Grande sertão: veredas, de um poder externo às personagens. Justamente a ausência de instituições fortes e da elaboração e execução de leis rigorosamente é o que promove a dúvida em Riobaldo e a vontade de fazer justiça por si mesmo, demonstrando a carência que a personagem sente de um poder preestabelecido e/ou organizações que se responsabilizem pelos indivíduos. Com isso, o caos é instaurado na narrativa e Riobaldo se vê obrigado a tomar uma atitude para “ser mais do que é” (ROSA, 2015, p. 344), honrando a figura de Joca Ramiro, considerada pelo próprio narrador e pelos outros jagunços como a maior autoridade do grupo. Por outro lado, em A hora da estrela, que se passa em um ambiente modernizado e urbano, há, de forma muito definida, a predeterminação de quem ocupa o poder que desestabiliza a relação narrador-personagem, apontando uma força unilateral de um representante da elite que, por meio do discurso preconceituoso e antiético, deseja aniquilar a vida do outro. Apesar de ambos refletirem sobre suas próprias existências e os contextos que as cercam, duvidarem da forma como contam a história e compartilharem questionamentos relativos à vida humana, eles assumem posicionamentos muito distintos às outras personagens, impondo, por 82 vezes, suas próprias vontades e comandando as ações seguintes (no caso de Riobaldo, apenas após o pacto). No que concerne a linguagem, no entanto, se o narrador do romance de Guimarães Rosa renuncia ao poder pelo discurso, agindo com humildade e respeito em relação ao senhor e às outras personagens que possuem ligação com ele em sua narração, Rodrigo S. M. utiliza-se de toda autoridade possível na narração, demonstrando sua postura excludente e seu sentimento de superioridade em relação ao universo de Macabéa e ao próprio leitor. CONCLUSÃO O presente trabalho buscou interpretar Grande sertão: veredas e A hora da estrela, obras de João Guimarães Rosa e Clarice Lispector, de um ponto de vista em que as relações de poder são fundamentais para compreender a percepção dos narradores quanto às personagens das narrativas. Após a verificação e análise de alguns trechos que focavam nas relações narradorpersonagens, passamos a comparar aspectos dos dois narradores, por exemplo, como Riobaldo idealiza a personagem que motiva sua narração (Diadorim), enquanto Rodrigo desumaniza aquela que é a protagonista de sua história (Macabéa). Além disso, foram levadas em consideração a relação de Riobaldo com personagens como: o senhor, com quem o narrador interage no tempo da enunciação; e o heterogêneo grupo de jagunços, que permeia todo o enredo do romance. Assim, foi possível analisar como Riobaldo se coloca em posição equivalente a indivíduos tão diferentes, reconhecendo e valorizando o “outro”. Em relação ao pacto – episódio em que a obtenção de poder é a motivação do ocorrido – , observamos que a vontade que o narrador possui de vingar-se de Hermógenes é originária da morte do pai de Diadorim e de como Riobaldo ama e importa-se com ela, sentindo-se então responsável por adquirir poderes para resolver o problema. Sobre A hora da estrela, a discussão baseou-se nas percepções que Rodrigo tem de Macabéa, levando em consideração a crueldade e a arrogância exercidas por ele durante sua narração. Outros elementos inseridos por Rodrigo no enredo – também responsáveis por inferiorizar Macabéa – foram analisados com a intenção de entender a multiplicidade de situações opressoras em que se encontra Macabéa, bem como dar ênfase ao processo de reificação em que Rodrigo coloca a protagonista. Como este trabalho trata-se de um recorte que se centrou no ponto de vista do narrador, outros aspectos da forma e do conteúdo podem ser analisados em trabalhos futuros. Focar em temas como as figuras patriarcais de Joca Ramiro e Olímpico, a influência que a tia de Macabéa exerce em sua formação, bem como o compadre Quelemém exerce em Riobaldo, a relação podernível de escolaridade ou então o contexto sócio-político dos anos 50 e 70 no Brasil são caminhos 83 que perpassam as relações de poder nas duas obras em vias distintas das que foram abordadas aqui e que também podem render bons frutos em pesquisas acadêmicas. O mais importante é, contudo, observar que os livros estudados envolvem temas abrangentes e perspectivas plurais, o que impossibilita uma única definição para cada um e ainda abre caminhos para diversos outros estudos e interpretações. REFERÊNCIAS CANDIDO, Antônio. “O homem dos avessos”. In: _______. Tese e antítese. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006. pp. 121-139. FOUCAULT, M. “Verdade e poder”. In: _______. Microfísica do poder. 24ª edição. São Paulo: Editora Graal, 2009. pp. 4-12. FUKELMAN, Clarisse. “Escreves estrelas (ora, direis)”. In: LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. São Paulo: Rocco, 2017. pp. 195-210. GINZBURG, Jaime. “Literatura brasileira: autoritarismo, violência, melancolia”. In: Revista de Letras, São Paulo, 43 (1): 2003. pp. 57-70. HOLANDA, Sérgio Buarque de. “Trabalho e aventura”. In: _______. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 1ª reimpressão. pp. 41-66. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. São Paulo: Rocco, 2017. MARX, Karl. “Fundamentos da história”. In: _______. Sociologia. São Paulo: Ática, 1988. pp. 45-61. NUNES, Benedito. “Literatura e filosofia: Grande sertão: veredas. “ In: ______. A Rosa o que é de Rosa. Rio de Janeiro: DIFEL, 2013. pp. 140-168. ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Nova Fronteira, 2015. 21ª edição. 84 Desejo e transformação – um estudo sobre o misticismo em A hora da estrela e Grande sertão: veredas Vitor Kenzo Kadowaki Em A Hora da Estrela e em Grande Sertão: Veredas, entre outras passagens fundamentais, pontos de grande destaque se referem, respectivamente, à previsão do futuro de Macabéa pela cartomante e ao possível pacto de Riobaldo com o Diabo. É possível notar, nas temáticas das obras, aspectos da ordem do transcendental. Esta dissociação do plano do real se mostra relevante para as análises dos romances, uma vez que ambos os personagens mencionados passam por transformações evidentes e importantes após as respectivas cenas. A presença do transcendental será aqui analisada a partir de estudos na área da psicanálise, da antropologia e da teoria literária, e também no trabalho comparativo com dois contos: um de tradição oral, denominado “A proteção do diabo”, e outro de autoria de Lima Barreto, chamado “A cartomante”. Em A Hora da Estrela, o que se observa, em linhas gerais, é a construção da personagem Macabéa, moça pobre e órfã desde criança. Sua juventude é marcada pela figura autoritária da tia, que sente prazer em castigá-la, tanto fisicamente quanto através da privação de seus desejos: (...) porque ao bater gozava de grande prazer sensual (...) As pancadas ela esquecia pois esperando-se um pouco a dor termina por passar. Mas o que doía mais era ser privada da sobremesa de todos os dias: goiabada com queijo, a única paixão na sua vida. Pois não era que esse castigo se tornara o predileto da tia sabida? (LISPECTOR, 1998, p.28). Macabéa, que não possui nenhum grande prazer em sua vida – uma sobremesa associada a um sentimento forte como a paixão, por exemplo, revela isto –, sai do Nordeste e tenta a vida no Rio de Janeiro como datilógrafa após a morte da tia, embora não tivesse vocação: errava demais e sujava os papéis. Além disso, a personagem é constantemente exposta a humilhações tanto por parte dos outros personagens – como Olímpico de Jesus, que se mostra agressivo com ela em muitos momentos: “Você tem cara de quem comeu e não gostou, não aprecio cara triste, vê se muda. “ (LISPECTOR, 1998, p.52) – quanto pelo narrador, Rodrigo S.M, que se coloca hierarquicamente acima dela e não poupa seu sofrimento em momento algum. Ele, que se refere como “autor de uma vida” (LISPECTOR, 1998, 41), coloca-a em situações de pobreza e rebaixamento, de modo que a personagem deve, por exemplo, comer papel imaginando ser frango, visto que não tem dinheiro para comprar um. Para Rodrigo S.M, Macabéa é “incompetente para a vida, (...) [de tal forma que] faltava-lhe o jeito de se ajeitar. “ (LISPECTOR, 1998, p.24). O narrador, ainda, chega a se divinizar, mostrando-se como sujeito criador – ao começar o livro com 85 uma espécie de Gênesis, por exemplo – e comparável a Deus, tal como explicitado em “(...) [Macabéa] não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar...” (LISPECTOR, 1998, p. 33). Nesse sentido, ele mesmo estabelece uma hierarquia para com sua personagem, mostrando ser ela inferior a ele. Ademais, a condição de oprimida da personagem é identificada até mesmo no significado de seu nome, que, como afirma Yudith Rosenbaum (2002, p.61), “representa toda a descendência dos hebraicos macabeus, zelotas bíblicos oprimidos pelos gregos, quando estes dominaram Jerusalém em 175 A.C. forçaram a helenização dos judeus proibindo a Torá e os ritos religiosos monoteístas”. Esse argumento é confirmado pelo próprio narrador, que afirma: “embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica. “ (LISPECTOR, 1998, 31). É neste contexto, exposta a tantas humilhações, que Macabéa acaba aceitando a sugestão de ir a uma cartomante indicada por Glória. No caminho, o narrador afirma: Assim pela primeira vez na vida tomou um táxi e foi para Olaria. Desconfio que ousou tanto por desespero, embora não soubesse que estava desesperada, é que estava gasta até a ultima lona, a boca a se colar no chão. (LISPECTOR, 1998, p.71). Nesse sentido, nota-se uma ânsia de mudança que, embora não seja de fato explícita e consciente, pode ser inferida através do seu estado de desespero e do enfado em relação às condições as quais é submetida durante todo o romance. É recorrente na narrativa o fato de a personagem não ter conhecimento do mundo que a cerca e nem de si própria – “Só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si em si mesma. “ (LISPECTOR, 1998, p. 24) –, de tal forma que, na visão do narrador, seria improvável que Macabéa soubesse por que de fato estava indo à cartomante. Assim, em um estado de desespero o qual Macabéa não sabe racionalizar – “embora não soubesse que estava desesperada” (LISPECTOR, 1998, p.71) –, é à figura da cartomante que ela recorrerá para buscar informações sobre o futuro. A busca desta figura como refúgio para uma situação penosa não se encontra apenas neste romance de Clarice Lispector. Em um conto intitulado “A cartomante”, de Lima Barreto, é possível identificar uma narrativa semelhante em certos pontos. Trata-se, em linhas gerais, da história de um homem infeliz com sua vida, visto que não é capaz de fazer nada dar certo. O personagem, então, por pensar que havia algo de misterioso que regia sua vida, decide consultar uma cartomante: “Bem! As cousas iam mudar! Ele iria a uma cartomante e havia de descobrir o que e quem atrasavam a sua vida. “ (BARRETO, 2010, p.303). No caminho, começa a imaginar uma nova vida, melhor e mais alegre, onde a falta de dinheiro não seria um problema. Chegando à cartomante, no entanto, descobre que ela é, na verdade, a sua mulher. Neste conto, assim como no romance de Lispector, há a presença de uma personagem que vai à cartomante a fim de sanar suas dores. Além disso, em ambos os casos a ação da cartomante é falha: no conto, o que deveria ser estranho é, na verdade, o mais familiar (sua mulher), enquanto no romance, as palavras de 86 Carlota não correspondem ao que viria a suceder à Macabéa. Diferem, no entanto, uma vez que, no caso do conto, o personagem tem consciência da situação em que vive e decide de forma consciente ir à cartomante. Ainda, se no conto a fonte de esperança nasce antes do contato com a “pitonisa”, quebrada assim que ele percebe tratar-se de sua mulher, no romance a esperança surge depois da consulta. Como dito anteriormente, Macabéa recebe, após o contato com Carlota, não apenas informações em relação ao futuro, mas também uma fonte de esperança. Além disso, pode-se dizer que a personagem passa a ganhar autoconhecimento. É através das palavras da cartomante que a personagem reconhece de fato o seu sofrimento: “Macabéa empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida fora tão ruim. “ (LISPECTOR, 1998, p. 76). Ao sair da casa da cartomante, o narrador se refere à Macabéa como “uma pessoa grávida de futuro” (LISPECTOR, 1998, p.79), visto que as previsões de Carlota anunciavam uma vida nova e melhor para ela. É interessante notar que essa nova visão de um futuro expressa por Macabéa se materializa em um dos treze títulos da obra: “Quanto ao futuro”. Embora esta perspectiva da possibilidade de uma nova realidade seja quebrada logo no parágrafo seguinte por meio do atropelamento da personagem, nota-se que o contato com Carlota resultou numa mudança constitutiva em Macabéa: se antes ela era ignorante ante sua própria realidade, de modo a não reconhecer os mais variados tipos de humilhação, depois, o que se tem é uma personagem esperançosa e consciente da vida que levava até então – embora as palavras da cartomante, como dito anteriormente, não correspondam com os acontecimentos que viriam a seguir. Já em Grande Sertão: Veredas, o leitor entra em contato com as rememorações que Riobaldo expõe de seu passado, embora a narração aconteça com muita dificuldade. A própria forma do romance, marcada, entre outros elementos, pela fragmentação, pela dúvida e pela ambiguidade, revela as incertezas e inquietações do narrador. No entanto, fica claro que o espaço onde este narrador-personagem está inserido é marcado pela crueldade e violência. Logo no início do romance, Riobaldo expõe dois episódios em que isso fica evidente. O primeiro, de Aleixo, que, “só por graça rústica, matou um velhinho que por lá passou” (ROSA, 2015, p. 22); e o segundo, de Pedro Pindó e sua mulher, que “se habituaram de [no filho] bater, [e que] de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão. “ (ROSA, 2015, p. 24). Ao falar sobre sua vida de jagunço, Riobaldo deixa à mostra o quão hostil este ambiente é, de modo que a guerra, a morte e a violência são constituintes inseparáveis de sua realidade. Para exemplificar, basta recuperar a cena em que os hermógenes matam diversos cavalos com a finalidade de desestabilizar os seus oponentes – no caso, o grupo de Zé Bebelo, do qual Riobaldo faz parte. No entanto, nota-se que o personagem sente empatia para com o outro, de tal forma que a violência, para ele, não é tratada de forma banal e natural, como ocorre com os outros jagunços; pelo contrário: suscita nele uma reação negativa, da qual não consegue se livrar: 87 (...) minha barriga devia de estar inchada, igual a de um sapo, igual um saco de todo tamanho. A umas cem braças para cima, onde córrego atravessava a capoeira, estavam esfaqueando o rapaz, e eu espiava para a água, esperando ver vir misturado o sangue vermelho dele – e que eu não era capaz de deixar de beber. Acho que eu estava com uma febre. (ROSA, 2015, p.203). Uma hipótese para este olhar empático – evidenciado pela metáfora do sangue que ele não consegue deixar de beber – seria referente ao fato de ele ter tido educação formal e, por isso, possuir uma visão mais crítica de sua realidade. Entretanto, o que aqui interessa é perceber que o narrador está submerso em um mundo instável e cruel, e, mais do que isso, que ele se posiciona de forma a reconhecer a dor alheia. É importante lembrar, também, que outra fonte de seu sofrimento, e que move toda a narrativa, é