e‐ISSN 2175‐1803
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e
conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton Cândido
Santos Maynard1
Entrevistado
Dilton Cândido Santos Maynard é professor do Departamento de
História da Universidade Federal de Sergipe (DHI/UFS), professor do
Programa de Pós‐Graduação em Educação da Universidade Federal de
Sergipe (PPGED/UFS) e Professor colaborador no Programa de Pós‐
graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (PPGHC/UFRJ). Tutor do Programa de Educação Editorial (PET
História). Membro da Câmara Básica e da Câmara Superior de
Assessoramento Técnico e Avaliação da Fundação de Amparo à
Pesquisa e à Inovação do Estado de Sergipe ‐ FAPITEC. Participou como
Avaliador do Processo de Avaliação no PNLD (2010,2011, 2012, 2013) e
foi Coordenador Adjunto (2014 e 2015). Sua formação acadêmica
consta com graduação em Licenciatura Plena em História pela
Universidade Federal de Sergipe, Mestrado em Sociologia pela
Universidade Federal de Sergipe, Doutorado em História pela
Universidade Federal de Pernambuco e Pós‐Doutorado em História
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sua experiência na área
de História tem ênfase em História do Tempo Presente, atuando
principalmente nos seguintes temas: tempo presente, memória,
cibercultura, cotidiano, extremismos, Segunda Guerra Mundial e
internet. Além disto, é editor dos Cadernos do Tempo Presente, revista
vinculada ao Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/UFS/CNPq).
Entrevistadores
Daniel Alves Boeira
Doutorando em História na
Universidade do Estado
de Santa Catarina
Brasil
dboeira@yahoo.com.br
Felipe Salvador Weissheimer
Doutorando em História na
Universidade do Estado
de Santa Catarina
Brasil
felipe.s.w@hotmail.com
Entrevista concedida na cidade de Florianópolis em: 14/10/2014
Para citar esta entrevista:
MAYNARD, Dilton Cândido Santos. História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e
conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton Cândido Santos Maynard. [Entrevista
realizada em 14 de outubro, 2014]. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐
298, set./dez. 2015. Entrevistadores: Daniel Alves Boeira e Felipe Salvador Weissheimer.
DOI: 10.5965/2175180307162015284
http://dx.doi.org/10.5965/2175180307162015284
1
Durante o II Simpósio Internacional História do Tempo Presente, ocorrido em Florianópolis entre 13 e 15 de
outubro de 2014, o pesquisador se dispôs a conceder esta entrevista para Tempo e Argumento na qual
expôs suas interpretações sobre História do Tempo Presente e as relações da abrangência deste campo
historiográfico associado com as chamadas novas tecnologias com a conjuntura sociopolítica do Brasil e
do Mundo. A entrevista foi transcrita por Sandra W. Silveira.
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.284
o que é a chamada História do Tempo Presente e como a caracterizamos. A História do
Tempo Presente tem essa proximidade temporal do objeto de estudo com relação ao
pesquisador, ou é apenas um campo teórico‐metodológico específico que surge, a partir
& Argumento
Tempo e Argumento ‐ Um dos interesses de quem pesquisa na História é conseguir perceber
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
dos debates com relação à memória?
Dilton C. S. Maynard ‐ Eu acho que uma boa caracterização da História do Tempo Presente
seria inicialmente pensá‐la como uma história que analisa processos inacabados.
Contudo creio que esse termo “inacabado” não seja o mais adequado ou inconcluso.
Talvez precise ser relativizado porque assim poderíamos pensar que algo como, por
exemplo, a Segunda Guerra Mundial não se encaixaria em História do Tempo Presente.
Quando falo inacabado me refiro às tensões que o presente experimenta e a partir delas
surge a ânsia de investigação. O professor Francisco Carlos Teixeira deu o exemplo
sobre como na França, escreveu‐se uma História do Tempo Presente da Revolução
Francesa. Quer dizer, no momento em que se celebra o bicentenário, para aquela
sociedade esses combates em torno da memória nacional se tornam centrais, mas são
disputas que tratam de duzentos, trezentos anos atrás, às vezes, até mais. Então, a
História do Tempo Presente, na minha concepção, é uma perspectiva histórica que
trabalha, considera, concebe esses processos inconclusos e atua numa espécie de
paridade entre uma visão estrutural, mas ao mesmo tempo considerando as ações
humanas individuais, sem que caiamos numa espécie de personalismo. Não se trata
disso, mas ela preocupa‐se em recuperar as experiências dos indivíduos, se pensarmos
dentro de um universo globalizado. Ao mesmo tempo, a História do Tempo Presente
atua na perspectiva que (Marc) Bloch e (Lucien) Febvre elucidaram, onde os
historiadores deveriam realizar um diálogo contínuo entre presente e passado. A
própria ideia de que somente o passado é objeto da História é estranha. Quer dizer,
pode servir ou ser interessante para um antiquário, mas para nós não. Qualquer
pesquisador, não apenas o historiador escreve a partir do seu presente. A diferença
entre os que trabalham com História do Tempo Presente em relação a outros
historiadores é que nós produzimos uma História cujo passado ainda não tem um
futuro, ou seja, ele não está totalmente fechado. Isso constrói verdades precárias,
frágeis, mas necessárias.
