v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
v. 11, n. 21, jan../jun. 2012
MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012
1
EDITORIA
Luiza Horn Iotti
Universidade de Caxias do Sul, Brasil
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE
DE CAXIAS DO SUL
Presidente:
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Vice-presidente:
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UNIVERSIDADE DE
CAXIAS DO SUL
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Vice-Reitor:
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2
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UFRGS, Brasil
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Unilassalle
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Universidade de Caxias do Sul, Brasil
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Unicamp
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Universidade de Caxias do Sul, RS, Brasil
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Universidade de Passo Fundo, Brasil
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UPF, Brasil
José Octávio Serra Van-Dúnem
Faculdade de Direito/Universidade
Agostinho Neto / Angola
José Miguel Arias Neto
Universidade Estadual de Londrina, Brasil
Marcelo Bittencourt
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Núncia Santoro de Constantino
PUCRS, Brasil
René E. Gertz
PUCRS/UFRGS, Brasil
Silvio Marcus de Souza Correa
Universidade Federal de Santa Catarina
Tania Regina De Luca
Unesp
Vania Beatriz Merlotti Herédia
UCS/RS, Brasil
Zilda Márcia Gricoli Iokoi
USP
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
EDUCS
MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012
3
Capa: Thanara Schönardie
Foto da capa: Fernando Bueno (detalhe da fachada de um prédio na Praça da
Alfândega – Porto Alegre – RS)
Editoração: Traço Diferencial
Revisão: Organizadores e autores
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Universidade de Caxias do Sul
UCS – BICE – Processamento Técnico
M592
Métis : história & cultura / Universidade de Caxias do Sul – v. 1. n. 1
(2002). – Caxias do Sul, RS : Educs, 2011.
v. 11, n. 21 (jan./jun. 2012)
Semestral
Disponível também: World Wide Web (http://www.ucs.br/etc/revistas/
index.php/metis)
ISSN impresso 1677-0706
1. História. 2. Cultura. I. Universidade de Caxias do Sul.
CDU: 94
Índice para o catálogo sistemático:
1. História
2. Cultura
94
008
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4
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
Sumário
Apresentação / 9
DOSSIÊS / 11
Notas sobre os historiadores e suas
fontes / Notes on historians and their
sources / 13
Tânia Regina de Luca
O Direito Constitucional como
engenharia social no Brasil da
independência / The Constitutional
Right as social engineering in Brazil
during the period of independence / 23
Arno Wehling
O Judiciário e a dinâmica do sistema
coronelista de poder no Rio Grande
do Sul / The judicial power and the
dymanic of coronelist power system in
the Rio Grande do Sul / 39
Gunter Axt
O Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul e as fontes judiciais /
The Public Archive of the State of
Rio Grande do Sul and the Judicial
Sources / 89
Aline Nascimento Maciel
Camila Lacerda Couto
Centro de Memória Regional do
Judiciário: possibilitando pesquisas e
preservando a história de Caxias do
MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012
Sul/RS / The Regional Archive of the
Judicial System of the County of Caxias
do Sul: making research possible and
preserving the history of Caxias do Sul/
RS / 101
Luiza Horn Iotti
Fabrício Romani Gomes
Memória e suas implicações na vida
cotidiana: análise teórica / Memory and
its implications in everyday life:
theoretical analysis / 115
Roberta Lopes Augustin
Sérgio Augustin
A fotografia e o estatuto de “prova” na
investigação de paternidade: processos
da Comarca Caxias / The photography
and the law of “evidence” on the
paternity investigation processes in the
county of Caxias / 131
Anthony Beux Tessari
Um processo histórico em um processo
judicial / A case history in a judicial
process / 153
Thamyris Conceição Macedo
Caroline Barreto Oliveira
O Juízo dos Órfãos de Porto Alegre
como fonte para a história social / The
Juízo dos Órfãos of Porto Alegre as a
source for social history / 167
José Carlos da Silva Cardozo
5
Possibilidades de pesquisa no Centro
de Memória Regional do Judiciário:
inventários e arrolamentos nas
primeiras décadas do séc. XX /
Possibilities of research in the Regional
Center of Judiciar y Memory:
inventories in the firsts decades of the
20th century / 183
Paulo Afonso Lovera Marmentini
O Poder Judiciário em Rondônia / The
power of legal state of Rondonia / 193
Nilza Menezes
Condenados à forca: a escravidão e os
processos judiciais no Brasil / Sentenced
to be hanged: slavery and legal
proceedings in Brazil / 209
Olgário Paulo Vogt
Roberto Radünz
Corpo e maternalismo nos saberes
jurídico e criminológico / Body and
maternalism
in
Legal
and
Criminological knowledge / 229
Rosemeri Moreira
Atti di un processo per stupro: o
interrogatório
de
Artemísia
Gentileschi no olhar do gênero / Atti di
un processo per stupro: the interrogation
of Artemisia Gentileschi under the view
of gender / 245
Cristine Tedesco
A paixão como atenuante: crimes
passionais em Caxias do Sul nos anos
30 (séc. XX) / The passion as
6
attenuation: crimes of passion in Caxias
do Sul during the 1930’s / 261
Luiza Horn Iotti
Fabrício Romani Gomes
A conferência “O Divórcio” Jornal
Forense de Porto Alegre, do ano de
1932 / The conference “The Divorce”
– Journal of Forensic Porto Alegre the
year 1932 / 281
Marília Conforto
Gilberto Jacques Gonçalves
O Código Penal de 1890 e a
construção das relações de gênero, no
julgamento dos processos-crime de
homicídios, entre 1900 e 1940, na
Comarca Caxias / The Penal Code
1890 and the construction of gender
relations at trial processes crime of
homicide, between 1900 and 1940, at
Comarca Caxias / 297
Aquéle Hendz
Jônatas Herrmann Dornelles
Amásias, esposas e prostitutas: da
situação de vítimas ao papel de
transgressoras / Mistresses, wives
a n d p r o s t i t u t e s : f r om victims to
transgressors / 315
Daysi Lange
Poder Judiciário e fronteiras de gênero:
conflitos nos processos de investigação
de paternidade da Comarca Caxias
(1900-1950) / 327
Natalia Pietra Méndez
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
Seduzidas e desonradas: o discurso
nas fontes judiciais / Seduced and
dishonored: the speech in judicial
sources / 341
Elizete Carmen Ferrari Balbinot
Feminino e masculino: a presença das
mulheres no Poder Judiciário de
Rondônia / Male and female: the
presence of women in power of legal state
of Rondônia / 359
Nilza Menezes
A quadrilha de falsários: imigrantes
judeus nas ações policiais e judiciais da
era Vargas/ A gang of forgers: Jewish
MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012
immigrants in police action and lawsuits
in the age of Vargas / 369
Cristine Fortes Lia
A força do comércio na expansão
urbana da Região Colonial Italiana /
The power of trade in urban expansion
in the Italian Colonial Zone / 381
Vania B. M. Herédia
As “Sete maravilhas” do Município de
Caxias do Sul / The seven “wonders” of
the city of Caxias do Sul / 399
Daniela Barbosa Maino
Normas editoriais / 411
7
8
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
Apresentação
O ano de 2011 marcou os 10 anos de criação do Centro de Memória
Regional do Judiciário IMHC/UCS; em função disso, foi organizado o I
SEMINÁRIO DO CENTRO DE MEMÓRIA REGIONAL DO
JUDICIÁRIO: 10 ANOS DE HISTÓRIA com a finalidade de refletir,
conhecer, debater e divulgar a produção historiográfica produzida em todo
o país a partir da utilização de fontes judiciais.
Este número da Métis: história e cultura divulga as palestras e os trabalhos
apresentados nos seminários temáticos do evento, formando um dossiê em
torno da memória, da justiça e do poder. O primeiro grupo de textos traz
como eixo comum a discussão sobre a história do Judiciário. A respeito,
Tânia Regina de Luca discute as diferentes acepções atribuídas às noções de
documentos e fontes históricas, a partir do século XIX. Demonstrando como
o conceito de Constituição foi compreendido no Brasil, no período anterior
à independência, Arno Wehling trabalha com o Direito Constitucional
como uma ideia de “engenharia social” a partir da qual se modificariam
Estado e sociedade. Gunter Axt propõe uma reflexão sobre a relação entre a
Justiça e as especificidades da dinâmica do sistema coronelista de poder,
durante a República Velha, no Rio Grande do Sul. Os dois trabalhos
seguintes tratam das fontes judiciárias e sua preservação: Aline Nascimento
Maciel e Camila Lacerda Couto apresentam um histórico do Arquivo
Público do Estado do Rio Grande do Sul e o acervo do Poder Judiciário;
Luiza Horn Iotti e Fabrício Romani Gomes relatam a trajetória do Centro
de Memória Regional do Judiciário IMHC/UCS. Roberta Lopes Augustin
e Sérgio Augustin refletem sobre o conceito de memória a partir de leitura
que visa a alertar para a urgência de análise mais minuciosa das ciências
sociais. A fotografia como “meio de prova” em processos judiciais na
Comarca Caxias é o tema do artigo de Anthony Beux Tessari. Para além
das fotos, Thamyris Conceição Macedo e Caroline Barreto de Oliveira
analisam um processo administrativo para pagamento de precatório, oriundo
de uma ação ordinária, através do qual é possível reconstituir vários períodos
da história do Brasil e do Judiciário. Dentro da mesma linha, José Carlos
da Silva Cardozo apresenta o Juízo dos Órfãos de Porto Alegre como fonte
MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012
9
para a história social. Paulo Afonso Lovera Marmentini levanta possibilidades
de pesquisa no Centro de Memória Regional do Judiciário IMHC/UCS.
E, Nilza Menezes faz algumas anotações sobre o Poder Judiciário de
Rondônia, a partir dos documentos existentes no acervo do próprio poder.
No bloco de artigos seguinte, a questão de crimes e de gênero aparece
como objeto de pesquisa. Olgário Paulo Vogt e Roberto Radünz analisam
dois ritos processuais que condenaram ao enforcamento dois negros.
Rosemeri Moreira aborda o tema corpo e materialismo nos saberes jurídico
e criminológico. Cristiane Tedesco analisa um dos interrogatórios presentes
nos autos de processo-crime Strupi et lenocinij Pro Curia et Fisco requerido
por Orazio Gentileschi em 1612. Crimes passionais em Caxias do Sul nos
anos 30 (séc. XX) é o tema do artigo de Luiza Horn Iotti e Fabrício
Romani Gomes. Marília Conforto e Gilberto Jacques Gonçalves apresentam
a conferência “O Divórcio”, publicada no Jornal Forense de Porto Alegre,
em 1932. O Código Penal de 1890 e a construção das relações de gênero,
no julgamento dos processos-crimes de homicídios, entre 1900 e 1940, na
Comarca Caxias é a temática trabalhada por Aquéle Hendz e Jônatas
Herrmann Dornelles. Ainda tratando de gênero, Daysi Lange apresenta
parte do resultado da pesquisa “História e poder: discurso e práticas de
gênero no judiciário de Caxias do Sul, 1900 a 1950. Natalia Pietra Méndez
analisa o Poder Judiciário e as fronteiras de gênero, através de processos de
investigação de paternidade. Defloramento é o tema trabalhado por Elizete
Carmem Ferrari Balbinot. Encerrando o tema gênero, Nilza Menezes analisa
o papel das mulheres no Poder Judiciário de Rondônia.
Cristine Fortes Lia analisa o caso de uma quadrilha de falsários judeus,
através de notícias divulgadas na imprensa, ocorrências policiais e processos
judiciais. Vania Bratriz Merlotti Herédia aborda a força do comércio na
expansão da Região Colonial Italiana. E, finalizando, Daniela Barbosa Maino
apresenta o resultado de pesquisa sobre os patrimônios material e imaterial
de Caxias do Sul.
Com esse número da revista Métis, esperamos ter contribuído para o
debate sobre a temática em torno do Poder Judiciário, suas fontes e produções
recentes sobre o assunto.
Luiza Horn Iotti
Daysi Lange
Elizete Carmem Ferrari Balbinot
Organizadoras
10
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
Dossiê
MÉTIS: história & cultura – v. 11 n. 21, jan./jun. 2012
11
12
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
Notas sobre os historiadores
e suas fontes
Notes on historians and their sources
Tânia Regina de Luca*
Resumo: O texto objetiva discutir as
diferentes acepções atribuídas às noções
de documentos e fontes históricas, a partir
do século XIX, quando a história
constitui-se como disciplina. Trata-se de
evidenciar a centralidade dessa questão
para as diferentes concepções sobre a
produção do conhecimento nessa área de
conhecimento.
Palavras-chave: Documentos; fontes;
escrita da história.
Abstract: The aim of this text is to discuss
the different meanings attributed to
notions of historical sources and
documents from the nineteenth century,
when history was constituted as a
discipline. It is important to point out
the centrality of this issue to the different
conceptions about the production of
knowledge in this field.
Keywords: documents; sources; writing
of history.
Abordar a questão das fontes históricas1 é tocar no cerne da identidade
da disciplina, que se constitui como tal no decorrer do século XIX. De
fato, se a escritura de textos sobre as atividades humanas no tempo remonta
à Antiguidade, foi apenas no Novecentos que o saber histórico
institucionalizou-se, aspecto que não pode ser dissociado do fortalecimento
dos Estados nacionais, que precisavam forjar, em cada cidadão, o sentimento
de identificação para com a pátria.2 Nesse processo, o recurso a um passado
comum, a ser compartilhado e reverenciado por todos e cuja aprendizagem
deveria ser feita nos bancos escolares, constituiu-se num aliado essencial,
capaz de “inventar tradições” e estabelecer elos poderosos.3
A disciplina História que, na França, por exemplo, já se fazia presente
no Ensino Médio no início do séc. XIX, nasceu comprometida com esse
*
Unesp/Pesquisadora do CNPq. E-mail: trdeluca@uol.com.br
MÉTIS: história & cultura – LUCA, Tânia Regina de – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
13
projeto político e articulada com outras iniciativas no campo do patrimônio4
– o cuidado com os bens legados pelo passado, a preocupação com a
preservação, a fundação de museus, a organização e o trato dos arquivos –
terreno essencial de intervenção do Estado, que assumiu a responsabilidade
de inventariar, conservar e difundir o passado da nação, num amplo
investimento que demandava não apenas mão de obra especializada
(restauradores, conservadores, inspetores, arquivistas, bibliotecários), mas
um exército de funcionários que se ocupava de edifícios, palácios,
monumentos, museus, arquivos, bibliotecas, enfim, de um legado cultural
tido, ao mesmo tempo, como expressão da alma nacional, matéria-prima
da identidade coletiva e testemunho dos feitos de outrora, que cumpria
assegurar às gerações futuras. Não se pode perder de vista que tal investimento
– material e simbólico – visava a dar concretude à nação, em relação à qual
se exigia lealdade e adesão emocional dos habitantes, para o que contribuía
não apenas a história, mas também a geografia, a literatura e a língua
nacionais.
Vale destacar que o processo de alfabetização em massa exigiu em
contrapartida a formação de largos contingentes de professores e colaborou
para configurar novas especialidades profissionais, isso num momento em
que predominava uma concepção de ciência ancorada na noção de fato,
observação, experimentação, proveniente, sobretudo, da biologia e da física
newtoniana. Tratava-se, ainda, de um universo coerente, logicamente
explicável e dotado de verossimilhança com o cotidiano, muito diverso
daquele que emergiria no início do século XX. Os avanços tecnológicos,
por seu turno, podiam ser percebidos pelos cidadãos comuns,5 ainda que a
distribuição dos benefícios estivesse longe de se espraiar para muito além
da triunfante burguesia. Não admira, portanto, que predominasse o intuito
de aplicar às experiências humanas métodos semelhantes àqueles destinados
ao mundo natural.
É importante ter presente que os teóricos da história tiveram que
responder a um duplo apelo: preparar a mão de obra que deveria ensinar a
disciplina nas escolas, com o fito de formar cidadãos obedientes e
identificados emocionalmente com a pátria e, ao mesmo tempo, atender às
exigências da institucionalização desse saber, o que requeria a formação de
quadros especializados e treinados. Compreende-se, portanto, a urgência
assumida pelo delinear de regras, práticas e métodos tidos como capazes de
fornecer resultados seguros, ancorados no levantamento exaustivo de
documentos, submetidos à cerrada crítica, interna e externa, e apresentados
14
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 13-21, jan./jun. 2012
numa narrativa que se pretendia objetiva e científica. Tudo isso num ambiente
saturado de apelos à cientificidade, inclusive em face do estudo dos fenômenos
sociais, como bem atestam os exemplos de Comte e Durkheim.
Não é difícil encontrar exemplos na historiografia do século XIX que
atestem a preocupação de aproximar as práticas da nascente disciplina
daquelas das ciências dominantes. Assim, Hippolyte Taine (1828-1893)
prescrevia um caminho próximo da experimentação – “Permitir-se-á a um
historiador agir como naturalista: eu estava frente a meu assunto como
frente à metamorfose de um inseto” –; enquanto Fustel de Coulanges (18301889), por sua vez, insistia que “o melhor historiador é o que mais se atém
aos textos”, ademais de advertir que “a história não é uma arte, é uma
ciência pura, como a Física ou a Geologia [...]. Ela visa unicamente encontrar
fatos, descobrir verdades”.6
Ainda que sempre seja possível encontrar exemplos dissonantes, não é
demais afirmar que na constituição e institucionalização da disciplina História
preponderou uma tradição que tinha como horizonte desejável as práticas e
as conquistas das ciências da natureza. Recorrendo mais uma vez ao exemplo
francês, que atuou (e em alguma medida ainda atua) como espécie de
paradigma para os historiadores brasileiros, merece destaque os
procedimentos da escola metódica, que levou adiante a sistematização das
regras que deveriam presidir o trabalho do historiador profissional da segunda
metade do século XIX.
Registre-se, inicialmente, o esforço no sentido de desbastar a história
da intervenção de forças sobrenaturais, opiniões filosóficas, aportes da
imaginação e recursos retóricos, tudo em prol da objetividade, supostamente
garantida pelo cuidadoso arrolamento das fontes, submetidas à análise e à
crítica rigorosas. Tais princípios podem ser rastreados na Revista Histórica
(1876), inicialmente dirigida por Gabriel Monod e Gustave Fagniez, em
cujo manifesto-programa lia-se:
Sem ser uma recolha de pura erudição, a nossa revista só admitirá
trabalhos originais, e em primeira mão, que enriqueçam a ciência,
quer pelas investigações que serão a sua base, quer pelos resultados
que serão a sua conclusão, mas, ao mesmo tempo que se exigem
dos nossos colaboradores processos de exposição estritamente
científicos, em que cada afirmação é acompanhada de provas, de
envio às fontes e de citações, ao mesmo tempo que exclui as
generalidades vagas e os desenvolvimentos oratórios, conservaremos
na Revista Histórica um caráter literário.7
MÉTIS: história & cultura – LUCA, Tânia Regina de – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
15
História-ciência, que não abdica da qualidade da escrita – mas rejeita
o velho historiador-literato, aos moldes de Jules Michelet, que “hacía
depender su relato del genio personal, del estilo, de la capacidade evocadora, del
dramatismo de las escenas narradas, buscando provocar um determinado efecto
en el leitor [...], un creador del lenguaje” – e que insistia em precisar
procedimentos de investigação do historiador cientista,
que habrá de evitar expresamente las generalidades vagas y los
desarrollos oratorios, se empeñará en una investigación que
cualquier outro profesional podría realizar ateniéndose a las mismas
reglas, [...] que se atiene al universo discursivo en el que se inserta,
un universo ya creado y a cuyas reglas obedece.8
Investia-se contra a história-arte e, nesse movimento, era uma certa
concepção de narrativa que estava sendo excluída do campo do novo
historiador-profissional, que ansiava por afirmar a autonomia do seu saber.
Assim, surgiram manuais que apresentavam as regras que deveriam
orientar a prática historiográfica, cujo exemplo mais emblemático, na França,
foi o destinados aos estudantes do Ensino Superior, Introdução aos estudos
históricos (1898), escrito pelos professores da Sorbonne: Charles-Victor
Langlois (1854-1942) e Charles Seignobos (1863-1929). Na Alemanha,
por sua vez, já se contava com a vigorosa obra de Leopold von Ranke
(1795-1886), representante mais ilustre da chamada escola prussiana,
fundador do moderno método de ensino universitário e que não hesitava
em afirmar a dependência da ciência histórica em relação aos testemunhos
diretos e às fontes as mais autênticas.
Em que pesem as ponderações recentes sobre a apreensão extremamente
simplista e empobrecedora não apenas do citado manual, mas também das
demais obras de Langlois, Seignobos e Ernest Lavisse (1842-1922), para
ficar nos autores mais proeminentes e, portanto, destinatários dos ataques
mais virulentos,9 é inconteste que a escola metódica se pautasse pela precisão
vocabular, predileção pelo político, apego aos documentos, crença na
possibilidade de um conhecimento objetivo, do qual o sujeito guardaria
distância e autonomia em relação ao que pretendia compreender, aspectos
que se aliavam ao paradoxal perfilar dessa história, autoproclamada neutra e
objetiva, ao lado dos ideais, dos valores e das tarefas do regime republicano.10
Especificamente em relação às fontes, Langlois e Seignobos expressam, no
seu manual, a ingênua profecia segundo a qual a tarefa do historiador estaria
16
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 13-21, jan./jun. 2012
encerrada quando “todos os documentos tenham sido descobertos, depurados
e colocados em ordem” e não alertavam que
a história dispõe de um estoque limitado de documentos [...]. A
quantidade de documentos que existem, senão de documentos
conhecidos, está dada; o tempo a despeito de todas as precauções
que são tomadas atualmente diminui, sem cessar, tal quantidade –
que nunca aumentará... Os progressos da ciência histórica estão,
por isso mesmo, limitados.11
Tais observações soam particularmente estranhas aos praticantes
contemporâneos do ofício, familiarizados com as renovações trazidas pela
chamada Escola dos Annales, em suas diferentes gerações. O estandarte
empunhado pelos primeiros renovadores, Lucien Febvre e Marc Bloch,
tinha por ideal uma história aberta a questionamentos e problematizações
– o que deve ser entendido como abandono do político, da cronologia, dos
fatos e dados, tomados em si mesmos, da glorificação dos grandes homens
e seus feitos, da noção estreita de documento e do tempo curto do evento.
Tratava-se, agora, de abordar os fenômenos coletivos, as multidões e o
povo, personagem que roubava a cena antes reservada às personalidades
ilustres; de explorar a complexidade temporal, com seus diferentes ritmos e
durações, breves ou longas; de abandonar a superfície dos acontecimentos
em favor de estruturas profundas; de perscrutar o imaginário e as
mentalidades; de manipular grandes séries documentais, construir curvas e
gráficos; de apropriar-se dos múltiplos vestígios do passado em busca de
uma história econômica e social, com vocação totalizante.
No famoso Combates pela história, Fevbre investiu contra a fixação dos
metódicos pelos documentos escritos e propôs uma ampliação conceitual
que não conheceria recuos:
A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida [...], mas
pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos se estes não
existirem. Com tudo o que a engenhosidade do historiador pode
lhe permitir usar para fabricar seu mel [...]. Paisagens, telhas.
Formas de campos e de ervas daninhas. Eclipses lunares e cabrestos
[...]. Toda uma parte e sem dúvida a mais apaixonante de nosso
trabalho de historiador não consiste num esforço constante para
fazer falar as coisas mudas e fazê-las dizer o que não dizem por si
sós sobre os homens?12
MÉTIS: história & cultura – LUCA, Tânia Regina de – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
17
Tratava-se de substituir a história-narrativa, agora entendida como
sinônimo de história événementielle e tipificada pelas práticas dos historiadores
metódicos. A partir de perspectivas muito diversas daquelas vigentes no
fim do século XIX e se esforçando para delas se diferenciar, os Annales
reafirmavam a confiança numa história capaz de manipular instrumentos
próprios, alargar o campo de pesquisa e elaborar um saber seguro e
controlado por modelos de inteligibilidade. Ciência em construção, máxima
tantas vezes repetida e que indicava a confiança nos procedimentos de uma
disciplina solidamente instalada na estrutura universitária e na Educação
Básica.
Desde então, o percurso da historiografia evidencia que as renovações
nos âmbitos temático e metodológico fizeram-se acompanhar pela descoberta
de novas fontes ou, na bela imagem de Febvre, que os historiadores têm se
mostrado capazes de “fabricar seu mel”. Novas preocupações, a exemplo
dos estudos sobre as camadas populares e os excluídos (a chamada história
vista de baixo), das discussões sobre gênero (e não mais sobre sexo, com
sua conotação biológica), das mudanças na escala de observação com a
micro-história, das problemáticas colocadas pela abordagem centrada no
conceito de cultura, do renovado interesse pela biografia e registros dos
indivíduos comuns, das escritas de si, da história oral e das possibilidades
abertas pelas imagens, fixas ou em movimento, enfim a cada mudança
mobilizou-se um conjunto de vestígios do passado que antes não integravam
o horizonte dos historiadores.
Assim, não parece demais afirmar que sentidos, conteúdos, forma de
abordagem e mesmo entendimento do que sejam documentos históricos
atravessam o campo disciplinar e se constituem na pedra de toque das
várias correntes epistemológicas que tentaram (e seguem tentando) dar
conta da produção de conhecimento nesta área.
18
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 13-21, jan./jun. 2012
Notas
Cabe esclarecer que se denominam
documentos históricos os vestígios do passado,
longínquo ou muito próximo,
independentemente do seu suporte e/ou
natureza. Já os termos fontes históricas são
reservados ao conjunto de documentos
mobilizados pelo historiador no decorrer
de uma pesquisa. É por esse motivo que há
centros de documentação e não centros de
fontes.
1
Sobre a questão da construção da nação,
o nacionalismo e seus usos políticos,
consultar: ANDERSON, Benedict. Nação
e consciência nacional. São Paulo: Ática,
1989; FEBVRE, Lucien. Honra e Pátria.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998;
GELLNER, Ernest. Nações e nacionalismo.
Lisboa: Gradiva, 1993 e HOBSBAWM,
Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
2
Ver, sobretudo, HOBSBAWM, Eric J.;
RANGER, Terence. A invenção das
tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
A novidade e o significado do nacionalismo
foram magistralmente expressos pelo
conselho que uma camponesa italiana deu
ao filho, e que se constitui numa das
epígrafes do capítulo sobre o tema da obra
de HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios
(1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988. p. 203: “Schappa, che arriva la
pátria.”
3
4
TÉTART, Philippe. Pequena história dos
historiadores. Bauru: Edusc, 2000. p. 98,
assinala que em 1880, a disciplina História
já fazia parte do currículo escolar em todos
os níveis, desde o Ensino Fundamental até
o último ano do Médio, ademais de
lembrar que data da segunda metade do
séc. XIX a fundação das seguintes
instituições: École Pratique de Hautes Études
(1868), École Livre de Sciences Politiques
(1872) e École du Louvre (1881). Para uma
abordagem sistemática da questão do
patrimônio e dos monumentos históricos,
consultar: CHOAY, Françoise. A alegoria
do patrimônio. São Paulo: Edunesp, 2001,
especialmente Capítulo 4.
Sobre as inovações técnicas do período e
seu impacto no cotidiano, consultar:
BARRACLOUGH, Geoffrey. Introdução à
história contemporânea. São Paulo: Círculo
do Livro, s/d, especialmente o Capítulo 2,
e WEBER, Eugen. França: fin-de-siécle.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
5
Os textos citados foram extraídos de
TÉTART, op. cit., p. 93-95.
6
Apud BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé.
As escolas históricas. Lisboa: Publicações
Europa-América, s/d. p. 99. A respeito da
produção da chamada escola metódica,
consultar: DOSSE, François. A história em
migalhas: dos Annales à Nova História. São
Paulo: Ensaio; Campinas: Ed. da Unicamp,
1992, especialmente, p. 21 a 42.
7
PONS, Anaclet; SERNA, Justo. Apologia
de la historia metódica. Pasajes – Revista
de Pensamiento Contemporâneo,
Universidad de València, n. 16, 2005.
Disponível em: <www.uv.es/jserna/
PasagesLanglois.htm>. Acesso em: 15 jul.
2011.
8
A respeito das aludidas simplificações –
que devem ser compreendidas no âmbito
do combate empreendido pelo poder de
ditar as regras no campo historiográfico,
vencido pelos membros da chamada Escola
dos Annales, que acabaram por compor uma
caricatura depreciativa dos antecessores,
não raro reproduzida de forma acrítica,
sugere-se consultar, ademais do artigo
citado na nota anterior, REBÉRIOUX,
Madeleine. Preface. In: LANGOIS,
Charles-Victor; SEIGNOBOS, Victor.
Introduction aux études historiques. Paris:
9
MÉTIS: história & cultura – LUCA, Tânia Regina de – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
19
Kimé, 1992. p. 7-16; NORA, Pierre.
Lavisse, instituteur national. In: NORA,
Pierre (Dir.). Les lieus de mémoire: la
Republique. Paris: Gallimard, 1984. p.
247-289.
No prefácio da edição definitiva do Petit
Lavisse (1884), datada de 1912, o autor
da obra, destinada ao ensino de história
nas escolas elementares, alertava: “Se o
aluno não carregar consigo a lembrança viva
de nossas glórias nacionais, se não souber
que seus ancestrais combateram em mil
campos de batalha por causas nobres; se
não aprender que custou sangue e esforços
fazer a unidade de nossa pátria e em seguida
resgatar do caos de nossas instituições
envelhecidas, as leis que nos fizeram livres;
se ele não se tornar o cidadão
compenetrado de seus deveres e o soldado
que ama seu fuzil, o professor primário terá
perdido seu tempo.” Apud DOSSE,
François, op. cit., p. 41. Vale lembrar que
em 1895 a obra encontrava-se na 75 a
edição.
10
20
Apud SALIBA, Elias Thomé. Pequena
história do documento. As aventuras
modernas e as desventuras pós-modernas.
In: PINSKY, Carla; LUCA, Tania Regina
de (Org.). O historiador e suas fontes. São
Paulo: Contexto, 2009. p. 312.
11
Apud TÉTART, Philippe, op. cit., p.
111-112. Na mesma obra, Lucien Febvre
investiu contra o manual de Langlois e
Seignobos: “Por encima del libro lo que yo
ataco no es a un historiador, sino a una cierta
concepción de la historia; una concepción que
durante años, a través de sus fuciones, su
influencia personal y sus escritos, el señor
Seignobos ha defendido con potentes médios;
una concepción que yo rechazo con todo mi
ser y ala que considero responsable en parte
de esa espécie de descrédito, inhusto y
justificado a la vez, enque há caído con mucha
frecuencia la historia a los ojos de los laicos.”
Apud PONS, Anaclet; SERNA, Justo, op.
cit.
12
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 13-21, jan./jun. 2012
Referências
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consciência nacional. São Paulo: Ática,
1989.
HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios
(1875-1914). Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988.
BARRACLOUGH, Geoffrey. Introdução à
história contemporânea. São Paulo: Círculo
do Livro, s/d.
PINSKY, Carla; LUCA, Tania Regina de
(Org.). O historiador e suas fontes. São Paulo:
Contexto, 2009.
BOURDÉ, Guy; MARTIN, Hervé. As
escolas históricas. Lisboa: Publicações
Europa-América, s/d.
NORA, Pierre. Lavisse, instituteur
national. In: NORA, Pierre (Dir.). Les lieus
de mémoire: la Republique. Paris:
Gallimard, 1984. p. 247-289.
CHOAY, Françoise. A alegoria do
patrimônio. São Paulo: Edunesp, 2001.
DOSSE, François. A história em migalhas:
dos Annales à Nova História. São Paulo:
Ensaio; Campinas: Ed. da Unicamp, 1992.
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Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
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HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence.
A invenção das tradições. Rio de Janeiro:
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nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro:
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de la historia metódica. Pasajes – Revista
de Pensamiento Contemporâneo,
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Disponível em: <www.uv.es/jserna/
PasagesLanglois.htm>. Acesso em: 15 jul.
2011.
REBÉRIOUX, Madeleine. Préface. In:
LANGOIS, Charles-Victor; SEIGNOBOS,
Victor. Introduction aux études historiques.
Paris: Kimé, 1992. p. 7-16.
TÉTART, Philippe. Pequena história dos
historiadores. Bauru: Edusc, 2000.
WEBER, Eugen. França: fin-de-siécle. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988.
MÉTIS: história & cultura – LUCA, Tânia Regina de – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
21
22
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 13-21, jan./jun. 2012
O Direito Constitucional como engenharia
social no Brasil da independência*
The Constitutional Right as social engineering in
Brazil during the period of independence
Arno Wehling**
Resumo: O artigo procura demonstrar
como o conceito de Constituição foi
compreendido no Brasil, no período
anterior à independência. A ideia de uma
“engenharia social”, a partir da qual se
modificariam Estado e sociedade, foi
frequentemente uma derivação
esquemática do racionalismo mecanicista
e da física newtoniana. As variações do
liberalismo, num país com fortes
resquícios coloniais, provocou singulares
composições de inovação e arcaísmos.
Tornou-se uma espécie de “mística
constitucional”, que, desde logo, se
chocou com as realidades social e política.
Palavras-chave: Estado Liberal;
constitucionalismo; história do Direito;
liberalismo.
Abstract: This article focuses how the
concept of constitution was understood
in Brazil before independence. The idea
of a “social enginery” that support changes
both in the state and society, is usually a
derivation, in a very schematic way, of
rationalist mecanicism and newtonian
physics. Variations of liberalism and its
brazilian receptions, in a country with
strong colonial features, generate singular
deals of innovation and archaism. It
becames a kind of “mystical
constitucionalism”, that early strikes with
social and political reality.
Keywords:
Liberal
State;
constitucionalism; Legal history;
liberalism.
Edição revista, corrigida e aumentada do estudo “Constitucionalismo e engenharia
social no contexto da independência”, publicado na Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, n. 363, abr./jun. 1988 e em Pensamento político e elaboração
constitucional no Brasil: estudos de história das idéias políticas. Rio de Janeiro: IHGB,
1994.
**
Professor Titular de Teoria e Metodologia da História na UFRJ. Professor Emérito de
História do Direito e das Instituições na Unirio. Presidente do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. E-mail: wehling@globo.com
*
MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
23
A segunda metade do século XVIII corresponde, no mundo euroamericano, as transformações estruturais que se revelaram irreversíveis.
Fenômeno que filósofos e cientistas sociais de diferentes especialidades e
referenciais teóricos analisam sob as conceituações de revolução industrial,
revolução agrária e demográfica, ilustração, crise da sociedade estamental,
afirmação do idealismo e receio da metafísica, definição do paradigma
científico newtoniano ou constitucionalismo, revelam a complexa rede de
relações existentes nessas sociedades, nas quais parecia, ao menos pelos
padrões do Antigo Regime, ter se acelerado a história, exigindo de seus
contemporâneos um vasto programa de reforma social. (WEHLING, 1986,
p. 15-23;1984, p. 30-370.
No caso desse último, o que se procurava corrigir do Antigo Regime
era a própria organização da sociedade, que aparecia aos olhos de seus
críticos como estratificada por privilégios e direitos particulares, o que
impediria fossem executadas políticas gerais que contemplassem o seu
conjunto. Esses críticos voltavam-se contra a velha organização comunitária
e estamental vinda da Idade Média e à qual a monarquia absoluta “clássica”,
dos séculos XVI e XVII, apenas sobrepusera uma superioridade genérica e
não interventora. Tinham entre seus precursores imediatos na crítica às
antigas instituições sociais os defensores do absolutismo setecentista, os
primeiros burocratas que buscavam “tudo nivelar ante o Estado”, o que os
fazia, consequentemente, adversários daquele mundo social em que interesses
e direitos setoriais e regionais hostilizavam as tentativas de padrões e normas
gerais centralizadoras da “nova” monarquia.
O constitucionalismo, nessa perspectiva, é somente um ângulo da
questão. Ângulo, porém privilegiado, dada a globalidade de suas aspirações:
nada menos que, à luz dos fundamentos filosóficos e critérios
epistemológicos do racionalismo, procurar dar ordem ao caos, com o fim
de compreender os fenômenos e sobre eles atuar, de modo a definir a
estrutura estatal, a melhor forma de governo e a mais bem-direcionada
organização da sociedade. Redesenhar o estado more geometrico, orientar a
organização social no sentido de novos fins como o progresso e a felicidade e
identificar a forma de governo mais propícia a atingir esses objetivos passavam
a ser os traços desejáveis desse ente da razão criado nos laboratórios
intelectuais iluministas, o “constitucionalismo”.
Como se caracteriza o constitucionalismo, no momento em que se
difunde no Brasil? Há, pelo menos, três vertentes significativas. A
representada por Montesquieu fixava a identidade entre o governo misto e
24
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012
o princípio da separação de poderes, esse baseado no equilíbrio entre as
funções executivas, legislativas e judiciais. Ademais, afirmava o primado da
lei na ordem social e na ordem jurídica, o que garantia dois aspectos
importantes. No plano teórico, o intercurso entre as descobertas do mundo
científico e as preocupações com a reforma do mundo social, dotando
ambas as percepções de um instrumento conceitual comum, a ideia de lei.
No plano concreto da sociedade, destacava um elemento normativo entre
outros, exatamente a lei emanada de um órgão soberano central, que se
sobrepunha ou até anulava quaisquer normas concorrentes, como o costume,
os usos, ou a lei estrangeira – direito comum era um dos inimigos mais
visados. O primado da lei, instrumento genérico, determinante e mandatário,
tinha assim duplo respaldo: epistemológico e jurídico. Era, no período que
consideramos a versão mais difundida, praticamente confundindo-se com
o próprio constitucionalismo. (MONTESQUIEU, 1968, p. 160).
Ao final das guerras napoleônicas e com a redefinição institucional da
restauração, delineou-se uma segunda corrente, representada por Benjamim
Constant. À luz da experiência histórica da Revolução Francesa e
explicitamente voltada contra Rousseau e o jacobinismo, foi elaborada uma
teoria das garantias individuais, baseada no princípio de que os direitos
fundamentais – liberdade pessoal, religiosa e de imprensa e propriedade privada
– eram invioláveis, não podendo ser derrogados por ninguém, o que significava
clara limitação da vontade geral e da soberania do rei ou de uma assembleia
constituinte. (MATEUCCI, 1976, p. 35-40). Essa corrente encontrou também
adeptos no Brasil especialmente entre aqueles que defendiam a monarquia
constitucional, equidistante do absolutismo e da república.
Finalmente, a identificação do constitucionalismo com o Estado de
Direito veio da experiência histórica e das situações ocorridas nos estados
alemães durante o século XVIII, particularmente na Prússia. Por essa
interpretação, todos, do rei ao menos significativo súdito, eram elementos
do Estado, submetendo-se igualmente ao Direito, garantia-se ao cidadão
sua liberdade jurídica, com leis gerais das quais emanavam os direitos
subjetivos particulares. (BRUNNER, 1970, p. 205). As duas primeiras vertentes,
combinadas, parecem refletir melhor o constitucionalismo brasileiro naquele
período, bem como suas fontes.
Em qualquer das três vertentes, contudo, há como denominador comum
a premissa da Constituição como poderoso instrumento de ordenação das
instituições e direcionamento da sociedade – isto é, a premissa da instituição
como engenharia social.
MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
25
As bases do constitucionalismo, bem como do liberalismo político,
confundem-se no Segundo tratado sobre o governo, de Locke, e na experiência
institucional inglesa. Paralelamente, se desenvolveu a disseminação do padrão
newtoniano de compreensão do universo físico, cuja extrapolação para a
biologia ocorreu em 1730 (Lineu), para o estudo das sociedades com o
espírito das leis (1748), para a economia com Quesnay (1758) e Adam
Smith (1776). Por esse padrão, admite-se a autorregulação dos fenômenos
– físicos, biológicos ou sociais – sua estrutura sistêmica e mecânica e a
existência de leis deterministas.
Coube a Montesquieu reunir as bases políticas lançadas por Locke ao
padrão newtoniano, num programa que está definido no prefácio do Espírito
das leis, e que, frequentemente, tem sido obscurecido pelo interesse dos
especialistas em outros aspectos de sua obra. Aliás, aquela que é usualmente
destacada como sua contribuição principal – o princípio da separação de
poderes e o mecanismo de pesos e contrapesos (checks and balances na
ciência política norte-americana) nada mais é do que a aplicação do padrão
newtoniano de engenharia social – a autorregulação do sistema – aos
fundamentos do liberalismo inglês.
A partir de Montesquieu, a concepção difundiu-se, reproduzindo-se
entre os ideólogos do progresso como Turgot e Condorcet, chegando a ser
incorporada ao discurso político dos Founding Fathers da Revolução de
1776, como aconteceu com Franklin e Jefferson, quando das discussões
sobre o sistema político mais equilibrado – o unitário, o federativo ou o
confederado. O fecho desse tipo de interpretação, no qual se fundem um
axioma epistemológico – a crença na autorregulação dos fenômenos sociais,
um axioma metodológico – a admissão da cognoscibilidade desses
fenômenos por um instrumental de observação – e uma esperança de reforma
social – elaborar a melhor Constituição possível para ordenar a vida dos
indivíduos em sociedade – encontra-se na proposição da Idéias para a história
de um ponto de vista cosmopolita, de Kant:
Os homens tomados individualmente, e mesmo povos inteiros, não
imaginariam que, perseguindo seus fins particulares, de acordo
com seus desejos pessoais, e muitas vezes em prejuízo de outrem,
contribuem para o desígnio da natureza; desígnio que eles
mesmos ignoram, mas para o qual trabalham, como se seguissem
um fio condutor que favorecesse a realização. (WEHLING, 1984,
p. 31-32).
26
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012
O constitucionalismo, como todos os projetos iluministas de ação
social, introduziu uma cunha volitiva nesse processo que, embora visto de
forma determinista e por isso inexorável, poderia ser mais lento ou mais
rápido, de acordo com as resistências do meio social. Torná-lo o mais
racional possível, facilitando sua compreensão e adoção, de preferência
acelerando o ritmo da evolução histórica, foi um dos escopos do discurso
de revolucionários e reformistas dos dois lados do Atlântico.
Os produtos dessa engenharia social constitucionalista foram as cartas
americanas, de 1776; as francesas, de 1791, 1793, 1795 e 1815; as espanhola,
de 1812, a napolitana, colombiana, portuguesa e brasileira, entre outros
textos que podem ser lembrados. Não obstante as diferenças entre elas,
perspassou-as essa atitude comum de serem o ponto inicial de uma
reorganização da sociedade, tendo o Direito Constitucional como uma
importante ferramenta institucional.
O caso brasileiro e o problema do transoceanismo
A ideia de transoceanismo, cunhada por Capistrano de Abreu para
ironizar a importação e crítica de conceitos e modismos, aplica-se, de modo
cabal, ao processo de difusão do constitucionalismo no Brasil. Com efeito,
não parece ter repercutido no País a polêmica entre Thibault e Savigny, que
sintetiza bem o conflito entre duas visões do Direito: de um lado, a posição
racionalista, defendendo a exequibilidade de leis gerais e intemporais,
aplicáveis indistintamente a diferentes condições de meio cultural e tempo;1
de outro, o Direito Histórico, segundo o qual as instituições jurídicas não
poderiam nascer da pura razão, mas fluíam da experiência histórica dos
diferentes povos e comunidades.
Afonso Arinos de Melo Franco (1972), dentre outros estudiosos do
tema, já chamou a atenção para o servilismo e até à ligeireza que presidiram
a reprodução dessas fórmulas constitucionais de origem racionalista no
Brasil quando das discussões que levaram à Constituição de 1824.
Poder-se-iam exemplificar, sem nenhuma dificuldade, várias situações
anteriores como a influência sobre os conjurados mineiros (os Autos de
Devassa mostram inúmeras referências a Raynal, Rousseau, Voltaire e às
Leis Constitutivas dos Estados Unidos, essas em edição francesa); sobre os
membros da Sociedade Literária do Rio de Janeiro, em 1794 (as respostas
do futuro Marquês de Maricá nos Autos dessa Devassa são curioso retrato
invertido dessa influência); na Conjuração Baiana (onde o jacobinismo já
MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
27
demonstra sua influência) e na Revolução Pernambucana de 1817, onde o
manifesto denomina-se preciso, os revoltosos tratam-se por cidadãos, e as
instituições desejadas são as norte-americanas ou francesas. Isso ocorreu
também na própria época da independência, quando o monarca aceitou a
Constituição de Cádiz e admitiu previamente a Constituição portuguesa;
continuou nas discussões da Assembleia Constituinte, cujos Anais dariam
margem a uma criativa pesquisa sobre a maneira pela qual aquelas vertentes
do constitucionalismo europeu que comentamos foram absorvidas e
frequentemente combinadas, à luz dos interesses de grupos locais, sem que
surgissem soluções específicas para a organização política e social brasileira
e que contemplassem problemas essenciais, como os traduzidos por José
Bonifácio.
O próprio projeto “Antônio Carlos” seria uma compilação, realizada
em 15 dias, de várias Constituições, utilizando-se especialmente da
introdução da carta constitucional da Convenção, de partes dispositivas da
Constituição de 1795 e de elementos diversos das de Cádiz de 1814,
mostrando, assim, segundo Afonso Arinos, seu “caráter racionalista
nivelador”.2
Admitia-se como inquestionável aquela premissa sintetizada por Kant,
o que redundaria na tentativa de transformar o constitucionalismo num
jogo de regras matemáticas para organizar, more geometrico, a sociedade e o
Estado. A tese da engenharia social ganhou adeptos rapidamente no Brasil,
a ponto de nos anos que precederam à independência, praticamente admitirse como implícita ao liberalismo e ao constitucionalismo. Nos Estudos do
bem comum e economia política, de 1819, do Visconde de Cairu, talvez a
figura mais expressiva no processo de aggiornamento brasileiro com as
condições do mundo novo manchesteriano e pós-revolucionário, dizia:
O Universo criado é um Sistema, organizado de partes, que estão
em harmonia entre si, e com o Grande Todo, e é regido por Leis
Imutáveis da Ordem Cosmológica, que a Inteligência Eterna
determinou, e que invariavelmente se executam no Mundo Físico.
A constância e imutabilidade dessas leis é o fundamento de todos
os nossos conhecimentos. Entrando a espécie humana naquele
sistema, não pode deixar de ser sujeita a essas leis, e observá-las na
sociedade civil, para sua própria felicidade, e progressiva perfeição
de sua natureza. (1975, p. 177).
28
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012
Essa concepção encontra-se presente, claramente definida ou implícita,
em todos os embates do constitucionalismo brasileiro, com poucas exceções.
Além da importação de paradigmas políticos de base racionalista,
supostamente aplicáveis a todas as sociedades, como mostrou Afonso Arinos,
temos que esses paradigmas implicam a aceitação de um modelo
geometrizante da organização política – o que exigiria a elaboração de uma
arquitetura constitucional ainda mais defasada da realidade social, que
procurava enquadrar antes de interpretar.
Os exemplos dessa solução newtoniana, more geometrico, são
abundantes. Na Assembleia Constituinte, na sessão de 10 de julho de 1823,
em debate com Antônio Carlos e Martim Francisco, sobre a prioridade da
elaboração da Constituição sobre a apresentação de leis ordinárias, por
mais importantes que fossem, dizia Mariano Cavalcanti, aliás com
assentimento geral, que a Assembleia havia sido convocada para “cimentar
o edifício social, fazendo a constituição política”.3 A mesma concepção
encontra-se no art. 98, da Constituição de 1824, que definia o poder
moderador como a “chave de toda a organização política”, conceito extraído
de Benjamim Constant, que, por sua vez, o emprestara à arquitetura, com
o sentido de acabamento do cume da abóboda (clef).
A imagem arquitetônica assim extrapolada traduz bem o seu duplo
sentido: de autorregulação social e de teleologia do sistema político para
alcançá-la. Temos assim definida, no próprio texto constitucional, a crença
nas virtualidades de um delicado mecanismo político. A prática do
constitucionalismo reduzia-o à mera engenharia social, aliás baseada na
ótica europeia, cujos focos eram a destruição das instituições do Antigo
Regime e a superação da economia agrária. O transoceanismo de Capistrano
de Abreu, na geração seguinte, denominado por Oliveira Viana de “idealismo
da constituição”, pôde dar vazão a seu espírito crítico, alimentando a tese
das “ideias fora do lugar” ao longo do século XX.
Arcaísmos e transações
A confluência de dois mundos: o do Antigo Regime e aquele da
proposta constitucional, fez com que em muitas situações prevalecessem
soluções arcaizantes, em outras, tipicamente modernas e também de
compromisso. Nem todas as sociedades em que se deu algum tipo de
revolução eram integralmente revolucionárias, e nem todos os
revolucionários pautavam-se pelo mesmo ideário. Não seria necessário
MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
29
invocar o testemunho de Fernand Braudel, sobre o abismo entre ideias
progressistas e mentalidades retrógradas: a própria Revolução Francesa
demonstrou, várias vezes, o descompasso entre o revolucionarismo de alguns
setores das elites e o conservadorismo de alguns setores populares, fenômeno,
aliás, tardiamente valorizado em sua historiografia. Não seria necessário,
também, refutar o vício historicista, a Karl Popper, para constatar que a
mesma Revolução Francesa começou por uma revolta da nobreza e pela
convocação dos Estados Gerais, no modelo tradicional da legislação do
Antigo Regime, e não pela convocação de uma Assembleia Constituinte.