o seu amor por Diadorim, que durante a maior parte do romance é tratado como homoerótico. Isso, no contexto em que Riobaldo vive, seria inadmissível, de tal forma que o desejo que sente pelo companheiro deve ser reprimido constantemente: “Homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia deles for enorme. “ (ROSA, 2015, p.408). Nesse sentido, Riobaldo reconhece não possuir a força necessária para perpassar todos os obstáculos e cumprir a vingança aos hermógenes. Por mais que tente fugir, sua ligação com Diadorim não o permite. Assim, sem solução aparente, é à figura do Diabo que Riobaldo recorre. Como afirma Antônio Candido (2002, p.132), essa figura religiosa “surge então, na consciência de Riobaldo, como dispensador de poderes que se devem obter; e como encarnação das forças terríveis que cultiva e represa na alma, a fim de couraçá-la na dureza que permitirá realizar a tarefa em que malograram os outros chefes”. Ou seja, há, de fato, uma relação entre a vontade de mudança e a ligação com aquilo que transcende o mundo concreto, que se torna evidente quando, nas Veredas Mortas, o personagem evoca a figura do Satã e pensa: “O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia. “ (ROSA, 2015, p.344). Aqui, interessa notar que a figura do Diabo presente neste romance se difere daquela vista na cultura europeia moderna, isto é, a de um “autor da loucura e ordenador dos paraísos artificiais, (...) associado na mentalidade comum à espera do fim do mundo. “ (DELUMEAU, 2009, p.243). Ou seja, a imagem que se tem do Satã, neste contexto, é a de um ser temível, enganador, sedutor, que subverte a ordem natural. Entretanto, no Brasil, esse personagem bíblico não carrega apenas um valor pejorativo. Na cultura popular, é possível identificar histórias em que ele aparece com outros traços. Um exemplo é o conto “A proteção do diabo” que, como o próprio título indica, apresenta um diabo que acaba protegendo e ajudando o personagem. Em linhas gerais, tem-se a história de um príncipe que saiu de sua cidade, uma vez que haviam previsto a sua morte. No caminho, dá dinheiro para pintarem uma capela, onde se encontra a figura do diabo. Ao pernoitar na casa de uma senhora, ele é acusado de furto por ela, já que carrega consigo uma grande quantia 88 de dinheiro, e é conduzido à forca. O diabo, que havia sido beneficiado pela reconstrução da capela, ajuda o príncipe a desmascarar a senhora, que queria o dinheiro deste, e leva-o para a casa. No caso de Grande Sertão: Veredas, o Satã não aparece para Riobaldo tal como na Europa da Idade Moderna, mas sim com traços menos temíveis, não associados ao fim do mundo. Na cena do pacto, Riobaldo pensa: “Trato? Mas trato de iguais com iguais. Primeiro, eu era que dava a ordem. “ (ROSA, 2015, p.343). Após essa cena, Riobaldo se transforma e muda completamente sua personalidade. Nos primeiros momentos, a mudança se revela de forma mais sutil: “Tudo agora reluzia com clareza (...) e fui vendo que aos poucos eu entrava numa alegria estrita, contente com o viver...” (ROSA, 2015, p.347). No entanto, a evidência mais perceptível da mudança se refere à cena em que Riobaldo decide assumir a chefia do grupo de jagunços: Meu revolver falou, bala justa, o Rasga-em-Baixo se fartou no chão, semeado, já sem ação e sem alma nenhuma dentro. E aí o irmão dele, José Félix: ele tremeu muito lateral; livrou o ar de sua pessoa; outro tiro eu também tinha dado... (ROSA, 2015, p.356). Assim, se antes do momento do pacto Riobaldo demonstra empatia e inseguranças, depois, o que se nota é a presença de uma personalidade impositiva, capaz até mesmo de matar. O próprio fato de ele querer ser chefe já revela que algo mudou, visto que anteriormente, após a morte de Medeiro Vaz, Riobaldo recusa a chefia: “Me queriam governando. (...) Eu não queria, não queria. Aquilo revi muito por cima de minhas capacidades. “ (ROSA, 2015, p. 76). Ainda, nota-se que essa alteração de personalidade se manifesta não somente através de seus pensamentos e ações, mas também por meio da visão que os outros personagens passam a ter dele. Diadorim, por exemplo, chega a dizer: “Repuno: que você está diferente de toda pessoa, Riobaldo... Você quer dansação e desordem.” (ROSA, 2015, p. 381). Por fim, é importante observar que a questão do pacto não é episódica, mas perpassa o romance inteiro através das indagações de Riobaldo sobre a existência ou não do Diabo. Nesse sentido, esta dúvida põe em xeque a própria eficácia do pacto, uma vez que, caso tivesse sido bem-sucedido, o personagem teria, como consequência, maior completude e certezas, o que não ocorre. Desse modo, nos dois romances é possível notar que ambos os personagens, dadas as circunstâncias as quais são expostos, exprimem uma vontade de mudança em relação à realidade em que vivem. Para tanto, recorrem a figuras da ordem do transcendental, do místico, do não empírico. Como explicita o antropólogo Mircea Eliade (1979, p. 14-15), “a situação do homem no mundo, seja qual for a perspectiva adotada, exprime-se sempre por palavras-chaves que contêm a ideia de ‘ligação, de acorrentação, de união’, etc..”, de tal forma que o homem reconhece “nesse complexo uma espécie de arquétipo da sua própria salvação no mundo”. Ou seja, assim como o homem religioso se liga a Deus para buscar salvação, entende-se que tanto Macabéa quanto 89 Riobaldo a buscam através da ligação com aquilo que não está na ordem da realidade material – embora, como foi dito, essa salvação não tenha se concretizado de fato. Ainda em diálogo com Eliade, Freud, ao discorrer sobre a religião em O futuro de uma ilusão, afirma que a crença de ilusão aparece “quando se destaca em sua motivação o cumprimento de desejo, ao mesmo tempo em que não levamos em conta seu vínculo com a realidade, exatamente do mesmo modo que a própria ilusão renuncia a suas comprovações. “ (FREUD, 2017, p.88). Assim, levando novamente em conta a fé cristã, nota-se que, para que se acredite em Deus, não é necessária qualquer comprovação empírica. No caso dos personagens aqui analisados, o mesmo ocorre: há a relação entre a crença em uma ilusão e o desejo por algo – no caso, desejo por superação – e a falta de necessidade de comprovações. O que importa, de fato, como explica Antônio Candido em “O homem dos avessos”, não é se houve pacto ou não – e, paralelamente, se as palavras da cartomante carregavam valor de verdade ou não –, mas sim que “não se pode fugir à evidência da própria mudança. “ (CANDIDO, 2002, p.136). É importante também notar que, assim como o misticismo aparece nas obras aqui analisadas, o mesmo processo ocorre na composição de vários romances classificados como modernos – processo esse que não deve ser entendido como uma regra. Em primeiro lugar, o moderno, aqui citado, se refere a “uma negação do realismo [formal]” (ROSENFELD, 1973, p. 76). De modo geral, o que se evidencia nas obras é a presença de diversos fatores, entre eles: uma linguagem marcada por ambiguidades e dúvidas, ou seja, pela ausência da função referencial; uma configuração fragmentada dos personagens, de modo que não é possível conhecê-los por completo; e a falta de confiança no narrador, visto que a narração de Riobaldo é marcada por incertezas e ambiguidades, e a de Rodrigo S.M, pelo interesse de se elevar através do rebaixamento de Macabéa. Além disso, o que se nota em muitos romances modernos, como afirma Rosenfeld (1973, p.89), é a inserção da dimensão mítica nas narrativas, a fim de se revelar “tanto melhor as configurações arquetípicas do ser humano”. Ou seja, o mito, por trabalhar com arquétipos, acaba incluindo ao romance um maior grau de certeza e de estabilidade. Assim, se na modernidade o que reverbera é a variabilidade e a instabilidade, nas tradições são os dogmas, a transcendência e a estabilidade que ganham força. O mítico aparece, nesse sentido, como tentativa de conceder estabilidade não apenas aos personagens como solução aos problemas que encaram no decorrer das obras, mas também para trazê-la ao romance carregado de fragmentação. No caso dos romances analisados, o mítico, por mais que acarrete uma mudança, acaba não trazendo essa ideia de certeza e estabilidade para os personagens, uma vez que Riobaldo debate consigo mesmo no decorrer da obra sobre a existência ou não do Diabo, e Macabéa não termina do modo como a cartomante havia previsto. Além disso, pode-se dizer que este fenômeno aparece tanto tematicamente quanto estruturalmente: em A Hora da Estrela, o caráter cíclico, próprio da dimensão mítica, é encontrado na palavra “Sim”, que dá início e fim ao livro; já em Grande 90 Sertão: Veredas, a “travessia” e o símbolo do infinito revelam algo que está dissociado da marcação cronológica realista e referente ao campo do misticismo. Desse modo, verifica-se nos dois romances aqui analisados a presença de personagens que vivem sob condições destrutivas e, para tentar superá-las, ligam-se àquilo que está na ordem do transcendental – a cartomante e o Diabo. O presente trabalho buscou analisar o aspecto mítico dos romances através de uma perspectiva antropológica (a ideia de ligação para alcançar salvação), psicanalítica (a relação entre desejo e ilusão) e da teoria literária (a presença do mítico no tema e na forma dos romances). Além disso, buscou-se apoio em outras obras, a saber, o conto popular “A proteção do diabo”, a fim de mostrar como se configura a imagem do diabo no romance de Guimarães Rosa; e “A cartomante”, de Lima Barreto, com o intuito de identificar a figura da cartomante em outro contexto literário. Não foi possível, entretanto, abordar ou aprofundar alguns tópicos, tais como a origem e história do Diabo na cultura brasileira; como se desenvolveu a cartomancia no Brasil e que lugar ela ocupa em nossa sociedade; a questão do letramento nas duas obras; de que forma o misticismo se configura em outras obras modernas, entre outros. Por fim, é importante notar que em ambos romances há uma estrutura em comum: a vontade de mudança de vida (consciente ou não), o contato com o transcendental e uma transformação na subjetividade das personagens após este contato. REFERÊNCIAS BARRETO, Lima. A cartomante. In: ______. Contos Completos. São Paulo: Cia das Letras, 2010. CANDIDO, Antônio. O homem dos avessos. In: ______. Tese e antítese. São Paulo: T.A Queiroz, 2002. DELUMEAU, Jean. Satã. In: ______. História do medo no Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, 2009. pp. 354 – 385. ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Lisboa: Arcádia, 1979. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Porto Alegre: L&PM, 2017. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. ROMERO, Sílvio, org. Contos populares do Brasil. São Paulo: Cadernos do Mundo Inteiro, 2017. pp. 86 – 88. ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 21.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. ROSENBAUM, Yudith. Clarice Lispector. São Paulo: Publifolha, 2002. ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: ______. Texto/Contexto. São Paulo: Perspectiva, 1973. pp. 75 – 97. 91 Letramento, literatura e educação em Grande sertão: Veredas e A hora da estrela: uma comparação Larissa dos Santos Rocha É fato que Grande Sertão: Veredas e A hora da estrela são obras marcantes por diversos aspectos. O romance de Guimarães Rosa, publicado na década de 50, levanta questões sobre o ser humano. Riobaldo, ao narrar os episódios marcantes de sua história como jagunço, consegue perceber e questionar as injustiças a sua volta, assim como a existência ou não do Demônio e as diversas faces da violência. A obra de Clarice Lispector, publicada em 1977, apresenta o narrador Rodrigo, que conta a história de Macabéa, nordestina semialfabetizada que vai para o Rio de Janeiro em busca de uma vida melhor. Ambas as obras são classificadas como modernas. Pensando nas palavras de Rosenfeld, presentes em um texto cujo título é “Reflexões sobre o romance moderno”, nota-se que, nessas obras, tempo e espaço são subjetivados, relativizados. Aqui, o mimetismo, o “mundo temporal e espacial posto como real e absoluto pelo senso comum” (ROSENFELD, 1973, p.81), características que se manifestavam no romance realista, se desconstroem; o que passa a acontecer é um “processo de desmascaramento do mundo epidérmico do senso comum” (ROSENFELD, 1973, p.81). Embora publicadas com duas décadas de diferença, ambas as obras trazem a questão da educação como fundamental para a constituição de humanidade, para que o individuo possa ser capaz de pensar a dor e o sofrimento de maneira crítica. Paulo Freire afirma, em seu ensaio intitulado “Alfabetização de adultos e bibliotecas populares – uma introdução”, que não é “possível pensar, sequer, a educação, sem que se esteja atento à questão do poder. “ (FREIRE, 1999, p.24). Essa frase demonstra a importância de refletir como o letramento aparece em Grande sertão: Veredas e em A hora da estrela, e como sua presença ou ausência tem influência direta nas reflexões do sujeito sobre si mesmo e o mundo a sua volta. Para dar início à questão da educação em A hora da estrela, o primeiro momento referente à formação escolar de Macabéa será esclarecedor: Ela que deveria ter ficado no sertão de Alagoas com vestido de chita e sem nenhuma datilografia, já que escrevia tão mal, só tinha até o terceiro ano do primário. Por ser ignorante era obrigada na datilografia a copiar lentamente letra por letra – a tia é que lhe dera um curso ralo de como bater à maquina. E a moça ganhara uma dignidade: era enfim datilógrafa. Embora, ao que parece, não aprovasse na língua duas consoantes juntas e copiava a letra linda e redonda do amado chefe a palavra “designar” de modo como em língua falada diria: “desiguinar”. (LISPECTOR, 1998, p.15). 