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.285
diagnóstico em História é permanente. Isso não deve nos levar a um relativismo
absurdo, por isso é importante que nós tenhamos em vista as limitações do nosso ofício
e da nossa explicação. Então, eu acredito que a História do Tempo Presente atende a
& Argumento
Não se trata de oferecer um resultado definitivo, pois no meu entender nenhum
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
isso. Em minha opinião não é um corte temporal que resolve, que define, nem é um
objeto. Eu sou, por exemplo, crítico dos que afirmam, o Pierre Nora coloca isso em O
Retorno do Fato (1976), ou pelo menos alguns leem dessa forma, como se a emergência
dos meios de comunicação de massa fosse a grande marca da História do Tempo
Presente. Não me parece ser isso, ou seja, é possível realizar uma História que não
compartilhe essa rubrica e trabalhar com televisão, por exemplo. Não é a
particularidade da fonte ou do corte cronológico, se é de 1989 a 1945, ou de 1989 a 2001,
não está nesse campo, a especificidade reside nessa tentativa de manter um diálogo
com o passado e na noção de que estamos lidando com processos que não se
encerraram, e sim, apesar das críticas, com uma grande demanda social. O que nós
estamos vivendo já há algum tempo com os debates em torno, por exemplo, das
heranças da ditadura e toda a polêmica que se levanta num país como o Brasil em torno
do que foi o período ditatorial mostra a necessidade dos historiadores se voltarem para
esse campo. Nós nos posicionamos para ele inquietos com aquilo que o passado nos
insinua, então, eu creio que a História do Tempo Presente caminha nesse sentido.
Tempo e Argumento ‐ Em termos metodológicos do campo da História do Tempo Presente
e da Sociologia, que no caso o senhor tem formação nessa área, existe alguma
diferenciação que poderias destacar, em relação a como a sociologia trabalha com essa
perspectiva da História próxima, que vivenciamos, e a História do Tempo Presente? É
possível delimitar uma fronteira clara entre História e Sociologia, em termos
metodológicos e teóricos?
Dilton C. S. Maynard ‐ Durante a minha dissertação, percebi que o meu olhar era histórico
e não sociológico sobre o meu objeto e isso gerou uma angústia, pois eu só conseguia
produzir no máximo a sociologia histórica. Não creio que o que eu fiz na dissertação foi
um trabalho clássico de sociologia. Justamente porque eu trabalhei com Estado Novo e
rádio. Essa insegurança só abrandou quando um professor economista chegou para
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.286
economista, meu trabalho, minha tese, é em geografia, se você for ler, é um economista
falando de geografia”. Curiosamente, depois que eu fui trabalhar como professor de
História Contemporânea percebi que minha abordagem se aproximava muito mais da
& Argumento
mim e disse “desestressa, você é um historiador e jamais vai deixar de ser. Eu sou
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
sociologia do que de outra área. Após esse fato comecei a observar o diálogo entre os
dois campos e acredito que não é um problema para nós historiadores. Os sociólogos
estão com seus métodos já amadurecidos e eles têm muita certeza do que eles fazem. O
grande problema entre nós, historiadores, é que nós somos um campo de trabalho que
busca elementos de outros campos e, ao mesmo tempo, queremos uma especificidade.
Essa situação acredito que é quase esquizofrênica, pois em alguns momentos eu vou
utilizar a sociologia, mas eu não sou sociólogo, eu vou beber na antropologia, vamos
pensar o Robert Darnton, mas eu não sou antropólogo, eu vou beber na linguística, mas
eu não sou linguista. Nós vivemos esse problema porque somos obrigados a construir
um imenso repertório de erudição, de conhecimento de diversos campos e ao mesmo
tempo temos que ter a nossa especificidade. Acredito como historiador que a diferença
com os sociólogos reside no fato de que nós não temos uma preocupação apurada com,
por exemplo, fornecer diagnósticos futuros. Quer dizer, o sociólogo tem um cuidado
maior em oferecer interpretações que levem à construção de perspectivas ou ao menos
de tendências futuras. Nós não devemos ter essa preocupação, ou pelo menos, não
deve ser a nossa prioridade.