No Brasil de fins do século XVIII, a conjuntura política da qual o
constitucionalismo viria a ser um dos elementos principais ao lado da
ideologia liberal e da crise das instituições coloniais – balizava-se por três
modelos ou opções políticas visíveis pelos contemporâneos: a estrutura
institucional existente, que chamaríamos, como Silbert (1966, p. 1011) e
por empréstimo da França, do Antigo Regime, as modificações introduzidas
nessa estrutura pelo “despotismo esclarecido”, como o pombalismo em
Portugal, e a proposta constitucional-liberal. Já no primeiro quarto do
século XIX, o próprio desenvolvimento do processo revolucionário europeu
faria com que, em declínio as soluções absolutistas, se desdobrassem as
constitucionais-liberais em, pelo menos, duas: a liberal propriamente dita,
limitando a representação pelo voto censitário e a democrática, defensora
do sufrágio universal (e, na América, normalmente identificada com o
republicanismo).
Tomás Antônio Gonzaga exemplifica bem a transição desses dois
mundos: crítico do absolutismo na Conjuração Mineira, era autor do Tratado
de Direito Natural, no qual se afirma não a sua interpretação iluminista
vinda de Grotius ou Puffendorf, mas seus fundamentos tomistas, que eram
a doutrina oficial do Estado português. (Machado, 2004, p. 138). Mesmo
esse vivia tal ambiguidade: em 1785, baixava-se um alvará real disciplinando
a censura de livros e proibindo, entre outros, todos aqueles que divulgassem
princípios revolucionários reunidos sob a discriminação global de “seita
dos monarcômanos”, mas também aqueles que pregassem o despotismo
real em detrimento dos direitos natural e positivo – o que visava a combater
os excessos despóticos do Marquês de Pombal e de seus seguidores do
reinado seguinte, o de D. Maria I.4
Às vésperas da independência, 30 anos após a Conjuração Mineira e o
início da Revolução Francesa, repetiu-se, no Brasil, a tentativa de convocar
30
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012
as Cortes, pelas normas do Antigo Regime, como acontecera na França
com os Estados Gerais e na Espanha, com as Cortes de Cádiz. À vista dos
acontecimentos revolucionários em Portugal, o Rei D. João VI, pelo Decreto
de 18 de fevereiro de 1821, sob pretexto de que a futura Constituição a ser
votada pelas Cortes poderia não se adaptar no Brasil, convocou os
procuradores das Câmaras Municipais, ao estilo do Antigo Regime. A reação
da tropa portuguesa no Rio de Janeiro, apoiando o movimento do Porto,
obrigou-o não só a revogar o decreto, como a jurar previamente a futura
Constituição portuguesa e mudar o ministério.
Nem sempre, entretanto, no Brasil, a difusão do constitucionalismo
foi tão integral. Em 1821, no momento em que se discutiam as atitudes do
rei ante a Revolução do Porto, o ouvidor do Rio Grande do Sul, José
Antônio de Miranda, publicou a Memória constitucional e política, na qual,
embora admitindo o constitucionalismo e se mostrando atualizado com os
argumentos sobre o pacto social, a lei e a natureza dos governos, procurava
demonstrar que o recurso revolucionário ocorreu pelo desprezo que o
“despotismo ministerial” tivera sempre pelo sistema tradicional de
representação dos três estados – Nobreza, Clero e Povo – nas Cortes.
Tratava-se (como ocorreu à mesma época na América espanhola em diferentes
situações), de uma certa oscilação entre os princípios além-Pirineus, fossem
eles moderados, fossem eles jacobinos, e os princípios historicamente
arraigados do velho pactismo ibérico, no qual a sociedade se equilibrava
por uma série de compromissos dos estamentos e das corporações entre si e
com a monarquia.5
A Câmara Municipal de Campos, ao agradecer a D. Pedro I, em 1º de
junho de 1822, por ter aceito o título de “Defensor Perpétuo do Brasil”,
fé-lo pela convocação “da Nobreza, Clero e Povo para a sua satisfação elegeram
Procuradores que em seu nome levem à Augusta Presença os seus
agradecimentos”. (1973, p. 213).
Situações semelhantes repetiram-se na Assembleia Constituinte, quando
se fez valer o antigo Direito português no Brasil, ao se declarar que tinham
validade as ordenações, leis, regimentos, decretos e resoluções promulgadas
pelo rei de Portugal até 25 de abril de 1821,6 procedimento necessário para
que não paralizasse a vida jurídica do País; ou quando Carneiro de Campos,
o melhor jurista da Constituinte, na avaliação de José Honório Rodrigues
(1974, p. 273), defendia a tese de que a assembleia não era detentora
exclusiva da soberania nacional,
MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
31
pois nela não se achavam concentrados todos os poderes soberanos.
A soberania reside na nação somente, ela consiste na reunião de
todos os poderes [...]. A Nação [...] não nos delegou o exercício de
todos, concedeu-nos simplesmente o exercício do Poder Legislativo
com a comissão soberana e extraordinária de formarmos a
Constituição do Império do Brasil; e os poderes que recebermos
por esta extraordinária comissão não foram absolutos e ilimitados,
foram restritos à forma de governo que já temos e que nos deve
poderes não nos podiam ser delegados, estando já distribuídos e
depositados pela nação em outras vias, muito tempo antes da nossa
reunião e instalação.7
Transigia-se, assim, com as diferentes correntes de opinião e os interesses
opostos, na busca das fórmulas que permitissem viabilizar, na prática, o
constitucionalismo. O próprio sistema bicameral definido na Constituição
de 1824 era símbolo dessa transição, adotando-se o modelo definido por
Benjamim Constant: a Câmara, intérprete da opinião, e o Senado,
representante da tradição.8 Essa solução, que na Europa contemplara os
interesses remanescentes da nobreza e do Clero, contra uma Câmara de
maioria burguesa, no Brasil reforçaria os setores mais conservadores da
propriedade rural.
Esperanças e perplexidades
Não cabe, aqui, desenvolver a questão de se a independência foi uma
revolução, como quer a historiografia tradicional, ou se como foi definido
a partir de José Honório Rodrigues, tratou-se de uma contrarrevolução.
Podemos, entretanto, nos beneficiar da discussão, contatando a vitória de
um “centro político” que evoluiu de defensor do Reino Unido a adepto da
monarquia constitucional, isolando recolonizadores de um lado e
republicanos federalistas de outro. Ao aduzirmos a isto um “centro geográfico”
as províncias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro – e a liderança
dos proprietários rurais nesse processo, temos traçado os limites do
constitucionalismo brasileiro e justificado por que esta ou aquela fórmula
política foi preferida a outra qualquer.
O constitucionalismo brasileiro envolveu, conforme a ótica de seus
aderentes, um leque de esperanças que contemplava a liberalização do Estado,
o governo misto, o liberalismo econômico, a federação, a abolição da
escravatura e o sufrágio, censitário ou universal. No momento da
32
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012
independência, efetivaram-se apenas os três primeiros e o voto de qualidade.
Como se deu o processo?
A liberação do Estado era o cerne do constitucionalismo. Começava
pela identificação da soberania com a Nação e não com os poderes do
Estado. Impunha, ainda, que as leis, elaboradas pelo Legislativo, estivessem
acima da autoridade que as aplicava, no melhor espírito de Montesquieu.
Ambos os princípios, importados das cartas constitucionais citadas,
encontram-se longamente difundidos no Brasil, do Correio Braziliense à
Memória de Miranda, aos Anais da Constituinte ou à própria Constituição
de 1824. Nessa, o art. 179 era uma longa discriminação, tendo como
fundamento a liberdade, a segurança individual e a propriedade e se iniciando
pelo postulado segundo o qual “nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer
ou deixar de fazer alguma coisa, se não em virtude da lei”.
O governo misto e a separação de poderes, no constitucionalismo
brasileiro inspirou-se, além de em Montesquieu e Benjamim Constant, no
art. 16 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789, cuja influência no art. 9.º da Constituição de 1824 é flagrante.
Declaração
“Toda sociedade na qual a garantia dos direitos
não for assegurada, nem a separação dos poderes
determinada, não dispõe de Constituição.”
Constituição
Art. 9º. A divisão e harmonia dos poderes
políticos é o princípio conservador dos direitos
dos cidadãos, e o mais seguro meio de fazer
efetivas as garantias, que a Constituição oferece.
O liberalismo econômico presente no constitucionalismo brasileiro
foi particularmente forte e explícito, dada a recente experiência colonial.
Como suas aspirações vêm da conjuração mineira e encontram o teórico e
praxista por excelência em Cairu, os itens 22 a 26 do art. 179 da Constituição
de 1824 apenas sublinham o direito de propriedade (“garantido em toda a
sua plenitude”, “inviolável e sagrado”, na Declaração de 1789), a plena
liberdade de atividade econômica, a abolição das corporações e o estímulo
aos inventores.
MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
33
Era a “mão invisível” de Adam Smith que chegava ao Brasil, em meio
a uma explicitação da fé no mecanismo do universo e de sua repetição no
mundo das relações econômicas.
Finalmente, a representação política através do sufrágio foi adotada
nos moldes limitados das Constituições francesas de 1791 e 1785 e na de
Cádiz. O voto censitário, estabelecido pelo art. 82 da Constituição de
1824, excluiria os empregados domésticos, administradores de propriedades
rurais e fábricas, religiosos e os que tivessem renda líquida anual inferior a
100$000.
Poder-se-ia definir, portanto, o constitucionalismo brasileiro como
uma tentativa de engenharia social e política inspirada nos mesmos padrões
de suas fontes europeias. De modo semelhante à Europa, onde até a época
de restauração impusera-se a sua versão liberal e burquesa contra a democrática
e jacobina, também no Brasil essa versão seria vitoriosa adaptando-se, porém,
às circunstâncias locais.
Politicamente, o constitucionalismo brasileiro de 1820 revelou-se
incompleto em relação ao modelo original. Adotando de forma integral o
liberalismo de Locke e Smith, partiu da liberdade econômica pela qual
lutaram os proprietários rurais e comerciantes locais; combinando
Montesquieu e Constant, porém, faltaram as condições políticas para que
levassem às últimas consequências essas teorias, delineando mais cabalmente
as atribuições dos Poderes Moderador e Executivo (o que só ocorreria
muito mais tarde, com a adoção da presidência do conselho) e não colocando
em prática o “quinto poder” sobre o qual largamente se discutiu no
constitucionalismo europeu,9 o poder municipal. O temor ao federalismo,
à secessão e a aliança com os grupos que exerciam o poder nas capitais de
províncias pareceu explicar a não adoção desse procedimento.
Esses desajustes no mecanismo instituído pelo constitucionalismo,
contudo, foram de pequena monta, se comparados ao problema que ficava
por resolver: o da abolição da escravatura. Se na Europa a sua versão liberal
e burguesa postergou a questão do operariado, adiando a participação política
do quarto estado, no Brasil essa solução implicava negar direitos políticos
não só a escravos, mas também aos homens livres pobres ou em funções
discriminadas. Estes últimos, no entanto, não parecem ter sido o motivo
determinante: se examinarmos os documentos da Revolução Pernambucana
de 1817 encontraremos nítido recuo dos proprietários rurais ante a proposta
abolicionista, temor que se repete no autor da Memória Constitucional e
34
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012
Política sobre o Estado Presente de Portugal e do Brasil, de 1821, e em muitas
outras manifestações da época.
Liberais burgueses ou democratas jacobinos subscreveriam, porém,
em sua mística constitucionalista, o discurso do ouvidor José Antônio de
Miranda, em 1821:
V. Majestade jurando a Constituição, qualquer que ela seja, mais
ou menos liberal, [...] passará a fazer uma mais brilhante figura no
mundo... [...]. Todas as instituições políticas tenderão sempre ao
bem geral da Nação, como único fim a que devem ser dirigidas.
[...] Ver-se-á então renascer uma nova ordem de coisas. A
Agricultura, o Comércio, a Navegação, as Artes, e todos os mais
ramos da indústria sairão do seu abatimento, e chegarão a um
novo estado de esplendor. Construir-se-ão belas e cômodas estradas
como já houve em o tempo dos romanos. Cuidar-se-á da navegação
dos rios para facilitar a comunicação da produções de todos os
ramos de indústria. Todas estas vantagens farão renascer a paz, e a
abundância por toda a parte. O homem dos Campos, o das
Cidades, o Artista, o Negociante, todos erguerão as mãos ao céu, e
abençoarão o dia em que virão a V. Majestade tomar por
testemunha ao Ente Superior de jurar, a abraçar, a Constituição
feita pelo povo reunido, e congregado, por meio de um pacto
social, e de uma nova representação nacional. (p. 82-83).
MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
35
Notas
D ROZ , J. et al. Restaurations et
revolutions. Paris: PUF, 1962. p. 8;
W EHLING , Arno. Um problema
epistemológico iluminista: a sucessão
histórica nos “quadros de ferro” do
paradigma newtoniano. In: ______. A
invenção da história: estudos sobre o
historicismo. Rio de Janeiro: UGF/UFF,
2001. p. 57 ss.
1
Sobre o liberalismo neste contexto,
M ACEDO , U. B. de. A liberdade no
império. São Paulo: Convívio, 1977. p.
39 ss e Metamorfose da liberdade. São
Paulo: Ibrasa, 1978. p. 245 ss; BARRETO,
Vicente. A ideologia liberal no processo de
independência do Brasil (1789-1824).
Brasília: Câmara dos Deputados, 1973;
SALDANHA, Nélson. O pensamento político
no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1979,
p. 47 ss; LIRA, Maria de Lourdes Viana. A
utopia do poderoso império. Rio de Janeiro:
Sete Letras, 1994. p. 191 ss.
2
Diário da Assembléia Constituinte, Sessão
de 10 de julho de 1923. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1972. p. 386. v. 3.
3
SILVA, Antonio Delgado da. Colleção da
Legislação Portuguesa. Lisboa: 1828. p.
236. v.3. No momento da revolução, tais
preocupações atingiram o paroxismo no
Rio de Janeiro, com o vice-rei, Conde de
4
36
Resende; Afonso Carlos Marques dos
Santos. No rascunho da nação:
independência no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Prefeitura Municipal, 1982, p.
81 ss.
MIRANDA, José Antonio de. Memória
constitucional e política sobre o Estado
presente de Portugal e do Brasil. Rio de
Janeiro: Imprensa Régia, 1821. p. 73 (ed.
Fac. similar, com introdução de
Raymundo Faoro. In: ______. O debate
político no processo da independência. Rio
de Janeiro: CFC, 1973. MARAVALL, José
Antonio. Estado moderno y mentalidad
social. Madri: Revista do Occidente, 1972.
p. 287. v. 1. ______. Teoria del Estado en
Espana del siglo XVII. Madri: Centro de
Estúdios Constitucionales, 1997. P. 227
ss.
5
6
Diário, v. III, p. 416.
7
Diário, v. III, p. 474-475.
TORRES, João Camilo de Oliveira. A
democracia coroada. Petrópolis: Vozes,
1963. p. 101; MERCADANTE, Paulo. A
consciência conservadora no Brasil. Rio de
Janeiro: Saga, 1967. p. 75.
8
M ARTEUCI , N. Constitucionalismo.
Dicionário de política. Brasília, Ed. da UnB,
1998. p. 250.
9
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012
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MÉTIS: história & cultura – WEHLING, Arno – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
37
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______. Kant e o conhecimento histórico:
a sociedade e a idéia de história no século
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38
WEHLING, Arno. Um problema
epistemológico iluminista: a sucessão
histórica nos “quadros de ferro” do
paradigma newtoniano. In: ______. A
invenção da história: estudos sobre o
historicismo. Rio de Janeiro: UGF/UFF,
2001.
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 23-38, jan./jun. 2012
O judiciário e a dinâmica do sistema coronelista
de poder no Rio Grande do Sul *
The judicial power and the dynamic of coronelist
power system in the Rio Grande do Sul
Gunter Axt**
Resumo: Este artigo propõe refletir sobre a
relação entre a Justiça e as especificidades da
dinâmica do sistema coronelista de poder
durante a República Velha, no Estado do
Rio Grande do Sul, Brasil. A tensão entre
poderes locais e poder central estadual é
analisada à luz de uma periodização da época
castilhista-borgista, tomando-se em conta,
ainda, os instrumentos de coerção enfeixados
nas mãos do presidente do Estado pela
Constituição autoritária de 14 de julho de
1891. Aspectos da estrutura burocrática do
Poder Judiciário e da política, bem como
do sistema eleitoral e do poder
infraestrutural do aparelho de estado,
também são abordados.
Palavras-chave: Coronelismo; política; Rio
Grande do Sul; Poder Judiciário.
Abstract: This paper expounds the relations
between the Justice and the specificities of
the “coronelistic” Power system, during trhe
so called Old Republic (1889-1930), in Rio
Grande do Sul State, Brazil. The tension
between local powers and central power is
analyzing by dividing the Presidents Julio
de Castilhos and Borges de Medeiros period
in regular intervals, and taking in account
the coercive instruments that were given to
the provincial President by the authoritarian
State Constitution of 1891. Several
administrative and bureaucratic aspects of
Judicial Power, in relation with the
infrastructural power of the state, are also
taking in account.
Keywords: Coronelism political system;
politics; Rio Grande do Sul; Judicial Power.
*
Esse texto é uma versão revista e ampliada do artigo intitulado “O Poder Judiciário na
sociedade coronelista gaúcha”, publicado no n. 82 da Revista da Ajuris, em 2001. É
parte da tese de doutorado defendida em 2001, no Programa de Pós-Graduação do
Departamento de História Social da Universidade de São Paulo, intitulada: Gênese do
Estado burocrático-burguês no Rio Grande do Sul (1889-1928). A pesquisa que originou a
tese, orientada pela Profa. Dra. Maria de Lourdes Monaco Janotti, recebeu financiamento
do CNPq.
**
Professor do Mestrado em Memória Social e Bens culturais da Unilassale/Canoas;
pesquisador associado ao Núcleo de Estudos Diversitas/USP; e-mail: gunter@terra.com.br
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
39
A institucionalização da República no Brasil caldeou o enfraquecimento
da autonomia municipal em benefício do fortalecimento dos poderes
estaduais. Porém, o aparelho de estado continuou sendo burocrático e
infraestruturalmente frágil. Dessa nova correlação de forças e de competências
institucionais dimanou o “sistema de reciprocidade”, que caracterizou a
política coronelista durante a República Velha. (LEAL, 1978, p.43, 81). No
Rio Grande do Sul, onde a institucionalização do regime se fez a ferro e
fogo sobre as campas da guerra civil e onde a Constituição de 14 de julho
de 1891 municiava o presidente com notáveis instrumentos de centralização,
a tensão entre poder estadual, lideranças regionais e municipais atingiu
contornos específicos. (AXT, 2004). Ainda que a maior parte da historiografia
insista que, no Rio Grande do Sul, o assim chamado “sistema coronelista”
não vingou (AXT, 2001a), admitimos, juntamente com outros autores (FÉLIX,
1987; RAMOS, 1990), que ele pode ser identificado.
A ruína das instituições monárquicas extinguiu o parlamentarismo e o
Poder Moderador imperial, maestro na dança dos partidos, o que
desregulamentou o embate entre as facções, doravante atirado à própria
sorte. O líder republicano sul-rio-grandense Júlio Prates de Castilhos aliouse às facções minoritárias na maior parte dos municípios, fossem elas
formadas por republicanos históricos ou por monarquistas adesos, com o
fim de solapar, pela imposição, a hegemonia política liberal, açulando, desse
modo, o violento revanchismo desencadeado a partir de 12 de novembro
de 1891 – quando a dissidência republicana chefiada por Barros Cassal e
aliada aos antigos liberais tomou o poder instituindo o assim alcunhado
“Governicho” – bem como o contrarrevanchismo, de 17 de junho de 1892
– quando a facção castilhista retomou o comando do estado –, que teve,
finalmente, por corolário a Revolução Federalista, em que se jogou boa
parte do futuro da República brasileira. A Pacificação, de agosto de 1895,
fechou o ciclo da institucionalização do regime no Rio Grande do Sul, mas
não estancou a barbárie. (ESCOBAR, 1922, p. 60-67, 101). Até 1903, viveuse o ciclo intolerante da hegemonia da facção castilhista, muito embora o
clima persecutório tenha arrefecido com a ascensão à presidência estadual,
em 1898, do Desembargador Antônio Augusto Borges de Medeiros, ungido
por Castilhos, cujo projeto político nacional fora abafado por Prudente de
Moraes e Campos Salles. Entretanto, a morte prematura de Castilhos, em
1903, fez reascender o universo faccioso no interior do partido dominante,
desencadeando uma crise de hegemonia.2 (AXT, 2001, 2004).
40
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
Borges de Medeiros foi, até outubro de 1903, o administrador fiel e
dedicado ao chefe. Depois da morte do Patriarca, seu projeto pessoal de
acumular a chefia do partido e o comando do governo, após quatro anos de
ensaio, precisou ser adiado, devido à reação das demais estrelas partidárias.
Em 1907, Fernando Abbott lançou-se candidato à sucessão estadual pela
dissidência e com apoio de setores do Partido Federalista, frustrando
momentaneamente o projeto borgiano, impondo-lhe um recuo tácito com
a escolha de Carlos Barbosa Gonçalves como candidato oficial. Entre 1908
e 1913, Borges refugiou-se na chefia política do partido: enquanto Carlos
Barbosa Gonçalves administrava o estado, empenhou-se na recomposição
da rede de compromissos que o sustentaria mais tarde no poder. Conseguiuo em grande medida graças à aliança com o Senador Pinheiro Machado,
que o cacifou em nível regional. Não obstante, Carlos Barbosa Gonçalves
tentou rechaçar a condição de títere, procurando imprimir caráter pessoal à
administração. (LOVE, 1975, p. 163; AXT, 2004).
Durante seu terceiro mandato, Borges de Medeiros atravessou, com
sucesso, a violenta cisão dos anos 1915 e 1916 – quando as fileiras dos
antigos dissidentes foram engrossadas pelos Barbosa Gonçalves, pelos Menna
Barreto, pelos Pereira de Souza, pelos Neves da Fontoura, por Ramiro
Barcellos e até por Carlos Maximiliano – sagrando-se vitorioso e aquilatandose, finalmente, para a pretendida chefia unipessoal do partido. O sossego,
então, foi interrompido apenas com as contestações de 1922, cujo desfecho
foi a revolta assisista e o Tratado do Castelo de Pedras Altas. Borges
permaneceria até janeiro de 1928 à testa do Poder Executivo, conservando
também a chefia do partido. Ao transferir o cargo para Getúlio Vargas,
deixava preparado seu retorno para o quinquênio seguinte, mas as decisões
cada vez mais lhe escapavam. Os últimos anos de seu governo, açodado
pela desorganização das finanças públicas, pela crise econômica e pelos
levantes armados, ressentiram-se da crise de legitimidade e do
enfraquecimento político. De nada lhe adiantou preservar a chefia nominal,
pois a Revolução de 1930 foi tramada com discrição e desferida contra a
sua vontade.3
A tensão que caracterizava o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR)
expunha nos municípios suas vísceras. Como qualquer outro partido durante
a República Velha, em que pese a mistificação louvaminheira dos pósteros,
o PRR foi também um somatório de facções dirigidas por comandos
pessoais, em torno dos quais se articulavam redes de compromissos. A
diferença esteve nos instrumentos de controle mais eficazes, garantidos pela
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
41
Carta Estadual de 1891, que podiam ser esgrimidos com mais precisão
pela facção assenhoreada do poder. (AXT, 2002a). Além disso, descartaramse compromissos ideológicos com a representatividade institucional. Borges
de Medeiros, no partido, era o comandante de uma dessas facções. No
governo, era o poder sacerdotal que se pretendia moderador, arbitrando o
entrechoque de vaidades e interesses.4 Conforme os objetivos de preservação
e fortalecimento do poder, fazia e desfazia alianças com os cabeçilhas locais,
compunha com o estrelato em potencial, esgalgando-lhe vitalidade sempre
que possível. Borges procurava, ainda, intervir nas situações municipais,
moldando-as, na medida do viável, às razões de estado e aos altos interesses
que lhes davam sustentação, nem sempre, entretanto, levando vantagem.
(AXT, 2004).
Ao se pretender herdeiro do carisma de Castilhos, encampando a chefia
partidária, Borges encontrou a maior parte dos municípios sob controle de
situações políticas compromissadas com o Patriarca. Com frequência, a
mesma liderança, em geral um coronel, veterano de 1893, enfeixava a
intendência e a chefia local, com carta branca de Castilhos, especialmente
no concernente à autonomia extralegal, característica do clássico sistema
coronelista descrito por Victor Nunes Leal. (1978; LOVE, 1975, p. 48,
51). Porém, ao contrário do sugerido por Leal como tendência natural do
sistema, após a morte de Castilhos, o oficialismo estadual entrou em rota
de colisão com as correntes dominantes em muitos municípios, contribuindo
no fomento a um clima de irritação. Castilhos levara para a sepultura o
vínculo de solidariedade que articulava as lideranças, nos municípios, no
estado e na Nação. Fernando Abbott, Cassiano do Nascimento e Pinheiro
Machado disputaram a chefia com Borges de Medeiros.5 Enquanto o
primeiro partiu para o embate em 1907, os dois outros entraram em acordo,
cuidando doravante de dirigir a inserção da política estadual no âmbito
nacional. Borges preferiu confrontar muitas das situações nos municípios,
tentando fabricar correntes leais à sua rede de reciprocidade.
Entre 1903 e 1908, houve, assim, troca de comando em diversos
municípios: David Barcellos, por exemplo, foi desbancado pelos Neves da
Fontoura em Cachoeira do Sul; em São Borja, os Mariense foram derrubados
pelos Vargas; em Livramento, os Pereira de Souza perderam proeminência
para os Flores da Cunha; em Santa Maria, Antero Corrêa Marques apoiou
a dissidência e terminou deslocado da chefia política local; o Coronel
Cândido Dias de Carvalho Guimarães foi zurzido em Lagoa Vermelha.
Enfim, uma outra geração de políticos ascendeu junto com Borges de
42
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
Medeiros, em torno da qual arranjou-se uma nova rede de compromissos.6
Antigos dissidentes de Júlio de Castilhos, como os irmãos são-borjenses
Álvaro e Homero Batista, ou como Bernardino Mota, de Canguçu, foram
reabilitados por Borges de Medeiros.
A partir de 1910, plenamente superada a crise de hegemonia de 1903 a
1907, a organização da rede de sustentação borgiana foi impulsionada pela
estreita sintonia estabelecida com o governo Hermes da Fonseca,
politicamente controlado por Pinheiro Machado. Enquanto diversos gaúchos
eram lançados em postos-chave da política nacional – como José Barbosa
Gonçalves, que dirigiu o Ministério da Viação, e Rivadávia Corrêa, titular
da Pasta da Justiça –, Borges de Medeiros respondia com autonomia pelas
nomeações para cargos federais no Rio Grande do Sul.7
A situação favorável se inverteu em 1915. Enquanto o Partido
Republicano Conservador (PRC) acumulava contrariedades em nível
nacional, e o império de Pinheiro Machado se esboroava, Borges de
Medeiros foi acometido de grave enfermidade em maio de 1915, retirandose para uma chácara próxima da capital, retornando ao governo apenas um
ano mais tarde. O retiro do chefe tinha também ligação com o desgaste que
o rondava, pois o comando partidário foi repassado ao fiel Dr. Protásio
Alves, secretário dos Negócios do Interior e da Justiça, no que se referia aos
assuntos atinentes a algumas cidades, como Livramento, enquanto os de
outras, como Cachoeira do Sul, continuaram sob direção borgiana. A
administração governamental foi encampada pelo vice-presidente Salvador
Pinheiro Machado, irmão do senador, o qual controlava a bancada gaúcha
no Congresso. Para alguns, os irmãos chegaram a tramar a derrubada de
Borges de Medeiros e a absorção da máquina partidária do PRR, mas tais
maquinações teriam esbarrado na fidelidade da Brigada Militar ao presidente
e no assassinato de Pinheiro Machado em 8 de setembro. (SOUZA, 1923).
Além disso, a disputa da vaga senatorial em agosto de 1915 abriu severo
dissídio no coração do partido. Ramiro Barcellos e seus aliados revoltaramse diante da indicação de Hermes da Fonseca por Pinheiro Machado,
desencadeando uma cerrada campanha, a partir de um turbulento comício
em julho, na capital, cujo saldo foi de nove mortos e quinze feridos por
conta da ação repressora da Brigada Militar.8
O cisma provocou desfalques nas fileiras dos aliados da falange palaciana
em municípios importantes, como Cachoeira do Sul e Santa Maria,
repercutindo por todo o estado nas eleições municipais de 1916, o que
traduziu, mais uma vez, a forte queda de braços entre poder estadual central
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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e poder local. A fraude eleitoral e as intervenções oficiais do palácio operaram
substituições nos comandos de diversos municípios. Borges de Medeiros
conseguiu suportar os anos difíceis, em que ainda por cima o governo
estadual distanciou-se da gestão Venceslau Braz, reelegendo-se presidente
estadual em 1917, com larga margem de vantagem. O desaparecimento de
Pinheiro Machado fora conveniente para Borges de Medeiros e seus
apoiadores, pois, dessa forma, pôde ele retomar o controle sobre a deputação
gaúcha na Câmara, além de garantir a neutralização de certos dissidentes
perigosos que se levantavam novamente na fronteira, como João Francisco
Pereira de Souza, e que gozaram do apoio tácito do senador.9 Entretanto, o
fortalecimento do poder palaciano desmobilizava o partido. Novas e antigas
dissidências esperavam no limbo a chance de reversão do jogo.
As mudanças de situações nos municípios foram, em geral, processos
tingidos pela violência, pois resultavam da confluência, de um lado, do
influxo de poder de Borges de Medeiros sobre o partido, ambicionando a
ampliação do controle político em meio ao quadro de reconfiguração do
comando, especialmente nas conjunturas de 1903 a 1908 e de 1916, e, de
outro lado, da ebulição das dissidências, em disputa pelas vantagens
intrínsecas às chefias locais. Denúncias de corrupção, prevaricação de
autoridades públicas e arbitrariedades eram lançadas pelos contendores de
ambos os lados das trincheiras. Por vezes, o clima de confronto entre
partidários, às vezes de uma mesma grei, degenerou em tropelias, como a
tomada do Clube Júlio de Castilhos, em Santa Maria, em setembro de
1907, ou em batalhas campais, como os enfrentamentos de 25 de novembro
de 1907 e de 1920 e o motim de junho de 1917, em Lagoa Vermelha; ou,
ainda, o ataque ao Clube Pinheiro Machado, em Livramento, em 1910; ou
a chacina de Nonoay, em 1927. Em muitos casos, as sequelas perduraram
por anos, sob a forma de dissídios e opróbrios que indispunham
correligionários e jugulavam o desempenho eleitoral do partido. (AXT, 2001).
No Rio Grande do Sul, o partido de oposição formalmente constituído
estava, desde os desfechos da Revolução Federalista, excluído do lucrativo
comércio de prebendas e vantagens. Segundo Wenceslau Escobar, eram
tratados “como estrangeiros em sua própria terra”, não participando dos
negócios do estado. (1922, p. 32). Quanto muito, a maragataria10 resistente
pleiteava cargos federais, especialmente nos momentos em que o governo
estadual andava em descompasso com a União. Ocasionalmente, os
federalistas, ou pelo menos parte deles, aliavam-se às dissidências republicanas
para tentar mais espaço nos municípios. Raramente tais alianças eram
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
coroadas pelo sucesso eleitoral, como o foram em São Gabriel, depois de
1908. Mas, no geral, o regime de exclusão foi mantido durante todo o
período borgista, a fim de que os benefícios hauridos do controle do aparato
estatal fossem distribuídos exclusivamente entre os pica-paus11, apodados
de comensais da chimangorreia.12 Muito embora políticas de convivência e
tolerância fossem ensaiadas, a partir de 1900, nas localidades onde a oposição
era fortemente arregimentada, de maneira a neutralizar a ameaça de embate
armado, não chegavam a aluir a impermeabilidade do sistema. A regra era a
exclusão e a perseguição.13 Afastada a concorrência federalista, a disputa
por vantagens acontecia fundamentalmente no interior do próprio PRR.
Assim, após a morte de Castilhos, em 1903, a truculência costumava
exacerbar-se entre correligionários. Apesar de ódios e as apostasias entre
facções atingirem píncaros de atrição, ocasionalmente com graves prejuízos
à ordem pública, a ruptura definitiva com o partido era recurso último.
Nesse particular, a existência dos federalistas era conveniente ao poder
palaciano, pois, no limite, o inimigo comum contribuía na conservação de
certa unidade interna das hostes republicanas. (AXT, 2001).
O clima de disputa intestina era generalizado. O comportamento das
facções podia variar. Quando se tratava de uma rusga confinada ao âmbito
municipal, eram mais improváveis desdobramentos que redundassem em
críticas ao regime. Nesses casos, ambas as facções digladiavam-se pelo apoio
do oficialismo e, mesmo que esse fizesse sua opção, permaneceria uma
brecha para a recomposição. Assim foi com as disputas entre os coronéis
Heliodoro Branco e Maximiliano Almeida em Lagoa Vermelha, em junho
de 1917. (FRANCO, 1996, p. 17-34). Heliodoro Branco, que fora intendente
entre 1892 e 1913, revoltado contra a reeleição, em 1916, de Maximiliano
Almeida, reuniu cerca de dois mil homens e sitiou a cidade, exigindo a
renúncia do Intendente e do Conselho, sem, no entanto, mesmo sofrendo
severas reprimendas do líder partidário,14 deixar de registrar serem todos
seus colaboradores fiéis correligionários borgistas.15 O confronto armado
foi evitado, mas diante da demonstração de força e prestígio, Heliodoro
Branco garantiu a intervenção de um emissário do presidente, o subchefe
de Polícia Genes Gentil Bento, que pacificou os ânimos e mediou um
acordo de convivência entre as partes.16
Articulações entre facções locais e lideranças regionais, contudo, podiam
degenerar em ataques à direção unipessoal e à política econômica de Borges
de Medeiros. Mesmo ostracisada pela máquina oficial, ou esmagada pelo
concurso às armas, uma corrente mais contestatória poderia sobreviver,
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seja aliando-se aos federalistas, seja constituindo quistos de resistência,
como os Abbott, em São Gabriel, ou Assis Brasil, em Cacimbinhas. Cisões
locais podiam repercutir em movimentos para a derrubada do governo
central. Outro se não esse foi o objetivo dos dissidentes de 1907 e de
1915/1916, quando, inclusive, a insurreição armada foi divisada no
horizonte. (SOUZA, 1923; AXT, 2001).
Se algumas rupturas eram irreversíveis, reconciliações, entretanto,
podiam ocorrer com frequência, a exemplo do sucedido com os Neves da
Fontoura, os Flores da Cunha e os Vargas, que, em diversos momentos,
incorreram em distanciamentos do líder palaciano, mas recompuseram as
relações oportunamente. Como símbolo do processo de acomodação das
dissidências, talvez possa ser invocado o caso Bernardino Mota. Obscuro
vereador, durante o Império, em Canguçu, Mota conflitou-se com os
diretores políticos locais, tornando-se colaborador de Castilhos com a
Proclamação. Durante o governicho cassalista, foi perseguido e hostilizado
pelos batalhões “patriotas”, dando o troco na Revolução Federalista. Arrimo
castilhista na região, teve um processo judicial, em que fora responsabilizado
pelo latrocínio de dois comerciantes com salvo conduto e membros de
prestigiosas famílias locais, arquivado pelo líder. Mas, logo depois, ao se
envolver num atentado contra o partidário Leão Terres, foi afastado por
Castilhos da direção política municipal.
Em fevereiro de 1898, durante os festejos carnavalescos e apenas um
mês após a assunção de Borges de Medeiros ao governo estadual, tendo
desrespeitado a orientação castilhista e sufragado o nome de Campos Salles
nas eleições federais, envolveu-se, por motivos privados, numa discussão
pelas ruas da cidade e terminou tomando, a tiros, auxiliado por seus capangas
a cavalo, a estação telegráfica. Pouco depois, acossado pela Brigada Militar,
buscou abrigo no General Carlos Telles, no Comando Militar em Bagé,
que a essa altura atritava-se com Castilhos. Em represália, a Justiça gaúcha,
instigada pelo presidente do estado, desarquivou os processos contra
Bernardino, datados do período revolucionário e abriu um novo, acusandoo de sedição. Diante do impasse estabelecido entre os governos estadual e
federal, a conselho do próprio ministro da Guerra, Bernardino se homiziou
no Uruguai. Por solicitação de Borges de Medeiros, as autoridades orientais
prenderam-no, mas não tendo chegado o pedido de extradição do ministério
da Justiça depois de um mês de delongas, terminou liberto e permaneceu
exilado.
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Em 1904, entretanto, em meio à ebulição das facções, retornou a
Canguçu, onde mantinha propriedades, convertendo-se, novamente, em
prosélito de Borges, que o brindou com uma sinecura e com o
rearquivamento dos processos. (CABEDA, 2000). O episódio ilustra bem
como simples disputas pessoais em nível local, uma vez inseridas na rede de
compromissos coronelísticos, podiam ser amplificadas, ganhando relevo
estadual, nacional e repercutindo, até mesmo, internacionalmente.
Outrossim, o caso Bernardino Mota registra como as alianças entre lideranças
partidárias podiam ser dissolvidas ou recompostas, conforme interesses
personalizados, destituídos de compromissos ideológicos ou programáticos
mais sólidos.
No talante de manietar ao máximo as situações municipais, Borges
lançava mão de um feixe de estratagemas, legais e extralegais. Nesse esquema,
a manipulação dos cargos públicos era crucial. Chamando a si a competência
por nomeações, além de dispor de uma moeda de troca política com os
coronéis, garantia aliados com vínculos de colaboração direta nos municípios.
Borges assegurava melhor “controle orgânico”17 sobre parte do funcionalismo
policial e do jurídico, além de inspetores, fiscais e procuradores fazendários
ou das Obras Públicas.
A organização da segurança pública no Rio Grande do Sul se deu a
partir da Lei 11, de 4 de janeiro de 1896, 18 cuja redação teria sido
encomendada por Castilhos ao então desembargador Antônio Augusto
Borges de Medeiros. (AZEVEDO, 1985, p. 25). A estrutura policial era
composta pela corporação militar congregada na Brigada e pelas polícias
judicial e administrativa, sem mencionar a Guarda Nacional e os corpos
provisórios, a chamada “Guarda Civil”, os quais podiam ser convocados
com apoio dos coronéis sempre que a estabilidade institucional era colocada
em xeque. O Rio Grande do Sul possuía um dos maiores contingentes
armados na corporação militar estadual, que chegou a reunir 3.200 homens,
constituindo-se, sem dúvida, numa garantia especial contra ameaças de
insurreição da oposição, contra intervenções federais e, mesmo, contra a
insubordinação de coronéis recalcitrantes. Por sua vez, as patentes da Guarda
Nacional eram concedidas pelo governo federal, a partir de indicações
estaduais. O controle sobre as patentes era fundamental para as facções,
pois, além de uma fonte de autoridade, concediam ao titular imunidade em
face de certos processos-crime. Ocasionalmente, a distribuição de patentes
podia fugir ao controle de Borges de Medeiros, sendo intermediada por
uma liderança de projeção nacional do partido de forma a beneficiar uma
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facção concorrente da palaciana nos municípios, como se deu durante a
gestão de Carlos Maximiliano Pereira dos Santos à frente do Ministério da
Justiça, entre 1914 e 1916.
A Constituição de 14 de julho de 1891, procurando fazer coexistir a
autonomia local com a intervenção do poder central estadual nos municípios,
estabeleceu a superposição das polícias: enquanto a chamada “Administrativa”
era custeada pelos municípios e comandada pelos subintendentes, a polícia
“Judiciária” compunha-se, nos municípios, dos delegados e subdelegados,
estando submetida ao secretário do Interior e Justiça, à chefatura de polícia
e às quatro subchefaturas regionais, as quais podiam dispor dos regimentos
brigadianos, embora eles não estivessem sob seu comando direto. A Brigada
Militar, por sua vez, registrava alto grau de fidelidade ao Palácio, bastando,
para isso, mencionar que sobre ela vigia o Código Penal da Armada, o qual,
esgrimido pela comandância, sempre indicada pelo presidente do estado,
cominava sentenças, incluindo castigos corporais e a pena de morte, que
apenas podiam ser apeladas ao mesmo presidente. Em 19 de junho de
1918, entrou em funcionamento o Conselho de Apelação da Justiça Militar,
corte recursal formada por cinco membros, todos nomeados pelo presidente
do estado, dos quais um era juíz togado. O órgão auxiliou na manutenção
da disciplina da tropa e serviu para reforçar a autonomia federativa do
estado em face das Forças Armadas para julgar praças e oficiais militares.
(PEREIRA, 1923, p. 41; AXT, 2003).
Os chefes de polícia costumavam ser indivíduos de influência no âmbito
da rede de compromissos e aliados do chefe palaciano, como Firmino Paim,
jurista, grande estancieiro, apoiador de Borges por ocasião do dissídio de
1907, que, mais tarde, foi seu secretário pessoal e diretor político de Lagoa
Vermelha, Vacaria e São Francisco de Paula, municípios da região serrana
norte. O chefe de polícia coordenava a manutenção da ordem pública,
combatendo o crime, distribuindo a força policial pelo estado, intermediando
negociações com os coronéis locais ou de grevistas urbanos com o governo
e empresários. Havia, ocasionalmente, chefes de polícia burocratas, cuja
função era ocupar transitoriamente o cargo, administrando a transferência
do mesmo de um para outro coronel. Em certas ocasiões de crises
institucionais envolvendo a força pública, podia também ocupar o cargo
interinamente um membro do Poder Judiciário. (AXT, 2001).
Tinha por auxiliares diretos os subchefes, em número de quatro,
correspondendo cada qual à jurisdição sobre diferente região do estado.
Embora não comandassem diretamente unidades da Brigada Militar, podiam
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requisitar seus efetivos a partir de autorização do presidente. (LOVE, 1975,
p. 85). As subchefaturas eram geralmente ocupadas por chefes políticos,
sobre os quais o presidente do estado e líder do partido procurava estabelecer
uma relação de controle, mas que, de ordinário, se baseava na cooperação
mais do que na subordinação. Alguns ocupavam o posto na sua própria
região de influência, como Firmino de Paula, Victor Dumoncel e Vazulmiro
Dutra, para a região de Cruz Alta e Palmeira das Missões (FÉLIX, 1987, p.
121), ou como Ramiro de Oliveira, na de Santa Maria, e, ainda, como
João Francisco Pereira de Souza e Francisco Flores da Cunha, na de
Livramento. Nesses casos, a nomeação era uma demonstração de força das
lideranças locais e de sintonia da rede local de compromissos dominante
com o poder central. Por isso mesmo, em torno da subchefatura podiam
estalar graves conflitos entre facções, como aquele coroado pelo ataque ao
Clube Pinheiro Machado, em Livramento, em 1910. Podia, entretanto,
acontecer de os coronéis assumirem o cargo em outra região que não aquela
correspondente à sua área de influência direta, como Genes Bento, que
empolgou o comando sobre a região serrana norte depois que sua chefia
política, em Canguçu, enfraquecera. No Planalto Central, aconteceu ainda
de Borges de Medeiros indicar para períodos curtos bacharéis de Direito
estranhos à região, a fim de conduzir a transição entre um e outro coronel
poderoso no comando da subchefatura. (AXT, 2001).
Os subchefes de polícia eram muito mais do que funcionários
responsáveis pela segurança pública, pois exerciam, na prática, atribuições
de agentes políticos. Ramiro de Oliveira, por exemplo, intercedia junto às
lideranças de diversos municípios, como Cachoeira do Sul, Santa Maria,
São Sepé, Santa Cruz, São Francisco de Assis, São Sebastião e outros mais,
costurando acordos entre os coronéis em benefício do governo. Nesse caso,
o subchefe de Polícia agia como um braço do Poder Moderador, que arbitrava
conflitos entre as facções do partido em toda uma região. No motim de
Lagoa Vermelha, em 1917 (FRANCO, 1996, p. 32), esse foi precisamente o
papel desempenhado pelo subchefe Genes Bento. (AXT, 2001).
Estavam entre suas atribuições presidir e fiscalizar eleições em comunas
convulsionadas, assim como sindicar conflitos entre autoridades policiais,
judiciárias e administrativas. Em Canguçu, durante 1906, a insistência do
delegado de Polícia, Manoel da Rocha, membro de uma facção dissidente,
em manter presos dois suspeitos por tempo superior ao alvitrado pelo
então intendente Genes Bento, que se achava de acordo com o juiz da
comarca e o promotor, motivou uma crise política e um choque de
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competências, apenas apaziguado com a intervenção do subchefe de Polícia
Ten. Cel. Cristóvão dos Santos. Essa prerrogativa, todavia, podia extravasar
a simples mediação. Em abril de 1900, em meio a um impasse político
local, o subchefe Euclides Moura interveio no Herval em favor de uma
facção. Em julho de 1908, a ação opressora do Subchefe Carlos Nunes
Nogueira foi ainda mais violenta na imposição do candidato palaciano. Em
1913, um subchefe de polícia comunicou ao intendente eleito de Rio Grande
que Borges de Medeiros decidira pela sua renúncia.19
Os delegados e subdelegados de polícia eram funcionários escolhidos
geralmente de comum acordo entre os “manda-chuvas” locais e o comando
palaciano. Os cargos poderiam ser preenchidos por qualquer cidadão, não
havendo requisição de diplomas ou necessidade de concurso público. Assim
como em todo o País. (LEAL, 1978, p. 47, 103; FERREIRA, 1989), no Rio
Grande do Sul, o uso político da Força Pública também era fundamental
para a manutenção do status quo. Enquanto o poder regional central tinha
controle mais efetivo sobre os subchefes de polícia, as situações locais
aspiravam dominar com mais abrangência a ação dos delegados e
subdelegados, atiçando-os não raro contra a facção concorrente. Destarte,
em torno da figura dos delegados, estabeleciam-se atritos. Podia acontecer
de Borges de Medeiros, através do subchefe de polícia, nomear como delegado
um membro da facção oposta àquela que empolgava a intendência,
garantindo, dessa forma, um certo equilíbrio de forças entre os grupos
rivais. Em muitos casos, “por medida de economia”, os delegados ou os
subdelegados acumulavam também as subintendências. Esse artifício era
especialmente adotado pelas chefias locais para manter a subordinação de
“distritos difíceis”, com forte presença de eleitorado flutuante e/ou federalista,
pois se garantia, na unidade da polícia, um comando forte. Nesses casos,
dependendo da origem da indicação, se o chefe político local ou geral, a
fusão podia representar maior ou menor poder de afirmação da facção em
relação ao poder central. Os delegados e subdelegados, assim como os
subintendentes, eram, via de regra, importantes agentes para a conquista
de confortáveis margens de vantagem eleitoral. Por isso, como homens de
confiança do intendente, ou chefe político, convinha que dessem mão forte
à cabala. Nos casos em que a presença do subdelegado coexistia com a do
subintendente, podiam sobrevir conflitos de competências entre as duas
autoridades. (MEDEIROS, 1980; AXT, 2001).20
A tensão entre poder central e lideranças locais era bastante perceptível
em torno das funções exercidas pela Justiça. Conforme a Lei 10, de
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organização judiciária, de 10 de dezembro de 1895, cuja redação também
teria sido encomendada por Júlio de Castilhos ao ainda desembargador
Antônio Borges de Medeiros, a fim de consolidar o Decreto 16 de 1892, a
administração da Justiça gaúcha dividia-se em comarcas – firmadas em
número de 32 pela Lei de 15 de janeiro de 1898 – e distritos. Em cada
distrito atuava um juiz distrital, que tinha três suplentes, cujas principais
atribuições eram homologar contratos, abrir testamentos, presidir
casamentos, proceder a corpo de delito, preparar e julgar em primeira
instância as causas cíveis, até o valor de 500 mil-réis, e preparar processoscrime. Os juízes distritais estavam submetidos hierarquicamente aos juízes
da comarca, que moravam nas sedes. As apelações das sentenças seguiam
para a capital, onde funcionava o Superior Tribunal, composto por sete
desembargadores,21 nomeados pelo presidente do estado, obedecendo aos
critérios de antiguidade e merecimento. Os juízes da comarca, conforme o
artigo 54 da Constituição, eram nomeados pelo presidente do estado,
mediante concurso, sem exigência de diploma, realizado pelo Superior
Tribunal e coordenado pelo presidente da Corte. Conforme o artigo 42 do
Capítulo IV, da Lei 10, em concurso seriam preferidos aqueles candidatos
que houvessem prestado “assinalados serviços ao Estado”, na condição de
juiz distrital ou promotor público. Os juízes de comarca eram vitalícios e
podiam ser removidos a pedido próprio ou “por conveniência pública”. A
eles competia julgar, em primeira instância, todas as causas cíveis de valor
superior a 500 mil-réis e, em segunda instância todas aquelas cujo valor
não ultrapassasse esse limite, pronunciar e julgar crimes comuns, políticos
ou de responsabilidade de funcionários e autoridades públicas e judiciárias,
além de presidir o tribunal do júri.