92 Aqui nos é revelada a formação escolar da protagonista: até o terceiro ano do primário. Isso significa que ela não concluiu o ensino fundamental. Entretanto, sua tia lhe ensina a bater teclas na máquina de escrever. Ela ganha uma dignidade, a de ser datilógrafa. Curioso é que o narrador afirma, logo depois disso, que a personagem não era uma boa copiadora. Ou seja, até mesmo sua dignidade é negativa, até aquilo que faz de Macabéa um ser humano digno é feito de maneira incompetente, afinal, “ela era incompetente. Incompetente para a vida. Faltava-lhe o jeito de se ajeitar. “ (LISPECTOR, P. 24, p.1998). Essa afirmação, de que a protagonista copiava letra por letra, ecoa naquilo que Paulo Freire, em seu texto “O povo diz a sua palavra ou a alfabetização em São Tomé e Príncipe”, condena como algo que favorece a manipulação: a leitura mecânica de textos que estão à parte do cotidiano daqueles que se alfabetizam. Embora Macabéa saiba ler, essas leituras que faz em seu trabalho são alheias a ela, não lhe dizem respeito. Dessa forma, apesar de a personagem fazer cópias de textos todos os dias, ela não se reflete no que lê, não vê seu mundo nessas breves leituras. Levando em conta um trecho como “A menina não perguntava por que era sempre castigada mas nem tudo se precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida. “ (LISPECTOR, 1998, p.28), que é um entre tantos outros que evidenciam esse “não saber” da personagem, sugere-se que seu processo de aprendizagem, no curto período em que pôde permanecer na escola, não se deu da forma que Freire propõe como sendo a ideal para formar indivíduos pensantes. Ela não será capaz de realizar aquilo que ele considera fundamental no processo de alfabetização: a leitura crítica do mundo a sua volta, o mundo do qual o sujeito faz parte. O contrário da manipulação, como do espontaneísmo, é a participação crítica e democrática dos educandos no ato de conhecimento de que são também sujeitos. É a participação crítica e criadora do povo no processo de reinvenção de sua sociedade. (FREIRE, 1999, p.39) As últimas linhas do excerto contando a formação escolar de Macabéa também são interessantes, elas evidenciam como a personagem emprega padrões da língua oral na língua escrita. Uma vez que a gramática normativa é um conjunto de regras criadas por uma elite para reger a língua escrita e que conhecer e seguir corretamente essas regras são características associadas a pessoas que tiveram uma formação escolar de qualidade, fica evidente que essa nordestina não faz parte desse grupo, é alguém fora da elite e que não teve acesso a um ensino satisfatório. Macabéa não questiona o mundo à sua volta por que não teve uma formação crítica que propiciasse isso. Logo, as injustiças que vive dentro de sua classe social lhe passam despercebidas. “Chegou à conclusão de que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era por que as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar? “ (LISPECTOR, 1998, p.40). Quando a realidade miserável não é reconhecida, quando a fome e os insultos que sofre são vistos como algo comum, não há necessidade de luta, não há por que lutar por algo melhor, já que 93 isso não existe - não existe por que ela não conhece. Porém, se ele puder conhecer a realidade das classes acima da sua, saberá que sua condição não é suficientemente digna e poderá se revoltar para lutar por uma vida melhor. Entretanto, o sistema suprime a possibilidade de existência dessa consciência quando não oferece ensino de qualidade para a população, limitando a transmissão efetiva do conhecimento a uma pequena parcela da sociedade, que é justamente a elite que o Estado privilegia. Macabéa é vítima evidente do que Marx chama de “comunidade ilusória” em “Fundamentos da História”, uma farsa que o Estado constrói para alienar sua população, afirmando que esse governo atende aos interesses de todos, quando, na verdade, os interesses atendidos estão concentrados em uma única classe dominante. A alienação que impede Macabéa de reconhecer sua condição miserável vem, dentre outras coisas, dessa deficiência que sofreu no mundo escolar. Por não poder se formar no ensino fundamental, por ler mecanicamente textos que não lhe dizem respeito, por não ter estudado de forma que permitisse ler o mundo a sua volta e se reconhecer como sujeito desse mundo, essa personagem aceita o universo de sua classe social e não faz nada para que essa realidade seja diferente. Dentre os instrumentos usados pelo Estado para alienar a população, em A hora da estrela, está a Rádio Relógio: Todas as madrugadas ligava o rádio emprestado por uma colega de moradia, Maria da Penha, ligava bem baixinho para não acordar as outras, ligava, invariavelmente para a Rádio Relógio, que dava “hora certa e cultura”, e nenhuma música, só pingava em som de gotas que caem – cada gota de minuto que passava. E sobretudo esse canal de rádio aproveitava intervalos entre as tais gotas de minuto para dar anúncios comerciais – ela adorava anúncios. Era rádio perfeita pois também entre os pingos do tempo dava curtos ensinamentos dos quais talvez algum dia viesse precisar saber. Foi assim que aprendeu que o Imperador Carlos Magno era na terra dele chamado de Carolus. Verdade que nunca achara modo de aplicar essa informação. Mas nunca se sabe, quem espera sempre alcança. (LISPECTOR, 1998, p.37). O fato de uma estação de Rádio fornecer “hora certa e cultura, e nenhuma música” levanta algumas questões. A primeira delas é: que tipo de cultura? Afinal, Alfredo Bosi, em “Cultura brasileira e culturas brasileiras” afirma que o mundo cultural brasileiro é diverso, não se pode falar em cultura brasileira no singular por que tal uniformidade não existe. Considerando que o rádio é um meio de comunicação de massa, pode-se concluir que essa cultura transmitida pela rádio é uma produção cultural para as massas. Uma segunda questão é: por que nenhuma música? Uma característica muito marcante das rádios é a transmissão de músicas populares por horas e horas, logo, afirmar que a rádio não tocava músicas parece importante de alguma forma. Talvez o esclarecimento para essa interrogação venha logo à frente no livro, quando Macabéa escuta a música “Una Furtiva Lacrima” e chora pela primeira vez: “ Una Furtiva Lacrima” fora a única coisa belíssima na sua vida. (...) Quando ouviu começara a chorar. Era a primeira vez que chorava, não sabia que tinha tanta água nos olhos. (...) Não chorava por causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela era “assim”. Mas também creio que chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até com certo luxo de alma. (LISPECTOR, 1998, p.51). 94 Fica evidente que, através da música, Macabéa descobre outra dimensão de si mesma, descobre “existências mais delicadas e até com certo luxo de alma”. Macabéa se emancipa como ser humano, ela sente coisas que jamais havia sentido, chora lágrimas que não sabia que existiam aos montes dentro dela. Se a música tem essa capacidade de emancipar o ser humano e a Rádio Relógio decide evitar esse tipo de arte, conclui-se que é uma rádio que não se preocupa em humanizar as pessoas Como Alfredo Bosi afirma, (...) uma política de educação de um número alto de brasileiros talvez deva passar forçosamente pelos meios de comunicação em massa. O que não significa que são esses meios (...) que vão transformar, no sentido positivo de humanizar e socializar, a mentalidade de seus usuários. Eles a transformarão na linha determinada pela filosofia de valores própria do projeto político social que os utilizar. (BOSI, 1992, p.322). Se Macabéa nunca soube como usar esses conhecimentos transmitidos pela Rádio, notase que são curiosidades que só servem como entretenimento, não têm funcionalidade prática na vida de quem as escuta. Logo, uma manipulação acontece quando a Rádio Relógio provê conhecimento para seu público através dessas curiosidades. A impressão que se tem é a de que o Estado está cumprindo seu papel de fornecer educação para a população, mas, na verdade, todo esse conhecimento é inútil para a formação de indivíduos críticos. Em A hora da estrela, essa ligação entre letramento e poder se torna muito evidente se pensarmos em Rodrigo, o narrador letrado, em oposição à Macabéa, a moça semialfabetizada que tem sua vida contada. Rodrigo é o detentor da palavra, é o autor da história que conta; ele cria personagens e eventos, comanda-os como um Deus. É evidente que, sendo um escritor, domina a língua escrita, característica de alguém que, em certo momento de sua vida, teve acesso a bom conhecimento. Macabéa, por outro lado, é alguém que só frequentou a escola até o terceiro ano primário, não completou o ensino fundamental, característica mais comum nas classes menos favorecidas da sociedade. Logo, percebe-se que há um movimento muito sutil relacionado ao letramento em A hora da Estrela: Rodrigo, o homem letrado, é aquele que conta e tem poder sobre a história da semiescolarizada Macabéa. Para que a história dessa nordestina seja contada, é necessário que um sujeito letrado tome a palavra, pois ela não tem voz social suficiente para isso, seu status de pessoa pouco escolarizada não permite que isso aconteça. Nesse livro, o letramento é sinônimo de poder. Rodrigo é tão poderoso que a vida de Macabéa depende de suas escolhas, de suas decisões, enquanto ela, que nem sabe da existência de seu criador, não tem ao menos voz para escolher a forma que deseja viver, ela simplesmente vive. Em Grande Sertão: Veredas, por outro lado, temos um narrador protagonista que recebeu boa educação, que tem formação escolar. Aqui, o personagem pode contar sua própria história, ele possui voz social. Para entender melhor como o letramento se dá nesse romance e como a formação de Riobaldo permite uma visão de mundo totalmente diferente da visão de Macabéa, é 95 interessante considerar o trecho em que Riobaldo relata suas primeiras experiências no mundo escolar: Mas eu não sabia ler. Então meu padrinho teve uma decisão: me enviou para o curralinho, para ter escola e morar em casa de um amigo dele, Nhô Marôto, cujo Gervásio Lé de Ataíde era o verdadeiro nome social. Bom homem. Lá eu não carecia de trabalhar, de forma nenhuma, porque padrinho Selorico Mendes acertava com Nhô Maroto de pagar todo fim de ano o assentamento da tença e impêndio, até de botina e roupa eu precisasse. Eu comia muito, a despesa não era pequena, e sempre gostei do bom e do melhor. A ser que, alguma vez, Nhô Maroto me pedia um ou outro serviço, usando muito bico de palavreado, me agradando e dizendo que estimava como um favor. Nunca neguei a ele meus pés e mãos, e mesmo não era o nenhum trabalho notável. Vai, acontece, ele me disse: - “Baldo, você carecia mesmo de estudar e tirar carta-de-doutor, porque para cuidar do trivial jeito não tem. Você não é habilidoso.” Isso que ele me disse me impressionou, que de seguida formei em pergunta, ao Mestre Lucas. Ele me olhou, um tempo – era homem de tão justa regra, e de tão visível correto parecer, que não poupava ninguém: às vezes teve dia de dar em todos os meninos com a palmatória; e mesmo assim nenhum de nós não tinha raiva dele. Assim Mestre Lucas me respondeu: -“É certo. Mas o mais certo de tudo é que um professor de mão-cheia você dava...” E, desde o começo do segundo ano, ele me determinou de ajudar no corrido da instrução, eu explicava aos meninos menores as letras e a tabuada (ROSA, 2015, p.102). Muitos elementos são notáveis nesse trecho. Mandado por seu padrinho, Riobaldo vai à escola. Lá se destaca, chegando a ouvir elogios como “você carecia mesmo de estudar e tirar cartade-doutor” e que “o mais certo de tudo é que um professor de mão-cheia você dava” (ROSA, 2015, P.102). Riobaldo de fato se torna professor: primeiro em Curralinho, auxiliando Mestre Lucas, e depois com Zé Bebelo. Esse Mestre é alguém querido pelo protagonista, alguém que merecia respeito. Em A hora da Estrela, há um momento onde o narrador transmite estas palavras ao leitor: “Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente.” (LISPECTOR, 1998, p. 30). Analisando o trecho do início da vida escolar de Riobaldo, parece que ele se encaixa no primeiro tipo de pessoa descrito pelo narrador do livro de Lispector. Ele afirma que comia muito em Curralinho, uma comida de qualidade, afinal ele gostava do bom e do melhor. A taxa que Selorico Mendes, seu padrinho, pagava anualmente garantia que roupas e calçados não lhe faltassem. Logo, pode-se afirmar que Riobaldo vive uma “vida bem acomodada” e que seu padrinho “possui alguma riqueza” (LISPECTOR, 1998, p. 30). Ele seria o tipo de pessoa que estaria lendo o livro de Rodrigo S. M. Em “Fundamentos da História”, Marx afirma o seguinte: (...) para viver, é preciso, antes de tudo, beber, comer, morar, vestir-se, além de outras coisas. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção de meios que permitam a satisfação dessas necessidades, (...) necessidades essas que se devem, ainda hoje, como há milhares de anos atrás, satisfazer dia a dia, hora a hora, simplesmente para manter os homens com vida. (MARX, 1988, 52). Riobaldo satisfaz essas necessidades constantemente, logo, ele pode viver. Macabéa, por outro lado, é alguém que se caracteriza por ter essa “leve fome permanente”. Em certo ponto do romance, ao pensar em um pedaço de frango, ela ingere pedaços de papel para suprir sua fome. É 96 alguém que não vai ler literatura, não vai viver porque não tem as necessidades primárias, enumeradas por Marx, supridas o suficiente para pensar em algo além da própria sobrevivência. Riobaldo, diferentemente, não precisa pensar nessas necessidades. Tendo esse conforto, não precisando trabalhar enquanto frequenta a escola, algo que é comum nas classes mais baixas da sociedade, pode usar seu tempo para estudar e virar professor, pode desenvolver-se intelectualmente, pode sair de si “para ver como é às vezes o outro” (LISPECTOR, 1998, p. 30). Mais à frente, Riobaldo se juntará ao grupo de jagunços do qual Diadorim faz parte. Dessa maneira, se torna um tipo muito incomum de homem: um jagunço letrado. Essa é apenas uma das muitas ambuiguidades que perpassam o romance, ambiguidades essas que são citadas por Antônio Candido em seu ensaio intitulado “O Homem dos Avessos”. Dentre os vários trechos nos quais Riobaldo pensa em sua condição no meio da jagunçagem está o seguinte: Ao que jagunço era isto – o senhor ponha letreiro. Ao encosto no rifle e apreparo nas patronas – isso era o que bastava. Nenhum dos companheiros estava desinquieto, nem ralava apreensão. Nenhum conversava precisando de saber a maneira de se escapulir vivos dali, da Fazenda dos Tucanos. Com a chegada da soldadesca, o que parecia moagem era para eles era festa. Assim uns gritaram feito araras machas. Gente! Feito meninos. Disso eu fiz um pensamento: que eu era muito diverso deles todos, que sim. Então, eu não era jagunço completo, estava ali no meio executando um erro. Tudo receei. Eles não pensavam. (ROSA, 2015, p.294). Nota-se que aqui Riobaldo faz uma breve reflexão sobre ser jagunço. Ele constantemente pensa sobre isso e constantemente tenta se encontrar nesse meio. Aqui, entretanto, há a afirmação “eu era muito diverso deles todos”. O narrador se reconhece como alheio àquele grupo, e isso acontece por que “eles não pensavam”. Riobaldo sabe que aquilo que o diferencia do resto do grupo é justamente esse acesso ao conhecimento que um dia teve, essa capacidade de pensar de forma crítica. Fica indignado com o fato de que ninguém ali estava preocupado com o risco de vida que corriam, para os jagunços daquele bando isso pouco importava. A afirmação de que o protagonista não se vê como jagunço completo sugere que, em sua opinião, para ser jagunço completo, para ser um verdadeiro jagunço, era necessária certa ignorância, um não pensar sobre consequências. E fica claro que Riobaldo não é esse tipo de pessoa. Isso se difere enormemente da personagem de A hora da estrela que afirma constantemente coisas como “Não sei bem o que sou” e “Só sei que nunca fui importante” (LISPECTOR, 1998, p.56). Riobaldo sabe quem é, sabe de si mesmo como alguém que é diferente naquele grupo. Ele se reconhece como indivíduo e é capaz de afirmar suas diferenças e semelhanças com o mundo no qual está inserido; Macabéa não se conhece, até mesmo seu próprio corpo lhe é desconhecido, nunca se viu nua por vergonha. A autoconsciência que Riobaldo possui não existe em Macabéa, e isso acontece, entre outros fatores, por que o primeiro pôde estudar de forma satisfatória, teve tempo para descobrir-se intelectualmente, para descobrir-se no mundo; a segunda, diferentemente, não foi contemplada com os mesmos privilégios. Sua vida foi seca em todos os aspectos possíveis: seca de alimento, de carinho e de conhecimento. Como exemplo das 97 profundas reflexões que Riobaldo é capaz de fazer, o trecho seguinte traz alguns questionamentos sobre a violência: E o Sidurino disse: -“A gente carecia agora era de um vero tiroteio, para exercício de não se minguar... A alguma vila sertaneja dessas, e se pandegar, depois, vadiando...” Ao assaz confirmamos, todos estávamos de acordo com o sistema. Aprovei, também. Mas, mal acabei de pronunciar, eu despertei em mim um estar