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v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 v. 11, n. 21, jan../jun. 2012 MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012 1 EDITORIA Luiza Horn Iotti Universidade de Caxias do Sul, Brasil FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL Presidente: Roque Maria Bocchese Grazziotin Vice-presidente: Orlando Antonio Marin UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL Reitor: Prof. Isidoro Zorzi Vice-Reitor: Prof. José Carlos Köche Pró-Reitor Acadêmico: Prof. Evaldo Antonio Kuiava Coordenador da Educs: Renato Henrichs CONSELHO EDITORIAL DA EDUCS Adir Ubaldo Rech (UCS) Gilberto Henrique Chissini (UCS) Israel Jacob Rabin Baumvol (UCS) Jayme Paviani (UCS) José Carlos Köche (UCS) – presidente José Mauro Madi (UCS) Luiz Carlos Bombassaro (UFRGS) 2 CONSELHO EDITORIAL Artur Henrique Franco Barcelos Universidade Federal do Rio Grande FURG, Brasil Benito Bisso Schmidt UFRGS, Brasil Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos Unisinos, Brasil Fabio Vergara Cerqueira Universidade Federal de Pelotas, Brasil Gunter Axt Unilassalle José Martinho Remedi Universidade de Santa Cruz do Sul, Brasil Marilia Conforto Universidade de Caxias do Sul, Brasil Natalia Pietra Méndez Universidade de Caxias do Sul, Brasil Rejane Barreto Jardim Universidade Federal de Pelotas, Brasil Renato Pinto UFPE / MAE-USP, Brasil Roberto Radünz UCS e Universidade de Santa Cruz do Sul, Brasil CONSELHO CONSULTIVO Alexandre Hecker Makenzie/IHGSP Angelo Trento Universidade de Nápoles, Itália Arno Wehling Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Brasil Chiara Vangelista Università degli Studi di Genova, Itália Cicero Galeno Lopes Unilasalle Claudio Batalha Unicamp Eliana Rela Universidade de Caxias do Sul, Brasil Heloísa Pedroso de Moraes Feltes Universidade de Caxias do Sul, RS, Brasil Isabel Bilhão Universidade de Passo Fundo, Brasil Ironita Adenir Policarpo Machado UPF, Brasil José Octávio Serra Van-Dúnem Faculdade de Direito/Universidade Agostinho Neto / Angola José Miguel Arias Neto Universidade Estadual de Londrina, Brasil Marcelo Bittencourt Universidade Federal Fluminense, Brasil Núncia Santoro de Constantino PUCRS, Brasil René E. Gertz PUCRS/UFRGS, Brasil Silvio Marcus de Souza Correa Universidade Federal de Santa Catarina Tania Regina De Luca Unesp Vania Beatriz Merlotti Herédia UCS/RS, Brasil Zilda Márcia Gricoli Iokoi USP MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 EDUCS MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012 3 Capa: Thanara Schönardie Foto da capa: Fernando Bueno (detalhe da fachada de um prédio na Praça da Alfândega – Porto Alegre – RS) Editoração: Traço Diferencial Revisão: Organizadores e autores Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Universidade de Caxias do Sul UCS – BICE – Processamento Técnico M592 Métis : história & cultura / Universidade de Caxias do Sul – v. 1. n. 1 (2002). – Caxias do Sul, RS : Educs, 2011. v. 11, n. 21 (jan./jun. 2012) Semestral Disponível também: World Wide Web (http://www.ucs.br/etc/revistas/ index.php/metis) ISSN impresso 1677-0706 1. História. 2. Cultura. I. Universidade de Caxias do Sul. CDU: 94 Índice para o catálogo sistemático: 1. História 2. Cultura 94 008 Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária Márcia Servi Gonçalves – CRB 10/1500 Direitos reservados à: EDUCS – Editora da Universidade de Caxias do Sul Rua Francisco Getúlio Vargas, 1130 – CEP 95070-560 – Caxias do Sul – RS – Brasil Ou: Caixa Postal 1352 – CEP 95020-970 – Caxias do Sul – RS – Brasil Telefone / Telefax: (54) 3218 2100 – Ramais: 2197 e 2281 – DDR: (54) 3218 2197 Home page: www.ucs.br – E-mail: educs@ucs.br 4 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 Sumário Apresentação / 9 DOSSIÊS / 11 Notas sobre os historiadores e suas fontes / Notes on historians and their sources / 13 Tânia Regina de Luca O Direito Constitucional como engenharia social no Brasil da independência / The Constitutional Right as social engineering in Brazil during the period of independence / 23 Arno Wehling O Judiciário e a dinâmica do sistema coronelista de poder no Rio Grande do Sul / The judicial power and the dymanic of coronelist power system in the Rio Grande do Sul / 39 Gunter Axt O Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul e as fontes judiciais / The Public Archive of the State of Rio Grande do Sul and the Judicial Sources / 89 Aline Nascimento Maciel Camila Lacerda Couto Centro de Memória Regional do Judiciário: possibilitando pesquisas e preservando a história de Caxias do MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012 Sul/RS / The Regional Archive of the Judicial System of the County of Caxias do Sul: making research possible and preserving the history of Caxias do Sul/ RS / 101 Luiza Horn Iotti Fabrício Romani Gomes Memória e suas implicações na vida cotidiana: análise teórica / Memory and its implications in everyday life: theoretical analysis / 115 Roberta Lopes Augustin Sérgio Augustin A fotografia e o estatuto de “prova” na investigação de paternidade: processos da Comarca Caxias / The photography and the law of “evidence” on the paternity investigation processes in the county of Caxias / 131 Anthony Beux Tessari Um processo histórico em um processo judicial / A case history in a judicial process / 153 Thamyris Conceição Macedo Caroline Barreto Oliveira O Juízo dos Órfãos de Porto Alegre como fonte para a história social / The Juízo dos Órfãos of Porto Alegre as a source for social history / 167 José Carlos da Silva Cardozo 5 Possibilidades de pesquisa no Centro de Memória Regional do Judiciário: inventários e arrolamentos nas primeiras décadas do séc. XX / Possibilities of research in the Regional Center of Judiciar y Memory: inventories in the firsts decades of the 20th century / 183 Paulo Afonso Lovera Marmentini O Poder Judiciário em Rondônia / The power of legal state of Rondonia / 193 Nilza Menezes Condenados à forca: a escravidão e os processos judiciais no Brasil / Sentenced to be hanged: slavery and legal proceedings in Brazil / 209 Olgário Paulo Vogt Roberto Radünz Corpo e maternalismo nos saberes jurídico e criminológico / Body and maternalism in Legal and Criminological knowledge / 229 Rosemeri Moreira Atti di un processo per stupro: o interrogatório de Artemísia Gentileschi no olhar do gênero / Atti di un processo per stupro: the interrogation of Artemisia Gentileschi under the view of gender / 245 Cristine Tedesco A paixão como atenuante: crimes passionais em Caxias do Sul nos anos 30 (séc. XX) / The passion as 6 attenuation: crimes of passion in Caxias do Sul during the 1930’s / 261 Luiza Horn Iotti Fabrício Romani Gomes A conferência “O Divórcio” Jornal Forense de Porto Alegre, do ano de 1932 / The conference “The Divorce” – Journal of Forensic Porto Alegre the year 1932 / 281 Marília Conforto Gilberto Jacques Gonçalves O Código Penal de 1890 e a construção das relações de gênero, no julgamento dos processos-crime de homicídios, entre 1900 e 1940, na Comarca Caxias / The Penal Code 1890 and the construction of gender relations at trial processes crime of homicide, between 1900 and 1940, at Comarca Caxias / 297 Aquéle Hendz Jônatas Herrmann Dornelles Amásias, esposas e prostitutas: da situação de vítimas ao papel de transgressoras / Mistresses, wives a n d p r o s t i t u t e s : f r om victims to transgressors / 315 Daysi Lange Poder Judiciário e fronteiras de gênero: conflitos nos processos de investigação de paternidade da Comarca Caxias (1900-1950) / 327 Natalia Pietra Méndez MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 Seduzidas e desonradas: o discurso nas fontes judiciais / Seduced and dishonored: the speech in judicial sources / 341 Elizete Carmen Ferrari Balbinot Feminino e masculino: a presença das mulheres no Poder Judiciário de Rondônia / Male and female: the presence of women in power of legal state of Rondônia / 359 Nilza Menezes A quadrilha de falsários: imigrantes judeus nas ações policiais e judiciais da era Vargas/ A gang of forgers: Jewish MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012 immigrants in police action and lawsuits in the age of Vargas / 369 Cristine Fortes Lia A força do comércio na expansão urbana da Região Colonial Italiana / The power of trade in urban expansion in the Italian Colonial Zone / 381 Vania B. M. Herédia As “Sete maravilhas” do Município de Caxias do Sul / The seven “wonders” of the city of Caxias do Sul / 399 Daniela Barbosa Maino Normas editoriais / 411 7 8 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 Apresentação O ano de 2011 marcou os 10 anos de criação do Centro de Memória Regional do Judiciário IMHC/UCS; em função disso, foi organizado o I SEMINÁRIO DO CENTRO DE MEMÓRIA REGIONAL DO JUDICIÁRIO: 10 ANOS DE HISTÓRIA com a finalidade de refletir, conhecer, debater e divulgar a produção historiográfica produzida em todo o país a partir da utilização de fontes judiciais. Este número da Métis: história e cultura divulga as palestras e os trabalhos apresentados nos seminários temáticos do evento, formando um dossiê em torno da memória, da justiça e do poder. O primeiro grupo de textos traz como eixo comum a discussão sobre a história do Judiciário. A respeito, Tânia Regina de Luca discute as diferentes acepções atribuídas às noções de documentos e fontes históricas, a partir do século XIX. Demonstrando como o conceito de Constituição foi compreendido no Brasil, no período anterior à independência, Arno Wehling trabalha com o Direito Constitucional como uma ideia de “engenharia social” a partir da qual se modificariam Estado e sociedade. Gunter Axt propõe uma reflexão sobre a relação entre a Justiça e as especificidades da dinâmica do sistema coronelista de poder, durante a República Velha, no Rio Grande do Sul. Os dois trabalhos seguintes tratam das fontes judiciárias e sua preservação: Aline Nascimento Maciel e Camila Lacerda Couto apresentam um histórico do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul e o acervo do Poder Judiciário; Luiza Horn Iotti e Fabrício Romani Gomes relatam a trajetória do Centro de Memória Regional do Judiciário IMHC/UCS. Roberta Lopes Augustin e Sérgio Augustin refletem sobre o conceito de memória a partir de leitura que visa a alertar para a urgência de análise mais minuciosa das ciências sociais. A fotografia como “meio de prova” em processos judiciais na Comarca Caxias é o tema do artigo de Anthony Beux Tessari. Para além das fotos, Thamyris Conceição Macedo e Caroline Barreto de Oliveira analisam um processo administrativo para pagamento de precatório, oriundo de uma ação ordinária, através do qual é possível reconstituir vários períodos da história do Brasil e do Judiciário. Dentro da mesma linha, José Carlos da Silva Cardozo apresenta o Juízo dos Órfãos de Porto Alegre como fonte MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012 9 para a história social. Paulo Afonso Lovera Marmentini levanta possibilidades de pesquisa no Centro de Memória Regional do Judiciário IMHC/UCS. E, Nilza Menezes faz algumas anotações sobre o Poder Judiciário de Rondônia, a partir dos documentos existentes no acervo do próprio poder. No bloco de artigos seguinte, a questão de crimes e de gênero aparece como objeto de pesquisa. Olgário Paulo Vogt e Roberto Radünz analisam dois ritos processuais que condenaram ao enforcamento dois negros. Rosemeri Moreira aborda o tema corpo e materialismo nos saberes jurídico e criminológico. Cristiane Tedesco analisa um dos interrogatórios presentes nos autos de processo-crime Strupi et lenocinij Pro Curia et Fisco requerido por Orazio Gentileschi em 1612. Crimes passionais em Caxias do Sul nos anos 30 (séc. XX) é o tema do artigo de Luiza Horn Iotti e Fabrício Romani Gomes. Marília Conforto e Gilberto Jacques Gonçalves apresentam a conferência “O Divórcio”, publicada no Jornal Forense de Porto Alegre, em 1932. O Código Penal de 1890 e a construção das relações de gênero, no julgamento dos processos-crimes de homicídios, entre 1900 e 1940, na Comarca Caxias é a temática trabalhada por Aquéle Hendz e Jônatas Herrmann Dornelles. Ainda tratando de gênero, Daysi Lange apresenta parte do resultado da pesquisa “História e poder: discurso e práticas de gênero no judiciário de Caxias do Sul, 1900 a 1950. Natalia Pietra Méndez analisa o Poder Judiciário e as fronteiras de gênero, através de processos de investigação de paternidade. Defloramento é o tema trabalhado por Elizete Carmem Ferrari Balbinot. Encerrando o tema gênero, Nilza Menezes analisa o papel das mulheres no Poder Judiciário de Rondônia. Cristine Fortes Lia analisa o caso de uma quadrilha de falsários judeus, através de notícias divulgadas na imprensa, ocorrências policiais e processos judiciais. Vania Bratriz Merlotti Herédia aborda a força do comércio na expansão da Região Colonial Italiana. E, finalizando, Daniela Barbosa Maino apresenta o resultado de pesquisa sobre os patrimônios material e imaterial de Caxias do Sul. Com esse número da revista Métis, esperamos ter contribuído para o debate sobre a temática em torno do Poder Judiciário, suas fontes e produções recentes sobre o assunto. Luiza Horn Iotti Daysi Lange Elizete Carmem Ferrari Balbinot Organizadoras 10 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 Dossiê MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012 11 12 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 Notas sobre os historiadores e suas fontes Notes on historians and their sources Tânia Regina de Luca* Resumo: O texto objetiva discutir as diferentes acepções atribuídas às noções de documentos e fontes históricas, a partir do século XIX, quando a história constitui-se como disciplina. Trata-se de evidenciar a centralidade dessa questão para as diferentes concepções sobre a produção do conhecimento nessa área de conhecimento. Palavras-chave: Documentos; fontes; escrita da história. Abstract: The aim of this text is to discuss the different meanings attributed to notions of historical sources and documents from the nineteenth century, when history was constituted as a discipline. It is important to point out the centrality of this issue to the different conceptions about the production of knowledge in this field. Keywords: documents; sources; writing of history. Abordar a questão das fontes históricas1 é tocar no cerne da identidade da disciplina, que se constitui como tal no decorrer do século XIX. De fato, se a escritura de textos sobre as atividades humanas no tempo remonta à Antiguidade, foi apenas no Novecentos que o saber histórico institucionalizou-se, aspecto que não pode ser dissociado do fortalecimento dos Estados nacionais, que precisavam forjar, em cada cidadão, o sentimento de identificação para com a pátria.2 Nesse processo, o recurso a um passado comum, a ser compartilhado e reverenciado por todos e cuja aprendizagem deveria ser feita nos bancos escolares, constituiu-se num aliado essencial, capaz de “inventar tradições” e estabelecer elos poderosos.3 A disciplina História que, na França, por exemplo, já se fazia presente no Ensino Médio no início do séc. XIX, nasceu comprometida com esse * Unesp/Pesquisadora do CNPq. E-mail: trdeluca@uol.com.br MÉTIS: história & cultura – LUCA, Tânia Regina de – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 13 projeto político e articulada com outras iniciativas no campo do patrimônio4 – o cuidado com os bens legados pelo passado, a preocupação com a preservação, a fundação de museus, a organização e o trato dos arquivos – terreno essencial de intervenção do Estado, que assumiu a responsabilidade de inventariar, conservar e difundir o passado da nação, num amplo investimento que demandava não apenas mão de obra especializada (restauradores, conservadores, inspetores, arquivistas, bibliotecários), mas um exército de funcionários que se ocupava de edifícios, palácios, monumentos, museus, arquivos, bibliotecas, enfim, de um legado cultural tido, ao mesmo tempo, como expressão da alma nacional, matéria-prima da identidade coletiva e testemunho dos feitos de outrora, que cumpria assegurar às gerações futuras. Não se pode perder de vista que tal investimento – material e simbólico – visava a dar concretude à nação, em relação à qual se exigia lealdade e adesão emocional dos habitantes, para o que contribuía não apenas a história, mas também a geografia, a literatura e a língua nacionais. Vale destacar que o processo de alfabetização em massa exigiu em contrapartida a formação de largos contingentes de professores e colaborou para configurar novas especialidades profissionais, isso num momento em que predominava uma concepção de ciência ancorada na noção de fato, observação, experimentação, proveniente, sobretudo, da biologia e da física newtoniana. Tratava-se, ainda, de um universo coerente, logicamente explicável e dotado de verossimilhança com o cotidiano, muito diverso daquele que emergiria no início do século XX. Os avanços tecnológicos, por seu turno, podiam ser percebidos pelos cidadãos comuns,5 ainda que a distribuição dos benefícios estivesse longe de se espraiar para muito além da triunfante burguesia. Não admira, portanto, que predominasse o intuito de aplicar às experiências humanas métodos semelhantes àqueles destinados ao mundo natural. É importante ter presente que os teóricos da história tiveram que responder a um duplo apelo: preparar a mão de obra que deveria ensinar a disciplina nas escolas, com o fito de formar cidadãos obedientes e identificados emocionalmente com a pátria e, ao mesmo tempo, atender às exigências da institucionalização desse saber, o que requeria a formação de quadros especializados e treinados. Compreende-se, portanto, a urgência assumida pelo delinear de regras, práticas e métodos tidos como capazes de fornecer resultados seguros, ancorados no levantamento exaustivo de documentos, submetidos à cerrada crítica, interna e externa, e apresentados 14 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 13-21, jan./jun. 2012 numa narrativa que se pretendia objetiva e científica. Tudo isso num ambiente saturado de apelos à cientificidade, inclusive em face do estudo dos fenômenos sociais, como bem atestam os exemplos de Comte e Durkheim. Não é difícil encontrar exemplos na historiografia do século XIX que atestem a preocupação de aproximar as práticas da nascente disciplina daquelas das ciências dominantes. Assim, Hippolyte Taine (1828-1893) prescrevia um caminho próximo da experimentação – “Permitir-se-á a um historiador agir como naturalista: eu estava frente a meu assunto como frente à metamorfose de um inseto” –; enquanto Fustel de Coulanges (18301889), por sua vez, insistia que “o melhor historiador é o que mais se atém aos textos”, ademais de advertir que “a história não é uma arte, é uma ciência pura, como a Física ou a Geologia [...]. Ela visa unicamente encontrar fatos, descobrir verdades”.6 Ainda que sempre seja possível encontrar exemplos dissonantes, não é demais afirmar que na constituição e institucionalização da disciplina História preponderou uma tradição que tinha como horizonte desejável as práticas e as conquistas das ciências da natureza. Recorrendo mais uma vez ao exemplo francês, que atuou (e em alguma medida ainda atua) como espécie de paradigma para os historiadores brasileiros, merece destaque os procedimentos da escola metódica, que levou adiante a sistematização das regras que deveriam presidir o trabalho do historiador profissional da segunda metade do século XIX. Registre-se, inicialmente, o esforço no sentido de desbastar a história da intervenção de forças sobrenaturais, opiniões filosóficas, aportes da imaginação e recursos retóricos, tudo em prol da objetividade, supostamente garantida pelo cuidadoso arrolamento das fontes, submetidas à análise e à crítica rigorosas. Tais princípios podem ser rastreados na Revista Histórica (1876), inicialmente dirigida por Gabriel Monod e Gustave Fagniez, em cujo manifesto-programa lia-se: Sem ser uma recolha de pura erudição, a nossa revista só admitirá trabalhos originais, e em primeira mão, que enriqueçam a ciência, quer pelas investigações que serão a sua base, quer pelos resultados que serão a sua conclusão, mas, ao mesmo tempo que se exigem dos nossos colaboradores processos de exposição estritamente científicos, em que cada afirmação é acompanhada de provas, de envio às fontes e de citações, ao mesmo tempo que exclui as generalidades vagas e os desenvolvimentos oratórios, conservaremos na Revista Histórica um caráter literário.7 MÉTIS: história & cultura – LUCA, Tânia Regina de – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 15 História-ciência, que não abdica da qualidade da escrita – mas rejeita o velho historiador-literato, aos moldes de Jules Michelet, que “hacía depender su relato del genio personal, del estilo, de la capacidade evocadora, del dramatismo de las escenas narradas, buscando provocar um determinado efecto en el leitor [...], un creador del lenguaje” – e que insistia em precisar procedimentos de investigação do historiador cientista, que habrá de evitar expresamente las generalidades vagas y los desarrollos oratorios, se empeñará en una investigación que cualquier outro profesional podría realizar ateniéndose a las mismas reglas, [...] que se atiene al universo discursivo en el que se inserta, un universo ya creado y a cuyas reglas obedece.8 Investia-se contra a história-arte e, nesse movimento, era uma certa concepção de narrativa que estava sendo excluída do campo do novo historiador-profissional, que ansiava por afirmar a autonomia do seu saber. Assim, surgiram manuais que apresentavam as regras que deveriam orientar a prática historiográfica, cujo exemplo mais emblemático, na França, foi o destinados aos estudantes do Ensino Superior, Introdução aos estudos históricos (1898), escrito pelos professores da Sorbonne: Charles-Victor Langlois (1854-1942) e Charles Seignobos (1863-1929). Na Alemanha, por sua vez, já se contava com a vigorosa obra de Leopold von Ranke (1795-1886), representante mais ilustre da chamada escola prussiana, fundador do moderno método de ensino universitário e que não hesitava em afirmar a dependência da ciência histórica em relação aos testemunhos diretos e às fontes as mais autênticas. Em que pesem as ponderações recentes sobre a apreensão extremamente simplista e empobrecedora não apenas do citado manual, mas também das demais obras de Langlois, Seignobos e Ernest Lavisse (1842-1922), para ficar nos autores mais proeminentes e, portanto, destinatários dos ataques mais virulentos,9 é inconteste que a escola metódica se pautasse pela precisão vocabular, predileção pelo político, apego aos documentos, crença na possibilidade de um conhecimento objetivo, do qual o sujeito guardaria distância e autonomia em relação ao que pretendia compreender, aspectos que se aliavam ao paradoxal perfilar dessa história, autoproclamada neutra e objetiva, ao lado dos ideais, dos valores e das tarefas do regime republicano.10 Especificamente em relação às fontes, Langlois e Seignobos expressam, no seu manual, a ingênua profecia segundo a qual a tarefa do historiador estaria 16 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 13-21, jan./jun. 2012 encerrada quando “todos os documentos tenham sido descobertos, depurados e colocados em ordem” e não alertavam que a história dispõe de um estoque limitado de documentos [...]. A quantidade de documentos que existem, senão de documentos conhecidos, está dada; o tempo a despeito de todas as precauções que são tomadas atualmente diminui, sem cessar, tal quantidade – que nunca aumentará... Os progressos da ciência histórica estão, por isso mesmo, limitados.11 Tais observações soam particularmente estranhas aos praticantes contemporâneos do ofício, familiarizados com as renovações trazidas pela chamada Escola dos Annales, em suas diferentes gerações. O estandarte empunhado pelos primeiros renovadores, Lucien Febvre e Marc Bloch, tinha por ideal uma história aberta a questionamentos e problematizações – o que deve ser entendido como abandono do político, da cronologia, dos fatos e dados, tomados em si mesmos, da glorificação dos grandes homens e seus feitos, da noção estreita de documento e do tempo curto do evento. Tratava-se, agora, de abordar os fenômenos coletivos, as multidões e o povo, personagem que roubava a cena antes reservada às personalidades ilustres; de explorar a complexidade temporal, com seus diferentes ritmos e durações, breves ou longas; de abandonar a superfície dos acontecimentos em favor de estruturas profundas; de perscrutar o imaginário e as mentalidades; de manipular grandes séries documentais, construir curvas e gráficos; de apropriar-se dos múltiplos vestígios do passado em busca de uma história econômica e social, com vocação totalizante. No famoso Combates pela história, Fevbre investiu contra a fixação dos metódicos pelos documentos escritos e propôs uma ampliação conceitual que não conheceria recuos: A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida [...], mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos se estes não existirem. Com tudo o que a engenhosidade do historiador pode lhe permitir usar para fabricar seu mel [...]. Paisagens, telhas. Formas de campos e de ervas daninhas. Eclipses lunares e cabrestos [...]. Toda uma parte e sem dúvida a mais apaixonante de nosso trabalho de historiador não consiste num esforço constante para fazer falar as coisas mudas e fazê-las dizer o que não dizem por si sós sobre os homens?12 MÉTIS: história & cultura – LUCA, Tânia Regina de – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 17 Tratava-se de substituir a história-narrativa, agora entendida como sinônimo de história événementielle e tipificada pelas práticas dos historiadores metódicos. A partir de perspectivas muito diversas daquelas vigentes no fim do século XIX e se esforçando para delas se diferenciar, os Annales reafirmavam a confiança numa história capaz de manipular instrumentos próprios, alargar o campo de pesquisa e elaborar um saber seguro e controlado por modelos de inteligibilidade. Ciência em construção, máxima tantas vezes repetida e que indicava a confiança nos procedimentos de uma disciplina solidamente instalada na estrutura universitária e na Educação Básica. Desde então, o percurso da historiografia evidencia que as renovações nos âmbitos temático e metodológico fizeram-se acompanhar pela descoberta de novas fontes ou, na bela imagem de Febvre, que os historiadores têm se mostrado capazes de “fabricar seu mel”. Novas preocupações, a exemplo dos estudos sobre as camadas populares e os excluídos (a chamada história vista de baixo), das discussões sobre gênero (e não mais sobre sexo, com sua conotação biológica), das mudanças na escala de observação com a micro-história, das problemáticas colocadas pela abordagem centrada no conceito de cultura, do renovado interesse pela biografia e registros dos indivíduos comuns, das escritas de si, da história oral e das possibilidades abertas pelas imagens, fixas ou em movimento, enfim a cada mudança mobilizou-se um conjunto de vestígios do passado que antes não integravam o horizonte dos historiadores. Assim, não parece demais afirmar que sentidos, conteúdos, forma de abordagem e mesmo entendimento do que sejam documentos históricos atravessam o campo disciplinar e se constituem na pedra de toque das várias correntes epistemológicas que tentaram (e seguem tentando) dar conta da produção de conhecimento nesta área. 18 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 13-21, jan./jun. 2012 Notas Cabe esclarecer que se denominam documentos históricos os vestígios do passado, longínquo ou muito próximo, independentemente do seu suporte e/ou natureza. Já os termos fontes históricas são reservados ao conjunto de documentos mobilizados pelo historiador no decorrer de uma pesquisa. É por esse motivo que há centros de documentação e não centros de fontes. 1 Sobre a questão da construção da nação, o nacionalismo e seus usos políticos, consultar: ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989; FEBVRE, Lucien. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998; GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 1993 e HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 2 Ver, sobretudo, HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. A novidade e o significado do nacionalismo foram magistralmente expressos pelo conselho que uma camponesa italiana deu ao filho, e que se constitui numa das epígrafes do capítulo sobre o tema da obra de HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios (1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 203: “Schappa, che arriva la pátria.” 3 4 TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Bauru: Edusc, 2000. p. 98, assinala que em 1880, a disciplina História já fazia parte do currículo escolar em todos os níveis, desde o Ensino Fundamental até o último ano do Médio, ademais de lembrar que data da segunda metade do séc. XIX a fundação das seguintes instituições: École Pratique de Hautes Études (1868), École Livre de Sciences Politiques (1872) e École du Louvre (1881). Para uma abordagem sistemática da questão do patrimônio e dos monumentos históricos, consultar: CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Edunesp, 2001, especialmente Capítulo 4. Sobre as inovações técnicas do período e seu impacto no cotidiano, consultar: BARRACLOUGH, Geoffrey. Introdução à história contemporânea. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, especialmente o Capítulo 2, e WEBER, Eugen. França: fin-de-siécle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 5 Os textos citados foram extraídos de TÉTART, op. cit., p. 93-95. 6 Apud BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As escolas históricas. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d. p. 99. A respeito da produção da chamada escola metódica, consultar: DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio; Campinas: Ed. da Unicamp, 1992, especialmente, p. 21 a 42. 7 PONS, Anaclet; SERNA, Justo. Apologia de la historia metódica. Pasajes – Revista de Pensamiento Contemporâneo, Universidad de València, n. 16, 2005. Disponível em: <www.uv.es/jserna/ PasagesLanglois.htm>. Acesso em: 15 jul. 2011. 8 A respeito das aludidas simplificações – que devem ser compreendidas no âmbito do combate empreendido pelo poder de ditar as regras no campo historiográfico, vencido pelos membros da chamada Escola dos Annales, que acabaram por compor uma caricatura depreciativa dos antecessores, não raro reproduzida de forma acrítica, sugere-se consultar, ademais do artigo citado na nota anterior, REBÉRIOUX, Madeleine. Preface. In: LANGOIS, Charles-Victor; SEIGNOBOS, Victor. Introduction aux études historiques. Paris: 9 MÉTIS: história & cultura – LUCA, Tânia Regina de – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 19 Kimé, 1992. p. 7-16; NORA, Pierre. Lavisse, instituteur national. In: NORA, Pierre (Dir.). Les lieus de mémoire: la Republique. Paris: Gallimard, 1984. p. 247-289. No prefácio da edição definitiva do Petit Lavisse (1884), datada de 1912, o autor da obra, destinada ao ensino de história nas escolas elementares, alertava: “Se o aluno não carregar consigo a lembrança viva de nossas glórias nacionais, se não souber que seus ancestrais combateram em mil campos de batalha por causas nobres; se não aprender que custou sangue e esforços fazer a unidade de nossa pátria e em seguida resgatar do caos de nossas instituições envelhecidas, as leis que nos fizeram livres; se ele não se tornar o cidadão compenetrado de seus deveres e o soldado que ama seu fuzil, o professor primário terá perdido seu tempo.” Apud DOSSE, François, op. cit., p. 41. Vale lembrar que em 1895 a obra encontrava-se na 75 a edição. 10 20 Apud SALIBA, Elias Thomé. Pequena história do documento. As aventuras modernas e as desventuras pós-modernas. In: PINSKY, Carla; LUCA, Tania Regina de (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. p. 312. 11 Apud TÉTART, Philippe, op. cit., p. 111-112. Na mesma obra, Lucien Febvre investiu contra o manual de Langlois e Seignobos: “Por encima del libro lo que yo ataco no es a un historiador, sino a una cierta concepción de la historia; una concepción que durante años, a través de sus fuciones, su influencia personal y sus escritos, el señor Seignobos ha defendido con potentes médios; una concepción que yo rechazo con todo mi ser y ala que considero responsable en parte de esa espécie de descrédito, inhusto y justificado a la vez, enque há caído con mucha frecuencia la historia a los ojos de los laicos.” Apud PONS, Anaclet; SERNA, Justo, op. cit. 12 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 13-21, jan./jun. 2012 Referências ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989. HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios (1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. BARRACLOUGH, Geoffrey. Introdução à história contemporânea. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. PINSKY, Carla; LUCA, Tania Regina de (Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2009. BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As escolas históricas. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d. NORA, Pierre. Lavisse, instituteur national. In: NORA, Pierre (Dir.). Les lieus de mémoire: la Republique. Paris: Gallimard, 1984. p. 247-289. CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Edunesp, 2001. DOSSE, François. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo: Ensaio; Campinas: Ed. da Unicamp, 1992. FEBVRE, Lucien. Honra e Pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo. Lisboa: Gradiva, 1993. HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. HOBSBAWM, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. PONS, Anaclet; SERNA, Justo. Apologia de la historia metódica. Pasajes – Revista de Pensamiento Contemporâneo, Universidad de València, n. 16, 2005. Disponível em: <www.uv.es/jserna/ PasagesLanglois.htm>. Acesso em: 15 jul. 2011. REBÉRIOUX, Madeleine. Préface. In: LANGOIS, Charles-Victor; SEIGNOBOS, Victor. Introduction aux études historiques. Paris: Kimé, 1992. p. 7-16. TÉTART, Philippe. Pequena história dos historiadores. Bauru: Edusc, 2000. WEBER, Eugen. França: fin-de-siécle. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. MÉTIS: história & cultura – LUCA, Tânia Regina de – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 21 22 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 13-21, jan./jun. 2012 O Direito Constitucional como engenharia social no Brasil da independência* The Constitutional Right as social engineering in Brazil during the period of independence Arno Wehling** Resumo: O artigo procura demonstrar como o conceito de Constituição foi compreendido no Brasil, no período anterior à independência. A ideia de uma “engenharia social”, a partir da qual se modificariam Estado e sociedade, foi frequentemente uma derivação esquemática do racionalismo mecanicista e da física newtoniana. As variações do liberalismo, num país com fortes resquícios coloniais, provocou singulares composições de inovação e arcaísmos. Tornou-se uma espécie de “mística constitucional”, que, desde logo, se chocou com as realidades social e política. Palavras-chave: Estado Liberal; constitucionalismo; história do Direito; liberalismo. Abstract: This article focuses how the concept of constitution was understood in Brazil before independence. The idea of a “social enginery” that support changes both in the state and society, is usually a derivation, in a very schematic way, of rationalist mecanicism and newtonian physics. Variations of liberalism and its brazilian receptions, in a country with strong colonial features, generate singular deals of innovation and archaism. It becames a kind of “mystical constitucionalism”, that early strikes with social and political reality. Keywords: Liberal State; constitucionalism; Legal history; liberalism. Edição revista, corrigida e aumentada do estudo “Constitucionalismo e engenharia social no contexto da independência”, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. 363, abr./jun. 1988 e em Pensamento político e elaboração constitucional no Brasil: estudos de história das idéias políticas. Rio de Janeiro: IHGB, 1994. ** Professor Titular de Teoria e Metodologia da História na UFRJ. Professor Emérito de História do Direito e das Instituições na Unirio. Presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. E-mail: wehling@globo.com * MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 23 A segunda metade do século XVIII corresponde, no mundo euroamericano, as transformações estruturais que se revelaram irreversíveis. Fenômeno que filósofos e cientistas sociais de diferentes especialidades e referenciais teóricos analisam sob as conceituações de revolução industrial, revolução agrária e demográfica, ilustração, crise da sociedade estamental, afirmação do idealismo e receio da metafísica, definição do paradigma científico newtoniano ou constitucionalismo, revelam a complexa rede de relações existentes nessas sociedades, nas quais parecia, ao menos pelos padrões do Antigo Regime, ter se acelerado a história, exigindo de seus contemporâneos um vasto programa de reforma social. (WEHLING, 1986, p. 15-23;1984, p. 30-370. No caso desse último, o que se procurava corrigir do Antigo Regime era a própria organização da sociedade, que aparecia aos olhos de seus críticos como estratificada por privilégios e direitos particulares, o que impediria fossem executadas políticas gerais que contemplassem o seu conjunto. Esses críticos voltavam-se contra a velha organização comunitária e estamental vinda da Idade Média e à qual a monarquia absoluta “clássica”, dos séculos XVI e XVII, apenas sobrepusera uma superioridade genérica e não interventora. Tinham entre seus precursores imediatos na crítica às antigas instituições sociais os defensores do absolutismo setecentista, os primeiros burocratas que buscavam “tudo nivelar ante o Estado”, o que os fazia, consequentemente, adversários daquele mundo social em que interesses e direitos setoriais e regionais hostilizavam as tentativas de padrões e normas gerais centralizadoras da “nova” monarquia. O constitucionalismo, nessa perspectiva, é somente um ângulo da questão. Ângulo, porém privilegiado, dada a globalidade de suas aspirações: nada menos que, à luz dos fundamentos filosóficos e critérios epistemológicos do racionalismo, procurar dar ordem ao caos, com o fim de compreender os fenômenos e sobre eles atuar, de modo a definir a estrutura estatal, a melhor forma de governo e a mais bem-direcionada organização da sociedade. Redesenhar o estado more geometrico, orientar a organização social no sentido de novos fins como o progresso e a felicidade e identificar a forma de governo mais propícia a atingir esses objetivos passavam a ser os traços desejáveis desse ente da razão criado nos laboratórios intelectuais iluministas, o “constitucionalismo”. Como se caracteriza o constitucionalismo, no momento em que se difunde no Brasil? Há, pelo menos, três vertentes significativas. A representada por Montesquieu fixava a identidade entre o governo misto e 24 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012 o princípio da separação de poderes, esse baseado no equilíbrio entre as funções executivas, legislativas e judiciais. Ademais, afirmava o primado da lei na ordem social e na ordem jurídica, o que garantia dois aspectos importantes. No plano teórico, o intercurso entre as descobertas do mundo científico e as preocupações com a reforma do mundo social, dotando ambas as percepções de um instrumento conceitual comum, a ideia de lei. No plano concreto da sociedade, destacava um elemento normativo entre outros, exatamente a lei emanada de um órgão soberano central, que se sobrepunha ou até anulava quaisquer normas concorrentes, como o costume, os usos, ou a lei estrangeira – direito comum era um dos inimigos mais visados. O primado da lei, instrumento genérico, determinante e mandatário, tinha assim duplo respaldo: epistemológico e jurídico. Era, no período que consideramos a versão mais difundida, praticamente confundindo-se com o próprio constitucionalismo. (MONTESQUIEU, 1968, p. 160). Ao final das guerras napoleônicas e com a redefinição institucional da restauração, delineou-se uma segunda corrente, representada por Benjamim Constant. À luz da experiência histórica da Revolução Francesa e explicitamente voltada contra Rousseau e o jacobinismo, foi elaborada uma teoria das garantias individuais, baseada no princípio de que os direitos fundamentais – liberdade pessoal, religiosa e de imprensa e propriedade privada – eram invioláveis, não podendo ser derrogados por ninguém, o que significava clara limitação da vontade geral e da soberania do rei ou de uma assembleia constituinte. (MATEUCCI, 1976, p. 35-40). Essa corrente encontrou também adeptos no Brasil especialmente entre aqueles que defendiam a monarquia constitucional, equidistante do absolutismo e da república. Finalmente, a identificação do constitucionalismo com o Estado de Direito veio da experiência histórica e das situações ocorridas nos estados alemães durante o século XVIII, particularmente na Prússia. Por essa interpretação, todos, do rei ao menos significativo súdito, eram elementos do Estado, submetendo-se igualmente ao Direito, garantia-se ao cidadão sua liberdade jurídica, com leis gerais das quais emanavam os direitos subjetivos particulares. (BRUNNER, 1970, p. 205). As duas primeiras vertentes, combinadas, parecem refletir melhor o constitucionalismo brasileiro naquele período, bem como suas fontes. Em qualquer das três vertentes, contudo, há como denominador comum a premissa da Constituição como poderoso instrumento de ordenação das instituições e direcionamento da sociedade – isto é, a premissa da instituição como engenharia social. MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 25 As bases do constitucionalismo, bem como do liberalismo político, confundem-se no Segundo tratado sobre o governo, de Locke, e na experiência institucional inglesa. Paralelamente, se desenvolveu a disseminação do padrão newtoniano de compreensão do universo físico, cuja extrapolação para a biologia ocorreu em 1730 (Lineu), para o estudo das sociedades com o espírito das leis (1748), para a economia com Quesnay (1758) e Adam Smith (1776). Por esse padrão, admite-se a autorregulação dos fenômenos – físicos, biológicos ou sociais – sua estrutura sistêmica e mecânica e a existência de leis deterministas. Coube a Montesquieu reunir as bases políticas lançadas por Locke ao padrão newtoniano, num programa que está definido no prefácio do Espírito das leis, e que, frequentemente, tem sido obscurecido pelo interesse dos especialistas em outros aspectos de sua obra. Aliás, aquela que é usualmente destacada como sua contribuição principal – o princípio da separação de poderes e o mecanismo de pesos e contrapesos (checks and balances na ciência política norte-americana) nada mais é do que a aplicação do padrão newtoniano de engenharia social – a autorregulação do sistema – aos fundamentos do liberalismo inglês. A partir de Montesquieu, a concepção difundiu-se, reproduzindo-se entre os ideólogos do progresso como Turgot e Condorcet, chegando a ser incorporada ao discurso político dos Founding Fathers da Revolução de 1776, como aconteceu com Franklin e Jefferson, quando das discussões sobre o sistema político mais equilibrado – o unitário, o federativo ou o confederado. O fecho desse tipo de interpretação, no qual se fundem um axioma epistemológico – a crença na autorregulação dos fenômenos sociais, um axioma metodológico – a admissão da cognoscibilidade desses fenômenos por um instrumental de observação – e uma esperança de reforma social – elaborar a melhor Constituição possível para ordenar a vida dos indivíduos em sociedade – encontra-se na proposição da Idéias para a história de um ponto de vista cosmopolita, de Kant: Os homens tomados individualmente, e mesmo povos inteiros, não imaginariam que, perseguindo seus fins particulares, de acordo com seus desejos pessoais, e muitas vezes em prejuízo de outrem, contribuem para o desígnio da natureza; desígnio que eles mesmos ignoram, mas para o qual trabalham, como se seguissem um fio condutor que favorecesse a realização. (WEHLING, 1984, p. 31-32). 26 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012 O constitucionalismo, como todos os projetos iluministas de ação social, introduziu uma cunha volitiva nesse processo que, embora visto de forma determinista e por isso inexorável, poderia ser mais lento ou mais rápido, de acordo com as resistências do meio social. Torná-lo o mais racional possível, facilitando sua compreensão e adoção, de preferência acelerando o ritmo da evolução histórica, foi um dos escopos do discurso de revolucionários e reformistas dos dois lados do Atlântico. Os produtos dessa engenharia social constitucionalista foram as cartas americanas, de 1776; as francesas, de 1791, 1793, 1795 e 1815; as espanhola, de 1812, a napolitana, colombiana, portuguesa e brasileira, entre outros textos que podem ser lembrados. Não obstante as diferenças entre elas, perspassou-as essa atitude comum de serem o ponto inicial de uma reorganização da sociedade, tendo o Direito Constitucional como uma importante ferramenta institucional. O caso brasileiro e o problema do transoceanismo A ideia de transoceanismo, cunhada por Capistrano de Abreu para ironizar a importação e crítica de conceitos e modismos, aplica-se, de modo cabal, ao processo de difusão do constitucionalismo no Brasil. Com efeito, não parece ter repercutido no País a polêmica entre Thibault e Savigny, que sintetiza bem o conflito entre duas visões do Direito: de um lado, a posição racionalista, defendendo a exequibilidade de leis gerais e intemporais, aplicáveis indistintamente a diferentes condições de meio cultural e tempo;1 de outro, o Direito Histórico, segundo o qual as instituições jurídicas não poderiam nascer da pura razão, mas fluíam da experiência histórica dos diferentes povos e comunidades. Afonso Arinos de Melo Franco (1972), dentre outros estudiosos do tema, já chamou a atenção para o servilismo e até à ligeireza que presidiram a reprodução dessas fórmulas constitucionais de origem racionalista no Brasil quando das discussões que levaram à Constituição de 1824. Poder-se-iam exemplificar, sem nenhuma dificuldade, várias situações anteriores como a influência sobre os conjurados mineiros (os Autos de Devassa mostram inúmeras referências a Raynal, Rousseau, Voltaire e às Leis Constitutivas dos Estados Unidos, essas em edição francesa); sobre os membros da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, em 1794 (as respostas do futuro Marquês de Maricá nos Autos dessa Devassa são curioso retrato invertido dessa influência); na Conjuração Baiana (onde o jacobinismo já MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 27 demonstra sua influência) e na Revolução Pernambucana de 1817, onde o manifesto denomina-se preciso, os revoltosos tratam-se por cidadãos, e as instituições desejadas são as norte-americanas ou francesas. Isso ocorreu também na própria época da independência, quando o monarca aceitou a Constituição de Cádiz e admitiu previamente a Constituição portuguesa; continuou nas discussões da Assembleia Constituinte, cujos Anais dariam margem a uma criativa pesquisa sobre a maneira pela qual aquelas vertentes do constitucionalismo europeu que comentamos foram absorvidas e frequentemente combinadas, à luz dos interesses de grupos locais, sem que surgissem soluções específicas para a organização política e social brasileira e que contemplassem problemas essenciais, como os traduzidos por José Bonifácio. O próprio projeto “Antônio Carlos” seria uma compilação, realizada em 15 dias, de várias Constituições, utilizando-se especialmente da introdução da carta constitucional da Convenção, de partes dispositivas da Constituição de 1795 e de elementos diversos das de Cádiz de 1814, mostrando, assim, segundo Afonso Arinos, seu “caráter racionalista nivelador”.2 Admitia-se como inquestionável aquela premissa sintetizada por Kant, o que redundaria na tentativa de transformar o constitucionalismo num jogo de regras matemáticas para organizar, more geometrico, a sociedade e o Estado. A tese da engenharia social ganhou adeptos rapidamente no Brasil, a ponto de nos anos que precederam à independência, praticamente admitirse como implícita ao liberalismo e ao constitucionalismo. Nos Estudos do bem comum e economia política, de 1819, do Visconde de Cairu, talvez a figura mais expressiva no processo de aggiornamento brasileiro com as condições do mundo novo manchesteriano e pós-revolucionário, dizia: O Universo criado é um Sistema, organizado de partes, que estão em harmonia entre si, e com o Grande Todo, e é regido por Leis Imutáveis da Ordem Cosmológica, que a Inteligência Eterna determinou, e que invariavelmente se executam no Mundo Físico. A constância e imutabilidade dessas leis é o fundamento de todos os nossos conhecimentos. Entrando a espécie humana naquele sistema, não pode deixar de ser sujeita a essas leis, e observá-las na sociedade civil, para sua própria felicidade, e progressiva perfeição de sua natureza. (1975, p. 177). 28 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012 Essa concepção encontra-se presente, claramente definida ou implícita, em todos os embates do constitucionalismo brasileiro, com poucas exceções. Além da importação de paradigmas políticos de base racionalista, supostamente aplicáveis a todas as sociedades, como mostrou Afonso Arinos, temos que esses paradigmas implicam a aceitação de um modelo geometrizante da organização política – o que exigiria a elaboração de uma arquitetura constitucional ainda mais defasada da realidade social, que procurava enquadrar antes de interpretar. Os exemplos dessa solução newtoniana, more geometrico, são abundantes. Na Assembleia Constituinte, na sessão de 10 de julho de 1823, em debate com Antônio Carlos e Martim Francisco, sobre a prioridade da elaboração da Constituição sobre a apresentação de leis ordinárias, por mais importantes que fossem, dizia Mariano Cavalcanti, aliás com assentimento geral, que a Assembleia havia sido convocada para “cimentar o edifício social, fazendo a constituição política”.3 A mesma concepção encontra-se no art. 98, da Constituição de 1824, que definia o poder moderador como a “chave de toda a organização política”, conceito extraído de Benjamim Constant, que, por sua vez, o emprestara à arquitetura, com o sentido de acabamento do cume da abóboda (clef). A imagem arquitetônica assim extrapolada traduz bem o seu duplo sentido: de autorregulação social e de teleologia do sistema político para alcançá-la. Temos assim definida, no próprio texto constitucional, a crença nas virtualidades de um delicado mecanismo político. A prática do constitucionalismo reduzia-o à mera engenharia social, aliás baseada na ótica europeia, cujos focos eram a destruição das instituições do Antigo Regime e a superação da economia agrária. O transoceanismo de Capistrano de Abreu, na geração seguinte, denominado por Oliveira Viana de “idealismo da constituição”, pôde dar vazão a seu espírito crítico, alimentando a tese das “ideias fora do lugar” ao longo do século XX. Arcaísmos e transações A confluência de dois mundos: o do Antigo Regime e aquele da proposta constitucional, fez com que em muitas situações prevalecessem soluções arcaizantes, em outras, tipicamente modernas e também de compromisso. Nem todas as sociedades em que se deu algum tipo de revolução eram integralmente revolucionárias, e nem todos os revolucionários pautavam-se pelo mesmo ideário. Não seria necessário MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 29 invocar o testemunho de Fernand Braudel, sobre o abismo entre ideias progressistas e mentalidades retrógradas: a própria Revolução Francesa demonstrou, várias vezes, o descompasso entre o revolucionarismo de alguns setores das elites e o conservadorismo de alguns setores populares, fenômeno, aliás, tardiamente valorizado em sua historiografia. Não seria necessário, também, refutar o vício historicista, a Karl Popper, para constatar que a mesma Revolução Francesa começou por uma revolta da nobreza e pela convocação dos Estados Gerais, no modelo tradicional da legislação do Antigo Regime, e não pela convocação de uma Assembleia Constituinte. No Brasil de fins do século XVIII, a conjuntura política da qual o constitucionalismo viria a ser um dos elementos principais ao lado da ideologia liberal e da crise das instituições coloniais – balizava-se por três modelos ou opções políticas visíveis pelos contemporâneos: a estrutura institucional existente, que chamaríamos, como Silbert (1966, p. 1011) e por empréstimo da França, do Antigo Regime, as modificações introduzidas nessa estrutura pelo “despotismo esclarecido”, como o pombalismo em Portugal, e a proposta constitucional-liberal. Já no primeiro quarto do século XIX, o próprio desenvolvimento do processo revolucionário europeu faria com que, em declínio as soluções absolutistas, se desdobrassem as constitucionais-liberais em, pelo menos, duas: a liberal propriamente dita, limitando a representação pelo voto censitário e a democrática, defensora do sufrágio universal (e, na América, normalmente identificada com o republicanismo). Tomás Antônio Gonzaga exemplifica bem a transição desses dois mundos: crítico do absolutismo na Conjuração Mineira, era autor do Tratado de Direito Natural, no qual se afirma não a sua interpretação iluminista vinda de Grotius ou Puffendorf, mas seus fundamentos tomistas, que eram a doutrina oficial do Estado português. (Machado, 2004, p. 138). Mesmo esse vivia tal ambiguidade: em 1785, baixava-se um alvará real disciplinando a censura de livros e proibindo, entre outros, todos aqueles que divulgassem princípios revolucionários reunidos sob a discriminação global de “seita dos monarcômanos”, mas também aqueles que pregassem o despotismo real em detrimento dos direitos natural e positivo – o que visava a combater os excessos despóticos do Marquês de Pombal e de seus seguidores do reinado seguinte, o de D. Maria I.4 Às vésperas da independência, 30 anos após a Conjuração Mineira e o início da Revolução Francesa, repetiu-se, no Brasil, a tentativa de convocar 30 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012 as Cortes, pelas normas do Antigo Regime, como acontecera na França com os Estados Gerais e na Espanha, com as Cortes de Cádiz. À vista dos acontecimentos revolucionários em Portugal, o Rei D. João VI, pelo Decreto de 18 de fevereiro de 1821, sob pretexto de que a futura Constituição a ser votada pelas Cortes poderia não se adaptar no Brasil, convocou os procuradores das Câmaras Municipais, ao estilo do Antigo Regime. A reação da tropa portuguesa no Rio de Janeiro, apoiando o movimento do Porto, obrigou-o não só a revogar o decreto, como a jurar previamente a futura Constituição portuguesa e mudar o ministério. Nem sempre, entretanto, no Brasil, a difusão do constitucionalismo foi tão integral. Em 1821, no momento em que se discutiam as atitudes do rei ante a Revolução do Porto, o ouvidor do Rio Grande do Sul, José Antônio de Miranda, publicou a Memória constitucional e política, na qual, embora admitindo o constitucionalismo e se mostrando atualizado com os argumentos sobre o pacto social, a lei e a natureza dos governos, procurava demonstrar que o recurso revolucionário ocorreu pelo desprezo que o “despotismo ministerial” tivera sempre pelo sistema tradicional de representação dos três estados – Nobreza, Clero e Povo – nas Cortes. Tratava-se (como ocorreu à mesma época na América espanhola em diferentes situações), de uma certa oscilação entre os princípios além-Pirineus, fossem eles moderados, fossem eles jacobinos, e os princípios historicamente arraigados do velho pactismo ibérico, no qual a sociedade se equilibrava por uma série de compromissos dos estamentos e das corporações entre si e com a monarquia.5 A Câmara Municipal de Campos, ao agradecer a D. Pedro I, em 1º de junho de 1822, por ter aceito o título de “Defensor Perpétuo do Brasil”, fé-lo pela convocação “da Nobreza, Clero e Povo para a sua satisfação elegeram Procuradores que em seu nome levem à Augusta Presença os seus agradecimentos”. (1973, p. 213). Situações semelhantes repetiram-se na Assembleia Constituinte, quando se fez valer o antigo Direito português no Brasil, ao se declarar que tinham validade as ordenações, leis, regimentos, decretos e resoluções promulgadas pelo rei de Portugal até 25 de abril de 1821,6 procedimento necessário para que não paralizasse a vida jurídica do País; ou quando Carneiro de Campos, o melhor jurista da Constituinte, na avaliação de José Honório Rodrigues (1974, p. 273), defendia a tese de que a assembleia não era detentora exclusiva da soberania nacional, MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 31 pois nela não se achavam concentrados todos os poderes soberanos. A soberania reside na nação somente, ela consiste na reunião de todos os poderes [...]. A Nação [...] não nos delegou o exercício de todos, concedeu-nos simplesmente o exercício do Poder Legislativo com a comissão soberana e extraordinária de formarmos a Constituição do Império do Brasil; e os poderes que recebermos por esta extraordinária comissão não foram absolutos e ilimitados, foram restritos à forma de governo que já temos e que nos deve poderes não nos podiam ser delegados, estando já distribuídos e depositados pela nação em outras vias, muito tempo antes da nossa reunião e instalação.7 Transigia-se, assim, com as diferentes correntes de opinião e os interesses opostos, na busca das fórmulas que permitissem viabilizar, na prática, o constitucionalismo. O próprio sistema bicameral definido na Constituição de 1824 era símbolo dessa transição, adotando-se o modelo definido por Benjamim Constant: a Câmara, intérprete da opinião, e o Senado, representante da tradição.8 Essa solução, que na Europa contemplara os interesses remanescentes da nobreza e do Clero, contra uma Câmara de maioria burguesa, no Brasil reforçaria os setores mais conservadores da propriedade rural. Esperanças e perplexidades Não cabe, aqui, desenvolver a questão de se a independência foi uma revolução, como quer a historiografia tradicional, ou se como foi definido a partir de José Honório Rodrigues, tratou-se de uma contrarrevolução. Podemos, entretanto, nos beneficiar da discussão, contatando a vitória de um “centro político” que evoluiu de defensor do Reino Unido a adepto da monarquia constitucional, isolando recolonizadores de um lado e republicanos federalistas de outro. Ao aduzirmos a isto um “centro geográfico” as províncias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro – e a liderança dos proprietários rurais nesse processo, temos traçado os limites do constitucionalismo brasileiro e justificado por que esta ou aquela fórmula política foi preferida a outra qualquer. O constitucionalismo brasileiro envolveu, conforme a ótica de seus aderentes, um leque de esperanças que contemplava a liberalização do Estado, o governo misto, o liberalismo econômico, a federação, a abolição da escravatura e o sufrágio, censitário ou universal. No momento da 32 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012 independência, efetivaram-se apenas os três primeiros e o voto de qualidade. Como se deu o processo? A liberação do Estado era o cerne do constitucionalismo. Começava pela identificação da soberania com a Nação e não com os poderes do Estado. Impunha, ainda, que as leis, elaboradas pelo Legislativo, estivessem acima da autoridade que as aplicava, no melhor espírito de Montesquieu. Ambos os princípios, importados das cartas constitucionais citadas, encontram-se longamente difundidos no Brasil, do Correio Braziliense à Memória de Miranda, aos Anais da Constituinte ou à própria Constituição de 1824. Nessa, o art. 179 era uma longa discriminação, tendo como fundamento a liberdade, a segurança individual e a propriedade e se iniciando pelo postulado segundo o qual “nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, se não em virtude da lei”. O governo misto e a separação de poderes, no constitucionalismo brasileiro inspirou-se, além de em Montesquieu e Benjamim Constant, no art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, cuja influência no art. 9.º da Constituição de 1824 é flagrante. Declaração “Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não for assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não dispõe de Constituição.” Constituição Art. 9º. A divisão e harmonia dos poderes políticos é o princípio conservador dos direitos dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efetivas as garantias, que a Constituição oferece. O liberalismo econômico presente no constitucionalismo brasileiro foi particularmente forte e explícito, dada a recente experiência colonial. Como suas aspirações vêm da conjuração mineira e encontram o teórico e praxista por excelência em Cairu, os itens 22 a 26 do art. 179 da Constituição de 1824 apenas sublinham o direito de propriedade (“garantido em toda a sua plenitude”, “inviolável e sagrado”, na Declaração de 1789), a plena liberdade de atividade econômica, a abolição das corporações e o estímulo aos inventores. MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 33 Era a “mão invisível” de Adam Smith que chegava ao Brasil, em meio a uma explicitação da fé no mecanismo do universo e de sua repetição no mundo das relações econômicas. Finalmente, a representação política através do sufrágio foi adotada nos moldes limitados das Constituições francesas de 1791 e 1785 e na de Cádiz. O voto censitário, estabelecido pelo art. 82 da Constituição de 1824, excluiria os empregados domésticos, administradores de propriedades rurais e fábricas, religiosos e os que tivessem renda líquida anual inferior a 100$000. Poder-se-ia definir, portanto, o constitucionalismo brasileiro como uma tentativa de engenharia social e política inspirada nos mesmos padrões de suas fontes europeias. De modo semelhante à Europa, onde até a época de restauração impusera-se a sua versão liberal e burquesa contra a democrática e jacobina, também no Brasil essa versão seria vitoriosa adaptando-se, porém, às circunstâncias locais. Politicamente, o constitucionalismo brasileiro de 1820 revelou-se incompleto em relação ao modelo original. Adotando de forma integral o liberalismo de Locke e Smith, partiu da liberdade econômica pela qual lutaram os proprietários rurais e comerciantes locais; combinando Montesquieu e Constant, porém, faltaram as condições políticas para que levassem às últimas consequências essas teorias, delineando mais cabalmente as atribuições dos Poderes Moderador e Executivo (o que só ocorreria muito mais tarde, com a adoção da presidência do conselho) e não colocando em prática o “quinto poder” sobre o qual largamente se discutiu no constitucionalismo europeu,9 o poder municipal. O temor ao federalismo, à secessão e a aliança com os grupos que exerciam o poder nas capitais de províncias pareceu explicar a não adoção desse procedimento. Esses desajustes no mecanismo instituído pelo constitucionalismo, contudo, foram de pequena monta, se comparados ao problema que ficava por resolver: o da abolição da escravatura. Se na Europa a sua versão liberal e burguesa postergou a questão do operariado, adiando a participação política do quarto estado, no Brasil essa solução implicava negar direitos políticos não só a escravos, mas também aos homens livres pobres ou em funções discriminadas. Estes últimos, no entanto, não parecem ter sido o motivo determinante: se examinarmos os documentos da Revolução Pernambucana de 1817 encontraremos nítido recuo dos proprietários rurais ante a proposta abolicionista, temor que se repete no autor da Memória Constitucional e 34 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012 Política sobre o Estado Presente de Portugal e do Brasil, de 1821, e em muitas outras manifestações da época. Liberais burgueses ou democratas jacobinos subscreveriam, porém, em sua mística constitucionalista, o discurso do ouvidor José Antônio de Miranda, em 1821: V. Majestade jurando a Constituição, qualquer que ela seja, mais ou menos liberal, [...] passará a fazer uma mais brilhante figura no mundo... [...]. Todas as instituições políticas tenderão sempre ao bem geral da Nação, como único fim a que devem ser dirigidas. [...] Ver-se-á então renascer uma nova ordem de coisas. A Agricultura, o Comércio, a Navegação, as Artes, e todos os mais ramos da indústria sairão do seu abatimento, e chegarão a um novo estado de esplendor. Construir-se-ão belas e cômodas estradas como já houve em o tempo dos romanos. Cuidar-se-á da navegação dos rios para facilitar a comunicação da produções de todos os ramos de indústria. Todas estas vantagens farão renascer a paz, e a abundância por toda a parte. O homem dos Campos, o das Cidades, o Artista, o Negociante, todos erguerão as mãos ao céu, e abençoarão o dia em que virão a V. Majestade tomar por testemunha ao Ente Superior de jurar, a abraçar, a Constituição feita pelo povo reunido, e congregado, por meio de um pacto social, e de uma nova representação nacional. (p. 82-83). MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 35 Notas D ROZ , J. et al. Restaurations et revolutions. Paris: PUF, 1962. p. 8; W EHLING , Arno. Um problema epistemológico iluminista: a sucessão histórica nos “quadros de ferro” do paradigma newtoniano. In: ______. A invenção da história: estudos sobre o historicismo. Rio de Janeiro: UGF/UFF, 2001. p. 57 ss. 1 Sobre o liberalismo neste contexto, M ACEDO , U. B. de. A liberdade no império. São Paulo: Convívio, 1977. p. 39 ss e Metamorfose da liberdade. São Paulo: Ibrasa, 1978. p. 245 ss; BARRETO, Vicente. A ideologia liberal no processo de independência do Brasil (1789-1824). Brasília: Câmara dos Deputados, 1973; SALDANHA, Nélson. O pensamento político no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 47 ss; LIRA, Maria de Lourdes Viana. A utopia do poderoso império. Rio de Janeiro: Sete Letras, 1994. p. 191 ss. 2 Diário da Assembléia Constituinte, Sessão de 10 de julho de 1923. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1972. p. 386. v. 3. 3 SILVA, Antonio Delgado da. Colleção da Legislação Portuguesa. Lisboa: 1828. p. 236. v.3. No momento da revolução, tais preocupações atingiram o paroxismo no Rio de Janeiro, com o vice-rei, Conde de 4 36 Resende; Afonso Carlos Marques dos Santos. No rascunho da nação: independência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Prefeitura Municipal, 1982, p. 81 ss. MIRANDA, José Antonio de. Memória constitucional e política sobre o Estado presente de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Régia, 1821. p. 73 (ed. Fac. similar, com introdução de Raymundo Faoro. In: ______. O debate político no processo da independência. Rio de Janeiro: CFC, 1973. MARAVALL, José Antonio. Estado moderno y mentalidad social. Madri: Revista do Occidente, 1972. p. 287. v. 1. ______. Teoria del Estado en Espana del siglo XVII. Madri: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997. P. 227 ss. 5 6 Diário, v. III, p. 416. 7 Diário, v. III, p. 474-475. TORRES, João Camilo de Oliveira. A democracia coroada. Petrópolis: Vozes, 1963. p. 101; MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1967. p. 75. 8 M ARTEUCI , N. Constitucionalismo. Dicionário de política. Brasília, Ed. da UnB, 1998. p. 250. 9 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012 Referências BARRETO, Vicente. A ideologia liberal no processo de independência do Brasil (17891824). Brasília: Câmara dos Deputados, 1973. BRUNNER, O. Per una nova storia constituzionale. Milão: V. P., 1970. p. 205. ______. Constitucionalismo. Dicionário de política, Brasília: Ed. da UnB,1998. MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. Rio de Janeiro: Saga, 1967. FRANCO, Afonso Arinos de Melo. O constitucionalismo de D. Pedro I no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1972. MIRANDA, José Antonio de. Memória Constitucional e Política sobre o Estado presente de Portugal e do Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa Régia, 1821, p. 73 (ed. Fac. similar, com introdução de Raymundo Faoro. In: ______. O debate político no processo da independência. 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Rio de Janeiro: UGF/UFF, 2001. MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012 O judiciário e a dinâmica do sistema coronelista de poder no Rio Grande do Sul * The judicial power and the dynamic of coronelist power system in the Rio Grande do Sul Gunter Axt** Resumo: Este artigo propõe refletir sobre a relação entre a Justiça e as especificidades da dinâmica do sistema coronelista de poder durante a República Velha, no Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. A tensão entre poderes locais e poder central estadual é analisada à luz de uma periodização da época castilhista-borgista, tomando-se em conta, ainda, os instrumentos de coerção enfeixados nas mãos do presidente do Estado pela Constituição autoritária de 14 de julho de 1891. Aspectos da estrutura burocrática do Poder Judiciário e da política, bem como do sistema eleitoral e do poder infraestrutural do aparelho de estado, também são abordados. Palavras-chave: Coronelismo; política; Rio Grande do Sul; Poder Judiciário. Abstract: This paper expounds the relations between the Justice and the specificities of the “coronelistic” Power system, during trhe so called Old Republic (1889-1930), in Rio Grande do Sul State, Brazil. The tension between local powers and central power is analyzing by dividing the Presidents Julio de Castilhos and Borges de Medeiros period in regular intervals, and taking in account the coercive instruments that were given to the provincial President by the authoritarian State Constitution of 1891. Several administrative and bureaucratic aspects of Judicial Power, in relation with the infrastructural power of the state, are also taking in account. Keywords: Coronelism political system; politics; Rio Grande do Sul; Judicial Power. * Esse texto é uma versão revista e ampliada do artigo intitulado “O Poder Judiciário na sociedade coronelista gaúcha”, publicado no n. 82 da Revista da Ajuris, em 2001. É parte da tese de doutorado defendida em 2001, no Programa de Pós-Graduação do Departamento de História Social da Universidade de São Paulo, intitulada: Gênese do Estado burocrático-burguês no Rio Grande do Sul (1889-1928). A pesquisa que originou a tese, orientada pela Profa. Dra. Maria de Lourdes Monaco Janotti, recebeu financiamento do CNPq. ** Professor do Mestrado em Memória Social e Bens culturais da Unilassale/Canoas; pesquisador associado ao Núcleo de Estudos Diversitas/USP; e-mail: gunter@terra.com.br MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 39 A institucionalização da República no Brasil caldeou o enfraquecimento da autonomia municipal em benefício do fortalecimento dos poderes estaduais. Porém, o aparelho de estado continuou sendo burocrático e infraestruturalmente frágil. Dessa nova correlação de forças e de competências institucionais dimanou o “sistema de reciprocidade”, que caracterizou a política coronelista durante a República Velha. (LEAL, 1978, p.43, 81). No Rio Grande do Sul, onde a institucionalização do regime se fez a ferro e fogo sobre as campas da guerra civil e onde a Constituição de 14 de julho de 1891 municiava o presidente com notáveis instrumentos de centralização, a tensão entre poder estadual, lideranças regionais e municipais atingiu contornos específicos. (AXT, 2004). Ainda que a maior parte da historiografia insista que, no Rio Grande do Sul, o assim chamado “sistema coronelista” não vingou (AXT, 2001a), admitimos, juntamente com outros autores (FÉLIX, 1987; RAMOS, 1990), que ele pode ser identificado. A ruína das instituições monárquicas extinguiu o parlamentarismo e o Poder Moderador imperial, maestro na dança dos partidos, o que desregulamentou o embate entre as facções, doravante atirado à própria sorte. O líder republicano sul-rio-grandense Júlio Prates de Castilhos aliouse às facções minoritárias na maior parte dos municípios, fossem elas formadas por republicanos históricos ou por monarquistas adesos, com o fim de solapar, pela imposição, a hegemonia política liberal, açulando, desse modo, o violento revanchismo desencadeado a partir de 12 de novembro de 1891 – quando a dissidência republicana chefiada por Barros Cassal e aliada aos antigos liberais tomou o poder instituindo o assim alcunhado “Governicho” – bem como o contrarrevanchismo, de 17 de junho de 1892 – quando a facção castilhista retomou o comando do estado –, que teve, finalmente, por corolário a Revolução Federalista, em que se jogou boa parte do futuro da República brasileira. A Pacificação, de agosto de 1895, fechou o ciclo da institucionalização do regime no Rio Grande do Sul, mas não estancou a barbárie. (ESCOBAR, 1922, p. 60-67, 101). Até 1903, viveuse o ciclo intolerante da hegemonia da facção castilhista, muito embora o clima persecutório tenha arrefecido com a ascensão à presidência estadual, em 1898, do Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, ungido por Castilhos, cujo projeto político nacional fora abafado por Prudente de Moraes e Campos Salles. Entretanto, a morte prematura de Castilhos, em 1903, fez reascender o universo faccioso no interior do partido dominante, desencadeando uma crise de hegemonia.2 (AXT, 2001, 2004). 40 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 Borges de Medeiros foi, até outubro de 1903, o administrador fiel e dedicado ao chefe. Depois da morte do Patriarca, seu projeto pessoal de acumular a chefia do partido e o comando do governo, após quatro anos de ensaio, precisou ser adiado, devido à reação das demais estrelas partidárias. Em 1907, Fernando Abbott lançou-se candidato à sucessão estadual pela dissidência e com apoio de setores do Partido Federalista, frustrando momentaneamente o projeto borgiano, impondo-lhe um recuo tácito com a escolha de Carlos Barbosa Gonçalves como candidato oficial. Entre 1908 e 1913, Borges refugiou-se na chefia política do partido: enquanto Carlos Barbosa Gonçalves administrava o estado, empenhou-se na recomposição da rede de compromissos que o sustentaria mais tarde no poder. Conseguiuo em grande medida graças à aliança com o Senador Pinheiro Machado, que o cacifou em nível regional. Não obstante, Carlos Barbosa Gonçalves tentou rechaçar a condição de títere, procurando imprimir caráter pessoal à administração. (LOVE, 1975, p. 163; AXT, 2004). Durante seu terceiro mandato, Borges de Medeiros atravessou, com sucesso, a violenta cisão dos anos 1915 e 1916 – quando as fileiras dos antigos dissidentes foram engrossadas pelos Barbosa Gonçalves, pelos Menna Barreto, pelos Pereira de Souza, pelos Neves da Fontoura, por Ramiro Barcellos e até por Carlos Maximiliano – sagrando-se vitorioso e aquilatandose, finalmente, para a pretendida chefia unipessoal do partido. O sossego, então, foi interrompido apenas com as contestações de 1922, cujo desfecho foi a revolta assisista e o Tratado do Castelo de Pedras Altas. Borges permaneceria até janeiro de 1928 à testa do Poder Executivo, conservando também a chefia do partido. Ao transferir o cargo para Getúlio Vargas, deixava preparado seu retorno para o quinquênio seguinte, mas as decisões cada vez mais lhe escapavam. Os últimos anos de seu governo, açodado pela desorganização das finanças públicas, pela crise econômica e pelos levantes armados, ressentiram-se da crise de legitimidade e do enfraquecimento político. De nada lhe adiantou preservar a chefia nominal, pois a Revolução de 1930 foi tramada com discrição e desferida contra a sua vontade.3 A tensão que caracterizava o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) expunha nos municípios suas vísceras. Como qualquer outro partido durante a República Velha, em que pese a mistificação louvaminheira dos pósteros, o PRR foi também um somatório de facções dirigidas por comandos pessoais, em torno dos quais se articulavam redes de compromissos. A diferença esteve nos instrumentos de controle mais eficazes, garantidos pela MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 41 Carta Estadual de 1891, que podiam ser esgrimidos com mais precisão pela facção assenhoreada do poder. (AXT, 2002a). Além disso, descartaramse compromissos ideológicos com a representatividade institucional. Borges de Medeiros, no partido, era o comandante de uma dessas facções. No governo, era o poder sacerdotal que se pretendia moderador, arbitrando o entrechoque de vaidades e interesses.4 Conforme os objetivos de preservação e fortalecimento do poder, fazia e desfazia alianças com os cabeçilhas locais, compunha com o estrelato em potencial, esgalgando-lhe vitalidade sempre que possível. Borges procurava, ainda, intervir nas situações municipais, moldando-as, na medida do viável, às razões de estado e aos altos interesses que lhes davam sustentação, nem sempre, entretanto, levando vantagem. (AXT, 2004). Ao se pretender herdeiro do carisma de Castilhos, encampando a chefia partidária, Borges encontrou a maior parte dos municípios sob controle de situações políticas compromissadas com o Patriarca. Com frequência, a mesma liderança, em geral um coronel, veterano de 1893, enfeixava a intendência e a chefia local, com carta branca de Castilhos, especialmente no concernente à autonomia extralegal, característica do clássico sistema coronelista descrito por Victor Nunes Leal. (1978; LOVE, 1975, p. 48, 51). Porém, ao contrário do sugerido por Leal como tendência natural do sistema, após a morte de Castilhos, o oficialismo estadual entrou em rota de colisão com as correntes dominantes em muitos municípios, contribuindo no fomento a um clima de irritação. Castilhos levara para a sepultura o vínculo de solidariedade que articulava as lideranças, nos municípios, no estado e na Nação. Fernando Abbott, Cassiano do Nascimento e Pinheiro Machado disputaram a chefia com Borges de Medeiros.5 Enquanto o primeiro partiu para o embate em 1907, os dois outros entraram em acordo, cuidando doravante de dirigir a inserção da política estadual no âmbito nacional. Borges preferiu confrontar muitas das situações nos municípios, tentando fabricar correntes leais à sua rede de reciprocidade. Entre 1903 e 1908, houve, assim, troca de comando em diversos municípios: David Barcellos, por exemplo, foi desbancado pelos Neves da Fontoura em Cachoeira do Sul; em São Borja, os Mariense foram derrubados pelos Vargas; em Livramento, os Pereira de Souza perderam proeminência para os Flores da Cunha; em Santa Maria, Antero Corrêa Marques apoiou a dissidência e terminou deslocado da chefia política local; o Coronel Cândido Dias de Carvalho Guimarães foi zurzido em Lagoa Vermelha. Enfim, uma outra geração de políticos ascendeu junto com Borges de 42 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 Medeiros, em torno da qual arranjou-se uma nova rede de compromissos.6 Antigos dissidentes de Júlio de Castilhos, como os irmãos são-borjenses Álvaro e Homero Batista, ou como Bernardino Mota, de Canguçu, foram reabilitados por Borges de Medeiros. A partir de 1910, plenamente superada a crise de hegemonia de 1903 a 1907, a organização da rede de sustentação borgiana foi impulsionada pela estreita sintonia estabelecida com o governo Hermes da Fonseca, politicamente controlado por Pinheiro Machado. Enquanto diversos gaúchos eram lançados em postos-chave da política nacional – como José Barbosa Gonçalves, que dirigiu o Ministério da Viação, e Rivadávia Corrêa, titular da Pasta da Justiça –, Borges de Medeiros respondia com autonomia pelas nomeações para cargos federais no Rio Grande do Sul.7 A situação favorável se inverteu em 1915. Enquanto o Partido Republicano Conservador (PRC) acumulava contrariedades em nível nacional, e o império de Pinheiro Machado se esboroava, Borges de Medeiros foi acometido de grave enfermidade em maio de 1915, retirandose para uma chácara próxima da capital, retornando ao governo apenas um ano mais tarde. O retiro do chefe tinha também ligação com o desgaste que o rondava, pois o comando partidário foi repassado ao fiel Dr. Protásio Alves, secretário dos Negócios do Interior e da Justiça, no que se referia aos assuntos atinentes a algumas cidades, como Livramento, enquanto os de outras, como Cachoeira do Sul, continuaram sob direção borgiana. A administração governamental foi encampada pelo vice-presidente Salvador Pinheiro Machado, irmão do senador, o qual controlava a bancada gaúcha no Congresso. Para alguns, os irmãos chegaram a tramar a derrubada de Borges de Medeiros e a absorção da máquina partidária do PRR, mas tais maquinações teriam esbarrado na fidelidade da Brigada Militar ao presidente e no assassinato de Pinheiro Machado em 8 de setembro. (SOUZA, 1923). Além disso, a disputa da vaga senatorial em agosto de 1915 abriu severo dissídio no coração do partido. Ramiro Barcellos e seus aliados revoltaramse diante da indicação de Hermes da Fonseca por Pinheiro Machado, desencadeando uma cerrada campanha, a partir de um turbulento comício em julho, na capital, cujo saldo foi de nove mortos e quinze feridos por conta da ação repressora da Brigada Militar.8 O cisma provocou desfalques nas fileiras dos aliados da falange palaciana em municípios importantes, como Cachoeira do Sul e Santa Maria, repercutindo por todo o estado nas eleições municipais de 1916, o que traduziu, mais uma vez, a forte queda de braços entre poder estadual central MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 43 e poder local. A fraude eleitoral e as intervenções oficiais do palácio operaram substituições nos comandos de diversos municípios. Borges de Medeiros conseguiu suportar os anos difíceis, em que ainda por cima o governo estadual distanciou-se da gestão Venceslau Braz, reelegendo-se presidente estadual em 1917, com larga margem de vantagem. O desaparecimento de Pinheiro Machado fora conveniente para Borges de Medeiros e seus apoiadores, pois, dessa forma, pôde ele retomar o controle sobre a deputação gaúcha na Câmara, além de garantir a neutralização de certos dissidentes perigosos que se levantavam novamente na fronteira, como João Francisco Pereira de Souza, e que gozaram do apoio tácito do senador.9 Entretanto, o fortalecimento do poder palaciano desmobilizava o partido. Novas e antigas dissidências esperavam no limbo a chance de reversão do jogo. As mudanças de situações nos municípios foram, em geral, processos tingidos pela violência, pois resultavam da confluência, de um lado, do influxo de poder de Borges de Medeiros sobre o partido, ambicionando a ampliação do controle político em meio ao quadro de reconfiguração do comando, especialmente nas conjunturas de 1903 a 1908 e de 1916, e, de outro lado, da ebulição das dissidências, em disputa pelas vantagens intrínsecas às chefias locais. Denúncias de corrupção, prevaricação de autoridades públicas e arbitrariedades eram lançadas pelos contendores de ambos os lados das trincheiras. Por vezes, o clima de confronto entre partidários, às vezes de uma mesma grei, degenerou em tropelias, como a tomada do Clube Júlio de Castilhos, em Santa Maria, em setembro de 1907, ou em batalhas campais, como os enfrentamentos de 25 de novembro de 1907 e de 1920 e o motim de junho de 1917, em Lagoa Vermelha; ou, ainda, o ataque ao Clube Pinheiro Machado, em Livramento, em 1910; ou a chacina de Nonoay, em 1927. Em muitos casos, as sequelas perduraram por anos, sob a forma de dissídios e opróbrios que indispunham correligionários e jugulavam o desempenho eleitoral do partido. (AXT, 2001). No Rio Grande do Sul, o partido de oposição formalmente constituído estava, desde os desfechos da Revolução Federalista, excluído do lucrativo comércio de prebendas e vantagens. Segundo Wenceslau Escobar, eram tratados “como estrangeiros em sua própria terra”, não participando dos negócios do estado. (1922, p. 32). Quanto muito, a maragataria10 resistente pleiteava cargos federais, especialmente nos momentos em que o governo estadual andava em descompasso com a União. Ocasionalmente, os federalistas, ou pelo menos parte deles, aliavam-se às dissidências republicanas para tentar mais espaço nos municípios. Raramente tais alianças eram 44 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 coroadas pelo sucesso eleitoral, como o foram em São Gabriel, depois de 1908. Mas, no geral, o regime de exclusão foi mantido durante todo o período borgista, a fim de que os benefícios hauridos do controle do aparato estatal fossem distribuídos exclusivamente entre os pica-paus11, apodados de comensais da chimangorreia.12 Muito embora políticas de convivência e tolerância fossem ensaiadas, a partir de 1900, nas localidades onde a oposição era fortemente arregimentada, de maneira a neutralizar a ameaça de embate armado, não chegavam a aluir a impermeabilidade do sistema. A regra era a exclusão e a perseguição.13 Afastada a concorrência federalista, a disputa por vantagens acontecia fundamentalmente no interior do próprio PRR. Assim, após a morte de Castilhos, em 1903, a truculência costumava exacerbar-se entre correligionários. Apesar de ódios e as apostasias entre facções atingirem píncaros de atrição, ocasionalmente com graves prejuízos à ordem pública, a ruptura definitiva com o partido era recurso último. Nesse particular, a existência dos federalistas era conveniente ao poder palaciano, pois, no limite, o inimigo comum contribuía na conservação de certa unidade interna das hostes republicanas. (AXT, 2001). O clima de disputa intestina era generalizado. O comportamento das facções podia variar. Quando se tratava de uma rusga confinada ao âmbito municipal, eram mais improváveis desdobramentos que redundassem em críticas ao regime. Nesses casos, ambas as facções digladiavam-se pelo apoio do oficialismo e, mesmo que esse fizesse sua opção, permaneceria uma brecha para a recomposição. Assim foi com as disputas entre os coronéis Heliodoro Branco e Maximiliano Almeida em Lagoa Vermelha, em junho de 1917. (FRANCO, 1996, p. 17-34). Heliodoro Branco, que fora intendente entre 1892 e 1913, revoltado contra a reeleição, em 1916, de Maximiliano Almeida, reuniu cerca de dois mil homens e sitiou a cidade, exigindo a renúncia do Intendente e do Conselho, sem, no entanto, mesmo sofrendo severas reprimendas do líder partidário,14 deixar de registrar serem todos seus colaboradores fiéis correligionários borgistas.15 O confronto armado foi evitado, mas diante da demonstração de força e prestígio, Heliodoro Branco garantiu a intervenção de um emissário do presidente, o subchefe de Polícia Genes Gentil Bento, que pacificou os ânimos e mediou um acordo de convivência entre as partes.16 Articulações entre facções locais e lideranças regionais, contudo, podiam degenerar em ataques à direção unipessoal e à política econômica de Borges de Medeiros. Mesmo ostracisada pela máquina oficial, ou esmagada pelo concurso às armas, uma corrente mais contestatória poderia sobreviver, MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 45 seja aliando-se aos federalistas, seja constituindo quistos de resistência, como os Abbott, em São Gabriel, ou Assis Brasil, em Cacimbinhas. Cisões locais podiam repercutir em movimentos para a derrubada do governo central. Outro se não esse foi o objetivo dos dissidentes de 1907 e de 1915/1916, quando, inclusive, a insurreição armada foi divisada no horizonte. (SOUZA, 1923; AXT, 2001). Se algumas rupturas eram irreversíveis, reconciliações, entretanto, podiam ocorrer com frequência, a exemplo do sucedido com os Neves da Fontoura, os Flores da Cunha e os Vargas, que, em diversos momentos, incorreram em distanciamentos do líder palaciano, mas recompuseram as relações oportunamente. Como símbolo do processo de acomodação das dissidências, talvez possa ser invocado o caso Bernardino Mota. Obscuro vereador, durante o Império, em Canguçu, Mota conflitou-se com os diretores políticos locais, tornando-se colaborador de Castilhos com a Proclamação. Durante o governicho cassalista, foi perseguido e hostilizado pelos batalhões “patriotas”, dando o troco na Revolução Federalista. Arrimo castilhista na região, teve um processo judicial, em que fora responsabilizado pelo latrocínio de dois comerciantes com salvo conduto e membros de prestigiosas famílias locais, arquivado pelo líder. Mas, logo depois, ao se envolver num atentado contra o partidário Leão Terres, foi afastado por Castilhos da direção política municipal. Em fevereiro de 1898, durante os festejos carnavalescos e apenas um mês após a assunção de Borges de Medeiros ao governo estadual, tendo desrespeitado a orientação castilhista e sufragado o nome de Campos Salles nas eleições federais, envolveu-se, por motivos privados, numa discussão pelas ruas da cidade e terminou tomando, a tiros, auxiliado por seus capangas a cavalo, a estação telegráfica. Pouco depois, acossado pela Brigada Militar, buscou abrigo no General Carlos Telles, no Comando Militar em Bagé, que a essa altura atritava-se com Castilhos. Em represália, a Justiça gaúcha, instigada pelo presidente do estado, desarquivou os processos contra Bernardino, datados do período revolucionário e abriu um novo, acusandoo de sedição. Diante do impasse estabelecido entre os governos estadual e federal, a conselho do próprio ministro da Guerra, Bernardino se homiziou no Uruguai. Por solicitação de Borges de Medeiros, as autoridades orientais prenderam-no, mas não tendo chegado o pedido de extradição do ministério da Justiça depois de um mês de delongas, terminou liberto e permaneceu exilado. 46 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 Em 1904, entretanto, em meio à ebulição das facções, retornou a Canguçu, onde mantinha propriedades, convertendo-se, novamente, em prosélito de Borges, que o brindou com uma sinecura e com o rearquivamento dos processos. (CABEDA, 2000). O episódio ilustra bem como simples disputas pessoais em nível local, uma vez inseridas na rede de compromissos coronelísticos, podiam ser amplificadas, ganhando relevo estadual, nacional e repercutindo, até mesmo, internacionalmente. Outrossim, o caso Bernardino Mota registra como as alianças entre lideranças partidárias podiam ser dissolvidas ou recompostas, conforme interesses personalizados, destituídos de compromissos ideológicos ou programáticos mais sólidos. No talante de manietar ao máximo as situações municipais, Borges lançava mão de um feixe de estratagemas, legais e extralegais. Nesse esquema, a manipulação dos cargos públicos era crucial. Chamando a si a competência por nomeações, além de dispor de uma moeda de troca política com os coronéis, garantia aliados com vínculos de colaboração direta nos municípios. Borges assegurava melhor “controle orgânico”17 sobre parte do funcionalismo policial e do jurídico, além de inspetores, fiscais e procuradores fazendários ou das Obras Públicas. A organização da segurança pública no Rio Grande do Sul se deu a partir da Lei 11, de 4 de janeiro de 1896, 18 cuja redação teria sido encomendada por Castilhos ao então desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros. (AZEVEDO, 1985, p. 25). A estrutura policial era composta pela corporação militar congregada na Brigada e pelas polícias judicial e administrativa, sem mencionar a Guarda Nacional e os corpos provisórios, a chamada “Guarda Civil”, os quais podiam ser convocados com apoio dos coronéis sempre que a estabilidade institucional era colocada em xeque. O Rio Grande do Sul possuía um dos maiores contingentes armados na corporação militar estadual, que chegou a reunir 3.200 homens, constituindo-se, sem dúvida, numa garantia especial contra ameaças de insurreição da oposição, contra intervenções federais e, mesmo, contra a insubordinação de coronéis recalcitrantes. Por sua vez, as patentes da Guarda Nacional eram concedidas pelo governo federal, a partir de indicações estaduais. O controle sobre as patentes era fundamental para as facções, pois, além de uma fonte de autoridade, concediam ao titular imunidade em face de certos processos-crime. Ocasionalmente, a distribuição de patentes podia fugir ao controle de Borges de Medeiros, sendo intermediada por uma liderança de projeção nacional do partido de forma a beneficiar uma MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 47 facção concorrente da palaciana nos municípios, como se deu durante a gestão de Carlos Maximiliano Pereira dos Santos à frente do Ministério da Justiça, entre 1914 e 1916. A Constituição de 14 de julho de 1891, procurando fazer coexistir a autonomia local com a intervenção do poder central estadual nos municípios, estabeleceu a superposição das polícias: enquanto a chamada “Administrativa” era custeada pelos municípios e comandada pelos subintendentes, a polícia “Judiciária” compunha-se, nos municípios, dos delegados e subdelegados, estando submetida ao secretário do Interior e Justiça, à chefatura de polícia e às quatro subchefaturas regionais, as quais podiam dispor dos regimentos brigadianos, embora eles não estivessem sob seu comando direto. A Brigada Militar, por sua vez, registrava alto grau de fidelidade ao Palácio, bastando, para isso, mencionar que sobre ela vigia o Código Penal da Armada, o qual, esgrimido pela comandância, sempre indicada pelo presidente do estado, cominava sentenças, incluindo castigos corporais e a pena de morte, que apenas podiam ser apeladas ao mesmo presidente. Em 19 de junho de 1918, entrou em funcionamento o Conselho de Apelação da Justiça Militar, corte recursal formada por cinco membros, todos nomeados pelo presidente do estado, dos quais um era juíz togado. O órgão auxiliou na manutenção da disciplina da tropa e serviu para reforçar a autonomia federativa do estado em face das Forças Armadas para julgar praças e oficiais militares. (PEREIRA, 1923, p. 41; AXT, 2003). Os chefes de polícia costumavam ser indivíduos de influência no âmbito da rede de compromissos e aliados do chefe palaciano, como Firmino Paim, jurista, grande estancieiro, apoiador de Borges por ocasião do dissídio de 1907, que, mais tarde, foi seu secretário pessoal e diretor político de Lagoa Vermelha, Vacaria e São Francisco de Paula, municípios da região serrana norte. O chefe de polícia coordenava a manutenção da ordem pública, combatendo o crime, distribuindo a força policial pelo estado, intermediando negociações com os coronéis locais ou de grevistas urbanos com o governo e empresários. Havia, ocasionalmente, chefes de polícia burocratas, cuja função era ocupar transitoriamente o cargo, administrando a transferência do mesmo de um para outro coronel. Em certas ocasiões de crises institucionais envolvendo a força pública, podia também ocupar o cargo interinamente um membro do Poder Judiciário. (AXT, 2001). Tinha por auxiliares diretos os subchefes, em número de quatro, correspondendo cada qual à jurisdição sobre diferente região do estado. Embora não comandassem diretamente unidades da Brigada Militar, podiam 48 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 requisitar seus efetivos a partir de autorização do presidente. (LOVE, 1975, p. 85). As subchefaturas eram geralmente ocupadas por chefes políticos, sobre os quais o presidente do estado e líder do partido procurava estabelecer uma relação de controle, mas que, de ordinário, se baseava na cooperação mais do que na subordinação. Alguns ocupavam o posto na sua própria região de influência, como Firmino de Paula, Victor Dumoncel e Vazulmiro Dutra, para a região de Cruz Alta e Palmeira das Missões (FÉLIX, 1987, p. 121), ou como Ramiro de Oliveira, na de Santa Maria, e, ainda, como João Francisco Pereira de Souza e Francisco Flores da Cunha, na de Livramento. Nesses casos, a nomeação era uma demonstração de força das lideranças locais e de sintonia da rede local de compromissos dominante com o poder central. Por isso mesmo, em torno da subchefatura podiam estalar graves conflitos entre facções, como aquele coroado pelo ataque ao Clube Pinheiro Machado, em Livramento, em 1910. Podia, entretanto, acontecer de os coronéis assumirem o cargo em outra região que não aquela correspondente à sua área de influência direta, como Genes Bento, que empolgou o comando sobre a região serrana norte depois que sua chefia política, em Canguçu, enfraquecera. No Planalto Central, aconteceu ainda de Borges de Medeiros indicar para períodos curtos bacharéis de Direito estranhos à região, a fim de conduzir a transição entre um e outro coronel poderoso no comando da subchefatura. (AXT, 2001). Os subchefes de polícia eram muito mais do que funcionários responsáveis pela segurança pública, pois exerciam, na prática, atribuições de agentes políticos. Ramiro de Oliveira, por exemplo, intercedia junto às lideranças de diversos municípios, como Cachoeira do Sul, Santa Maria, São Sepé, Santa Cruz, São Francisco de Assis, São Sebastião e outros mais, costurando acordos entre os coronéis em benefício do governo. Nesse caso, o subchefe de Polícia agia como um braço do Poder Moderador, que arbitrava conflitos entre as facções do partido em toda uma região. No motim de Lagoa Vermelha, em 1917 (FRANCO, 1996, p. 32), esse foi precisamente o papel desempenhado pelo subchefe Genes Bento. (AXT, 2001). Estavam entre suas atribuições presidir e fiscalizar eleições em comunas convulsionadas, assim como sindicar conflitos entre autoridades policiais, judiciárias e administrativas. Em Canguçu, durante 1906, a insistência do delegado de Polícia, Manoel da Rocha, membro de uma facção dissidente, em manter presos dois suspeitos por tempo superior ao alvitrado pelo então intendente Genes Bento, que se achava de acordo com o juiz da comarca e o promotor, motivou uma crise política e um choque de MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 49 competências, apenas apaziguado com a intervenção do subchefe de Polícia Ten. Cel. Cristóvão dos Santos. Essa prerrogativa, todavia, podia extravasar a simples mediação. Em abril de 1900, em meio a um impasse político local, o subchefe Euclides Moura interveio no Herval em favor de uma facção. Em julho de 1908, a ação opressora do Subchefe Carlos Nunes Nogueira foi ainda mais violenta na imposição do candidato palaciano. Em 1913, um subchefe de polícia comunicou ao intendente eleito de Rio Grande que Borges de Medeiros decidira pela sua renúncia.19 Os delegados e subdelegados de polícia eram funcionários escolhidos geralmente de comum acordo entre os “manda-chuvas” locais e o comando palaciano. Os cargos poderiam ser preenchidos por qualquer cidadão, não havendo requisição de diplomas ou necessidade de concurso público. Assim como em todo o País. (LEAL, 1978, p. 47, 103; FERREIRA, 1989), no Rio Grande do Sul, o uso político da Força Pública também era fundamental para a manutenção do status quo. Enquanto o poder regional central tinha controle mais efetivo sobre os subchefes de polícia, as situações locais aspiravam dominar com mais abrangência a ação dos delegados e subdelegados, atiçando-os não raro contra a facção concorrente. Destarte, em torno da figura dos delegados, estabeleciam-se atritos. Podia acontecer de Borges de Medeiros, através do subchefe de polícia, nomear como delegado um membro da facção oposta àquela que empolgava a intendência, garantindo, dessa forma, um certo equilíbrio de forças entre os grupos rivais. Em muitos casos, “por medida de economia”, os delegados ou os subdelegados acumulavam também as subintendências. Esse artifício era especialmente adotado pelas chefias locais para manter a subordinação de “distritos difíceis”, com forte presença de eleitorado flutuante e/ou federalista, pois se garantia, na unidade da polícia, um comando forte. Nesses casos, dependendo da origem da indicação, se o chefe político local ou geral, a fusão podia representar maior ou menor poder de afirmação da facção em relação ao poder central. Os delegados e subdelegados, assim como os subintendentes, eram, via de regra, importantes agentes para a conquista de confortáveis margens de vantagem eleitoral. Por isso, como homens de confiança do intendente, ou chefe político, convinha que dessem mão forte à cabala. Nos casos em que a presença do subdelegado coexistia com a do subintendente, podiam sobrevir conflitos de competências entre as duas autoridades. (MEDEIROS, 1980; AXT, 2001).20 A tensão entre poder central e lideranças locais era bastante perceptível em torno das funções exercidas pela Justiça. Conforme a Lei 10, de 50 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 organização judiciária, de 10 de dezembro de 1895, cuja redação também teria sido encomendada por Júlio de Castilhos ao ainda desembargador Antônio Borges de Medeiros, a fim de consolidar o Decreto 16 de 1892, a administração da Justiça gaúcha dividia-se em comarcas – firmadas em número de 32 pela Lei de 15 de janeiro de 1898 – e distritos. Em cada distrito atuava um juiz distrital, que tinha três suplentes, cujas principais atribuições eram homologar contratos, abrir testamentos, presidir casamentos, proceder a corpo de delito, preparar e julgar em primeira instância as causas cíveis, até o valor de 500 mil-réis, e preparar processoscrime. Os juízes distritais estavam submetidos hierarquicamente aos juízes da comarca, que moravam nas sedes. As apelações das sentenças seguiam para a capital, onde funcionava o Superior Tribunal, composto por sete desembargadores,21 nomeados pelo presidente do estado, obedecendo aos critérios de antiguidade e merecimento. Os juízes da comarca, conforme o artigo 54 da Constituição, eram nomeados pelo presidente do estado, mediante concurso, sem exigência de diploma, realizado pelo Superior Tribunal e coordenado pelo presidente da Corte. Conforme o artigo 42 do Capítulo IV, da Lei 10, em concurso seriam preferidos aqueles candidatos que houvessem prestado “assinalados serviços ao Estado”, na condição de juiz distrital ou promotor público. Os juízes de comarca eram vitalícios e podiam ser removidos a pedido próprio ou “por conveniência pública”. A eles competia julgar, em primeira instância, todas as causas cíveis de valor superior a 500 mil-réis e, em segunda instância todas aquelas cujo valor não ultrapassasse esse limite, pronunciar e julgar crimes comuns, políticos ou de responsabilidade de funcionários e autoridades públicas e judiciárias, além de presidir o tribunal do júri. Os arautos do regime costumavam alardear as garantias previstas na Carta de 14 de julho, bem como nos diplomas posteriores, à magistratura, o que permitiria a autonomia e a liberdade de ação para o Judiciário. Emílio de Campos, em 1903, sintetizou a lógica do constitucionalismo castilhista ao qualificar o Judiciário como “um órgão do aparelho governativo”, cuja autonomia assentava-se não no fortalecimento institucional, mas nas garantias de competência, prestígio e independência oferecidas à magistratura, por meio de concurso público, de vitaliciedade e de inamovibilidade. (CAMPOS, 1903, p. 38-42). Ora, muito embora essas prerrogativas garantissem autonomia aparente, na prática, o Judiciário sofria direta tutela do presidente do estado: não possuía dotação orçamentária própria e enviava mapas estatísticos anuais à MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 51 Secretaria do Interior e da Justiça para dar conta de suas realizações; os membros e funcionários do Poder Judiciário não usufruíam um plano de carreira objetivo; não se via o presidente do Tribunal proferindo discursos nem tampouco o Judiciário promovendo solenidades oficiais. Muitos também eram, além disso, os aspectos subjacentes à formalidade legal que constrangiam a liberdade da magistratura. A sistemática de composição do desembargo sugeria o alinhamento do Superior Tribunal em questões de interesse político, transformando-o em potencial instrumento no processo de cooptação, enfrentamento ou colaboração entre o presidente do estado e as lideranças locais. A permanência do desembargador James de Oliveira Franco e Souza por 20 anos (de 1894 a 1914) na presidência do Tribunal pode ser explicada, talvez, justamente na influência que o Executivo exercia sobre o Judiciário. Efetivamente, Borges de Medeiros era assoberbado de pedidos dos coronéis para intervir junto à Desembargadoria, a fim de condicionar sentenças. Em 1899, por exemplo, o Coronel David Barcellos, líder partidário e Intendente em Cachoeira do Sul, pediu a Borges de Medeiros para “falar com os desembargadores a fim de absolverem” um “infeliz amigo nosso” recolhido há quatro meses à prisão pelo juiz da comarca. Menos polido, solicitou em seguida para “chamar a atenção dos desembargadores” em outro caso, objetivando desfazer sentença contrária do mesmo juiz às pretensões do correligionário Antônio Corrêa Marques em um certo processo de reivindicação de custas.22 Em 1907, também em Cachoeira, intrigas de facções levaram o oficial do Exército Kurt Pachaly, o Capitão Pedro Modesto e o Alferes Alberto Krämer às barras do Tribunal, diante do qual nutriam expectativa por decisão favorável, graças à “benevolência e sentimentos nobres” do presidente Borges.23 As decisões do Tribunal, confirmando ou revogando sentenças dos juízes da comarca, tinham impacto sobre a acomodação das facções nos municípios e nos distritos.24 A estrutura de organização judiciária convertera Borges de Medeiros em uma espécie de instância revisora, submetidos que estavam os processos judiciais à filtragem sub-reptícia do dirigente palaciano. (AXT, 2001c ). O discurso opositor ao regime atribuía à interferência moderadora de Borges de Medeiros junto aos juízes e ao desembargo a proteção dispensada pela Justiça aos assassinos de Inocêncio Garcia, em Vila Rica, de Benjamim Torres – célebre caso envolvendo a família Vargas em São Borja –, de Nicanor Peña, em Bagé, de Bolívar Barbosa, em Itaqui, de Milo Netto, em Rosário, dos irmãos Pereira de Souza, em Livramento, e do Coronel Vasco 52 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 Alves, no Alegrete. Mais do que isso se denunciava que boa parte dos suspeitos desses assassinatos teria posteriormente assumido o comando de corpos provisórios, especialmente durante os sucessos de 1923. (VELHO, 1923, p. 49; MEDEIROS, 1980, p. 180; AXT, 2001c). Dentre os casos mais comentados na época de interferência política nas sentenças do Tribunal dardejava o processo movido contra Wenceslau Escobar. Pesando sobre ele uma acusação de calúnia e difamação, lançada pelos irmãos Evaristo e o senador Carlos Barbosa Gonçalves por conta do que afirmara nos seus “Apontamentos...” (ESCOBAR, 1919), não foi pronunciado pelo juiz da primeira instância. Entretanto, o Superior Tribunal reformou a sentença e, depois de publicado o acórdão, entendeu ainda ser tíbia a pena cominada, aumentando-a 35 dias mais tarde. A sentença foi suspensa por força de um habeas-corpus do Supremo Tribunal de Justiça. Considerando a fortaleza federativa brechada, o Superior Tribunal reapresentou a denúncia pelo mesmo delito. (ESCOBAR, 1922, p. 205). De fato, o Código de Processo Criminal do Estado, Lei 24, de 15 de agosto de 1898, pelo artigo 515, facultava apelações indefinidas, desde que a pena não fosse inferior a 20 anos de cadeia. Plínio Casado impetrou habeas-corpus o Supremo Tribunal em favor de Irineu de Freitas Guimarães, federalista três vezes absolvido e três vezes mandado, a pedido do chefe do Diretório Municipal do PRR de Porto Alegre, para novo júri pelo Superior Tribunal. (ESCOBAR, 1922, p. 88-89; PEREIRA, 1923, p. 38-40). Ao contrário de Irineu Guimarães, o assassino do federalista Nicanor Peña, Cel. Lucas Martins, depois de duas vezes condenado por diferentes júris, foi absolvido pelo Superior Tribunal em Porto Alegre, numa sentença considerada, na época polêmica, pois que abriu a dissidência do desembargador José Valentim do Monte, único a dar voto contrário. (ESCOBAR, 1922, p. 172; AZEVEDO, 1985, p. 25; AXT, 2001c). O direito processual penal castilhista-borgiano vazava outras peculiaridades. Muito embora o inquérito policial tivesse sido abolido, a formação de culpa era dividida em duas fases: a dos atos secretos e a dos atos públicos. Na primeira, o denunciante reunia cinco testemunhas, e o juiz inquiria-as sem a presença do réu. Considerando-se que os juízes distritais eram demissíveis ad nutum, o manejo dos depoimentos costumava ser prática corrente.25 Na segunda fase, aberta poucos dias depois de encerrada a fase secreta, impetrante e réu apresentavam, cada qual, cinco testemunhas, enquanto o acusado, apenas cinco. Nessa fase, a reinquirição das testemunhas de acusação da fase secreta, embora possível, podia ser obstada pelo MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 53 desaparecimento do depoente, ou mesmo pela sua morte, o que não invalidava o depoimento original. (ESCOBAR, 1922, p. 86-87). A falta de garantias ao acusado continuava na formação do júri. Enquanto a tradição processual penal brasileira preconizava o sorteio de 12 jurados dentre 36 ou 48 cidadãos indicados, o Código gaúcho determinava o sorteio de cinco jurados dentre apenas 15 indicados, o que evidentemente reduzia as chances de surpresas e insubordinações e aumentava o poder de interferência do governo, máxime com a negativa à defesa do réu ao direito de recusação dos jurados, bem como com a supressão do voto sigiloso, constrangendo o júri ao voto público. (ESCOBAR, 1922, p. 95-96). Se depois de tudo isso, ainda sobrevinham condenações a aliados políticos, a facilitação da fuga da cadeia convertia-se em último recurso. Assim se deu, por exemplo, com o assassino do Juiz Municipal e de Órfãos de Santa Maria, Felipe Alves de Oliveira, morto a tiros em 12 de agosto de 1891, em plena via pública. Condenado pela segunda vez pelo júri à pena máxima de 30 anos de reclusão, o que impediria novos recursos, o republicano e Coronel da Guarda Nacional Martins Hör foi transferido, em 1894, da cadeia de Porto Alegre para Santa Maria, de onde se evadiu com tranqüilidade. (CARDOSO, 1978, p. 76-78). A implantação da Lei de Organização Judiciária e da legislação processual penal não se processou sem resistências, precisando do apoio firme da magistratura, do partido e da imprensa governista. Ao abrir a primeira sessão do Tribunal do Júri após a promulgação da nova lei, em 28 de março de 1896, o Juiz da Comarca de Rio Grande, Dr. Alcides Lima, negou-se a aplicá-la, considerando-a ofensiva à Constituição Federal e, mesmo, à estadual, no que respeitava ao voto a descoberto e à impossibilidade de recusação do júri, iniciativa que desencadeou longas batalhas judiciais. (NEQUETE, 1973, p. 20). No fim de 1898, em Santa Maria, ao ser sorteado na sessão ordinária do júri para compor o conselho que sentenciaria dois soldados da Brigada Militar, acusados de roubo, o cidadão João Pinto recusou a investidura, por se sentir coagido em virtude da votação a descoberto, diante do que foi admoestado pelo Juiz da Comarca, Dr. Olavo Godoy, que o fez ver que “a desobediência a qualquer lei, emanada de autoridade competente, constituía crime”. No dia seguinte, a imprensa governista local fustigou o “jurado dissidente”, marcando-o como inimigo na trincheira.26 54 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 Os juízes da comarca, por sua vez, eram, em geral, aliados do presidente, que usufruía eficazes mecanismos de controle sobre a carreira. Os concursos de admissão podiam ser manipulados. Havia proponentes que sequer se expunham aos testes sem consulta prévia ao líder palaciano.27 Uma vez nomeado, a subordinação do juiz era assegurada por meio do sistema de concessão de promoções e, até mesmo, das aposentadorias, que dependiam de decretos do presidente do Estado. As raras insubordinações eram enfrentadas, se não com remoções e com a imposição de prejuízos à carreira, por métodos mais sutis. Em Caxias do Sul, por exemplo, com a dificuldade de justificar o “interesse público” na remoção do juiz José Gonçalves Ferreira Costa, que prolatava sentenças