Os arautos do regime costumavam alardear as garantias previstas na
Carta de 14 de julho, bem como nos diplomas posteriores, à magistratura,
o que permitiria a autonomia e a liberdade de ação para o Judiciário. Emílio
de Campos, em 1903, sintetizou a lógica do constitucionalismo castilhista
ao qualificar o Judiciário como “um órgão do aparelho governativo”, cuja
autonomia assentava-se não no fortalecimento institucional, mas nas
garantias de competência, prestígio e independência oferecidas à
magistratura, por meio de concurso público, de vitaliciedade e de
inamovibilidade. (CAMPOS, 1903, p. 38-42).
Ora, muito embora essas prerrogativas garantissem autonomia aparente,
na prática, o Judiciário sofria direta tutela do presidente do estado: não
possuía dotação orçamentária própria e enviava mapas estatísticos anuais à
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Secretaria do Interior e da Justiça para dar conta de suas realizações; os
membros e funcionários do Poder Judiciário não usufruíam um plano de
carreira objetivo; não se via o presidente do Tribunal proferindo discursos
nem tampouco o Judiciário promovendo solenidades oficiais. Muitos
também eram, além disso, os aspectos subjacentes à formalidade legal que
constrangiam a liberdade da magistratura.
A sistemática de composição do desembargo sugeria o alinhamento do
Superior Tribunal em questões de interesse político, transformando-o em
potencial instrumento no processo de cooptação, enfrentamento ou
colaboração entre o presidente do estado e as lideranças locais. A permanência
do desembargador James de Oliveira Franco e Souza por 20 anos (de 1894
a 1914) na presidência do Tribunal pode ser explicada, talvez, justamente
na influência que o Executivo exercia sobre o Judiciário. Efetivamente,
Borges de Medeiros era assoberbado de pedidos dos coronéis para intervir
junto à Desembargadoria, a fim de condicionar sentenças. Em 1899, por
exemplo, o Coronel David Barcellos, líder partidário e Intendente em
Cachoeira do Sul, pediu a Borges de Medeiros para “falar com os
desembargadores a fim de absolverem” um “infeliz amigo nosso” recolhido há
quatro meses à prisão pelo juiz da comarca. Menos polido, solicitou em
seguida para “chamar a atenção dos desembargadores” em outro caso,
objetivando desfazer sentença contrária do mesmo juiz às pretensões do
correligionário Antônio Corrêa Marques em um certo processo de
reivindicação de custas.22 Em 1907, também em Cachoeira, intrigas de
facções levaram o oficial do Exército Kurt Pachaly, o Capitão Pedro Modesto
e o Alferes Alberto Krämer às barras do Tribunal, diante do qual nutriam
expectativa por decisão favorável, graças à “benevolência e sentimentos
nobres” do presidente Borges.23 As decisões do Tribunal, confirmando ou
revogando sentenças dos juízes da comarca, tinham impacto sobre a
acomodação das facções nos municípios e nos distritos.24 A estrutura de
organização judiciária convertera Borges de Medeiros em uma espécie de
instância revisora, submetidos que estavam os processos judiciais à filtragem
sub-reptícia do dirigente palaciano. (AXT, 2001c ).
O discurso opositor ao regime atribuía à interferência moderadora de
Borges de Medeiros junto aos juízes e ao desembargo a proteção dispensada
pela Justiça aos assassinos de Inocêncio Garcia, em Vila Rica, de Benjamim
Torres – célebre caso envolvendo a família Vargas em São Borja –, de
Nicanor Peña, em Bagé, de Bolívar Barbosa, em Itaqui, de Milo Netto, em
Rosário, dos irmãos Pereira de Souza, em Livramento, e do Coronel Vasco
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Alves, no Alegrete. Mais do que isso se denunciava que boa parte dos
suspeitos desses assassinatos teria posteriormente assumido o comando de
corpos provisórios, especialmente durante os sucessos de 1923. (VELHO,
1923, p. 49; MEDEIROS, 1980, p. 180; AXT, 2001c).
Dentre os casos mais comentados na época de interferência política
nas sentenças do Tribunal dardejava o processo movido contra Wenceslau
Escobar. Pesando sobre ele uma acusação de calúnia e difamação, lançada
pelos irmãos Evaristo e o senador Carlos Barbosa Gonçalves por conta do
que afirmara nos seus “Apontamentos...” (ESCOBAR, 1919), não foi
pronunciado pelo juiz da primeira instância. Entretanto, o Superior Tribunal
reformou a sentença e, depois de publicado o acórdão, entendeu ainda ser
tíbia a pena cominada, aumentando-a 35 dias mais tarde. A sentença foi
suspensa por força de um habeas-corpus do Supremo Tribunal de Justiça.
Considerando a fortaleza federativa brechada, o Superior Tribunal
reapresentou a denúncia pelo mesmo delito. (ESCOBAR, 1922, p. 205).
De fato, o Código de Processo Criminal do Estado, Lei 24, de 15 de
agosto de 1898, pelo artigo 515, facultava apelações indefinidas, desde que
a pena não fosse inferior a 20 anos de cadeia. Plínio Casado impetrou
habeas-corpus o Supremo Tribunal em favor de Irineu de Freitas Guimarães,
federalista três vezes absolvido e três vezes mandado, a pedido do chefe do
Diretório Municipal do PRR de Porto Alegre, para novo júri pelo Superior
Tribunal. (ESCOBAR, 1922, p. 88-89; PEREIRA, 1923, p. 38-40). Ao contrário
de Irineu Guimarães, o assassino do federalista Nicanor Peña, Cel. Lucas
Martins, depois de duas vezes condenado por diferentes júris, foi absolvido
pelo Superior Tribunal em Porto Alegre, numa sentença considerada, na
época polêmica, pois que abriu a dissidência do desembargador José Valentim
do Monte, único a dar voto contrário. (ESCOBAR, 1922, p. 172; AZEVEDO,
1985, p. 25; AXT, 2001c).
O direito processual penal castilhista-borgiano vazava outras
peculiaridades. Muito embora o inquérito policial tivesse sido abolido, a
formação de culpa era dividida em duas fases: a dos atos secretos e a dos
atos públicos. Na primeira, o denunciante reunia cinco testemunhas, e o
juiz inquiria-as sem a presença do réu. Considerando-se que os juízes
distritais eram demissíveis ad nutum, o manejo dos depoimentos costumava
ser prática corrente.25 Na segunda fase, aberta poucos dias depois de encerrada
a fase secreta, impetrante e réu apresentavam, cada qual, cinco testemunhas,
enquanto o acusado, apenas cinco. Nessa fase, a reinquirição das testemunhas
de acusação da fase secreta, embora possível, podia ser obstada pelo
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
53
desaparecimento do depoente, ou mesmo pela sua morte, o que não invalidava
o depoimento original. (ESCOBAR, 1922, p. 86-87).
A falta de garantias ao acusado continuava na formação do júri.
Enquanto a tradição processual penal brasileira preconizava o sorteio de 12
jurados dentre 36 ou 48 cidadãos indicados, o Código gaúcho determinava
o sorteio de cinco jurados dentre apenas 15 indicados, o que evidentemente
reduzia as chances de surpresas e insubordinações e aumentava o poder de
interferência do governo, máxime com a negativa à defesa do réu ao direito
de recusação dos jurados, bem como com a supressão do voto sigiloso,
constrangendo o júri ao voto público. (ESCOBAR, 1922, p. 95-96).
Se depois de tudo isso, ainda sobrevinham condenações a aliados
políticos, a facilitação da fuga da cadeia convertia-se em último recurso.
Assim se deu, por exemplo, com o assassino do Juiz Municipal e de Órfãos
de Santa Maria, Felipe Alves de Oliveira, morto a tiros em 12 de agosto de
1891, em plena via pública. Condenado pela segunda vez pelo júri à pena
máxima de 30 anos de reclusão, o que impediria novos recursos, o republicano
e Coronel da Guarda Nacional Martins Hör foi transferido, em 1894, da
cadeia de Porto Alegre para Santa Maria, de onde se evadiu com tranqüilidade.
(CARDOSO, 1978, p. 76-78).
A implantação da Lei de Organização Judiciária e da legislação processual
penal não se processou sem resistências, precisando do apoio firme da
magistratura, do partido e da imprensa governista. Ao abrir a primeira
sessão do Tribunal do Júri após a promulgação da nova lei, em 28 de março
de 1896, o Juiz da Comarca de Rio Grande, Dr. Alcides Lima, negou-se a
aplicá-la, considerando-a ofensiva à Constituição Federal e, mesmo, à
estadual, no que respeitava ao voto a descoberto e à impossibilidade de
recusação do júri, iniciativa que desencadeou longas batalhas judiciais.
(NEQUETE, 1973, p. 20).
No fim de 1898, em Santa Maria, ao ser sorteado na sessão ordinária
do júri para compor o conselho que sentenciaria dois soldados da Brigada
Militar, acusados de roubo, o cidadão João Pinto recusou a investidura, por
se sentir coagido em virtude da votação a descoberto, diante do que foi
admoestado pelo Juiz da Comarca, Dr. Olavo Godoy, que o fez ver que “a
desobediência a qualquer lei, emanada de autoridade competente, constituía
crime”. No dia seguinte, a imprensa governista local fustigou o “jurado
dissidente”, marcando-o como inimigo na trincheira.26
54
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
Os juízes da comarca, por sua vez, eram, em geral, aliados do presidente,
que usufruía eficazes mecanismos de controle sobre a carreira. Os concursos
de admissão podiam ser manipulados. Havia proponentes que sequer se
expunham aos testes sem consulta prévia ao líder palaciano.27 Uma vez
nomeado, a subordinação do juiz era assegurada por meio do sistema de
concessão de promoções e, até mesmo, das aposentadorias, que dependiam
de decretos do presidente do Estado.
As raras insubordinações eram enfrentadas, se não com remoções e
com a imposição de prejuízos à carreira, por métodos mais sutis. Em
Caxias do Sul, por exemplo, com a dificuldade de justificar o “interesse
público” na remoção do juiz José Gonçalves Ferreira Costa, que prolatava
sentenças contrárias aos objetivos do presidente Borges e seus aliados em
plena crise da cisão republicana, o Decreto 1.226, de 17 de dezembro de
1907, transferiu a sede da comarca para Bento Gonçalves, convertendo
Caxias do Sul em termo, ao lado de Garibaldi. Posteriormente, diante da
acomodação dos interesses, a sede foi restabelecida em Caxias do Sul, pelo
Decreto 2.408, de 26 de abril de 1919. (ASSIS BRASIL, 1923; ALMEIDA,
2003). Em outro episódio, Borges de Medeiros orientou o intendente e
chefe político de São Gabriel, Salvador Pinheiro, a iniciar um processo de
destituição do cargo contra um juiz inconveniente através de petição
documentada ao Superior Tribunal, por cuja sentença favorável assumiria
integral responsabilidade.28
A prática da Justiça era um terreno onde reboavam com intensidade os
interesses privados e as disputas facciosas. Processos, contratos, testamentos,
sentenças e julgamentos eram, frequentemente, motivos de atrição entre
correntes e lideranças partidárias. Alguns episódios podiam tornar-se
extremamente nervosos, justamente por colocarem à prova o prestígio
político de um coronel. Foi o caso de um julgamento, entre tantos outros
com os quais o mesmo se passou, em Cachoeira do Sul, em 1898, quando
o subchefe de Polícia, Ramiro de Oliveira, empenhou-se, oferecendo garantias
aos jurados amedrontados, pela condenação de dois capangas, mas enfrentava
oposição de advogados e chefes políticos locais.29
A fim de garantir o seu interesse político e o de seus aliados, Borges de
Medeiros procurava intervir em algum momento da ação judicial. Era comum
os juízes de comarca consultarem o presidente a respeito do procedimento
mais adequado a ser adotado.30 Sem dúvida, o conjunto dessa interferência
era sempre conduzido com discrição e cuidado, para não deslustrar a imagem
de isenção da Justiça. Até os próprios coronéis reconheciam que, em certos
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
55
casos, não havia como evitar denúncias ou processos contra protegidos,
diante da repercussão extremamente negativa que a desconsideração do
caso poderia suscitar.31
Borges de Medeiros esperava dos juízes de comarca relativo
distanciamento em face das disputas locais e equivalente lealdade ao governo.
Essa condição era facilitada pela origem externa ao Rio Grande do Sul,
onde os cursos de Direito foram tardios, de parcela considerável da
Magistratura, que, ao fim e ao cabo, desempenhava papel semelhante, na
República, àquele dos juízes de fora durante a Colônia e dos juízes de
direito durante o Império, como instrumentos do poder central nos
municípios (LEAL, 1978, p. 188), muito embora o poder central, antes
enfeixado pelo imperador, estivesse agora nos estados. A cooptação e
filtragem dos magistrados naturais de outros estados dispostos a atuar no
Rio Grande do Sul eram irradiadas a partir dos prepostos do PRR no
Congresso Nacional, muito especialmente o senador Pinheiro Machado. O
deputado federal e redator da Federação, Arthur Pinto da Rocha, era também
um grande fornecedor de “candidatos”. (MENDES, 1999, p. 68).
Mas o grau de autonomia dos juízes em relação às facções variava de
um caso para outro, conforme os acordos e as acomodações políticas em
andamento. Em Lagoa Vermelha, durante o levante de 1917, a imparcialidade
do juiz Álvaro Franco guindou-o naturalmente à condição de mediador
entre as facções, representando, aliás, desgaste pessoal suficiente para que o
mesmo solicitasse a transferência a uma comarca menos turbulenta.32
Se, nesse caso, os contendores identificaram no juiz uma autoridade
neutra, eram, por outro lado, frequentes os choques das lideranças locais
com os cabeças de comarca. O mesmo Coronel Heliodoro Branco, do
motim de 1917 em Lagoa Vermelha, quando intendente e chefe político,
em 1905, queixou-se várias vezes ao presidente acerca do modo de
procedimento “altamente prejudicial” do Juiz da Comarca Alberto Chaves,
que estaria faltando com “a lealdade de correligionário”, tendo, inclusive,
rompido com escrivães, aliados do Coronel, e com o juiz distrital, cunhado
de Heliodoro.33 Alberto Chaves, que, em contrapartida, era naturalmente
elogiado pela facção minoritária na cidade, terminou sendo removido para
Rio Pardo, não sem antes garantir que o Coronel Cândido Guimarães,
castilhista intransigente, deixasse de acumular indevidamente o cartório de
órfãos e o notariado, indispondo-o com os demais correligionários, ao
desmoralizá-lo e fazê-lo perder eleitores e forçando sua saída da Comissão
Executiva do PRR local, a qual integrava desde 1890.34
56
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
A ação de um juiz da comarca, Dr. Batista Gonçalves, com apoio a
Borges de Medeiros pelos bastidores, também esteve na origem do processo
de dissidência do Coronel Isidoro Neves da Fontoura, de Cachoeira do
Sul, que se agastou ao serem citados e presos correligionários seus, autoridades
e funcionários públicos, envolvidos num escândalo de falsificação de um
testamento, fraude, aliás, corrente.35 Em 1901, Carlos Barbosa Gonçalves,
chefe político de Jaguarão, queixava-se a Castilhos e a Borges de Medeiros
da sentença condenatória do juiz da comarca contra uma autoridade
administrativa local e da confirmação da sentença pelo Superior Tribunal:
“Os desembargadores estão maragateando e fazendo política dentro do
Tribunal”.36 Ao que responderam, os líderes acatarem “a autonomia legal
da magistratura”, não podendo, ainda, a “Federação apreciar de qualquer
modo os atos do Superior Tribunal”.37 Além de coibir irregularidades,
constranger o comércio de vantagens e encaminhar desfavoravelmente
processos judiciais, o juiz da comarca podia ainda prejudicar um chefe
político local ao lavrar a ata eleitoral de organização dos mesários e de
divisão das mesas por sessões, que estava sob sua responsabilidade.38
Assim, política, administração e Justiça andavam de mãos dadas. Borges
de Medeiros sabia lançar mão dos seus trunfos quando queria desprestigiar
um chefe local. Se a pressão tornava-se muito forte, removia o juiz, com a
certeza de ter provocado algum estrago, pois a ação do magistrado atingira
a respeitabilidade moral do chefe político. Em contrapartida, o juiz também
ficava exposto a intrigas e maledicências que visavam a atingir sua
honorabilidade perante o chefe e perante a opinião pública.39
Do mesmo modo que utilizava a Justiça para comprimir os poderosos
locais, Borges podia alinhá-la aos interesses de uma facção que se dispunha
a prestigiar, conquistando, desse modo, especial gratidão e lealdade dos
seus integrantes. Em julho de 1918, a mando do intendente de Santa
Maria, Astrogildo de Azevedo, soldados da Brigada Militar comandados
pelo Subintendente da sede e Delegado de Polícia, Raul Soveral, assaltaram
o prédio onde funcionava o jornal federalista Correio da Serra – que há
várias semanas zurzia a situação política com uma campanha difamante –,
empastelando a tipografia e atentando contra a vida do proprietário, Arnaldo
Mello, o qual, auxiliado por sua esposa, valente atiradora, rechaçou a
investida, fazendo um dos soldados tombar junto ao leito do casal, indo
outro ainda falecer no hospital horas mais tarde. O episódio precipitou a
queda do intendente, determinou a denúncia do delegado pelo promotor e
conturbou a política local. Meses depois, entretanto, o juiz da comarca,
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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Florêncio Carlos de Abreu e Silva, logo em seguida premiado com nomeação
para o desembargo, não vendo nos autos atentado de morte, apenas crime
de dano material, julgou não ser o caso de procedimento oficial, obstando
a continuidade do processo, num despacho que foi confirmado
posteriormente pelo Superior Tribunal. Liberto, o ex-delegado Raul Soveral
assumiu a redação de um jornal situacionista, tornando-se inflamado
defensor do regime.40
Em 1913, o intendente e chefe político de Cachoeira do Sul, Balthazar
de Bem, pediu, com sucesso, a interferência de Borges de Medeiros junto
ao Juiz da Comarca, Alberto Chaves – o mesmo que tanto “bochincho”
criara em Lagoa Vermelha e Rio Pardo –, a fim de que esse revertesse
sentença num caso de habeas-corpus para uma prisão efetuada pela polícia
administrativa, comandada pelo próprio intendente.41 De fato, conflitos
de competências entre a polícia administrativa e a Justiça eram correntes.
Passados alguns meses, o fenômeno se repetiu, arranhando a autoridade do
intendente e constrangendo o juiz, diante de nova reprimenda, a desculparse com o presidente Borges.42
Mas nem sempre Borges dispunha de controle absoluto sobre os
magistrados. Podia acontecer de um juiz da comarca aliar-se a um poderoso
coronel e, assim, não acatar todas as determinações do chefe. Assim foi,
mais uma vez, com o irrequieto Alberto Chaves, que, em meio ao ruidoso
“caso dos habeas-corpus”, buscou proteção do Coronel Horácio Borges,
tio do presidente, o qual, nesse momento, estava em dissensão com a
Intendência de Cachoeira do Sul, criando, por tabela, problemas para seu
sobrinho governante.43 O juiz acabou sendo removido. E por não ter sido
defendido por Horácio Borges como esperava, denunciou um esquema de
corrupção entre os escrivães do cartório indicados pelo coronel, o que
custou o afastamento de um protegido seu.44 Para admoestar os coronéis,
Borges deixou Cachoeira do Sul por vários meses sem Juizado de Comarca,
o que emperrou o trabalho forense. Quanto a Alberto Chaves, esse foi
transferido para Santa Maria, onde atuou entre fevereiro de 1915 e janeiro
de 1918 e desgostou a facção dominante por recusar títulos eleitorais
fraudados e, novamente, vinculou autoridades a denúncias de prevaricação.45
Havia juízes da comarca que, ao contrário, viviam em sintonia com o
comando de uma forte facção municipal, escapando do controle borgiano.
Assim se dava, em especial, na Comarca de Livramento, onde,
frequentemente, os magistrados eram reconhecidos pelos chefes partidários
como um “companheiro dedicado e leal”.46 O quadro se repetia em São
58
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
Gabriel, onde a facção liderada pelo dissidente Fernando Abbott permanecia
forte. (VARGAS, 2002). Nesses casos, como de resto também falhasse o
promotor, um grupo de descontentes podia encaminhar ao chefe e presidente
estadual denúncias dos esquemas de corrupção que envolviam funcionários
da Justiça.47 Borges de Medeiros costumava manter espias em certas
localidades para confirmar tais denúncias, alguns dos quais eram os próprios
promotores públicos ou, ainda, fiscais da Fazenda. Mas, diante da força de
lideranças consolidadas, pouco podia fazer, pois eventuais substitutos não
tardariam a ser seduzidos pelo poder local, que, afinal, também se impunha
ao próprio presidente. O máximo ao seu alcance, nesses casos, era aparelhar
uma outra facção para a conquista do poder, o que certamente traria
consequências para a estabilidade política estadual e nem sempre se constituía
em garantia de maior controle em benefício do poder central.
As funções dos juízes distritais tinham uma conotação mais clara. As
nomeações eram temporárias e invariavelmente feitas pelo presidente do
Estado a partir de indicações dos chefes políticos municipais, que, por sua
vez, com frequência, recorriam às sugestões dos chefes distritais.48 Os
mandatários não precisavam ser necessariamente formados em Direito e
podiam continuar exercendo, simultaneamente, outras profissões. O posto
costumava ser ambicionado por estudantes de Direito, advogados em
dificuldades profissionais, serventuários da Justiça e negociantes distritais.
A rotatividade nos cargos parecia ser alta. Para cada efetivo existiam três
suplentes, os quais, entretanto, quando convocados, serviam geralmente a
contragosto.49
Os juízes distritais preenchiam função estratégica no que respeitava
aos métodos de controle político e expropriação econômica vinculados a
uma dada facção. Os indicados haviam sempre prestado “bons serviços” no
processo de construção da hegemonia da facção, especialmente no que tange
à arregimentação de eleitores ou à administração do partido. Guido Pasini,
por exemplo, foi nomeado primeiro-suplente de juiz distrital em Cachoeira
do Sul por ter organizado mais de sessenta eleitores.50 Em 1899, o intendente
e chefe político de Cachoeira do Sul, Coronel David Barcellos, solicitava a
recondução de Irineu Ilha, tesoureiro do Diretório do PRR local, no cargo
de juiz distrital.51
Eram correntes as denúncias de tráfico de influências envolvendo juízes
distritais, advogados e chefes políticos. Ocasionalmente, surgiam conflitos
entre os juízes de comarcas e os distritais. A partir de 1915, algumas
nomeações passaram a prescindir das indicações dos chefes políticos locais,
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
59
que nem sempre conseguiam também a remoção dos juízes em caso de
desentendimentos, o que indica uma mudança qualitativa na relação com o
poder central estadual.
Os promotores públicos eram considerados, conforme a Lei 10,
serventuários da Justiça e secundavam a autoridade hierárquica do juiz da
comarca. Tinham uma relação de fidelidade direta com o procurador-geral
de Justiça, escolhido dentre os sete desembargadores do Tribunal, e,
indiretamente, com o presidente do estado e/ou chefe político.
Ocasionalmente, sobretudo quando o poder local tinha força de absorção,
verificava-se o alinhamento de um promotor a uma facção partidária.52
Mas, via de regra, eram verdadeiros agentes do poder central nos fóruns e
nas cidades. Depois de 1903, Borges de Medeiros tratou de transferir e
substituir, nas comarcas, os promotores que, ao invés de se filiarem à nova
facção palaciana, permaneceram fiéis à facção local anteriormente organizada
sob os auspícios de Júlio de Castilhos.53
Os laços dos membros do Ministério Público com o governo eram
ainda mais estreitos do que aqueles dos juízes das comarcas. O governo
central adotara a estratégia de nomear promotores interinos, demissíveis,
portanto, ao nuto presidencial.54 De 185 nomeações havidas entre 1895 e
1928, 148 foram para exercer o cargo interinamente.55 O exercício da
função era temporário, e a maior parte dos promotores formados em direito
– nem todos eram – aspirava à magistratura de comarca. Em geral, os
juízes efetivamente faziam como que um estágio na Promotoria Pública.
As funções do Ministério Público restringiam-se basicamente à ação penal
e confundiam ao mesmo tempo a defesa dos interesses do estado e da
sociedade. (AXT, 2001d).
Na condição de delegados do poder central, nos fóruns e nos municípios,
os atritos dos promotores com as autoridades administrativas em algumas
cidades eram frequentes, muito embora pouco extravasassem os mesmos
para o conjunto da opinião pública. A confusão de competências entre
polícia judicial e polícia administrativa fazia com que, seguidamente, os
promotores contestassem prisões ou inquéritos realizados pelos
subintendentes, a mando dos intendentes. Acirradas polêmicas formavamse em torno do direito de concessão de habeas corpus, já que as prisões
administrativas tinham caráter correcional e não poderiam estender o prazo
de 24 horas. A atuação dos delegados e subdelegados de polícia também era
motivo de confronto com alguns promotores, já que essas autoridades,
escolhidas sempre em combinação dos chefes políticos locais com o chefe60
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
geral, estavam comprometidas com as facções partidárias dominantes nos
municípios. Conflitos em vista dos procedimentos dos juízes distritais,
funcionários “afogados até o pescoço” nas redes de compromissos locais,
eram também recorrentes. Da mesma forma, a relação com os demais
serventuários da Justiça nem sempre era pacífica, já que, mesmo quando
haviam esses conseguido sua nomeação através de acesso direto ao presidente
do estado e chefe político-geral, eram figuras inseridas no contexto das
relações de poder e de interesses locais. Nas localidades em que o poder
central tinha menos força, os promotores ou eram tragados pela rede de
compromissos e seus esquemas de corrupção ou se limitavam à condição de
informantes para o governo, que nem sempre tomava as atitudes cabíveis
diante das denúncias.
Em face dos juízes da comarca, de modo geral, os promotores
guardavam respeitosa observância, mesmo porque dispunham do canal direto
de comunicação com a presidência do estado. Não obstante, a dependência
direta do promotor ao Executivo era uma garantia extra de pressão sobre
os juízes e os tribunais. Os promotores sempre se dirigiam ao procuradorgeral, consultando-o a respeito dos procedimentos mais recomendados em
cada caso. O procurador-geral, por sua vez, agia em perfeita sintonia com o
presidente do estado. A principal atribuição dos promotores parecia ser a
fiscalização da ação das autoridades administrativas locais, especialmente
contratos de gestão públicos e exercício do poder de polícia.56
Com efeito, Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros usaram e abusaram,
nos primeiros anos de República, da possibilidade de perseguir os intendentes
através dos promotores. Antônio Cândido Coutinho, intendente de São
Jerônimo, apenas se livrou da perseguição com um habeas corpus do Supremo
Tribunal. Aureliano Barbosa, intendente de Itaqui, incorreu nas iras de
Castilhos por se ter declarado parlamentarista, sendo logo processado e
condenado, mas absolvido pouco depois pelo Supremo. O mesmo teria se
dado com Epifânio Fogaça, de São Leopoldo; Alfredo Azevedo, de Porto
Alegre; Estevão Brandão, de São Francisco de Assis; e o Coronel Antunes,
de São Gabriel. (ESCOBAR, 1922, p. 91-92). O desgaste oriundo das sucessivas
intervenções do Supremo em favor dos réus, reformando sentenças, fez
com que, a partir de 1900, diminuísse o número de processos movidos
contra intendentes pelos promotores públicos gaúchos. A mudança talvez
tenha também relação com o espírito menos persecutório de Borges de
Medeiros, que, diferentemente de Castilhos, podia se contentar com o
simples afastamento do inditoso insubordinado.
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
61
Os cargos dos serventuários da Justiça, embora devessem ser nomeados
pelo presidente do estado a partir de concursos públicos, também eram
loteados entre os coronéis. Os artifícios para manipulação dos concursos
eram muitos, mas chamava a atenção o hábito de anexar notariados e cartórios
por decreto quando o candidato mais bem-posicionado carecia de indicação.
Desse modo, anulava-se a necessidade de nomeação, sendo o ofício
novamente desanexado quando a ocasião se fizesse oportuna. (ASSIS BRASIL,
1923).
Quanto mais votos um cabo eleitoral arregimentava, melhor era a sua
chance de colocação. Muito embora todos os serventuários fossem militantes
do PRR, dificilmente uma mesma facção municipal conseguia abocanhar
sozinha todos os cargos. O controle de Borges de Medeiros e das facções
palacianas nos municípios sobre os serventuários da Justiça aumentou após
a derrota de Fernando Abbott, em 1907,57 mas recuou na década de 20
(séc. XX). Em Cachoeira do Sul, por exemplo, após a Revolução de 1923,
os Neves da Fontoura controlavam o funcionamento quase absoluto do
aparato da Justiça local.58
Borges de Medeiros exercia, ainda, controle direto sobre alguns
funcionários administrativos, como inspetores e delegados especiais do
Tesouro do Estado, destacados para o trabalho de fiscalização da sonegação
tributária e do contrabando. Por viverem em trânsito, de uma cidade para
outra, operavam como informantes das situações políticas locais.59
Além disso, alguns funcionários mais graduados da Secretaria de Obras
Públicas, lotados no interior em comissões especiais ou permanentes,
convertiam-se em ativos agentes políticos, articulando uma dedicada facção
palaciana. Esse era o caso, por exemplo, de Abelino Vieira, engenheiro
destacado, em 1905, para a Comissão de Fiscalização da Viação Férrea,
estabelecida em Santa Maria, que evoluiu de espião e informante para
alcoviteiro e, então para membro da direção local do PRR. Foi eleito
conselheiro e ocupou posição na Comissão Executiva do partido local,
chegando a desempenhar importante papel na organização das eleições e
nas brigas de facções que agitaram o município. Terminou premiado com
um lucrativo notariado e cartório acumulados, que rendeu uma pequena
fortuna, pagou dívidas de campanhas e muita inveja despertou. Esse era o
autêntico “coronel burocrata”, uma figura que devia seu prestígio político
ao investimento que nele fora feito pelo presidente do estado e chefe-geral
da política estadual. Mas, por não ser um coronel na origem – com posses,
patente da Guarda Nacional e exércitos de eleitores em currais –, jamais
62
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
pôde aspirar de fato à chefia unipessoal do partido na cidade, como de
resto faziam os demais coronéis, nem tampouco tinha chances consistentes
de alcançar a intendência. O que diferenciava Abelino Vieira da maior parte
dos outros repúblicos é que, embora trabalhasse para a hegemonia de uma
facção partidária, colocava sempre a lealdade e submissão a Borges de
Medeiros acima dos interesses pessoais e corporativos, o que não o impedia,
aliás, de discordar, respeitosa e ocasionalmente, das decisões do mesmo,
nem tampouco de tirar proveito próprio quando a situação se configurasse
favorável para tanto.60
Burocratas leais, como Avelino Vieira, com real poder de influência
nos rumos da política, eram o sonho de Borges de Medeiros, mas não eram
tantos assim. Afinal, no âmbito do aparato funcional, era em parte da
Justiça e da força policial que residia o principal trunfo de Borges de Medeiros
para afirmação do poder central nos municípios dominados pelo coronelato.
Entretanto, nos chamados municípios da zona de colonização ítalogermânica, alguns intendentes, estranhos à região, eternizaram-se à testa
das chefias políticas e das administrações locais, possivelmente caracterizando
a figura do “coronel burocrata” que era, ao mesmo tempo, funcionário
público, bacharel, administrador e homem de partido leal à facção palaciana.61
Enquanto essa fórmula não era alcançada, Borges de Medeiros, chefe
político e administrativo, pendulava nos municípios com as facções do
partido único, ora acumulando desgaste, ora obtendo vitórias parciais.
Provavelmente, existiam, pelo menos, duas facções em todos os municípios
do interior. As facções partidárias locais pertenciam à natureza do sistema
coronelístico, adquirindo, no Rio Grande do Sul, dimensão específica,
devido ao regime constitucional centralizado e ao governo de partido único
em coexistência com um partido de oposição formalmente constituído,
mas excluído do processo político.62
Uma facção formatava-se quando os eleitores republicanos no município
dividiam-se em grupos que seguiam chefias políticas divergentes. Tais chefias
tinham vezo personalizado e eram constituídas por um ou mais coronéis,
os quais angariavam aliados entre autoridades públicas, endinheirados locais
ou lideranças comunitárias, como os padres nos distritos. No interior da
facção, corria o tráfico de influências e o comércio de vantagens. Favoreciamse contratos para os negócios dos aliados, os advogados eram tratados com
privilégios por serventuários e magistrados, a imprensa elogiava os amigos,
para cujos eventuais crimes havia ainda indulgência. Em contrapartida, os
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
63
membros da facção oposta eram perseguidos pelas autoridades públicas,
espezinhados pela imprensa alinhada e prejudicados profissionalmente.
Uma facção nascia do clima de disputa entre dois ou mais coronéis por
vantagens hauridas do sistema político. Vínculos de compromissos, oriundos
de laços de parentesco, relações empregatícias ou trocas de favores dividiam
os eleitores, autoridades públicas e mandões intermediários entre os grupos.
Para que uma facção crescesse em importância e tamanho, tornava-se
fundamental, a partir de certo momento, o apoio das altas estrelas do
partido e, especialmente, do governo. Dentre os primeiros passos de uma
facção para se consolidar estavam a fundação de um clube republicano,
batizado sempre com o nome de algum repúblico de escol, como Júlio de
Castilhos, Borges de Medeiros ou Pinheiro Machado, e a cotização dos
correligionários para fundação de um jornal, o qual seria utilizado como
veículo de propaganda da facção e de combate aos adversários. O coronel
identificado como chefe político principal da facção, necessariamente, entrava
com a maior cota, o que podia representar pesado ônus financeiro. Outro
território disputado era preenchido pelas sociedades de tiro, que treinavam
a população civil para casos de conflito. Além da chance de vitória nos
pleitos locais, era ainda fundamental (para a consolidação de uma facção)
ter acesso a um canal distribuidor de cargos.
Numa sociedade onde a fronteira entre o público e o privado era tênue,
o funcionalismo representava uma fonte de renda e de poder. O coronel, na
liderança de uma facção, era uma espécie de defensor dos interesses do
município e de seus aliados no governo central. Na capacidade de trazer
benefícios para a cidade, reunir eleitores e controlar o maior número possível
de cargos, bem como acessar os canais de distribuição dos mesmos, residia
o termômetro do prestígio e da pujança de uma facção. As nomeações e os
pedidos eram invariavelmente intermediados pelo chefe político, que, muitas
vezes, via nos cargos públicos e também nos contratos assinados com o
estado que privilegiassem interesses privados, formas de compensações pelos
gastos realizados de seu próprio bolso nas campanhas políticas e eleitorais.63
A distribuição de prebendas obedecia a critérios que levavam em conta o
grau de inserção do candidato na rede de compromissos e os serviços
prestados à facção e ao partido, sobretudo no consoante às eleições.64 O
agraciado retribuía em lealdade ao coronel responsável pela indicação,65
atendendo às determinações daquele com primazia, mesmo que estivessem
em contradição com as leis ou a moral. Desse modo, a rede de compromissos
da facção se fortalecia. Enfeixando o comando do Poder Executivo, Borges
64
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de Medeiros converteu-se no principal distribuidor de prebendas, condição
que soube administrar de forma a forjar lealdades, dobrar dissidentes e,
mesmo, seduzir oposicionistas.66
Um dos instrumentos mais importantes que podia ser desdobrado por
um coronel era a prerrogativa concedida pelo presidente estadual sobre a
indicação de professores. A instrução pública era uma das principais áreas
de intervenção do estado, consumindo sempre grandes somas de recursos
orçamentários. Além da melhoria geral nos padrões de vida da população, o
investimento em educação era uma ferramenta privilegiada de doutrinação
política (MAIA, 1907) e criava, ainda, exércitos de novos eleitores, desde
que a alfabetização se constituía em requisito para o sufrágio, projetando o
estado em escala política nacional.67 A educação era, portanto, estratégica
para a sustentação política e a inserção nacional da elite dirigente gaúcha.
Nos distritos municipais, a criação de aulas e a nomeação de professores
eram um dispositivo valioso para a consolidação do domínio político, pois
promovia uma fonte de renda para correligionários leais ao mesmo tempo
que demandas dos eleitores eram satisfeitas.68 O comércio do magistério
não tinha a mesma envergadura em todas as cidades. Ganhava mais destaque
justamente naquelas localidades que possuíam distritos com colonização
ítalo-germânica, nos quais uma facção com franco apoio palaciano esforçavase pela afirmação. Assim, por exemplo, ao assumir o comando político em
Cachoeira do Sul, o Coronel Isidoro Neves da Fontoura, que, todavia, não
ocupava a intendência nesse momento, advertia o presidente: “Em breve
irei até aí para termos a ocasião de conversar amplamente sobre a política
local; pode desde já ficar prevenido que irei carregado de pedidos,
especialmente de aulas”.69 Em outra oportunidade, Isidoro dizia com todas
as letras: “Sendo de grande alcance político a criação de uma aula a mais
naquele distrito, peço-vos que seja mais essa além das que já deixei nota,
contemplada no quadro.”70
Se o poder central delegava tão importante fonte de prestígio político
e de cooptação aos coronéis, era porque precisava muito do seu apoio e
porque o seu prestígio local seria conveniente para o regime. De qualquer
forma, essa dialética revela um aparelho de estado infraestruturalmente frágil,
que precisa delegar ao poder privado uma importante fonte de prestígio e
cooptação porque, em parte, dele depende politicamente. O comércio do
magistério era mais expressivo justamente naqueles distritos menos
subordinados. O fato de a interferência dos coronéis sobre os quadros do
magistério diminuir na década de 20 (séc. XX) pode sugerir que o poder
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central tivesse conquistado mais autonomia relativa em face dos mandões
locais, mas também que as nomeações fossem diretamente negociadas entre
os chefes políticos locais e os burocratas responsáveis pelos quadros do
magistério.71
Existiam três formas de relação das facções com o poder central: atrito,
cooperação e indiferença. Algumas facções nasciam à revelia da chefia
palaciana e podiam representar-lhe constrangimentos. Outras eram
encorajadas a crescer pelo comando palaciano. E, finalmente, existiam
algumas que não suscitavam nada além da indiferença. Ainda assim, essa
isenção seria temporária, pois chegaria o momento em que uma opção
necessariamente se faria.
O sonho dos coronéis era alcançar a chamada “chefia unipessoal”,
repetindo em escala doméstica o que Borges procurava imprimir a todo o
sstado. Esde desiderato, entretanto, mais cedo ou mais tarde despertava a
ambição de correligionários, ou eclipsava a própria autoridade do poder
estadual. Por isso, e sendo esse poder infraestruturalmente vulnerável,72 Borges
de Medeiros precisava ter sempre uma “carta na manga”. Nesse momento,
entravam em cena as autoridades e os funcionários públicos sobre os quais
dispunha de melhor controle, seja para monitorar a ação dos poderosos
locais, seja para determinar ações que viessem a enfraquecer as bases da
facção dominante, seja, ainda, para estimular o crescimento, ou mesmo, o
surgimento de uma nova facção. Diante das contingências, era ideal para o
líder que a situação política nos municípios pudesse ser mantida, se não em
total submissão ao seu comando, na fronteira entre a estabilidade e a
instabilidade. A gangorra das facções, em alternância nos comandos político
e administrativo municipal, dividia a força das lideranças locais,
incrementando, consequentemente, o poder pessoal de barganha e de pressão
do chefe palaciano sobre as mesmas.
As eleições, mesmo quando seus resultados não fossem respeitados e
mesmo que todos conhecessem previamente os vencedores, eram, ainda
assim, importantes para medir o alcance da influência de uma facção em
ascensão ou decadência. Levando às urnas, ou afastando delas, o maior
número possível de eleitores, uma facção demonstrava seu poder de fogo.
As fraudes, a compra de votos, as intimidações e violências eram indicativos
da capacidade de mobilização da facção. Os prélios também eram estratégicos
para que o discurso oficial pudesse continuar afirmando estar o Rio Grande
do Sul dentro da normalidade do ordenamento jurídico, afastando, assim,
as acusações de oligarquia ou ditadura que pesavam sobre o regime.
66
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Finalmente, havia a ameaça dos opositores federalistas de conquistarem
terreno, sobretudo nas eleições federais. O governo, efetivamente, necessitava
de certa margem de legitimidade junto ao eleitorado. Para a mística discursiva
do “Poder Moderador”,73 essa margem tinha de ser a maioria esmagadora,
muito próxima do consenso. Nada, portanto, podia ser mais alarmante que
um alto índice de abstenção de eleitores republicanos em uma sessão eleitoral.
Esses eventos suscitavam imediata reação do chefe palaciano. Borges
inquiria, então, seus colaboradores, ouvia terceiros e reavaliava suas opções.
Tais abstenções eram sempre provocadas por um coronel de prestígio,
precipitado em dissidência, que arrastava os aliados e eleitores consigo ou
os assustava, com ameaças e intimidações, o que, por derivação, traduzia a
fraqueza da facção situacionista. Uma abstenção elevada também podia ser
causada pela impopularidade da administração municipal, que deixava em
descoberto demandas básicas dos eleitores distritais. (AXT, 2001b).
Onde a presença republicana era embaçada, insinuava-se a ameaça de
crescimento ainda maior das dissidências e até mesmo do federalismo.
Portanto, havia um limite além do qual Borges não podia investir no
esfacelamento e na submissão do partido, sob pena de enfraquecer sua
posição logo em seguida. Nesses casos, assim como naqueles em que o nível
de conflito entre facções de força mais ou menos equivalente atingia
proporções insuportáveis, os aliados de Borges de Medeiros divisavam o
mesmo espectro – representado pela ameaça dos federalistas, de crescimento
da dissidência ou de prejuízos ainda maiores decorrentes de violências e
perseguições –, reclamando, então, com “todas as letras”, a intervenção do
“Poder Moderador”.74 O “Poder Moderador” do chefe político, que até
esse momento se manifestara de forma sub-reptícia, manipulando a ascensão
ou o desgaste das facções, intervinha agora de duas formas: instituindo um
intendente provisório e/ou constituindo uma “Comissão Executiva” do
PRR local, na qual a maioria receberia três assentos, e a minoria conquistaria
dois.75 (AXT, 2001b).
Quando uma facção reinava soberana, ela controlava o conjunto da
Comissão Executiva, domínio que geralmente derivava, aliás, também de
uma eleição viciada.76 Nas comissões mistas, as facções dificilmente se sentiam
à vontade. A composição de diretórios mistos podia surgir de uma proposta
de Borges de Medeiros para apaziguar as tensões locais ou podia brotar
espontaneamente das facções, quando então a iniciativa tinha por escopo,
mediante a formatação de um modus vivendi, evitar a possível intervenção,
em momento de impasse político local, do poder central, através da nomeação
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de um intendente provisório.77 Nesses casos, Borges de Medeiros costumava
recusar o alvitre, a fim de garantir a intervenção. Quando Borges sugeria
uma comissão mista, procurava garantir que pelo menos um dos seus
burocratas de confiança assumisse um cargo nela, não obstante serem esses
indivíduos mal-recebidos pelos coronéis e chefes políticos locais.78 Uma
facção poderosa, que graças às manobras de seus adversários, alcovitados
por Borges de Medeiros, tivesse sido inteiramente excluída da Comissão
Executiva do PRR local, podia ainda adotar expedientes curiosos, como a
criação de um diretório paralelo, que poderia ser batizado de Comissão
Diretora,79 ou mesmo, ameaçar a criação de um partido republicano
municipal.80 Em certos casos, quando os acólitos de Borges de Medeiros
eram a minoria, podia-se negociar uma Comissão Mista de quatro membros,
sendo dois de cada facção, cabendo ao presidente o voto de Minerva em
caso de impasse nas decisões.81
A Comissão Executiva era, via de regra, mais importante que o Conselho
Municipal,82 o qual, reproduzindo a sistemática da Assembleia dos
Representantes, tinha atribuições meramente orçamentárias e, na prática,
homologatórias. Além do orçamento, os conselhos faziam a apuração das
eleições municipais. A divisão de cargos na Comissão Executiva costumava
ser reproduzida nos conselhos. Quando duas facções entravam em conflito
aberto, os conselhos tornavam-se palco de batalhas, mas, em geral, as
discussões e os impasses ali havidos tinham pouca repercussão política.
Durante o período borgista, os conselhos pareceriam estar um pouco mais
presentes na vida política antes de 1915.83 De ordinário, eram aparelhados
pelas facções dominantes do PRR nos municípios e excluíam os dissidentes
e federalisdas, tornando, pois, inconsistente a atribuição que empunhavam
de derrogar leis emanadas da presidência, como previa a Constituição de
14 de julho. (ASSIS BRASIL, 1923).
Quando se costuravam acordos entre as facções em luta através da
intervenção de Borges de Medeiros ou de outras lideranças partidárias,
fazia-se também o loteamento dos cargos. Os estaduais e os federais ficavam
com um grupo, os intendenciais com outro. Ou, então, se mantinham as
posições de momento e as futuras seriam ocupadas pelos novos donos do
poder, e assim por diante.84 Nesses casos, se procurava ainda um nome de
consenso para ocupar a intendência, com trânsito em todas as correntes,
que, depois de certo tempo na condição de provisório, costumava ser
sufragado em eleição municipal. Dessa forma, partia-se a chefia política e a
gestão administrativa em atividades distintas. Esse candidato de consenso
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podia ser um coronel, mas, em geral, era um negociante local, um profissional
liberal ou um oficial da Brigada, com certa independência entre as facções.
Não raro, era alguém trazido de fora da cidade pela máquina do poder e
desenraizado dos vínculos de compromissos locais.
A intervenção importava sempre num recuo da autonomia local, mas
jamais acarretava controle absoluto por parte do poder central. Para que a
intervenção ocorresse, era necessário um misto de imposição do governo
estadual e de aceitação por parte das facções. A iniciativa precisava, ainda,
ser invariavelmente revestida de legitimidade. Do ponto de vista político,
bastava, para tanto, a constatação geral dos prejuízos auferidos do quadro
de impasse provocado pela briga de correntes. Sob o aspecto legal, forjavamse engenhosos pretextos. A justificativa de fraudes eleitorais ou de
incompatibilidade da lei orgânica municipal em face da Carta de 14 de
julho instrumentalizou mais de duzentas intervenções (LOVE, 1975, p. 83;
PEREIRA, 1923) nos municípios gaúchos entre 1896 e 1923.85
Porém, como o próprio nome lembrava, tais interventores tinham
caráter provisório, embora, em alguns casos, até se prolongassem por anos
na administração. Os diretores políticos locais, mesmo se submetendo à
intervenção, consideravam-na uma situação de anormalidade.86 A harmonia
conquistada entre as facções através do acordo e/ou da intervenção era
momentânea e precária. Nos bastidores, as facções continuavam formigando,
e a paz precisava, então, ser permanentemente mediada por Borges de
Medeiros. Por outro lado, em torno do intendente de consenso, podia se
formar uma nova corrente política, que se aliava ou não às anteriores,87
porque, nos municípios, por mais que assim o desejasse o poder central,
era impossível se separar na prática o plano administrativo do político.
Borges de Medeiros esperava que os adesistas semeados com a intervenção
fortalecessem uma facção palaciana.
As intervenções prolongadas, se, num primeiro momento, robusteciam
o poder palaciano e equacionavam o clima de disputa local, enfraqueciam a
organização partidária,88 refletindo perigosamente sobre o desempenho da
legião republicana nos pleitos estaduais e federais.89 Sempre quando se
avizinhava uma eleição federal, começavam as movimentações nos distritos,
bem como dos altos coronéis, visando à reconstituição da Comissão Executiva
e a requalificação de uma orientação política. Por ser figura externa à rede
de compromissos locais, o intendente provisório tinha dificuldade de
arregimentar o partido para as eleições. As eleições decidiam-se no corpo a
corpo dos coronéis com os cabos eleitorais e eleitores nos distritos, em
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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vista do que os subintendentes, personagens diretamente conectados aos
eleitores, eram sempre figuras-chave. Quando uma facção nova era guindada
ao poder, alguns de seus principais obstáculos para a formatação do domínio
residiam na montagem de um corpo eficiente e leal de subintendentes, com
efetiva penetração no eleitorado. O mesmo acontecia aos interventores.