de susto, entendi uma dúvida, de arpêjo: e o que me picou foi uma cobra bibra. Aqueles, ali, eram com efeito os amigos bondosos, se ajudando uns aos outros com sinceridade nos obséquios e arriscadas garantia, mesmo não refugando a sacrifícios para socorros. Mas, no fato, por alguma ordem política, de se dar fogo contra o desamparo de um arraial, de outra gente, gente como nós, com madrinhas e mães – eles achavam questão natural, que podiam ir salientemente cumprir, por obediência saudável e regra de se espreguiçar bem. O horror que me deu – o senhor me entende? Eu tinha medo de homem humano. A verdade dessa menção, num instante eu achei e completei: e quantas outrora doideiras assim haviam de estar regendo o costume da vida da gente, e eu não era capaz de acertar com todas elas de uma vez! Aí, para mim – que eu não tenho rebuço em declarar isto ao senhor – parecia que era só eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo; confiança eu não depositava, em ninguém. Ah, o que eu agradecia a Deus era ter me emprestado essas vantagens, de ser atirador, por isso me respeitavam. Mas eu ficava imaginando: se fosse eu tivesse tido sina outra, sendo só um coitado morador, em povoado qualquer, sujeito à instancia dessa jagunçada? A ver, então, aqueles que agorinha eram meus companheiros, podiam chegar lá, façanhosos, avançar em mim, cometer ruindades. Então? Mas, se isso sendo assim possível, como era pois que agora eles podiam estar meus amigos?! O senhor releve o tanto dizer, mas foi assim que eu pensei, e pensei ligeiro. Ah, eu só queria era ter nascido em cidades, feito o senhor, para poder ser instruído e inteligente! (ROSA, 2015, p.333). Novamente, o narrador se vê como diferente desse grupo, quando afirma que era o único com responsabilidade. Riobaldo, num momento de reflexão, percebe que a única coisa que o separava da gente que iriam saquear nos vilarejos é o fato de pertencer ao grupo de jagunços, afinal, as pessoas que iriam sofrer em breve eram “gente como nós” (ROSA, 2015, p.333). Se tivesse nascido em qualquer uma dessas vilas, estaria sujeito a sofrer as ruindades do grupo. Não fosse seu dom para atirador, sua vida poderia ser muito diferente. E isso o assusta, ele percebe que tem medo de homem humano. Admite que viver seja algo regido por muitas doideiras, e que ele mesmo não conhece todas elas. Tudo isso é de uma complexidade sem tamanhos. Questionar como um acaso de nascimento ou talvez um destino (“se fosse eu tivesse tido sina outra” (ROSA, 2015, p.333)) pode proporcionar a proteção ou a efetivação do sofrimento, é saber ler o mundo em que se vive, e isso Macabéa é incapaz de realizar. Aqui, de fato, Riobaldo realiza o movimento sair de si “para ver como é às vezes o outro”, quando pensa nas madrinhas e mães desamparadas que estavam prestes a sofrer as ruindades dos jagunços. Essa leitura crítica do mundo é o que, segundo Paulo Freire, em “A importância do ato de ler”, “possibilitava aos grupos populares, às vezes em posição fatalista em face das injustiças, uma compreensão diferente de sua indigência.” (FREIRE, 1999, p.21). Macabéa, que por não ter conhecido educação de qualidade, ouve a Rádio Relógio e pensa que suas curiosidades servem para alguma coisa, aceita ofensas por achar que isso é o normal, não sabe de si mesma nem do mundo em que vive, não luta por que não há luta possível; 98 diferentemente, Riobaldo, que estudou bastante e virou até professor, realiza uma leitura crítica de sua sociedade e se reconhece como indivíduo diferente dos que estão ali. Embora esse narrador protagonista não faça nada para mudar o ambiente em que vive, ele tem consciência de que a violência não é normal, e reconhecer as injustiças no seu meio social é o primeiro passo para que, talvez, um dia, haja mudança, para iniciar a busca por uma vida melhor. Enquanto Macabéa continuar a tratar seu sofrimento com normalidade, esse normal miserável prevalecerá em sua vida. “O direito a literatura” é um ensaio no qual Antônio Candido discorre sobre como a literatura é importante para a formação de humanidade. Segundo ele, essa arte é um bem incompressível, colocando-a em igualdade de importância com fatores essenciais, como alimentação e moradia. Para Candido, a privação da literatura pode causar desequilíbrio social e deficiência espiritual naqueles que não a consomem, e isso impede o papel de humanização que esse tipo de leitura pode fornecer. Nesse ensaio, humanização é um processo definido como algo que (...) confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante. (CANDIDO, 1995, p.249). A partir dessa definição de humanização podemos comparar Riobaldo e Macabéa nesses termos, considerando que o primeiro teve acesso à literatura, logo, é um leitor efetivo, letrado em meio escolar; e que a segunda possui formação incompleta do ensino fundamental, fazendo leituras mecânicas de textos que lhe são alheios. É importante ressaltar que os traços enumerados nessa definição são considerados essenciais, portanto, não deveriam ser privados de nenhum ser humano. O primeiro elemento da definição de humanização segundo Candido é “o exercício da reflexão” (CANDIDO, 1995, P.249). Riobaldo, no trecho que afirma o seu medo de “homem humano” (ROSA, 2015, p.333), faz uma intensa reflexão sobre as pessoas que vivem ao seu redor, questionamento esse que é um entre tantos outros no decorrer do livro. Macabéa não reflete sobre sua condição e seu meio, ela apenas aceita que “com ela era “assim” (LISPECTOR, 1998, p.51). Em seguida, alega-se “a aquisição do saber” (CANDIDO, 1995, p.249) como algo essencial. Macabéa, formada até o terceiro ano, Riobaldo, professor ajudante de Mestre Lucas e, mais tarde, professor de Zé Bebelo. “A boa disposição para com o próximo” (CANDIDO, 1995, p.249) fica evidente no momento em que o narrador da obra de Rosa se preocupa com as mães e madrinhas que estariam presentes no vilarejo que a jagunçagem planejava saquear; nesse momento, nota-se também que esse personagem é capaz de “penetrar nos problemas da vida” (CANDIDO, 1995, p.249), quando reflete sobre a violência condicionada pela existência ou não de relações afetivas. Macabéa não 99 pensa sobre os problemas de sua vida nem sobre os problemas da vida de ninguém, seu olhar não é crítico, tudo lhe parece normal. “O senso da beleza” (CANDIDO, 1995, p.249) existe em ambos os personagens, mas a “percepção da complexidade do mundo e dos seres” (CANDIDO, 1995, p.249) é perceptível apenas em Riobaldo. Tudo isso nos indica que a humanização a partir da educação e da literatura foi muito mais efetiva em Riobaldo do que em Macabéa. Impedida de ter ensino de qualidade, alfabetizada através da leitura mecânica, vítima de uma comunidade ilusória manipuladora, impossibilitada de reconhecer a si mesma e ao mundo a sua volta, e, consequentemente, de perceber as injustiças que sofre dentro de sua classe sócia essa é a Macabéa de A Hora da Estrela, alguém que lamentavelmente constitui um perfil muito comum na sociedade brasileira. Riobaldo, diferentemente, é um tipo incomum. Tendo a sorte de ter um padrinho financeiramente confortável, pôde conhecer o mundo escolar de forma satisfatória. Alimento, roupas e moradia, tudo isso lhe foi dado, de forma que suas preocupações puderam se voltar exclusivamente para os estudos. Quando, mais tarde, se junta à jagunçagem, sua visão crítica do mundo, juntamente com as suas experiências passadas de conforto, podem lhe dizer constantemente que a vida violenta e sofrida de jagunço não é algo aceitável, não é digno para nenhum ser humano. Macabéa, diferentemente, acredita que sua condição, sendo insultada constantemente, tendo que ingerir papel para acalmar a fome e desejando alimentar-se de produtos que não são comestíveis (como o creme no anúncio de revista), é o que a vida pode lhe proporcionar. Acredita que para ela não existe nada melhor, e aceitar sua condição, sem perspectiva de luta, é tudo que se pode fazer. REFERÊNCIAS BOSI, Alfredo. “Cultura brasileira e culturas brasileiras”. In: __. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 308 – 345. CANDIDO, Antônio. “O direito à literatura”. In. __. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. p. 235 – 263. CANDIDO, Antônio. “O homem dos avessos”. In: __. Tese e antítese. São Paulo: Editora T. A. Queiroz, 2002. p. 121 - 139. FREIRE, Paulo. “A importância do ato de ler”. In: __. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez Editora, 1999. p. 11 – 21. FREIRE, Paulo. “Alfabetização de adultos e bibliotecas populares - uma introdução”. In: __. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez Editora, 1999. p. 22 – 35. 100 FREIRE, Paulo. “O povo diz sua palavra ou a alfabetização em São Tomé e Príncipe”. In: __. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez Editora, 1999. p. 36 – 87. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1996. MARX, Karl. “Fundamentos da história”. In: __. Sociologia. São Paulo: Ática, 1988. p. 45 – 61. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. ROSENFELD, Anatol. “Reflexões sobre o romance moderno”. In: __.Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 1973. p. 75 – 97. 101 O nome e a palavra: linguagem e formação do sujeito em Grande sertão: veredas e A hora da estrela Pedro Oswaldo Horta Martins Pena Os protagonistas dos romances Grande Sertão: Veredas e A Hora da Estrela passam por processos de formulação identitária muito distintos, quase opostos. Por meio da comparação entre os dois narradores, é possível pensar a respeito de como o uso da linguagem condiciona a formação das personagens centrais dos livros, e como diferenças linguísticas têm consequências profundas na construção das obras. Essa abordagem foi escolhida pois a questão da linguagem enquanto formadora do sujeito é de grande importância para o estudo da literatura e da língua. Para auxiliar no desenvolvimento deste trabalho, serão usados textos teóricos de ciências humanas, além de uma crítica literária do romance de Guimarães Rosa e dos próprios textos dos romances. Como afirma Antônio Candido em seu ensaio “O homem dos avessos”, em Grande Sertão: Veredas “há de tudo para quem souber ler, (...) cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme seu ofício” (1978, p. 121). Assim sendo, foi escolhida para este trabalho uma leitura do romance de Guimarães Rosa como romance de formação, com enfoque na absorção da lógica patriarcal da jagunçagem por parte de Riobaldo. Este processo se observa largamente pela forma que Riobaldo se relaciona com seus dois apelidos de jagunço, Tatarana e Urutú-Branco, e pela relação ambígua que o narrador constrói entre suas identidades passadas e presente. Antes de prosseguir, é importante esclarecer o que é o patriarcado, no contexto deste trabalho. Um bom ponto de partida para isto é a definição que bell hooks fornece em seu texto “Understanding Patriarchy”, segundo a qual: Patriarchy is a political-social system that insists that males are inherently dominating, superior to everything and everyone deemed weak, especially females, and endowed with the right to dominate and rule over the weak and to maintain that dominance through various forms of psychological terrorism and violence. 63 (2004, p.1). Considerando o protagonista de Grande Sertão à luz desse conceito, vê-se que Riobaldo inicialmente não corresponde ao homem idealizado pela mentalidade patriarcal64. Embora ele participe ativamente dos atos violentos do seu bando, o faz em condição de subordinação a outro (seja Joca Ramiro, Zé Bebelo, Medeiro Vaz ou até mesmo Hermógenes), e mais de uma vez “O patriarcado é um sistema político-social que insiste que homens são inerentemente dominadores, superiores a tudo e todos que são considerados fracos, especialmente mulheres, e agraciados com o poder de dominar e comandar os fracos e de manter tal poder através de várias formas de terrorismo psicológico e violência” [Tradução nossa] 64 É no mínimo questionável dissociar a conduta de Riobaldo do patriarcado, pois trata-se de uma noção fundamental na formação de todo sujeito em nossa sociedade. Contudo, é fato que seu comportamento inicial não é o de um patriarca mais completo (como Joca Ramiro ou Zé Bebelo). 63 102 Riobaldo cogita seriamente largar a vida de jagunço – ao menos até o momento do pacto. Inclusive, vê-se que o protagonista tem sérias reticências até mesmo com o nome de sua profissão. A hesitação do narrador em se associar à palavra “jagunço” é tanta que, mesmo quando o faz, faz de forma a, simultaneamente, distanciar-se da ideia. Em certo ponto do romance, ainda sob o comando de Hermógenes, Riobaldo faz uma breve digressão para comentar com seu interlocutor a natureza da própria narração; ele diz: De tudo não falo. Não tenciono relatar ao senhor minha vida em dobrados passos; servia para quê? Quero é armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho. Por daí, então, careço de que o senhor escute bem essas passagens: da vida de Riobaldo, o jagunço. Narrei miúdo, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achar o esquecimento. O jagunço Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! ― porque não sou, não quero ser. Deus esteja! (ROSA, 2002, p. 216). A expressão “o jagunço Riobaldo” (e também “Riobaldo, o jagunço”), por ser usada na terceira pessoa, pode ser lida como um distanciamento entre falante e objeto, pois evita o uso de pronomes pessoais em primeira pessoa (minha vida; Eu). A falta de identificação aparece no questionamento – “Fui eu?” –, que é seguido primeiro pelo paradoxo indicador de dúvida (“Fui e não fui”, e então pela negação categórica “Não fui!”). E a explicação fornecida é reveladora da atitude do narrador para com a própria identidade: “porque não sou, não quero ser”. Mas essa afirmação de si é contradita em diversos pontos da narrativa – na verdade, a relação de dúvida quanto a si mesmo é uma das ambiguidades constitutivas de todo o romance, somando-se às ambiguidades geográfica, afetiva e metafísica que Antônio Candido delimita em seu ensaio acima citado (1978, p. 134). Após o amigo Reinaldo revelar ao protagonista seu nome Diadorim, Riobaldo diz ao senhor a quem narra: “Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe” (ROSA, 2006, p. 156). A ambiguidade dessa frase é prevista pela formulação da pergunta, que remete à estrutura de enigmas populares (“o que é, o que é...”), e se dá pois sua sintaxe parece conter a elipse do pronome reflexivo (“nome não se dá...”). A estrutura, como a vemos no texto, causa estranhamento, pois os verbos “dar” e “receber” costumam ser transitivos, demandando assim a presença de um objeto, que neste caso seria o pronome. Sendo assim, talvez a ideia seja de que a identidade, resumida simbolicamente no nome, não é determinada pelo próprio sujeito, mas pelo outro que nomeia; em contrapartida, a leitura da frase in natura, ignorando a possível elipse, poderia determinar que não há nada que o nome carrega em si, e que a identidade é construída pelos significados associados posteriormente à nomeação – ou seja, a identidade não é formulada apenas pelo cerne do sujeito, mas pelas forças que condicionam a percepção do indivíduo. Daí vem a ideia central desta parte do trabalho: se seus nomes refletem como Riobaldo se posiciona na sociedade, deve haver na evolução dessas alcunhas algum indício do processo de formação do protagonista como indivíduo. 