contrárias aos objetivos do presidente Borges e seus aliados em plena crise da cisão republicana, o Decreto 1.226, de 17 de dezembro de 1907, transferiu a sede da comarca para Bento Gonçalves, convertendo Caxias do Sul em termo, ao lado de Garibaldi. Posteriormente, diante da acomodação dos interesses, a sede foi restabelecida em Caxias do Sul, pelo Decreto 2.408, de 26 de abril de 1919. (ASSIS BRASIL, 1923; ALMEIDA, 2003). Em outro episódio, Borges de Medeiros orientou o intendente e chefe político de São Gabriel, Salvador Pinheiro, a iniciar um processo de destituição do cargo contra um juiz inconveniente através de petição documentada ao Superior Tribunal, por cuja sentença favorável assumiria integral responsabilidade.28 A prática da Justiça era um terreno onde reboavam com intensidade os interesses privados e as disputas facciosas. Processos, contratos, testamentos, sentenças e julgamentos eram, frequentemente, motivos de atrição entre correntes e lideranças partidárias. Alguns episódios podiam tornar-se extremamente nervosos, justamente por colocarem à prova o prestígio político de um coronel. Foi o caso de um julgamento, entre tantos outros com os quais o mesmo se passou, em Cachoeira do Sul, em 1898, quando o subchefe de Polícia, Ramiro de Oliveira, empenhou-se, oferecendo garantias aos jurados amedrontados, pela condenação de dois capangas, mas enfrentava oposição de advogados e chefes políticos locais.29 A fim de garantir o seu interesse político e o de seus aliados, Borges de Medeiros procurava intervir em algum momento da ação judicial. Era comum os juízes de comarca consultarem o presidente a respeito do procedimento mais adequado a ser adotado.30 Sem dúvida, o conjunto dessa interferência era sempre conduzido com discrição e cuidado, para não deslustrar a imagem de isenção da Justiça. Até os próprios coronéis reconheciam que, em certos MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 55 casos, não havia como evitar denúncias ou processos contra protegidos, diante da repercussão extremamente negativa que a desconsideração do caso poderia suscitar.31 Borges de Medeiros esperava dos juízes de comarca relativo distanciamento em face das disputas locais e equivalente lealdade ao governo. Essa condição era facilitada pela origem externa ao Rio Grande do Sul, onde os cursos de Direito foram tardios, de parcela considerável da Magistratura, que, ao fim e ao cabo, desempenhava papel semelhante, na República, àquele dos juízes de fora durante a Colônia e dos juízes de direito durante o Império, como instrumentos do poder central nos municípios (LEAL, 1978, p. 188), muito embora o poder central, antes enfeixado pelo imperador, estivesse agora nos estados. A cooptação e filtragem dos magistrados naturais de outros estados dispostos a atuar no Rio Grande do Sul eram irradiadas a partir dos prepostos do PRR no Congresso Nacional, muito especialmente o senador Pinheiro Machado. O deputado federal e redator da Federação, Arthur Pinto da Rocha, era também um grande fornecedor de “candidatos”. (MENDES, 1999, p. 68). Mas o grau de autonomia dos juízes em relação às facções variava de um caso para outro, conforme os acordos e as acomodações políticas em andamento. Em Lagoa Vermelha, durante o levante de 1917, a imparcialidade do juiz Álvaro Franco guindou-o naturalmente à condição de mediador entre as facções, representando, aliás, desgaste pessoal suficiente para que o mesmo solicitasse a transferência a uma comarca menos turbulenta.32 Se, nesse caso, os contendores identificaram no juiz uma autoridade neutra, eram, por outro lado, frequentes os choques das lideranças locais com os cabeças de comarca. O mesmo Coronel Heliodoro Branco, do motim de 1917 em Lagoa Vermelha, quando intendente e chefe político, em 1905, queixou-se várias vezes ao presidente acerca do modo de procedimento “altamente prejudicial” do Juiz da Comarca Alberto Chaves, que estaria faltando com “a lealdade de correligionário”, tendo, inclusive, rompido com escrivães, aliados do Coronel, e com o juiz distrital, cunhado de Heliodoro.33 Alberto Chaves, que, em contrapartida, era naturalmente elogiado pela facção minoritária na cidade, terminou sendo removido para Rio Pardo, não sem antes garantir que o Coronel Cândido Guimarães, castilhista intransigente, deixasse de acumular indevidamente o cartório de órfãos e o notariado, indispondo-o com os demais correligionários, ao desmoralizá-lo e fazê-lo perder eleitores e forçando sua saída da Comissão Executiva do PRR local, a qual integrava desde 1890.34 56 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 A ação de um juiz da comarca, Dr. Batista Gonçalves, com apoio a Borges de Medeiros pelos bastidores, também esteve na origem do processo de dissidência do Coronel Isidoro Neves da Fontoura, de Cachoeira do Sul, que se agastou ao serem citados e presos correligionários seus, autoridades e funcionários públicos, envolvidos num escândalo de falsificação de um testamento, fraude, aliás, corrente.35 Em 1901, Carlos Barbosa Gonçalves, chefe político de Jaguarão, queixava-se a Castilhos e a Borges de Medeiros da sentença condenatória do juiz da comarca contra uma autoridade administrativa local e da confirmação da sentença pelo Superior Tribunal: “Os desembargadores estão maragateando e fazendo política dentro do Tribunal”.36 Ao que responderam, os líderes acatarem “a autonomia legal da magistratura”, não podendo, ainda, a “Federação apreciar de qualquer modo os atos do Superior Tribunal”.37 Além de coibir irregularidades, constranger o comércio de vantagens e encaminhar desfavoravelmente processos judiciais, o juiz da comarca podia ainda prejudicar um chefe político local ao lavrar a ata eleitoral de organização dos mesários e de divisão das mesas por sessões, que estava sob sua responsabilidade.38 Assim, política, administração e Justiça andavam de mãos dadas. Borges de Medeiros sabia lançar mão dos seus trunfos quando queria desprestigiar um chefe local. Se a pressão tornava-se muito forte, removia o juiz, com a certeza de ter provocado algum estrago, pois a ação do magistrado atingira a respeitabilidade moral do chefe político. Em contrapartida, o juiz também ficava exposto a intrigas e maledicências que visavam a atingir sua honorabilidade perante o chefe e perante a opinião pública.39 Do mesmo modo que utilizava a Justiça para comprimir os poderosos locais, Borges podia alinhá-la aos interesses de uma facção que se dispunha a prestigiar, conquistando, desse modo, especial gratidão e lealdade dos seus integrantes. Em julho de 1918, a mando do intendente de Santa Maria, Astrogildo de Azevedo, soldados da Brigada Militar comandados pelo Subintendente da sede e Delegado de Polícia, Raul Soveral, assaltaram o prédio onde funcionava o jornal federalista Correio da Serra – que há várias semanas zurzia a situação política com uma campanha difamante –, empastelando a tipografia e atentando contra a vida do proprietário, Arnaldo Mello, o qual, auxiliado por sua esposa, valente atiradora, rechaçou a investida, fazendo um dos soldados tombar junto ao leito do casal, indo outro ainda falecer no hospital horas mais tarde. O episódio precipitou a queda do intendente, determinou a denúncia do delegado pelo promotor e conturbou a política local. Meses depois, entretanto, o juiz da comarca, MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 57 Florêncio Carlos de Abreu e Silva, logo em seguida premiado com nomeação para o desembargo, não vendo nos autos atentado de morte, apenas crime de dano material, julgou não ser o caso de procedimento oficial, obstando a continuidade do processo, num despacho que foi confirmado posteriormente pelo Superior Tribunal. Liberto, o ex-delegado Raul Soveral assumiu a redação de um jornal situacionista, tornando-se inflamado defensor do regime.40 Em 1913, o intendente e chefe político de Cachoeira do Sul, Balthazar de Bem, pediu, com sucesso, a interferência de Borges de Medeiros junto ao Juiz da Comarca, Alberto Chaves – o mesmo que tanto “bochincho” criara em Lagoa Vermelha e Rio Pardo –, a fim de que esse revertesse sentença num caso de habeas-corpus para uma prisão efetuada pela polícia administrativa, comandada pelo próprio intendente.41 De fato, conflitos de competências entre a polícia administrativa e a Justiça eram correntes. Passados alguns meses, o fenômeno se repetiu, arranhando a autoridade do intendente e constrangendo o juiz, diante de nova reprimenda, a desculparse com o presidente Borges.42 Mas nem sempre Borges dispunha de controle absoluto sobre os magistrados. Podia acontecer de um juiz da comarca aliar-se a um poderoso coronel e, assim, não acatar todas as determinações do chefe. Assim foi, mais uma vez, com o irrequieto Alberto Chaves, que, em meio ao ruidoso “caso dos habeas-corpus”, buscou proteção do Coronel Horácio Borges, tio do presidente, o qual, nesse momento, estava em dissensão com a Intendência de Cachoeira do Sul, criando, por tabela, problemas para seu sobrinho governante.43 O juiz acabou sendo removido. E por não ter sido defendido por Horácio Borges como esperava, denunciou um esquema de corrupção entre os escrivães do cartório indicados pelo coronel, o que custou o afastamento de um protegido seu.44 Para admoestar os coronéis, Borges deixou Cachoeira do Sul por vários meses sem Juizado de Comarca, o que emperrou o trabalho forense. Quanto a Alberto Chaves, esse foi transferido para Santa Maria, onde atuou entre fevereiro de 1915 e janeiro de 1918 e desgostou a facção dominante por recusar títulos eleitorais fraudados e, novamente, vinculou autoridades a denúncias de prevaricação.45 Havia juízes da comarca que, ao contrário, viviam em sintonia com o comando de uma forte facção municipal, escapando do controle borgiano. Assim se dava, em especial, na Comarca de Livramento, onde, frequentemente, os magistrados eram reconhecidos pelos chefes partidários como um “companheiro dedicado e leal”.46 O quadro se repetia em São 58 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 Gabriel, onde a facção liderada pelo dissidente Fernando Abbott permanecia forte. (VARGAS, 2002). Nesses casos, como de resto também falhasse o promotor, um grupo de descontentes podia encaminhar ao chefe e presidente estadual denúncias dos esquemas de corrupção que envolviam funcionários da Justiça.47 Borges de Medeiros costumava manter espias em certas localidades para confirmar tais denúncias, alguns dos quais eram os próprios promotores públicos ou, ainda, fiscais da Fazenda. Mas, diante da força de lideranças consolidadas, pouco podia fazer, pois eventuais substitutos não tardariam a ser seduzidos pelo poder local, que, afinal, também se impunha ao próprio presidente. O máximo ao seu alcance, nesses casos, era aparelhar uma outra facção para a conquista do poder, o que certamente traria consequências para a estabilidade política estadual e nem sempre se constituía em garantia de maior controle em benefício do poder central. As funções dos juízes distritais tinham uma conotação mais clara. As nomeações eram temporárias e invariavelmente feitas pelo presidente do Estado a partir de indicações dos chefes políticos municipais, que, por sua vez, com frequência, recorriam às sugestões dos chefes distritais.48 Os mandatários não precisavam ser necessariamente formados em Direito e podiam continuar exercendo, simultaneamente, outras profissões. O posto costumava ser ambicionado por estudantes de Direito, advogados em dificuldades profissionais, serventuários da Justiça e negociantes distritais. A rotatividade nos cargos parecia ser alta. Para cada efetivo existiam três suplentes, os quais, entretanto, quando convocados, serviam geralmente a contragosto.49 Os juízes distritais preenchiam função estratégica no que respeitava aos métodos de controle político e expropriação econômica vinculados a uma dada facção. Os indicados haviam sempre prestado “bons serviços” no processo de construção da hegemonia da facção, especialmente no que tange à arregimentação de eleitores ou à administração do partido. Guido Pasini, por exemplo, foi nomeado primeiro-suplente de juiz distrital em Cachoeira do Sul por ter organizado mais de sessenta eleitores.50 Em 1899, o intendente e chefe político de Cachoeira do Sul, Coronel David Barcellos, solicitava a recondução de Irineu Ilha, tesoureiro do Diretório do PRR local, no cargo de juiz distrital.51 Eram correntes as denúncias de tráfico de influências envolvendo juízes distritais, advogados e chefes políticos. Ocasionalmente, surgiam conflitos entre os juízes de comarcas e os distritais. A partir de 1915, algumas nomeações passaram a prescindir das indicações dos chefes políticos locais, MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 59 que nem sempre conseguiam também a remoção dos juízes em caso de desentendimentos, o que indica uma mudança qualitativa na relação com o poder central estadual. Os promotores públicos eram considerados, conforme a Lei 10, serventuários da Justiça e secundavam a autoridade hierárquica do juiz da comarca. Tinham uma relação de fidelidade direta com o procurador-geral de Justiça, escolhido dentre os sete desembargadores do Tribunal, e, indiretamente, com o presidente do estado e/ou chefe político. Ocasionalmente, sobretudo quando o poder local tinha força de absorção, verificava-se o alinhamento de um promotor a uma facção partidária.52 Mas, via de regra, eram verdadeiros agentes do poder central nos fóruns e nas cidades. Depois de 1903, Borges de Medeiros tratou de transferir e substituir, nas comarcas, os promotores que, ao invés de se filiarem à nova facção palaciana, permaneceram fiéis à facção local anteriormente organizada sob os auspícios de Júlio de Castilhos.53 Os laços dos membros do Ministério Público com o governo eram ainda mais estreitos do que aqueles dos juízes das comarcas. O governo central adotara a estratégia de nomear promotores interinos, demissíveis, portanto, ao nuto presidencial.54 De 185 nomeações havidas entre 1895 e 1928, 148 foram para exercer o cargo interinamente.55 O exercício da função era temporário, e a maior parte dos promotores formados em direito – nem todos eram – aspirava à magistratura de comarca. Em geral, os juízes efetivamente faziam como que um estágio na Promotoria Pública. As funções do Ministério Público restringiam-se basicamente à ação penal e confundiam ao mesmo tempo a defesa dos interesses do estado e da sociedade. (AXT, 2001d). Na condição de delegados do poder central, nos fóruns e nos municípios, os atritos dos promotores com as autoridades administrativas em algumas cidades eram frequentes, muito embora pouco extravasassem os mesmos para o conjunto da opinião pública. A confusão de competências entre polícia judicial e polícia administrativa fazia com que, seguidamente, os promotores contestassem prisões ou inquéritos realizados pelos subintendentes, a mando dos intendentes. Acirradas polêmicas formavamse em torno do direito de concessão de habeas corpus, já que as prisões administrativas tinham caráter correcional e não poderiam estender o prazo de 24 horas. A atuação dos delegados e subdelegados de polícia também era motivo de confronto com alguns promotores, já que essas autoridades, escolhidas sempre em combinação dos chefes políticos locais com o chefe60 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 geral, estavam comprometidas com as facções partidárias dominantes nos municípios. Conflitos em vista dos procedimentos dos juízes distritais, funcionários “afogados até o pescoço” nas redes de compromissos locais, eram também recorrentes. Da mesma forma, a relação com os demais serventuários da Justiça nem sempre era pacífica, já que, mesmo quando haviam esses conseguido sua nomeação através de acesso direto ao presidente do estado e chefe político-geral, eram figuras inseridas no contexto das relações de poder e de interesses locais. Nas localidades em que o poder central tinha menos força, os promotores ou eram tragados pela rede de compromissos e seus esquemas de corrupção ou se limitavam à condição de informantes para o governo, que nem sempre tomava as atitudes cabíveis diante das denúncias. Em face dos juízes da comarca, de modo geral, os promotores guardavam respeitosa observância, mesmo porque dispunham do canal direto de comunicação com a presidência do estado. Não obstante, a dependência direta do promotor ao Executivo era uma garantia extra de pressão sobre os juízes e os tribunais. Os promotores sempre se dirigiam ao procuradorgeral, consultando-o a respeito dos procedimentos mais recomendados em cada caso. O procurador-geral, por sua vez, agia em perfeita sintonia com o presidente do estado. A principal atribuição dos promotores parecia ser a fiscalização da ação das autoridades administrativas locais, especialmente contratos de gestão públicos e exercício do poder de polícia.56 Com efeito, Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros usaram e abusaram, nos primeiros anos de República, da possibilidade de perseguir os intendentes através dos promotores. Antônio Cândido Coutinho, intendente de São Jerônimo, apenas se livrou da perseguição com um habeas corpus do Supremo Tribunal. Aureliano Barbosa, intendente de Itaqui, incorreu nas iras de Castilhos por se ter declarado parlamentarista, sendo logo processado e condenado, mas absolvido pouco depois pelo Supremo. O mesmo teria se dado com Epifânio Fogaça, de São Leopoldo; Alfredo Azevedo, de Porto Alegre; Estevão Brandão, de São Francisco de Assis; e o Coronel Antunes, de São Gabriel. (ESCOBAR, 1922, p. 91-92). O desgaste oriundo das sucessivas intervenções do Supremo em favor dos réus, reformando sentenças, fez com que, a partir de 1900, diminuísse o número de processos movidos contra intendentes pelos promotores públicos gaúchos. A mudança talvez tenha também relação com o espírito menos persecutório de Borges de Medeiros, que, diferentemente de Castilhos, podia se contentar com o simples afastamento do inditoso insubordinado. MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 61 Os cargos dos serventuários da Justiça, embora devessem ser nomeados pelo presidente do estado a partir de concursos públicos, também eram loteados entre os coronéis. Os artifícios para manipulação dos concursos eram muitos, mas chamava a atenção o hábito de anexar notariados e cartórios por decreto quando o candidato mais bem-posicionado carecia de indicação. Desse modo, anulava-se a necessidade de nomeação, sendo o ofício novamente desanexado quando a ocasião se fizesse oportuna. (ASSIS BRASIL, 1923). Quanto mais votos um cabo eleitoral arregimentava, melhor era a sua chance de colocação. Muito embora todos os serventuários fossem militantes do PRR, dificilmente uma mesma facção municipal conseguia abocanhar sozinha todos os cargos. O controle de Borges de Medeiros e das facções palacianas nos municípios sobre os serventuários da Justiça aumentou após a derrota de Fernando Abbott, em 1907,57 mas recuou na década de 20 (séc. XX). Em Cachoeira do Sul, por exemplo, após a Revolução de 1923, os Neves da Fontoura controlavam o funcionamento quase absoluto do aparato da Justiça local.58 Borges de Medeiros exercia, ainda, controle direto sobre alguns funcionários administrativos, como inspetores e delegados especiais do Tesouro do Estado, destacados para o trabalho de fiscalização da sonegação tributária e do contrabando. Por viverem em trânsito, de uma cidade para outra, operavam como informantes das situações políticas locais.59 Além disso, alguns funcionários mais graduados da Secretaria de Obras Públicas, lotados no interior em comissões especiais ou permanentes, convertiam-se em ativos agentes políticos, articulando uma dedicada facção palaciana. Esse era o caso, por exemplo, de Abelino Vieira, engenheiro destacado, em 1905, para a Comissão de Fiscalização da Viação Férrea, estabelecida em Santa Maria, que evoluiu de espião e informante para alcoviteiro e, então para membro da direção local do PRR. Foi eleito conselheiro e ocupou posição na Comissão Executiva do partido local, chegando a desempenhar importante papel na organização das eleições e nas brigas de facções que agitaram o município. Terminou premiado com um lucrativo notariado e cartório acumulados, que rendeu uma pequena fortuna, pagou dívidas de campanhas e muita inveja despertou. Esse era o autêntico “coronel burocrata”, uma figura que devia seu prestígio político ao investimento que nele fora feito pelo presidente do estado e chefe-geral da política estadual. Mas, por não ser um coronel na origem – com posses, patente da Guarda Nacional e exércitos de eleitores em currais –, jamais 62 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 pôde aspirar de fato à chefia unipessoal do partido na cidade, como de resto faziam os demais coronéis, nem tampouco tinha chances consistentes de alcançar a intendência. O que diferenciava Abelino Vieira da maior parte dos outros repúblicos é que, embora trabalhasse para a hegemonia de uma facção partidária, colocava sempre a lealdade e submissão a Borges de Medeiros acima dos interesses pessoais e corporativos, o que não o impedia, aliás, de discordar, respeitosa e ocasionalmente, das decisões do mesmo, nem tampouco de tirar proveito próprio quando a situação se configurasse favorável para tanto.60 Burocratas leais, como Avelino Vieira, com real poder de influência nos rumos da política, eram o sonho de Borges de Medeiros, mas não eram tantos assim. Afinal, no âmbito do aparato funcional, era em parte da Justiça e da força policial que residia o principal trunfo de Borges de Medeiros para afirmação do poder central nos municípios dominados pelo coronelato. Entretanto, nos chamados municípios da zona de colonização ítalogermânica, alguns intendentes, estranhos à região, eternizaram-se à testa das chefias políticas e das administrações locais, possivelmente caracterizando a figura do “coronel burocrata” que era, ao mesmo tempo, funcionário público, bacharel, administrador e homem de partido leal à facção palaciana.61 Enquanto essa fórmula não era alcançada, Borges de Medeiros, chefe político e administrativo, pendulava nos municípios com as facções do partido único, ora acumulando desgaste, ora obtendo vitórias parciais. Provavelmente, existiam, pelo menos, duas facções em todos os municípios do interior. As facções partidárias locais pertenciam à natureza do sistema coronelístico, adquirindo, no Rio Grande do Sul, dimensão específica, devido ao regime constitucional centralizado e ao governo de partido único em coexistência com um partido de oposição formalmente constituído, mas excluído do processo político.62 Uma facção formatava-se quando os eleitores republicanos no município dividiam-se em grupos que seguiam chefias políticas divergentes. Tais chefias tinham vezo personalizado e eram constituídas por um ou mais coronéis, os quais angariavam aliados entre autoridades públicas, endinheirados locais ou lideranças comunitárias, como os padres nos distritos. No interior da facção, corria o tráfico de influências e o comércio de vantagens. Favoreciamse contratos para os negócios dos aliados, os advogados eram tratados com privilégios por serventuários e magistrados, a imprensa elogiava os amigos, para cujos eventuais crimes havia ainda indulgência. Em contrapartida, os MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 63 membros da facção oposta eram perseguidos pelas autoridades públicas, espezinhados pela imprensa alinhada e prejudicados profissionalmente. Uma facção nascia do clima de disputa entre dois ou mais coronéis por vantagens hauridas do sistema político. Vínculos de compromissos, oriundos de laços de parentesco, relações empregatícias ou trocas de favores dividiam os eleitores, autoridades públicas e mandões intermediários entre os grupos. Para que uma facção crescesse em importância e tamanho, tornava-se fundamental, a partir de certo momento, o apoio das altas estrelas do partido e, especialmente, do governo. Dentre os primeiros passos de uma facção para se consolidar estavam a fundação de um clube republicano, batizado sempre com o nome de algum repúblico de escol, como Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros ou Pinheiro Machado, e a cotização dos correligionários para fundação de um jornal, o qual seria utilizado como veículo de propaganda da facção e de combate aos adversários. O coronel identificado como chefe político principal da facção, necessariamente, entrava com a maior cota, o que podia representar pesado ônus financeiro. Outro território disputado era preenchido pelas sociedades de tiro, que treinavam a população civil para casos de conflito. Além da chance de vitória nos pleitos locais, era ainda fundamental (para a consolidação de uma facção) ter acesso a um canal distribuidor de cargos. Numa sociedade onde a fronteira entre o público e o privado era tênue, o funcionalismo representava uma fonte de renda e de poder. O coronel, na liderança de uma facção, era uma espécie de defensor dos interesses do município e de seus aliados no governo central. Na capacidade de trazer benefícios para a cidade, reunir eleitores e controlar o maior número possível de cargos, bem como acessar os canais de distribuição dos mesmos, residia o termômetro do prestígio e da pujança de uma facção. As nomeações e os pedidos eram invariavelmente intermediados pelo chefe político, que, muitas vezes, via nos cargos públicos e também nos contratos assinados com o estado que privilegiassem interesses privados, formas de compensações pelos gastos realizados de seu próprio bolso nas campanhas políticas e eleitorais.63 A distribuição de prebendas obedecia a critérios que levavam em conta o grau de inserção do candidato na rede de compromissos e os serviços prestados à facção e ao partido, sobretudo no consoante às eleições.64 O agraciado retribuía em lealdade ao coronel responsável pela indicação,65 atendendo às determinações daquele com primazia, mesmo que estivessem em contradição com as leis ou a moral. Desse modo, a rede de compromissos da facção se fortalecia. Enfeixando o comando do Poder Executivo, Borges 64 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 de Medeiros converteu-se no principal distribuidor de prebendas, condição que soube administrar de forma a forjar lealdades, dobrar dissidentes e, mesmo, seduzir oposicionistas.66 Um dos instrumentos mais importantes que podia ser desdobrado por um coronel era a prerrogativa concedida pelo presidente estadual sobre a indicação de professores. A instrução pública era uma das principais áreas de intervenção do estado, consumindo sempre grandes somas de recursos orçamentários. Além da melhoria geral nos padrões de vida da população, o investimento em educação era uma ferramenta privilegiada de doutrinação política (MAIA, 1907) e criava, ainda, exércitos de novos eleitores, desde que a alfabetização se constituía em requisito para o sufrágio, projetando o estado em escala política nacional.67 A educação era, portanto, estratégica para a sustentação política e a inserção nacional da elite dirigente gaúcha. Nos distritos municipais, a criação de aulas e a nomeação de professores eram um dispositivo valioso para a consolidação do domínio político, pois promovia uma fonte de renda para correligionários leais ao mesmo tempo que demandas dos eleitores eram satisfeitas.68 O comércio do magistério não tinha a mesma envergadura em todas as cidades. Ganhava mais destaque justamente naquelas localidades que possuíam distritos com colonização ítalo-germânica, nos quais uma facção com franco apoio palaciano esforçavase pela afirmação. Assim, por exemplo, ao assumir o comando político em Cachoeira do Sul, o Coronel Isidoro Neves da Fontoura, que, todavia, não ocupava a intendência nesse momento, advertia o presidente: “Em breve irei até aí para termos a ocasião de conversar amplamente sobre a política local; pode desde já ficar prevenido que irei carregado de pedidos, especialmente de aulas”.69 Em outra oportunidade, Isidoro dizia com todas as letras: “Sendo de grande alcance político a criação de uma aula a mais naquele distrito, peço-vos que seja mais essa além das que já deixei nota, contemplada no quadro.”70 Se o poder central delegava tão importante fonte de prestígio político e de cooptação aos coronéis, era porque precisava muito do seu apoio e porque o seu prestígio local seria conveniente para o regime. De qualquer forma, essa dialética revela um aparelho de estado infraestruturalmente frágil, que precisa delegar ao poder privado uma importante fonte de prestígio e cooptação porque, em parte, dele depende politicamente. O comércio do magistério era mais expressivo justamente naqueles distritos menos subordinados. O fato de a interferência dos coronéis sobre os quadros do magistério diminuir na década de 20 (séc. XX) pode sugerir que o poder MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 65 central tivesse conquistado mais autonomia relativa em face dos mandões locais, mas também que as nomeações fossem diretamente negociadas entre os chefes políticos locais e os burocratas responsáveis pelos quadros do magistério.71 Existiam três formas de relação das facções com o poder central: atrito, cooperação e indiferença. Algumas facções nasciam à revelia da chefia palaciana e podiam representar-lhe constrangimentos. Outras eram encorajadas a crescer pelo comando palaciano. E, finalmente, existiam algumas que não suscitavam nada além da indiferença. Ainda assim, essa isenção seria temporária, pois chegaria o momento em que uma opção necessariamente se faria. O sonho dos coronéis era alcançar a chamada “chefia unipessoal”, repetindo em escala doméstica o que Borges procurava imprimir a todo o sstado. Esde desiderato, entretanto, mais cedo ou mais tarde despertava a ambição de correligionários, ou eclipsava a própria autoridade do poder estadual. Por isso, e sendo esse poder infraestruturalmente vulnerável,72 Borges de Medeiros precisava ter sempre uma “carta na manga”. Nesse momento, entravam em cena as autoridades e os funcionários públicos sobre os quais dispunha de melhor controle, seja para monitorar a ação dos poderosos locais, seja para determinar ações que viessem a enfraquecer as bases da facção dominante, seja, ainda, para estimular o crescimento, ou mesmo, o surgimento de uma nova facção. Diante das contingências, era ideal para o líder que a situação política nos municípios pudesse ser mantida, se não em total submissão ao seu comando, na fronteira entre a estabilidade e a instabilidade. A gangorra das facções, em alternância nos comandos político e administrativo municipal, dividia a força das lideranças locais, incrementando, consequentemente, o poder pessoal de barganha e de pressão do chefe palaciano sobre as mesmas. As eleições, mesmo quando seus resultados não fossem respeitados e mesmo que todos conhecessem previamente os vencedores, eram, ainda assim, importantes para medir o alcance da influência de uma facção em ascensão ou decadência. Levando às urnas, ou afastando delas, o maior número possível de eleitores, uma facção demonstrava seu poder de fogo. As fraudes, a compra de votos, as intimidações e violências eram indicativos da capacidade de mobilização da facção. Os prélios também eram estratégicos para que o discurso oficial pudesse continuar afirmando estar o Rio Grande do Sul dentro da normalidade do ordenamento jurídico, afastando, assim, as acusações de oligarquia ou ditadura que pesavam sobre o regime. 66 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 Finalmente, havia a ameaça dos opositores federalistas de conquistarem terreno, sobretudo nas eleições federais. O governo, efetivamente, necessitava de certa margem de legitimidade junto ao eleitorado. Para a mística discursiva do “Poder Moderador”,73 essa margem tinha de ser a maioria esmagadora, muito próxima do consenso. Nada, portanto, podia ser mais alarmante que um alto índice de abstenção de eleitores republicanos em uma sessão eleitoral. Esses eventos suscitavam imediata reação do chefe palaciano. Borges inquiria, então, seus colaboradores, ouvia terceiros e reavaliava suas opções. Tais abstenções eram sempre provocadas por um coronel de prestígio, precipitado em dissidência, que arrastava os aliados e eleitores consigo ou os assustava, com ameaças e intimidações, o que, por derivação, traduzia a fraqueza da facção situacionista. Uma abstenção elevada também podia ser causada pela impopularidade da administração municipal, que deixava em descoberto demandas básicas dos eleitores distritais. (AXT, 2001b). Onde a presença republicana era embaçada, insinuava-se a ameaça de crescimento ainda maior das dissidências e até mesmo do federalismo. Portanto, havia um limite além do qual Borges não podia investir no esfacelamento e na submissão do partido, sob pena de enfraquecer sua posição logo em seguida. Nesses casos, assim como naqueles em que o nível de conflito entre facções de força mais ou menos equivalente atingia proporções insuportáveis, os aliados de Borges de Medeiros divisavam o mesmo espectro – representado pela ameaça dos federalistas, de crescimento da dissidência ou de prejuízos ainda maiores decorrentes de violências e perseguições –, reclamando, então, com “todas as letras”, a intervenção do “Poder Moderador”.74 O “Poder Moderador” do chefe político, que até esse momento se manifestara de forma sub-reptícia, manipulando a ascensão ou o desgaste das facções, intervinha agora de duas formas: instituindo um intendente provisório e/ou constituindo uma “Comissão Executiva” do PRR local, na qual a maioria receberia três assentos, e a minoria conquistaria dois.75 (AXT, 2001b). Quando uma facção reinava soberana, ela controlava o conjunto da Comissão Executiva, domínio que geralmente derivava, aliás, também de uma eleição viciada.76 Nas comissões mistas, as facções dificilmente se sentiam à vontade. A composição de diretórios mistos podia surgir de uma proposta de Borges de Medeiros para apaziguar as tensões locais ou podia brotar espontaneamente das facções, quando então a iniciativa tinha por escopo, mediante a formatação de um modus vivendi, evitar a possível intervenção, em momento de impasse político local, do poder central, através da nomeação MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 67 de um intendente provisório.77 Nesses casos, Borges de Medeiros costumava recusar o alvitre, a fim de garantir a intervenção. Quando Borges sugeria uma comissão mista, procurava garantir que pelo menos um dos seus burocratas de confiança assumisse um cargo nela, não obstante serem esses indivíduos mal-recebidos pelos coronéis e chefes políticos locais.78 Uma facção poderosa, que graças às manobras de seus adversários, alcovitados por Borges de Medeiros, tivesse sido inteiramente excluída da Comissão Executiva do PRR local, podia ainda adotar expedientes curiosos, como a criação de um diretório paralelo, que poderia ser batizado de Comissão Diretora,79 ou mesmo, ameaçar a criação de um partido republicano municipal.80 Em certos casos, quando os acólitos de Borges de Medeiros eram a minoria, podia-se negociar uma Comissão Mista de quatro membros, sendo dois de cada facção, cabendo ao presidente o voto de Minerva em caso de impasse nas decisões.81 A Comissão Executiva era, via de regra, mais importante que o Conselho Municipal,82 o qual, reproduzindo a sistemática da Assembleia dos Representantes, tinha atribuições meramente orçamentárias e, na prática, homologatórias. Além do orçamento, os conselhos faziam a apuração das eleições municipais. A divisão de cargos na Comissão Executiva costumava ser reproduzida nos conselhos. Quando duas facções entravam em conflito aberto, os conselhos tornavam-se palco de batalhas, mas, em geral, as discussões e os impasses ali havidos tinham pouca repercussão política. Durante o período borgista, os conselhos pareceriam estar um pouco mais presentes na vida política antes de 1915.83 De ordinário, eram aparelhados pelas facções dominantes do PRR nos municípios e excluíam os dissidentes e federalisdas, tornando, pois, inconsistente a atribuição que empunhavam de derrogar leis emanadas da presidência, como previa a Constituição de 14 de julho. (ASSIS BRASIL, 1923). Quando se costuravam acordos entre as facções em luta através da intervenção de Borges de Medeiros ou de outras lideranças partidárias, fazia-se também o loteamento dos cargos. Os estaduais e os federais ficavam com um grupo, os intendenciais com outro. Ou, então, se mantinham as posições de momento e as futuras seriam ocupadas pelos novos donos do poder, e assim por diante.84 Nesses casos, se procurava ainda um nome de consenso para ocupar a intendência, com trânsito em todas as correntes, que, depois de certo tempo na condição de provisório, costumava ser sufragado em eleição municipal. Dessa forma, partia-se a chefia política e a gestão administrativa em atividades distintas. Esse candidato de consenso 68 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 podia ser um coronel, mas, em geral, era um negociante local, um profissional liberal ou um oficial da Brigada, com certa independência entre as facções. Não raro, era alguém trazido de fora da cidade pela máquina do poder e desenraizado dos vínculos de compromissos locais. A intervenção importava sempre num recuo da autonomia local, mas jamais acarretava controle absoluto por parte do poder central. Para que a intervenção ocorresse, era necessário um misto de imposição do governo estadual e de aceitação por parte das facções. A iniciativa precisava, ainda, ser invariavelmente revestida de legitimidade. Do ponto de vista político, bastava, para tanto, a constatação geral dos prejuízos auferidos do quadro de impasse provocado pela briga de correntes. Sob o aspecto legal, forjavamse engenhosos pretextos. A justificativa de fraudes eleitorais ou de incompatibilidade da lei orgânica municipal em face da Carta de 14 de julho instrumentalizou mais de duzentas intervenções (LOVE, 1975, p. 83; PEREIRA, 1923) nos municípios gaúchos entre 1896 e 1923.85 Porém, como o próprio nome lembrava, tais interventores tinham caráter provisório, embora, em alguns casos, até se prolongassem por anos na administração. Os diretores políticos locais, mesmo se submetendo à intervenção, consideravam-na uma situação de anormalidade.86 A harmonia conquistada entre as facções através do acordo e/ou da intervenção era momentânea e precária. Nos bastidores, as facções continuavam formigando, e a paz precisava, então, ser permanentemente mediada por Borges de Medeiros. Por outro lado, em torno do intendente de consenso, podia se formar uma nova corrente política, que se aliava ou não às anteriores,87 porque, nos municípios, por mais que assim o desejasse o poder central, era impossível se separar na prática o plano administrativo do político. Borges de Medeiros esperava que os adesistas semeados com a intervenção fortalecessem uma facção palaciana. As intervenções prolongadas, se, num primeiro momento, robusteciam o poder palaciano e equacionavam o clima de disputa local, enfraqueciam a organização partidária,88 refletindo perigosamente sobre o desempenho da legião republicana nos pleitos estaduais e federais.89 Sempre quando se avizinhava uma eleição federal, começavam as movimentações nos distritos, bem como dos altos coronéis, visando à reconstituição da Comissão Executiva e a requalificação de uma orientação política. Por ser figura externa à rede de compromissos locais, o intendente provisório tinha dificuldade de arregimentar o partido para as eleições. As eleições decidiam-se no corpo a corpo dos coronéis com os cabos eleitorais e eleitores nos distritos, em MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 69 vista do que os subintendentes, personagens diretamente conectados aos eleitores, eram sempre figuras-chave. Quando uma facção nova era guindada ao poder, alguns de seus principais obstáculos para a formatação do domínio residiam na montagem de um corpo eficiente e leal de subintendentes, com efetiva penetração no eleitorado. O mesmo acontecia aos interventores. (AXT, 2001b).90 Assim, bem ou mal, o processo eleitoral, por mais fraudado e manipulado, não podia ser inteiramente controlado nem pelo poder central nem pelos poderes locais. Havia sempre uma margem de barganha impressa nesses momentos, que podia ser maior ou menor, dependendo da conjuntura.91 O grosso de nossa historiografia insiste no domínio férreo de Borges de Medeiros sobre os municípios, desconsiderando, não apenas a força de alguns coronéis e a necessidade do regime de compor com eles, como também a margem de insubordinação dos distritos.92 Embora, efetivamente, a capacidade compressora do borgismo fosse tremenda, não faltaram, entretanto, surpresas pregadas ao sacerdote da política palaciana pelos eleitores dos distritos rurais de importantes municípios. Na fronteira, como em Santana do Livramento, ou em outros municípios do centro, como São Sepé e Caçapava do Sul, o problema concentrava-se em distritos tradicionalmente controlados por federalistas ou pela dissidência, como em São Gabriel, que resistiam com tenacidade apesar de toda a compressão do regime. Perigosas armadilhas, contudo, podiam estar preparadas naqueles municípios onde o PRR era hegemônico, precisamente nos distritos que reuniam grande número de pequenas propriedades rurais de imigrantes europeus e seus descendentes. Esses eleitores, frequentemente organizados em associações comunitárias civis ou religiosas, sabiam valorizar o seu passe, respondendo às administrações distritais corruptas, autoritárias ou ausentes com fortes abstenções, ou, mesmo, com sufrágios aos federalistas em épocas de campanhas federais, o que prejudicava o desempenho geral do partido e a legitimidade do regime borgiano. (AXT, 2001b).93 Na multiplicidade de graus de hierarquia da rede de compromissos, o voto tinha o valor de posse, traduzido em um bem de troca, que fluía no ritmo das barganhas, fortalecendo aquele líder que exercia uma dominação direta sobre um conjunto de eleitores, os quais tinham, assim, garantida uma “possibilidade de defesa no grau inferior da escala de poder”, tanto mais potencializada quanto mais aguerrida fosse a luta entre as facções. (QUEIROZ, 1989, p. 158-161). 70 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 Enfim, a historiografia tem sido ambígua no tratamento dado ao Poder Judiciário no Rio Grande do Sul. Uma corrente interpretativa castilhista defendeu a condição de independência da Justiça em face do Poder Executivo. (CAMPOS, 1903; OSÓRIO, 1930; RUSSOMANO, 1976). Tais argumentos, produzidos pelos intelectuais orgânicos da época castilhista-borgista, tiveram força para chegar a trabalhos mais recentes, como o de Franco (1988). A corrente opositora (ESCOBAR, 1922; PEREIRA, 1923) sustentou a tese de completa subserviência do Judiciário ao discricionário Poder Executivo estadual, reduzindo a explicação dos motivos que levaram à essa vinculação a compressão ditatorial do regime, retratando, contraditoriamente, os traços de autonomia em relação ao poder central. Por tudo que se viu até o momento, nem uma nem outra tese parece sustentável. Por outro lado, a submissão da Justiça de primeiro grau aos poderes privados locais identificada pela historiografia (LEAL, 1978; FERREIRA, 1989; JANOTTI, 1999) como algo intrínseco ao sistema coronelista de poder, não parece plenamente aplicável ao caso do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, não conseguimos visualizar para a Magistratura sul-rio-grandense o quadro de um estamento desvinculado do tecido social, como o sugerido por Faoro (1987). Finalmente, de momento, não conseguimos divisar as contradições, retratadas por Marília Schneider (2001) para o Poder Judiciário de São Paulo, onde, durante a mesma quadra aqui analisada, o Tribunal produzia uma Justiça em transformação, entre uma formação social oligárquica e outra burguesa, capaz de insinuar a afirmação de sua autonomia como sujeito institucional em meio à tensão de uma sociedade que não definia com clareza as fronteiras entre o público e o privado, mas que já reclamava a racionalidade jurídica burguesa como pilar para o desenvolvimento do processo de acumulação capitalista. O todo-poderoso chefe palaciano sul-rio-grandense manipulava importantes instrumentos de coação e cooptação dos poderes locais através do funcionalismo público e dos aparatos policial e judicial. Entretanto, o controle sobre a máquina pública precisava ser compartilhado com os coronéis do partido, podendo lhe escapar das mãos em diversas ocasiões. Nessa” queda de braço”, o Tribunal de Justiça parecia ser o principal esteio do governo. O desembargo aproximara-se de Castilhos durante a institucionalização do regime, como indicam os episódios havidos sob o “Governicho”, quando o ainda Tribunal da Relação, não se deixando dominar pelos cassalistas, insurgiu-se contra a prisão do desembargador Salustiano Orlando de Araújo Costa, acusado de envolvimento na tentativa MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 71 frustrada de golpe de 4 de fevereiro de 1892, concedendo-lhe habeas-corpus, mas amargando, em represália, a dissolução da Corte por decreto do General Barreto Leite, em 17 de fevereiro. (MOURA, 1892, p. 112). O grau de sintonia entre o Superior Tribunal e o comando palaciano pode ser auferido do processo relativo ao massacre de 14 de julho de 1915, quando um grupo de opositores à candidatura de Hermes da Fonseca ao Senado foi espaldeirado e espingardeado pela força pública na Rua dos Andradas, na capital. O inquérito foi presidido pelo desembargador Armando Azambuja, também nomeado chefe interino de polícia até a sentença, o qual entendeu pesar a responsabilidade pelos sucessos sobre os populares, inocentando a Força Pública, que teria agido em legítima defesa, sem ordem de carregar armas nem tampouco de disparar. (ESCOBAR, 1922, p. 174-176). Essa sintonia em nada inovava em relação à postura da magistratura durante o Império, compromissada com um projeto político de um estado unificador e centralizador. (CARVALHO, 1996). Além disso, os magistrados continuaram compartilhando de atribuições políticas e administrativas. A diferença estava na falta de transparência dessa investidura, pois se revestiu a prática judicante com um pálio sacerdotal de uma autonomia funcional mirífica, quando, no Império, admitia-se com mais clareza o acúmulo de funções. Nesse sentido, a magistratura republicana estava longe de se comportar como um estrato burocrático moderno, como pretendia o discurso borgista, regido, sobretudo, pelos critérios da competência e prestígio. Mas também não era um corpo estamental com práticas privativas descoladas da sociedade. Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros utilizaram os instrumentos constitucionais e os diplomas legais disponíveis para a compressão da Justiça para forjar uma classe de apoiadores ao regime. Tal qual no Império, a administração da Justiça foi um instrumento do poder central contra as idiossincrasias do poder privado local. Nesse sentido, continuou sendo artefato indispensável no processo de construção da soberania nacional. A diferença fundamental em relação ao Império estava no alinhamento mais consistente da magistratura a um projeto político específico, já que a dança dos partidos do período monárquico fora suspensa com o advento da República castilhista. Em consequência, a magistratura gozou de ainda menos autonomia de classe durante o regime castilhistaborgista. O grau de compressão do sistema pode ser facilmente medido pelo Código de Processo Criminal. Se, na estrutura organizativa o borgismo plagiou o Império, no recheio processual inovou, derrubando garantias 72 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 liberais acumuladas ao longo do século XIX, especialmente com a Lei de 1871. Em uma sociedade onde os canais de representação eram coarctados, e o “poder infraestrutural”94 do estado, toldado, a alta administração da Justiça aliou-se ao Poder Executivo, submetendo-se à compressão, por meios constitucionais e/ou extralegais, de sua autonomia institucional, não apenas por conta de vantagens individuais, mas, sobretudo, em benefício do esforço de construção da autonomia relativa do aparelho estatal, o qual, num sistema político dominado pelo coronelismo, significava, antes de tudo, afirmação sobre as lideranças pessoais nos municípios. Da forma prática e constitucional como se estruturava o regime, restava à Justiça optar pela submissão ao poder central estadual ou pela contaminação completa pelas redes de compromissos locais. Atrelada ao poder central, à Justiça, pelo menos, seria orientada quanto às sentenças em prol de um objetivo geral. O grau de tensão desse processo pode ser captado na indecisão da fórmula e nas contradições de sua aplicação. Enquanto o líder partidário e presidente estadual interferia nas sentenças do Tribunal, os poderes locais esgrimiam ascendência sobre os juízes distritais e, finalmente, em torno dos juízes de comarca e dos promotores, fervilhavam pesadas disputas, que nem sempre favoreciam o poder estadual central. O preço pago pela Magistratura e pelo Judiciário com a regionalização da Justiça após o 15 de novembro de 1889, foi a elisão de algumas garantias que o Império desenhara. Em compensação, a estadualização da Justiça permitiu a conquista de mais organicidade regional, formatando um embrião que mais tarde se desdobrou em autonomia institucional e funcional, o que permitiria o deslocamento do compromisso da Justiça com os interesses do Estado para os interesses da sociedade. Além disso, ainda que pareça contraditório, o fortalecimento progressivo do poder infraestrutural (MANN, 1984) e da capacidade interventora do estado, especialmente a partir das encampações do Porto de Rio Grande e da Viação Férrea, entre 1919 e 1920, foi aos poucos criando as pré-condições para que a Magistratura pleiteasse também mais atribuições e maior grau de autonomia. (AXT, 2003a). Pois auxiliando o poder público a sufocar a capacidade de reação e resistência dos poderes privados locais, ainda que naquele momento isso significasse adesão à facção palaciana, a Magistratura togada foi progressivamente liberando-se da pressão absorsora numa ponta, capacitando-se para enfrentar, em seguida, a situada na outra ponta. Essa requalificação, represada durante MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 73 a Primeira República, foi liberada com a Revolução de 1930, que passou a delinear um novo formato à Justiça no País e no estado. O borgismo caracterizou-se por uma tensão exacerbada, permanente e, muitas vezes, contraditória entre poder central e poderes privados locais. Os constituintes estaduais de 1891, efetivamente, municiaram o presidente e chefe do partido com poderosos instrumentos de intervenção nos municípios, a fim de garantir, naquele momento, a consolidação do PRR castilhista, legião politicamente minoritária. A confirmação desse esquema veio através da Revolução Federalista, que operou pela compressão armada a exclusão da oposição do círculo da representação institucional. Entretanto, o processo histórico não podia ser congelado e, em pouco tempo, os constituintes provaram do próprio veneno. Com a morte de Castilhos, em 24 de outubro de 1903, Borges de Medeiros, até então seu fiel escudeiro, acalentou pretensões de enfeixar a condução unipessoal da política regional, sobrenadando às demais estrelas do partido e manietando a autonomia dos diretórios locais. Em resposta, enfrentou três grandes vagas contestatórias, engrossadas pela aliança entre facções internas insubordinadas e opositores formais constituídos em outras agremiações partidárias: em 1907, em 1915/ 1916 e em 1922/1923. Na primeira, poderosos locais e estrelas peerreristas, aliados a facções federalistas, embora derrotados, conseguiram adiar a compressão maior do sistema, embaraçando a chefia política de Borges de Medeiros. Na segunda, o comando palaciano saiu vitorioso, mas, na terceira, o aríete da insubordinação partidária, coronelista e opositor brechou irremediavelmente a fortaleza borgiana, que, afinal, apesar de todos os instrumentos de compressão, assentava-se sobre as frágeis pilastras inerentes ao pretendido sacerdócio moderador. Borges de Medeiros pretendeu usar a mística, inspirada na pregação positivista, do sacerdócio político para manobrar o sistema coronelista na condição de Poder Moderador. Porém, se a Constituição de 1891 lhe dera os instrumentos jurídicos necessários para efetivar esse objetivo, e a ideologia positivista fornecera ao discurso oficial os elementos de justificativa, as condições estruturais da sociedade tornaram-no sempre uma possibilidade incompleta. Borges de Medeiros precisava negociar com os poderes locais, aliar-se ou, mesmo, submeter-se, em certas circunstâncias, aos coronéis, não porque fossem eles excepcionalmente fortes – e, aliás, a República sem dúvida, corroera muito de sua autonomia local –, mas porque o aparelho estatal era infraestruturalmente frágil, ou seja, a estrutura burocrática, pela sua natureza dispersa, era insuficiente para que o comando palaciano 74 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 estabelecesse um controle orgânico sobre a sociedade civil, mesmo porque o aparelho de estado mal patrimonializado e incapaz de promover arrecadações tributárias poderosas ainda era marcado pela indistinção entre espaço público e privado. Por mais que o poder sacerdotal desacreditasse a mística da soberania popular e por mais que o Poder Moderador jugulasse, fraudasse e manipulasse as expressões da representatividade, havia necessidade de ser periodicamente celebrado o rito eleitoral, a fim de que a imagem do Estado de Direito não fosse embaçada, o que poderia motivar o boicote de parte do Congresso Nacional e, inclusive, uma intervenção federal. As eleições tornavam-se, assim, o ápice da disputa entre as facções do partido hegemônico pela supremacia local, que lhes garantiria acesso aos privilégios aspergidos pelo estado. O Poder Moderador borgiano jamais poderia se converter em poder absoluto também porque a desmobilização completa do partido dominante abria espaço para o crescimento do federalismo ou de dissidências ameaçadoras, ou bem ameaçaria a projeção nacional do PRR. Além disso, a insubordinação dos eleitores dos distritos rurais de colonização europeia acrescentava um ingrediente a mais na instabilidade que circundava e sombreava a fortaleza moderadora. Portanto, Borges de Medeiros precisava agir como o morcego, que assopra com o bater das asas enquanto aplica a mordida marítima, que o alimenta. A recíproca era verdadeira, fazendo com que também os coronéis mordessem ao mesmo tempo que assopravam no poder central elogios e subserviências. A supremacia do Poder Moderador borgiano sedimentava-se, assim, sobre bases instáveis e podia sempre ser flechada pelas enxárcias, das naus opositoras ou aliadas, à espreita de condições propícias à reação. O desfecho da Revolução de 1923, mesmo preservando o domínio do PRR e a chefia nominal de Borges de Medeiros, constrangeu, entretanto, a legitimidade do Poder Moderador. O Pacto de Pedras Altas resgatou parte da autonomia municipal, e Borges de Medeiros precisou abrir concessões aos coronéis para manter o domínio político do PRR. Porém, a reconstituição da margem de afirmação do poder local seria apenas circunstancial, pois, de permeio, a economia regional atravessara transformações que exigiriam nova composição de forças políticas, enquanto o aparelho estatal sofrera também modificações que suscitariam uma nova forma de relacionamento entre elite dirigente e sociedade civil. O presidente Borges de Medeiros posicionava-se no comando de um domínio corporativo sobre o estado, consubstanciado no PRR. Mas esse MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 75 amplo domínio, ratificado na exclusão da oposição federalista do campo das representações política e institucional, não equivalia a controle absoluto. Graças à tensão entre o poder central e os poderes locais e, ainda, em virtude da fragilidade infraestrutural do aparelho estatal, o completo controle da máquina partidária escapava-lhe das mãos, e o comando sobre a arquitetura burocrática precisava ser compartilhado com os coronéis. Eram muitos os dispositivos de compressão, jurídicos e extralegais, esgrimidos por Borges de Medeiros, mas as redes de compromissos coronelísticos, dentro e fora do partido dominante, também usufruíam seus trunfos, fazendo com que o próprio líder palaciano fosse parte delas. Nessa batalha, todos os contendores seriam capazes de desenvolver novas estratégias para a superação do impasse estrutural e para a conquista de novos espaços. O sacerdócio político e o Poder Moderador foram parte da fórmula palaciana de dominação. Como conceitos, serviram para cimentar a hegemonia da elite dirigente; como prática, possibilitavam a expansão do poder central, mas traziam limitações intrínsecas à encarnação definitiva do poder absoluto. 76 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 Notas 1 “O Rio Grande, o partido está em crise, esfacelando-se, caindo aos pedaços, cindido em duas correntes gerais e quebradas ainda estas em agrupamentos pessoais.” (HASSLOCHER, 1907, p. 88). 2 Sobre a contrariedade de Borges de Medeiros à urdidura revolucionária, ver, entre outros: Almeida (s/d.); Paim Filho (1930). A periodização apresentada nos parágrafos acima foi originalmente proposta na tese de doutorado (AXT, 2001). A historiografia até então existente sobre o Rio Grande do Sul na República Velha tendeu a visualizar a vigência de uma “continuidade administrativa”, expressão apropriada ao discurso justificador do regime, anulando as divergências e descontinuidades e reproduzindo a ideia, construída pelo discurso borgista, da existência de um projeto estável, internamente consensual (contestado apenas pela, assim caracterizada, conservadora e descartável oposição federalista) e progressista. Para uma discussão mais específica sobre a historiografia a propósito do tema estudado, consultar: Axt (2001a). Para uma crítica mais detalhada da construção e formulação do discurso legitimador castilhista-borgista, ver: Axt (2001b, 2002). Sobre a relação entre a ideologia positivista e o castilhismo, ver: Boeira (1980); Rodriguez (1980). A imagem de poder sacerdotal foi construída pelo discurso positivista vertido pelas páginas d’A Federação, órgão jornalístico do PRR, para legitimar a continuidade administrativa borgiana, bem como sua pretensão de independência em relação às idiossincrasias do campo político-eleitoral. O conceito de “poder moderador” foi utilizado por coronéis 3 para caracterizar a intervenção do líder nos municípios, mediando conflitos locais. Compondo uma imagem sugestiva, a expressão será proposta como conceito condensador da explicação oferecida neste artigo sobre a forma como o poder estadual pretendeu relacionar-se com os poderes locais. “Cartas políticas”. In: Opinião Pública, Canguçu, maio de 1904. Arquivo Borges de Medeiros (AMB), n. 1.194. Esses conflitos internos do PRR e as descontinuidades do assim chamado “projeto castilhista” não costumam ser percebidos pela historiografia. O grau de atrição entre o poder regional e os poderes locais também não costuma ser captado. Uma exceção foi o trabalho de Loiva Félix (1987), que, a partir de um estudo de caso, questionou a aplicação generalizada do conceito de “coronel burocrata”, embaçando a tese de controle absoluto do borgismo sobre os poderes locais e sinalizando no sentido da existência do coronelismo de fato no Rio Grande do Sul, o que até então costumava ser negado. A despeito da importância dessa nova tese, entretanto, Loiva Félix não chegou a realizar uma análise sistêmica das relações de poder e permaneceu, ainda, vinculada a modelos interpretativos tradicionais, como o que pretendia explicar as diferentes colorações partidárias a partir de uma relação mecânica entre classe social e região do estado. Além disso, Loiva Félix continuou parcialmente tributária de uma interpretação historiográfica que tendeu a incorporar o discurso legitimador da ação do PRR sem grandes críticas, o que não lhe permitiu perceber, por exemplo, que a influência da rede de compromissos borgista esvaziou-se significativamente 4 MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 77 depois do desfecho da Revolução de 1923 ou, ainda, que a influência da ideologia positivista não poderia ser reivindicada para explicar a política econômica e institucional do borgismo, mesmo porque, se optarmos por um referencial teórico marxista, a superestrutura deve ser interpretada como um instrumento de justificação da prática. Outro trabalho que estuda a dinâmica do poder local no Rio Grande do Sul alcançando conclusões próximas das nossas é o de Eloísa Ramos (1990). Veja-se o pronunciamento de João Francisco Pereira de Souza no jornal O Debate, de Livramento, em 29 de julho de 1915: “A Constituição de 14 de Julho que, nas mãos hábeis do Patriarca Júlio de Castilhos, foi a base da ordem e progresso da nova fase política do Rio Grande do Sul, desaparecido Castilhos tornou-se uma arma de dois gumes nas mãos inábeis, fracas e incapazes de Borges de Medeiros, que tímido e insensato, começou a enxergar em cada um dos velhos servidores da causa castilhista um fantasma, um perigo para a sua ação, portanto atônito, vibrou golpes sobre golpes, arruinou ou aniquilou os principais companheiros de Castilhos, destruiu o brilho da obra republicana, e, finalmente, arruinou-se a si próprio, que hoje é considerado por todos o parasita do RS.” 5 A especificidade da conjuntura foi percebida por Love (1975, p. 166). 6 A oposição de Borges de Medeiros à rede de compromissos castilhista e a resposta desta à pretendida chefia do primeiro não têm sido percebidas com clareza pela historiografia corrente. (AXT, 2001). 7 Em entrevista no País, de 20 de outubro de 1921, João Francisco disse: “Eu conhecia bem a hipocrisia do Sr. Medeiros e sabia que ele e seus íntimos se sentiriam 8 78 melhor e até se regozijariam com o desaparecimento de Pinheiro Machado.” (SOUZA, 1923, p. 87). Referente aos maragatos, qualificativo pejorativo usado na época para designar os oposicionistas de lenço vermelho, em alusão a uma região do Uruguai. 9 Apodo dirigido pelos maragatos aos castilhistas. 10 11 Designação pejorativa utilizada para indicar o borgismo. Derivou da alcunha “chimango”, originalmente ave de rapina do pampa gaúcho, associada a Borges de Medeiros, cujas feições, dizia-se, lembravam o tal pássaro. A compressão sofrida pelo estancieiro e capitalista José Antônio Martins, na Campanha, levando-o à falência, oferece interessante testemunho de que a perseguição político-partidária colocavase frequentemente acima dos interesses de classe e dos compromissos com a grandeza econômica e o progresso material de uma região. (CABEDA, 1994, p. 53-61). Por sua vez, Wenceslau Escobar (1922) oferece uma relação de crimes políticos contra oposicionistas em diversos pontos do estado durante o período borgista. 12 Minuta do telegrama de Borges de Medeiros a Heliodoro Branco, Porto Alegre, 2 de julho de 1917, Arquivo Borges de Medeiros (ABM). 13 Carta de Heliodoro Branco a Borges de Medeiros, Lagoa Vermelha, 24 de junho de 1917. (ABM). 14 15 Carta de Genes Bento a Borges de Medeiros, Lagoa Vermelha, 10 de julho de 1917. (ABM). Para uma abordagem teórica do controle político sobre o aparato burocrático, ver, entre outros: Padgett (1981); Axt (1997, p. 151-176). 16 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 A Lei 11, ao organizar a polícia, extinguiu ainda o inquérito policial criado em 20 de setembro de 1871. 17 Medeiros (1980, p. 162, 178): Carta de João Paulo Prestes a Cezar Dias, Canguçu, 4 de novembro de 1913, 1.225; Cartas de Genes Bento a Borges de Medeiros, Canguçu, 24 de março e 8 de abril de 1906, 1.208 e 1.209 (ABM). 18 19 Carta de Moysés Vianna a Borges de Medeiros, Santana do Livramento, 14 de julho de 1913, 8.224; Carta de Bráulio Oliveira a Borges de Medeiros, Santana do Livramento, 3 de setembro de 1917, 8.310; Carta de Pelágio de Almeida a Borges de Medeiros, Santa Maria, 4 de dezembro de 1915, 8.039; Carta de João Paulo Prestes a Cezar Dias, Canguçu, 4 de novembro de 1913, 1.225. (ABM). Passaram a ser em número de dez com a reforma de 1925. 20 21 Carta de David Soares de Barcellos a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 21 de abril de 1899, 639 (ABM). “Republicano conservador, que sou, com cada fibra do meu ser, soube fechar as portas do 5° Distrito a federalistas e renegados, e por isso entenderam certos reles hiperprodutos [sic] do ventre negativo, que fazendo minha desgraça e a dos meus companheiros, ganhariam terreno na zona colonial [...]. Confiando na benevolência e sentimentos nobres de V. Ex., esperamos ser favorável a decisão da nossa causa, perante o Egg. Superior Tribunal.” Carta de Kurt Pachaly a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 4 de setembro de 1907, 778 (ABM). 22 23 “Os fernandistas [...] contam com o Paulo no 6° Distrito por cujo motivo é necessário [...] inutilizar completamente o Paulo. Como sabe ele foi nomeado encarregado da Colônia, lugar que não sendo remunerado tem sempre alguma dependência por parte dos colonos. Convém pois demiti-lo, nomeando Dionysio da Fonseca Reus. Outra cousa que convém muito estudar é a questão da Companhia Jacuí que se acha no Superior Tribunal em grau de apelação. Se a decisão for contrária a ele deve ser julgada o mais breve possível, ao contrário convém protelar até depois da eleição”. Carta de Isidoro Neves da Fontoura a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 6 de abril de 1907, 766 (ABM). 24 Nem sempre Borges de Medeiros tinha o controle sobre a formação de culpa, já que, como veremos mais adiante, os juízes distritais orbitavam na influência dos poderes locais. Ver, por exemplo: “Verifiquei, no decorrer do processo, que foi viciado o auto de exumação, que o advogado da acusação, Luciano Motta, inclusive o carcereiro João Alfredo, com ameaças e promessas, fizeram o preso Zeferino Santana depor falsamente; que o oficial de justiça, João Motta, sugeriu depoimentos e exorbitou dos seus deveres.” Carta de Kurt Pachaly a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 4 de setembro de 1907, 778 (ABM). O controle borgiano tornava-se mais eficaz quando o processo chegava às mãos do juiz de comarca, cuja ação podia ser então administrada de forma a constranger a abrangência do poder coronelístico: “Parece-me devia ser levado a efeito o acordo, alterando a criminalidade das testemunhas, do Mário e do Gregorio e condenando o maior culpado. Sei que os advogados das autoras estão empenhados em realizar o acordo e que será bastante o vosso assentimento, para ser ele ultimado.” Carta confidencial de Isidoro Neves da Fontoura a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 6 de agosto de 1912, 820 (ABM). MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 79 25 O Combatente, Santa Maria, 1898. Apud Cardoso (1978, p. 64-65). “Estando aberta a inscrição de concurso para o preenchimento de uma vaga de Juiz de Comarca, [...] venho ouvir-vos ou então solicitar de V. Exª. o consenso ou apoio para esta minha pretensão, como isto vos convenha, hipótese única em que o farei.” Carta de João Magalhães a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 28 de janeiro de 1904, 658 (ABM). 26 “Feito isso, não há dúvida de que o Tribunal decretará a responsabilidade do magistrado, que virá, afinal, a perder a investidura, como já sucedeu a outros em iguais circunstâncias.” Carta de Borges de Medeiros a Salvador Pinheiro, 6 de novembro de 1900, Arquivo Borges de Medeiros, citada em Mendes (1999, p. 63). 27 Carta de Ramiro de Oliveira a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 7 de novembro de 1898, 635 (ABM). 28 “O Subdelegado do 5° Distrito, Pedro Modesto da Rosa, conjuntamente com outros, está envolvido num grave e lamentável fato delituoso. Trouxe-me o amigo Isidoro a informação, de que opinastes pela competência do júri para julgamento do processo, e como eu tenha procedido de modo diverso, e, nesse sentido orientado o Promotor, pareceume conveniente tornar-vos conhecedor dos fatos [...]. Todavia, a vós, a quem posso chamar mestre de direito, impetro ensinamentos para o caso, rogando que sobre ele me deis, obsequiosamente, e com a possível brevidade, vossa sempre acatada opinião.” Carta de Gumercindo Ribas a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 26 de maio de 1907, 771 (ABM). 29 “Desejaria antes, que não se tivesse dado este incidente que finalmente foi 30 80 criado pelo próprio Dr. V. de Brito [...]. Pondo de parte os afetos paternais, me parece que o promotor sem quebra de dignidade não poderia deixar de apresentar denuncia.” Carta de Isidoro Neves da Fontoura a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 23 de novembro de 1909, 789 (ABM). Cartas a Borges de Medeiros de Maximiliano Almeida, 30 de junho; de Álvaro Franco, 30 de junho e 1º de julho de 1917; Marino Josetti de Almeida, Lagoa Vermelha, 2 de julho de 1917 (ABM). 31 Carta de Heliodoro Branco a Borges de Medeiros, Lagoa Vermelha, 12 de outubro de 1905, 2944 (ABM). 32 Carta a Borges de Medeiros de Heliodoro Branco, Lagoa Vermelha, 21 de novembro de 1905, 2.946; 23 de março de 1906, 2.958; diversos signatários, 6 de fevereiro de 1906, 2.949; Paulo Alves de Souza Marques, 8 de fevereiro de 1906, 2.950; Cândido Carvalho Dias Guimarães, 24 de março de 1906, 2.959 (ABM). 33 Carta confidencial de Isidoro Neves da Fontoura a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 8 de agosto de 1912, 821; Carta de Isidoro F. Ortiz a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 15 de setembro de 1912, 824 (ABM). 34 Carta de Carlos B. Gonçalves a Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros, Jaguarão, 22 de junho de 1901 (ABM). 35 Carta de Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros a Carlos B. Gonçalves, Porto Alegre, 25 de julho de 1901 (ABM). 36 Carta de Cândido D. C. Guimarães a Borges de Medeiros, Lagoa Vermelha, 16 de fev. de 1906, 2.952 (ABM). 37 “Agora estão trabalhando para tirar o Juiz de Comarca. Qual a razão? Só por 38 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 ser um Juiz?! cumpridor de seus deveres.” Carta de Horácio Borges a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 17 de setembro de 1913, 875 (ABM). Cartas de Santa Maria, de 1918, a Borges de Medeiros de “membros do Partido Republicano”, 14 de julho, 8.087; Astrogildo de Azevedo, 20 de julho, 8.088; Abelino Vieira da Silva, 22 de julho, 8.089; Claudino Pereira Nunes, 2 de agosto, 8.091 (ABM; ESCOBAR, 1922, p. 202-204; CARDOSO, 1978, p. 58, 61; MERG, 2002). 39 “Tenho o prazer de acusar o recebimento de vossa carta do corrente, e, com ela, a solução da consulta que vos fizemos, a propósito de um caso de habeas-corpus. Mostrei-a ao Sr. Dr. Juiz de Comarca, que ficou perfeitamente conformado com o vosso modo de ver, dando-nos assim a esperança de que se não reproduza o desagradável incidente. Pela minha parte, devo significar-vos a profunda gratidão de que vos sou devedor, pela atenção dada ao meu pedido.” Carta de Balthazar de Bem a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 22 de agosto de 1913, 866 (ABM). 40 “Recebi [...] vosso recado contrário a que se conceda habeas-corpus ao Castelhano, [...] veio por parte do Dr. Balthazar uma reclamação, contra o meu ato [...]. Acreditei que havia agido de acordo com o Cod. de P. Penal do Estado. Mas uma vez que [...] de uma prisão convencional não há recurso, podeis ficar certo que doravante acatarei toda e qualquer prisão emanada das autoridades administrativas.” Carta de Alberto Chaves a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 12 de dezembro de 1913, 887 (ABM). 41 “Depois da longa palestra que aí mantivemos sobre o caso de habeascorpus, foi com justificada decepção que 42 assisti ao proceder de franca hostilidade com que se tem conduzido aqui para comigo o Coronel Horácio. De fato, depois de ter, logo a chegada, uma longa palestra com o Juiz de Comarca, não sei que coisas ouviu, que não conteve extemporâneas e calorosas manifestações de solidariedade à atitude desse magistrado.” Carta de Balthazar de Bem a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 31 de dezembro de 1913, 888 (ABM). Carta de Horácio Borges a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 29 de janeiro de 1914, 895 (ABM). 43 Cartas a Borges de Medeiros de Abelino Vieira, Santa Maria, 31 de janeiro de 1915, 8.009; Jerônimo Gomes, 18 de fevereiro de 1916, 8.042 (ABM; CARDOSO, 1978, p. 58). 44 Carta de Luiz Mello Guimarães a Borges de Medeiros, Santana do Livramento, 14 de dezembro de 1907, 8.199 (ABM). 45 Carta de “correligionários” a Borges de Medeiros, Santana do Livramento, abril de 1915, 8260 (ABM). 46 47 Para ilustrar, relacionamos aqui uma carta em que o coronel determina, ao invés de solicitar, as nomeações a Borges, que rabiscou a lápis na borda do documento uma ordem para executar a indicação: carta de David S. Barcellos a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 27 de novembro de 1901, 642 (ABM). 48 Carta de Isidoro Neves da F. a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 12 de janeiro de 1910, 811 (ABM). Carta de José M. Ribeiro a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 23 de agosto de 1903, 647 (ABM). 49 Carta de David S. Barcellos a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 21 de abril de 1899, 639 (ABM). 50 MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 81 “Tivemos ocasião de demonstrar a V. Excia. que o partido republicano deste município estava conosco, e que os atuais detentores do poder municipal galgaram as posições pela compressão, violência e pela fraude. Para esse efeito lançaram mão aos mais reprováveis recursos, tendo percorrido o município entre patrulhas armadas de carabinas o vice-intendente Fortunato Loureiro, os subintendentes, o Dr. Promotor Público e outras autoridades.” Carta de Ramiro de Oliveira a Borges de Medeiros, Santa Maria, 13 de abril de 1925, 8.124 (ABM). 51 Evaristo do Amaral Júnior, futuro redator-chefe da Federação e filho do Coronel Evaristo do Amaral, ex-chefe conservador assassinado em Palmeira das Missões durante o “Governicho”, relata que uma das primeiras deliberações dos novos donos do poder foi urdir a nomeação do um promotor: “Para promotor público da comarca, o latrinário Affonso [Honório dos Santos] nomeou um seu devedor insolvável, Camilo Henrique da Fonseca, um miserável enfermo que o Partido Republicano mantinha como professor público e que se vendeu pelo cargo de promotor, para o qual só tem a serventia de ser capacho do Affonso, pois é incapaz de formular, por si, uma denúncia.” (MOURA, 1892, p. 177). Também em Cachoeira do Sul, o “Governicho” apressou-se em nomear o promotor João Batista da Fontoura Xavier, afastado por Castilhos em junho de 1892. (AZEVEDO, 1985, p. 37). Em setembro de 1905, por exemplo, após o acordo costurado por Borges de Medeiros entre as facções locais do partido, dominadas cada qual pelos Coronéis David Barcellos e Isidoro Neves da Fontoura, o jornal davidsista, O Comércio, reputava por “ato iníquo” a decisão presidencial, de 13 de setembro, 52 82 de transferir o promotor público Augusto de César Brandão, atuante em Cachoeira do Sul desde 6 de junho de 1896, para Vacaria. Inconformado com a remoção para uma comarca de inferior importância, Brandão, que acumulava longa ficha de cargos públicos e serviços prestados ao partido, pediu exoneração, mas negociou, no mês seguinte, sua rendição, recebendo uma provisão do Superior Tribunal para atuar como advogado criminal, civil, comercial, orfanológico. Em 1927, Brandão, resgatado pela nova facção getulista, retornou à Promotoria, ali permanecendo até 1932. (A ZEVEDO , 1985, p. 32, 37). 53 “Nada tenho a opor sobre a nomeação do promotor de São Borja. Não será preferível nomear interinamente o candidato do Pinto? A efetividade dependerá de sua conduta no Exercício.” Carta de Júlio de Castilhos a Borges de Medeiros, 23 de outubro de 1900 (ABM), citada em Mendes (1999, p. 63). 54 Atuaram no período, nas 32 comarcas gaúchas, ao todo 163 promotores públicos, sendo que 20 foram nomeados duas vezes, e um chegou a ser nomeado três vezes para o exercício da função. 55 “Quanto a maldade de afirmarem que eu faço oposição, [...] V. Exª sabe melhor do que ninguém com que amor servi o seu ilustre Governo, como Promotor e Procurador Fiscal de Estado, e como que desvanecimento colaborei por largo tempo na gloriosa ‘Federação’.” Carta de João Bonumá a Ramiro de Oliveira, Santa Maria, 31 de outubro de 1919, 8.107 (ABM). Como exemplo das relações dos promotores com outras autoridades, administrativas e judiciais, ver ANEXOS A, B, e C, transcritos do arquivo do Projeto Memória do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 56 Em 20 de setembro de 1905, o juiz da Comarca de Cachoeira do Sul, Gumercindo Taborda Ribas, esbofeteou o escrivão do cível e crime, Octávio Carpes, em razão de um desentendimento na cancha de bocha do Clube Comercial. Puxando de uma faca para se defender, o escrivão foi logo preso em flagrante, telegrafando no dia seguinte para Fernando Abbott: “Acabo de ser esbofeteado pelo juiz da comarca, tive necessidade de lançar mão da faca. Peço providências.” (AZEVEDO, 1985, p. 34). Em tempo, Gumercindo Ribas, um dos mais ardorosos partidários borgianos que passou pela Comarca de Cachoeira, fora aprovado em concurso perante o Superior Tribunal sem ser bacharel. (FONTOURA, 1969). Em 1912, foi eleito deputado federal, ocupando a cadeira até 1923. (AITA; AXT, 1996). Na Câmara, foi ele quem assomou à tribuna, em outubro de 1921, na defesa de Borges de Medeiros, quando João Francisco Pereira de Souza acusou-o abertamente de envolvimento no complô integrado por Nilo Peçanha e José Bezerra que teria armado Mâncio de Paiva, assassino de Pinheiro Machado. (SOUZA, 1923, p. 66-95). Ver: fundo sobre Cachoeira do Sul no ABM, especialmente a década de 20 (séc. XX). 57 Ver, a respeito, fundo sobre Santana do Livramento no ABM, ns. 8.143 a 8.333. 58 59 Ver, a respeito, fundo sobre Santa Maria no ABM, 7.746 a 8.140. Os exemplos citados por Love (1975, p. 85) do alfaiate Germano Petersen e do professor primário Dartagnan Tubino inscrevem-se nesse grupo restrito de colaboradores. Loiva Félix (1987) questionou a pertinência da aplicação generalizada do conceito de “coronel burocrata”, amplamente empregado por autores como Sérgio da Costa Franco (1988), Joseph Love (1975), Raymundo Faoro (1987) e Hélgio Trindade (1980). Como a autora, todavia, não tenha chegado a produzir uma análise sistêmica do fenômeno coronelista no Rio Grande do Sul, o conceito ainda pode, ao nosso ver, ser aplicado, sem prejuízo da explicação histórica, a casos específicos, dentre os quais pode se enquadrar, talvez, o acima descrito. Para uma discussão teórica a propósito da historiografia sobre o tema, consultar Axt (2001a). 60 Franco (1998, p. 12). A historiografia ainda não desenvolveu estudos mais profundos sobre as gestões políticas e administrativas nas áreas coloniais. Se a continuidade administrativa era uma realidade, e se efetivamente essas regiões eram consideradas fábricas de votos para o borgismo, pelo menos entre 1908 e 1923, não se sabe ao certo quais eram os mecanismos de barganha, cooptação e insubordinação entre intendentes e eleitores, ou, ainda, os detalhes da relação entre os poderes locais e o central, que podiam fermentar sob as “tranqüilas ditaduras” serranas. As facções intestinas do PRR constituíam-se no legítimo sujeito oculto, tanto para o discurso legitimador do regime, quanto para o discurso opositor, pois, enquanto o primeiro esforçava-se para diferenciar sua prática partidária do restante do País, insistindo na política doutrinária, hierarquizada e disciplinada, os contestadores tinham por estratégia fundamental anatematizar o regime castilhista-borgista como uma “ditadura”, o que, certamente, contribuiu para falsear o perfil da relação entre poder central estadual e poderes municipais. O mito da obediência cega das chefias municipais ao chefe palaciano pode ser encontrado, por exemplo, num forte crítico do regime, 61 MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 83 como Wenceslau Escobar (1922, p. 76, 93). Carta de Ramiro de Oliveira a Borges de Medeiros, Santa Maria, 21 de dezembro de 1919, 8.109 (ABM). 62 Carta de Isidoro Neves da F. a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 11 de novembro de 1904, 688 (ABM). 63 Carta de Aníbal Nunes Pires, Rio de Janeiro, 28 de novembro de 1903, 652 (ABM). 64 Carta de Maximiliano Moreira Maciel a Borges de Medeiros, Santana do Livramento, 31 de janeiro de 1906, 8.176 (ABM). A dinâmica do coronelismo, descrita nesste parágrafo, tem sido explicada por Victor Nunes Leal (1978); Janotti (1981); Queiroz (1989); Carvalho (1998). 65 Em 1898, quando Castilhos orientou o partido à abstenção, o Rio Grande do Sul contribuiu com apenas 3 mil votos para a presidência do País, mas, já em 1906, esse volume alcançava a cifra de 42 mil votos, quando o Rio Grande ultrapassou a Bahia e se credenciou para assumir a posição de terceira potência eleitoral entre os estados federados. (LOVE, 1975, p. 146). 66 Carta de Isidoro Neves da Fontoura, Cachoeira do Sul, 29 de setembro de 1904, 686 (ABM). 67 Carta de Isidoro Neves da Fontoura a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 11 de novembro de 1904, 688 (ABM). 68 Carta de Isidoro Neves da Fontoura a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 2 de janeiro de 1905, 688 (ABM). 69 Uma terceira hipótese indicaria maior obediência por parte dos distritos, o que talvez pudesse ser descartado levando-se em consideração os resultados eleitorais 70 84 de 1924, que traduziram forte insubordinação. De qualquer forma, a questão está ainda por merecer estudos mais aprofundados. 71 Para uma caracterização da fragilidade infraestrutural do estado, ver: Axt (2001). Para uma análise mais detalhada do discurso legitimador do regime, ver: Axt (2002, 2001b). 72 73 Carta de Isidoro Neves da Fontoura a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 8 de agosto de 1912, 821 (ABM). Esta é, pelo menos, uma das cartas em que coronéis locais solicitam a intervenção do “poder moderador” de Borges de Medeiros, que, nos anos 30 (séc. XX), publicara o um livro exatamente com esse título. No presente artigo, o conceito tomado de empréstimo à documentação, está empregado de forma devidamente contextualizada com o conjunto da análise teórica que propomos, não podendo ser equiparado ao entendimento tradicional que a expressão suscita, como quarto Poder da Constituição Imperial de 1824, nem tampouco como reprodução automática do sentido proposto pela documentação consultada para esta pesquisa. Para uma crítica do discurso legitimador do regime na época, ver: Axt (2001). Carta de Vivaldino M. Medeiros a José C. do Amaral, Bom Retiro, 12 de julho de 1917, 8.066 (ABM). 74 Ata de eleição da Comissão Executiva de Cachoeira do Sul, 30 de maio de 1897, 623 (ABM). 75 Carta de Moysés Vianna, João Francisco Pereira de Souza e Augusto Martins da Cruz Jobim a Borges de Medeiros, Santana do Livramento, 6 de maio de 1916, 8.289 (ABM). 76 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012 77 Carta de Hermes Laranja Bento a Borges de Medeiros, Canguçu, 25 de dezembro de 1917, 1.243 (ABM). 85 Carta de Ramiro de Oliveira a Protásio Alves, Santa Maria, 30 de março de 1916, 8.044 (ABM; MEDEIROS, 1980, p. 184). 78 Carta de Pinos Irineo a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 8 de junho de 1897, 624 (ABM). Carta de Abelino Vieira a Borges de Medeiros, Santa Maria, 24 de julho de 1918, 8.089 (ABM). 79 Carta de Carlos Norberto Moreira a Borges de Medeiros, Canguçu, 3 de dezembro de 1905, 1.203 (ABM). Carta de Carlos Maximiliano a Borges de Medeiros, Santa Maria, 13 de abril de 1920, 8.112 (ABM). 80 Acordo do Partido Republicano de Cachoeira do Sul, 14 de setembro de 1904, 683 (ABM). 88 Carta de A. A. de Araújo a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 27 de fevereiro de 1906, 721 (ABM). Um estudo sobre a composição dos Conselhos Municipais ainda está por ser feito, mas por hora, podemos sublinhar existirem indícios de fraca representação dos estancieiros e pecuaristas nos mesmos, em benefício da presença mais firme de negociantes e comerciantes, seguidos de profissionais liberais. Costumavam ainda dispor de assento funcionários de instituições bancárias, com as quais os municípios mantinham relações financeiras. Carta de José Claro de Oliveira a Borges de Medeiros, Santa Maria, 15 de outubro de 1919, 8.106; Carta de Abelino Vieira da Silva a Borges de Medeiros, Santa Maria, 13 de janeiro de 1915, 8.005; Carta de Jerônimo Gomes a Borges de Medeiros, Santa Maria, 4 de setembro de 1915, 8.032; Carta de Claudino Nunes Pereira a Borges de Medeiros, Santa Maria, 17 de junho de 1920, 8.114 (ABM). 81 Carta de João Paulo Prestes et al. a Borges de Medeiros, Canguçu, 11 de abril de 1906, 1.210 (ABM). 82 Ata da Comissão Executiva do PRR de Cachoeira do Sul, 14 de setembro de 1904, 683 (ABM). 83 Veja-se, por exemplo: “Por aqui tudo vai bem. Claudino é homem sensato, atencioso, bem visto. Todos o respeitam e dizem que não poderia o meu eminente Chefe achar melhor intendente provisório, tanto que daria ótimo administrador definitivo se tivesse mais altura intelectual. Acredito ser essa a solução única, em Santa Maria, um Claudino mais instruído, um homem sensato e culto, alheio ao município.” Carta de Carlos Maximiliano a Borges de Medeiros, Santa Maria, 28 de março de 1919, 8.102 (ABM). 84 86 87 89 Mais uma vez, o discurso opositor, empenhado na caracterização demoníaca do regime, contribuiu para falsear o sentido das eleições. Escobar, por exemplo, indicava que “as eleições estavam reduzidas a simulacros [...] para chancelar os desígnios oficiais”. (1922, p. 110). 90 91 Para uma análise sobre a historiografia atinente ao tema, ver: AXT, 2002. Carta de Ramiro de Oliveira a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 7 de novembro de 1898, 635; Carta de Isidoro Neves da Fontoura a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 4 de fevereiro de 1906, 715; Carta de Isidoro Neves da Fontoura a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 28 de janeiro de 1910, 815 (ABM). 92 Sobre o conceito de “poder infraestrutural”, ver: Mann (1984, p. 185-213); Axt (1997). 93 MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 85 Referências AITA, Carmen; AXT, Gunter. Parlamentares gaúchos das cortes de Lisboa aos nossos dias (1821-1996). 2. ed.Porto Alegre: ALRS/ Corag, 1996. ______. Perfil parlamentar de José Antônio Flores da Cunha: discursos, 1909-1930. Porto Alegre: ALRS; Corag, 1998. v. 3. (Série Perfis Parlamentares). ALMEIDA, Gil de. Homens e fatos de uma revolução. Rio de Janeiro: SCP, s/d. ALMEIDA, Henrique Blaskesi de. Coronelismo, justiça e relações de poder em Caxias do Sul. 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Apresenta o acervo do Poder Judiciário custodiado pelo Apers, o histórico dessas fontes documentais e a organização arquivística aplicada aos processos judiciais. Relata as principais atividades realizadas referentes à classificação, ao arranjo e à descrição arquivística aplicadas ao acervo, inclusive sobre seu gerenciamento físico. Enumera possibilidades de pesquisa no acervo judicial e apresenta alguns dos principais projetos, atividades e eventos culturais planejados e realizados a partir do estudo e da divulgação dessas fontes documentais. Palavras-chave: Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul; classificação; quadro de arranjo; processos judiciais. Abstract: Reports a brief history of the Public Archives of the State of Rio Grande do Sul (Apers), since the creation of the same in 1906. Describes the main activities of its actions. Presents the collection of the Judiciary guarded by Apers, the history of these documental sources and archival organization applied to judicial proceedings. Reports the main activities related to the classification, arrangement and archival description applied to the collection, including its physical management. Lists research possibilities in the collection of justice and presents some the main projects, activities and cultural events planned from the study performed and the disclosure of documentary sources. Keywords: Public Archives of the State of Rio Grande do Sul; classification; framework arrangement; legal proceedings. Arquivistas da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos do Estado do RS – Departamento de Arquivo Público. Disponível em: <http://www.apers.rs.gov.br; wordpress.arquivopublicors.com>. Tel.: (51) 3288-9108. E-mail: alinenm@gmail.com, camilalacer@gmail.com. * MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda 89 Introdução: atuação do arquivo público O Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (Apers) foi criado através do Decreto 876, de 8 de março de 1906, e, na época, denominavase “Repartição de Arquivo Público, Estatística e Biblioteca”, sendo subordinado à Secretaria dos Negócios do Interior e Exterior. Posteriormente, em 1956, devido a alterações na denominação dessa secretaria, o Arquivo Público foi vinculado à Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e Justiça, permanecendo assim até o ano de 1975, quando a Secretaria do Interior e Justiça se transformou em Secretaria da Justiça, e o Apers ficou vinculado a essa nova secretaria, através do Decreto 29.373, de 12 de dezembro de 1979. Na década de 90 (séc. XX), o Departamento de Arquivo Público do Estado foi vinculado à Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos (Sarh) através do Decreto 35.923, de 12 de abril de 1995. Em sua trajetória, o Apers passou por diversas modificações administrativas que se refletiram na composição de seu acervo. A principal delas ocorreu em 1925, quando houve a transferência da 2ª seção (Arquivo Histórico e Geográfico) para o Museu Júlio de Castilhos, que, posteriormente, deu origem ao Departamento de História Nacional, atualmente Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (Ahrs). Permaneceram sob a responsabilidade do Apers a 1ª e a 3ª seções (administrativa e arquivo forense, respectivamente). Outra grande modificação foi a desvinculação do Poder Judiciário, que parou de recolher documentos ao Apers na década de 80. Sabe-se que, apesar de não haver registros oficiais, a principal razão foi devido à ausência de espaço físico para a continuação do recolhimento desse acervo. Atualmente, a responsabilidade de recolhimento, guarda e gestão dos arquivos judiciais é do Poder Judiciário. Além da gestão do acervo recolhido ao longo de seus 105 anos, o Apers é o órgão gestor do Sistema de Arquivos do Estado do RS (Siarq/ RS), que foi criado conforme os termos do Decreto 20.818, de 26 de dezembro de 1970, pelo Decreto 33.200, de 5 de junho de 1989, e reorganizado pelo Decreto 47.022, de 25 de fevereiro de 2010. Assim, o Arquivo Público atua assessorando todos os órgãos e as entidades da Administração Pública estadual, além de municípios, no que concerne à gestão documental. 90 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012 Entre suas funções se destacam também: a promoção de ações e políticas de preservação da memória do estado, atividades educativas e culturais, divulgação do acervo, incentivo e valorização à pesquisa. O acervo do Poder Judiciário no Apers Estão custodiados no Apers documentos oriundos do Poder Judiciário, desde o ano de 1763 até, aproximadamente, meados da década de 80 (séc. XX). Esse acervo mede 3.320,54 metros lineares, ou seja, o equivalente a 27.672 caixas. Além de processos judiciais provenientes da Comarca de Porto Alegre do período de 1833 até 1980, também foram recolhidos processos de diversas comarcas do interior do estado, tais como: Alegrete (1833-1856); Bagé (1842-1956); Bento Gonçalves (1907-1955); Caxias do Sul (1898-1907/ 1919-1955); Cruz Alta (1858-1959); Jaguarão (1872-1939); Júlio de Castilhos (1844-1955); Rio Pardo (1833-1961); Santa Maria (1878-1939); São Borja (1823-1872/1878-1957); São Luiz Gonzaga (1890-1957); Torres (1945-1952); Uruguaiana (1875-1955); e Veranópolis (1945-1950). Dentre os processos judiciais, foram identificadas diversas tipologias, entre essas, destacam-se: acidente de trabalho, adoção, alimentos, anulação de casamento, crime, curatela, desquite, divórcio, falência, inventário, medição, partilha, possessória, separação de corpos, testamento e tutela. Sendo que as tipologias mais pesquisadas costumam ser processos judiciais de inventário e de crime. Também faziam parte do acervo do Poder Judiciário, livros de registros dos atos administrativos das comarcas, tais como: livro de protocolo de termos de audiência, de atas de qualificação dos jurados, de registros de tutelas, entre outros. Esses livros foram transferidos ao Tribunal de Justiça do Estado do RS, em 29/4/2010, passando a integrar o acervo do Memorial do Poder Judiciário. Histórico das fontes documentais do Poder Judiciário no Apers O Decreto 876/1906, que criou o Arquivo Público do Rio Grande do Sul, define em seu artigo 3º: “À primeira secção compete guarda e catalogação dos documentos: [...] XXXII – Todos os autos findos de jurisdição contenciosas, bem como inventários.” Assim, fica definido que os documentos produzidos em razão da atividade judiciária ficarão sob a custódia do Apers. MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda 91 Essa definição permanece nos Decreto 3.775, de 4 de janeiro de 1927, no qual consta em seu artigo 1º: “O Archivo Público [...] é destinado a recolher, adquirir e conservar, sob classificação systemática: [...]; b) Os documentos de vendas, cessão e medição de terras, os autos findos de jurisdição contenciosa, bem como inventários.” Nesse mesmo decreto, fica expresso que é dever dos juízes e serventuários “providenciar para que sejam imediatamente recolhidos ao Arquivo Público, assim que estiverem findos, os autos ou processos.” (Capítulo III). O Decreto 7.058, de 22 de maio de 1956, estabelece, ainda, como uma das seções do Departamento, a Secção de Arquivos de Processos Judiciários, a qual é composta pela Turma de Classificação e Catalogação de Livros, Autos e Documentos e pela Turma de Pesquisas. Em seu Regimento Interno, publicado via Decreto 9.207, de 5 de agosto de 1958, essa seção permanece como parte da composição do Apers, regulamentou-se que a Turma de Classificação e Arquivamento deverá “classificar, relacionar, fichar [...] todos os documentos recolhidos pelo Poder Judiciário”. No artigo 1º, fica estabelecido que o Arquivo Público tem por fim recolher, guardar e conservar sob classificação sistemática: […]; b) Os livros, autos e documentos oriundos dos tabelionatos e cartórios do Estado, referentes à registros e ações judiciais, que tratam da compra e venda, contratos, doações, hipotecas, quitações, procurações, partilhas amigáveis, etc. (RIO GRANDE DO SUL, 1958). Essas atribuições pertinentes ao Apers permanecem ainda regulamentadas pelo artigo 1º do Decreto 22.388, de 23 de março de 1973, que diz: uma das finalidades do mesmo é “receber, guardar e conservar sob classificação sistemática, os documentos provenientes dos órgãos integrantes dos Poderes Judiciário e Executivo do Estado”. Contudo, no Decreto 35.923, de 12 de abril de 1995, já não aparece, no rol de suas competências, o recolhimento de acervo oriundo do Poder Judiciário; seu art. 6º reza que ao Departamento de Arquivo Público compete “gerenciar os processos de arquivamento, avaliação, guarda e conservação da documentação do Poder Executivo”. Esses decretos revelam como decorreu a organização do acervo do Poder Judiciário no período em que essa competência ainda era do Arquivo Público do Estado. Atualmente, essa tarefa de recolher, organizar, gerenciar 92 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012 e disponibilizar processos judiciais para o usuário é da alçada do Poder Judiciário; no entanto, possibilita-se, ainda, o acesso aos documentos desse período em que houve recolhimento, bem como se realizam atividades que objetivam a organização do acervo de modo a respeitar os princípios arquivísticos. Organização arquivística Quando houve o recolhimento do acervo do Poder Judiciário ao Apers, os documentos estavam organizados e divididos de acordo com os municípios do estado, no entanto, considerou-se o fato de que, na estrutura do Poder Judiciário, o território do Rio Grande do Sul é dividido em comarcas, que correspondem ao “território, à circunscrição territorial, compreendida pelos limites em que se encerra a jurisdição de um Juiz de Direito, [...] dividida em termos, jurisdicionada por juízes próprios, subordinados, então, ao Juiz da Comarca” (DE PLÁCIDO E SILVA, 1961, p. 360), e uma comarca pode abranger um ou mais municípios, ou seja, nem sempre um município equivale a uma comarca. Para constituir uma comarca, que será denominada conforme o município onde estiver sua sede, de acordo com o Código de Organização Judiciária do Estado, é necessário que se atenda a requisitos tais como: população mínima de 20 mil habitantes, com 5 mil eleitores, volume de, no mínimo, 300 feitos ingressados no serviço forense diariamente e receita tributária mínima igual à exigida para criação de municípios. Em 2003, quando iniciou o trabalho de organização arquivística do acervo, verificou-se a necessidade de modificar essa classificação, sendo, a partir de então, utilizada a classificação por comarcas, o que respeita o princípio de respeito aos fundos, que: protege a integridade dos conjuntos documentais enquanto informação, refletindo-se no arranjo as origens e os processos que os criaram. [...] Serve para que conheçam a natureza e o significado dos documentos no seu contexto e circunstâncias [...]. Serve para que haja critério mais ou menos universal no arranjo e uniformidade da descrição. (BELLOTTO, 1991, p. 86-87). Assim, o acervo do Poder Judiciário se dividiu em fundos, e cada fundo é composto pela comarca-sede – ou cabeça de comarca – e seus termos vinculados, respeitando-se sempre períodos de acréscimo e supressão dos mesmos. Para tanto, realizou-se um estudo que resultou no Quadro de MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda 93 Arranjo Intelectual do Judiciário. Esse quadro permite visualizar datas-limite de sedes, bem como seus termos relacionados. O trabalho de organização desse acervo envolve, prioritariamente, as equipes de Gerenciamento de Acervos e de Descrição Arquivística, que trabalham em conjunto e dividem as atividades em duas grandes etapas: reorganização conforme o quadro citado e indexação de processos no Sistema Administração de Acervos Públicos (AAP). Gerenciamento de acervos Nessa etapa, é definido o arranjo dos documentos, a fim de otimizar a utilização do espaço disponível. A equipe de trabalho desenvolve os estudos desde o arranjo intelectual, pesquisando as datas-limite das comarcas e suas relações, até o arranjo físico, no qual se verifica o volume de processos judiciais de cada comarca, para que os documentos possam ser devidamente tratados, reacondicionados e disponibilizados à equipe de descrição. Atualmente a equipe conta com dois arquivistas responsáveis pelos estudos e pesquisas e uma funcionária que realiza a parte técnica. Descrição Integram a equipe de descrição, atualmente, três arquivistas e três estagiários, que são responsáveis pela inserção de informações no Sistema AAP – Administração de Acervos Públicos, além da elaboração de instrumentos de pesquisa a partir da aplicação de normas internacionais e nacionais. Depois de finalizada a inserção dos documentos no Sistema AAP, os processos podem ser pesquisados via internet no portal do Apers. Importante ressaltar a importância das historiadoras que atuam no Apers, junto com os arquivistas, na elaboração de instrumentos de pesquisa, tais como catálogos seletivos. A parceria arquivista-historiador enriqueceu o trabalho de tal forma que a maioria das atividades da instituição passou a contar com a participação de profissionais de ambas as áreas. Fontes documentais: possibilidades de pesquisa Por se tratar de documentação rica em inúmeros aspectos, há um extenso leque de possibilidades de pesquisa no acervo do Poder Judiciário, sendo o acervo mais pesquisado do Arquivo Público. 94 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012 Aqui descrevemos algumas peculiaridades do Acervo: • Autos Findos da Vara de Família e Sucessão: incluem processos de desquite e divórcio, ações de alimentos, reconhecimento de paternidade e maternidade, alvarás para casamento, tutela de menores, etc.; • Processos-crimes: oportuniza uma série de abordagens distintas. Os processos-crime consideram as mulheres como vítimas, como rés ou testemunhas e, muitas vezes, dão voz a mulheres que provavelmente não teriam sua trajetória registrada de forma escrita; • Habilitações para o casamento: documentação bastante pesquisada. Traz diversas informações sobre os contraentes de matrimônio, como idade, profissão, estado civil e naturalidade; ressaltam casos de novas núpcias, etc.; e • Inventários e testamentos: fontes já habituais nas pesquisas realizadas por historiadores, pois oportunizam discussões sobre posse e divisão de patrimônios, família, herança, etc. Eventos e atividades culturais Cumprindo com seu papel de instituição disseminadora de informações e de cultura e que promove o acesso aos documentos que preserva, o Arquivo Público do Estado realiza diversos eventos e atividades culturais, com o objetivo de incentivar a realização de pesquisa histórica. Os principais eventos e atividades são: – Mostra de Pesquisa: atividade de incentivo à pesquisa e divulgação do acervo. Evento realizado anualmente com a apresentação de pesquisas acadêmicas, resultando em publicação escrita. Já se encontra em sua décima edição, atraindo pesquisadores de diversos locais; – Oficinas de Educação Patrimonial: estas oficinas consistem em momentos lúdicos com a finalidade de conscientizar crianças e adolescentes sobre a importância da preservação do patrimônio como fonte da nossa história. A oficina “Os Tesouros da Família Arquivos” se destina a estudantes de 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental, e a oficina “Desvendando o Arquivo Público: historiador por um dia” se destina a alunos de 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental; – I Jornada da Ditadura e Direitos Humanos: realizada no mês de abril de 2011, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS, a Escola do Legislativo/Alrs, e a Associação dos Amigos MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda 95 do Apers, com o objetivo de oportunizar espaço para a divulgação e discussão a respeito da recente produção intelectual focada na temática Ditaduras de Segurança Nacional na América Latina e Direitos Humanos; – Exposições: o espaço do arquivo Público é cedido gratuitamente para a realização de exposições. Já passaram pelo Apers obras como as da Bienal B, dentre várias outras. – Visitas Guiadas: são realizadas a partir de agendamento a quaisquer interessados em conhecer o conjunto arquitetônico dos três prédios e o acervo do arquivo. Além das Visitas Guiadas, o Apers, em 2011, passou a compor o grupo de instituições que realiza o projeto “Os Caminhos da Matriz”, que tem como objetivo aproximar a população do patrimônio histórico e cultural da cidade de Porto Alegre, realizando visitas guiadas aos prédios históricos da Praça da Matriz e outras atividades culturais; – Encontro de Arquivistas: ocorre a cada dois meses com o intuito de reunir e integrar o quadro de arquivistas do estado como forma de troca de experiências e de promover a discussão de assuntos pertinentes ao Sistema de Arquivos do Estado; – Assessoria Arquivística: através do Siarq/RS, o Apers presta assessoria a toda administração direta estadual e aos municípios gaúchos, a fim de auxiliar no levantamento da produção documental, na classificação, na avaliação, no arranjo, na descrição e na preservação de documentos; – Pesquisas Históricas: realizadas pela equipe de Pesquisa Histórica, são compostas por historiadores e estagiários de nível superior, que visam à divulgação do acervo e ao incentivo à formação de linhas de pesquisa no arquivo. A partir da realização dessas pesquisas, que acarretam a leitura de processo a processo, são originados os instrumentos de pesquisa que contribuem para o acesso fácil e rápido aos documentos custodiados pelo Apers, orientando melhor a realização das pesquisas, além de contribuir para a preservação da documentação ao diminuir o manuseio direto das fontes primárias. Entre 2006 e 2010, foram mapeados diversos fundos com documentos de setembro de 1763 a maio de 1888, de cujo trabalho resultaram oito volumes do Catálogo Seletivo: Documentos da Escravidão, os quais tratam das cartas de liberdade e escrituras de compra e venda de escravos, encontradas no acervo de tabelionatos, inventários e testamentos, nos quais os escravos 96 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012 eram arrolados como bens e deixados em herança e, ainda, processos crimes, em que os escravos eram vítimas ou réus; – Catálogo Seletivo Mulher e Gênero: desde março de 2011, está em fase de mapeamento e descrição uma nova edição do Catálogo Seletivo que irá ressaltar a história das mulheres no RS, a partir do mapeamento e da descrição dos Autos Findos da Vara de Família e Sucessão da Comarca de Porto Alegre, do período de 1889 a 1975. Além desse fundo, foram escolhidos outras fontes que podem ser expressivas para ressaltar as relações entre os gêneros ao longo da história e o lugar (ou os lugares) das mulheres nessas relações. Concomitantemente a esse trabalho, criouse um grupo de discussão sobre o tema “Gênero, memória e história”, a fim de incentivar reflexões por parte da equipe de trabalho do Apers e a criação de espaços de divulgação de pesquisas e debates. Nesse sentido, o Arquivo Público já cedeu seus espaços para a realização da “I Jornada de História e Gênero da Anpuh-RS” entre 4 e 5 de novembro de 2011. Considerações finais Por se tratar de uma instituição arquivística de referência em âmbito nacional, o Apers vem se empenhando cada vez mais na organização e disponibilização eficientes das fontes documentais sob sua custódia. Tendo sido recolhido ao Apers de acordo com as definições legais de uma determinada época, o acervo do Poder Judiciário continua sendo o acervo de maior volume e de maior número de consultas e pesquisas realizadas diariamente. Trata-se de acervo valioso e rico em inúmeras possibilidades de pesquisa histórica no Rio Grande do Sul, fato que justifica o investimento de recursos humanos e materiais em toda espécie de atividade relacionada a esse acervo. Iniciativas semelhantes à realização de oficinas de Educação Patrimonial, que têm como base alguns assuntos presentes em processos judiciais, demonstram esse fato. Quando o Apers cumpre competências como gerenciar processos de arquivamento, de guarda e conservação de documentos recolhidos, buscar eficácia no acesso à informação, assegurar à comunidade a preservação e a disseminação da memória, os eventos e as atividades culturais organizados pela equipe se tornam cada vez mais viáveis e possibilitam que se promova a divulgação de seu acervo para a sociedade em geral. MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda 97 O Arquivo Público também tem o dever de possibilitar melhor formação ao cidadão, orientando para que esse, desde sua infância, entenda conceitos como o de cidadania e valorize a informação, para que a veja como um direito básico ao alcance de todos. Esse é apenas um dos papéis que o Apers se propôs a cumprir, ou seja, quer garantir que se cumpra o direito ao acesso à informação pública. 98 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012 Referências BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. São Paulo: Queiroz, 1991. p. 86-87. do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/legis/>. Acesso em: 29 nov. 2010. DE PLÁCIDO E SILVA. Comarca. In: ______. Vocabulário jurídico. São Paulo: Forense, 1961. p. 360. v. 1. ______. Decreto 35.923, de 12 de abril de 1995. Dispõe sobre a estrutura básica da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos e dá outras providências. Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/ legis/>. Acesso em: 20 jan. 2012. FORTES, Amyr Borges; WAGNER, João Baptista Santiago. História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1963. RIO GRANDE DO SUL. Decreto 876, de 8 de março de 1906. Dá regulamento para a repartição do Archivo Público, Estatística e Biblioteca. Porto Alegre: Officinas Typographicas d’”A Federação”, 1906. ______. Decreto 3.775, de 4 de janeiro de 1927. Approva o novo regulamento da Repartição do Archivo Publico. Porto Alegre: Officinas typographicas d’”A Federação”, 1927. ______. Lei 7.356, de 1º de fevereiro de 1980. Dispõe sobre o Código de Organização Judiciária do Estado. Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/legiscomp/ arquivo.asp?Rotulo=Lei%20n%BA%2073 56&idNorma=948&tipo=pdf>. Acesso em: 19 jan. 2012. ______. Decreto 9.207, de 5 de agosto de 1958. Altera a organização e o regimento interno do Arquivo Público e dá outras providências. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Imprensa Oficial, 1958. ______. Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos. Departamento de Arquivo Público. Documentos da escravidão. Catálogo Seletivo de cartas de liberdade: acervo dos tabelionatos do interior do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Corag, 2006. Disponível em: <http://www.apers.rs.gov.br/ arquivos/1169142561.Cat_Sel_ Cartas_Liberdade _Vol_1.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2012. ______. Decreto 20.818, de 26 de dezembro de 1970. Traça normas básicas para a organização sob a forma de sistema, de atividades do Poder Executivo e regulamenta o artigo 5 do Decreto 19.801, de 8 de agosto de 1969. Disponível em: <http:// www.al.rs.gov.br/legis/>. Acesso em: 5 jan. 2012. ______. Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos. Portaria 3, de 30 de março de 1998. Com fundamento na Ordem de Serviço 151/95-98, de 24 de março de 1997, aprova o Regimento Interno da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos (Sarh). Publicado no Diário Oficial do RS em: 30 mar. 1998. ______. Decreto 29.373, de 12 de dezembro de 1979. Dispõe sobre a estrutura básica da Secretaria da Justiça e dá outras providências. Disponível em: <http://www.al.rs.gov.br/ legis/>. Acesso em: 20 jan. 2012. ______. Secretaria de Estado dos Negócios do Interior e da Justiça. Arquivo Público. Regimento Interno: aprovado pelo Decreto 7.058, de 22 de maio de 1956. Porto Alegre: Oficinas Gráficas da Imprensa Oficial, 1956. ______. Decreto 33.200, de 5 de junho de 1989. Institui o SISTEMA DE ARQUIVO MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda 99 ______. Tribunal de Justiça. História administrativa das comarcas. Porto Alegre: TJRS; Memorial do Judiciário. Cadernos de Pesquisa, v. 1. 2003. 