(AXT, 2001b).90
Assim, bem ou mal, o processo eleitoral, por mais fraudado e
manipulado, não podia ser inteiramente controlado nem pelo poder central
nem pelos poderes locais. Havia sempre uma margem de barganha impressa
nesses momentos, que podia ser maior ou menor, dependendo da
conjuntura.91 O grosso de nossa historiografia insiste no domínio férreo de
Borges de Medeiros sobre os municípios, desconsiderando, não apenas a
força de alguns coronéis e a necessidade do regime de compor com eles,
como também a margem de insubordinação dos distritos.92 Embora,
efetivamente, a capacidade compressora do borgismo fosse tremenda, não
faltaram, entretanto, surpresas pregadas ao sacerdote da política palaciana
pelos eleitores dos distritos rurais de importantes municípios. Na fronteira,
como em Santana do Livramento, ou em outros municípios do centro,
como São Sepé e Caçapava do Sul, o problema concentrava-se em distritos
tradicionalmente controlados por federalistas ou pela dissidência, como em
São Gabriel, que resistiam com tenacidade apesar de toda a compressão do
regime. Perigosas armadilhas, contudo, podiam estar preparadas naqueles
municípios onde o PRR era hegemônico, precisamente nos distritos que
reuniam grande número de pequenas propriedades rurais de imigrantes
europeus e seus descendentes. Esses eleitores, frequentemente organizados
em associações comunitárias civis ou religiosas, sabiam valorizar o seu passe,
respondendo às administrações distritais corruptas, autoritárias ou ausentes
com fortes abstenções, ou, mesmo, com sufrágios aos federalistas em épocas
de campanhas federais, o que prejudicava o desempenho geral do partido e
a legitimidade do regime borgiano. (AXT, 2001b).93
Na multiplicidade de graus de hierarquia da rede de compromissos, o
voto tinha o valor de posse, traduzido em um bem de troca, que fluía no
ritmo das barganhas, fortalecendo aquele líder que exercia uma dominação
direta sobre um conjunto de eleitores, os quais tinham, assim, garantida
uma “possibilidade de defesa no grau inferior da escala de poder”, tanto
mais potencializada quanto mais aguerrida fosse a luta entre as facções.
(QUEIROZ, 1989, p. 158-161).
70
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Enfim, a historiografia tem sido ambígua no tratamento dado ao Poder
Judiciário no Rio Grande do Sul. Uma corrente interpretativa castilhista
defendeu a condição de independência da Justiça em face do Poder Executivo.
(CAMPOS, 1903; OSÓRIO, 1930; RUSSOMANO, 1976). Tais argumentos,
produzidos pelos intelectuais orgânicos da época castilhista-borgista, tiveram
força para chegar a trabalhos mais recentes, como o de Franco (1988). A
corrente opositora (ESCOBAR, 1922; PEREIRA, 1923) sustentou a tese de
completa subserviência do Judiciário ao discricionário Poder Executivo
estadual, reduzindo a explicação dos motivos que levaram à essa vinculação
a compressão ditatorial do regime, retratando, contraditoriamente, os traços
de autonomia em relação ao poder central. Por tudo que se viu até o
momento, nem uma nem outra tese parece sustentável.
Por outro lado, a submissão da Justiça de primeiro grau aos poderes
privados locais identificada pela historiografia (LEAL, 1978; FERREIRA, 1989;
JANOTTI, 1999) como algo intrínseco ao sistema coronelista de poder, não
parece plenamente aplicável ao caso do Rio Grande do Sul. Da mesma
forma, não conseguimos visualizar para a Magistratura sul-rio-grandense o
quadro de um estamento desvinculado do tecido social, como o sugerido
por Faoro (1987). Finalmente, de momento, não conseguimos divisar as
contradições, retratadas por Marília Schneider (2001) para o Poder Judiciário
de São Paulo, onde, durante a mesma quadra aqui analisada, o Tribunal
produzia uma Justiça em transformação, entre uma formação social
oligárquica e outra burguesa, capaz de insinuar a afirmação de sua autonomia
como sujeito institucional em meio à tensão de uma sociedade que não
definia com clareza as fronteiras entre o público e o privado, mas que já
reclamava a racionalidade jurídica burguesa como pilar para o
desenvolvimento do processo de acumulação capitalista.
O todo-poderoso chefe palaciano sul-rio-grandense manipulava
importantes instrumentos de coação e cooptação dos poderes locais através
do funcionalismo público e dos aparatos policial e judicial. Entretanto, o
controle sobre a máquina pública precisava ser compartilhado com os coronéis
do partido, podendo lhe escapar das mãos em diversas ocasiões.
Nessa” queda de braço”, o Tribunal de Justiça parecia ser o principal
esteio do governo. O desembargo aproximara-se de Castilhos durante a
institucionalização do regime, como indicam os episódios havidos sob o
“Governicho”, quando o ainda Tribunal da Relação, não se deixando
dominar pelos cassalistas, insurgiu-se contra a prisão do desembargador
Salustiano Orlando de Araújo Costa, acusado de envolvimento na tentativa
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frustrada de golpe de 4 de fevereiro de 1892, concedendo-lhe habeas-corpus,
mas amargando, em represália, a dissolução da Corte por decreto do General
Barreto Leite, em 17 de fevereiro. (MOURA, 1892, p. 112).
O grau de sintonia entre o Superior Tribunal e o comando palaciano
pode ser auferido do processo relativo ao massacre de 14 de julho de 1915,
quando um grupo de opositores à candidatura de Hermes da Fonseca ao
Senado foi espaldeirado e espingardeado pela força pública na Rua dos
Andradas, na capital. O inquérito foi presidido pelo desembargador
Armando Azambuja, também nomeado chefe interino de polícia até a
sentença, o qual entendeu pesar a responsabilidade pelos sucessos sobre os
populares, inocentando a Força Pública, que teria agido em legítima defesa,
sem ordem de carregar armas nem tampouco de disparar. (ESCOBAR, 1922,
p. 174-176).
Essa sintonia em nada inovava em relação à postura da magistratura
durante o Império, compromissada com um projeto político de um estado
unificador e centralizador. (CARVALHO, 1996). Além disso, os magistrados
continuaram compartilhando de atribuições políticas e administrativas. A
diferença estava na falta de transparência dessa investidura, pois se revestiu
a prática judicante com um pálio sacerdotal de uma autonomia funcional
mirífica, quando, no Império, admitia-se com mais clareza o acúmulo de
funções. Nesse sentido, a magistratura republicana estava longe de se
comportar como um estrato burocrático moderno, como pretendia o
discurso borgista, regido, sobretudo, pelos critérios da competência e
prestígio. Mas também não era um corpo estamental com práticas privativas
descoladas da sociedade. Júlio de Castilhos e Borges de Medeiros utilizaram
os instrumentos constitucionais e os diplomas legais disponíveis para a
compressão da Justiça para forjar uma classe de apoiadores ao regime.
Tal qual no Império, a administração da Justiça foi um instrumento
do poder central contra as idiossincrasias do poder privado local. Nesse
sentido, continuou sendo artefato indispensável no processo de construção
da soberania nacional. A diferença fundamental em relação ao Império estava
no alinhamento mais consistente da magistratura a um projeto político
específico, já que a dança dos partidos do período monárquico fora suspensa
com o advento da República castilhista. Em consequência, a magistratura
gozou de ainda menos autonomia de classe durante o regime castilhistaborgista. O grau de compressão do sistema pode ser facilmente medido
pelo Código de Processo Criminal. Se, na estrutura organizativa o borgismo
plagiou o Império, no recheio processual inovou, derrubando garantias
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liberais acumuladas ao longo do século XIX, especialmente com a Lei de
1871.
Em uma sociedade onde os canais de representação eram coarctados, e
o “poder infraestrutural”94 do estado, toldado, a alta administração da Justiça
aliou-se ao Poder Executivo, submetendo-se à compressão, por meios
constitucionais e/ou extralegais, de sua autonomia institucional, não apenas
por conta de vantagens individuais, mas, sobretudo, em benefício do esforço
de construção da autonomia relativa do aparelho estatal, o qual, num sistema
político dominado pelo coronelismo, significava, antes de tudo, afirmação
sobre as lideranças pessoais nos municípios. Da forma prática e
constitucional como se estruturava o regime, restava à Justiça optar pela
submissão ao poder central estadual ou pela contaminação completa pelas
redes de compromissos locais. Atrelada ao poder central, à Justiça, pelo
menos, seria orientada quanto às sentenças em prol de um objetivo geral.
O grau de tensão desse processo pode ser captado na indecisão da
fórmula e nas contradições de sua aplicação. Enquanto o líder partidário e
presidente estadual interferia nas sentenças do Tribunal, os poderes locais
esgrimiam ascendência sobre os juízes distritais e, finalmente, em torno
dos juízes de comarca e dos promotores, fervilhavam pesadas disputas, que
nem sempre favoreciam o poder estadual central.
O preço pago pela Magistratura e pelo Judiciário com a regionalização
da Justiça após o 15 de novembro de 1889, foi a elisão de algumas garantias
que o Império desenhara. Em compensação, a estadualização da Justiça
permitiu a conquista de mais organicidade regional, formatando um embrião
que mais tarde se desdobrou em autonomia institucional e funcional, o que
permitiria o deslocamento do compromisso da Justiça com os interesses do
Estado para os interesses da sociedade. Além disso, ainda que pareça
contraditório, o fortalecimento progressivo do poder infraestrutural (MANN,
1984) e da capacidade interventora do estado, especialmente a partir das
encampações do Porto de Rio Grande e da Viação Férrea, entre 1919 e
1920, foi aos poucos criando as pré-condições para que a Magistratura
pleiteasse também mais atribuições e maior grau de autonomia. (AXT, 2003a).
Pois auxiliando o poder público a sufocar a capacidade de reação e resistência
dos poderes privados locais, ainda que naquele momento isso significasse
adesão à facção palaciana, a Magistratura togada foi progressivamente
liberando-se da pressão absorsora numa ponta, capacitando-se para enfrentar,
em seguida, a situada na outra ponta. Essa requalificação, represada durante
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a Primeira República, foi liberada com a Revolução de 1930, que passou a
delinear um novo formato à Justiça no País e no estado.
O borgismo caracterizou-se por uma tensão exacerbada, permanente
e, muitas vezes, contraditória entre poder central e poderes privados locais.
Os constituintes estaduais de 1891, efetivamente, municiaram o presidente
e chefe do partido com poderosos instrumentos de intervenção nos
municípios, a fim de garantir, naquele momento, a consolidação do PRR
castilhista, legião politicamente minoritária. A confirmação desse esquema
veio através da Revolução Federalista, que operou pela compressão armada
a exclusão da oposição do círculo da representação institucional. Entretanto,
o processo histórico não podia ser congelado e, em pouco tempo, os
constituintes provaram do próprio veneno. Com a morte de Castilhos, em
24 de outubro de 1903, Borges de Medeiros, até então seu fiel escudeiro,
acalentou pretensões de enfeixar a condução unipessoal da política regional,
sobrenadando às demais estrelas do partido e manietando a autonomia dos
diretórios locais. Em resposta, enfrentou três grandes vagas contestatórias,
engrossadas pela aliança entre facções internas insubordinadas e opositores
formais constituídos em outras agremiações partidárias: em 1907, em 1915/
1916 e em 1922/1923. Na primeira, poderosos locais e estrelas peerreristas,
aliados a facções federalistas, embora derrotados, conseguiram adiar a
compressão maior do sistema, embaraçando a chefia política de Borges de
Medeiros. Na segunda, o comando palaciano saiu vitorioso, mas, na terceira,
o aríete da insubordinação partidária, coronelista e opositor brechou
irremediavelmente a fortaleza borgiana, que, afinal, apesar de todos os
instrumentos de compressão, assentava-se sobre as frágeis pilastras inerentes
ao pretendido sacerdócio moderador.
Borges de Medeiros pretendeu usar a mística, inspirada na pregação
positivista, do sacerdócio político para manobrar o sistema coronelista na
condição de Poder Moderador. Porém, se a Constituição de 1891 lhe dera
os instrumentos jurídicos necessários para efetivar esse objetivo, e a ideologia
positivista fornecera ao discurso oficial os elementos de justificativa, as
condições estruturais da sociedade tornaram-no sempre uma possibilidade
incompleta. Borges de Medeiros precisava negociar com os poderes locais,
aliar-se ou, mesmo, submeter-se, em certas circunstâncias, aos coronéis,
não porque fossem eles excepcionalmente fortes – e, aliás, a República sem
dúvida, corroera muito de sua autonomia local –, mas porque o aparelho
estatal era infraestruturalmente frágil, ou seja, a estrutura burocrática, pela
sua natureza dispersa, era insuficiente para que o comando palaciano
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estabelecesse um controle orgânico sobre a sociedade civil, mesmo porque
o aparelho de estado mal patrimonializado e incapaz de promover
arrecadações tributárias poderosas ainda era marcado pela indistinção entre
espaço público e privado. Por mais que o poder sacerdotal desacreditasse a
mística da soberania popular e por mais que o Poder Moderador jugulasse,
fraudasse e manipulasse as expressões da representatividade, havia necessidade
de ser periodicamente celebrado o rito eleitoral, a fim de que a imagem do
Estado de Direito não fosse embaçada, o que poderia motivar o boicote de
parte do Congresso Nacional e, inclusive, uma intervenção federal. As eleições
tornavam-se, assim, o ápice da disputa entre as facções do partido hegemônico
pela supremacia local, que lhes garantiria acesso aos privilégios aspergidos
pelo estado.
O Poder Moderador borgiano jamais poderia se converter em poder
absoluto também porque a desmobilização completa do partido dominante
abria espaço para o crescimento do federalismo ou de dissidências
ameaçadoras, ou bem ameaçaria a projeção nacional do PRR. Além disso, a
insubordinação dos eleitores dos distritos rurais de colonização europeia
acrescentava um ingrediente a mais na instabilidade que circundava e
sombreava a fortaleza moderadora. Portanto, Borges de Medeiros precisava
agir como o morcego, que assopra com o bater das asas enquanto aplica a
mordida marítima, que o alimenta. A recíproca era verdadeira, fazendo
com que também os coronéis mordessem ao mesmo tempo que assopravam
no poder central elogios e subserviências. A supremacia do Poder Moderador
borgiano sedimentava-se, assim, sobre bases instáveis e podia sempre ser
flechada pelas enxárcias, das naus opositoras ou aliadas, à espreita de
condições propícias à reação.
O desfecho da Revolução de 1923, mesmo preservando o domínio do
PRR e a chefia nominal de Borges de Medeiros, constrangeu, entretanto, a
legitimidade do Poder Moderador. O Pacto de Pedras Altas resgatou parte
da autonomia municipal, e Borges de Medeiros precisou abrir concessões
aos coronéis para manter o domínio político do PRR. Porém, a reconstituição
da margem de afirmação do poder local seria apenas circunstancial, pois, de
permeio, a economia regional atravessara transformações que exigiriam nova
composição de forças políticas, enquanto o aparelho estatal sofrera também
modificações que suscitariam uma nova forma de relacionamento entre
elite dirigente e sociedade civil.
O presidente Borges de Medeiros posicionava-se no comando de um
domínio corporativo sobre o estado, consubstanciado no PRR. Mas esse
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
75
amplo domínio, ratificado na exclusão da oposição federalista do campo
das representações política e institucional, não equivalia a controle absoluto.
Graças à tensão entre o poder central e os poderes locais e, ainda, em
virtude da fragilidade infraestrutural do aparelho estatal, o completo controle
da máquina partidária escapava-lhe das mãos, e o comando sobre a arquitetura
burocrática precisava ser compartilhado com os coronéis.
Eram muitos os dispositivos de compressão, jurídicos e extralegais,
esgrimidos por Borges de Medeiros, mas as redes de compromissos
coronelísticos, dentro e fora do partido dominante, também usufruíam
seus trunfos, fazendo com que o próprio líder palaciano fosse parte delas.
Nessa batalha, todos os contendores seriam capazes de desenvolver novas
estratégias para a superação do impasse estrutural e para a conquista de
novos espaços. O sacerdócio político e o Poder Moderador foram parte da
fórmula palaciana de dominação. Como conceitos, serviram para cimentar
a hegemonia da elite dirigente; como prática, possibilitavam a expansão do
poder central, mas traziam limitações intrínsecas à encarnação definitiva do
poder absoluto.
76
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
Notas
1
“O Rio Grande, o partido está em crise,
esfacelando-se, caindo aos pedaços, cindido
em duas correntes gerais e quebradas ainda
estas em agrupamentos pessoais.”
(HASSLOCHER, 1907, p. 88).
2
Sobre a contrariedade de Borges de
Medeiros à urdidura revolucionária, ver,
entre outros: Almeida (s/d.); Paim Filho
(1930). A periodização apresentada nos
parágrafos acima foi originalmente
proposta na tese de doutorado (AXT,
2001). A historiografia até então existente
sobre o Rio Grande do Sul na República
Velha tendeu a visualizar a vigência de uma
“continuidade administrativa”, expressão
apropriada ao discurso justificador do
regime, anulando as divergências e
descontinuidades e reproduzindo a ideia,
construída pelo discurso borgista, da
existência de um projeto estável,
internamente consensual (contestado
apenas pela, assim caracterizada,
conservadora e descartável oposição
federalista) e progressista. Para uma
discussão mais específica sobre a
historiografia a propósito do tema
estudado, consultar: Axt (2001a). Para
uma crítica mais detalhada da construção
e formulação do discurso legitimador
castilhista-borgista, ver: Axt (2001b,
2002). Sobre a relação entre a ideologia
positivista e o castilhismo, ver: Boeira
(1980); Rodriguez (1980).
A imagem de poder sacerdotal foi
construída pelo discurso positivista vertido
pelas páginas d’A Federação, órgão
jornalístico do PRR, para legitimar a
continuidade administrativa borgiana,
bem como sua pretensão de independência
em relação às idiossincrasias do campo
político-eleitoral. O conceito de “poder
moderador” foi utilizado por coronéis
3
para caracterizar a intervenção do líder nos
municípios, mediando conflitos locais.
Compondo uma imagem sugestiva, a
expressão será proposta como conceito
condensador da explicação oferecida neste
artigo sobre a forma como o poder
estadual pretendeu relacionar-se com os
poderes locais.
“Cartas políticas”. In: Opinião Pública,
Canguçu, maio de 1904. Arquivo Borges
de Medeiros (AMB), n. 1.194. Esses
conflitos internos do PRR e as
descontinuidades do assim chamado
“projeto castilhista” não costumam ser
percebidos pela historiografia. O grau de
atrição entre o poder regional e os poderes
locais também não costuma ser captado.
Uma exceção foi o trabalho de Loiva Félix
(1987), que, a partir de um estudo de
caso, questionou a aplicação generalizada
do conceito de “coronel burocrata”,
embaçando a tese de controle absoluto do
borgismo sobre os poderes locais e
sinalizando no sentido da existência do
coronelismo de fato no Rio Grande do
Sul, o que até então costumava ser negado.
A despeito da importância dessa nova tese,
entretanto, Loiva Félix não chegou a
realizar uma análise sistêmica das relações
de poder e permaneceu, ainda, vinculada
a modelos interpretativos tradicionais,
como o que pretendia explicar as
diferentes colorações partidárias a partir
de uma relação mecânica entre classe social
e região do estado. Além disso, Loiva Félix
continuou parcialmente tributária de uma
interpretação historiográfica que tendeu
a incorporar o discurso legitimador da ação
do PRR sem grandes críticas, o que não
lhe permitiu perceber, por exemplo, que
a influência da rede de compromissos
borgista esvaziou-se significativamente
4
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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depois do desfecho da Revolução de 1923
ou, ainda, que a influência da ideologia
positivista não poderia ser reivindicada
para explicar a política econômica e
institucional do borgismo, mesmo
porque, se optarmos por um referencial
teórico marxista, a superestrutura deve ser
interpretada como um instrumento de
justificação da prática. Outro trabalho que
estuda a dinâmica do poder local no Rio
Grande do Sul alcançando conclusões
próximas das nossas é o de Eloísa Ramos
(1990).
Veja-se o pronunciamento de João
Francisco Pereira de Souza no jornal O
Debate, de Livramento, em 29 de julho
de 1915: “A Constituição de 14 de Julho
que, nas mãos hábeis do Patriarca Júlio
de Castilhos, foi a base da ordem e
progresso da nova fase política do Rio
Grande do Sul, desaparecido Castilhos
tornou-se uma arma de dois gumes nas
mãos inábeis, fracas e incapazes de Borges
de Medeiros, que tímido e insensato,
começou a enxergar em cada um dos
velhos servidores da causa castilhista um
fantasma, um perigo para a sua ação,
portanto atônito, vibrou golpes sobre
golpes, arruinou ou aniquilou os
principais companheiros de Castilhos,
destruiu o brilho da obra republicana, e,
finalmente, arruinou-se a si próprio, que
hoje é considerado por todos o parasita
do RS.”
5
A especificidade da conjuntura foi
percebida por Love (1975, p. 166).
6
A oposição de Borges de Medeiros à rede
de compromissos castilhista e a resposta
desta à pretendida chefia do primeiro não
têm sido percebidas com clareza pela
historiografia corrente. (AXT, 2001).
7
Em entrevista no País, de 20 de outubro
de 1921, João Francisco disse: “Eu
conhecia bem a hipocrisia do Sr. Medeiros
e sabia que ele e seus íntimos se sentiriam
8
78
melhor e até se regozijariam com o
desaparecimento de Pinheiro Machado.”
(SOUZA, 1923, p. 87).
Referente aos maragatos, qualificativo
pejorativo usado na época para designar
os oposicionistas de lenço vermelho, em
alusão a uma região do Uruguai.
9
Apodo dirigido pelos maragatos aos
castilhistas.
10
11
Designação pejorativa utilizada para
indicar o borgismo. Derivou da alcunha
“chimango”, originalmente ave de rapina
do pampa gaúcho, associada a Borges de
Medeiros, cujas feições, dizia-se,
lembravam o tal pássaro.
A compressão sofrida pelo estancieiro e
capitalista José Antônio Martins, na
Campanha, levando-o à falência, oferece
interessante testemunho de que a
perseguição político-partidária colocavase frequentemente acima dos interesses de
classe e dos compromissos com a grandeza
econômica e o progresso material de uma
região. (CABEDA, 1994, p. 53-61). Por sua
vez, Wenceslau Escobar (1922) oferece
uma relação de crimes políticos contra
oposicionistas em diversos pontos do
estado durante o período borgista.
12
Minuta do telegrama de Borges de
Medeiros a Heliodoro Branco, Porto
Alegre, 2 de julho de 1917, Arquivo
Borges de Medeiros (ABM).
13
Carta de Heliodoro Branco a Borges
de Medeiros, Lagoa Vermelha, 24 de
junho de 1917. (ABM).
14
15
Carta de Genes Bento a Borges de
Medeiros, Lagoa Vermelha, 10 de julho
de 1917. (ABM).
Para uma abordagem teórica do
controle político sobre o aparato
burocrático, ver, entre outros: Padgett
(1981); Axt (1997, p. 151-176).
16
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
A Lei 11, ao organizar a polícia,
extinguiu ainda o inquérito policial criado
em 20 de setembro de 1871.
17
Medeiros (1980, p. 162, 178): Carta
de João Paulo Prestes a Cezar Dias,
Canguçu, 4 de novembro de 1913, 1.225;
Cartas de Genes Bento a Borges de
Medeiros, Canguçu, 24 de março e 8 de
abril de 1906, 1.208 e 1.209 (ABM).
18
19
Carta de Moysés Vianna a Borges de
Medeiros, Santana do Livramento, 14 de
julho de 1913, 8.224; Carta de Bráulio
Oliveira a Borges de Medeiros, Santana
do Livramento, 3 de setembro de 1917,
8.310; Carta de Pelágio de Almeida a
Borges de Medeiros, Santa Maria, 4 de
dezembro de 1915, 8.039; Carta de João
Paulo Prestes a Cezar Dias, Canguçu, 4
de novembro de 1913, 1.225. (ABM).
Passaram a ser em número de dez com a
reforma de 1925.
20
21
Carta de David Soares de Barcellos a
Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul,
21 de abril de 1899, 639 (ABM).
“Republicano conservador, que sou,
com cada fibra do meu ser, soube fechar
as portas do 5° Distrito a federalistas e
renegados, e por isso entenderam certos
reles hiperprodutos [sic] do ventre
negativo, que fazendo minha desgraça e a
dos meus companheiros, ganhariam
terreno na zona colonial [...]. Confiando
na benevolência e sentimentos nobres de
V. Ex., esperamos ser favorável a decisão
da nossa causa, perante o Egg. Superior
Tribunal.” Carta de Kurt Pachaly a Borges
de Medeiros, Cachoeira do Sul, 4 de
setembro de 1907, 778 (ABM).
22
23
“Os fernandistas [...] contam com o
Paulo no 6° Distrito por cujo motivo é
necessário [...] inutilizar completamente
o Paulo. Como sabe ele foi nomeado
encarregado da Colônia, lugar que não
sendo remunerado tem sempre alguma
dependência por parte dos colonos.
Convém pois demiti-lo, nomeando
Dionysio da Fonseca Reus. Outra cousa
que convém muito estudar é a questão da
Companhia Jacuí que se acha no Superior
Tribunal em grau de apelação. Se a decisão
for contrária a ele deve ser julgada o mais
breve possível, ao contrário convém
protelar até depois da eleição”. Carta de
Isidoro Neves da Fontoura a Borges de
Medeiros, Cachoeira do Sul, 6 de abril
de 1907, 766 (ABM).
24
Nem sempre Borges de Medeiros tinha
o controle sobre a formação de culpa, já
que, como veremos mais adiante, os juízes
distritais orbitavam na influência dos
poderes locais. Ver, por exemplo:
“Verifiquei, no decorrer do processo, que
foi viciado o auto de exumação, que o
advogado da acusação, Luciano Motta,
inclusive o carcereiro João Alfredo, com
ameaças e promessas, fizeram o preso
Zeferino Santana depor falsamente; que
o oficial de justiça, João Motta, sugeriu
depoimentos e exorbitou dos seus
deveres.” Carta de Kurt Pachaly a Borges
de Medeiros, Cachoeira do Sul, 4 de
setembro de 1907, 778 (ABM). O
controle borgiano tornava-se mais eficaz
quando o processo chegava às mãos do
juiz de comarca, cuja ação podia ser então
administrada de forma a constranger a
abrangência do poder coronelístico:
“Parece-me devia ser levado a efeito o
acordo, alterando a criminalidade das
testemunhas, do Mário e do Gregorio e
condenando o maior culpado. Sei que os
advogados das autoras estão empenhados
em realizar o acordo e que será bastante o
vosso assentimento, para ser ele
ultimado.” Carta confidencial de Isidoro
Neves da Fontoura a Borges de Medeiros,
Cachoeira do Sul, 6 de agosto de 1912,
820 (ABM).
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
79
25
O Combatente, Santa Maria, 1898.
Apud Cardoso (1978, p. 64-65).
“Estando aberta a inscrição de
concurso para o preenchimento de uma
vaga de Juiz de Comarca, [...] venho
ouvir-vos ou então solicitar de V. Exª. o
consenso ou apoio para esta minha
pretensão, como isto vos convenha,
hipótese única em que o farei.” Carta de
João Magalhães a Borges de Medeiros,
Cachoeira do Sul, 28 de janeiro de 1904,
658 (ABM).
26
“Feito isso, não há dúvida de que o
Tribunal decretará a responsabilidade do
magistrado, que virá, afinal, a perder a
investidura, como já sucedeu a outros em
iguais circunstâncias.” Carta de Borges de
Medeiros a Salvador Pinheiro, 6 de
novembro de 1900, Arquivo Borges de
Medeiros, citada em Mendes (1999, p.
63).
27
Carta de Ramiro de Oliveira a Borges
de Medeiros, Cachoeira do Sul, 7 de
novembro de 1898, 635 (ABM).
28
“O Subdelegado do 5° Distrito,
Pedro Modesto da Rosa, conjuntamente
com outros, está envolvido num grave e
lamentável fato delituoso. Trouxe-me o
amigo Isidoro a informação, de que
opinastes pela competência do júri para
julgamento do processo, e como eu tenha
procedido de modo diverso, e, nesse
sentido orientado o Promotor, pareceume conveniente tornar-vos conhecedor
dos fatos [...]. Todavia, a vós, a quem
posso chamar mestre de direito, impetro
ensinamentos para o caso, rogando que
sobre ele me deis, obsequiosamente, e
com a possível brevidade, vossa sempre
acatada opinião.” Carta de Gumercindo
Ribas a Borges de Medeiros, Cachoeira
do Sul, 26 de maio de 1907, 771 (ABM).
29
“Desejaria antes, que não se tivesse
dado este incidente que finalmente foi
30
80
criado pelo próprio Dr. V. de Brito [...].
Pondo de parte os afetos paternais, me
parece que o promotor sem quebra de
dignidade não poderia deixar de apresentar
denuncia.” Carta de Isidoro Neves da
Fontoura a Borges de Medeiros,
Cachoeira do Sul, 23 de novembro de
1909, 789 (ABM).
Cartas a Borges de Medeiros de
Maximiliano Almeida, 30 de junho; de
Álvaro Franco, 30 de junho e 1º de julho
de 1917; Marino Josetti de Almeida,
Lagoa Vermelha, 2 de julho de 1917
(ABM).
31
Carta de Heliodoro Branco a Borges
de Medeiros, Lagoa Vermelha, 12 de
outubro de 1905, 2944 (ABM).
32
Carta a Borges de Medeiros de
Heliodoro Branco, Lagoa Vermelha, 21
de novembro de 1905, 2.946; 23 de
março de 1906, 2.958; diversos
signatários, 6 de fevereiro de 1906, 2.949;
Paulo Alves de Souza Marques, 8 de
fevereiro de 1906, 2.950; Cândido
Carvalho Dias Guimarães, 24 de março
de 1906, 2.959 (ABM).
33
Carta confidencial de Isidoro Neves
da Fontoura a Borges de Medeiros,
Cachoeira do Sul, 8 de agosto de 1912,
821; Carta de Isidoro F. Ortiz a Borges
de Medeiros, Cachoeira do Sul, 15 de
setembro de 1912, 824 (ABM).
34
Carta de Carlos B. Gonçalves a Júlio
de Castilhos e Borges de Medeiros,
Jaguarão, 22 de junho de 1901 (ABM).
35
Carta de Júlio de Castilhos e Borges
de Medeiros a Carlos B. Gonçalves, Porto
Alegre, 25 de julho de 1901 (ABM).
36
Carta de Cândido D. C. Guimarães a
Borges de Medeiros, Lagoa Vermelha, 16
de fev. de 1906, 2.952 (ABM).
37
“Agora estão trabalhando para tirar o
Juiz de Comarca. Qual a razão? Só por
38
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
ser um Juiz?! cumpridor de seus deveres.”
Carta de Horácio Borges a Borges de
Medeiros, Cachoeira do Sul, 17 de
setembro de 1913, 875 (ABM).
Cartas de Santa Maria, de 1918, a
Borges de Medeiros de “membros do
Partido Republicano”, 14 de julho, 8.087;
Astrogildo de Azevedo, 20 de julho,
8.088; Abelino Vieira da Silva, 22 de
julho, 8.089; Claudino Pereira Nunes, 2
de agosto, 8.091 (ABM; ESCOBAR, 1922,
p. 202-204; CARDOSO, 1978, p. 58, 61;
MERG, 2002).
39
“Tenho o prazer de acusar o
recebimento de vossa carta do corrente,
e, com ela, a solução da consulta que vos
fizemos, a propósito de um caso de
habeas-corpus. Mostrei-a ao Sr. Dr. Juiz
de Comarca, que ficou perfeitamente
conformado com o vosso modo de ver,
dando-nos assim a esperança de que se não
reproduza o desagradável incidente. Pela
minha parte, devo significar-vos a
profunda gratidão de que vos sou devedor,
pela atenção dada ao meu pedido.” Carta
de Balthazar de Bem a Borges de
Medeiros, Cachoeira do Sul, 22 de agosto
de 1913, 866 (ABM).
40
“Recebi [...] vosso recado contrário a
que se conceda habeas-corpus ao
Castelhano, [...] veio por parte do Dr.
Balthazar uma reclamação, contra o meu
ato [...]. Acreditei que havia agido de
acordo com o Cod. de P. Penal do Estado.
Mas uma vez que [...] de uma prisão
convencional não há recurso, podeis ficar
certo que doravante acatarei toda e
qualquer prisão emanada das autoridades
administrativas.” Carta de Alberto Chaves
a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul,
12 de dezembro de 1913, 887 (ABM).
41
“Depois da longa palestra que aí
mantivemos sobre o caso de habeascorpus, foi com justificada decepção que
42
assisti ao proceder de franca hostilidade
com que se tem conduzido aqui para
comigo o Coronel Horácio. De fato,
depois de ter, logo a chegada, uma longa
palestra com o Juiz de Comarca, não sei
que coisas ouviu, que não conteve
extemporâneas e calorosas manifestações
de solidariedade à atitude desse
magistrado.” Carta de Balthazar de Bem
a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul,
31 de dezembro de 1913, 888 (ABM).
Carta de Horácio Borges a Borges de
Medeiros, Cachoeira do Sul, 29 de janeiro
de 1914, 895 (ABM).
43
Cartas a Borges de Medeiros de
Abelino Vieira, Santa Maria, 31 de janeiro
de 1915, 8.009; Jerônimo Gomes, 18 de
fevereiro de 1916, 8.042 (ABM;
CARDOSO, 1978, p. 58).
44
Carta de Luiz Mello Guimarães a
Borges de Medeiros, Santana do
Livramento, 14 de dezembro de 1907,
8.199 (ABM).
45
Carta de “correligionários” a Borges de
Medeiros, Santana do Livramento, abril
de 1915, 8260 (ABM).
46
47
Para ilustrar, relacionamos aqui uma
carta em que o coronel determina, ao invés
de solicitar, as nomeações a Borges, que
rabiscou a lápis na borda do documento
uma ordem para executar a indicação: carta
de David S. Barcellos a Borges de
Medeiros, Cachoeira do Sul, 27 de
novembro de 1901, 642 (ABM).
48
Carta de Isidoro Neves da F. a Borges
de Medeiros, Cachoeira do Sul, 12 de
janeiro de 1910, 811 (ABM).
Carta de José M. Ribeiro a Borges de
Medeiros, Cachoeira do Sul, 23 de agosto
de 1903, 647 (ABM).
49
Carta de David S. Barcellos a Borges
de Medeiros, Cachoeira do Sul, 21 de
abril de 1899, 639 (ABM).
50
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
81
“Tivemos ocasião de demonstrar a V.
Excia. que o partido republicano deste
município estava conosco, e que os atuais
detentores do poder municipal galgaram
as posições pela compressão, violência e
pela fraude. Para esse efeito lançaram mão
aos mais reprováveis recursos, tendo
percorrido o município entre patrulhas
armadas de carabinas o vice-intendente
Fortunato Loureiro, os subintendentes, o
Dr. Promotor Público e outras
autoridades.” Carta de Ramiro de Oliveira
a Borges de Medeiros, Santa Maria, 13
de abril de 1925, 8.124 (ABM).
51
Evaristo do Amaral Júnior, futuro
redator-chefe da Federação e filho do
Coronel Evaristo do Amaral, ex-chefe
conservador assassinado em Palmeira das
Missões durante o “Governicho”, relata
que uma das primeiras deliberações dos
novos donos do poder foi urdir a
nomeação do um promotor: “Para
promotor público da comarca, o latrinário
Affonso [Honório dos Santos] nomeou
um seu devedor insolvável, Camilo
Henrique da Fonseca, um miserável
enfermo que o Partido Republicano
mantinha como professor público e que
se vendeu pelo cargo de promotor, para o
qual só tem a serventia de ser capacho do
Affonso, pois é incapaz de formular, por
si, uma denúncia.” (MOURA, 1892, p.
177). Também em Cachoeira do Sul, o
“Governicho” apressou-se em nomear o
promotor João Batista da Fontoura Xavier,
afastado por Castilhos em junho de 1892.
(AZEVEDO, 1985, p. 37).
Em setembro de 1905, por exemplo,
após o acordo costurado por Borges de
Medeiros entre as facções locais do
partido, dominadas cada qual pelos
Coronéis David Barcellos e Isidoro Neves
da Fontoura, o jornal davidsista, O
Comércio, reputava por “ato iníquo” a
decisão presidencial, de 13 de setembro,
52
82
de transferir o promotor público Augusto
de César Brandão, atuante em Cachoeira
do Sul desde 6 de junho de 1896, para
Vacaria. Inconformado com a remoção
para uma comarca de inferior importância,
Brandão, que acumulava longa ficha de
cargos públicos e serviços prestados ao
partido, pediu exoneração, mas negociou,
no mês seguinte, sua rendição, recebendo
uma provisão do Superior Tribunal para
atuar como advogado criminal, civil,
comercial, orfanológico. Em 1927,
Brandão, resgatado pela nova facção
getulista, retornou à Promotoria, ali
permanecendo até 1932. (A ZEVEDO ,
1985, p. 32, 37).
53
“Nada tenho a opor sobre a nomeação
do promotor de São Borja. Não será
preferível nomear interinamente o
candidato do Pinto? A efetividade
dependerá de sua conduta no Exercício.”
Carta de Júlio de Castilhos a Borges de
Medeiros, 23 de outubro de 1900
(ABM), citada em Mendes (1999, p. 63).
54
Atuaram no período, nas 32 comarcas
gaúchas, ao todo 163 promotores
públicos, sendo que 20 foram nomeados
duas vezes, e um chegou a ser nomeado
três vezes para o exercício da função.
55
“Quanto a maldade de afirmarem que
eu faço oposição, [...] V. Exª sabe melhor
do que ninguém com que amor servi o
seu ilustre Governo, como Promotor e
Procurador Fiscal de Estado, e como que
desvanecimento colaborei por largo
tempo na gloriosa ‘Federação’.” Carta de
João Bonumá a Ramiro de Oliveira, Santa
Maria, 31 de outubro de 1919, 8.107
(ABM). Como exemplo das relações dos
promotores com outras autoridades,
administrativas e judiciais, ver ANEXOS
A, B, e C, transcritos do arquivo do
Projeto Memória do Ministério Público
do Estado do Rio Grande do Sul.
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56
Em 20 de setembro de 1905, o juiz da
Comarca de Cachoeira do Sul,
Gumercindo Taborda Ribas, esbofeteou
o escrivão do cível e crime, Octávio
Carpes, em razão de um desentendimento
na cancha de bocha do Clube Comercial.
Puxando de uma faca para se defender, o
escrivão foi logo preso em flagrante,
telegrafando no dia seguinte para
Fernando Abbott: “Acabo de ser
esbofeteado pelo juiz da comarca, tive
necessidade de lançar mão da faca. Peço
providências.” (AZEVEDO, 1985, p. 34).
Em tempo, Gumercindo Ribas, um dos
mais ardorosos partidários borgianos que
passou pela Comarca de Cachoeira, fora
aprovado em concurso perante o Superior
Tribunal sem ser bacharel. (FONTOURA,
1969). Em 1912, foi eleito deputado
federal, ocupando a cadeira até 1923.
(AITA; AXT, 1996). Na Câmara, foi ele
quem assomou à tribuna, em outubro de
1921, na defesa de Borges de Medeiros,
quando João Francisco Pereira de Souza
acusou-o abertamente de envolvimento no
complô integrado por Nilo Peçanha e José
Bezerra que teria armado Mâncio de
Paiva, assassino de Pinheiro Machado.
(SOUZA, 1923, p. 66-95).
Ver: fundo sobre Cachoeira do Sul no
ABM, especialmente a década de 20 (séc.
XX).
57
Ver, a respeito, fundo sobre Santana do
Livramento no ABM, ns. 8.143 a 8.333.
58
59
Ver, a respeito, fundo sobre Santa Maria
no ABM, 7.746 a 8.140. Os exemplos
citados por Love (1975, p. 85) do alfaiate
Germano Petersen e do professor primário
Dartagnan Tubino inscrevem-se nesse
grupo restrito de colaboradores. Loiva
Félix (1987) questionou a pertinência da
aplicação generalizada do conceito de
“coronel burocrata”, amplamente
empregado por autores como Sérgio da
Costa Franco (1988), Joseph Love
(1975), Raymundo Faoro (1987) e
Hélgio Trindade (1980). Como a autora,
todavia, não tenha chegado a produzir
uma análise sistêmica do fenômeno
coronelista no Rio Grande do Sul, o
conceito ainda pode, ao nosso ver, ser
aplicado, sem prejuízo da explicação
histórica, a casos específicos, dentre os
quais pode se enquadrar, talvez, o acima
descrito. Para uma discussão teórica a
propósito da historiografia sobre o tema,
consultar Axt (2001a).
60
Franco (1998, p. 12). A historiografia
ainda não desenvolveu estudos mais
profundos sobre as gestões políticas e
administrativas nas áreas coloniais. Se a
continuidade administrativa era uma
realidade, e se efetivamente essas regiões
eram consideradas fábricas de votos para
o borgismo, pelo menos entre 1908 e
1923, não se sabe ao certo quais eram os
mecanismos de barganha, cooptação e
insubordinação entre intendentes e
eleitores, ou, ainda, os detalhes da relação
entre os poderes locais e o central, que
podiam fermentar sob as “tranqüilas
ditaduras” serranas.
As facções intestinas do PRR
constituíam-se no legítimo sujeito oculto,
tanto para o discurso legitimador do
regime, quanto para o discurso opositor,
pois, enquanto o primeiro esforçava-se
para diferenciar sua prática partidária do
restante do País, insistindo na política
doutrinária, hierarquizada e disciplinada,
os contestadores tinham por estratégia
fundamental anatematizar o regime
castilhista-borgista como uma “ditadura”,
o que, certamente, contribuiu para falsear
o perfil da relação entre poder central
estadual e poderes municipais. O mito da
obediência cega das chefias municipais ao
chefe palaciano pode ser encontrado, por
exemplo, num forte crítico do regime,
61
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
83
como Wenceslau Escobar (1922, p. 76,
93).
Carta de Ramiro de Oliveira a Borges
de Medeiros, Santa Maria, 21 de
dezembro de 1919, 8.109 (ABM).
62
Carta de Isidoro Neves da F. a Borges
de Medeiros, Cachoeira do Sul, 11 de
novembro de 1904, 688 (ABM).
63
Carta de Aníbal Nunes Pires, Rio de
Janeiro, 28 de novembro de 1903, 652
(ABM).
64
Carta de Maximiliano Moreira Maciel
a Borges de Medeiros, Santana do
Livramento, 31 de janeiro de 1906, 8.176
(ABM). A dinâmica do coronelismo,
descrita nesste parágrafo, tem sido
explicada por Victor Nunes Leal (1978);
Janotti (1981); Queiroz (1989); Carvalho
(1998).
65
Em 1898, quando Castilhos orientou
o partido à abstenção, o Rio Grande do
Sul contribuiu com apenas 3 mil votos
para a presidência do País, mas, já em
1906, esse volume alcançava a cifra de 42
mil votos, quando o Rio Grande
ultrapassou a Bahia e se credenciou para
assumir a posição de terceira potência
eleitoral entre os estados federados. (LOVE,
1975, p. 146).
66
Carta de Isidoro Neves da Fontoura,
Cachoeira do Sul, 29 de setembro de
1904, 686 (ABM).
67
Carta de Isidoro Neves da Fontoura a
Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul,
11 de novembro de 1904, 688 (ABM).
68
Carta de Isidoro Neves da Fontoura a
Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 2
de janeiro de 1905, 688 (ABM).
69
Uma terceira hipótese indicaria maior
obediência por parte dos distritos, o que
talvez pudesse ser descartado levando-se
em consideração os resultados eleitorais
70
84
de 1924, que traduziram forte
insubordinação. De qualquer forma, a
questão está ainda por merecer estudos
mais aprofundados.
71
Para uma caracterização da fragilidade
infraestrutural do estado, ver: Axt (2001).
Para uma análise mais detalhada do
discurso legitimador do regime, ver: Axt
(2002, 2001b).
72
73
Carta de Isidoro Neves da Fontoura a
Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul, 8
de agosto de 1912, 821 (ABM). Esta é,
pelo menos, uma das cartas em que
coronéis locais solicitam a intervenção do
“poder moderador” de Borges de
Medeiros, que, nos anos 30 (séc. XX),
publicara o um livro exatamente com esse
título. No presente artigo, o conceito
tomado de empréstimo à documentação,
está empregado de forma devidamente
contextualizada com o conjunto da análise
teórica que propomos, não podendo ser
equiparado ao entendimento tradicional
que a expressão suscita, como quarto
Poder da Constituição Imperial de 1824,
nem tampouco como reprodução
automática do sentido proposto pela
documentação consultada para esta
pesquisa. Para uma crítica do discurso
legitimador do regime na época, ver: Axt
(2001).
Carta de Vivaldino M. Medeiros a José
C. do Amaral, Bom Retiro, 12 de julho
de 1917, 8.066 (ABM).
74
Ata de eleição da Comissão Executiva
de Cachoeira do Sul, 30 de maio de 1897,
623 (ABM).
75
Carta de Moysés Vianna, João Francisco
Pereira de Souza e Augusto Martins da
Cruz Jobim a Borges de Medeiros,
Santana do Livramento, 6 de maio de
1916, 8.289 (ABM).
76
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
77
Carta de Hermes Laranja Bento a
Borges de Medeiros, Canguçu, 25 de
dezembro de 1917, 1.243 (ABM).
85
Carta de Ramiro de Oliveira a Protásio
Alves, Santa Maria, 30 de março de 1916,
8.044 (ABM; MEDEIROS, 1980, p. 184).
78
Carta de Pinos Irineo a Borges de
Medeiros, Cachoeira do Sul, 8 de junho
de 1897, 624 (ABM).
Carta de Abelino Vieira a Borges de
Medeiros, Santa Maria, 24 de julho de
1918, 8.089 (ABM).
79
Carta de Carlos Norberto Moreira a
Borges de Medeiros, Canguçu, 3 de
dezembro de 1905, 1.203 (ABM).
Carta de Carlos Maximiliano a Borges
de Medeiros, Santa Maria, 13 de abril de
1920, 8.112 (ABM).
80
Acordo do Partido Republicano de
Cachoeira do Sul, 14 de setembro de
1904, 683 (ABM).
88
Carta de A. A. de Araújo a Borges de
Medeiros, Cachoeira do Sul, 27 de
fevereiro de 1906, 721 (ABM).
Um estudo sobre a composição dos
Conselhos Municipais ainda está por ser
feito, mas por hora, podemos sublinhar
existirem indícios de fraca representação
dos estancieiros e pecuaristas nos mesmos,
em benefício da presença mais firme de
negociantes e comerciantes, seguidos de
profissionais liberais. Costumavam ainda
dispor de assento funcionários de
instituições bancárias, com as quais os
municípios mantinham relações
financeiras.
Carta de José Claro de Oliveira a Borges
de Medeiros, Santa Maria, 15 de outubro
de 1919, 8.106; Carta de Abelino Vieira
da Silva a Borges de Medeiros, Santa
Maria, 13 de janeiro de 1915, 8.005;
Carta de Jerônimo Gomes a Borges de
Medeiros, Santa Maria, 4 de setembro de
1915, 8.032; Carta de Claudino Nunes
Pereira a Borges de Medeiros, Santa
Maria, 17 de junho de 1920, 8.114
(ABM).
81
Carta de João Paulo Prestes et al. a
Borges de Medeiros, Canguçu, 11 de abril
de 1906, 1.210 (ABM).
82
Ata da Comissão Executiva do PRR de
Cachoeira do Sul, 14 de setembro de
1904, 683 (ABM).
83
Veja-se, por exemplo: “Por aqui tudo
vai bem. Claudino é homem sensato,
atencioso, bem visto. Todos o respeitam
e dizem que não poderia o meu eminente
Chefe achar melhor intendente provisório,
tanto que daria ótimo administrador
definitivo se tivesse mais altura intelectual.
Acredito ser essa a solução única, em Santa
Maria, um Claudino mais instruído, um
homem sensato e culto, alheio ao
município.” Carta de Carlos Maximiliano
a Borges de Medeiros, Santa Maria, 28
de março de 1919, 8.102 (ABM).
84
86
87
89
Mais uma vez, o discurso opositor,
empenhado na caracterização demoníaca
do regime, contribuiu para falsear o
sentido das eleições. Escobar, por
exemplo, indicava que “as eleições estavam
reduzidas a simulacros [...] para chancelar
os desígnios oficiais”. (1922, p. 110).
90
91
Para uma análise sobre a historiografia
atinente ao tema, ver: AXT, 2002.
Carta de Ramiro de Oliveira a Borges
de Medeiros, Cachoeira do Sul, 7 de
novembro de 1898, 635; Carta de Isidoro
Neves da Fontoura a Borges de Medeiros,
Cachoeira do Sul, 4 de fevereiro de 1906,
715; Carta de Isidoro Neves da Fontoura
a Borges de Medeiros, Cachoeira do Sul,
28 de janeiro de 1910, 815 (ABM).
92
Sobre o conceito de “poder
infraestrutural”, ver: Mann (1984, p.
185-213); Axt (1997).
93
MÉTIS: história & cultura – AXT, Gunter – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
85
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 39-88, jan./jun. 2012
O Arquivo Público do Estado do
Rio Grande do Sul e as fontes judiciais
The Public Archive of the State of
Rio Grande do Sul and the Judicial Sources
Aline Nascimento Maciel*
Camila Lacerda Couto**
Resumo: O texto relata um breve histórico
do Arquivo Público do Estado do Rio
Grande do Sul (Apers), desde a criação do
mesmo em 1906. Descreve as principais
atividades de sua atuação. Apresenta o acervo
do Poder Judiciário custodiado pelo Apers,
o histórico dessas fontes documentais e a
organização arquivística aplicada aos
processos judiciais. Relata as principais
atividades realizadas referentes à classificação,
ao arranjo e à descrição arquivística aplicadas
ao acervo, inclusive sobre seu gerenciamento
físico. Enumera possibilidades de pesquisa
no acervo judicial e apresenta alguns dos
principais projetos, atividades e eventos
culturais planejados e realizados a partir do
estudo e da divulgação dessas fontes
documentais.