Ao mesmo tempo, os sociólogos ‐ e aí eu acho que esta é uma crítica que nos é feita e
nós precisamos pensar sobre isso ‐ têm uma preocupação maior com o resultado do seu
trabalho frente ao mundo que os cerca. Faz‐se um trabalho sobre, por exemplo,
comunidades agrárias ou sobre grupos vulneráveis na Sociologia e esse trabalho deve
ter um peso e o ideal é que ele forneça elementos para algum tipo de intervenção, no
sentido de resolver aquele problema. Os historiadores muitas vezes se cercam na
academia e acham que por ser um trabalho historiográfico não tem essa incumbência. É
verdade, nós não somos obrigados a resolver os problemas da ditadura, não estou
falando isso, nem a solucionarmos os problemas do transporte urbano ou nada nesse
sentido. Mas eu penso, por exemplo, como estávamos conversando antes de iniciarmos
a entrevista de quantas pessoas retornam para os seus depoentes a partir daquilo que
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.287
para estar presente, sendo que a história dele também que está ali, pois aquela pessoa
ajudou você a construir o trabalho e, no entanto, o historiador não se sente obrigado a
convidá‐la para o lançamento do livro. A produção sobre trabalhos em torno da
& Argumento
fizeram, ou seja, você termina a sua tese de doutorado e nem convida o seu depoente
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
chamada cultura popular é imensa no Brasil, mas os livros são caros. Perguntamos:
quantos desses royalties dos direitos desses livros vão para as pessoas que foram fruto
da investigação? Parece‐me que os sociólogos têm uma visão menos afastada, embora a
perspectiva deles pareça ser mais utilitária, ou seja, o trabalho tem que oferecer um
produto ou pelo menos indicar caminhos. Nós, historiadores, podemos terminar nosso
trabalho dizendo: “não concluo nada e não sei se consegui fazer”. Isso não reprova você
em uma banca na História, na Sociologia isso pode acontecer.
Tempo e Argumento ‐ Poderíamos pensar que os sociólogos, nessa perspectiva, têm um
engajamento, uma responsabilidade social maior que o historiador?
Dilton C. S. Maynard ‐ Os dois têm a mesma responsabilidade. A diferença é que os pares
nas Ciências Sociais, Antropologia, Psicologia, Sociologia, são mais cobrados. Nós,
historiadores, temos sim uma responsabilidade muito grande. Peter Burke fala num
texto dele que na França do (século) XVIII, havia um funcionário, uma figura, chamada
lembrete, que batia à porta das pessoas para lembrá‐las de dívidas, ele afirma que “a
função do historiador é isso, ele precisa lembrar à sociedade de coisas que a sociedade
muitas vezes quer esquecer”. O que eu critico é a postura que muitas vezes nós tomamos
de manter um grande isolamento frente à sociedade, nesse caso falando do Brasil. Por
quê? Percebemos e ao mesmo tempo ficamos extremamente ofendidos, quando um
jornalista, ou um literato produz uma história que é mais lida do que os nossos
trabalhos. Ora, se os jornalistas de ofício, que não dominam as regras do nosso campo
estão produzindo trabalhos melhores é motivo para pensarmos porque isso ocorre.