100 SISTEMA DE ARQUIVOS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Disponível em: <http://www.apers.rs.gov.br/portal/ siarq.php>. Acessos em: 10 jan. 2011. MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012 Centro de Memória Regional do Judiciário: possibilitando pesquisas e preservando a história de Caxias do Sul/RS The Regional Archive of the Judicial System of the County of Caxias do Sul: making research possible and preserving the history of Caxias do Sul/RS Luiza Horn Iotti* Fabrício Romani Gomes** Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar a trajetória do Centro de Memória Regional do Judiciário IMHC/UCS, criado através do Termo de Convênio entre o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) e a Fundação Universidade de Caxias do Sul (Fucs), em dezembro de 2001. Palavras-chave: História do Judiciário; memória do Judiciário; Poder Judiciário. Abstract: The goal of this article is to present the history of the Regional Archive of the Judicial System of the County of Caxias do Sul (Centro de Memória do Judiciário da Comarca Caxias – IMHC/UCS) created through an accord between the Court of Justice of the State of Rio Grande do Sul (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS) and the University of Caxias do Sul Foundation (Fundação Universidade de Caxias do Sul – FUCS) in December of 2001. Keywords: History of the Judiciary; Judiciary Memory; Judiciary Power. Professora na área de História do Centro de Ciências Humanas da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Diretora do Instituto Memória Histórica e Cultural da UCS. Mestre e Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: lhiotti@ucs.br ** Professor na Rede Estadual de Ensino do RS. Licenciado em História pela UCS. Mestre em História pela Unisinos. E-mail: phabrisss@gmail.com * MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani 101 Centro de Memória Regional do Judiciário (IMHC/UCS) Em dezembro de 2001, foi assinado um Termo de Convênio entre o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) e a Fundação Universidade de Caxias do Sul (Fucs) estabelecendo um acordo, entre essas duas instituições, cujo objetivo é era elaboração de “ações conjuntas entre os convenentes para a conservação, pesquisa e divulgação de acervo documental histórico do Poder Judiciário”, por meio da criação do Centro de Memória Regional do Judiciário – Caxias do Sul (CMRJU/IMHC/UCS). (TERMO, 2001, p. 1). Nesse artigo, pretendemos destacar a importância da criação desse centro de documentação, apontando a alguns números referentes a seu acervo e, também, sobre as possibilidades de pesquisa no mesmo. Apesar de a assinatura do convênio ter sido efetivada em 2001, somente em 2003 o CMRJU/CXS começou a “sair do papel”. Contribuíram para a sua concretização, a formulação e o desenvolvimento do projeto de pesquisa intitulado “Comarca Caxias: a Trajetória do Judiciário e da Justiça”, sob a coordenação de Luiza Horn Iotti. A pesquisa recebeu o apoio da UCS e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs) através da concessão de bolsas de iniciação científica. Assim, com a formação de uma equipe de pesquisa, foi possível transferir parte do acervo da Comarca de Caxias do Sul para uma sala, localizada junto a Biblioteca Central de UCS,1 concretizando parte do acordo realizado. Nesse mesmo período, foi constituído um grupo de pesquisa no CNPq, intitulado “Memória, Justiça e Poder”, que tem como objetivo pesquisar, conservar e divulgar o acervo documental histórico do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. O acervo da Comarca Caxias começou a ser constituído a partir de sua criação em 15 de janeiro de 1898, através do Decreto 124-A, sendo “desmembrada da Comarca de São Sebastião, com jurisdição sobre os Termos de Caxias e Bento Gonçalves”. (MEMORIAL DO JUDICIÁRIO DO RS, 2003, p. 43). Posteriormente, em 1900, foi anexado à comarca o Termo de Garibaldi. A elevação de Caxias à sede de comarca foi uma promessa de Júlio de Castilhos, e sua concretização foi recebida com entusiasmo pela população local.2 Além disso, sua criação foi utilizada em campanha política. Na época, o intendente de Caxias, José Cândido de Campos Júnior, buscou votos do eleitorado caxiense para Antônio Augusto Borges de Medeiros, candidato à presidência do estado, dizendo que votar em Borges era uma forma de demonstrar gratidão ao governo republicano pelos serviços prestados ao município. Entre esses serviços, segundo o intendente, destacavam-se: 102 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012 o telegrapho, a proxima creação da comarca Caxias, a grande despeza com a estrada Rio Branco, a estrada da 1ª Legua já orçada em 75 contos de reis e sobretudo o prolongamento da via ferrea de Novo Hamburgo até esta villa, são motivos de ordem elevada que devem actuar poderosamente no animo dos eleitores patriotas para que compenetrando-se do dever civico, não deixem de comparecer as urnas, mostrando assim o seu interesse pelo progresso deste florescente, prospero e futuroso município. (O Caxiense, 13/11/1897, p. 2-3)..3 O acervo transferido deveria conter processos iniciados em 1898, data da criação da Comarca Caxias. Porém, os processos que fazem parte do acervo documental do CMRJU/CXS iniciaram em 1900, percorreram parte do século XX, chegando até o ano de 2003. A princípio, faria parte do acervo documentação referente a primeira Vara Cível da Comarca, mas, com o início da catalogação, percebeu-se a existência de processos da segunda e da terceira Varas Cíveis e alguns processos-crime. Importante é ressaltar que o acervo do CMRJU/IMHC/UCS, desde o início, constituiu-se em um acervo único e surpreendente pelo número de informações que oferece ao olhar mais atento dos pesquisadores. Ele não contém toda a documentação produzida pela Comarca Caxias, pois, como lembra Axt até há bem pouco tempo, no Rio Grande do Sul, o tratamento das fontes judiciais não vinha recebendo abordagem sistemática [...]. No passado, determinouse o envio de toda a documentação de caráter judicial ao Arquivo Público do Estado, instituição, esta, vinculada à Secretaria Estadual da Administração, que, se estima, abriga mais de seis milhões de documentos judiciais, produzidos, sobretudo, entre o século XVII e a década de 1950 do século XX. (2004, p. 5). Outro fator que contribuiu para a dispersão da documentação produzida pela Comarca, foi a sua transferência em 19074 para Bento Gonçalves/RS. Tal fato decorreu de grave crise política que se instalou na cidade. Segundo Adami (1957, p. 46), essa transferência se deu “por motivos de ordem pública”. O documento que determina a transferência diz o seguinte: MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani 103 O presidente do Estado do Rio Grande do Sul, considerando que na designação das sedes das comarcas cumpre ter em vista a importância do Foro Civil, o desenvolvimento comercial e industrial e facilidade das vias de comunicação. Considerando que a vila de Caxias situada no extremo da comarca não preenche todas essas condições, ao passo que a de Bento Gonçalves, com o mesmo da circunscrição e da sede de comunicações: Art. 1°. É transferida para a vila de Bento Gonçalves a sede atual Comarca de Caxias, composta dos municípios deste nome, de Bento Gonçalves, com o mesmo movimento civil, comercial e industrial, oferece a vantagem de estar no centro da circunscrição e da sede de comunicações: Resolve: no uso das atribuições que lhe confere a Constituição, Artigo 20, n. 15: Art. 1°. É transferida para a vila de Bento Gonçalves a sede da atual Comarca de Caxias, composta dos municípios deste nome, de Bento Gonçalves e de Garibaldi. Art. 2°. Fica derrogado nesta parte o Decreto n. 124-A, de 15 de janeiro de 1898. (ADAMI, [19—], p. 257). Assim, a comarca foi transferida devido à localização de Caxias do Sul, que será, novamente, sede da comarca em 1919, quando passou a ter jurisdição sobre Caxias do Sul e Antônio Prado.5 Assim, grande parte da documentação produzida entre 1898 e 1907 e, principalmente, aquela produzida entre 1907 e 1919, estaria sob a responsabilidade da Comarca de Bento Gonçalves. Isso pode explicar, juntamente com o que já foi dito, a pequena quantidade de processos referentes aos primeiros 30 anos de criação da Comarca Caxias. Mas essa dispersão da documentação produzida pela comarca não desvaloriza o acervo, que auxilia para o desenvolvimento e fortalecimento de centros de pesquisa no interior do Estado do Rio Grande do Sul, dentro da política do Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul que, “em sua organização, é composto por um Núcleo de Pesquisa, Centro de Eventos, Museu, Biblioteca, Arquivos e Centros de Memória Regional, Porto Alegre e Interior”. (BIANCAMANO, 2005, p. 320). Segundo Biancamano (p. 321), a criação dos centros pareceu a melhor opção para a preservação do acervo do Poder Judiciário, “porque manteria a documentação nas comunidades de origem, facilitando o acesso à informação contida nesses documentos”. Assim, o CMRJU/IMHC/UCS auxilia na preservação 104 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012 de uma documentação importante para a construção ou reconstrução da história da cidade de Caxias do Sul e região, disponibilizando para pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento seu acervo, que, antes disso, é higienizado e catalogado. Em janeiro de 2004, logo após a chegada dos processos, iniciou-se a higienização6 da documentação. Do total de 2.229 (dois mil, duzentos e vinte e nove) caixas, foram higienizadas 850 (oitocentos e cinquenta), até setembro de 2011. Essas caixas higienizadas possuem 22.232 (vinte e dois mil, duzentos e trinta e dois) processos, que abrangem o período de 1900 à 1930. Após receberem esse tratamento, os processos são catalogados e, depois, incluídos em uma base de dados, desenvolvida em meados de 2005, que tem como objetivo facilitar a consulta ao acervo. Já estão incluídas nessa base 379 (trezentas e setenta e nove) caixas. Os tipos de processos são variados, como pode ser observado na tabela abaixo: Tabela 1 – Processos do CMRJU/IMHC/UCS (1900-1960) Os processos relacionados na tabela 1 são alguns dos mais frequentes entre os anos de 1900 e1960. Através da tabela produzida, percebe-se, como já foi dito, que o acervo do CMRJU/IMHC/UCS concentra-se nas décadas de 40 (séc. XX) e posteriores. Além disso, durante o período de 1900 a 1960, podem ser encontrados, no acervo, diversos processos criminais (homicídios, defloramentos, lesões corporais, etc.) e outros tantos referentes à demarcação de lotes. Vale lembrar, que o acesso a essa documentação, conforme a Ordem de Serviço 004/03-DF, está autorizado aos membros e servidores do Judiciário, assim como a MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani 105 I) professores e/ou pesquisadores do Direito, História e áreas afins, ligados a instituições que desenvolvam trabalho reconhecido de [pesquisa] (universidades públicas e particulares, organizações de classe, instituições públicas, institutos históricos e geográficos, centros de pesquisa); II estudantes de graduação ligados oficialmente a linhas ou programas de pesquisa, tais como: bolsistas de iniciação científica, bolsistas de aperfeiçoamento e outras formas praticadas pelas instituições; [...] (ORDEM, 2003, p. 1-2). Essa delimitação do acesso ao CMRJU/IMHC/UCS deve-se ao conteúdo dos processos, que contêm, muitas vezes, informações de caráter privado relativas a pessoas físicas e jurídicas. Assim, é solicitado aos pesquisadores que assinem um termo no qual se comprometem a não divulgar os nomes dos indivíduos em processos de modo que possam, de alguma forma, causar danos aos envolvidos ou familiares. Assim, realizadas essas primeiras observações sobre a constituição do CMRJU/IMHC/UCS, seu acervo e consulta, passamos, a seguir, a especular sobre possíveis temas que possam aproveitar o acervo do referido centro. As fontes judiciais e a produção historiográfica Segundo Barros (2004, p. 121), os historiadores da atualidade têm prestado atenção a “um vasto manancial de fontes que por muito tempo foi esquecido: os registros de polícia, os processos criminais [...] ou ainda, para os primeiros séculos da Idade Moderna, os processos da Santa Inquisição”. Essa utilização auxiliou para que, hoje, sejam inúmeros os trabalhos historiográficos que possuem como fonte principal processos produzidos pelo Poder Judiciário ou por outras instituições, como a Igreja. Nessa parte do texto, buscamos alguns exemplos dessa utilização, demonstrando o quanto esses documentos podem ser úteis a pesquisas que possuem as mais diversas temáticas, pois é “possível extrair deles análises variadas sobre grupos sociais diversos”. (OLIVEIRA; SILVA, 2005, p. 244). Além disso, pretende-se especular sobre outros possíveis temas ainda não estudados. Um dos primeiros a demonstrar o quanto as fontes produzidas a partir de interrogatórios podem ser exploradas pela história foi o italiano Ginzburg. Em uma de suas mais importantes obras, O queijo e os vermes, Ginzburg utiliza, além de outras fontes, dois processos abertos pelo Tribunal do Santo Ofício7 contra Domenico Scandella, conhecido como “Menoccio”, que 106 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012 fornecem “um quadro rico de suas idéias e sentimentos, fantasias e aspirações”. (GINZBURG, 2004, p. 16). Essas informações contribuíram de maneira significativa para que o autor atingisse seus objetivos de pesquisa, pois buscava “reconstruir um fragmento do que se costuma denominar ‘cultura das classes subalternas’ ou ainda ‘cultura popular’”. (p. 16). Para Ginzburg, as actas processuais, acessíveis directamente ou indirectamente, podem ser comparadas à documentação de primeira mão recolhida por um antropólogo no seu trabalho de campo ou deixada como herança aos historiadores futuros. Trata-se de uma documentação preciosa, embora inevitavelmente insuficiente: uma infinidade de questões que o historiador se põe – e que poria, se pudesse recorrer à máquina do tempo, aos acusados e à testemunha – não as formularam os inquisidores do passado nem podiam fazê-lo. Não se trata apenas de uma distância cultural, mas de diferenças e objetivos. (1991a, p. 181). Dessa forma, o autor ressalta a importância de se recorrer a outras fontes, pois muitas das perguntas formuladas pelos pesquisadores podem não ser respondidas de forma satisfatória somente através da análise de processos. A utilização de múltiplas fontes colabora também para uma melhor percepção do contexto estudado, o que possibilita uma mais completa avaliação do pesquisador das estratégias escolhidas pelos atores históricos. Além disso, a utilização de fontes variadas contribui para uma melhor percepção do real, pois como lembra o próprio Ginzburg (1991b, p. 209), não existem textos neutros; “até mesmo um inventário notarial implica um código, que tem de ser decifrado”. Essa não neutralidade dos textos fez com que a utilização de processos criminais pelos historiadores fosse vista como desconfiança. Chalhoub (2001, p. vii) lembra que, no início da década de 80 (séc. XX), quando lançou Trabalho, lar e botequim, “havia uma um contingente de pesquisadores céticos quanto à possibilidade de utilizar processos penais para estudar temas outros que não a própria criminalidade ou as representações jurídicas sobre determinados assuntos”.8 Os céticos acreditavam que “tais fontes ‘mentem’, [pois] os depoimentos são manipulados, respondem a uma multiplicidade de interesses que os tornam praticamente inúteis para os historiadores. (CHALHOUB, 2001, p. vii-viii). Para Chalhoub, Trabalho, lar MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani 107 e botequim “é quase um libelo em defesa da utilização abrangente de processos criminais em estudos de história social”, isso porque “outros pesquisadores logo dialogaram com seu modo de ler tais documentos” (CHALHOUB, 2001, p. viii). Mas como esses documentos podem ser lidos? Segundo Oliveira e Silva (2005), os processos judiciais podem ser lidos de forma quantitativa ou qualitativa. Segundo essas autoras, uma análise quantitativa, por exemplo, “propicia não só uma ‘quantificação’ de ocorrências – como quantidade de absolvições segundo o tipo de crime ou raça (no caso de processos criminais) [...] – como também uma análise mais sofisticada, trazendo à luz importantes relações entre diversos atores tópicos envolvidos”. (2005, p. 246). Ações de Alimentos, de Despejo, de Usucapião, por exemplo, que, conforme a tabela 1 apresentada anteriormente, são recorrentes, podem receber uma análise quantitativa preocupada em revelar o perfil dos atores envolvidos e suas reivindicações. Ainda é possível se pensar sobre a existência ou não de uma lógica no julgamento desses processos, como, por exemplo, nos argumentos utilizados pelos advogados e demais pessoas envolvidas. Além disso, no caso das Ações de Despejo, pode-se especular que o desenvolvimento urbano da cidade tenha ocasionado a valorização de determinados espaços, gerando um aumento no preço dos aluguéis, o que impossibilitaria que determinados grupos sociais se mantivessem nesses locais. Por outro lado, é possível também realizar uma análise qualitativa do acervo do CMRJU/IMHC/UCS. Para Oliveira e Silva (2005, p. 247), “a análise qualitativa das narrativas dos processos permite evidenciar o modo como as pessoas percebem elas mesmas e os outros, definindo-se e posicionando-se no espaço social”. Já para Fausto (2001, p. 36), “os discursos de acusação e defesa representam uma fonte importante para a apreensão de valores e representações sociais, permitindo localizar pontos sensíveis, capazes de determinar as opções do corpo de jurados”. Além disso, Abreu e Caulfield (1995, p. 30), consideram que “as delegacias e os tribunais converteram-se num fórum para discussão de conceitos sobre a virgindade feminina e ‘honestidade’”, por exemplo. Assim, ainda segundo elas, “os processos criminais [em especial defloramentos e estupros] permitem analisar o significado desses conceitos dentro do sistema de valores construído no discurso das pessoas que eram interrogadas por policiais, advogados de defesa, promotores e juízes”. (p. 30). Dessa forma, como lembra Caratti, 108 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012 ao trabalharmos com processos-crime, deparamo-nos com um documento dividido em partes bem definidas: queixa, translado, devassa, indagações policiais. Cada parte é um universo a ser desvelado, a partir das indagações que fizermos. É preciso estar[mos] atentos para os relatos que emergem, os quais, geralmente expressam modos de vida individuais e coletivos, informam sobre comportamentos, hábitos e atitudes de indivíduos e grupos sociais. Podemos encontrar também nesses documentos, elementos definidores da esfera mental dos sujeitos históricos estudados, seja dos queixosos, seja dos agentes policiais. Isto pode ser explicitado através das diferentes versões sobre um mesmo crime relatadas pelos informantes, e das expressões discursivas dos encaminhamentos e registros policiais. (2006, s.p.). Percebe-se que são inúmeras as possibilidades de pesquisa utilizando processos, em especial criminais. Porém outros tipos de processo podem ser explorados de diferentes formas, desde que se tenha uma “definição precisa do objeto, das questões que se quer responder”. (OLIVEIRA; SILVA, 2005, p. 245). Através de um Executivo Fiscal, por exemplo, Mott descobriu que sua biografada, Ercilia Nogueira Cobra, a partir de 1936, passou a atrasar os impostos chegando a dever, até o exercício de 1938 por impostos, taxas e multas, à Prefeitura de Caxias, 2:352$000 (dois contos, trezentos e cinquenta e dois mil-réis). Pelo não pagamento da dívida, que aumentava ano a ano, a penhora foi executada e a propriedade foi arrematada em 1942, por Hugo Argenta, na realidade um “testa de ferro” do escrivão Heitor Curra. (1986, p. 99). Mas, para Mott, a informação mais importante é o registro realizado pelo Oficial de Justiça, Evandro Reis, que certifica que Ercilia não residia mais em Caxias do Sul no ano de 1940. Dessa forma, quando temos claro o que queremos saber, qualquer tipo de processo pode ser utilizado. Existem outros exemplos de processos pouco utilizados e que podem proporcionar outras investigações. O jornal O Cosmopolita noticiou, em 1902, que “as famílias Viganó e Ortolan, residentes na 6ª légua deste município [de Caxias], vivem em continua rixa devido a uma antiga questão de terras”. (7 fev. 1902).9 Muitas dessas rixas acabavam em morte, como no caso das duas famílias mencionadas, e esse exemplo não era um caso MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani 109 isolado. Em outra edição, é realizada uma reportagem sobre Questões de Terras que diz o seguinte: Neste município se tem registrado mais de um assassinato e muitos ferimentos provindos de questões de limites de lotes coloniais. Esses lotes, que foram medidos e demarcados por funccionarios pouco escrupulosos, têm as divisas confusas, pelo que trazem seus concessionarios em continuas questões acaloradas e em letigios interminaveis. Presentemente esta em letigio esta questão acaloradas e em letigios inteminaveis. Presentemente esta em letigio esta questão, entre os colonos Francisco Belloni e Julio Prezzi. (O Cosmopolita, 11 mar. 1905). Através dessa informação do jornal, é possível partir para uma investigação sobre quem foram os responsáveis pela divisão dos lotes. Eram eles profissionais qualificados para isso? Além disso, é possível pesquisar nos vários processos sobre o assunto, buscando informações a respeito dos envolvidos, de suas queixas, de seus argumentos e de como foram resolvidos tais casos. Para quem a Justiça concedeu a posse da terra? Quais são os argumentos ou provas que resolviam tais rixas? A imprensa, dessa forma, pode auxiliar na formulação de novos questionamentos, inclusive sobre a construção das figuras da vítima e do réu. A rixa entre as famílias Viganó e Ortolan, como dissemos, acabou em morte. Na primeira notícia encontrada sobre o caso, os redatores do jornal atribuem algumas características aos envolvidos, construindo, dessa forma, um perfil de vítima e um de réu. Na versão da imprensa, o réu já havia atacado o pai da vítima com uma faca, dias antes do assassinato. Segundo o jornal, o réu tinha um “gênio forte”, era descontrolado, todos sabiam de sua “má índole”, inclusive a vítima, ou seja, era “uma fera” que “queria sangue”. O assassino tinha como objetivo matar o patriarca da família envolvida. Mas quem acaba morrendo é o filho desse, devido à sua intromissão na discussão. Dessa forma, a vítima passa a ser vista como “vítima do amor filial”, “pai de família”; em síntese: era “um bom colono e merecia o melhor elogio que se pode fazer a um homem – foi muito trabalhador”. (O Cosmopolita, 7 dez. 1902).10 110 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012 Porém, em outra edição, quando o jornal fazia a cobertura do julgamento do caso, foram atribuídas ao réu características distintas daquelas mencionadas anteriormente. Nesse momento, o assassino passa a ser visto como um “jovem imberbe”, [de] feição feminina e simpática”, através de suas respostas percebeu-se sua “voz trêmula e quase imperceptível”. O jornal segue dizendo que o acusado “é filho único de pais septuagésimos”, que após ouvirem a leitura da sentença “prorromperam em pranto, consternando todo o auditório”. (O Cosmopolita, 15 mar. 1903). O que teria feito a imprensa mudar sua opinião sobre o réu? Primeiro, ele aparece como uma fera em busca de sangue, para depois passar a ter feições femininas e voz trêmula. Na imprensa, as construções em torno do réu o transformam em vítima. Na edição referida, o jornal informa que a opinião pública queria a absolvição do réu. Será que a construções do réu como um “bom moço” influenciou no julgamento do processo? Ou essa mudança é reflexo de questões mais profundas? No caso anterior, a opinião pública que desejava a absolvição do réu não contestou a sentença; essa foi contestada pelos defensores do acusado. Mas, em outros momentos, a imprensa questionou as sentenças, como em fevereiro de 1904, quando foi informado o resultado de alguns julgamentos ocorridos: Dia 1º de Fevereiro: Réo Constante Pozer, pronunciado no art. 304 § unico, defensor e advogado Mauricio N. de Almeida. Absolvido por unanimidade de votos. Dia 3: Réo Benetti João Baptista, pronunciado no artigo 304 § unico, defensor o mesmo advogado. Absolvido por unanimidade. Réo Zanella Michelli, pronunciado no mesmo artigo e §, defensor o 4° annista de direito Antonio Casagrande. Absolvido por tres votos. Dia 4: Réo Ernesto Vecchi, pronunciado no artigo 303, defensor o mesmo 4° annista Antonio Casagrande. Absolvido por unanimidade. Ré Clementina Bolzani pronunciada no artigo 303, defensor o advogado Antonio Ribeiro Mendes. Absolvida por unanimidade. (O 14 de Julho, 14 fev. 1904).11 Essas informações são referentes à primeira sessão do júri, ocorrida em 1904, sob a presidência do Dr. José Gonçalves Ferreira Costa. Para a imprensa a absolvição de todos os réus nessa sessão “demonstra a complacência do nosso juri, pois custa a crer que todos estejam inocentes”. Ainda sugere que MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani 111 “se as vítimas fossem os jurados, pode-se garantir que outras seriam as sentenças”. (O 14 de Julho, 14 fev. 1904). Assim, se demonstra outra possibilidade de pesquisa, ou seja, pode-se investigar as críticas dirigidas ao Judiciário caxiense formuladas pela imprensa. No caso, fica evidente a insatisfação com a absolvição de todos os acusados, e os jurados são responsabilizados. A partir disso, a investigação pode iniciar elencando os critérios de escolha dos jurados no período. Considerações finais Com o exposto, buscou-se evidenciar a importância da criação do CMRJU/IMHC/UCS, no sentido de ampliar as possibilidades de pesquisa sobre a cidade e região, principalmente, depois da percepção, por parte dos historiadores, de “que os processos judiciais encerram um feixe profícuo de informações sobre as relações sociais e de poder de tempos passados”. (AXT, 2004, p. 10). Além disso, o CMRJU/IMHC/UCS auxilia na concretização dos objetivos do Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul, pois, segundo Gunter Axt, pode operar como instrumento de reforço dos canais de aproximação do Judiciário com a comunidade, externalizando, de uma forma didática, sua missão constitucional, bem como contribuindo para divulgar os direitos individuais e coletivos, garantidos por lei, junto à população, de maneira a concorrer para ampliação de acesso à Justiça. (2002, p. 236). E, também, na concretização dos objetivos da UCS na medida em que disponibiliza aos seus alunos e pesquisadores da região um importante acervo documental que, sem dúvida, contribui para uma melhor compreensão sobre a memória e a identidade da Justiça e do Judiciário. Atualmente o CMRJU/IMHC/UCS, funciona junto ao Instituto Memória e Cultura da Universidade de Caxias do Sul, no Bloco 46. 112 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012 Notas O Termo de Convênio previa que o CMRJU/IMHC/UCS estaria localizado no Bloco 58 do curso de Direito da UCS, porém o mesmo passou a integrar o Instituto Memória Histórica e Cultural da UCS, localizado no Bloco 46. 1 Era o que dizia o jornal Il Colono Italiano, de 6 de março de 1898: “Secondo la promessa fatta dall’illustre Dr. Giulio Prates di Castilhos ex dignissimo Presidente dello Stato, Caxias venne elevata a Comarca. Tale notizia fu accolta con entusiasmo”. Acervo: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami (AHMJSA). 2 O exemplar consultado pertence ao acervo do AHMJSA. 3 Segundo Adami (1957, p. 34), até 1907 foram nomeados juízes da Comarca Caxias o Dr. Armando Azambuja, seguido por Manoel da Costa Barradas, Caio da Cunha Cavalcanti e José Gonçalves Ferreira Costa. 4 Conforme Decreto 2.408, de 26 de abril de 1919. (MEMORIAL DO JUDICIÁRIO DO RS, 2003, p. 43). 5 6 A higienização é um procedimento técnico, pelo qual passará todo o acervo do CMRJU/IMHC/UCS. Conforme a lista de procedimentos do CMRJ/CXS, elaborada pela arquivista Bianca Ceretta Damião, “os processos devem ser higienizados folha a folha, fazendo a limpeza com trinchas e escovas delicadamente. Objetos estranhos como clipes, grampos e atilhos, devem ser removidos de todo o acervo”. Depois disso, os processos recebem “uma capa de papel neutro” e são substituídas “as caixas de papelão por caixas de polionda”. Outro exemplo de utilização de processos produzidos pela inquisição é a obra de Luiz Mott, em especial: (MOTT, Luiz. O sexo proibido: escravos, gays e virgens nas garras da Inquisição. Campinas: Papirus, 1988. 7 É dessa época, por exemplo, a obra de Boris Fausto sobre a criminalidade em São Paulo: (FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed. São Paulo: Edusp, 2001. 8 9 Acervo: AHMJSA. 10 Acervo: AHMJSA. Grifo do autor. 11 Acervo: AHMJSA. MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani 113 Referências ABREU, Martha; CAULFIELD, Sueann. 50 anos de virgindade no Rio de Janeiro: as políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular (1890 a 1940). Caderno Espaço Feminino, Uberlândia, v. 2, n. 1/2, p. 15/ 52, jan./dez. 1995. ADAMI, João Spadari. Caxias do Sul. Caxias do Sul: Tipografia do Abrigo de Menores São José, 1957. ADAMI, João Spadari. História de Caxias do Sul: 1864-1962. Caxias do Sul: São Miguel, [19—]. t. I. 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Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2001. FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). 2. ed. São Paulo: Edusp, 2001. GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades à margem de “Il ritorno de Martin Guerre” de Natalie Zemon Davis. In: ______. A micro-história e outros ensaios. Trad. de António Narino. Lisboa; Rio de Janeiro: Difel/ Bertrand Brasil, 1991. p. 203-214. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Trad. de Maria Betania Amoroso. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. MACHADO, Maria Beatriz Pinheiro. A gestão de documentos públicos municipais. Métis: história & cultura, Caxias do Sul: Educs, v. 3, n. 5, p. 115-127, jan./jun. 2004. MEMORIAL DO JUDICIÁRIO DO RS. História administrativa das comarcas. Cadernos de Pesquisa, Porto Alegre, v. 1, p. 43, jan. 2003. MOTT, Maria Lúcia de Barros. 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Desse modo, enfatizando a importância da análise situacional, focando a defesa das relações e ações do cotidiano como fator determinante para uma investigação científica sobre a memória, como um conceito rico em subjetividade e como um articulador e representante da intersubjetividade do cotidiano. Para tanto, são utilizadas as prerrogativas de Alfred Schutz para a compreensão das ações sociais e a reflexão sobre o conceito de memória à luz de autores reconhecidos. Finalizando, estudados são os espaços teóricos, metodológicos e, sobretudo, vividos da memória na contemporaneidade. Abstract: This essay aims to reflect on the concept of memory from reading that seeks to draw attention to the urgent need for more detailed analysis in the social sciences. Thus, emphasizing the importance of situational analysis, focusing on the defense of relations and actions of the everyday life as a determinant factor for scientific research on memory, as a concept rich in subjectivity and as an organizer and representative of inter-subjectivity of the everyday. To do so, we use the prerogatives of Alfred Schutz in the understanding of social action and reflection on the concept of memory in light of recognized authors. Finishing with theoretical, methodological, and especially experienced spaces of the contemporary memory. Palavras-chave: memória; cotidiano; sociedade contemporânea. Keywords: memory; everyday; society contemporary. Mestre em Integração Latino Americana (UFSM). Aluna de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Unisinos). E-mail: roberta.augustin@gmail.com ** Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2002). Atualmente é professor da Universidade de Caxias do Sul. Coordenador do Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: saugusti@ucs;br * MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio 115 Introdução Este ensaio tem como pretensão refletir sobre o conceito de memória e suas implicações na vida cotidiana, tendo como alicerce a afirmação de Gilberto Velho: “A memória é fragmentada. O sentido de identidade depende, em grande parte, da organização desses pedaços, fragmentos de fatos e episódios separados. O passado, assim, é descontínuo.” (1994, p. 103). A partir dessa perspectiva, é necessário buscar recursos teóricos para uma melhor compreensão sobre a construção do conceito de memória. Assim, é preciso aproximar alguns suportes teóricos defendidos por autores consagrados do pensamento das ciências sociais. Esta reflexão propõe discorrer sobre os principais pontos elencados da obra de Alfred Schutz, que busca anunciar a importância da vida cotidiana, enfatizando a ação e o ator nas suas mais complexas inter-relações. Nesse sentido, discorrendo sobre a importância de uma análise profunda acerca dos caminhos desse ator e suas diferentes influências, indagando e arquitetando uma minuciosa investigação sobre a situação em que esse está inserido, destacando um olhar analítico sobre a situação definida a partir da biografia do ator, bem como a ideia de projeto. Para tanto, fundamentando a interdependência da biografia, da memória e sua definição de projeto. No segundo momento, é preciso aprofundar e complexificar o conceito de memória e suas influências sociais, como Maurice Halbwachs em sua obra Memória coletiva (2004), que tem como premissa investigar a memória coletiva e a memória histórica, discutindo sobre a diferença entre memória autobiográfica e memória histórica, tecendo olhares sobre as diferentes relações sociais que constroem esse conceito. Igualmente, a autora Jacy Alves de Seixas enfatiza algumas fragilidades conceituais e salienta a utilização massiva e descuidada da memória, em seu texto “Percursos de Memórias em Terras de História: problemas atuais” (2004). E, por último, este ensaio tem como finalidade dialogar sobre a memória, portanto, levando à discussão as influências sociais e seus instrumentos que concretizam seus objetivos sejam eles materiais, sejam eles imaterias. Por esse motivo, é relevante mapear alguns elementos cruciais como os lugares de memória e os conceitos de cidade e imaginário. A preferência por esse tema justifica-se pela observação das manifestações sociais que, constantemente, têm investido na memória como um poderoso instrumento que visa a instigar ou concretizar diferentes relações sociais e, por conseguinte, as inquietações que questionam a utilização e as influências sociais, que se refletem tanto no plano macro 116 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 115-130, jan./jun. 2012 quanto no microestrutural, focados nas relações cotidianas. Assim, visualizase um indivíduo em meio a um turbilhão de informações que surgem com uma velocidade surpreendente, que faz dele um consumidor de informação, que, por vez, comporta-se como receptor, acrítico, esquecendo-se de uma capacidade relevante: a capacidade seletiva. Nesse ponto, se percebe os primeiros reflexos do que hoje se identifica como sociedade do esquecimento e o nascimento ou renascimento de instituições profissionalizadas na (re)construção da memória, bem como sua inserção social. Nesse momento, é que se enfatiza o caráter político, salientado por Seixas (2001, p. 7): “Toda a memória, seja ela ‘individual’, ‘coletiva’ ou ‘histórica’, é uma memória para qualquer coisa, e não se pode ignorar esta finalidade política (no sentido amplo do termo).” Alfred Schutz: para compreender os novos espaços da memória A prioridade de Schutz é investigar as experiências da ação e interpretação da vida cotidiana, descortinar o senso comum, utilizando-o na construção do pensamento científico das ciências sociais. Compreendendo, dessa forma, que a consciência individual é construída a partir das experiências da vida cotidiana, sendo, portanto, significativa e abstrata, desse modo, afasta-se de dualismos teórico-metodológicos e enfatiza os processos intersubjetivos. É evidente a aproximação com Max Weber, porque entende a sociologia como a compreensão da ação social, e com Edmund Husserl que pretende utilizar os preceitos da fenomenologia na sociologia, articulando uma fenomenologia social. Propõe, dessa forma, estudos sobre os processos de interpretação que são utilizados na vida cotidiana, sendo a linguagem coloquial uma fonte de pesquisa relevante, porque traça tipos e características pré-constituídas, formando um campo inexplorado. Nesse sentido, são as questões e inquietações norteadoras de sua tese, desenhando um cenário de fontes ricas, pois, para o autor, é necessário que a vida cotidiana seja descoberta, a saber, desde o princípio, nós, os atores no cenário social, vivemos o mundo como um mundo ao mesmo tempo de cultura e natureza, não como um mundo privado, mas intersubjetivo, ou seja, que nós é comum, que nos é dado ou que é potencialmente acessível a cada um de nós. E isso implica a intercomunicação e a linguagem. (SCHUTZ apud COULON, 1995, p. 12). MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio 117 Schutz identifica o indivíduo como construtor do seu próprio mundo, arquitetando sua vida cotidiana, e o senso comum é o recurso cognitivo que estabelece a relação e as ações do cotidiano, compartilhando suas experiências cheias de significados. Portanto, a intersubjetividade é o ponto crucial na obra de Schutz, pois percebe o mundo social como um fenômeno intersubjetivo. O autor sugere nesse item a compreensão das motivações do outro em suas diferentes especificidades. Logo, é justamente a relação com o outro que viabiliza a experiência, consequentemente, as experiências cotidianas que não são privadas, particulares, e sim, compartilhadas e construídas a partir de relações com diferentes atores por meio da comunicação. Portanto, as ações na vida cotidiana só têm sentido em relação às ações dos demais. Enfim, desenvolvem procedimentos de ajustes para que a experiência de um seja assimilada pelo outro, a partir de processos de comunicação e interação; dessa forma, elabora-se uma realidade que se pode compartilhar criando uma vivência comum, entendida por todos aqueles que convivem no mesmo espaço social. Schutz afirma que a interdependência nas relações da vida cotidiana traz consigo uma carga de conflitos inevitáveis, devido à sua subjetividade. Porém, é preciso compreender que não é uma equação cheia de conceitos definidos que visa a analisar as singularidades em seu mundo, mas uma investigação acerca das típicas construções que incorporam essas singularidades. Dessa maneira, afloram os níveis de significatividade dos atores envolvidos em determinada situação. O autor enfatiza o quanto a vida cotidiana e o senso comum não podem ser analisados por uma ótica racional e linear; esclarece o quanto é perigoso trabalhar com o senso comum, visto que é preciso compreender que esse pode ser uma fonte rica de dados, mas desigual, desconexa. Nessa perspectiva, a significatividade apresenta uma atividade interpretativa e seletiva visível no constante planejamento de tipificação, que é desenvolvido não só pelo cientista social, mas também na vida cotidiana em que os atores estão inseridos. Ou seja, o conhecimento do senso comum também é fator importante para essa construção, já que seleciona as informações que interessam e as coaduna num nível maior. Assim, são os conhecimentos extraídos da vida cotidiana que o autor elege como sendo conhecimento à mão, à disposição. Em sua tese, o autor identifica marcos importantes para uma investigação em ciências sociais; o primeiro indica que os atores interagem a partir de percepções pré-constituídas no caminho percorrido, ou seja, dos 118 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 115-130, jan./jun. 2012 acontecimentos do passado. O segundo destaca a contínua movimentação social e atenta para a constante significação dos atores sobre suas ações. O terceiro ponto enfatiza o conhecimento à mão que define as estruturas da vida cotidiana. Já o quarto ponto de análise refere-se às construções desenvolvidas para uma contínua reflexão sobre as suas características e que tem como objetivo a liberdade de se reinterpretar a partir de uma permanente observação. No último ponto, o autor defende a reciprocidade; nesse item, garante-se a propriedade que estabelece relações entre as experiências e as ações subjetivas. O conhecimento que Schutz identifica como a situação biográfica faz parte da dinâmica social e articula a construção da intersubjetividade, trazendo, em seu objeto, a praticidade e não o questionamento. Assim, o passado comum, o envelhecer juntos só e possível não em experiências passadas, mas em possibilidades futuras. Para contemplar esse fim, é necessário enfatizar Gilberto Velho Alfred Schutz desenvolveu a noção de projeto como “conduta organizada para atingir finalidades específicas”. Embora o ator, em princípio, não seja necessariamente um indivíduo, podendo ser um grupo social, um partido, ou outra categoria, creio que toda a noção de projeto está indissoluvelmente imbricada à ideia de indivíduo-sujeito [...]. A consciência e valorização de uma individualidade singular, baseada em uma memória que dá consistência à biografia, é o que possibilita a formulação e condução de projetos. Portanto, se a memória permite uma visão retrospectiva mais ou menos organizada de uma trajetória e biografia, o projeto é a antecipação no futuro dessas trajetória e biografia, na medida em que busca, através do estabelecimento de objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais esses poderão ser atingidos. A consciência do projeto depende da memória que fornece os indicadores básicos de um passado que produziu as circunstâncias do presente, sem a consciência das quais seria impossível ter ou elaborar projetos [...]. O projeto e a memória associam-se e articulam-se ao dar significado à vida e às ações dos indivíduos, em outros termos, a própria identidade. (1994, p. 101). O passado é descontinuo (VELHO, 1994) é a ideia balizadora deste ensaio, entender a memória a partir da fenomenologia social de Alfred Schutz refletindo sobre seu complexo conceito. MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio 119 Visitando o conceito de memória É necessário pontuar e revisitar o conceito de memória e seus demarcadores, tendo como intenção a clarificação e a compreensão desse, bem como investigar teoricamente questionando os seus espaços metodológicos. Portanto, a memória é compreendida como um conceito interdisciplinar que torna sua utilização conceitual muito cuidadosa, justamente por transitar em diferentes terras científicas. Nesse intuito, Seixas entende que toda a memória é fundamentalmente “criação do passado”: Uma reconstrução engajada do passado (muitas vezes subversiva, resgatando a periferia e os marginalizados) e que desempenha um papel fundamental na maneira como os grupos sociais mais heterogêneos apreendem o mundo presente e reconstroem sua identidade, inserindo-se nas estratégias de reivindicação por um complexo direito ao reconhecimento. O que é aqui colocado em primeiríssimo plano é, portanto, a relação entre memória e (contra)poder, memória e política. A memória é ativada visando, de alguma forma, ao controle do passado (e, portanto, do presente). Reformar o passado em função do presente via gestão das memórias significa, antes de mais nada, controlar a materialidade em que a memória se expressa (das relíquias aos monumentos, aos arquivos, símbolos, rituais, datas e comemorações). Noção de que a memória torna poderoso(s) aquele(s) que a gere(m) e controla(m). (2001, p. 89). Acrescenta-se, ainda, o entendimento de Bergson, filosofo francês, que estuda a memória como ponto de partida das leituras do mundo por meio de imagens e a apreensão desse mundo. Nesse ínterim, o autor enfatiza as lembranças, as imagens e a percepção: Sob forma de imagens-lembranças, todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana à medida que se desenrolam [...]. Ela não negligenciaria nenhum detalhe; atribuiria a cada fato, a cada gesto, seu lugar e sua data. Sem segunda intenção de utilidade ou de aplicação prática, armazenaria o passado pelo mero efeito de uma necessidade natural. (BERGSON, 1999, p. 62). 120 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 115-130, jan./jun. 2012 Ainda nesse ponto, encontra-se Maurice Halbwachs, sociólogo, que objetiva sua investigação em diferentes contextos sociais e não na memória como tal. O autor entende que a memória individual depende da memória coletiva, uma vez que o homem é um ser social, e que todas as lembranças estão relacionadas a algum momento, a alguma pessoa e compreende que os espaços dessas lembranças são sociais e determinadas. Portanto, toda memória é a construção e a reconstrução do passado que se aproveita dos quadros sociais; desse modo, as memórias individuais são dependentes das memórias coletivas. No entanto, como afirma Halbwachs se a memória individual pode, para confirmar algumas de suas lembranças, para precisá-las, e mesmo para cobrir algumas de suas lacunas, apoiar-se sobre a memória coletiva, deslocar-se nela, confundir-se momentaneamente com ela, nem por isto deixa de seguir seu próprio caminho, e todo esse aporte exterior é assimilado e incorporado progressivamente à sua substância A memória coletiva por outro lado, envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas. (2004, p. 53). O autor intensifica a reflexão alegando que as lembranças são identificadas e alimentadas a partir das relações desenvolvidas nos diferentes grupos sociais. Então, a memória é articulada e modificada conforme a posição que os indivíduos ocupam e suas relações nos grupos sociais aos quais pertencem. Parafraseando o autor, a lembrança é a imagem engajada em outras imagens; desse modo, as vivências nesses grupos sociais viabilizam a construção de representações do passado, fundamentadas nas percepções de outros ou na própria apreensão de representações historicamente construídas e impostas internalizando o discurso oficial. A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. (HALBWACHS, 2004, p. 75-76). Para ele, a memória fundamenta-se no passado vivido e não no passado apreendido a partir da história escrita. O autor define a memória histórica como uma sucessão de fatos relevantes que, relacionados, unificam a MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio 121 representação histórica de um determinado objeto. Já a memória coletiva só existe no plural, então, o autor diferencia memória de história, visto que entende que a história pode ser construída a partir da síntese de determinado objeto para um grupo de pessoas; entretanto, a percepção de cada um (desse grupo), será distante e repleta de peculiaridades, distanciando-se da elaboração da síntese dos fatos. Acrescenta-se, ainda, a memória individual que, muitas vezes, se confunde com a memória coletiva, já que essa depende de diferentes instrumentos, disponibilizados pela memória coletiva que são elaborados no meio em que o indivíduo está inserido. Ao mesmo tempo, a memória coletiva abrange as memórias individuais, mas não se confunde com elas. Entende-se que os fatores internos necessitam dos externos para suas afirmações, e o indivíduo, em seus diferentes ciclos de vida, arquiva lembranças particulares, mas também as que estão inseridas em grupos, e são esses que vão sustentar a lembrança de determinados fatos. Fatos que serão relembrados por diferentes fontes: por jornais ou por meio de depoimentos daqueles que deles participaram diretamente. Esses acontecimentos estão situados na memória de um grupo e dependem, assim, da memória do outro; as lembranças do outro representam o sentimento de confiança, é uma memória “emprestada”, como se lê em Halbwachs: Uma interior ou interna, a outra exterior; ou então a uma memória pessoal, a outra memória social. Diríamos mais exatamente ainda: memória autobiográfica e memória histórica. A primeira se apoiaria na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte da história em geral. Mas a segunda seria, naturalmente, bem mais ampla do que a primeira. Por outra parte, ela não nos representaria o passado senão sob uma forma resumida e esquemática, enquanto a memória de nossa vida nos apresentaria um quadro bem mais contínuo e mais denso. (2006, p. 59). Então, se a memória é um instrumento social, já que o presente está apoiado no passado, assim, “pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, ‘desloca’ estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência”. (BOSI, 1994, p. 27). Nessa perspectiva, destaca-se outra obra fundamental: Memória e sociedade (1994) da autora Ecléa Bosi, na qual questiona e argumenta que o fator socializador da memória é a linguagem, 122 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 115-130, jan./jun. 2012 uma vez que essa “reduz, unifica e aproxima, no mesmo espaço histórico e cultural, vivências tão diversas como os sonhos, as lembranças e as experiências recentes”. (p. 28). Outro aspecto relevante é o caráter político em que o conceito de memória vivencia o que é e como será comemorada tal situação; reflete-se sobre a manipulação política tão inserida nas manifestações e nos lugares de memória. Bosi analisa que na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, devese duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. (1994, p. 55). Desse modo, a lembrança não é estática, e a imagem do passado é substituída lentamente por novas. Nessa reconstrução, o outro passa a ter papel fundamental, confirmando a ideia central de Halbwachs, com a qual defende que as imagens do passado não estão na memória do indivíduo, e sim, na sociedade. Portanto, a memória teria como objetivo orientar o sujeito? Como, por exemplo, reproduz um comportamento já utilizado e julgado adequado? Logo, a memória tem papel muito prático e focado, visto que se serve do passado para delimitar ações interessadas. Para Seixas, a memória carregaria, assim, um atributo fortemente ético, incidindo sobre as condutas dos indivíduos e dos grupos sociais. Não interfira diretamente e voluntariamente sobre as ações, [...] seus objetivos, fixando-os e calculando-os previamente, mas atuando no sentido essencialmente ético de induzir condutas, de interferir na (im)possibilidade mesma das ações. (2001, p. 5). MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio 123 Por conseguinte, se a memória coletiva e a individual são sociais justamente por serem coletiva, essa utilizará outro conceito de suma importância para a sua própria atuação: os lugares de memória, e esses são inseridos neste ensaio como espaços de observação sobre as influências e as consequências sociais. A vida cotidiana oportunizando diferentes espaços de memória Pierre Nora reflete sobre a espacialização da memória, definindo que os lugares de memória são lugares materiais onde a memória social é ancorada e pode ser aprendida pelos sentidos, são lugares funcionais que têm como objetivo alicerçar as memórias coletivas é lugares simbólicos onde permitem a revelação e expressão da memória. (1993, p. 37). Aos lugares de memória vincula-se a necessidade de (re)construir e interpretar as reais intenções da continuidade das memórias de caráter coletivo ou individual, conferindo a esses elementos uma função social com significação dentro de seu tempo. Os espaços sociais, presentes na vida cotidiana de uma sociedade, apresentam um cenário ideal para observações e reflexões sobre esse conceito nas sociedades contemporâneas. Por esse motivo, a cidade1 está inserida em um espaço social com um tempo determinado e com a memória que os homens constroem para si mesmos. Desse modo, está sempre em transformação tanto no tempo como no espaço. Assim, é a ação humana sobre a natureza. É também sociabilidade, já que comporta indivíduos, grupos, classes, práticas de interação, de oposição, de transformação, de domínio e de submissão. (PESAVENTO, 2002). Paul Ricoeur (1994) destaca que a cidade se constrói pelo imaginário. É o espaço onde os homens constroem imagens e discursos; é expressão de desejos, medos;, é prática de conferir sentidos e significados ao espaço e ao tempo. A cidade pensada, desejada, imaginada, representa mais o real do que o espaço urbano na sua materialidade. Para Michel de Certeau (2002), o espaço é um “lugar praticado”, onde os indivíduos da cidade transformam em espaço, e a rua é definida pelo urbanismo como lugar. O lugar, aqui tratado, refere-se ao lugar antropológico. Já Castells define lugar como um local cuja “forma, função e 124 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 115-130, jan./jun. 2012 significado são independentes dentro das fronteiras da contiguidade física”. (1983, p. 55). A cidade inventa seu passado por meio do presente, por meio da memória individual ou coletiva, ou seja, pela narrativa com a qual cada grupo reconstrói o passado. Nesse sentido, a cidade do presente identifica o patrimônio e transforma espaços em lugares com significados. Dessa forma, a cidade acaba definindo uma identidade, construindo relações particulares e, consequentemente, sociais, recheada de especificidades; é um modo de ser, que possibilita reconhecimento e fornece aos indivíduos uma sensação de pertencimento e de identificação. Dessa maneira, a memória de uma sociedade é o seu referencial de conduta. Logo, sem memória, não há identificação, desaparece a cultura e são destruídas as consistências sociais de caráter coletivo. A identidade é formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais os indivíduos são representados nos sistemas sociais que os cercam. Para um indivíduo, sua identidade é a percepção do que ele é em relação ao mundo social e ao mundo natural; é o sentimento de pertencimento ligado a essa percepção. É, ainda, a consciência que uma pessoa tem de si mesma. No entanto, para perceber ainda mais essa sociabilidade, é necessário contemplar as ações de valorização do patrimônio cultural, porque esse interfere na socialização de uma sociedade, por isso, é importante refletir sobre o papel que ele pode desempenhar na construção da memória coletiva. O sentido da preservação não se refere à materialidade existente, mas à representação, evocação que lhe é inerente, ou seja, preserva-se porque determinado bem patrimonial tem um valor, é portador de referências para a sociedade ou para segmentos dela, inclusive como forma de dominação. O patrimônio cultural de uma sociedade é definido pela atribuição de valores históricos, artísticos, arquitetônicos, afetivos, entre outros. Portanto, digno de preservação ou de esquecimento. Nesse aspecto, o patrimônio constituise em representação que estimula manifestações sociais. As sociedades contemporâneas são repletas de escolhas, o que caracteriza interpretações modernas, momentos de incertezas, intensificando uma sensação de ruptura com o passado. Para estabelecer a continuidade entre o presente e o passado, são construídos os lugares de memória, expressos em monumentos, edifícios, costumes, artefatos, comemorações, marcos referenciais que têm como função atribuir significados. MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio 125 Considerando o patrimônio como documento da sociedade, é inegável a relevância que esse tem, independentemente, dos grupos, das classes ou das etnias que ele venha a representar ou do período histórico a que se refere. O patrimônio é considerado um elemento revelador da memória. Entende-se que a memória é um fenômeno vivo nas tradições orais, e os testemunhos materiais podem ser seus estimuladores, porque ela consiste na capacidade de guardar o que se quer lembrar, ajudando a construir o presente por meio de continuidades instigadas e instituídas. Para Pesavento (2002), “a memória opera como sendo um museu imaginário, onde as lembranças buscam correspondências com outras peças” (2002, p. 27), isto é, a memória funciona como um arquivo que armazena lembranças, e essas se interligam com outras informações. Assim, ao resgatar o cotidiano das cidades a partir da investigação da memória, pretende-se tornar presente o ausente, de registrar uma ausência por meio das lembranças de um passado. Dentre as perspectivas de abordagem, as ciências sociais podem ser consideradas como um caminho desestabilizador das estruturas de análise, possibilitando uma reorganização do campo de pesquisa, incluindo novas temáticas, novos procedimentos e novos problemas, de forma a rearticular o conhecimento, tomando-o não mais um fato isolado, mas contextualizado a partir de outros elementos que lhe dão significado. Nessa perspectiva, emergem a memória, a cultura, a imagem, o tempo, a oralidade, a identidade, o patrimônio e outros mecanismos de análise como espaços pertinentes para a pesquisa e se constituem como foco de discussão teóricometodológica. A história da cidade e os seus desdobramentos, no diálogo com os mais diversos interlocutores, fazem da memória uma representação do passado, decifrando sua realidade por meio das suas representações, tentando chegar às formas discursivas e imagéticas, por meio das quais os indivíduos expressaram o seu mundo. O imaginário da cidade é outro conceito importante que foi apresentado dentro do conjunto de mudanças que acompanham este ensaio. O imaginário é um sistema de representações coletivas que os indivíduos constroem ao longo da história para dar significado ao social; o imaginário é um processo de invenção da realidade. (PESAVENDO, 2002). Mas essas construções são históricas, porque são definidas por um tempo e um espaço determinados. No entanto, é em Castoriadis (1982) que se torna evidente a relação entre imaginário e simbolismo, quando reflete sobre o fato de que o 126 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 115-130, jan./jun. 2012 imaginário utiliza o simbólico para existir e ainda evoca imagens diante das representações e relações de objetos não reais. O imaginário (como representação do real) é sempre referência a algo ausente. O imaginário enuncia, evoca, reporta-se a alguma coisa não presente. Revela sentidos e significados para além do real aparente. Segundo Reinhardt Koselleck (1993), é o presente que pensa o passado, pensa com um olhar para o futuro, ou seja, olha o vivido com as expectativas construídas para o futuro e/ou a coletividade. Considerações finais São considerações finais deste ensaio e iniciais para um próximo, visto que os espaços em que se estabelecem as ações exigem a compreensão dos fatos que contribuem para a existência da realidade em que os indivíduos se inserem como agentes (trans)formadores de práticas sociais. A tomada de postura crítica ante os problemas contemporâneos parte da investigação social da realidade, originada da necessidade de solucionar problemas num determinado contexto social. É nessa perspectiva que o conhecimento das ciências sociais precisa do reconhecimento de distintas observações sobre determinados espaços sociais e compreende seus atores como articuladores e dinamizadores dos seus próprios contextos. Pensar a memória, como elemento dinamizador na partilha de experiências e na interlocução dos conhecimentos, permite o avanço para um descondicionamento progressivo dos ranços da perspectiva tradicional. O conhecimento interpretativo dos atores sociais envolvidos em um determinado contexto é fundamental para a compreensão das situações que conformam a realidade concreta. Contudo, estabelecer as relações possíveis entre a prática, seus entendimentos e a situação social em que essas ocorrem, requer a ruptura com crenças acerca do trabalho investigativo, ou seja, é preciso esclarecer que esse não se postula a partir de “teorias implícitas”, muito ao contrário, é resultado de uma ação humana, que, por sua vez, foi concebida por alguém. Novas perspectivas e influências possibilitam a reorientação do enfoque social, e essas transformações aprofundam o saber social e possibilitam a descoberta de novas abordagens; o desmoronamento da continuidade, o questionamento de abordagens globalizantes do real, permitindo, assim, o questionamento do discurso, dinamizando, por conseguinte, as relações MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio 127 sociais e influenciando a abertura de perspectivas. Essas tipificam e diversificam o gênero, o imaginário, a representação, o cotidiano, buscando e preservando as especificidades, assim como identificando a compreensão profunda das relações, das interações sociais. Este ensaio teve como intuito refletir sobre a memória e suas influências na sociedade contemporânea, instigado tanto pela massiva produção acadêmica que tem sido construída nas últimas décadas, como pela inquietação elaborada a partir de observações feitas nas relações cotidianas. 128 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 115-130, jan./jun. 2012 Referências BERGSON, Henri. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: M. Fontes, 1999. Alegre: Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras, n.27, p.13-23, 2000. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. 5. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. SCHWERTNER, Amélia. Planejamento urbano e regional. Referências adicionais: classifica~çao do evento: Regional; Brasil/ Português; Meio de divulgação: Digital, 2012. CASTORIADIS, Cornelius. 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I present the formal aspects of the images and I begin to reflect on the usages and functions of the technical image on the processes analyzed; their acceptance or refusal by the magistrates, author and defendant involved in the litigations. Palavras-chave: fotografia; investigação de paternidade; fontes judiciais; Comarca Caxias. Keywords: photography; paternity investigation; judicial sources; County of Caxias. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Responsável técnico pelo acervo fotográfico do Programa Elementos Culturais da Imigração Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul (Ecirs), integrado ao Instituto Memória Histórica e Cultural (IMHC) da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: anthony.tessari@ucs.br. * MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152 131 Uma das mais recorrentes representações da Justiça é a de uma mulher empunhando em uma das mãos uma balança, com o fiel bem ao centro, e, na outra, uma espada. Comumente, essa imagem faz referência à deusa Iustitia, personagem mitológica surgida na Roma antiga. Em poucas palavras, o significado para essa representação é a isonomia daquele que julga, considerando iguais ambos os lados, no primeiro caso, e o poder decisório de uma sentença, no caso do segundo símbolo. A deusa Iustitia ainda é representada com um terceiro elemento importante: sobre os olhos, ela traz uma venda que os cobre completamente, impedindo-a de enxergar. Diante de tal figura, o observador rapidamente faz a conclusão mais correta: a Justiça é cega.1 A figura da Justiça, envolta em simbologia, tem por função lembrar aos magistrados a imparcialidade e a objetividade do Direito, mas nem sempre a imagem da deusa romana deve ser interpretada à risca. Para alguns casos, o olhar é um sentido indispensável para se proceder a uma sentença. Assim ocorria quanto aos processos de investigação de paternidade nos quais imagens fotográficas eram utilizadas como provas para a análise de traços fisionômicos que pudessem assemelhar crianças de seus supostos pais. Procedendo a um estudo de caso, entre as décadas de 30 e 50 (séc. XX), constatou-se que eram utilizados três instrumentos para comprovar o reconhecimento de paternidade na Comarca de Caxias do Sul, interior do Estado do Rio Grande do Sul: os depoimentos (do autor, do réu e das testemunhas arroladas pelas partes), exames relativos ao tipo sanguíneo e o comparativismo entre retratos fotográficos. Sobre o último caso, no acervo histórico do Judiciário municipal, foram encontrados três processos que contêm em seu interior fotos, que foram utilizadas para a perícia do juiz em busca da solução do caso. Como sabemos, hoje em dia, os exames de DNA, vulgarizados sobretudo por programas de televisão, são instrumentos que confiamos sejam mais precisos para definir graus de parentesco biológico entre genitor e genitora. Afinal, tais exames têm confiabilidade de acerto de 99,999%. Tal é o nosso desenvolvimento científico que podemos julgar como sendo no mínimo curiosa a utilização de fotografias em processos judiciais para a definição de vínculos parentais. No nosso entendimento, essa curiosidade hodierna deve-se a uma também atual desconfiança do visualizador diante da imagem, resultado da massificação dos computadores pessoais e da facilidade que o usuário comum tem em manipular os arquivos digitais 132 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012 capturados por máquinas fotográficas modernas, igualmente pelo acesso amplo à informação por meio da internet, a enciclopédias virtuais e a outros sítios repletos de conteúdos, é bem possível que muitos já saibam que a manipulação e o retoque eram utilizados desde os primórdios da fotografia, quando a captura da imagem ocorria de maneira analógica, informação que contribui para o descrédito acerca da fidelidade que a imagem fotográfica chegou a desfrutar em outras épocas. A apresentação, aqui, dos processos de investigação de paternidade não tem por objetivo ridicularizar a magistratura ou tentar convencer acerca da limitação, que acredito seja falsa, da inteligência dos magistrados no período observado. O objetivo é procurar entender a utilização da fotografia nos processos judiciais nos limites de uma cultura visual. Ao propormos um diálogo com questões teóricas referentes ao campo da fotografia, o interesse é verificar quais são os usos e as funções da imagem fotográfica, especialmente do retrato, no processo de reconhecimento de paternidade nas décadas apontadas. Um aviso importante: quando falo em questões formais da imagem, faço referência ao produto acabado, quer dizer, à foto propriamente dita. Conforme François Soulages (2010), o termo foto difere de fotografia: “A fotografia é fabricação de um material; esse material é a foto.” (p. 128). Portanto, fotografia, para nós, deve ser entendida como sendo a técnica, e foto como a imagem materializada, constante na superfície de um suporte físico (geralmente o papel). Os aspectos formais de uma foto são desde o formato e o tamanho do suporte que traz em sua superfície uma imagem até os efeitos e as técnicas utilizados na captura, revelação e cópia da foto. Registra-se, também, que essa proposta de discussão surgiu especialmente para ser apresentada no evento comemorativo aos dez anos de história do Centro de Memória Regional do Judiciário (CMRJU), integrado ao Instituto Memória Histórica e Cultural da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mesmo possuindo tão tenra idade, o CMRJU vem executando um trabalho elogiável no que concerne à custódia, organização e difusão do acervo da Comarca Caxias, disponibilizando-o para produção científica. Não fosse o esforço da equipe do CMRJU, bem como das pessoas que há um tempo vêm se interessando em preservar o acervo do Poder Judiciário local, o passado poderia correr o risco prejudicial do esquecimento. Com essa primeira incursão pelo tema, portanto, espera-se que se possa, ao menos, valorizar as fontes judiciais que o CMRJU mantém sob custódia, indícios seguramente muito ricos para a escrita da história, seja ela a das MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152 133 pessoas que fizeram o Judiciário, a da cultura jurídica da época em questão ou a das pessoas comuns, cujas vozes é possível serem ouvidas ao nos debruçarmos sobre esses registros. Usos da fotografia O surgimento da fotografia data da primeira metade do século XIX. Habitualmente, o ano de 1839 é assinalado como sendo o marco oficial da invenção da técnica, e o país de sua origem é a França. Porém, mais recentemente, tem-se considerado que a fotografia foi uma invenção surgida a partir de descobertas múltiplas e de forma concomitante em mais de um lugar no mundo.2 O que ocorreu no ano de 1839, em uma seção conjunta da Academia de Ciências e de Belas-Artes de Paris, foi o anúncio de um novo invento: o daguerreótipo. O daguerreótipo consistia em um dos primeiros suportes fotográficos com uma imagem visível em sua superfície (em forma de positivo e com boa nitidez), e era resultado de uma técnica aperfeiçoada pelo francês Louis Daguerre (1787-1851). Como se pode depreender do período em que a fotografia surgiu, o contexto histórico que o mundo presenciava, em especial em se tratando do Velho Continente, era o da Revolução Industrial. Ao lado de invenções verdadeiramente revolucionárias, como o telefone, o telégrafo, a lâmpada incandescente, o motor à explosão, o refrigerador, a bateria elétrica, entre inumeráveis outras novidades, a fotografia surgia, também, para modificar as relações de tempo e espaço. No início, eram necessários poucos minutos para que um registro imagético das coisas existentes estivesse fixado para a eternidade. Com a possibilidade de se registrarem pessoas e lugares em imagens, colecionar retratos e paisagens passou a significar colecionar pessoas e mundos. (SONTAG, 2002). Como uma de suas características, a Revolução Industrial veio acompanhada de novas exigências científicas e técnicas. Trabalhos que anteriormente eram feitos de maneira manual e artesanal, gradualmente, foram sendo substituídos pelas novas máquinas, mais precisas e produtivas. (FABRIS, 1998). Assim aconteceu com a fotografia, que acabou por tomar o lugar que antes cabia ao campo do desenho e da pintura. Nesse sentido, é ilustrativo o caso do escritor Maxime Du Camp, o qual, em suas viagens ao Egito, tinha por costume registrar os monumentos faraônicos e as inscrições hieroglíficas através do lápis e do papel, desenhando (e interpretando), minuciosamente, cada detalhe. Em 1850, ao se utilizar de 134 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012 uma câmera fotográfica, Du Camp passou a ter muito menos trabalho em sua tarefa, passando a registrar as pirâmides e esfinges do mundo antigo com muito mais precisão e rapidez. (NEWHALL, 2002, p. 50). No campo da ciência, a utilização da fotografia foi sempre recorrente. Podemos citar estudos sobre a biomecânica humana e animal desenvolvidos pelo inglês Eadweard Muybridge (1830-1904), o qual procedia a diversas tomadas fotográficas de uma pessoa ou de um animal correndo e, depois, exibia as imagens em movimento, através de um primitivo dispositivo cinematográfico chamado “zoopraxiscópio”. Com essa técnica, fotografando em sequência um cavalo durante uma corrida, Muybridge fez uma interessante e importante descoberta: a de que o animal, quando em galope, em determinado momento, mantém as quatro patas levantadas, sem contato com o chão. A fotografia de Muybridge acabou rompendo com um velho mito, perpetuado por ilustradores e pintores que desenhavam o animal em seus quadros de maneira equivocada. (DAVIDHAZY, 2007, p. 524). Na área médica, cabe destacar o neurologista francês Jean-Martin Charcot (18251893), que utilizava a fotografia para registrar pessoas no momento de crises histéricas. Como as crises têm duração curta, por meio de cenas fotográficas estáticas, Charcot tinha a oportunidade de observar com mais atenção a manifestação da neurose, além de comparar séries de imagens e localizar semelhanças entre os casos. Charcot também utilizava os registros para ilustrar as lições ministradas em sua cátedra na Universidade de Paris, servindo a fotografia como um recurso pedagógico. A fotografia igualmente teve ampla utilização na área judiciária. Não podemos deixar de citar a técnica desenvolvida pelo criminologista Alphonse Bertillon (1853-1914) e aplicada na Chefatura de Polícia de Paris. Bertillon desenvolveu um sistema de identificação de criminosos por meio de registros fotográficos dos infratores apanhados pela polícia parisiense. O sistema, também conhecido como “antropometria judicial”, passou a ser empregado no Serviço de Identificação da Chefatura de Polícia da capital francesa a partir de 1888 e consistia em um duplo retrato do criminoso: um de frente e um de perfil, e devia respeitar normas bastante rígidas. O processo de tomada da foto, como bem apresenta Annateresa Fabris ocorria assim: As condições do gabinete fotográfico, a distância focal e aquela entre o operador e o modelo forçado eram normalizadas. A uniformidade da pose era conseguida por um enquadramento baseado numa escala uniforme, capaz de dar conta da largura dos MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152 135 ombros, e por uma cadeira deliberadamente desconfortável que obrigava o indivíduo a adotar uma postura reta e centralizada. Graças a um complexo mecanismo de rotação, o modelo era fotografado de frente e de perfil, conservando a mesma escala de redução. (2004, p. 46). As imagens resultantes da captura eram aderidas na superfície de um cartão, onde eram registradas as medidas antropométricas do indivíduo (como a medida da cabeça, nariz, testa, orelha, pés, distância dos dedos médios, mínimo, cotovelo, etc.). O retoque nos negativos fotográficos, com a intenção de embelezar ou rejuvenescer o retratado, era categoricamente vedado. Em apenas 12 anos, em 1890, a Chefatura de Polícia já contava com, aproximadamente, noventa mil provas fotográficas de criminosos, arquivadas em prontuários que permitiam uma fácil e rápida identificação de tipos criminais da capital francesa. Conforme André Rouillé (2009, p. 88), o sistema de Bertillon gozou de grande aceitação no campo judiciário devido ao estatuto de transparência que o retrato fotográfico possuía à época. Na mesma linha, Annateresa Fabris (2004, p. 46) assinala que as fotografias de Bertillon eram praticadas tendo em vista a aplicação de um código neutro, ou seja, mantinham um distanciamento muito grande dos retratos de apelo pictorialista produzidos nos ateliês, que tendiam a aproximar a foto da obra de arte. Assim, gozando de seu estatuto de transparência e neutralidade, a fotografia passou a ser considerada uma prova capaz de dar fé, como um verdadeiro testemunho. No entanto, a forma de execução do retrato fotográfico para uso judiciário, pautada antes por um método minucioso, é um aspecto importante que parece ter sido menosprezado com o tempo, como veremos a seguir. A fotografia e os processos de investigação de paternidade da Comarca Caxias Desde o ano de 1916, com o decreto da Lei 3.071, que passou a sancionar o Código Civil brasileiro, a investigação de paternidade se tornou um dispositivo legal que permitia a filhos ilegítimos requererem a investigação de paternidade ou maternidade. Sobre o primeiro caso, de reconhecimento de paternidade, conforme o art. 363 da citada lei, 136 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012 os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no art. 183, ns. I a VI [que trata dos impedimentos de matrimônio], têm ação contra os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da filiação: I – Se ao tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretendido pai. II – Se a concepção do filho reclamante coincidiu com o rapto da mãe pelo suposto pai, ou suas relações sexuais com ela. III – Se existir escrito daquele a quem se atribui a paternidade, reconhecendo-a expressamente. No Código Civil então vigente, não existia um artigo específico que determinasse quais seriam os tipos de prova que poderiam ser aceitos no processo de investigação de paternidade. A prova de testemunhas (ou o depoimento das partes) foi sempre recorrente, mas o comparativismo entre imagens fotográficas é uma prática hoje abandonada, como dissemos, em função de métodos com eficácia maior e cientificamente comprovada. Ainda podia existir, fato que ocorre em um dos processos aqui apresentados, o exame de tipo sanguíneo. No entanto, igualmente tal instrumento não possuía uma margem segura de acerto – podia-se facilmente comprovar, com equívoco, a paternidade de homens que nunca procriaram – sendo, portanto, um instrumento menos utilizado para a convicção íntima do julgador. Todos os três processos aqui mostrados tiveram como autoras mães que não obtiveram o reconhecimento legal da paternidade de seus filhos. O processo de 1933 foi aberto contra os herdeiros de um homem que seria pai de uma jovem, à época, com 20 anos de idade (estando o homem já falecido na data). Os demais processos (1945 e 1956) trazem a figura do suposto pai como réu, defendendo-se da acusação. Processo 1 – 19333 O processo de 1933 tem como autora uma doméstica (R. P.).4 A mulher solicita a investigação de paternidade, cumulada com a de petição de herança, por parte de sua filha menor (A. P., com menos de 21 anos) contra os herdeiros do suposto pai da jovem (A. L.). O homem já se encontrava falecido na data de ação da investigação, o que faz do processo um caso peculiar diante dos outros dois de nossa análise. MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152 137 O caso entre a autora do processo e o suposto pai de sua filha remonta ao ano de 1912. Segundo a petição apresentada por R. P., essa prestava serviços de doméstica na residência de uma família composta de um casal e seu filho. Em determinada data, com a ausência do casal da residência, o jovem A. L. teria mantido, à força, relações sexuais com a doméstica. Da junção carnal entre os jovens, a mulher engravidou de uma menina. A jovem passou o período de gestação distante da casa onde prestava serviços. O pai do rapaz chegou a cogitar a ideia de casar seu filho com a doméstica, para criarem a menina juntos. A ideia de um enlace matrimonial, no entanto, foi prontamente rechaçada pela mãe do jovem, para quem a moça seria de condição muito humilde, não condizendo com a posição que sua família ocupava na sociedade. Pouco tempo após o ocorrido, o jovem casou-se com uma “moça de família”, estando a noiva ciente da filha bastarda do seu marido. As fotos nesse processo aparecem de forma interessante. Não foram solicitadas antes pelo juiz, mas apresentadas como prova pela acusação. R. P., a mãe, afirma que era público e notório o fato de A. L. ser pai de sua filha.5 Ela registra que os próprios parentes de A. L. consideravam a menina como sendo sua filha legítima, fato que também os próprios pais de A. L. nunca negaram. Em 1914, o homem falece, e a viúva prontamente entrega à menina três lembranças significativas de seu ex-esposo: trata-se de três retratos fotográficos. As fotos entregues pela viúva de A. L. como lembrança à suposta filha do ex-marido são juntadas aos autos do processo. Embora as palavras da autora não sejam contestadas pela defesa (isto é, os herdeiros de A. L.), em 1933 os pais do jovem também não estavam mais vivos para dar fé ao ocorrido. Desse modo, os retratos fotográficos são indícios muito importantes para a solução do caso. Uma das imagens (foto 1) compõe um carte cabinet, onde o homem, A. L. aparece pilchado ao lado de um animal de montaria. A foto não é de estúdio, notando-se, ao fundo, a vegetação de um ambiente rural. A imagem tem boa execução técnica (no que diz respeito ao tempo de exposição, nitidez e composição) e, devido à data que podemos atribuir ser do início dos anos 900 (pelo formato de época e idade provável do homem), certamente trata-se de um trabalho executado por um profissional. Nesse retrato, o homem foi tomado de corpo inteiro, posicionado inteiramente de perfil, ao lado de um cavalo. 138 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012 Esse primeiro retrato não deve ter tido grande serventia ao exame de comparação de características físicas como os outros retratos da moça juntados ao processo. Devido à tomada de corpo inteiro, compartilhando o espaço da cena com um animal duas vezes maior, o rosto do homem aparece muito diminuto no enquadramento, sendo difícil observar, sobretudo a olho nu, alguma característica específica de sua fisionomia. Na verdade, essa imagem está no processo como uma prova do reconhecimento que os herdeiros de A. L. tinham pela menina como filha do falecido, tendo sido entregue como uma espécie de herança do homem para a jovem. Já os outros dois retratos (fotos 3 e 4), foram juntados ao lado de duas fotos da moça (fotos 2 e 3), explicitamente para servir à perícia do juiz. Aderidos a folhas de ofício, numeradas na ordem do processo, os retratos foram dispostos lado a lado e vêm acompanhados de uma breve descrição indicando os nomes das figuras. Apesar disso, não apresentam nenhuma data. Por atribuição pessoal, ambos os retratados estavam com idade próxima dos 20 anos, sendo os do homem de 1900 e os da jovem (recentes) próximos do ano de 1930. Nos seus dois retratos, a fisionomia do homem é bastante austera. O olhar não foi direcionado para a objetiva, e sua postura apresenta grande rigidez. Posturas rígidas, assemelhando a pessoa a uma estátua, era uma exigência indispensável para o retrato no início do século XX. O material fotossensível ainda era a chapa de vidro emulsionada, com baixa sensibilidade à luz, o que exigia um longo tempo de exposição. Mover-se durante a tomada fotográfica, portanto, era expressamente proibido, correndo-se o risco de a figura sair borrada. Contudo, para além de questões técnicas do período, mostrar-se sisudo também era uma postura adotada para o retrato do varão, como símbolo e afirmação de sua masculinidade. O fotógrafo podia pedir, ainda, que o retratado levantasse um pouco o queixo, dando certa impressão principesca ao sujeito. Esses dois retratos do suposto pai não possuem autoria identificada, mas, pela mesma qualidade técnica observada no carte cabinet acima, devem se tratar de trabalhos de um profissional. Uma das fotos traz, inclusive, um efeito comum ao retrato praticado nos ateliês de bons profissionais: o efeito flou, no qual o sujeito parece envolto em uma nuvem. Essa característica aponta para um retrato de apelo artístico, vindo acompanhada de outros dois elementos que o definem como tal: a pose semiperfilada e o cenário de fundo (esse existente na foto 4). MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152 139 Já as duas fotos da moça foram executadas no ateliê do Studio Geremia, estabelecido pelo fotógrafo Giacomo Geremia no início da década de 10 (séc. XX), em Caxias do Sul. Um dos retratos é uma tomada em três quartos (mostra apenas o busto da jovem), enquanto no outro ela é vista de corpo inteiro. Nesse retrato, a moça divide a cena com um mobiliário de madeira, sobre o qual descansa um vaso com um arranjo de flores. Já o cenário de fundo dessa mesma imagem trata-se de um painel que, embora desfocado, permite discernir uma janela com mais flores à sua volta. As diferenças entre os retratos da moça e os retratos masculinos de seu suposto pai saltam à vista. A sensação de romantismo e de feminilidade na imagem da moça, representada sobretudo no símbolo que são as flores, é facilmente constatada.6 Tais efeitos são causados não apenas pelo cenário e poses da moça, mas também pela cromia escolhida: o sépia, que costuma ser utilizado para criar uma sensação mais romântica na imagem pela suavidade das cores quentes. A posição da jovem nos enquadramentos dos seus dois retratos, certamente, foi sugerida pelo fotógrafo. O rosto foi movimentado até alcançar uma posição ideal para a foto, de modo que sua angulação e a iluminação do ambiente privilegiassem os traços mais belos da jovem. Cabe lembrar que o retrato de estúdio é produzido tendo em vista uma importante prerrogativa: ele é executado para embelezar a pessoa. Sabendo que sua imagem será perenizada em uma foto, o contratante do serviço deseja que fique registrada a melhor imagem de si. Nesse sentido, a busca é pela aparência. Para atendê-lo, o bom fotógrafo retratista deve tornar-se um estudioso não apenas da luz, mas da anatomia humana. Deve procurar o melhor ângulo de seu cliente, evitando expor “defeitos” como nariz avantajado, orelhas de abano, queixo proeminente, etc., além de esconder rugas da velhice e cicatrizes resultantes da acne da puberdade, o que era conseguido através da técnica do retoque.7 Nas fotos da moça, nota-se como o seu cabelo, à moda melindrosa, procura esconder as suas orelhas. Caso todos os traços fisionômicos do suposto pai tivessem sido herdados geneticamente pela filha, essa, provavelmente, teria orelhas protusas. A característica física, no entanto, é impossível de ser visualizada, devido ao penteado e à própria angulação do rosto (semiperfil) da moça. Nesse caso, vale mais a fictícia vaidade do que uma inconveniente verdade. 140 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012 Foto 1 – Carte cabinet entregue como lembrança do suposto pai por sua viúva à jovem8 Fotos 2, 3, 4 e 5 – Retratos da jovem e do suposto pai distribuídos lado a lado para perícia MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152 141 No processo do ano de 1933, não fica evidente a forma como o juiz procedeu à perícia nas imagens fotográficas. O magistrado apenas dirá que com a análise dos retratos colhidos “os traços fizionômicos [sic] se assemelham”. (Processo 06, caixa 04, 1933, p. 53). Em seguida, registrará. (p. 66): Essa demonstração [a comparação entre as imagens fotográficas] visa, apenas, ilustrar nossas afirmativas e a prova colhida, como elemento subsidiário para a convicção íntima, apesar de que, tal convicção, encontra apoio pleno na prova dos autos. (Processo 06, caixa 04, 1933, p. 66). Como se observa, o juiz procura deixar claro que a comparação entre os retratos não foi a prova cabal para proferir a sentença. As imagens fotográficas aparecem apenas como elemento subsidiário e a convicção íntima encontrava apoio em outras provas apresentadas no processo (sobretudo o depoimento das testemunhas). No entanto, a perícia nos retratos fora feita e se chegou a uma conclusão, contribuindo para a sentença, como demonstra a fala anterior, afirmando que os traços fisionômicos entre a jovem e o 142 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012 suposto pai se assemelhavam. Chama a atenção, ainda, o fato de não ficar explícito o método pericial utilizado do Juiz. Assim, sem muita dúvida, pode-se concluir que fora feita uma simples comparação, subjetiva, sem, por exemplo, o uso da técnica prosopográfica ou outra de observação e comparação. Além disso, nenhuma importância foi dada aos aspectos formais das imagens, como posição do rosto, iluminação e angulação, efeitos que, na fotografia, contribuem decisivamente para modificar a aparência do retratado.9 Não havendo contestação à decisão judicial por parte da defesa, o desfecho do processo de 1933 foi o reconhecimento da paternidade e a inclusão do nome da menina como herdeira legítima de A. L. Processo 2 – 194510 Outra doméstica é a autora do processo de 1945. J. G. move ação de investigação de paternidade por parte de sua filha impúbere contra E. C. Conforme a autora, a relação com o suposto pai de sua filha teria ocorrido após o rapaz tê-la seduzido e enganado com promessas de casamento. Por ser de condição humilde, e o rapaz sendo de família respeitada e de posses na cidade, a doméstica entregou-se às falácias de E. C., que a convenceu de manterem relações sexuais. Nos termos do processo, os encontros entre o casal aconteciam na casa da moça, quando da ausência de seus parentes. Após pouco tempo de encontros entre o casal, a moça engravidou de uma menina. Diante da gravidez da moça, o rapaz teria lhe sugerido o aborto, alternativa rechaçada pela doméstica. Durante o período de gestação, o jovem passou a negar as relações que mantivera com a moça e, após o nascimento da criança, não reconheceu a paternidade da menina. O presente processo apresenta quatro retratos fotográficos. Dois deles trazem na cena a menina, fruto da suposta relação entre o casal (fotos 2 e 3). Outro retrato traz a figura do homem, suposto pai (foto 4), e o retrato (foto 1) apresenta apenas a imagem da mãe da criança. Curiosamente, pois o processo trata-se do reconhecimento da paternidade e, em momento algum, a maternidade da menina é contestada. A existência dessa imagem, porém, pode ter sido uma estratégia muito inteligente da acusação. Em se tratando de uma imagem fotográfica, isto é, de um registro perene da pessoa, o retrato da mulher traz elementos que podem servir ao convencimento acerca de sua boa moral, decência e bons costumes. MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152 143 Características já apontadas anteriormente, tais como o efeito flou e a cromia sépia, são novamente encontradas nesse retrato individual da mãe da criança. Devemos ainda acrescentar a existência do retoque, não existindo indícios de marcas de expressão que seriam comuns a qualquer rosto (como os sulcos na testa). O apelo artístico, portanto, é uma característica sempre presente. Desse modo, a foto não se trata de um “retrato transparente”, como o modelo de Bertillon prezava ou que se esperava para o uso judicial, mas, na verdade, trata-se de uma imagem para destacar valores morais, através da construção de uma aparência. Nossa afirmativa está corroborada em um detalhe interessante: a mulher traz ornando o pescoço, preso a uma gargantilha, um crucifixo. Esse acessório foi propositalmente sobreposto sobre a gola de sua camisa, ficando bastante visível. Podemos afirmar ser proposital, pois, na foto seguinte, onde a criança está presente e a mulher é menos importante na cena, o ornato religioso não está visível, escondido sobre a mesma camisa que veste a mulher – de modo que é comum se utilizar desse tipo de adereço como estratégia. Como durante o processo a defesa utilizará recursos para desmoralizar a mãe da criança, afirmando ter ela tido relações com outros rapazes, a imagem de boa moça pode ser bastante útil, usada como uma prova de convencimento para além do discurso da acusação. Nesse caso, a fotografia assume uma função que vai além do objetivo da perícia. O retrato fotográfico passa a ser utilizado para sublinhar traços da personalidade e princípios morais da mulher, sobretudo ligando-a a bons costumes religiosos. Figuras 1, 2 e 3 – Retrato individual da mulher acompanhado de retrato com a filha e um da sua filha. A foto 4 retrata em 3x4cm o rosto do suposto pai 144 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012 Após proceder à perícia nos retratos, o juiz iniciará a proferir a sentença. Dirá que há “impressionante parecença fisionômica da investigante [a menina] com o réu” [o pai] e que isso é “de fácil constatação pelas fotografias”. Pondera, entretanto, que os retratos “constituem um elemento subsidiário particular de convicção íntima”, e que não se lhes podem “emprestar um valor absoluto de prova”. (Processo 01, vol. 1 e 2, caixa 17A, 1945, p. 155). Novamente, constatamos o caráter subsidiário das fotos como prova a ser expressa, mas, dessa vez, com maior importância para a decisão, principalmente quando o juiz utiliza os adjetivos “impressionante parecença” e “fácil constatação”. Ao contrário do processo anterior, nesse a defesa apelará da sentença, apresentando-se o réu, inclusive, com novo advogado. O fato mais interessante na apelação é que o novo intercessor do réu concentrará a defesa na contestação, especialmente, do uso dos retratos para a decisão judicial. O advogado buscará em tratadistas do Direito argumentos contrários à perícia em imagens fotográficas para os casos de ação de investigação de paternidade. Mas, embora impugne energicamente, e até ridicularize a forma como o procedimento foi conduzido, acaba procedendo a uma perícia pessoal nos mesmos retratos: De nada vale um simples confronto de imagens, se se lhes não dá dinamismo através de múltiplos cotejos de partes marcantes da fisionomia, por meio de superposições de traços de uma pessoa sobre a outra, fotografando-se as combinações, para evidenciar semelhança. É de notar a dificuldade do confronto de uma menina de 2 anos com um homem de 25 anos de idade. Os retratos da investigante, de sua mãe e do investigado, não colhem o efeito visado, pois, pelo simples confronto, não há como se observar semelhança, mesmo examinando essas fotografias com espírito prevenido. Bem diferentes [aqui inicia a perícia pessoal] são os traços fisionômicos da menor e do investigado, tendo ambos diversa conformação craniana, notadamente a fronte, o nariz, o mento, o ângulo facial, o maxilar e as orelhas. (Processo 01, vol. 1 e 2, caixa 17-A, 1945, p. 159). Anteriormente, quando foi exigida a apresentação do retrato do homem para ser juntado às folhas do processo, a defesa já havia tentado uma estratégia visando a dificultar a perícia judicial. A imagem entregue por parte do réu é ridiculamente econômica: trata-se de um simples retrato em MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152 145 tamanho 3x4cm, o menor formato comercializado em estúdios. Mas, apesar da tentativa de pôr um obstáculo ao olhar do investigador e da contestação veemente do advogado de defesa quanto ao procedimento da perícia nas fotos, a sentença do processo não foi alterada. A sentença do litígio, mais uma vez, foi o reconhecimento da criança como filha legítima do pai até então suspeito. Processo 3 – 195611 O último processo envolve novamente uma mulher de condição humilde e um rapaz de família com posses na cidade. Sem o reconhecimento paterno de seu filho, a jovem mãe, E. S., move ação contra P. M. Segundo a autora, o relacionamento com o rapaz aconteceu em Porto Alegre, quando ele foi morar em uma pensão para estudantes. Residindo no mesmo local, ambos teriam mantido um romance, fato que a autora atesta pelas cartas (presentes entre as páginas do processo) que o rapaz lhe enviou após ter retornado a Caxias do Sul para junto de sua família, comunicando à jovem o rompimento da relação entre ambos. A defesa do réu segue apontando que a jovem, no mesmo pensionato em que viviam juntos, teria mantido relações com outros rapazes, e que, portanto, o filho bem poderia não ser seu. O réu ainda faz lembrar que soube que a jovem teria sido deflorada aos 14 anos de idade, algum tempo antes de se conhecerem, e que era ela filha de uma prostituta. A defesa visa, com isso, demonstrar o ambiente de promiscuidade em que a moça vivia desde há muito tempo, tendo sido ela, inclusive, responsável por enganar o jovem rapaz atraindo-o para o desejo sexual. Nesse processo, quatro retratos são apresentados. Assim como no processo anterior, as fotos do réu são no menor formato encontrado: 3x4cm. Mais uma vez, a tentativa é dificultar o trabalho pericial. Os retratos da mulher e da criança, dois ao todo, embora sendo ela de condição mais humilde que o homem, são maiores, de, aproximadamente, 12x8cm. Nos retratos do jovem, a sua pose é frontal, e as imagens não possuem algum apelo artístico como detectamos nos retratos dos processos anteriores. Na verdade, é um típico retrato 3x4cm utilizado para ilustrar documentos como passaporte ou carteira de registro geral (fotos 3 e 4). Quanto aos retratos da criança, eles são de duas datas distintas. Em uma das imagens, o menino tem a idade de um bebê de colo e aparece preso aos braços da mãe (foto 1). Na outra foto, também junto da mãe, a 146 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012 criança devia ter cerca de 1 ano de idade (foto 2). O retrato foi executado por um estúdio da capital, Foto Marabá, conforme o carimbo sobre a imagem. É um retrato bastante simples, sem grande execução técnica, principalmente no momento da ampliação, podendo-se verificar uma falha em uma das margens e uma inclinação anormal da foto no papel fotográfico. Embora a mãe apareça na cena com o filho, o foco da imagem recai sobre a criança. Isso porque a mulher concentra o seu olhar no bebê que segura no colo. Na outra foto, o menino aparece novamente dividindo a cena com a mãe, agora, lado a lado. O fundo é neutro, ao contrário da imagem anterior e, devido ao enquadramento horizontal que preenche toda a cena com o rosto dos retratados, percebe-se como a foto deve ter sido produzida tendo em vista o seu fim, ou seja, servir à peritagem. Algo que não havíamos comentado até então, mas que certamente é um aspecto decisivo para o tipo de investigação a que o juiz procedia, é a cor dos olhos e do cabelo. Não que inexistissem retratos em cores na década de 50 (séc. XX) (esse tipo de imagem é até anterior, tendo sido os primeiros negativos em cores introduzidos no mercado, no fim da década de 30), mas a presença de imagens sem saturação, como o sépia, tal como foi produzida a totalidade das imagens dos três processos aqui apresentados, impediam que essa característica herdada geneticamente fosse considerada. Não de modo diferente, o cabelo também, e não apenas quanto à sua coloração, mas quanto à textura, que podia ser disfarçada tanto antes do retrato (penteando-se os fios, ou, inclusive utilizando uma peruca, prática comum nos estúdios fotográficos) ou mesmo no processo de produção da foto (desfocando a imagem para diminuir sua nitidez). O fato que devemos ressaltar é que os retratos, sendo produzidos aleatoriamente, em qualquer estabelecimento, podendo ser escolhido pelos envolvidos sem critério explicitado pelo magistrado, acabavam por se distanciar ainda mais do princípio básico para uso judicial, ou seja, a presença de uma neutralidade. MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152 147 Fotos 1 e 2 – retratos da mãe com o menino e as fotos 3 e 4 mostram o rosto do réu Nesse processo, a discussão, em especial quanto à utilização dos retratos como prova, não é tão ampla como visto no processo anterior. Ao proferir a sentença, o juiz deixará claro que o julgamento levou em consideração todas as provas colhidas, sejam elas as testemunhais (os depoimentos das partes), o exame de tipo sanguíneo, presente nesse processo, as cartas de despedida enviadas pelo rapaz à moça, indícios que demonstram o “namoro” que mantiveram e, finalmente, os retratos fotográficos, periciadas em busca de encontrarem características físicas que assemelhassem a criança ao suposto pai. Ao fim, o homem é sentenciado a assumir o compromisso paterno do menino, tendo tido essa solução o caso. Considerações finais Observando-se os três processos, de datas diferentes e julgados por juízes igualmente diversos, nota-se que a fotografia teve o mesmo uso, divergindo em poucos aspectos. Em geral, a perícia nas imagens foi praticada 148 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012 pelo próprio juiz de Direito, não existindo um perito específico para fazêla. Não é possível identificar como a perícia nos retratos foi executada, restando apenas o indício, visível especialmente na contestação do advogado de defesa do processo de 1945, de que se tratou de um confronto entre as imagens, buscando, subjetivamente, traços nas fisionomias que identificassem as partes envolvidas. Igualmente, se constata que não existiam normas para a apresentação dos retratos, nem a menor padronização dos tamanhos ou formatos, fato esse que a própria lei do período não compreendia. Assim, se efetuava a perícia em busca de traços fisionômicos comparando-se imagens com diferenças de até 60% no tamanho. Além disso, outra questão importante é a ausência de considerações quanto aos aspectos técnicos de tomada do retrato, podendo-se destacar aqueles que podem ser cruciais para modificar traços fisionômicos do retratado: iluminação, foco, posição da câmera (ângulo) e posição do assunto, não devendo ser esquecidos o retoque e a própria manipulação. Quanto à última, que se caracteriza por uma intervenção maior do fotógrafo no registro, alterando consideravelmente a cena (incluindo, excluindo ou substituindo objetos ou partes de um corpo) acredita-se não estar presente nas fotos encontradas, dada a dificuldade de ser executada no período da fotografia analógica. O retoque, no entanto, é um elemento mais fácil de ser observado e é uma presença certa em alguns dos retratos, especialmente naqueles apresentados pela acusação. A ausência dos negativos fotográficos é, ainda, outro aspecto importante. Sem a menor dúvida, os negativos fotográficos existiram, sendo o único meio, à época, de se conseguir produzir/reproduzir uma imagem fotográfica. A importância desse suporte poderia ser decisiva. Os negativos poderiam servir de prova se houvesse ou não manipulação ou retoque na imagem, pois é neles, na maioria dos casos, que o fotógrafo faz sua intervenção, buscando embelezar ou alterar traços fisionômicos do retratado.12 Com essas primeiras observações sobre o caso apresentado, nos limites do Poder Judiciário local, podemos inferir que, entre as décadas de 30 e 50 do séc. passado, a fotografia gozava o estatuto de ser prova fiel da realidade. A ideia de “espelho do real” – que foi comum à fotografia desde o seu surgimento, e que faz referência à crença de ser a imagem fotográfica um reflexo fidedigno da realidade – era compartilhada no campo jurídico daquele período, embora, às vezes, não sem contestação. MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152 149 Por fim, acredita-se que esse tipo de discussão ora apresentada – com os devidos aprofundamentos ainda necessários – pode enriquecer o estudo histórico da cultura jurídica das décadas compreendidas nesse texto, principalmente quanto à questão da prova em Direito. De modo análogo, pode contribuir para a compreensão do estatuto da imagem, em especial da fotográfica, na sociedade contemporânea, tendo sido um “recurso científico” utilizado por uma importante esfera do poder. 150 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012 Notas Conforme Pierre Grimal (1997), a deusa Iustitia é o equivalente da deusa Dice e também de Astreia (esta, filha de Témis, deusa da Lei na Grécia antiga). Podem-se encontrar representações bastante diversas da Justiça, inclusive sem a venda nos olhos, o que significaria que o juiz deve olhar o caso que julga sob todos os aspectos e nos pormenores. 1 2 Boris Kossoy (1980), por exemplo, demonstrou que um franco-brasileiro residente em Campinas, Hercules Florence, desenvolveu, quase uma década antes, estudos semelhantes aos daquele que foi por muito tempo considerado “o Pai”, o inventor da fotografia. Florence foi, inclusive, o primeiro no mundo a empregar a palavra fotografia (photographie), tendo sido inscrita por ele em 1833. Processo 06, caixa 04. CMRJU/IMHC/ UCS. 3 Os nomes dos envolvidos não cabem ser divulgados. Os processos podem ser consultados, desde que respeitada a política de acesso da instituição, no CMRJ/UCS. 4 O nome da menina é o feminino do nome do suposto pai. 5 As flores costumam sugerir a virgindade de uma moça. Não por acaso, perder a virgindade é ser deflorada (“perder as flores”). 6 Sobre o melhor ângulo, o exemplo do fotógrafo Julio Calegari (tendo atuado em Caxias do Sul durante as décadas de 20 e 30 do séc. passado) é proveitoso. Antes de irem para a seção de fotos, Calegari mantinha uma conversa com seu cliente. Durante o bate-papo, o fotógrafo aproveitava para estudar a fisionomia da pessoa, procurando o ângulo que considerava ser o mais favorável a ela. Julio Calegari era procurado pelas famílias mais abastadas da sociedade caxiense, oferecendo “trabalhos artísticos e modernos”, como 7 destacava em seus anúncios. Quanto ao retoque, essa prática era comum a todos os estúdios fotográficos da cidade. Nem sempre executado pelo próprio retratista, o retoque muitas vezes era uma tarefa destinada aos aprendizes. No Studio Geremia, fotógrafos como Antonio Bartolomeu Beux e Ary Cavalcanti iniciaram na profissão como laboratoristas (responsáveis pela revelação e cópia) e como retocadores. As imagens constantes nos processos e aqui reproduzidas foram manipuladas tendo em vista ofuscar o rosto dos envolvidos. Para nós, não interessa a semelhança física entre os sujeitos, mas os aspectos formais das imagens. 8 9 Por exemplo, uma foto tomada em plongée (câmera localizada um pouco acima da linha dos olhos) faz com que o nariz e o queixo afinem, ocorrendo o contrário em contraplongée. Já o retrato em semipefil serve para que o rosto não fique achatado (como “cara de bolacha”), além de disfarçar a proeminência das orelhas quando é o caso (a chamada “orelha de abano”). 10 Processo 01, vols. 1 e 2, caixa 17-A. CMRJU/IMHC/UCS. Processo 04, caixa 49A. CMRJU/IMHC/ UCS. 11 Atualmente, abrindo um parêntese, a imagem fotográfica continua sendo aceita como prova, na forma da lei. No entanto, é preciso atender a algumas normas para que a imagem não tenha contestado o seu valor real. Sobretudo hoje em dia, com a fotografia digital, de fácil manipulação, inclusive por não fotógrafos, a exigência é a apresentação do arquivo matriz da imagem, isto é, um formato de arquivo digital que é impossível de ser salvo se manipulado, o RAW, também conhecido como sendo o “negativo digital” da imagem. 12 MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152 151 Referências DAVIDHAZY, Andrew. Chronophoto- NEWHALL, Beaumont. Historia de la graphy. In: PERES, Michael. The focal fotografia. 2. ed. Barcelona: Gustavo Gilli, encyclopedia of photography: digital imaging, 2002. theor y and application, history, and ROUILLÉ, André. A fotografia: entre science. Inglaterra: Elsevier, 2007. documento e arte contemporânea. São FABRIS, Annateresa. A invenção da Paulo: Senac, 2009. fotografia: usos e funções no século XIX. SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São São Paulo: Edusp, 1998. Paulo: Cia. das Letras, 2002. ______. Identidades virtuais: uma leitura SOULAGES, François. Estética da do retrato fotográfico. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004. Senac, 2010. GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. KOSSOY, Boris. Origens e expansão da fotografia no Brasil: século XIX. Rio de Janeiro: Funarte, 1980. fotografia: perda e permanência. São Paulo: Documentos BRASIL. Lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Presidência da República. [1916] Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ L3071.htm>. Acesso em: 21 nov. 2011. 152 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012 Um processo histórico em um processo judicial A case history in a judicial process Thamyris Conceição Macedo* Caroline Barreto Oliveira** Resumo: Dentre inúmeros documentos do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, cadastrados como históricos, selecionamos um processo administrativo para pagamento de precatório, oriundo de ação ordinária, através da qual é possível reconstituir vários períodos da história do Brasil e do Judiciário. Neste ensaio demonstramos que, partindo da análise de uma microestrutura, é possível alcançar a compreensão da conjuntura em que se desenvolveram tais fatos. O trabalho pretende alinhavar os fatos descritos e atos praticados na ação proposta em 1975, com os diferentes contextos históricos e políticos vivenciados no Brasil, desde o fato gerador em 1935: a expulsão de um aluno-aprendiz, acusado de participação na Intentona Comunista, até a conclusão do processo com o pagamento de precatório em 2001. Palavras-chave: Ditadura Militar; Justiça; Intentona Comunista. Abstract: Among the numerous archival documents from the Brazilian Regional Court of the 2nd Region registered as historic, we selected the administrative proceeding of a Precatório payment, which is a state reparation order to pay, from the Brazilian government, originated from a Civil Action, through which it is possible to reconstruct various periods of the history of Brazil and the Judiciary. In this essay we demonstrated that starting from an analysis of a microstructure we can achieve an understanding of the environment in which such facts have been developed. The purpose of this paper is to confront the facts described and actions taken in the Ordinary Action proposed in 1975, with the different historical and political contexts that took place in Brazil, since the original event in 1935: the expulsion of a student apprentice, accused of involvement in the Intentona Comunista (a communist conspiracy) until the payment of the indemnification from the government in 2001. Keywords: Military Dictatorship; Justice; Communist Conspiracy. Tribunal Regional Federal 2ª Região; Bacharel em Comunicação Social pela (PUC/RJ). Bacharel em Direito pela Unesa/RJ. Pós-Graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Unesa/RJ. Agência Financiadora: TRF2. E-mail: thamyris@trf2.jus.br. ** Tribunal Regional Federal 2ª Região. Bacharel e Licenciada em História pela UERJ. Aluna no curso de Direito da Unesa/RJ. E-mail: carol_baretoo@hotmail.com * MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B. 153 O Tribunal Regional Federal da 2ª Região começou, a partir do fim da década de 90 (séc. XX), através das Portarias 159/1998 e 217/1998, ambas do Conselho da Justiça Federal, a implantação do programa de “Gestão Documental”, inicialmente no acervo administrativo e, mais recentemente, no acervo judicial, mas foi somente nos últimos anos, a partir das Resoluções 359/2004 e 393/2004 e após mapeamento completo dos arquivos judiciais, que as atividades se intensificaram. Dentre inúmeros documentos destacados como de guarda permanente, cadastramos vários como históricos, tais como: fitas cassete, DVDs, fotos, além de processos administrativos e judiciais, que, pelas diversas características e/ou peculiaridades, mereceram esse tratamento. Essa dinâmica está, pouco a pouco, desnudando a nossa memória. É possível reconstituir vários períodos da história do Brasil e do Judiciário principalmente através dos processos ajuizados ao longo dos anos. Existem muitas maneiras de se desenvolver esse processo de reconstrução. Neste breve, porém significativo ensaio, se pretende demonstrar que, partindo da análise de uma microestrutura, é possível alcançar a compreensão da conjuntura em que se desenvolveram tais fatos. As servidoras (autoras), que trabalham no setor de Gestão de Autos Findos do referido tribunal, escolheram esse precatório, dentre os diversos autos históricos apaixonantes já selecionados, para traçar um paralelo entre os fatos narrados e os atos judiciais no processo com a história política do País. O precatório 97.02.20056-3 foi escolhido porque proporciona um longo período temporal para análise (de 1935 a 2001), descortinando um panorama amplo de observação e estudo. O presente trabalho pretende demonstrar, através da ação ordinária proposta por Álvaro Moreira, em 1975, os diferentes contextos históricos vivenciados no Brasil, que permearam os acontecimentos descritos pelo autor desde o fato gerador (1935), durante o curso do processo, até sua conclusão final, com o pagamento de precatório em 2001. Trata-se de uma ação proposta por Álvaro Moreira, soldado-aluno da Aeronáutica no ano de 1935, que foi expulso do curso de Sargentos Aviadores, acusado de participação na rebelião denominada Itentona Comunista. 