Palavras-chave: Arquivo Público do Estado
do Rio Grande do Sul; classificação; quadro
de arranjo; processos judiciais.
Abstract: Reports a brief history of the
Public Archives of the State of Rio Grande
do Sul (Apers), since the creation of the
same in 1906. Describes the main activities
of its actions. Presents the collection of the
Judiciary guarded by Apers, the history of
these documental sources and archival
organization applied to judicial proceedings.
Reports the main activities related to the
classification, arrangement and archival
description applied to the collection,
including its physical management. Lists
research possibilities in the collection of
justice and presents some the main projects,
activities and cultural events planned from
the study performed and the disclosure of
documentary sources.
Keywords: Public Archives of the State of
Rio Grande do Sul; classification;
framework arrangement; legal proceedings.
Arquivistas da Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos do Estado do RS
– Departamento de Arquivo Público. Disponível em: <http://www.apers.rs.gov.br;
wordpress.arquivopublicors.com>. Tel.: (51) 3288-9108. E-mail: alinenm@gmail.com,
camilalacer@gmail.com.
*
MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda
89
Introdução: atuação do arquivo público
O Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (Apers) foi criado
através do Decreto 876, de 8 de março de 1906, e, na época, denominavase “Repartição de Arquivo Público, Estatística e Biblioteca”, sendo
subordinado à Secretaria dos Negócios do Interior e Exterior.
Posteriormente, em 1956, devido a alterações na denominação dessa
secretaria, o Arquivo Público foi vinculado à Secretaria de Estado dos
Negócios do Interior e Justiça, permanecendo assim até o ano de 1975,
quando a Secretaria do Interior e Justiça se transformou em Secretaria da
Justiça, e o Apers ficou vinculado a essa nova secretaria, através do Decreto
29.373, de 12 de dezembro de 1979.
Na década de 90 (séc. XX), o Departamento de Arquivo Público do
Estado foi vinculado à Secretaria da Administração e dos Recursos Humanos
(Sarh) através do Decreto 35.923, de 12 de abril de 1995.
Em sua trajetória, o Apers passou por diversas modificações
administrativas que se refletiram na composição de seu acervo. A principal
delas ocorreu em 1925, quando houve a transferência da 2ª seção (Arquivo
Histórico e Geográfico) para o Museu Júlio de Castilhos, que,
posteriormente, deu origem ao Departamento de História Nacional,
atualmente Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (Ahrs). Permaneceram
sob a responsabilidade do Apers a 1ª e a 3ª seções (administrativa e arquivo
forense, respectivamente).
Outra grande modificação foi a desvinculação do Poder Judiciário,
que parou de recolher documentos ao Apers na década de 80. Sabe-se que,
apesar de não haver registros oficiais, a principal razão foi devido à ausência
de espaço físico para a continuação do recolhimento desse acervo.
Atualmente, a responsabilidade de recolhimento, guarda e gestão dos arquivos
judiciais é do Poder Judiciário.
Além da gestão do acervo recolhido ao longo de seus 105 anos, o
Apers é o órgão gestor do Sistema de Arquivos do Estado do RS (Siarq/
RS), que foi criado conforme os termos do Decreto 20.818, de 26 de
dezembro de 1970, pelo Decreto 33.200, de 5 de junho de 1989, e
reorganizado pelo Decreto 47.022, de 25 de fevereiro de 2010. Assim, o
Arquivo Público atua assessorando todos os órgãos e as entidades da
Administração Pública estadual, além de municípios, no que concerne à
gestão documental.
90
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012
Entre suas funções se destacam também: a promoção de ações e políticas
de preservação da memória do estado, atividades educativas e culturais,
divulgação do acervo, incentivo e valorização à pesquisa.
O acervo do Poder Judiciário no Apers
Estão custodiados no Apers documentos oriundos do Poder Judiciário,
desde o ano de 1763 até, aproximadamente, meados da década de 80 (séc.
XX). Esse acervo mede 3.320,54 metros lineares, ou seja, o equivalente a
27.672 caixas.
Além de processos judiciais provenientes da Comarca de Porto Alegre
do período de 1833 até 1980, também foram recolhidos processos de diversas
comarcas do interior do estado, tais como: Alegrete (1833-1856); Bagé
(1842-1956); Bento Gonçalves (1907-1955); Caxias do Sul (1898-1907/
1919-1955); Cruz Alta (1858-1959); Jaguarão (1872-1939); Júlio de
Castilhos (1844-1955); Rio Pardo (1833-1961); Santa Maria (1878-1939);
São Borja (1823-1872/1878-1957); São Luiz Gonzaga (1890-1957); Torres
(1945-1952); Uruguaiana (1875-1955); e Veranópolis (1945-1950).
Dentre os processos judiciais, foram identificadas diversas tipologias,
entre essas, destacam-se: acidente de trabalho, adoção, alimentos, anulação
de casamento, crime, curatela, desquite, divórcio, falência, inventário,
medição, partilha, possessória, separação de corpos, testamento e tutela.
Sendo que as tipologias mais pesquisadas costumam ser processos judiciais
de inventário e de crime.
Também faziam parte do acervo do Poder Judiciário, livros de registros
dos atos administrativos das comarcas, tais como: livro de protocolo de
termos de audiência, de atas de qualificação dos jurados, de registros de
tutelas, entre outros. Esses livros foram transferidos ao Tribunal de Justiça
do Estado do RS, em 29/4/2010, passando a integrar o acervo do Memorial
do Poder Judiciário.
Histórico das fontes documentais do Poder Judiciário no Apers
O Decreto 876/1906, que criou o Arquivo Público do Rio Grande do
Sul, define em seu artigo 3º: “À primeira secção compete guarda e catalogação
dos documentos: [...] XXXII – Todos os autos findos de jurisdição
contenciosas, bem como inventários.” Assim, fica definido que os
documentos produzidos em razão da atividade judiciária ficarão sob a
custódia do Apers.
MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda
91
Essa definição permanece nos Decreto 3.775, de 4 de janeiro de 1927,
no qual consta em seu artigo 1º: “O Archivo Público [...] é destinado a
recolher, adquirir e conservar, sob classificação systemática: [...]; b) Os
documentos de vendas, cessão e medição de terras, os autos findos de
jurisdição contenciosa, bem como inventários.” Nesse mesmo decreto, fica
expresso que é dever dos juízes e serventuários “providenciar para que sejam
imediatamente recolhidos ao Arquivo Público, assim que estiverem findos,
os autos ou processos.” (Capítulo III).
O Decreto 7.058, de 22 de maio de 1956, estabelece, ainda, como
uma das seções do Departamento, a Secção de Arquivos de Processos Judiciários,
a qual é composta pela Turma de Classificação e Catalogação de Livros,
Autos e Documentos e pela Turma de Pesquisas.
Em seu Regimento Interno, publicado via Decreto 9.207, de 5 de
agosto de 1958, essa seção permanece como parte da composição do Apers,
regulamentou-se que a Turma de Classificação e Arquivamento deverá
“classificar, relacionar, fichar [...] todos os documentos recolhidos pelo Poder
Judiciário”. No artigo 1º, fica estabelecido que o Arquivo Público
tem por fim recolher, guardar e conservar sob classificação
sistemática: […]; b) Os livros, autos e documentos oriundos dos
tabelionatos e cartórios do Estado, referentes à registros e ações
judiciais, que tratam da compra e venda, contratos, doações,
hipotecas, quitações, procurações, partilhas amigáveis, etc. (RIO
GRANDE DO SUL, 1958).
Essas atribuições pertinentes ao Apers permanecem ainda
regulamentadas pelo artigo 1º do Decreto 22.388, de 23 de março de
1973, que diz: uma das finalidades do mesmo é “receber, guardar e conservar
sob classificação sistemática, os documentos provenientes dos órgãos
integrantes dos Poderes Judiciário e Executivo do Estado”. Contudo, no
Decreto 35.923, de 12 de abril de 1995, já não aparece, no rol de suas
competências, o recolhimento de acervo oriundo do Poder Judiciário; seu
art. 6º reza que ao Departamento de Arquivo Público compete “gerenciar
os processos de arquivamento, avaliação, guarda e conservação da
documentação do Poder Executivo”.
Esses decretos revelam como decorreu a organização do acervo do
Poder Judiciário no período em que essa competência ainda era do Arquivo
Público do Estado. Atualmente, essa tarefa de recolher, organizar, gerenciar
92
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012
e disponibilizar processos judiciais para o usuário é da alçada do Poder
Judiciário; no entanto, possibilita-se, ainda, o acesso aos documentos desse
período em que houve recolhimento, bem como se realizam atividades que
objetivam a organização do acervo de modo a respeitar os princípios
arquivísticos.
Organização arquivística
Quando houve o recolhimento do acervo do Poder Judiciário ao Apers,
os documentos estavam organizados e divididos de acordo com os municípios
do estado, no entanto, considerou-se o fato de que, na estrutura do Poder
Judiciário, o território do Rio Grande do Sul é dividido em comarcas, que
correspondem ao “território, à circunscrição territorial, compreendida pelos
limites em que se encerra a jurisdição de um Juiz de Direito, [...] dividida
em termos, jurisdicionada por juízes próprios, subordinados, então, ao
Juiz da Comarca” (DE PLÁCIDO E SILVA, 1961, p. 360), e uma comarca
pode abranger um ou mais municípios, ou seja, nem sempre um município
equivale a uma comarca. Para constituir uma comarca, que será denominada
conforme o município onde estiver sua sede, de acordo com o Código de
Organização Judiciária do Estado, é necessário que se atenda a requisitos
tais como: população mínima de 20 mil habitantes, com 5 mil eleitores,
volume de, no mínimo, 300 feitos ingressados no serviço forense diariamente
e receita tributária mínima igual à exigida para criação de municípios.
Em 2003, quando iniciou o trabalho de organização arquivística do
acervo, verificou-se a necessidade de modificar essa classificação, sendo, a
partir de então, utilizada a classificação por comarcas, o que respeita o
princípio de respeito aos fundos, que:
protege a integridade dos conjuntos documentais enquanto
informação, refletindo-se no arranjo as origens e os processos que
os criaram. [...] Serve para que conheçam a natureza e o significado
dos documentos no seu contexto e circunstâncias [...]. Serve para
que haja critério mais ou menos universal no arranjo e
uniformidade da descrição. (BELLOTTO, 1991, p. 86-87).
Assim, o acervo do Poder Judiciário se dividiu em fundos, e cada
fundo é composto pela comarca-sede – ou cabeça de comarca – e seus termos
vinculados, respeitando-se sempre períodos de acréscimo e supressão dos
mesmos. Para tanto, realizou-se um estudo que resultou no Quadro de
MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda
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Arranjo Intelectual do Judiciário. Esse quadro permite visualizar datas-limite
de sedes, bem como seus termos relacionados.
O trabalho de organização desse acervo envolve, prioritariamente, as
equipes de Gerenciamento de Acervos e de Descrição Arquivística, que
trabalham em conjunto e dividem as atividades em duas grandes etapas:
reorganização conforme o quadro citado e indexação de processos no Sistema
Administração de Acervos Públicos (AAP).
Gerenciamento de acervos
Nessa etapa, é definido o arranjo dos documentos, a fim de otimizar a
utilização do espaço disponível. A equipe de trabalho desenvolve os estudos
desde o arranjo intelectual, pesquisando as datas-limite das comarcas e suas
relações, até o arranjo físico, no qual se verifica o volume de processos
judiciais de cada comarca, para que os documentos possam ser devidamente
tratados, reacondicionados e disponibilizados à equipe de descrição.
Atualmente a equipe conta com dois arquivistas responsáveis pelos
estudos e pesquisas e uma funcionária que realiza a parte técnica.
Descrição
Integram a equipe de descrição, atualmente, três arquivistas e três
estagiários, que são responsáveis pela inserção de informações no Sistema
AAP – Administração de Acervos Públicos, além da elaboração de
instrumentos de pesquisa a partir da aplicação de normas internacionais e
nacionais. Depois de finalizada a inserção dos documentos no Sistema
AAP, os processos podem ser pesquisados via internet no portal do Apers.
Importante ressaltar a importância das historiadoras que atuam no
Apers, junto com os arquivistas, na elaboração de instrumentos de pesquisa,
tais como catálogos seletivos. A parceria arquivista-historiador enriqueceu
o trabalho de tal forma que a maioria das atividades da instituição passou a
contar com a participação de profissionais de ambas as áreas.
Fontes documentais: possibilidades de pesquisa
Por se tratar de documentação rica em inúmeros aspectos, há um extenso
leque de possibilidades de pesquisa no acervo do Poder Judiciário, sendo o
acervo mais pesquisado do Arquivo Público.
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012
Aqui descrevemos algumas peculiaridades do Acervo:
• Autos Findos da Vara de Família e Sucessão: incluem processos de
desquite e divórcio, ações de alimentos, reconhecimento de paternidade
e maternidade, alvarás para casamento, tutela de menores, etc.;
• Processos-crimes: oportuniza uma série de abordagens distintas. Os
processos-crime consideram as mulheres como vítimas, como rés ou
testemunhas e, muitas vezes, dão voz a mulheres que provavelmente
não teriam sua trajetória registrada de forma escrita;
• Habilitações para o casamento: documentação bastante pesquisada.
Traz diversas informações sobre os contraentes de matrimônio, como
idade, profissão, estado civil e naturalidade; ressaltam casos de novas
núpcias, etc.; e
• Inventários e testamentos: fontes já habituais nas pesquisas realizadas
por historiadores, pois oportunizam discussões sobre posse e divisão
de patrimônios, família, herança, etc.
Eventos e atividades culturais
Cumprindo com seu papel de instituição disseminadora de informações
e de cultura e que promove o acesso aos documentos que preserva, o Arquivo
Público do Estado realiza diversos eventos e atividades culturais, com o
objetivo de incentivar a realização de pesquisa histórica. Os principais eventos
e atividades são:
– Mostra de Pesquisa: atividade de incentivo à pesquisa e divulgação do
acervo. Evento realizado anualmente com a apresentação de pesquisas
acadêmicas, resultando em publicação escrita. Já se encontra em sua
décima edição, atraindo pesquisadores de diversos locais;
– Oficinas de Educação Patrimonial: estas oficinas consistem em
momentos lúdicos com a finalidade de conscientizar crianças e
adolescentes sobre a importância da preservação do patrimônio como
fonte da nossa história. A oficina “Os Tesouros da Família Arquivos”
se destina a estudantes de 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental, e a
oficina “Desvendando o Arquivo Público: historiador por um dia” se
destina a alunos de 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental;
– I Jornada da Ditadura e Direitos Humanos: realizada no mês de abril
de 2011, em parceria com o Programa de Pós-Graduação em História
da UFRGS, a Escola do Legislativo/Alrs, e a Associação dos Amigos
MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda
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do Apers, com o objetivo de oportunizar espaço para a divulgação e
discussão a respeito da recente produção intelectual focada na temática
Ditaduras de Segurança Nacional na América Latina e Direitos
Humanos;
– Exposições: o espaço do arquivo Público é cedido gratuitamente para
a realização de exposições. Já passaram pelo Apers obras como as da
Bienal B, dentre várias outras.
– Visitas Guiadas: são realizadas a partir de agendamento a quaisquer
interessados em conhecer o conjunto arquitetônico dos três prédios e
o acervo do arquivo. Além das Visitas Guiadas, o Apers, em 2011,
passou a compor o grupo de instituições que realiza o projeto “Os
Caminhos da Matriz”, que tem como objetivo aproximar a população
do patrimônio histórico e cultural da cidade de Porto Alegre, realizando
visitas guiadas aos prédios históricos da Praça da Matriz e outras
atividades culturais;
– Encontro de Arquivistas: ocorre a cada dois meses com o intuito de
reunir e integrar o quadro de arquivistas do estado como forma de
troca de experiências e de promover a discussão de assuntos pertinentes
ao Sistema de Arquivos do Estado;
– Assessoria Arquivística: através do Siarq/RS, o Apers presta assessoria
a toda administração direta estadual e aos municípios gaúchos, a fim
de auxiliar no levantamento da produção documental, na classificação,
na avaliação, no arranjo, na descrição e na preservação de documentos;
– Pesquisas Históricas: realizadas pela equipe de Pesquisa Histórica, são
compostas por historiadores e estagiários de nível superior, que visam
à divulgação do acervo e ao incentivo à formação de linhas de pesquisa
no arquivo. A partir da realização dessas pesquisas, que acarretam a
leitura de processo a processo, são originados os instrumentos de
pesquisa que contribuem para o acesso fácil e rápido aos documentos
custodiados pelo Apers, orientando melhor a realização das pesquisas,
além de contribuir para a preservação da documentação ao diminuir o
manuseio direto das fontes primárias. Entre 2006 e 2010, foram
mapeados diversos fundos com documentos de setembro de 1763 a
maio de 1888, de cujo trabalho resultaram oito volumes do Catálogo
Seletivo: Documentos da Escravidão, os quais tratam das cartas de
liberdade e escrituras de compra e venda de escravos, encontradas no
acervo de tabelionatos, inventários e testamentos, nos quais os escravos
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012
eram arrolados como bens e deixados em herança e, ainda, processos
crimes, em que os escravos eram vítimas ou réus;
– Catálogo Seletivo Mulher e Gênero: desde março de 2011, está em fase
de mapeamento e descrição uma nova edição do Catálogo Seletivo que
irá ressaltar a história das mulheres no RS, a partir do mapeamento e
da descrição dos Autos Findos da Vara de Família e Sucessão da Comarca
de Porto Alegre, do período de 1889 a 1975. Além desse fundo, foram
escolhidos outras fontes que podem ser expressivas para ressaltar as
relações entre os gêneros ao longo da história e o lugar (ou os lugares)
das mulheres nessas relações. Concomitantemente a esse trabalho, criouse um grupo de discussão sobre o tema “Gênero, memória e história”,
a fim de incentivar reflexões por parte da equipe de trabalho do Apers
e a criação de espaços de divulgação de pesquisas e debates. Nesse
sentido, o Arquivo Público já cedeu seus espaços para a realização da
“I Jornada de História e Gênero da Anpuh-RS” entre 4 e 5 de novembro
de 2011.
Considerações finais
Por se tratar de uma instituição arquivística de referência em âmbito
nacional, o Apers vem se empenhando cada vez mais na organização e
disponibilização eficientes das fontes documentais sob sua custódia.
Tendo sido recolhido ao Apers de acordo com as definições legais de
uma determinada época, o acervo do Poder Judiciário continua sendo o
acervo de maior volume e de maior número de consultas e pesquisas
realizadas diariamente. Trata-se de acervo valioso e rico em inúmeras
possibilidades de pesquisa histórica no Rio Grande do Sul, fato que justifica
o investimento de recursos humanos e materiais em toda espécie de atividade
relacionada a esse acervo. Iniciativas semelhantes à realização de oficinas de
Educação Patrimonial, que têm como base alguns assuntos presentes em
processos judiciais, demonstram esse fato.
Quando o Apers cumpre competências como gerenciar processos de
arquivamento, de guarda e conservação de documentos recolhidos, buscar
eficácia no acesso à informação, assegurar à comunidade a preservação e a
disseminação da memória, os eventos e as atividades culturais organizados
pela equipe se tornam cada vez mais viáveis e possibilitam que se promova
a divulgação de seu acervo para a sociedade em geral.
MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda
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O Arquivo Público também tem o dever de possibilitar melhor
formação ao cidadão, orientando para que esse, desde sua infância, entenda
conceitos como o de cidadania e valorize a informação, para que a veja
como um direito básico ao alcance de todos. Esse é apenas um dos papéis
que o Apers se propôs a cumprir, ou seja, quer garantir que se cumpra o
direito ao acesso à informação pública.
98
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012
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MÉTIS: história & cultura – MACIEL, Aline Nascimento; COUTO, Camila Lacerda
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siarq.php>. Acessos em: 10 jan. 2011.
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 89-100, jan./jun. 2012
Centro de Memória Regional do Judiciário:
possibilitando pesquisas e preservando
a história de Caxias do Sul/RS
The Regional Archive of the Judicial System of the County of
Caxias do Sul: making research possible and preserving the history
of Caxias do Sul/RS
Luiza Horn Iotti*
Fabrício Romani Gomes**
Resumo: O presente artigo tem como
objetivo apresentar a trajetória do Centro
de Memória Regional do Judiciário
IMHC/UCS, criado através do Termo de
Convênio entre o Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul (TJRS) e a Fundação
Universidade de Caxias do Sul (Fucs), em
dezembro de 2001.
Palavras-chave: História do Judiciário;
memória do Judiciário; Poder Judiciário.
Abstract: The goal of this article is to
present the history of the Regional
Archive of the Judicial System of the
County of Caxias do Sul (Centro de
Memória do Judiciário da Comarca
Caxias – IMHC/UCS) created through
an accord between the Court of Justice
of the State of Rio Grande do Sul
(Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul – TJRS) and the University of Caxias
do Sul Foundation (Fundação
Universidade de Caxias do Sul – FUCS)
in December of 2001.
Keywords: History of the Judiciary;
Judiciary Memory; Judiciary Power.
Professora na área de História do Centro de Ciências Humanas da Universidade de
Caxias do Sul (UCS). Diretora do Instituto Memória Histórica e Cultural da UCS.
Mestre e Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS). E-mail: lhiotti@ucs.br
**
Professor na Rede Estadual de Ensino do RS. Licenciado em História pela UCS. Mestre
em História pela Unisinos. E-mail: phabrisss@gmail.com
*
MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani
101
Centro de Memória Regional do Judiciário (IMHC/UCS)
Em dezembro de 2001, foi assinado um Termo de Convênio entre o
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) e a Fundação
Universidade de Caxias do Sul (Fucs) estabelecendo um acordo, entre essas
duas instituições, cujo objetivo é era elaboração de “ações conjuntas entre
os convenentes para a conservação, pesquisa e divulgação de acervo
documental histórico do Poder Judiciário”, por meio da criação do Centro
de Memória Regional do Judiciário – Caxias do Sul (CMRJU/IMHC/UCS).
(TERMO, 2001, p. 1). Nesse artigo, pretendemos destacar a importância
da criação desse centro de documentação, apontando a alguns números
referentes a seu acervo e, também, sobre as possibilidades de pesquisa no
mesmo.
Apesar de a assinatura do convênio ter sido efetivada em 2001, somente
em 2003 o CMRJU/CXS começou a “sair do papel”. Contribuíram para a
sua concretização, a formulação e o desenvolvimento do projeto de pesquisa
intitulado “Comarca Caxias: a Trajetória do Judiciário e da Justiça”, sob a
coordenação de Luiza Horn Iotti. A pesquisa recebeu o apoio da UCS e da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs)
através da concessão de bolsas de iniciação científica. Assim, com a formação
de uma equipe de pesquisa, foi possível transferir parte do acervo da Comarca
de Caxias do Sul para uma sala, localizada junto a Biblioteca Central de
UCS,1 concretizando parte do acordo realizado. Nesse mesmo período, foi
constituído um grupo de pesquisa no CNPq, intitulado “Memória, Justiça
e Poder”, que tem como objetivo pesquisar, conservar e divulgar o acervo
documental histórico do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul.
O acervo da Comarca Caxias começou a ser constituído a partir de
sua criação em 15 de janeiro de 1898, através do Decreto 124-A, sendo
“desmembrada da Comarca de São Sebastião, com jurisdição sobre os Termos
de Caxias e Bento Gonçalves”. (MEMORIAL DO JUDICIÁRIO DO RS, 2003, p.
43). Posteriormente, em 1900, foi anexado à comarca o Termo de Garibaldi.
A elevação de Caxias à sede de comarca foi uma promessa de Júlio de
Castilhos, e sua concretização foi recebida com entusiasmo pela população
local.2 Além disso, sua criação foi utilizada em campanha política. Na época,
o intendente de Caxias, José Cândido de Campos Júnior, buscou votos do
eleitorado caxiense para Antônio Augusto Borges de Medeiros, candidato à
presidência do estado, dizendo que votar em Borges era uma forma de
demonstrar gratidão ao governo republicano pelos serviços prestados ao
município. Entre esses serviços, segundo o intendente, destacavam-se:
102
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012
o telegrapho, a proxima creação da comarca Caxias, a grande
despeza com a estrada Rio Branco, a estrada da 1ª Legua já orçada
em 75 contos de reis e sobretudo o prolongamento da via ferrea
de Novo Hamburgo até esta villa, são motivos de ordem elevada
que devem actuar poderosamente no animo dos eleitores patriotas
para que compenetrando-se do dever civico, não deixem de
comparecer as urnas, mostrando assim o seu interesse pelo
progresso deste florescente, prospero e futuroso município. (O
Caxiense, 13/11/1897, p. 2-3)..3
O acervo transferido deveria conter processos iniciados em 1898, data
da criação da Comarca Caxias. Porém, os processos que fazem parte do
acervo documental do CMRJU/CXS iniciaram em 1900, percorreram parte
do século XX, chegando até o ano de 2003. A princípio, faria parte do
acervo documentação referente a primeira Vara Cível da Comarca, mas,
com o início da catalogação, percebeu-se a existência de processos da segunda
e da terceira Varas Cíveis e alguns processos-crime. Importante é ressaltar
que o acervo do CMRJU/IMHC/UCS, desde o início, constituiu-se em
um acervo único e surpreendente pelo número de informações que oferece
ao olhar mais atento dos pesquisadores. Ele não contém toda a documentação
produzida pela Comarca Caxias, pois, como lembra Axt até há bem pouco
tempo,
no Rio Grande do Sul, o tratamento das fontes judiciais não vinha
recebendo abordagem sistemática [...]. No passado, determinouse o envio de toda a documentação de caráter judicial ao Arquivo
Público do Estado, instituição, esta, vinculada à Secretaria Estadual
da Administração, que, se estima, abriga mais de seis milhões de
documentos judiciais, produzidos, sobretudo, entre o século XVII
e a década de 1950 do século XX. (2004, p. 5).
Outro fator que contribuiu para a dispersão da documentação produzida
pela Comarca, foi a sua transferência em 19074 para Bento Gonçalves/RS.
Tal fato decorreu de grave crise política que se instalou na cidade. Segundo
Adami (1957, p. 46), essa transferência se deu “por motivos de ordem
pública”. O documento que determina a transferência diz o seguinte:
MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani
103
O presidente do Estado do Rio Grande do Sul, considerando que
na designação das sedes das comarcas cumpre ter em vista a
importância do Foro Civil, o desenvolvimento comercial e
industrial e facilidade das vias de comunicação.
Considerando que a vila de Caxias situada no extremo da comarca
não preenche todas essas condições, ao passo que a de Bento
Gonçalves, com o mesmo da circunscrição e da sede de
comunicações:
Art. 1°. É transferida para a vila de Bento Gonçalves a sede atual
Comarca de Caxias, composta dos municípios deste nome, de
Bento Gonçalves, com o mesmo movimento civil, comercial e
industrial, oferece a vantagem de estar no centro da circunscrição
e da sede de comunicações:
Resolve: no uso das atribuições que lhe confere a Constituição,
Artigo 20, n. 15:
Art. 1°. É transferida para a vila de Bento Gonçalves a sede da
atual Comarca de Caxias, composta dos municípios deste nome,
de Bento Gonçalves e de Garibaldi.
Art. 2°. Fica derrogado nesta parte o Decreto n. 124-A, de 15 de
janeiro de 1898. (ADAMI, [19—], p. 257).
Assim, a comarca foi transferida devido à localização de Caxias do Sul,
que será, novamente, sede da comarca em 1919, quando passou a ter
jurisdição sobre Caxias do Sul e Antônio Prado.5 Assim, grande parte da
documentação produzida entre 1898 e 1907 e, principalmente, aquela
produzida entre 1907 e 1919, estaria sob a responsabilidade da Comarca
de Bento Gonçalves. Isso pode explicar, juntamente com o que já foi dito,
a pequena quantidade de processos referentes aos primeiros 30 anos de
criação da Comarca Caxias. Mas essa dispersão da documentação produzida
pela comarca não desvaloriza o acervo, que auxilia para o desenvolvimento
e fortalecimento de centros de pesquisa no interior do Estado do Rio
Grande do Sul, dentro da política do Memorial do Judiciário do Rio Grande
do Sul que, “em sua organização, é composto por um Núcleo de Pesquisa,
Centro de Eventos, Museu, Biblioteca, Arquivos e Centros de Memória
Regional, Porto Alegre e Interior”. (BIANCAMANO, 2005, p. 320). Segundo
Biancamano (p. 321), a criação dos centros pareceu a melhor opção para a
preservação do acervo do Poder Judiciário, “porque manteria a documentação
nas comunidades de origem, facilitando o acesso à informação contida
nesses documentos”. Assim, o CMRJU/IMHC/UCS auxilia na preservação
104
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012
de uma documentação importante para a construção ou reconstrução da
história da cidade de Caxias do Sul e região, disponibilizando para
pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento seu acervo, que,
antes disso, é higienizado e catalogado.
Em janeiro de 2004, logo após a chegada dos processos, iniciou-se a
higienização6 da documentação. Do total de 2.229 (dois mil, duzentos e
vinte e nove) caixas, foram higienizadas 850 (oitocentos e cinquenta), até
setembro de 2011. Essas caixas higienizadas possuem 22.232 (vinte e dois
mil, duzentos e trinta e dois) processos, que abrangem o período de 1900 à
1930. Após receberem esse tratamento, os processos são catalogados e,
depois, incluídos em uma base de dados, desenvolvida em meados de 2005,
que tem como objetivo facilitar a consulta ao acervo. Já estão incluídas
nessa base 379 (trezentas e setenta e nove) caixas. Os tipos de processos são
variados, como pode ser observado na tabela abaixo:
Tabela 1 – Processos do CMRJU/IMHC/UCS (1900-1960)
Os processos relacionados na tabela 1 são alguns dos mais frequentes
entre os anos de 1900 e1960. Através da tabela produzida, percebe-se,
como já foi dito, que o acervo do CMRJU/IMHC/UCS concentra-se nas
décadas de 40 (séc. XX) e posteriores. Além disso, durante o período de
1900 a 1960, podem ser encontrados, no acervo, diversos processos criminais
(homicídios, defloramentos, lesões corporais, etc.) e outros tantos referentes
à demarcação de lotes. Vale lembrar, que o acesso a essa documentação,
conforme a Ordem de Serviço 004/03-DF, está autorizado aos membros e
servidores do Judiciário, assim como a
MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani
105
I) professores e/ou pesquisadores do Direito, História e áreas afins,
ligados a instituições que desenvolvam trabalho reconhecido de
[pesquisa] (universidades públicas e particulares, organizações de
classe, instituições públicas, institutos históricos e geográficos,
centros de pesquisa); II estudantes de graduação ligados
oficialmente a linhas ou programas de pesquisa, tais como: bolsistas
de iniciação científica, bolsistas de aperfeiçoamento e outras formas
praticadas pelas instituições; [...] (ORDEM, 2003, p. 1-2).
Essa delimitação do acesso ao CMRJU/IMHC/UCS deve-se ao
conteúdo dos processos, que contêm, muitas vezes, informações de caráter
privado relativas a pessoas físicas e jurídicas. Assim, é solicitado aos
pesquisadores que assinem um termo no qual se comprometem a não
divulgar os nomes dos indivíduos em processos de modo que possam, de
alguma forma, causar danos aos envolvidos ou familiares. Assim, realizadas
essas primeiras observações sobre a constituição do CMRJU/IMHC/UCS,
seu acervo e consulta, passamos, a seguir, a especular sobre possíveis temas
que possam aproveitar o acervo do referido centro.
As fontes judiciais e a produção historiográfica
Segundo Barros (2004, p. 121), os historiadores da atualidade têm
prestado atenção a “um vasto manancial de fontes que por muito tempo foi
esquecido: os registros de polícia, os processos criminais [...] ou ainda,
para os primeiros séculos da Idade Moderna, os processos da Santa
Inquisição”. Essa utilização auxiliou para que, hoje, sejam inúmeros os
trabalhos historiográficos que possuem como fonte principal processos
produzidos pelo Poder Judiciário ou por outras instituições, como a Igreja.
Nessa parte do texto, buscamos alguns exemplos dessa utilização,
demonstrando o quanto esses documentos podem ser úteis a pesquisas que
possuem as mais diversas temáticas, pois é “possível extrair deles análises
variadas sobre grupos sociais diversos”. (OLIVEIRA; SILVA, 2005, p. 244).
Além disso, pretende-se especular sobre outros possíveis temas ainda não
estudados.
Um dos primeiros a demonstrar o quanto as fontes produzidas a partir
de interrogatórios podem ser exploradas pela história foi o italiano Ginzburg.
Em uma de suas mais importantes obras, O queijo e os vermes, Ginzburg
utiliza, além de outras fontes, dois processos abertos pelo Tribunal do Santo
Ofício7 contra Domenico Scandella, conhecido como “Menoccio”, que
106
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012
fornecem “um quadro rico de suas idéias e sentimentos, fantasias e
aspirações”. (GINZBURG, 2004, p. 16). Essas informações contribuíram de
maneira significativa para que o autor atingisse seus objetivos de pesquisa,
pois buscava “reconstruir um fragmento do que se costuma denominar
‘cultura das classes subalternas’ ou ainda ‘cultura popular’”. (p. 16). Para
Ginzburg,
as actas processuais, acessíveis directamente ou indirectamente,
podem ser comparadas à documentação de primeira mão recolhida
por um antropólogo no seu trabalho de campo ou deixada como
herança aos historiadores futuros. Trata-se de uma documentação
preciosa, embora inevitavelmente insuficiente: uma infinidade de
questões que o historiador se põe – e que poria, se pudesse recorrer
à máquina do tempo, aos acusados e à testemunha – não as
formularam os inquisidores do passado nem podiam fazê-lo. Não
se trata apenas de uma distância cultural, mas de diferenças e
objetivos. (1991a, p. 181).
Dessa forma, o autor ressalta a importância de se recorrer a outras
fontes, pois muitas das perguntas formuladas pelos pesquisadores podem
não ser respondidas de forma satisfatória somente através da análise de
processos. A utilização de múltiplas fontes colabora também para uma melhor
percepção do contexto estudado, o que possibilita uma mais completa
avaliação do pesquisador das estratégias escolhidas pelos atores históricos.
Além disso, a utilização de fontes variadas contribui para uma melhor
percepção do real, pois como lembra o próprio Ginzburg (1991b, p. 209),
não existem textos neutros; “até mesmo um inventário notarial implica um
código, que tem de ser decifrado”.
Essa não neutralidade dos textos fez com que a utilização de processos
criminais pelos historiadores fosse vista como desconfiança. Chalhoub
(2001, p. vii) lembra que, no início da década de 80 (séc. XX), quando
lançou Trabalho, lar e botequim, “havia uma um contingente de pesquisadores
céticos quanto à possibilidade de utilizar processos penais para estudar
temas outros que não a própria criminalidade ou as representações jurídicas
sobre determinados assuntos”.8 Os céticos acreditavam que “tais fontes
‘mentem’, [pois] os depoimentos são manipulados, respondem a uma
multiplicidade de interesses que os tornam praticamente inúteis para os
historiadores. (CHALHOUB, 2001, p. vii-viii). Para Chalhoub, Trabalho, lar
MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani
107
e botequim “é quase um libelo em defesa da utilização abrangente de processos
criminais em estudos de história social”, isso porque “outros pesquisadores
logo dialogaram com seu modo de ler tais documentos” (CHALHOUB, 2001,
p. viii). Mas como esses documentos podem ser lidos?
Segundo Oliveira e Silva (2005), os processos judiciais podem ser
lidos de forma quantitativa ou qualitativa. Segundo essas autoras, uma
análise quantitativa, por exemplo, “propicia não só uma ‘quantificação’ de
ocorrências – como quantidade de absolvições segundo o tipo de crime ou
raça (no caso de processos criminais) [...] – como também uma análise
mais sofisticada, trazendo à luz importantes relações entre diversos atores
tópicos envolvidos”. (2005, p. 246).
Ações de Alimentos, de Despejo, de Usucapião, por exemplo, que,
conforme a tabela 1 apresentada anteriormente, são recorrentes, podem
receber uma análise quantitativa preocupada em revelar o perfil dos atores
envolvidos e suas reivindicações. Ainda é possível se pensar sobre a existência
ou não de uma lógica no julgamento desses processos, como, por exemplo,
nos argumentos utilizados pelos advogados e demais pessoas envolvidas.
Além disso, no caso das Ações de Despejo, pode-se especular que o
desenvolvimento urbano da cidade tenha ocasionado a valorização de
determinados espaços, gerando um aumento no preço dos aluguéis, o que
impossibilitaria que determinados grupos sociais se mantivessem nesses
locais.
Por outro lado, é possível também realizar uma análise qualitativa do
acervo do CMRJU/IMHC/UCS. Para Oliveira e Silva (2005, p. 247), “a
análise qualitativa das narrativas dos processos permite evidenciar o modo
como as pessoas percebem elas mesmas e os outros, definindo-se e
posicionando-se no espaço social”. Já para Fausto (2001, p. 36), “os discursos
de acusação e defesa representam uma fonte importante para a apreensão de
valores e representações sociais, permitindo localizar pontos sensíveis, capazes
de determinar as opções do corpo de jurados”. Além disso, Abreu e Caulfield
(1995, p. 30), consideram que “as delegacias e os tribunais converteram-se
num fórum para discussão de conceitos sobre a virgindade feminina e
‘honestidade’”, por exemplo. Assim, ainda segundo elas, “os processos
criminais [em especial defloramentos e estupros] permitem analisar o
significado desses conceitos dentro do sistema de valores construído no
discurso das pessoas que eram interrogadas por policiais, advogados de
defesa, promotores e juízes”. (p. 30). Dessa forma, como lembra Caratti,
108
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012
ao trabalharmos com processos-crime, deparamo-nos com um
documento dividido em partes bem definidas: queixa, translado,
devassa, indagações policiais. Cada parte é um universo a ser
desvelado, a partir das indagações que fizermos. É preciso estar[mos]
atentos para os relatos que emergem, os quais, geralmente
expressam modos de vida individuais e coletivos, informam sobre
comportamentos, hábitos e atitudes de indivíduos e grupos sociais.
Podemos encontrar também nesses documentos, elementos
definidores da esfera mental dos sujeitos históricos estudados, seja
dos queixosos, seja dos agentes policiais. Isto pode ser explicitado
através das diferentes versões sobre um mesmo crime relatadas
pelos informantes, e das expressões discursivas dos
encaminhamentos e registros policiais. (2006, s.p.).
Percebe-se que são inúmeras as possibilidades de pesquisa utilizando
processos, em especial criminais. Porém outros tipos de processo podem
ser explorados de diferentes formas, desde que se tenha uma “definição
precisa do objeto, das questões que se quer responder”. (OLIVEIRA; SILVA,
2005, p. 245). Através de um Executivo Fiscal, por exemplo, Mott descobriu
que sua biografada, Ercilia Nogueira Cobra, a partir de 1936,
passou a atrasar os impostos chegando a dever, até o exercício de
1938 por impostos, taxas e multas, à Prefeitura de Caxias,
2:352$000 (dois contos, trezentos e cinquenta e dois mil-réis).
Pelo não pagamento da dívida, que aumentava ano a ano, a penhora
foi executada e a propriedade foi arrematada em 1942, por Hugo
Argenta, na realidade um “testa de ferro” do escrivão Heitor Curra.
(1986, p. 99).
Mas, para Mott, a informação mais importante é o registro realizado
pelo Oficial de Justiça, Evandro Reis, que certifica que Ercilia não residia
mais em Caxias do Sul no ano de 1940. Dessa forma, quando temos claro
o que queremos saber, qualquer tipo de processo pode ser utilizado.
Existem outros exemplos de processos pouco utilizados e que podem
proporcionar outras investigações. O jornal O Cosmopolita noticiou, em
1902, que “as famílias Viganó e Ortolan, residentes na 6ª légua deste
município [de Caxias], vivem em continua rixa devido a uma antiga questão
de terras”. (7 fev. 1902).9 Muitas dessas rixas acabavam em morte, como
no caso das duas famílias mencionadas, e esse exemplo não era um caso
MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani
109
isolado. Em outra edição, é realizada uma reportagem sobre Questões de
Terras que diz o seguinte:
Neste município se tem registrado mais de um assassinato e muitos
ferimentos provindos de questões de limites de lotes coloniais. Esses
lotes, que foram medidos e demarcados por funccionarios pouco
escrupulosos, têm as divisas confusas, pelo que trazem seus
concessionarios em continuas questões acaloradas e em letigios
interminaveis. Presentemente esta em letigio esta questão acaloradas
e em letigios inteminaveis. Presentemente esta em letigio esta
questão, entre os colonos Francisco Belloni e Julio Prezzi. (O
Cosmopolita, 11 mar. 1905).
Através dessa informação do jornal, é possível partir para uma
investigação sobre quem foram os responsáveis pela divisão dos lotes. Eram
eles profissionais qualificados para isso?
Além disso, é possível pesquisar nos vários processos sobre o assunto,
buscando informações a respeito dos envolvidos, de suas queixas, de seus
argumentos e de como foram resolvidos tais casos. Para quem a Justiça
concedeu a posse da terra? Quais são os argumentos ou provas que resolviam
tais rixas? A imprensa, dessa forma, pode auxiliar na formulação de novos
questionamentos, inclusive sobre a construção das figuras da vítima e do
réu.
A rixa entre as famílias Viganó e Ortolan, como dissemos, acabou em
morte. Na primeira notícia encontrada sobre o caso, os redatores do jornal
atribuem algumas características aos envolvidos, construindo, dessa forma,
um perfil de vítima e um de réu. Na versão da imprensa, o réu já havia
atacado o pai da vítima com uma faca, dias antes do assassinato. Segundo o
jornal, o réu tinha um “gênio forte”, era descontrolado, todos sabiam de
sua “má índole”, inclusive a vítima, ou seja, era “uma fera” que “queria
sangue”. O assassino tinha como objetivo matar o patriarca da família
envolvida. Mas quem acaba morrendo é o filho desse, devido à sua
intromissão na discussão. Dessa forma, a vítima passa a ser vista como
“vítima do amor filial”, “pai de família”; em síntese: era “um bom colono e
merecia o melhor elogio que se pode fazer a um homem – foi muito
trabalhador”. (O Cosmopolita, 7 dez. 1902).10
110
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012
Porém, em outra edição, quando o jornal fazia a cobertura do
julgamento do caso, foram atribuídas ao réu características distintas daquelas
mencionadas anteriormente. Nesse momento, o assassino passa a ser visto
como um “jovem imberbe”, [de] feição feminina e simpática”, através de
suas respostas percebeu-se sua “voz trêmula e quase imperceptível”. O jornal
segue dizendo que o acusado “é filho único de pais septuagésimos”, que
após ouvirem a leitura da sentença “prorromperam em pranto, consternando
todo o auditório”. (O Cosmopolita, 15 mar. 1903). O que teria feito a
imprensa mudar sua opinião sobre o réu? Primeiro, ele aparece como uma
fera em busca de sangue, para depois passar a ter feições femininas e voz
trêmula. Na imprensa, as construções em torno do réu o transformam em
vítima. Na edição referida, o jornal informa que a opinião pública queria a
absolvição do réu. Será que a construções do réu como um “bom moço”
influenciou no julgamento do processo? Ou essa mudança é reflexo de
questões mais profundas?
No caso anterior, a opinião pública que desejava a absolvição do réu
não contestou a sentença; essa foi contestada pelos defensores do acusado.
Mas, em outros momentos, a imprensa questionou as sentenças, como em
fevereiro de 1904, quando foi informado o resultado de alguns julgamentos
ocorridos:
Dia 1º de Fevereiro: Réo Constante Pozer, pronunciado no art.
304 § unico, defensor e advogado Mauricio N. de Almeida.
Absolvido por unanimidade de votos. Dia 3: Réo Benetti João
Baptista, pronunciado no artigo 304 § unico, defensor o mesmo
advogado. Absolvido por unanimidade. Réo Zanella Michelli,
pronunciado no mesmo artigo e §, defensor o 4° annista de direito
Antonio Casagrande. Absolvido por tres votos.
Dia 4: Réo Ernesto Vecchi, pronunciado no artigo 303, defensor
o mesmo 4° annista Antonio Casagrande. Absolvido por
unanimidade. Ré Clementina Bolzani pronunciada no artigo 303,
defensor o advogado Antonio Ribeiro Mendes. Absolvida por
unanimidade. (O 14 de Julho, 14 fev. 1904).11
Essas informações são referentes à primeira sessão do júri, ocorrida em
1904, sob a presidência do Dr. José Gonçalves Ferreira Costa. Para a imprensa
a absolvição de todos os réus nessa sessão “demonstra a complacência do
nosso juri, pois custa a crer que todos estejam inocentes”. Ainda sugere que
MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani
111
“se as vítimas fossem os jurados, pode-se garantir que outras seriam as
sentenças”. (O 14 de Julho, 14 fev. 1904). Assim, se demonstra outra
possibilidade de pesquisa, ou seja, pode-se investigar as críticas dirigidas ao
Judiciário caxiense formuladas pela imprensa. No caso, fica evidente a
insatisfação com a absolvição de todos os acusados, e os jurados são
responsabilizados. A partir disso, a investigação pode iniciar elencando os
critérios de escolha dos jurados no período.
Considerações finais
Com o exposto, buscou-se evidenciar a importância da criação do
CMRJU/IMHC/UCS, no sentido de ampliar as possibilidades de pesquisa
sobre a cidade e região, principalmente, depois da percepção, por parte dos
historiadores, de “que os processos judiciais encerram um feixe profícuo de
informações sobre as relações sociais e de poder de tempos passados”. (AXT,
2004, p. 10). Além disso, o CMRJU/IMHC/UCS auxilia na concretização
dos objetivos do Memorial do Judiciário do Rio Grande do Sul, pois,
segundo Gunter Axt,
pode operar como instrumento de reforço dos canais de
aproximação do Judiciário com a comunidade, externalizando, de
uma forma didática, sua missão constitucional, bem como
contribuindo para divulgar os direitos individuais e coletivos,
garantidos por lei, junto à população, de maneira a concorrer para
ampliação de acesso à Justiça. (2002, p. 236).
E, também, na concretização dos objetivos da UCS na medida em que
disponibiliza aos seus alunos e pesquisadores da região um importante
acervo documental que, sem dúvida, contribui para uma melhor compreensão
sobre a memória e a identidade da Justiça e do Judiciário.
Atualmente o CMRJU/IMHC/UCS, funciona junto ao Instituto
Memória e Cultura da Universidade de Caxias do Sul, no Bloco 46.
112
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012
Notas
O Termo de Convênio previa que o
CMRJU/IMHC/UCS estaria localizado
no Bloco 58 do curso de Direito da UCS,
porém o mesmo passou a integrar o
Instituto Memória Histórica e Cultural
da UCS, localizado no Bloco 46.
1
Era o que dizia o jornal Il Colono Italiano,
de 6 de março de 1898: “Secondo la
promessa fatta dall’illustre Dr. Giulio
Prates di Castilhos ex dignissimo
Presidente dello Stato, Caxias venne
elevata a Comarca. Tale notizia fu accolta
con entusiasmo”. Acervo: Arquivo
Histórico Municipal João Spadari Adami
(AHMJSA).
2
O exemplar consultado pertence ao
acervo do AHMJSA.
3
Segundo Adami (1957, p. 34), até 1907
foram nomeados juízes da Comarca
Caxias o Dr. Armando Azambuja, seguido
por Manoel da Costa Barradas, Caio da
Cunha Cavalcanti e José Gonçalves
Ferreira Costa.
4
Conforme Decreto 2.408, de 26 de abril
de 1919. (MEMORIAL DO
JUDICIÁRIO DO RS, 2003, p. 43).
5
6
A higienização é um procedimento
técnico, pelo qual passará todo o acervo
do CMRJU/IMHC/UCS. Conforme a
lista de procedimentos do CMRJ/CXS,
elaborada pela arquivista Bianca Ceretta
Damião, “os processos devem ser
higienizados folha a folha, fazendo a
limpeza com trinchas e escovas
delicadamente. Objetos estranhos como
clipes, grampos e atilhos, devem ser
removidos de todo o acervo”. Depois
disso, os processos recebem “uma capa de
papel neutro” e são substituídas “as caixas
de papelão por caixas de polionda”.
Outro exemplo de utilização de
processos produzidos pela inquisição é a
obra de Luiz Mott, em especial: (MOTT,
Luiz. O sexo proibido: escravos, gays e
virgens nas garras da Inquisição.
Campinas: Papirus, 1988.
7
É dessa época, por exemplo, a obra de
Boris Fausto sobre a criminalidade em São
Paulo: (FAUSTO, Boris. Crime e
cotidiano: a criminalidade em São Paulo
(1880-1924). 2. ed. São Paulo: Edusp,
2001.
8
9
Acervo: AHMJSA.
10
Acervo: AHMJSA. Grifo do autor.
11
Acervo: AHMJSA.