Então, a responsabilidade é a mesma, a questão é como você lida com ela. Acredito que
a academia precisa pensar mais seriamente sobre isso, acerca do nosso papel e até que
ponto deixamos os outros responderem por nós, como mencionei “não, eu sou
historiador, isso ainda não acabou, então isso eu não me meto”. No caso, há milhares de
pessoas na rua gritando, e você não vai interferir. Por isso, para mim, minha experiência
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.288
isso muito claramente. É fascista a declaração de um garoto pedindo que matem um
paciente, que ele faz questão de dizer que é negro, que o sacrificassem pelo bem da
maioria e por prevenção. A afirmação é fascista, não preciso ter milhares de pessoas
& Argumento
me direciona para isso. Por quê? Esses grupos que eu tenho estudado me mostraram
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
fazendo isso para perceber. E ao mesmo tempo, como historiador, não posso ver isso e
simplesmente me abster de narrar e de criticar. Acredito que nós devemos ter
consciência disso. O que se construiu durante um tempo, e nesse sentido o período da
ditadura é fundamental para entendermos isso, é a ideia de que não devemos nos
envolver, que deve haver um recuo confortável. Por que eu afirmo que o período da
ditadura é fundamental? Porque se aproximar do presente era doloroso, você poderia
parar numa delegacia. Por isso que naquele contexto a história oral no Brasil trava e só
consegue se desenvolver plenamente depois da redemocratização. Porque as pessoas
não queriam dar depoimento. A minha mãe, se eu falasse para ela que vinha para Santa
Catarina dar um depoimento, ela iria se assustar, “meu Deus, vão prender o meu filho”,
eu já nessa idade. Por quê? Convencionou‐se a ideia de que dar depoimento, prestar
esclarecimento é o primeiro caminho, o primeiro passo a você ir para cadeia. Então, o
campo da história oral fica retraído no Brasil, enquanto em outros países, eles têm outro
comportamento. A grande questão seria se nós pensássemos: “tudo bem, e porque
depois da redemocratização nós continuamos insistindo nisso?”. Parece‐me que, por
exemplo, os livros didáticos no Brasil incorporam rapidamente as demandas do
presente. Eu analisei os livros didáticos que estão chegando às escolas esse ano e eles já
possuem as manifestações de 2013. Estes livros, uma parte deles, são para o ensino
médio, são assinados por grandes pesquisadores das nossas academias. Portanto a
minha pergunta é: por que se fala do presente num livro didático e não nos cursos de
graduação? Por que deixar isso para a tal história contemporânea, que é a minha
disciplina, a ser vista no curso no penúltimo período? Em um semestre você tem que
ministrar tudo e mais um pouco. Então, a minha responsabilidade como docente é igual.
O ponto é o quanto nós enquanto uma corporação e é assim que os historiadores
acabam se colocando, nos posicionamos frente a, por exemplo, o governo investir 1.500
reais por mês em uma pessoa e ao final do período ela entregar 20, 30 laudas, receber
um título e isso acabar como sendo algo muito bom. Tudo bem, mas o que se pode fazer
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.289
ofensivas, mas para alguns pode ser.
& Argumento
com o seu trabalho? O quanto ele contribui? Acho que essas perguntas não são
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
Tempo e Argumento ‐ O senhor mencionou sobre as manifestações e como a História do
Tempo Presente é uma História que está ligada a um processo histórico inacabado.
Gostaríamos de saber como percebes a cibercultura articulada nesse movimento político
que surgiu no ano de 2013 e como que isso está reverberando nas eleições desse ano (2014).
Dilton C. S. Maynard ‐ Algumas coisas precisam ser observadas. A primeira delas é que
houve um esforço muito grande da mídia brasileira para colar esse movimento a outros
como, por exemplo, o da Tunísia ou o da Espanha, e mesmo ao “Ocupe Wall Street”. A
primeira coisa que devemos observar é que são contextos ligeiramente diferentes, quer
dizer, não dá para colocar no mesmo patamar as manifestações de junho no Brasil e as
manifestações da Espanha, por exemplo. A Espanha tinha entre os jovens, no momento
em que o movimento dos indignados começou com 50,6 % de desempregados enquanto
o Brasil tinha 12%. A Espanha tinha 25% da população economicamente ativa
desempregada quando o movimento aconteceu. O Brasil tinha taxas que giravam em
torno de 6%. Para começo de conversa o contexto econômico é bastante diferente. Na
Espanha víamos placas pedindo trabalho, aqui pedíamos saúde e educação. Então, as
agendas são diferentes. Ao mesmo tempo, houve certo exagero em atribuir aos meios
de comunicação, sobretudo às redes sociais, a origem das manifestações. Tanto que
houve toda articulação esse ano elas não ocorreram. Por quê? Porque as redes sociais,
por mais que a internet seja fascinante, são produtos da ação humana. De nada adianta
ter 1000 pessoas confirmando que irão às ruas no Facebook, se essas as mesmas
efetivamente não comparecerem. Foi isso que aconteceu. Quer dizer, o papel das redes
sociais no Brasil e também em outros países foi de ajudar a articular e a divulgar, mas
eles não podem ser esses espaços, não podem ser eleitos como os instrumentos, ou os
causadores, ou melhor, os provocadores disso. É algo equivalente a você dizer que
alguém mata a outro porque assiste televisão ou assiste Chuck Norris e sai matando.
Esquecemos de observar o contexto em que isso ocorre. O Movimento Passe Livre
antecede isso. Quando a imprensa coloca, e curiosamente os jovens compram a ideia de
que o gigante acordou finalmente esse país acordou e isso é uma derrapagem histórica
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.290
de pessoas acomodadas e porque um grupo foi às ruas, agora nós não somos. Ora,
pensemos o que foi a Revolta da Vacina, ou o movimento de Canudos ou o Contestado.