154 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012 Após várias tentativas infrutíferas de ser anistiado como TerceiroSargento, posto no qual os soldados-alunos são reformados, ingressou no Judiciário requerendo esse direito, que terminou lhe sendo deferido. Não levantaremos nenhuma bandeira, apenas apontaremos os atos que construíram essa história de 66 anos, sendo 30 judiciais, extraindo-os para a realidade política do momento em que se deram. Não haverá análise profunda dos períodos, mas a pontuação histórica relacionada aos fatos narrados no processo. O que nos interessa é demonstrar as diversas possibilidades acadêmicas e científicas contidas no grande leque que se abre quando a gestão documental é desenvolvida de maneira adequada no âmbito do Judiciário e como a memória pode ter um significado abrangente, de interesse para vários segmentos. O Brasil da Intentona Comunista Quando nos propomos a estudar a história do Brasil, não é difícil perceber os inúmeros períodos de crise enfrentados por ele. Desde a proclamação da República e, até mesmo, antes dessa, as mudanças e os acontecimentos mais significativos não foram pacificamente desenvolvidos. A República foi proclamada no Brasil, em 1889. De império unitário, o Brasil passou, com a República, à Federação grandemente descentralizada, que entregou aos estados-membros, considerável autonomia administrativa, financeira e política. Outra novidade que surgiu com o golpe republicano foi a presença cada vez mais constante do elemento “espada”, ou seja, os militares, que foram se transformando, ao longo desse período, em figuras de extrema relevância política para o Brasil, sendo frequentemente requisitados para a solução de conflitos das mais diversas espécies.1 Na década de 20 (séc. XX), surge uma crise política bastante significativa para a Primeira República, que se revelou em dois aspectos principais: no descontentamento do Exército e na crescente insatisfação da população urbana. As eleições presidenciais em 1° de março de 1930 foram realizadas num momento de profundas inquietações e instabilidade política, agravadas ainda pela crise mundial de 1929. O processo eleitoral transcorreu normalmente e sem alterações, bem ao estilo tradicional da máquina eleitoral da República Velha. A oposição, tendo como candidato para a presidência MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B. 155 Getúlio Vargas, acabou perdendo a eleição. O candidato Júlio Prestes saiu então vitorioso, o que já era de se esperar, pois o voto não era ainda uma expressão de cidadania e liberdade, mas um sistema de obediência e de favores políticos. O voto então só era secreto para o eleitor. Recebia das mãos do coronel, do chefe político ou do cabo eleitoral a cédula dentro de um envelope, já devidamente fechado e sacramentado. Nada dessas bobagens de cabina indevassável, de liberdade de escolha, de juízes eleitorais, de urnas fiscalizadas, que o ditador Getúlio Vargas inventou depois. Nada disso. Tudo era mais simples. As atas oficiais eram feitas em cima da perna e a vitória era proclamada conforme as conveniências.’2 No entanto, a oposição não se conformou com a derrota imposta pelo já ultrapassado sistema eleitoral fraudulento, pois tinham por certo que a eleição não representava a vontade do povo. Chegaram, então, à conclusão de que a solução teria que vir pelas armas. A conspiração articulada entre os meses de março e outubro de 1930 teve uma série de avanços e recuos até ser de fato deflagrada. Vargas e João Pessoa insistiram em denunciar as fraudes eleitorais. Paralelamente, políticos que compunham a Aliança Liberal buscavam apoio em outros estados para iniciar uma revolta armada, defendida pelos tenentes. O processo revolucionário acabou sendo desencadeado após o assassinato de João Pessoa, candidato a vice-presidência pelo grupo da oposição. O crime, atribuído a um complô que envolvia o presidente Washington Luís, serviu de estopim para o início da rebelião, chefiada por Getúlio Vargas. A cadeia de imprensa comandada por Assis Chateaubriand incendiou ainda mais o País, transformando o governo federal no verdadeiro culpado de tal acontecimento. O movimento eclodiu no dia 3 de outubro de 1930. A adesão do Exército foi quase imediata no Sul, também se concretizando em Minas Gerais e no Nordeste; apenas em São Paulo a situação não foi prontamente estabelecida, pois ali se encontrava o núcleo de maior resistência. Em 24 de outubro de 1930, o presidente Washington Luís foi deposto, e se constituiu uma Junta Provisória de Governo.3 156 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012 O novo governo revelou a disposição de centralizar progressivamente em suas mãos tanto as decisões econômico-financeiras, como também as de natureza política. Em novembro de 1930, o Governo Provisório dissolvia o Congresso Nacional, e os membros dos Legislativos estadual e municipal assumiam com plenos poderes. Todos os antigos governadores foram demitidos, com exceção do novo governador de Minas Gerias, e foram nomeados, então, interventores federais da confiança de Vargas. Vargas assumiu o poder em 1930 e só saiu em 1945. Nesses 15 anos, governou como Chefe do Governo Provisório (1930-1934), Presidente Constitucional (1934-1937) e Ditador (1937-1945). Com a dissolução do Congresso Nacional e a tomada do poder de forma fortemente centralizadora, Vargas gerou muitas alterações no Estado brasileiro. O Brasil estava vivendo um período da ditadura varguista em que o País se encontrava sem uma Constituição que formasse uma identidade nacional. Não havia Congresso Nacional, Assembleia Legislativa nem Câmaras Municipais.4 Começaram a surgir inúmeros movimentos revoltosos na capital paulista contra o autoritarismo varguista, mas o estopim da revolta foi a morte de cinco jovens no centro da cidade de São Paulo, assassinados a tiros por partidários da ditadura em maio de 1932. Começou-se, então, a tramar um movimento armado visando à derrubada da ditadura de Getúlio Vargas, sob a bandeira da proclamação de uma nova Constituição para o Brasil. Em 9 de julho, eclodiu o movimento revolucionário; os paulistas acreditavam ter o apoio dos Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e do sul de Mato Grosso, para a derrubada de Getúlio Vargas, o que não aconteceu. O Rio Grande do Sul e Minas Gerais foram forçados por Vargas a se manterem ao seu lado, e o Estado de São Paulo, apesar de contar com um número considerável de soldados, estava em desvantagem. Vendo que a derrota e a ocupação do estado eram questão de tempo, as tropas da Força Pública Paulista foram as primeiras a se render. Com o colapso da defesa paulista, a liderança revolucionária paulista se rendeu em 2 de outubro de 1932. As tropas gaúchas ocuparam a capital paulista novamente. A maior parte dos líderes paulistas, que não tinha sido exilada em 1930, com a derrota de Revolução de 1932, foram então para o exílio. Dominada a Revolução Constitucionalista, começa a campanha eleitoral para a Assembleia Nacional Constituinte. Em 3 de maio de 1933 foram MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B. 157 realizadas eleições, quando a mulher votou pela primeira vez no Brasil em eleições nacionais. De novembro de 1933 a julho de 1934, o País viveu sob a égide dessa Assembleia Nacional Constituinte encarregada de elaborar a nova Constituição brasileira para substituir a de 1891. Foram meses de intensa articulação e disputa política entre o governo e os grupos que compunham a Constituinte. Em 16 de julho de 1934, foi promulgada a nova Constituição, e, dias depois, Getúlio Vargas foi empossado como presidente constitucional, eleito pelo Congresso Nacional. A nova Carta Magna mesclava características jurídicas liberais, autoritárias e corporativas. O governo constitucional de Vargas foi marcado por forte instabilidade, com manifestações provenientes tanto da direita quanto da esquerda. Na direita, o governo viu-se pressionado pela Ação Integralista Brasileira (AIB), liderada por Plínio Salgado e com características facistas. Na esquerda, Getúlio enfrentou a Aliança Nacional Libertadora (ANL), composta por comunistas e simpatizantes, liderada pelo Partido Comunista do Brasil (PCB). A ANL foi organizada a partir de 1935. Tratava-se de uma frente política, com influência comunista, de outros segmentos da esquerda, sindicalistas, além de correntes do tenentismo mais extremadas. A 30 de maio de 1935, foi realizada, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, a leitura pública de seu manifesto e a escolha de Luís Carlos Prestes para Presidente de Honra da organização popular. A indicação do nome de Prestes, antigo inimigo político de Vargas, que havia retornado de Moscou onde aderira formalmente ao comunismo, foi feita pelo então estudante Carlos Lacerda. O programa básico da ANL centrava-se em três pontos: o anti-imperialismo, o antifacismo e a luta contra os interesses latifundiários. A presença de Prestes na liderança do movimento atraiu os segmentos do tenentismo mais combativo, e as manifestações públicas criaram um clima de confronto com os setores mais conservadores do governo, além de provocar inúmeros conflitos de rua com seus principais oponentes: os integralistas. A probabilidade da execução de uma tática revolucionária que culminasse numa revolução popular foi avaliada positivamente pelos delegados brasileiros na Internacional. Prestes entusiasmou-se com essa perspectiva de ação armada e se preparou para assumir a direção do movimento revolucionário. A direção do PCB ordenou que qualquer iniciativa insurrecional deveria partir do comando sediado no Rio de Janeiro. No entanto, no dia 23 de novembro de 1935, Natal, no Rio Grande do Norte, foi palco do inesperado “assalto 158 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012 ao poder”. A cidade foi tomada pelos aliancistas, sendo instaurada uma junta revolucionária. Para atrair a simpatia da população da capital, a junta revolucionária expropriou o dinheiro do Banco do Brasil procedendo em seguida a uma farta distribuição entre populares e a tropa. Ademais, confiscou mantimentos com vistas a garantir estoque militar e ainda fez circular o jornal A Liberdade. No dia seguinte ao levante de Natal, era a vez de Recife conhecer situação idêntica, mas a resistência das forças leais ao governo, a despeito da adesão de muitos civis, impôs a rendição aos revolucionários. A derrota de Recife isolou o governo revolucionário no Rio Grande do Norte. No mesmo dia 25 de novembro, quando se intensificou o cerco de Natal, foi deflagrado o movimento no Rio de Janeiro, cujas ações foram marcadas para acontecer na madrugada do dia 27 de novembro. O 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha, foi tomado pelos Capitães Agildo Barata e Álvaro de Souza, que não lograram êxito porque foram imediatamente cercados, sendo presos em seguida os amotinados. O mesmo desfecho se deu na Escola de Aviação, onde os Capitães Agliberto Vieira e Socrátes Gonçalves da Silva, inferiorizados e sem qualquer apoio tático, foram neutralizados pelas tropas leais ao comandante da escola, Coronel Eduardo Gomes.5 O Brasil e o judiciário nos fatos objeto de análise A ANL foi fechada em 13 de julho de 1935 e como consequência houve uma série de repressões aos participantes do movimento: prisões civis, punições a soldados, sargentos e oficiais. Chegava ao fim a revolução libertadora, ou seja, a Intentona Comunista. Em expediente publicado no Diário Oficial, de 5 de dezembro de 1935, o Ministro da Guerra baixou ao chefe do Departamento de Pessoal do Exército, autorização para expulsar das fileiras do Exército todos os que tomaram parte no movimento, o que, em cadeia, gerou novo ato do ministro do Exército à Diretoria de Aviação, em 27 de dezembro, autorizando a expulsão sumária de todos os praças que se encontravam no interior do quartel na madrugada de 27 de novembro daquele ano. Contudo, logo depois, houve uma consulta do diretor de Aviação ao Ministro do Exército, sobre os praças que não tomaram parte na rebelião, pois que,na condição de alunos internos, se encontravam no quartel por obrigatoriedade do curso e foram tomados de surpresa com os MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B. 159 acontecimentos daquele dia, concluindo-se que muito poucos tiveram participação ativa no movimento. Converteu-se, então, a expulsão em exclusão à maioria dos praças, concedendo-lhes a quitação com o Serviço Militar. Os acontecimentos relativos à Intentona Comunista serviram de justificativa para a repressão sistemática ao longo de 1936, abrindo caminho para a ditadura do Estado Novo. Imediatamente após o golpe, Vargas dissolveu o Congresso e outorgou uma Constituição que estruturou o Estado brasileiro com elementos vindos do facismo italiano. A imprensa escrita, o cinema e o rádio foram submetidos à rígida censura controlada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).6 Foi instituída a pena de morte, que seria aplicada em casos de crime contra a ordem pública e a organização do Estado. Os direitos individuais foram suspensos; os estados perderam sua autonomia, e os Poderes Legislativo e Judiciário ficaram subordinados ao Executivo. Com a Constituição de 1937, foi extinta a Justiça Federal de primeiro grau. As causas de interesse da União, no entanto, continuaram a ser julgadas em juízos especializados, só que nas Justiças dos estados, denominados “Varas dos Feitos da Fazenda Nacional”, com previsão de recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal (STF). Regulamentando a extinção da Justiça Federal de primeiro grau, foi editado o Decreto-Lei 6, de 16 de novembro de 1937, que extinguiu os cargos de juiz federal e os dos respectivos escrivães e demais serventuários, permitindo a nomeação dos mesmos, no entanto, sem maiores formalidades, para outros cargos, criados pelo decreto-lei, na estrutura da Justiça local do Distrito Federal. Os juízes substitutos foram colocados em disponibilidade, pelo tempo restante dos respectivos mandatos (Decreto-Lei 327, de 14 de março de 1938). Os juízes seccionais não aproveitados em outros cargos acabaram sendo colocados em disponibilidade (Lei 499, de 28 de novembro de 1948). O envolvimento brasileiro na luta contra o nazifacismo impulsionou as mobilizações democráticas no País. O Estado Novo desabou, pois se viu numa incoerência, afinal, o Brasil lutara na guerra em favor das democracias, logo, não fazia sentido manter-se como ditadura. A pressão crescente levou o governo a marcar para 2 de rezembro de 1945 a realização das eleições gerais. Em meio a tentativa de se manter mais tempo no poder, Vargas assinou o Decreto-Lei 7.474, de 18 de abril de 1945, que concedia anistia a crimes políticos cometidos desde 1934 até a sua promulgação, como segue: 160 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012 Art. 1º. É concedida anistia a todos quantos tenham cometido crimes políticos desde 16 de julho de 1934 até a data da publicação deste decreto-lei. [...] Art. 2º. A reversão dos militares, beneficiados por esta lei, aos seus postos, ficará dependente de parecer de uma ou mais comissões militares, de nomeação do Presidente da República. [...] Art. 5º. Esta lei entrará em vigor na data da sua publicação. Contudo, as punições aplicadas aos participantes da Intentona Comunista não foram alcançados pelo referido decreto. Subentende-se que isso tenha ocorrido porque os integrantes da intentona lutavam por um sistema comunista, e o Comunismo seria a última coisa que Vargas aceitaria, até porque, quando saiu do governo em 1945, já planejava o retorno ao poder. Manteve-se, então, no cenário político sendo eleito senador pelo PSD gaúcho. Com fundamento no Decreto 7.474, o autor peticionou à Aeronáutica, requerendo anistia para voltar à atividade, na graduação de Terceiro Sargento, e, em seguida, a reforma, uma vez que sua permanência nos quadros não mais interessava àquela força. A comissão avaliadora assim respondeu ao pedido: A Comissão de Reversão dos militares da aeronáutica, anistiados, estudando os processos, julga-se incompetente para analisá-los sob o ponto de vista jurídico. Contudo, opina pelo indeferimento das petições, entendendo que, sob o ponto de vista técnico-profissional, não convém à F.A.B.7 A oposição pressionou até que, em 30 de outubro de 1945, Vargas foi intimado pelos militares a renunciar. A presidência da República passou interinamente ao ministro do STF, José Linhares. Com o fim do governo Vargas, tem início o governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951). Esse, logo que assumiu o governo, convocou uma Assembleia Constituinte e foi então promulgada, em 1946, a Nova Constituição brasileira, que trouxe como garantia a autonomia dos Poderes MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B. 161 Legislativo, Executivo e Judiciário. A nova Carta Constitucional criou o Tribunal Federal de Recursos, com a competência originária de julgar mandados de segurança contra ato de ministro de Estado, do próprio tribunal ou seu presidente e, como competência recursal, julgar as causas decididas em primeira instância quando houvesse interesse da União ou crimes praticados contra seus bens, serviços e interesses. Com a efetiva instalação do TFR, que se deu após a edição da Lei 33, de 13 de maio de 1947, o STF deixou de ser o tribunal de apelação das causas de interesse da União, assumindo o TFR tal atribuição. Em meio ao período da Guerra Fria, Dutra dá a seu governo um caráter liberal e alinhado ao dos Estados Unidos. Afinal, depois da Segunda Grande Guerra, os EUA se fortaleceram e passaram a impor sua hegemonia por toda a América Latina. Em 1951, Getúlio Vargas voltou ao poder, só que dessa vez pelo voto direto, permanecendo no governo até 24 de agosto de 1957, quando, ao verificar a impossibilidade de se manter, suicidou-se. A morte de Vargas causou imensa comoção nacional. Nas eleições presidenciais de 1955, Juscelino Kubitschek saiu vitorioso, com posse garantida pelas Forças Armadas, mas seu governo foi marcado pela estabilidade política e a manutenção da democracia, tendo surgido como lema de seu governo a frase “Cinquenta anos de progresso em cinco anos de governo: “50 em 5”. A campanha para a sucessão presidencial transcorreu sem maiores problemas. Após as eleições de 1960, Jânio Quadros assumiu o governo em janeiro de 1961 e apresentou uma forma original de governar. Desconsiderando a orientação ideológica dos países com os quais estabeleceu relações comerciais, adotou uma posição independente, realizando transações comerciais tanto com países capitalistas como socialistas e ainda reatou relações diplomáticas com diversos países do bloco socialista. Essa postura fez com que a ala conservadora do governo desconfiasse do presidente e, em 25 de agosto de 1961, tentando uma manobra política, Jânio Quadros renunciou à presidência. Em seu lugar ficou João Goulart, vice-presidente da República. Muito se especulava a respeito de Jango, porque fora ministro do Trabalho no governo Vargas e porque se acreditava que estivesse associado ao comunismo. Algumas medidas inconstitucionais foram sendo tomadas pela Congresso Nacional para evitar a posse de Jango, mas, apesar das manifestações contrárias a ele, sua posse foi assegurada com base na Constituição de 1946, tendo assumido a presidência em 1º de setembro de 1961. 162 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012 Assumiu o governo com poderes limitados pelo Congresso Nacional, mas preocupado com a possibilidade de uma guerra civil, Jango aceitou o que lhe fora imposto e acabou cedendo às mudanças que lhe foram propostas. Em 15 de dezembro de 1961, o Senado Federal assina o Decreto-Lei 18, que concede nova anistia, prevendo, em seu art. 1º, alínea “c”, in verbis: “Todos os servidores civis, militares e autárquicos que sofreram punições disciplinares ou incorreram em faltas ao serviço no mesmo período, sem prejuízo dos que foram assíduos.” Com base nesse dispositivo, ingressou o autor com mandado de segurança, que, em decisão de 16/8/1965, lhe concedeu a reversão ou a reforma, deixando, contudo, a decisão a critério da autoridade militar, que entendeu pela reforma na graduação de soldado-aluno e não na de TerceiroSargento, como determinava a lei: Em tais condições, meu voto é para que se conceda a segurança, a fim de que, garantida a aplicação do Decreto legislativo nº 18 ao impetrante, a autoridade examine a sua situação, diante do curso em que se encontrava, e se lhe deve aplicar a reversão ou a reforma. (Grifos no original).8 Argumentou o autor que, nesse momento, a anistia foi idealizada pelo legislador na sua ampla conceituação de perdão, restauração de direitos e justiça, mas não houve aplicação eficaz da mesma no seu pleito. Nesse momento a Justiça Federal já havia sido recriada através do Ato Institucional 2, de 27 de outubro de 1965, que, alterando dispositivos da Constituição Federal de 1946, restabeleceu a Justiça Federal de primeiro grau, prevendo, porém que os primeiros juízes federais e juízes federais substitutos seriam nomeados pelo presidente da República. As propostas de Reformas de Base de Jango acentuaram ainda mais a desconfiança das elites empresariais, burocráticas e militares, que passaram a tramar um golpe contra o presidente. Os opositores argumentavam que as medidas do governo colocavam em risco as bases do capitalismo no País, e o poder hegemônico dos Estados Unidos, no continente. A tensão social atingiu seu auge em 31 de março de 1964, com a deposição de João Goulart. A partir desse momento, o Brasil ingressou em um longo período de obscurantismo, em que as arbitrariedades e todo tipo de violência venceram a democracia, pois teve início a Ditadura Militar. MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B. 163 Em 1966, com a Lei 5.010, de 30 de maio, foi regulamentada a organização da recriada Justiça Federal brasileira, com cada um dos estados, territórios e o Distrito Federal constituindo uma Seção Judiciária (sua primeira instância), sendo agrupados em cinco regiões judiciárias. Em 14 de fevereiro de 1975, ingressou então Álvaro Moreira com Ação Ordinária contra a União Federal requerendo fosse reformado na grauação de Terceiro-Sargento; gratificação de tempo de serviço na base de 25% do soldo; gratificação de curso na base de 10%; pagamento dos atrasados a partir do Decreto-Lei 18/1961 e honorários. Presume-se que o autor esperou longo tempo para ingressar em juízo, pois, nessa época, o País vivia sob o comando do General Ernesto Geisel, em cuja gestão se iniciou o processo de abertura política, em um estilo que o general definiu como “lento, gradual e seguro”. Talvez por isso, Álvaro tenha criado coragem para ingressar com a ação, pois, afinal, passou-se a ter esperança de que a Ditadura Militar não era mais invencível. A sentença foi proferida em 4 de julho de 1983, em meio ao governo do último general-presidente, João Baptista Figueiredo, que tinha por tarefa dar continuidade ao lento processo de abertura política. O presidente encaminhou para o Congresso Nacional um projeto de anistia restrita e parcial, que foi repudiado por todas as correntes políticas que lutavam pela anistia ampla, geral e irrestrita. Aos poucos, porém, o alcance da lei de anistia foi ampliado. A sentença concedeu em parte o pedido, por entender que não havia amparo legal para a pleiteada gratificação de curso. No mais, foi condenada a União Federal a proceder à reforma do autor no posto de Terceiro-Sargento, pagamento de gratificação de tempo de serviço ao percentual de 25%, juros e correção monetária. Foi determinada a expedição de Precatório em 4/11/1988, com valores pagos em 17/4/1996. Contudo, houve expedição de Precatório suplementar com cálculos de correção referente ao lapso temporal entre a expedição e o efetivo pagamento. Nesse último, a União Federal interpôs Agravo de Instrumento contra despacho que determinou sua expedição, Agravo Regimental contra a decisão que o julgou improcedente e, ainda, Recurso Especial. Todos os recursos invocavam divergência jurisprudencial quanto à possibilidade de formação de precatório complementar com fins de correção monetária e juros. Todos os recursos foram inadmitidos, e o precatório suplementar teve finalmente seu valor levantado em 2001. 164 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012 Conclusão O presente trabalho apresentou um panorama político da República Federativa do Brasil, num longo período compreendido entre 1935 e 2001. Esta análise mostrou que, durante grande parte da história política do País, a Justiça ficou à mercê das arbitrariedades de grupos que estavam no poder. Em alguns momentos, o Princípio da Independência dos Poderes (idealizado por Montesquieu) ficou esquecido, tendo o Poder Judiciário, com sua função precípua de garantir a estabilidade e a ordem social, servido como mecanismo de controle do governo. A desvirtuação funcional do Judiciário serviu como garantia da permanência de políticas e ideologias autoritárias e acabou impedindo que a oposição pudesse agir de modo a combater efetivamente aquele sistema, com consequências em todos os segmentos da sociedade. Ficou nítido também que os militares tiveram um papel de extrema relevância nesse contexto histórico. Grande parte dos acontecimentos que mudaram o rumo do Brasil teve a liderança ou a participação significativa desse grupo. Pudemos observar as relações de poder ao longo da história brasileira e as mudanças conceituais de anistia em cada período. Também foram registrados os momentos em que o acesso à Justiça se tornou mais concreto ao jurisdicionado que buscava reparação contra o governo militar. Esperamos ter atingido o nosso objetivo, que neste breve trabalho tentou demonstrar como é farto o conteúdo da memória judicial e sua importância para os estudiosos das diversas áreas que nesse acervo buscarem material para suas pesquisas científicas. MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B. 165 Notas 1 PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1945. PENNA, Lincoln de Abreu. Uma história da República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. 2 PEIXOTO, Alzira Vargas do Amaral. Getúlio Vargas: meu pai, 2. ed. 1a. impr. São Paulo: Globo, 1960. LEVINE, Robert M. Pai dos pobres?: o Brasil e a Era Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. FAUSTO, Boris. Pequenos ensaios de história da República (1889-1945). Cadernos Cebrap, São Paulo, n. 10, 1973. Dados da petição inicial, retirados do PRC 97.02.20056-3, fls. 9. 3 4 5 6 7 8 Proc. AO 4.707.117, fl. 58. Idem. Referências AMARAL, Ignácio M. Azevedo do. Ensaios sobre a revolução brasileira: 1931-34. Rio de Janeiro, 1963. PEIXOTO, Alzira Vargas do Amaral. Getúlio Vargas: meu pai. 2. ed., 1a reimpr. Porto Alegre: Globo, 1960. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 1995. PENNA, Lincoln de Abreu. Uma história da República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. FAUSTO, Boris. Pequenos ensaios de história da República (1889-1945). Cadernos Cebrap, São Paulo, n. 10, 1973. LEVINE, Robert M. Pai dos pobres?: o Brasil e a Era Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. MONTESQUIEU. O espírito das leis. Trad. de Luiz Fernando de Abreu Rodrigues. Curitiba: Juruá, 2006. 166 PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1945. VARGAS, Getúlio. Diário. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. PROCESSO PRC 97.02.20056-3 – TRF2 – Álvaro Moreira versus União Federal. MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012 O Juízo dos órfãos de Porto Alegre como fonte para a história social* The Juízo dos Órfãos of Porto Alegre as a source for social history José Carlos da Silva Cardozo** Resumo: O Juízo dos Órfãos foi uma importante instituição do estado que zelou pelos direitos e deveres dos menores de idade. Na capital do Rio Grande do Sul, esse juizado vigorou de 1806 a 1933. Nesse amplo período, cuidou de todas as crianças, adolescentes e jovens que a ele foram apresentados, promovendo soluções para os problemas enfrentados por esses jovens integrantes daquela sociedade. Este texto busca apresentar as potencialidades da documentação produzida por esse órgão jurídico como fonte para a história social. Abstract: The “Juízo dos Órfãos” was an important state institution that cared for the rights and duties of minors. In the capital of Rio Grande do Sul, this court lasted from 1806 to 1933. In this long period, took care of all children, adolescents and young adults who were presented to him by promoting solutions to the problems faced by these young members of this society. This text aims to show the potential of the documentation produced by this legal body as a source for social history. Palavras-chave: história social; juízo dos Órfãos; fonte. Keywords: social history; “Juízo dos Órfãos; source. Reflexões apresentadas no I Seminário do Centro de Memória Regional do Judiciário, realizado na Universidade de Caxias do Sul (UCS), em Novembro de 2011. ** Historiador pela Unisinos. Cientista Social pela UFRGS. Doutorando em História Latino-Americana pela Unisinos. Professor concursado na Secretaria de Educação do RS. Editor da Revista Latino-Americana de História e da Revista Brasileira de História & Ciências Sociais. Secretário da Anpuh/RS. Bolsista da Capes/MEC. * MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21 167 Introdução A conhecida “revolução francesa da história” promovida pelos historiadores alinhados em torno da revista Annales d’ Historie Économique et Sociale,1 lançada em 1929, liderada pelos editores Marc Bloch e Lucien Febvre, alterou o modo de pensar e fazer os estudos históricos, então vigentes no início do século XX. (BURKE, 1997). Contrapondo-se a um modelo de produção baseado na escola alemã rankeana, fundamentada na narrativa e na coleta de documentos e, a partir das fontes, questionadora de episódios históricos que envolvessem uma figura eminente (rei, clérigo, ministro, etc.), a revista Annales chamou a atenção da academia para novas possibilidades de pesquisa em história. Se antes o acúmulo de documentos e a decodificação desses trariam questionamentos e indagações sobre a história, esse grupo, ao contrário, primava pelos porquês, pelos questionamentos prévios para depois ir procurar documentos que permitissem encontrar respostas às indagações. Os editores da revista acreditavam que somente poderia ter respostas o pesquisador que soubesse quais eram as perguntas. Essa mudança de postura metodológica, bem como de crítica aos documentos, em que se contrapunham à ideia de que somente os documentos oficiais do Estado eram dignos de credibilidade, oportunizou a ampliação das fontes e locais de pesquisa. O historiador passaria de “servo” da coleta de documentos a sujeito da resolução de questionamentos, desenvolvendo uma históriaproblema, amparado numa documentação cada vez mais diversificada. Mas não foi somente essa a contribuição legada pelos Annales: o aumento das possibilidades de investigação trouxe a expansão do sujeito pesquisado. Antes de Marc Bloch e Lucien Febvre, os estudos históricos centravam-se, como mencionado, em grandes fatos ou grandes personalidades; depois, houve a transposição para todos os sujeitos e fatos, sem menosprezo ou qualificação de mais ou menos importante, rico ou pobre – todos os seres humanos poderiam ser objeto de investigação. Peter Burke, reconstituindo o movimento dos Annales, apresenta as três ideias que orientaram a revista e, consequentemente, a produção desses novos historiadores. São elas: Em primeiro lugar, a substituição da tradicional narrativa de acontecimentos por uma história-problema. Em segundo lugar, a história de todas as atividades humanas e não apenas história política. Em terceiro lugar, visando completar os dois primeiros 168 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012 objetivos, a colaboração com outras disciplinas, tais como a geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a lingüística, a antropologia social, e outras tantas. (BURKE, 1997, p. 11-12). O Brasil não ficou alheio a esse fenômeno, tornando-se um dos primeiros países a receber a nova orientação promovida pelos Annales. Fernand Braudel, discípulo de Lucien Febvre, veio ao País na década de 30 (séc. XX), juntamente com o antropólogo Claude Lévi-Strauss e outros intelectuais franceses, para contribuir na fundação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) na recém-criada Universidade de São Paulo (USP). Desde essa data, a academia brasileira manteve estreitos laços com os franceses, em especial, com os historiadores ligados aos Annales. O movimento dos Annales oportunizou aos historiadores da época, de forma geral, investigarem outros temas e objetos que a antiga história não possibilitava. As novas abordagens, as novas metodologias, a descoberta de novas fontes, juntamente com as de que já dispunham, foram trazendo questões sobre o passado, fontes para responder às indagações que fossem surgindo. Dessa forma, “o uso das fontes tem uma história porque os interesses dos historiadores variam no tempo e no espaço, em relação direta com as circunstâncias de suas trajetórias pessoais e com suas identidades culturais”. (JANOTTI, 2011, p. 10). A história alcançou sua dinamicidade. Assim, temas como alimentação, vida privada, vestuário, morte, crime, família, infância, gênero, entre outros, foram se tornando questão de pesquisa para uma grande quantidade de pesquisadores ao redor do mundo. Para realizar as investigações, uma quantidade cada vez maior de vestígios históricos, de todas as naturezas e procedências, foi sendo utilizada.2 Contudo, dentre os vários temas e fontes que foram pesquisados ao longo do tempo, alguns continuam sendo campo fértil de investigação seja pelas poucas pesquisas, seja pelas potencialidades que a investigação com a documentação oportuniza. Em se tratando de história social, uma fonte pouco explorada é a da documentação produzida pelo Juízo dos Órfãos. 3 Dessa forma, apresentaremos as potencialidades que a documentação proveniente desse órgão jurídico pode trazer ao pesquisador. MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21 169 O Juízo dos Órfãos Antes de adentrar na documentação propriamente, é necessário conhecermos a história da instituição. O Juízo dos Órfãos foi uma instituição jurídica que teve sua origem em Portugal, em decorrência das Ordenações Filipinas, que formaram o código jurídico do Império Luso a partir de 1580. A criação desse juízo deveu-se à necessidade de definir normas que regulamentassem a proteção dos menores de 25 anos de idade,4 no que competia à administração própria e à de seus bens. O cuidado e a administração do órfão, por parte de um adulto legalmente constituído, eram necessários em vista dos processos de separação de bens (partilha) ou mesmo de herança em virtude do falecimento do pai de um menor. Numa contingência desse tipo, o adulto ficaria responsável por representar os interesses do menor nesse processo que, em certas circunstâncias, poderia se transformar numa ação que desembocasse em litígio.5 A necessidade de haver um adulto como responsável por um menor também poderia vir pela orfandade completa em que esse menor poderia encontrar-se. Assim, nesse primeiro momento, o Juízo dos Órfãos deteve sua atenção naqueles menores de idade que possuíssem bens ou fossem descendentes de família de posses e/ou de prestígio social. O Juizado dos Órfãos, como também era chamado, foi igualmente instalado na colônia portuguesa na América e, até o século XVIII, o cargo de Juiz dos Órfãos era exercido pelo Juiz Ordinário,6 indivíduo que não era, necessariamente, Bacharel em Direito. Porém, com o aumento da população na colônia, foi regulamentado, em maio de 1731, o cargo de Juiz dos Órfãos no Brasil. De forma semelhante ao que havia ocorrido na metrópole, esse juízo cuidou, num primeiro momento, dos menores que pertenciam a famílias da elite nas questões relacionadas à posse de bens, como partilhas, inventários e heranças. Da mesma maneira, preocupava-se com a guarda desses menores, que estavam sendo encaminhados ao Juizado por conta da falta do pai ou de outro responsável, gerando a necessidade de nomeação de um adulto legalmente constituído para zelar pelo órfão e pelos seus bens. Ao longo dos anos, essa instituição judiciária foi ampliando sua ação, direcionando sua atenção também para menores não pertencentes a famílias da elite. No caso do Brasil, especialmente, isso ocorreu a partir da formulação das leis antiescravistas. No ano de 1871, a Lei do Ventre Livre instituiu que as crianças nascidas de ventre escravo, a partir daquele ano, seriam 170 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012 consideradas ingênuas e não mais escravas, ficando, assim, livres do jugo senhoril e, em 1888, pela promulgação da Abolição, houve a libertação por completo dos escravos de seus antigos senhores. (CARDOZO, 2012). Com essas e outras medidas que visavam à lenta liberdade do cativeiro, houve a necessidade de o contingente de escravos e ex-escravos ser direcionado para o trabalho assalariado. (CHALHOUB, 2007; MOREIRA, 2009). Houve, também, a necessidade de organizar a sociedade brasileira, composta por uma população heterogênea, que era constituída de pessoas livres, escravas ou ex-escravas. Além disso, como até então isso não havia ocorrido, uma nova ética do trabalho deveria ser introjetada nessa massa de homens e mulheres, uma nova forma de ser e estar deveria ser adquirida pela população brasileira. (CHALHOUB, 2008). Dessa forma, o Juízo dos Órfãos era o tribunal em que se tratava e decidia tudo o que dizia respeito a um menor de idade ou a pessoas incapacitadas, como os pródigos (pessoas que gastam seu capital ou destroem seus bens; Ord. Fil. Liv. 4º, Tit. 103 § 6º), os furiosos (pessoas com as faculdades mentais debilitadas; Ord. Fil. Liv. 4º, Tit. 103), os doentes graves (pessoas impossibilitadas de administrar seus bens) e os indígenas. (Ord. Fil. Liv. 1º, Tit. 88). Pela forma da lei vigente, essas pessoas, embora atingissem a maioridade legal, necessitavam de um adulto (o curador) legalmente constituído por esse juízo como seu representante e responsável.7 Esse juizado era composto pelos seguintes e principais figuras: o juiz, o curador-geral, o escrivão, o tesoureiro e as partes interessadas; mas também havia outros membros secundários,8 que atuavam nesse juízo, como: o contador, o avaliador, o partidor, o oficial de Justiça, o porteiro de auditório9 e o ajudante de escrivão. As potencialidades Muitos historiadores recorreram a essa instituição com a finalidade de estudar os inventários post-mortem10 que eram produzidos pelo juizado. Contudo, a riqueza dessa fonte documental, de certa forma, eclipsou outros documentos que a instituição produzia, inclusive os do próprio Juízo dos Órfãos como instituição do Judiciário. Os processos judiciais do Juízo dos Órfãos de Porto Alegre estão armazenados e disponíveis para consulta pública no Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (Apers). Nessa instituição, podemos encontrar resguardados processos de Tutela, Rapto de Menor, Busca e Apreensão de MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21 171 Menor, Licença para Casamento, Suplemento de Idade, Exame de Sanidade e Declaração de Pobreza. Sob o registro de Tutela, estão armazenados os casos que dizem respeito à guarda de menores. As denúncias de rapto de menores de idade por namorados/noivos, feitas por adultos, encontram-se arquivadas sob o título Rapto de Menor. Os processos de Busca e Apreensão de Menor registram casos envolvendo a procura por menores que, tendo sido entregues, por decisão judicial, à guarda de uma pessoa, com esta não se encontravam. Os autos de Licença para Casamento tratam dos casos daqueles menores de idade que desejavam casar e que, não podendo contar com um adulto responsável que lhes desse a permissão para tal, recorriam do Judiciário, que lhes concedia o aval para o casamento e, consequentemente, para sua emancipação. Os processos arquivados sob o título Suplemento de Idade – na época mais solicitados por meninos – tratam de pedidos de investigação para a obtenção de emancipação em virtude da realização de trabalho ou estudos. Os autos sob o título Exame de Sanidade serviam para complementar as avaliações contidas nos processos de Suplemento e arrolavam questionamentos sobre a capacidade de os menores se administrarem sozinhos. Por fim, os autos sob o registro de Declaração de Pobreza que tratam dos casos em que havia a recorrência de um adulto ao Judiciário para que fosse ratificada sua condição de pobreza e falta de recursos para continuar mantendo a guarda de um menor ou mesmo para demonstrar a inexistência de bens a serem inventariados. Essa documentação pode contribuir para elucidar várias questões sobre a sociedade, o Judiciário, a família ou mesmo sobre os pequenos atores sociais – as crianças, os adolescentes e jovens (fontes que acreditamos são privilegiadas por permitirem que se perceba os pequenos atores sociais em relação com suas famílias, conhecidos, bem como com as instituições do Estado, como a polícia ou propriamente com o Judiciário). Em virtude dos limites textuais, privilegiaremos, a seguir, o primeiro tipo de processo produzido por aquele órgão do Judiciário – os autos de tutela – para revelarmos as potencialidades que uma única fonte do Juízo dos Órfãos pode trazer aos pesquisadores. A tutela do menor Wander Na terça-feira, dia 6 de fevereiro de 1917, o senhor Luiz Fernando Kersting apresenta ao 1º Cartório do Juízo dos Órfãos de Porto Alegre o pedido para tutelar o menor Wander,11 nascido em 20 de setembro de 1905, afirmando que a mãe do menino, Carlinda Machado Pires, viúva de 172 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012 Emilio Castellar Pires, no dia 11 de maio de 1915, havia lhe entregado o menor, com a idade de 9 anos, a fim de que esse pudesse receber instrução primária e ser educado em sua companhia. O senhor Luiz Fernando Kersting foi escolhido como responsável pela mãe por ser pessoa de sua confiança e padrinho de crisma de Wander. Dessa forma, desde maio de 1915, Luiz tinha sob sua responsabilidade Wander. O pedido de tutela do menor por Luiz Fernando Kersting baseia-se no fato de que, após um ano do ocorrido, esse não tinha conhecimento do paradeiro da mãe do menino (vizinhos dela, residentes na Avenida “Pothoff12”, haviam informado que ela havia se suicidado), o que justificava a necessidade de formalizar tal pedido. No dia seguinte, o juiz, primeiro suplente em exercício do Juízo dos Órfãos, Doutor Manoel Lobato, recebeu a petição inicial e autorizou a tutela do menor Wander a Luiz F. Kersting, a qual foi lavrada no dia 8 de fevereiro de 1917, apenas dois dias após a abertura do processo. Tal rapidez deve-se ao fato de o juiz não ter solicitado qualquer investigação ou maiores esclarecimentos sobre a veracidade das informações alegadas pelo suplicante a tutor. Até o dia 30 de julho de 1919, tudo indicava que aquele processo, de dois anos anteriores, estava esquecido nos arquivos do juizado e na memória dos envolvidos. Não mais seria revisto, pois a decisão sobre o futuro do menor, aparentemente, havia sido correta; o caso de Wander não retornaria ao Juizado dos Órfãos, até aquela quarta-feira. Naquele dia, a mãe de Wander, Carlinda Machado Pires, dada como morta, apresentou solicitação para ser incluída no processo de tutela de seu filho, afirmando morar em Porto Alegre, na Rua Conde de Porto Alegre,13 n. 93, e trabalhar como doméstica, para, logo em seguida, justificar a atenção do juízo, alegando haver sabido que seu filho legítimo, tutelado pelo senhor Luiz F. Kersting, encontrava-se “depositado”14 na casa da mãe desse senhor, em Triunfo, trabalhando na venda de quitandas. Carlinda afirmava que toda a situação envolvendo seu filho havia se dado em vista da epidemia de gripe espanhola que atingira Porto Alegre, doença que, segundo ela, havia contraído. Naquele momento, com a saúde restabelecida, queria que o Juízo dos Órfãos destituísse Kersting da tutela de seu filho, já que ela era a tutora nata. Curioso é o fato de que a mãe suicida tivesse aparecido somente quatro anos depois desejando ter seu filho de volta, com a controversa alegação de MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21 173 que seu afastamento se dera devido à gripe espanhola, uma vez que essa assolara a capital no fim do ano de 1918 e que a solicitação do senhor Luiz F. Kersting se reportava a 1917. No dia seguinte, o Juiz Distrital da Vara dos Órfãos, Doutor Valetim Aragon, pediu um parecer ao Curador-Geral de Órfãos (promotor público) sobre o caso envolvendo o menor Wander. Em 9 de agosto, o PrimeiroCurador-Geral Doutor João Carlos Machado apresentou vistas sobre o processo, concordando com a solicitação da mãe, decidindo que Wander deveria retornar à sua companhia. Nesse mesmo dia, o Juiz Dr. Valetim Aragon intimou Luiz F. Kersting a se pronunciar sobre o que Carlinda afirmara na petição ao juizado. No dia 16 do mesmo mês, Luiz Fernando Kersting apresentou sua argumentação, afirmando que não a fazia para se manter como tutor do menor, mas para provar que Carlinda Machado Pires não tinha quaisquer condições de cuidar de Wander e de outro filho que ela tinha em sua companhia, alegando que ela estava interessada no pouco dinheiro que ele havia depositado para o menino no cofre do Tesouro do Estado. Afirma, ainda, que a mãe do menor era muito pobre quando lhe confiara o menino e que, junto com esse, entregara-lhe uma declaração datilografada e com registro de firma, em 11 de maio de 1915, na qual renunciava “para sempre”15 a todo e qualquer poder sobre o menor, que poderia ficar em companhia de Luiz F. Kersting ou de sua mãe, Idalina Kersting. O então tutor menciona ainda que a mãe de Wander já havia sido detida no 4º Posto Policial (São João) por desordem, e que ela, depois da morte do marido, vivia da prostituição. Luiz F. Kersting, embasado na lei, utilizou o art. 395 do Código Civil brasileiro (1917), em que se apresentam os casos de perda do pátrio poder, quando o pai ou a mãe incorrer em seu inciso 3º, que diz: “Que(m) praticar atos contrários à moral e aos bons costumes”. Termina afirmando que, devido ao que se constatara quanto à situação da mãe do menor, configurava-se caso de retirada do pátrio poder, e que Wander, no momento, estava na casa de sua mãe, Idalina Kersting, que lhe ensinava “salutares exemplos de honra, amor pelo trabalho e bons exemplos”, que o menino estudava e era “bom trabalhador”, comprovando-se esse fato com a anexação da foto do menino no processo. Afirmava que ele estava estudando com o Professor Marcos M. Coelho desde julho de 1915 e que, se fosse viver com Carlinda, receberia maus exemplos, que iriam perverter o menino, fazendo dele um “gatuno ou assassino”.16 174 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012 O Juiz dos Órfãos Dr. Valentim Aragon pede parecer ao CuradorGeral, que, em 18 de agosto de 1919, requer que sejam intimadas quatro testemunhas, três homens com 58, 33 e 38 anos e uma mulher de 60 anos, para que falassem sobre o procedimento de Carlinda Machado Pires. Os mais velhos, a mulher de 60 e o homem de 58 anos, que viviam com ela, falaram a favor de Carlinda, descrevendo-a como pessoa honesta e trabalhadora; já os outros dois a descreveram como mulher dada à prostituição. Como os testemunhos eram contraditórios, não ajudaram muito o juiz a tomar uma clara decisão. Requereu novamente, em 26 de agosto, que o Curador-Geral de Órfãos se pronunciasse. O processo foi transferido para outro promotor, o Doutor Lúcio Coimbra que, no dia 18 do mês seguinte, devido à vida “imoral da mãe do menor”,17 estava de acordo com a aplicação do art. 395 sobre a perda do pátrio poder da mãe do menino. Dessa forma, em face do argumento do Curador-Geral, o Dr. Valentim Aragon encaminha o processo para parecer do Juiz da Comarca, Dr. Augusto Salgado, que, em 3 de dezembro, apresentou parecer contrário ao do Curador-Geral, alegando ser ilegal o processo de tutela do menor Wander, já que a mãe dele não perdera em juízo o pátrio poder sobre seu filho. Manda, então, que o menor seja entregue a ela até que essa perca legalmente a responsabilidade sobre seu filho. Contudo, Luiz Fernando Kersting não aceitou a decisão do Juiz da Comarca de destituí-lo do cargo de tutor do menino Wander e apelou realizando Agravo18 ao Superior Tribunal do Estado, com base no Código do Processo Civil e Comercial do Estado (1908), que, em seu art. 1.009, inciso 26, permite esse tipo de ação no intuito de reverter a situação de destituição ordenada pelo Juiz da Comarca, Dr. Augusto Salgado. No dia 26 de dezembro, foi feita a minuta de agravo em que Luiz F. Kersting, com toda a sensibilidade e orientação, mesmo não apresentando o nome de um advogado, recuperou toda a trajetória do processo apontando vários motivos para ser revista a decisão do Dr. Augusto Salgado a seu favor, desde a incorporação do processo de destituição de tutela, dentro do processo de requisição de tutela (fato que contraria o código mencionado anteriormente, uma vez que proíbe que se misturem tipos de ação), passando pelas testemunhas favoráveis à Carlinda, as quais moravam com ela. Para sensibilizar os juízes do Superior Tribunal, Luiz F. Kersting afirmou que, por quatro anos, a mãe do menino não o havia procurado e mesmo não se fizera presente na vida de seu tutelado; além do mais, vivia uma “vida MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21 175 desregrada” e sem a “moralidade precisa”19 para zelar por uma criança que estava sendo educada na escola e para a vida, por meio do trabalho e da companhia de uma mulher idosa, com comportamento íntegro para educar uma criança. No dia 9 de janeiro de 1920, o Superior Tribunal, presidido pelo Dr. A. Rocha, pronuncia-se sobre o caso em tela, e os juízes, não por unanimidade, já que os votos dos Drs. Amado Fagundes e Lucas Álvares foram votos vencidos, confirmam as decisões anteriores do PrimeiroCurador-Geral de Órfãos e do Juiz da Comarca a favor da mãe do menor Wander, Carlinda Machado Pires, por ela não ter perdido o pátrio poder por ação judicial para o senhor Luiz Fernando Kersting; dessa forma, o menor deveria ser devolvido a seu poder. No entanto, o Superior Tribunal fez uma importante ressalva quanto à entrega do menor: essa deveria ser sustada até que os procedimentos da mãe fossem analisados mais detalhadamente pelo Ministério Público, por ela já ter passagem pela polícia e pelas acusações de viver a prostituir-se, para, só assim, ser confirmada a entrega do menor ou a definitiva destituição do pátrio poder de Carlinda Machado Pires. O processo tramitou por alguns meses, já que a mãe, quando intimada, não havia sido encontrada, até que, em 3 de junho de 1920, o tutor do menor, Luiz F. Kersting, a mãe dele, Carlinda Machado Pires, e o CuradorGeral Waldemar Vasconcellos assinam o processo para confirmarem a ciência de todos sobre o teor da decisão do Superior Tribunal do Estado. Contudo, depois dessa data, o processo não foi levado adiante, tendo sido arquivado. Talvez a mãe tenha “sumido”, como já o fizera, tenha desistido de dar continuidade ao processo ou mesmo tenha ficado com medo da investigação que o Ministério Público faria sobre sua conduta social e sua profissão. O certo é que tudo ficou como antes da petição de Carlinda, pois Wander, perto de seus 15 anos, ao findar o processo, continuou sob a tutela de Luiz F. Kersting. Conclusão A documentação produzida pelo Juízo dos Órfãos é muito rica pelas informações que nela estão contidas (desde nomes, idades, motivos e decisões e até mesmo fotografias, bilhetes e páginas de jornais), revelando um universo documental, que permite ao pesquisador do social se deslumbrar com informações variadas possibilitando reconstruir tanto a história de pessoas 176 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012 oriundas da elite quanto de grupos populares. Além disso, a documentação oportunizou realizar pesquisas utilizando a abordagem qualitativa e quantitativa; o caso do menor Wander é um dentre centenas, em que crianças, adultos e instituições estão em constante interação, possibilitando ao pesquisador desvelar inúmeras questões sobre o passado. Ana Scott e Maria Bassanezi, investigando a criança imigrante italiana em São Paulo, exploraram igualmente o Juízo dos Órfãos e revelam que essas fontes apresentam aspectos qualitativos que se referem não só às relações entre pais e filhos, mas também entre marido e mulher, sogros, bem como indicam relações de adultério e de abandono do lar; enfim, todo o universo em que viviam muitas das crianças. (2005, p. 170). Essa documentação privilegia crianças e adultos em relação com o Judiciário e são, na maior parte, casos conflitantes; contudo, sabemos que “os conflitos sociais muitas vezes revelam tanto sobre a organização social de um grupo quanto o bom funcionamento de suas supostamente bem equilibradas normas”. (FONSECA, 2006, p. 45). Observa-se que o estudo com base nesse tipo de fonte histórica, em muitos casos, é trabalhoso, pois são poucos os processos que estão datilografados; a grande maioria constitui-se de registros textuais manuscritos em tinta ferrogálica, a qual enfraquece, ou mesmo desaparece, ao passar dos anos e, quando usada em excesso, provoca uma escrita borrada. Os processos estão costurados com barbante e, em alguns casos, presos com grampos metálicos, que enferrujam e marcam os documentos. Ademais, não podemos nos esquecer de que esses “documentos do passado não foram elaborados para o historiador, mas para atender às necessidades específicas do momento” (BACELLAR, 2011, p. 69); dessa forma, cabe ao pesquisador saber quais perguntas pode fazer para, então, recorrer às fontes, como o acervo documental produzido pelo Juízo dos Órfãos de Porto Alegre. O conjunto documental produzido pelo Juízo dos Órfãos possibilita estudar as crianças, suas famílias e a relação dessas com o Judiciário, o que permite investigar a criança e a família imigrantes (CARDOZO, 2010a), a MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21 177 própria instituição, por meio dos operadores do Direito (CARDOZO, 2010b), a relação dos menores de idade com os adultos (CARDOZO, 2009a), uma época (CARDOZO, 2009b) ou mesmo uma problemática específica, como a da opção dos adultos pela tutela e não pela adoção. (CARDOZO, 2011). Trata-se, enfim, de documentação que pode proporcionar novas descobertas sobre o passado das crianças, das famílias, da sociedade e do Judiciário. 178 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012 Notas A revista, ao longo do tempo, teve alterado seu nome; atualmente, é:”Annales: économies, sociétés, civilisations”. 1 2 Um balanço sobre fontes e sua utilização na pesquisa história pode ser encontrado em Pinsky (2011) e Pinsky e Luca (2012). 3 O termo órfão não deve ser entendido estritamente, pois pode representar menores órfãos de pai e mãe como também os órfãos de pais vivos, ou seja, poderia representar aqueles que tinham seus progenitores vivos. 4 É necessário esclarecer que, somente depois da Independência do Brasil, com a Resolução de 31 de outubro de 1831, é que a idade de 21 anos foi definida como idade-limite da menoridade de um filho, ou seja, idade-limite do pátrio poder sobre esse e só em 1990 é que a idade de 18 anos seria fixada como limite da menoridade no Brasil. Litígio, segundo o dicionário jurídico, é a “demanda, disputa; pendência, contenda... O litígio somente terá início quando a parte contesta o pedido do autor”. (SANTOS, 2001, p. 153). 5 Esse juiz era leigo e eleito anualmente pelos “homens bons” da jurisdição. O cargo foi criado em 1521. 6 A função de curador dos incapazes ou interditos, como também era chamada, era igual à de tutor de menor (Ord. Fil. Liv. 4º, Tit. 104 § 6º): 7 8 São secundários, pois, nos locais onde não for criado por lei, o juiz pode atuar como contador; qualquer cidadão, em conformidade com as partes, pode exercer o cargo de avaliador e partidor, e o escrivão pode atuar como oficial de Justiça ou mesmo porteiro de auditório. O porteiro de auditório, por mais simples que possa parecer essa função, era aquele que ficava responsável não só por sua abertura e fechamento como também pela manutenção da ordem no local. 9 Não discutiremos os inventários por serem uma fonte sobejamente utilizada na pesquisa histórica; maiores informações sobre o uso dessa fonte em Júnia Furtado (2012). Contudo, para Porto Alegre, podemos citar o estudo-referência de Paulo Moreira (2003). 10 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de 1917. [manuscrito]. Porto Alegre, 1917. Localização: Apers. Esclarecemos que os excertos extraídos dos processos se encontram entre aspas e em itálico, sendo que o número da página da qual foram extraídos será informada em nota de rodapé apenas quando esta tiver sido esgotada em termos de análise. 11 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de 1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917. Localização: Apers. f. 2. 12 Atualmente é uma rua do Bairro Floresta: começa na Av. São Paulo e termina na Av. Cristóvão Colombo. No período era uma área suburbana de Porto Alegre. (FRANCO, 2006). 13 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de 1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917. Localização: Apers. f. 5. 14 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de 1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917. Localização: Apers. f. 10 v.; 12. 15 MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21 179 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de 1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917. Localização: Apers. f. 11 v. 16 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de 1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917. Localização: Apers. f. 25 v. 17 180 O agravo é o ato de recorrer judicialmente contra um despacho ou decisão. (SANTOS, 2001). 18 RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de 1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917. Localização: Apers. f. 30 v. 19 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012 Referências ALMEIDA, Cândido Mendes de. Código Filipino ou Ordenações e leis do Reino de Portugal, recompiladas por mandado do rei D. Philippe I. 14. ed. Rio de Janeiro: Tipografia do Instituto Philomathico, 1870. Disponível em: <http:// www1.ci.uc.pt/ihti/proj/ filipinas/>. Acesso em: 21 set. 2011. Em Tempo de Histórias, Brasília: UnB, v. 17, p. 80-92, 2010b. ALVES, João Luiz. Código Civil: da República dos Estados Unidos do Brasil: promulgado pela Lei n. 3071, de 1º de janeiro de 1916. Rio de Janeiro: F. Briguiet, 1917. Localização: Biblioteca da Faculdade de Direito da UFRGS (BIBDIR/ UFRGS). 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Sem a pretensão de realizar grandes aprofundamentos teóricos ou de esgotar as possibilidades de pesquisa do acervo, o trabalho, que nasceu originalmente como componente curricular da disciplina de Estágio em História IV, do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade de Caxias do Sul, orientado pela Prof.ª Dra.Maria Beatriz Pinheiro Machado, traz relatos das experiências, dificuldades e facilidades de lidar com essa gama de documentos jurídicos. Como resultado da leitura dos 27 processos, compreendidos entre os anos de 1900 e 1920, e da coleta de informações, chegou- Abstract: This article intends to contribute to future researches in the Regional Center of Judiciary Memory, from University of Caxias do Sul, through a survey of possibilities of researches in the inventories of the two first decades of the 20th Century, which are part of the collection. With no pretensions of making a deep theoretical analysis or to exhaust the possibilities of research in the archive, this work brings experience reports, difficulties and facilities to deal with this type of juridical document. As the result of reading 27 processes, between the years of 1900 and 1920, and the collecting of information, three central points have been reached: the obsession of inventorying; the men inheritors; and what is omitted of the processes. Graduado em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestrando em História na Unisinos. E-mail: pmarmentini@gmail.com * MÉTIS: história & cultura – MARMENTINI, Paulo Afonso Lovera – v. 11, n. 21 183 se a três questões centrais: a obsessão por inventariar; a questão dos herdeiros homens; e o que é omitido nos autos. Palavras-chave: inventário; Região Colonial Italiana; Poder Judiciário. Keywords: inventory; Italian Colonial Region; Judiciary Power. Este trabalho nasceu como componente curricular avaliativo da disciplina de Estágio em História IV, do curso de Licenciatura Plena em História, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), orientado pela Professora Dra. Maria Beatriz Pinheiro Machado. A disciplina de Estágio em História IV tem o objetivo primeiro de proporcionar ao aluno de graduação uma vivência em institutos ligados à preservação do patrimônio histórico-cultural: arquivos, centros de documentação, centros de memória ou museus. O objeto do presente trabalho foi o Centro de Memória Regional do Judiciário (CMRJU) da UCS, que contém o acervo judicial da 1ª Vara Cível da Comarca de Caxias do Sul, contando com processos a partir de 1900. O CMRJU, pertencente ao Instituto Memória Histórica e Cultural (IMHC) da UCS, guarda documentos que ainda são inéditos na escrita da historiografia regional. Um dos objetivos desse trabalho é a divulgação deste arquivo, até então pouco conhecido pelos estudantes de graduação em História da instituição e também pelos próprios pesquisadores da área, procurando abrir, assim, uma nova possibilidade de pesquisa em documentos jurídicos, abordando por meio de um novo olhar a história regional. Durante o período de estágio, optei por analisar inventários e arrolamentos compreendidos entre os anos de 1900 e 1920, procurando retirar desses documentos as possibilidades de pesquisa no vasto campo da história. Este artigo traz os resultados dessa análise, além de relatos das dificuldades e facilidades encontradas durante a execução da proposta. A carga horária total do estágio, no qual foi desenvolvido o presente trabalho, foi de 32 horas, usadas exclusivamente para leitura dos processos e coleta de informações ali presentes, durante o primeiro semestre acadêmico de 2011. 184 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 183-192, jan./jun. 2012 O campo de trabalho: CMRJU Instituição: CMRJU – Centro de Memória Regional do Judiciário Localização: Sala 102, Bloco 46, UCS Horário de funcionamento: De 2ª a 6ª feira, das 13h às 17h e das 18h às 22h Responsáveis: Prof.ª Dra. Daysi Lange (responsável) e Elizete Carmen Ferrari (funcionária) Criação: ano de 2001, através da assinatura do Termo de Convênio entre a UCS e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Iniciou suas atividades em 2002. Telefone: (54) 3218.2781 O CMRJ, ligado ao IMHC surgiu como uma alternativa de armazenamento e preservação dos mais de quarenta mil processos produzidos pela Comarca de Caxias do Sul, oriundos, em sua maioria, da 1ª Vara Cível. Assinado o convênio entre a UCS e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em 12 de dezembro de 2001, o acervo passou aos cuidados da universidade em julho de 2003. Dividido em 2.350 caixasarquivo polionda, na época da pesquisa, cerca de oitocentas caixas já haviam sido higienizadas e restauradas, e cerca de trezentas caixas – o que corresponde a processos até o início da década de 70 (séc. XX) – já haviam sido cadastradas na base de dados para pesquisa. O CMRJU conta com uma funcionária pós-graduada em Gestão de Patrimônio e com cursos técnicos na área de restauro de documentos e também com um estagiário (que, na época da execução da pesquisa, era o autor deste trabalho) e uma monitora. A coordenação do CMRJU, antes a cargo da Professora Dra. Luiza Horn Iotti, passou a ser exercida, a partir do início de 2011, pela Professora Dra. Daysi Lange. O acervo encontra-se hoje na sala 103 do Bloco 46, na UCS. Essa sala é dedicada exclusivamente ao armazenamento do acervo, sendo bemventilada, com piso de parquet, que evita umidade em excesso, e com acesso restrito aos funcionários. Nela se encontram 37 estantes de metal onde estão alocadas as caixas-arquivo. Porém, a situação é provisória, visto que há um projeto de instalação de estantes deslizantes na mesma sala, substituindo as de metal, de modo a otimizar o espaço ocupado pelo acervo. A higienização é feita numa sala ampla e bem-arejada, onde se encontra também a área de higienização do Centro de Documentação da Universidade MÉTIS: história & cultura – MARMENTINI, Paulo Afonso Lovera – v. 11, n. 21 185 de Caxias do Sul (Cedoc), função que cabe à monitora. Os computadores com as bases de dados encontram-se na parte administrativa do CMRJU, na sala 105-D, onde trabalham a funcionária e o estagiário. O acesso ao acervo, porém, ainda é muito restrito à comunidade em geral, estando disponível apenas para pesquisadores ligados a alguma instituição ou para advogados que desejam consultar os processos. Isso se deve em razão do acordo firmado com o Tribunal de Justiça do Estado, que, em vista da quantidade de informações confidenciais contidas na documentação, restringe o acesso à comunidade. O mesmo acordo previa, também, a preservação do acervo na íntegra, o que impediu a aplicação de qualquer meio de seleção ou filtragem dos processos. Este trabalho partiu do princípio de que o CMRJU é um espaço ainda pouquíssimo aproveitado para pesquisa, sendo que, em sua maioria (e por que não dizer totalidade), os documentos são inéditos, especialmente em pesquisa histórica. Pouco se divulga (e também pouco se sabe) sobre a real capacidade do acervo em ser usado como fonte de novas pesquisas, principalmente em história regional, uma vez que nada foi escrito sob à luz desses documentos. O objetivo deste trabalho é, então, fazer um recorte temporal e temático específico e levantar o que há de disponível no acervo dentro desse recorte. O trabalho buscou fazer um levantamento dos inventários e arrolamentos compreendidos entre 1900 e 1920, procurando expor as possibilidades de pesquisa apresentadas por essa gama de documentos. Incialmente, a pretensão era estender esse recorte temporal até 1930, mas o tempo destinado à leitura de cada processo foi maior do que o calculado num primeiro momento, em virtude de os documentos serem, em sua íntegra, manuscritos, o que dificultou e por vezes até estagnou o avanço da leitura do processo. Assim, a pesquisa, limitada às 32 horas estipuladas pela disciplina de estágio, não teve fôlego para abraçar também a década de 20 do mesmo século, limitando-se às duas primeiras décadas do século XX. Metodologia, facilidades e dificuldades A metodologia deste trabalho consistiu, basicamente, na leitura e análise dos 27 processos relativamente os de 1900 a 1920. Para cada processo, uma tabela foi desenhada, contendo algumas informações pontuais, como a data de início do processo, as partes envolvidas, bens inventariados, os respectivos valores e o desfecho do processo, observando quem herdava os 186 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 183-192, jan./jun. 2012 bens do inventariado. Também foi observado um dos preceitos básicos do trabalho com documentos jurídicos em pesquisas históricas: “o que não está nos autos”, principalmente no que tange aos bens inventariados. Ainda, a partir dos processos, é possível observar alguns pontos das relações familiares, especialmente os conflitos presentes na partilha dos bens. O principal entrave encontrado no processo de execução do trabalho foi a própria dificuldade em ler os processos. Estando em sua totalidade manuscritos, a leitura foi lenta e dificultosa na maior parte dos casos. Sendo o escrivão um profissional cuja função é escrever, como o próprio nome da profissão revela, acredita-se que passar a maior parte de sua jornada de trabalho realizando esse ato cansava-lhe a mão, o que prejudicava significativamente a caligrafia. Aos olhos de um sujeito como o autor deste trabalho, acostumado à grafia técnica, de máquina/computador, e cada vez mais estranho a papéis manuscritos, a escrita de alguns escrivães chegava a ser realmente próxima de hieróglifos do que da própria língua portuguesa, o que impedia a fluência da leitura e, portanto, do pensamento. Foi necessário acostumar-se ao desenho particular de cada letra da grafia de cada escrivão. Em face disso, a leitura demandou muito mais tempo do que o estimado. Porém, ao historiador, cabe saber que esse também é um dos obstáculos a serem vencidos durante o trabalho com documentos históricos. Outra dificuldade foi o estranhamento com o suporte teórico. Pesquisas históricas em documentos produzidos pelo Poder Judiciário exigem uma metodologia particular de análise, quase totalmente desconhecida por mim antes de iniciar a pesquisa. Leituras específicas sobre o tema foram obrigatórias. Entretanto, nenhuma teoria é absorvida tão facilmente e em tão pouco tempo; com certeza, algumas “brechas teóricas” foram deixadas em aberto. Mas como este trabalho se propõe a ser apenas uma primeira etapa de investigação de possibilidades de pesquisa, esse conhecimento pode se dar o luxo de ainda estar num estágio de construção (que, aliás, sempre está). Porém, se tem consciência de que para o desenvolvimento de uma futura pesquisa, o aprofundamento teórico é imprescindível. A grande facilidade que encontrei foi o acesso a esses documentos. Como dito anteriormente, a consulta ao acervo é restrita, em função de parte do seu conteúdo ser sigiloso. Porém, como aluno da disciplina de Estágio em História IV, tive a oportunidade de pesquisar livremente a documentação (oportunidade essa dada a todos os alunos da disciplina que optam pelo CMRJU como campo de trabalho). Também pela minha MÉTIS: história & cultura – MARMENTINI, Paulo Afonso Lovera – v. 11, n. 21 187 condição de estagiário do CMRJU na época da pesquisa, não tive maiores problemas nesse quesito, além de já possuir uma noção macro dos conteúdos específicos do arquivo, dada a minha intimidade e familiaridade com o acervo. Resultados: as possibilidades Lidos os processos e coletadas as informações, alguns resultados e conclusões foram alcançados. Penso que seja importante frisar que essas conclusões partem muito da visão que o pesquisador tem sobre a história como ciência e do grau de amadurecimento do mesmo no campo da pesquisa. Os resultados a que cheguei passam diretamente por esses dois pontos. Sendo assim, eles não são definitivos e, nem únicos. Reitero ainda que este foi um trabalho desenvolvido durante a graduação, e que visa a levantar as possibilidades de pesquisa, não abrangendo, portanto, a pesquisa em si, embora alguns caminhos já sejam apontados no decorrer do artigo. Dividi essas possibilidades de pesquisa em três tópicos maiores: o da “obsessão” por inventariar, o dos herdeiros homens e o do “o que não está nos autos”. “Obsessão” por inventariar Com a Proclamação da República em 1889, as antigas províncias do Império passaram a ser configuradas em estados federalistas, tendo cada um deles uma grande autonomia em questões políticas, judiciais e econômicas. No Rio Grande do Sul, uma nova Constituição foi promulgada em 1891, instituindo a cobrança de imposto territorial no valor de 5% do valor do lote, cobrança essa que ficou sob a responsabilidade do estado. Já nessa época, começava a ocorrer um relativo aumento da produção de excedentes coloniais e, consequentemente, o aumento do comércio na Região Colonial Italiana (RCI), o que atraiu os olhares do Tesouro do Estado, que via a RCI como uma grande fonte de renda para os seus cofres, visto sua configuração de divisão em pequenas propriedades territoriais. No caso específico dos inventários e arrolamentos, esse imposto vigorava na transmissão de bens (que eram principalmente terras) do inventariado para o(s) herdeiro(s). Partindo desses princípios, o estado deslocava um coletor de rendas para a então Colônia Caxias. No período analisado, o coletor era Antonio de Azambuja Kroeff, que agiu como uma espécie de “incriminador” nesses 188 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 183-192, jan./jun. 2012 processos, intimando famílias que não inventariavam os bens de seus falecidos. Diante desse cenário, não havia nenhuma restrição aos inventariados. Não havia distinção por classe social ou por origem, não importando se era brasileiro, italiano ou austríaco. Todos deviam ser inventariados. A fim de obter uma maior rentabilidade, os preços das terras eram sempre avaliados muito acima de seu real valor. Em um dos casos estudados durante a leitura dos processos, o sujeito faleceu em 1914 e teve seu lote avaliado em dois contos de réis, sendo que dois anos antes, havia comprado esse mesmo lote por um conto de réis. Ou seja, para o avaliador de preços do estado, a terra valia o dobro do que o preço real, aumentando, assim, obviamente, o lucro obtido com a taxa de 5% no valor da transmissão de posse. Toda essa “obsessão”, provavelmente, partia de ordens do governo estadual para obter a maior arrecadação possível. E isso se refletiu na quantidade de processos de inventários e arrolamentos. Entre os anos de 1900 e 1920, há um total de 47 processos arquivados no CMRJU, e, dessa totalidade, 27 correspondem a inventários e arrolamentos, o que equivale a uma porcentagem de 57%. Assim, esses inventários “forçados” tornaram-se uma grande fonte de renda para o Tesouro do Estado, obrigando os colonos a se inserirem nessa nova política arrecadatória. Um estudo mais aprofundado da Constituição e das finanças do Estado poderia revelar se a melhora nas condições financeiras nesse período foi realmente significativa, a ponto de a RCI começar a ser considerada uma região importante para as contas do estado. Também um estudo comparativo com outras regiões do estado, se as fontes permitissem, poderia revelar muito dessa faceta “cobradora” do Estado. Herdeiros homens A partilha dos bens inventariados dava-se de maneira relativamente simples: todos os bens do falecido eram avaliados, seus valores somados, e a quantia final era dividida de forma igual entre os herdeiros, salvo o caso de existir uma viúva ou viúvo meeiro, pois a lei garantia 50% da herança para esse, restando os outros 50% para ser dividido de forma igual entre os outros herdeiros. Esse era o desfecho de boa parte dos processos. Porém, em alguns casos, alguns herdeiros abriam mão de sua parte na herança em favor de um único herdeiro, e esse sempre era homem. E aqui não há um padrão: há casos em que o filho primogênito herda integralmente a herança, MÉTIS: história & cultura – MARMENTINI, Paulo Afonso Lovera – v. 11, n. 21 189 há casos de filhos “do meio” e também dos filhos mais novos receberem os bens. Não há registro em nenhum dos processos de que mulheres tenham herdado sozinhas os bens inventariados. Também essas mulheres aparecem sempre assistidas durante o processo judicial, geralmente por seus maridos, mas também pelo pai ou pelo irmão mais velho, como se não possuíssem uma voz própria e independente. Essa prática da Justiça permaneceu ainda, ao longo de muitas décadas, depois do período estudado. Pode-se aprofundar essa ideia estudando o papel da mulher na RCI como provedora da casa, subordinada ao homem, a “dona do lar”. E o mesmo em relação ao seu papel perante o Poder Judiciário. Se a mulher era sempre assistida por um homem na execução dos trâmites legais do processo judicial, a Justiça, definitivamente, não a via como uma voz autônoma e independente, reconhecendo-a como inferior e submissa ao homem, ao menos no que tange ao discurso. Outra questão a se levantar é para onde iam as pessoas que abriam mão da herança. Os lotes da RCI, baseados na ideia de pequenas propriedades, não suportavam as necessidades de muitas famílias. Assim, passada a primeira geração, e também em razão do alto número de filhos, algumas famílias eram praticamente obrigadas a deixar a propriedade. Se as condições financeiras permitiam, compravam um novo lote. Senão, provavelmente, se mudavam para a cidade, onde um relativo comércio já havia se desenvolvido, assim como pequenas fábricas e oficinas artesanais. A relação de crescimento da região urbana, especialmente de Caxias do Sul, principal centro urbano da região, pode também ser estudada a partir da documentação presente no CMRJU. “O que não está nos autos” Uma das premissas básicas do Direito é a de que “o que não está nos autos não está no mundo”, usada no sentido de que o que deve ser julgado e levado em conta é o que consta nos autos, ou seja, as justificativas de ambas as partes. Mas, em pesquisas históricas, devemos levar em consideração também o que não está nos autos, pois o que deixa de ser inserido nos autos também revela pistas preciosas para a escrita da história. Alguns bens móveis (ferramentas, vestimentas e móveis de quarto, como armário) e semoventes (animais de estimação) jamais constaram nas listas de bens inventariados nos documentos analisados. Podemos concluir 190 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 183-192, jan./jun. 2012 que: 1) os bens existiam, mas não eram listados pelo escrivão, incluindo-os no valor final do lote; 2) não possuíam esses bens; e 3) possuíam os bens, mas eram sonegavam na tentativa de diminuir o valor final designado pelo avaliador, reduzindo, assim, o valor do imposto a ser pago. Essa última hipótese é algo que realmente deve ser levado em consideração, tendo em vista que, ao descobrir como funcionavam os trâmites da Justiça, o colono que se sentia lesado com a cobrança, provavelmente, tentava burlar o processo em algum ponto. Assim, a omissão no processo de certos bens que sabidamente possuíam valor comercial na época (especialmente ferramentas e carroças) devia, em alguns casos, ter ligação com a sonegação. Ainda uma outra questão observada é a das relações familiares. Há casos de pais que ficavam com a guarda dos bens do cônjuge falecido, não partilhando com os filhos. Esses, por sua vez, entravam com um processo a fim de que o pai lhes desse os bens a inventariar e que a herança fosse partilhada. Em casos como esse, fica evidente o rompimento das relações familiares, quebrando o mito da historiografia tradicional que traz a família do imigrante sempre como sendo um núcleo forte, com sólidas ligações entre seus membros. Considerações finais O acervo do CMRJU possui um grande potencial de pesquisa ainda inexplorado. A partir dele, é possível a escrita da história regional sob uma nova perspectiva, com documentos ainda inéditos como dito anteriormente. Porém, ainda é preciso que alguns pontos apresentem uma melhora. Há, também, ainda uma certa carência na divulgação do acervo. Poucos pesquisadores têm conhecimento do potencial; talvez não tenham conhecimento da existência do arquivo. Há ainda o problema do acesso, restrito, é verdade, a advogados ou pesquisadores ligados a instituições. Isso já está sendo revisto pela coordenação do CMRJU, mas, por ora, a situação continua a mesma. A abertura mais ampla a estudantes de graduação poderia estimular uma nova leva de pesquisadores a se debruçar sobre essa documentação. Por fim, uma melhoria no mecanismo de pesquisa (base de dados), que encontra-se ainda num nível primitivo demais para permitir um acesso total a determinado tema de pesquisa, seria de suma importância. Apesar de todos os problemas enfrentados, o CMRJ conta com uma coordenação decidida a torná-lo mais presente nos cursos de graduação em História da UCS e também como centro de pesquisa. Questões burocráticas MÉTIS: história & cultura – MARMENTINI, Paulo Afonso Lovera – v. 11, n. 21 191 e falta de verbas por vezes impedem algumas melhorias, mas creio que, dentro de alguns anos, o CMRJU será um arquivo presente na mente de qualquer pesquisador interessado na história de Caxias do Sul e região, tanto pelo potencial de seu acervo quanto pela competência e dedicação de seus funcionários e coordenadores. Referências FELIPPE, Donaldo J. Dicionário jurídico de bolso: terminologia jurídica, termos e expressões latinas de uso forense. Campinas: Millennium, 2006. KICH, Tassiara Jaqueline Fanck. O Poder Judiciário e as fontes para a história da sociedade. Disponível em: <http://www.eeh2010.anpuhrs.org.br/ r e s o u r c e s / a n a i s / 9 / 1277774267_ARQUIVO_Trabalhocompleto Tassiara KichANPHU.pdf>. Acesso em: 18 mar. 2011 MACHADO, Maria Abel. Construindo uma cidade: história de Caxias do Sul: 1875/1950. Caxias do Sul: Maneco, 2001. 192 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. 4. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. (Série Revisão, 1). REIS JÚNIOR, Darlan de Oliveira. O uso de inventários na pesquisa histórica. Disponível em: <http://periodicos.urca.br/ ojs/index.php/cadernos/article/viewFile/ 59/54>. Acesso em: 18 mar. 2011 UCS – Universidade de Caxias do Sul. Centro de Memória Regional do Judiciário (CMRJU). Disponível em: <http:// w w w. u c s . b r / u c s / i n s t i t u t o s / memoria_historica_cultural/cmrju>. Acesso em: 15 jun. 2011. MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 183-192, jan./jun. 2012 O Poder Judiciário em Rondônia The power of legal state of Rondonia Nilza Menezes* Resumo: O presente artigo faz algumas anotações sobre a presença da Justiça em Rondônia. As fontes utilizadas são os documentos existentes no acervo da instituição. Essa memória é marcada pelas fases da história regional dividida em três momentos distintos: o da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré; o da criação do território Federal do Guaporé e o da transformação do Território no Estado de Rondônia, criando três períodos políticos e geograficamente distintos, que marcam a história do lugar e a presença da Justiça na região. Abstract: This article makes some notes about the presence of Justice in Rondonia. The sources used are the documents at the disposal of the institution. This memory is marked by the phases of regional history divided into three distinct stages: the construction of the Madeira Mamore Railway, the creation of the territory in the Federal Guaporé and the transformation of the territory in the State of Rondonia, creating three political periods and geographically distinct that mark the history of the place and the presence of Justice in the region. Palavras-chave: judiciário; memória; justiça. Keywords: judiciary; memory; justice. Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo/UMESP. Graduada em História pela Universidade Federal de Rondônia. Especialista em História do Brasil pela PUC/MG. Coordenadora do Centro de Documentação Histórica do TJRO. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Gênero e Religião Mandrágora/Netlmal, da PósGraduação em Ciências da Religião da UMESP. E-mail: nilzamenezes@hotmail.com * MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 193 Introdução A trajetória do Poder Judiciário no Estado de Rondônia passa a ser registrada como ocorrida no ano de 1982, com a transformação do Território Federal de Rondônia, no Estado de Rondônia e a consequente criação do Poder Judiciário do estado. Anteriormente, conforme estudo já realizado (MENEZES, 1999), registrou-se a presença da Justiça na região desde o ano de 1912, com atividades judiciais iniciadas pela instalação da Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira, no dia 8 de agosto, conforme ata. De 1912 até 1981, a presença da Justiça na região foi marcada por transformações geográficas e políticas. Inicialmente, parte das terras, onde hoje é o estado, pertencia ao Estado do Mato Grosso, e parte ao Estado do Amazonas. O Território Federal (1943) foi formado dessas duas porções. O grande evento do ano de 1982 foi a transformação do Território Federal de Rondônia em Estado da Federação. Por isso, criou-se também o Poder Judiciário do Estado de Rondônia. Assim, a partir desse fato, é como se houvesse o nascimento de um novo tempo, e o passado fosse composto de lembranças fragmentadas. Equivocadamente, encontramos referências que parecem nos remeter a outra história, como se os acontecimentos do período do Território não fizessem parte da história do mesmo lugar. Porém, é importante assinalar que a documentação produzida pelas atividades judiciais na região, de 1912 a 1981, permite observar, além do fazer jurídico, toda a movimentação social e cultural do lugar. É interessante lembrar o que se encontra anotado em ata de audiência, do ano de 1937: quando do surgimento do Território Federal de Rondônia, o Juiz Pedro Alcântara comemorou a liberdade e a possibilidade de um novo tempo. Também em 1982 esse novo tempo foi comemorado e sonhado. Há um processo de (re)invenção nos dois momentos, projetados segundo o anseio da população. A trajetória da presença da Justiça em Rondônia passou por várias mudanças, sendo marcada pelas transformações políticas e geográficas. Da instalação da Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira, pertencente ao Estado do Mato Grosso, no ano de 1912, à transformação em Justiça dos Territórios Federais, na década de 40 (séc. XX), que vai juntar um pedaço do Mato Grosso e um do Amazonas e, por fim, culminando, no presente, com a criação do Poder Judiciário no ano de 1982, as transformações geográficas causaram uma sensação de mudança de lugar, como se isso transformasse, e como se a trajetória do lugar sofresse uma interrupção na sua linearidade, inventando-se uma nova história. Isso ocorre nas décadas de 40 e 80. É como se o lugar não fosse mais “o lugar”. 194 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 193-208, jan./jun. 2012 Essas transformações geram um problema quando falamos da história da Justiça de Rondônia. É como se falássemos de três histórias diferentes: a do Mato Grosso; a do Território Federal; e a do Poder Judiciário de Rondônia. Em alguns momentos, estamos nos referindo, sim, a realidades distintas; em outros, estamos falando da mesma coisa sendo modificada. A história da Justiça em Rondônia é a história da Justiça no Brasil, portanto fragmentá-la, reinventá-la, somente faz com que ela se apresente com aspecto de “bolo fatiado”. Conforme já anotado em Memória Judiciária, nas três primeiras décadas do século XX, o atendimento judiciário era prestado pelo Estado do Mato Grosso. As comarcas estavam subordinadas ao Tribunal de relação que ficava em Cuiabá. Conforme observamos em atas de audiências da Comarca de Guajará-Mirim, na década de 40 (séc. XX), o então Juiz da Comarca Pedro Alcântara registrava alguns acontecimentos políticos, dos quais se pode extrair que havia a ideia de uma população descontente com o atendimento prestado pelo governo do Mato Grosso para com a região. Assim, a chegada de Aluísio Ferreira e a criação do Território Federal do Guaporé foram registradas como conquistas do povo do lugar. Seguindo a trajetória, o Território foi transformado em Estado e assim criado o Tribunal de Justiça de Rondônia. Contabilizam-se cem anos de presença da Justiça na região, mas, em razão das transformações políticas e geográficas, tivemos vários apagamentos na memória causando períodos de esquecimento. Fragmentos dos períodos se apresentam na documentação que dão suporte à criação dessa memória da presença da Justiça. No entanto, essa presença sofreu cortes políticos e geográficos e se separaram em razão de a presença da Justiça não existir durante o mesmo período como instituição. Anotações sobre a trajetória do Judiciário A região que encantou e chocou o olhar de muitos viajantes dos séculos anteriores, também registrada por cronistas e pesquisadores da época (CRUZ, 1914; NOGUEIRA, 1913), entre o fim do século XIX e o início do século XX, passou por uma fase de explosão econômica, seguida de um declínio e estagnação, ocorrendo pequenos picos de crescimento em decorrência da migração e mineração. Durante esse período, que pode ser considerado como as quatro primeiras décadas, observa-se a clara presença do Judiciário na região, desde a sua instalação até o fim dos anos 30 (séc. XX), quase alcançando a década de 40 (do mesmo século). MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 195 O Judiciário passou por um período de quase ausência, porém ressurgiu na década de 60 com visível crescimento, podendo-se dizer que houve um renascimento entre as décadas de 70 e 80 (séc. XX). Essas afirmações são feitas com base nos registros dos livros cartoriais de todos esses períodos. Percebe-se que as atividades judicantes foram decisivas nos primeiros anos, um pouco tímidas entre os anos 1945 e 1960 e, a partir de 1970, tomou o rumo que fez formatar o Poder Judiciário, instalado no ano de 1982. A Justiça está dividida basicamente em três épocas. A primeira fase teve início com a instalação da Comarca, no dia 8 de agosto de 1912, na Villa de Santo Antônio do Rio Madeira. A segunda teve o seu início com a transformação das porções de terras do Mato Grosso e Amazonas em Território Federal do Guaporé. A terceira fase começou com a criação do estado e a instalação do Poder Judiciário em 1982. Tais etapas serão analisadas no decorrer deste trabalho. Fatos históricos como a construção da ferrovia, a luta pela borracha, a transformação em Território Federal e a criação do Estado são acontecimentos que marcaram, de forma decisiva, a história do Judiciário. A importância da região amazônica, no início do século, foi mostrada pelo jurista Carvalho em sua obra A nova aplicação do Direito Penal, publicada em 1914. Ao fazer referência à Casa de Detenção de Manaus, teceu séria crítica ao sistema penitenciário na Primeira República, evidenciando que a região oferecia um aparato judicial idêntico ao do resto do País. As precariedades e dificuldades da região não impediram que Santo Antônio do Rio Madeira, Guajará-Mirim e Porto Velho, apesar dos períodos de silêncio, oferecessem aos seus moradores os préstimos da Justiça. O Judiciário era um dos aparelhos do estado que servia como órgão de disciplina e controle (FOUCAULT, 1996, p. 153). Esse mesmo estado, em alguns momentos, tratou a região com profundo descaso. Os desabafos dos juízes, nas atas de audiência das décadas de 30 e 40 do séc. passado e nas falas resgatadas através de entrevistas, em períodos mais recentes, dão a dimensão dos problemas enfrentados, naquele momento, pela falta de juízes no território, pelas dificuldades de contato com Brasília e, principalmente, pela precariedade do alcance da própria Justiça. O juiz de Guajará-Mirim, por exemplo, tinha jurisdição até a cidade de Vilhena, distante, aproximadamente, 1.000 km, conforme relatos. Em todas as fases dos acontecimentos, o Judiciário cumpriu o seu papel de atendimento e controle, seja no primeiro momento de sua criação em Santo Antônio do Rio Madeira, quando, nos processos, desfilam 196 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 193-208, jan./jun. 2012 nordestinos, sírios, portugueses, peruanos e bolivianos, ou no segundo momento, quando era acentuada a presença dos nordestinos, e estabelecida a presença de sírios no comércio e o afastamento de outros estrangeiros, ou ainda no processo de preparo do terceiro momento quando as qualificações, como: caucheiro, seringueiro e seringalista, começaram a ficar ausentes dando lugar ao funcionário público e ao comerciante. A instalação do Judiciário está ligada ao auge econômico da borracha, resultado de ação política, assim como o desinteresse pela região. Esse desinteresse político resultará na desatenção do estado e na quase desativação da Justiça. Nesse momento, Guajará-Mirim passou quase dez anos sem juiz. Esse foi o período em que se percebeu o enfraquecimento do Judiciário, pois o seu quase desaparecimento em Guajará-Mirim após houve a década de 30 do séc. citado, e a mantença frágil em Porto Velho. Coincidem esses acontecimentos com o período em que também ficaram fechadas as representações políticas locais. As Câmaras Municipais que foram fechadas com a Revolução de 1930, só voltaram a funcionar em janeiro de 1969, com um decreto-lei do governo federal, na administração do presidente Costa e Silva. (MATIAS, 1998). A história da Justiça em Rondônia, pela documentação analisada, acompanha as fases de evolução do Território até a sua transformação em Estado em 1982, quando o então governador Jorge Teixeira de Oliveira criou o Tribunal de Justiça e nomeou a primeira turma de desembargadores, ou seja, com a transformação do Território Federal em Estado, nasceu a Justiça no Estado de Rondônia. Os documentos do arquivo do Poder Judiciário e os entrevistados usam as expressões “criação” ou “reestruturação” da Justiça. Alguns entendem que o Judiciário foi criado em 1982, como se o passado não existisse. Outros afirmam que foi reestruturado, pois já existia Justiça no Território, que teve o seu nascimento no tempo em que as terras do Estado de Rondônia ainda faziam parte dos Estados do Mato Grosso e Amazonas. Neste trabalho, usaremos o termo criação, devido ao decreto de criação da Justiça, no entanto, 70 anos de história do Judiciário (1912-1982) não podem ser olvidados, até porque tanto os processos tiveram continuidade, como parte dos juízes e Promotores de Justiça do Território foram transferidos para o novo Estado de rondônia. Na ata de instalação da Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira, em 1912, está registrado que o Poder Judiciário, na região, estava vinculado ao Tribunal de Justiça de Cuiabá, Estado do Mato Grosso. Já a Vila de Porto Velho, distante apenas 7 km da Villa de Santo Antônio do Rio MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 197 Madeira, tinha seu atendimento jurisdicional vinculado ao Estado do Amazonas. É importante assinalar o período em que a justiça esteve vinculada ao governo do Estado do Mato Grosso. É importante falar da Justiça do Mato Grosso, porque, no momento da instalação do Judiciário, nessa região, grande parte das terras que hoje pertencem ao Estado de Rondônia, fazia parte daquele estado. Por isso elaboramos uma pequena introdução sobre a história da Justiça no Mato Grosso, a fim de proporcionarmos aos leitores uma melhor compreensão sobre a trajetória do Judiciário no Estado de Rondônia. O Desembargador João Antônio Neto (1985) informa que a Justiça do Estado do Mato Grosso tem como ponto de partida a ata de fundação da Vila de Cuiabá, em 1717. (SIQUEIRA, 1990). Registra como primeiro documento jurídico a ação do General Rodrigo César de Meneses, governante da Capitania de São Paulo, que, logo após a sua visita à Vila de Cuiabá, em 1726, extensão daquele, por correspondência enviada ao GuardaMor, Pascoal Moreira, instruiu sobre a arrecadação e exploração das minas e orientava, também, sobre questões de ordem política e jurídica. (NETO, 1985). Para o Desembargador Neto (1985) existe certa ambiguidade na definição do eixo da Justiça no Estado de Mato Grosso, como resultado das mudanças políticas ocorridas com a transferência da sede do governo, em 1749, para a Vila Bela da Santíssima Trindade, nas margens do rio Guaporé. O autor afirma que foi somente em 1758 que a Ouvidoria transferiu-se para Vila Bela. Foram transferidos, também, todos os Cartórios de Ouvidoria e Provedoria de Defuntos e Ausentes, ficando em Cuiabá apenas os Juízes Ordinários. (NETO, 1985, p. 62). Mesmo assim, o autor conclui que Vila Bela nunca foi o centro de colonização. Sua função, naquele momento, era apenas de resistência e conquista. Para os governantes, ficar em Vila Bela era uma espécie de degredo. As comunicações entre Vila Bela da Santíssima Trindade e o Grão Pará eram feitas, conforme descreve o historiador Pinto (1998), pela rota dos rios Madeira e Guaporé. Ainda seguindo os passos das informações do Desembargador João Antônio Neto, as atividades da Justiça em Cuiabá foram iniciadas com a instalação da Junta de Desembargo em 1821, antecessor mais próximo do Tribunal de Relação, criado em 1874, hoje Tribunal de Justiça. 198 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 193-208, jan./jun. 2012 Santo Antônio do Rio Madeira O Município de Santo Antônio do Rio Madeira foi criado pela Lei 494, de 3 de julho de 1908, mas executada apenas em 1912 (NOGUEIRA, 1913, p. 24-27), ano em que foi instalada a comarca. Júlio Nogueira, viajante do início do século, registra sua história desde 1881, com a instalação de uma coletoria na Villa de Santo Antônio do Rio Madeira. (p. 23). Segundo esse autor, a instalação da Comarca ocorreu no dia 2 de julho de 1912 (p. 27), um mês antes da primeira audiência registrada em ata com a chegada do primeiro juiz à Comarca, no dia 8 de agosto de 1912. A instalação do Poder Judiciário, na Villa de Santo Antônio do Rio Madeira, em 1912, demonstra claramente a preocupação das autoridades em manter sob o controle do estado uma região considerada, na época, de grande importância econômica para o País. Era oferecido um atendimento jurisdicional às pessoas, com a presença de juiz, Promotor de Justiça e advogados. Todo o aparato estadual na região era mantido. O primeiro juiz (João Chacon) foi quem procedeu à instalação da Comarca na Villa de Santo Antônio do Rio Madeira, com a presença das autoridades municipais. O Judiciário funcionava na sala da Intendência Municipal (administração), e todos os livros cartoriais, cíveis e criminais, assim como os livros do Cartório de Notas e Registro Civil e Eleitoral pertenciam a José Cassimiro Bayma, que, durante muitos anos exerceu o cargo de escrivão e escrevente, sendo em poucas oportunidades substituído. Observa-se pelos livros que os cartórios mudavam constantemente de endereço. A farta documentação mostra que, em Santo Antônio do Rio Madeira e Guajará-Mirim, assim como nas demais localidades ao longo da ferrovia, existia atendimento judiciário. Não podemos avaliar o alcance exato desse atendimento, mas os crimes cometidos nos seringais próximos de Fortaleza do Abunã, localidade pertencente a Porto Velho, ou em Generoso Ponce, pertencente o Mato Grosso, eram apurados com rapidez. Os inquéritos eram formados em cinco dias e encaminhados às Comarcas. Sobre esse primeiro momento, existe pouca documentação que seja referente à Comarca de Porto Velho que pertencia ao Amazonas. Santo Antônio do Rio Madeira e Guajará-Mirim, que pertenciam ao Estado do Mato Grosso, mantiveram um notável acervo de processos, que guarda a história da Justiça desde o ano de 1912. São exemplares raros que revelam como eram os procedimentos judiciais e mostram o perfil da população. As MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 199 fases históricas do Judiciário também servem para mostrar as características da população que habitava a região. A Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira estendia sua jurisdição por todo o trecho da ferrovia e adentrava os seringais. Cada localidade tinha um subdelegado. Considerando a situação da região e o período, a comarca recebia a comunicação de crimes com rapidez. Como já referenciado, há exemplos de crimes cometidos nas localidades de Generoso Ponce (Jacy Paraná), Presidente Marques (Abunã) e Esperidião Marques (Guajará-Mirim) que, cinco dias, a Comarca já tinha em seu poder a documentação necessária para autuação do processo. Localidades pertencentes à Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira, como Abunã e Jacy Paraná, são ainda hoje conhecidas na região. São comunidades localizadas no caminho de Porto Velho/Guajará-Mirim. A povoação de Generoso Ponce, de onde vinha grande número de processos, localizava-se nas margens da ferrovia e era chamada de povoado ou distrito. Generoso Ponce, hoje Jacy Paraná e Presidente Marques, hoje Abunã, eram constantemente citadas nos processos. Havia atendimento judiciário em todas as localidades ao longo da ferrovia. Em atas da Justiça Eleitoral, encontramos a designação de sessões para essas localidades, assim como a designação de subdelegados e Juízes de Paz. Os processos eram instaurados na Vila de Porto Velho, porém, em alguns casos, as sentenças eram proferidas em Humaitá. Isso ocorria em Porto Velho e também na Vila de Santo Antônio do Rio Madeira, porque muitos juízes não eram togados, e sim, nomeados como suplentes, na maioria leigos, escolhidos entre os moradores ilustres da cidade, sendo bastante comum a observação da patente de Major antes do nome. A função de Juiz Suplente existiu em Guajará-Mirim até a década de 50 (séc. XX), mas não foi tão evidente em Porto Velho, até mesmo em razão da falta de documentos. Porto Velho, em decorrência de ter sido, em alguns momentos da história, o Termo de Humaitá, contou com a figura do Juiz Municipal que também exercia o cargo por intermédio de nomeação, podendo-se fazer uma comparação com os juízes temporários no período do Território. As cidades de Porto Velho e Villa de Santo Antônio do Rio Madeira, embora pertencendo a estados diferentes, eram próximas. Essa proximidade explica a presença de pessoas influentes, na época, em atas e documentos de ambas as cidades. O Dr. Martinho Pinto, por exemplo, que foi Juiz Municipal em Porto Velho, de 1916 a 1919, aparece como advogado em processos da Comarca de Santo Antônio. O médico Joaquim Tanajura, em 200 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 193-208, jan./jun. 2012 1912, foi prefeito de Santo Antônio e também exerceu cargos em Porto Velho. Nos livros dos atos da Justiça no período de 1914 a 1930, a população de Santo Antônio e depois a de Guajará-Mirim (1930 a 1970), se mostra com pele mais clara. Os seringueiros, os trabalhadores na ferrovia, os funcionários públicos, os aventureiros, os comerciantes, as mulheres e tudo quanto envolvia a vida dessas pessoas aparecem na forma do cotidiano de sua vida. Em Porto Velho, ocorreu certo turbamento, uma vez que a ingerência, ou o controle exercido pela ferrovia, impedia a ação livre da Justiça. Com a mudança da Comarca de Santo Antônio para Guajará-Mirim, a formação do Território, que no primeiro momento foi motivo de euforia, aos poucos vai se esmaecendo, ficando a população em total abandono. O “braço” da Justiça, cuja finalidade era vigiar e punir (FOUCAULT, 1996) continuou oferecendo o atendimento necessário. Pontuações sobre a documentação De 1912 a 1970, a população era formada, na sua maioria, por nordestinos. Essa observação é feita por intermédio das qualificações das partes e testemunhas cujas origens desfilam pelos processos, dando mostra da característica do povo. O Rio Grande do Norte, aos olhos da documentação judiciária, foi o estado que ofereceu o maior número de trabalhadores para os seringais de Porto Velho e Guajará-Mirim, seguido pelos Estados do Ceará, Piauí, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Pará e Maranhão. Eram poucos os amazonenses, acreanos, assim como os estrangeiros: sírios, portugueses, espanhóis, peruanos e bolivianos, registrados nos processos. A predominância nordestina, sem dúvida, foi fator importante no resultado das características do povo, de uma região, e isso deve ser melhor analisado em trabalhos temáticos. A predominância de nordestinos na região se refletiu também nos magistrados. O Juiz José Júlio de Freitas Coutinho judicou na Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira, no período de 1915 a 1922. Era originário do Estado de Pernambuco e formado pela Universidade do Recife. José de Melo e Silva, juiz das Comarcas de Guajará-Mirim e de Porto Velho, no período em que era Território, era cearense. Essa característica vai aparecer até mesmo quando da formação da nova Justiça em 1982. Três dos sete primeiros desembargadores eram de origem nordestina. Hoje, tais MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 201 características, tanto no Judiciário, quanto no estado apresentam-se modificadas com a presença de pessoas naturais dos Estados do Sul e Sudeste, ocasionado pela migração incentivada a partir da década de 60 (séc. XX), chegando-se aos anos 80, com a região totalmente modificada culturalmente. As qualificações dos réus, testemunhas e usuários dos serviços judiciários demonstram que, no período de 1912 até meados do século XX, os trabalhadores originários do Rio Grande do Norte eram a maioria nas Comarcas de Santo Antônio e Porto Velho. Isso não significa afirmar que a maioria dos migrantes nordestinos era do Rio Grande do Norte, mas que havia maior concentração deles nas localidades atendidas pelo Judiciário ao longo da ferrovia entre Santo Antônio e Guajará-Mirim. Cabe aqui uma observação quanto a essas afirmações. Em recenseamento realizado pela Superintendência de Porto Velho, publicado no jornal Alto Madeira, de 27 de setembro de 1917, abrangendo o centro da vila e as margens do rio Madeira, a população de Porto Velho somava 1.133 brasileiros e 712 estrangeiros. Na identificação por naturalidade, o Estado do Amazonas tinha 278, o Ceará, 205, e o Rio Grande do Norte vinha em terceiro lugar, com 119 migrantes. A esses, seguiam-se os Estados: Pará, Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Piauí, Bahia, Sergipe, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Como vemos pelo senso, o Estado do Ceará estava à frente do Rio Grande do Norte, com considerável diferença. Contudo, como aqui temos por objetivo mostrar a documentação do Poder Judiciário, nela a presença dos naturais do Rio Grande do Norte é marcante. A presença nordestina em todos os momentos é sempre lembrada em trabalhos que abordam questões culturais. João de Jesus Paes Loureiro comenta essa característica, frisando o isolamento dessas regiões em relação ao resto do País até meados do século XX, o que nos dá suporte para afirmar a influência dos nordestinos, que, durante o auge do ciclo da borracha, embarcaram para a Amazônia (em número aproximado de quinhentos mil indivíduos), muitos dos quais retornaram após a crise da borracha, enquanto outra parte permaneceu na região e se integrou a ela. Edgar Carone, em A Primeira República, fala sobre a vinda dos nordestinos para essa região e a presença dos originários do Rio Grande do Norte. 202 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 193-208, jan./jun. 2012 A grande seca de 1877 obrigou a emigrarem do Ceará milhares de pessoas que se dirigiam para o Pará e Amazonas; depois dessa época, a afluência de emigrantes daquele Estado, do Rio Grande do Norte foi extraordinária; e estes, pouco a pouco, foram substituindo os tapuios, nas mesmas precárias condições. (1988, p. 134). Essa forte característica nordestina, no fim do século XIX, se estendeu até meados do século XX. Samuel Benchimol, ao comentar o movimento migratório da década de 40 (séc. passado), ressalta também a presença de originários de outros estados na região, muito embora a presença do cearense seja marcante no Amazonas. O movimento migrantista da Batalha da Borracha, que se desenvolveu no decorrer dos anos de 1941, 1942 e início de 1943, à moda tradicional, com os flagelados e retirantes nordestinos tangidos pela seca e/ou atraídos pela seringa, em busca da Amazônica e de seus altos rios, iria adquirir um novo colorido, com a chegada, a partir de 1943 e durante os anos de 44/45, de novos contingentes humanos. Não apenas “cearenses” e nordestinos, mas também oriundos das mais diversas regiões do país: cariocas, paulistas, fluminenses, capixabas, mineiros, goianos, matogrossenses, de todas as classes e profissões. Geralmente provinham das grandes e médias cidades do Rio, São Paulo, Niterói, Vitória, Salvador, Recife e Fortaleza. (1992, p. 188). Ainda comentando as observações feitas por Benchimol quanto às características desses migrantes, tem-se que o nordestino vem com a família, fugindo da seca, expulso do sertão, em busca da sobrevivência. Vinham pensando em voltar, mas isso nem sempre acontecia. Os migrantes provenientes de centros urbanos normalmente eram solteiros e vinham no sabor da aventura. (1992, p. 189). Benchimol refere-se ao Estado do Amazonas, daí a conclusão de que muitos desses migrantes conseguiram retornar aolocal de origem, mas outros, desiludidos e envergonhados pela pobreza, preferiram ficar e rumaram para cidades, como: Rio Branco, Porto Velho, Manaus, Santarém e Belém. Nessas MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 203 cidades, afavelaram-se em pequenos vilarejos e cidades do interior para recomeçarem a luta pela vida. Nos processos judiciais arquivados, observamos a concentração de migrantes de um mesmo estado. Nos processos criminais, e até mesmo em algumas ações cíveis, havia uma predominância de naturais do mesmo estado nos episódios. Por exemplo, no caso de um crime em que o réu fosse do Estado da Paraíba, as testemunhas também eram, em sua maioria, paraibanas, ocorrendo o mesmo com árabes, bolivianos, peruanos, portugueses e outros. Esse corporativismo ocorria porque os trabalhadores eram trazidos em levas. Assim, grupos de trabalhadores arregimentados no Ceará, por um seringalista ou por seu preposto, eram colocados no mesmo seringal para executar o trabalho ou divididos em grupos menores. Mesmo assim, permaneciam agrupados por sentimentalismo e defesa. Através da prestação de serviço jurisdicional, aparecem claramente as características da população e os seus problemas sociais. O primeiro momento da Justiça, quando desfilam pelos processos seringueiros, comerciantes e prostitutas, é reflexo da realidade econômica, ou seja, a região oferecia ocupação para esse tipo de mão de obra. Nos povoados, se aglomeravam comerciantes e prostitutas, oferecendo as mercadorias necessárias para aquele momento. No processo de arrolamento de um comerciante falecido em 1919, encontramos relacionadas as seguintes mercadorias: leques, fazendas, perfumes para damas; cortes de brim, facas e munição para homens. Quando falamos em prostitutas, não estamos nos referindo genericamente a todas as mulheres da região. Elas aparecem com mais frequência nas qualificações dos inquéritos e processos porque, em função da profissão, acabavam envolvidas em incidentes com bebida, brigas e crimes e, por essa razão, eram alcançadas pelo “braço” da Justiça. Outra leitura que alguns processos possibilitam é que as prostitutas, dentro do espaço controlado pelo estado, eram protegidas e tinham seus direitos respeitados. Podemos dizer que, naquele momento, elas deixaram de ser uma classe excluída economicamente, permanecendo apenas na exclusão moral. Eram úteis, pois ajudavam no controle da massa trabalhadora, que era essencialmente masculina. As mulheres aparecem também, em especial, na Comarca de Santo Antônio, nos livros que registram os casamentos de 1916 a 1919. O perfil dos homens e mulheres que contraíam matrimônio era definido pela classe social. Os sírios, normalmente, casavam-se com mulheres da mesma origem. 204 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 193-208, jan./jun. 2012 Já os portugueses casavam-se com moças jovens da região. Moças com idade entre 14 e 18 anos que se uniam com portugueses muito mais velhos – entre 30 e 50 anos. Essa característica também ocorreu na Comarca de Humaitá. Os seringueiros nordestinos uniam-se em casamento com moças de idade equivalente, ou seja, um rapaz de 20 anos casava-se com uma moça entre os 18 e 20; um rapaz de 30 anos casava-se com moça entre os 25 e 30 anos, dentro do que podemos chamar de uniões convencionais. Uma característica que chama a atenção nas cerimônias de casamento dos portugueses e árabes é o grande número de pessoas da sociedade que assinavam como testemunhas. Isso, certamente, dava ao ato maior relevância e comprovava o prestígio do noivo. No mesmo período, conforme os livros de registro, a Comarca de Humaitá, com algumas distinções nos hábitos, mantinha uma linha de conduta parecida. Os portugueses contraíam matrimônio, na maior parte dos casos, com mulheres amazonenses mais jovens. Os árabes, praticamente, não eram percebidos na região entre Porto Velho e Humaitá. O destaque fica com os originários do Estado do Ceará que compunham a grande massa dos habitantes das localidades. A tradição de casamentos com pessoas da mesma origem era quebrada apenas pelos portugueses. A grande miscigenação que houve no interior dos seringais foi consequência da infinidade de filhos nascidos de europeus e nordestinos com as mulheres nativas. É de conhecimento popular esse processo de miscigenação, porém, a documentação do Judiciário criou barreiras sobre tais observações. Os documentos nos permitem avaliar acontecimentos regulares, como casamentos com preferências entre idênticos e, consequentemente, o registro de nascimentos dos filhos dessas uniões. Há curiosidades, e não há como não observar a grande quantidade de crianças registradas, no mesmo dia, por um cidadão, no papel de declarante. Nesses registros constava o nome apenas da mãe, acrescido de dados como: “Nascido no seringal onde o declarante reside.” Outro hábito comum encontrado na documentação era o de descrever as características das crianças de forma a destacar questões raciais dos mesmos. Em uma certidão datada de 1932, feita na localidade do Lago Cuniã – Termo de Humaitá –, as observações são: cor morena, cabelos crespos, cachos pretos, rosto redondo, nariz chato, boca regular. Ainda consta na certidão, além do nome da mãe, a descrição dos avós maternos como originários do Ceará e já falecidos. Nos registros de uma criança, filha de pai português e mãe amazonense, as características são rosto fino e nariz aquilino, ou seja, branca. Essas MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 205 informações são comuns nas certidões de nascimento do período. Em outra certidão, cujo registrando já era pessoa adulta, efetuada na localidade de Bom Fim, além das descrições já mencionadas, foi informado que o mesmo não possuía os dentes superiores. Existem diversos casos de o próprio marido ser o declarante da certidão de nascimento da esposa. Após o registro dessa, o esposo comparecia em cartório para registrar os filhos do casal. Há casos em que, na mesma data do registro da esposa, o pai declarou o nascimento de quatro filhos, demonstrando, com isso, a dificuldade de acesso e locomoção. Muitas mulheres nascidas no começo do século, por exemplo, em 1907, no Estado do Maranhão, só foram registradas na década de 30 do séc. findo. Segundo a memória popular, os cartorários colocavam os livros nos barcos e saíam pelos rios fazendo certidões de nascimento em troca de porco, galinha e borracha. E, assim, quando o cartorário aparecia, os moradores da localidade aproveitavam para registrar todos os filhos de uma só vez. Na localidade de Primavera, jurisdição de Humaitá, em um dos livros utilizados de 1907 a 1914, das 41 certidões de nascimento registradas, 29 eram do sexo masculino, e apenas 12 do sexo feminino. Esse dado também pode ser observado em outros livros. Em determinados momentos, o registro de crianças do sexo masculino é notadamente maior que o do sexo feminino. Isso mostra a pouca importância dada às mulheres naquele momento, pois que só eram registradas quando do casamento, em razão do registro dos filhos, e cuja relevância, pode-se dizer, decorria da importância cívica e econômica para os homens da época. Era comum a mulher ser registrada, apenas, na hora do casamento ou pelo marido por razão do registro dos filhos. Voltando à questão cultural na região, quanto à observação de ter sido a nacionalização da ferrovia um marco importante de acordo com a documentação do Judiciário, chega-se ao seguinte raciocínio: a nacionalização ocorreu em 1931. Nesse período, o Judiciário transfere a sede da Comarca de Santo Antônio para Guajará-Mirim não sendo percebida, de imediato, nenhuma mudança. Apenas a sede é transferida. Em nenhum momento alterações culturais profundas são percebidas; são apenas mudanças políticas. A população também permanece inalterada quanto às origens e costumes. O fato de a ferrovia, antes da nacionalização, ser uma empresa estrangeira com trabalhadores de diversas partes do mundo, reflete apenas o momento político e econômico, pois, após a nacionalização, ainda continuaram a chegar trabalhadores de diversos estados do Nordeste. 