MÉTIS: história & cultura – IOTTI, Luiza Horn; GOMES, Fabrício Romani
113
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 101-114, jan./jun. 2012
Memória e suas implicações
na vida cotidiana: análise teórica
Memory and its implications in everyday life: theoretical analysis
Roberta Lopes Augustin*
Sérgio Augustin**
Resumo: Este ensaio tem como objetivo
refletir sobre o conceito de memória a partir
de leitura que visa a alertar para a urgência
de uma análise mais minuciosa em ciências
sociais. Desse modo, enfatizando a
importância da análise situacional, focando
a defesa das relações e ações do cotidiano
como fator determinante para uma
investigação científica sobre a memória,
como um conceito rico em subjetividade e
como um articulador e representante da
intersubjetividade do cotidiano. Para tanto,
são utilizadas as prerrogativas de Alfred
Schutz para a compreensão das ações sociais
e a reflexão sobre o conceito de memória à
luz de autores reconhecidos. Finalizando,
estudados são os espaços teóricos,
metodológicos e, sobretudo, vividos da
memória na contemporaneidade.
Abstract: This essay aims to reflect on the
concept of memory from reading that seeks
to draw attention to the urgent need for
more detailed analysis in the social sciences.
Thus, emphasizing the importance of
situational analysis, focusing on the defense
of relations and actions of the everyday life
as a determinant factor for scientific research
on memory, as a concept rich in subjectivity
and as an organizer and representative of
inter-subjectivity of the everyday. To do so,
we use the prerogatives of Alfred Schutz in
the understanding of social action and
reflection on the concept of memory in light
of recognized authors. Finishing with
theoretical, methodological, and especially
experienced spaces of the contemporary
memory.
Palavras-chave: memória; cotidiano;
sociedade contemporânea.
Keywords: memory; everyday; society
contemporary.
Mestre em Integração Latino Americana (UFSM). Aluna de Pós-Graduação em Ciências
Sociais (Unisinos). E-mail: roberta.augustin@gmail.com
**
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2002). Atualmente é professor
da Universidade de Caxias do Sul. Coordenador do Programa de Mestrado em Direito
da Universidade de Caxias do Sul. E-mail: saugusti@ucs;br
*
MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio
115
Introdução
Este ensaio tem como pretensão refletir sobre o conceito de memória e
suas implicações na vida cotidiana, tendo como alicerce a afirmação de
Gilberto Velho: “A memória é fragmentada. O sentido de identidade depende,
em grande parte, da organização desses pedaços, fragmentos de fatos e
episódios separados. O passado, assim, é descontínuo.” (1994, p. 103). A
partir dessa perspectiva, é necessário buscar recursos teóricos para uma
melhor compreensão sobre a construção do conceito de memória. Assim, é
preciso aproximar alguns suportes teóricos defendidos por autores
consagrados do pensamento das ciências sociais.
Esta reflexão propõe discorrer sobre os principais pontos elencados da
obra de Alfred Schutz, que busca anunciar a importância da vida cotidiana,
enfatizando a ação e o ator nas suas mais complexas inter-relações. Nesse
sentido, discorrendo sobre a importância de uma análise profunda acerca
dos caminhos desse ator e suas diferentes influências, indagando e
arquitetando uma minuciosa investigação sobre a situação em que esse está
inserido, destacando um olhar analítico sobre a situação definida a partir
da biografia do ator, bem como a ideia de projeto. Para tanto, fundamentando
a interdependência da biografia, da memória e sua definição de projeto.
No segundo momento, é preciso aprofundar e complexificar o conceito
de memória e suas influências sociais, como Maurice Halbwachs em sua
obra Memória coletiva (2004), que tem como premissa investigar a memória
coletiva e a memória histórica, discutindo sobre a diferença entre memória
autobiográfica e memória histórica, tecendo olhares sobre as diferentes
relações sociais que constroem esse conceito. Igualmente, a autora Jacy
Alves de Seixas enfatiza algumas fragilidades conceituais e salienta a utilização
massiva e descuidada da memória, em seu texto “Percursos de Memórias
em Terras de História: problemas atuais” (2004).
E, por último, este ensaio tem como finalidade dialogar sobre a memória,
portanto, levando à discussão as influências sociais e seus instrumentos que
concretizam seus objetivos sejam eles materiais, sejam eles imaterias. Por
esse motivo, é relevante mapear alguns elementos cruciais como os lugares
de memória e os conceitos de cidade e imaginário.
A preferência por esse tema justifica-se pela observação das
manifestações sociais que, constantemente, têm investido na memória como
um poderoso instrumento que visa a instigar ou concretizar diferentes
relações sociais e, por conseguinte, as inquietações que questionam a
utilização e as influências sociais, que se refletem tanto no plano macro
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quanto no microestrutural, focados nas relações cotidianas. Assim, visualizase um indivíduo em meio a um turbilhão de informações que surgem com
uma velocidade surpreendente, que faz dele um consumidor de informação,
que, por vez, comporta-se como receptor, acrítico, esquecendo-se de uma
capacidade relevante: a capacidade seletiva.
Nesse ponto, se percebe os primeiros reflexos do que hoje se identifica
como sociedade do esquecimento e o nascimento ou renascimento de
instituições profissionalizadas na (re)construção da memória, bem como
sua inserção social. Nesse momento, é que se enfatiza o caráter político,
salientado por Seixas (2001, p. 7): “Toda a memória, seja ela ‘individual’,
‘coletiva’ ou ‘histórica’, é uma memória para qualquer coisa, e não se pode
ignorar esta finalidade política (no sentido amplo do termo).”
Alfred Schutz: para compreender os novos espaços da memória
A prioridade de Schutz é investigar as experiências da ação e
interpretação da vida cotidiana, descortinar o senso comum, utilizando-o
na construção do pensamento científico das ciências sociais. Compreendendo,
dessa forma, que a consciência individual é construída a partir das experiências
da vida cotidiana, sendo, portanto, significativa e abstrata, desse modo,
afasta-se de dualismos teórico-metodológicos e enfatiza os processos
intersubjetivos. É evidente a aproximação com Max Weber, porque entende
a sociologia como a compreensão da ação social, e com Edmund Husserl
que pretende utilizar os preceitos da fenomenologia na sociologia, articulando
uma fenomenologia social.
Propõe, dessa forma, estudos sobre os processos de interpretação que
são utilizados na vida cotidiana, sendo a linguagem coloquial uma fonte de
pesquisa relevante, porque traça tipos e características pré-constituídas,
formando um campo inexplorado. Nesse sentido, são as questões e
inquietações norteadoras de sua tese, desenhando um cenário de fontes
ricas, pois, para o autor, é necessário que a vida cotidiana seja descoberta, a
saber,
desde o princípio, nós, os atores no cenário social, vivemos o mundo
como um mundo ao mesmo tempo de cultura e natureza, não
como um mundo privado, mas intersubjetivo, ou seja, que nós é
comum, que nos é dado ou que é potencialmente acessível a cada
um de nós. E isso implica a intercomunicação e a linguagem.
(SCHUTZ apud COULON, 1995, p. 12).
MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio
117
Schutz identifica o indivíduo como construtor do seu próprio mundo,
arquitetando sua vida cotidiana, e o senso comum é o recurso cognitivo
que estabelece a relação e as ações do cotidiano, compartilhando suas
experiências cheias de significados. Portanto, a intersubjetividade é o ponto
crucial na obra de Schutz, pois percebe o mundo social como um fenômeno
intersubjetivo. O autor sugere nesse item a compreensão das motivações
do outro em suas diferentes especificidades. Logo, é justamente a relação
com o outro que viabiliza a experiência, consequentemente, as experiências
cotidianas que não são privadas, particulares, e sim, compartilhadas e
construídas a partir de relações com diferentes atores por meio da
comunicação. Portanto, as ações na vida cotidiana só têm sentido em relação
às ações dos demais. Enfim, desenvolvem procedimentos de ajustes para
que a experiência de um seja assimilada pelo outro, a partir de processos de
comunicação e interação; dessa forma, elabora-se uma realidade que se pode
compartilhar criando uma vivência comum, entendida por todos aqueles
que convivem no mesmo espaço social.
Schutz afirma que a interdependência nas relações da vida cotidiana
traz consigo uma carga de conflitos inevitáveis, devido à sua subjetividade.
Porém, é preciso compreender que não é uma equação cheia de conceitos
definidos que visa a analisar as singularidades em seu mundo, mas uma
investigação acerca das típicas construções que incorporam essas
singularidades. Dessa maneira, afloram os níveis de significatividade dos
atores envolvidos em determinada situação. O autor enfatiza o quanto a
vida cotidiana e o senso comum não podem ser analisados por uma ótica
racional e linear; esclarece o quanto é perigoso trabalhar com o senso comum,
visto que é preciso compreender que esse pode ser uma fonte rica de dados,
mas desigual, desconexa.
Nessa perspectiva, a significatividade apresenta uma atividade
interpretativa e seletiva visível no constante planejamento de tipificação,
que é desenvolvido não só pelo cientista social, mas também na vida cotidiana
em que os atores estão inseridos. Ou seja, o conhecimento do senso comum
também é fator importante para essa construção, já que seleciona as
informações que interessam e as coaduna num nível maior. Assim, são os
conhecimentos extraídos da vida cotidiana que o autor elege como sendo
conhecimento à mão, à disposição.
Em sua tese, o autor identifica marcos importantes para uma investigação
em ciências sociais; o primeiro indica que os atores interagem a partir de
percepções pré-constituídas no caminho percorrido, ou seja, dos
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acontecimentos do passado. O segundo destaca a contínua movimentação
social e atenta para a constante significação dos atores sobre suas ações. O
terceiro ponto enfatiza o conhecimento à mão que define as estruturas da
vida cotidiana. Já o quarto ponto de análise refere-se às construções
desenvolvidas para uma contínua reflexão sobre as suas características e que
tem como objetivo a liberdade de se reinterpretar a partir de uma
permanente observação. No último ponto, o autor defende a reciprocidade;
nesse item, garante-se a propriedade que estabelece relações entre as
experiências e as ações subjetivas.
O conhecimento que Schutz identifica como a situação biográfica faz
parte da dinâmica social e articula a construção da intersubjetividade,
trazendo, em seu objeto, a praticidade e não o questionamento. Assim, o
passado comum, o envelhecer juntos só e possível não em experiências
passadas, mas em possibilidades futuras. Para contemplar esse fim, é
necessário enfatizar Gilberto Velho
Alfred Schutz desenvolveu a noção de projeto como “conduta
organizada para atingir finalidades específicas”. Embora o ator,
em princípio, não seja necessariamente um indivíduo, podendo
ser um grupo social, um partido, ou outra categoria, creio que
toda a noção de projeto está indissoluvelmente imbricada à ideia
de indivíduo-sujeito [...]. A consciência e valorização de uma
individualidade singular, baseada em uma memória que dá
consistência à biografia, é o que possibilita a formulação e condução
de projetos. Portanto, se a memória permite uma visão
retrospectiva mais ou menos organizada de uma trajetória e
biografia, o projeto é a antecipação no futuro dessas trajetória e
biografia, na medida em que busca, através do estabelecimento de
objetivos e fins, a organização dos meios através dos quais esses
poderão ser atingidos. A consciência do projeto depende da
memória que fornece os indicadores básicos de um passado que
produziu as circunstâncias do presente, sem a consciência das quais
seria impossível ter ou elaborar projetos [...]. O projeto e a memória
associam-se e articulam-se ao dar significado à vida e às ações dos
indivíduos, em outros termos, a própria identidade. (1994, p. 101).
O passado é descontinuo (VELHO, 1994) é a ideia balizadora deste
ensaio, entender a memória a partir da fenomenologia social de Alfred
Schutz refletindo sobre seu complexo conceito.
MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio
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Visitando o conceito de memória
É necessário pontuar e revisitar o conceito de memória e seus
demarcadores, tendo como intenção a clarificação e a compreensão desse,
bem como investigar teoricamente questionando os seus espaços
metodológicos. Portanto, a memória é compreendida como um conceito
interdisciplinar que torna sua utilização conceitual muito cuidadosa,
justamente por transitar em diferentes terras científicas.
Nesse intuito, Seixas entende que
toda a memória é fundamentalmente “criação do passado”: Uma
reconstrução engajada do passado (muitas vezes subversiva,
resgatando a periferia e os marginalizados) e que desempenha um
papel fundamental na maneira como os grupos sociais mais
heterogêneos apreendem o mundo presente e reconstroem sua
identidade, inserindo-se nas estratégias de reivindicação por um
complexo direito ao reconhecimento. O que é aqui colocado em
primeiríssimo plano é, portanto, a relação entre memória e
(contra)poder, memória e política. A memória é ativada visando,
de alguma forma, ao controle do passado (e, portanto, do presente).
Reformar o passado em função do presente via gestão das memórias
significa, antes de mais nada, controlar a materialidade em que a
memória se expressa (das relíquias aos monumentos, aos arquivos,
símbolos, rituais, datas e comemorações). Noção de que a memória
torna poderoso(s) aquele(s) que a gere(m) e controla(m). (2001,
p. 89).
Acrescenta-se, ainda, o entendimento de Bergson, filosofo francês, que
estuda a memória como ponto de partida das leituras do mundo por meio
de imagens e a apreensão desse mundo. Nesse ínterim, o autor enfatiza as
lembranças, as imagens e a percepção:
Sob forma de imagens-lembranças, todos os acontecimentos de
nossa vida cotidiana à medida que se desenrolam [...]. Ela não
negligenciaria nenhum detalhe; atribuiria a cada fato, a cada gesto,
seu lugar e sua data. Sem segunda intenção de utilidade ou de
aplicação prática, armazenaria o passado pelo mero efeito de uma
necessidade natural. (BERGSON, 1999, p. 62).
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Ainda nesse ponto, encontra-se Maurice Halbwachs, sociólogo, que
objetiva sua investigação em diferentes contextos sociais e não na memória
como tal. O autor entende que a memória individual depende da memória
coletiva, uma vez que o homem é um ser social, e que todas as lembranças
estão relacionadas a algum momento, a alguma pessoa e compreende que os
espaços dessas lembranças são sociais e determinadas. Portanto, toda
memória é a construção e a reconstrução do passado que se aproveita dos
quadros sociais; desse modo, as memórias individuais são dependentes das
memórias coletivas. No entanto, como afirma Halbwachs
se a memória individual pode, para confirmar algumas de suas
lembranças, para precisá-las, e mesmo para cobrir algumas de suas
lacunas, apoiar-se sobre a memória coletiva, deslocar-se nela,
confundir-se momentaneamente com ela, nem por isto deixa de
seguir seu próprio caminho, e todo esse aporte exterior é assimilado
e incorporado progressivamente à sua substância A memória
coletiva por outro lado, envolve as memórias individuais, mas não
se confunde com elas. (2004, p. 53).
O autor intensifica a reflexão alegando que as lembranças são
identificadas e alimentadas a partir das relações desenvolvidas nos diferentes
grupos sociais. Então, a memória é articulada e modificada conforme a
posição que os indivíduos ocupam e suas relações nos grupos sociais aos
quais pertencem. Parafraseando o autor, a lembrança é a imagem engajada
em outras imagens; desse modo, as vivências nesses grupos sociais viabilizam
a construção de representações do passado, fundamentadas nas percepções
de outros ou na própria apreensão de representações historicamente
construídas e impostas internalizando o discurso oficial.
A lembrança é em larga medida uma reconstrução do passado
com a ajuda de dados emprestados do presente, e, além disso,
preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e
de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada.
(HALBWACHS, 2004, p. 75-76).
Para ele, a memória fundamenta-se no passado vivido e não no passado
apreendido a partir da história escrita. O autor define a memória histórica
como uma sucessão de fatos relevantes que, relacionados, unificam a
MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio
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representação histórica de um determinado objeto. Já a memória coletiva
só existe no plural, então, o autor diferencia memória de história, visto que
entende que a história pode ser construída a partir da síntese de determinado
objeto para um grupo de pessoas; entretanto, a percepção de cada um
(desse grupo), será distante e repleta de peculiaridades, distanciando-se da
elaboração da síntese dos fatos.
Acrescenta-se, ainda, a memória individual que, muitas vezes, se
confunde com a memória coletiva, já que essa depende de diferentes
instrumentos, disponibilizados pela memória coletiva que são elaborados
no meio em que o indivíduo está inserido. Ao mesmo tempo, a memória
coletiva abrange as memórias individuais, mas não se confunde com elas.
Entende-se que os fatores internos necessitam dos externos para suas
afirmações, e o indivíduo, em seus diferentes ciclos de vida, arquiva
lembranças particulares, mas também as que estão inseridas em grupos, e
são esses que vão sustentar a lembrança de determinados fatos. Fatos que
serão relembrados por diferentes fontes: por jornais ou por meio de
depoimentos daqueles que deles participaram diretamente. Esses
acontecimentos estão situados na memória de um grupo e dependem, assim,
da memória do outro; as lembranças do outro representam o sentimento de
confiança, é uma memória “emprestada”, como se lê em Halbwachs:
Uma interior ou interna, a outra exterior; ou então a uma memória
pessoal, a outra memória social. Diríamos mais exatamente ainda:
memória autobiográfica e memória histórica. A primeira se
apoiaria na segunda, pois toda história de nossa vida faz parte da
história em geral. Mas a segunda seria, naturalmente, bem mais
ampla do que a primeira. Por outra parte, ela não nos representaria
o passado senão sob uma forma resumida e esquemática, enquanto
a memória de nossa vida nos apresentaria um quadro bem mais
contínuo e mais denso. (2006, p. 59).
Então, se a memória é um instrumento social, já que o presente está
apoiado no passado, assim, “pela memória, o passado não só vem à tona
das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como
também empurra, ‘desloca’ estas últimas, ocupando o espaço todo da
consciência”. (BOSI, 1994, p. 27). Nessa perspectiva, destaca-se outra obra
fundamental: Memória e sociedade (1994) da autora Ecléa Bosi, na qual
questiona e argumenta que o fator socializador da memória é a linguagem,
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uma vez que essa “reduz, unifica e aproxima, no mesmo espaço histórico e
cultural, vivências tão diversas como os sonhos, as lembranças e as
experiências recentes”. (p. 28). Outro aspecto relevante é o caráter político
em que o conceito de memória vivencia o que é e como será comemorada
tal situação; reflete-se sobre a manipulação política tão inserida nas
manifestações e nos lugares de memória. Bosi analisa que
na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer,
reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências
do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, devese duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se
daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem
construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no
conjunto de representações que povoam nossa consciência atual.
Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela
não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque
nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção
alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de
valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a
identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua
diferença em termos de ponto de vista. (1994, p. 55).
Desse modo, a lembrança não é estática, e a imagem do passado é
substituída lentamente por novas. Nessa reconstrução, o outro passa a ter
papel fundamental, confirmando a ideia central de Halbwachs, com a qual
defende que as imagens do passado não estão na memória do indivíduo, e
sim, na sociedade. Portanto, a memória teria como objetivo orientar o
sujeito? Como, por exemplo, reproduz um comportamento já utilizado e
julgado adequado? Logo, a memória tem papel muito prático e focado,
visto que se serve do passado para delimitar ações interessadas. Para Seixas,
a memória carregaria, assim, um atributo fortemente ético,
incidindo sobre as condutas dos indivíduos e dos grupos sociais.
Não interfira diretamente e voluntariamente sobre as ações, [...]
seus objetivos, fixando-os e calculando-os previamente, mas
atuando no sentido essencialmente ético de induzir condutas, de
interferir na (im)possibilidade mesma das ações. (2001, p. 5).
MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio
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Por conseguinte, se a memória coletiva e a individual são sociais
justamente por serem coletiva, essa utilizará outro conceito de suma
importância para a sua própria atuação: os lugares de memória, e esses são
inseridos neste ensaio como espaços de observação sobre as influências e as
consequências sociais.
A vida cotidiana oportunizando diferentes espaços de memória
Pierre Nora reflete sobre a espacialização da memória, definindo que
os lugares de memória são
lugares materiais onde a memória social é ancorada e pode ser
aprendida pelos sentidos, são lugares funcionais que têm como
objetivo alicerçar as memórias coletivas é lugares simbólicos onde
permitem a revelação e expressão da memória. (1993, p. 37).
Aos lugares de memória vincula-se a necessidade de (re)construir e
interpretar as reais intenções da continuidade das memórias de caráter coletivo
ou individual, conferindo a esses elementos uma função social com
significação dentro de seu tempo. Os espaços sociais, presentes na vida
cotidiana de uma sociedade, apresentam um cenário ideal para observações
e reflexões sobre esse conceito nas sociedades contemporâneas.
Por esse motivo, a cidade1 está inserida em um espaço social com um
tempo determinado e com a memória que os homens constroem para si
mesmos. Desse modo, está sempre em transformação tanto no tempo como
no espaço. Assim, é a ação humana sobre a natureza. É também sociabilidade,
já que comporta indivíduos, grupos, classes, práticas de interação, de
oposição, de transformação, de domínio e de submissão. (PESAVENTO, 2002).
Paul Ricoeur (1994) destaca que a cidade se constrói pelo imaginário.
É o espaço onde os homens constroem imagens e discursos; é expressão de
desejos, medos;, é prática de conferir sentidos e significados ao espaço e ao
tempo. A cidade pensada, desejada, imaginada, representa mais o real do
que o espaço urbano na sua materialidade.
Para Michel de Certeau (2002), o espaço é um “lugar praticado”, onde
os indivíduos da cidade transformam em espaço, e a rua é definida pelo
urbanismo como lugar. O lugar, aqui tratado, refere-se ao lugar
antropológico. Já Castells define lugar como um local cuja “forma, função e
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significado são independentes dentro das fronteiras da contiguidade física”.
(1983, p. 55).
A cidade inventa seu passado por meio do presente, por meio da
memória individual ou coletiva, ou seja, pela narrativa com a qual cada
grupo reconstrói o passado. Nesse sentido, a cidade do presente identifica
o patrimônio e transforma espaços em lugares com significados.
Dessa forma, a cidade acaba definindo uma identidade, construindo
relações particulares e, consequentemente, sociais, recheada de
especificidades; é um modo de ser, que possibilita reconhecimento e fornece
aos indivíduos uma sensação de pertencimento e de identificação. Dessa
maneira, a memória de uma sociedade é o seu referencial de conduta. Logo,
sem memória, não há identificação, desaparece a cultura e são destruídas as
consistências sociais de caráter coletivo. A identidade é formada e
transformada continuamente em relação às formas pelas quais os indivíduos
são representados nos sistemas sociais que os cercam. Para um indivíduo,
sua identidade é a percepção do que ele é em relação ao mundo social e ao
mundo natural; é o sentimento de pertencimento ligado a essa percepção.
É, ainda, a consciência que uma pessoa tem de si mesma.
No entanto, para perceber ainda mais essa sociabilidade, é necessário
contemplar as ações de valorização do patrimônio cultural, porque esse
interfere na socialização de uma sociedade, por isso, é importante refletir
sobre o papel que ele pode desempenhar na construção da memória coletiva.
O sentido da preservação não se refere à materialidade existente, mas à
representação, evocação que lhe é inerente, ou seja, preserva-se porque
determinado bem patrimonial tem um valor, é portador de referências para
a sociedade ou para segmentos dela, inclusive como forma de dominação.
O patrimônio cultural de uma sociedade é definido pela atribuição de valores
históricos, artísticos, arquitetônicos, afetivos, entre outros. Portanto, digno
de preservação ou de esquecimento. Nesse aspecto, o patrimônio constituise em representação que estimula manifestações sociais.
As sociedades contemporâneas são repletas de escolhas, o que caracteriza
interpretações modernas, momentos de incertezas, intensificando uma
sensação de ruptura com o passado. Para estabelecer a continuidade entre o
presente e o passado, são construídos os lugares de memória, expressos em
monumentos, edifícios, costumes, artefatos, comemorações, marcos
referenciais que têm como função atribuir significados.
MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio
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Considerando o patrimônio como documento da sociedade, é inegável
a relevância que esse tem, independentemente, dos grupos, das classes ou
das etnias que ele venha a representar ou do período histórico a que se
refere. O patrimônio é considerado um elemento revelador da memória.
Entende-se que a memória é um fenômeno vivo nas tradições orais, e
os testemunhos materiais podem ser seus estimuladores, porque ela consiste
na capacidade de guardar o que se quer lembrar, ajudando a construir o
presente por meio de continuidades instigadas e instituídas. Para Pesavento
(2002), “a memória opera como sendo um museu imaginário, onde as
lembranças buscam correspondências com outras peças” (2002, p. 27), isto
é, a memória funciona como um arquivo que armazena lembranças, e essas
se interligam com outras informações. Assim, ao resgatar o cotidiano das
cidades a partir da investigação da memória, pretende-se tornar presente o
ausente, de registrar uma ausência por meio das lembranças de um passado.
Dentre as perspectivas de abordagem, as ciências sociais podem ser
consideradas como um caminho desestabilizador das estruturas de análise,
possibilitando uma reorganização do campo de pesquisa, incluindo novas
temáticas, novos procedimentos e novos problemas, de forma a rearticular
o conhecimento, tomando-o não mais um fato isolado, mas contextualizado
a partir de outros elementos que lhe dão significado. Nessa perspectiva,
emergem a memória, a cultura, a imagem, o tempo, a oralidade, a identidade,
o patrimônio e outros mecanismos de análise como espaços pertinentes
para a pesquisa e se constituem como foco de discussão teóricometodológica.
A história da cidade e os seus desdobramentos, no diálogo com os
mais diversos interlocutores, fazem da memória uma representação do
passado, decifrando sua realidade por meio das suas representações, tentando
chegar às formas discursivas e imagéticas, por meio das quais os indivíduos
expressaram o seu mundo.
O imaginário da cidade é outro conceito importante que foi apresentado
dentro do conjunto de mudanças que acompanham este ensaio. O imaginário
é um sistema de representações coletivas que os indivíduos constroem ao
longo da história para dar significado ao social; o imaginário é um processo
de invenção da realidade. (PESAVENDO, 2002). Mas essas construções são
históricas, porque são definidas por um tempo e um espaço determinados.
No entanto, é em Castoriadis (1982) que se torna evidente a relação
entre imaginário e simbolismo, quando reflete sobre o fato de que o
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imaginário utiliza o simbólico para existir e ainda evoca imagens diante das
representações e relações de objetos não reais. O imaginário (como
representação do real) é sempre referência a algo ausente. O imaginário
enuncia, evoca, reporta-se a alguma coisa não presente. Revela sentidos e
significados para além do real aparente.
Segundo Reinhardt Koselleck (1993), é o presente que pensa o passado,
pensa com um olhar para o futuro, ou seja, olha o vivido com as expectativas
construídas para o futuro e/ou a coletividade.
Considerações finais
São considerações finais deste ensaio e iniciais para um próximo, visto
que os espaços em que se estabelecem as ações exigem a compreensão dos
fatos que contribuem para a existência da realidade em que os indivíduos se
inserem como agentes (trans)formadores de práticas sociais. A tomada de
postura crítica ante os problemas contemporâneos parte da investigação
social da realidade, originada da necessidade de solucionar problemas num
determinado contexto social.
É nessa perspectiva que o conhecimento das ciências sociais precisa do
reconhecimento de distintas observações sobre determinados espaços sociais
e compreende seus atores como articuladores e dinamizadores dos seus
próprios contextos. Pensar a memória, como elemento dinamizador na
partilha de experiências e na interlocução dos conhecimentos, permite o
avanço para um descondicionamento progressivo dos ranços da perspectiva
tradicional.
O conhecimento interpretativo dos atores sociais envolvidos em um
determinado contexto é fundamental para a compreensão das situações que
conformam a realidade concreta. Contudo, estabelecer as relações possíveis
entre a prática, seus entendimentos e a situação social em que essas ocorrem,
requer a ruptura com crenças acerca do trabalho investigativo, ou seja, é
preciso esclarecer que esse não se postula a partir de “teorias implícitas”,
muito ao contrário, é resultado de uma ação humana, que, por sua vez, foi
concebida por alguém.
Novas perspectivas e influências possibilitam a reorientação do enfoque
social, e essas transformações aprofundam o saber social e possibilitam a
descoberta de novas abordagens; o desmoronamento da continuidade, o
questionamento de abordagens globalizantes do real, permitindo, assim, o
questionamento do discurso, dinamizando, por conseguinte, as relações
MÉTIS: história & cultura – AUGUSTIN, Roberta Lopes; AUGUSTIN, Sérgio
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sociais e influenciando a abertura de perspectivas. Essas tipificam e
diversificam o gênero, o imaginário, a representação, o cotidiano, buscando
e preservando as especificidades, assim como identificando a compreensão
profunda das relações, das interações sociais.
Este ensaio teve como intuito refletir sobre a memória e suas influências
na sociedade contemporânea, instigado tanto pela massiva produção
acadêmica que tem sido construída nas últimas décadas, como pela
inquietação elaborada a partir de observações feitas nas relações cotidianas.
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 115-130, jan./jun. 2012
A fotografia e o estatuto de “prova” na investigação
de paternidade: processos da Comarca Caxias
The photography and the law of “evidence” on the paternity
investigation processes in the county of Caxias
Anthony Beux Tessari*
Resumo: Este trabalho tem por objetivo
apresentar os processos judiciais da
Comarca Caxias movidos com ação de
investigação de paternidade nos quais a
fotografia foi utilizada como “meio de
prova”. Apresentam-se os aspectos formais
das imagens e o início de uma reflexão
acerca dos usos e das funções da imagem
técnica nos processos analisados, sua
aceitação ou recusa pelos magistrados,
pelo autor e réu envolvidos nos litígios.
Abstract: The goal of this study is to
present judicial processes from the county
of Caxias investigating paternity in which
photography is used as evidence. I present
the formal aspects of the images and I
begin to reflect on the usages and functions
of the technical image on the processes
analyzed; their acceptance or refusal by the
magistrates, author and defendant
involved in the litigations.
Palavras-chave: fotografia; investigação
de paternidade; fontes judiciais; Comarca
Caxias.
Keywords: photography; paternity
investigation; judicial sources; County of
Caxias.
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (Pucrs), com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (Capes). Responsável técnico pelo acervo fotográfico do
Programa Elementos Culturais da Imigração Italiana no Nordeste do Rio Grande do Sul
(Ecirs), integrado ao Instituto Memória Histórica e Cultural (IMHC) da Universidade
de Caxias do Sul (UCS). E-mail: anthony.tessari@ucs.br.
*
MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152
131
Uma das mais recorrentes representações da Justiça é a de uma mulher
empunhando em uma das mãos uma balança, com o fiel bem ao centro, e,
na outra, uma espada. Comumente, essa imagem faz referência à deusa
Iustitia, personagem mitológica surgida na Roma antiga. Em poucas palavras,
o significado para essa representação é a isonomia daquele que julga,
considerando iguais ambos os lados, no primeiro caso, e o poder decisório
de uma sentença, no caso do segundo símbolo. A deusa Iustitia ainda é
representada com um terceiro elemento importante: sobre os olhos, ela
traz uma venda que os cobre completamente, impedindo-a de enxergar.
Diante de tal figura, o observador rapidamente faz a conclusão mais correta:
a Justiça é cega.1
A figura da Justiça, envolta em simbologia, tem por função lembrar
aos magistrados a imparcialidade e a objetividade do Direito, mas nem
sempre a imagem da deusa romana deve ser interpretada à risca. Para alguns
casos, o olhar é um sentido indispensável para se proceder a uma sentença.
Assim ocorria quanto aos processos de investigação de paternidade nos
quais imagens fotográficas eram utilizadas como provas para a análise de
traços fisionômicos que pudessem assemelhar crianças de seus supostos
pais.
Procedendo a um estudo de caso, entre as décadas de 30 e 50 (séc.
XX), constatou-se que eram utilizados três instrumentos para comprovar o
reconhecimento de paternidade na Comarca de Caxias do Sul, interior do
Estado do Rio Grande do Sul: os depoimentos (do autor, do réu e das
testemunhas arroladas pelas partes), exames relativos ao tipo sanguíneo e o
comparativismo entre retratos fotográficos. Sobre o último caso, no acervo
histórico do Judiciário municipal, foram encontrados três processos que
contêm em seu interior fotos, que foram utilizadas para a perícia do juiz
em busca da solução do caso.
Como sabemos, hoje em dia, os exames de DNA, vulgarizados
sobretudo por programas de televisão, são instrumentos que confiamos
sejam mais precisos para definir graus de parentesco biológico entre genitor
e genitora. Afinal, tais exames têm confiabilidade de acerto de 99,999%.
Tal é o nosso desenvolvimento científico que podemos julgar como sendo
no mínimo curiosa a utilização de fotografias em processos judiciais para a
definição de vínculos parentais. No nosso entendimento, essa curiosidade
hodierna deve-se a uma também atual desconfiança do visualizador diante
da imagem, resultado da massificação dos computadores pessoais e da
facilidade que o usuário comum tem em manipular os arquivos digitais
132
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012
capturados por máquinas fotográficas modernas, igualmente pelo acesso
amplo à informação por meio da internet, a enciclopédias virtuais e a outros
sítios repletos de conteúdos, é bem possível que muitos já saibam que a
manipulação e o retoque eram utilizados desde os primórdios da fotografia,
quando a captura da imagem ocorria de maneira analógica, informação que
contribui para o descrédito acerca da fidelidade que a imagem fotográfica
chegou a desfrutar em outras épocas.
A apresentação, aqui, dos processos de investigação de paternidade
não tem por objetivo ridicularizar a magistratura ou tentar convencer acerca
da limitação, que acredito seja falsa, da inteligência dos magistrados no
período observado. O objetivo é procurar entender a utilização da fotografia
nos processos judiciais nos limites de uma cultura visual. Ao propormos
um diálogo com questões teóricas referentes ao campo da fotografia, o
interesse é verificar quais são os usos e as funções da imagem fotográfica,
especialmente do retrato, no processo de reconhecimento de paternidade
nas décadas apontadas.
Um aviso importante: quando falo em questões formais da imagem,
faço referência ao produto acabado, quer dizer, à foto propriamente dita.
Conforme François Soulages (2010), o termo foto difere de fotografia: “A
fotografia é fabricação de um material; esse material é a foto.” (p. 128).
Portanto, fotografia, para nós, deve ser entendida como sendo a técnica, e
foto como a imagem materializada, constante na superfície de um suporte
físico (geralmente o papel). Os aspectos formais de uma foto são desde o
formato e o tamanho do suporte que traz em sua superfície uma imagem
até os efeitos e as técnicas utilizados na captura, revelação e cópia da foto.
Registra-se, também, que essa proposta de discussão surgiu
especialmente para ser apresentada no evento comemorativo aos dez anos
de história do Centro de Memória Regional do Judiciário (CMRJU),
integrado ao Instituto Memória Histórica e Cultural da Universidade de
Caxias do Sul (UCS). Mesmo possuindo tão tenra idade, o CMRJU vem
executando um trabalho elogiável no que concerne à custódia, organização
e difusão do acervo da Comarca Caxias, disponibilizando-o para produção
científica. Não fosse o esforço da equipe do CMRJU, bem como das pessoas
que há um tempo vêm se interessando em preservar o acervo do Poder
Judiciário local, o passado poderia correr o risco prejudicial do esquecimento.
Com essa primeira incursão pelo tema, portanto, espera-se que se possa, ao
menos, valorizar as fontes judiciais que o CMRJU mantém sob custódia,
indícios seguramente muito ricos para a escrita da história, seja ela a das
MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152
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pessoas que fizeram o Judiciário, a da cultura jurídica da época em questão
ou a das pessoas comuns, cujas vozes é possível serem ouvidas ao nos
debruçarmos sobre esses registros.
Usos da fotografia
O surgimento da fotografia data da primeira metade do século XIX.
Habitualmente, o ano de 1839 é assinalado como sendo o marco oficial da
invenção da técnica, e o país de sua origem é a França. Porém, mais
recentemente, tem-se considerado que a fotografia foi uma invenção surgida
a partir de descobertas múltiplas e de forma concomitante em mais de um
lugar no mundo.2 O que ocorreu no ano de 1839, em uma seção conjunta
da Academia de Ciências e de Belas-Artes de Paris, foi o anúncio de um
novo invento: o daguerreótipo. O daguerreótipo consistia em um dos
primeiros suportes fotográficos com uma imagem visível em sua superfície
(em forma de positivo e com boa nitidez), e era resultado de uma técnica
aperfeiçoada pelo francês Louis Daguerre (1787-1851).
Como se pode depreender do período em que a fotografia surgiu, o
contexto histórico que o mundo presenciava, em especial em se tratando
do Velho Continente, era o da Revolução Industrial. Ao lado de invenções
verdadeiramente revolucionárias, como o telefone, o telégrafo, a lâmpada
incandescente, o motor à explosão, o refrigerador, a bateria elétrica, entre
inumeráveis outras novidades, a fotografia surgia, também, para modificar
as relações de tempo e espaço. No início, eram necessários poucos minutos
para que um registro imagético das coisas existentes estivesse fixado para a
eternidade. Com a possibilidade de se registrarem pessoas e lugares em
imagens, colecionar retratos e paisagens passou a significar colecionar pessoas
e mundos. (SONTAG, 2002).
Como uma de suas características, a Revolução Industrial veio
acompanhada de novas exigências científicas e técnicas. Trabalhos que
anteriormente eram feitos de maneira manual e artesanal, gradualmente,
foram sendo substituídos pelas novas máquinas, mais precisas e produtivas.
(FABRIS, 1998). Assim aconteceu com a fotografia, que acabou por tomar o
lugar que antes cabia ao campo do desenho e da pintura. Nesse sentido, é
ilustrativo o caso do escritor Maxime Du Camp, o qual, em suas viagens
ao Egito, tinha por costume registrar os monumentos faraônicos e as
inscrições hieroglíficas através do lápis e do papel, desenhando (e
interpretando), minuciosamente, cada detalhe. Em 1850, ao se utilizar de
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012
uma câmera fotográfica, Du Camp passou a ter muito menos trabalho em
sua tarefa, passando a registrar as pirâmides e esfinges do mundo antigo
com muito mais precisão e rapidez. (NEWHALL, 2002, p. 50).
No campo da ciência, a utilização da fotografia foi sempre recorrente.
Podemos citar estudos sobre a biomecânica humana e animal desenvolvidos
pelo inglês Eadweard Muybridge (1830-1904), o qual procedia a diversas
tomadas fotográficas de uma pessoa ou de um animal correndo e, depois,
exibia as imagens em movimento, através de um primitivo dispositivo
cinematográfico chamado “zoopraxiscópio”. Com essa técnica, fotografando
em sequência um cavalo durante uma corrida, Muybridge fez uma interessante
e importante descoberta: a de que o animal, quando em galope, em
determinado momento, mantém as quatro patas levantadas, sem contato
com o chão. A fotografia de Muybridge acabou rompendo com um velho
mito, perpetuado por ilustradores e pintores que desenhavam o animal em
seus quadros de maneira equivocada. (DAVIDHAZY, 2007, p. 524). Na área
médica, cabe destacar o neurologista francês Jean-Martin Charcot (18251893), que utilizava a fotografia para registrar pessoas no momento de
crises histéricas. Como as crises têm duração curta, por meio de cenas
fotográficas estáticas, Charcot tinha a oportunidade de observar com mais
atenção a manifestação da neurose, além de comparar séries de imagens e
localizar semelhanças entre os casos. Charcot também utilizava os registros
para ilustrar as lições ministradas em sua cátedra na Universidade de Paris,
servindo a fotografia como um recurso pedagógico.
A fotografia igualmente teve ampla utilização na área judiciária. Não
podemos deixar de citar a técnica desenvolvida pelo criminologista Alphonse
Bertillon (1853-1914) e aplicada na Chefatura de Polícia de Paris. Bertillon
desenvolveu um sistema de identificação de criminosos por meio de registros
fotográficos dos infratores apanhados pela polícia parisiense. O sistema,
também conhecido como “antropometria judicial”, passou a ser empregado
no Serviço de Identificação da Chefatura de Polícia da capital francesa a
partir de 1888 e consistia em um duplo retrato do criminoso: um de frente
e um de perfil, e devia respeitar normas bastante rígidas. O processo de
tomada da foto, como bem apresenta Annateresa Fabris ocorria assim:
As condições do gabinete fotográfico, a distância focal e aquela
entre o operador e o modelo forçado eram normalizadas. A
uniformidade da pose era conseguida por um enquadramento
baseado numa escala uniforme, capaz de dar conta da largura dos
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ombros, e por uma cadeira deliberadamente desconfortável que
obrigava o indivíduo a adotar uma postura reta e centralizada.
Graças a um complexo mecanismo de rotação, o modelo era
fotografado de frente e de perfil, conservando a mesma escala de
redução. (2004, p. 46).
As imagens resultantes da captura eram aderidas na superfície de um
cartão, onde eram registradas as medidas antropométricas do indivíduo
(como a medida da cabeça, nariz, testa, orelha, pés, distância dos dedos
médios, mínimo, cotovelo, etc.). O retoque nos negativos fotográficos,
com a intenção de embelezar ou rejuvenescer o retratado, era categoricamente
vedado. Em apenas 12 anos, em 1890, a Chefatura de Polícia já contava
com, aproximadamente, noventa mil provas fotográficas de criminosos,
arquivadas em prontuários que permitiam uma fácil e rápida identificação
de tipos criminais da capital francesa.
Conforme André Rouillé (2009, p. 88), o sistema de Bertillon gozou
de grande aceitação no campo judiciário devido ao estatuto de transparência
que o retrato fotográfico possuía à época. Na mesma linha, Annateresa
Fabris (2004, p. 46) assinala que as fotografias de Bertillon eram praticadas
tendo em vista a aplicação de um código neutro, ou seja, mantinham um
distanciamento muito grande dos retratos de apelo pictorialista produzidos
nos ateliês, que tendiam a aproximar a foto da obra de arte.
Assim, gozando de seu estatuto de transparência e neutralidade, a
fotografia passou a ser considerada uma prova capaz de dar fé, como um
verdadeiro testemunho. No entanto, a forma de execução do retrato
fotográfico para uso judiciário, pautada antes por um método minucioso,
é um aspecto importante que parece ter sido menosprezado com o tempo,
como veremos a seguir.
A fotografia e os processos de investigação de paternidade da
Comarca Caxias
Desde o ano de 1916, com o decreto da Lei 3.071, que passou a
sancionar o Código Civil brasileiro, a investigação de paternidade se tornou
um dispositivo legal que permitia a filhos ilegítimos requererem a investigação
de paternidade ou maternidade. Sobre o primeiro caso, de reconhecimento
de paternidade, conforme o art. 363 da citada lei,
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012
os filhos ilegítimos de pessoas que não caibam no art. 183, ns. I a
VI [que trata dos impedimentos de matrimônio], têm ação contra
os pais, ou seus herdeiros, para demandar o reconhecimento da
filiação:
I – Se ao tempo da concepção a mãe estava concubinada com o
pretendido pai.
II – Se a concepção do filho reclamante coincidiu com o rapto da
mãe pelo suposto pai, ou suas relações sexuais com ela.
III – Se existir escrito daquele a quem se atribui a paternidade,
reconhecendo-a expressamente.
No Código Civil então vigente, não existia um artigo específico que
determinasse quais seriam os tipos de prova que poderiam ser aceitos no
processo de investigação de paternidade. A prova de testemunhas (ou o
depoimento das partes) foi sempre recorrente, mas o comparativismo entre
imagens fotográficas é uma prática hoje abandonada, como dissemos, em
função de métodos com eficácia maior e cientificamente comprovada. Ainda
podia existir, fato que ocorre em um dos processos aqui apresentados, o
exame de tipo sanguíneo. No entanto, igualmente tal instrumento não
possuía uma margem segura de acerto – podia-se facilmente comprovar,
com equívoco, a paternidade de homens que nunca procriaram – sendo,
portanto, um instrumento menos utilizado para a convicção íntima do
julgador.
Todos os três processos aqui mostrados tiveram como autoras mães
que não obtiveram o reconhecimento legal da paternidade de seus filhos. O
processo de 1933 foi aberto contra os herdeiros de um homem que seria
pai de uma jovem, à época, com 20 anos de idade (estando o homem já
falecido na data). Os demais processos (1945 e 1956) trazem a figura do
suposto pai como réu, defendendo-se da acusação.
Processo 1 – 19333
O processo de 1933 tem como autora uma doméstica (R. P.).4 A
mulher solicita a investigação de paternidade, cumulada com a de petição
de herança, por parte de sua filha menor (A. P., com menos de 21 anos)
contra os herdeiros do suposto pai da jovem (A. L.). O homem já se
encontrava falecido na data de ação da investigação, o que faz do processo
um caso peculiar diante dos outros dois de nossa análise.
MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152
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O caso entre a autora do processo e o suposto pai de sua filha remonta
ao ano de 1912. Segundo a petição apresentada por R. P., essa prestava
serviços de doméstica na residência de uma família composta de um casal e
seu filho. Em determinada data, com a ausência do casal da residência, o
jovem A. L. teria mantido, à força, relações sexuais com a doméstica. Da
junção carnal entre os jovens, a mulher engravidou de uma menina.
A jovem passou o período de gestação distante da casa onde prestava
serviços. O pai do rapaz chegou a cogitar a ideia de casar seu filho com a
doméstica, para criarem a menina juntos. A ideia de um enlace matrimonial,
no entanto, foi prontamente rechaçada pela mãe do jovem, para quem a
moça seria de condição muito humilde, não condizendo com a posição que
sua família ocupava na sociedade. Pouco tempo após o ocorrido, o jovem
casou-se com uma “moça de família”, estando a noiva ciente da filha bastarda
do seu marido.
As fotos nesse processo aparecem de forma interessante. Não foram
solicitadas antes pelo juiz, mas apresentadas como prova pela acusação. R.
P., a mãe, afirma que era público e notório o fato de A. L. ser pai de sua
filha.5 Ela registra que os próprios parentes de A. L. consideravam a menina
como sendo sua filha legítima, fato que também os próprios pais de A. L.
nunca negaram. Em 1914, o homem falece, e a viúva prontamente entrega
à menina três lembranças significativas de seu ex-esposo: trata-se de três
retratos fotográficos.
As fotos entregues pela viúva de A. L. como lembrança à suposta filha
do ex-marido são juntadas aos autos do processo. Embora as palavras da
autora não sejam contestadas pela defesa (isto é, os herdeiros de A. L.), em
1933 os pais do jovem também não estavam mais vivos para dar fé ao
ocorrido. Desse modo, os retratos fotográficos são indícios muito
importantes para a solução do caso.
Uma das imagens (foto 1) compõe um carte cabinet, onde o homem,
A. L. aparece pilchado ao lado de um animal de montaria. A foto não é de
estúdio, notando-se, ao fundo, a vegetação de um ambiente rural. A imagem
tem boa execução técnica (no que diz respeito ao tempo de exposição,
nitidez e composição) e, devido à data que podemos atribuir ser do início
dos anos 900 (pelo formato de época e idade provável do homem),
certamente trata-se de um trabalho executado por um profissional. Nesse
retrato, o homem foi tomado de corpo inteiro, posicionado inteiramente
de perfil, ao lado de um cavalo.
138
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012
Esse primeiro retrato não deve ter tido grande serventia ao exame de
comparação de características físicas como os outros retratos da moça
juntados ao processo. Devido à tomada de corpo inteiro, compartilhando
o espaço da cena com um animal duas vezes maior, o rosto do homem
aparece muito diminuto no enquadramento, sendo difícil observar, sobretudo
a olho nu, alguma característica específica de sua fisionomia. Na verdade,
essa imagem está no processo como uma prova do reconhecimento que os
herdeiros de A. L. tinham pela menina como filha do falecido, tendo sido
entregue como uma espécie de herança do homem para a jovem.
Já os outros dois retratos (fotos 3 e 4), foram juntados ao lado de duas
fotos da moça (fotos 2 e 3), explicitamente para servir à perícia do juiz.
Aderidos a folhas de ofício, numeradas na ordem do processo, os retratos
foram dispostos lado a lado e vêm acompanhados de uma breve descrição
indicando os nomes das figuras. Apesar disso, não apresentam nenhuma
data. Por atribuição pessoal, ambos os retratados estavam com idade
próxima dos 20 anos, sendo os do homem de 1900 e os da jovem (recentes)
próximos do ano de 1930.
Nos seus dois retratos, a fisionomia do homem é bastante austera. O
olhar não foi direcionado para a objetiva, e sua postura apresenta grande
rigidez. Posturas rígidas, assemelhando a pessoa a uma estátua, era uma
exigência indispensável para o retrato no início do século XX. O material
fotossensível ainda era a chapa de vidro emulsionada, com baixa sensibilidade
à luz, o que exigia um longo tempo de exposição. Mover-se durante a
tomada fotográfica, portanto, era expressamente proibido, correndo-se o
risco de a figura sair borrada. Contudo, para além de questões técnicas do
período, mostrar-se sisudo também era uma postura adotada para o retrato
do varão, como símbolo e afirmação de sua masculinidade. O fotógrafo
podia pedir, ainda, que o retratado levantasse um pouco o queixo, dando
certa impressão principesca ao sujeito.