Se existe uma coisa que o brasileiro não é, é acomodado. O fato de nós não termos
& Argumento
colossal. Por quê? Porque se constrói falsamente a ideia de que nós somos uma nação
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
nossas agendas respeitadas e incorporadas pelo universo da política pelos governos,
não quer dizer que sejamos condizentes. Dessa maneira, se constrói a ideia de que
graças ao Facebook, por exemplo, provocou‐se todo um movimento. Isso é errado
quando falamos do Brasil ou do Egito, por exemplo, que por mais influxo que ele tenha
inclusive os organizadores das páginas nas redes sociais no Egito colocaram isso: a
grande vantagem que elas têm, ou tiveram, é que foram o último lugar em que os
agentes da repressão foram observar, e nesse ponto concordo. Wahel Ghonim, que foi
um dos líderes do movimento no Egito, diz algo como, “eu fui preso, e tudo, eles
esqueceram de me perguntar sobre as minhas atividades no Facebook”, que era a partir
dali onde ele articulava as ações, mas não foi o Facebook que provocou. Existe uma
demanda social, uma tensão que levará ao uso da rede e não ao contrario como se tem
colocado. Isso ficou muito claro este ano, quando vimos pessoas que no ano passado
diziam que não haveria Copa do mundo, que eram contra, usando a camisa da seleção e
pagando ingressos caríssimos para assistir os jogos, as mesmas que protestavam. E ao
mesmo tempo, tivemos na rede uma série de tentativas de articular movimento e não
funcionou. Então, acredito que não podemos atribuir à internet, às redes sociais e à
televisão um papel acima do que ela pode oferecer, pois são ambientes que só existem
com a intervenção humana, e com um diálogo forte com a sociedade que os cria. Se isso
não existir, cai‐se no vazio e esse ano sentimos isso muito claramente. Alguns
candidatos, como, por exemplo, o Marcelo Freixo tem no Facebook e no Twitter um
apoio fenomenal, no entanto, seu desempenho eleitoral não é o mesmo. É preciso
compreender que não há essa transferência imediata, mecânica, como muitas vezes a
televisão, e mesmo a mídia impressa coloca quando se trata desse universo. Penso que
uma coisa que pode ajudar a entender isso é: como ainda há uma leitura muito
mitificada do que é a internet e como as pessoas ainda a tratam quase como algo
sacralizado, onde todo tipo de interpretação acaba sendo possível. Eu brinco com os
meus alunos que a internet ainda é como a Assíria, quando você não consegue explicar
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.291
comum”, como a pessoa não sabe nada da Assíria, vai acreditar. Eles riem muito por
conta disso. Mas a internet ainda é assim, vista dessa forma, como um ambiente onde
você diz que acontece e as pessoas acreditam.
& Argumento
nada, vencer ninguém no argumento, você diz assim: “mas entre os assírios, já era
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
Tempo e Argumento ‐ Esse ambiente que falas é considerado como uma ferramenta para
essa articulação política, ou uma nova forma de articulação política? Como é que ficaria?
Por que é um ambiente que não tem, de certa forma, controle?
Dilton C. S. Maynard ‐ Sim, exatamente. Quer dizer, é uma ferramenta, é uma forma nova,
porque é um meio novo. Creio que a diferença está numa coisa que é fundamental para
se entender porque ela ganha essa preponderância. Na internet você se torna produtor
de informação. Não adianta, por exemplo, capturar uma emissora de televisão, de
qualquer maneira eu terei uma emissora de televisão, mas se cancelarem o sinal dela eu
paro de falar para as massas, ok? Mas com a internet, que foi projetada para isso, sua
estrutura foi pensada para isso, pois quando ela surge no contexto da Guerra Fria depois
que o (satélite) Sputnik vai ao espaço. Nesse contexto o governo americano queria dar
uma resposta aos russos, então pensaram em uma rede de comunicação que fosse
imbatível. Se caísse uma bomba em Washington, como é que os Estados Unidos iriam
continuar conversando? Ora, o jeito era tentar unir os sinais de satélite, telefone, ao
mesmo tempo, criando vários polos de irradiação e, portanto uma rede. Dessa forma,
no lugar de ter um polo que me forneça informação, vou e detono aquele polo, assim eu
tenho vários polos, e os nós vão se formando e quando um quebra eu posso me
conectar com outro e se o satélite falhar tem o telégrafo, portanto a ideia deles era
essa. Ora, a questão toda é que hoje um garoto de casa pode fornecer informação e isso
já é uma coisa fundamental. Ou seja, a (TV) Globo diz uma coisa e esse garoto diz outra.