103 Para que haja uma compreensão mais aprofundada dos significados de cada nome, e da sequencialidade desses, se utilizará a noção de subjection – conforme descrita no livro The Psychic Life of Power, de Judith Butler – como lente para compreender a associação da identidade de Riobaldo com o patriarcado de maneira mais geral. Pelas palavras de Butler, o conceito é definido como “the process of becoming subordinated by power as well as the process of becoming a subject” (1997, p. 2) – a formação do sujeito, quase paradoxalmente, é simultânea a sua subordinação às instituições do poder (no caso específico de Riobaldo, a principal dessas é o patriarcado). Um bom ponto de partida é uma análise comparativa dos dois nomes que o protagonista recebe como jagunço, Tatarana e Urutú-Branco. A diferença mais superficial entre os dois termos - o gênero - já diz muito sobre o significado de cada um: o primeiro apelido é dado num momento em que o narrador é ainda capanga (portanto, subserviente) e tem dúvidas quanto a seu pertencimento na comunidade jagunça, que é exclusivamente masculina; sua alcunha posterior, recebida diretamente do antecessor Zé Bebelo, é dada no momento-ápice da assertividade de Riobaldo, quando ele toma a chefia do bando à força – e pouco após seu pacto com o Diabo - aqui a questão da ocorrência factual do pacto é de menor importância; o importante é a mudança no comportamento do personagem a partir deste momento. Esta distinção entre masculino e feminino, segundo a qual o primeiro é dominante, proativo, agressivo, e o segundo é submisso, passivo, humilde, observa-se também nas características dos dois animais-nome. A tatarana é um animal de pequeno porte, herbívoro, e sua capacidade de infligir dor (por pelos urticários) é exclusivamente passiva; ademais, trata-se de um animal de estado larval, o que tem paralelo com o momento em que Riobaldo ainda está numa fase inicial de desenvolvimento sócio-psíquico. O urutú-branco, por outro lado, é uma espécie de víbora, ou seja, predador peçonhento e agressivo, cuja toxina é inoculada por um ato voluntário e invasivo, o bote. Um dado extremamente interessante é que o nome Urutú-Branco aparece no romance antes do apelido Tatarana – antes mesmo que qualquer episódio da vida de jagunço do protagonista seja narrado. Ocorre no parágrafo em que Riobaldo diz brevemente o que levou cada um dos chefes que o comandaram, além de outros ainda anteriores, à jagunçagem. Após falar desde Medeiro Vaz e Joãozinho Bem-Bem até Hermógenes, ele termina: “E o ‘Urutú-Branco’? Ah, não me fale. Ah, esse... tristonho levado, que foi – que era um pobre menino do destino...” (ROSA, 2006, p. 17). Trecho de tom melancólico, pela hesitação em tocar no assunto, pelo adjetivo “tristonho”, pelas reticências. Aqui, Riobaldo trata seu ápice de prestígio entre os jagunços como um momento de imaturidade (“menino”; talvez “levado”, se a palavra for lida como adjetivo, e não como verbo), e como situação de subserviência ao destino – embora seja um momento em que Riobaldo mais exerce agência. Tal ideia de destino pode ser associada diretamente à intenção de matar Hermógenes, objetivo motor de boa parte do romance, mas 104 também pode ser lida através da perspectiva butleriana sugerida acima. Temos este paradoxo de agência e destino associado ao nome Urutú-Branco traduzido, de certa forma, neste trecho de Butler: “Subjection consists precisely in this fundamental dependency on a discourse we never chose but that, paradoxically, initiates and sustains our agency” (1997, p. 2). O discurso no qual Riobaldo está inserido é, lato sensu, o patriarcado, e mais estritamente a lógica social dos jagunços, e são as exigências de coragem e vingança que o levam a um estado de maior agência. Tanto está o apelido dado por Zé Bebelo associado à morte de Hermógenes que, após a realização desta, o nome Urutú-Branco não ocorre mais. Mesmo quando Riobaldo reencontra Bebelo, em suas andanças após retirar-se da jagunçagem, o antigo chefe se dirige a ele como “Riobaldo, Tatarana, Professor...” – mas não como Urutú-Branco. E o último nome pelo qual o ex-chefe se refere ao protagonista propõe a síntese do personagem: “Riobaldo” (ROSA, 2006, p. 605-606), puro, sem o adjetivo de jagunço. Riobaldo, em certo momento de digressão, dá a entender que sua índole no momento da narração está completamente dissociada de seu passado: Eu era assim. Sou? Não creia o senhor. Fui o chefe Urutú-Branco – depois de ser Tatarana e de ter sido o jagunço Riobaldo. Essas coisas larguei, largaram de mim, na remotidão. Hoje eu quero é a fé, mais a bondade. (ROSA, 2006, p. 544). Mas a temporalidade do romance não é assim tão linear, nem tão claramente delimitada, como pode se ver neste outro trecho: O senhor escute meu coração, pegue no meu pulso. O senhor avista meus cabelos brancos... Viver ― não é? ― é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente da boca... (ROSA, 2006, p. 585). A última frase da citação acima tem uma construção agramatical, pois a conexão entre o verbo do presente “produz” e o passado “engoliu”, nesta ordem, não deveria ser feita pelo advérbio “depois”. Mas, considerando-a a partir da frase que a antecede, vemos que presente e passado têm uma relação de duas vias, pois se “viver” (tempo presente) equivale a “aprender-a-viver” (noção de tempo passado), então o processo de formação do indivíduo é contínuo, inclusive na sua relação com outrora. Voltando à ideia de “sujeitação”, pode-se ler que, embora renunciar ao “jagunço Riobaldo” - ou seja, à expressão de masculinidade associada à forma que o patriarcado toma dentro da jagunçagem - seja um movimento essencial para a formação de Riobaldo enquanto sujeito agente, o papel que ele ocupa posteriormente na sociedade – fazendeiro pai de família – é o que há de mais próximo do patriarca ideal da tradição cultural brasileira. Voltando o olhar agora para Macabéa, protagonista do livro A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, observa-se que as condições de sua construção como indivíduo são drasticamente diferentes das de Riobaldo. A causa central desta diferença é que, ao contrário do protagonista de Grande Sertão: Veredas, Macabéa não narra – mais ainda: não sabe narrar. Quem se encarrega da 105 narração – e, portanto, da construção da personagem – é Rodrigo S.M., homem sobre o qual se sabe muito pouco, apenas têm-se indício de que é de classe social mais alta (pois faz referência a ter cavalos e criados). Um indício muito claro da distinção entre a identidade limitada de Macabéa e a formação complexa de Riobaldo é o fato de que o leitor só conhece seu nome após trinta e quatro páginas, e apenas porque um homem (Olímpico) lhe pergunta. Até este ponto da narrativa, Rodrigo se refere a ela apenas por indicadores de sua posição social, como “moça”, “datilógrafa”, e especialmente “nordestina”. No início, Rodrigo dá até mesmo a entender que a identidade de sua protagonista é de menor importância, pois haveria tantas nordestinas similares: Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas pelos cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe? (LISPECTOR, 1995, p. 28). São estes os caracteres necessários para que a personagem seja apropriada ao narrador: pobreza, trabalho “atrás de balcões”, ignorância da própria insignificância, não se queixar da própria condição. A pergunta que termina o parágrafo teria certa ironia, pois em outro momento Rodrigo se posiciona claramente como aquele a quem recorrer – não em sentido de justiça terrena, mas como um próprio deus: Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho plena consciência dela: através dessa jovem dou meu grito de horror à vida. À vida que tanto amo. (LISPECTOR, 1995, p. 49). O final da segunda frase demonstra, de maneira muito clara, como o narrador vê Macabéa como um instrumento para seus próprios interesses expressivos (“através dessa jovem dou meu grito de horror à vida”). Vê-se também que o ato de narrar, no romance, é exercício do direito ao grito, conceito que é um dos títulos alternativos para o livro. Outro título com a temática do grito: “Ela Não Sabe Gritar”. Em vários momentos, Rodrigo faz menção a essa inabilidade de expressão própria por parte de Macabéa, mas quando se refere ao direito ao grito mais diretamente, na página 27, quem grita é ele mesmo. Mas a veracidade daquilo que é narrado está sempre em cheque, pois o único contato que Rodrigo realmente teve com Macabéa foi um relance de olhar, na rua. “Esse relance me deu ela de corpo inteiro”, o narrador diz, e também afirma adivinhar na carne “a verdade que ninguém quer enxergar” (LISPECTOR, 1995, p. 74). Contudo, parece mais provável que tal adivinhação seja, na verdade, uma construção por parte do narrador – construção antiética, pois impõe a um indivíduo real (ao menos na diegese do livro) a vontade do próprio narrador, utilizando da moça como instrumento para satisfazer as próprias vontades (que são principalmente narrativas, mas eventualmente se desenvolvem também em desejo afetivo). 106 Mas, se o narrar de Rodrigo é realização de suas fantasias de poder, por que ele escolhe justamente uma mulher pela qual repetidamente expressa desprezo e repulsa como objeto de desejo? O próprio narrador levanta um questionamento parecido, embora em linguagem muito mais branda, e logo responde: Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem? Talvez porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além. Para ser mais do que eu, porque tão pouco sou. (LISPECTOR, 1995, p. 35). Em outro momento, ele também diz: Sim, estou apaixonado por Macabéa, minha querida Maca, apaixonado pela sua feiura e anonimato total pois ela não é para ninguém. (LISPECTOR, 1995, p. 86). Vê-se que a atração de Rodrigo por Macabéa se dá justamente por sua fragilidade e feiura, tanto pois essas características a aproximam de certo ideal de santidade, próximo da noção de reserva feminina que o historiador Phillipe Ariès descreve em seu texto “O Amor no Casamento” (1987, p. 154). Esta reserva, própria daquela ligada à esposa na tradição ocidental, também cria a noção de que Macabéa é posse única de Rodrigo, este que “tão pouco” é a ponto de se apaixonar por uma mulher que “não é para ninguém”, ou seja, apenas para ele. Se em Grande Sertão: Veredas tem-se um processo de sujeitação do narradorprotagonista (ou seja, subordinação e agência intrinsicamente conectados) por parte do patriarcado, em A Hora da Estrela há pouco mais que a pura subordinação da protagonista (que não é narradora, e é tida como mal capaz de falar), promovida por uma figura de patriarcalismo completamente desenvolvido. Não à toa, Rodrigo S.M. se posiciona em relação a Macabéa como Deus, figura patriarcal máxima da cultura ocidental. Estes dois romances exemplificam como a linguagem tem papel essencial na formação do sujeito, e como aqueles que a dominam também dominam a construção dos sujeitos, tanto si próprios quanto aqueles que não têm este mesmo poder linguístico. O objetivo último deste trabalho, além do valor do estudo literário por si só, é exemplificar como o uso da linguagem vai muito além de mera transmissão de signos linguísticos, em busca de um uso mais responsável da língua por parte daqueles que a estudam. Como conclusão, é interessante apontar outros caminhos de análise que, infelizmente, extrapolariam o escopo deste trabalho. Quanto à leitura de Grande Sertão, dois aspectos do texto seriam adições valiosas à linha de raciocínio aqui proposta: uma análise aprofundada da questão dos nomes de Diadorim (Menino – Reinaldo – Diadorim – Maria Deodorina), que levasse em consideração a questão de performance de gênero da personagem (já que se utilizou Judith Butler como fonte); e um estudo do comportamento do chefe Riobaldo em comparação com Joca Ramiro e Zé Bebelo, pois foram suas duas maiores influências e são homens de índoles muito distintas. 107 Quanto a A Hora da Estrela, teria sido interessante utilizar o conceito foucaultiano de funçãoautor como lente para entender Rodrigo S.M. a nível mais sociológico; também tirar-se-ia proveito de uma análise ainda mais minuciosa da linguagem opressiva do narrador. Mas não há tempo nem espaço para tudo, então fica o trabalho como está. 108 REFERÊNCIAS ARIÈS, Philippe. O amor no casamento. In:___ & BÉJIN, André, orgs. Sexualidades ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1987. BUTLER, Judith. Introduction. In: ___. The Psychic Life of Power: Theories in Subjection. Stanford: Stanford University Press, 1997. CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. In:___. Tese e Antítese. São Paulo: Ed. Nacional, 1978 HOOKS, bell. Understanding Patriarchy. Disponível em: <http://imaginenoborders.org/pdf/zines/UnderstandingPatriarchy.pdf>. Acesso em: 32 out. 2017 109 A repressão como impedimento: o fracasso das relações amorosas em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa e A hora da estrela, de Clarice Lispector Beatriz Rodrigues de Souza Os romances Grande sertão: veredas e A hora da estrela, de Guimarães Rosa e Clarice Lispector, respectivamente, apresentam os relacionamentos amorosos de seus protagonistas como um de seus temas principais. Interpretar a paixão dessas personagens principais por outras é importante, já que em ambos os casos ocorre o fim desse sentimento, devido às repressões e ao local inóspito para um relacionamento amoroso bem-sucedido. Para interpretá-la serão utilizadas, principalmente, teorias sobre repressões elaboradas por Maria Rita Kehl e Marilena Chauí. Viver em comunidade significa, em tese, não deixar que os interesses individuais se sobressaiam aos coletivos; as leis, criadas pelos próprios seres humanos, têm a intenção de tentar reprimir, formalmente, as paixões – sejam elas voltadas para o bem ou para o mal – que podem perturbar o bem-estar geral. Entretanto, a racionalização das emoções não impede que essas aconteçam. É inevitável, então, que uma hora ou outra, um sentimento forte surja. Esse sentimento pode ser o amor, que, dependendo de seu ambiente e de sua forma, também será alvo de recalcamento. A personagem de Lispector, Macabéa, foi reprimida por sua tia, por quem foi criada, durante toda a infância. O reflexo dessa criação, dura e carregada de ideais religiosos, permanece com a personagem até a sua vida adulta, mesmo quando já não está mais em sua terra natal, nem perto da tia. Como resultado dessa formação, Macabéa tenta manter-se no estereótipo de mulher que aceita a vida que leva e a forma como os outros se impõem sobre ela e suas vontades. Inocente, ela esperava um dia casar-se e o único homem que apareceu em sua vida foi o também nordestino Olímpico. Esse, além de ter mau caráter – ele já havia cometido um assassinato e um furto quando conheceu Macabéa – também não estava interessado de forma amorosa nela. No relacionamento com seu namorado, Olímpico, não parece existir amor entre os dois: por parte de Macabéa porque ela sequer sabe nomear o sentimento – “(...) ela não chamava de amor, chamava de não-sei-o-quê.” (LISPECTOR, 1998, p. 54) –, já que fora sempre impossibilitada de manifestar seus desejos, principalmente sexuais; e por parte dele por não aparentar nem desejo ou atração pela namorada. Também não há demonstração de carinho vindo de Olímpico; o dinheiro é, para ele, o mais importante, como exemplifica o seguinte trecho: “Você não vai entender mas eu vou lhe dizer uma coisa: ainda se encontra mulher barata. Você me custou pouco, um cafezinho. Não vou gastar mais nada com você, está bem?” (LISPECTOR, 1998, p. 110 55). Os passeios sempre gratuitos