206 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 193-208, jan./jun. 2012 Com exceção dos árabes e dos portugueses, nenhum migrante de outra nacionalidade permitiu a mistura de cultura com os nordestinos ou regionais, pois formavam, aqui, comunidades isoladas. O povo caribenho, naquela época maioria, resumido hoje a algumas famílias, vivia segregado e não deixaram para a região nenhum legado cultural. Hoje não se realiza, na cidade de Porto Velho, qualquer manifestação cultural de influência caribenha. No Judiciário, a presença desse povo é mais notada a partir do ano de 1960, em processos da área cível. A mudança cultural de um povo ou de uma região só pode ser percebida em caso de mudança na grande massa populacional. Não foi o que ocorreu, naquele momento, em Porto Velho ou em Guajará-Mirim. As imagens apresentadas nas qualificações, nos registros de nascimento, casamento e óbito eram as mesmas de 1891, em Humaitá. Com algumas particularidades, as características de Santo Antônio também seguiram o mesmo curso, ocorrendo o mesmo em Porto Velho e Guajará-Mirim. Houve uma acomodação cultural na região, um processo que já vinha sendo desenvolvido. Porto Velho, por ser a sede da ferrovia, apresentou, nas três primeiras décadas, algumas diferenciações, mas que não extrapolaram o pátio da empresa. Thiéblot (1977) em Rondônia: um folclore de luta, comenta que a pobreza na região é herança da servidão que os habitantes acumularam, em decorrência do quadro da estratificação social do período de exploração da goma. Segundo o autor, tais características só sofreram mudanças, a partir de 1971, com a chegada das Companhias Mineradoras que provocaram mudanças na forma de organização funcional. Porém, se observa que essas empresas dependiam da arregimentação de trabalhadores braçais, coordenados pela figura do “gato”, assim mantendo a situação de dependência e submissão. Conforme frisa Loureiro (1995) Rondônia, até a década de 70 do mencionado século, assim como parte da Amazônia, viveu isolada do resto do País e mesmo da América Latina. Isso fez com que grande parte da massa de trabalhadores nordestinos, embarcados para a região, nos ciclos da borracha, fosse integrada à região, o que nos leva a considerar que até essa década, podemos considerar a população do Território Federal de Rondônia como uma população de maioria nordestina. A presença do caribenho era segregada e a do árabe elitizada. Os demais grupos, minorias ou não, eram excluídos. No Estado de Rondônia, como colocado por João de Jesus Paes Loureiro (1995), a cultura regional vai estar totalmente comprometida desde os MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 207 anos 60. Nesse momento, a região passou do pensamento mítico para um pensamento racional, perdendo toda sua característica estetizadora e amazônica. Essas colocações reforçam nossas observações sobre os caminhos percorridos pela Justiça na região e nos dão suporte para afirmar que esses períodos de profundas mudanças políticas, decorrentes do processo econômico, causaram mudanças sociais decisivas. Referências BENCHIMOL, Samuel. Romanceiro da Batalha da Borracha. Manaus: Imprensa Oficial, 1992. CARONE, Edgar. A Primeira República. São Paulo: Bertrand Brasil, 1988. CARVALHO, Caio Nunes. A nova aplicação do Direito Penal. Nova York, 1914. CASTRO, Celso. Pesquisando em arquivos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2008. condições sanitárias do rio Madeira. In: OSWALDO, Gonçalves Cruz. 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Railway Company: considerações gerais sobre as 208 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 193-208, jan./jun. 2012 Condenados à força: a escravidão e os processos judiciais no Brasil Sentenced to be hanged: slavery and legal proceedings in Brazil Olgário Paulo Vogt* Roberto Radünz** Resumo: A escravidão no Brasil foi uma instituição garantida pelas bases legais, tanto no período colonial, pelas Ordenações Portuguesas, como no período imperial, com a promulgação do Código Criminal e todo o arsenal jurídico em torno do tema. A condenação de escravos à forca ocorria em situaçãolimite, via de regra, quando os cativos rebelados atentavam contra a vida de seus senhores, capatazes ou feitores. Este artigo tem por objetivo analisar dois ritos processuais: o primeiro que condenou à morte natural para sempre na forca os cativos Rodolpho e Leopoldo em 1828, e o segundo, que levou ao patíbulo, em 1850, o preto Ricardo. Ambos os processos referem-se a condenações ocorridas na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Metodologicamente, esses processos precisam ser analisados considerando os devidos contextos jurídicos. O primeiro, de 1828, refletiu Abstract: Slavery in Brazil was an institution which was guaranteed by the legal bases both in the colonial period, the Portuguese Orders as in the Imperial period with the enactment of the Criminal Code and all legal process around the theme. The convictions of slaves to be hanged occurred in an extreme situation, usually when the captured rebels threatened their Sirs, foremen or overseers lives. This article aims to analyze two procedural rites: the first who condemned to natural death forever by hanging the captives Leopoldo and Rodolpho in 1828 and the second, which led to the gallows in 1850, the “black” Ricardo. Both cases are related to convictions that occurred in the province of São Pedro do Rio Grande do Sul. These lawsuits must be analyzed methodologically considering the appropriate legal contexts. The first, in 1828, strongly reflected the Philippines Orders. The second, in 1850, was based Professor na Universidade de Santa Cruz do Sul. Doutor em Desenvolvimento Regional pela Unisc. E-mail: olgario@unisc.br. ** Professor na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Doutor em História pela PUCRS. E-mail: rradunz@ucs.br. * MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21 209 fortemente as Ordenações Filipinas. O segundo, de 1850, embasou-se nos dispositivos do Código de Processo Criminal de 1832 e na Lei de 10 de junho de 1835. Rodolpho, Leopoldo e Ricardo, negros com nomes de brancos, foram condenados e executados à pena capital. Suas condenações tiveram caráter pedagógico com vistas a reafirmar a ordem e o estatuto escravista. on the provisions of the Code of Criminal Procedure from 1832 and the law of June 10, 1835. Rodolpho, Leopoldo and Ricardo, black men with white men names, were sentenced to death. Their convictions had a pedagogical character to state the order and slavery status. Palavras-chave: escravidão; ritos processuais; enforcamento; acervos. Keywords: slavery; procedural rites; hanging; collections. A escravidão no Brasil foi uma instituição garantida por bases legais, tanto no período colonial, pelas Ordenações Portuguesas, como no período imperial, com a promulgação do Código Criminal e de todo o arcabouço jurídico que dele decorreu. A condenação de escravos à forca ocorria em situação-limite, via de regra, quando os cativos rebelados atentavam contra a vida de seus senhores, capatazes ou feitores. Este artigo tem por objetivo analisar dois ritos processuais: o primeiro que condenou à morte natural para sempre na forca os cativos Rodolpho e Leopoldo, em 1828; o segundo, que levou ao patíbulo, em 1850, o preto Ricardo. Ambos os processos referem-se a condenações ocorridas na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Metodologicamente, esses processos precisam ser analisados considerando os devidos contextos jurídicos. O primeiro, de 1828, refletiu ainda aspectos das Ordenações Filipinas. O segundo, de 1850, embasou-se nos dispositivos do Código de Processo Criminal em 1832 e a sua modificação de 1841 e na Lei de 10 de junho de 1835. Rodolpho, Leopoldo e Ricardo, negros com nome de brancos, foram condenados e executados à pena capital. Suas condenações tiveram caráter pedagógico com vistas a reafirmar a ordem e o estatuto escravista. Os processos-crime e a legislação como fonte para pesquisa histórica Há décadas a escravidão tem sido objeto de pesquisas de historiadores. O tema que envolve trabalhadores cativos se converteu em um dos mais dinâmicos da produção científica historiográfica do País. Apesar disso, 210 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012 muitos questionamentos que envolvem a escravatura continuam aguardando respostas. Isso se deve, em larga medida, ao fato de os historiadores do tema estarem condenados a compulsar não exatamente as fontes que desejam, mas aquelas que conseguem encontrar nos arquivos. (REIS; SILVA, 1989, p. 14). As fontes históricas são constituídas por uma série de registros da atividade humana das quais o pesquisador se vale para estudar o passado. Na elaboração do presente texto, foram duas as fontes documentais básicas utilizadas. Uma dessas fontes foram os processos criminais que culminaram na condenação, à forca, dos escravos Rodolpho, Leopoldo e Ricardo. A outra base empírica foi a legislação penal e processual que vigorou no Brasil, até meados do século XIX. Os processos criminais encontram-se no acervo do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (Apers). São fontes primárias que permitem ao pesquisador entrar em contato com vestígios, pistas e práticas sociais de pessoas comuns, de populares ou, no caso, com os trabalhadores feitorizados. Nessa tipologia documental judicial, os cativos aparecem desempenhando o papel de réus, de ofendidos ou de informantes. (MOREIRA, 2010, p. 18). Dados como nome (raramente um escravo aparece com sobrenome), procedência, idade (via de regra não precisa), profissão, estado civil, nome do proprietário e se sabia ler e escrever, normalmente aparecem nos autos dos processos. Em alguns casos, contém também valiosas informações relativas ao cotidiano e a valores sociais de uma determinada época. Nesse sentido, trata-se de fonte de inestimável importância para o pesquisador decifrar aspectos da vida dos trabalhadores cativos, ou seja, “de onde vinham, para onde iam, o que faziam, o que pensavam acerca do seu dia a dia”. (SILVA, 2004, p. 47). Ao se trabalhar com processos-crime, o pesquisador deve ter consciência de que a fonte documental que maneja é oriunda, na realidade, de depoimentos orais, e de que há notáveis diferenças entre língua falada e língua escrita. Na transposição do oral para o escrito, as palavras podem ter variado de forma e de conteúdo. Assim, na passagem do oral para o escrito “não se opera uma simples transcrição” (MEIHY; HOLANDA, 2007, p134); na realidade, há uma recriação dos discursos dos personagens envolvidos, aparentemente para “comunicar melhor o sentido e a intenção do que foi registrado”. (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 136). Assim, as falas existentes nos processos devem ter sido filtradas e modificadas quando da transcrição dos depoimentos. Os escrivães, influenciados pelos valores da época, deixam o registro carregado de subjetividade. O filtro do juiz e/ou do escrivão MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21 211 pode ter contaminado parcialmente o relato. Assim, parafraseando Carlo Ginsburg (2006, p. 13), pode-se afirmar que essa fonte documental é duplamente indireta: por ser escrita “e, em geral, de autoria de indivíduos, uns mais outros menos, abertamente ligados à cultura dominante”. Mas há outros fatos que devem ser levados em consideração pelo historiador. Um deles é que o documento com o qual tem contato não reproduz o cenário, a atmosfera de tensão ou de constrangimentos em que os depoimentos efetivamente foram colhidos. Outro deles é que há coisas que são indizíveis e que, portanto, não aparecem na letra fria do papel compulsado. Dizem respeito à reação dos envolvidos que envolvem gestos, emoções e silêncios, ou seja, a gesticulação, a alteração do timbre de voz, o choro, o olhar aterrorizado de testemunhas, informantes, réus, acusadores e defensores não são registrados. Não obstante essas e outras tantas limitações que essa tipologia de fonte documental apresenta, ainda assim ela é, possivelmente, aquela que mais aproxima o pesquisador do mundo dos escravizados por fornecer abundantes e ricas informações sobre o cotidiano dos cativos. (GUIMARÃES, 2001, p. 78, 101). E como afirma Ginzburg (2006, p. 5), “não é preciso exagerar quando se fala em filtros e intermediários deformadores. O fato de uma fonte não ser ‘objetiva’ (mas nem mesmo um inventário é ‘objetivo’) não significa que seja inutilizável”. Arlete Farge (1999, p. 77), ao comentar sobre a pesquisa com manuscritos existentes em arquivos policiais do século XVIII – onde se encontram processos, inquéritos, interrogatórios, testemunhos, acareações e outros – para permitir o acesso à palavra dos desfavorecidos que não deixaram escritos, reafirma a validade dessa fonte documental. Portanto, os processos-crime se constituem em uma preciosa fonte documental da qual o historiador pode se valer para travar contato com culturas populares do passado. Entre essas culturas populares se incluem os escravos africanos que, por quase quatro séculos, se constituíram na principal força de trabalho do Brasil. A outra fonte documental básica utilizada neste texto foi a legislação penal e processual, que vigorou no Brasil durante o Império. Os instrumentos legais são importante matéria-prima para a análise dos valores e da cultura de uma determinada sociedade. Os códigos criminais definem os atos que a sociedade julgava proibidos ou criminosos, passíveis de penalidade. Já o código processual e outras leis complementares normatizam a forma como os crimes eram investigados e julgados. O estudo de processos criminais 212 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012 exige do pesquisador o conhecimento da legislação em vigor em determinado período. (GRINBERG, 2009). Dentre a legislação consultada estão o Livro V das Ordenações Filipinas; o Código Criminal do Império, de 1830; o Código de Processo Criminal, de 1832 e sua respectiva alteração, ocorrida em 1841; e a Lei de 10 de junho de 1835. Embora em 1822 o Brasil tivesse proclamado sua independência política de Portugal, não se extinguiram, em uma única tacada, as Ordenações, Leis, Regimentos, Alvarás, Decretos e Resoluções promulgados ao longo do tempo pelos reis portugueses. Todo o arcabouço jurídico de Portugal permaneceria em vigor, na parte em que não tivesse sido revogado, para regular os negócios do interior do Império e enquanto não se organizasse um novo código ou enquanto a legislação não fosse derrogada. (NEQUETE, 2000, p. 37). O caso dos cativos Rodolpho e Leopoldo Em 15 de maio de 1829, os réus Rodolpho e Leopoldo, escravos do Capitão Manoel Velloso Rebello, foram conduzidos, com baraço e pregão, pelas ruas públicas de Porto Alegre e, no local onde havia a forca, sofreram morte natural para sempre. A Junta de Justiça, único tribunal criminal então existente na província, condenou-os, fundamentada nas Ordenações Filipinas, por terem assassinado José Joaquim Mariano, capataz da fazenda do dito Rebello. A crer na devassa feita pelo juiz de fora,1 sargento-mor José Joaquim de Figueiredo Neves, o episódio que deu origem à condenação ocorreu em dia não especificado do mês de maio de 1828, no Município de Rio Pardo, na Estância das Pederneiras, de propriedade do Capitão Manuel Velloso Rebello. Sob a supervisão do capataz, na mangueira do porto da Fazenda das Pederneiras, parava-se rodeio para marcar terneiros. Por terem deixado umas vacas no campo e por não tê-las marcado, o capataz José Joaquim Mariano ordenou ao preto Rodolpho que desse uns laçaços nos escravos Caetano e Joaquim. Depois de já ter batido em Caetano e enquanto aplicava a penalidade em Joaquim, o capataz ordenou ao escravo Rodolpho que batesse com mais força. De pronto, Rodolpho retrucou: “Viesse ele dar senão chegava da forma em que elle estava dando.” E largando o laço “precohou por uma facca elhe deu uma facada na boca do estomago, com a qual cahio o dito capataz, e logo o preto Leopoldo correu a huma cerca e tirou hum páo com o qual deu uma porretada na cabeça do mesmo capatas MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21 213 que ainda estava vivo, com a qual logo morreu”. Depois de cometido o delito, Rodolpho ordenou aos pretos Jerônimo e Theodoro que lançassem o cadáver do capataz no arroio Iruy com a roupa que tinha, esporas nos pés, arreios do cavalo e espada na cinta, não lhe tirando coisa alguma. Fizeram isso para se livrarem do corpo e para que não parecesse que mataram para roubar. Esse episódico ocorreu quando o Capitão Manoel Velloso Rebello encontrava-se na cidade de Porto Alegre, “respondendo a hum Conselho de Guerra”. A denúncia do crime e o auto de corpo de delito ocorreram somente a partir do dia 7 de agosto de 1828, portanto, depois de passados de dois a três meses do fato verificado. Qual foi a razão dessa demora? Teria se dado somente devido à ausência do proprietário? Além do capataz morto, havia outros prepostos do Capitão Manuel Velloso Rebello na Fazenda das Pederneiras? Essas são questões que ficam em aberto e sobre as quais se pode apenas conjecturar, uma vez que os processos silenciam a respeito. O auto indireto de corpo de delito foi realizado pelo Juiz de Paz, Tenente Vasco Pereira de Macedo. Foram ouvidas, na sua casa, na Vila de Rio Pardo, “como testemunhas na inquisição”, seis pessoas. Afirmaram ter visto o cadáver do capataz Mariano que apresentava uma “faiada ou ferida no lado esquerdo que mostrava ter feita por faca de ponta, em frente da cabessa outra ferida feita a força de grande porrada de porrete” os seguintes escravos, todos eles pertencentes ao Capitão Rebello: João de Sá, pardo, solteiro, alfaiate, 28 anos; João Maia, da Nação Mina, solteiro, ferreiro, 20 anos mais ou menos; Theodoro, da Nação Congo, campeiro, 24 anos para mais ou menos. Desses, apenas Theodoro foi enfático ao afirmar que o cadáver fora lançado no arroio Iruy. As demais testemunhas, Ignacio Joze de Carvalho, Joze Velloso Rebello, Antonio de Macedo, todos brancos, casados e moradores da Vila de Rio Pardo, disseram o que ouviram falar de alguns escravos do Capitão Rebello sobre o homicídio. Aos juízes de paz, de acordo com o artigo 5º da Lei de 15 de outubro de 1827, que mandava criar em cada uma das freguesias e das capelas curadas um Juiz de Paz e um suplente, dentre uma série de atribuições administrativas, judiciais e policiais, competia: § 7º. Fazer auto de corpo de delicto nos casos, e pelo modo marcados na lei. § 8º. Sendo indicado o delinquente, fazer conduzil-o a sua presença para interrogal-o à vista dos factos existentes, e das 214 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012 testemunhas, mandando escrever o resultado do interrogatorio. E provado com evidencia quem seja o delinquente, fazer prendel-o na conformidade da lei, remettendo-o immediatamente com o interrogatorio ao Juiz Criminal respectivo. (COLEÇÕES DE LEIS DO BRASIL DE 1827, p. 67-69). Os juízes de paz, naquela época, eram eleitos pelo mesmo modo e tempo dos vereadores das Câmaras, podendo ser juiz de paz somente aqueles que podiam ser eleitores. Os eleitos não podiam escusar o ofício, a não ser que justificassem ter contraído doença grave e prolongada ou possuir emprego civil ou militar que fossem exercer conjuntamente com a função. Os impedimentos eram encaminhados e avaliados pela Câmara Municipal. Cabia-lhes os mesmos emolumentos dos juízes de direito. “Fazer autos de corpo de delito não era privativa dos juízes de paz, posto que os juízes criminais dos termos conservavam para isso sua jurisdição e a deveriam exercitar sempre que lhes não fosse preventa por aqueles.” (NEQUETTE, 2000, p. 45). Segundo o art. 6º da referida lei, cada juiz de paz teria um escrivão do seu cargo, nomeado e juramentado pela Câmara, cujo provimento seria gratuito e não sujeito à prestação alguma. Realizado pelo juiz de paz “o corpo de delito indireto por inquirição de testemunhas”, o caso foi remetido ao juiz de fora de Rio Pardo, que procedeu à devassa. Em 9 de agosto, o tabelião Duarte Silveira Gomes notificou a Antonio Simoens Pereira para atuar como curador dos escravos que deveriam depor. No dia 12 de agosto, na casa do juiz de fora, o Alferes Antonio Jose Landim, foram inquiridas as testemunhas. Os já citados escravos Theodoro, José de Sá e José Maia depuseram assistidos pelo curador na condição de terem presenciado o fato. Afirmaram saber do assassinato “por ver”: Joaquim, preto, da nação Benguela, campeiro, de 40 anos; Caetano, preto, da Costa, campeiro, 38 anos. Disseram saber do crime “por ouvir de seus parceiros” os seguintes escravos do Capitão Rebello: Valério, preto crioulo, 44 anos e Frederico, da nação Cabinda, 30 anos. Além dos sete escravos mencionados, testemunharam saber do homicídio “por ouvir dizer” mais outros 27 homens brancos residentes, quase todos eles, na Vila de Rio Pardo, conforme os autos da devassa. Em 25 de agosto de 1828, foram inquiridos os réus na casa de moradia do juiz de fora. Rodolpho afirmou ser da Nação Cabinda, ter 30 anos de idade e ter conhecido José Joaquim Mariano, que há mais de treze anos era MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21 215 capataz da fazenda. Assumiu a autoria do crime, cometido em conjunto com seu parceiro, Leopoldo. Perguntado sobre o motivo do crime, respondeu que ele e Leopoldo já tinham a intenção de cometer o assassinato, esperando uma ocasião para tal. Tratava-se, portanto, de um crime premeditado. Afirmou que jogaram o corpo do capataz no arroio para se livrar da acusação de que tinham cometido o seu assassinato com o fim de o roubar. Leopoldo se apresentou como sendo da Nação Congo e que lhe parecia ter 30 anos de idade. Assumiu a autoria da bordoada fatal que foi data no capataz Mariano. Perguntado sobre o motivo de sua participação na morte do capataz, “respondeu que o dito capatas hera cruel, a todos os escravos da fasenda e constantemente os fasia castigar por qualquer falta que elles tinhao, e por isso lhe tinhao inimizades esperavao ocasião oportuna para atacar”. Ambos, sempre se chamando de parceiros, assumiram o assassinato do capataz e inocentaram a participação dos demais escravos. O processo silencia completamente sobre um virtual pedido de socorro da vítima. Também não deixa pistas sobre os acontecimentos registrados na fazenda, no período compreendido entre o fatídico dia, ocorrido em maio, e o dia 7 de agosto, quando se deu início ao processo. Junta de Justiça julga o caso dos pretos Rodolpho e Leopoldo O processo foi então remetido pelo juiz de fora para Porto Alegre, único local da província onde havia um tribunal para julgar os delitos. Com a Provisão de 7 de outubro de 1809, que criou as quatro primitivas Vilas de São Pedro (Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo e Santo Antônio da Patrulha), acompanhava a prescrição de dotar os locais com gente para o exercício de funções judiciais. Para Rio Pardo, por exemplo, estavam previstos dois Tabeliães do Público Judicial e Notas, dois Juízes Ordinários, um Juiz dos Órfãos, um Escrivão dos Órfãos e um Distribuidor. O Alvará que em 1819 deu origem à Vila de São João da Cachoeira, criou ainda o cargo de Juiz de Fora do Cível, Crime e Órfãos. Esse magistrado teria jurisdição sobre as Vilas de Cachoeira e Rio Pardo. (FORTES; WAGNER, 1963, p. 106-107). O primeiro tribunal criminal do Rio Grande do Sul foi a Junta de Justiça. Ela foi criada à época de D. João VI, em 1816, em virtude da alta criminalidade existente na Capitania de São Pedro. Segundo Sérgio da Costa Franco (2004, p. 17), a junta era integrada pelo governador da Capitania, que exercia sua presidência, pelo ouvidor – era um só que atendia 216 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012 ao Rio Grande do Sul e Santa Catarina –, pelo Juiz da Alfândega e pelos juízes de fora, que eram magistrados togados nomeados pelo rei e que pertenciam às circunscrições de Rio Grande, Porto Alegre e Rio Pardo. Entretanto, foi somente em 1818 que a junta, efetivamente, passou a trabalhar. Ela funcionou até 23 de fevereiro de 1833, não obstante estar extinta pela Lei Regencial de 29 de novembro de 1832, que promulgou o Código de Processo Criminal do Império do Brasil. (LIMA, 1997, p. 142). Em Porto Alegre, os dois réus foram inicialmente interrogados, na prisão, pelo escrivão da junta, em 6 de setembro. José Peixoto Miranda foi indicado curador e defensor dos réus. Em 30 de setembro, entregava, por escrito, os autos de defesa dos réus ao escrivão da Ouvidoria, Luiz Manuel Gonçalvez Lages. Seus argumentos foram no sentido de “minorar o crime e mitigar a pena”. A junta, em 2 de outubro de 1828, através de acórdão colegiado, condenou Rodolpho e Leopoldo a serem levados, com baraço e pregão, pelas ruas públicas da cidade de Porto Alegre, até o lugar da forca. Ali deveriam sofrer “morte natural para sempre”. Os réus, através do seu curador, pediram vistas da sentença na qual foram condenados. O curador alegou, de próprio punho, que os réus haviam feito “a confição em tormento”, e por direito de lei não poderiam “ser prejudicados pella confição.” Também questionou o corpo de delito indireto, “valendoçe para isto do juramento de escravos, não sendo validos semelhantes juramentos pela proibição da Lei”. Segundo Wehling (2004, p. 483), o Direito português, ecoando no Direito comum, admitia, na área processual, que os escravos testemunhassem em apenas três situações: se era tido geralmente por livre; se não havia outro modo de provar a verdade e como informante. Em 3 de outubro, os réus e o seu curador foram notificados da pena. Ganharam um prazo de oito dias para apresentar àquele juízo requerimento de absolvição de culpa à Sua Majestade, o Imperador. A Constituição brasileira de 1824 previa, no seu artigo 101, Inciso VIII, que dentre outras prerrogativas, o Poder Moderador poderia perdoar e moderar as penas impostas a réus condenados por sentença. Regulamentando esse dispositivo constitucional, a Lei de 11 de setembro de 1826 estabeleceu, no seu art. 1°, que “a sentença proferida em qualquer parte do Império que impozer pena de morte, não será executada, sem que primeiramente suba à presença do Imperador para poder perdoar, ou moderar a pena”. O recurso de graça, conforme Bandeira Filho, MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21 217 em sentido lato, abrange todos os actos de clemencia, misericordia, perdão e esquecimento do soberano. Nessa accepção, ella comprehende a amnistia. Mas, em seu sentido próprio, quer dizer sómente o perdão e minoração das penas. A amnistia é uma medida de alcance quasi sempre politico, e rege-se por princípios differentes. (1878. p. 1). No que concerne aos escravos, a petição de graça foi alterada em seguida. Sua Majestade Real, pelo Decreto de 11 de abril de 1829, determinou que todo réu escravo, condenado à pena máxima por assassínio do seu senhor, devia ser executado, imediatamente, sem direito ao recurso de graça, interposto ao Poder Moderador: Tendo sido mui repetidos os homicidios perpetrados por escravos em seus proprios senhores, talvez pela falta de prompta punição, como exigem delictos de uma natureza tão grave, e que podem até ameaçar a segurança publica, e não podendo jamais os rêos comprehendidos nelles fazerem-se dignos de Minha Imperial Clemencia: Hei por bem, Tendo ouvido o Meu Conselho de Estado, ordenar, na conformidade do artigo 2º da Lei de 11 de Setembro de 1826, que todas as sentenças proferidas contra escravos por morte feita a seus senhores sejam logo executadas independente de subirem à Minha Imperial Presença. As autoridades a quem o conhecimento deste pertencer o tenham assim entendido e façam executar. (ACTOS DO PODER EXECUTIVO, 1829, p. 263-264). Em 17 de fevereiro de 1829, o Imperador, tendo ouvido o seu Conselho de Estado sobre o Acórdão proferido pela Junta de Justiça da Província de São Pedro contra os cativos Rodolpho e Leopoldo, não acatou as súplicas dos réus e ordenou que fosse aplicada a pena capital em que os mesmos foram condenados. Em 15 de maio, portanto cerca de um ano após o assassinato do capataz José Joaquim Mariano, a sentença foi aplicada aos condenados. Nas Ordenações Filipinas a pena de morte aparece com diferentes expressões e adjetivos: “morra morte natural”, “morra morte natural cruelmente”, “morra por isso”, “morra por ello”, morra por isso morte natural”, “morra morte natural de fogo”, “morra por ello morte natural”, “morra morte natural para sempre”. A expressão “morra morte natural para 218 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012 sempre” era uma fórmula através da qual o legislador queria significar a morte atroz, discriminada da morte simples (expressa pelo “morra morte natural”) em face do acréscimo do complemento “para sempre” (THOMPSON, 1976, p. 100). Morrer de morte natural significava que o sentenciado, depois de ser levado ao patíbulo e enforcado, teria seu cadáver recolhido e sepultado. Já a sentença de morte natural para sempre equivalia ao condenado ser levado e enforcado no patíbulo, lá ficando seu cadáver pendente até cair podre sobre o solo. Na sentença, a palavra “baraço” designava corda ou laço destinado ao enforcamento de réus; já o termo “pregão” se referia à leitura pública de culpa do delito e de sua respectiva pena. O caso do preto Ricardo Na manhã do dia 23 de outubro de 1850, o escravo Ricardo foi executado (pena capital na forca) construída nos Altos da Fortaleza, na cidade de Rio Pardo. Ele foi sentenciado por haver tentado contra a vida de José Bernardes, capataz da estância do desembargador Pedro Rodrigues Fernandes Chaves, depois condecorado com o título nobiliárquico de Barão do Quaraí. A estância estava localizada em Capivary, Município de Rio Pardo/RS. Tudo iniciou quando, em 24 de fevereiro de 1850, o preto Ricardo feriu gravemente José Bernardes. Ricardo era um escravo crioulo nascido em Encruzilhada, filho de Joanna, casada com o preto Antônio. Ele era solteiro, de atividade campeira, não sabia ler e ignorava a sua idade. Informou no processo que havia sido adquirido pelo desembargador Chaves de Zeferino Escoto. Certa noite, sem a anuência do seu capataz, Ricardo deslocou-se da casa de campo da fazenda até a charqueada do seu senhor. O processo não revela os motivos do “passeio”. Em depoimento ao promotor público, Antônio Siqueira Pereira Leitão, o réu inquirido a respeito, respondeu de forma evasiva: “Porque me deo na cabeça sahir com tenção de voltar.”2 Sentindo a ausência do escravo, o capataz do campo, João do Prado Lima, 49 anos, “encarregado de governar os escravos campeiros”, arrolado no processo como testemunha, saiu ao seu encalço. Pela falta cometida, o escravo deveria receber chibatadas do capataz da fazenda. Observa-se, aqui, a existência de uma hierarquia ou divisão de trabalhos entre os prepostos do desembargador Chaves. No processo aparecem as figuras do capataz do campo, João do Prado Lima, e a do capataz da fazenda, José Bernardes. A MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21 219 figura do feitor não aparece explicitada no processo. Ao que tudo indica, José Bernardes era o administrador do estabelecimento e o preposto direto do desembargador Rodrigues Chaves. Devia ser também responsável pela aplicação de penalidades internas mais severas a escravos infratores. No regime escravista de produção, os senhores, normalmente através de seus prepostos (feitores, administradores, capatazes), gozavam do direito de aplicar penas corretivas aos seus cativos. (MACHADO, 1987, p. 28). O controle e a vigilância perpassavam todo o trabalho em uma fazenda escravista. “A necessidade de vigilância tinha origem, principalmente, na falta de estímulo do produtor direto, o escravo, tanto para aplicar-se, quanto para melhorar os métodos de trabalho.” (REIS; SILVA, 1989, p. 27). Tudo leva a crer que o castigo que seria aplicado ao preto Ricardo ocorreria em uma das dependências da charqueada do desembargador Chaves, em Capivary. Os preparativos sugerem que o castigo seria cruel, pois, no local, se encontravam, segundo o depoimento de Ricardo, “escada, bacaliau, navalha, salmoura e pimenta”.3 Ricardo, possivelmente, pressentiu que seria vítima de um grande castigo. Ele mesmo descreve a função dos instrumentos presentes na cena: “A navalha era para cortar depois do castigo e a salmoura com pimenta era para por nas feridas.” Observa-se que os castigos corporais que seriam infligidos em Ricardo tinham o mesmo requinte de sofisticação daqueles aplicados a escravos de outras regiões do Império. Com as peças do tabuleiro da pena devidamente arranjadas, o escravo reagiu. Num sobressalto, o negro chamando o feitor de “filho da puta, és tu que queres me castigar”, fugiu em direção à porta. Agarrando o capataz por trás, desferiu-lhe duas ou três facadas. Depois do ocorrido, Ricardo fugiu, sendo capturado e preso algumas semanas após nas bandas de Camaquã. Examinado o corpo do capataz, os peritos, o cirurgião José de Souza e Silva e Joaquim Ferreira da Rocha, declararam que encontrarão huma ferida incisa na região escapular duas polegadas abaixo da escapula, penetrante a cavidade do pulmão do mesmo lado, com trez polegadas de largura, profundidade até o pulmão; e que alem da gravidade, que offerece a ferida pela posição em que está collocada, pode comprometter para o futuro a vida do paciente, declarão mais que o ferimento tinha sido feito com instrumento perfurante e cortante, e que avalliarão o danno na quantia de cem mil reis. 220 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012 A vítima, perguntada pelo subdelegado sobre quem lhe teria feito aquele ferimento foi categórica em afirmar que tinha sido o crioulo campeiro de nome Ricardo “para se livrar de um pequeno castigo que lhe hia fazer”. Interessante nesse processo é a postura do subdelegado do Distrito de Capivary, Manuel Affonso de Freitas Amorin. Alegando o fato da amizade íntima que tinha com o senhor do referido escravo, considerou-se impedido de ser formador de culpa. E previu que “um attentado tão horroroso, e que pode ter funestas consequencias, he por certo digno da mais severa e exemplar punição”. O crime contra o capataz poderia por em questão as bases das relações escravistas na fazenda e nos arredores. Era necessário manter a ordem. Mostrar aos escravos o que lhes poderia suceder caso se rebelassem. Ricardo foi preso em 1º de maio de 1850 e conduzido à cadeia da cidade de Rio Pardo. O delegado notificou as testemunhas para que, no dia 10 de maio, se fizessem presentes para dar início ao sumário. Convocou o promotor para assistir à inquirição e nomeou Ignácio José Cabral e Costa para curador do escravo. Pela lei, o escravo, como réu, ou acusado, caso seu senhor não se prestasse a isso como seu curador nato, devia ter nomeado pelo juiz do processo um defensor, ou curador. (CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1832, arts. 97, 98, 99, 142 e 263). A confissão do réu, somada aos depoimentos de algumas testemunhas, levou o Juiz Municipal, Francisco Pereira Monteiro, a concluir que “este crime está plenamente provado”. O réu foi mantido em cárcere, e o escrivão fpo autorizado a baixar o processo de formação da culpa. Tudo feito de forma rápida, em conformidade com o que estabelecia a Lei de 10 de junho de 1835. Ricardo foi a julgamento em júri popular, realizado em 26 de junho de 1850. O Juiz de Direito da Comarca, Antônio Vieira Braga, abriu a sessão pelo toque da campainha. Em seguida, foi aberta a urna onde se encontravam 48 cédulas, cada uma delas com o nome de um dos membros do corpo de jurados do termo. De acordo com o Código de Processo Criminal de 1832 e consoante a Lei 261, de 3 de dezembro de 1841, foram extraídos, através de cédulas, 12 cidadãos para integrarem o corpo de jurados. Lida a acusação contra o preto Ricardo, passou-se para a fase de depoimentos. O Código de Processo Criminal de 1832, no seu art. 89, previa que escravos não poderiam testemunhar; mas o juiz poderia informarse deles sobre o objeto da queixa, ou denúncia, e reduzir a termo a informação. Foram ouvidas seis testemunhas, todos homens livres, que, MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21 221 com poucas variações, responsabilizaram Ricardo pelo ferimento aplicado ao feitor. Na fase dos debates, o promotor público, Antônio Vicente de Siqueira Pereira Leitão, acusou o réu de estar incurso no art. 1º da Lei de 10 de setembro de 1835. Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e às suas mulheres, que com elles viverem. Se o ferimento, ou offensa physica forem leves, a pena será de açoutes a proporção das circumstancias mais ou menos aggravantes. A condição indispensável para alguém ser julgado com base nessa lei, também denominada “Lei de Exceção”,4 era a de ser escravo. Homens livres e libertos responderiam pelo Código Criminal de 1830. Era uma lei para regular as relações de produção, as relações entre senhor e escravo e não entre escravos e outros homens livres ou entre si mesmos. (RIBEIRO, 2005, p. 418). O defensor e curador do réu desenvolveram sua defesa referindo-se a “factos que sustentam a inocência do acusado”. Como a partir da vigência do Código de Processo Criminal de 1832, os julgamentos passaram a ser feitos com júri popular, os debates entre acusação e defesa tornaram-se orais e não mais escritos como no caso dos escravos Rodolpho e Leopoldo, em 1828. Nessa modalidade de procedimento, dependendo do escrivão, boa parte do conteúdo exposto verbalmente pode não ter sido devidamente registrado. Terminados os debates entre acusação e defesa, o juiz apresentou ao corpo de jurados três quesitos para serem respondidos. No primeiro, foi perguntado se o réu Ricardo, escravo do desembargador Pedro Rodrigues Fernandes Chaves, feriu à facadas José Bernardes, capataz da fazenda do seu senhor. Por unanimidade, os jurados responderam: sim. No segundo, foi indagado se o ferimento feito na vítima era grave. Mais uma vez, os 12 jurados responderam de forma unânime: sim. Note-se que julgaram a gravidade do ferimento com base no corpo de delito realizado. Caso considerassem como não grave a lesão do capataz, a pena de Ricardo seria a 222 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012 de chibatadas. No terceiro quesito, os jurados foram indagados a respeito de haver circunstâncias atenuantes a favor do réu. Por oito votos – dois terços –, os membros do júri responderam: não. Caso reconhecessem circunstâncias atenuantes, reconheceriam o direito de reação do escravo diante da aplicação de castigos. Nos julgamentos de escravos inclusos nessa Lei de Exceção não seria necessária a unanimidade dos votos dos jurados. A pena de morte poderia ser decretada com dois terços dos votos do corpo de jurados. E da decisão condenatória não caberia qualquer recurso, não sendo permitida a revisão da pena por um novo processo, a não ser o pedido de graça ou de clemência ao Imperador. Essa, na prática, se constituiria na única chance para um escravo condenado. A Lei de 10 de junho de 1835 não reconhecia graduações de pena nem atenuantes ou agravantes. Poderiam ir para a forca aqueles escravos que matassem, ferissem ou atentassem contra a vida de seus senhores ou prepostos. Ricardo foi literalmente linchado pelo júri popular, formado por representantes da ordem escravista. Pela decisão do corpo de jurados, o réu foi condenado “a sofrer a pena de morte que lhe será dada na forca que será levantada em lugar bem público, e mais perto do delicto”. Em cem mil-réis foram estimadas as custas do processo que deveriam ser pagos pelo desembargador. O réu e seu curador ficavam intimados ainda para em um prazo de oito dias “apresentar a petição de graça”. Tivesse sido julgada pelas regras do Código Criminal de 1830, sua pena certamente seria bem mais branda. A pena imposta ao réu escravo foi extremamente exagerada. Ribeiro (2005, p. 397) destaca que “o crime de Ferimentos Graves foi punido com a morte principalmente nos cinco primeiros anos de nosso código negro”. Mas, na época da condenação de Ricardo, na Corte, era raro um escravo ser condenado à morte por ferir gravemente seu senhor. Muito mais improvável ainda que a pena fosse aplicada a um cativo que tivesse ferido um preposto. (p. 400-401). Possivelmente, Ricardo foi condenado à pena máxima não exatamente pelo delito que cometeu, mas pela conjuntura que envolvia a escravidão em Rio Pardo, na época. No fim da década de 40 (séc. XX), a Câmara Municipal queixava-se ao presidente da província do grande número de escravos fugidos e da insegurança que geravam os quilombos existentes na região de Serra do município. Talvez, com o enforcamento do cativo, autoridades e senhores de escravos procurassem sinalizar à escravaria que estavam no controle da situação. (VOGT; RADÜNZ, 2010). MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21 223 Em 12 de julho de 1850, era remetida à presidência da província a petição de graça do escravo Ricardo, em que seu curador pedia clemência da pena decretada, e o relatório do processo com as cópias das sentenças de pronúncia, de sustentação e de condenação do réu. O processo foi então remetido à Corte, no Rio de Janeiro. Em 27 de setembro, o presidente da província transmitia ao juiz municipal do termo da cidade de Rio Pardo o aviso que baixou o Ministério da Justiça (em 3 de agosto) em que era ordenado executar a sentença de morte contra o preto Ricardo, pois que, no relatório do juiz de direito da comarca, “nenhuma circunstância se nota que seja favorável ao sobredicto reo”. Chama a atenção que, diante de um crime de menor gravidade, não houve por parte do Imperador a comutação da pena de Ricardo. O Poder Moderador, uma vez ouvido o Conselho de Estado, podia anular julgamentos ilegais, reformar injustiças verificadas em julgamentos legais e comutar ou minorar penas, mas, para o azar de Ricardo, não o fez. A partir de 1855, tornou-se praxe o Imperador comutar a pena de morte para a de galés perpétuas. Em 20 de outubro de 1850, o juiz municipal Francisco Pereira Monteiro julgou por terminada e concluída a sentença que mandava Ricardo ao patíbulo por haver tentado contra a vida de José Bernardes. Ao desembargador Chaves cabia pagar as custas acrescidas do processo, além de perder o valor pecuniário do escravo. Como Porteiro ad hoc na execução da pena de morte foi nomeado o escrivão Francisco de Paula Lis. Também o oficial de justiça José Lopes da Silva, foi intimado para comparecer na cadeia civil da cidade de Rio Pardo, às 10 horas da manhã do dia 23 de outubro de 1850 a fim de infligir a pena ao acusado. Considerações finais Como ilustrado ao longo do texto, nesse período de 22 anos que dista um processo do outro se observam mudanças significativas nos ritos processuais jurídicos que objetivavam manter a ordem escravista e o direito de propriedade do escravo no Brasil. Em 1828, no Brasil, ainda não existia uma estrutura jurídica própria. O que havia era uma simbiose entre ordenações, decretos e resoluções que mesclavam tradições do Estado absolutista moderno lusitano com ideais iluministas oriundas da Europa no transcurso do século XVIII. Já em 1850, 224 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012 o quadro era bem diferente. Existia no Império uma estrutura jurídica clara, pautada em leis como o Código Criminal de 1830, o Código de Processo Criminal de 1832 e sua respectiva alteração, ocorrida em 1841, a qual se fundamentava em princípios liberais. Na contramão desse espírito, visando a garantir a ordem escravista, foi promulgada, em 1835, a Lei de 10 de junho, que é adjetivada como “Lei de Exceção”. Seja pelas leis portuguesas, seja pelas leis brasileiras, refletindo o antigo Direito Romano, a condição de escravo encerrava uma flagrante contradição: a de ser mercadoria e sujeito ao mesmo tempo. Sendo mercadoria, era negado ao cativo o status de pessoa. Não podia, por conseguinte, ter direitos políticos nem exercer cargos públicos ou eclesiásticos. No entanto, em caso de praticar algum crime, respondia à Justiça como sujeito. Em relação à lei penal, “o escravo, sujeito do delicto ou agente delle, não é cousa, é pessoa na acepção lata do termo, um ente humano, um homem enfim igual pela natureza aos outros homens livres seus semelhantes. Responde, portanto, pessoal e diretamente pelos delictos que cometta”. (MALHEIROS, 1866, p. 28). Mas seja pelas Ordenações Filipinas, seja pelo Direito Penal do Império, nunca seria julgado por seus pares. Seria sempre julgado por cidadãos, quase sempre proprietários de escravos. Os escravos Leopoldo, Rodolpho e Ricardo foram condenados à morte na forca. Dois parecem ter sido os objetivos com a aplicação da pena capital a escravos: um deles era o de dar uma satisfação ao povo; o outro era o de amedrontar e aterrorizar o trabalhador cativo. (GOULART 1971, p. 143). As três condenações aqui referidas tiveram caráter pedagógico com vistas a reafirmar a ordem e o estatuto escravista. MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21 225 Notas As referências ao processo envolvendo os escravos Rodolpho e Leopoldo foram extraídas dos Processos-crime cuja fonte são: Apers – Civil e Crime, Rio Pardo. N. 256, M. 10, E. 33 – 1828; e Apers – Civil e Crime, Rio Pardo. N. 276, M. 11, E. 10 – 1828. 1 As referências ao processo-crime envolvendo o escravo Ricardo é: Apers – Civil e Crime, Rio Pardo. N. 1655, M. 92, E. 5D – 1850. 2 226 O ritual de preparação do castigo está descrito detalhadamente em Radünz e Vogt (2010, p. 185-187). 3 Lei inteiramente excepcional porque era totalmente fora do espírito liberal do Código de Processo Criminal. Era uma lei feita para aterrorizar escravos. 4 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012 Referências ACTOS DO PODER EXECUTIVO, 1829. Disponível em: <http:// www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/ legislacao/publicacoes/doimperio/ colecao2.html>. Acesso em: 10 maio 2012. ou cometerem outra qualquer offensa physica contra seus senhores, etc.; e estabelece regras para o processo. Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1835. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1964. Parte primeira. BANDEIRA FILHO, A. H. de Souza. 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XX), no que se refere ao corpo das mulheres, ao feminino e ao maternalismo nele encarcerados. Palavras-chave: gênero; corpo; criminologia; maternalismo. Abstract: Considering the body and embodiment as steeped in symbolic systems, this paper discusses some aspects of the social construction of bodies in Western society. The focus is on the knowledge of Law and Criminology as instances of objectification and production of feminine and maternalism. So it is discussed the bibliographic references about the expansion of medical knowledge in the discourse of law, the construction of the knowledge of the european Positivist Criminology and the influence of the European criminological thought in the brazilian jurists and criminologists in the years 1930-1940, when it refers to the body of women, the feminism and the and female maternalism in it. Keywords: gender, body, criminology, maternalism. Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora na Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro-PR). Pesquisadora sobre os seguintes temas: Gênero, História das Polícias e das Forças Armadas, Criminologia e História do Corpo. Integrante do Laboratório de História Ambiental e Gênero (Lhag)/ Unicentro. E-mail: rosemeri_moreira@yahoo.com.br. * MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 229 Saber jurídico e algumas considerações sobre o corpo Na perspectiva dos estudos culturais, o corpo é um campo de batalha por significados os mais diversos. Nesta abordagem “o corpo é uma ficção, um conjunto de representações mentais, uma imagem inconsciente que se elabora, se dissolve, se reconstrói através da história do sujeito, com a mediação dos discursos sociais e dos sistemas simbólicos”. (CORBIN et al. 2008, p. 9). A expansão do saber médico sobre o corpo no campo do Direito se deu na legislação e na cultura jurídicas, a partir do surgimento das especializações médicas: Criminologia Medicina Legal.2 Na França, Ruth Harris (1993) assinala que, no fim do século XIX, diversas correntes médicas buscavam influenciar na legislação e nos Tribunais de Justiça, os quais se tornaram locais de embates e rupturas com o paradigma do chamado Direito clássico (iluminista). O pensamento jurídico francês, ainda no fim do século XIX, influenciado pelo pensamento médico, passou a se preocupar com a individuação da pena trazendo à cena as circunstâncias atenuantes e agravantes dos delitos. (HARRIS, 1993). O sujeito universal e abstrato do Direito clássico francês começou nesse período a ser sobreposto, timidamente ou de forma semiclandestina, a um sujeito com individualidade, trajetória e características únicas e que possuía, sobretudo, um corpo. O Direito clássico, ou liberal, se baseia na defesa do livre-arbítrio absoluto que permeia quase todos os códigos penais da modernidade. (BECCARIA, 1983). Na concepção do Direito liberal, a crença na capacidade racional do indivíduo é a base da responsabilização de seus atos, e a penalidade tem a função de separá-lo da sociedade. Ceder ao desejo de praticar o ato delituoso é o que separaria o criminoso do não criminoso. Para esse pensamento, o que deve ser julgado é o crime e a quebra do contrato social por parte do criminoso. O fundamento da pena é a culpabilidade do sujeito, e o seu fim é impedir a violação da lei. No texto clássico de Cesare Beccaria, escrito em 1764, somente as crianças e os loucos não poderiam ser responsabilizados por seus atos, uma vez que careciam de racionalidade. O discurso médico adentra o Direito, dando origem à Escola Positivista do Direito Penal e à Criminologia, que, partindo de diversas abordagens se contrapõe à concepção de sujeito, crime, criminoso e Estado, do Direito clássico. Para Laurent Mucchielli (apud ALVAREZ, 2003), Cesare Lombroso, considerado “herói fundador” da Criminologia, seria antes de tudo, um 230 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012 herdeiro, pois seu pensamento apresenta uma condensação de ensinamentos da frenologia, antropologia, medicina legal e do alienismo, desenvolvidos anteriormente. A Criminologia não começara em fins do século XIX, mas estava inscrita nas ciências médicas desde o seu início, adquirindo status em níveis e períodos diversificados conforme o país. Deixando de lado o debate das paternidades, o pensamento lombrosiano tem por base a defesa de que o ser humano é produto de um meio genético e social cabendo à ciência da Criminologia compreender as causas do crime e sua natureza. Uma natureza pensada como patológica e inscrita de forma irreversível nos corpos. Uma questão de saúde física e mental que urgia decifrar no corpo do criminoso, e que caberia ao criminologista – que seria um misto de médico, policial, juiz e professor – detectar, prevenir, remediar ou reeducar. Mesmo aqueles que pouco assumiram os pressupostos do determinismo biológico de Lombroso, o que ficou, no entanto, no Direito Penal Positivista, foi a criação da figura do homo criminalis.3 A mudança de foco – do crime para o criminoso – faz parte do processo de individuação da pena, citado anteriormente. Para Michel Foucault, na construção do Direito Positivista, a punição legal passou a ser legitimada pela ciência e deixou de enfocar as infrações, mas os indivíduos, “sobre aquilo que eles são, serão ou possam ser”. (1993, p. 22). Outras duas noções de suma importância que passaram a fazer parte do pensamento jurídico são a periculosidade e defesa social. A partir dessas noções, vinculadas ao homo criminalis, caberia ao Estado e ao criminologista, seu principal agente, criarem instituições de detecção, prevenção e correção das pessoas julgadas potencialmente criminosas. Nesse embate entre clássicos e positivistas, o que se confronta, além da ideia de verdade sobre a natureza humana, é a discussão sobre qual é a função do Estado. Para Peter Fry e Sérgio Carrara (1986, p. 49), esse debate foi travado entre duas concepções: “de um lado, um Estado gendarme e liberal e de outro um Estado hobessiano sem uma separação nítida entre público e o privado”. No meio-termo dessa polarização, alguns juristas denominados neoclássicos defendiam um livre-arbítrio relativo e postulavam que os “juízes deveriam estar atentos ao ambiente físico e social onde o crime tinha sido cometido.” (RIBEIRO FILHO, 1994, p. 134). A defesa dos neoclássicos de MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 231 um livre-arbítrio relativo provém das dificuldades por eles expressadas da aplicação do pensamento jurídico clássico, ou seja, os juristas deveriam recorrer aos profissionais especialistas, aos peritos médicos de modo que indicassem as condições físicas e sociais que propiciavam as patologias e as insanidades. Graduações de racionalidades e responsabilidades foram estabelecidas baseadas no gênero, raça/etnia, geração, sanidade física e mental, as quais poderiam ser tomadas como atenuantes ou agravantes. Para Ribeiro Filho, “os neoclássicos apropriaram-se do homem racional solitário do direito clássico e lhe deram um passado e um futuro”. (1994, p. 136). No pensamento jurídico, o corpo das pessoas passou a ser o foco de detecção, ordenamento, julgamento e punição. Tudo isso a partir das premissas estabelecidas pelo saber médico da distinção, de classificação, higiene e inventário. Esse saber criminológico embalou os sonhos dos médicos e juristas brasileiros também no que concerne ao feminino/mulheres, como uma esfinge, enfim, a decifrar. Criminologias, criminologistas e diversas leituras do feminino no Brasil (1930-1940) A instauração do saber criminológico no Brasil se deu a partir de fins do século XIX e foi consolidada na década de 30 do mesmo século. Esse saber produziu as mais diversas leituras sobre o corpo classificado como feminino. No fim do século XIX era ensaiada, no Brasil, sua virada republicana, e os ideais liberais alastrados carregavam uma leitura específica. Sobre esse contexto, José Murilo de Carvalho aponta às contradições e adaptações efetuadas pela intelectualidade e pelos políticos brasileiros na construção de um liberalismo e republicanismo “à brasileira”. O liberalismo do período foi construído a partir da desconfiança das elites políticas e intelectuais das ideias de igualdade e democracia diante de uma população de ex-escravos e analfabetos. (CARVALHO, 1987, 1990). A legislação da Primeirsa República carrega essa contradição. De qualquer forma, o imaginário que embala os intelectuais, literatos e políticos é uma modernização pensada como europeia. A modernização no Brasil se deu em duas fases distintas: na primeira de 1870 a 1920, construtora do liberalismo à brasileira, a questão “raça e civilização” era essencial; na segunda fase, que corresponde à década de 30, o foco é deslocado para a nativização e adequação da europeidade à realidade nacional. (HERSCHMANN; PEREIRA, 1994, p. 34-35). 232 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012 Na primeira modernização, a meta era ficar em pé de igualdade com a Europa através da importação do cotidiano, das ideias, das instituições e da economia. Isso estava presente no cerne do imaginário da geração de literatos de 1870, marcados pelo ideal cientificista. Na ânsia pela República, para esse grupo de intelectuais, o bacharel e/ou burocrata era representante da elite imperial e, como tal, ligado à tradição e aos atrasos cultural, político e econômico, ao passo que os cientistas – especialmente os “artistas do operatório”: os médicos – poderiam dar uma resposta satisfatória ao futuro que se vislumbrava. (H ERSCHMANN ; P EREIRA , 1994, p. 60-61). A institucionalização da medicina no Brasil se deu sob a égide de um Estado republicano, do nacionalismo e de preocupações eugênico-raciais. (SCHWARCZ, 1993). No Brasil do fim do século XIX, o espaço urbano era a principal preocupação, tanto do olhar médico sanitarista quanto do médico criminologista. Essas perspectivas, longe de serem excludentes em sua aplicação, foram sobrepostas em olhares que incidiam ora sobre a ordem do corpo e da família ora sobre a desordem da cidade: a delinquência, o crime e o criminoso. Abordando representações do masculino/feminino no discurso médico, Maria Izilda Santos de Matos (2003) aponta as releituras efetuadas no Brasil entre 1890 e 1930 sobre essas construções e as ações dos médicos sanitaristas que recaíram sobre o processo de urbanização da capital paulista. Para essa autora, a instalação do regime republicano concentrou a estruturação do Estado no binômio família/cidade e o conceito de pátria ligado à família. O Estado encabeçava o projeto sanitário-higienista em que o poder médico foi sobremaneira ampliado ao se institucionalizar. Na perspectiva da medicina sanitarista, caberia às mulheres o cuidado higiênico: consigo, com a família, com o lar. A alimentação, o vestuário, a higiene pessoal, a higiene das crianças e do espaço familiar faziam parte de um aprendizado que buscava profissionalizar a maternagem encarregada dessa profilaxia que conjugava higiene física e moral. Pensando como sendo intrínseca às mulheres a capacidade do cuidado com o Outro, o discurso higienista, paradoxalmente, normatiza através da puericultura o aprendizado de ser mãe, esposa e dona de casa através da profissionalização da maternidade. Esteio da moral, dos costumes e do legado biológico, o corpo das mulheres, construído no modelo sexual dual (LAQUEUR, 2001), é, em si mesmo, o corpo feminino.4 MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 233 Sobre a construção do maternalismo no Brasil, é importante lembrar que, nesse período, surgiram e se desenvolver no Brasil as especializações: ginecologia e obstetrícia, a partir da Faculdade de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro (MARTINS, 2004, p. 217-259). Esses eram importantes lugares para os intelectuais médicos elaborarem debates sobre o corpo feminino. Releituras da medicina anatomofisiológica e da medicina ambientalista se refletiam no pensamento jurídico de forma associada e não como excludentes entre si. A Criminologia se constrói na junção/sobreposição do saber médico com/ao saber jurídico, tendo a raça e a sexualidade papel de destaque. (ALVAREZ, 2004). O corpo – pautado nessa junção de saberes – é como um alfabeto que proporciona as mais diversas leituras: mulher, homem, criança, adulto, idoso, branco, preto, indígena, heterossexual, homossexual, mãe, esposa, prostituta, doente, louco, etc. A Faculdade de Medicina da Bahia e a Escola de Direito do Recife, no fim do século XIX, foram os principais polos irradiadores do pensamento criminológico no Brasil. Na Faculdade de Medicina da Bahia, segundo Herschmann (1994, p. 50), a produção médica se concentrou na perícia médico-legal e nas pesquisas antropológicas raciais, ao passo que na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro a tendência foi combater os “maus costumes” e as epidemias. Raimundo Nina Rodrigues (na Bahia) e Oswaldo Cruz (no Rio de Janeiro) foram os propulsores de um saber médico que se especializava e adentrava outras áreas.5 O primeiro consolidou a cadeira de MedicinaLegal nos cursos de Medicina e a cadeira de Criminologia nos cursos de Direito, sob influência de intelectuais italianos e alemães.6 O segundo, vinculado ao pensamento francês, consolidou a Medicina HigiênicoSanitarista como cadeira nas universidades e, principalmente, como política de governo. Enquanto para os expoentes da Medicina carioca (Oswaldo Cruz e Carlos Chagas) o importante era combater as doenças, epidemias e maus hábitos da população, para os médicos baianos o foco era o corpo do doente e as características pensadas como hereditárias. (HERSCHMANN, 1994, p. 52). A Escola de Direito do Recife, após a reforma curricular de 1879, passou a defender o afastamento das humanidades e a necessidade de legitimar o conhecimento jurídico através de um estatuto científico.7 O desejo de 234 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012 tornar científico o Direito encontrou, nos estudos criminais, um campo fértil por excelência, uma vez que, através da releitura efetuada por Nina Rodrigues, seguiria os postulados já firmados na Europa. Essa mesma reforma de ensino criou a cadeira de Criminologia, na Faculdade de Direito do Recife que passou a ser ministrada por Nina Rodrigues. Seus alunos se tornaram futuros expoentes da consolidação da Criminologia na década de 30 do século XX. Mesmo em descrédito na Europa, as teorias criminológicas italianas8 foram, no fim do século XIX, no Brasil, coroadas de êxitos. Pierre Darmon denomina a América Latina de verdadeiro “eldorado” da Criminologia (Apud ALVAREZ, 2004). As razões desse sucesso se devem ao seu efeito tranqüilizador nas elites, pois apresentava causas biológicas e naturais para os problemas visíveis no processo de urbanização. Para Lilian Schwarcz (1993, p. 146) as novas demandas sociais e os arranjos classistas colocavam a figura do povo e da raça como pontos de reflexão e apreensão aos intelectuais do período. As desigualdades sociais, inscritas nos corpos, é que exigiriam padrões diferenciados de cidadania. O saber médico-jurídico reforçava as leituras do corpo e criava outras tantas partindo de sua superfície, anatomia e fisiologia: o negro e a mulher precisavam ser objetivados. As propostas de mudanças no Código Penal de 1890, feitas por diversos médicos criminologistas e por juristas, defendiam a necessidade da existência de pareceres dos especialistas sobre a anormalidade/normalidade do criminoso; detecção da possibilidade ou não de cura; e a criação de instituições reformadoras mantidas pelo Estado. Para Ribeiro Filho (1994, p. 138) o Código Penal de 1890 tem inspiração liberal uma vez que defende que todo membro da sociedade é dotado de livre-arbítrio e, como tal, é responsável por seus atos. Entretanto, esse mesmo código prevê brechas na responsabilização daqueles que “por imbecilidade nativa ou enfraquecimento senil” praticarem delitos. Além do que, a consideração do denominado estado de “completa privação de sentidos” poderia atenuar a responsabilidade de todas as demais pessoas. Mesmo que os criminologistas tenham conseguido o intento de influenciar na legislação somente na década de 40 (séc. XX), a prática jurídica efetuada durante a vigência do Código Penal de 1890 estava permeada em seus julgamentos e penalizações, de forma semiclandestina, da consideração individualizada do réu (RIBEIRO FILHO, 1994; ALVAREZ, 2004). Ou seja, o MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 235 pensamento médico-jurídico de fins do século XIX, no Brasil, conseguiu espaço institucional, mas não apresentou a força necessária para mudar a legislação vigente. Entretanto, se inseriu de forma sub-reptícia na prática dos juristas. A oficialização do Direito Penal Positivista no Código Penal brasileiro foi feita por uma geração renovada de criminologistas e juristas, a partir da segunda década do século XX. Esses intelectuais se colocaram como herdeiros e, ao mesmo tempo, discordantes de Nina Rodrigues. Os “novos” criminologistas e juristas reatualizaram antigas leituras do corpo das mulheres agora com o acréscimo de interferirem na produção do Código Penal de 1940, nos projetos de modernização das forças policiais, além de possuírem maior autoridade nos cursos de Direito, principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo.9 O debate criminológico e jurídico foi alojado no centro político e no já consolidado novo polo econômico do País. As diferentes concepções de Estado e cidadania, postuladas no debate clássicos versus positivistas, foram intercaladas no Código Penal de 1940, que instituiu a “medida de segurança” com um caráter preventivo pautado na ideia de periculosidade. Foram criados, nesse código, a segregação hospitalar; a assistência; o tratamento; a custódia e a reeducação dos criminosos e infratores. Na análise de Ribeiro Filho (1994, p. 146), o ecletismo desse código classificava as pessoas em recuperáveis e irrecuperáveis: às primeiras segregar (Direito clássico); às segundas reeducar/curar (Direito Positivista). Os critérios de classificação adotados não somente pelos juristas, mas por todos os agentes dos poderes de controle social são problematizados por Ribeiro Filho. O discurso criminológico, além e anteriormente à própria legislação fez “circular concepções e estigmas que impregnaram profundamente o senso comum e as práticas dos operadores do direito e dos agentes do controle social do país ao longo de quase um século”. (ALVAREZ, 2004, p. 5). Percepções hierárquicas inscritas nos corpos estavam presentes no cotidiano das pessoas e na ação policial, uma vez que a interpretação de periculosidade tinha por base o olhar que hierarquizava e normalizava: classe social, gênero, raça/ etnia, sexualidade, etc. O novo impulso da Criminologia, a partir da instalação do governo provisório de Getúlio Vargas, é visto por James Green como um instrumento de contenção da chamada desordem social, renovada nesse momento pela presença de “comunistas, fascistas, criminosos, menores delinquentes, negros 236 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012 degenerados, homossexuais e outras figuras de desordem social”. (1999, p. 194). A essa lista acrescento a prostituta, figura sempre dissecada nos textos dos criminologistas, e a “mulher moderna” criada através de problematizações anteriores de Francisco José Viveiro de Castro (1862-1906), de Afrânio Peixoto (1876-1947), de Leonídio Ribeiro (1893-1976) e mais tardiamente de Nelson Hungria (1891-1969). Essa vanguarda inova ao incorporar à fisiologia, anatomia, eugenia e às hereditariedades diversas, os postulados da psiquiatria e da psicanálise. Permanece dos antecessores, em Afrânio Peixoto e nos demais, a ideia de periculosidade e a necessidade da defesa social por parte do Estado, além de se dedicarem a descrever, classificar e reordenar as mulheres no mundo social. Principal criminologista da primeira metade do século XX, Afrânio Peixoto produziu 141 livros jurídicos e literários influenciando o pensamento jurídico no Brasil até os dias atuais, mesmo que de forma sub-reptícia.10 Recentes declarações de juízes, delegados e policiais11 sobre a Lei 11.340/ 2006, popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha”, demonstram a presença de postulados diversos construídos pela Criminologia sobre a categoria mulheres – de Nina Rodrigues, passando por Afrânio Peixoto e outros tantos. É importante ater-se mais detalhadamente ao pensamento do criminologista Afrânio Peixoto uma vez que sua extensa produção focava principalmente as mulheres. A obra Criminologia, cuja primeira edição data de 1933, tornou-se o manual por excelência dessa disciplina nos bancos universitários. Médico baiano da “Escola Nina Rodrigues”, Afrânio Peixoto detectava, no aumento da criminalidade, um problema degenerativo. Daí decorria seu projeto eugênico de restituir a saúde à Nação. A eugenia que defende difere da linha adotada por Nina Rodrigues que relacionava degeneração, raça e criminalidade. Mesmo não negando a herança genética da degeneração, Afrânio Peixoto contesta que se tenha achado a natureza definitiva da predisposição à criminalidade. (PEIXOTO, 1953, p. 39). Segundo Herschmann e Pereira, Peixoto é reticente em relacionar crime e raça, especialmente num momento em que a intelectualidade brasileira enfatizava a “necessidade de um ‘olhar’ capaz de visualizar o país enquanto algo radicalmente distinto do Velho Mundo, dotado de uma especificidade que tomava a ‘mestiçagem’ como um de seus referenciais”. (1994, p. 29). Para esses pesquisadores, os MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 237 intelectuais de direita e esquerda, se encontravam seduzidos por esse referencial de culto ao tipo nacional e à redescoberta do Brasil. Deixando o termo raça de lado, Peixoto defende a criação de um atestado médico pré-nupcial dos nubentes para autorização do casamento, a fim de evitar prole doente e discorre sobre a necessidade de implantação de uma política à qual chama “socioplástica”. (PEIXOTO, 1953, p. 295-318). Afrânio Peixoto relaciona a criminalidade em geral e principalmente a das mulheres ao mau funcionamento do sistema endócrino. 12 Categoricamente, afirma: “Normal ou invertido, honesto ou criminoso, revoltado ou pacífico, revoltado ou patriota, céptico ou ciente... tudo são nomes ‘leigos’ ou populares, não canônicos ou científicos, de determinantes endócrinos”. As mulheres devassas e “insaciáveis messalinas [...] têm apenas foliculina demais” ao passo que “as mulheres invertidas, as mulheres estéreis, as mulheres obesas, naufragadas na gordura, endireitam-se, curam-se, adelgaçam-se com a foliculina. Foliculina, és tôda a mulher!”13 Nessa leitura, a solução para uma gama diversificada de problemas percebidos nas mulheres resumia-se à maternidade e a prática do aleitamento. Ao contrário de Lombroso e Nina Rodrigues, defende que a prostituta nata é minoria: “biológica ou patológica, vem de deficiência mental congênita, neurastenia, histeria, degeneração que, por incitações pervertidas ou eróticas, ou por incapacidade de trabalho fixo, disciplinado, levam à orgia”. (PEIXOTO, 1953, p. 199). Consideradas “prostitutas de índole”, essas são exemplo de uma concepção simultânea de doença que se inscreve na “natureza” do corpo e na sociedade: reciprocamente, são doentes naturais e sociais. Para ele, as demais prostitutas não doentes biologicamente são produto, ora dos luxos e gostos dos prazeres ou maus costumes, ora da irresponsabilidade ou negação masculina de prover um lar. A primeira é devassa e corrompida pela modernidade, e a segunda, vítima de um mundo em que o “parceiro foge à obra comum” obrigando-a a trabalhar para sobreviver, e uma vez que “naturalmente mais fraca e agravada mais com o ônus da procriação, gestação, maternidade, aleitamento, criação e educação dos filhos” (PEIXOTO, 1953, p. 1999) não consegue ganhar a vida como os homens. Doentes sociais, esses dois tipos de mulheres se distinguem pela culpabilização da primeira e vitimização da segunda. Visto como um apavorante afrouxamento nos costumes, a maior circulação de mulheres pela cidade trouxer transformações na imagem feminina que passou de ociosa à fútil (RAGO, 2008, p. 67-79) e, para Afrânio Peixoto e outros tantos criminalistas, potencialmente prostituta. 238 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012 Afrânio aponta as vítimas (1953, p. 201-202): as divorciadas; as que casaram muito cedo; as que recebiam pouco salário (professoras, governantas); as com pouca instrução (domésticas, copeiras, costureiras, arrumadeiras, aias); e as de “ofícios de passagem” (cantoras, cabeleireiras e manicures). Todas apresentam potencial à prostituição. Ao que parece, o trabalho das mulheres no espaço urbano é visto como um passo à prostituição vitimizada, assim como também os lazeres da cidade incitavam a mulher moderna que estava a um passo da devassidão. Presente nos textos de Lenídio Ribeiro ou, ainda, em Nelson Hungria a “mulher moderna”, participante da cidade, pelo trabalho e/ou pelo lazer, apontada por Viveiro de Castro já em fins do século XIX (1932, p. 21) como a causa de desagregação da família e, consequentemente, da sociedade, precisava ser contida. Essa contenção foi edificada no Código Penal de 1940. A expansão dos meios de comunicação na vida urbana, nesse período, é vista como negativa às mulheres. Uma mulher que saiu “da proteção da intimidade vigilante do lar, para ir trabalhar e/ou receber uma educação moderna, tornou-se objeto de toda sorte de sedução”. (PEIXOTO, 1953, p. 126). Impressionáveis e menos racionais as mulheres modernas do pós-Primeira Guerra Mundial, não possuiriam força moral para sua própria proteção. Esse fato afetaria a estrutura da família brasileira. O rádio, a imprensa e o cinema são vistos nesses enunciados como “disseminadores de imagens de uma modernidade moralmente questionável”. (MUNIZ, 2006). Dessa forma, o discurso científico da Criminologia do período se aproxima dos ditames da Igreja Católica que, a partir do pontificado de Pio IX, condenava o mundo moderno. Passando pelo Papa Leão XIII até Pio X, que, em 1910, determinou que “todos os candidatos a ordens religiosas deviam prestar juramento abjurando o modernismo” (FISCHERWOLLPERT, 1991), o papado condenava a chamada vida moderna. A presença de mulheres no espaço público, o movimento sufragista em curso, as organizações operárias (comunistas e anarquistas), os meios de comunicação, o tenentismo e a arte moderna dos anos 20 (séc. XX), criavam apelos receosos contra um mundo moderno em que a família e “a casa deixa de ser o centro da cidade, das decisões e passa a funcionar como refúgio familiar”. (MUNIZ, 2006). Refúgio posto em risco pela existência, nas palavras do jurista Francisco Viveiros de Castro, de uma mulher “dominada que foi pela ideia errônea de sua emancipação faz tudo para perder o respeito, a estima e a consideração do homem”. (CASTRO, 1932). MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 239 De qualquer maneira, a mulher moderna e a mulher desamparada, num processo de circularidade, seriam resultado da “influência familiar” e causa de sua desestruturação. Sobre a família, Peixoto aponta como fatores desagregadores: a ausência da figura do homem, o alcoolismo, a conduta imoral da mãe, os pais separados ou falecidos, ou ainda, nas famílias que ele considera como normais, o grande número de filhos que impedia a “vigilância moral”. (PEIXOTO, 1953, p. 200). Não sendo menos criminosas que os homens, as mulheres teriam, entretanto, delitos específicos, tais como: o aborto, o infanticídio e o envenenamentos e, ainda, eram ao mesmo tempo vítimas e causadoras de crimes passionais, ditos “românticos”. Condena tanto os homens quanto as mulheres que se deixavam levar pela sentimentalidade e criticava a benevolência dos juízes, jurados e da imprensa com relação a um crime tributário “desse estúpido século do Romantismo...” que propagou a “terrível civilização romântica que tirou a mulher de seu trabalho colocando-lhe o desejo no lugar”. (PEIXOTO, 1953, p. 90). A mulher moderna, mundana, estava presente nos “teatros, cinemas, modistas, palaces, salões, academias, chás, cabarés, praias de banho, dancings, viagens, divertimentos, perversões”. Espaços esses para servir o amor “perverso, assassino, imoral e torpe”. (PEIXOTO, 1953, p. 113). Para ele as mulheres economicamente superiores eram “manequim de futilidades e jóias, trapos caros e cheiros caríssimos, que demandam para servi-las, criados, carruagens, palácios”. Eram produtos de uma sociedade “doida pelo prejuízo sensualista, individualista, burguês, explorador”. (PEIXOTO, 1953, p. 114). O que Afrânio Peixoto condenava através de sua tipologia de mulheres eram o individualismo e a liberdade da sociedade e da cidade moderna. Para ordenar a cidade, diversos de seus antecessores que postulavam uma Criminologia científica de base biológica, mesmo que a essa não se opusesse, Afrânio Peixoto acrescentou premissas que se aproximam sobremaneira do viés católico,14 num momento conturbado também pela ação das sufragistas no Brasil. Não por acaso, as principais mudanças efetuadas no Código Penal de 1940 dizem respeito à família e aos direitos sexuais. Esse código, tendo por base o pensamento da nova criminologia, se apresentava como uma tentativa de contenção moral e recondução das “mulheres para se dedicarem exclusivamente à maternidade, aos cuidados com os filhos, maridos etc... como guardiãs da moral e dos bons costumes”. (HUNGRIA; LACERDA, 1956, p. 187). 240 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012 O crime de sedução presente nesse código colocava o corpo das mulheres – seus hímens – como objetos de tutela do Estado. Muniz (2006) assinala a permanência, no Código Penal de 1940, da figura do homem como chefe do casal, e a retirada da “questão de honra da família”, que anteriormente era tido como um direito e obrigação moral dos homens de reagirem contra os outros homens e contra as mulheres de sua família. Nesse contexto de fortalecimento do poder do Estado em detrimento do poder patriarcal, os corpos das mulheres são deslocados simbolicamente. Sua “virtude” passa a pertencer à sociedade como um todo e tem no Estado seu principal guardião. Importante é observar que a Criminologia no Brasil, na primeira metade do século XX, apresentava um viés contrário aos postulados da Criminologia do período precedente no que se refere às mulheres. Lembrando as análises de Olivier Faure (2008, p. 55), é preciso assinalar que as correntes da neurofisilogia, neurofisilogia evolutiva, anatomofisiológica, eugenista e sanitarista haviam recriado o maternalismo intrínseco às mulheres sob um viés científico e por diversos caminhos. A maternidade foi vista, nessas perspectivas, como antídoto tranquilizador ao excesso de fluxo menstrual que as ensandecia; como propícia à contenção moral da sociedade devido à sua evolução primitiva e imune ao progresso, grande causador da criminalidade; como destino anatomofisiológico excludente das atividades intelectuais e delimitador do espaço público/privado; e, ainda, como detentora da profilaxia física e moral. Não sem razão, a Primeira Geração do Feminismo organizou-se em busca de direitos de cidadania em nome ainda do maternalismo, todavia realizando um deslocamento substancial. A Criminologia, na primeira metade do século XX, no Brasil, retirou o poder moral e o maternal posto como intrínseco às mulheres, e existentes nos discursos precedentes, e as colocou como indesejáveis no espaço público, prováveis prostitutas, incapazes de racionalidade, excessivamente sensíveis, um ser inferior. Uma maternidade, novamente como antídoto, mas não contra a imoralidade do mundo moderno, mas contra a imoralidade ou doença dela própria. Uma misoginia latente que segue pari passu com a concretude de mulheres em espaços “nunca dantes navegados”, tais como o próprio Direito e a medicina. A defesa e a ressignificação do maternalismo efetuado pelas sufragistas brasileiras se insere nesse contexto de disputa com as representações dos criminologistas e dos juristas. MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 241 Notas A medicina no século XIX foi institucionalizada como o saber que orienta a sociedade e que constrói o corpo dando a ele um sexo e um futuro. Esse saber foi expandido, não sem embates, seletividade e resistências, para outros campos e lugares, como é o caso do saber jurídico. (ALVAREZ, 2004). 1 Alvarez (2003) aponta resistências à Criminologia italiana na França, efetuada pela Escola de Lyon tendo como principal representante o médico Alexandre Lacassagne, que enfatizava o meio social como “caldo de cultura” do crime. 2 Essa junção parece não ter sido encerrada na atualidade mesmo em algumas teorias feministas criticadas por Judith Butler e Elizabeth Badinter (1983). A primeira critica a política identitária que exclui do feminino os sujeitos e grupos que não nasceram com o corpo classificado como sendo de uma mulher. Para ela, essa exclusão se encontra baseada ainda na construção binária do sistema sexo/gênero e tem o corpo como referente. (BUTLER, 2008). Badinter assinala que a ênfase no maternalismo é incapaz de superar a hierarquia entre homens e mulheres. 3 Mariza Corrêa (1982) aprofunda a reflexão sobre a constituição e consolidação das especializações médicas e, partindo do pensamento de Nina Rodrigues, enfoca as disputas institucionais e a relação entre a medicina e antropologia. 4 Segundo Maio (1995, p. 231), a cadeira de Medicina-Legal surgiu em 1832, momento de reforma curricular em que as academias médico-cirúrgicas passaram a ser Faculdades de Medicina. Para esse autor, os memorialistas de Nina Rodrigues, muitos 5 242 deles seus ex-alunos, nos anos 30 e 40 do séc. XX é que construíram a ideia de uma “Escola Nina Rodrigues”. A Escola de Direito do Recife foi criada em 1854 com a transferência da Faculdade de Direito de Olinda. Os primeiros cursos de Direito no Brasil foram criados em 1827, em São Paulo e Olinda. Segundo Ricardo Fonseca, esses cursos eram baseados numa concepção jusnaturalista, teológica e préliberal. Um curso muito próximo dos ensinamentos de Coimbra. (FONSECA, 2005). 6 Uma mescla do pensamento de Cesare Lombroso, Enrico Ferri (1856-1929) e Rafaello Garofalo (1852-1935). 7 Paulo Egídio de Carvalho (1842-1906), professor na Faculdade de Direito de São Paulo, ex-aluno de Afrânio Peixoto, foi o autor e diretor do projeto do Instituto Disciplinar para menores abandonados e delinquentes em São Paulo, inaugurado em 1902. Também em São Paulo foi fundada, em 1922, a Sociedade de Medicina-Legal e Criminal de São Paulo. 8 Com a tiragem total de noventa obras impressas, alcançou ao todo 599.200 exemplares. (MOTA, 1994, p. 147). 9 ACAYABA, Cíntia. Mulher deve evitar homem “pudim de cachaça” para se proteger, diz juiz do RS. Folha de São Paulo, São Paulo, 8 ago. 2008. 10 O autor apresenta diversos dados para comprovar essa relação, mas afirma que o disendocrinismo – mau funcionamento do sistema endócrino – “é uma condição facultativa do crime, e não suficiente ou necessária”. (PEIXOTO, 1953, p. 64). 11 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012 12 Idem, passim, p. 55, 57, 59, 61. Peixoto discorre longamente para explicar que a produção da foliculina ocorrida no processo periódico de ovulação, menstruação ou gestação, regulava a “maquinaria feminina”. Principalmente a Encíclica Graves de Communi Re (Papa Leão XIII, 1901). 13 Referências ALVAREZ, Marcos C. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003. BADINTER, Elizabeth. Um amor conquistado: o mito do amor moderno. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. ______. X e Y sobre a identidade masculina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Humus, 1983. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. CARVALHO, José Murilo. A formação das almas: imaginário da República no Brasil. 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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012 Atti di un processo per stupro: o interrogatório de Artemisia Gentileschi no olhar do gênero1 Atti di un processo per stupro: the interrogation of Artemisia Gentileschi under the view of gender Cristine Tedesco* Resumo: O artigo pretende analisar um dos interrogatórios presentes nos autos do processo-crime Stupri et lenocinij Pro Curia et Fisco requerido por Orazio Gentileschi em 1612. A súplica de abertura do processo denuncia Agostino Tassi pelo desvirginamento forçado cometido contra Artemisia Gentileschi, ambos pintores da Roma seiscentista. Realizamos uma investigação atrelada às discussões de gênero, pois entendemos que as relações de poder entre o feminino e o masculino são construídas culturalmente, e que as identidades subjetivas de homens e mulheres possuem origens sociais. (SCOTT, 1990). Aproveitamos, ao mesmo tempo, da metodologia de análise da micro-história empregada por Carlo Ginzburg (1989), uma vez que a pesquisa Abstract: This article intends to analyze one of the interrogations in the lawsuit Stupri et lenocinij Pro Curia et Fisco required by Orazio Gentileschi in 1612. The opening plea of the lawsuit denounces Agostino Tassi for forced devirgination commited against Artemisia Gentileschi, both of them Roman painters from the 1600’s. We made an investigation connected to the discussions of gender as we understand that the relations of power between the masculine and the feminine are culturally built and the subjective identities of men and women have social origins. (S COTT , 1990). We used the methodology analysis from micro-history applied by Carlo Ginzburg (1989), once the research is turned to an individual trajectory, but Este trabalho é parte da pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), sob o título provisório: E non dite che dipingeva come un uomo: processo-crime, tormentos das sibilas e legado pictórico de Artemisia Lomi Gentileschi num olhar generificado da história. * Graduada em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da UFPel. Orientação: Profa. Dra. Rejane Barreto Jardim. E-mail: tedesco.cristi@gmail.com 1 MÉTIS: história & cultura – TEDESCO, Cristine – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 245 está voltada para uma trajetória individual, mas permite outras possibilidades de entendimento do contexto do século XVII, além daquelas já enraizadas na historiografia. Palavras-chave: gênero; Artemisia Gentileschi; processo-crime. allows other possibilities of understanding the context of the 17th century, besides those already rooted in the historiography. Keywords: gender; Artemisia Gentileschi; lawsuit. Introdução Os estudos desenvolvidos por Carlo Ginzburg, na obra O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição (1987), a partir de dois processos abertos contra Domenico Scandella, o “Menocchio”, distantes 15 anos um do outro e que culminaram em sua morte por ordem do Santo Ofício, estabelecem uma discussão que pretendemos também desenvolver no presente artigo. Para Ginzburg, os acontecimentos históricos individuais podem contribuir para explicações mais complexas da sociedade. Nesse caso, o processo-crime desencadeado contra Agostino Tassi pode nos ajudar a entender uma lógica social mais ampla no que se refere às relações de gênero. Uma das questões importantes trazidas pela obra é a própria existência das fontes sobre “Menocchio”, que contrariam as explicações da história tradicional, o moleiro, inserido nas camadas populares, mostra que a historiografia ainda não deu conta de muitos eventos. Uma situação semelhante é apresentada pelas fontes sobre Artemisia Gentileschi, nascida em Roma, aos 8 dias do mês de julho de 1593, filha de Prudenza Montore e Orazio Gentileschi. Um dos principais marcos de sua vida foi, sem dúvida, o ano de 1612 quando um processo foi aberto por seu pai, em Roma, contra o pintor Agostino Tassi, acusado de desvirginá-la forçadamente no ano anterior. Durante esse período, Tassi e Gentileschi realizavam juntos a pintura do Casino delle Muse no Palazzo Rospigliosi. Encerrado o processo que julgou Agostino Tassi de forma superficial, pelo menos aos olhos de Artemisia, a pintora sai de Roma e se estabelece com seu marido Pietro Antonio Stiattesi – união que foi arranjada pelo pai – em Florença. Se Tassi não foi devidamente punido no tribunal, o será através das representações pictóricas de Artemisia Gentileschi, marcadas tecnicamente pelo caravaggismo romano, estilo florentino e pelo classicismo napolitano. 246 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 245-259, jan./jun. 2012 Diferentes áreas do conhecimento produziram ao longo do tempo verdades que nos parecem ainda presentes nas ciências: a ideia de que as fontes sobre as mulheres são escassas. Isso acabou se tornando, como já afirmou Michelle Perrot (1995), um pretexto para o silêncio e desencadeou a existência de lacunas sobre as mulheres. Além dessa problemática, temos o impasse da criação artística, que, por muito tempo, foi explicada pela existência dos gênios. As mulheres foram destinadas a ser as grandes musas dos então, gênios da pintura. Uma analogia entre “Menocchio” e Artemisia Gentileschi é identificada no sentido de que ambos não fazem parte das explicações da história tradicional. É preciso entender que as mulheres não tiveram uma história separada daquela dos homens, e que as fontes que hoje nos chegam apontam à necessidade de uma revisão do saber histórico. Para o presente estudo, não podemos deixar de considerar as reflexões de Natalie Zemon Davis elaboradas ao longo da obra Nas margens: três mulheres do século XVII, publicada nos Estados Unidos, em 1995 e traduzida para o português em 1997. O texto constitui uma experiência de microhistória, guiada por uma inquietação, indicada pela historiadora no prefácio, dirigida às três mulheres: Glikl bas Judah Leib (comerciante de Hamburgo, mãe de 12 filhos e autora de uma biografia de sete volumes); Marie de l’Incarnation (fundou a primeira escola cristã para mulheres ameríndias na América do Norte); e Maria Sibylla Merian (naturalista protestante que se embrenha na selva do Suriname para desenhar flores, insetos e lagartas). Natalie Z. Davis dirige-se às três mulheres: “Procurei descobrir se vocês tiveram de lutar contra a hierarquia dos sexos.” (DAVIS, 1997, p. 13). Essa concepção demonstrada pela autora estará inserida nas problematizações de Joan Scott (1990) quando define o conceito de gênero como um saber sobre a diferença sexual construída social e culturalmente. As mulheres estudadas por Davis, ainda que vivessem na periferia dos centros políticos da Europa do século XVII ou, como dito pela própria pesquisadora: “nas margens”, revelam questões importantes sobre o início do mundo moderno. Mulheres que assumiram lugares diferentes daqueles criados para elas pelos diferentes discursos em voga naquele contexto. O questionamento feito por Davis, também é norteador para outras pesquisas que tenham como objeto as mulheres. Podemos nos perguntar, no caso da pesquisa aqui desenvolvida, por exemplo: Artemisia Gentileschi precisou lutar contra a hierarquia dos sexos? Ou ainda, utilizando-nos dos Estudos de Gênero: como os discursos, MÉTIS: história & cultura – TEDESCO, Cristine – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 247 direcionados aos corpos sexuados, atuaram ou não sobre as mulheres? Além disso, é possível perguntar: que importância teria o estudo histórico sobre uma pintora do barroco romano para o saber histórico? Diferentes olhares direcionados às fontes As pesquisas nutridas pelo interesse de estudar personalidades individuais têm perseguido “fios e rastros”, para usar uma expressão de Carlo Ginzburg (2007). Nossas aproximações sucessivas com o objeto de pesquisa, por vieses diferentes, criaram possibilidades para lançar questionamentos a partir de uma inquietação que se demonstra interdisciplinar. Do ponto de vista da produção pictórica, ainda que não sejamos historiadores da arte, podemos contribuir para uma compreensão mais aprofundada dos documentos figurativos, dentre os quais se apresentam as obras de Artemisia Gentileschi. Foi através dos códigos da linguagem imagética que a pintora nos legou sua visão de mundo e sua releitura sobre os dramas das mulheres-heroínas, narrados pelos textos bíblicos do Antigo Testamento. Judite, Ester, Madalena, Jael e Susana, representadas por Artemisia Gentileschi, em algumas de suas obras, remetem à posição da artista diante de suas histórias e sugerem uma atitude assumida por ela diante de uma conjuntura marcada, também, pelas tensões de gênero. Para a análise dos documentos escritos (autos do processo-crime e cartas escritas por Artemisia Gentileschi – por meio das quais discutiu a produção e valores a que seriam vendidas suas pinturas), estabelecemos outras questões. Dentre elas, podemos destacar a preocupação com a construção dos discursos normativos que determinavam funções para homens e mulheres a partir de uma lógica androcêntrica e que também se fazem presentes no contexto do século XVII. Dessa maneira, discursos e atuações sociais são os dois grandes eixos da pesquisa. Detemo-nos, agora, na discussão sobre um dos interrogatórios do processo-crime requerido por Orazio Gentileschi, que acusava Agostino Tassi de ter desvirginado forçadamente sua filha Artemisia Gentileschi. Realizamos tal seleção devido ao início dos trabalhos de tradução da fonte, desempenhada por Celso Bordignon e Vicente Pasinatto .2 A tradução, ainda inédita em Língua Portuguesa, conta com o apoio do Museu dos Capuchinhos do Rio Grande do Sul, localizado na cidade de Caxias do Sul. 248 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 245-259, jan./jun. 2012 Considerações sobre o Interrogatorio di Artemisia3 Aos 28 dias do mês de março de 1612, na casa de seu pai, cidade de Roma, Artemisia Gentileschi é interrogada sobre as circunstâncias em que o desvirginamento teria ocorrido. Quando questionada por Francesco Bulgarello, que falava em nome da Cúria e do Fisco romanos, se sabia os motivos pelos quais estava sendo inquirida, Artemisia, sob juramento de “verdade”, afirma que sim. E interrogada para que declarasse o motivo pelo qual supunha o estar sendo, Artemisia Gentileschi explica aquilo que para ela constitui “a verdade”. A pintora inicia sua narrativa dos acontecimentos que precedem o desvirginamento lamentando o fato de ter sido alcovitada por Tuzia. Ela garante ao interrogador ter sido a contribuição da inquilina Tuzia elemento fundamental para o facilitado acesso, que teve Tassi ao interior da casa, culminando no ato. Na primeira parte do interrogatório, Artemisia indica que Agostino Tassi esteve em sua casa pelo menos duas vezes na companhia de Cosmo,4 o qual tentou persuadi-la de tratar bem Tassi, pois esse seria um homem distinto, elegante, boa figura. Diante disso e recusando eu de fazer tal coisa e demonstrando de ter nojo que ele me tratasse deste modo ele acrescentou: “Não destes a tantos, poderias dar também a ele [Agostino]”. Eu então respondi a Cosmo com cólera que, de palavras de patifes como ele eu tinha pouca consideração e por isto se retirasse da minha frente e lhe virei as costas.5 (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 17-18). No segundo momento do interrogatório, Artemisia Gentileschi descreve ao interrogador, o fatídico dia do desvirginamento forçado. Encontrando, Agostino Tassi, a porta aberta da casa da família Gentileschi, entrou e se deparou com Artemisia trabalhando na produção de uma pintura.6 Ele, bruscamente, “me tomou a palheta e os pincéis da mão e os jogou em volta e disse a Tuzia: “Vá embora daqui” e dizendo eu a Tuzia que não fosse e não me deixasse que eu lhe havia acenado, no entanto ela disse: “Não quero estar a discutir aqui quero ir com Deus [em paz]” .7 (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 19). Tomando Artemisia pela mão e percorrendo o espaço da sala até chegar na porta do quarto, empurrou-a para dentro e trancou a porta. MÉTIS: história & cultura – TEDESCO, Cristine – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 249 Me jogou sobre a borda [beira] da cama dando-me com uma mão sobre o peito, me colocou um joelho entre as coxas [para] que eu não pudesse fechá-las e levantando-me as vestes, que fez grande esforço para levantá-las, me colocou um lenço à garganta e à boca para [que] assim [eu] não gritasse e a mão como antes me retinha com a outra mão me deixou, tendo esse antes colocado todos os dois joelhos entre as minhas pernas e apontando-me o membro à natureza [vagina] começou a empurrar e o colocou dentro que eu sentia que me queimava forte e me fazia grande mal que pelo impedimento que me segurava à boca não podia [eu] gritar, também tentava gritar o melhor que podia chamando por Tuzia. E lhe arranhei o rosto e lhe arranquei os cabelos e antes que o metesse dentro ainda lhe dei uma doída [grande] apertada ao membro que lhe arranquei ainda um pedaço de carne, com tudo isto ele não considerou [avaliou] nada e continuou.8 (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 19). A partir dessas afirmações de Artemisia Gentileschi, é possível fazer algumas considerações sobre sua relação com Agostino Tassi. Fica evidenciado, em seu depoimento, que o ato sexual não foi realizado com seu consentimento. Na sequência, a artista menciona, ainda, que foi, com a promessa de ser desposada 9 por Agostino, induzida a consentir amorosamente com as vontades de Tassi por muitas vezes ainda. Notamos que durante o interrogatório, Artemisia Gentileschi salienta nunca ter estado com outros homens, isso possivelmente ocorreu por conta, principalmente, dos comentários de Cosmo, que insistia em denegrir a imagem de Artemisia Gentileschi. Salientamos, assim, a importância do conceito de gênero para pensar a respeito dos elementos presentes, tanto no interrogatório de Artemisia como ao longo dos outros depoimentos que compõem o processo-crime. Em diversos momentos, podemos perceber as tensões entre as ditas verdades de Artemisia Gentileschi, Agostino Tassi e Tuzia, que estão sendo analisados nesta fase da pesquisa. O olhar do gênero nos permite encontrar uma Artemisia Gentileschi que foge das normas de comportamento feminino elaboradas pelos discursos do período. Ao ser, no dia 2 de março de 1612, Tuzia,10 interrogada no cárcere [cadeia] da Tor di Nona por Francesco Bulgarello e Porzio Camerario sobre as relações entre Agostino e Artemisia (inquilina da família Gentileschi) confirma o depoimento de Artemisia e sustenta que Agostino foi o único homem com o qual esteve a sós. Ao afirmar, também sob juramento de 250 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 245-259, jan./jun. 2012 verdade, não saber o motivo pelo qual estava encarcerada, Tuzia contradiz as palavras de Artemisia Gentileschi, a qual afirmou terem se encontrado na casa da própria família Gentileschi: Tassi, Cosmo e Tuzia, dias antes da abertura do processo, onde teriam conversado sobre o que diriam se fossem presos. No segundo interrogatório de Tuzia, realizado no dia 23 de março de 1612, no cárcere [cadeia] da Tor di Nona [Torre Nona], foi a inquilina dos Gentileschi interrogada para que diga se já viu o dito Agostino sozinho com a dita Artemisia, quantas vezes e onde. Respondeu: Muitas vezes vi o dito Agostino sozinho no quarto com a dita Artemisia que ela estava na cama espoliada [com pouca roupa, nua] e ele estava vestido; que eu os encontrava por ocasião que descia para baixo, que estavam burlando [brincando] juntos e o dito Agostino estava às vezes jogado [estirado] sobre a cama assim vestido. E eu a repreendi muitas vezes na presença também do mesmo Agostino e ela me dizia: “Que queres! Cuida-te de ti e não te intrometas naquilo que não te toca [não te diz respeito].”11 (TUZIA apud MENZIO, 2004, p. 32). Mas como resolver o impasse diante das afirmações de Artemisia Gentileschi e a inquilina de sua família, Tuzia? Uma das possíveis questões, e mais relevante do que saber, afinal, qual das duas teria relatado de forma mais fidedigna o ocorrido, é entender as relações de poder que envolvem e até contribuem para determinadas ações dos indivíduos. Torna-se significativo, além disso, compreender como o poder age sobre os indivíduos. Para entender as diferentes problemáticas presentes nessa conjuntura, no interior da trama histórica, como diria Foucault (2007), é necessário perceber que “a ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem”. (p. 14). O poder produtor de discursos, como afirma o mesmo autor, deve ser considerado ainda “como uma rede produtiva que atravessa todo corpo social”. (p. 8). A insurreição dos saberes dominados de que trata Foucault (2007) é fundamental para refletirmos sobre as mulheres. “Por saber dominado12 entendo duas coisas: por um lado, os conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações formais. [...] Uma série de saberes que tinham sido desqualificados como MÉTIS: história & cultura – TEDESCO, Cristine – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 251 não competentes, hierarquicamente inferiores.” (p. 170). Assim, do reaparecimento de saberes que “estão embaixo”, também fazem parte os estudos que possuem como objeto de pesquisa as mulheres. Aproveitamos discussões já elaboradas por Michel Foucault na obra A arqueologia do saber, quando salienta: Para a história, em sua forma clássica, o descontínuo era, ao mesmo tempo, o dado e o impensável; o que se apresentava sob a natureza dos acontecimentos dispersos – decisões, acidentes, iniciativas, descobertas – e o que devia ser, pela análise, contornado, reduzido, apagado, para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos. A descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história. [...] O tema e a possibilidade de uma história global começam a se apagar, e vê-se esboçar o desenho, bem diferente, do que se poderia chamar uma história geral. (2008, p. 14-15). As críticas em torno do saber histórico construído, assumidas por diversos historiadores que questionaram sua neutralidade e sua base universal, contribuíram para a transformação das abordagens globais da história, da qual o desenvolvimento de estudos sobre as mulheres é tributário. Essas reflexões implicaram outras questões; entendeu-se, por exemplo, que as relações amorosas também se constituíam como relações de poder, e que a existência de discursos políticos, religiosos, comportamentais, médicos, destinados às mulheres ao longo dos séculos, não implicava, necessariamente, que elas consentissem diante deles. Dessa forma, a relação entre homens e mulheres passou a ser pensada como tensa e complexa, não mais de domínio do masculino sobre o feminino. O que foi também modificado de maneira significativa foi o olhar negligente que muitos historiadores tinham diante das fontes. Para Michelle Perrot (2000), é necessário, nos estudos sobre mulheres, considerar os poderes multiplicados na sociedade, não esquecendo os contrapoderes através dos quais as mulheres subvertem seus papéis aparentes. A mesma autora afirma ainda que o poder “não se resume ao constrangimento ou à tomada de decisão; ele consiste mais ainda na produção de pensamentos, dos seres e das coisas por todo um conjunto de estratégias”. (PERROT, 2005, p. 263). 252 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 245-259, jan./jun. 2012 Considerações finais Neste primeiro contato com os autos do processo-crime que constituem uma das principais fontes escritas que compõem o material empírico utilizado na presente pesquisa, nos deparamos com o surgimento de uma série de novas perguntas ao objeto de investigação. No que diz respeito ao corpo feminino, por exemplo, Artemisia Gentileschi afirma, quase no fins do seu primeiro interrogatório: Houve bem, depois da primeira vez muitas outras vezes que [o] dito Agostino me conheceu carnalmente [manteve relações sexuais], fez sangue [sangrou] e perguntando eu o que significava este sangue disse Agostino, ele me dizia que vinha [sangrava] porque eu era de fraca constituição física.13 (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 2021). O enfoque sobre o corpo feminino é uma das possibilidades para análise do processo, já que o silêncio em torno “das histórias das mulheres” pesa primeiramente sobre seus corpos, como indica Michelle Perrot (2003). Vale lembrar que o interrogatório analisado precede pelo menos outros 15 interrogatórios. Agostino Tassi, acusado pelo desvirginamento forçado de Artemisia, por exemplo, é interrogado seis vezes, além das acareações com a testemunha Giovanni Battista Stiattesi e com Artemisia Gentileschi. Durante a acareação entre Tassi e Artemisia, a jovem pintora é questionada se está preparada para ratificar seu depoimento também nos suplícios. “Respondeu: Sim Senhor que estou pronta também a confirmar nos tormentos [nas torturas] o meu depoimento e onde for necessário”.14 (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 80). Assim, o juiz, para evitar toda a mancha de infâmia e qualquer dúvida que possa surgir contra ela ou daquilo que ela disse, já que parece ter culpabilidade no crime, e para melhor colaborar e fortalecer o que disse, para toda outra boa finalidade e efeito mais eficiente, decretou e ordenou, perante a cabeça e a cara [rosto] do incriminado [Agostino] sujeitar-se aos tormentos das sibilas levando-se em consideração que ela é mulher e que, pela aparência, tem 17 anos.15 (CONFRONTO TRA AGOSTINO E ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 80, grifo nosso). MÉTIS: história & cultura – TEDESCO, Cristine – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 253 Antes do guarda do cárcere aplicar a tortura das sibilas, Artemisia foi advertida para que não culpasse injustamente Agostino Tassi e que, para provar o que dizia, deveria se submeter à tortura: “O fato narrado por ela, mesmo que seja verdade, tudo deve ser confirmado mesmo nos tormentos das sibilas”.16 (CONFRONTO TRA AGOSTINO E ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 80). As sibilas – profetizas da mitologia greco-romana, estão relacionadas aos oráculos da Antiguidade – eram conhecidas por serem fiéis à verdade. A tortura consiste em posicionar as mãos do acusado ou do indivíduo do qual se quer obter a verdade, diante do peito na posição de oração, enrolar uma espécie de barbante grosso ou corda entre cada um dos dedos e, aos poucos, ir apertando com um torniquete, até que se consiga a verdade. O torniquete poderia ser apertado até cortar ou quebrar os dedos do interrogado. Artemisia aceita provar suas palavras através de tortura. O juiz manda o guarda do cárcere, acomodar as sibilas e mãos juntas ante o peito e entre cada um dos dedos, ajustadas as sibilas como de costume, segundo o uso, diante da cabeça e da face dele [Agostino], comprimia [apertava] com os fios da corda [espécies de barbantes muito grossos], ela começou a dizer: É verdadeiro, é verdadeiro, é verdadeiro, é verdadeiro, muitas e muitas vezes repetindo estas [preditas] palavras e depois disse: Este é o anel que tu me dás e estas são as promessas? [referindo-se às sibilas].17. (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 80-81, grifo nosso). A jovem foi interrogada mais vezes, e o torniquete era apertado. Repetia sempre “È vero, è vero, è vero, è vero, tutto quello che ho detto. [É verdadeiro, é verdadeiro, é verdadeiro, é verdadeiro tudo aquilo que [eu] disse”].18 (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 81). Tassi, por sua vez, repetia: “Não é verdadeiro, tu o mente pela goela [boca]”.19 (TASSI apud MENZIO, 2004: 81). E o torniquete seguia sento apertado pelo guarda. Artemisia replicava as declarações de Tassi reafirmando que seu depoimento era verdadeiro. Considerando as declarações dos dois, o juiz mandou parar a tortura. “Como estivesse sentada num exíguo lugar, foi libertada.”20 (CONFRONTO TRA AGOSTINO E ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 81). 254 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 245-259, jan./jun. 2012 Uma questão que nos intriga é: por que para Artemisia foi indispensável a aplicação da tortura das sibilas para que se comprovassem suas declarações? E por que para Tassi essa possibilidade nem sequer foi cogitada pelos juízes, ainda que tivesse entrado em contradição muitas vezes durante seus interrogatórios? Podemos dizer que é por uma questão de gênero? Sobre as possiblidades da pesquisa, podemos pensar, também, a partir das problemáticas que surgem no processo-crime e do potencial das fontes já mapeadas (cartas e obras pictóricas da artista), que se demonstram importantes e significativas para a construção do conhecimento histórico, na possibilidade de um estudo biográfico sobre Artemisia Gentileschi. A esse respeito, a obra de caráter biográfico organizada por Ottavia Niccoli (1991) e intitulada: Rinascimento al femminile, contribui para refletirmos sobre a presença das mulheres em diferentes espaços da sociedade: viúvas, humanistas, prostitutas, curandeiras, bruxas, freiras da contrarreforma... Através dessas figuras, de diferentes particularidades, a historiadora perguntase na introdução da obra: seria possível um rinascimento per le donne?21 Segundo Niccoli (1991), a obra não pretende ser uma história das mulheres no renascimento, contudo é, sim, uma tentativa de refletir sobre as distintas faces do renascimento, inclusive, para as mulheres. A pesquisadora afirma que “le serie di biografie femminili non sono una novità: anzi sappiamo che si tratta di un genere storiografico antico, inaugurato da Plutarco con le sue Mulierum virtutes e poi proseguito con grande fortuna nel medioevo e soprattutto nel rinascimento”.22 (NICCOLI, 1991, p. 8). Nesse sentido, é possível pensar também o período barroco italiano à luz das fontes sobre a vida pública e privada de Artemisia Gentileschi? A pintora, que era antes de tudo uma mulher, constitui um dos casos mais conhecidos de participação feminina na arte pictórica barroca do século XVII. Assim, teriam outras mulheres almejado ou ainda legitimado sua presença em profissões artísticas no período barroco, contrariando as normas dirigidas a elas pelos discursos? Esses são alguns dos nossos questionamentos, que nos permitem reafirmar a importância de extrapolar os usos metodológicos da micro-história por meio de um olhar microscópico da sociedade, aqui efetivado pelo estudo de Artemisia Gentileschi e a rede de relações estabelecida por ela, incorporando, principalmente, os debates relativos ao gênero. MÉTIS: história & cultura – TEDESCO, Cristine – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 255 Notas Mestre (1993) e Doutor (2000) em Arqueologia Cristã pelo Pontifício Instituto de Arqueologia Cristã (Piac), de Roma. Bordignon detém-se à tradução literal dos interrogatórios do processocrime, em Língua Italiana arcaica, e Vicente Pasinatto realiza as traduções dos questionamentos feitos pelo interrogador em Língua Latina. 1 As palavras entre colchetes ajudam a compreender melhor o texto que, por vezes, é bastante truncado, pois optamos pela tradução literal. Os nomes próprios, na sua maioria, permanecem em italiano. Ex.: Cosmo [ao invés de Cosme]; Agostino [ao invés de Agostinho]; Francesco [ao invés de Francisco]. Traduzimos do Latim para o Italiano os nomes próprios, por exemplo: Tutia [Tuzia]; Artemitia [Artemisia]; Horatio [Orazio]. O título do processo foi traduzido para o Português: “Estupro e libidinagem. Em favor da Cúria [Romana] e do Fisco [Tesouro Romano].” 2 3 Segundo o que consta no interrogatório: “Cosmo, porta-voz de Nosso Senhor”. (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 17). Cosmo morreu antes do fim do processo. “Recusando io di far tal cosa e mostrando di haver a schifo che lui mi trattasse in questa maniera lui mi soggiunse: “N’havete dato a tanti ne potete dar’anco a lui”. Io all’hora risposi a Cosmo in collera che di parole di bricconi come lui ne facevo poca stima e però che mi si levasse dinanzi e gli voltai le spalle”. (A RTEMISIA, apud M ENZIO, 2004, p. 17-18). (Trad. de Celso Bordignon e Vicente Pasinatto). 