E através do seu blog, do seu videolog as pessoas se comunicam, isso é um fator. O
segundo fator que eu acho importante é o baixo custo. No caso de Londres, por
exemplo, dos chamados distúrbios londrinos, quando a população do subúrbio se
revoltou (e isso também me parece ter acontecido em Paris), curiosamente tudo
relacionado à violência policial, contra negros ou descendentes de imigrantes, isso é
uma coisa. Qual é a marca? O uso da mensagem de texto entre celulares, por quê? Isso
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.292
perguntavam qual é a minha operadora. Como sou muito desatento, não entendia por
que. Na verdade, é porque a partir dos planos podemos ligar (ou mandar mensagens de
texto) gratuitamente de um para o outro. Ora, isso sim é um elemento importante,
& Argumento
tem baixo custo. Hoje em dia, entendo mais disso. Lembro que meus alunos me
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
porque esse baixo custo faz com que as pessoas acabem explorando muito, esses
recursos. No caso do Egito, por exemplo, os twitters permitiam saber se existia uma
barricada à frente, por exemplo, e isso também foi utilizado no ano passado. Se
considerarmos que estamos falando de uma parcela da sociedade que não tem dinheiro
para altas contas de celular, entendemos que ele possui uma vantagem tática. Noto que
o expediente é clássico, da reunião política, a ferramenta não é clássica. E ao mesmo
tempo, como você passa a ter acesso a muito mais informação e essa informação não é
filtrada, não é redirecionada, você começa a desconstruir uma série de ícones da
informação. Quer dizer, a ideia de que a rede Globo perdeu em média 26% do seu
percentual de audiência nos últimos anos, e a internet tem um papel fundamental nesse
sentido, é muito interessante. Se considerarmos que em cada ponto, se não me engano,
possui 40.000 televisores, esse dado eu preciso checar, mas se eu não me engano é isso,
quer dizer, cada ponto são 40.000 aparelhos a menos para Globo. Se nós percebermos
que vivemos num país em que as pessoas marcam encontros, atividades sociais
somente antes ou após o Jornal Nacional vemos que nossa vida é condicionada se eu
encontro você na hora do Globo Esporte ou na hora do Fantástico, ou seja, nós
marcamos o nosso tempo pela programação global e essa mudança ela é extremamente
importante. Então, é sim uma ferramenta nova. Agora, a concepção de reunião política,
bem, já vimos isso antes. Acredito que nós já vivemos outras experiências antes em que
as pessoas se juntaram, a diferença é que você tem essa imediatez, esse baixo custo e a
imensa capacidade de falar para muitos. Isso é o novo. Mas não devemos transformar
isso em uma espécie de panaceia, na chave para explicar todos os efeitos desse
movimento.
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.293
entre os celulares, que teve várias reverberações, inclusive pela grande mídia, inicialmente
condenando e depois enaltecendo essas grandes reuniões contra uma série de questões.
Como é que o senhor analisa, como historiador do tempo presente, o posicionamento
& Argumento
Tempo e Argumento ‐ O senhor falou do ano passado, a respeito dessa tática dos twitters,
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
desse setor na esquerda brasileira, e se é que realmente existiu essa influência ou não na
esquerda, com as consequências eleitorais desse ano? Por que isso está sendo muito usado
no discurso eleitoral entre um ou outro candidato?
Dilton C. S. Maynard ‐ Exato, quer dizer, as manifestações do ano passado deixaram a
ideia de que era preciso mudar na política. E os nossos políticos leram de uma maneira
bastante brasileira, em que sentido? Mudar na política, ou o novo na política significou,
para uma parte do país, colocar os próprios filhos para concorrerem aos cargos. O
próprio esforço da revista Veja em criar um líder dessas manifestações, mostra a força
que elas tiveram. Acredito que uma parte da agenda que foi posta o ano passado é
muito importante para que o país pense o que foram as manifestações, e talvez o fato
dos conflitos acontecerem tenha feito com que alguns segmentos passassem a discutir
basicamente vandalismo ou não vandalismo. Mas, se formos pensar, por isso fiz questão
de dizer: “nós não devemos comparar com esses países como se fosse uma repetição”.
Ora, nós não estávamos às ruas, as pessoas que estavam às ruas, não por conta da
necessidade de emprego. As pessoas pediam melhor educação, mais saúde, mais
segurança. Isso é fantástico! Se pensarmos que nesse país, há algumas décadas, tinha
uma Argentina inteira de desempregados. As pessoas não estavam pedindo emprego,
esse para mim é um aspecto bastante importante, que acabou passando despercebido.