também mostram que o relacionamento, na visão dele, não valia nada. Desde o primeiro encontro dos dois, narrado de maneira sintética por Rodrigo S.M., sem receber a importância devida – mostra-se não só o perfil do narrador, mas também o quão insignificante aquele relacionamento era: Nem de longe consegui igualar a tentativa de repetição artificial do que originalmente eu escrevi sobre o encontro com o seu futuro namorado. É com humildade que contarei agora a história da história. Portanto se me perguntarem como foi direi: não sei, não estava lá. (LISPECTOR, 1998, p. 42) O ápice do que poderia haver no encontro entre dois amantes não acontece, não só por ser história da história, mas também pela escolha feita pelo narrador de comparação com um instinto animalizado. Segundo ele, os dois amantes encontram-se como “bichos da mesma espécie que se farejam” (LISPECTOR, 1998, p. 43). Dessa forma, o que poderia ser um ponto de beleza ou fuga na vida de Macabéa é, assim como todos os outros aspectos, superficial e oco. A aproximação entre os dois parece, principalmente por serem bichos que se farejam, apenas uma tentativa de encontro de iguais, não por sentimento, mas por conveniência. Sendo ambos migrantes não aceitos pela cidade sulista, a ligação com o outro seria a tentativa de recolhimento e apoio – mas nem isso eles alcançam. Há reconhecimento, mas não de forma idealizada: As poucas conversas entre os namorados versavam sobre farinha, carne de sol, carneseca, rapadura, melado. Pois esse era o passado de ambos e eles esqueciam o amargor da infância porque esta, já que passou, é sempre acre-doce e dá até nostalgia (LISPECTOR, 1998, p. 47) O namoro, então, “(...) entrara em rotina morna, se é que alguma vez haviam experimentado o quente.” (LISPECTOR, 1998, 59), porque ambos sequer conseguem relacionarse de forma profunda. Olímpico, que pretende ter um futuro brilhante, não vê perspectiva na moça – aliás, nem ela via: “ter futuro era luxo” (LISPECTOR, 1998, p. 58). Ela, por outro lado, via nele a possibilidade de integrar-se ao mundo externo, do qual nunca havia se inteirado: ele era, além de “sua goiabada com queijo” (LISPECTOR, 1998, p.43) – única paixão de sua vida –, a “(...) sua única conexão atual com o mundo (...)” (LISPECTOR, 1998, p.58). A falta de conhecimento sobre o mundo e, principalmente, sobre si é o que parece ser o principal motivo para a personagem ser privada do reconhecimento dos seus sentimentos. Segundo Kehl (1987, p. 485), quanto menos livre o indivíduo, mais moralista o superego. O superego de Macabéa, alienado, é o que faz com que ela não questione o modelo feminino, conhecido como “Modelo de Maria” (DESOUZA; BALDWIN; ROSA, 2000), imposto por uma cultura patriarcal que foi predominante no Brasil por muito tempo, desde antes da publicação do livro e que ainda se repete nos dias de hoje. De início, tem-se a impressão de que a personagem Macabéa não tem desejos, não sente atrações. Mas, na verdade, o que acontece é que sua criação impede de identificar e aceitar esses sentimentos: 111 Ela sabia o que era o desejo – embora não soubesse que sabia. Era assim: ficava faminta, mas não de comida, era um gosto meio doloroso que subia do baixo-ventre e arrepiava o bico dos seios e os braços vazios sem abraço. Tornava-se toda dramática e viver doía. (LISPECTOR, 1998, p. 45) Esse modelo, calcado em ideais religiosos, define que a mulher chamada decente é aquela assexuada – a não ser quando cumpre seu papel de esposa que faz sexo para ter filhos –, que segue a Deus. Para a personagem de Lispector, essa ideia é tão intrínseca desde o início de sua infância, que, mesmo sem entender o motivo, ela se sente culpada quando sente alguma pulsão sexual e resolve rezar para se livrar da culpa, embora não se sinta de fato assim: Ou sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada. Quando acordava se sentia culpada sem saber por quê, talvez porque o que é bom devia ser proibido. Culpada e contente. Por via das dúvidas, se sentia de propósito culpada e rezava mecanicamente três ave-marias, amém, amém, amém. (LISPECTOR, 1998, p.34) Quando se trata da parte mulher, o sexo era visto, pela sociedade da época, apenas como forma de reprodução. Por isso, Macabéa sente-se culpada de propósito, já que o sexo com o qual sonhava não era com a função de procriação. Mesmo com o namorado, sexo para ela seria considerado pecaminoso. Enquanto Olímpico era um homem viril e capaz de gerar filhos, “Macabéa tinha ovários murchos como um cogumelo cozido” (LISPECTOR, 1998, p. 58). Ela, aos olhos da cultura machista ocidental, não teria serventia nenhuma, pois não conseguiria ser mãe – papel considerado obrigatório para a mulher. Por vergonha, presença forçosa de religiosidade e autorrepressão, a personagem esconde os desejos que sente, a não ser quando os mesmos são voltados ara bens materiais que ela jamais poderia comprar: Macabéa olha vitrines de vestidos caros e coleciona anúncios. A personagem tem essa troca de objeto porque na propaganda “ (...) a domesticação e manipulação do desejo atinge momentos de perfeição.” (CHAUÍ, 1988, p. 159). É esse o único momento em que se permite sentir sem culpa, até mesmo porque essas vontades nunca serão realizadas. Até mesmo sua felicidade, que deveria ser intrínseca a ela, é fruto de ordem – vinda do rádio-relógio, através do qual ouvia anúncios e era sua única fonte de conhecimento – e não chega a ser verdadeira e profunda: “— Eles disseram que se devia ter alegria de viver. Então eu tenho.” (LISPECTOR, 1998, p. 51). Quanto à tristeza, tão inerente ao ser humano quando a felicidade, não é diferente. Como a sua falta de percepção sobre sentimentos é grande, nem o fim do relacionamento com Olímpico é motivo para sofrimento. Tanto para o bem quanto para o mal, Macabéa foi impedida de viver grandes emoções; devido ao desamparo e à alienação, ela tem uma vida estagnada, sempre presa na mesma situação: pedindo perdão aos homens que a rodeiam, sem nunca se questionar o porquê. Em Grande sertão: veredas, no momento da narração o afeto despertado por Diadorim já foi aceito; entretanto, enquanto acontecem, de fato, os acontecimentos narrados essa aceitação ainda não aconteceu. Como a afeição, na juventude do narrador e sem conhecimento da verdadeira identidade de Diadorim, é homossexual, trata-se de algo novo e assustador – como a travessia do 112 Rio de Janeiro para o Rio São Francisco –, que não será aceito no meio jagunço onde ambos convivem. É em um sonho, ou seja, uma expressão inconsciente, que Riobaldo demonstra interesse amoroso pela primeira vez por Diadorim. Segundo a crença popular, um menino que passasse por de baixo de um arco-íris tornar-se-ia menina – e vice-versa – e a cena onírica do narrador-protagonista tem justamente esse ato como tema principal. Depois de ouvir de Diadorim “Pois dorme, Riobaldo, tudo há-de resultar bem...” (ROSA, 2015, p. 53), narra o protagonista: “Noite essa, astúcia, que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele – os gostares...” (ROSA, 2015, p. 53). Há uma interessante escolha de sufixo para acrescentar à base sonho: –ice, que é o mesmo presente em “sujice”, por exemplo, palavra com a qual Riobaldo descreve a cena que acontece logo após a travessia e pressupõe uma tentativa de um rapaz de estuprar as duas crianças. Junto com a revelação do desejo já há, então, a sua negação: é inaceitável que dois homens, ainda mais jagunços, desenvolvam esse tipo de sentimento. Riobaldo deseja que pudesse gostar do amigo, mas não pode. Inserido numa obra com presença de tantas dualidades, o sentimento entre os dois não seria diferente. Além da constante indecisão de Riobaldo entre amor e amizade, a própria figura do objeto amado tem dois lados, duas formas. “O Reinaldo era Diadorim – mas Diadorim era sentimento meu” (ROSA, 2015, p. 258), narra Riobaldo; e, ao tornar-se sentimento, Diadorim atinge um nível mais sublimado; já Reinaldo – o homem por quem o amor gera nojo – parece ser quem mantém os padrões do jagunço companheiro de batalhas. Quando ouve do amado “(...) o meu nome, verdadeiro, é Diadorim... Guarda esse meu segredo; Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo...” (ROSA, 2015, p. 136), a atenção volta-se para o “sozinhos”, porque é apenas nessa condição que, para o narrador, o amor é viável. A descoberta e a aceitação do próprio sentimento apenas acontecem quando Riobaldo está só: Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. De a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – na hora. Melhor alembro. Eu estava sozinho (...) (ROSA, 2015, p. 241) Durante muito tempo, é a figura de Reinaldo que torna o sentimento de Riobaldo irrealizável; porém, o que separa, de fato, essas duas personagens é a morte de Diadorim, causada pelo grande inimigo do bando ao qual pertencem, Hermógenes; antes do trágico fim, aquele planejava contar que era mulher a Riobaldo quando a guerra acabasse, pois só assim o amor entre os dois seria aceito – enquanto Diadorim fosse também Reinaldo, o sentimento não poderia ser concretizado. Por mais que tenha consciência de que seu amor por Diadorim não seria aceito, Riobaldo não deixa de ter sentimentos. Segundo Kehl (1987, p. 480), “o reprimido não é o afeto, a energia do desejo. Reprimida é a ideia a que o desejo se associa. O afeto não se reprime”. Para Diadorim, 113 também, o desejo não é reprimido; fica cada vez mais impossível, ao que parece, refrear-se sobre contar a verdade a respeito de seu verdadeiro sexo e de seu sentimento por Riobaldo. A personagem passa a ter atitudes que demonstram que só o verdadeiro nome não é o suficiente para expor o real a Riobaldo: quando diz, por exemplo, “ — ‘Riobaldo, você sempre foi o meu chefe sempre...’” (ROSA, 2015, p. 459) A fala de Diadorim remete diretamente a uma definição de Riobaldo sobre a servidão à qual se submete quem ama: “Eu sei: quem ama é sempre muito escravo (...)” (ROSA, 2015, p. 448). Segundo Platão (2012, p. 55-56): (...) acontece de encontrar sua própria metade, os dois parceiros são maravilhosamente tocados pela amizade, a intimidade e o amor sexual, sendo dificilmente convencidos a se separarem, mesmo que seja por um momento. (...) E, no entanto, são incapazes de declarar sequer o que desejam um do outro. Essa é a situação de Diadorim: embora dê pistas sobre ser, na verdade, uma mulher e sobre sentir reciprocamente amor por Riobaldo, nunca há a verbalização direta desse afeto. O medo da não aceitação no meio que é despertado nos jovens jagunços impede que, enquanto Reinaldo, Diadorim possa anunciar aquilo que verdadeiramente sente pelo colega. No mito do andrógino, presente em O Banquete, de Platão, tem-se a ideia de que os seres eram anteriormente completos – consequentemente mais fortes – e foram divididos: “(...) éramos íntegros, e o anseio e busca por essa integridade é o que chamamos de amor.” (PLATÃO, 2012, p. 57). Riobaldo diz que “amor é a gente tentando achar o que é da gente” (ROSA, 2015, p. 297), o que remete diretamente a essa ideia de integridade trazida pelo ser amado. E, para Riobaldo, embora a fusão não seja completa, a presença de Diadorim é o suficiente; ela o faz forte e capaz de enfrentar seus medos: “ — ‘Você tem receio, Riobaldo?’ — Diadorim me perguntou. Eu? Com ele em qualquer parte eu embarcava, até na prancha de Pirapora!” (ROSA, 2015, p. 253) Entretanto, o desejo não é o suficiente para unir o amante ao ser amado, por isso, nem sempre a força proveniente de Diadorim está com Riobaldo. Impossibilitado, por uma paralisia, de ajudar o ser amado na batalha, Riobaldo assiste a toda a cena da luta de longe pela janela e vê quando Diadorim é assassinado. A dor causada pela situação é tamanha que atinge também o estado físico do protagonista. Vendo o duelo, o protagonista tem toda a tensão – fruto da repressão - presente em seu interior convertida para o seu corpo; o meio jagunço, o objeto de seu amor e a vulnerabilidade de seu próprio corpo são, juntos, os motivos para o seu sofrimento. Esse sofrimento é intensificado ao fim do combate, já que, além da morte de Diadorim, Riobaldo descobre a verdadeira identidade de seu objeto de afeição. Nesse momento, ao saber que o tempo todo se tratara de uma mulher, ele pode finalmente realizar, mesmo que fugazmente e de forma limitada, o seu desejo. “Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. (...) E eu não sabia por que nome chamar; eu me exclamei doendo: - ‘Meu amor!...’” (ROSA, 2015, p. 485). Enfim, o amor entre os dois jagunços pode alcançar o seu estado máximo. 114 A imagem do rio, sempre presente na vida dos dois, é a escolhida pelo narrador para provar que o caminho não poderia ser o mesmo “Diadorim – ele ia pra uma banda, eu pra outra (...) riachinhos que se apartam de vez (...)”. Por mais que tenham confluído, não podem seguir juntos e sofrem, contra a vontade, um afastamento, o que faz de sua união um acontecimento impossível. Também recorrente na história, há o conceito da “travessia”, última palavra do livro, que mostra a importância do caminho, mais do que a conclusão: “Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.” (ROSA, 2015, p. 63). Também a relação entre Riobaldo e Diadorim, apesar de impossível, é sobre a travessia: da infância para a adolescência, do conhecido para o desconhecido e assustador, do que é socialmente aceito para o que não é, da amizade para o amor. “Que pode uma criatura senão,/entre criaturas, amar?” pergunta Drummond em seu poema Amar. Aqui o poeta levanta uma importante questão: a de que o amor, sentimento inerente ao ser humano, é inevitável. Mas, num ambiente inóspito, não há como ser desenvolvido e, para evitar seu crescimento, esse é podado. Entre pessoas, foi inevitável para os protagonistas de Grande Sertão: Veredas e A Hora da estrela sentir amor, embora para os dois o que houve foi uma grande repressão do que estavam sentindo e a não realização de seus desejos, o que levou ao seu fatal destino. Embora as repressões estejam presente em ambos os casos, não há semelhanças na forma como acabam: enquanto a perda de Diadorim para Riobaldo gera um trauma, o término com Olímpico não tem o mesmo impacto em Macabéa. Se “jamais estamos tão desprotegidos contra o sofrimento do que quando amamos, jamais nos tornamos tão desamparadamente infelizes do que quando perdemos o objeto amado ou o seu amor.” (FREUD, 2010, p. 74), a falta de sofrimento de Macabéa no fim do relacionamento é a prova de que, de fato, não era amor o que acontecia entre ela e Olímpico. Diferente do caso de Riobaldo e Diadorim, no qual a perda do objeto de amor não só gera sofrimento; além do pesar do luto, é a falta de elaboração desse que leva à fala do narrador de Rosa. Essa é apenas a primeira das diferenças. A forma de narração do romance tem extrema importância para a análise do texto. Em Grande Sertão: veredas, as histórias são contadas pelos olhos do próprio personagem que as viveu; assim, têm-se todas as suas dúvidas, questionamentos e sentimentos quando se trata de Diadorim. Já em A hora da estrela, a narração é contada pelos olhos de um narrador intruso, que intercala sua vida com a da protagonista e se utiliza do discurso indireto livre para apresentar ao leitor os supostos – como Rodrigo coloca-se acima de suas personagens, quase como um Deus, não se pode confiar plenamente em seu relato – pensamentos da Macabéa. Já que personagens planas “(....) na sua forma mais pura, são construídas em torno de uma única ideia ou qualidade (...)” (CANDIDO, 1976, p. 62) e as esféricas têm “(...) três, e não duas dimensões; (....) portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes 115 de nos surpreender” (ibidem, p. 63), no romance de Lispector temos o primeiro tipo e, no de Rosa, o segundo. Mais do que uma única qualidade, Candido (1976, p. 62) afirma que “a personagem realmente plana pode ser expressa numa frase (...)”