4 De acordo com o depoimento de Artemisia Gentileschi, a obra representava o filho de Tuzia, entretanto não sabemos se a obra foi concluída nem seu título e localização. 5 “Mi levò la tavolozza e li pennelli di mano e li buttò chi là e chi qua e disse a Tutia: “Vattene via di qui”, e dicendo io a Tutia che non si partissee non mi lassasse ch’io l’havevo accennato innanzi lei disse: “Non voglio stare a contendere qui me ne voglio andare com Dio”. (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 19). (Trad. de Celso Bordignon e Vicente Pasinatto). 6 “Mi buttò su la sponda del letto dandomi con una mano sul petto, mi mise un ginocchio fra le coscie ch’io non potessi serrarle et alzandomi li panni, che ci fece grandissima fatiga per alzarmeli, mi mise una mano con un fazzoletto alla gola et alla bocca acciò non gridassi e le mani quali prima mi teneva con l’altra mano mi le lasciò, havendo esso prima messo tutti doi li ginocchi tra le mie gambe et appuntatomi il membro alla natura cominciò a spingere e lo mise dentro che io sentivo che m’incendeva forte e mi faceva gran male che per lo impedimento che mi teneva alla boca non potevo gridare, pure cercavo di strillare meglio che potevo chiamato Tutia. E gli sgraffignai il viso e gli strappai li capelli et avanti che lo mettesse dentro anco gli detti una matta stretta al membro che gli ne levai anco un pezzo di carne, con tutto ciò lui non stimò niente e continuò.” (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 19). (Trad. de Celso Bordignon e Vicente Pasinatto). 7 8 256 Promessa de casamento. MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 245-259, jan./jun. 2012 Esposa de Stefano Medaglia Romana. Alugavam algumas peças no andar de cima da casa dos Gentileschi. À pedido de Orazio Gentileschi, Tuzia tornou-se acompanhante de Artemisia. 9 Interrogata ut dicat an unquam viderit dictum Augustinum de solo ad solum cum dicta Artimitia et quoties et ubi. 10 Respondit: Più volte ho visto detto Agostino di solo a solo in camera con detta Artimitia che lei era letto spogliata e lui stava vestito; ch’io ce li trovavo con occasione che calavo a basso che stavano burlando isieme e detto Agostino stava delle volte buttato sul letto così vestito. Et io l’ho ripresa più volte in presenza anco del medesimo Agostino e lei mi diceva: “Che volete! Abbadate a voi e non v’impicciate di quel che non vi tocca”. (TUZIA apud M ENZIO , 2004, p. 32). (Trad. de Celso Bordignon e Vicente Pasinatto). “Por dominação eu não entendo o fato de uma dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre o outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na sociedade.” (FOUCAULT, 2007, p. 181). 11 Agostino m’ha conosciuta carnalmente, fatto del sangue e dimandando io che volesse dire questo sangue a detto Agostino lui mi diceva che veniva perch’io ero di povera complessione.” (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 20-21). Trad. de Celso Bordignon e Vicente Pasinatto). Trad. de Celso Bordignon e Vicente Pasinatto. 13 14 Idem. 15 Idem. 16 Idem. 17 Idem. 18 Idem. 19 Idem. Um renascimento para as mulheres? (NICCOLI, 1991, p. 5-8). 20 “As biografias femininas não são novidades: na verdade sabemos que este é um antigo gênero da historiografia, inaugurada por Plutarco com sua Mulierum virtutes, continuando com grande sucesso na Idade Média e, especialmente durante o renascimento.” (NICCOLI, 1991, p. 8). (Tradução nossa). 21 Subdens postea ex se: “Ho ben, doppo la prima volta molte altre volte che detto 12 MÉTIS: história & cultura – TEDESCO, Cristine – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012 257 Referências AGNATI, Tiziana. La fortuna di Artemisia. Art Dossier, Firenze: Giunti, n. 172, p. 547, nov. 2001. ANTOCCIA, Lucca. Una passione estrema. Art Dossier, Firenze: Giunti, n. 153, p. 27-31, feb. 2000. BARBAGALLO, Sandro. E non dite che dipingeva come un uomo. In: Mostra Artemisia, Palazzo Reale, Milano, 22 set. 2011 – 29 gen. 2012. ©L’Osservatore Romano, 6 ott. 2011. BELLINI, Lígia. Concepções do corpo feminino no renascimento: a propósito de De universa mulierum medicina, de Rodrigo de Castro (1603). In: MATOS, Maria Izilda Santos de; SOIHET, Rachel. O corpo feminino em debate. São Paulo: Edunesp, 2003. p. 29-42. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002. BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In.: PINSKY, Carla Bassanezi. Fontes históricas. 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XX) The passion as attenuation: crimes of passion in Caxias do Sul during the 1930’s Fabrício Romani Gomes* Luiza Horn Iotti** Resumo: A prática de crimes passionais ainda está presente em nossos meios de comunicação. O presente texto busca refletir sobre a prática desses crimes e a penalização dos criminosos. Para isso, são analisados casos ocorridos na cidade de Caxias do Sul, durante a década de 30 (séc. XX), quando há um aumento da população urbana e um consequente tencionamento nas relações entre homens e mulheres. Busca-se uma reflexão sobre os motivos que levam à prática de tais crimes, assim como sobre as penas atribuídas aos criminosos pela Justiça, buscando perceber a influência de campanhas nacionais dedicadas à busca de uma penalização mais rígida aos réus. Palavras-chave: relações de gênero; crime passional; justiça. Abstract: The practice of crimes of passion still is in our media. This study seeks to reflect on the practice of such crimes and the punishment of these criminals. With this in view, cases are being analyzed that occurred in the city of Caxias do Sul, during the 1930’s when we begin to see a raise of the urban population and a later tensioning on the relationships between men and women. We aim to reflect upon the motives that led to the practice of such crimes and the penalties imposed to these criminals by the Justice, we try to discover the influence of national campaigns dedicated to granting the appliance of harsher penalties to the defendants. Keywords: gender relations; crimes of passion; justice. * Professor de História na Rede Estadual de Ensino. Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: phabrisss@gmail.com. ** Professora na Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: lhiotti@ucs.br. MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn 261 Jéssicas, Carlas, Anas, Verônicas e tantas outras mulheres já foram, ou podem ser, vítimas de violência no Brasil. Essa violência pode ocorrer de formas variadas, assim como as suas motivações. Em 1943, por exemplo, a “preta” Cecília que “saiu de sua residência, a fim de trabalhar na limpeza de uma casa”, foi recebida, após 12 horas de trabalho, com “socos e ponta-pés” pelo seu marido. Cecília foi agredida porque não teve “oportunidade de preparar a refeição do meio-dia”.1 Para combater e punir essas violências, às vezes cotidianas, surgiram, no Brasil, em diferentes momentos, campanhas buscando a diminuição desses atos, a sua denúncia, ou ainda, solicitando a punição dos agressores. Exemplo disso é a campanha realizada pelo Conselho Brasileiro de Hygiene Social (CBHS), que, a partir de 1925, questiona a tolerância do Poder Judiciário para com os assassinos de mulheres. O objetivo, aqui, é buscar evidências que possam demonstrar se a campanha do CBHS obteve sucesso. Busca-se, também, o entendimento das relações individuais e sociais que envolvem os casos de crimes passionais, pois, segundo Boris Fausto, “a criminalidade expressa a um tempo uma relação individual e uma relação social indicativa de padrões de comportamento, de representações e valores sociais”. (1984, p. 17). Para isso, analisemos alguns casos de violência cyjas vítimas são mulheres de Caxias do Sul, durante a década de 30 (séc. XX). Optemos pela década de 30 por ela representar um período de urbanização da cidade de Caxias do Sul e, como diz Susan Besse, “o surgimento de uma sociedade urbano-industrial tend[e] a enfraquecer os laços familiares”, pois passa “a propiciar novas aspirações e opções às mulheres e, por conseguinte, intensificar o conflito entre os sexos”. (1989, p. 186). Dessa forma, o texto foi divido em três partes: primeiramente são analisados os fatores que colaboram para o crescimento urbano da cidade; depois, caracteriza-se o crime passional, destacando sua trajetória no campo do Direito e, também, faz-se uma análise de como o crime estava sendo julgado no período; por último, são apresentados os casos levantados na pesquisa, buscando compreender as razões que levaram aos crimes. Caxias do Sul na década de 30 Caxias do Sul, hoje, uma das maiores cidades do Rio Grande do Sul, com cerca de 450 mil habitantes, está localizada na Região Nordeste do estado e tem suas origens na política de imigração adotada pelo governo imperial brasileiro no fim do século XIX. Sobre os objetivos dessa política, Vania Herédia sugere que 262 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012 o movimento de colonização trazia em seu bojo uma série de objetivos que, interligados, mostravam a proposta do próprio movimento. Entre eles a formação de um grande exército pela necessidade de defesa do vasto território onde eram visíveis as dificuldades de controle das fronteiras e conseqüentemente da própria hegemonia; a ocupação dos espaços vazios que propiciasse o desenvolvimento da agricultura, do comércio, da indústria, criando classes sociais intermediárias entre o senhor das terras e o escravo; a substituição da mão de obra escrava pela mão de obra livre, assalariada devido à expansão do movimento abolicionista e à implantação do trabalho livre que desenvolveriam as cidades, estimulariam o comércio e fomentariam a criação de serviços de infra-estrutura, gerando um maior desenvolvimento econômico ao país. Além desses objetivos, havia a intenção de branquear a raça. (1997, p. 31-32). A região onde hoje está localizada a cidade começou a ser colonizada, oficialmente, em 1875, majoritariamente por imigrantes oriundos da península itálica. Esses imigrantes teriam enfrentado uma situação geográfica difícil. Para Maria Abel Machado, esses primeiros imigrantes tiveram uma realidade bem adversa. Segundo a historiadora, “as condições geográficas da região, de difícil acesso pela floresta, solo pedregoso e muito acidentado, condicionaram a nova colônia a um quase isolamento durante os primeiros anos, o que favoreceu o surgimento das primeiras atividades rentáveis aos colonos”. (1998, p. 34). Devido a esse isolamento inicial, houve na colônia a necessidade de uma produção diversificada, pois os colonos teriam que produzir todo o necessário para sua subsistência. Não poderiam depender de produtos primários vindos de outras regiões devido às dificuldades de transporte impostas pela geografia da região. A princípio, essa produção era consumida somente dentro da colônia, mas com produção excedente, houve o fortalecimento das atividades comerciais. A falta de estradas dificultava, mas não impedia as relações comerciais. A situação de isolamento vai sendo paulatinamente resolvida com a abertura de estradas, mas o comércio com outras cidades ainda era problemático, principalmente com os maiores núcleos populacionais, localizados mais próximos da capital Porto Alegre. A solução surge em 1910, depois de 20 anos da emancipação política, com a inauguração da Estrada de Ferro que fazia a ligação Caxias do Sul-Capital. Além da construção MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn 263 da ferrovia, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a instalação da energia elétrica em 1913 aceleram e consolidam o desenvolvimento da cidade “acabando com o isolamento natural em que se encontra[va] a região”. (GIRON, 1977, p. 76). Assim, “no período de 1913 a 1920, há um crescimento acelerado das indústrias caxienses, surgem as indústrias metalúrgicas, fábrica de produtos químicos, de erva-mate, de velas, de cola, de tecidos e uma charqueada”. (GIRON, 1977, p. 76). A Primeira Guerra Mundial acabou incentivando a industrialização, não só nacionalmente, mas também regional e localmente. Com o envolvimento na guerra das grandes potências industriais e econômicas do período, outras economias no mundo puderam se desenvolver, produzindo para os mercados em guerra e para aqueles que deixaram de ser atendidos pelas potências envolvidas no conflito. Assim, durante o período da Primeira Guerra Mundial, as indústrias tiveram um desenvolvimento importante para a região e seu número se elevou para mais de quarenta empresas diversas, com um capital de 4.789:000$000, nas quais trabalhavam aproximadamente mil a mil e duzentos operários entre homens e mulheres. (MACHADO, 2001, p. 207). Vania Herédia também aponta para o desenvolvimento industrial da cidade durante o período da Primeira Guerra Mundial, lembrando que em 1920, segundo o Álbum Rio Grande, a indústria fazia de Caxias um dos principais centros produtores do Estado, com uma riqueza pública calculada em CR$ 80.000,00 […]. É interessante observar os frutos decorrentes da Primeira Guerra Mundial que desencadeou uma nova fase para a cidade que soube aproveitar os instantes favoráveis e os impulsos do conflito mundial para instalar e solidificar uma série de indústrias. (HERÉDIA, 1997, p. 69). Nesse período, o vinho gaúcho vinha perdendo mercado, tanto o interno quanto o externo. Isso se devia às adulterações que o vinho gaúcho sofria “especialmente nos mercados do Rio [de Janeiro] e São Paulo”. (MACHADO, 2001, p. 202). Para combater o problema, o intendente Penna de Moraes buscou alternativas para melhorar a produção e diminuir as fraudes. A intervenção do intendente nesse assunto beneficiou os produtores 264 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012 da região e, em especial, os caxienses. Por sua interferência, “foi criada em 1921 a Estação Experimental de Caxias, [que operou] como um laboratório químico e uma adega experimental”. (MACHADO, 2001, p. 207). A melhoria do modo de produção do vinho e a expansão do setor trouxeram para a região uma significativa melhoria na economia, especialmente de Caxias do Sul, onde se achavam as maiores empresas vinícolas. A cidade sentiu seus reflexos através do crescimento não só da zona urbana, como também das áreas da zona suburbana, onde se encontravam os trabalhadores. (MACHADO, 2001, p. 208). O desenvolvimento econômico proporcionou a urbanização da cidade. Em 1920, a população caxiense total chegava a 33.773 habitantes, aproximadamente, 7.500 desses, estariam na zona urbana. O aumento da população urbana fez com que os administradores da cidade investissem mais na sua infraestrutura. Assim, serviços como de energia elétrica e abastecimento de água foram privilegiados nas administrações. Houve também uma preocupação com a educação, “através da ampliação do número de escolas e do corpo de professores que também tiveram os seus salários melhorados”. (MACHADO, 2001, p. 213).2 Com o final da guerra e a consequente restruturação das economias antes envolvidas no conflito, o mercado para os produtos gaúchos começa a reduzir com a concorrência dos produtos estadunidenses e europeus, devido à recuperação desses últimos. Com isso, a economia gaúcha sofre com um período de recessão, sentido, inclusive, na cidade de Caxias do Sul. Além disso, o Rio Grande do Sul, no início da década de 20 do mesmo século sofre com a crise política, que vai chegar ao seu ápice na Revolução de 1923. No pós-guerra, a recessão econômica, a rearticulação da economia européia e recuo da demanda mundial repercutiram negativamente sobre a economia rio-grandense. Em especial, o início da década de 20 representou para o estado um momento de crise, externa e interna. (PESAVENTO, 2002, p. 83). Os conflitos de 1923 foram motivados, principalmente, pela política borgista, que buscava desenvolver a economia do estado de forma ampla, MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn 265 global. Essa política ia contra os interesses pecuaristas da época. Além disso, as fraudes eleitorais ocorridas nos processos políticos colaboraram para a eclosão da revolta, principalmente depois da quinta vitória eleitoral de Borges de Medeiros em 1922. A revolta iniciou no norte do estado, região de Passo Fundo, mas logo se espalhou, agravando a situação econômica do Rio Grande do Sul: “O comércio e a indústria locais estavam enfrentando uma fase de crise financeira e de instabilidade”. (M ACHADO, 2001, p. 217). As eleições de 1922 mostraram que o borgismo estava desgastado no estado, e, em Caxias do Sul, “o resultado das eleições para os republicanos foi desastroso. […] Caxias foi o município onde a oposição obteve a maior diferença de votos. A zona colonial, com Caxias à frente, contribuiu para que fossem eleitos no primeiro distrito três deputados da oposição”. (MONTEIRO, 2003, p. 168). Essa oposição registrada em Caxias do Sul, em parte, foi encabeçada pela Igreja Católica. Muitos dos católicos apoiaram Assis Brasil. Como em todo o resto do estado, em Caxias do Sul houve também fraudes no processo eleitoral. Em um dos casos, colonos italianos não receberam os títulos de eleitor e não puderam votar. Mas as eleições finalizam com a vitória de Borges de Medeiros para o governo do estado, porém a religião católica ficou marcada, na região colonial, pela propaganda durante a campanha, na qual assisistas acusavam os borgistas de serem inimigos da religião católica, isto é, inimigos pelo fato de serem positivistas, portanto, incompatíveis. (RELA, 2004, p. 46). A incompatibilidade estava no fato de o positivismo possuir sua própria religião. Assim, o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), de ideologia positivista, possuía sua própria religião, o que alimentava as discórdias entre as correntes. Depois da demonstração do descontentamento com o governo de Borges de Medeiros em Caxias do Sul, o PRR começou a pensar nas próximas eleições. Essas eleições seriam locais, ou seja, a administração municipal seria renovada. E, como “na ‘Pérola das Colônias’ o grupo de colonos italianos fazia-se presente no cenário político gaúcho como uma ameaça à hegemonia do PRR local” (MONTEIRO, 2003, p. 168) foi necessário buscar um nome de consenso. 266 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012 O nome para a eleição municipal recaiu em Celeste Gobbato, que, para alguns, seria “capaz de atenuar as tensões políticas em Caxias” (MONTEIRO , 2003, p. 171), pois, “embora ele não fosse radicado no município, o fato de ser um italiano com estreitos vínculos com a atividade agrícola, tornou a sua indicação necessária para atender os interesses da Igreja local, dos italianos católicos e do PRR estadual”. (RELA, 2004, p. 47). Eleito, Celeste Gobbato “identificou-se com a elite local, junto à qual passou a exercer uma liderança muito significativa” (M ACHADO, 2001, p. 210), iniciando seu governo em 1924. No início de 1930, Caxias possuía uma população total de 32.622. Esse número apresenta uma diminuição da população total, mas, quando nos referimos à população urbana, há um aumento, se compararmos esses aos números referentes ao início dos anos 20 (séc. XX). São 9.975 pessoas vivendo na área urbana caxiense. No cenário nacional, acontece a tomada do poder político federal pelo gaúcho Getúlio Vargas. “Em Caxias, os empresários emprestaram todo o apoio às forças getulistas, inclusive através do fornecimento de gêneros alimentícios e de artigos de vestuário para os combatentes e suas famílias.” (MACHADO, 2001, p. 259). Esse apoio, porém, não altera a situação da economia gaúcha no período, mantendo-se a agropecuária voltada para o mercado interno. “Durante a República Nova (1930-1937), o Rio Grande do Sul manteve sua economia baseada na agropecuária. O governo federal via o estado como destinado a complementar a economia central como fornecedor de gêneros de subsistência para o mercado nacional.” (KUHN, 2002, p. 125). Segundo Loraine Giron, “o desenvolvimento industrial se torna mais lento entre 1925 e 1939, voltando a se fazer presente com a Segunda Guerra Mundial”. (1977, p. 76). Para a historiadora, há uma estagnação no desenvolvimento industrial de Caxias do Sul no período entre as guerras. Para Vania Herédia, ocorre uma diminuição no surto industrial da região, entendendo que nas indústrias, o número de estabelecimentos era de 190 em 1930 e 280 em 1932, tendo crescido o número de empresas, mas não o seu capital. A produção industrial demonstra claramente a crise enfrentada no país nos anos trinta, pois há um decréscimo de produção de Rs.5.496:792$500 que revela a diminuição do surto industrial na região e indiretamente no município. (H ERÉDIA, 1997, p. 70). MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn 267 Sendo assim, a autora aponta para um crescimento industrial em número de empresas, mas sem alteração do capital, concordando com a ideia de estagnação industrial. Além disso, Herédia fornece dados relativos aos comércio na região durante o período, dizendo que, em 1930, o Município de Caxias apresentava um total de 325 estabelecimentos comerciais com um capital de Rs.9.085:750$000, tendo crescido conforme o Censo Municipal de 1932 para 450 estabelecimentos comerciais, com capital no valor de Rs.4.031:575$000 além do citado anteriormente. (1997, p. 69). No comércio, Herédia destaca o crescimento do capital, ou seja, a prática comercial na região não se altera, podendo-se dizer que houve um crescimento das práticas comerciais na região. Isso pode ser reflexo da política adotada por Getúlio Vargas, que buscava apoiar as indústrias consideradas “naturais”, por beneficiarem matéria-prima local (no caso de Caxias, o vinho, a banha, conserva de frutas, os óleos vegetais, produtos têxteis e o trigo, entre outros), houve um crescimento na produção, incrementando as atividades industriais e comerciais. (MACHADO, 2001, p. 260). O estágio de desenvolvimento econômico alcançado por Caxias do Sul até a década de 30 citada, fez aparecer novamente os problemas de infraestrutura, principalmente ligados ao fornecimento de energia elétrica e falta de estradas. Em relação às estradas, somente na década de 40 do séc. findo esse problema seria resolvido com a construção da BR 116, ligando a cidade aos principais centros consumidores do País. Nesse momento, Caxias do Sul experimenta um novo período de crescimento industrial, influenciado pela Segunda Guerra Mundial. Isso acorre, a partir do momento em que várias empresas foram declaradas de interesse militar e passaram a produzir para o exército nacional, utilizando toda a sua capacidade produtiva. Como consequência, houve um aumento no número de empregos e os salários reais, provocando aumento no consumo de bens e na circulação de riqueza. (MACHADO, 2001, p. 267). 268 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012 Assim, Caxias do Sul encerra a década de 30 com uma população urbana chegando a 20.123 habitantes, demonstrando um crescimento populacional urbano de mais de 50%. Isso se deve, principalmente, ao desenvolvimento econômico da cidade, que necessita de mão de obra e passa a atrair a população rural para o mercado de trabalho em expansão nas fábricas. O crime passional Estamos acostumados com notícias sobre crimes passionais hoje em dia. O crime, quase sempre, é caracterizado pelo principal motivo que levar ao assassinato: a paixão. Esse crime, na maioria das vezes, envolve como personagens homens e mulheres, que, motivados pela paixão, acabam assassinando seus antigos parceiros, seus antigos ou atuais amores. Geralmente, isso acontece no fim de uma relação amorosa, quando um dos envolvidos decide pôr fim ao relacionamento. No caso do assassinato de mulheres, ou femicídios,3 “muitas foram mortas porque quiseram se separar do companheiro ou marido, outras porque estavam na rua quando eles voltaram para casa, outras porque não aceitaram a proposta de fazer sexo ou resolveram procurar outro namorado/companheiro”. (TELES; MELO, 2002, p. 50). Isso, de certa forma, significa dizer que um homem mata a sua mulher quando “considera que não há mais como controlar a mulher e seu todo, tanto o corpo como seus desejos, pensamentos e sentimentos”. (TELES; MELO, 2002, p. 50). Já quando ocorre o contrário, quando a mulher mata seu companheiro, considera-se que o assassinato aconteceu “porque as mulheres eram maltratadas e reagiram para defender seus filhos e a si próprias”. (TELES; MELO, 2002,p. 50). O adultério, ou suposto adultério, foi (é) um dos maiores motivadores de crimes passionais. Em algumas situações, basta o marido desconfiar que está sendo traído que o destino de sua parceira será a morte. E, segundo Mariza Corrêa, “no Brasil, a significação implícita da expressão crime passional, no campo das discussões jurídicas como no da sua publicação pela imprensa ou em sua utilização literária, era a de punição da esposa adúltera”. (1981, p. 18). A punição do adultério com a morte já esteve escrita nos códigos de leis vigentes no Brasil. Nas Ordenações Filipinas, que vigoraram no Brasil durante o período colonial, a esposa adúltera deveria pagar com a vida pelo MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn 269 seu “crime”. As ordenações dizem que “achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero, salvo se o marido for peão, e o adúltero fidalgo, ou nosso Desembargador, ou pessoa de maior qualidade”. (CORRÊA, 1981, p. 15). Esse rigor na punição do adultério é consequência do conceito de direitos e prerrogativas advindas do casamento. Devemos lembrar que o casamento prevê que o marido conceda à mulher uma certa “proteção”. Segundo Luiz Azevedo, “a proteção que este concede à mulher reclama, por sua vez, obediência, coabitação, fidelidade; ao marido cabem a eleição do domicílio e a escolha quanto ao modo de educar os filhos”. (2001, p. 10). Assim, em troca da proteção, a mulher deve ser, entre outras coisas, fiel. O adultério feminino é punido há muito tempo, pois que ocorre desde o Direito Romano, visando a assegurar a legitimidade da reprodução dentro da família. O adultério era, portanto, uma força desagregadora e destruidora, mas revestido de uma importância diferente para homens e mulheres. O discurso jurídico considerava o adultério masculino um deslize aceitável, pois os filhos ilegítimos não traziam desonra ao pai. No que tange ao adultério feminino, as implicações seriam mais graves, pois a mulher adúltera introduzia a prole ilegítima no seio do casamento e trazia a desonra ao marido. (BORELLI, 2002, p. 136). A noção de crime passional é mais recente e começou a ser discutida em meados do século XIX. Os juristas que discutem o crime passional “vão atribuir ao romantismo, com sua ênfase no amor e na paixão, a sua invenção”. (CORRÊA, 1981, p. 15). Esse crime se beneficia da onda de amor romântico do período e também das teorias de um grupo de italianos, que, sob a orientação de Lombroso, em meados do século XIX, dizem que o criminoso tem que ser analisado de forma individualizada. Sendo analisado dessa forma, o assassinato da mulher passa a ser o único crime cometido por esse homem. Aí, faz-se um histórico da vida dele. Se o mesmo estiver de acordo com os padrões da época, poderá ser inocentado. Além disso, dentro deste grupo, o criminalista Enrico Ferri teve uma atuação importante, tendo sido o primeiro a definir o criminoso passional como um criminoso social, isto é, alguém que comete um crime 270 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012 impulsionado por motivos úteis à sociedade [...], e sua importância no Brasil será sempre atribuída apenas ao aspecto de sua obra que permitia defender os assassinos de mulheres. (CORRÊA , 1981, p. 16). Esse crime seria útil à sociedade, pois retira do convívio social mulheres que são adúlteras, ou seja, mulheres que não desempenham de forma exemplar o seu papel social em determinada época. Mulheres que, inclusive, colocavam dentro de sua família prole ilegítima. Sendo assim, eram consideradas maus exemplos para as outras mulheres. Além desses fatores, que contribuem para a absolvição do réu ou para a diminuição de sua pena, aparecerá outro no segundo Código Penal brasileiro, que já era republicano. Trata-se da questão da irresponsabilidade criminal, que abria “a possibilidade de isentar de culpa ‘os que se acharem em estado de completa perturbação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime’ [...]”. (CORRÊA, 1981, p. 21). Assim, “os advogados de defesa de maridos, noivos, namorados ou amantes, assassinos de suas companheiras, passaram a afirmar então que a paixão era uma espécie de loucura momentânea, tornando irresponsáveis na ocasião do crime os que estavam por ela possuídos”. (CORRÊA, 1981, p. 22). O número de crimes passionais aumentava no início do século XX, em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, e os jornais da época começaram a noticiar esses crimes. A quantidade e a maneira como aconteciam os assassinatos, acabaram influenciando nas primeiras produções cinematográficas no Brasil. No período de 1908 a 1911, os filmes acabaram reproduzindo os crimes passionais em seus roteiros. Segundo Paulo Gomes, “predominaram inicialmente os filmes que reconstituíam os crimes, crapulosos ou passionais, que impressionavam a imaginação popular”. (1996, p. 11). Outros meios de comunicação, porém, demonstravam preocupação com o aumento desse tipo de crime. Os editores da famosa revista para mulheres, Revista Feminina, afirmavam que as mulheres estavam sendo assassinadas “aos montes”. Eles afirmavam que o número de mulheres mortas por homens no Brasil crescera de uma a cada doze horas em 1919 para uma a cada meia hora em 1924! (BESSE, 1989, p. 183). MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn 271 Essa quantidade de crimes passionais é questionada por Susan Besse. Para ela, a publicação desses números sugere mais uma preocupação dos editores com a mobilização da opinião pública. Assim, a Revista Feminina e outras publicações da época contribuíram para o surgimento, no Brasil, de uma campanha “para acabar com a tolerância aos crimes da paixão”. (BESSE, 1989, p. 182). A campanha surge em 1925, tendo como organizador o CBHS. Para Susan Besse, o motivo pelo qual estes crimes começaram a ser considerados tão ameaçadores à sociedade era que eles simbolizavam a desagregação da família, e era exatamente a instituição da família que era encarada como o cimento necessário para proporcionar a estabilidade e a continuidade neste período de transformações perigosamente rápidas. (1989, p. 187). Então, nesse período, fim dos anos 20 e início dos anos 30 (séc. XX), a sociedade brasileira entrega a família um papel importante na nova ordem nacional. Ou seja, neste momento de transição, quando Getúlio Vargas assume o poder político nacional, quando uma nova elite assume o poder, há uma preocupação maior com os crimes passionais, pois, “se a família fosse ser o pilar da nova sociedade burguesa, as relações entre maridomulher deveriam se ‘modernizar’, adquirindo ao menos uma aparência de igualdade e reciprocidade”. (BESSE, 1989, p. 188-189). Enfim, a campanha liderada por promotores públicos, como Roberto Lyra, Carlos Sussekind de Mendonça, Caetano Pinto de Miranda Montenegro e Lourenço de Mattos Borges e organizada pela CBHS alcança sua vitória mais significativa em 1940, com o novo Código Penal. Nele estava especificado “que a emoção e a paixão, enquanto circunstâncias atenuantes, não excluíam a responsabilidade criminal”. (Apud BESSE, 1989, p. 193). Além disso, Susan Besse traz os dados de um único estudo estatístico sobre o sucesso da campanha: “Em 1932, de 36 casos de crimes da paixão investigados nas cortes da cidade do Rio de Janeiro, 24 acusados foram condenados à pena máxima, 7 tiveram seus casos tornados públicos e foram punidos menos severamente, e 5 foram absolvidos”. (BESSE, 1989, p. 182). 272 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012 Alguns crimes passionais em Caxias do Sul – década de 30 (séc. XX) Em abril de 2005, o jornal Pioneiro publicou uma matéria sobre crimes passionais na região. O jornal sugere a existência de uma preocupação devido à reincidência desse tipo de crime. Até a publicação aconteceram cinco crimes considerados passionais na região, o que representava 25% do total de homicídios no mesmo período. Porém, aqui, vamos procurar evidências desses crimes na já citada década de 30. O primeiro caso – que pode ser considerado como um crime passional na cidade – foi encontrado no Centro de Memória Regional do Judiciário (CMRJ). Trata-se de um processo criminal, no qual o réu é acusado de matar sua esposa, logo após a mesma dar à luz, em 1932. Segundo o processo, o réu, passados alguns minutos do nascimento da criança, disse que não perdoaria a traição da esposa. Para ele, a criança recém-nascida, não é sua e sim de um “negro”. Acreditando nisso, o réu mata a esposa e tenta o suicídio, não obtendo sucesso. Depois de informados os fatos que levaram ao crime, o processo traz depoimentos das testemunhas do caso. São realizados exames mentais no réu e, ao fim, o Dr. Leonardo Ferreira Silva, juiz da Comarca de Caxias do Sul, considera o réu culpado, dizendo que em face, pois, das circunstancias mencionadas não ficou provado que o réo, no acto de cometter o crime, estivesse em estado de completa perturbação de sentidos e de intelligencia; ao contrario, o que se infere da prova existente, é que o réo achava-se calmo, chamando a parteira, interessando-se pelo bom sucesso do parto, assistindo a este e somente veio a manifestar estar nervoso após o nascimento da creança, vendo-a arroxeada. (PROCESSO 2, Caixa 88: CMRJ).4 O réu apela da decisão, mas é levado para julgamento, não sendo atendido o seu pedido. Os jurados, por sua vez, absolvem o réu. Consideram que, no momento do crime, “o réo agiu em estado de completa perturbação dos sentidos e da intelligencia no acto de commetter o crime”. (PROCESSO 2, Caixa 88: CMRJ). Segundo Boris Fausto, MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn 273 ainda que cada caso tenha notas específicas, a imagem de um frio marido homicida raras vezes se ajusta à realidade. O agressor é atravessado por intensos conflitos (muito mais complexos que a “paixão”), o que não significa tomar partido a favor de sua irresponsabilidade penal. Um indício disto reside na constatação de que, no período analisado, um número considerável de maridos homicidas em geral suicida-se ou tenta suicidar-se após a prática do crime. (1984, p. 108). Foram pesquisados casos publicados nos jornais da cidade. No jornal O Momento, vinculado ao Partido Republicano Liberal (PRL), a primeira notícia que chamou a atenção durante a pesquisa estava publicada na “Seção Livre”, em 18 de janeiro de 1933. Andralina Benatto publica uma carta dizendo o seguinte: Injuriada, maltratada e até espancada pelo meu marido Fernando Benatto, fui forçada, por ele próprio, a abandonar o lar, acompanhada dos meus tres filhinhos menores, isso nos primeiros dias de julho do ano p. findo, vendo-me na contingencia de recorrer as serviços profissionais do Dr. Olmiro de Azevedo, constituindo-o meu advogado. (O MOMENTO, 1933: AHMJSA).5 Segundo Andralina, ela vinha sendo espancada pelo marido, além de sofrer outras violências psicológicas. Houve uma tentativa de reconciliação entre o casal e, segundo Andralina, “de início, procurou o meu marido a aparentar cordialidade, para, logo depois, voltar a proceder como dantes, cumulando, agora, por ameaçar-me de morte!” (O MOMENTO, 1933: AHMJSA). A tentativa de reconciliação, aparentemente, piorou o relacionamento do casal, chegando Fernando a ameaçá-la de morte. O jornal faz um acompanhamento do caso, dizendo, na publicação de 4 de setembro de 1933, que o casal havia se separado, que os filhos ficaram com o marido, e Andralina, se quisesse vê-los, deveria provar ser uma mulher “honesta” e “trabalhadora”. O Momento, de 29 de junho de 1933 chamou a atenção de seus leitores com a seguinte manchete: “Tentativa de assassinato: discutiu com a esposa e apunhalou-a nas costas.” Acompanhando a manchete, o jornal publica a versão do marido sobre os acontecimentos. Segundo ele, 274 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012 começaram a surgir entre o casal serias divergencias em virtude, segundo alega, das conversações da visinhança que continuamente levava a falar de sua esposa, pelo que a miudo tinha com ela discussões violentas nas quais ele a insultava: Terça-Feira, quando regressava do serviço, sua esposa recebeu-o com uma série de imprompérios, usando de termos bastante insultuosos, pelo que, ele, exasperando-se tirou da faca que trasia consigo ferindo-a. Que esse jesto atribui ao fáto de achar-se um pouco embriagado, pois devido ao intenso frio que tem feito, havia tomado uns tragos! (O MOMENTO, 1933: AHMJSA). Os vizinhos acabam causando um certo incômodo ao casal. As falações sobre a sua mulher acabaram influenciando na tentativa de assassinato. Essas deveriam ser relativas ao dia a dia de sua esposa, podendo colocar em questão, inclusive, a fidelidade da mesma. É importante perceber que o marido diz que estava embriagado e por isso agrediu a mulher. A embriaguês pode também ter salvo a vida dela. O estado em que se encontrava o marido pode ter dificultado sua ação e intenção de matá-la. O fato de estar alcoolizado poderia ter dificultado também a sua defesa perante o júri. Como diz Boris Fausto, “o acusado deve construir uma imagem que se ajuste ao modelo de sua identidade social, ao temor reverencial devido à justiça. Isso se traduz não só pelas palavras, mas pelo gesto, pelo modo de sentar-se, de responder às perguntas, de colocar-se diante do corpo de jurados”. (FAUSTO, 1984, p. 25). Dessa forma, o seu estado de embriaguês pode ter sido um complicador para elaboração de sua defesa. Já no dia 4 de setembro de 1933, O Momento traz a seguinte notícia: No dia 25, as 14 horas, realizou-se o julgamento de Antonio Petrin, pronunciado por crime de morte na pessoa de sua própria esposa. O conselho de sentença foi constituído pelos jurados Estacio Zambelli, Adelar Facioli, Emílio Pezzi, Artur Rech e Armando Rossi. A acusação foi desenvolvida pelo Dr. Paulo Rache […]. Após os trabalhos da acusação e defesa, reuniram-se os jurados na sala secreta dali voltando para proferir seu verititum pela absolvição de Antonio Petrin, por reconhecer em seu favor a derimente da perturbação dos sentidos e inteligencia no áto de cometer o crime. (O MOMENTO, 1933: AHMJSA). MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn 275 Aqui, se observa a utilização da irresponsabilidade criminal para aqueles que, no momento do crime, “se acharem em estado de completa perturbação de sentidos e de inteligência”. (CORRÊA, 1981, p. 21). Infelizmente, o jornal não acompanhou o ocorrido, não trazendo mais informações sobre o caso, as quais pudessem informar sobre os motivos que levaram Antonio Petrin ao estado de “perturbação” no momento do crime. Já no fim da década de 30, mais precisamente em 8 de fevereiro de 1937, ocorre outro assassinato, sendo uma mulher a vítima. O fato é apresentado aos leitores do jornal com o seguinte título: “Um soldado do exército mata uma decaída a tiros de revólver”, relatando, posteriormente, o ocorrido da seguinte forma: Segunda-Feira, pela madrugada, Caxias presenciou um ato de profunda covardia e banditismo. Seriam pouco mais de meia noite quando o soldado Arlindo Cardoso do 9 BC dirigiu-se a uma casa de tolerancia à rua Borges de Medeiros, onde residia sua amante Laudelina Silva, depois de ligeira troca de palavras com a amazia, prosta-a a tiros de revolver. (O MOMENTO, 1937: AHMJSA). Aqui se percebe a repulsa por parte dos redatores do jornal pelo fato acontecido. Referem-se a ele como uma “covardia”, condenando a ação do soldado. Isso pode indicar que, no fim dos anos 30, esses crimes começaram a ser condenados de forma mais clara pelos redatores do jornal, o que devia estar de acordo com a opinião dos leitores do periódico. Algumas considerações finais Durante a mencionada década de 30, percebe-se um grande aumento da população urbana de Caxias do Sul. Esse aumento deve-se, principalmente, à industrialização da cidade que, como foi demonstrado, necessita de mão de obra, pois gera empregos na indústria e em outros setores econômicos. Dessa forma, optou-se pela pesquisa nesse espaço temporal, já que, como vimos, na opinião de alguns autores, o surgimento de uma sociedade urbanoindustrial enfraquece os laços familiares intensificando o conflito entre os sexos. Dessa forma, a violência contra a mulher, no período estudado, está relacionada à tentativa de independência feminina. Em Caxias do Sul, percebe-se que o julgamento dos femicídios segue a norma da época, ou seja, absolvem-se os acusados alegando que os mesmos 276 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012 agiram em momento de perturbação dos sentidos, em estado de “loucura momentânea”. Mas é importante retomar a postura do Juiz Leonardo Ferreira Silva que não acredita na suposta perturbação dos sentidos do acusado. Essa postura pode ser considerada uma demonstração de que a campanha da CBHS estava chegando até alguns dos aplicadores da Justiça ou que, pelo menos, a campanha estava levando todos a uma reflexão maior sobre os casos. Como a decisão do juiz acaba sendo desconsiderada pelo júri, podemos imaginar que essa campanha pode ter chegado até alguns segmentos sociais, porém não a todos. Por fim, com base no último caso relatado, os redatores do jornal O Momento condenam o assassinato de uma “decaída”. Essa postura parece, também, refletir os ideais da campanha da CBHS, que vinha travando um combate contra a absolvição daqueles que assassinavam mulheres. MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn 277 Notas Relatório – Lesão Corporal, 1943. Acervo: Arquivo da Polícia Civil/Caxias do Sul. 1 A instalação da Escola Complementar de Caxias do Sul, no início dos anos 30 (séc. XX), demonstra “o interesse do governo em diminuir o analfabetismo” e auxilia para o aperfeiçoamento “moral e intelectual da mocidade caxiense”. (BERGOZZA; LUCHESE, 2010, p. 123-125). 2 O termo femicídio foi usado pela primeira vez por Diana Russel e Jill 3 278 Radford, em seu livro The politics as woman killing, publicado em 1992, em Nova Iorque. A palavra já havia sido empregada pelo Tribunal Internacional de Crimes Contra as Mulheres, em 1976. Entende-se por femícídio o assassinato de mulheres por razões associadas às relações de gênero. (TELES; MELO, 2002, p. 49). 4 Foi mantida a grafia original das fontes. AHMJSA: Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami. 5 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012 Referências ARAÚJO, Rosa Maria Barboza de. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. AZEVEDO, Luiz Carlos de. Estudo sobre a condição jurídica da mulher no Direito luso-brasileiro desde os anos mil até o terceiro milênio. São Paulo: Revista dos Tribunais; Osasco: Centro Universitário Fieo/Unifieo, 2001. BERGOZZA, Roseli Maria; LUCHESE, Terciane Ângela. Escola Complementar: primeira escola pública para formação de professores primários na cidade de Caxias do Sul (1930-1961). Conjectura, Caxias do Sul, v. 15, n. 3, p. 121-140, 2010. BESSE, Susan K. Crimes passionais: a campanha contra os assassinos de mulheres no Brasil – 1910/1940. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n. 18, p. 181197, 1989. BORELLI, Andréa. 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MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn 279 280 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012 A conferência “O divórcio” – Jornal Forense de Porto Alegre do ano de 1932 The conference “The Divorce” – Journal of Forensic Porto Alegre the year 1932 Marília Conforto* Gilberto Jacques Gonçalves** Resumo: Apresenta-se a conferência: “O Divórcio” publicado no jornal Forense de Porto Alegre no ano de 1932. A comunicação terá como objetivo principal disponibilizar o documento como contribuição para o estudo de gênero e do Poder Judiciário. A introdução crítica do documento foi realizada por uma historiadora e um advogado, objetivando a reflexão interdisciplinar. A conferência sobre o divórcio reconduz para o âmbito da reflexão jurídica as mudanças ocorridas em termos econômicos na sociedade brasileira, a partir de 1930, cujos desdobramentos podem ser percebidos nas mudanças nas relações entre homens e mulheres e o avanço das lutas femininas por seus direitos sociais. Procurou-se demonstrar a contribuição do estudo interdisciplinar no resgate da trajetória histórico-social e daquela percorrida no Abstract: It presents the conference: “The Divorce” published in the Journal of Forensic Porto Alegre in 1932. Communication will aim to provide the main document as a contribution to the study of gender and the judiciary. The introduction of the document review was conducted by a historian and a lawyer, aiming at interdisciplinary reflection. The conference is tantamount to divorce under the legal reflection of the changes in economic status in Brazilian society, from 1930, whose developments can be seen in the changes in relationships between men and women and the advancement of women’s struggles for their social rights. We sought to demonstrate the contribution of interdisciplinary study in rescuing the trajectory of social and historical trajectory within the legal divorce theme in Brazilian society. Professora no PPG – Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade e no curso de História da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: mc.14@terra.com.br ** Advogado. Especialista em Direito Civil pelo Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter). * MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques 281 âmbito jurídico do tema divórcio na sociedade brasileira. Palavras-chave: divórcio; história; direito. Keywords: divorce; history; law. O jornal Forense de Porto Alegre faz parte do acervo do Centro de Documentação da Universidade de Caxias do Sul (Cedoc/UCS). O Cedoc possui o primeiro e o segundo números do jornal e o número 7 e 8, nos quais se encontra publicada a conferência. O jornal tinha como objetivo divulgar matérias que atendessem às seguintes temáticas: doutrina, jurisprudência, legislação, crítica e noticiário. A leitura do jornal é importante tanto do ponto de vista histórico como jurídico, pois oferece um panorama dos assuntos e dos debates que pautavam o cotidiano da sociedade e do trabalho jurídico nos anos iniciais da década de 30 (séc. XX). Os jornais encontram-se em perfeito estado de conservação permitindo a pesquisa. Na digitalização da conferência, manteve-se a grafia original. “O Divórcio” na perspectiva histórica Em uma sociedade são muitos os textos produzidos. Eles podem abordar diversas temáticas: religiosa, ficcional, administrativa, jornalística e jurídica. A conferência do Dr. Armando Dias de Azevedo reconduz para o âmbito do debate jurídico a dissolução do casamento através do divórcio. Nas primeiras linhas, fica evidenciada a opinião do Dr. Armando que é contra o divórcio, e sua posição se fundamenta em vários motivos, destacando-se os de ordem moral. É importante ressaltar que a conferência sobre o divórcio evidencia modificações e questionamentos em termos sociais que são importantes no resgate da história da mulher e no percurso das lutas feministas no século XX. Para entendermos as lutas femininas no decorrer do século XX, é necessário lembrarmos que o percurso das conquistas femininas, no Brasil, tem seu início ainda no século XIX, e que a análise da condição feminina, nesse período e nos primeiros anos do século XX, respalda a importância da conferência proferida na OAB sobre divórcio. Em outras palavras, o fato de um advogado se debruçar sobre a questão denota que a luta feminina iniciada no século XIX já começara a surtir seus efeitos; outra questão diz respeito à preocupação da OAB em propiciar aos seus advogados um espaço para reflexão sobre um assunto que, certamente, já era objeto de discussões 282 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012 sociais e logo chegaria aos escritórios como demanda juducial. O que se entende da leitura da conferência é que o Dr. Armando procura orientar a questão no sentido de que não haja a dissolução do casamento. Lembramos que a OAB, através de suas conferências e da publicação do jornal, cumpria também um papel pedagógico na área jurídica instruindo e sendo um fórum de discussão para seus associados. Retomando a história das conquistas femininas, lembramos que elas datam da segunda metade do século XIX: Um pequeno grupo pioneiro de feministas brasileiras proclamou sua insatisfação com os papéis tradicionalmente atribuídos pelos homens às mulheres. Principalmente por meio de jornais editados por mulheres, agora esquecidos, surgidos nessa época nas cidades do centro-sul do Brasil, elas procuravam despertar outras mulheres para seu potencial de autoprogresso e para elevar seu nível de aspirações. Tentaram iniciar mudanças no status econômico, social e legal das mulheres no Brasil. Confiantes no progresso buscaram inspiração e promessas de sucessos nas realizações de mulheres em outros países. Bastante conscientes da oposição masculina, e da indiferença feminina, e da aceitação limitada de suas próprias idéias, essas mulheres corajosas se mantiveram convencidas da importância de sua causa e de seu sucesso futuro. Ao contrário de muitos de seus caluniadores masculinos, que afirmavam que as mulheres seriam facilmente corruptíveis se pusessem o pé para fora de casa e que a família enfraquecer-se-ia e estaria necessitada de defesa, essas feministas manifestaram sua confiança nas mulheres e em suas aptidões. (HAHNER,1981, p. 25-26). É importante ressaltar que a luta pelos direitos femininos ocorreu em um Brasil marcadamente patriarcal. June Hahner lembra que, de acordo com o estereótipo comum da família patriarcal brasileira, o marido autoritário, rodeado de escravas concubinas, dominava seus filhos e a esposa submissa. Essa se transformou numa criatura indolente, passiva, mantida em casa, que gerava muitos filhos e maltratava os escravos. Relatos de diversos viajantes estrangeiros dão testemunho dessa imagem. Por exemplo, Jonh Luccock, um comerciante inglês, em 1888, comentou causticamente o envelhecimento precoce e o crescente mau humor e gordura das MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques 283 mulheres da classe superior no Rio de Janeiro, que ele atribuiu a hábitos de reclusão e indolência. Todavia, o estereótipo da fêmea pura, protegida, não era universalmente válido. O comportamento real variava conforme a classe. As mulheres da classe inferior conheceram maior liberdade pessoal, assim como trabalho físico árduo. Mesmo entre a elite, nem todas as mulheres eram confinadas à esfera privada do lar e excluídas da esfera pública, entregue aos homens, como no caso de viúvas ativas que dirigiam fazendas. Nas cidades, as mulheres da elite que permaneciam em grande parte reclusas em suas casas, freqüentemente administravam grandes estabelecimentos, cheios de parentes, servidores e escravos. Tais mulheres puderam exercer influência indiretamente, nos bastidores, sobre homens que ocupavam cargos de importância na esfera pública. Contudo a autoridade do marido e do pai permanecia suprema e a esposa era-lhes sujeita. (HANNER, 1981, p. 26). Foi nas primeiras décadas do século XX que um número crescente de mulheres tenta novamente lutar pelo sufrágio feminino, um direito que a Assembleia Constituinte de 1891 negara. Animadas pelo direito ao voto conquistado por mulheres na Europa ocidental e nos Estados Unidos, foram criadas organizações formais empenhadas na luta pelos direitos da mulher à medida que a causa sufragista ganhava aceitação. Ressaltamos que essa aceitação estava limitada a alguns setores da elite. (HAHNER, 1981). Após a queda da bolsa de Nova Iorque em 1929 e, por consequência, a restrição na importação do café brasileiro, as disputas das oligarquias brasileiras por um lugar no poder levaram o gaúcho Getúlio Vargas à presidência em 1930. A Revolução de 1930 destruiu as estruturas políticas da Primeira República e abriu caminho para a modernização do Estado brasileiro. Entre as características apontadas pela historiografia, destacamos que o movimento de 1930 foi uma revolução das chamadas camadas médias urbanas contra o predomínio e a hegemonia das oligarquias rurais do café, do açúcar e a bacia leiteira na região de Minas Gerais. Getúlio Vargas chega ao poder com o compromisso de modernizar o País, e essa modernização passa, necessariamente, pelo processo de industrialização. Esse processo será responsável por profundas mudanças na ordem social, definindo novos papéis sociais e, consequentemente, abrirá novas perspectivas sociais para a mulher. Ressaltamos o papel que o 284 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012 movimento modernista de 1922 que já iniciara, em termos culturais, importantes questionamentos sobre a sociedade brasileira e sua cultura. Segundo a historiadora Mary Del Priore, nas primeiras décadas do século XX, algumas capitais de estados sofrem reformas urbanísticas, metropolizam-se, criam novos espaços de entretenimento onde se cruzam, para o bem ou para o mal, homens e mulheres. Surgem platéias para todo o tipo de serviço cultural: circos, teatros, cinemas, auditórios de rádio. A “plebe” ou povo – trabalhadores, operários de fábricas, agitadores anti-sociais, ambulantes, biscateiros – também construirá espaços de lazer. Misturadas a ele, as “classes perigosas”: marginais, malandros, bicheiros, capoeiras, proxenetas. No meio espremia-se uma pequena classe média, composta de funcionários públicos, profissionais liberais, comerciários. Salários, grandes ou pequenos, porém regulares incentivavam o consumo de produtos, nos quais o amor estava sempre presente; filmes que se rodavam precocemente, libretos de burletas, letras de músicas reproduzidas em discos que giravam em “radiolas” e nos programas de rádio, teatro de revista com suas ondulantes bailarinas. (DEL PRIORE, 2006, p. 233). Outras transformações são dignas de nota. Segundo Mary Del Priore, se refere à prostituição doméstica, que, no Brasil, estava ligada ao sistema patriarcal e à predominância do espaço rural na organização econômica; ganha, a partir da República, no espaço urbano, o caftinismo. Os jovens passaram a iniciar a sua vida sexual não só com as brasileiras como rezava a tradição, mas também com estrangeiras nas cidades brasileiras. Se no século XIX as famílias brasileiras tinham, em média, 10, 12, 15 filhos, no século XX, o número de filhos ficou em torno de 5, 7, 8 crianças. O mundo passou por transformações desde o início do século XX, quase uma revolução, se levarmos em consideração o patriarcalismo da sociedade brasileira no período do Brasil Colônia e do Brasil Império. As antigas e gordas senhoras passavam o dia às voltas com os trabalhos de agulha e dando ordem às escravas, apertadas em dolorosos espartilhos cobertos por várias anáguas, parindo um filho a cada dois anos em média e tendo como marido um homem muito mais velho do que elas. A mulher da República corta os cabelos, livra-se do espartilho, inicia a prática de esportes com o jogo de tênis e a bicicleta, vai à praia ainda que coberta por muitos panos. A elegância passou a rimar com saúde como observa Mary Del MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques 285 Priore. Segundo ela, nascia uma nova mulher e exemplifica essas mudanças a partir de editoriais de revistas da época: Hoje em dia, preocupada com mil frivolidades mundanas, passeios, chás, tangos e visitas, a mulher deserta do lar. É como se a um templo se evadisse um ídolo. É como se a um frasco se evolasse um perfume. A vida exterior, desperdiçada em banalidades é um criminoso esbanjamento de energia. A família dissolve-se e perde a urdidura firme e ancestral dos seus liames, queixava-se um editorial da Revista Feminina. Ela abandonara os penteados ornamentais com ondas conseguidas graças a ferros de frisar para cortar os cabelos à la garçonne. O esporte, antes condenado, tornara-se indicativo de mudanças: Nosso fim é a beleza. A beleza só pode coexistir com a saúde, com a robustez e com a força alardeava o autor de A belleza feminina e a cultura física, em 1918. (DEL PRIORE,2006, p. 244). Mas, apesar das mudanças visíveis, a mulher ainda não era livre para se divorciar. O casamento ainda era indissolúvel. No Brasil, encontramos referências aos vocábulos casamento e divórcio desde a época de colônia. Segundo o Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil, “as regras matrimoniais foram claramente definidas e sistematizadas após o Concílio de Trento, mas essa regulamentação só começou a presidir a prática do matrimônio no Brasil no fim do século XVI e início do séc. XVII”. (SILVA, 1994, p. 144). O divórcio também era praticado no Brasil Colonial e designava a separação temporária ou perpétua entre os casais, determinada por autoridade eclesiástica mediante um processo julgado no tribunal da diocese, e todas as separações eram reconhecidas pelo Concílio de Trento. (SILVA, 1999, p. 262). O que se observa é que, apesar da existência do casamento e do divórcio, a mulher não tinha o direito de escolha do marido nem desfazer o matrimônio. Qualquer tentativa de rompê-lo era considerada imoral e, se, caso acontecesse à mulher, essa era estigmatizada junto com seus filhos por uma sociedade que se modernizava, mas ainda era marcadamente patriarcal em termos comportamentais. Mary Del Priore aponta que o divórcio era “‘a pior chaga da sociedade’; só em casos excepcionais e depois de um rigorosíssimo processo”. (DEL PRIORE, 2006, p. 246). Nesse momento, o Código Civil de 1916 respalda a visão que a sociedade patriarcal possuía sobre a questão. No referido código mantinha-se 286 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012 o compromisso com o Direito Canônico e com a indissolubilidade do vínculo matrimonial. Nele, a mulher era considerada altamente incapaz para exercer certos atos e se mantinha em posição de dependência e inferioridade perante o marido. Complementaridade de tarefas, sim. Igualdade entre homem e mulher, nunca. Ao marido, cabia representar a família, administrar os bens comuns e aqueles trazidos pela esposa e fixar o domicílio do casal. Quanto à esposa bem... essa ficara ao nível dos menores de idade ou dos índios. Comparado com a legislação anterior, de 1890, o Código traz mesmo uma artimanha. Ao estender aos “cônjuges” a responsabilidade da família, nem trabalhar a mulher podia sem permissão do marido. Autorizava-se mesmo o uso da legítima violência masculina contra excessos femininos. A ela cabia a identidade doméstica; a ele, a pública. (DEL PRIORE, 2006, p. 246). Acompanhado as determinações legislativas, observa-se que a sociedade discutia o “lugar social” feminino. Hahner aponta que como na Europa ocidental e nos Estados Unidos, a “questão da mulher” tornou-se um assunto adequado para discussão pelos homens de opinião. Em revistas elegantes como Kosmos, os homens brasileiros ponderavam soluções para esse problema. Para os positivistas, ele se equiparava em importância à “questão proletária”. Continuavam a argumentar a superioridade moral das mulheres, sua igualdade intelectual, mas inferioridade física, e advogavam uma existência puramente doméstica para as mulheres. Estas deveriam funcionar como “a alma da família”, que era a chavemestra da civilização, e como educadoras dos homens, mas não como seus pares. (HAHNER, 1981, p. 90). A conferência proferida pelo Dr. Armando ratifica em termos discursivos a opinião da sociedade sobre o tema, e que o Código Civil já definira em termos legislativos. O advogado inicia afirmando que o divórcio a “vínculo” era uma calamidade social, pois dissolvia a “célula mater” da sociedade, o casamento, e por consequência, a família. Ao defender a manutenção do vínculo familiar, Dr. Armando chama a atenção que a sociedade humana é composta por famílias e não por indivíduos, sendo assim, os defensores do divórcio estariam incorrendo em um falso MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques 287 pressuposto: o do individualismo. Desenvolvendo sua tese, o Dr. Armando lembra que o interesse da família exigia a indissolubilidade do vínculo do matrimônio, e que o divórcio poderia trazer sérias consequências para a mulher e para seus filhos. Segundo ele, o homem póde sahir da sociedade conjugal com todas as vantagens de sua força e de sua autoridade, para se comprometter em novos laços, a mulher não póde sahir della com toda a sua dignidade: deixa ahi seus melhores bens, as primícias de sua honra e encantos de sua mocidade e não retira sinão com difficuldade o dinheiro trazido. (1932) A solução para casamentos infelizes, segundo Dr. Armando, seria o desquite, a separação de corpos e de bens, mas mantendo-se o vínculo conjugal como era regulado pelo Código Civil e pelo Direito Canônico. Ressalta, também, que o debate sobre o divórcio tinha origem na degradação dos costumes, da moralidade dos tempos modernos. E citando argumentos higiênicos ressalta que o casamento e a constituição de uma família são salutares e naturais para o homem e a mulher. Conclui a conferência ressaltando que o divórcio é sumamente prejudicial vendo no desquite a solução para casos especialíssimos. A conferência realizada pelo Dr. Armando, na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), data de 1932. A data é muito importante, pois marca não só as lutas pelo direitos femininos, mas também a importante vitória pelos direitos políticos da mulher, o sufrágio universal. A Constituição de 1934 confirmou essa vitória. Segundo Hahner, mesmo que a campanha pelo sufrágio feminino no Brasil não tenha se tornado um movimento de massas, mostrou-se maior e mais bem-organizado que a maioria dos que se seguiram na América Latina. As lutas não pararam com a conquista do direito ao voto, a década de 30 (do séc. XX), foi um período muito fértil para as conquistas femininas. Bertha Lutz, durante seu mandato na Câmara de Deputados, ajudou a criar a Comissão de Estatuto da Mulher, que ela encabeçou. Essa comissão fomentou e impulsionou a decretação de um estatuto da mulher, uma lei abrangente relativa ao status legal e aos direitos sociais da mulher, que incluíam determinadas regras de trabalho para mulheres. (HAHNER, 1981). Concluindo esse esboço histórico, ressaltamos que a conferência sobre a questão do divórcio surge em um momento de mudanças sociais, políticas 288 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012 e econômicas no Brasil. Junto com a modernização do País, a figura feminina ganha importância e obviamente suas reivindicações, pois as mulheres urbanas farão parte do novo mercado de trabalho. E como cidadãs produtivas também buscam espaço e influência na esfera política através do voto e de eleição de mulheres empenhadas na luta por suas causas. “O Divórcio” na perspectiva do Direito Quando falamos do divórcio, ou da dissolução da união conjugal, é obrigatório que se faça referência ao instituto do casamento, eis que o casamento válido somente é extinto pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio. Estando o divórcio, intrinsecamente ligado ao casamento, se torna necessário mencionar todo o aspecto religioso e moral, discutido quando se leva a debate questões referente ao divórcio. O casamento, como instituto criador da família durante muito tempo, e ainda hoje, tem influência e participação direta da Igreja, pois, como veremos, durante muito tempo, a Igreja Católica foi a única a legislar sobre o casamento. Em se tratando de palestra proferida pelo Dr. Armando Dias de Azevedo, no ano de 1932, é de fundamental importância que entendamos qual era o cenário socioeconômico e religioso da época, principalmente o anterior. E preciso que se entenda que, em 1932, a mulher sequer havia adquirido alguns direitos políticos, no Brasil, ao voto feminino somente eram permitidas as mulheres casadas e com a autorização do marido. (Decreto 21.076, de 24 de fevereiro de 1932). O Brasil da década de 30 (séc. passado) era um país eminentemente católico, e o casamento era consolidado como o sacramento responsável pela formação da família e, portanto, indissolúvel. Em parte, por influência da Igreja Católica foi que durante todo o período colonial e grande parte do período republicano brasileiro, tivemos o casamento como indissolúvel, havendo, apenas, excepcionalmente, a possibilidade de separação dos cônjuges e do patrimônio, mas nunca do vínculo conjugal contraído perante a Igreja e o Estado. A possibilidade do divórcio somente surgiu com a Emenda Constitucional 9, de 28 de julho de 1977 que alterou o caráter indissolúvel até então atribuído ao casamento, pois os cônjuges divorciados poderiam contrair novas núpcias dissolvendo o vínculo matrimonial anterior, mas o caminho até a legislação que instituiu o divórcio foi longo e tortuoso. MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques 289 A primeira legislação brasileira a respeito do Direito de Família advém do tempo do Império, com o Decreto Imperial de 3.11.1827 sob a égide do Direito Canônico. Somente com o início da República no Brasil é que surgiu o casamento laico, com o Decreto 182, de 24 de janeiro de 1890 que criou o casamento civil sendo esse o único reconhecido pelo Estado, devendo esse sempre preceder o casamento religioso, sendo que a Constituição Federal de 1891, somente reconhece como válido o casamento contraído no civil, retirando por completo o privilégio da Igreja. Esse rompimento ocorrido entre o Estado e a Igreja somente se restabeleceu com a Constituição de 1934, que atribuiu ao casamento religioso os mesmos efeitos do casamento civil. O Código Civil de 1916 abrigava o pensamento da elite da época, contrária ao divórcio, em total consonância com os ditames da Igreja Católica, instituindo como forma de dissolução da sociedade conjugal o desquite. O desquite permitia somente a dissolução do vínculo conjugal, mas nunca da vínculo matrimonial contraído com o casamento. Na prática, nenhum avanço foi feito eis que o Decreto 181, de 1890, já previa a dissolução da sociedade conjugal com a separação de corpos e do patrimônio do casal. A questão da indissolubilidade do casamento permaneceu em todas as Constituições e alterações legislativas que se sucederam. Foi somente em 28 de junho de 1977, que a Emenda Constitucional 9, com seu art. 175, § 1º inserido na Constituição Federal de 1969 e posteriormente pela Lei 6.515/1977, conhecida como “Lei do Divórcio” que revogou os artigos 315 a 318 do Código Civil de 1916, instituindo, no Brasil, o divórcio como forma de dissolução do matrimônio. Percebemos, por esse breve histórico da evolução legislativa, o longo caminho que percorremos para que o Estado, através da lei reconhecesse a dissolução do matrimônio pelo divórcio. A contextualização dessa conferência publicada no jornal Forense de Porto Alegre demonstra o descompasso entre as mudanças ocorridas no Brasil da década de 30 e o processo de industrialização que se refletiu nas relações entre homens e mulheres e no percurso das lutas femininas por um espaço na sociedade brasileira, tradicionalmente patriarcal. Mesmo tendo herdado a herança do mando masculino, as mulheres conseguiram avanços significativos, mas o poder masculino ainda determina a posição da mulher na sociedade daquela época. A legislação, por sua vez, legitima o seu poder e o uso da violência contra a mulher. Ela deve ser “vigiada e punida”. 290 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012 Finalizando, é importante ressaltar que ainda havia um grande caminho a ser trilhado pelas lutas femininas, principalmente para a mulher do espaço rural. Retomemos a reflexão de Hahner que lembra que as profissionais que levaram a campanha sufragista à vitória em 1932 compreendiam apenas um pequeno segmento da população feminina nacional. A maioria das mulheres, bem como dos homens, continuou sem instrução. Para os membros das classes inferiores, a mudança veio mais lentamente. Mesmo entre os brasileiros mais bem situados, a maioria das mulheres ainda ocupava uma posição subalterna, com seus horizontes limitados ao lar. Para as mulheres, ao contrário dos homens, esperava-se que os problemas da família fossem mais importantes do que os demais. Hesitantes ou indiferentes, muitas mulheres não tentaram atravessar a longa e árdua trilha para a igualdade e a independência. (HAHNER, 1981, p. 125). Documento: Jornal Forense. Número 7 e 8 / outubro e novembro de 1932 Órgão da classe dos advogados e dos interesses forenses. O DIVÓRCIO Pelo Dr. Armando Dias de Azevedo (Conferência lida no Instituto da Ordem dos Advogados do Rio Grande do Sul). O divórcio “a vinculo” é uma calamidade social, pois vem mais nem menos que dissolva a família cellula – “mater” da sociedade. Seus apologistas partem do falso pressuposto do individualismo. Mas, como pondera Paul Bourget, querer fundar o organismo social sobre o indivíduo é pretender o traçado dum circulo quadrado: há “contraditio in adjecto”. “A sociedade humana compõe-se de famílias e não de indivíduos”, diz Augusto Comte e acrescenta: “... Um systema qualquer não pode ser formado sinão de elementos semelhantes a elle e apenas menores. Uma sociedade não é, pois, decomponível em indivíduos, do mesmo modo que uma superfície geométirca não é o em linhas ou uma linha em pontos”. O interesse da família exige a indissobilidade do vinculo do matrimonio, pois proporciona “Um divorcio” as seguintes probabilidades: “probabilidades de reflexão séria antes do compromisso, porque é irrevogável – probabilidade MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques 291 de cohesão mais estreita entre os antepassados, os Paes e os filhos, porque a prole comporta menos elementos heteregeneos, – probabilidades de união no espírito dos membros e de continuidade na tradição”. Vede as horríveis conseqüências do divorcio na vida da família como nôlas pinta o genial romancista e psycologo: “Vi ódios fraticidas entre filhos do primeiro e segundo, leito, Paes e mães julgados e condemnados por seus filhos e filhas: aqui, choques mortíferos entre o padrasto e seu enteado: ali, entre a segunda mulher e a filha do marido: acolá, o ciúme do passado, dum passado tornado tão além, lutas horríveis entre esses primeiro marido e sua antiga mulher em torno das doenças de seu filho, ou uma vez crescido este, de suas paixões, de suas loucuras de jovem, e, si é uma filha do casamento desta”. Imaginea a situação moral das creanças que tenham pae, mãe, “padrasto” e “madrasta” todos vivos!... Há quem diga que o divorcio “a vinculo” é uma protecção Á mulher. Pura illusão. “A mulher – diz Monsabré – é, mais do que o homem, a victima das degradações que arrasta consigo o divorcio. O homem póde sahir da sociedade conjugal com todas as vantagens de sua força e de sua autoridade, para se compromotter em novos laços; a mulher não póde sahir delle com toda a sua dignidade: deixa ahi seus melhores bens, as primícias de sua honra e os encantos de sua mocidade e não retira sinão com difficuldade o dinheiro trazido”. Dizem alguns partidários do divorcio “a vinculo” que há casos expecialissimos e situações extremas em que só elle póde ser remédio positivo e radical. O remédio para os casamentos infelizes, o remédio exctremo, é o desquite, isto é, a separação de corpos e de bens, com a conservação do vinculo conjugal, tal como é regulado pelo código civil e pelo direito canônico. Ademais, as leis não são feitos para os casos excepcionaes, mas para os casos geraes, os casos normaes. Nem se argumente que a indissolubilidade é uma fonte de concubinatos e dessa torpe hyprocrisia que ultimamente se introduziu entre nós, sob o euphemismo de “casamento por contracto” e que nada mais é que concubnato. Pedir por tal motivo a instituição do divorcio “a vinculo” é pedir a legalização do concubinato. Para evitar a este não devemos procurar soluções nas leis, mas nos costumes, na moral, na religião. A continência fora do matrimonio não é impossível. A possibilidade e conveniência della, por motivos puramente hygienicos, têm sido demonstradas sobeyamente 292 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012 por sábios de reputação universal. Sobre tal assumpto deixo de estender, para não invadir seara alheia, competindo, como compete, aos médicos mostrar a inanidade da immoral theoria que quer justificar os desregramentos, cobrindo-os com o manto augusto da sciencia. Diz-se ainda que, sendo o casamento um contracto, tem por força de ser rescindível. Distingamos. Há animal e animal. Há o animal irracional e há o animal racional, chamado homem. Da mesm fórma há contracto e contracto. O casamento é um contracto “suis generis”, que diz respeito a interesses muito mais elevados que os garantidos por um contracto de compra e venda, de doação, etc. Antes, porém, de ser um contracto civil, é um contracto ntural e religioso. Delle depende a existencia do gênero humano. “E” – como diz René Lamaire em sua monographia “Lê mariage civil” – um contracto natural, porque desde a origem e em todos os tempos o homem e a mulher foram levados a se unir, por sua natureza mesma e para dar satisfação ás necessidades oraes e physicas dessa natureza, o amor mutuo e a procreação. É também, como diz o mesmo jurista, “um contracto religioso, porque differente dos outros contractos que são conseqüências mais ou menos forçados de necessidades ou situações variáveis, aquelle foi instituído, querido directamente por Deus como elemento indispensável para a conservação do gênero humano que creára”. Só em terceiro logar é “um contracto civil, porque, dos diversos interesses materiaes que os homens devem tratar entre si e regular por suas leis, os que o casamento põe em jogo estão entre os mais importantes e os mais dignos de attenção. Nem se argumente com o exemplo dos outros povos. Ahi estão os funestos resultados mostrando que não devemos trilhar caminho igual. As estatísticas que nos apresenta Leonel franca em sua monumental obra, que é a ultima palavra no assumpto, são, de sobejo, eloquentes. Muito haveria a dizer sobre a magna questão do divorcio mas seria execeder os limites dum artigo ligeiro. Reproduzirei apenas a pagina magistral em que Bourget em “Um divorce”, póe estas palavras na boca do padre Eurvard, dirigindo-se a Madame Darras, uma divorciada que convolara novas nupcias: “Permitti-me uma comparação vulgarissima, mas muito nítida. Um navio acha-se diante dum porto onde um dos passageiros queria descer. Há , para este, altos interesses Moraes e materiaes, rever um pae moribundo, por exemplo, assistir a um processo de que depende o futuro dos seus. Que sei eu?... Casos de peste deram-se a bordo. As autoridades da cidade prohibem o desembarque por temos do contagio. Seria justo, seria MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques 293 caritativo ceder ás supplicas do viajnate, com o risco de contaminar uma cidade de cem mil habitantes? Evidentemente não. Eis, pois, uma circumstancia em que a justiça, em que a caridade exigem o sacrifício do interesse individual ao interesse geral. Este principio domina a sociedade. Entre duas medidas, das quaes uma é certamente útil ao conjunto, e penosa a tal individuo, a outra agradável a este individuo e prejudicial ao conjunto, a justiça e caridade queriam que a primeira predomine. É a pergunta que é mister fazer-se a propósito de qualquer instituição para medir-lhe o valor”. E mais adiante, depois de dar os argumentos racionaes, já acima transcriptos, acrescenta: “Que responde a historia, depois da razão? Ela demonstra que, com effeito, todas as civilizações superiores tende à monogamia. Ora, o divorcio não é monogamia, é polygamia sucessiva. Não quero fazer-vos um curso de sociologia. Sabies, no entanto, o que estabelece a estatística? Nos paizes em que existem o divorcio, o número dos criminosos, dos loucos, dos suicidas é proporcionalmente o decuplo nos divorciados. Por, conseguinte, para uma pessoa que, como vós e algumas outras, traz ou preserva no divorcio todas as delicadezas de seu espírito e de seu coração, a maioria ou já as tinha estragado ou perdeu nelle. Regulamentar a sociedade em vista duma minoria de degenerados prováveis, é procurar sua norma no que deve ficar sua decadência. Chamaes a isso um progresso. A sciencia chama-o regresso”. Em conclusão: Acho summamente prejudicial o divrocio “a vínculo” e considero sufficientes para a solução dos casos especialíssimos e das situações extremas da vida conjugal, no direito civil, o desquite, e canônico, a separação “quoad thorum et habitationem” Fonte: Jornal Forense. Órgão da Classe dos Advogados e Dos interesses Forenses. Jus et Libertas. Labor est Justitia. Director: Octavio Pitrez do Instituto da Ordem dos Advogados do Rio Grande do Sul. Doutrina, Jurisprudência, Legislação. Critica e Noticiário. Porto Alegre, Outubro e Novembro 1932 n. 7 e 8. Redação Provisória: Duque de Caxias, 508 – Phone: 6224. Fundo: Laudelino Teixeira de Medeiros – LTM 2514/ Caixa: 137. Série: Produção de Terceiros. Centro de Documentação da Universidade de Caxias do Sul (Cedoc/UCS). 294 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012 Referências BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil brasileiro: Direito de Família. 17.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 5. HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São Paulo: Brasiliense, 1981. Direito Canônico e no Direito Comum brasileiro. Revista Jurídica Cesumar, 25 set. 2009. Disponível em: <http:// w w w. c e s u m a r. b r / m e s t r a d o d i r e i t o / a r q u i v o s / v o l u m e 5 / Aspectos%20da%20dissol.pdf>. Acesso em: 5 maio 2011. DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil: Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 1997. v. 2. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil. Lisboa: Verbo, 1994. OLIVEIRA, Simone Cristina de. Aspectos da dissolução da sociedade conjugal no VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de família. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques 295 296 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012 O Código Penal de 1890 e a construção das relações de gênero, no julgamento dos processos-crime de homicídios, entre 1900 e 1940, na Comarca Caxias The Penal Code 1890 and the construction of gender relations at trial processes crime of homicide, between 1900 and 1940, at Comarca Caxias Aquéle Hendz* Jônatas Herrmann Dornelles** Resumo: A violência presente nas sociedades humanas é objeto de estudos nos mais diversos espaços do Planeta, assim como em variadas épocas. O presente artigo tem por objetivo demonstrar que os arquivos do Judiciário são um manancial extremamente rico para as mais distintas abordagens da pesquisa histórica, além de analisar, a partir do julgamento de crimes de homicídios, os valores que o Poder Judiciário utilizou para construir os diferentes elementos sociais envolvidos nos processos que ajudam na construção das relações de gênero. Abstract: The existing violence prevailing in human societies is a subject discussed in diversed fields of historigraphy. This article aims to prove that the Judiciary files are an extreme rich source to several distinct approaches of historical researches, besides reviewing, as from de judgment of homicide crimes, the values considered by the Judiciary to build different social elements involved in processes that help in the construction of gender relations. Palavras-chave: processo-crime; violência; código penal. Keywords: criminal process.; violence; criminal code. * Acadêmica de Licenciatura em História da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Bolsista voluntária do Projeto de Pesquisa “História e Poder”. E-mail: aquelehendz@hotmail.com. ** Aluno do curso de Licenciatura em História da UCS. Estagiário no Centro de Memória Regional do Judiciário (CMRJ)/UCS). Bolsista voluntário no projeto de pesquisa “História e poder”. E-mail: jonatasherrmann@gmail.com. MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann 297 Atualmente, vários estudos que estão voltados à história da Justiça utilizam como objeto de pesquisa processos-crime judiciais, que são essenciais à compreensão dos conflitos sociais e à posição do Poder Judiciário. O acervo do Centro de Memória Regional do Judiciário (CMRJ), vinculado ao Instituto Memória Histórica e Cultural da Universidade de Caxias do Sul (UCS), abriga processos da Comarca de Caxias do Sul desde o ano de 1898 até 2003. Entre esse vasto acervo, há processos-crime de homicídios envolvendo homens e mulheres, nos quais se pode observar a posição assumida pelo Poder Judiciário na região, possibilitando pesquisas na área da História e do Direito e também a compreensão das relações de gênero na época em foco. O estudo de três processos de assassinato, um cuja vítima era um homem (1915), e os outros dois cujas vítimas eram mulheres (1929 e 1932), permitiu que se buscasse compreender o modo de posicionamento do Judiciário através do uso do Código Penal de 1890, no julgamento dos processos, bem como de que forma seus julgamentos contribuíram para a construção das relações de gênero, resultando, assim, no presente artigo.1 Os estudos apresentados pela Escola dos Anales têm interferido teórica e metodologicamente no trabalho dos historiadores com a interdisciplinaridade. Através dos mesmos, houve a aproximação com outros territórios disciplinares, possibilitando a renovação da historiografia através de “novos problemas”, “novas abordagens” e “novos objetos”, como coloca Burke ao se referir à coleção editada pelo renomado medievalista francês Jacques Le Goff.2 A seleção do período de estudo neste artigo foi a delimitação entre 1910 e 1940, pois que ainda não haviam sido identificados processos de homicídio até 1900, e a base de dados do acervo do CMRJ ainda está sendo alimentada. O período abarcado entre 1900 e 1940 diz respeito ao contexto histórico de vigência do Decreto 847, de 11 de outubro de 1890, que promulgou, na época, o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (CP de 1890), que vigorou até 1940. Outra questão do contexto a ser considerada é o fato de se tratar de uma região que recebeu a imigração italiana a partir de 1875. É possível identificar, nos processos-crime de homicídios, imigrantes italianos como partes envolvidas no papel de transgressor que trazem em seus discursos, durante a fase de interrogatório, o uso de sua identidade regional para justificação da prática do crime, que será analisado mais a fundo posteriormente. 298 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012 Código Penal de 1890 e seus elementos discursivos Para a compreensão dos processos-crime de homicídios e do CP de 1890 recorreu-se aos conceitos de Pierre Bourdieu, que aborda o campo jurídico tratando de sua estrutura simbólica, seu lado interno, e faz uma crítica à categoria dos marxistas que ficou cega à análise das ideologias das estruturas sem se aprofundar no que as norteia internamente, sendo um exemplo disso Louis Althusser que apresentou os Aparelhos ideológicos de Estado, sendo “vítima de uma tradição que julga ter explicado as ‘ideologias’ pela designação de suas funções”. (BOURDIEU, 2003, p. 210). Bourdieu estabelece a lógica do campo jurídico, quando fala que as práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do funcionamento de um campo cuja lógica específica está duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de competência que nele têm lugar e, por um outro lado, pela lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções propriamente jurídicas. (2003, p. 211). Através da citação, o autor destaca o quantoa área do Direito é monopolizada pelos próprios agentes que o operam, elaboram seus produtos e delimitam seus espaços e suas configurações através das leis. O ato de uma pessoa recorrer a instâncias legais para a resolução de conflitos significa que ela aceita uma única forma de resolvê-los, ou seja, através da expressão e discussão, que nega a violência física. Assim, se fica subordinado ao sistema, à ideologia que norteia o campo jurídico que já tem sua organização, pois, como explica Bourdieu, o campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflito direto entre partes diretamente interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que atuam por procuração e que têm de comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer, as leis escritas e não escritas do campo – mesmo quando se trata daquelas que é preciso conhecer para vencer a letra da lei. (2003, p. 229). MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann 299 Partindo desse pressuposto e pensando nas partes que são arroladas em um processo judicial, pode-se aferir que muitos decidem optar pelo apoio dos meios judiciais para obter a solução legal aos diferentes conflitos sociais o que significa que essa procura representa aceitar e ter confiança nas decisões dos donos do monopólio do saber jurídico e, ao mesmo tempo, se subordinam às regras e às ideologias que norteiam tal território. Usando o Poder Judiciário como instância legal para a resolução de conflitos, os envolvidos, sejam eles o autor ou o réu/transgressor, juntamente com seus advogados, utilizam as leis a seu favor ficando a cargo do Poder Judiciário a punição ou a absolvição. No contexto dos processos-crime estudados vigorava, no Brasil, o Código Penal de 1890. Alvarez, Salla e Souza (2007) ao estudarem o Código Penal de 1890 e suas tendências, durante o período da Primeira República, na sociedade, afirmam que esse conjunto de leis assumiu a função de “instrumento de controle social no período”, sendo “incapaz de dar conta dos novos desafios colocados pelas transformações sociais e políticas do período republicano”. O Código Penal de 1890 foi elaborado com o intuito de fazer a “construção da ordem legal republicana” que, segundo Alvarez, Salla e Souza (2007), foi publicado após o sistema escravista, quando se iniciou a expansão da urbanização no Brasil. As considerações sobre o objetivo da implantação do CP de 1890 revelam a relação dialética entre sociedade e lei. Nesse contexto, o fim da escravidão e o início do desenvolvimento urbano foram alguns dos fatores determinantes que justificaram a necessidade de publicação desse código pelos detentores do poder, no sentido de ter um conjunto de leis que regesse e determinasse as relações sociais de uma nova proposta de sociedade. Bourdieu reforça essa ideia quando explica a relação entre campo jurídico e campo social, argumentando que “é no interior deste universo de relações que se definem os meios, os fins e os efeitos específicos que são atribuídos à ação jurídica”: Deixando de se perguntar se o poder vem de cima ou de baixo, se a elaboração do direito e a sua transformação são produto de um “movimento” dos costumes em direção à regra, das práticas coletivas em direção às codificações jurídicas ou inversamente, das formas e das fórmulas jurídicas em relação às práticas que elas informam, é preciso ter em linha de conta o conjunto das relações 300 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012 objetivas entre o campo jurídico, lugar de relações complexas que obedece a uma lógica relativamente autônoma, e o campo do poder e, por meio dele, o campo social no seu conjunto. (BOURDIEU, 2003, p. 240-241). Também é importante acrescentar a essa questão do monopólio do saber jurídico que, historicamente, a área jurídica sempre foi representada e refletida pelo grupo masculino que ficou responsável para pensar os comportamentos da sociedade, pela elaboração das leis, decretos e jurisprudências, colocando a sua visão e, consequentemente, levando ao julgamento final sua visão sobre como a sociedade deveria ser regida. Louise A. Tilly (1994, p. 54) revela a pouca importância da mulher no mundo político e “[as mulheres podiam] assistir aos processos nas cortes, mas elas não podiam esperar desempenhar, em hipótese nenhuma, um papel no funcionamento da justiça nem tomar parte ativa no seu grandioso espetáculo”. (TILLY apud DAVIDOFF; HALL). O próprio CP de 1890 mostra a visão que o saber jurídico teve quando elencou os crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor. Em seu Título VIII, o art. 268 apresenta as penalidades a quem “estuprar mulher virgem ou não, mas honesta”. Outros artigos também indicam sobre a existência de “tipos de mulheres”, mostrando haver a aplicação de penalidades diferentes, quando fossem violados os direitos da mulher pública/prostituta ou da mulheres honrada/honesta. Estudo dos casos Alvarez, Salla e Souza (2003), quando falam dos avanços da legislação processual republicana, veem o aumento das “possibilidades de defesa dos acusados nos crimes comuns” como um avanço. Assim, “a oralidade do julgamento vigorava nos debates plenários diante do júri; entretanto, o processo escrito dominou todo o procedimento preliminar do inquérito policial ou de formação de culpa”. Talvez, isso tenha tornado os processos judiciais portadores de um conteúdo mais vasto, onde os historiadores podem encontrar uma maior variedade de discursos, falas, interrogatórios registrados, que podem ser lidos nas entrelinhas para a busca de indícios que ajudarão na interpretação dos mesmos. Os testemunhos dos processos-crime de homicídio podem ser compreendidos e analisados considerando o método de Morelli citado por MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann 301 Ginzburg (1989), que consiste no levantamento minucioso dos indícios que podem indicar sinais aparentes de revelações necessárias e, nesse caso, a atuação do CP de 1890 na construção das relações de gênero nos processoscrime de homicídios que podem ser observados nos diversos interrogatórios institucionais e nas inquirições e respostas das testemunhas. Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e os movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos pregados, bolotas de esterco, tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais com fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas. (GINZBURG, 1989, p. 152). Lange relaciona o trabalho de identificação de indícios à tarefa do pesquisador quando diz: Desse modo, o caçador/observador e, hoje um pesquisador; a partir de um levantamento heterogêneo das pistas, dos sintomas e indícios deverá assumir uma postura cognoscitiva sobre os dados recolhidos conforme um paradigma indiciário – selecionar, conjeturar e organizar (fazer análises, comparações, classificações). (2008, p. 25). O primeiro caso de estudo consta do translado de um processo de 1915, que narra o resultado de um crime cuja vítima foi o subintendente do Município de Caxias do Sul: No dia 15 do corrente pelas sete horas e três quartos mais ou menos, era o denunciado conduzido para Intendência Municipal desta cidade pelo sub-intendente interino A. M. por ter furtado alguns objetos da casa de G. R. Ao passarem pela rua Sinimbu em frente à casa de J. A., o denunciado saca de uma pistola e a desfecha em A. M.; produzindo-lhe os ferimentos descritos no auto de exame cadavérico de fls., e que causou-lhe pouco depois a morte. E porque o denunciado assim procedendo, tenha incorrido na sacção do art 294 do Cod. Penal da Rep. O representante do Ministério Público vem oferecer esta denúncia, para que contra ele se proceda na forma da Lei. (p. 1 – verso). 302 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012 O CP de 1890, em seu art. 7°, trata do crime como “violação imputável e culposa da lei penal”, já atribuindo a responsabilidade a quem o praticou. Observa-se que os autos do processo fazem menção ao art. 294 do CP de 1890, cujo título do capítulo é “Do homicídio”, e o do art. 294 é “Matar alguém” e ao peso da pena em relação às circunstâncias agravantes ou atenuantes. Observa-se, também, que é o próprio representante do Ministério Público quem faz a denúncia, onde “havia a necessidade preeminente de justificar que o ato foi cometido através da vontade do agente, seja esta manifesta ou latente”, como explicam Alvarez, Salla e Souza (2003). Não se pode deixar de considerar, também, que o “ofendido” é um subintendente, o que influi muito na acusação e nas decisões tomadas devido às relações de poder existentes. Não houve dúvidas em relação a esse crime por parte dos juízes e do advogado, devido à sua evidência e aos depoimentos das testemunhas, como, por exemplo, o da primeira testemunha inquirida: Que no dia quinze do corrente, pelas oito horas mais ou menos, passeando pela rua Sinimbu na quadra entre as casas de J. A. e A. G., encontrou o sub-intendente, A. M., junto com o réu, parados discutindo aquele: “Vamos até a intendência” Respondendo o réu: “Não vou”. Então A. M. pegou-o pelo casaco replicando: “Vamos”. Ali o réu puxando de uma pistola de dois canos, engatilhou-a e fez fogo, em A. M., segurando este na ocasião com a mão esquerda o cano da referida pistola. Disse mais que a vítima depois de ferida lutou com o agressor e não podendo mais devido ao seu estado pediu a testemunha que o ajudasse e ela segurando o criminoso pelas costas procurou derrubá-lo, porém este conseguiu escapar, disparando rua fora, sendo perseguido em seguida pelo comandante da polícia. (p. 10). O réu foi condenado a 24 anos de prisão celular, cuja pena máxima prevista pelo CP de 1890 era de 30 anos. O segundo processo foi a investigação de um assassinato ocorrido em 1929, onde foi realizada a exumação e necropsia do cadáver de A. B., devido à alegação, dias depois, de M. B., pai da vítima, “que a morte desta estava em volta do mistério, já por haver sido quase repentina”. O laudo de análise toxicológica procedida nas vísceras da vítima atestou que foram encontradas substâncias tóxicas no corpo da vítima, que foram retiradas, MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann 303 aplicadas em um animal (neste caso de uma rã) que morreu sob o efeito dessas substâncias, comprovando que a causa da morte de A. B. foi envenenamento por estricnina. O relato do Dr. Rufino Ignácio Bezerra revelaz todo o processo pelo qual aquela família passou, até se encerrar com a morte da vítima: Compareceu o Sr. Dr. R. I. B., com 39 anos de idade, brasileiro, casado, médico, residente neste distrito que declarou o seguinte: Que no dia 18 de fevereiro a tardinha foi ao seu consultório o Sr. W. R. foi consultar para sua esposa, dizendo que a mesma sentia dores no ventre, fraqueza e mal estar, perguntando por que não a trazia ao consultório para ser examinada, respondeu que a mesma era muito acanhada, e que mais tarde ela viria afim de ser examinada. Pedindo-me que receitasse um medicamento para as cólicas que sofria, imediatamente receitei umas cápsulas, cuja formula é a seguinte: Pó de Dorei 0,20 – calomelanos, 0,50 – santonina 0,10, para ser dividida em 4 cápsulas; usar uma cápsula por noite. No dia seguinte às 21 horas foi chamado para atender Sra. A. esposa do Sr. W. que não se achava bem, ao chegar lá encontrei-a na cama sentada e com convulsões, tendo antes da minha chegada necessitado, motivo porque ele declarou-me que queria da cápsula que ela havia tomado, em seguida atendia fazendo-lhe uma injeção de éter outra de morfina, porque notei que o sistema nervoso era muito agitado; pois apresentava contrações musculares, ameaçando ter ataque. Perguntei-lhe se sentia dores no estomago, queimar, azia, dores no ventre, se tinha cólicas, se urinava bem, se não tinha diarreia e se não sentia mais alguma coisa de anormal. Declarou-me que sentia alguma coisa ruim pelo corpo e lhe agitava as pernas e os braços. Notando que não havia envenenamento pelo medicamento ingerido e por mim receitado fiquei atendendo-a até às 23 horas da mesma noite, porque ela vomitou três a quatro vezes e fazia ânsias de vômitos, tendo as convulsões antes de sentir ânsia. O marido quando diz que sua esposa é “acanhada” para justificar sua ausência ao médico, dá indícios da submissão da mulher a ele, já que suas respostas fazem com que lancemos alguns questionamentos: teria realmente a mulher optado por ficar em casa pelo fato de ser acanhada ou seria essa uma observação do entendimento do próprio marido? 304 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012 O médico destaca que a enferma teve vômitos e que, quando indagou à família se alguém havia oferecido alimentação a ela, obteve uma resposta positiva. No outro dia, o médico foi chamado novamente para examiná-la, encontrando-a bem disposta. Entretanto, no mesmo dia fora chamado novamente, pois a enferma estava passando mal quando a encontrou tendo ataques e contorcendo os seus membros devido às contrações violentas. Mesmo tendo sido aplicados medicamentos, ela faleceu naquele dia. O depoimento das demais testemunhas começaram a dar indícios do possível responsável pelo envenenamento de A. B., como consta no depoimento de E. A: Daí a pouco chegou Dr. B. perguntando aos presentes o que tinham dado para comer e beber, o que respondeu a depoente, que não sabia e que mais tarde soube que a sua sogra havia dado uma sopa de arroz com leite, que a depoente viu mais que depois do terceiro ataque a enferma estava com um movimento somente mexendo com os braços e a cabeça, notando que as unhas da mesma logo depois de expirar, estavam completamente roseadas, quando foram banhar a morta viu quando o Sr. W. P. esposo da morta agarrou de cima da cômoda três capsulas que estavam enroladas, guardando-as no bolso, nada mais vendo a respeito das aludidas cápsulas. (p. 4). O depoimento de C. T. de O. que dizia ter 32 anos, ser brasileira e viúva, destacou uma carta que J., a possível amante de W., recebera do mesmo, mostrando ao subdelegado um dos possíveis motivos do envenenamento de A., quando declarou: A uns oito dias, antes do facto da morte de Sra. A. B. R. A srta J. A. havia lhe mostrado uma carta, de Sr. W. que lhe havia endereçado, a qual relatava que havia esquecido o seu pai, mãe, mulher e filha e que deveria de se sacrificar por ela, e se ela não acreditasse ele haveria de furar uma veia e mandar-lhe um pouco de sangue. Passado dias, tornou a mostrar a depoente um bloco de cartas que ela havia recebido de Sr. W., por ocasião do aniversário de seu irmão em que o mesmo dançou uma marcha com ela e lhe havia entregue o aludido bloco, lendo algumas cartas, na qual o mesmo fazia-lhe declarações amorosas. Na noite o do velório da esposa de Sr. W., Srta. J. havia lhe dito que tinha recebido um MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann 305 bilhete de Sr. W. dizendo-lhe que a esperasse a meia noite; Disse mais a depoente que Srta. J. lhe havia declarado na noite do velório que Sr. W. havia estado em sua casa na véspera da morte de sua esposa fazendo-a jurar que havia de casar com ele que não lhe desse cuidado por isso ele sabia o que ia fazer, tendo a depoente respondido: então foi Sr. W. quem envenenou a sua esposa. Ao que respondeu Srta. J. se ele cometeu o isto, ele terá remorso para o resto da vida. Tendo Srta. J. pedido à depoente antes da confissão para que jurasse de joelhos, para que nada do que ia lhe confiar. Mas que diante do ocorrido, não podendo por mais tempo ocorrido guardar semelhante segredo contou ao seu irmão e outras pessoas. E disse mais a depoente que Srta. J. lhe havia dito que possuía vinte e tantas cartas de Sr. W. cujas cartas seu cunhado Sr. H. M. R. as viu e rasgou na vista dela e que partes delas foram queimadas por Srta J. na vista da depoente. (p. 4). Outra testemunha inquirida depôs sobre o estado de perturbação de W. quando disse que, em Dezembro do ano findo, conversando com Sr. W. R. marido de D. A. B. R. e que estava o depoente hospedado no Hotel Italia, em São Marcos, e que foi procurado por Sr. W. R. P., o qual lhe confessou que era o homem mais desgraçado que existia e que não podia mais suportar a vida e que por isso o único remédio que tinha era estourar cabeça com uma bala. [...] O depoente aconselhou-o que mudasse de ideia, ao que Sr. W. respondeu que o seu plano estava traçado e que se ele não metesse uma bala na cabeça, seria a desgraça [...] de uma ou mais pessoas de São Marcos. (p. 6). Os depoimentos das testemunhas ouvidas no processo foram consideradas suficientes para a polícia chegar a conclusão de que pelos referidos laudos se evidencia de modo irrefutável, que D. A. B. R. foi envenenada por meio de Estricnina. A morte da vítima se deu logo após, a mesma ter tomado um prato de arroz. [...] Sr. W. R. P., mantinha relações amorosas com a senhorinha J. A. a quem prometera, arranjar um meio de desvencilhar-se de sua esposa, a fim de casar com a mesma J. (p. 6). 306 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012 Em Taquara, município para onde o réu se mudou após cometer o crime, o mesmo foi inquirido, juntamente com mais testemunhas, quando o Juiz Distrital, o escrivão e o Promotor Público fizeram questionamentos acerca do relacionamento do casal. R. I. B. foi questionado durante a interrogação: Se é ou não exato que Sr. W. R. P., foi sempre marido estimoso, tratando sua mulher com dedicação e estima? R. que é exato o que se contém na pergunta, pelo o que o depoente viu durante mais de ano em que o depoente vivia bem com a família do réu. Se é ou não exato que a família B. sempre se opôs tenazmente ao casamento de Sr. W. com A. B., o que levou aquele a raptá-la de casa para que o casamento se fizesse? R. o que sabe de consciência própria que a família da Sra. A. B. se opunha, ao seu casamento com o réu, e que sabe também que o réu raptou Sra. A. a B., conseguindo a muito custo o consentimento do pai da vítima para o casamento dos dois. (p. 16). Em função de o crime ter sido cometido na cidade de São Marcos, o processo faz menção ao alarde que o fato provocou na população, bem como ao fato de o mesmo ocupar espaço nas páginas do jornal, contribuindo assim para aumentar a seriedade com que o caso foi encarado pelos juristas. Quando o réu foi interrogado, o mesmo chegou a afirmar que o que justificava a sua inocência era a existência de uma carta deixada por sua esposa, na qual ela avisava que iria se envenenar: Sr. W. querido. Eu te ama muito, mas me perdoa eu fui obrigada, Sr. W. meus pais querem que eu te deixe por força, eles disseram que se eu não te deixar que te matam, mau Neno cuida bem da nossa filhinha, eu vou me envenenar, mas não é por meu gosto, querido estou muito nervosa. (p. 31). Entretanto, o fato de o réu ter se envolvido com uma moradora do município de Bento Gonçalves e por ter uma depoente exposto que viu ele pegando algumas cápsulas de cima da cama e as colocando no bolso, tornaram-se fatores desfavoráveis a ele, pois a própria J. também foi intimada e confirmou os depoimentos ajudando na decretação da prisão preventiva de Sr. W. MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann 307 Consta na ata do júri que o advogado de defesa pediu a absolvição do réu, mas sem surtir efeito. De acordo com a votação do júri, o réu foi declarado culpado por ter colocado Estricnina na comida de sua falecida esposa. Havia tudo para o caso ter circunstâncias agravantes, mas em vista do réu ser menor de idade, o júri respondeu ao nono quesito: “Sim, por quatro votos: Existem a favor do réu as atenuantes de ter exemplar comportamento anterior é ser de menor idade quando praticou o crime”. (p. 60 verso). Entretanto, o presidente do júri, na sentença, condenou o réu a 16 anos e 6 meses de prisão celular. Nos depoimentos da mãe de W., ela assume ter preparado a comida que foi dada à vítima e, posteriormente, o advogado de defesa do réu utilizou o fato como argumento para fazer a apelação, questionando: “Quem viu o W. dar estricnina à A. B. num prato de alimento? A resposta morre estrangulada pela verdade, pois “ninguém viu”, o que levou ao entendimento de que A. B. envenenou-se por conta própria ou fora envenenada por outra pessoa. O fim do processo revela o acórdão judicial que deu provimento em parte à apelação, reduzindo a pena do acusado de 16 anos para 12 anos de prisão celular, com base no grau mínimo do art. 294, § 1° que fala das circunstâncias agravantes, combinado com o art. 296 que se refere à pena destinada a quem cometer crime de envenenamento, ambos do Código Penal. Outro processo diz respeito a caso ocorrido no ano de 1932: uma mulher, logo após dar à luz, é acusada pelo marido de tê-lo traído, sendo assassinada por ele através de arma de fogo. O Promotor Público, no uso de suas atribuições, fez a denúncia de L. V. pelo crime: Sr. L. V., de naturalidade italiana, comerciante estabelecido, com casa de negócio [...], nesta cidade, ali residia com sua esposa em segundas núpcias, dona Sra. I. B. V. Já semanas após o enlace matrimonial, começaram as rixas do casal, por motivo de ciúmes de L. V., o qual terminava quase sempre tais cenas, pelo espancamento brutal de sua esposa. Achando-se grávida, [...], dona Itália chamou, no dia 5 do corrente mês de Janeiro, a parteira M. C. para assisti-la. [...] Nascida a criança, como estivesse um tanto arroxada, em consequência do próprio nascimento, ao ser mostrada a L. V., este, dirigindo-se a esposa, bradou: – Me enganaste pela 308 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012 segunda vez a primeira te perdoei. E, voltando-se para a parteira, M. C., declarou que a criança não era seu filho, pois, sua primeira esposa lhe aparecera em sonhos, e dissera, que Sra. I. ia ter um filho de um negro. Após tão revoltante cena, verificou-se entre o denunciado e sua sogra presente, dona J. B., rápida alteração, retirando-se a ultima para sua casa. Sra. M. C. procura convencer L. V. da absurdez de suas ideias, mostrando-lhe ser branca a criancinha. L. V. demonstra, então, estar arrependido, e chega, mesmo, a ajoelhar-se junto ao leito de sua esposa, que bondosamente, lhe perdoa a infâmia pretendida. Neste ínterim, chega Sr. V. B., pai de dona I., que, penetrando na casa pelos fundos, dirigia-se para o quarto de sua filha, no que é obstado por Sra. M. C., que para evitar, complicações, o leva para a cozinha. Ali estavam V. B. e Sra. M. C., quando ouvem tiros e acorrendo vêm, ainda, L.V. empunhando um revólver, virar a arma contra si. [...] Em sua fúria homicida, L. V. procurou, também, matar o recém nascido, alvejando-o com o balázio. (p. 0). L. V., no hospital, após despertar, revela que não se lembrava de nada, mas, mesmo assim, é decretada a sua prisão preventiva. Durante todos os momentos do processo, ele e seu advogado alegaram que o réu estava sob estado de perturbação mental, e que o seu sangue de calabrês (por ter nascido na região da Calábria, na Itália) o havia influenciado no ato. O art. 27 do CP de 1890 trata dos indivíduos que não se enquadram na categoria de criminosos, e o que fortalece o discurso do réu é o § 3° que diz que não seriam considerados criminosos “os que por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação”; e o § 4° quando destaca: “Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime.” Nesse sentido, o CP de 1890 vai ao encontro da justificativa do réu e do advogado (estar sob privação dos sentidos), o que reforça, de certo modo, a defesa da honra masculina por ter acreditado, no momento, que, realmente, sua esposa o havia traído com o “Negro Bastião”. Chalhoub (2001, p. 180) faz um paralelo entre o discurso médico e o discurso jurídico dizendo que “o homem ofendido em sua honra ficava em estado de ‘privação de sentidos e inteligência’ e cometia o crime em um momento de desvario, de loucura momentânea”, reforçando assim “o direito de dominação do homem sobre a mulher no relacionamento amoroso”. MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann 309 J. B., mãe da vítima, conta que após o casamento de sua filha com L., veio de Garibaldi uma moça chamada A. S. para ajudar nas tarefas da casa, e que I. passou a desconfiar do marido e pediu para que A. fosse embora e que, mesmo após a sua saída, ela manteve correspondência com L. O advogado de defesa do réu, insistindo na inocência de L. pediu que fossem ouvidas outras testemunhas através de carta precatória expedida em outros municípios. Assim, a solicitação do advogado foi respeitada, e outras testemunhas foram arroladas no processo. Uma delas, quando perguntada sobre a conduta moral da vítima respondeu que por ser vizinha da vítima conhecia a boa conduta moral da vítima, destacando “que nunca viu a vítima falar com pessoa alguma e muito menos com negros e nem viu negro algum entrar em sua casa para qualquer cousa”. (p. 69). Duas testemunhas de defesa do réu oferecem sua opinião sobre o crime: o primeiro era o cônego da cidade que dizia que, quando ocorreu o homicídio, estava nas praias de banho, e que não poderia falar mais nada devido ao seu segredo profissional; e o segundo quando argumentou que “os habitantes do Sul da Itália especialmente os calabreses, em questão de honra, são muito rigorosos e ciumentos e que costumam lavar com sangue a honra defendida”. Entretanto, o resultado do laudo do médico atestou que o réu não estava com a dita “perturbação dos sentidos”, mas o advogado de defesa apelou para o passado do réu, relatando que “quis entrar para um convento, em virtude de um sonho que tivera com S. Francisco, tomando todas as providências necessárias e não efetivando sua resolução, por não terem chegado da Itália os papéis necessários exigidos; (vide depoimento D. Remelo Carbene)”. (p. 130). E, por fim, o pai da vítima desistiu da ação em face do resultado da votação do júri, que foi favorável a L. V.: [...] Primeiro quesito: O réu Sr. L. V., em cinco de janeiro de mil novecentos e trinta e dois, na sua residência nesta cidade, a rua Julio de Castilhos, fez, com projéteis de arma de fogo, na pessoa de Sra. I. B. V., sua esposa as lesões corporais descritas no auto de exame medico legal [...] ? Responderam, Sim por unanimidade de votos [...]. Segundo quesito: Essas lesões por sua natureza e sede foram a causa eficiente da morte da ofendida? Responderam: Sim, por unanimidade de votos. Responderam os jurados [...]. 310 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012 Terceiro quesito (a requerimento da defesa): O réu agiu em estado de completa perturbação dos sentidos e da inteligência no ato de cometer o crime? Responderam, Sim, por unanimidade de votos. Apesar de o laudo médico de L. V. confirmar que ele não tinha transtornos psíquicos de qualquer natureza, o júri o absolveu. Considerações finais Os três crimes de homicídio nos oferecem pistas acerca do entendimento do que alguns homens, no papel de marido ou de solteiro, fizeram das mulheres com as quais se relacionavam e, quando enfrentam o tribunal, utilizam como apoio o Código Penal de 1890 para se livrarem da penalidade aplicada nos processos-crime de homicídios, conseguindo através da mesma lei culpar aquela que, num primeiro momento do processo, era a vítima, ou seja, a mulher. No primeiro caso, não há o envolvimento de mulheres, porém o réu é condenado, pois a vítima em questão era um homem com importante papel na sociedade. O Código Penal de 1890, em seu Título III diz da “responsabilidade criminal; das causas que dirimem a criminalidade e justificam os crimes”, e no seu art. 22 que “a responsabilidade é exclusivamente pessoal”. Porém, o art. 27 tece considerações aos não criminosos: [...] § 3º. Os que por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação; [...] § 4º. Os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime; [...]