Porque a grande questão é: se destrói ou não destrói o patrimônio público ou
patrimônio privado. Os alvos, em sua maioria, eram bastante específicos, como por
exemplo, os caixas do Itaú. Quer dizer, essas coisas não foram exploradas, pois houve
um esforço maior em criminalizar uma série de coisas ou discutir a ação dos black blocs,
um grupo que aparece na internet em 1999 e que, desde então, já estão presentes na
literatura sobre ativismo virtual. Percebo que ficamos muito mais nisso e esquecemos
de observar outras coisas como, por exemplo, a diversidade de solicitações. Havia
pessoas pedindo o fim do exame da OAB, pedindo para assistir o último episódio da
Caverna do Dragão, ou seja, vemos o quanto isso foi diversificado e é complexo de
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.294
mostra que não há uma conexão tão forte quanto se esperava. A eleição ou a reeleição
do Jair Bolsonaro e de figuras como o Marco Feliciano, ou o próprio Tiririca, mostra que
a tal mudança não chegou às urnas como se esperava, ela chegou à retórica dos
& Argumento
analisarmos como uma coisa da esquerda. Parece que o resultado das eleições este ano
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
políticos. A eleição presidencial está passando por isso. Houve todo um discurso sobre
mudança e nova política, porém nós voltamos para uma polarização e apoio de uma
candidata que se dizia completamente distinta dos demais e representante de um grupo
que ela mesma criticou. Quer dizer, talvez os eleitores esperassem que não houvesse
justamente qualquer sinalização em nenhuma das tendências quando, na verdade
houve. Com os mesmos acordos, com as mesmas coisas que até junho do ano passado
eram comuns, foram criticados e se esperava que não voltassem, mas os mesmos
acordos estão visíveis. Para ilustrar o que estou falando é interessante observar que
essas manifestações tiveram um papel muito importante em fazer a direita brasileira
mostrar a cara, de uma maneira que não mostrara durante muito tempo. Ela foi às ruas
pessoas com agendas extremamente conservadoras, inclusive pedindo intervenção
militar. Essas mesmas pessoas tentaram fazer isso no sete de setembro, mas elas não
tiveram apoio. Houve manifestação na internet? Houve. Volto a dizer, que você tem na
internet, por quê? Porque isso não é algo que consiga aproximar as pessoas como a
gente espera. Então, essas manifestações foram importantes para que a direita
conseguisse dar para si uma cara que ela não tem. Em que sentido? Quando tiro uma
foto com um pedido de intervenção militar, e tenho milhares de pessoas atrás de mim,
pareço milhares, só que na verdade, essas pessoas estão ali pelo fim da Caverna do
Dragão, pelo fim do exame da OAB, pela melhoria do transporte escolar, quer dizer,
esse universo de agendas foi capturado por alguns grupos, ou pelo menos alguns
tentaram capturar. No momento em que as pessoas começaram a bater em outras,
manifestantes que estavam, por exemplo, com bandeiras do PSOL, do PSTU, caímos em
uma linha bastante perigosa, que é: manifestante batendo em manifestante e exigindo
os seus direitos e tirando os dos outros, usando a violência como expediente político e
isso é bastante complexo. Ao mesmo tempo, um discurso que também ganhou força foi
o dos “políticos não me representam” e “nenhum partido me representa”. Por isso que
eu acho que esse discurso é perigoso mesmo para esquerda. Por quê? Porque quando
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.295
tenhamos instituições deficientes, problemáticas, políticos corruptos, coisas desse tipo,
é importante que elas funcionem e que eles sejam deslocados, mas nós não podemos
dizer que o sistema e a democracia não servem e que devemos optar por uma ditadura,
& Argumento
fazemos isso colocamos por terra o agir político, o fazer político. Por mais que
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
como inclusive isso acabou aparecendo. Então, para mim, as manifestações do ano
passado, independente se a esquerda tentou se apropriar ou se foi lida desse jeito, elas
deixam um sabor agridoce, no sentido de que é complicado quando você vê garotos de
17 anos defendendo o retorno dos militares como se fosse a solução para o país. Não é
complicado ver um deputado homofóbico ou qualquer senhor dos seus 60 anos, pois
eles terão, talvez, mais uns 20 anos de vida útil. Agora, um garoto de 17 anos que está
começando a universidade, seja no curso de Medicina ou de História, bem, aí temos um
problema muito sério, e eu acho que nós, como historiadores, temos em sala de aula,
um papel mais relevante ainda, que é o de tentar desmontar isso rápido.