. A personagem Macabéa, através de um discurso indireto, é a responsável pela sua caracterização em apenas uma sentença: “sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola” (LISPECTOR, 1998, p. 36). Embora Olímpico não resuma a si mesmo numa única frase, sua personalidade gira em torno do ideal brasileiro glorificado – que é, segundo DeSouza, Baldwin e Rosa (2000, p. 490) o de hipermasculinidade. Quanto às personagens redondas, tem-se que essas têm “três, e não duas dimensões; (...) são, portanto, organizadas com maior complexidade e, em consequência, capazes de nos surpreender” (CANDIDO, 1976, p. 63). Riobaldo se modifica ao longo de todo o romance, sempre com dúvidas e questionamentos; por isso, encaixa-se nessa categoria de Candido. Com Diadorim não é diferente. Aliás, essa é a personagem mais surpreendente do romance: não se espera que o jagunço, aos olhos de Riobaldo, mais corajoso, seja, na verdade, uma mulher. Ambos trazem imagens fragmentadas que fazem o leitor achar que ainda existem características desses que não são reveladas. Macabéa, apesar de plana, também apresenta fragmentação – possível fruto do arredondamento que sofre pelos discursos indiretos do narrador de sua história. Outro fator importante quanto à diferença da recepção do amor dos protagonistas, é a sua maneira de perceber o mundo à sua volta. Riobaldo, apesar de fazer parte do mundo jagunço onde essa percepção é raridade, é detentor de diversos tipos de conhecimento, não é analfabeto, por exemplo, e é conhecedor de si mesmo, capaz de questionar as mazelas ao seu redor. É essa capacidade o motivo que o permite sublimar o amor por Diadorim – através de sonho, da fala e quando diz “Diadorim é minha neblina” (ROSA, 2015, p. 32), por exemplo: Sublimação (...) significa a transformação do estado sólido para o estado gasoso da matéria. (...) Quando o estado de concretude das paixões – que querem possuir, fundir, devorar, matar, aniquilar... – se transforma numa outra expressão, mais leve que o ar, que é a expressão simbólica desses mesmos desejos. (KEHL, 1987, p. 482) Com Macabéa não é isso que acontece, pois ela é alienada pela repressão e, segundo Kehl (1987, p. 482), “a repressão não cega o sujeito apenas para si mesmo: ela o faz cego para o mundo, onde existe o risco permanente de ele deparar com algum representante daquilo que ele não pode nem ao menos saber que quer”. Por isso que também não pode haver sublimação em seu relacionamento com Olímpico: é necessário conhecimento para que essa canalização ocorra. Segundo Chauí (1988, p. 77), “(...) entende-se por repressão sexual o sistema de normas, regras, leis e valores explícitos que uma sociedade estabelece no tocante a permissões e proibições nas práticas sexuais genitais (...). São definidos explicitamente pela religião, pela moral, pelo direito (...)”, ou seja, embora de naturezas distintas é, de fato, a repressão que une as duas formas de amor dos romances. Para Macabéa, a repressão vem da imagem da mulher ocidental ideal que, conforme Ariès (1987), a sociedade da época acreditava que a cada dez mulheres, apenas uma 116 teria desejos e essa seria considerada imoral. A tia, então, criou-a com cocorutos para evitar que a menina virasse “uma dessas moças que em Maceió ficavam na rua de cigarro aceso esperando homem” (LISPECTOR, 1998, p. 10). Essa espécie de doutrinação continua, também, quando encontra o namorado Olímpico e quando ele reprime a curiosidade dela, como em “— Isso lá é coisa pra moça virgem falar? E pra que serve saber demais? O mangue está cheio de raparigas que fizeram perguntas demais.” (LISPECTOR, 1998, p.55). Embora buscasse conhecimento, o que poderia salvá-la da vida de alienação sem perspectivas, Macabéa não era incentivada a isso e, de acordo com o que aprendeu, achava melhor acatar as ordens ao invés de continuar tentando aprender. No caso de Riobaldo, é a homossexualidade que impede o relacionamento. Segundo Ariès (1987), também na história ocidental, o homossexual teve uma vida de clandestinidade, justamente pela não aceitação dessa prática – muitas vezes ligada a maldições. Inserido nesse contexto que não é exclusividade do mundo jagunço, mas nele é muito presente, Riobaldo não aceita a condição de gostar de outro homem. Segundo Kehl (1987, p. 481), um dos destinos das paixões é a transformação em seu oposto. Então, além da sublimação permitida pela fala de Riobaldo – que gera o diálogo-monólogo de Grande sertão: Veredas – também está presente essa forma de canalização: “de Diadorim eu devia de conservar um nôjo” (ROSA, 2015, p. 261). Embora sejam impostas e recebidas de formas diferentes, as repressões que Macabéa e Riobaldo sofrem são o tópico comum entre os dois romances. A maneira como essas são refletidas no corpo – com o conceito de “amor-ódio” de Adorno e Horkheimer, por exemplo – poderia ser mais aprofundada. O estudo da narração, embora abordado no trabalho, também é um tópico que pode ser, futuramente, mais estudado: a presença das relações entre as personagens dos romances difere-se, principalmente, pela diferença de foco narrativo. Pode-se estudar e criar hipóteses sobre até que ponto a presença de Rodrigo S. M. entre Macabéa e o leitor e a relação direta desse com Riobaldo interferem na percepção do amor para os protagonistas. REFERÊNCIAS ARIÈS, Philippe. O amor no casamento. In:___ & BÉJIN, André, orgs. Sexualidades ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 153 -162. ARIÈS, Philippe. Reflexões sobre a história da homossexualidade. In:___ & BÉJIN, André, orgs. Sexualidades ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 77 – 92. CANDIDO, Antonio. “A personagem do romance”. In: ROSENFELD, Anatol et alii. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1976. p. 53-80. CHAUÍ, Marilena de Souza. Repressões nossas conhecidas. In: ___. Repressão sexual. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 77-187. 117 DESOUZA, Eros; BALDWIN, John R.; ROSA, Francisco Heitor da. A construção social dos papéis sexuais femininos. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 13, n. 3, 2000. p.485-496. FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Porto Alegre: L&PM, 2010. KEHL, Maria Rita. A psicanálise e o domínio das paixões. In: NOVAES, Adauto (Org.). Os sentidos da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. p. 469-496. LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. PLATÃO. O banquete. São Paulo: Edipro, 2012. ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. 118 O tempo da evocação em Grande sertão: veredas e A hora da estrela: Breve análise sobre o prenúncio da morte e a busca pelo sentido do ser no mundo Vitoria Cordeiro Belinato “(...) a linguagem e a vida são uma coisa só (...) o idioma é a única porta para o infinito.” Guimarães Rosa INTRODUÇÃO Em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, e em A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, para além de serem contadas histórias, parecem existir questionamentos, em acordo com uma intenção fundamental de buscar respostas para o que é o ser humano, qual o sentido de sua vida e de sua morte. Ao longo das construções fragmentárias dos romances, ocorrem antecipações sobre os seus respectivos finais, em particular, as desconstruções da vida das personagens Diadorim e Macabéa. Este trabalho propõe a tarefa de investigar a relação de tais antecipações com as reflexões sobre o “eu” e o “mundo” que os romances trazem, partindo do princípio de que, para melhor compreender a escrita de Rosa e Lispector, é preciso associar os temas às formas. Como bases para a investigação, o trabalho se utiliza da teoria de Benedito Nunes em “Literatura e Filosofia em Grande sertão: veredas”; dos capítulos “A forma e a morte”, “Vida em erros” e “Narrar o estranho” da dissertação de mestrado de Jaime Ginzburg, “A desordem e o limite: a propósito da violência em Grande Sertão: Veredas”; do artigo de Berta Waldman “Armadilha para o real (Uma Leitura de A Hora da Estrela)”; e de ideias de Freud sobre o sentimento de perda. “desconstrução” aqui aparece no sentido de morte, já que, como o trabalho mostrará, enquanto a narrativa está sendo construída, esses personagens estão caminhando em direção ao seu fim. 1 O PRENÚNCIO DA MORTE E O “EU” NO MUNDO Grande Sertão: Veredas e A Hora da Estrela são caracterizados pela busca do “eu” por elementos de misticismo, pela “essência absoluta que vive por trás da aparência que vemos” (ROSENFELD, 1969. p. 91). A narrativa do romance moderno não segue o tempo cronológico e abandona a ideia da mimese como forma de criação artística. Os dois objetos de estudo deste trabalho se aproximam por não sustentarem a ideia da linguagem como forma de comunicação e por atualizarem o passado e o futuro no presente, fundindo os três tempos no que se pode chamar de “experiência psíquica”. A fragmentação das obras se dá também pela interferência dos pensamentos dos narradores a respeito do que é contado, do que se contou ou do que ele contará mais adiante. O romance de Guimarães Rosa inicia logo com um travessão, trazendo a ideia de que o livro é um diálogo. Porém, Riobaldo, sendo o narrador, também faz uma espécie de monólogo, já que o “senhor” (interlocutor) não tem falas – o que indica a primeira ambiguidade da obra. A oralidade simulada e o destaque da função poética na obra – em vez da função referencial que se espera no romance realista – indicam a importância que a linguagem tem nessa narrativa. Riobaldo, ao narrar sua história, apresenta quatro diferentes focos narrativos: a ênfase na narração (que corresponde aos eventos passados); o discurso descritivo; o apelo ao interlocutor; e os comentários sobre os eventos, sobre o “senhor” ou sobre a vida. A fim de se cumprir o propósito inicial, o trabalho se atém mais às passagens da obra em que há o predomínio da ênfase na narração e às passagens com comentários. Mas Diadorim estava a suaves. - “Olha, Riobaldo” - me disse - “nossa destinação é de glória. Em hora de desânimo, você lembra de sua mãe; eu lembro de meu pai…” Não fale nesses, Diadorim… Ficar calado é que é falar dos mortos… Me faltou certeza para responder a ele o que eu estava achando. Que vontade era de pôr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocultando, para não ter de tolerar de ver assim o chamado, até que ponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoecido, tão impossível.(ROSA, 2015, p. 49-50). O trecho acima se dá no início do livro, mas está longe de ser o início cronológico da vida de Riobaldo e Diadorim. Os dois estão sob o comando de Medeiro Vaz, na busca por Hermógenes para vingar a morte de Joca Ramiro; Riobaldo está de sentinela e recebe Diadorim, que já passara por seu processo de luto pela morte do pai e agora aparece confiante sobre a vitória do bando. Não se sabe, porém, o que Riobaldo de fato responde. Em discurso indireto livre o Riobaldo-narrador reproduz Riobaldo-narrado: “Não fale nesses, Diadorim.... Ficar calado é que é falar dos mortos…”(ROSA, 2015, p.59). Aqui parece haver a relação dos “mortos” com o pai de Diadorim e a mãe de Riobaldo, mas pelo trecho que se segue, é possível associar esse pensamento à morte do próprio Diadorim e a como Riobaldo não fica calado, mas conta o que viveu com ele na jagunçagem para o compadre Quelemém e para o “senhor”. “Que a vontade era de pôr meus dedos (...) nos meigos olhos dele”(ROSA, 2015, p.59) confirma a suspeita acima, pois o trecho se refere ao final do livro, quando Riobaldo vê Diadorim morto “o chamado”(ROSA, 2015, p.50) - em cima da mesa com os olhos abertos. Outro trecho em que se pode notar o prenúncio da morte de Diadorim é a cena em que Otacília fala para Riobaldo que o nome de uma flor era “Casa-comigo” e ele chama por Diadorim “com remorso” (ROSA, 2015, p. 162): E Diadorim? Me fez medo. Ele estava com meia raiva. o que é dose de ódio - que vai buscar outro ódios. Diadorim era mais ódio do que amor? Me lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. Como foi que não tive um pressentimento? (...) ver o corpo claro e virgem de moça, morto à mão, esfaqueado tinto todo seu sangue, e os lábios da boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa moça que o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim… E tantos anos já se passaram. (ROSA, 2015: 163-164). “Como foi que não tive um pressentimento?” (ROSA, 2015, p.163) é o destaque do trecho por esclarecer a antecipação da morte de Diadorim que se relaciona diretamente com a digressão de Riobaldo na descrição seguinte do “corpo claro e virgem de moça (...) esfaqueado” (ROSA, 2015, p.163). O ciúmes de Diadorim por Riobaldo era de conhecimento do narrador, segundo ele mesmo, desde a época narrada. A cena que se segue do trecho acima é o pedido de Diadorim para que nenhum dos dois “botasse mão em nenhuma mulher” (ROSA, 2015, p.164), mas Riobaldo não cumpre e sente raiva do ciúme. O sentimento de raiva de Riobaldo se confunde com o amor proibido, assim como o medo se confunde com a culpa (pelo amor homoafetivo, pela morte ou pelo comando do Urutú-Branco), como se vê nas citações a seguir: “De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha culpa? Eu tinha culpa? Eu era o chefe. O sertão não tem janelas nem portas.” (ROSA, 2015: 403). “Eu queria que Diadorim não se descuidasse. (...) Eu comandava? Um comanda é com o hoje, não é com o ontem. (...) A morte de cada um já está em edital. Dia de minha sorte. O que digo e desdigo; o senhor escute.” (ROSA, 2015: 471). Grande Sertão: Veredas é como nas citações acima: um romance impregnado pela culpa de um amor tido como “sujo” e impregnado também pelo medo da morte do objeto amado. O amor nunca se concretiza, mas a morte sim. A busca por um culpado na primeira citação acima, além de se relacionar com o sentimento de desejo homossexual, também se relaciona com o fim de Diadorim. “Eu era o chefe”, “Eu comandava?” e “Dia de minha sorte” (ROSA, 2015, p.403) são referências ao momento do duelo de Diadorim com Hermógenes em que Riobaldo está na janela e paralisado. Diadorim foi quem o mandou para dentro, para olhar de cima e não estar diretamente no combate no Paredão. Riobaldo foi, convencido de que era seu trabalho como chefe. Assim como cenas antes ele havia ficado em cima de seu cavalo na batalha do Liso do Sussuarão, convencido de que ele estava sendo mais corajoso e devia ser o mais corajoso por ser o chefe. Em outro momento, Riobaldo reflete sobre o porquê de ter encontrado Reinaldo na infância e o reencontrado na jagunçagem: Por que foi que eu conheci aquele Menino? O senhor não conheceu, compadre meu Quelemém não conheceu, milhões de milhares de pessoas não conheceram. O senhor pense outra vez, repense o bem pensado: para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o Menino? (...) Os Gerais desentendem de tempo. (ROSA, 2015: 100). “Para poder matar o Hermógenes é que eu tinha conhecido Diadorim, e gostado dele, e seguido essas malaventuranças, por toda a parte?” (ROSA, 2015: 439). Há uma inquietude no narrador por ter amado um homem que, na verdade, era uma mulher e que esse homem, fonte de desejo, tenha sido morto pelo jagunço que era seu alvo como líder. Em “(...) para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com o Menino?” (ROSA, 2015, p. 100) há o questionamento sobre o Rio São Francisco ter dividido a vida do Riobaldo em dois. A imagem do duplo é muito presente na obra, principalmente pela imagem de Diadorim – que é homem e mulher, amor e ódio, vítima e culpado, vida e morte. Diadorim se apresenta como enigma e tentar decifrá-lo é caminhar para a questão primária sobre o significado do ser humano. “Tudo o que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na paridade. (...) Ah, pacto não houve. Pacto? (...) O pacto de um morrer em vez do outro - e o de um viver em vez do outro?! Arrenego.” (ROSA, 2015: 258-259). 