Esses dois retratos do suposto pai não possuem autoria identificada,
mas, pela mesma qualidade técnica observada no carte cabinet acima, devem
se tratar de trabalhos de um profissional. Uma das fotos traz, inclusive, um
efeito comum ao retrato praticado nos ateliês de bons profissionais: o
efeito flou, no qual o sujeito parece envolto em uma nuvem. Essa
característica aponta para um retrato de apelo artístico, vindo acompanhada
de outros dois elementos que o definem como tal: a pose semiperfilada e o
cenário de fundo (esse existente na foto 4).
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Já as duas fotos da moça foram executadas no ateliê do Studio Geremia,
estabelecido pelo fotógrafo Giacomo Geremia no início da década de 10
(séc. XX), em Caxias do Sul. Um dos retratos é uma tomada em três
quartos (mostra apenas o busto da jovem), enquanto no outro ela é vista
de corpo inteiro. Nesse retrato, a moça divide a cena com um mobiliário
de madeira, sobre o qual descansa um vaso com um arranjo de flores. Já o
cenário de fundo dessa mesma imagem trata-se de um painel que, embora
desfocado, permite discernir uma janela com mais flores à sua volta.
As diferenças entre os retratos da moça e os retratos masculinos de seu
suposto pai saltam à vista. A sensação de romantismo e de feminilidade na
imagem da moça, representada sobretudo no símbolo que são as flores, é
facilmente constatada.6 Tais efeitos são causados não apenas pelo cenário e
poses da moça, mas também pela cromia escolhida: o sépia, que costuma
ser utilizado para criar uma sensação mais romântica na imagem pela
suavidade das cores quentes.
A posição da jovem nos enquadramentos dos seus dois retratos,
certamente, foi sugerida pelo fotógrafo. O rosto foi movimentado até
alcançar uma posição ideal para a foto, de modo que sua angulação e a
iluminação do ambiente privilegiassem os traços mais belos da jovem. Cabe
lembrar que o retrato de estúdio é produzido tendo em vista uma importante
prerrogativa: ele é executado para embelezar a pessoa. Sabendo que sua
imagem será perenizada em uma foto, o contratante do serviço deseja que
fique registrada a melhor imagem de si. Nesse sentido, a busca é pela
aparência. Para atendê-lo, o bom fotógrafo retratista deve tornar-se um
estudioso não apenas da luz, mas da anatomia humana. Deve procurar o
melhor ângulo de seu cliente, evitando expor “defeitos” como nariz
avantajado, orelhas de abano, queixo proeminente, etc., além de esconder
rugas da velhice e cicatrizes resultantes da acne da puberdade, o que era
conseguido através da técnica do retoque.7
Nas fotos da moça, nota-se como o seu cabelo, à moda melindrosa,
procura esconder as suas orelhas. Caso todos os traços fisionômicos do
suposto pai tivessem sido herdados geneticamente pela filha, essa,
provavelmente, teria orelhas protusas. A característica física, no entanto, é
impossível de ser visualizada, devido ao penteado e à própria angulação do
rosto (semiperfil) da moça. Nesse caso, vale mais a fictícia vaidade do que
uma inconveniente verdade.
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Foto 1 – Carte
cabinet entregue
como lembrança
do suposto pai por
sua viúva à jovem8
Fotos 2, 3, 4 e 5 – Retratos da jovem e do suposto pai distribuídos lado a
lado para perícia
MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152
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No processo do ano de 1933, não fica evidente a forma como o juiz
procedeu à perícia nas imagens fotográficas. O magistrado apenas dirá que
com a análise dos retratos colhidos “os traços fizionômicos [sic] se assemelham”.
(Processo 06, caixa 04, 1933, p. 53). Em seguida, registrará. (p. 66):
Essa demonstração [a comparação entre as imagens fotográficas]
visa, apenas, ilustrar nossas afirmativas e a prova colhida, como
elemento subsidiário para a convicção íntima, apesar de que, tal
convicção, encontra apoio pleno na prova dos autos. (Processo 06,
caixa 04, 1933, p. 66).
Como se observa, o juiz procura deixar claro que a comparação entre
os retratos não foi a prova cabal para proferir a sentença. As imagens
fotográficas aparecem apenas como elemento subsidiário e a convicção íntima
encontrava apoio em outras provas apresentadas no processo (sobretudo o
depoimento das testemunhas). No entanto, a perícia nos retratos fora feita
e se chegou a uma conclusão, contribuindo para a sentença, como demonstra
a fala anterior, afirmando que os traços fisionômicos entre a jovem e o
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012
suposto pai se assemelhavam. Chama a atenção, ainda, o fato de não ficar
explícito o método pericial utilizado do Juiz. Assim, sem muita dúvida,
pode-se concluir que fora feita uma simples comparação, subjetiva, sem,
por exemplo, o uso da técnica prosopográfica ou outra de observação e
comparação. Além disso, nenhuma importância foi dada aos aspectos formais
das imagens, como posição do rosto, iluminação e angulação, efeitos que,
na fotografia, contribuem decisivamente para modificar a aparência do
retratado.9
Não havendo contestação à decisão judicial por parte da defesa, o
desfecho do processo de 1933 foi o reconhecimento da paternidade e a
inclusão do nome da menina como herdeira legítima de A. L.
Processo 2 – 194510
Outra doméstica é a autora do processo de 1945. J. G. move ação de
investigação de paternidade por parte de sua filha impúbere contra E. C.
Conforme a autora, a relação com o suposto pai de sua filha teria ocorrido
após o rapaz tê-la seduzido e enganado com promessas de casamento. Por
ser de condição humilde, e o rapaz sendo de família respeitada e de posses
na cidade, a doméstica entregou-se às falácias de E. C., que a convenceu de
manterem relações sexuais. Nos termos do processo, os encontros entre o
casal aconteciam na casa da moça, quando da ausência de seus parentes.
Após pouco tempo de encontros entre o casal, a moça engravidou de uma
menina.
Diante da gravidez da moça, o rapaz teria lhe sugerido o aborto,
alternativa rechaçada pela doméstica. Durante o período de gestação, o
jovem passou a negar as relações que mantivera com a moça e, após o
nascimento da criança, não reconheceu a paternidade da menina.
O presente processo apresenta quatro retratos fotográficos. Dois deles
trazem na cena a menina, fruto da suposta relação entre o casal (fotos 2 e
3). Outro retrato traz a figura do homem, suposto pai (foto 4), e o retrato
(foto 1) apresenta apenas a imagem da mãe da criança. Curiosamente, pois
o processo trata-se do reconhecimento da paternidade e, em momento
algum, a maternidade da menina é contestada. A existência dessa imagem,
porém, pode ter sido uma estratégia muito inteligente da acusação. Em se
tratando de uma imagem fotográfica, isto é, de um registro perene da
pessoa, o retrato da mulher traz elementos que podem servir ao
convencimento acerca de sua boa moral, decência e bons costumes.
MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152
143
Características já apontadas anteriormente, tais como o efeito flou e a
cromia sépia, são novamente encontradas nesse retrato individual da mãe
da criança. Devemos ainda acrescentar a existência do retoque, não existindo
indícios de marcas de expressão que seriam comuns a qualquer rosto (como
os sulcos na testa). O apelo artístico, portanto, é uma característica sempre
presente. Desse modo, a foto não se trata de um “retrato transparente”,
como o modelo de Bertillon prezava ou que se esperava para o uso judicial,
mas, na verdade, trata-se de uma imagem para destacar valores morais,
através da construção de uma aparência.
Nossa afirmativa está corroborada em um detalhe interessante: a mulher
traz ornando o pescoço, preso a uma gargantilha, um crucifixo. Esse acessório
foi propositalmente sobreposto sobre a gola de sua camisa, ficando bastante
visível. Podemos afirmar ser proposital, pois, na foto seguinte, onde a
criança está presente e a mulher é menos importante na cena, o ornato
religioso não está visível, escondido sobre a mesma camisa que veste a
mulher – de modo que é comum se utilizar desse tipo de adereço como
estratégia. Como durante o processo a defesa utilizará recursos para
desmoralizar a mãe da criança, afirmando ter ela tido relações com outros
rapazes, a imagem de boa moça pode ser bastante útil, usada como uma
prova de convencimento para além do discurso da acusação. Nesse caso, a
fotografia assume uma função que vai além do objetivo da perícia. O retrato
fotográfico passa a ser utilizado para sublinhar traços da personalidade e
princípios morais da mulher, sobretudo ligando-a a bons costumes religiosos.
Figuras 1, 2 e 3 – Retrato individual da mulher acompanhado de retrato
com a filha e um da sua filha. A foto 4 retrata em 3x4cm o rosto do
suposto pai
144
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012
Após proceder à perícia nos retratos, o juiz iniciará a proferir a sentença.
Dirá que há “impressionante parecença fisionômica da investigante [a
menina] com o réu” [o pai] e que isso é “de fácil constatação pelas
fotografias”. Pondera, entretanto, que os retratos “constituem um elemento
subsidiário particular de convicção íntima”, e que não se lhes podem
“emprestar um valor absoluto de prova”. (Processo 01, vol. 1 e 2, caixa 17A, 1945, p. 155).
Novamente, constatamos o caráter subsidiário das fotos como prova a
ser expressa, mas, dessa vez, com maior importância para a decisão,
principalmente quando o juiz utiliza os adjetivos “impressionante parecença”
e “fácil constatação”. Ao contrário do processo anterior, nesse a defesa apelará
da sentença, apresentando-se o réu, inclusive, com novo advogado. O fato
mais interessante na apelação é que o novo intercessor do réu concentrará a
defesa na contestação, especialmente, do uso dos retratos para a decisão
judicial. O advogado buscará em tratadistas do Direito argumentos
contrários à perícia em imagens fotográficas para os casos de ação de
investigação de paternidade. Mas, embora impugne energicamente, e até
ridicularize a forma como o procedimento foi conduzido, acaba procedendo
a uma perícia pessoal nos mesmos retratos:
De nada vale um simples confronto de imagens, se se lhes não dá
dinamismo através de múltiplos cotejos de partes marcantes da
fisionomia, por meio de superposições de traços de uma pessoa
sobre a outra, fotografando-se as combinações, para evidenciar
semelhança. É de notar a dificuldade do confronto de uma menina
de 2 anos com um homem de 25 anos de idade. Os retratos da
investigante, de sua mãe e do investigado, não colhem o efeito
visado, pois, pelo simples confronto, não há como se observar
semelhança, mesmo examinando essas fotografias com espírito
prevenido. Bem diferentes [aqui inicia a perícia pessoal] são os traços
fisionômicos da menor e do investigado, tendo ambos diversa
conformação craniana, notadamente a fronte, o nariz, o mento, o
ângulo facial, o maxilar e as orelhas. (Processo 01, vol. 1 e 2, caixa
17-A, 1945, p. 159).
Anteriormente, quando foi exigida a apresentação do retrato do homem
para ser juntado às folhas do processo, a defesa já havia tentado uma
estratégia visando a dificultar a perícia judicial. A imagem entregue por
parte do réu é ridiculamente econômica: trata-se de um simples retrato em
MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152
145
tamanho 3x4cm, o menor formato comercializado em estúdios. Mas, apesar
da tentativa de pôr um obstáculo ao olhar do investigador e da contestação
veemente do advogado de defesa quanto ao procedimento da perícia nas
fotos, a sentença do processo não foi alterada. A sentença do litígio, mais
uma vez, foi o reconhecimento da criança como filha legítima do pai até
então suspeito.
Processo 3 – 195611
O último processo envolve novamente uma mulher de condição
humilde e um rapaz de família com posses na cidade. Sem o reconhecimento
paterno de seu filho, a jovem mãe, E. S., move ação contra P. M. Segundo
a autora, o relacionamento com o rapaz aconteceu em Porto Alegre, quando
ele foi morar em uma pensão para estudantes. Residindo no mesmo local,
ambos teriam mantido um romance, fato que a autora atesta pelas cartas
(presentes entre as páginas do processo) que o rapaz lhe enviou após ter
retornado a Caxias do Sul para junto de sua família, comunicando à jovem
o rompimento da relação entre ambos.
A defesa do réu segue apontando que a jovem, no mesmo pensionato
em que viviam juntos, teria mantido relações com outros rapazes, e que,
portanto, o filho bem poderia não ser seu. O réu ainda faz lembrar que
soube que a jovem teria sido deflorada aos 14 anos de idade, algum tempo
antes de se conhecerem, e que era ela filha de uma prostituta. A defesa visa,
com isso, demonstrar o ambiente de promiscuidade em que a moça vivia
desde há muito tempo, tendo sido ela, inclusive, responsável por enganar o
jovem rapaz atraindo-o para o desejo sexual.
Nesse processo, quatro retratos são apresentados. Assim como no
processo anterior, as fotos do réu são no menor formato encontrado: 3x4cm.
Mais uma vez, a tentativa é dificultar o trabalho pericial. Os retratos da
mulher e da criança, dois ao todo, embora sendo ela de condição mais
humilde que o homem, são maiores, de, aproximadamente, 12x8cm. Nos
retratos do jovem, a sua pose é frontal, e as imagens não possuem algum
apelo artístico como detectamos nos retratos dos processos anteriores. Na
verdade, é um típico retrato 3x4cm utilizado para ilustrar documentos
como passaporte ou carteira de registro geral (fotos 3 e 4).
Quanto aos retratos da criança, eles são de duas datas distintas. Em
uma das imagens, o menino tem a idade de um bebê de colo e aparece
preso aos braços da mãe (foto 1). Na outra foto, também junto da mãe, a
146
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012
criança devia ter cerca de 1 ano de idade (foto 2). O retrato foi executado
por um estúdio da capital, Foto Marabá, conforme o carimbo sobre a
imagem. É um retrato bastante simples, sem grande execução técnica,
principalmente no momento da ampliação, podendo-se verificar uma falha
em uma das margens e uma inclinação anormal da foto no papel fotográfico.
Embora a mãe apareça na cena com o filho, o foco da imagem recai sobre a
criança. Isso porque a mulher concentra o seu olhar no bebê que segura no
colo. Na outra foto, o menino aparece novamente dividindo a cena com a
mãe, agora, lado a lado. O fundo é neutro, ao contrário da imagem anterior
e, devido ao enquadramento horizontal que preenche toda a cena com o
rosto dos retratados, percebe-se como a foto deve ter sido produzida tendo
em vista o seu fim, ou seja, servir à peritagem.
Algo que não havíamos comentado até então, mas que certamente é
um aspecto decisivo para o tipo de investigação a que o juiz procedia, é a
cor dos olhos e do cabelo. Não que inexistissem retratos em cores na
década de 50 (séc. XX) (esse tipo de imagem é até anterior, tendo sido os
primeiros negativos em cores introduzidos no mercado, no fim da década
de 30), mas a presença de imagens sem saturação, como o sépia, tal como
foi produzida a totalidade das imagens dos três processos aqui apresentados,
impediam que essa característica herdada geneticamente fosse considerada.
Não de modo diferente, o cabelo também, e não apenas quanto à sua
coloração, mas quanto à textura, que podia ser disfarçada tanto antes do
retrato (penteando-se os fios, ou, inclusive utilizando uma peruca, prática
comum nos estúdios fotográficos) ou mesmo no processo de produção da
foto (desfocando a imagem para diminuir sua nitidez). O fato que devemos
ressaltar é que os retratos, sendo produzidos aleatoriamente, em qualquer
estabelecimento, podendo ser escolhido pelos envolvidos sem critério
explicitado pelo magistrado, acabavam por se distanciar ainda mais do
princípio básico para uso judicial, ou seja, a presença de uma neutralidade.
MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152
147
Fotos 1 e 2 – retratos da mãe com o menino e as fotos 3 e 4 mostram o
rosto do réu
Nesse processo, a discussão, em especial quanto à utilização dos retratos
como prova, não é tão ampla como visto no processo anterior. Ao proferir
a sentença, o juiz deixará claro que o julgamento levou em consideração
todas as provas colhidas, sejam elas as testemunhais (os depoimentos das
partes), o exame de tipo sanguíneo, presente nesse processo, as cartas de
despedida enviadas pelo rapaz à moça, indícios que demonstram o “namoro”
que mantiveram e, finalmente, os retratos fotográficos, periciadas em busca
de encontrarem características físicas que assemelhassem a criança ao suposto
pai. Ao fim, o homem é sentenciado a assumir o compromisso paterno do
menino, tendo tido essa solução o caso.
Considerações finais
Observando-se os três processos, de datas diferentes e julgados por
juízes igualmente diversos, nota-se que a fotografia teve o mesmo uso,
divergindo em poucos aspectos. Em geral, a perícia nas imagens foi praticada
148
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012
pelo próprio juiz de Direito, não existindo um perito específico para fazêla. Não é possível identificar como a perícia nos retratos foi executada,
restando apenas o indício, visível especialmente na contestação do advogado
de defesa do processo de 1945, de que se tratou de um confronto entre as
imagens, buscando, subjetivamente, traços nas fisionomias que
identificassem as partes envolvidas.
Igualmente, se constata que não existiam normas para a apresentação
dos retratos, nem a menor padronização dos tamanhos ou formatos, fato
esse que a própria lei do período não compreendia. Assim, se efetuava a
perícia em busca de traços fisionômicos comparando-se imagens com
diferenças de até 60% no tamanho. Além disso, outra questão importante
é a ausência de considerações quanto aos aspectos técnicos de tomada do
retrato, podendo-se destacar aqueles que podem ser cruciais para modificar
traços fisionômicos do retratado: iluminação, foco, posição da câmera
(ângulo) e posição do assunto, não devendo ser esquecidos o retoque e a
própria manipulação. Quanto à última, que se caracteriza por uma
intervenção maior do fotógrafo no registro, alterando consideravelmente a
cena (incluindo, excluindo ou substituindo objetos ou partes de um corpo)
acredita-se não estar presente nas fotos encontradas, dada a dificuldade de
ser executada no período da fotografia analógica. O retoque, no entanto, é
um elemento mais fácil de ser observado e é uma presença certa em alguns
dos retratos, especialmente naqueles apresentados pela acusação.
A ausência dos negativos fotográficos é, ainda, outro aspecto
importante. Sem a menor dúvida, os negativos fotográficos existiram, sendo
o único meio, à época, de se conseguir produzir/reproduzir uma imagem
fotográfica. A importância desse suporte poderia ser decisiva. Os negativos
poderiam servir de prova se houvesse ou não manipulação ou retoque na
imagem, pois é neles, na maioria dos casos, que o fotógrafo faz sua
intervenção, buscando embelezar ou alterar traços fisionômicos do
retratado.12
Com essas primeiras observações sobre o caso apresentado, nos limites
do Poder Judiciário local, podemos inferir que, entre as décadas de 30 e 50
do séc. passado, a fotografia gozava o estatuto de ser prova fiel da realidade.
A ideia de “espelho do real” – que foi comum à fotografia desde o seu
surgimento, e que faz referência à crença de ser a imagem fotográfica um
reflexo fidedigno da realidade – era compartilhada no campo jurídico daquele
período, embora, às vezes, não sem contestação.
MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152
149
Por fim, acredita-se que esse tipo de discussão ora apresentada – com
os devidos aprofundamentos ainda necessários – pode enriquecer o estudo
histórico da cultura jurídica das décadas compreendidas nesse texto,
principalmente quanto à questão da prova em Direito. De modo análogo,
pode contribuir para a compreensão do estatuto da imagem, em especial da
fotográfica, na sociedade contemporânea, tendo sido um “recurso científico”
utilizado por uma importante esfera do poder.
150
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012
Notas
Conforme Pierre Grimal (1997), a deusa
Iustitia é o equivalente da deusa Dice e
também de Astreia (esta, filha de Témis,
deusa da Lei na Grécia antiga). Podem-se
encontrar representações bastante diversas da
Justiça, inclusive sem a venda nos olhos, o
que significaria que o juiz deve olhar o caso
que julga sob todos os aspectos e nos
pormenores.
1
2
Boris Kossoy (1980), por exemplo,
demonstrou que um franco-brasileiro
residente em Campinas, Hercules Florence,
desenvolveu, quase uma década antes,
estudos semelhantes aos daquele que foi por
muito tempo considerado “o Pai”, o
inventor da fotografia. Florence foi,
inclusive, o primeiro no mundo a empregar
a palavra fotografia (photographie), tendo
sido inscrita por ele em 1833.
Processo 06, caixa 04. CMRJU/IMHC/
UCS.
3
Os nomes dos envolvidos não cabem ser
divulgados. Os processos podem ser
consultados, desde que respeitada a política
de acesso da instituição, no CMRJ/UCS.
4
O nome da menina é o feminino do nome
do suposto pai.
5
As flores costumam sugerir a virgindade
de uma moça. Não por acaso, perder a
virgindade é ser deflorada (“perder as flores”).
6
Sobre o melhor ângulo, o exemplo do
fotógrafo Julio Calegari (tendo atuado em
Caxias do Sul durante as décadas de 20 e
30 do séc. passado) é proveitoso. Antes de
irem para a seção de fotos, Calegari
mantinha uma conversa com seu cliente.
Durante o bate-papo, o fotógrafo
aproveitava para estudar a fisionomia da
pessoa, procurando o ângulo que
considerava ser o mais favorável a ela. Julio
Calegari era procurado pelas famílias mais
abastadas da sociedade caxiense, oferecendo
“trabalhos artísticos e modernos”, como
7
destacava em seus anúncios. Quanto ao
retoque, essa prática era comum a todos os
estúdios fotográficos da cidade. Nem
sempre executado pelo próprio retratista, o
retoque muitas vezes era uma tarefa
destinada aos aprendizes. No Studio
Geremia, fotógrafos como Antonio
Bartolomeu Beux e Ary Cavalcanti
iniciaram na profissão como laboratoristas
(responsáveis pela revelação e cópia) e como
retocadores.
As imagens constantes nos processos e aqui
reproduzidas foram manipuladas tendo em
vista ofuscar o rosto dos envolvidos. Para
nós, não interessa a semelhança física entre
os sujeitos, mas os aspectos formais das
imagens.
8
9
Por exemplo, uma foto tomada em
plongée (câmera localizada um pouco acima
da linha dos olhos) faz com que o nariz e o
queixo afinem, ocorrendo o contrário em
contraplongée. Já o retrato em semipefil serve
para que o rosto não fique achatado (como
“cara de bolacha”), além de disfarçar a
proeminência das orelhas quando é o caso
(a chamada “orelha de abano”).
10
Processo 01, vols. 1 e 2, caixa 17-A.
CMRJU/IMHC/UCS.
Processo 04, caixa 49A. CMRJU/IMHC/
UCS.
11
Atualmente, abrindo um parêntese, a
imagem fotográfica continua sendo aceita
como prova, na forma da lei. No entanto, é
preciso atender a algumas normas para que
a imagem não tenha contestado o seu valor
real. Sobretudo hoje em dia, com a
fotografia digital, de fácil manipulação,
inclusive por não fotógrafos, a exigência é a
apresentação do arquivo matriz da imagem,
isto é, um formato de arquivo digital que é
impossível de ser salvo se manipulado, o
RAW, também conhecido como sendo o
“negativo digital” da imagem.
12
MÉTIS: história & cultura – TESSARI, Anthony Beux. – v. 11, n. 21, p. 131-152
151
Referências
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NEWHALL, Beaumont. Historia de la
graphy. In: PERES, Michael. The focal
fotografia. 2. ed. Barcelona: Gustavo Gilli,
encyclopedia of photography: digital imaging,
2002.
theor y and application, history, and
ROUILLÉ, André. A fotografia: entre
science. Inglaterra: Elsevier, 2007.
documento e arte contemporânea. São
FABRIS, Annateresa. A invenção da
Paulo: Senac, 2009.
fotografia: usos e funções no século XIX.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São
São Paulo: Edusp, 1998.
Paulo: Cia. das Letras, 2002.
______. Identidades virtuais: uma leitura
SOULAGES, François. Estética da
do retrato fotográfico. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2004.
Senac, 2010.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia
grega e romana. 3. ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997.
KOSSOY, Boris. Origens e expansão da
fotografia no Brasil: século XIX. Rio de
Janeiro: Funarte, 1980.
fotografia: perda e permanência. São Paulo:
Documentos
BRASIL. Lei 3.071, de 1º de janeiro de
1916. Código Civil dos Estados Unidos
do Brasil. Presidência da República.
[1916]
Disponível
em:
<http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
L3071.htm>. Acesso em: 21 nov. 2011.
152
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 131-152, jan./jun. 2012
Um processo histórico em
um processo judicial
A case history in a judicial process
Thamyris Conceição Macedo*
Caroline Barreto Oliveira**
Resumo: Dentre inúmeros documentos do
Tribunal Regional Federal da 2ª Região,
cadastrados como históricos, selecionamos
um processo administrativo para pagamento
de precatório, oriundo de ação ordinária,
através da qual é possível reconstituir vários
períodos da história do Brasil e do Judiciário.
Neste ensaio demonstramos que, partindo
da análise de uma microestrutura, é possível
alcançar a compreensão da conjuntura em
que se desenvolveram tais fatos. O trabalho
pretende alinhavar os fatos descritos e atos
praticados na ação proposta em 1975, com
os diferentes contextos históricos e políticos
vivenciados no Brasil, desde o fato gerador
em 1935: a expulsão de um aluno-aprendiz,
acusado de participação na Intentona
Comunista, até a conclusão do processo com
o pagamento de precatório em 2001.
Palavras-chave: Ditadura Militar; Justiça;
Intentona Comunista.
Abstract: Among the numerous archival
documents from the Brazilian Regional Court
of the 2nd Region registered as historic, we
selected the administrative proceeding of a
Precatório payment, which is a state
reparation order to pay, from the Brazilian
government, originated from a Civil Action,
through which it is possible to reconstruct
various periods of the history of Brazil and
the Judiciary. In this essay we demonstrated
that starting from an analysis of a
microstructure we can achieve an understanding of the environment in which such facts
have been developed. The purpose of this
paper is to confront the facts described and
actions taken in the Ordinary Action
proposed in 1975, with the different
historical and political contexts that took place
in Brazil, since the original event in 1935:
the expulsion of a student apprentice, accused
of involvement in the Intentona Comunista
(a communist conspiracy) until the payment
of the indemnification from the government
in 2001.
Keywords: Military Dictatorship; Justice;
Communist Conspiracy.
Tribunal Regional Federal 2ª Região; Bacharel em Comunicação Social pela (PUC/RJ).
Bacharel em Direito pela Unesa/RJ. Pós-Graduada em Direito Civil e Processo Civil pela
Unesa/RJ. Agência Financiadora: TRF2. E-mail: thamyris@trf2.jus.br.
**
Tribunal Regional Federal 2ª Região. Bacharel e Licenciada em História pela UERJ. Aluna
no curso de Direito da Unesa/RJ. E-mail: carol_baretoo@hotmail.com
*
MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B.
153
O Tribunal Regional Federal da 2ª Região começou, a partir do fim da
década de 90 (séc. XX), através das Portarias 159/1998 e 217/1998, ambas
do Conselho da Justiça Federal, a implantação do programa de “Gestão
Documental”, inicialmente no acervo administrativo e, mais recentemente,
no acervo judicial, mas foi somente nos últimos anos, a partir das Resoluções
359/2004 e 393/2004 e após mapeamento completo dos arquivos judiciais,
que as atividades se intensificaram.
Dentre inúmeros documentos destacados como de guarda permanente,
cadastramos vários como históricos, tais como: fitas cassete, DVDs, fotos,
além de processos administrativos e judiciais, que, pelas diversas
características e/ou peculiaridades, mereceram esse tratamento. Essa dinâmica
está, pouco a pouco, desnudando a nossa memória.
É possível reconstituir vários períodos da história do Brasil e do
Judiciário principalmente através dos processos ajuizados ao longo dos anos.
Existem muitas maneiras de se desenvolver esse processo de reconstrução.
Neste breve, porém significativo ensaio, se pretende demonstrar que,
partindo da análise de uma microestrutura, é possível alcançar a compreensão
da conjuntura em que se desenvolveram tais fatos.
As servidoras (autoras), que trabalham no setor de Gestão de Autos
Findos do referido tribunal, escolheram esse precatório, dentre os diversos
autos históricos apaixonantes já selecionados, para traçar um paralelo entre
os fatos narrados e os atos judiciais no processo com a história política do
País.
O precatório 97.02.20056-3 foi escolhido porque proporciona um
longo período temporal para análise (de 1935 a 2001), descortinando um
panorama amplo de observação e estudo.
O presente trabalho pretende demonstrar, através da ação ordinária
proposta por Álvaro Moreira, em 1975, os diferentes contextos históricos
vivenciados no Brasil, que permearam os acontecimentos descritos pelo
autor desde o fato gerador (1935), durante o curso do processo, até sua
conclusão final, com o pagamento de precatório em 2001.
Trata-se de uma ação proposta por Álvaro Moreira, soldado-aluno da
Aeronáutica no ano de 1935, que foi expulso do curso de Sargentos
Aviadores, acusado de participação na rebelião denominada Itentona
Comunista.
154
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012
Após várias tentativas infrutíferas de ser anistiado como TerceiroSargento, posto no qual os soldados-alunos são reformados, ingressou no
Judiciário requerendo esse direito, que terminou lhe sendo deferido.
Não levantaremos nenhuma bandeira, apenas apontaremos os atos que
construíram essa história de 66 anos, sendo 30 judiciais, extraindo-os para
a realidade política do momento em que se deram. Não haverá análise
profunda dos períodos, mas a pontuação histórica relacionada aos fatos
narrados no processo.
O que nos interessa é demonstrar as diversas possibilidades acadêmicas
e científicas contidas no grande leque que se abre quando a gestão documental
é desenvolvida de maneira adequada no âmbito do Judiciário e como a
memória pode ter um significado abrangente, de interesse para vários
segmentos.
O Brasil da Intentona Comunista
Quando nos propomos a estudar a história do Brasil, não é difícil
perceber os inúmeros períodos de crise enfrentados por ele. Desde a
proclamação da República e, até mesmo, antes dessa, as mudanças e os
acontecimentos mais significativos não foram pacificamente desenvolvidos.
A República foi proclamada no Brasil, em 1889. De império unitário,
o Brasil passou, com a República, à Federação grandemente descentralizada,
que entregou aos estados-membros, considerável autonomia administrativa,
financeira e política.
Outra novidade que surgiu com o golpe republicano foi a presença
cada vez mais constante do elemento “espada”, ou seja, os militares, que
foram se transformando, ao longo desse período, em figuras de extrema
relevância política para o Brasil, sendo frequentemente requisitados para a
solução de conflitos das mais diversas espécies.1
Na década de 20 (séc. XX), surge uma crise política bastante significativa
para a Primeira República, que se revelou em dois aspectos principais: no
descontentamento do Exército e na crescente insatisfação da população
urbana.
As eleições presidenciais em 1° de março de 1930 foram realizadas
num momento de profundas inquietações e instabilidade política, agravadas
ainda pela crise mundial de 1929. O processo eleitoral transcorreu
normalmente e sem alterações, bem ao estilo tradicional da máquina eleitoral
da República Velha. A oposição, tendo como candidato para a presidência
MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B.
155
Getúlio Vargas, acabou perdendo a eleição. O candidato Júlio Prestes saiu
então vitorioso, o que já era de se esperar, pois o voto não era ainda uma
expressão de cidadania e liberdade, mas um sistema de obediência e de
favores políticos.
O voto então só era secreto para o eleitor. Recebia das mãos do
coronel, do chefe político ou do cabo eleitoral a cédula dentro de
um envelope, já devidamente fechado e sacramentado. Nada dessas
bobagens de cabina indevassável, de liberdade de escolha, de juízes
eleitorais, de urnas fiscalizadas, que o ditador Getúlio Vargas
inventou depois. Nada disso. Tudo era mais simples. As atas oficiais
eram feitas em cima da perna e a vitória era proclamada conforme
as conveniências.’2
No entanto, a oposição não se conformou com a derrota imposta pelo
já ultrapassado sistema eleitoral fraudulento, pois tinham por certo que a
eleição não representava a vontade do povo. Chegaram, então, à conclusão
de que a solução teria que vir pelas armas.
A conspiração articulada entre os meses de março e outubro de 1930
teve uma série de avanços e recuos até ser de fato deflagrada. Vargas e João
Pessoa insistiram em denunciar as fraudes eleitorais. Paralelamente, políticos
que compunham a Aliança Liberal buscavam apoio em outros estados para
iniciar uma revolta armada, defendida pelos tenentes. O processo
revolucionário acabou sendo desencadeado após o assassinato de João Pessoa,
candidato a vice-presidência pelo grupo da oposição. O crime, atribuído a
um complô que envolvia o presidente Washington Luís, serviu de estopim
para o início da rebelião, chefiada por Getúlio Vargas. A cadeia de imprensa
comandada por Assis Chateaubriand incendiou ainda mais o País,
transformando o governo federal no verdadeiro culpado de tal
acontecimento.
O movimento eclodiu no dia 3 de outubro de 1930. A adesão do
Exército foi quase imediata no Sul, também se concretizando em Minas
Gerais e no Nordeste; apenas em São Paulo a situação não foi prontamente
estabelecida, pois ali se encontrava o núcleo de maior resistência. Em 24 de
outubro de 1930, o presidente Washington Luís foi deposto, e se constituiu
uma Junta Provisória de Governo.3
156
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012
O novo governo revelou a disposição de centralizar progressivamente
em suas mãos tanto as decisões econômico-financeiras, como também as
de natureza política.
Em novembro de 1930, o Governo Provisório dissolvia o Congresso
Nacional, e os membros dos Legislativos estadual e municipal assumiam
com plenos poderes. Todos os antigos governadores foram demitidos, com
exceção do novo governador de Minas Gerias, e foram nomeados, então,
interventores federais da confiança de Vargas.
Vargas assumiu o poder em 1930 e só saiu em 1945. Nesses 15 anos,
governou como Chefe do Governo Provisório (1930-1934), Presidente
Constitucional (1934-1937) e Ditador (1937-1945).
Com a dissolução do Congresso Nacional e a tomada do poder de
forma fortemente centralizadora, Vargas gerou muitas alterações no Estado
brasileiro. O Brasil estava vivendo um período da ditadura varguista em
que o País se encontrava sem uma Constituição que formasse uma identidade
nacional. Não havia Congresso Nacional, Assembleia Legislativa nem Câmaras
Municipais.4
Começaram a surgir inúmeros movimentos revoltosos na capital paulista
contra o autoritarismo varguista, mas o estopim da revolta foi a morte de
cinco jovens no centro da cidade de São Paulo, assassinados a tiros por
partidários da ditadura em maio de 1932. Começou-se, então, a tramar
um movimento armado visando à derrubada da ditadura de Getúlio Vargas,
sob a bandeira da proclamação de uma nova Constituição para o Brasil.
Em 9 de julho, eclodiu o movimento revolucionário; os paulistas
acreditavam ter o apoio dos Estados de Minas Gerais, Rio Grande do Sul e
do sul de Mato Grosso, para a derrubada de Getúlio Vargas, o que não
aconteceu. O Rio Grande do Sul e Minas Gerais foram forçados por Vargas
a se manterem ao seu lado, e o Estado de São Paulo, apesar de contar com
um número considerável de soldados, estava em desvantagem.
Vendo que a derrota e a ocupação do estado eram questão de tempo,
as tropas da Força Pública Paulista foram as primeiras a se render. Com o
colapso da defesa paulista, a liderança revolucionária paulista se rendeu em
2 de outubro de 1932. As tropas gaúchas ocuparam a capital paulista
novamente. A maior parte dos líderes paulistas, que não tinha sido exilada
em 1930, com a derrota de Revolução de 1932, foram então para o exílio.
Dominada a Revolução Constitucionalista, começa a campanha eleitoral
para a Assembleia Nacional Constituinte. Em 3 de maio de 1933 foram
MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B.
157
realizadas eleições, quando a mulher votou pela primeira vez no Brasil em
eleições nacionais. De novembro de 1933 a julho de 1934, o País viveu sob
a égide dessa Assembleia Nacional Constituinte encarregada de elaborar a
nova Constituição brasileira para substituir a de 1891. Foram meses de
intensa articulação e disputa política entre o governo e os grupos que
compunham a Constituinte.
Em 16 de julho de 1934, foi promulgada a nova Constituição, e, dias
depois, Getúlio Vargas foi empossado como presidente constitucional, eleito
pelo Congresso Nacional. A nova Carta Magna mesclava características
jurídicas liberais, autoritárias e corporativas.
O governo constitucional de Vargas foi marcado por forte instabilidade,
com manifestações provenientes tanto da direita quanto da esquerda. Na
direita, o governo viu-se pressionado pela Ação Integralista Brasileira (AIB),
liderada por Plínio Salgado e com características facistas. Na esquerda,
Getúlio enfrentou a Aliança Nacional Libertadora (ANL), composta por
comunistas e simpatizantes, liderada pelo Partido Comunista do Brasil
(PCB).
A ANL foi organizada a partir de 1935. Tratava-se de uma frente
política, com influência comunista, de outros segmentos da esquerda,
sindicalistas, além de correntes do tenentismo mais extremadas. A 30 de
maio de 1935, foi realizada, no Teatro João Caetano, no Rio de Janeiro, a
leitura pública de seu manifesto e a escolha de Luís Carlos Prestes para
Presidente de Honra da organização popular. A indicação do nome de
Prestes, antigo inimigo político de Vargas, que havia retornado de Moscou
onde aderira formalmente ao comunismo, foi feita pelo então estudante
Carlos Lacerda. O programa básico da ANL centrava-se em três pontos: o
anti-imperialismo, o antifacismo e a luta contra os interesses latifundiários.
A presença de Prestes na liderança do movimento atraiu os segmentos do
tenentismo mais combativo, e as manifestações públicas criaram um clima
de confronto com os setores mais conservadores do governo, além de provocar
inúmeros conflitos de rua com seus principais oponentes: os integralistas.
A probabilidade da execução de uma tática revolucionária que culminasse
numa revolução popular foi avaliada positivamente pelos delegados brasileiros
na Internacional. Prestes entusiasmou-se com essa perspectiva de ação armada
e se preparou para assumir a direção do movimento revolucionário. A
direção do PCB ordenou que qualquer iniciativa insurrecional deveria partir
do comando sediado no Rio de Janeiro. No entanto, no dia 23 de novembro
de 1935, Natal, no Rio Grande do Norte, foi palco do inesperado “assalto
158
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012
ao poder”. A cidade foi tomada pelos aliancistas, sendo instaurada uma
junta revolucionária. Para atrair a simpatia da população da capital, a junta
revolucionária expropriou o dinheiro do Banco do Brasil procedendo em
seguida a uma farta distribuição entre populares e a tropa. Ademais, confiscou
mantimentos com vistas a garantir estoque militar e ainda fez circular o
jornal A Liberdade.
No dia seguinte ao levante de Natal, era a vez de Recife conhecer
situação idêntica, mas a resistência das forças leais ao governo, a despeito
da adesão de muitos civis, impôs a rendição aos revolucionários. A derrota
de Recife isolou o governo revolucionário no Rio Grande do Norte. No
mesmo dia 25 de novembro, quando se intensificou o cerco de Natal, foi
deflagrado o movimento no Rio de Janeiro, cujas ações foram marcadas
para acontecer na madrugada do dia 27 de novembro. O 3º Regimento de
Infantaria, na Praia Vermelha, foi tomado pelos Capitães Agildo Barata e
Álvaro de Souza, que não lograram êxito porque foram imediatamente
cercados, sendo presos em seguida os amotinados. O mesmo desfecho se
deu na Escola de Aviação, onde os Capitães Agliberto Vieira e Socrátes
Gonçalves da Silva, inferiorizados e sem qualquer apoio tático, foram
neutralizados pelas tropas leais ao comandante da escola, Coronel Eduardo
Gomes.5
O Brasil e o judiciário nos fatos objeto de análise
A ANL foi fechada em 13 de julho de 1935 e como consequência
houve uma série de repressões aos participantes do movimento: prisões
civis, punições a soldados, sargentos e oficiais. Chegava ao fim a revolução
libertadora, ou seja, a Intentona Comunista.
Em expediente publicado no Diário Oficial, de 5 de dezembro de
1935, o Ministro da Guerra baixou ao chefe do Departamento de Pessoal
do Exército, autorização para expulsar das fileiras do Exército todos os que
tomaram parte no movimento, o que, em cadeia, gerou novo ato do
ministro do Exército à Diretoria de Aviação, em 27 de dezembro,
autorizando a expulsão sumária de todos os praças que se encontravam no
interior do quartel na madrugada de 27 de novembro daquele ano.
Contudo, logo depois, houve uma consulta do diretor de Aviação ao
Ministro do Exército, sobre os praças que não tomaram parte na rebelião,
pois que,na condição de alunos internos, se encontravam no quartel por
obrigatoriedade do curso e foram tomados de surpresa com os
MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B.
159
acontecimentos daquele dia, concluindo-se que muito poucos tiveram
participação ativa no movimento. Converteu-se, então, a expulsão em
exclusão à maioria dos praças, concedendo-lhes a quitação com o Serviço
Militar.
Os acontecimentos relativos à Intentona Comunista serviram de
justificativa para a repressão sistemática ao longo de 1936, abrindo caminho
para a ditadura do Estado Novo.
Imediatamente após o golpe, Vargas dissolveu o Congresso e outorgou
uma Constituição que estruturou o Estado brasileiro com elementos vindos
do facismo italiano. A imprensa escrita, o cinema e o rádio foram submetidos
à rígida censura controlada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP).6 Foi instituída a pena de morte, que seria aplicada em casos de
crime contra a ordem pública e a organização do Estado. Os direitos
individuais foram suspensos; os estados perderam sua autonomia, e os
Poderes Legislativo e Judiciário ficaram subordinados ao Executivo.
Com a Constituição de 1937, foi extinta a Justiça Federal de primeiro
grau. As causas de interesse da União, no entanto, continuaram a ser julgadas
em juízos especializados, só que nas Justiças dos estados, denominados
“Varas dos Feitos da Fazenda Nacional”, com previsão de recurso ordinário
para o Supremo Tribunal Federal (STF). Regulamentando a extinção da
Justiça Federal de primeiro grau, foi editado o Decreto-Lei 6, de 16 de
novembro de 1937, que extinguiu os cargos de juiz federal e os dos
respectivos escrivães e demais serventuários, permitindo a nomeação dos
mesmos, no entanto, sem maiores formalidades, para outros cargos, criados
pelo decreto-lei, na estrutura da Justiça local do Distrito Federal. Os juízes
substitutos foram colocados em disponibilidade, pelo tempo restante dos
respectivos mandatos (Decreto-Lei 327, de 14 de março de 1938). Os
juízes seccionais não aproveitados em outros cargos acabaram sendo
colocados em disponibilidade (Lei 499, de 28 de novembro de 1948).
O envolvimento brasileiro na luta contra o nazifacismo impulsionou
as mobilizações democráticas no País. O Estado Novo desabou, pois se viu
numa incoerência, afinal, o Brasil lutara na guerra em favor das democracias,
logo, não fazia sentido manter-se como ditadura. A pressão crescente levou
o governo a marcar para 2 de rezembro de 1945 a realização das eleições
gerais.
Em meio a tentativa de se manter mais tempo no poder, Vargas assinou
o Decreto-Lei 7.474, de 18 de abril de 1945, que concedia anistia a crimes
políticos cometidos desde 1934 até a sua promulgação, como segue:
160
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012
Art. 1º. É concedida anistia a todos quantos tenham cometido
crimes políticos desde 16 de julho de 1934 até a data da publicação
deste decreto-lei.
[...]
Art. 2º. A reversão dos militares, beneficiados por esta lei, aos seus
postos, ficará dependente de parecer de uma ou mais comissões
militares, de nomeação do Presidente da República.
[...]
Art. 5º. Esta lei entrará em vigor na data da sua publicação.
Contudo, as punições aplicadas aos participantes da Intentona
Comunista não foram alcançados pelo referido decreto. Subentende-se que
isso tenha ocorrido porque os integrantes da intentona lutavam por um
sistema comunista, e o Comunismo seria a última coisa que Vargas aceitaria,
até porque, quando saiu do governo em 1945, já planejava o retorno ao
poder. Manteve-se, então, no cenário político sendo eleito senador pelo
PSD gaúcho.
Com fundamento no Decreto 7.474, o autor peticionou à Aeronáutica,
requerendo anistia para voltar à atividade, na graduação de Terceiro Sargento,
e, em seguida, a reforma, uma vez que sua permanência nos quadros não
mais interessava àquela força.
A comissão avaliadora assim respondeu ao pedido:
A Comissão de Reversão dos militares da aeronáutica, anistiados,
estudando os processos, julga-se incompetente para analisá-los sob
o ponto de vista jurídico. Contudo, opina pelo indeferimento das
petições, entendendo que, sob o ponto de vista técnico-profissional,
não convém à F.A.B.7
A oposição pressionou até que, em 30 de outubro de 1945, Vargas foi
intimado pelos militares a renunciar. A presidência da República passou
interinamente ao ministro do STF, José Linhares.
Com o fim do governo Vargas, tem início o governo de Eurico Gaspar
Dutra (1946-1951). Esse, logo que assumiu o governo, convocou uma
Assembleia Constituinte e foi então promulgada, em 1946, a Nova
Constituição brasileira, que trouxe como garantia a autonomia dos Poderes
MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B.
161
Legislativo, Executivo e Judiciário. A nova Carta Constitucional criou o
Tribunal Federal de Recursos, com a competência originária de julgar
mandados de segurança contra ato de ministro de Estado, do próprio tribunal
ou seu presidente e, como competência recursal, julgar as causas decididas
em primeira instância quando houvesse interesse da União ou crimes
praticados contra seus bens, serviços e interesses.
Com a efetiva instalação do TFR, que se deu após a edição da Lei 33,
de 13 de maio de 1947, o STF deixou de ser o tribunal de apelação das
causas de interesse da União, assumindo o TFR tal atribuição.
Em meio ao período da Guerra Fria, Dutra dá a seu governo um
caráter liberal e alinhado ao dos Estados Unidos. Afinal, depois da Segunda
Grande Guerra, os EUA se fortaleceram e passaram a impor sua hegemonia
por toda a América Latina. Em 1951, Getúlio Vargas voltou ao poder, só
que dessa vez pelo voto direto, permanecendo no governo até 24 de agosto
de 1957, quando, ao verificar a impossibilidade de se manter, suicidou-se.
A morte de Vargas causou imensa comoção nacional.
Nas eleições presidenciais de 1955, Juscelino Kubitschek saiu vitorioso,
com posse garantida pelas Forças Armadas, mas seu governo foi marcado
pela estabilidade política e a manutenção da democracia, tendo surgido
como lema de seu governo a frase “Cinquenta anos de progresso em cinco
anos de governo: “50 em 5”.
A campanha para a sucessão presidencial transcorreu sem maiores
problemas. Após as eleições de 1960, Jânio Quadros assumiu o governo em
janeiro de 1961 e apresentou uma forma original de governar.
Desconsiderando a orientação ideológica dos países com os quais estabeleceu
relações comerciais, adotou uma posição independente, realizando transações
comerciais tanto com países capitalistas como socialistas e ainda reatou
relações diplomáticas com diversos países do bloco socialista. Essa postura
fez com que a ala conservadora do governo desconfiasse do presidente e,
em 25 de agosto de 1961, tentando uma manobra política, Jânio Quadros
renunciou à presidência. Em seu lugar ficou João Goulart, vice-presidente
da República.
Muito se especulava a respeito de Jango, porque fora ministro do
Trabalho no governo Vargas e porque se acreditava que estivesse associado ao
comunismo. Algumas medidas inconstitucionais foram sendo tomadas pela
Congresso Nacional para evitar a posse de Jango, mas, apesar das manifestações
contrárias a ele, sua posse foi assegurada com base na Constituição de 1946,
tendo assumido a presidência em 1º de setembro de 1961.
162
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012
Assumiu o governo com poderes limitados pelo Congresso Nacional,
mas preocupado com a possibilidade de uma guerra civil, Jango aceitou o
que lhe fora imposto e acabou cedendo às mudanças que lhe foram propostas.
Em 15 de dezembro de 1961, o Senado Federal assina o Decreto-Lei
18, que concede nova anistia, prevendo, em seu art. 1º, alínea “c”, in
verbis: “Todos os servidores civis, militares e autárquicos que sofreram
punições disciplinares ou incorreram em faltas ao serviço no mesmo período,
sem prejuízo dos que foram assíduos.”
Com base nesse dispositivo, ingressou o autor com mandado de
segurança, que, em decisão de 16/8/1965, lhe concedeu a reversão ou a
reforma, deixando, contudo, a decisão a critério da autoridade militar, que
entendeu pela reforma na graduação de soldado-aluno e não na de TerceiroSargento, como determinava a lei:
Em tais condições, meu voto é para que se conceda a segurança, a
fim de que, garantida a aplicação do Decreto legislativo nº 18 ao
impetrante, a autoridade examine a sua situação, diante do curso
em que se encontrava, e se lhe deve aplicar a reversão ou a reforma.
(Grifos no original).8
Argumentou o autor que, nesse momento, a anistia foi idealizada pelo
legislador na sua ampla conceituação de perdão, restauração de direitos e
justiça, mas não houve aplicação eficaz da mesma no seu pleito.