Tempo e Argumento ‐ E é justamente nesse sentido a próxima pergunta: questões que
envolvem o presente. Qual seria o papel do historiador, referente a essas questões éticas e
de engajamento político que andam acontecendo nesses últimos anos?
Dilton C. S. Maynard ‐ Às vezes creio que existe uma confusão entre o historiador
engajado, o historiador comprometido com o seu tempo e o historiador panfletário.
Bom, o historiador, o antropólogo, se é que se pode dizer, o sociólogo, o matemático
panfletário, bem, tem que procurar outra coisa para fazer. É diferente você ser
engajado, de você ser socialmente responsável. Nós temos sim o papel importante de
mostrar para nossa sociedade que, por exemplo, a ditadura não foi uma coisa boa. Eu
não posso simplesmente me eximir disso porque eu sou um pesquisador. Porque no
meu entender, para começo de conversa, isso coloca em suspensão o seu próprio
trabalho. Nenhuma pesquisa em história é feita, ou pelo menos não deveria ser feita
sem amor por aquilo que se estuda. O amor pelo estudo não quer dizer o amor pelo
objeto ou por aquilo que o objeto defende. Quando eu digo amor, não é você amar o
fascismo, ou você amar a ditadura. Eu digo você fazer aquilo porque você acredita que
daquela maneira está contribuindo para a sociedade em que vive. Nesse sentido, é amor
pela profissão. Eu realmente acredito que nós temos um papel dentro da sociedade que
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.296
trabalho. Mas nós devemos ter essa preocupação. Então, eu acredito que o historiador
não pode se furtar. Qualquer um que lê a Estranha Derrota (1940) se emociona com o
empenho do Marc Bloch de tentar entender por que a França cai. Quando Bloch, afirma,
& Argumento
é bastante importante. Se não somos reconhecidos por esse papel, isso aí é outro
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
por exemplo, que só requisita a sua identidade de judeu diante do antissemita. Acho que
esse movimento realizado por ele mostra onde está o engajamento. Como pesquisador,
não irei calar a minha boca para uma pessoa que venha com argumentos intolerantes,
dizer que, por exemplo, a ditadura foi um tempo bom, ou que os donos de escravos
deveriam ser indenizados porque o governo brasileiro aboliu a escravidão. Como
historiador eu tenho o compromisso real, moral de mostrar que existe ainda uma clara
situação de disjunção social. É mais ou menos o que alguns neonazistas tentam fazer
quando se fala do holocausto: dizer, por exemplo, “ah, mas nos campos de concentração,
o que você tinha eram plantações, na verdade, eram pomares”. Realmente, havia
pomares, plantações, festas, mas na casa do capo, na casa do SS e isso não se estendia
para o restante da população. E mesmo que houvesse, não justifica matar milhões de
pessoas de maneira sistemática. Então, como historiadores, não devemos simplesmente
ver esses fatos e voltarmos para aquela ideia machadiana de uma torre de marfim, da
qual nós como intelectuais observamos a vida passar. Acredito que alguns acabam
tomando essa posição e abrem espaço para absurdos que vemos diariamente: um
político que vai à televisão chamar a atual presidente de terrorista. Quando você chama
Dilma Rousseff de terrorista e você não diz que o Estado brasileiro foi terrorista, quer
dizer, que tivemos terrorismo de Estado, você realiza um deslocamento histórico
perverso. Quando você diz que, por exemplo, um programa como Bolsa Família é
incentivar vagabundo, você realiza um deslocamento histórico perverso, você distorce a
história. Então, creio que, como historiadores, nós temos, sim, a função de não ficarmos
de braços cruzados diante dessas realidades. Isso não tem relação com assumir a
bandeira do PT, do PSTU, do PSDB, não se trata disso, não se trata de ser panfletário,
mas de ser responsável. Mesmo não sendo historiador, você não pode ver uma pessoa
sendo espancada e ficar de braços cruzados.
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.297
Tempo
História do Tempo Presente ‐ Simbioses, tessituras e conectividade. Uma entrevista com o professor Dilton
Cândido Santos Maynard
Daniel Alves Boeira, Felipe Salvador Weissheimer
& Argumento
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC
Programa de Pós‐Graduação em História ‐ PPGH
Revista Tempo e Argumento
Volume 07 ‐ Número 16 ‐ Ano 2015
tempoeargumento@gmail.com
Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 7, n. 16, p. 284 ‐ 298, set./dez. 2015.
p.298