2 A temporalização presente em todo o romance se faz pela narrativa ser recordação de Riobaldo. O processo de memória dele funciona como meio de adquirir conhecimento, de elaborar no presente o que ocorreu no passado. Em “Comigo, as coisas não têm hoje e ant’ontem amanhã: é sempre. Tormentos. Sei que tenho culpas em aberto. Mas quando foi que minha culpa começou?” (ROSA, 2015 p. 124) é possível perceber que o tempo é da ordem da subjetividade e que a questão da culpa está tão presente em Grande Sertão: Veredas quanto a reflexão sobre o que sua vida e a vida e morte de Diadorim significaram, significam. O pacto faz Riobaldo questionar a existência do diabo e também pontua o que é importante para o personagem. Se todo pacto significa a troca, e nesse caso, necessariamente, a força (física e política) pela vida, Riobaldo recebe a liderança, consegue a morte de Hermógenes e o fim da jagunçagem, mas perde o que tem de mais importante: não a sua, mas a vida de Diadorim. Essa perda não é algo simples de se aceitar, então Riobaldo se interroga, apresentando traços melancólicos. A superação dessa perda e o entendimento do porquê o fim da jagunçagem se deu da forma que se deu pede a narrativa do velho fazendeiro Riobaldo, que conversa com o “senhor” numa tentativa de cura. A propósito de A Hora da Estrela, o raciocínio do romance moderno como narrativa descontínua permanece, mas por interferência de um narrador que se posiciona como autor e reflete seu processo criativo. Segundo Berta Waldman (1980), a obra é uma espécie de labirinto, ou literatura em camadas que se confundem, pois existe um narrador, Rodrigo S.M, que é uma personagem de criação de Clarice, mas também é autor da personagem Macabéa; e existe Clarice, que é autora do romance, mas que também pode ser relacionada com a personagem Macabéa. Essa teia que se forma procura resultar num estado de consciência sobre o ato de narrar e o de criar vida – fictícia, mas que é também vida primária. “De uma coisa tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu.” (LISPECTOR, 1998: 19). O romance clariceano tratado neste trabalho tem a criação literária como algo sagrado. Rodrigo S.M se coloca como Deus, dizendo que se Macabéa tivesse conhecimento dele, rezaria para ele. Macabéa, porém, é uma personagem caracterizada pelo narrador por sua falta de conhecimento, pelo seu “não-saber” (LISPECTOR, 1998. p.29), ao mesmo tempo em “temporalização” se refere ao tempo da evocação da lembrança estudado por Benedito Nunes em “Literatura e Filosofia em Guimarães Rosa” e esse termo será analisado com mais cuidado nas próximas páginas. 2 que ela mesma se define por ser “datilógrafa e virgem” (LISPECTOR, 1998, p.33) e gostar de coca-cola. Essa autodefinição diz muito sobre a personagem e sua trajetória no romance. Macabéa está num entrelugar, entre a vida pública e a privada. “Então defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para esta não acabar.” (LISPECTOR, 1998: 32). “(...) e preciso falar dessa nordestina senão sufoco. Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela.” (LISPECTOR, 1998: 17). Constantemente falando sobre o viver ralo de Macabéa, Rodrigo S.M predomina na obra, seja porque Macabéa tem dificuldades com a linguagem, seja porque ele é um narrador autoritário e não demonstra compaixão e empatia pela personagem. Ele diz que essa história é “ao deus-dará” (LISPECTOR, 1998, p.33) e que não tem culpa de qualquer que seja o final, mas como na obra clariceana a palavra é cifra, o leitor deve desconfiar do narrador. A história é ao deus-dará e Rodrigo S.M é o próprio Deus, portanto, único criador de toda trama. A vida e a morte de Macabéa passam pelas mãos do narrador, que escreve enquanto espera a morte, diferente de Macabéa que não vive, segundo ele, porque não espera nada, mas quer viver, sem saber pra quê. O narrador se sente sufocado e acusado por Macabéa: ele já sabe sobre sua vida e, quando ele diz não saber pode-se perceber um falseamento de sua consciência sobre seu poder de destruição. Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia como se antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem os agudos sibilantes. (LISPECTOR, 1998: 29) O trecho acima explica o título da obra, prenunciando o acontecimento final: a hora da estrela é a hora da morte. O trecho abaixo também, que acontece mais para frente no romance, depois da consulta de Macabéa com a cartomante (personagem que foi ponto alto de sua existência): Saiu da casa da cartomante aos tropeços e parou no beco escurecido pelo crepúsculo - crepúsculo que é hora de ninguém. Mas ela de olhos ofuscados como se o último final da tarde fosse mancha de sangue e ouro quase negro. Tanta riqueza de atmosfera e recebeu o primeiro esgar da noite que, sim, sim era funda e faustosa. Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada. E mudada por palavras - desde Moisés se sabe que a palavra é divina. Até para atravessar a rua ela já era outra. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria. (LISPECTOR, 1998. 79) Nota-se que para o narrador a morte de Macabéa já está prevista. O narrador demonstra que Macabéa está nesse espaço-tempo que é “hora de ninguém” (LISPECTOR, 1998, p.64) – Macabéa sendo, então, a personagem que é estrela e ninguém – e seus olhos são como “o sol que morria”(LISPECTOR, 1998, p.64). Rodrigo S.M se mostra cruel com relação à protagonista por lhe dar uma “esperança tão violenta”(LISPECTOR, 1998, p.64) e lhe engravidar de futuro – quando o leitor já sabe que a moça tinha os ovários “murchos como um cogumelo cozido” (LISPECTOR, 1998, p.50). No parágrafo em que se narra a dúvida de Macabéa sobre atravessar a rua, pois já estava mudada, é possível enxergar intertextualidade com a travessia de Grande Sertão: Veredas. Riobaldo diz que o Rio São Francisco partiu sua vida em duas partes e que “o real se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 2015, p.85). Tanto um quanto o outro estão vivenciando uma transformação nessas cenas. Macabéa está prestes a morrer; Riobaldo descobre sua paixão e sexualidade (o prazer), ao mesmo tempo em que inicia, ali naquele momento, sem saber, sua trajetória do terror, do enfrentamento da morte. A narração como processo hermenêutico aparece em Grande Sertão: Veredas através da busca pelo sentido no que é estranho, sendo possível enxergar, nos trechos abaixo, que tanto o narrador desse romance, quanto o narrador em A Hora da Estrela constroem caminhos reflexivos com suas memórias. “Só não inicio pelo fim que justificava o começo - como a morte parece dizer sobre a vida - porque preciso registrar os fatos antecedentes” (LISPECTOR, 1998: 12). (Se estou demorando um pouco em fazer acontecer o que já prevejo vagamente, é porque preciso tirar vários retratos dessa alagoana. E também porque se houver algum leitor para essa história quero que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar mas deve haver um réu.) (LISPECTOR, 1998: 39). “Mas primeiro, antes, teve o começo. E aí teve o antes-do-começo; que o que era - a gente vindo, vindo.” (ROSA, 2015: 444). Mas essa construção não é completamente consciente por parte de Riobaldo e Rodrigo S.M. As lembranças de Riobaldo, se analisadas segundo Freud (em “Lembranças Encobridoras”), podem mostrar que a digressão do narrador tem a ver com a repressão de seu desejo por Diadorim. Segundo Freud, o conteúdo mais frequente das primeiras lembranças de uma pessoa é algum relacionado ao medo, à vergonha e à dor. O momento da infância de Riobaldo que é narrado é justamente seu encontro com Reinaldo. Faz sentido o processo que Freud explica de conflito – repressão – substituição, pois se reprime uma memória dolorosa e ocorre a substituição dela por outra – por exemplo, a imagem de Otacília, que não é um amor proibido e nem objeto de destruição. No caso de Rodrigo S.M há uma perturbação pelos momentos em que ele se identifica com Macabéa, porque ele julga e impossibilita a vida dela, por desprezo. O narrador do romance clariceano trabalhado aqui, em sua tarefa de pensar a criação literária e a vida, deve matar a protagonista. A perda do objeto, por um impulso destrutivo de Rodrigo, que quer revelar a verdade sobre algo maior sem nem ele mesmo saber o que é, demonstra o caráter instável, narcísico e de autopunição no narrador. O afastamento do “eu” que narra e da personagem Diadorim no romance de Rosa se dá, segundo Riobaldo, por Diadorim ainda estar perto demais dele e a memória do que está perto demais é mais falha do que aquilo que está mais distante. Freud explica isso em “Lembranças Encobridoras” quando diz que existe “relação direta entre a importância psíquica da experiência e sua retenção na memória” (p.333). E a importância psíquica de Diadorim é, como já foi visto, conturbada e ambivalente. “Sei que estou contando errado, pelos altos. Desemendo. Mas não é por disfarçar, não pense.” (ROSA, 2015:. 90). Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas - de fazer balancê. de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado. (ROSA, 2015: 158). Fica evidente no trecho acima a memória involuntária de Riobaldo narrador que coloca o interlocutor num impasse lógico entre a verdade e a mentira. A contradição do “falar falso” e do “desmentir” em relação à confiança que se tem da veracidade da história e a ambiguidade do “desmentir” em relação ao “falar falso” ou à história toda caracterizam o que Freud diz quanto às lembranças falsificadas pelo “eu” que recorda elaborando a impressão original das cenas do “eu” que atuou: “A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.” (ROSA, 2015: 91) Nas palavras de Benedito Nunes: a recordação leva Riobaldo ao fundo de si mesmo, levando ao dúbio conhecimento do que foi e daquilo em que se tornou, em meio ao vago discernimento do que poderia ter sido. É que a lembrança se converte em reminiscência, recordação obscura através da qual, paradoxalmente, pode ver com súbita clareza o que importa. (NUNES: 2013: 184-185). Compadre Quelemém diz a Riobaldo que ele conta sua narrativa por causa de uma falta. Clarice, por sua vez, na “Dedicatória do autor”, misturada com a imagem de Rodrigo S.M, diz: “Trata-se de livro inacabado porque lhe falta a resposta.” (LISPECTOR, 1998, p.17). Alguns títulos possíveis para “A Hora da Estrela”, como “A culpa é minha”, “Uma sensação de perda” e “Eu não posso fazer nada” levam a compreender que o livro é sobre faltas. “Narrar é perigoso”, como diz Benedito Nunes, assim como “Viver é perigoso” para Riobaldo, porque não se pode narrar nem viver tudo. Algo falta. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho aproximou as obras de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, e de Clarice Lispector, A Hora da Estrela, por serem narrativas descontínuas, fragmentadas pela intromissão de seus narradores, que refletem sobre a construção da memória que eles têm dos fatos ocorridos e antecipam o futuro a partir do passado em algumas passagens. Entretanto, a motivação de cada narrador para a digressão é diferente: enquanto Riobaldo é afetado pela memória involuntária, pelas lembranças encobridoras anteriormente colocadas, Rodrigo S.M se coloca como Criador e, portanto, ele tem dificuldade em contar a história sobre Macabéa porque é sua a responsabilidade da morte e da vida miserável da protagonista. As obras acabam se assemelhando também pela luta das narrativas ora a favor, ora contra uma consciência por parte dos narradores a respeito do papel deles ao contarem suas respectivas histórias. A ambiguidade presente nos romances os torna enigma e mistério, já que o leitor se coloca como quem vai decifrar a narrativa ao mesmo tempo em que deve só contemplar o que está sendo contado e como está sendo contado. Rosa e Lispector se aproximam também pela literatura da falta. Em Grande Sertão: Veredas e em A Hora da Estrela, o sofrimento pode ser analisado seguindo a ótica freudiana: sofrimento em relação ao corpo - pelo sentimento de vergonha com a nudez, pelo disfarce, pela vulnerabilidade e pela falta de consciência sobre a finitude da vida em matéria; o sofrimento a partir do mundo externo - o perigo das viagens dos jagunços e o perigo da cidade grande que não dá suporte básico aos migrantes nordestinos como Macabéa; também o sofrimento das personagens por conta das relações humanas – o “amor sublime” entre Riobaldo e Diadorim é impossível, a relação de Diadorim com os jagunços é de iminência de morte – o que de fato ocorre quando há o encontro com o Hermógenes, e Macabéa não consegue se relacionar com ninguém – é abandonada pelo namorado e sua amizade com Glória não é verdadeira. O que este trabalho traz como conclusão é que a forma da narração é instrumento de análise e interpretação, ao mesmo tempo em que ela mesma deve ser analisada e interpretada por contar também sobre as experiências de vida e por buscar sentido nessas experiências. Nas duas obras em questão, a narrativa procura uma revelação sobre o passado e sobre o futuro dele, que nada mais é do que o presente. A morte em ambos objetos de estudo é a causa e a consequência na narração: ela já aconteceu no enunciado e por isso se inicia a enunciação. A morte é fim, começo e ocorre ao longo dos romances, nas reflexões dos narradores sobre a culpa. Se não fosse pelo espaço-tempo que contorna a tarefa deste trabalho, a temática da morte poderia ser aprofundada com relação à questão religiosa e mística em ambas as obras, bem como poderia ser analisada a possibilidade da morte do indivíduo (e o fim do romance) ser uma metonímia da destruição social - levando em conta o contexto em que Guimarães Rosa e Clarice Lispector escrevem. “Amor sublime” é o que causa prazer e terror, como visto no prefácio escrito por Márcio Seligmann-Silva, em FREUD, Sigmund. O Mal-estar na Cultura. Porto Alegre: L&PM, 2011. 3 REFERÊNCIAS CANDIDO, Antonio. O homem dos avessos. In: __. Tese e antítese. São Paulo: Ed. Nacional, 1978. FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Porto Alegre: L&PM, 2011. . Luto e Melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2012. . Lembranças Encobridoras. In: Imago, 1974. p.333-354. . Obras completas. v. 2. Rio de Janeiro: GINZBURG, Jaime. A desordem e o limite: a propósito da violência em Grande Sertão: Veredas. Dissertação (Mestrado em Letras) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 1993. LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. NUNES, Benedito. Literatura e filosofia: Grande sertão: veredas. In: que é de Rosa. Rio de Janeiro: DIFEL, 2013. . A Rosa o ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. In: São Paulo: Perspectiva, 1969. . Texto/contexto. WALDMAN, Berta. Armadilha para o real. Remate de Males. V.1. Campinas: Unicamp, 1980.