. Nos outros dois processos sobre homicídios, estão presentes, nos discursos de defesa dos réus, questões ligadas a má-conduta da mulher, que é entendida como geradora da desonra do homem. Honra masculina que precisava ser lavada por meio de uma atitude passível de ser inocentada, justificando-se pelo “estado de perturbação mental”, como é percebido no MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann 311 processo do assassinato de I., esposa de L., o advogado de defesa recorre à decisão judicial que foi embasada no laudo médico que revelou: É verdade que estes médicos (Drs. Carbone e Fracasso) atenderam ao réu depois do delito praticado e, pela “lei penal, e estado de perturbação dos sentidos e da inteligência ha de ser simultâneo com a ação material do delito, deve coexistir com o ato da perpetração de crime, suprimindo a “consciência sceleris”. Os interrogatórios realizados também investigam o passado recente das partes envolvidas para chegarem a uma possível conclusão sobre os rumos e acontecimentos que nortearam a vida dessas pessoas os quais poderiam ser utilizados como o fator desencadeador de todo o processo que culminou no ato criminal. O mesmo é possível de ser identificado quando é investigado o passado mais remoto dos indivíduos envolvidos para se chegar às devidas conclusões e, posteriormente, ao julgamento. O caso do assassinato de I. após dar à luz o seu rebento, demonstra que o advogado de defesa relata um fato do passado do réu, dizendo que o mesmo teve interesse pela vida religiosa, utilizando a fé como forma de reforçar uma boa imagem criada sobre o criminoso. A sentença final indica que o Poder Judiciário ajudou e contribuiu, baseado no CP de 1890 e através de suas decisões e julgamentos, para reforçar as desigualdades entre as relações de gênero na sociedade. Em um dos processos-crime, a opinião do juiz na sentença foi baseada nas circunstâncias atenuantes sobre as agravantes, como mostra o Código Penal de 1890: Art. 36. As circunstâncias agravantes e atenuantes dos crimes influirão na agravação ou atenuação das penas aqueles aplicáveis. [...] Art. 38. No concurso de circunstâncias atenuantes e agravantes, prevalecem umas sobre as outras, ou se compensam, observadas as seguintes regras: § 1.º Prevalecerão agravantes: a) quando preponderar a perversidade do criminoso, a extensão do dano e a intensidade do alarme causado pelo crime. [...] 312 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012 Sidney Chalhoub (2001, p 180) faz considerações sobre os julgamentos e as normas impostas pela sociedade, explicando que as pessoas que se envolvem em crimes são julgadas mais pelo seu comportamento em relação “às regras de conduta moral consideradas legítimas”, do que pelo ato do crime. Assim, entra em questão a “honra do homem”, que depende inteiramente da “conduta da mulher”, pois ela lhe deve fidelidade por ser dependente hierarquicamente do marido. Bourdieu ensina sobre o “efeito de apriorização”, ou seja, o campo jurídico se apodera de elementos da língua comum e elabora seus enunciados “com uma impersonalidade e neutralidade”. Para ele, o uso que se faz de verbos na terceira pessoa ou de indefinidos, do presente intemporal ou do futuro jurídico exprimem as normas de conduta, e cita, como exemplo, “o bom pai de família”, e isso deixa pouco espaço às “variações individuais”. (p. 215). Todas essas questões levantadas pelos processos-crime estão ligadas à forma e a quem o Direito é organizado, pois, como foi exposto anteriormente, o campo jurídico historicamente foi monopolizado por homens, e, quando houve a presença de mulheres, essas sempre foram a minoria. A leitura inicial dos processos aponta que os advogados sempre eram homens, e que os discursos de defesa e acusação, provavelmente, seguiam a lógica dominante do ponto de vista masculino na sociedade, o que também ajuda na construção das relações de gênero. Uma possível explicação para os crimes de homicídios contra mulheres, levados a cabo por homens, é que a sociedade educa as mulheres para a preservação de uma ordem de sujeição e de aceitação da dominância patriarcal. No terceiro processo, o relato feito pelo promotor dá conta de que o réu sempre terminava suas brigas com “espancamento brutal de sua esposa”. O corpo da mulher é o lugar, por excelência, do exercício do poder masculino. Não temos ainda bases para tipificar as razões que levaram esses (e outros) homens a matar as próprias mulheres no contexto conjugal. As causas diretas são diversas. O adultério ou a desconfiança de adultério, entre outras, são as razões mais invocadas para o cometimento do crime. Percebemos que não há, nos processos, a confissão da vontade de matar. Frequentemente, os homens assumem-se como vítimas e/ou como estando no exercício de um direito dado pela sua condição de marido e proprietário. MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann 313 Notas Este artigo está relacionado ao projeto de pesquisa “História e Poder: discursos e práticas de gênero no Judiciário de Caxias do Sul – 1900-1950”, coordenado pela Profa. Dra. Luiza Horn Iotti. 1 Burke fala mais sobre as perspectivas da Nova História em A escrita da história: novas perspectivas. 1929. p. 9. 2 Referências ALBECHE, Daysi Lange. Antes rir do que chorar: análise das relações familiares e afetivas em A Grande Família. 2008. Tese (Doutorado em Comunicação) – Unisinos, São Leopoldo, 2008. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. p. 143-179. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Presença, 1974. TILLY, Louise A. Gênero, história das mulheres e história social. Cadernos Pagu, Campinas: Unicamp, n. 3, 1994. ALVAREZ, Marcos Cézar; SALLA, Fernando; SOUZA, Luiz Antônio F. A sociedade e a lei: o Código Penal de 1890 e as novas tendências penais na Primeira República. Revista Justiça e História – Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, v. 3, n. 6, 2003. UFLACKER, Augusto. Código Penal da República dos Estados Unidos do Brazil. Edição comentada. Porto Alegre: Editores proprietários Carlos Pinto & Comp; Successores, 1898. BOURDIEU, Pierre. A força do Direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico. In: ______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 209-254. BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: ______. (Org.) .A escrita da história. São Paulo: Edunesp, 1992. p. 7-37. CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. 2. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2001. 314 Fontes: As fontes utilizadas estão sob custódia do CMRJudiciário/UCS. Processo n. 02 acondicionado na caixa 90, do ano de 1915. Processo n. 01 acondicionado na caixa 90, do ano de 1929. Processo n. 01 acondicionado na caixa 88, do ano de 1932. MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012 Amásias, esposas e prostitutas: da situação de vítimas ao papel de transgressoras Mistresses, wives and prostitutes: from victims to transgressors Daysi Lange* Resumo: Este artigo faz parte da pesquisa em andamento intitulada: História e poder: discursos e práticas de gênero no Judiciário de Caxias do Sul: 1900 a 1950. Tem como problemática de pesquisa investigar quais são as representações que o Judiciário de Caxias do Sul elaborou, no contexto em questão, sobre as mulheres que se envolveram em processos criminais na posição de vítimas e/ou transgressoras. A documentação pesquisada faz parte do acervo do Centro de Memória Regional do Judiciário, sob a custódia da Universidade de Caxias do Sul. (CMRJU/IMHC/UCS). Abstract: This article is part of a current research entitled: History and power: gender discourse and practices in the Judiciary of Caxias do Sul, from 1900 to 1950. As a research problematic it has the investigation of which representations the Judiciary of Caxias do Sul elaborated, in the period analyzed, about the women involved in criminal processes in the role of victim and/or transgressor. The documentation used is part of the collection of the Centro de Memória Regional do Judiciário, under the custody of the Universidade de Caxias do Sul. (CMRJU/ IMHC/UCS). Palavras-chave: gênero; Poder Judiciário; prostituição. Keywords: gender; Judiciary Power; prostitution. Docente do Centro de Ciências Humanas da UCS. Doutora em Comunicação Social pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: daysilange@gmail.com * Por questões de ética, optou-se por utilizar nomes fictícios. MÉTIS: história & cultura – LANGE, Daysy – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012 315 No fim do século XX, houve a organização de diferentes movimentos sociais, que passaram a exigir ações de reparação às discriminações historicamente experimentadas, diante do passado de injustiça e exclusão social brasileira. Entre os diferentes movimentos sociais, a mulher faz parte de um dos grupos que levantam a questão de gênero como tema, o qual, por muito tempo, foi omitido. Além disso, soma-se o fato de existir certa ignorância sobre a relação que foi estabelecida entre o Estado e a sociedade civil. Ao se debruçar ante a questão do papel da mulher na sociedade, em diferentes contextos históricos, ainda é possível identificar, na atualidade, a persistência do imaginário social que aceita que elas devam ser tratadas como propriedade e sejam submetidas ao comando do sexo oposto: pais, maridos e irmãos. Trata-se de certa naturalização que ajuda a confirmar o suposto direito do homem de exercer autoridade sobre a filha, irmã e/ou esposa, bem como exercer o controle e a correção das condutas e atitudes de mulheres. A perpetuação desse imaginário manifesta-se através de práticas que se expressam, às vezes, de forma violenta, como, por exemplo, em homicídios que, quando extrapolam o espaço do ambiente doméstico e ganham visibilidade pública, ajudam a reforçar a ideia de que a morte foi merecida ou legitimada. Nesse sentido, destaca-se a divulgação sensacionalista que a mídia dá aos casos de violência contra mulheres e que, muitas vezes, ajuda a reforçar a assimetria existente nas relações de gênero. Observa-se que o sensacionalismo existente nos casos de violência contra a mulher tende a mostrar o quanto os homens têm poder de vida e morte sobre elas e, paradoxalmente, provocam situações de medo às mulheres, pois a experiência cotidiana da violência fá-las-á recuar diante de uma situação de denúncia contra as agressões experimentadas, preferindo manter a relação, por mais opressiva que seja, na tentativa de resguardar sua vida. A sociedade brasileira, historicamente, é responsável pela prática de interdição oferecida aos diferentes grupos sociais, como, por exemplo, racismo, preconceito, discriminação e exclusão. Com a conquista da sociedade de direito, temos, cada vez mais, de forçar a necessidade de implementar políticas que assegurem que os interesses de grupos historicamente marginalizados não sejam mais ignorados ou menosprezados por outros grupos dominantes. Entretanto, acredita-se que o sucesso desse movimento depende, também, da organização dos movimentos contra o esquecimento. 316 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012 Vilela (2001) afirma que existe um direito à memória, que é um dever de transgressão e resistência que representa a necessidade de transgredir os significados legitimados pelos diferentes regimes de poder. O autor destaca que o papel do pesquisador, através de sua obra (pesquisa, estudo), deve construir um significado que vá ao encontro da memória do Outro, ou seja, a possibilidade de dar visibilidade ao que foi esquecido, pois não existem memórias periféricas. Enfatiza que cada uma das diferentes vítimas é a figura da humanidade, e que somente a educação e, consequentemente, a pesquisa pode assumir a intencionalidade desse esforço humano de significação do silêncio e da voz daqueles que são os Outros. Acredita que é através da comunicação dessa memória que será possível construir o caminho de uma memória exemplar que é, afinal, um lugar de resistência. O passado não pode ser aceito como inalterável; é necessário opormo-nos a esse passado desde o presente – que é o acontecimento no qual o lastro do passado consome e recria todos os sentidos possíveis. (LARROSA, 2001, p. 253). Desse modo, também é possível identificar que, historicamente, a violência contra as mulheres não foi tratada como um crime real, dada a falta de consequências severas a tais atos. De acordo com a historiografia, as Ordenações Filipinas atribuíam o direito ao marido de fazer com que obedecem a ele a mulher, os criados, os filhos e os escravos, bem como de corrigi-los e castigá-los. A publicação do Código Civil de 1916, no período republicano, consolidou ainda mais o modelo assimétrico e patriarcal da sociedade brasileira, pois, até então, o pátrio poder também dava o direito ao marido de exigir a obediência da mulher. Entende-se que a relação assimétrica e patriarcal da sociedade e da própria legislação brasileira contribuiu para reforçar as relações de gênero. Na tentativa de conceituar as relações de gênero, partimos do pressuposto de que elas demonstram e sistematizam as desigualdades socioculturais existentes entre homens e mulheres, que se repercutem na esfera da vida pública e da privada de ambos os sexos, impondo a eles papéis sociais diferenciados que foram construídos historicamente, criando polos de dominação e submissão. Impõe-se o poder masculino em detrimento dos direitos das mulheres, subordinando-as às necessidades pessoais e políticas dos homens, tornando-as invisíveis e dependentes. (MELO, 2004, p. 15). A sociedade assimétrica e patriarcal idealiza a supremacia do mando masculino, o que impede o pleno desenvolvimento e o reconhecimento da voz das mulheres. O gênero pode ser apreendido como instrumento que MÉTIS: história & cultura – LANGE, Daysy – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012 317 facilita a percepção das desigualdades entre homens e mulheres, devido à discriminação histórica atribuída a elas. Oferece possibilidades mais amplas de estudo sobre a mulher, percebendo-a em sua dimensão relacional com os homens e o poder. (MELO, 2004, p. 16). Em 1930, a Igreja Católica ironizava os movimentos sociais que levantavam a bandeira do divórcio e do desejo de emancipação feminina, principalmente, quando associava o casamento à situação de prisão, à inferioridade da mulher e que o divórcio representaria a sua libertação. Com o objetivo de criticar a situação de divórcio, a Igreja Católica dizia que bastava avaliar a organização biológica da mulher para observar a exigência de um regime de união indissolúvel. Justificava que a mulher envelhecia mais cedo que o homem, pois era o momento em que ela perdia os atrativos físicos. Segundo a Igreja, a própria organização psíquica da mulher, mais afetiva e emocional do que a do homem, exigia a tranquilidade inabalável do lar. Negromonte (1948) diz que a Igreja, inclusive, apontava às diferenças entre homens e mulheres na constituição da família, pois era o espaço em que o homem entrava com a proteção, e a mulher, com as exigências de sua fraqueza. No caso de separação, o homem sairia com a sua autoridade, mas a mulher não levaria tudo que houve para o casamento – virgindade, juventude, beleza, fecundidade. Assim, a mulher sem a auréola da virgindade, sem a consideração da realeza do lar e sem a superioridade da virtude, restaria a ela muito pouco. A mulher, uma vez separada, poderia ser procurada por outros homens, mas nunca para colocá-la novamente no papel de esposa, pois a separação e o divórcio significava a sua degradação e abriam espaço para a poligamia, ou seja, podia tornar-se escrava dos prazeres do homem. A Igreja também retomava constantemente o ensinamento do Capítulo 5 da Epístola aos Efésios, relativo aos mútuos deveres dos conjuges, quando São Paulo dizia (apud NEGROMONTE, 1948, p. 35): “As mulheres, sejam sujeitas a seus maridos, como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu corpo, do qual ele é o Salvador. Ora, assim como a Igreja está sujeita a Cristo, assim o estejam as mulheres aos seus maridos em tudo.” Em 1930, o Papa Pio XI publicou a Enciclíca Casti Connubii que, entre outras considerações, reafirmava a santidade do matrimônio, lembrando que a família era anterior ao Estado, o vínculo indissolúvel do casamento e defendia a necessidade de manter-se contrário a quaisquer 318 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012 tentações de infidelidade, quando apontava às virtudes domésticas da casta fidelidade de um e de outro cônjuge e da honesta sujeição da mulher ao marido. Dotti (2007) diz que, na Região de Colonização Italiana (RCI) no Rio Grande do Sul os imigrantes, diante da necessidade de tornar possível a vida no Brasil e de viabilizar suas pequenas propriedades, reproduziram e reforçaram, em muitos momentos, um comportamento coletivo e relações de poder marcadas por papéis bem definidos. Desse modo, a ideologia cristã do casamento, mantenedora da mulher sob a tutela do marido, encontrou ambiente propício para aprofundar suas raízes e se naturalizar por todo o corpo social. Fávaro (1996) diz que, na RCI, no Rio Grande do Sul, a mulher socialmente aceita e valorizada, era aquela que sabia ficar no seu lugar, representando os papéis tradicionais. Qualquer alteração desse precário equilíbrio entre o ser e o querer constituía um perigo, do qual era necessário precaver-se. A recusa em acatar as normas comportamentais implicava discriminação. A autora também destaca que, visando a assegurar e a manter o status quo, a Igreja outorgou-se o dever e o direito de aplicar diferentes formas de pressão sobre as pequenas comunidades imigrantes em formação na região de colonização italiana. A família, núcleo social e econômico por excelência, devia manter a coesão interna e a imagem externa a qualquer preço, pois era por seu intermédio que o controle da sociedade se efetivava. [...] Por família a Igreja entendia a família legítima, a que era fruto do casamento matrimonial. A sexualidade feminina em tal contexto deveria ser controlada, porque neste comportamento residia o limiar entre a honra e desonra. (FÁVARO, 1996, p. 213). Fávaro (1996) também ensina que ao homem fora concedido o direito de governar a família, de conduzi-la segundo a sua vontade, tanto em termos sociais como econômicos, permitindo afirmar que a condição de submissão das mulheres-mães aos maridos e, por extensão à família, manteve-se praticamente inalterada até, aproximadamente, a década de 50 (séc. XX). Destaca, ainda, que, mesmo com a implantação do modo capitalista, a urbanização e o recrutamento de mão de obra feminina para a indústria MÉTIS: história & cultura – LANGE, Daysy – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012 319 nascente, foi acentuado o discurso misógino de controle sobre a conduta feminina, o qual reforçava a incapacidade feminina na gestão de seu próprio destino. Além disso, a Igreja reafirmava a rígida separação entre o espaço público masculino e espaço doméstico feminino dizendo que o seu lugar é o lar doméstico; a sua missão é ser mãe de seus filhos e esposa de seu marido. Qualquer coisa que venha atrapalhar esta grande missão natural da mulher deve ser considerada moralmente má e condenável. (FÁVARO, 1996, p. 226). Foucault (apud EWALD, 1993) afirma que é através do Direito, da Justiça e, consequentemente, do sistema penal, que a sociedade define o bem e o mal, o permitido e o não permitido, o legal e o ilegal, ou seja, a maneira como ela exprime todas as infrações e transgressões feitas à sua lei. Em seus estudos sobre as formas de poder, Foucault (apud EWALD, 1993) identifica o sistema jurídico-discursivo como o enunciado da regra e/ou lei; o espaço entre aquilo que é permitido pela lei e o que ela proíbe. Assim, podemos afirmar que o Poder Judiciário é correlato aos paradigmas e/ou aos valores dominantes. Para o pensador francês, o poder jurídico discursivo aparece como sendo aquele que exclui, sujeita, recusa e interdita as pessoas e o faz pronunciando a lei, a regra. Em todas as instâncias da sociedade, a forma geral do poder seria a forma do Direito, uma vez que esse se definiria pelo jogo entre o lícito e o ilícito, a transgressão e o castigo. Ao conceituar a norma, Foucault (apud EWALD, 1993, p. 78) diz que é a arte de julgar. A norma, no início do século XIX, vai designar, ao mesmo tempo, certo tipo de regras, uma maneira de produzi-las e, sobretudo, um princípio de valorização. A norma, segundo o autor, designa sempre uma medida que serve para apreciar o que é conforme à regra e o que dela se distingue e não se encontra ligado à ideia de retidão. A norma toma o seu valor de jogo nas oposições entre o normal e o anormal, ou entre o saudável e o patológico. Normalizar significa fornecer documentos de referência, que viabilizem soluções para problemas técnicos ou comerciais que se colocam de maneira repetida por ocasião das relações entre parceiros econômicos, técnicos, científicos e sociais. Normalizar é produzir normas, instrumentos de medida e de comparação, regras de juízo. Para o autor, não se pode conceber uma sociedade sem normalização. 320 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012 Segundo Foucault, as normas são plurais, como, por exemplo, normas industriais, de comportamento, normas de vida, normas jurídicas, políticas, entre outras. Desse modo, a norma pode ser definida como um critério, uma medida ou um exemplo de procedimento, de processo, de dimensão, de extensão, de quantidade, de qualidade ou de tempo, estabelecido por uma autoridade, pelo costume ou pelo consenso, como base de referência ou comparação. Processos-crime Entre os objetivos da pesquisa, destaca-se a importância de caracterizar práticas e discursos forenses, analisando como o Judiciário percebeu as mulheres que se envolveram em processos e examinar como as mulheres envolvidas em processos foram representadas/julgadas pela sociedade e pelo poder jurídico. Para dar conta desses objetivos, realizou-se a leitura de processos-crime envolvendo mulheres na posição de vítimas e/ou transgressoras, entre as décadas de 30 e 40 (séc. XX). Partindo do pressuposto de que o discurso do Poder Judiciário é aquele que exclui, sujeita, recusa e interdita as pessoas e que o faz pronunciando a lei, os processos-crime, ao oferecem as narrativas utilizadas pelos diferentes agentes institucionais e pelos grupos sociais envolvidos, ajudam a evidenciar a maneira como eles percebem a si mesmos e os outros, definindo-se e se posicionando no entorno social. As narrativas contribuem para a identificação dos comportamentos, necessidades, interesses e atitudes dos diferentes elementos sociais envolvidos nos processos-crime. Nesse sentido, os agentes institucionais, os réus, os transgressores e as testemunhas arroladas apresentam comentários sobre as condutas das pessoas envolvidas nos processos-crime. O tratamento metodológico escolhido ao levantamento da pluralidade discursiva é a técnica da análise de conteúdo que pretende ser o meio de detectar os valores sociais, imagens, modelos empregados pelos diferentes atores sociais, bem como as diferentes ideologias subjacentes à realidade cotidiana. Embora provisório, o estudo dos processos-crime apontam para indícios reveladores da sociedade caxiense, pois o fato de aparecerem mulheres com comportamentos e atitudes diferentes dos que a sociedade transmite ou quer transmitir, revela como são contraditórias as imagens e os modelos oferecidos e, principalmente, o comportamento idealizado para a mulher. MÉTIS: história & cultura – LANGE, Daysy – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012 321 Na leitura das denúncias do Ministério Público, a violência praticada contra amásias, esposas, amantes e prostitutas em Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, entre as décadas de 30 e 40 citadas, percebe-se que, na grande maioria dos conflitos entre homens e mulheres, elas, inicialmente, estão posicionadas no papel de vítimas, mas, no desenrolar do processo, são transformadas em transgressoras numa clara tentativa de mostrar o tratamento atribuído às mulheres de vida desonesta e desonrada. E o homem que é apresentado no papel de transgressor, é inocentado por ser possuidor da razão e dotado de certas liberdades não pertencentes à mulher, reforçando ainda mais as diferenças e desigualdades entre os gêneros. Em 1947, o Ministério Público denunciou Alberto,* homem solteiro, brasileiro, 28 anos e com profissão definida pela prática que ocorreu no Dancing Americano, zona de meretrício, que, através de discussão, agrediu Ana, dando-lhe golpes com uma cadeira. O defensor público destacou que Alberto não poderia ser enquadrado no art. 129 do Código Penal, que estipulava a pena de detenção de três meses a um ano a quem ofendesse a integridade corporal ou a saúde de outrem, pois agiu em legítima defesa sendo “injustamente injuriado e agredido pela vítima”. Pedindo que a denúncia de agressão contra Ana fosse considerada improcedente, baseado no art. 19, inciso II do Código Penal, que estipulava que não havia crime, quando o agente praticava o fato em legítima defesa, o defensor dizia que o suposto acusado era vítima de uma “mulher de péssima reputação, turbulenta, desordeira e agressiva”. Foi realizada a denúncia, em 1946, contra Antonio que se apresentava como homem casado, com 32 anos, profissão “do comércio” e residente em Porto Alegre. Dizendo que, na madrugada do dia 22 de setembro, perto da 1 hora da madrugada, a meretriz Carmen foi chamada a casa da meretriz Ana a fim de pernoitar com Antonio. Atendendo ao chamado, Carmen falou com Antonio, mas não concorda com suas pretensões, dizendo que estava comprometida com outro homem. Com a recusa, o denunciado resolveu efetuar o pagamento de suas despesas na casa da meretriz Ana, situada na zona do meretrício, surgindo um desentendimento no recebimento do troco. Estando ele alcoolizado, deu-se início a uma discussão em que o denunciado provocou lesões em Carmen e em Ana. Entretanto, em sua defesa, foi utilizado o argumento de 1 Por questões de ética, optou-se por utilizar nomes fictícios. 322 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012 que possuía domicílio certo e que era comerciante estabelecido, cidadão digno e chefe de família exemplar, sendo incapaz do procedimento denunciado pelas meretrizes Ana e Carmem. Em 1949, o Ministério Público apresentou denúncia contra Adão que era brasileiro, casado, 28 anos, empregado no comércio, alfabetizado, católico, branco, residente e domiciliado em Caxias do Sul, pela prática de agressão à sua esposa, após ela tê-lo insultado. O defensor pedia a improcedência da acusação, pois era uma inverdade afirmar que o acusado ter praticado lesões na referida esposa. O representante do Ministério Público, em 1942, também denunciou Amâncio, homem brasileiro, casado, 33 anos, natural de Alfredo Chaves, funcionário da Associação Comercial de Caxias do Sul, dizendo que às 23h30min, do dia 1º de janeiro, ao discutir e espancar sua esposa, seu sogro, em defesa da filha, investiu contra Amâncio com socos e armado de uma cadeira. Destaca que as diferenças entre Amâncio e o sogro tiveram início na parte da tarde daquele mesmo dia, quando ele tratou a sua esposa, Adélia, com rudeza em função do esquecimento de uma chave, o que foi contestado pelo sogro, pai de Adélia, fazendo com que Amâncio proibisse a presença do sogro em sua residência. Os argumentos utilizados pelo defensor público foram de inocentar Amâncio no enquadramento do art. 129 do Código Penal, destacando que ele não agrediu o sogro, e que, as lesões constantes no exame de corpo delito não foram provocadas pelo acusado e sim eram manifestações sifilíticas, e que,ao exigir a retirada do seu sogro de sua residência, exercitou um direito regular e incontestável, e que o acusado era possuidor de “bons antecedentes, estando empregado há anos na Associação Comercial a cujos associados presta os melhores serviços com zelo e atividade”. Em 1943, ocorreu denúncia contra Everaldo, homem brasileiro, casado, 37 anos, ajudante de motorista, residente e domiciliado em Caxias do Sul. Everaldo foi denunciado por sua esposa, que revelou que há mais de dois anos o marido deixara de oferecer sustento material e moral à família; e que a esposa, ao perguntar ao marido sobre o local onde ele pernoitara, passaram a discutir, e ele desferiu socos na esposa. Em defesa do acusado, o defensor público destacou que o acusado nunca deixou de oferecer os meios básicos de sustento à esposa e aos filhos, acreditando que a denúncia foi feita em função do ciúme e despeito de sua esposa para com quem ele teve um desentendimento temporário e que, apesar de o acusado reconhecer a espancara, declarou ter feito no exercício MÉTIS: história & cultura – LANGE, Daysy – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012 323 de um direito reconhecido em lei. (art. 233 do Código Civil). Como chefe da sociedade conjugal no seio da qual pretendia implantar o respeito e a obediência, dizendo que era possuidor de bons antecedentes, não havendo nada em desabono de sua conduta individual e nem como chefe de família. Nesse sentido, os processos-crime acima destacados oferecem pistas das imagens e dos modelos de comportamento oferecidos às mulheres na sociedade que, mesmo estando no papel de mulheres honradas e honestas através do exercício da função de esposa e mãe, faz identificar que a honra da família era constantemente vigiada pelo marido, pois toda e qualquer transgressão e rebeldia por parte da esposa/mãe era submetida ao interesse do poder absoluto do chefe da casa: o marido. Entretanto, os processos envolvendo as relações estabelecidas na zona de meretrício, nas pensões e na prática do concubinato apontam que os homens, fossem solteiros e/ou casados, ocupando os mais variados estratos sociais, circulavam em zonas de aventura e mantinham encontros amorosos. E, quando envolvidos em conflitos, pelo livre-exercício da sexualidade masculina, é possível identificar a tendência dos defensores públicos de inocentarem as atitudes desse gênero, indicando que a transgressão foi provocada pela mulher, que se comportava como sedutora não sendo merecedora do tutelamento da Justiça. Uma vez marginalizada, a mulher, no papel de amante, amásia e prostituta representava a transgressão da excelência da família conjugal e da moral patriarcal. Mulheres que, sob o olhar da Justiça, foram avaliadas pelos seu comportamento, indicando a necessidade de seu isolamento do convívio social através do argumento da falta de austeridade moral, obediência, sujeição e respeito à hierarquia dos papéis sexuais destinados a homens e mulheres. Segundo Rocha e Jourand (2008), os estudos da prostituição no Brasil têm focalizado quatro aspectos que são complementares e que, de certa forma, se interligam: os discursos médicos e jurídicos, que classificam e organizam a prostituição, explicando-a como um fenômeno social e natural; os códigos de sexualidade e de feminilidade; e os estudos dos meretrícios, enfocando a questão econômica da prostituição. Entretanto, a leitura inicial dos processos-crime do acervo do Centro de Memória Regional do Judiciário, sob custódia na Universidade de Caxias do Sul (CMRJU/IMHC/UCS), mesmo possuindo lacunas em sua totalidade, é uma fonte inesgotável de indícios dos conflitos sociais que chegaram à 324 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012 Justiça, indicando onde, frequentemente, se desenvolveu a ação, os elementos envolvidos, o conjunto de oposições que permearam a vida cotidiana, os modelos que lhes foram oferecidos e as transgressões entre os diversos comportamentos de homens e mulheres. A fase inicial de pesquisa tem direcionado nosso olhar para a identificação das representações que a Justiça elaborou sobre as mulheres que se envolveram em processos na posição de vítimas e/ou transgressoras, bem como na construção das relações de gênero. MÉTIS: história & cultura – LANGE, Daysy – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012 325 Referências DEL PRIORE, Mary. 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O tema deste trabalho parte de uma aproximação teórica com os estudos de gênero para analisar processos que versam sobre investigação de paternidade datados da primeira metade do século XX. A maioria dos processos selecionados iniciou com a ação de mulheres em busca do reconhecimento de paternidade de seus filhos. Constituem, portanto, uma fonte singular para discutir as práticas da Justiça na constituição de elementos de prova – favoráveis ou avessos aos pedidos de reconhecimento da paternidade. Em busca dessas provas, diferentes estratégias eram utilizadas para examinar a conduta feminina. Esse é o tema que – recorrentemente –compunha o Abstract: The Archive of the Judicial System of the County of Caxias do Sul (Centro de Memória do Judiciário da Comarca Caxias) keeps collections of documents from sources that can be interpreted through the analysis of the judicial discourse as the delegate of identities, individuals and social behaviors. The theme of this work emerges as a theoretical approximation to gender studies in order to analyze processes on paternity investigation from the first half of the twentieth-century. Most of the processes selected started with the lawsuit of women in search of recognition of paternity for their children. Thus, they constitute a singular source of discussion about the judicial practices on the formation of legal evidences – favorable or contrary – to the lawsuits for the recognition of paternity. In search of these evidences, different strategies were used in order to examine Professora no Centro de Ciências Humanas da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: npietramendez@hotmail.com * MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21 327 centro do debate jurídico para decidir os processos em questão. Ao analisar este conjunto de fontes, o trabalho debate a função do discurso jurídico na constituição de condutas sociais femininas e masculinas. Nas entrelinhas da história dos processos jurídicos, o trabalho procura igualmente tornar visíveis as práticas que conflitavam com as fronteiras de gênero socialmente reconhecidas produzindo mudanças e seus eventuais deslocamentos. the feminine conduct. This was the recurring theme in the center of the judicial debate. Analyzing these collections of documents, our work debates the function of the judicial discourse on the constitution of the feminine and the masculine conducts. We search for the implied sense of these judicial processes, aiming to make visible the practices that controverted the gender boundaries socially recognized, allowing changes and eventual displacement. Palavras-chave: estudos de gênero; discurso jurídico; investigação de paternidade; Comarca Caxias. 19001950. Keywords: gender studies; judicial discourse; paternity investigation; County of Caxias. 1900-1950. O tema deste trabalho parte de uma aproximação teórica com os estudos de gênero para analisar processos que versam sobre investigação de paternidade datados da primeira metade do século XX. Tomo as contribuições da historiadora Joan Scott para analisar o gênero como forma de significar as relações de poder e como elemento constitutivo das relações sociais, baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos. Scott (1994, p. 86) propõe que o gênero pode contribuir para examinar normas e significados “expressos em doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas que tomam a forma típica de uma oposição binária fixa que afirma, de maneira categórica e inequívoca, o significado do homem e da mulher, do masculino e do feminino”. Os processos judiciais selecionados são parte da base de dados do CMRJ da Comarca Caxias, sediado no Instituto Memória Histórica e Cultural da Universidade de Caxias do Sul (IMHC/UCS). Esses documentos constituem uma fonte para discutir as práticas da Justiça na constituição de elementos de “prova” – favoráveis ou avessos aos pedidos de reconhecimento de paternidade. Em busca dessas provas, diferentes estratégias eram utilizadas para examinar a conduta feminina. Esse é o tema que – recorrentemente – compunha o centro do debate jurídico. Pretendo, através da análise dessas fontes, refletir sobre como o discurso jurídico organiza, normatiza e segmenta as condutas sociais femininas e masculinas. Além de identificar as tentativas de organizar os lugares de gênero, há que buscar, nas narrativas dos processos, os indícios de práticas 328 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012 sociais conflitantes com as regras sociais reconhecidas. Assim, uma das problemáticas do trabalho é inferir até que ponto o discurso jurídico presente nos processos de investigação de paternidade pode evidenciar as permanências e as mudanças nas relações de gênero. É necessário, antes de tudo, reconhecer, brevemente, qual era o cenário dos debates jurídicos nas primeiras décadas do século passado. O primeiro processo estudado teve seu início em 1926, dez anos depois da aprovação do Código Civil brasileiro. O código, cuja proposta inicial foi redigida pelo jurista Clóvis Beviláqua entre 1899-1916 e levou mais de quinze anos para ser aprovado. De acordo com a historiadora fluminense Keila Grinberg (2001) a versão final do código diferiu em vários aspectos da proposta original de Beviláqua. Entre os diversos aspectos legais tratados, chamam a atenção aqueles relacionados ao papel central que a família teve na nova legislação, considerada a instituição mais importante do novo regime republicano. O Código Civil brasileiro manteve a influência das Ordenações Filipinas no reconhecimento da condição de maridos e esposas como parceiros desiguais da propriedade familiar, situação jurídica que era mais igualitária se comparada aos Códigos Civis de matriz anglo-saxônica já que essa tradição conferia aos esposos o poder absoluto sobre o casal. (GRINBERG, 2001). Todavia, o Código de 1916 consolidou uma diferença substancial entre homens e mulheres, dotando somente os primeiros de capacidade jurídica perante a lei. As mulheres casadas deveriam acolher a determinação dos maridos quanto ao local de residência, a administração dos bens do casal e autorização para o exercício de atividades remuneradas. Com relação à paternidade, as Ordenações Filipinas reconheciam aos filhos naturais o mesmo direito que era conferido aos filhos ilegítimos e, ainda, possibilitava aos ilegítimos resultantes de relações incestuosas ou adultério o reconhecimento desde que com uma permissão especial do rei. Já o Código de 1916 produziu um enrijecimento legal, estabelecendo, em seu artigo 358 que os filhos incestuosos e os adulterinos não poderiam ser reconhecidos. O não reconhecimento de filhos ilegítimos estava associado às disposições do art. 183, que estabelecia motivos para impedimentos do matrimônio.1 Os processos judiciais da primeira metade do século XX evidenciam quais foram os efeitos normatizadores dessa nova moral jurídica, considerada “reacionária” por Clóvis Beviláqua. Amásias, concubinas e filhos “ilegítimos” são personagens presentes e cada vez mais recorrentes nos processos judiciais MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21 329 brasileiros na primeira metade do século XX. Esse fenômeno pode ser uma amostra do crescente reconhecimento do poder judicial na mediação de conflitos que, em outros tempos, seriam reservados ao âmbito da privacidade familiar ou, quando muito, confiados ao padre. (VINCENT, 1992). Filhos e filhas de concubinato: os caminhos para o reconhecimento da paternidade Na Comarca Caxias – geograficamente afastada das grandes metrópoles – Candida e Pillar,2 requereram da justiça o reconhecimento de paternidade do seu suposto progenitor. O requerimento foi realizado “assistidas por seus esposos”, em acordo com o estatuto jurídico que o Código Civil de 1916 conferia às mulheres casadas. Candida e Pillar – através do advogado nomeado para o caso, alegavam ser (cito) “filhas naturaes de José do período em que as mães das suplicantes, conhecidas como Inocência e Francisca, viveram em concubinato com José”. Cabe aqui um pequeno esclarecimento: o finado José, de acordo com as duas e com algumas testemunhas arroladas, teria vivido em concubinato primeiro com a mãe de Candida. Depois de se separar dessa, conheceu Inocência, com quem viveu “amaseado” por mais alguns anos. E, segundo alguns testemunhos processuais, José ainda teria dividido seus dias com uma terceira rapariga, com quem teve mais alguns filhos, que pretendia reconhecer antes de ser assassinado. A história em questão parece um tanto distante do quadro moral da família prescrito no Código Civil. Todavia, isso não impediu que a legislação em vigor fosse utilizada, por ambos os lados, na tentativa de determinar provas capazes de resolver a querela. Nos autos do processo, três depoentes arrolados por Candida e Pillar foram ouvidos. Todos eram do sexo masculino e tinham – à época do processo – 59 anos ou mais. Foram identificados como casados, e sua atividade laboral foi descrita como “criadores”. Em um desses depoimentos, a testemunha afirma: [...] Sabe de ciência própria que José foi amazio da finada Inocência com quem viveu maritalmente mais de quatro anos, isto é, de mil novecentos e setenta e quatro a mil oitocentos e setente e nove, mais ou menos, que dessa amancebia Inocência concebeu e deu a luz em outubro de mil oitocentos e setenta e seis uma criança do 330 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012 sexo feminino que foi baptizada com o nome de Candida Maria e hoje conhecida pelo nome [...] que José sempre reconheceu como filha, que a depoente e todas as pessoas que conheceram a José e conhecem a Candida acham que esta tem os traços fisionômicos da’aquelle, que o depoente vê em Candida retrato de José, que do ano de mil oitocentos e setenta e nove em diante José viveu amancebado muitos anos com Francisca [...] que dessa amancebia Francisca concebeu uma filha que nasceu no dia de São Paulo, e março de mil oitocentos e noventa e seis, sendo baptisada com o nome de Pillar e actualmente é casada com Cirilo; que José e Inocência morreram em estado de solteiros; que Francisca é solteira. (Processo 6, caixa 5, CMRJU/IMHC/UCS). Pelo lado da acusação, Jerônimo, irmão de José, disse ao juiz que Inocência “era mulher do mundo” [...]. José não era pai de Candida [...] que a mesma era filha de um fulano Eleutério; que “[Francisca] era rapariga do mundo e que tinha muita família; Que José não viveu concubinado com nenhuma dellas que não [...] relações com ambas. (Grifos meus). O processo teve prosseguimento na comarca até 1933, quando foi transferido para o Juizado de Lagoa Vermelha. Mas o elemento que aqui mais interessa não é o seu desfecho, nem saber se, afinal, Candida e Pillar foram ou não reconhecidas como filhas pela Justiça brasileira. O resultado aqui é secundário, sendo o elemento central a observação do uso das palavras como prova, a palavra dita e a palavra negada. Foucault (2008) atenta para a existência social de um princípio de exclusão através da palavra que opera pela separação e rejeição. Exemplifica citando o caso dos loucos desde a Idade Média. Diz Foucault: o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros, ou seja, pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21 331 de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber. É curioso constatar que durante séculos na Europa a palavra do louco não era ouvida, ou então, se era ouvida, era escutada como uma palavra de verdade. [...] Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas nem escutadas. (FOUCAULT, 2008, p.10-11). Ao propor um olhar sobre o trânsito das palavras e sua escuta nos processos jurídicos, é preciso dar atenção a quem fala, de quem se fala e o que se fala. Esses atos da palavra são indícios dos elementos que conformam o sujeito jurídico. É através da separação, rejeição, distinção, aceitação e escuta que a Justiça cria diferenças entre sãos e loucos, aptos e inaptos, homens e mulheres, filhos legítimos e ilegítimos, todos transformados em sujeitos identificáveis no discurso judiciário. No processo em questão, Candida e Pillar foram as autoras da ação. No entanto, a palavra lhes foi negada. Podemos ouvir apenas outros testemunhos de três cidadãos que atestaram a “solteirice” de suas progenitoras à época em que viveram com José. Esses testemunhos serviriam como prova para demonstrar que nada as impedia de casar com José. Não obstante provar que as mesmas engravidaram durante o período de concubinato com o finado, era relevante também para a credibilidade do processo atestar a boa conduta das raparigas ao longo de toda a vida. Além do mais, mostrar que as mães se mantiveram solteiras, e que o suposto pai fizera o mesmo era necessário amparar legalmente o pedido de reconhecimento de paternidade. Cabe ressaltar que a abertura do processo ocorreu poucos meses após o óbito do suposto pai, quando seus dois irmãos, Jerônimo e Aparecida, aparentemente herdariam o patrimônio do falecido. Representadas por seus maridos, Candida e Pillar tentaram angariar na Justiça mais do que um sobrenome, mas talvez o direito ao patrimônio que julgavam também ser seu. Ao requerer a intervenção do Estado em tema que até então ficara restrito à privacidade dos segredos familiares ou, no máximo, à boataria da vizinhança, Candida e Pillar transformaram suas mães no centro da investigação judicial. O discurso jurídico concentrou seu debate na conduta das duas progenitoras e nas suas relações com José. As autoras, nesse caso, se tornaram totalmente coadjuvantes na ação. 332 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012 Ao acusar Inocência e Francisca de ser “do mundo”, o irmão de José não estava proferindo uma ofensa. O Código Civil de 1916 havia criado o precedente para a diferenciação entre as mulheres honestas e desonestas, sendo essas últimas aquelas que não se casavam virgens. A situação de desonestas abria precedentes para que fossem deserdadas por seus pais e para que os casamentos fossem anulados. (GRINBERG, 2001). Qual seria o grau de desonestidade de uma concubina? Figura híbrida no Código Civil, sua existência jurídica se materializava no capítulo que versava sobre o reconhecimento dos filhos ilegítimos, como se verifica no parágrafo I do art. 363, que versava sobre o direito dos filhos ilegítimos que poderiam demandar reconhecimento de filiação: “I – Se o tempo da concepção a mãe estava concubinada com o pretendido pai.” (CÓDIGO CIVIL, 1916). Adultério e concubinato aparecem no código como arranjos possíveis, mesmo que marginais, em uma legislação pretensamente moralizadora. Todavia, nos meandros da Justiça, essa “brecha” aberta pelo Código Civil podia ser utilizada por advogados hábeis. Bastava comprovar que o concubinato e a honradez não eram incompatíveis. Esse foi o centro do debate que envolveu o processo de investigação de paternidade movido por João filho, em 1938, contra sua suposta meia irmã Carolina e o marido dessa, chamado à ação na condição de marido e “administrador dos bens do casal”. Na abertura do processo, João (filho), através do seu advogado que aqui chamarei de Dr. Barcellos, alegava [...] – que o Autor é filho natural de João [pai], este já falecido, e de Joana [...], sendo o fruto único da ligação ilegítima havida entre seus referidos progenitores; II – Que essa ligação amorosa ocorreu ao tempo da viúves de João, o qual, por ser a ré Carolina de pouca idade, chamou Joana ao seu serviço domestico, vindo com ela, nessa convivência, a manter relações sexuais; III – Que a mencionada Joana, mãe do Autor, era de menoridade á época de seu desvirginamento, tendo convivido com João durante dois anos, aproximadamente; MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21 333 IV – Que, após engravidada, Joana foi enxotada por seu patrão João, passando a residir com seus progenitores, em cuja companhia manteve-se sempre, com honestidade e recato; V – Que o delito cometido por João foi abafado pela autoridade policial de então, mas o sucedido tornou-se publico e o Autor veio, em conseqüência disso, a ser batisado, em Caxias, como filho de João, com autorisação do próprio; VI – Que o nascimento do Autor deu-se em 1898, na casa de seus avós maternos, neste município, sendo diversos os documentos de fé publica atestadores de sua filiação; VII – Que por força da disposição contida no art. 363 e seu inciso n. I, do Código Civil Brasileiro, cabe ao Autor ação contra os herdeiros de seu progenitor para ser reconhecido como filho de João. (Processo 5 A, caixa 8, CMRJU/IMHC/UCS). Aos autos do processo, Dr. Barcellos anexou certidões de batismo, certidões de casamento do autor e outros documentos que endossavam a suposta filiação. Contudo, as palavras constantes dos testemunhos foram, novamente, reveladoras dos jogos de poder que normatizavam uma distinção para comportamentos femininos e masculinos. Um dos depoimentos mais instigantes foi o do Cônego convocado pelo advogado do autor. O Cônego foi chamado, supostamente, para prestar informações sobre as condições em que fora concebida uma certidão de batismo que constava nos autos do processo. Na mesma, o Autor aparecia registrado com o mesmo sobrenome do pretenso pai. O Código Civil abria a possibilidade para que declarações por escrito dos progenitores pudessem ser utilizadas como provas. Talvez, por essa razão, o Cônego tenha sido convocado como testemunha. No entanto, ele pouco pôde esclarecer sobre as circunstâncias em que o documento foi redigido. Quando questionado sobre a paternidade do autor, disse que “que o que sabe é apenas ter ouvido de muitos colonos e do próprio autor ser este filho de João [pai], que quanto ao batismo pode apenas declarar o que consta da certidão de folhas vinte e oito destes autos”. O advogado o indagou, ainda, sobre o conceito que tinha sobre Joana, ao que respondeu: “Sabe ter sido cazada com Pedro, tendo bom comportamento. Não soube informar se João (sênior) era tio carnal de 334 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012 Joana”. Questionado, ainda, pelo advogado se o velho João era um “bom católico”, o Cônego respondeu “afirmativamente”. A segunda testemunha, de nome Marco, identificado como proprietário rural, natural da Itália e residente em Caxias do Sul, disse que conheceu Joana quando criança e depois, quando casada com Pedro e sabia ser a mãe do Autor. Sobre o conceito gozado por Joana respondeu: “Que de criança propria a teve sempre como honesta e também ouviu dizer isso nos tempos em que Joana era moça. [...] Ouviu dizer que Joana foi empregada de João [...] isso quando dos fatos surgidos em torno desta ação.” A testemunha Lucrécia, de 86 anos, viúva, identificada como doméstica e natural da Itália, também residente na cidade, disse que segundo consta no boato corrente o autor é filho realmente do falecido João [...] com Joana [...] não sabe se Joana era menor de idade a época de seu desvirginamento e não tem conhecimento se a mesma conviveu com João [...] durante dois anos que sabe e recorda – se que a referida Joana trabalhou em casa do finado João, que não sabe si o fato do finado haver mantido relações carnais com João foi levado ao conhecimento da autoridade policial mas que, realmente, o sucedido tornou-se publico [...] que [Joana ] era boa cristã e que errou naquela ocasião passando a se re comportar honestamente. (Grifo nosso). O comportamento “honesto” de Joana se converteu no epicentro do processo. Os depoimentos eram ambíguos quanto à sua honestidade. Marco, o amigo de infância, atestou que quando criança ela era honesta e depois “ouviu dizer” que quando moça continuou honesta. A sentença “ouviu dizer” possivelmente teve menos efeito de prova do que a afirmativa: “Era honesta quando criança.” O Cônego, por sua vez, limitou-se a emitir juízo sobre o comportamento de Josefina em sua vida de casada com Pedro, ou seja, posterior ao período dos fatos do processo. E a viúva Lucrécia, embora confirme as versões do autor, diz que Joana errou, mas passou a se “re comportar honestamente”. Das palavras arroladas no processo, restaram dúvidas sobre em quais momentos da vida, afinal, Joana correspondeu ao ideal de mulher honesta e boa cristã. Todavia, até o momento, as testemunhas tendiam a corroborar que Joana foi uma mulher honesta, mesmo que em algum momento tivesse dado um “mau passo”. MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21 335 A dúvida sobre sua honestidade torna-se certeza de leviandade em outros depoimentos. Por exemplo, no testemunho de Mario, de 65 anos, casado, profissão enólogo, natural da Itália. Ele afirmou que a mãe do Autor era sobrinha carnal do falecido João, que ele o conhecera, sendo um “homem de conduta irreprensível de grande conceito, não acreditando por isso o depoente fosse ele pae do autor, apezar de algum boato ter ouvido depois do nacimento do autor. De acordo com seu depoimento, o finado João não teve participação na gravidez de Joana; essa apareceu grávida e foi então que o velho João a despediu e mandou de volta à casa paterna. O depoente conclui sua apreciação sobre os fatos afirmando que Joana “era meio mansa” resultando disso a gravidez; que havia boatos a respeito disso, mas o depoente pensa no seu raciocíonio que si o velho fosse o autor da gravidez teria ficado com a sobrinha na sua companhia ou a amparado. [...] Que o depoente nada pode dizer contra o comportamento de Joana e isso informa de ciência propria porque naquela época [...] que esse bom comportamento persistiu após o nascimento do autor, que sabe que depois ela cazou-se. À figura de uma Joana cada vez menos honesta e mais “mansa” no período da mocidade, ou seja, disponível, o depoente contrapõe a imagem de um João de caráter irrepreensível. Nos autos, fica evidente que sua opinião sobre o comportamento duvidoso de Joana tomava como base boatos. Contudo, o depoimento de Mario se somou ao de outros processos para lançar mais dúvidas sobre a honestidade da progenitora do autor. Outro testemunho nessa direção, de Antônio, 59 anos, proprietário e viúvo, declarava que João, o falecido, era tio carnal de Joana e que a conhecera ainda solteira, quando teve o filho: Quando Joana estava na companhia do falecido João seu tio antes de ter tido o filho, era freqüentada por dois amigos do depoente, ambos já falecidos. [...] Ambos tinham relações sexuais com a mesma Joana [...] sabendo o depoente direto naquela época por seus já referidos amigos; que não recorda do motivo porque Joana saiu da casa do seu tio e também não tem certeza do lugar em que teve o filho: si na colônia ou na casa do seu referido tio. [...] Que o falecido era um bom velho desfrutando conceito social e Joana já foi mocinha para a casa dele, ignorando em que condições. [...] Que conheceu realmente Joana tendo algumas vezes frequentado a casa 336 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012 do velho [...] e o que sabe quanto ao seu comportamento naquela época é o ouvido de seus aludidos companheiros e que pessoalmente nada notou o depoente que possa desabonar o comportamento. Os companheiros, que, de acordo com o testemunho, mantiveram relações sexuais com Josefina já estavam mortos, não podendo ser ouvidos. Outro aspecto que chama a atenção no depoimento é a reiteração do “bom conceito social” do falecido João, em oposição às dúvidas sobre o comportamento de Joana, que foi já mocinha para a casa de João, apresentado nesse depoimento – e em outros – como tio da rapariga e, ainda, sabe-se lá em que condições, levantando dúvidas quanto à virgindade da moça na época em que foi acolhida pelo velho João. As palavras contra Joana se avolumaram no processo, sendo o testemunho de Etore incisivo ao afirmar que “Joana era uma moça leviana, acontecendo até ter uma irmã que soube uma filha de seu próprio pai, Bruno [...]. Naquela época nunca ouviu que o filho fosse de João sênior”. Joana não foi ouvida no processo. Vozes terceiras, dotadas do poder de prova que lhes confee o ritual jurídico 3 entraram em cena para testemunhar, reconhecer e atestar a sua conduta. Desse ritual, nós só conhecemos o que consta nos autos do processo. Nos escapam certas circunstâncias e práticas, nos foge a possibilidade de examinar os gestuais que confeririam o efeito de legitimidade às palavras. Como lembra Foucault, os discursos “não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis pré-estabelecidos”. (2008, p. 39). Na contestação dos réus, o advogado desses, interpreta as palavras de algumas testemunhas e lhes confere o efeito “de prova” afirmando que não fosse suficiente essa prova toda dos maus precedentes de Joana, teríamos ainda a das testemunhas de fls. 68, 75 e 72, todas de idoneidade incontestável. Joana foi enxotada da casa de seu pai e encontrou gazalhado no lar de seu tio João [...]. Como era uma rapariga “meio mansa” resulou, digo, resultou, disto em pouco a gravidez, mandando-á João [...] de volta aos pais. Sua mansidão ia ao ponto de manter, antes do nascimento do A, relações sexuais com dois rapazes a um tempo – M. e B. (fls. 72). Era uma rapariga “leviana”, filha de MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21 337 degenerados, foi uma irmã que teve um filho do próprio pai, Bruno (fls. 75)! Na conclusão do juiz, o processo foi considerado improcedente. As razões? Em suas palavras, o autor (o filho) era filho incestuoso, não podendo ser reconhecido como filho pelo Cógido Civil. Contudo, o Juíz da Comarca adenda que o autor não conseguiu provar ser descendente das relações sexuais mantidas entre Joana e o falecido João. Eis alguns trechos de sua sentença: Sendo condição essencial para procedência da ação de investigação de paternidade que o investigante não incida em nenhuma das hipóteses em que legalmente é defesa a investigação aludida [...]. Como filho incestuoso, o A. não póde ser reconhecido e não tem ação para pleitear o reconhecimento da filiação [...]. Pouco importa que á época da sua concepção, 15 de julho de 1898, antes portanto, da vigência do citado código, os pretendidos pais não estivessem inibidos de casar. É jurisprudência firmada que a ação de investigação de paternidade deve regular-se pela legislação em vigor no momento. Ademais, não fez o A. prova convincente de sua filiação. As testemunhas ouvidas [...] nada esclareceram no tocante ao alegado concubinato, quer sobre as relações sexuais referidas pelo A. Pague ele as custas. Publicada, intime-se. Caxias, 27 de outubro de 1939. Ao que tudo indica, o juiz resolveu considerar as provas de parentesco entre João e Joana, bem como a palavra daqueles que testemunharam a existência de relações sexuais entre os dois ao sentenciar que o autor do processo era “filho incestuoso”. Como tal, João (o filho), perdia perante o poder judicial o direito de requerer o reconhecimento da paternidade almejada. Todas as demais alegações se tornariam secundárias no processo. Curiosamente, após a Justiça rejeitar a João o direito ao reconhecimento da paternidade (por considerá-lo o fruto de um incesto), diz que o autor não conseguiu provar sua filiação. Os argumentos das testemunhas e do advogado dos réus sobre a conduta de Joana possivelmente interferiram na segunda parte da sentença. Coube ao juiz deixar clara suas dúvidas sobre a veracidade das alegações de João (filho), suas suspeitas sobre a conduta sexual pouco 338 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012 ortodoxa que dona Joana, ao julgar pela palavra das testemunhas respeitáveis, apresentou quando rapariga. A sentença reintegra o finado João à condição de cristão respeitável, define o outro João como filho incestuoso e marca Joana como mulher de conduta duvidosa. O sujeito do discurso judiciário é um sujeito sexuado e cujo julgamento será avaliado através de regras e significados atravessados pelo gênero. Nem todas as palavras tinham a mesma legitimidade, nem todos podiam ser escutados pela Justiça. As mulheres envolvidas nos dois processos aqui analisados se tornaram personagens dos processos ditas por outros. Maridos, filhos, advogados e, em casos raros, outras mulheres (chamadas a testemunhar), eram ouvidas para provar ou refutar a tese da paternidade investigada. Ao recorrer ao Estado para que esse reconhecesse a paternidade alegada, as pessoas que moviam o processo deslocavam uma fronteira entre o público e o privado. O controle sobre as normas de sociabilidade, sobre o que era permitido para homens e mulheres, sobre as condutas sexuais deixava de ser exercido na esfera familiar ou da vizinhança e se tornava tema dos tribunais. O Estado, imbuído de uma missão moralizadora, como sinaliza o Código Civil de 1916, se certificaria de que não havia nenhum impedimento legal/moral para que os filhos pudessem ser reconhecidos. E isso, em última instância, significava realizar uma devassa sobre a vida da mãe que havia dado à luz aquela criança ilegítima. MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21 339 Notas 1 “CAPÍTULO II DOS IMPEDIMENTOS Art. 183. Não podem casar (arts. 207 e 209): I. Os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, natural ou civil. II. Os afins em linha reta, seja o vínculo legítimo ou ilegítimo. [...] III. O adotante com o cônjuge do adotado e o adotado com o cônjuge do adotante (art. 376). IV. Os irmãos, legítimos ou ilegítimos, germanos ou não e os colaterais, legítimos ou ilegítimos, até o terceiro grau inclusive. [...] V. O adotado com o filho superveniente ao pai ou à mãe adotiva (art. 376). VI. As pessoas casadas (art. 203). VII. O cônjuge adúltero com o seu co-réu, por tal condenado. VIII. O cônjuge sobrevivente com o condenado como delinqüente no homicídio, ou tentativa de homicídio, contra o seu consorte. IX. As pessoas por qualquer motivo coactas e incapazes de consentir, ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento. X. O raptor com a raptada, enquanto esta não se ache fora do seu poder em lugar seguro. XI. Os sujeitos ao pátrio poder, tutela, ou curatela, enquanto não obtiverem, ou lhes não for suprido o consentimento do pai, tutor, ou curador (art. 211). XII. As mulheres menores de dezesseis anos e os homens menores de dezoito. Todos os nomes citados são fictícios com o objetivo de preservar a identidade. 2 Para Foucault, a forma mais superficial dos sistemas de restrição pode ser chamada de ritual, ou seja, a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam. O ritual é composto de um jogo que define os gestos, os comportamentos, as circunstâncias e um conjunto de signos que acompanha os discursos. (2008, p. 38-39). 3 Referências FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 17. ed. São Paulo: Loyola, 2008. GRINBERG, Keila. Código Civil e cidadania. 1. ed. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001. v. 1. SCOTT, Joan. Prefácio a gender and politics of history. Cadernos Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero, São Paulo: Unicamp, n. 3, 1994. 340 VINCENT, Gérard. Uma história do segredo? In: PROST, A.; VINCENT, G. (Org.). História da vida privada 5: da Primeira Guerra aos nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Fontes: Processo 6, caixa 5, CMRJU/IMHC/UCS. Processo 5 A, caixa 8 A, CMRJU/IMHC/ UCS. MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012 Seduzidas e desonradas: o discurso nas fontes judiciais Seduced and dishonored: the speech in judicial sources Elizete Carmen Ferrari Balbinot* Resumo: O presente artigo propõe uma análise do discurso produzido pelo Judiciário nos processos de defloramento da Comarca de Caxias do Sul, entre 1900 a 1950, tendo como inflexão inicial o estudo de gênero relacionado à moral e à sedução de mulheres caxienses. O binômio história e criminalidade, no contexto, possibilita investigar uma temática ainda pouco explorada pela historiografia. Para o estudo estão sendo utilizadas fontes primárias que fazem parte do acervo do Centro de Memória Regional do Judiciário. Nesse sentido, a leitura dos processos judiciais de sedução e defloramento visa à identificação dos valores morais e religiosos nos discursos Abstract: This article proposes an analysis of the discourse produced by the Judiciary in the defloration lawsuits from Comarca of Caxias do Sul, between 1900 and 1950, having as initial reflection the study of gender related to moral and seduction of Caxias do Sul women. The binomial History and criminality, in this context, allows to investigate a thematic still few explored by historiography. To this study, the primary sources used are part of the Regional Center of Judicial Memory. In this sense, the reading of the seduction and defloration lawsuits intends to the identification of moral and religious values in the discourses present in the context of the historic formation and affirmation of * Graduada em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Especialista em Gestão de Patrimônio Cultural pela mesma instituição. Mestranda no Programa de PósGraduação em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Integrante do grupo de pesquisa do CNPq “Memória, Justiça e Poder”. Funcionária no Centro de Memória Regional do Judiciário (CMRJU), integrado ao Instituto Memória Histórica e Cultural (IMHC) da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: elizeteferrari@gmail.com. MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari 341 presentes no contexto de formação e afirmação histórica da sociedade caxiense, procurando pistas e sinais que nos levem à compreensão do perfil dos envolvidos desde a abertura do processo ao julgamento da ação. Observar os processos judiciais como uma narrativa demonstra como é possível discorrer sobre a construção de discursos e a afirmação social e histórica da sociedade. Significa, também, compreender como a sociedade e seus sujeitos históricos conceberam as relações de gênero, a sexualidade, a moralidade e outros tipos de comportamento social. Palavras-chave: Poder Judiciário; sedução; defloramento; gênero. the Caxias do Sul society, searching for the clues and signs which leads to the comprehension of the profile of the involved ones since the opening to the judgment of the proceeding. To observe the lawsuit as a narrative demonstrates how it is possible to think about the construction of the discourses and the social and historic affirmation of the society. It means also to comprehend how the society and its historic characters conceived the relations of gender, sexuality, morality and another types of social behaviors. Keywords: judiciary; defloration; gender. seduction; O presente artigo tem por objetivo refletir sobre uma temática comumente deixada à margem e muitas vezes desprezada pela historiografia tradicional: o estudo de gênero relacionado à moral e sedução. Nesse sentido, o artigo é fruto das pesquisas em desenvolvimento com referência ao projeto intitulado Moral e sedução: o discurso do Judiciário nos processos de defloramento na Comarca de Caxias do Sul, entre 1900 e 1950". O projeto utiliza os processos-crime de sedução e defloramento que foram acionados e julgados pelo Poder Judiciário da comarca local. Neles se observa que a mulher, com a ilusão da promessa de casamento, sentia-se segura, pois o matrimônio significava a possibilidade de se libertar da tutela paterna/ familiar, o que nos leva a algumas interrogações: seria esse o caminho para a independência e/ou simplesmente ela deixaria de ser submissa ao pai para se tornar subordinada a outro homem? Até que ponto o matrimônio oferecia à mulher sua independência e autodeterminação? Qual foi o destino das mulheres que foram difamadas, esquecidas e ignoradas em benefício de uma história heroica e idealizadora dos grupos elitistas? De que maneira os processos judiciais, como fonte histórica, podem dar visibilidade às mulheres que, durante, décadas foram silenciadas em sua historicidade? Estudar documentos oficiais gerados pelo Poder Judiciário constituise numa forma de analisar o discurso produzido pelo verdadeiro produtor da moral social: o Estado. Os processos-crime de sedução e defloramento revelam aspectos culturais a respeito da participação feminina quando ela ocupa o papel de ré e/ou de vítima, embora a construção da identidade 342 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012 cultural de grupos minoritários seja, muitas vezes, encoberta por argumentações advindas de corporações de profissionais liberais que detêm o saber. Observar a atuação da jurisprudência possibilita identificar os valores éticos, morais e religiosos imbricados nas relações de gênero e as práticas normativas do corpo e da mente, bem como a visão de espiritualidade da sociedade regional, o que requer cuidado e atenção, assim como atentar à complexa teia de relações sociais, culturais, econômicas e comportamentais em que nada pode ser considerado irrelevante. Uma vez que se está trabalhando com fontes relacionadas a processos-crime de sedução e defloramento, não podemos deixar de considerar que o Poder Judiciário contribui na construção das diferentes subjetividades utilizando os valores apregoados pelos grupos dominantes. Os Annales realizaram uma transformação teórica e metodológica ampliando a possibilidade historiográfica sobre problemas e inquietações que, aos poucos, se faziam presentes, mas até então difíceis de serem tratados pela história tradicional (positivista). A revolução historiográfica proposta pela nova história contribuiu para que os historiadores se interessassem por temas até então ignorados. Com a interdisciplinaridade e o contato com outras fontes e abordagens ampliou-se o leque de problematização que procurou desvendar obscurantismos tidos até há pouco tempo como perigosos à sociedade, bem como rever os conceitos de memória e história. Nesse sentido, as abordagens de Ginzburg, sobre micro-história tratam, entre outros temas, do conceito de cultura, chamando a atenção para a circularidade cultural, não havendo separação entre a cultura da elite e a cultura popular (1987). Com relação à questão de gênero, Perrot (2005) destaca que, em pleno século XVIII, ainda se questionava se o sexo feminino era um ser racional (humano) como o sexo oposto, ou se a mulher estaria mais próxima dos seres bestializados. No século XIX, o discurso do modelo burguês dizia que a mulher destinava-se ao sacerdócio do taciturno, era tida, dentro do enclave masculino, como um estado de glorificação. Nesse sentido, Perrot ensina que o silêncio é um mandamento reiterado através dos séculos pelas religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de comportamento. Silêncio das mulheres na igreja ou no templo [...]. Silêncio nas assembleias políticas [...], silêncio, até mesmo na vida privada [...], afastada pelas obrigações mundanas que ordenam que as mulheres evitem os assuntos mais quentes – a política em MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari 343 primeiro lugar – suscetíveis de perturbar a convivialidade, e que se limitem às conveniências da polidez. “Seja bela e cale a boca”, aconselha-se às moças casadoiras, para que evitem dizer bobagens ou cometer indiscrições. (PERROT, 2005, p. 9-10). “O discurso constitui a sociedade.” A partir dessa informação, Norman Fairclough (2001) adverte que se pode ter clareza de que o homem vive num meio em que o discurso não só reflete e representa a sociedade, mas também cria sentidos, constrói e constitui a mesma. Ainda segundo Fairclough (2001), o discurso não só constrói a identidade, mas também contribui para processos de mudança cultural, nos quais as identidades sociais são rearticuladas, reconstruídas e redefinidas. Com o objetivo de realizar um percurso interdisciplinar, a nossa problemática de pesquisa está relacionada ao fato de identificar o significado dos valores morais e religiosos explícitos ou não no discurso presente nos processos judiciais de crimes de sedução e defloramento, apresentados como modelo de comportamento nas relações de gênero. A leitura dos processos judiciais de sedução e defloramento – como modelo de comportamento nas relações de gênero – visa a identificar os valores morais e religiosos nos discursos presentes no contexto de formação e afirmação histórica da sociedade caxiense, procurando as pistas e os sinais que nos levem à compreensão do perfil dos envolvidos desde a abertura do processo até o julgamento da ação, no que se relaciona: à filiação, à cor, ao nível socioeconômico, à religião, à alfabetização, entre outros; procura descrever os dispositivos legais de toda a tramitação dos processos, o chamamento das testemunhas, o depoimento dos pais da vítima, da vítima (deflorada), do réu, do médico-legista, entre outros; verificar o significado da honra nos discursos dos pais das defloradas e no discurso do Judiciário, uma vez que, no recorte temporal da proposta de estudo, era composto exclusivamente por homens; e levantar o número de réus defloradores que casaram com suas vítimas, seja por coerção familiar, seja por imposição social e/ou judicial. Os autos criminais, ou processos judiciais, que são as fontes utilizadas para o estudo em questão, indicam outras realidades, o que amplia a visão do contexto histórico da Comarca de Caxias do Sul. Acredita-se que os valores que permeiam os processos de sedução e defloramento apontam para uma bagagem cultural, moral e religiosa que foi reforçada na sociedade caxiense através da imigração italiana, no fim do século XIX, especificamente 344 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012 na comarca local. Os temas das questões relativas à moral e à sexualidade foram, por muito tempo, marginais à historiografia, pois a cultura vigente não permitia que assuntos obscenos e desmoralizadores viessem à tona, acreditando-se que causariam a destruição da sociedade burguesa que utilizou o tripé: família, religião e moral para se apoiar. Acreditamos que, em Caxias do Sul, vigorou a Lei do Silêncio quando o assunto era sexualidade, pois o poder da Igreja e da moral católica é um aspecto cultural de longa duração. A mulher devia resignar-se à obediência do confessor (padre), que ensinava que a mulher devia dedicar-se exclusivamente ao trabalho do lar, à educação dos filhos e, especialmente, ao dever conjugal, esse com um único objetivo: a maternidade, a reprodução da prole, necessária para custear a subsistência da família e o desenvolvimento social. O Estado, através dos jurisconsultos, no fim do século XIX, empenhouse para regulamentar as condutas femininas, já que essas eram consideradas, segundo Clarisse Ismério, “seres nocivos ao homem e à sociedade, pois todas eram movidas unicamente pelo instinto sexual”. (1995, p. 45). Portanto, o regramento deveria ser imposto pelos homens representantes das leis e, assim, atender aos anseios positivistas da moral e dos bons costumes. Nesse sentido, Michel Foucault sustenta que o “jurista, preocupado com a sexualidade, teve que falar de sexo e falar publicamente. Cumpre falar de sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo”. (2004, p. 27). No Brasil, de acordo com a historiografia, desde o período colonial, os crimes sexuais de sedução e defloramento apontam que as mulheres, ao tentar transgredir as regras sociais, deveriam ser repreendidas rigorosamente. O regramento da sexualidade foi o meio que o Estado e a Igreja encontraram para estabelecer uma ordem na sociedade. Essa ordem foi criada com base nos princípios instituídos pelas regras contidas no Direito Romano e nas Ordenações e Leis do Reino de Portugal ou Código Philippino.2 Na sequência, em 1830, foi apresentado o Código Criminal do Império do Brasil, em que, no Capítulo II, eram tratados os crimes sexuais, que, com a “rubrica dos crimes contra a segurança da honra, tutelava a liberdade do corpo em função das relações sexuais”. Com o fim do Império, em 11 de outubro de 1890, entrou em vigorar o Código Penal Republicano,3 que passou a censurar a violência com o objetivo de satisfação sexual. Em especial o art. 267, que se refere ao MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari 345 defloramento de mulher de menor idade (maior de 16 anos e menor de 21 anos), empregando sedução, engano ou fraude. A punição do deflorador que não assumia o crime cometido era de um a quatro anos de reclusão em penitenciária. O aparelhamento do Estado, legitimado através de jurisprudência, tinha por objetivo regrar a família e a sociedade seguindo os parâmetros do progresso e da civilização. Com o Código Penal de 1890, o Estado passou a ser o tutor direto da família, tirando da Igreja Católica a função de protetora, até então exercido sobre seus seguidores. O Estado assumiu o controle da sexualidade, e o poder ético-jurídico, de julgar os crimes previstos que atingissem o corpo social, familiar e feminino. A dignidade da mulher, quando necessário, seria restabelecida, já que a partir dessa data, a responsabilidade de sua guarda deixou de ser privada, tornando-se objeto de reflexão pública através do exercício do Poder Judiciário. Sueann Caulfield enfatiza as implicações políticas na época da produção dos códigos republicanos, quando destaca: Os juristas, ansiosos por promover o aperfeiçoamento social e racial da população, viam no direito positivo uma justificativa, um método para intervir no desenvolvimento físico e moral da nação. Se na Europa a nova escola prometia a “melhor moral da humanidade”, certamente ela poderia ajustar os juristas brasileiros a reverter a degeneração física e cultural que, de outra forma, poderia condenar o Brasil a uma perpétua inferioridade. (CAULFIELD, 1996, p. 71). Era preciso identificar os padrões moralizadores, normatizá-los e aplicálos. Para que o Estado melhor se aparelhasse, os jurisconsultos elaboraram, em 1940, um novo Código Penal.4 No que tange à sexualidade, o art. 217 do Código Penal de 1940 objetivava frear os avanços da modernidade, impedindo que a expansão e a representação das tecnologias no meio social contagiassem a moral social e, consequentemente, a familiar. Alguns juristas viam o rádio como um meio de comunicação, o mais utilizado na época, capaz de conduzir a família e a sociedade a um mundo desprovido de pudor. Adriano Prosperi assinala que o crescimento econômico das famílias e o acesso aos bens de consumo compeliam o sujeito aos prazeres da vida. Esse avanço deveria ser subtraído/controlado, caso contrário, seria o fim da moral familiar; daí a necessidade de serem “criados novos códigos de comportamento”. (2010, p. 134). No Código Penal de 1940, os juristas 346 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012 trataram de reafirmar as interdições já consagradas no Código Penal de 1890, bem como mantiveram o discurso que rotulava a imagem da mulher como um ser ingênuo, emotivo, frágil, assexuado, assujeitado e irracional, alimentando um perfil subordinado ao sexo oposto. Quanto ao saber produzido pelo Estado, Pierre Bourdieu (2003) afirma que o “corpus jurídico” apresenta em seu discurso uma relação de força sobre os dominados que passa a se constituir em saber adquirido e reconhecido, anulando, assim, qualquer possibilidade de manifestação subjetiva de grupos minoritários no meio social: as mulheres. Nesse sentido, no conjunto documental do CMRJU/IMHC/UCS, há significativo número de autos e/ou processos que revelam parte do cotidiano do sexo feminino caxiense. Mulheres que, muitas vezes, foram esquecidas e/ou ignoradas em benefício de uma história heroica e idealizada pela elite dominante. Silenciadas por décadas de história, as vozes femininas ganham visibilidade por meio dessas fontes. Histórias que destacam a identidade e a memória de mulheres que, pela lei e pela moral social, foram dadas como criminosas, já que qualquer atitude esboçada de forma diferente do preestabelecido podia ser considerada extravagante, transformando a mulher, segundo Caufield (2000, p. 186-93), uma virgem impura. No princípio, nos crimes de sedução e defloramento, o elemento fundamental para o acionamento da Justiça caxiense pelas famílias das vítimas deveu-se, sobremaneira, ao sentimento de desonra provocado pelo defloramento. Geralmente, esse sentimento era manifestado pelos genitores e/ou parentes mais próximos, seguindo/aprovando uma estrutura patriarcal e se revelavam através de discursos e elementos fundamentais para a identificação de preconceitos/estereótipos, que continham comentários maledicentes e preconceituosos. Podemos compreender que esses elementos discursivos, presentes nos crimes de sedução e defloramento, constituem parte dos valores que circulam e que são aceitos pela sociedade e, principalmente, as relações de gênero. São princípios que fazem parte, segundo Bourdieu, da “cultura dominante” que, provavelmente, era aceita, difundida e reproduzida pela “classe dominante assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das outras classes”. (2003, p. 10). Essa hierarquia de valores é visível na leitura dos processos de defloramento, quando identificamos que o gênero masculino, na figura do réu, terá a sua sentença proferida por quem detém o saber e o poder, atrelada à figura também masculina do juiz. A força concentrada nas mãos MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari 347 da Justiça utilizou-se de vários meios coercitivos durante o interrogatório para, de forma secreta, segundo Foucault (2010), “construir suas provas”. Essa construção elenca elementos necessários, seja para punir exemplarmente o acusado como também toda a sociedade, servindo de exemplo ou de uma forma de pedagogia para evitar outros crimes. Em Caxias do Sul, desde o início do século XX, é visível, pelos processos de defloramento analisados, que sexo e pecado se fundem, assim como ideologia e cultura, pois essa, conforme Bourdieu, une, mas também separa (p. 11). Sandra Pesavento diz que à análise dos processos criminais é uma fonte que “permitirá perseguir” os atores sociais na “contramão da ordem e da vida, para que se possa resgatar melhor os roteiros contraditórios da sua incriminação e julgamento”. (2001, p. 24). No que concerne à sexualidade, acredita-se que a regra era o silêncio, que somente seria quebrado quando a filha comunicass alguma leviandade à mãe. Deve-se ressaltar que, segundo a moral social, os genitores eram os responsáveis pela conduta física e moral de sua prole, principalmente a feminina, pois essa nunca poderia ficar à mercê de situações desmoralizantes. Dificilmente, a mulher era vista como um ser pensante, mas como um ser dependente, dócil, facilmente corrompível, que poderia manchar de “sangue” a honra familiar. Ismério destaca que “se efetivamente o homem é a cabeça, a mulher é o coração, e se um tem o primado do governo, a outra pode e deve contribuir com seu primado de amor” (ISMÉRIO, 1995: 44), esse amor entendido como doação e submissão total à boa conduta da família. Porém, foi possível identificar que muitas mulheres transgrediram a moral social, e o amor, não raramente, se transformou em paixão. A paixão para o homem e/ou namorado só era verdadeira mediante uma prova de amor que, quando consumada, revertia-se em medo para muitas mulheres, que também era incorporado ideologicamente pelo poder constituído. Todo o aparelhamento do Estado e a ideologia difundida pela Igreja Católica oficializaram-se como meio ao que Foucault (2010) chama de interdições, sendo que, por um lado, existem indivíduos com desejos inerentes a todo ser humano e, pelo outro, um poder dominador e excludente. Um discurso que, provavelmente, representou uma verdade mascarada como foi possível identificar nas leituras dos processos-crime, nos quais a mulher que não aceitasse o saber vigente, de acordo com Ismério, o “condicionamento moral e simbólico, […] cairia em profunda desgraça e o 348 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012 seu erro não seria perdoado”. (1995, p. 30). Ainda segundo a autora, o homem não seria rotulado de leviano se ele mantivesse um ou mais relacionamentos extraconjugais, já que viveria mais feliz e não seria censurado pela sociedade. Da análise de um processo: sedução e defloramento5 Em 18 de janeiro de 1946, Emilda,6 mãe da adolescente Égide, com 17 anos de idade, foi à delegacia de polícia denunciar o médico higienista Luís, pelo delito de sedução e defloramento de sua filha. O delegado, ao tomar conhecimento do ocorrido, solicitou que se procedesse ao exame de “conjunção carnal” na filha da queixosa e deu início ao inquérito, intimando a ofendida, o indiciado, o namorado Antônio e as testemunhas. Emilda, no depoimento ao delegado de polícia, relata que sua filha Égide foi ao consultório do médico Luís, pois estava com dores abdominais, moléstia que a preocupava. Ao entrar no consultório, o médico levantou as vestes examinando-a superficialmente e, em seguida, conduziu-a a uma outra sala quando, segurou-a pelos braços e fechou a porta, mandou tirar as roupas, inclusive as calças que a mesma vestia, que como ela julgasse que ainda seria submetida a exame, não teve o menor constrangimento. [...] sEgurou-a pela cintura e manteve relações sexuais com a mesma. Nesse momento minha filha quis gritar por socorro e foi impedida pelo médico que lhe tampou a boca e deflorou-a. Para que seu silêncio fosse garantido, o médico lhe prometeu dinheiro e fez proposta para se juntar com ela. Conseguindo assim manter relações sexuais outras vezes. (p. 14). Emilda sabe que o Estado tem o poder e o dever de ampará-la, por isso solicitou providências à polícia por acreditar que essa se constituía em uma “polícia do sexo”. Ela procurou o poder por entender que a Justiça podia disciplinar e coibir práticas sexuais que constituíam a destruição da família. Outro fator que incidia desfavoravelmente sobre ela era seu estado civil e socioeconômico: sozinha e sem marido que a representasse na esfera pública, a deixava ainda mais vulnerável. Logo após o depoimento da mãe, foi ouvida a ofendida que confirmou ter sido deflorada pelo médico Luís quando esteve em seu consultório, em MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari 349 um importante hospital desta cidade, no dia 11 de dezembro de 1945, aproximadamente, às 16h30min. Contou em detalhes como tudo ocorreu, dizendo que “foi consultar a respeito de umas dores que sentia no ventre, [...] este facultativo após examiná-la, fê-la passar para uma salinha contígua a do consultório, na qual, decorridos poucos momentos, deu-lhe para beber um líquido amargo que depois de ingerido a fez sentir-se um pouco tonta e foi deflorada”. (p. 18). De acordo com o depoimento de Égide, provavelmente, o médico tenha usado algum sedativo ou narcótico e, sob efeito desse, foi consumado o crime de conjunção carnal. Nesse contexto, a moça indefesa transformouse em vítima do médico. Porém, no depoimento ela também destacou que passados alguns dias retornou ao consultório “para ser examinada pelo Raio X”, sendo que ali, à força, o médico novamente manteve relações sexuais com ela. Entretanto, o retorno de Égide ao consultório, desacompanhada, depois de ter sido violentada deixou a autoridade policial reticente. Que resistência opôs a ofendida? Diante das evidências presentes, o delegado questionou sobre o motivo que a levou a esconder de sua mãe o que havia acontecido e ela destacou: “O Dr. Luís havia pedido com insistência que nada contasse, pois lhe daria tudo o que precisasse e que estava disposto a abandonar sua esposa para viver com a ofendida.” (p. 18). Uma afirmação duvidosa e contraditória, pois ela havia atestado que o médico agira rapidamente, presume-se sem diálogo, logo sem tempo para seduzi-la. As falas produzidas pela mãe e pela filha representam pessoas comuns da sociedade caxiense que, diante de uma instância de poder poderiam estar falando a verdade ou, talvez, estivessem sendo pressionadas a reproduzir o discurso do saber. A afirmação feita pela interrogada suscitou algumas dúvidas à autoridade do delegado, pois, de acordo com os exames médicos, foi diagnosticado que Égide estava com “vaginite “Colpite” granulosa, mucopurulenta com flúor, também conhecido por (corrimento vaginal)”. (p. 43). O que leva a suspeitar da acusação, pois seria um profissional da área da saúde capaz de colocar em risco a sua integridade física em troca de um momento de prazer? A revelação da promessa de mancebia com uma jovem desconhecida alertou até o defensor público na época. Provavelmente, o promotor estivesse habituado com o discurso de jovens defloradas afoitas para restabelecer o mal praticado e ele passa a incriminar a deflorada principalmente quando ela diz que houve promessa de casamento após o fato ter sido consumado. Nesse sentido, Viveiros de Castro explica que o discurso de uma jovem 350 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012 ofendida devia ser analisado com reservas, pois se o pedido de casamento não fosse formal e público, não podia ser considerado como tal. A jovem deveria saber distinguir um pedido sério/solene de uma fraude, pois, se ela se deixasse enganar com o intuito de obter alguma vantagem, “presume-se ter a mulher consentido livremente, por prazer, e não se deve dar-lhe ouvidos, quando ela se diz seduzida”. (CASTRO, 1932, p. 78). O delegado concluiu que havia indícios de contradição nos depoimentos e resolveu buscar informações sobre a família de Emilda, quando foi informado de que, há algum tempo, houve um desentendimento entre a queixosa e o denunciado. Nesse sentido, é possível perceber que a autoridade policial, através da figura do delegado de polícia, investigou não somente a situação da mulher-vítima, mas também a vida da família, o que nos leva a supor que a moral familiar constitui-se, a priori, o fator preponderante do pré-julgamento final da vítima. Caso o Estado, aqui representado pela Justiça, não fosse acionado, as jovens defloradas, segundo Michelle Perrot (2008), estariam fadadas à decadência e ao desastre e cabia à mãe, na ausência do pai, tentar, pelas vias judiciais, minimizar o escândalo sexual em que sua filha estivesse envolvida. Certamente, Emilda temia que viessem à tona outras ações desabonatórias cometidas no passado, já que negligenciara em vão, à autoridade policial, seu real estado civil. O delegado solicitou a certidão de nascimento da filha Égide como documento capaz de comprovar a menoridade, mas ela titubeou, baldado esforço. O comissário de polícia solicitou no Cartório de Registro Civil de Nascimentos, a cópia da certidão de nascimento de Égide, que revelou: “O registro de nascimento da menina acima declarada é filha ilegítima de Emilda.” (p. 15). A certidão de nascimento da filha de Emilda lhe fez vivenciar novamente a situação que ela, provavelmente, mais temia, pois sua filha estava repetindo o mesmo erro ao ser deflorada, desonrada e se tornar mãe solteira. Entretanto, Emilda procurou o único meio de remediar o irremediado, pois entre ficar calada, guardar para si o acontecido ou ir à polícia registrar queixa do defloramento da filha, preferiu tornar o defloramento da filha um fato público, acreditando que a lei estivesse ao seu favor. A Justiça e, consequentemente, a sociedade, não julgou somente a jovem deflorada, mas também o passado de sua família foi investigado, tornando-se uma peça determinante na decisão a ser tomada pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, Viveiros de Castro alerta para a necessidade de avaliar todo o núcleo familiar, pois “os precedentes da ofendida e de sua MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari 351 família devem ser cuidadosamente examinados, pois indicarão se trata de uma moça honesta, de uma família respeitável e séria, ou de uma mulher já corrompida, educada entre gente sem moral, e sem escrúpulo, ávida de dinheiro e capaz de tudo”. (1932, p. 91). De acordo com a moral da época, a culpa recaiu sobre a mãe, pois, na ausência do “cabeça de casal”, representado pela figura masculina, Emilda era uma mãe corrompida, um ser frágil e leviano aos galanteios de homens tidos como inteligentes e conquistadores. Como mãe, Emilda não soube manter sua filha no recato do lar, sob sua vigilância e com uma educação que deveria prepará-la para o casamento. Emilda rompeu a situação de silêncio e decidiu procurar a Justiça que se apresentava como responsável e guardiã da moral social. Uma ordem dominante que, por meio das elites, produz e difunde discursos amparados em uma ordenação sociopolítica impressa em leis e instituições. Assim, o Estado exerce o controle da sociedade por meio de verdades produzidas segundo os seus princípios. E sobre o cotidiano feminino, como, por exemplo, em Emilda e Égide, provavelmente, vigorava uma aura associada ao medo e à culpa. No início da denúncia dos processos-crime de defloramento, era de praxe que as ofendidas passassem pelos trâmites legais, ou seja, o exame de corpo de delito para ser analisado e testado clínica e cientificamente o estado do hímen da deflorada. Esse exame denominava-se “autoexame de defloramento” ou “autoexame de conjunção carnal”, peça-chave no desvendamento de parte do mistério que envolvia a suposta seduzida. Égide, submetida à análise científica, sabia que se estivesse mentindo seria descoberta. Assim, entrava em cena o médico-legista que tinha a responsabilidade de confirmar se o defloramento era recente ou antigo, e a gravidez da vítima se houvesse. A mãe de Égide, em seu depoimento, alertava que há “dois meses” a filha não menstruava. Mais tempo que a data do defloramento declarada pela deflorada e o tempo cientificamente comprovado. Égide sabia que o resultado do exame seria anexado ao processo, pois era a prova cabal para o enquadramento da tipologia do crime que poderia ser: defloramento, estupro ou falso testemunho. Em 29 de março de 1946, a denúncia chegou à Promotoria. Logo em se seguida, foram chamados para depor o médico Thomé, diretor do hospital, e seus colegas: Pedro e Mário, ambos médicos do Posto de Higiene. É possível perceber que esses profissionais deviam ter relações de “coleguismo, amizade ou dependência” com o médico denunciado pelo defloramento. 352 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012 Porém, os depoimentos dos médicos ajudaram a fortalecer as dúvidas do comissário, quando novamente ele deixa transparecer desconfiança quanto à idoneidade do depoimento da vítima. Fortaleceram-se os indícios e prevaleceu a ética profissional, pois todos depuseram a favor do médico denunciado. Os indícios do processo mais parecem uma cena novelesca de violência do que de sedução. O acusado, de acordo com a vítima, usou da força, subjugou-a rapidamente para obter seu intento deflorando-a. A leitura do processo aponta para a existência de contradições, pois se evidenciam flagrantes diferenças: mãe e filha relatam o ocorrido de diferentes formas, porém não houve testemunhas, e a cena foi secreta. O que nos leva a algumas interrogações, como, por exemplo: não estaria Égide querendo incriminar o médico para eximir a culpa do namorado? Se seu intento fosse levado a cabo, passaria de mulher leviana, desonrada, difamada para vítima, uma situação muito favorável; possivelmente a sociedade a perdoaria. O promotor, em sua argumentação, foi enfático quando disse: “Não nos convencemos da criminalidade do indiciado. Questões de ordem moral ou inerentes a determinadas profissões não constituem objeto de ciência penal”. (p. 6). A Promotoria, com sua argumentação, abriu mão do caso, inocentando o médico que, no exercício do seu ofício, provavelmente, procedeu conforme requer a prática da medicina. A mãe, ao ir à delegacia denunciar a desonra da filha, não imaginou o quanto “maquiavélica” sua filha estava sendo, mesmo que essa tenha agido em defesa de sua honra. No vislumbre da promessa de casamento, não hesitou em acusar o médico Luís. Passados dois anos, em novembro de 1948, Égide voltou à promotoria não para dar continuidade ao processo que fora instaurado para incriminar o médico, mas para denunciar seu “ex-noivo Antônio, como autor de seu defloramento”. (p. 59). Ele foi o mentor de toda a teia incriminatória que se teceu contra o médico Luís. A ofendida declarou que com promessa de casamento foi seduzida e deflorada pelo noivo, que, temendo ser descoberto, tramou com muita astúcia a acusação com o objetivo de subornar o médico. Égide relatou que, com o montante obtido através da extorsão, o noivo prometeu que eles iriam morar na Região Norte do País, longe dos olhares da sociedade que a julgaria uma mulher pervertida, sem honra e sem moral. Entretanto, o ex-noivo, Antônio, no emaranhado das investigações, fugiu, deixando Égide sozinha e grávida. Concluído o sonho de felicidade plena, ela percebeu que foi abandonada, desonrada e “falada”, sem possibilidades de encontrar um pretendente que assumisse um filho ilegítimo. Com a MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari 353 nova declaração, ela deu fim a uma investigação que, certamente, causou ao médico, chefe do posto de saúde, Luís, muitos constrangimentos, bem como denunciou a trama ardilosa do ex-noivo. Égide declarou, também, que a criança nasceu, estava bem e vivia em perfeita saúde e, no entender da jovem mãe e pela moralidade católica, seu filho foi batizado e legitimado com o nome do pai. As questões que remetem ao poder da instituição Igreja Católica deverão ser aprofundadas em momento oportuno. No processo acima destacado, observou-se a presença de um discurso impregnado de preconceitos morais, no qual a sexualidade e, provavelmente, a ideologia religiosa, estavam intimamente imbrincadas na cultura difundida pelo Estado e pelo Clero. São discursos tidos como verdades, que, em tempos hodiernos, não importa mais quem os originou; o que importa é saber o que está por trás dessas falas e o que as torna verdadeiras, já que, estando disseminadas entre grupos leigos, são facilmente aceitas. Para Foucault, romper com posturas arraigadas requer “que não mais se relacione o discurso ao solo inicial de uma experiência nem à instância a priori de um conhecimento, mas que nele mesmo o interrogue sobre as regras de sua formação”. (2004, p. 89). Foucault reporta-se à história do pensamento, pois versa sobre o discurso como descontinuidade, já que cada um deve ser interpretado em seu tempo e com suas especifidades. Reafirma-se que a temática em discussão foi ignorada e silenciada pelas narrativas tradicionais e que, em função das diferentes mudanças na sociedade e nas relações de gênero, é de fundamental importância compreender, cada vez mais, as questões ligadas à sexualidade, bem como de que forma é encarada e praticada a sexualidade, as práticas normativas do corpo e da mente, a negação e depreciação do coito sexual em favor do espiritual e as influências dessas práticas de afirmação e negação do sexo, de sublevação e inferiorização do mesmo na teia sociocultural das relações humanas. Nossos atores sociais, Emilda, Égide, Luís e Antônio (ex-noivo), todos, de uma forma ou de outra, se envolveram em uma história que hoje pode ser estudada como fonte para se entender parte dos valores morais da sociedade local. Vejamos o caso de Égide, filha de mãe que se declarou viúva: durante o inquérito policial, foi possível identificar que ela era filha de pai ignorado, consequentemente, de mãe solteira, mas mãe e filha acreditavam que a desonra poderia ser reparada pelo casamento. Porque essa mãe e a sociedade perceberam que erraram na educação dessa moça? A filha estaria repetindo o erro da mãe? Por que foram estigmatizadas pela 354 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012 sociedade? São algumas indagações que podemos realizar, as quais Burke (1992) identificou como sendo os problemas de explicação da micro-história. O promotor discorre sobre a falta de credibilidade que há nos depoimentos da deflorada. Talvez a jovem desejasse apagar as lembranças que mais lhe causaram dor e constrangimentos do que boas recordações, e os homens do saber insistiam em relembrá-la durante a investigação. Alguns quesitos da inquirição eram oficiais, porém parece que havia uma espécie de vislumbre satírico por trás dos interrogatórios e do exame do corpo feminino, pois ela foi obrigada a relembrar a data do ocorrido, o horário, o local e toda sorte de indícios que relatassem, nos mínimos detalhes, o ato criminoso. Para os representantes da Justiça, indiferentes à questão de gênero, as vítimas eram profundas conhecedoras das malícias libidinosas dos impulsos sexuais masculinos, e o ato sexual só acontecia porque havia consenso entre o casal, o que criminalizava a mulher, independentemente da idade. Conclusão Através do artigo foi possível lançar alguns questionamentos relativos ao papel da Justiça na Comarca de Caxias do Sul, entre os anos de 1900 a 1950 e, consequentemente, os valores da moral social. A Justiça, quando procurada, defendeu as vítimas aplicando normas coercitivas nos transgressores como papel socializador e como prática judicial. O Ministério Público parecia estar disponível em zelar, manter e restabelecer a identidade e subjetividade dos desfavorecidos. Durante a fase de leitura e classificação dos processos, foi possível identificar que muitas mães procuraram a Justiça para denunciar a desonra das filhas. Elas acreditavam, que a lei lhes daria proteção, porém não queriam que o fato se tornasse público ou caísse na “boca” da vizinhança, para evitar que fossem ainda mais desmoralizadas. Havia, também, provavelmente, o preconceito, o desprezo e a humilhação de ter que passar pelo crivo de todo o corpo investigativo, as falas e os olhares trocados entre esses, os quais Foucault definiu como “vontade de verdade”. Verdades científicas que estão em poder “do corpo social” técnico especializado, “existem relações de poder múltiplas que [...] não podem se dissociar” do saber. (2003, p. 179). Esses grupos sociais que detêm o poder são os produtores dos discursos que hoje abrem campo para questionamentos e estudo, por constituir um saber que desmoraliza outros saberes, em especial, no recorte temporal analisado: as mulheres. O contexto discursivo dominante entra em conflito com outros discursos ou forças MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari 355 antagônicas que atuam de forma contraditória ora em defesa, ora contra a mulher. Um silêncio consubstancial, no que tange à honra feminina vigorou durante décadas. Nesse sentido, foi possível identificar que, hodiernamente, o que elas mais queriam era que, mesmo na condição de jovens desonradas, não fossem colocadas no rol das mulheres sem ética, sem moral, enjeitadas e excluídas do meio social, mas que fossem entendidas como sujeitos com “vontade de verdade”, com memória e história, que só poderia ser reparada pelo casamento e pela família organizada, uma ordem idealizada pelo discurso dominante e pela moral social. Assim, as paixões e os desejos das mulheres foram, durante séculos, velados e ignorados, por constituir desordem moral (pecado). Permaneceram nos porões do obscurantismo histórico como se não existissem, neutralizados por ordem do poder disciplinador. No entanto, hoje é possível dar “luz” a esses desejos por meio de estudos das fontes produzidas pelo Judiciário, o que possibilita reflexões para a compreensão dos discursos apregoados pelo sentimento de medo, desejo, vingança e justiça. 356 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012 Notas O Código Filipino foi promulgado em 11 de janeiro de 1603 pelo monarca Felipe III na Espanha, ou Felipe II quando rei em Portugal e vigorou no Brasil até 16 de dezembro de 1830. As leis foram escritas e distribuídas em livros. Assim, os crimes contra a honra dos homens estavam escritos no Livro V, sob a rubrica dos Títulos XIII ao XXXIII. Essas leis puniam todos os atos praticados por homens e consequentemente pelas mulheres que fugissem das convenções estabelecidas. Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/ ihti/proj/filipinas/l5ind.htm>. Acesso em: 25 ago. 2011. 1 O Título VIII diz: “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”. No Capítulo I: “Da Violência Carnal”, encontra-se o art. 266: “Atentar contra o pudor de pessoa de um ou de outro sexo, por meio de violências ou ameaças, com o fim de saciar paixões lascivas ou por depravação moral.” A punição aplicada ao infrator era de um a quatro anos de prisão celular. Pena a que também incorria o sujeito que “corromper pessoa de menor idade, praticando com ela ou contra ela atos de libidinagem.” O art. 268 é o que difere defloramento de estupro, pois este só é praticado quando a mulher for virgem ou não, porém honesta. A pena imposta ao estuprador é de um a seis anos. Disponível em: <http://pt.scribd.com/ 2 doc/55636995/Codigo-Penal-de-1890Completo>. Acesso em: 25 ago. 2011. O Código Penal de 1940, no que tange à criminalização da mulher, pouco mudou, apenas a terminologia defloramento foi substituída por sedução. Plácido e Silva (2004) diz que sedução, na terminologia do Código Penal de 1940, é entendida como o ato de enganar, ludibriar mediante o emprego de manobras ardilosas e fraudulentas para a consumação de um fato. Na visão do Judiciário, “sedução configura o fato de se induzir a mulher a que consinta a manter relações sexuais, fora do casamento, mediante o emprego de meios ardilosos, ou bastante convincentes para influírem sobre sua vontade”. (p. 1.261). O art. 217, do Código Penal de 1940, configura crime de sedução a conjunção carnal; virgindade da mulher; menoridade, idade da ofendida compreendida entre 14 e 18 anos; consentimento obtido pelo engano, com aproveitamento de sua inexperiência e justificável confiança. Para o infrator, a reprimenda imposta era de dois a quatro anos de reclusão celular. 3 O processo analisado para este artigo está sob custódia no CMRJU/IMHC/UCS; acondicionado na caixa 11B, processo 5, ano 1946. 4 Por questões de ética, optou-se por utilizar nomes fictícios. 5 MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari 357 Referências BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.:de Fernando Tomaz. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. BURKE, Peter (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. Trad. de Magda Lopes. São Paulo: Edunesp, 1992. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro: 1918-1940. Campinas: Ed. da Unicamp, 2000. DE PLÁCIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 24. ed. Rio de Janeiro: Florense, 2004. FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Coordenação da tradução de Izabel Magalhães. Brasília: Ed. da UnB, 2001. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 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Divididas em duas classes de trabalhadoras – as juízas e as servidoras –, elas são tratadas com grande importância dentro da estrutura de poder. São elogiadas nos discursos, que as apresenta como portadoras de uma imagem diferenciada dentro da instituição por serem maioria. Assim, analisamos o que representa essa superioridade numérica na instituição com relação ao exercício de poder. Abstract: This article examines the role of women in the judiciary Power of Rondonia. Divided into two classes of workers – the judges and servants – they are treated with great importance within the power structure. Are praised in speeches, which presents as bearers of a distinctive image within the institution because they are the majority. Thus, we analyze the numerical superiority that represents this institution in connection with the exercise of power. Palavras-chave: poder; gênero; trabalho. Keywords: power; gender; work. O presente artigo faz algumas reflexões sobre a condição das mulheres trabalhadoras no Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. O trabalho foi feito a partir de pesquisa nos documentos do acervo da instituição1 e relatórios fornecidos pelos departamentos. Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Graduada em História pela Universidade Federal de Rondônia. Especialista em História do Brasil pela PUCMG. Coordenadora do Centro de Documentação Histórica do TJRO. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa em Gênero e Religião Mandrágora/Netmal, do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Umesp. E-mail: nilzamenezes@hotmail.com. * MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 359 Partimos da premissa de que há dois grupos de mulheres: as juízas e as servidoras. Justificamos a separação em face dos diferentes papéis exercidos dentro da estrutura institucional. As servidoras fazem parte da classe de trabalhadoras subordinadas à estrutura de poder. As juízas pertencem à estrutura, podendo ascender dentro dela. Por ocasião das datas comemorativas, a exemplo do dia 8 de março, matérias jornalísticas são dedicadas às mulheres mostrando a importância das mesmas. As festas e homenagens são rendidas às mulheres que, dentro da instituição, exercem cargos ou funções relevantes, são juízas ou servidoras. O discurso presente é o de que um grande número de servidoras é prestigiado, pois recebe um salário igual ao dos homens, ocupam cargos relevantes e ainda são numericamente superiores. Os registros históricos, até 1960, pela documentação produzida acerca das atividades da Justiça na região não registram a presença feminina, na condição de funcionárias, servidoras, magistradas ou qualquer outra função relativa aos trabalhos realizados. As mulheres, até então, se apresentam na condição de parte nos processos cíveis – especificamente na condição de viúvas – ou nos processos criminais, como vítima, ré ou testemunha. Vale uma ressalva com relação aos primeiros anos da instalação da Justiça na região, 1912 a 1930, quando os processos estão relacionados à extração da borracha e à construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM).2 Esse primeiro período foi de intensa atividade da Justiça, e a presença de mulheres na condição de vítimas, rés ou testemunhas esteve bastante presente. Também, pela presença das comunidades árabe, hebraica e portuguesa na Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira, a presença de nomes femininos em diversos documentos, tais como inventários e lista de testemunhas de casamento, indicam que a presença feminina fazia parte das atividades sociais daquele lugar3 apesar da imagem deixada pelos escritos de viajantes e que passou a fazer parte da memória coletiva de que aquele lugar, naquele tempo, era um mundo apenas de homens. Foi somente a partir dos anos 70 (séc. XX), que percebemos a presença feminina em atividades judiciárias, tanto na condição de servidoras como na condição de magistradas. Quando ainda era o Território Federal de Rondônia e o atendimento jurisdicional prestado era da Justiça dos Territórios Federais, registra-se a tímida presença de alguns nomes femininos nos documentos produzidos, tais como: processos, atas, ofícios, etc. Na Comarca de Guajará-Mirim, a servidora era Zélia Jorge. Em Porto Velho, Raquel 360 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 Moreb, as Juízas Maria Elisa Muniz Chamberlain e Maria Rita Capone Krause e, ainda, como Promotora de Justiça Ledy Fischer. Com a criação do Poder Judiciário de Rondônia, em 1982, nomes femininos passam a fazer parte dos documentos, de forma mais visível, aparecendo em atas como secretárias, escrivãs e outras funções relativas ao fazer da Justiça. Não pode deixar de ser observado que às mulheres cabia ainda o papel de auxiliares das funções masculinas numa instituição extremamente masculinizada. A primeira composição do Tribunal de Justiça foi composta por sete desembargadores. Assim, a cúpula de Poder, naquele momento, era formada apenas por homens. Nos 25 anos que se seguiram, podemos perceber algumas mudanças. No decorrer das décadas, e a cada realização de concurso para juízes, percebese que as mulheres, lentamente, buscaram ocupar espaços, aparecendo seu nome em listas de aprovadas em concursos para a Magistratura. No entanto, os números são ainda muito tímidos, e as listas continuam masculinas: “Lista de juízes aprovados” “Concurso para Juiz substituto” e “Concurso para magistrados”. Conforme registros sobre o primeiro concurso, apenas uma mulher foi aprovada. No segundo, novamente apenas um nome feminino figura na lista de aprovados. Nos concursos seguintes, a proporção era de uma ou duas mulheres para cada dez a quinze homens. No décimo quinto concurso, percebe-se uma mudança: o número de mulheres quase alcançou o de homens. Dos nove aprovados, quatro eram mulheres. Nos concursos seguintes, nomes femininos sempre fizeram parte da lista numa proporção que sempre entre 10, 20 a 30 por cento. No último concurso realizado, dos 20 aprovados, sete eram mulheres, o que equivale a um terço. Atualmente, a estrutura de Poder da instituição conta com 17 desembargadores, sendo que apenas duas são mulheres. No quadro geral, o número de homens é de 124, para 27 mulheres. Portanto, em toda a estrutura, o número de mulheres equivale a 21,8%, o que quer dizer que a instituição continua representada por uma maioria masculina. Pela lista de antiguidade, é possível fazer uma projeção para os próximos dez anos e, nesse sentido, não se vislumbra mudança no quadro. Em razão de aprovação, apenas de uma, duas, a três mulheres nos primeiros concursos, dos 20 próximos juízes a serem promovidos ao cargo de desembargador, somente duas serão mulheres. Assim, numa projeção para os próximos dez anos, esse quadro não indica mudanças, permanecendo a maioria masculina, havendo, assim, a indicação de uma grande demora para o emponderamento das mulheres MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 361 na Magistratura de Rondônia. Estudos que busquem esclarecer e pontuar essa problemática seriam muito importantes e dariam maior visibilidade à história das mulheres de Rondônia. Questões como acesso às universidades, origens e economia podem ser a causa dessa característica. No que tange ao quadro de funcionários, normalmente, se comemora no Judiciário a grande presença feminina. As planilhas funcionais apresentam um quadro cujos números remetem a uma grande vantagem das mulheres. São 2.368 funcionários, sendo que 1.315 são mulheres,4 portanto o número total de homens é 1.053. Estatisticamente, tem-se, então, uma maioria feminina. Porém, desse número de mulheres, 155 são servidoras comissionadas, o que significa que não prestaram concurso para exercer funções na instituição; mesmo assim, a diferença é de 268 mulheres. Dos 55 cargos de DAS-5 – a maior gratificação funcional na instituição –, 32 são ocupados por mulheres. Contudo, desse número, 19 são assessoras de desembargadores, incluindo-se, nesse grupo, a função de chefe de gabinete, que, apesar do salário equiparado, cumpre o papel de secretária especial, não havendo nessa função o exercício de poder de forma efetiva. Em comparação aos homens, que somam 23, apenas nove exercem a função de assessor. Excetuando os assessores e assessoras de desembargadores, o número de cargos com a gratificação referida torna-se, no fim, de igual para igual. Treze homens e 13 mulheres ocupam funções cuja remuneração é idêntica. Nos últimos oito anos, no entanto, o secretário administrativo e o diretor de DRH são funções ocupadas por homens. Essas duas funções podem ser consideradas como mais relevantes dentro da estrutura institucional, por representarem lugar de comando e não de organização. Isso reflete o que vem sendo pontuado pelas teorias dos estudiosos de gênero. Conforme Joan Scott, “a suposta falta de racionalidade das mulheres tem sido historicamente não só uma justificação para negar-lhes a educação ou a cidadania, mas também tem servido para apresentar a razão como uma função de masculinidade”.5 Nesse sentido, podemos perceber que as funções que exigem racionalidade, força e comando são, preferencialmente, ocupadas por homens. No entanto, funções que requerem maior organização, atendimento especial, obediência e servilidade são ocupadas por mulheres, legitimando um pensamento historicamente cristalizado dos papéis sociais de homens e mulheres.6 Logo abaixo, na escala funcional, encontramos um número significativo de mulheres exercendo função gratificada com DAS-4. São seis mulheres 362 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 para três homens. Nesse patamar, encontram-se as coordenadoras de departamento, função que requer capacidade para organizar e atender. Abaixo disso, as funções são ocupadas de acordo com a disponibilidade de funcionários. Assim, vamos encontrar os cargos de DAS-3, 2 e 1 e gratificações classificadas de FG de 1 a 5, ocupadas por homens e mulheres em números proporcionais aos funcionários, de acordo com a disponibilidade e aptidão para a função. Como a instituição requer, nos seus departamentos, secretarias, setores e comarcas, organização, obediência prestatividade e docilidade, as mulheres se acomodam melhor às condições oferecidas. Raramente as mulheres disputam posição ou buscam alternativas de trabalhos e acabam se acomodando à função exercida. Entre os homens, é mais comum a insatisfação e a busca de outras oportunidades de trabalho, dentro ou fora da instituição. Não conformados com a atividade ou com o salário, fazem concursos para outras instituições, são mais propensos a aventuras, tornando-se menos domesticáveis e mais instáveis que as mulheres na instituição, já que essas, normalmente, se acomodam, ou se resignam, com o destino. As mulheres têm logrado ocupar cargos dos mais diversos que vão de escrivã a administradora, sendo as mesmas secretárias, auxiliares em geral, sem contar com os serviços de copa, já associados ao feminino. Alguns homens fazem parte do quadro nessas funções, em razão da necessidade de contratação dos mesmos para serviços de limpeza nos grandes prédios da instituição, por ser essa atividade considerada “pesada”. Dessa forma, concluímos que, quando tratamos da questão funcional, faz-se necessário levar em consideração que, sem dúvida, há uma maioria feminina no quadro funcional, e que muitas mulheres ocupam funções ou cargos relevantes na instituição. Contudo, ao analisarmos o lugar dessas mulheres, na hierarquia de poder, percebemos que ainda exercem trabalhos que caem na armadilha do discurso que eleva e engrandece, mas que, na verdade, serve para excluir. No discurso da aparente igualdade, levando-se em consideração os números, o que há de fato é uma “igualdade dentro da diferença” que, conforme Simone de Beauvoir, serve para segregar e discriminar.7 Nesse sentido, devemos lembrar que o Poder Judiciário é uma instituição e, como tal, é uma rede de discurso apoiada no suporte da distribuição institucional que exerce outros discursos8 que, na verdade, se organiza de acordo com o observado por Foucault: MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 363 Se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o aparelho inteiro que produz “poder” e distribui os indivíduos nesse campo permanente e contínuo. O que permite ao poder disciplinar ser absolutamente discreto, pois está em toda parte e sempre alerta, pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar; e absolutamente “discreto”, pois funciona permanentemente e em grande parte em silêncio.9 Outra importante fonte de análise, o acervo fotográfico nos apresenta os eventos oficiais com indiscutível maioria masculina. Essas fotos referemse aos atos oficiais, públicos, em que a instituição se apresenta. Porém, em atividades “extras”, como festas comemorativas, jantares e reuniões de trabalho – o que poderíamos chamar de a grande massa de trabalhadores – a presença da mulher é majoritária. Por isso, a questão da comemoração dos números deve ser pensada de forma mais articulada e mais política. O fato de existirem tantas mulheres no quadro funcional é um grande avanço e uma grande conquista, mas elas continuam ocupando cargos e funções subalternas e não cargos de poder. Continuam a ser secretárias, lembradas no dia 8 de março pela graça e beleza, conforme frase no cartão-convite distribuído às servidoras,10 reforçando o conceito de que a mulher, para exercer alguma função, precisa ser bonita. Sabemos que não é esse o critério para ascensão ao quadro funcional da instituição, que faz concurso e que tem, nesse quadro, por aprovação, uma presença feminina relevante, porém concepções cristalizadas continuam sendo reproduzidas. Representações sobre o que é ser homem e o que é ser mulher continuam sendo disseminadas impensadamente pelas próprias mulheres. Enquanto as organizadoras de eventos designam mulheres para atividades de cozinha, festinhas ou ainda onde mulheres-autoridades ou de autoridades em ambientes formais e de poder recebem flores, significa que elas estão ali como enfeites ou enfeitadas. Num mundo masculinizado, onde a produção da linguagem se mantém do homem para o homem, a mulher continua sendo a ajudante com um discurso cuja ordem é dada pelas estruturas de poder que não é corporal, mas é físico, exercido de forma relacional como uma máquina.11. O Tribunal de Justiça é um espaço de trabalho e de poder, à mulher cabe estar ali nessa condição, representando a igualdade. A sua condição 364 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 sexual não pode significar tratamento diferenciado como o outro, como o diferente. Por ser mais sensível e mais apta a alguns serviços como organização, limpeza e alimentação – porque essas atribuições a remetem ao lar e à maternidade – essas posições são utilizadas, historicamente, como fator de diferença e de exclusão. Fazem-se festas, apresentam-se relatórios e homenagens jornalísticas, distribuem-se flores e bombons em razão do grande número de mulheres no quadro funcional, no entanto, esse número levando em consideração os cargos de poder ocupados por homens, às mulheres cabe, geralmente, cargos auxiliares, normalmente aplaudidos e elogiados, mas que, de fato, mantêm aquilo que está cristalizado como sendo o papel das mulheres. Como massa trabalhadora, as mulheres são as grandes figuras de sustentação de um poder que vem de cima para baixo e que, na verdade, as oprime e as castra, num discurso embalado pela ideia de proteção, de prestígio e reconhecimento. Isso não é consciente, é cultural, mas todos os dias são realimentados com as representações de grandes trabalhadoras que engrandecem e embelezam. O mundo masculino tem apresentado essas mulheres e dado a elas um lugar na instituição. Um lugar que o mundo construído do masculino para o masculino, entende-se como lugar e papel feminino.12 Com relação ao quadro de servidoras, é inegável o fato de que diversas mulheres ocupam cargos relevantes e bem-remunerados, no entanto, se percebe, ainda, que, em sua maioria, os cargos nos remetam a funções femininas. As mulheres, geralmente, ocupam funções onde se faz necessária uma maior capacidade de organização, de delicadeza e atendimento. Poucas mulheres, na instituição, romperam com esse paradigma. Há casos de mulheres que ocuparam cargos relevantes e de poder, no entanto, como são de confiança e remanejáveis, esses cargos são disponibilizados de acordo com os interesses e/ou a simpatia. É necessário que, nos espaços públicos e de poder, as mulheres não sejam lembradas nem homenageadas pela graça e beleza, ou conforme outro cartão distribuído também no dia 8 de março, homenageadas por serem “Mãe, esposa e filha: símbolos de amor, compreensão e amizade”,13 frisadas pela sensibilidade e fragilidade, cumprindo o papel de “verdadeiras mulheres”,14 recebendo flores e bombons. Ser uma “verdadeira mulher” é ser uma mulher que cumpre seu papel de beleza e sensibilidade femininas, adjetivos que estão dissociados do mundo dos homens, ao que Simone de Beauvoir chamou de “hiato na vida de mulher, diferenciando-a e a colocando MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 365 na condição do outro”.15 Ser colocada na condição do outro, do diferente, não favorece as mulheres, ao contrário, as oprime e as exclui. A mulher deve e precisa ser lembrada pela capacidade, pela ascensão profissional e respeito que lhe empresta dignidade e que lhe coloca em pé de igualdade como ser humano. Se para o homem, conforme Beauvoir,16 não há hiato para a vida pública e a vida privada, é preciso que a mulher também tenha esse direito. Sabemos ainda da histórica constituição da sociedade patriarcal, em que as representações do feminino e do masculino são cristalizadas e reproduzidas de forma inconsciente. As próprias mulheres, tanto na condição de subalternas, como quando exercem alguma forma de poder, reproduzem ideias e pensamentos que externam essa condição de subalternidade, quase sempre embaladas no papel da beleza, da fragilidade e da importância como ajudadoras. Ainda lembrando Scott,17 sabemos agora que “homens e mulheres” não são simples descrições de pessoas biológicas, senão representações que consolidam seus significados através de contrastes interdependentes: forte/frágil, ativo/passiva, razão/emoção, publico/privado, político/doméstico, mente/corpo. Conforme Heleietth Saffioti,18 algumas mulheres conseguem fugir do destino, mas é uma minoria. Casos individualizados e que não podem ser tomados como expressão da categoria mulheres, que é extremamente diversificada. A autora observa que algumas poucas mulheres chegam ao empoderamento, exercendo cargos e funções de poder, mas servem apenas como mulheres-álibi, para dizer às outras que se não chegaram lá foi por falta de coragem, de responsabilidade e por não lutarem o suficiente. Assim, excluem de culpa toda a hostilidade que a sociedade patriarcal lhes impõe, amparadas nas relações de gênero, milenarmente construídas e que estabelecem hierarquias entre seres socialmente desiguais. Se a análise considerar apenas os números, é possível que tenhamos um resultado distinto. Contudo, o entendimento da instituição, como estrutura de poder, deve ser pensado de forma mais analítica e politizada. Assim, nos parece que, apesar dos números merecidamente comemorados, ainda terá que se esperar muito tempo para se rejubilar com uma transformação e, realmente, com uma igualdade feminina no Poder Judiciário de Rondônia. 366 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 Notas O Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia foi criado no ano de 1999 e conta com importante documentação datada a partir de 1912, relacionada às práticas judiciárias na região. 1 A Estrada de Ferro Madeira Mamoré foi construída em 1907. Conferir Hardman (1988) e Ferreira (1969). 2 Documentos do acervo do Centro de Documentação do Tribunal de Justiça de Rondônia. 3 Dados fornecidos pelo Departamento de Recursos Humanos em junho de 2008. 4 SCOTT, Joan. Reverberaciones feministas. Mora – Revista del Instituto Interdisciplinar de Estudios de Gênero. Buenos Aires, n. 9/10, 2004. 5 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. 6 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Nova Fronteira, s.d. 7 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1999. 8 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2001. 9 Ignorar a mulher é ignorar a graça e a beleza. Frase do cartão-convite distribuído às servidoras no dia 8 de março de 2007, “Dia da Mulher”. 10 11 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2001. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. 12 Cartão distribuído às servidoras no dia 8 de março. 13 14 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. São Paulo: Nova Fronteira, s/d. 15 Idem. 16 Idem. SCOTT, Joan. Reverberaciones feministas. Mora – Revista del Instituto Interdisciplinario de Estudios de Gênero, Buenos Aires, n. 9-10, 2004. 17 18 SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 367 Referências BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. POLI, Maria Cristina. Feminino/masculino. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. FERREIRA, Hugo. Reminiscências da MADMAMRLY e outras mais. Porto Velho, 1969. SANTANA, Marco Aurélio; RAMALHO, José Ricardo. Sociologia do trabalho no mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 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Dentre os imigrantes apontados como minorias étnicas não integradas à Nação brasileira, no estado gaúcho, estavam os judeus, considerados os mais inassimiláveis dentre os inassimiláveis. Esses indivíduos passaram a ganhar um amplo espaço na imprensa escrita local, em especial, como tema de artigos que condenavam a presença judaica em terras brasileiras. Outro aspecto que passou a ser abordado pela referida imprensa foi o envolvimento dos imigrantes judeus em atos criminosos, que variavam de badernas nas ruas das cidades gaúchas à formação de quadrilhas internacionais. Essas ações criminosas atingiam a opinião pública, que passava a ver um determinado grupo cultural como potencialmente perigoso e naturalmente Abstract: Throughout the time Getúlio Vargas was ahead the Brazilian government, a significant campaign against immigrants was organized all over the country and especially in the State of Rio Grande do Sul, which was hosting many distinct ethnic communities. Among the immigrants identified as ethnic minorities unintegrated to the Brazilian Nation, in State of Rio Grande do Sul the Jews were considered the most unassimilable. These individuals began to have more space in local press as the main subject of articles clearly against the Jewish presence in Brazilian lands. Another aspect that has became spoken by that media was the participation of Jewish immigrants in criminal acts, ranging from huge messes on the streets of the state cities to formation of international gangs. These criminal actions have influenced the public opinion that started to see a particular cultural group as potentially dangerous and naturally intended crime. The case of the forgers gang involving Jewish Doutora em História pela PUCRS. Docente na Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: cflia@ucs.br * MÉTIS: história & cultura – LIA, Cristine Fortes – v. 11, n. 21, p. 369-379 369 destinado à criminalidade. O caso da quadrilha de falsários, envolvendo imigrantes judeus, corresponde a um desses interessantes casos, nos quais um determinado grupo étnico era responsabilizado por ações criminosas de âmbito internacional. A análise do caso dos falsários judeus, objeto deste estudo, através das notícias divulgadas na imprensa da época, das ocorrências policiais e dos processos judiciais conduzidos para os mesmos, permite ampliar a compreensão sobre a percepção de criminosos que recaiu sobre alguns imigrantes, bem como possibilita identificar o tratamento recebido pela comunidade judaica nas ações judiciais. immigrants corresponds to one of these interesting cases in which a certain ethnic group was responsible for criminal actions from international scope. The analysis of the forgers Jews case is the object of this study, through the news published in the press at that time, the police reports and court proceedings conducted. It provides a wider understanding on the perception of criminals over some immigrants. As well, it allows to identify the treatment received by the Jewish community in the lawsuits. Palavras-chave: judeus; processos; imigração. Keywords: jews; lawsuits; immigration. Durante a Era Vargas, em especial nos anos do Estado Novo, foi movida uma intensa campanha contra comportamentos culturalmente distintos no Brasil. Entre os objetivos do período estava o de consolidar o perfil de brasileiro ideal, que deveria ser branco, católico, de ascendência lusa e bom trabalhador. Para alcançar o considerado modelo perfeito de nacionalidade, era necessário nacionalizar toda a população que residia no Brasil. Assim, além de investimentos na educação cívica dos brasileiros, foi direcionada uma atenção especial às comunidades imigrantes, que deveriam romper totalmente com sua cultura de origem e abrasileirar-se o mais rápido possível. Alguns grupos de imigrantes foram considerados mais aptos a incorporarem a verdadeira nacionalidade, outros foram apontados como incapazes de ser nacionalizados, sendo identificados como indesejáveis ou inassimiláveis. As razões que justificavam os indivíduos a serem classificados como tais variavam de motivação, podendo ser em função do idioma falado, da religião professada, da atividade econômica realizada, entre outros fatores. Os imigrantes judeus nunca foram verdadeiramente desejados em terras brasileiras. Sempre foram vistos sob suspeita por não serem cristãos, não trabalharem na agricultura (e por isso não constituírem o perfil de colonos) e carregarem em si toda a carga de preconceitos que o pensamento antissemita elaborou por séculos. A partir dos anos 30 (séc. XX), esses estereótipos 370 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 369-379 , jan./jun. 2012 ganharam maior visibilidade, uma vez que os judeus estavam entre aqueles que foram considerados inassimiláveis à cultura brasileira. O fato de não serem católicos nem objetivarem a conversão, acarretou duras críticas à comunidade. Como não trabalhavam com agricultura foram rotulados de usurários. Dessa forma, a comunidade judaica passou a ser vista como perigosa, pois era incapaz de ser inserida na verdadeira brasilidade e, ainda, tinha potencial para desvirtuar o valoroso povo brasileiro. Também era necessário evitar a entrada de novos imigrantes, pois o aumento da periculosidade do grupo era temido. Assim, uma expressiva campanha antijudaica surgiu em vários estados brasileiros. No Rio Grande do Sul, essas manifestações contra os judeus foram representativas por ser o estado que os recebeu em processo imigratório na primeira década do século XX. Esse fluxo de imigrantes entrou no Sul do Brasil por acordos realizados entre autoridades brasileiras e a Iídiche Colonization Association I(CA), companhia colonizadora responsável por trazer judeus para a América. O período, no qual a campanha antijudaica ganhou expressão, correspondeu ao momento de maior necessidade de ampliar as cotas para imigrantes vindos da Europa em guerra. Assim, as manifestações contra esses indivíduos focaram, em grande parte, as tentativas de impedir a entrada de novos imigrantes. Contemplando essa motivação, os judeus passaram a ser acusados de formarem quadrilhas internacionais, com o objetivo de abrasileirar pessoas e inseri-las, de forma ilegal, em solo brasileiro. Inúmeros processos foram movidos contra o grupo, sob a constante acusação de traição dos ideais da nação. Em 17 de maio de 1940, o jornal Correio do Povo, da cidade de Porto Alegre, publicou no seu “Noticiário” uma reportagem, que ocupava uma página inteira, sobre uma terrível quadrilha de falsários, que agia em diversos países e que estava iniciando suas atividades em território brasileiro. Essa quadrilha era liderada por indivíduos de origem judaica, cujos nomes e fotos foram todos registrados na reportagem. Na foto abaixo, que ilustrava a notícia do periódico Correio do Povo sobre a “quadrilha”, temos, fileira da esquerda para a direita, o rosto de Demetrio Giacomazzi, Ary Kulmann, Osmar Sacarparo e Panfilio Chiapini, Max Rohrsetzer, Angelo Postal e Victoriano da Costa Filho, todos acusados de estarem envolvidos nas atividades ilegais do grupo de criminosos. MÉTIS: história & cultura – LIA, Cristine Fortes – v. 11, n. 21, p. 369-379 371 Fonte: Jornal Correio do Povo, 17 maio 1940, p. 2. Entre os diversos delitos do grupo de criminosos estava o de facilitar a entrada de elementos indesejáveis no Brasil, o que foi considerado como a pior das ações praticadas pelo grupo. Além de ressaltar várias vezes nomes como os de Ary Kulmann e Max Rohrsetzer, os indesejáveis introduzidos pela quadrilha acabavam se lançando ao crime quando chegavam ao estado (isso quando já não eram criminosos em seu país de origem). As autoridades policiais de Porto Alegre, após alguns dias de movimentadas diligências, conseguiram desmascarar completamente todos os elementos que formavam uma organização de falsários, com sede em Buenos Aires e ramificações na capital do Uruguai e no Rio Grande do Sul. Nos moldes da quadrilha que foi descoberta, há bem pouco tempo, pela polícia local, e desenvolvia sua atividade criminosa introduzindo clandestinamente indesejáveis em nosso território, a que acaba de ser agora desmascarada, também agia com elementos nacionais que, para isso, eram recompensados com lucros mais ou menos apreciáveis. (CORREIO DO POVO, 17 maio 1940, p. 2). Essa tendência à criminalidade que o artigo do periódico reforçava insistentemente contribuía para reafirmar a posição do judeu como imigrante indesejável e como elemento que precisava ser cuidadosamente vigiado dentro do território nacional. A ideia de quadrilhas que objetivavam a entrada ilegal de imigrantes judeus, considerados potencialmente perigosos, foi constantemente explorada pela imprensa. Em maio de 1939, o jornal Diário de Notícias, da cidade de Porto Alegre, iniciou uma série de reportagens a respeito da agência “A fortuna”, 372 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 369-379 , jan./jun. 2012 organização criminosa que agia na América do Sul e era representada no Brasil pelo judeu russo Gedal Katz. “A fortuna” seria em uma rede com sede em diversos lugares do mundo, cujo objetivo principal, além de outros pequenos delitos, consistia em promover a entrada de elementos indesejáveis em vários países. No Rio Grande do Sul, as sedes localizavam-se em Bagé e Rio Grande, sendo a primeira dirigida por Jaime Rubim (que, segundo o periódico, era clandestino no Brasil por ter sido expulso 20 anos antes) e a segunda por Luiz Rosembaum, além de outros agentes. O plano da organização centravase, além de no enriquecimento de seus representantes, em possibilitar a entrada ilegal de 4 mil judeus no Rio Grande do Sul. Novamente evidenciamos a forma como era traçado o perfil do imigrante judeu, que, muitas vezes, foi apontado como usurpador da má-sorte de seus patrícios, pois, desprovido de solidariedade, cobrava altas quantias para facilitar a imigração de indivíduos de origem judaica. Noticiamos vários detalhes da trama urdida com grande astúcia chegando a envolver em suas malhas inúmeros policiais inescrupolosos, que se deixaram facilmente tentar pela promessa de lucros fáceis, causando sérios prejuízos ao país, pois, por seu intermédio devem ter entrado no Brasil, algumas centenas de elementos indesejáveis, cafteus, prostitutas, arrombadores, ladrões, etc...[...] Gedal Katz, pretendia agir em Livramento, tendo procurado estabelecer ligações com inspetores da delegacia de policia daquela cidade fronteiriça, a fim de que lhes fosse facilitada a entrada de estrangeiros, pagando dois contos por cabeça. O inspetor Braulio da Fonseca da seção de estrangeiros, tendo percebido uma proposta do russo Gedal levou o fato ao delegado de polícia de Livramento, que imediatamente tomou as providências necessárias. Gedal dissera-lhe que existiam no Uruguai 4000 judeus que pretendiam entrar clandestinamente no Brasil, acrescentando que cada um lhe pagaria a importância de dois contos, fazendo com que ele enriquecesse imediatamente. (DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 5 maio 1939, p. 6). As notícias sobre “A fortuna” também circularam através dos periódicos do interior do estado, provocando intenso alarde em torno da perversa organização judaica. Em 5 de maio de 1939, o jornal Diário Popular, da cidade de Pelotas, noticiava, na p. 8, os inúmeros estrangeiros indesejáveis, MÉTIS: história & cultura – LIA, Cristine Fortes – v. 11, n. 21, p. 369-379 373 obviamente judeus, que estavam munidos de passaportes falsos para ingressarem no território brasileiro. Além dos nomes já citados no Diário de Notícias, o periódico pelotense destacava os nomes de Paulo Grass e sua esposa, secretária da organização, e de Paul Rotschild, todos empenhados em garantir a maior quantidade de dinheiro possível pelos documentos falsos. Interessante é observar que, apesar de os integrantes da quadrilha fazerem referências à participação de autoridades policiais no processo de entrada clandestina no Brasil, nunca foi mencionado o nome de nenhum policial brasileiro, nem mesmo a imprensa demonstrou surpresa ou indignação com esse fato, que possivelmente nem tenha sido apurado. Outro tipo de quadrilhas frequentemente apontada como composta por imigrantes judeus, no Rio Grande do Sul, eram as de exploradores de mulheres. Tanto os agenciadores, como as mulheres dedicadas ao meretrício eram constantemente apontados, pela imprensa, como membros da comunidade judaica. No entanto, o enfoque dado entre a relação de prostituição e a exploração de mulheres com a comunidade judaica, através da imprensa, foi bem mais intenso nos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, do que no Rio Grande do Sul. Em 19 de fevereiro de 1940, o periódico A Opinião Pública, da cidade de Pelotas, promoveu imenso alarme sobre a presença de um caften na Região Sul do estado. O jornal enfatiza o fato de que, desde 1930, Leon Kleiman já realizava atividades de exploração de mulheres na cidade de São Paulo, na qual havia sido preso e tido sua expulsão do País decretada em março de 1934, quando Kleiman havia conseguido fugir da cadeia da referida cidade. Foragido da cadeia e com a ordem de expulsão decretada, Leon Kleiman refugiou-se no Sul do Brasil, onde começou a trabalhar em um pequeno comércio de joias, retornando, em pouco tempo, para suas atividades de explorador de mulheres. Até 1940 seu destino havia permanecido ignorado para a polícia, até ser identificado no Rio Grande do Sul, o que lhe acarretou uma nova detenção e sua transferência para a cidade de São Paulo, na qual as autoridades policiais iriam se encarregar de realizar sua expulsão. O Dr. Renato Costa, delegado de capturas, recebeu, há dias, comunicação que Leon Kleiman encontrava-se na cidade de Pelotas, estabelecido à rua 7 de setembro, 335, com uma casa de jóias. Adiantava ainda a mesma comunicação que esse indivíduo que, aqui residia, aproximadamente a uns quatro anos, explorava uma mulher 374 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 369-379 , jan./jun. 2012 de nome Olga Schneider, residente em Rio Grande, à rua Paissandu, nº 218. Essa mulher semanalmente, isto é, todas as segundas-feiras, vinha de trem a Pelotas, onde entregava seu dinheiro a Kleiman. Por sua vez, explora também, mais seis companheiras, em cuja companhia reside, entregando o dinheiro para o caften (A OPINIÃO PÚBLICA, 19/ fev. 1940, p. 4). No jornal Correio do Povo, de 17 de abril de 1940, foi publicada mais uma matéria que relacionava os imigrantes judeus a atividades ilegais, com o título: “Uma verdadeira fábrica de brasileiros”, acusava funcionários da Jewish Colonization Association (JCA ou ICA) de entrarem no Brasil como sendo turistas e depois se registrarem como brasileiros natos, bem como estariam facilitando a entrada de judeus clandestinos, que posteriormente também iriam se registrar como brasileiros. O periódico ressaltava a inocência da JCA, que estaria sendo vítima da má-fé de alguns de seus funcionários. “Nada há contra a ‘Jewish Colonization Association’, organização que procura incentivar o gosto pela agricultura entre os imigrantes, que tem apenas a finalidade de colonizar. Entretanto a culpa recai sobre vários funcionários da mesma, que desrespeitaram as nossas leis.” (CORREIO DO POVO, 17 abr. 1940, p. 5). O artigo ressaltava novamente a importância de terem perfil de agricultor e que os imigrantes seriam bem-vindos, característica essa que correspondia a uma minoria da população judaica. Principalmente no ano de 1940, momento no qual as necessidades imigratórias eram marcadas pela urgência, em função das intensas perseguições na Europa, o que tornava ainda mais inviável a possibilidade do imigrante judeu agricultor aqui se instalar. A maioria dos registrados estrangeiros como nascidos no Brasil são russos – judeus russos – O Dr. Muniz Reis detalha tudo com a intenção de dar às altas autoridades policiais uma visão exata dos fatos ocorridos. Assim registramos o seguinte: Em 04 de março do corrente ano a Delegacia de Polícia de José Bonifacio, enviou em juízo a investigação policial em que o russo Jacob Kippel, com a conivencia do escrivão Eugenio Spanzerla e de Domingos Galeska, registrou como nascido no Brasil os seus filhos Aarão, Mauricio e Brunilde; no dia seguinte aconteceu o mesmo com Leonardo Golberg, que se registrou como brasileiro, no dia 14 de março, as russas Helena e Gara, filhas de Leonardo Golberg, também foram denunciadas a justiça. (CORREIO DO POVO, 17 abr. 1940, p. 5). MÉTIS: história & cultura – LIA, Cristine Fortes – v. 11, n. 21, p. 369-379 375 Além de registrarem a si próprios e aos seus filhos como cidadãos brasileiros, os judeus russos citados no periódico também costumavam casar várias vezes, com o intuito de abrasileirarem muitas mulheres. Foi o caso de Emil Bruxbaum, alto funcionário da ICA, que se casou duas vezes, em cidades diferentes, no Brasil com Alvine Auguste Prahman, tendo ambos se registrado como brasileiros natos. Nesse caso, a má-fé dos judeus não se evidenciava através da tentativa de enriquecer em função do destino dos indivíduos da mesma etnia, mas pela forma corrupta que desempenhavam suas atividades no Brasil, gerando, inclusive, uma forte desconfiança sobre a ICA. Aliás, em alguns periódicos, a desconfiança lançada sobre a ICA transformava-se em certeza de má-fé. É o caso do jornal Diário da Manhã, de Passo Fundo, que, apesar de muitas vezes publicar extensas matérias com elogios à ação da ICA naquela região, não poupou a organização judaica das mais duras críticas no episódio dos estrangeiros ilegais. Em 5 de abril de 1940, antecipando-se ao periódico da capital, o Correio do Povo, o Diário da Manhã publicou exaustivo texto, considerando a ICA como “uma das portas de entrada clandestina de estrangeiros no Brasil”. (DIÁRIO DA MANHÃ, 5 abr. 1940, p. 4). Segundo o mesmo, a organização e não apenas alguns funcionários como propunha o Correio do Povo, burlava as leis brasileiras, introduzindo judeus como turistas e depois os registrando como brasileiros natos, que, como tais, tratavam de, imediatamente, contrair núpcias, em maior número possível, seguindo a já citada fórmula de abrasileiramento de várias mulheres. Todas essas notícias sobre a formação de grupos criminosos entre os imigrantes judeus não se limitaram em construir uma imagem negativa sobre eles. A ideia sobre quadrilhas rendeu múltiplos processos para esses indivíduos. Coube à ICA a tarefa de neutralizar essa campanha. As publicações dessas notícias mobilizaram os funcionários da ICA, como evidencia a documentação da associação, arquivada e disponível no Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, na cidade de São Paulo. Na documentação da ICA desse período, encontram-se cópias das páginas dos jornais, como do Correio do Povo e do Diário de Notícias, que noticiaram o escândalo de corrupção da companhia colonizadora, o que demonstra o interesse da referida associação em ter conhecimento sobre o que se dizia sobre ela e os imigrantes judeus. Através dos periódicos gaúchos, em especial o Diário da Manhã, de Passo Fundo, a companhia colonizadora 376 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 369-379 , jan./jun. 2012 buscou desconstruir a ideia de funcionários corruptos e associação criminosa que estava sendo veiculada. Da mesma forma, a companhia colonizadora se empenhou em prestar auxílio jurídico aos imigrantes judeus. Muitos eram recolhidos à Casa de Correção de Porto Alegre, onde ficavam aguardando os advogados da ICA, pois, na ausência desses poderiam ser deportados ou expulsos do País. A documentação da companhia evidenciava essa preocupação com os membros da comunidade judaica, todo o cuidado em prestar a assistência necessária para evitar prisões e deportações. A própria companhia precisou recuperar sua imagem perante a Justiça e a sociedade, pois foi acusada de ser a mentora de muitas das quadrilhas que burlavam as leis imigratórias do Brasil. Depois de provar sua inocência, pediu a retratação dos periódicos que caluniaram a instituição, o que, no entanto, raramente aconteceu. Mas, com relação aos imigrantes acusados, a ICA conseguiu, na maioria das vezes, provar a falsidade da acusação que recaía sobre os mesmos e evitar maiores danos a tais pessoas. Os advogados eram contratados pela companhia e se mobilizavam de forma intensa na busca da documentação que isentava os réus das acusações. A importância desses defensores não se limitava ao fato de sua ação profissional nos acusados, mas também ao apoio que prestavam aos mesmos, trazendo notícias da família e esclarecendo que a ICA não desistiria de provar a falta de veracidade dos processos. Além disso, alguns acusados eram imigrantes recém-chegados ao Brasil e não possuíam domínio da Língua Portuguesa, o que dificultava o contato com indivíduos que não falassem seu idioma de origem. Os advogados da companhia falavam a língua dos réus, o que facilitava a defesa. Muitos dos imigrantes recolhidos à Casa de Correção de Porto Alegre tiveram seus processos comprometidos por ausência de comunicação com seus defensores, em função do idioma. Alguns imigrantes, em especial os alemães, chegaram a ser recolhidos ao Manicômio Judiciário por serem considerados insanos, em função de não se expressarem em Português. As tentativas desesperadas de se fazerem entender em outra língua foram interpretadas, na época, como insanidade. Outra preocupação constante da ICA era a questão dos danos morais contra a comunidade judaica. Em um período, o da Segunda Guerra Mundial, no qual as organizações judaicas visavam a alargar as cotas para avinda de novos imigrantes ao Brasil, era necessário esclarecer rapidamente MÉTIS: história & cultura – LIA, Cristine Fortes – v. 11, n. 21, p. 369-379 377 a população de que as acusações de grupos criminosos judaicos eram equivocadas. O que conferia grande agilidade nas ações da companhia colonizadora. Assim, os processos movidos contra as quadrilhas, enquadrados como crimes graves (já que eram ações contra a verdadeira brasilidade, ou seja, eram delitos contra a Nação), foram cautelosamente cuidados pela ICA, que se empenhou na defesa dos imigrantes judeus. Na maior parte das vezes, a companhia e seus protegidos saíram vitoriosos, já que os processos careciam de provas, e as investigações sobre documentos falsificados (acusação comum contra os judeus) raramente procediam. No entanto, não é possível minimizar os impactos dessas acusações de quadrilhas e de outros crimes dentro da comunidade. O medo das ações policiais e judiciais rondou os imigrantes judeus ao longo do período da Era Vargas. Por serem crimes contra a Nação brasileira esses processos eram, na grande maioria, enviados ao Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS), onde ficaram arquivados. Em função de uma série de fatores, como vários incêndios, uma parte significativa dos arquivos do DEOPS da época foi perdida; entre eles, alguns da comunidade judaica do Rio Grande do Sul. Mas o Arquivo Histórico Judaico Brasileiro de São Paulo conserva a documentação da Companhia Colonizadora (ICA), no qual muitas informações sobre as quadrilhas e seus processos estão preservadas e disponíveis. Esse diálogo com a documentação do Judiciário permite estudos importantes sobre as comunidades imigrantes, durante a Era Vargas, e sua relação com as ações policiais e judiciais da época. 378 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 369-379 , jan./jun. 2012 Referências Documentos utilizados Periódicos consultados: Documentação da Secretaria de Segurança Pública e da Casa de Correção de Porto Alegre: Matrícula dos presos recolhidos à Casa de Correção (de 1935 a 1939); Livro dos Sentenciados (de 1937 a 1939); Registro de condenados (de 1926 a 1948); Ofícios recebidos da Brigada Militar e do Exército (de 1939 a 1946); Registro de tratamento médico (de 1941 a 1945) – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. A Opinião Pública, Pelotas, de 1930 a 1945. Correio do Povo, Porto Alegre, de 1935 a 1945. Diário da Manhã, Passo Fundo, de 1937 a 1945. Diário de Notícias, Porto Alegre, de 1935 a 1945. Diário Popular, Pelotas, de 1930 a 1945. Documentação do DOPS. Pastas: Colônia Penal Agrícola (1942); Chefatura de Polícia e Repartição Central de Polícia de Porto Alegre (1939); Secretaria do Interior (1942); Relação de presos de nacionalidade alemã (1942); Documentação relativa ao DOPS e a elementos estrangeiros (1942) – Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul. Documentação da ICA (de 1938 a 1946) – Arquivo Histórico Judaico Brasileiro de São Paulo. MÉTIS: história & cultura – LIA, Cristine Fortes – v. 11, n. 21, p. 369-379 379 380 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 369-379 , jan./jun. 2012 A força do comércio na expansão urbana da zona colonial italiana The power of trade in urban expansion in the Italian Colonial Zone Vania B. M. Herédia* Resumo: A história do comércio na Região Colonial Italiana (RCI) no Nordeste do Rio Grande do Sul reflete os interesses das classes econômicas na ocupação do solo urbano e aponta para os conflitos existentes na história urbana da cidade. A organização do comércio em torno de uma forte associação de comerciantes assegurou a representação de seus interesses no Poder Público para a ocupação do espaço e construção da cidade. Os comerciantes aproveitaram as situações que lhe foram favoráveis, impulsionando o crescimento urbano, estimulando os colonos a produzirem em maior escala, não apenas produtos agrícolas, mas também artesanais, tendo em muitos processos a origem de indústrias. Investiram seu lucro em capital imobiliário e, dessa forma, foram agentes de mudança. A influência do comerciante, aliada ao seu espírito empreendedor, fez com que conseguissem regulamentar o comércio e propiciassem às colônias um crescimento econômico, melhorando a infraestrutura urbana, participando das Abstract: The history of trade in the Italian Colonial Region in the Northeast of the State of Rio Grande do Sul reflects the interests of economic classes in the occupation of the urban ground, and points out the conflicts existing in the city’s urban history. Organizing trade around a strong association of traders assured the representation of their interests in the public sector to occupy space and build the town. Traders took advantage of favorable situations, driving urban growth, stimulating settlers to produce on a larger scale not only produce but also handicraft, being many processes the very origin of industries later. They invested their profit in real estate capital and, this way, were agents of change. The influence of the trader allied with his/her entrepreneurial spirit enabled the regulations of trade and colonies to grow economically, improving urban infrastructure, participating in the decisions to expand the town and, consequently, interfering in collective lives. The economic history of Caxias do Sul Doutora em História pela Università degli Studi di Genova, Verona (Itália). Professora Titular no Centro de Ciências Humanas da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: vheredia@terra.com.br * MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397 381 decisões de expansão das cidades e, consequentemente, interferindo na vida coletiva das mesmas. A história econômica de Caxias do Sul comprova que a Associação dos Comerciantes acompanhou de perto tudo que dizia respeito às questões referentes à infraestrutura e ao desenvolvimento econômico da cidade. Desde a criação da associação ocorreu um movimento de organização do setor empresarial, sob a liderança dos comerciantes, com o intuito de formar uma representação de classe para mediar as relações entre os comerciantes, os industriais, o poder público e as instituições congêneres existentes em outros municípios. proves that the Traders Association followed closely everything respective to issues referring to the town’s infrastructure and economic development. Since the beginning of the Association there was an organization movement of the business sector under the leadership of traders with the purpose to build a class representation to mediate the relationship among traders, industry people, public sector, and congenerous institutions existing in other municipalities. Palavras-chave: Região Colonial Italiana; história econômica; imigração. Keyswords: Italian Colonial Region; economic history; immigration. Este estudo faz parte do projeto “Da Lei de Terras ao êxodo rural: a relação entre latifundiários, colonos, escravos e libertos na Serra Gaúcha (1850- 1950)”, que tem como objetivo analisar as relações sociais existentes na região da Serra Gaúcha, relacionando a ação dos comerciantes com o desenvolvimento econômico, na perspectiva historiográfica regional, a fim de avançar nos estudos realizados no Núcleo de Pesquisa “Imigração, Cultura e Região”. A história do comércio na zona colonial italiana, no Nordeste do Rio Grande do Sul reflete os interesses das classes econômicas na ocupação do solo urbano e aponta para os conflitos existentes na história urbana da cidade. A organização do comércio, em torno de uma forte associação de comerciantes, assegurou a representação de seus interesses no Poder Público para a ocupação do espaço e a construção da cidade. Os comerciantes aproveitaram as situações que lhe foram favoráveis, impulsionando o crescimento urbano, estimulando os colonos a produzirem em maior escala, não apenas produtos agrícolas, mas também artesanais, tendo, em muitos processos, a origem de suas indústrias. Investiram seu lucro em capital imobiliário e, dessa forma, foram agentes de mudança. A influência do comerciante, aliada ao seu espírito empreendedor, fez com que conseguissem regulamentar o comércio e propiciassem às colônias 382 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012 crescimento econômico, melhorando a infraestrutura urbana, participando das decisões de expansão das cidades e, consequentemente, interferindo na vida coletiva das mesmas. A história econômica de Caxias do Sul comprova que a Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul acompanhou de perto tudo que dizia respeito às questões referentes à infraestrutura e ao desenvolvimento econômico da cidade. Desde a criação da associação, ocorreu um movimento de organização do setor empresarial, sob a liderança dos comerciantes, com o intuito de formar uma representação de classe para mediar as relações entre os comerciantes, os industriais, o Poder Público e as instituições congêneres existentes em outros municípios. O estudo é de natureza descritiva e abrange o período que se estende de 1930 a 1945. As fontes utilizadas foram os relatórios dos intendentes municipais e as atas da Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul. O estudo aponta à força dos comerciantes na construção da cidade e da infraestrutura necessária para o desenvolvimento econômico da região. Ações dos comerciantes em benefício da cidade A crise mundial dos anos 30 do século passado, simbolizada pela queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque, trouxe muitas transformações econômicas para o Brasil. O País teve a possibilidade de voltar suas atividades produtivas para o mercado interno, adotando uma política econômica de substituição das importações. O modelo vigente substituiu o agroexportador e deu à economia brasileira condições propícias para o desenvolvimento econômico. Com a ausência de investimentos estrangeiros, restritos pela política nacional, os recursos nacionais se direcionaram para o mercado interno. O processo de “desenvolvimento para fora” foi substituído pelo “desenvolvimento para dentro”, e a sociedade agrária tradicional começou a se transformar numa sociedade urbano-industrial. De acordo com Ianni (1991, p. 30), o Rio Grande do Sul, “tradicional estado de economia periférica, fornecedor do mercado interno brasileiro, aparecia com um sentido preciso, colaborando para a estruturação deste novo modo de acumulação de capital”. Esse autor chama a atenção que a economia sulrio-grandense se caracterizava pelo setor agropecuário que fornecia produtos a baixos custos. MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397 383 Diante das mudanças econômicas e políticas ocorridas no Brasil, a Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul apoiou de forma irrestrita a posição de Getúlio Vargas para chegar ao poder. Os associados sempre tiveram uma relação amistosa com o governo do estado e, nesse momento, reconheciam a importância de Vargas na Presidência da República. A forma de governar, anunciada por Vargas, estava vinculada a um novo “estilo político e de um modelo econômico baseado num capitalismo nacional visando à substituição de importações”. (LOPEZ, 1987, p. 69). Segundo Machado, o apoio a Vargas havia começado ainda quando era presidente do Estado do Rio Grande do Sul em 1928. As relações que foram estabelecidas entre os comerciantes e o governo estadual “foram importantes para o desenvolvimento do município que, na ótica das classes empresariais, precisava confirmar a sua trajetória na busca de mercado nacional para os seus produtos”. (2001, p. 255). As mudanças no modelo econômico durante o governo Vargas e a política adotada, no sentido de dar maior apoio às indústrias consideradas “naturais”, por beneficiarem a matéria-prima local, como vinho, banha, conservas de frutas, óleos vegetais, produtos têxteis, farinha de trigo, entre outros, foram vistas como positivas para os comerciantes da região. Muitos dos produtos considerados naturais, produzidos por empresas locais, passaram a ter estímulo à sua produção e comercialização. Com isso, registrou-se o incremento das atividades comerciais e industriais de Caxias do Sul, o que ultrapassou rapidamente a capacidade produtiva instalada e, em consequência, surgiram problemas de energia elétrica e de transporte, pela falta de usinas, estradas e comunicações. As empresas de maior porte passaram a se ressentir dessas deficiências, comprometendo a própria expansão do setor fabril. Por outro lado, essa constatação provou que o Município de Caxias do Sul havia crescido, e isso representava a capacidade industrial que os empresários haviam instalado e o potencial que o município possuía. No Censo de 1930, foi constatado o acelerado crescimento da cidade e a diversificação que a mesma desenvolvia em sua economia, sendo que dispunha de 190 estabelecimentos industriais e de uma produção industrial orçada, naquela época, em R$ 5.496:792$500. Segundo dados oficiais da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, “a produção industrial cresceu rapidamente em confronto com a produção agrícola”. (HERÉDIA, 1997, p. 71). As deficiências na infraestrutura enfrentadas por algumas empresas do município refletiram-se na oferta feita por municípios de outras regiões 384 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012 para que as mesmas se transferissem para lá. Esses convites têm duas interpretações: a primeira, o crescimento econômico de Caxias do Sul e de suas empresas, e o segundo, as dificuldades de infraestrutura existentes no município, as quais eram de conhecimento dos empresários e que não acompanhavam o crescimento econômico correspondente, seja pela questão da energia, da telefonia, das estradas, seja pela questão dos impostos municipais. Essas deficiências na infraestrutura levaram as autoridades municipais a tomarem providências a fim de minimizar as dificuldades evidenciadas. O crescimento das atividades econômicas do município fez o intendente Thomas Beltrão de Queiróz solicitar à Companhia Telefônica Rio-Grandense melhorias nos serviços, para manter o contrato de exploração dos serviços telefônicos que o município mantinha desde 1912. O contrato tinha a duração de 30 anos e deveria vigorar até 1942. Diante das contínuas reclamações, o intendente municipal Thomas Beltrão de Queiróz decidiu solicitar à citada Companhia Telefônica a qualificação dos serviços. Essa companhia respondeu que atenderia à solicitação desde que fosse autorizado um aumento nas tarifas. Ainda na gestão de Thomas Beltrão de Queiróz que antecedeu às mudanças do modelo econômico brasileiro, o Município de Caxias do Sul identificava a necessidade de dois grandes investimentos para seu crescimento econômico: a ampliação da rede de transportes e o suprimento de energia. Dessa maneira, para resolver o primeiro – que dependia da administração do estado – o município sugeria melhoria nas condições do tráfego entre Porto Alegre e Caxias do Sul, bem como a abertura do “escoadouro de Torres, o sonho dourado dos habitantes de toda esta vasta e rica zona do Estado”. (RELATÓRIO DO INTENDENTE THOMAS BELTRÃO DE QUEIRÓZ, 1929, p. 16). O projeto para a construção de uma estrada para Torres ocorreu na reunião de diretoria da Associação dos Comerciantes, em 23 de agosto de 1931, quando a associação fundou a Associação das Estradas de Rodagem, sendo coordenada e dirigida por Dario Granja Santanna. A construção dessa estrada gerou muitos movimentos entre as classes empresariais para sua concretização, movimentos que, em cada década, se configuraram de forma própria, adequando-se às condições econômicas e políticas de cada governo. Quanto ao segundo, o suprimento de energia estava diretamente vinculado aos poderes locais. Foi pensado o aproveitamento da queda do MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397 385 rio Lajeado Grande, no Município de São Francisco de Paula, considerado como o manancial, que oferecia as condições mais apropriadas, para fornecer ao Município de Caxias do Sul energia mais econômica, levando em conta a distância, o vulto e o custo das obras a serem executadas. Esse empreendimento também foi adiado pela falta de proponentes e pelo fato de que o domínio das quedas e dos cursos-d’água intermunicipais dependia da autorização do estado por serem dele pertencentes. Algumas demandas, por muitas décadas, foram temas de discussão na Associação dos Comerciantes, entre elas as normas de funcionamento do comércio. Entretanto, na década de 30 do século XX, esse assunto retornou à pauta, uma vez que a política econômica instalada restringia a jornada de trabalho a oito horas diárias. (GOMES, 1979). Esse tema foi motivo de união de alguns comerciantes, que acreditavam na necessidade de uniformizar os horários de atendimento ao público. Apesar de muitos comerciantes não seguirem as regras estabelecidas, a associação, em 1933, resolveu definir um calendário de funcionamento do comércio local: De 1° de abril a 30 de setembro, as portas das casas comerciais deviam fechar às 18h30min e aos sábados às 20h; de 1° de outubro a 31 de março, o horário devia ser às 19h45min e aos sábados às 21h. Foi deliberado, também, sobre os dias santos e feriados em que o comércio deveria fechar: Corpus Christi, Natal, Sexta-Feira Santa, Dia de Finados, 1° de janeiro, 7 de Setembro, 15 de outubro e 15 de novembro. O comércio devia fechar a partir do meio-dia em: 6 de janeiro, 30 de outubro, 1° de novembro e 8 de dezembro e mais em 25 de agosto, sempre que houvesse festejos comemorativos ao Dia do Soldado. (A SSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1933, s.p.). A Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, na ocasião, apoiou a decisão dos comerciantes, tendo sido nomeado um fiscal para controlar o horário de abertura e fechamento das casas comerciais. (ASSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1933). As normas foram regulamentadas pela Prefeitura, através da Lei 5, de 1933. Outro tema de interesse, vinculado aos comerciantes, era a definição do aumento da linha de crédito com os gerentes locais de bancos em 386 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012 funcionamento na região. A crise econômica instalada a partir de 1930 afetou o estado, e o Município de Caxias do Sul foi atingido por uma crise financeira, causada pela falta de dinheiro nos bancos, deixando as empresas em dificuldades para prosseguirem com suas atividades produtivas. A busca de crédito nos bancos fez com que a associação reunisse os gerentes das agências bancárias locais para, juntos, solucionarem o problema do crédito. A reunião contou com os gerentes dos seguintes bancos: Banco da Província do Rio Grande do Sul, Banco Pelotense, Banco Popular do Rio Grande do Sul, Banco Nacional do Comércio, Banco do Rio Grande do Sul e Banco Porto-Alegrense. “Muitos foram os comerciantes e industriais que ficaram sem capital de giro e sem possibilidade de saldar seus débitos” (GIRON; BERGAMASCHI, 2001, p. 140), levando-os à falência e à perda de seus estabelecimentos. Em 1931, o governo brasileiro estabeleceu três decretos que refletiram mudanças no sindicalismo do País. Um deles, o Decreto 19.770, de 19 de março daquele ano, levou as classes empresariais a se reunirem para discutir formas de regularizar a sindicalização das classes patronais e operárias. Havia a necessidade de criar uma Comissão Mista de Conciliação das Classes Empresarial e Trabalhadora, destinada a fazer cumprir as disposições legais do trabalho. (ASSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1933). Esse decreto apresentava algumas restrições à atividade sindical, pois expressava “a efetivação de objetivos políticos do governo, ou seja, a criação de entidades que servissem de mediadoras entre empresários e trabalhadores, assegurando a plena execução da política da paz social”, como explica Martins (1979, p. 49). A associação, no que diz respeito às novas condições de trabalho, se posicionou diante das mudanças na legislação trabalhista. A jornada de oito horas de trabalho, o fechamento do comércio, a lei de férias, a legislação dos dois terços, a regulamentação do trabalho feminino e a criação das carteiras profissionais foram exigências legais que deviam ser cumpridas, e a associação precisava orientar seus associados. (O MOMENTO, 1934, p. 2). Alguns anos mais tarde, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) regulamentou de forma definitiva as exigências introduzidas naquele período. Entretanto, a associação havia criado uma infraestrutura para orientar seus associados e o fez por meio de seu serviço jurídico. A associação foi presidida em 1931 por Dante Marcucci, Marcos Fischer, Oscar Ludwig, Abramo Eberle, Alfredo Germani, Ângelo De Carli, João Arhends e Segundo Mandelli. MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397 387 Muitas ações importantes ocorreram em 1931, entre elas, a criação da primeira Festa da Uva, que ocorreu no prédio do Edifício Operário, em 1931, sob a responsabilidade de Joaquim Pedro Lisboa e de um grupo de empresários atentos à atividade econômica, baseada na produção da uva e em sua industrialização. A uva era um produto importante para a região, e divulgá-la passou a ser uma estratégia para ampliar o mercado, qualificar o produto e abrir portas para a exportação. A ideia de se fazer a Festa da Uva era, também, uma proposta de criar um espaço para apresentar ao mercado os produtos feitos na região. A exposição de produtos trazia consigo um aspecto que fazia parte das feiras, costume esse que os europeus tinham para estabelecer trocas. (BRAUDEL, 1996, p. 14). Essa festa provocou uma série de efeitos positivos para a economia do município, uma vez que, além da exposição de seus produtos, reconhecia a capacidade empreendedora de seus habitantes e o potencial de ampliar sua economia. Na história da cidade, esse ritual ocorreu anualmente, até o fim dos anos 30 do século XX, quando foi interrompido devido à situação econômica e política mundial decorrente da Segunda Guerra Mundial. O assunto referente ao vinho foi um tema que reapareceu em diversos períodos da história da associação. Afinal, o vinho havia se transformado no produto que caracterizava a economia da região, e os comerciantes não desistiam de defendê-lo dos falsificadores e dos interessados em desqualificálo. Diante dessa situação, a associação encaminhou pedido para criar um entreposto de vinho que pudesse se equiparar ao de Porto Alegre, com vistas a proteger os pequenos produtores e a enfrentar as questões derivadas dessa condição. Essa solicitação das cooperativas sul-rio-grandenses de vinhos representava os interesses de todas as cooperativas vinícolas da região. Diante do crescimento econômico do município, a Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul, junto com associados e autoridades municipais, começou uma campanha para a regularização do transporte para que permitisse a expansão do comércio, conforme já citado. A vinculação dos comerciantes à Viação Férrea e ao governo do estado passou a ser pauta frequente da associação na gestão de Ottoni A. Z. Minghelli. Esse empresário acreditava na possibilidade de conseguir trens noturnos que fizessem o percurso “Caxias – Porto Alegre e garantisse o transporte de passageiros para facilitar negócios, diminuir o tempo das viagens e também propiciar a possibilidade de circulação de mercadorias”. (ASSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1934).1 388 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012 O interesse pela oferta regular de trens entre a cidade e a capital foi tema de luta, que envolveu comerciantes, industriais e representantes do Poder Público municipal. O transporte férreo era uma garantia do escoamento da produção da zona colonial aos mercados. A criação do Departamento Varejista-Molhadista foi um acontecimento relevante à associação. Os comerciantes varejistas que buscavam uma solução mais efetiva para o comércio, no centro da cidade, resolveram fundar a Associação de Classe dos Pequenos Varejistas de Caxias do Sul, com o objetivo de defender seus interesses. A criação dessa associação estava sustentada na argumentação de que suas demandas seriam mais rapidamente resolvidas se participassem de uma associação mais forte, com toda infraestrutura montada. Esses motivos levaram os pequenos comerciantes a se inscreverem nessa associação, formando o mais novo grupo na entidade, tendo como consequência o fortalecimento da mesma. Ficou claro, entretanto, que os problemas dos varejistas seriam resolvidos na associação, por meio de estudos realizados por uma comissão permanente. Os comerciantes varejistas estavam preocupados com os maus pagadores, com o comércio clandestino, os sindicatos e as cooperativas que comercializavam, sem pagar impostos, entre outros assuntos. Diante de preocupações sérias, decidiram organizar um registro, denominado “Livro Negro”, no qual seriam anotados os nomes dos maus pagadores. Esse registro serviria de referência para os associados, que teriam acesso a ele, caso houvesse necessidade de oferta de crédito. A inclusão dos varejistas na associação conduziu ao estabelecimento de regras quanto ao comércio varejista, o que representou uma nova organização das regras de funcionamento do comércio e das condições de crédito. A associação assumiu a causa de combater o comércio clandestino, e foi formada uma comissão que defenderia os interesses do comércio varejista. Dessa maneira, foi criado o Departamento dos Varejistas-Molhadistas, ligado à associação, e as vendas a crédito foram regulamentadas. Por meio dessa regulamentação, foi discutida a possibilidade de os empresários pagarem seus empregados quinzenalmente, o que permitiria quitar os pagamentos sem prejudicar a categoria. Percebeu-se que havia problemas comuns decorrentes do não pagamento das contas, o que prejudicava a obtenção de novos créditos. A inadimplência sempre fora uma preocupação do comércio, e as soluções coletivas poderiam ser soluções para tais problemas. MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397 389 O regulamento do crédito previa que a sua abertura deveria ser solicitada ao Departamento dos Varejistas após o preenchimento de formulário, em que constassem o valor do crédito, o nome do requerente, a residência, a profissão e a atividade, o prazo de duração das compras, a forma e época de pagamento das compras e o nome do fiador. Previa, ainda, que a abertura de crédito dependeria da não existência de dívidas anteriores. Estabelecia que o crédito só seria concedido com a apresentação de fiador ou de garantias correspondentes. O regulamento chamava a atenção para o fato de que todos os “associados deverão colar nas cadernetas um exemplar deste Regulamento Geral de Vendas a Crédito”, a fim de demonstrar ao comprador as normas de crédito estabelecidas. Essa regulamentação foi uma demonstração da preocupação com o crédito na cidade e também com a definição das regras para o funcionamento do comércio varejista-molhadista. A discussão do crédito veio acompanhada de discussão em nível nacional, acerca do salário-mínimo. Para tal, a diretoria elegeu alguns empresários para participarem de comissão que representaria as atividades econômicas caxienses perante o Ministério do Trabalho. Ainda em junho de 1939, a cidade reclamou das condições dos estábulos dentro do perímetro urbano. Era ação frequente dos moradores dos municípios vizinhos (ou mesmo da zona rural) fazerem compras em Caxias do Sul, e a cidade necessitava de um local para os estábulos. A associação encampou essa luta com o delegado de Higiene, solicitando que, de maneira definitiva, fosse dada uma solução ao problema. Isso reflete os meios de transporte utilizados na época e as condições que os animais enfrentavam para se recuperar dos percursos, bem como das condições de higiene suportadas pelos moradores diante dessa condição. O Sr. João Scopel pediu que fosse aprovada a indicação referente à localização em pensões, dos animais de que se servem os colonos para vir à cidade fazerem suas compras. A Higiene não permitia que esses animais ficassem agrupados em lugar algum, nem mesmo nos dias chuvosos. Seria conveniente, portanto, lembrar àquele senhor se facilitasse nas pensões, a construção de abrigos, onde os animais sejam conservados, enquanto seus proprietários andam na cidade, tratando de seus afazeres. (ASSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES DE C AXIAS DO SUL, 1939, p. 51). 390 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012 A associação solicitou às autoridades sanitárias um estudo para resolver esse problema, pois perceberam as precárias condições que enfrentavam os colonos e seus animais, utilizados como meio de transporte na vinda para a cidade. O tema de discussão em 1940 foi a construção da Usina de Lajeado Grande, devido aos problemas que a cidade enfrentava quanto à energia elétrica. Como Caxias do Sul deveria receber a visita do presidente da República, Getúlio Vargas, a associação passou a se preocupar com assuntos ligados às antigas reivindicações da cidade. Acreditava que a construção da Usina de Lajeado Grande resolveria o problema energético; era necessário, portanto, organizar as reivindicações para apresentar ao presidente da República. (ASSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1940, p. 65). Esse fato foi uma demonstração que os problemas do município, no que diz respeito à infraestrutura necessária, não foram resolvidos, mas delegados aos futuros governos. A Associação dos Comerciantes e a Prefeitura Municipal de Caxias do Sul homenagearam um dos responsáveis pela construção da Estrada Federal BR-116, o engenheiro Iedo Fiuza, no Clube Juvenil, no dia 27 de outubro daquele ano. A estrada, que ligava o município à capital do estado e ao centro do País, foi considerada fator importante para o desenvolvimento econômico do município. A estrada, inaugurada em meados de 1941, incluía Caxias do Sul no Plano Rodoviário Nacional. O traçado original envolvia vários municípios, passava por Nova Petrópolis, São Francisco de Paula, São Joaquim, Lages, estando Caxias do Sul fora desse roteiro. Essa alteração do traçado refletiu a força da Associação dos Comerciantes e sua capacidade de articular, com as autoridades estaduais e federais, seu potencial, suas demandas e suas possíveis realizações. Dante Marcucci 2 havia argumentado ao presidente da República sobre a importância da referida estrada para esse centro industrial, uma vez que o mesmo sempre contribuíra para o desenvolvimento do estado e do País. Essa iniciativa havia começado ainda antes da definição do traçado. Segundo relato de Ary Zatti Oliva (PARLAMENTO, 1988, p. 14), houve grande “empenho de Dante Marcucci para que a estrada BR-2, hoje BR116, ligando Porto Alegre a Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, agora estendida de Sul a Norte do país, passasse por Caxias do Sul”. Quando o prefeito de Caxias do Sul soube que o projeto estava sendo providenciado pelo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, entrou em contato MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397 391 com o engenheiro Irineo Braga, para auxiliar, dando as informações necessárias. Entretanto, o percurso de Canoas até Nova Petrópolis estava estabelecido, mas ainda faltavam outras definições. A BR-2 deveria corrigir seu rumo, abandonando os contrafortes da Serra Geral, evitando seus vales e gargantas. [...] O novo traçado propunha que a BR-2 prosseguisse de Nova Petrópolis, fletindo a Leste, pelo divisor de águas, até alcançar os campos de São Francisco de Paula e daí, rumo norte, transpor o Rio Pelotas, demandando os campos de São Joaquim e de Lages, Santa Catarina. (OLIVA, 1988, p. 14). Esse episódio mostra a força e a garra dos políticos que administravam a cidade. Apesar de tantos motivos plausíveis contra o traçado que incluía a cidade de Caxias do Sul no projeto, o mesmo foi aprovado. Não venceu apenas a força política que superou a lógica de um traçado mais acessível, mais curto e mais econômico; venceu também a perspectiva do que representava Caxias do Sul para a economia do estado. Dante Marcucci, na mesma direção, ou seja, de envolver Caxias do Sul no traçado nacional de estradas, propiciou a construção da pista de pouso que oportunizou a criação do primeiro campo de aviação de Caxias do Sul. Esse fato, conforme narra Ary Zatti Oliva (1988, p. 16), teve a presença dos Diários Associados e fez parte da Campanha Nacional da Aviação. Essa iniciativa se efetivou com a doação do primeiro avião de Campanha, o Duque de Caxias. Essas ações mostram que a cidade estava presente no circuito nacional, e que seus dirigentes possuíam prestígio político e estavam atentos ao desenvolvimento nacional. Em 1943, a Associação dos Comerciantes buscava uma solução definitiva para a grave situação de abastecimento energético que enfrentava o estado. A reunião com o engenheiro Pedro Kerber, da Companhia Rio-Grandense de Energia Elétrica, visava a solucionar as questões referentes à energia elétrica. A primeira proposta sugeria fosse dividida a cidade em duas zonas: pela manhã uma receberia energia, e a outra, à tarde. Outra solução seria a construção de uma linha de emergência de Gramado e Galópolis para Caxias do Sul, para aproveitar o excedente de energia que Galópolis oferecia, por meio da Sociedade Anônima Companhia Lanifício São Pedro. A questão da energia elétrica continuou a preocupar os empresários, já que a cidade ressentia-se das precárias condições de abastecimento. A 392 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012 entidade não esperava da Companhia Rio-Grandense de Usinas Elétricas, em Caxias do Sul, uma solução, uma vez que as reclamações já haviam sido feitas. Foi constituída uma comissão, formada por Agostinho Panceri, João Leonardelli, Dinarte Soares e José Gazolla, com o objetivo de conversar com o prefeito, a fim de assumir medidas em conjunto com o governo do estado. (ASSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1945, p. 116). Percebeu-se que os problemas vinculados à infraestrutura continuavam, e que a entidade assumiu, historicamente, o papel de reivindicar em nome de seus associados e da própria cidade. Ainda na gestão de Dante Marcucci, o tema água voltou a preocupar o sistema público de abastecimento3 devido a uma forte seca. Diante desse impasse, a prefeitura propôs como solução algumas medidas técnicas, entre elas a construção de mais duas represas, o que ampliaria a capacidade de represamento de água, junto com o montante da represa Dal Bó, revisar a tubulação da represa Maestra, a fim de verificar os motivos pelos quais a mesma não cumpria com o previsto em seu projeto e “levantar a muralha de contenção da represa Dal Bó à altura necessária para decuplar o armazenamento”. (OLIVA, 1988, p. 14). A realização dessas propostas oportunizou a Caxias do Sul a oferta de água por meio das três represas assim denominadas: São Pedro, São Miguel e São Paulo. A Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul, na metade do século XX, encerrou mais um ciclo de sua história, que se alternava com a mudança do governo federal, com as mudanças estruturais no modelo econômico brasileiro e com a decisão de alguns associados de fundarem, em Caxias do Sul, uma delegacia do Centro de Indústria Fabril, a qual pudesse representar apenas os interesses da indústria e não mais o de todas as atividades econômicas integradas. Essa intenção se concretizou quando, em 1951, diversos empresários fundaram o Centro de Indústria Fabril, que separava os interesses do comércio dos da indústria. Vinte anos mais tarde, esses empresários voltaram a se fundir, acreditando que uma associação forte ajudaria a desenvolver as atividades econômicas do município e eles fortaleciam por meio da união. Considerações finais A história econômica de Caxias do Sul comprova que a Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul acompanhou de perto tudo que dizia respeito às questões referentes à infraestrutura e ao desenvolvimento MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397 393 econômico da cidade. Além de defender os interesses econômicos de seus associados, defendeu sempre os interesses da cidade. É oportuno recordar que a economia desse município seguiu o processo de desenvolvimento dos primeiros núcleos coloniais europeus no estado onde o processo inicial de crescimento deu-se com atividades extrativas, sustentadas no desmatamento e na agricultura de subsistência, seguida pela agricultura comercial, especializada na produção de gêneros alimentícios. O comércio colonial reflete a organização dos núcleos como interpostos entre a colônia italiana e a capital do estado. Do capital comercial, houve um direcionamento à formação da indústria e sua expansão. A Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul sempre contou com a presença de líderes econômicos e políticos que demonstraram, em suas ações, o verdadeiro papel de agentes sociais, marcando a vida econômica de Caxias do Sul e do Estado do Rio Grande do Sul. Esses homens acreditaram na importância da agremiação como forma de união, de força e de representação. A associação nasceu da necessidade que os comerciantes do município enfrentaram para equacionar seus problemas e resolvê-los como categoria. Entretanto, ao longo de sua história, assumiu ela um papel reivindicatório, de representação dos interesses não apenas dos comerciantes, mas também da cidade. Constata-se, nessa trajetória, que a cidade cresceu e se desenvolveu graças ao espírito empreendedor de seus habitantes que sempre acreditaram no seu potencial desde a sua formação. A associação foi sempre uma instituição que interferiu nas decisões fundamentais do desenvolvimento das economias local, regional e nacional. Na defesa dos interesses de seus associados, promoveu um contínuo diálogo com as instituições públicas e privadas, revelando suas crenças na promoção do crescimento econômico da cidade. Sua atuação reflete a ligação que se estabeleceu com as diversas instâncias do poder e das classes produtivas. As lutas políticas lideradas pela associação mostram o poder que a mesma construiu ao longo de sua história e das estratégias que utilizou para vencer suas causas e defender os interesses de seus associados. Desde sua criação, foi defensora das causas econômicas da categoria, assumindo os problemas da agricultura, principalmente porque esses afetavam diretamente o comércio local. A questão do vinho foi, por várias décadas, motivo de preocupação por parte da entidade. O vinho era um produto de exportação e, por inúmeras circunstâncias, era acusado de ser um vinho falsificado, o que levou a associação a tomar uma série de medidas, inclusive 394 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012 com o governo do estado na defesa do produto. Mais tarde, várias ações foram realizadas para garantir a qualidade do vinho que era produzido. Além do vinho, também procurou discutir e pressionar as autoridades públicas para a melhoria da infraestrutura. As condições precárias das estradas afetavam a exportação dos produtos para outros estados, e a luta por melhores meios de transporte e a abertura de estradas e melhorias nas já existentes foi uma constante. A conquista da estrada de ferro fez com que o comércio tivesse à disposição uma forma de escoar os produtos da zona colonial. A estrada de ferro, que ligava o Município de Caxias do Sul à capital do estado, passava por São João de Montenegro. Por muitas décadas, foi o meio de transporte mais seguro para os comerciantes, acompanhando o modelo de substituição das importações, enfraquecido nos anos 60 do século XX, devido à troca pelo transporte rodoviário. A regulamentação do comércio, o horário de funcionamento das casas comerciais, o fechamento nos feriados, domingos e dias santos, a presença do comércio ambulante, a fiscalização pelos órgãos públicos da ação dos mascates e a criação do Departamento Varejista-Molhadista foram ações que a citada associação promoveu após muitas discussões com seus associados. Sempre preocupada em defender o comércio, criou mecanismos em defesa do crédito e de garantias para diminuir a inadimplência. A Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul foi um instrumento de defesa dos interesses da zona colonial italiana no Nordeste do Estado do Rio Grande do Sul, e que contribuiu para a consolidação desse setor econômico pela sua capacidade de articulação política com as diversas esferas do Poder Público e com os distintos setores privados. Ajudou na construção de espaços de conhecimento e reconhecimento acerca do potencial que a cidade oferecia. A intervenção da categoria, na definição dos espaços públicos e privados, como forma de representação do poder que esses possuíam, foi uma demonstração de sua capacidade produtiva. MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397 395 Notas A associação foi presidida por Ottoni A. Z. Minghelli de 1935 a 1944. A Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul fundada em 1901 modificou seu nome em 1939, passando a chamar-se Associação Comercial de Caxias. (HERÉDIA, 2007, p. 53). Em 1963, a associação altera seu estatuto e modifica novamente sua denominação, passando a chamar-se “Associação Comercial e Industrial de Caxias do Sul”. (HERÉDIA, 2007, p. 65). 1 396 Dante Marcucci foi prefeito de Caxias do Sul durante 11 anos, tendo assumido o primeiro mandato em 1935. (ADAMI, 1963, p. 185). Antes de ser eleito prefeito de Caxias do Sul, foi presidente da Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul, na gestão 1931-1933. 2 A Hidráulica Municipal foi remodelada na gestão de Dante Marcucci, uma vez que a data do início dos serviços remete a 1925. 3 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012 Referências ADAMI, João Spadari. História de Caxias do Sul: 1864-1962. Caxias do Sul: São Miguel, 1963. AHMJSA. ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL JOÃO SPADARI ADAMI. Relatórios dos intendentes municipais de 1924 a 1931. Caxias do Sul: [s.n.], 2011. ASSIS, Nelson. Festa da Uva de 1950. 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Este artigo tem como objetivo reconhecer, através da concepção de “maravilhas”, o patrimônio material e imaterial do Município de Caxias do Sul, presente no imaginário dos entrevistados. Para tanto, foram entrevistados 56 alunos do curso de História da Universidade de Caxias do Sul, que, no primeiro semestre deste ano (2011), estavam cursando as disciplinas: Realidade Educacional Abstract: The conception of beauty and cultural heritage has changed throughout the history of humanity. As far as the history of a town is reported, every present influence in this report must be taken into consideration. It is believed that the history of Caxias do Sul is represented by only one perspective which is the Italian immigration and its culture. In this social representation, which is often reinforced by the government, the aggregation of knowledge between one and another culture, and the influences of the global world are not taken into account. This article aims to recognize the material and immaterial heritage as a conception of the “wonders” of Caxias do Sul present in the interviewees’ imaginary universe. For this reason 56 students of History Undergraduate Degree at University of Caxias do Sul were interviewed. These students were carrying out the classes Brazilian Educational Reality, and Theoritical Foundations of Cultural Heritage * Aluna no curso de História da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: dbmaino@ucs.br. MÉTIS: história & cultura – MAINO, Daniela Barbosa – v. 11, n. 21, p. 381-397 399 Brasileira e Fundamentos Teóricos do Patrimônio Cultural. Foram elencadas sete maravilhas, e, a partir dessas, se procurou identificar se a sociedade atualmente incorpora os valores culturais da etnia italiana. A fundamentação do texto está baseada nos relatos dos entrevistados juntamente com uma pesquisa bibliográfica onde se aborda a história de Caxias do Sul, paralelamente com os conceitos de patrimônio e cultura. in 2011 first term. Seven wonders were listed and from them it was attempted to identify if society embodies the cultural values of the Italian ethnie. The text fundamentation is based on the interviewees’ repor t along with a bibliographical research where the history of Caxias do Sul and the concepts of heritage and culture are approached. Palavras-chave: patrimônio cultural; etnia italiana; representações sociais. Keywords: Cultural heritage. Italian ethnie. Social representation. A história de uma cidade pode ser vista através de diferentes ângulos, e uma das perspectivas que se pode utilizar são os bens culturais, os quais fazem parte do conceito de patrimônio cultural. Essa herança deixada por gerações anteriores permite não somente o contato com elas, mas interpretações das memórias presentes na sociedade em que vivemos. A história de Caxias do Sul vista por essa perspectiva retrata a trajetória de uma etnia que trouxe, segundo Tejo (apud HERÉDIA, 2010, p. 121) “uma tradição de trabalho e uma experiência das coisas que as gentes do Novo Mundo não haviam tido tempo ainda de adquirir”. Dessa forma, o presente texto tem como objetivo reconhecer através da concepção de maravilha o patrimônio material e imaterial do Município de Caxias do Sul, presente no imaginário dos pesquisados. Relacionando-os com a história da cidade e suas representações sociais, procuraremos identificar se a sociedade atual incorpora os valores culturais da etnia italiana. Através do curso de extensão “Escola e Pesquisa: um encontro possível”, o qual tem como objetivo fomentar a pesquisa em sala de aula, surgiu a oportunidade e o interesse de trabalhar o tema. Como a metodologia do curso está baseada no programa “Nossa Escola Pesquisa sua Opinião” (Nepso), vinculado ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o método utilizado será uma pesquisa de opinião. Portanto, essa foi direcionada aos acadêmicos do curso de História da UCS, que, no primeiro semestre de 2011, estavam cursando as disciplinas Realidade Educacional Brasileira e Fundamentos Teóricos do Patrimônio Cultural. Foram entrevistados 56 alunos, sendo que 65% dessa população-amostra encontramse na faixa de 17 a 24 anos de idade. Através de um questionário 400 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 399-410 , jan./jun. 2012 autoaplicativo buscou-se, mesmo que de maneira breve, perceber os bens culturais, que esses consideram importantes na cidade, e se a representação social que é constantemente reafirmada pelo Poder Público está presente na sociedade atual. A concepção maravilha foi somente um ponto de partida para que os entrevistados elencassem suas preferências e respondessem ao questionário de maneira descontraída, portanto não iremos nos aprofundar quanto à história e o significado desses artefatos. Porém a estrutura do texto será baseada em pesquisa bibliográfica onde será abordada a história de Caxias do Sul, paralelamente com os conceitos de patrimônio e cultura. A cidade Elencar as “Sete Maravilhas” de uma cidade como Caxias do Sul requer um cuidado muito especial, até porque muitas são suas maravilhas. “A palavra patrimônio está historicamente associada ou à noção de sagrado, ou à noção de herança, de memória do indivíduo, de bens de família.” (SANTOS, 2001, p. 43). “Sugere o professor francês Hugues de VarineBoham que o Patrimônio Cultural seja dividido em três categorias: os elementos pertencentes à natureza, os referentes ao conhecimento, e os bens culturais.” (LEMOS, 2004, p. 8). Considerando que este texto se preocupará em identificar os bens culturais da cidade, mesmo assim, a variedade de elementos que podem se enquadrar é muito ampla. Se utilizarmos a antropologia para definir cultura, Roberto DaMatta (1981) nos dirá que “cultura é um conjunto de regras que nos diz como o mundo pode e deve ser classificado”. Geralmente, quem lê a história de Caxias do Sul não deixa de perceber a escolha para evidenciar uma etnia, e o mesmo autor explica que “as regras apenas indicam os limites, o modo pelo qual elas se engendram novas combinações em situações concretas é algo que só a realidade pode dizer”. Diante de tantos fatos históricos e políticos que contemplam um país ou mesmo uma cidade, as representações sociais que se têm de uma localidade, na prática, nem sempre se reproduzem. Portanto, quando se questiona o que é o Patrimônio Cultural de um lugar, muitas perspectivas surgem, pois a realidade contrasta com a ideologia A história de Caxias do Sul começa a ser contada no ano de 1875 quando chegaram ao Rio Grande do Sul os primeiros imigrantes italianos, “um movimento populacional que se encadeou a interesses tanto do governo brasileiro quanto do italiano”. (IOTTI, 2010, p.13). MÉTIS: história & cultura – MAINO, Daniela Barbosa – v. 11, n. 21, p. 381-397 401 As maravilhas Citado por 23% dos entrevistados como a principal maravilha da cidade de Caxias do Sul, o Monumento Nacional ao Imigrante “representa as primeiras origens da colonização italiana”. (E1) Origens essas que estão arraigadas às representações sociais, que, ao longo dos anos, devido a diversos fatores sociais e econômicos, foram sendo reforçadas na mentalidade da população. Segundo Iotti a maioria das autoridades louvava as qualidades dos europeus, argumentando que sua introdução representaria um importante papel para o desenvolvimento do processo civilizatório na província e, conseqüentemente, no país. Entre as qualidades destacadas, estavam a disposição para o trabalho, o caráter morigerado, a índole pacífica e ordeira. (s.d., p. 3). De fato, a cultura italiana teve um papel importante na construção da identidade do município. Na época, o desejo de se tornar autossuficiente, o sonho da propriedade privada e o valor à terra caminharam paralelamente às necessidades de povoamento da região e do desenvolvimento da economia primária. Em um momento histórico em que o sentido do trabalho estava vinculado ao caráter de inferioridade, a etnia italiana não se importou com o preconceito em ser colono e, aos poucos, rompeu o paradigma existente. Dessa forma, o Monumento Nacional ao Imigrante é um Patrimônio Cultural que representa, justamente, essa transformação social, não no sentido de que outras etnias não fossem capazes de garantir os desenvolvimentos social e econômico da cidade, mas no sentido de priorizar e acreditar que o trabalho, e somente ele, transformaria sua situação social. A família, presente na simbolização, retrata que o desejo de vencer não era individual, todos, de alguma forma, contribuíram com essa ideologia. Assim, surge “o trabalho como o mito fundador da região”. (GIRON, 2007, p. 48). Caracterizado pelos entrevistados “por ter importância na região”, “por contar a história da cidade”, “por representar a origem italiana”, na fala de um deles, o Monumento Nacional ao Imigrante também é visto “como uma referência para outras etnias, e não apenas uma, a italiana, ou seja, todos os grupos sociais presentes na cidade”. Considerando que 55% dos entrevistados não são naturais de Caxias do Sul, isso nos leva a refletir que, tal ideologia da cultura italiana ao longo da história foi se incorporando na identidade de outras etnias e as pessoas que atualmente estão migrando de 402 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 399-410 , jan./jun. 2012 suas cidades em busca de oportunidades profissionais e financeiras, ao chegar em Caxias do Sul se identificam com o monumento, ou melhor, se identificam com o mesmo propósito dos imigrantes italianos, a independência econômica. Conforme Bergamaschi a propriedade da terra era aspiração máxima, meta pela qual deixaram a pátria natal. A propriedade dava-lhes a garantia contra a exploração de outros indivíduos, e ainda possibilitava ao grupo familiar a segurança contra a fome e a miséria, permitindo a mudança de antiga condição de servo para o de senhor de sua terra, ou seja, a da ascensão social. (2007, p. 19). A política que foi proposta em 1875 atendia às necessidades dos dois lados envolvidos. Atualmente, a cidade de Caxias do Sul recebe um número bastante significativo de migrantes por dia. No entanto, as necessidades da cidade não vão ao encontro do perfil dessas pessoas que estão se estabelecendo, e, apesar de a Prefeitura Municipal desenvolver uma política de incentivo a vários setores básicos como qualificação profissional, habitação, entre outros, esses programas não são suficientes para garantir o trabalho e a estabilidade financeira dos que chegam. Inaugurado em 1954, o Monumento Nacional ao Imigrante tinha como principal motivação a comemoração do 75º Ano de Imigração Italiana no RS, assim como a “Casa de Pedra”, como é conhecida popularmente, contemplou o Centenário de Caxias do Sul em 1975. A concepção de patrimônio se alterou ao longo da história, de construções grandiosas que representavam a manifestação do poder a elemento formador de identidade, a partir da Revolução Francesa. No Brasil, em meio a tantas obras e documentos destruídos, foi somente no século XX que a mentalidade de preservação começou a se manifestar, sendo “caracterizada pela transposição de elementos de composição arquitetônica de uma construção abandonada para outra”. (LEMOS, 2004, p. 36). Em 1925 surgiu, pela primeira vez, a preocupação em preservar os bens mobiliários, e, na década de 30 (séc. XX), motivado pelo projeto do escritor Mário de Andrade, foi sancionada a Lei de Preservação do Patrimônio Artístico Nacional, que, segundo Lemos MÉTIS: história & cultura – MAINO, Daniela Barbosa – v. 11, n. 21, p. 381-397 403 às vezes está ela designando a obra de interesse eminentemente estético, mas em grande parte do tempo está ligada ao artesanato. [...] No seu projeto, Mário de Andrade agrupava as obras de arte em oito categorias: arte arqueológica, ameríndia, popular, histórica, erudita nacional, erudita estrangeira, artes aplicadas nacionais e artes aplicadas estrangeiras. (2004, p. 38-39). Indicada como a segunda “Maravilha” da cidade, por 15% dos entrevistados, o Museu de Ambiência Casa de Pedra é um dos pontos turísticos mais frequentados da cidade (E2), “porque prevê uma das principais imigrações em Caxias do Sul” (E3) e retrata a cultura popular cotidiana dessa imigração. Esse patrimônio atendia à categoria de bens culturais que para Lemos (2004, p. 10) “englobam toda sorte de coisas, objetos, artefatos e construções obtidas a partir do meio ambiente e do saber fazer”. Na opinião de 50% dos entrevistados, para uma obra ou monumento ser considerado uma Maravilha, precisa representar a cultura local. Assim, o museu representa não somente o cotidiano da cultura italiana, mas a expressão de resgate das origens populares do País. De acordo com a lei aprovada em dezembro de 1937, a Casa de Pedra se enquadra na categoria de arte arqueológica, pelos seus instrumentos de trabalho e objetos de uso doméstico, na arte popular pelos variados artefatos, nas artes aplicadas onde se entende o mobiliário e a decoração. Embora a lei não tenha sido aplicada com o mesmo desejo e interesse com que foi escrita, ela significou uma transformação social, um novo olhar para o patrimônio. Nessa mesma linha, podemos citar a terceira Maravilha da cidade: a Igreja de São Pelegrino. A Igreja Matriz inaugurada no ano de 1953 é destacada por 13% dos entrevistados como o marco religioso da cidade. A igreja abriga pinturas e obras artísticas de grande importância para a história de Caxias do Sul. (E4) Entre elas se destacam a “Santa Ceia” que adorna as paredes e o teto, e os 14 quadros que retratam a Via-Sacra (CORREIO DO POVO, 2002). A arte do pintor italiano Aldo Locatelli contribuiu para que a Igreja de São Pelegrino fosse mais do que um espaço religioso, mas uma reafirmação dos valores cristãos. Segundo Oliveira os estudos acerca da obra do artista centram-se em grande parte, na sua produção de cunho religioso. [...] na Catedral São Francisco de Paula, em Pelotas, e na Igreja de São Pelegrino, em Caxias do Sul, as pinturas elaboradas em ambos os templos são de 404 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 399-410 , jan./jun. 2012 fundamental importância para os estudos acerca da sacra sul-riograndense, dada a precisão técnica do trabalho e a capacidade de síntese do artista em representar todo um quadro de crenças e imagens próprias da comunidade católica. (2010, s.p.). Ao emigrarem para o Brasil (1875), os imigrantes italianos trouxeram a experiência de “uma nação recém-unificada, onde o Papa perdera o poder e o direito sobre os Estados Pontifícios, sendo também proibida aos católicos a participação na política”. (RELA, 2004, p. 32). Nesse novo contexto, Rela destaca: Os imigrantes italianos, […] a princípio, não possuíam um fator comum que os unisse. Recém-chegados eram tratados como estrangeiros. Porém, também, não se sentiam mais italianos, pois a recente unificação atingira suas convicções, quer políticas, quer religiosas. A língua também não servia como fator de agrupamento, pois os dialetos eram os mais variados. (2004, p. 15). A necessidade de unificação do grupo italiano e a associação à Igreja como um ponto de referência fizeram com que a etnia buscasse a “continuidade de sua vivência religiosa, praticada nas aldeias rurais da Itália”. (RELA, 2004, p. 31). Segundo De Boni (apud RELA, 2004, p. 15), “restou à religião atuar como elo de união entre eles: a quase totalidade confessava-se católica, e a fé católica forneceu-lhes os subsídios indispensáveis para reiniciar, individual e coletivamente, a existência”. Entretanto, enquanto o cristianismo na Itália sofria uma inversão de valores com o Estado, aqui se procurava manifestar o domínio da Igreja Católica reforçando seus dogmas. Assim, a religiosidade se apresenta baseada em um processo de romanização, “a busca desse fortalecimento era primordial tendo em vista a necessidade de superar a predominância luso-brasileira na administração de Caxias”. (RELA, 2004, p. 16). Dessa forma, no imaginário da comunidade, as pinturas de Aldo Locatelli representam a cultura local em sua plenitude, a religiosidade, o crescimento de Caxias. (E5). No entanto, mesmo que tenham sido concluídas décadas depois (1960), sua representatividade é de uma visão macro, de uma Igreja que exerce seu poder sobre o seu povo, de aspectos resgatados não somente da imigração italiana, mas de uma colonização anterior a essa, uma mentalidade europeia de colonização. MÉTIS: história & cultura – MAINO, Daniela Barbosa – v. 11, n. 21, p. 381-397 405 A religião assim como as festividades sempre estiveram muito presentes na realidade das cidades do interior. “O Começo de Tudo” foi em 1931, expor a uva e comemorar a colheita era seu objetivo. (MACHADO, 2001, p. 239). Passando pelos “100 Anos de Imigração”, chegaram à “Festa das Festas!”1 Uva, Cor, Ação! A Safra da Vida na Magia das Cores! Simboliza o espírito da sociedade atual que comemorará a próxima Festa Nacional da Uva. Indicado por 8% dos entrevistados como a quarta maravilha da cidade, os Pavilhões dessa Festa serviu de palco para a comemoração de mais de vinte edições. Inaugurado em fevereiro de 1954, é um lugar de convivência, encontro e celebração. (E6) Conforme Ribeiro (2002, p. 40), “o espaço da festa, embora preexistindo como área física, é um espaço construído ritualmente, [...] possui a extraterritorialidade do quotidiano e é, do mesmo modo que o tempo, um espaço utópico”. Em meio a um cenário urbano diferentemente dos primórdios, a Festa Nacional da Uva foi lentamente se transformando e se adaptando ao desenvolvimento econômico da cidade, assim como os pavilhões foram agregando particularidades necessárias para atender a diversos grupos sociais. Exemplos disso são o Espaço Multicultural, as Feiras Industriais e Artesanais que, além de receberem expositores de vários países, prestigiam a comunidade local. Outro espaço popular que se destaca são as Paradas do Ópera. Esses terminais de ônibus localizados no centro de Caxias do Sul atendem às regiões norte e oeste da cidade. Embora sejam, visivelmente, apenas paradas de ônibus, sua representatividade está relacionada a, pelo menos, três fatores importantes: diversidade cultural, expansão territorial urbana, e o memorável Cine Teatro Ópera. Para 4% dos entrevistados é um espaço que faz parte do cotidiano de milhares, de Caxias do Sul; (E7) e o fluxo de pessoas e a distribuição de trabalhadores, ao mesmo tempo que contrastam com as representações sociais da cidade, ilustram o esforço de todos em busca de realizações pessoais. É um espaço onde as relações culturais e sociais são visíveis e subverte a própria ideia de beleza, de grandiosidade, característica dos espaços oficiais. (E8) É nesse momento que se reconhece que a população caxiense é composta de vários grupos sociais. Atualmente, “as paradas” estão localizadas no centro da cidade, porém, em 1878, quando se deu o início da expansão urbana, esse local era uma quadra anterior, limítrofe a oeste,2 da cidade. Como Nascimento conclui em seu artigo (2010, p. 66) “o projeto de ocupação do espaço da sede de Caxias, organizado por Luiz Manuel de 406 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 399-410 , jan./jun. 2012 Azevedo, em 6 de dezembro de 1878, foi o embrião do crescimento da cidade. Primeiramente ela se expandiu para leste, depois para oeste”. Essa primeira expansão marcou territorialmente a cidade, criou-se uma linha imaginária dividindo-a, as Paradas do Ópera servem de ponto de referência dessa divisão, mas o fator mais significativo e o que gerou o nome dado a elas é a lembrança do Cine Teatro Ópera, que, após uma reforma em 1950, substituiu o cinema Apollo. Giron e Pozenato lembram que, com a reforma do prédio, mudaram também os frequentadores, Com o tempo, o cinema Ópera tornou-se um dos símbolos da cidade. As matinês eram concorridas, o mesmo ocorrendo com o “Dia da Dama”. As estréias de filmes aconteciam nos finais de semana e eram longas as filas de espera para entrar em uma das duas sessões que eram realizadas aos sábados e domingos.” (2007, p. 84). Em 1985 o prédio do Cine Ópera foi decretado de utilidade pública. A justificativa dada pelo prefeito era de que esse prédio “podia abrigar 1.800 espectadores sentados, número que a casa da cultura não comportava”. (GIRON; POZENATO, 2007, p. 87). Em meio a tantas outras justificativas, a população era favorável à sua preservação. A geração de estudantes da época devem se lembrar do “abraço” dado ao Ópera, mesmo sem ter a maturidade suficiente e o conhecimento necessário acerca de patrimônio. A mobilização que foi realizada nas escolas contribuiu para que o teatro permanecesse na memória de muitos adultos de hoje. Porém, em dezembro de 1994, um incêndio destruiu o que hoje poderia ser uma das “maravilhas” da cidade. Também com 4% dos votos, a Catedral Diocesana de Caxias do Sul foi indicada como uma das “maravilhas” da cidade. Localizada no centro da cidade, sua história está bastante relacionada com a Praça Dante Alighieri. Segundo Machado (2001, p. 286), o cumprimento das obrigações religiosas, aos domingos, vinha ao encontro da comercialização dos produtos na praça. Primeiramente conhecida como Paróquia de Santa Tereza, foi concluída em 1899, mas, posteriormente, passou por outras transformações devido ao rebaixamento da praça e, em 1947 recebeu a fachada atual. (MACHADO, 2001, p. 286). Além da contribuição religiosa, a Catedral também é um marco na cidade (E9) devido ao seu ambiente externo que incorpora aspectos do trabalho: o saber fazer. A troca de mercadorias na praça permitia o MÉTIS: história & cultura – MAINO, Daniela Barbosa – v. 11, n. 21, p. 381-397 407 contato do agricultor com o comércio, e esse contato, somado à presença da Igreja, fortalecia o grupo social. A sétima e última “maravilha” citada pelos entrevistados é a Universidade de Caxias do Sul (UCS). Sua contribuição refere-se à preservação e conservação do meio ambiente, pois abriga infinitas espécimes, no nível animal e arbóreo, além da privilegiada localização e vista. (E10) Contemplada sob essa perspectiva, a UCS realmente transmite esse sentimento de liberdade, sensação que não está vinculada somente à sua beleza externa, mas à liberdade interna, a satisfação do conhecimento. Fundada em fevereiro de 1967, atualmente sua atuação abrange cerca de 69 municípios. (SITE UCS, 2012). Indicada por 2% dos entrevistados, a UCS é um espaço em que se procura construir novos olhares para a sociedade, sendo o conhecimento o ponto de partida para que se reconheça e respeite outras formas de cultura. Considerações finais No primeiro momento, a intenção desta pesquisa era reconhecer o processo de maturação e criticidade dos acadêmicos do curso de História da UCS. Acreditava-se que, ao ingressar na academia, o discurso dos estudantes estava baseado em um pensamento do senso comum, mas com o conhecimento da história, a visão do aluno passava por um processo de transformação, e aspectos como: religião, política e diversidade cultural adquiriam um novo significado. Entretanto, a pesquisa revela que o tempo para acomodação do conhecimento não é suficiente em um curso de graduação. A capacidade e a sensibilidade de relacionar o conhecimento teórico com os problemas sociais da atualidade exigem um exercício baseado em constantes questionamentos. O poder da mídia de influenciar o imaginário da população está muito presente nessa sociedade. Relacionados a essas hipóteses também se pretendia reconhecer o patrimônio material e o imaterial da cidade de Caxias do Sul. Elencamos sete “maravilhas” da cidade: o Monumento Nacional ao Imigrante, a Casa de Pedra, a Igreja de São Pelegrino, os Pavilhões da Festa Nacional da Uva, as Paradas do Ópera, a Catedral Diocesana e a UCS. Essas, respectivamente, são reflexos de sete princípios: o trabalho, a família, a religião, a festividade, a diversidade, as trocas e o conhecimento. A ordem de importância corresponde aos aspectos mais valorizados na cidade: o trabalho, a família e a religião – símbolos que não permitem a influência de nenhuma outra 408 MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 399-410 , jan./jun. 2012 cultura. Nas festas, lentamente, está se abrindo um espaço para outras comemorações, e isso também se relaciona com a necessidade de comercializar e atender à diversidade de grupos sociais. Já o conhecimento é destaque, mas não é prioridade na cidade, lembrando que essa mentalidade não se restringe somente ao âmbito do município; é, da mesma forma, uma prática nacionalista. Mesmo que de uma maneira breve, conseguiu-se apontar o patrimônio material que permeia a cidade, porém não foi possível identificar algo que poderia se tornar um patrimônio imaterial. Acredita-se que as representações fazem parte de um discurso superficial, pois as pessoas concordam com essas ideias sem questioná-las. O resgate cultural é importante na medida em que se tenha o conhecimento da história sem omitir a contribuição de outras etnias. Para que se identifique um patrimônio imaterial, é necessário que esse corresponda ao sentimento de pertencimento ao grupo. Lembrando que 55% dos entrevistados não são naturais de Caxias do Sul, se presume que a população atual incorporou os valores étnicos que se relacionam com a cultura italiana, porém não existe um elemento que a faz pertencente a esse grupo. Enquanto o conhecimento for a última representação social de uma localidade, a história continuará a ser vista sob a mesma perspectiva. MÉTIS: história & cultura – MAINO, Daniela Barbosa – v. 11, n. 21, p. 381-397 409 Notas 1 Entre aspas: temas da Festa Nacional da Uva de edições anteriores. 2 Limite oeste: Rua 20 de Setembro. Referências BERGAMASCHI, Heloisa. Propriedade e cultura regional. In: GIRON, Loraine Slomp; RADUNZ, Roberto. Imigração e cultura. Caxias do Sul: Educs, 2007. p. 17-36. DAMATTA, Roberto. Você tem cultura? Jornal da Embratel, Rio de Janeiro, 1981. GIRON, Loraine Slomp; POZENATO, Kenia Maria M. Cinemas: lembranças. Porto Alegre: Suliani, 2007. GIRON, Loraine Slomp; RADÜNZ, Roberto. Imigração e cultura. Caxias do Sul: Educs, 2007. GIRON, Loraine Slomp; NASCIMENTO, Roberto Revelino Fogaça do. Caxias Centenária. Caxias do Sul: Educs, 2010. HERÉDIA, Vania B. M. A economia imigrante no desenvolvimento da cidade. In: GIRON, Loraine Slomp; NASCIMENTO, Roberto R. F. Caxias Centenária. Caxias do Sul: Educs, 2010. p. 115-132. LEMOS, Carlos. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 2004. MACHADO, Maria Abel. Construindo uma cidade: história de Caxias do Sul 1875/ 1950. Caxias do Sul: Maneco, 2001. OLIVEIRA, Luciana da Costa de. A formação histórico-etnográfica do povo riograndense, de Aldo Locatelli: os entornos de uma produção muralística. Santa Maria: Anpuhrs, 2010. RELA, Eliana. Nossa fé, nossa vitória: Igreja Católica, Maçonaria e Poder Político na formação de Caxias do Sul. Caxias do Sul: Educs, 2004. RIBEIRO, Cleodes Maria Piazza Julio. Festa & identidade: como se fez a Festa da Uva. Caxias do Sul: Educs, 2002. SANTOS, Cecilia Rodrigues dos. Novas fronteiras e novos pactos para o patrimônio cultural. São Paulo: Scielo, 2001. IOTTI, Luiza Horn. Imigração e poder: a palavra oficial sobre os imigrantes italianos no Rio Grande do Sul (1875-1914). Caxias do Sul: Educs, 2010. Sites: IOTTI, Luiza Horn. Presidentes da província: a leitura oficial dos imigrantes italianos no Império. Caxias do Sul: Anpuhrs, s.d. <http://www.ucs.br/ucs/institucional/ apresentacao>. Acesso em: 7 set. 2011. 410 <http://www.cpovo.net/jornal/A108/ N35/PDF/Fim16.pdf>. Acesso em: 7 set. 2011. MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 399-410 , jan./jun. 2012 Política editorial e normas para publicação Objetivos: • Publicar e divulgar trabalhos inéditos e traduções relevantes na área de História e Cultura. • Proporcionar o diálogo acadêmico-científico sobre sua área de enfoque. Política Editorial: • A revista terá periodicidade semestral. • Será composta das seguintes seções: a) dossiê a respeito de temas relevante da História e da Cultura; b) artigos e ensaios diversos (livres); c) resenhas de obras recém-publicadas; e d) reprodução de fontes documentais impressas. • A revista será distribuída seguindo duas modalidades: a) online, na página eletrônica da Universidade de Caxias do Sul, na internet. b) impressão em papel. Direção A revista será coordenada de acordo com a seguinte estrutura: • Editoria; • Conselho Editorial; e • Conselho Consultivo. • A Editoria será composta por um editor-responsável e por dois editores adjuntos, escolhidos dentre os docentes do curso de História do Centro de Ciências Humanas/ UCS ou por eles indicados em assembleia. São funções da Editoria: a) responder pela execução e administração da revista; e b) convocar, quando necessário, reunião do Conselho Editorial. • O Conselho Editorial será composto pela Editoria e por até mais 10 (dez) integrantes indicados pela Editoria e aprovados em assembleia dos docentes do curso de História do Centro de Ciências Humanas/UCS. Compete aos integrantes do Conselho Editorial: • • a) contribuir na definição da política editorial; b) emitir, quando solicitados, dentro de sua competência acadêmica, pareceres científicos sobre as matérias enviadas para publicação; e c) atender, quando solicitados, à convocação da Editoria para reuniões. O mandato dos membros do Conselho Editorial será de 3 (três) anos, com possibilidade de recondução. Na falta de um ou mais conselheiros, a Editoria poderá indicar substitutos interinos ou efetivos. O Conselho Consultivo será formado de, no mínimo, 10 (dez) membros indicados pelo Conselho Editorial. Os integrantes do Conselho de Consultores deverão ser pesquisadores e professores com titulação mínima de Doutor e/ou possuir notório saber. Compete ao Conselho Consultivo: a) emitir parecer sobre os materiais enviados para publicação, quando solicitados pela Editoria e dentro de sua área de competência acadêmica; e b) colaborar com o Conselho Editorial na apreciação das atividades da revista. O mandato dos membros do Conselho Consultivo será por prazo indeterminado, obedecendo às conveniências da revista e do próprio consultor. • Normas para Publicação A revista publica artigos e resenhas em Português, Espanhol e Italiano. Serão aceitos, excepcionalmente, originais em Francês e Inglês; a publicação fica condicionada, nesse caso, à possibilidade de tradução. • Os artigos devem ser inéditos no Brasil e observar às seguintes características técnicas: extensão mínima de 10 (dez) e máxima de 25 (vinte e cinco) laudas; página A-4; fonte Times New Roman, corpo 12 e espaçamento duplo. • Os artigos devem conter título, resumo de até 10 (dez) linhas e 3 (três) palavraschave, todos em Português e Inglês. • As citações literais curtas – menos de 3 (três) linhas – são integradas no parágrafo, colocadas entre aspas. As citações de mais de 3 (três) linhas são destacadas no texto em parágrafo especial, a 4cm da margem esquerda, sem aspas e com fonte menor. • As notas devem ser referidas no fim do texto, não podendo consistir em simples referências bibliográficas. Essas devem aparecer no corpo do texto com o seguinte formato: sobrenome do autor em maiúsculas / vírgula / ano de publicação / vírgula / página ou páginas, separadas por hífen ou por vírgula, conforme o caso. (Ex.: WAGLEY, 1977, p. 160-162). • As referências devem seguir as normas da ABNT e ser elencadas após as notas, em ordem alfabética de sobrenome. • As colaborações devem ser postadas no site da Revista: www.ucs.br/etc/ revistas/index.php/metis • Ilustrações, figuras ou tabelas deverão ser enviadas em folhas separadas, numeradas e com indicação do local de sua inserção no texto. • As colaborações encaminhadas serão apreciadas pelo Conselho Editorial e pelo Consultivo, pelo sistema blind rewiew, com prazo de 60 (sessenta) dias contados da data do recebimento para resposta ao primeiro ou único autor. • Todos os textos serão submetidos a dois pareceristas. No caso de haver um parecer contrário, a Editoria enviará o trabalho a um terceiro consultor. • Os textos serão avaliados a partir de um formulário elaborado pela Editoria que tem como principais critérios de avaliação a forma e o mérito do trabalho, estabelecendo quatro níveis de recomendações: (a) publicar o texto na forma em que for apresentado; (b) publicar o texto, depois de cumpridas pequenas correções; (c) publicar o texto após revisão substancial; (d) rejeitar o texto. • Em casos especiais, a Editoria poderá enviar trabalhos específicos para pareceristas ad hoc, não integrantes de seus conselhos, observando a titulação mínima de Doutor e/ou notória especialização, bem como especialidade na área do trabalho em questão. • Será garantido o anonimato de autores e pareceristas no processo de avaliação dos trabalhos. • Serão aceitas resenhas de livros publicados (ou reeditados), no máximo há 1 (um) ano, em caso de edição nacional, e, no máximo, há 3 (três) anos, no caso de edição estrangeira. • As resenhas terão, no máximo, 5 (cinco) laudas e obedecerão ao mesmo formato dos artigos. Deverão, ainda, apresentar a referência completa das obras analisadas, mas não devem conter título. • O envio dos trabalhos à revista implica cessão de direitos autorais e de publicação. Essa se compromete a informar os autores sobre a pertinência ou não de sua publicação. Os originais não publicados não serão devolvidos. • Sob o nome do autor que segue após o título, deve constar apenas sua afiliação institucional e país. • Pela publicação do artigo, o autor receberá 3 (três) exemplares da revista. No caso de resenha, o autor receberá 2 (dois) exemplares. • A revista aceita permuta com outras publicações da área de Ciências Humanas. 9 11 13 23 39 89 101 115 131 153 167 183 193 209 229 245 261 281 297 315 327 341 359 369 381 399 411