Nesse momento a Justiça Federal já havia sido recriada através do Ato
Institucional 2, de 27 de outubro de 1965, que, alterando dispositivos da
Constituição Federal de 1946, restabeleceu a Justiça Federal de primeiro
grau, prevendo, porém que os primeiros juízes federais e juízes federais
substitutos seriam nomeados pelo presidente da República.
As propostas de Reformas de Base de Jango acentuaram ainda mais a
desconfiança das elites empresariais, burocráticas e militares, que passaram
a tramar um golpe contra o presidente. Os opositores argumentavam que
as medidas do governo colocavam em risco as bases do capitalismo no País,
e o poder hegemônico dos Estados Unidos, no continente. A tensão social
atingiu seu auge em 31 de março de 1964, com a deposição de João Goulart.
A partir desse momento, o Brasil ingressou em um longo período de
obscurantismo, em que as arbitrariedades e todo tipo de violência venceram
a democracia, pois teve início a Ditadura Militar.
MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B.
163
Em 1966, com a Lei 5.010, de 30 de maio, foi regulamentada a
organização da recriada Justiça Federal brasileira, com cada um dos estados,
territórios e o Distrito Federal constituindo uma Seção Judiciária (sua
primeira instância), sendo agrupados em cinco regiões judiciárias.
Em 14 de fevereiro de 1975, ingressou então Álvaro Moreira com
Ação Ordinária contra a União Federal requerendo fosse reformado na
grauação de Terceiro-Sargento; gratificação de tempo de serviço na base de
25% do soldo; gratificação de curso na base de 10%; pagamento dos
atrasados a partir do Decreto-Lei 18/1961 e honorários.
Presume-se que o autor esperou longo tempo para ingressar em juízo,
pois, nessa época, o País vivia sob o comando do General Ernesto Geisel,
em cuja gestão se iniciou o processo de abertura política, em um estilo que
o general definiu como “lento, gradual e seguro”. Talvez por isso, Álvaro
tenha criado coragem para ingressar com a ação, pois, afinal, passou-se a ter
esperança de que a Ditadura Militar não era mais invencível.
A sentença foi proferida em 4 de julho de 1983, em meio ao governo
do último general-presidente, João Baptista Figueiredo, que tinha por tarefa
dar continuidade ao lento processo de abertura política. O presidente
encaminhou para o Congresso Nacional um projeto de anistia restrita e
parcial, que foi repudiado por todas as correntes políticas que lutavam pela
anistia ampla, geral e irrestrita. Aos poucos, porém, o alcance da lei de
anistia foi ampliado.
A sentença concedeu em parte o pedido, por entender que não havia
amparo legal para a pleiteada gratificação de curso. No mais, foi condenada
a União Federal a proceder à reforma do autor no posto de Terceiro-Sargento,
pagamento de gratificação de tempo de serviço ao percentual de 25%,
juros e correção monetária.
Foi determinada a expedição de Precatório em 4/11/1988, com valores
pagos em 17/4/1996. Contudo, houve expedição de Precatório suplementar
com cálculos de correção referente ao lapso temporal entre a expedição e o
efetivo pagamento. Nesse último, a União Federal interpôs Agravo de
Instrumento contra despacho que determinou sua expedição, Agravo
Regimental contra a decisão que o julgou improcedente e, ainda, Recurso
Especial. Todos os recursos invocavam divergência jurisprudencial quanto
à possibilidade de formação de precatório complementar com fins de correção
monetária e juros. Todos os recursos foram inadmitidos, e o precatório
suplementar teve finalmente seu valor levantado em 2001.
164
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012
Conclusão
O presente trabalho apresentou um panorama político da República
Federativa do Brasil, num longo período compreendido entre 1935 e 2001.
Esta análise mostrou que, durante grande parte da história política do País,
a Justiça ficou à mercê das arbitrariedades de grupos que estavam no poder.
Em alguns momentos, o Princípio da Independência dos Poderes (idealizado
por Montesquieu) ficou esquecido, tendo o Poder Judiciário, com sua função
precípua de garantir a estabilidade e a ordem social, servido como mecanismo
de controle do governo. A desvirtuação funcional do Judiciário serviu como
garantia da permanência de políticas e ideologias autoritárias e acabou
impedindo que a oposição pudesse agir de modo a combater efetivamente
aquele sistema, com consequências em todos os segmentos da sociedade.
Ficou nítido também que os militares tiveram um papel de extrema
relevância nesse contexto histórico. Grande parte dos acontecimentos que
mudaram o rumo do Brasil teve a liderança ou a participação significativa
desse grupo.
Pudemos observar as relações de poder ao longo da história brasileira e
as mudanças conceituais de anistia em cada período. Também foram
registrados os momentos em que o acesso à Justiça se tornou mais concreto
ao jurisdicionado que buscava reparação contra o governo militar.
Esperamos ter atingido o nosso objetivo, que neste breve trabalho
tentou demonstrar como é farto o conteúdo da memória judicial e sua
importância para os estudiosos das diversas áreas que nesse acervo buscarem
material para suas pesquisas científicas.
MÉTIS: história & cultura – MACEDO, Thamyris C.; OLIVEIRA, Caroline B.
165
Notas
1
PRADO JÚNIOR, Caio. História
econômica do Brasil. São Paulo:
Brasiliense, 1945.
PENNA, Lincoln de Abreu. Uma
história da República. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1989.
2
PEIXOTO, Alzira Vargas do Amaral.
Getúlio Vargas: meu pai, 2. ed. 1a. impr.
São Paulo: Globo, 1960.
LEVINE, Robert M. Pai dos pobres?: o
Brasil e a Era Vargas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
FAUSTO, Boris. Pequenos ensaios de
história da República (1889-1945).
Cadernos Cebrap, São Paulo, n. 10, 1973.
Dados da petição inicial, retirados do
PRC 97.02.20056-3, fls. 9.
3
4
5
6
7
8
Proc. AO 4.707.117, fl. 58.
Idem.
Referências
AMARAL, Ignácio M. Azevedo do. Ensaios
sobre a revolução brasileira: 1931-34. Rio
de Janeiro, 1963.
PEIXOTO, Alzira Vargas do Amaral.
Getúlio Vargas: meu pai. 2. ed., 1a reimpr.
Porto Alegre: Globo, 1960.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São
Paulo: Edusp, 1995.
PENNA, Lincoln de Abreu. Uma história
da República. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1989.
FAUSTO, Boris. Pequenos ensaios de
história da República (1889-1945).
Cadernos Cebrap, São Paulo, n. 10, 1973.
LEVINE, Robert M. Pai dos pobres?: o
Brasil e a Era Vargas. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
MONTESQUIEU. O espírito das leis. Trad.
de Luiz Fernando de Abreu Rodrigues.
Curitiba: Juruá, 2006.
166
PRADO JÚNIOR, Caio. História
econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1945.
VARGAS, Getúlio. Diário. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 1997.
PROCESSO PRC 97.02.20056-3 – TRF2
– Álvaro Moreira versus União Federal.
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 153-166, jan./jun. 2012
O Juízo dos órfãos de Porto Alegre
como fonte para a história social*
The Juízo dos Órfãos of Porto Alegre as a source for social history
José Carlos da Silva Cardozo**
Resumo: O Juízo dos Órfãos foi uma
importante instituição do estado que
zelou pelos direitos e deveres dos menores
de idade. Na capital do Rio Grande do
Sul, esse juizado vigorou de 1806 a 1933.
Nesse amplo período, cuidou de todas as
crianças, adolescentes e jovens que a ele
foram apresentados, promovendo
soluções para os problemas enfrentados
por esses jovens integrantes daquela
sociedade. Este texto busca apresentar as
potencialidades da documentação
produzida por esse órgão jurídico como
fonte para a história social.
Abstract: The “Juízo dos Órfãos” was an
important state institution that cared for
the rights and duties of minors. In the
capital of Rio Grande do Sul, this court
lasted from 1806 to 1933. In this long
period, took care of all children,
adolescents and young adults who were
presented to him by promoting solutions
to the problems faced by these young
members of this society. This text aims
to show the potential of the
documentation produced by this legal
body as a source for social history.
Palavras-chave: história social; juízo dos
Órfãos; fonte.
Keywords: social history; “Juízo dos
Órfãos; source.
Reflexões apresentadas no I Seminário do Centro de Memória Regional do Judiciário,
realizado na Universidade de Caxias do Sul (UCS), em Novembro de 2011.
**
Historiador pela Unisinos. Cientista Social pela UFRGS. Doutorando em História
Latino-Americana pela Unisinos. Professor concursado na Secretaria de Educação do RS.
Editor da Revista Latino-Americana de História e da Revista Brasileira de História & Ciências
Sociais. Secretário da Anpuh/RS. Bolsista da Capes/MEC.
*
MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21
167
Introdução
A conhecida “revolução francesa da história” promovida pelos
historiadores alinhados em torno da revista Annales d’ Historie Économique
et Sociale,1 lançada em 1929, liderada pelos editores Marc Bloch e Lucien
Febvre, alterou o modo de pensar e fazer os estudos históricos, então vigentes
no início do século XX. (BURKE, 1997).
Contrapondo-se a um modelo de produção baseado na escola alemã
rankeana, fundamentada na narrativa e na coleta de documentos e, a partir
das fontes, questionadora de episódios históricos que envolvessem uma
figura eminente (rei, clérigo, ministro, etc.), a revista Annales chamou a
atenção da academia para novas possibilidades de pesquisa em história. Se
antes o acúmulo de documentos e a decodificação desses trariam
questionamentos e indagações sobre a história, esse grupo, ao contrário,
primava pelos porquês, pelos questionamentos prévios para depois ir
procurar documentos que permitissem encontrar respostas às indagações.
Os editores da revista acreditavam que somente poderia ter respostas o
pesquisador que soubesse quais eram as perguntas. Essa mudança de postura
metodológica, bem como de crítica aos documentos, em que se
contrapunham à ideia de que somente os documentos oficiais do Estado
eram dignos de credibilidade, oportunizou a ampliação das fontes e locais
de pesquisa. O historiador passaria de “servo” da coleta de documentos a
sujeito da resolução de questionamentos, desenvolvendo uma históriaproblema, amparado numa documentação cada vez mais diversificada.
Mas não foi somente essa a contribuição legada pelos Annales: o aumento
das possibilidades de investigação trouxe a expansão do sujeito pesquisado.
Antes de Marc Bloch e Lucien Febvre, os estudos históricos centravam-se,
como mencionado, em grandes fatos ou grandes personalidades; depois,
houve a transposição para todos os sujeitos e fatos, sem menosprezo ou
qualificação de mais ou menos importante, rico ou pobre – todos os seres
humanos poderiam ser objeto de investigação.
Peter Burke, reconstituindo o movimento dos Annales, apresenta as
três ideias que orientaram a revista e, consequentemente, a produção desses
novos historiadores. São elas:
Em primeiro lugar, a substituição da tradicional narrativa de
acontecimentos por uma história-problema. Em segundo lugar, a
história de todas as atividades humanas e não apenas história
política. Em terceiro lugar, visando completar os dois primeiros
168
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012
objetivos, a colaboração com outras disciplinas, tais como a
geografia, a sociologia, a psicologia, a economia, a lingüística, a
antropologia social, e outras tantas. (BURKE, 1997, p. 11-12).
O Brasil não ficou alheio a esse fenômeno, tornando-se um dos
primeiros países a receber a nova orientação promovida pelos Annales.
Fernand Braudel, discípulo de Lucien Febvre, veio ao País na década de 30
(séc. XX), juntamente com o antropólogo Claude Lévi-Strauss e outros
intelectuais franceses, para contribuir na fundação da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) na recém-criada Universidade de São
Paulo (USP). Desde essa data, a academia brasileira manteve estreitos laços
com os franceses, em especial, com os historiadores ligados aos Annales.
O movimento dos Annales oportunizou aos historiadores da época, de
forma geral, investigarem outros temas e objetos que a antiga história não
possibilitava. As novas abordagens, as novas metodologias, a descoberta de
novas fontes, juntamente com as de que já dispunham, foram trazendo
questões sobre o passado, fontes para responder às indagações que fossem
surgindo. Dessa forma, “o uso das fontes tem uma história porque os
interesses dos historiadores variam no tempo e no espaço, em relação direta
com as circunstâncias de suas trajetórias pessoais e com suas identidades
culturais”. (JANOTTI, 2011, p. 10). A história alcançou sua dinamicidade.
Assim, temas como alimentação, vida privada, vestuário, morte, crime,
família, infância, gênero, entre outros, foram se tornando questão de pesquisa
para uma grande quantidade de pesquisadores ao redor do mundo. Para
realizar as investigações, uma quantidade cada vez maior de vestígios
históricos, de todas as naturezas e procedências, foi sendo utilizada.2
Contudo, dentre os vários temas e fontes que foram pesquisados ao
longo do tempo, alguns continuam sendo campo fértil de investigação seja
pelas poucas pesquisas, seja pelas potencialidades que a investigação com a
documentação oportuniza.
Em se tratando de história social, uma fonte pouco explorada é a da
documentação produzida pelo Juízo dos Órfãos. 3 Dessa forma,
apresentaremos as potencialidades que a documentação proveniente desse
órgão jurídico pode trazer ao pesquisador.
MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21
169
O Juízo dos Órfãos
Antes de adentrar na documentação propriamente, é necessário
conhecermos a história da instituição. O Juízo dos Órfãos foi uma instituição
jurídica que teve sua origem em Portugal, em decorrência das Ordenações
Filipinas, que formaram o código jurídico do Império Luso a partir de
1580. A criação desse juízo deveu-se à necessidade de definir normas que
regulamentassem a proteção dos menores de 25 anos de idade,4 no que
competia à administração própria e à de seus bens. O cuidado e a
administração do órfão, por parte de um adulto legalmente constituído,
eram necessários em vista dos processos de separação de bens (partilha) ou
mesmo de herança em virtude do falecimento do pai de um menor. Numa
contingência desse tipo, o adulto ficaria responsável por representar os
interesses do menor nesse processo que, em certas circunstâncias, poderia
se transformar numa ação que desembocasse em litígio.5 A necessidade de
haver um adulto como responsável por um menor também poderia vir pela
orfandade completa em que esse menor poderia encontrar-se. Assim, nesse
primeiro momento, o Juízo dos Órfãos deteve sua atenção naqueles menores
de idade que possuíssem bens ou fossem descendentes de família de posses
e/ou de prestígio social.
O Juizado dos Órfãos, como também era chamado, foi igualmente
instalado na colônia portuguesa na América e, até o século XVIII, o cargo
de Juiz dos Órfãos era exercido pelo Juiz Ordinário,6 indivíduo que não
era, necessariamente, Bacharel em Direito. Porém, com o aumento da
população na colônia, foi regulamentado, em maio de 1731, o cargo de
Juiz dos Órfãos no Brasil.
De forma semelhante ao que havia ocorrido na metrópole, esse juízo
cuidou, num primeiro momento, dos menores que pertenciam a famílias
da elite nas questões relacionadas à posse de bens, como partilhas, inventários
e heranças. Da mesma maneira, preocupava-se com a guarda desses menores,
que estavam sendo encaminhados ao Juizado por conta da falta do pai ou
de outro responsável, gerando a necessidade de nomeação de um adulto
legalmente constituído para zelar pelo órfão e pelos seus bens.
Ao longo dos anos, essa instituição judiciária foi ampliando sua ação,
direcionando sua atenção também para menores não pertencentes a famílias
da elite. No caso do Brasil, especialmente, isso ocorreu a partir da formulação
das leis antiescravistas. No ano de 1871, a Lei do Ventre Livre instituiu que
as crianças nascidas de ventre escravo, a partir daquele ano, seriam
170
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012
consideradas ingênuas e não mais escravas, ficando, assim, livres do jugo
senhoril e, em 1888, pela promulgação da Abolição, houve a libertação por
completo dos escravos de seus antigos senhores. (CARDOZO, 2012). Com
essas e outras medidas que visavam à lenta liberdade do cativeiro, houve a
necessidade de o contingente de escravos e ex-escravos ser direcionado para
o trabalho assalariado. (CHALHOUB, 2007; MOREIRA, 2009).
Houve, também, a necessidade de organizar a sociedade brasileira,
composta por uma população heterogênea, que era constituída de pessoas
livres, escravas ou ex-escravas. Além disso, como até então isso não havia
ocorrido, uma nova ética do trabalho deveria ser introjetada nessa massa de
homens e mulheres, uma nova forma de ser e estar deveria ser adquirida pela
população brasileira. (CHALHOUB, 2008).
Dessa forma, o Juízo dos Órfãos era o tribunal em que se tratava e
decidia tudo o que dizia respeito a um menor de idade ou a pessoas
incapacitadas, como os pródigos (pessoas que gastam seu capital ou destroem
seus bens; Ord. Fil. Liv. 4º, Tit. 103 § 6º), os furiosos (pessoas com as
faculdades mentais debilitadas; Ord. Fil. Liv. 4º, Tit. 103), os doentes
graves (pessoas impossibilitadas de administrar seus bens) e os indígenas.
(Ord. Fil. Liv. 1º, Tit. 88). Pela forma da lei vigente, essas pessoas, embora
atingissem a maioridade legal, necessitavam de um adulto (o curador)
legalmente constituído por esse juízo como seu representante e responsável.7
Esse juizado era composto pelos seguintes e principais figuras: o juiz,
o curador-geral, o escrivão, o tesoureiro e as partes interessadas; mas também
havia outros membros secundários,8 que atuavam nesse juízo, como: o
contador, o avaliador, o partidor, o oficial de Justiça, o porteiro de auditório9
e o ajudante de escrivão.
As potencialidades
Muitos historiadores recorreram a essa instituição com a finalidade de
estudar os inventários post-mortem10 que eram produzidos pelo juizado.
Contudo, a riqueza dessa fonte documental, de certa forma, eclipsou outros
documentos que a instituição produzia, inclusive os do próprio Juízo dos
Órfãos como instituição do Judiciário.
Os processos judiciais do Juízo dos Órfãos de Porto Alegre estão
armazenados e disponíveis para consulta pública no Arquivo Público do
Estado do Rio Grande do Sul (Apers). Nessa instituição, podemos encontrar
resguardados processos de Tutela, Rapto de Menor, Busca e Apreensão de
MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21
171
Menor, Licença para Casamento, Suplemento de Idade, Exame de Sanidade e
Declaração de Pobreza. Sob o registro de Tutela, estão armazenados os
casos que dizem respeito à guarda de menores. As denúncias de rapto de
menores de idade por namorados/noivos, feitas por adultos, encontram-se
arquivadas sob o título Rapto de Menor. Os processos de Busca e Apreensão
de Menor registram casos envolvendo a procura por menores que, tendo
sido entregues, por decisão judicial, à guarda de uma pessoa, com esta não
se encontravam. Os autos de Licença para Casamento tratam dos casos
daqueles menores de idade que desejavam casar e que, não podendo contar
com um adulto responsável que lhes desse a permissão para tal, recorriam
do Judiciário, que lhes concedia o aval para o casamento e, consequentemente,
para sua emancipação. Os processos arquivados sob o título Suplemento de
Idade – na época mais solicitados por meninos – tratam de pedidos de
investigação para a obtenção de emancipação em virtude da realização de
trabalho ou estudos. Os autos sob o título Exame de Sanidade serviam para
complementar as avaliações contidas nos processos de Suplemento e arrolavam
questionamentos sobre a capacidade de os menores se administrarem
sozinhos. Por fim, os autos sob o registro de Declaração de Pobreza que
tratam dos casos em que havia a recorrência de um adulto ao Judiciário
para que fosse ratificada sua condição de pobreza e falta de recursos para
continuar mantendo a guarda de um menor ou mesmo para demonstrar a
inexistência de bens a serem inventariados.
Essa documentação pode contribuir para elucidar várias questões sobre
a sociedade, o Judiciário, a família ou mesmo sobre os pequenos atores
sociais – as crianças, os adolescentes e jovens (fontes que acreditamos são
privilegiadas por permitirem que se perceba os pequenos atores sociais em
relação com suas famílias, conhecidos, bem como com as instituições do
Estado, como a polícia ou propriamente com o Judiciário). Em virtude
dos limites textuais, privilegiaremos, a seguir, o primeiro tipo de processo
produzido por aquele órgão do Judiciário – os autos de tutela – para
revelarmos as potencialidades que uma única fonte do Juízo dos Órfãos
pode trazer aos pesquisadores.
A tutela do menor Wander
Na terça-feira, dia 6 de fevereiro de 1917, o senhor Luiz Fernando
Kersting apresenta ao 1º Cartório do Juízo dos Órfãos de Porto Alegre o
pedido para tutelar o menor Wander,11 nascido em 20 de setembro de
1905, afirmando que a mãe do menino, Carlinda Machado Pires, viúva de
172
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012
Emilio Castellar Pires, no dia 11 de maio de 1915, havia lhe entregado o
menor, com a idade de 9 anos, a fim de que esse pudesse receber instrução
primária e ser educado em sua companhia. O senhor Luiz Fernando Kersting
foi escolhido como responsável pela mãe por ser pessoa de sua confiança e
padrinho de crisma de Wander. Dessa forma, desde maio de 1915, Luiz
tinha sob sua responsabilidade Wander.
O pedido de tutela do menor por Luiz Fernando Kersting baseia-se no
fato de que, após um ano do ocorrido, esse não tinha conhecimento do
paradeiro da mãe do menino (vizinhos dela, residentes na Avenida
“Pothoff12”, haviam informado que ela havia se suicidado), o que justificava
a necessidade de formalizar tal pedido.
No dia seguinte, o juiz, primeiro suplente em exercício do Juízo dos
Órfãos, Doutor Manoel Lobato, recebeu a petição inicial e autorizou a
tutela do menor Wander a Luiz F. Kersting, a qual foi lavrada no dia 8 de
fevereiro de 1917, apenas dois dias após a abertura do processo. Tal rapidez
deve-se ao fato de o juiz não ter solicitado qualquer investigação ou maiores
esclarecimentos sobre a veracidade das informações alegadas pelo suplicante
a tutor.
Até o dia 30 de julho de 1919, tudo indicava que aquele processo, de
dois anos anteriores, estava esquecido nos arquivos do juizado e na memória
dos envolvidos. Não mais seria revisto, pois a decisão sobre o futuro do
menor, aparentemente, havia sido correta; o caso de Wander não retornaria
ao Juizado dos Órfãos, até aquela quarta-feira.
Naquele dia, a mãe de Wander, Carlinda Machado Pires, dada como
morta, apresentou solicitação para ser incluída no processo de tutela de seu
filho, afirmando morar em Porto Alegre, na Rua Conde de Porto Alegre,13
n. 93, e trabalhar como doméstica, para, logo em seguida, justificar a
atenção do juízo, alegando haver sabido que seu filho legítimo, tutelado
pelo senhor Luiz F. Kersting, encontrava-se “depositado”14 na casa da mãe
desse senhor, em Triunfo, trabalhando na venda de quitandas.
Carlinda afirmava que toda a situação envolvendo seu filho havia se
dado em vista da epidemia de gripe espanhola que atingira Porto Alegre,
doença que, segundo ela, havia contraído. Naquele momento, com a saúde
restabelecida, queria que o Juízo dos Órfãos destituísse Kersting da tutela
de seu filho, já que ela era a tutora nata.
Curioso é o fato de que a mãe suicida tivesse aparecido somente quatro
anos depois desejando ter seu filho de volta, com a controversa alegação de
MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21
173
que seu afastamento se dera devido à gripe espanhola, uma vez que essa
assolara a capital no fim do ano de 1918 e que a solicitação do senhor Luiz
F. Kersting se reportava a 1917.
No dia seguinte, o Juiz Distrital da Vara dos Órfãos, Doutor Valetim
Aragon, pediu um parecer ao Curador-Geral de Órfãos (promotor público)
sobre o caso envolvendo o menor Wander. Em 9 de agosto, o PrimeiroCurador-Geral Doutor João Carlos Machado apresentou vistas sobre o
processo, concordando com a solicitação da mãe, decidindo que Wander
deveria retornar à sua companhia. Nesse mesmo dia, o Juiz Dr. Valetim
Aragon intimou Luiz F. Kersting a se pronunciar sobre o que Carlinda
afirmara na petição ao juizado.
No dia 16 do mesmo mês, Luiz Fernando Kersting apresentou sua
argumentação, afirmando que não a fazia para se manter como tutor do
menor, mas para provar que Carlinda Machado Pires não tinha quaisquer
condições de cuidar de Wander e de outro filho que ela tinha em sua
companhia, alegando que ela estava interessada no pouco dinheiro que ele
havia depositado para o menino no cofre do Tesouro do Estado.
Afirma, ainda, que a mãe do menor era muito pobre quando lhe confiara
o menino e que, junto com esse, entregara-lhe uma declaração datilografada
e com registro de firma, em 11 de maio de 1915, na qual renunciava “para
sempre”15 a todo e qualquer poder sobre o menor, que poderia ficar em
companhia de Luiz F. Kersting ou de sua mãe, Idalina Kersting. O então
tutor menciona ainda que a mãe de Wander já havia sido detida no 4º
Posto Policial (São João) por desordem, e que ela, depois da morte do
marido, vivia da prostituição. Luiz F. Kersting, embasado na lei, utilizou o
art. 395 do Código Civil brasileiro (1917), em que se apresentam os casos
de perda do pátrio poder, quando o pai ou a mãe incorrer em seu inciso 3º,
que diz: “Que(m) praticar atos contrários à moral e aos bons costumes”.
Termina afirmando que, devido ao que se constatara quanto à situação
da mãe do menor, configurava-se caso de retirada do pátrio poder, e que
Wander, no momento, estava na casa de sua mãe, Idalina Kersting, que lhe
ensinava “salutares exemplos de honra, amor pelo trabalho e bons exemplos”,
que o menino estudava e era “bom trabalhador”, comprovando-se esse fato
com a anexação da foto do menino no processo. Afirmava que ele estava
estudando com o Professor Marcos M. Coelho desde julho de 1915 e que,
se fosse viver com Carlinda, receberia maus exemplos, que iriam perverter
o menino, fazendo dele um “gatuno ou assassino”.16
174
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012
O Juiz dos Órfãos Dr. Valentim Aragon pede parecer ao CuradorGeral, que, em 18 de agosto de 1919, requer que sejam intimadas quatro
testemunhas, três homens com 58, 33 e 38 anos e uma mulher de 60 anos,
para que falassem sobre o procedimento de Carlinda Machado Pires. Os
mais velhos, a mulher de 60 e o homem de 58 anos, que viviam com ela,
falaram a favor de Carlinda, descrevendo-a como pessoa honesta e
trabalhadora; já os outros dois a descreveram como mulher dada à
prostituição.
Como os testemunhos eram contraditórios, não ajudaram muito o
juiz a tomar uma clara decisão. Requereu novamente, em 26 de agosto,
que o Curador-Geral de Órfãos se pronunciasse. O processo foi transferido
para outro promotor, o Doutor Lúcio Coimbra que, no dia 18 do mês
seguinte, devido à vida “imoral da mãe do menor”,17 estava de acordo com
a aplicação do art. 395 sobre a perda do pátrio poder da mãe do menino.
Dessa forma, em face do argumento do Curador-Geral, o Dr. Valentim
Aragon encaminha o processo para parecer do Juiz da Comarca, Dr. Augusto
Salgado, que, em 3 de dezembro, apresentou parecer contrário ao do
Curador-Geral, alegando ser ilegal o processo de tutela do menor Wander,
já que a mãe dele não perdera em juízo o pátrio poder sobre seu filho.
Manda, então, que o menor seja entregue a ela até que essa perca legalmente
a responsabilidade sobre seu filho.
Contudo, Luiz Fernando Kersting não aceitou a decisão do Juiz da
Comarca de destituí-lo do cargo de tutor do menino Wander e apelou
realizando Agravo18 ao Superior Tribunal do Estado, com base no Código
do Processo Civil e Comercial do Estado (1908), que, em seu art. 1.009,
inciso 26, permite esse tipo de ação no intuito de reverter a situação de
destituição ordenada pelo Juiz da Comarca, Dr. Augusto Salgado.
No dia 26 de dezembro, foi feita a minuta de agravo em que Luiz F.
Kersting, com toda a sensibilidade e orientação, mesmo não apresentando
o nome de um advogado, recuperou toda a trajetória do processo apontando
vários motivos para ser revista a decisão do Dr. Augusto Salgado a seu
favor, desde a incorporação do processo de destituição de tutela, dentro do
processo de requisição de tutela (fato que contraria o código mencionado
anteriormente, uma vez que proíbe que se misturem tipos de ação), passando
pelas testemunhas favoráveis à Carlinda, as quais moravam com ela. Para
sensibilizar os juízes do Superior Tribunal, Luiz F. Kersting afirmou que,
por quatro anos, a mãe do menino não o havia procurado e mesmo não se
fizera presente na vida de seu tutelado; além do mais, vivia uma “vida
MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21
175
desregrada” e sem a “moralidade precisa”19 para zelar por uma criança que
estava sendo educada na escola e para a vida, por meio do trabalho e da
companhia de uma mulher idosa, com comportamento íntegro para educar
uma criança.
No dia 9 de janeiro de 1920, o Superior Tribunal, presidido pelo Dr.
A. Rocha, pronuncia-se sobre o caso em tela, e os juízes, não por
unanimidade, já que os votos dos Drs. Amado Fagundes e Lucas Álvares
foram votos vencidos, confirmam as decisões anteriores do PrimeiroCurador-Geral de Órfãos e do Juiz da Comarca a favor da mãe do menor
Wander, Carlinda Machado Pires, por ela não ter perdido o pátrio poder
por ação judicial para o senhor Luiz Fernando Kersting; dessa forma, o
menor deveria ser devolvido a seu poder. No entanto, o Superior Tribunal
fez uma importante ressalva quanto à entrega do menor: essa deveria ser
sustada até que os procedimentos da mãe fossem analisados mais
detalhadamente pelo Ministério Público, por ela já ter passagem pela polícia
e pelas acusações de viver a prostituir-se, para, só assim, ser confirmada a
entrega do menor ou a definitiva destituição do pátrio poder de Carlinda
Machado Pires.
O processo tramitou por alguns meses, já que a mãe, quando intimada,
não havia sido encontrada, até que, em 3 de junho de 1920, o tutor do
menor, Luiz F. Kersting, a mãe dele, Carlinda Machado Pires, e o CuradorGeral Waldemar Vasconcellos assinam o processo para confirmarem a ciência
de todos sobre o teor da decisão do Superior Tribunal do Estado. Contudo,
depois dessa data, o processo não foi levado adiante, tendo sido arquivado.
Talvez a mãe tenha “sumido”, como já o fizera, tenha desistido de dar
continuidade ao processo ou mesmo tenha ficado com medo da investigação
que o Ministério Público faria sobre sua conduta social e sua profissão. O
certo é que tudo ficou como antes da petição de Carlinda, pois Wander,
perto de seus 15 anos, ao findar o processo, continuou sob a tutela de Luiz
F. Kersting.
Conclusão
A documentação produzida pelo Juízo dos Órfãos é muito rica pelas
informações que nela estão contidas (desde nomes, idades, motivos e decisões
e até mesmo fotografias, bilhetes e páginas de jornais), revelando um universo
documental, que permite ao pesquisador do social se deslumbrar com
informações variadas possibilitando reconstruir tanto a história de pessoas
176
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oriundas da elite quanto de grupos populares. Além disso, a documentação
oportunizou realizar pesquisas utilizando a abordagem qualitativa e
quantitativa; o caso do menor Wander é um dentre centenas, em que
crianças, adultos e instituições estão em constante interação, possibilitando
ao pesquisador desvelar inúmeras questões sobre o passado.
Ana Scott e Maria Bassanezi, investigando a criança imigrante italiana
em São Paulo, exploraram igualmente o Juízo dos Órfãos e revelam que
essas fontes apresentam aspectos qualitativos que se referem não
só às relações entre pais e filhos, mas também entre marido e
mulher, sogros, bem como indicam relações de adultério e de
abandono do lar; enfim, todo o universo em que viviam muitas
das crianças. (2005, p. 170).
Essa documentação privilegia crianças e adultos em relação com o
Judiciário e são, na maior parte, casos conflitantes; contudo, sabemos que
“os conflitos sociais muitas vezes revelam tanto sobre a organização social
de um grupo quanto o bom funcionamento de suas supostamente bem
equilibradas normas”. (FONSECA, 2006, p. 45).
Observa-se que o estudo com base nesse tipo de fonte histórica,
em muitos casos, é trabalhoso, pois são poucos os processos que
estão datilografados; a grande maioria constitui-se de registros
textuais manuscritos em tinta ferrogálica, a qual enfraquece, ou
mesmo desaparece, ao passar dos anos e, quando usada em excesso,
provoca uma escrita borrada. Os processos estão costurados com
barbante e, em alguns casos, presos com grampos metálicos, que
enferrujam e marcam os documentos.
Ademais, não podemos nos esquecer de que esses “documentos do
passado não foram elaborados para o historiador, mas para atender às
necessidades específicas do momento” (BACELLAR, 2011, p. 69); dessa forma,
cabe ao pesquisador saber quais perguntas pode fazer para, então, recorrer
às fontes, como o acervo documental produzido pelo Juízo dos Órfãos de
Porto Alegre.
O conjunto documental produzido pelo Juízo dos Órfãos possibilita
estudar as crianças, suas famílias e a relação dessas com o Judiciário, o que
permite investigar a criança e a família imigrantes (CARDOZO, 2010a), a
MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21
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própria instituição, por meio dos operadores do Direito (CARDOZO, 2010b),
a relação dos menores de idade com os adultos (CARDOZO, 2009a), uma
época (CARDOZO, 2009b) ou mesmo uma problemática específica, como a
da opção dos adultos pela tutela e não pela adoção. (CARDOZO, 2011).
Trata-se, enfim, de documentação que pode proporcionar novas descobertas
sobre o passado das crianças, das famílias, da sociedade e do Judiciário.
178
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Notas
A revista, ao longo do tempo, teve
alterado seu nome; atualmente,
é:”Annales: économies, sociétés,
civilisations”.
1
2
Um balanço sobre fontes e sua utilização
na pesquisa história pode ser encontrado
em Pinsky (2011) e Pinsky e Luca
(2012).
3
O termo órfão não deve ser entendido
estritamente, pois pode representar
menores órfãos de pai e mãe como
também os órfãos de pais vivos, ou seja,
poderia representar aqueles que tinham
seus progenitores vivos.
4
É necessário esclarecer que, somente
depois da Independência do Brasil, com
a Resolução de 31 de outubro de 1831, é
que a idade de 21 anos foi definida como
idade-limite da menoridade de um filho,
ou seja, idade-limite do pátrio poder
sobre esse e só em 1990 é que a idade de
18 anos seria fixada como limite da
menoridade no Brasil.
Litígio, segundo o dicionário jurídico,
é a “demanda, disputa; pendência,
contenda... O litígio somente terá início
quando a parte contesta o pedido do
autor”. (SANTOS, 2001, p. 153).
5
Esse juiz era leigo e eleito anualmente
pelos “homens bons” da jurisdição. O
cargo foi criado em 1521.
6
A função de curador dos incapazes ou
interditos, como também era chamada,
era igual à de tutor de menor (Ord. Fil.
Liv. 4º, Tit. 104 § 6º):
7
8
São secundários, pois, nos locais onde
não for criado por lei, o juiz pode atuar
como contador; qualquer cidadão, em
conformidade com as partes, pode
exercer o cargo de avaliador e partidor, e
o escrivão pode atuar como oficial de
Justiça ou mesmo porteiro de auditório.
O porteiro de auditório, por mais
simples que possa parecer essa função, era
aquele que ficava responsável não só por
sua abertura e fechamento como também
pela manutenção da ordem no local.
9
Não discutiremos os inventários por
serem uma fonte sobejamente utilizada na
pesquisa histórica; maiores informações
sobre o uso dessa fonte em Júnia Furtado
(2012). Contudo, para Porto Alegre,
podemos citar o estudo-referência de Paulo
Moreira (2003).
10
RIO GRANDE DO SUL. Juízo
Districtal da Vara de Orphãos de Porto
Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de
1917. [manuscrito]. Porto Alegre, 1917.
Localização: Apers. Esclarecemos que os
excertos extraídos dos processos se
encontram entre aspas e em itálico, sendo
que o número da página da qual foram
extraídos será informada em nota de
rodapé apenas quando esta tiver sido
esgotada em termos de análise.
11
RIO GRANDE DO SUL. Juízo
Districtal da Vara de Orphãos de Porto
Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de
1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917.
Localização: Apers. f. 2.
12
Atualmente é uma rua do Bairro
Floresta: começa na Av. São Paulo e
termina na Av. Cristóvão Colombo. No
período era uma área suburbana de Porto
Alegre. (FRANCO, 2006).
13
RIO GRANDE DO SUL. Juízo
Districtal da Vara de Orphãos de Porto
Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de
1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917.
Localização: Apers. f. 5.
14
RIO GRANDE DO SUL. Juízo
Districtal da Vara de Orphãos de Porto
Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de
1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917.
Localização: Apers. f. 10 v.; 12.
15
MÉTIS: história & cultura – CARDOZO, José Carlos da Silva – v. 11, n. 21
179
RIO GRANDE DO SUL. Juízo
Districtal da Vara de Orphãos de Porto
Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de
1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917.
Localização: Apers. f. 11 v.
16
RIO GRANDE DO SUL. Juízo
Districtal da Vara de Orphãos de Porto
Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de
1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917.
Localização: Apers. f. 25 v.
17
180
O agravo é o ato de recorrer
judicialmente contra um despacho ou
decisão. (SANTOS, 2001).
18
RIO GRANDE DO SUL. Juízo
Districtal da Vara de Orphãos de Porto
Alegre. 1ª Vara. Tutela. Proc. n° 100 de
1917. [Manuscrito]. Porto Alegre, 1917.
Localização: Apers. f. 30 v.
19
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 167-182, jan./jun. 2012
Referências
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Filipino ou Ordenações e leis do Reino de
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D. Philippe I. 14. ed. Rio de Janeiro:
Tipografia do Instituto Philomathico,
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Acesso em: 21 set. 2011.
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República dos Estados Unidos do Brasil:
promulgado pela Lei n. 3071, de 1º de
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CARDOZO, José Carlos da Silva. A tutela
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BURKE, P. A Escola dos Annales (19291989): a revolução francesa da
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CARDOZO, José Carlos da Silva. A
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Possibilidades de pesquisa no Centro de Memória
Regional do Judiciário (CMRJU) : inventários e
arrolamentos nas primeiras décadas do Séc. XX
Possibilities of research in the Regional Center of Judiciary Memory:
inventories in the firsts decades of the 20th century
Paulo Afonso Lovera Marmentini*
Resumo: Este artigo pretende contribuir
com as futuras consultas e pesquisas no
Centro de Memória Regional do
Judiciário, da Universidade de Caxias do
Sul, através de um levantamento das
possibilidades de pesquisa nos inventários
e arrolamentos das duas primeiras décadas
do século XX presentes nesse acervo. Sem
a pretensão de realizar grandes
aprofundamentos teóricos ou de esgotar
as possibilidades de pesquisa do acervo, o
trabalho, que nasceu originalmente como
componente curricular da disciplina de
Estágio em História IV, do curso de
Licenciatura Plena em História da
Universidade de Caxias do Sul, orientado
pela Prof.ª Dra.Maria Beatriz Pinheiro
Machado, traz relatos das experiências,
dificuldades e facilidades de lidar com essa
gama de documentos jurídicos. Como
resultado da leitura dos 27 processos,
compreendidos entre os anos de 1900 e
1920, e da coleta de informações, chegou-
Abstract: This article intends to
contribute to future researches in the
Regional Center of Judiciary Memory,
from University of Caxias do Sul, through
a survey of possibilities of researches in
the inventories of the two first decades of
the 20th Century, which are part of the
collection. With no pretensions of
making a deep theoretical analysis or to
exhaust the possibilities of research in the
archive, this work brings experience
reports, difficulties and facilities to deal
with this type of juridical document. As
the result of reading 27 processes, between
the years of 1900 and 1920, and the
collecting of information, three central
points have been reached: the obsession
of inventorying; the men inheritors; and
what is omitted of the processes.
Graduado em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestrando em
História na Unisinos. E-mail: pmarmentini@gmail.com
*
MÉTIS: história & cultura – MARMENTINI, Paulo Afonso Lovera – v. 11, n. 21
183
se a três questões centrais: a obsessão por
inventariar; a questão dos herdeiros
homens; e o que é omitido nos autos.
Palavras-chave: inventário; Região
Colonial Italiana; Poder Judiciário.
Keywords: inventory; Italian Colonial
Region; Judiciary Power.
Este trabalho nasceu como componente curricular avaliativo da
disciplina de Estágio em História IV, do curso de Licenciatura Plena em
História, da Universidade de Caxias do Sul (UCS), orientado pela Professora
Dra. Maria Beatriz Pinheiro Machado. A disciplina de Estágio em História
IV tem o objetivo primeiro de proporcionar ao aluno de graduação uma
vivência em institutos ligados à preservação do patrimônio histórico-cultural:
arquivos, centros de documentação, centros de memória ou museus. O
objeto do presente trabalho foi o Centro de Memória Regional do Judiciário
(CMRJU) da UCS, que contém o acervo judicial da 1ª Vara Cível da
Comarca de Caxias do Sul, contando com processos a partir de 1900.
O CMRJU, pertencente ao Instituto Memória Histórica e Cultural
(IMHC) da UCS, guarda documentos que ainda são inéditos na escrita da
historiografia regional. Um dos objetivos desse trabalho é a divulgação
deste arquivo, até então pouco conhecido pelos estudantes de graduação
em História da instituição e também pelos próprios pesquisadores da área,
procurando abrir, assim, uma nova possibilidade de pesquisa em documentos
jurídicos, abordando por meio de um novo olhar a história regional. Durante
o período de estágio, optei por analisar inventários e arrolamentos
compreendidos entre os anos de 1900 e 1920, procurando retirar desses
documentos as possibilidades de pesquisa no vasto campo da história.
Este artigo traz os resultados dessa análise, além de relatos das
dificuldades e facilidades encontradas durante a execução da proposta. A
carga horária total do estágio, no qual foi desenvolvido o presente trabalho,
foi de 32 horas, usadas exclusivamente para leitura dos processos e coleta
de informações ali presentes, durante o primeiro semestre acadêmico de
2011.
184
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 183-192, jan./jun. 2012
O campo de trabalho: CMRJU
Instituição: CMRJU – Centro de Memória Regional do Judiciário
Localização: Sala 102, Bloco 46, UCS
Horário de funcionamento: De 2ª a 6ª feira, das 13h às 17h e das 18h às
22h
Responsáveis: Prof.ª Dra. Daysi Lange (responsável) e Elizete Carmen
Ferrari (funcionária)
Criação: ano de 2001, através da assinatura do Termo de Convênio
entre a UCS e o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
Iniciou suas atividades em 2002.
Telefone: (54) 3218.2781
O CMRJ, ligado ao IMHC surgiu como uma alternativa de
armazenamento e preservação dos mais de quarenta mil processos produzidos
pela Comarca de Caxias do Sul, oriundos, em sua maioria, da 1ª Vara
Cível. Assinado o convênio entre a UCS e o Tribunal de Justiça do Estado
do Rio Grande do Sul, em 12 de dezembro de 2001, o acervo passou aos
cuidados da universidade em julho de 2003. Dividido em 2.350 caixasarquivo polionda, na época da pesquisa, cerca de oitocentas caixas já haviam
sido higienizadas e restauradas, e cerca de trezentas caixas – o que corresponde
a processos até o início da década de 70 (séc. XX) – já haviam sido cadastradas
na base de dados para pesquisa. O CMRJU conta com uma funcionária
pós-graduada em Gestão de Patrimônio e com cursos técnicos na área de
restauro de documentos e também com um estagiário (que, na época da
execução da pesquisa, era o autor deste trabalho) e uma monitora. A
coordenação do CMRJU, antes a cargo da Professora Dra. Luiza Horn
Iotti, passou a ser exercida, a partir do início de 2011, pela Professora Dra.
Daysi Lange.
O acervo encontra-se hoje na sala 103 do Bloco 46, na UCS. Essa sala
é dedicada exclusivamente ao armazenamento do acervo, sendo bemventilada, com piso de parquet, que evita umidade em excesso, e com acesso
restrito aos funcionários. Nela se encontram 37 estantes de metal onde
estão alocadas as caixas-arquivo. Porém, a situação é provisória, visto que
há um projeto de instalação de estantes deslizantes na mesma sala,
substituindo as de metal, de modo a otimizar o espaço ocupado pelo acervo.
A higienização é feita numa sala ampla e bem-arejada, onde se encontra
também a área de higienização do Centro de Documentação da Universidade
MÉTIS: história & cultura – MARMENTINI, Paulo Afonso Lovera – v. 11, n. 21
185
de Caxias do Sul (Cedoc), função que cabe à monitora. Os computadores
com as bases de dados encontram-se na parte administrativa do CMRJU,
na sala 105-D, onde trabalham a funcionária e o estagiário.
O acesso ao acervo, porém, ainda é muito restrito à comunidade em
geral, estando disponível apenas para pesquisadores ligados a alguma
instituição ou para advogados que desejam consultar os processos. Isso se
deve em razão do acordo firmado com o Tribunal de Justiça do Estado,
que, em vista da quantidade de informações confidenciais contidas na
documentação, restringe o acesso à comunidade. O mesmo acordo previa,
também, a preservação do acervo na íntegra, o que impediu a aplicação de
qualquer meio de seleção ou filtragem dos processos.
Este trabalho partiu do princípio de que o CMRJU é um espaço ainda
pouquíssimo aproveitado para pesquisa, sendo que, em sua maioria (e por
que não dizer totalidade), os documentos são inéditos, especialmente em
pesquisa histórica. Pouco se divulga (e também pouco se sabe) sobre a real
capacidade do acervo em ser usado como fonte de novas pesquisas,
principalmente em história regional, uma vez que nada foi escrito sob à luz
desses documentos. O objetivo deste trabalho é, então, fazer um recorte
temporal e temático específico e levantar o que há de disponível no acervo
dentro desse recorte.
O trabalho buscou fazer um levantamento dos inventários e
arrolamentos compreendidos entre 1900 e 1920, procurando expor as
possibilidades de pesquisa apresentadas por essa gama de documentos.
Incialmente, a pretensão era estender esse recorte temporal até 1930, mas o
tempo destinado à leitura de cada processo foi maior do que o calculado
num primeiro momento, em virtude de os documentos serem, em sua
íntegra, manuscritos, o que dificultou e por vezes até estagnou o avanço da
leitura do processo. Assim, a pesquisa, limitada às 32 horas estipuladas pela
disciplina de estágio, não teve fôlego para abraçar também a década de 20
do mesmo século, limitando-se às duas primeiras décadas do século XX.
Metodologia, facilidades e dificuldades
A metodologia deste trabalho consistiu, basicamente, na leitura e análise
dos 27 processos relativamente os de 1900 a 1920. Para cada processo,
uma tabela foi desenhada, contendo algumas informações pontuais, como a
data de início do processo, as partes envolvidas, bens inventariados, os
respectivos valores e o desfecho do processo, observando quem herdava os
186
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 183-192, jan./jun. 2012
bens do inventariado. Também foi observado um dos preceitos básicos do
trabalho com documentos jurídicos em pesquisas históricas: “o que não
está nos autos”, principalmente no que tange aos bens inventariados. Ainda,
a partir dos processos, é possível observar alguns pontos das relações
familiares, especialmente os conflitos presentes na partilha dos bens.
O principal entrave encontrado no processo de execução do trabalho
foi a própria dificuldade em ler os processos. Estando em sua totalidade
manuscritos, a leitura foi lenta e dificultosa na maior parte dos casos. Sendo
o escrivão um profissional cuja função é escrever, como o próprio nome da
profissão revela, acredita-se que passar a maior parte de sua jornada de
trabalho realizando esse ato cansava-lhe a mão, o que prejudicava
significativamente a caligrafia. Aos olhos de um sujeito como o autor deste
trabalho, acostumado à grafia técnica, de máquina/computador, e cada vez
mais estranho a papéis manuscritos, a escrita de alguns escrivães chegava a
ser realmente próxima de hieróglifos do que da própria língua portuguesa,
o que impedia a fluência da leitura e, portanto, do pensamento. Foi
necessário acostumar-se ao desenho particular de cada letra da grafia de
cada escrivão. Em face disso, a leitura demandou muito mais tempo do
que o estimado. Porém, ao historiador, cabe saber que esse também é um
dos obstáculos a serem vencidos durante o trabalho com documentos
históricos.
Outra dificuldade foi o estranhamento com o suporte teórico. Pesquisas
históricas em documentos produzidos pelo Poder Judiciário exigem uma
metodologia particular de análise, quase totalmente desconhecida por mim
antes de iniciar a pesquisa. Leituras específicas sobre o tema foram
obrigatórias. Entretanto, nenhuma teoria é absorvida tão facilmente e em
tão pouco tempo; com certeza, algumas “brechas teóricas” foram deixadas
em aberto. Mas como este trabalho se propõe a ser apenas uma primeira
etapa de investigação de possibilidades de pesquisa, esse conhecimento pode
se dar o luxo de ainda estar num estágio de construção (que, aliás, sempre
está). Porém, se tem consciência de que para o desenvolvimento de uma
futura pesquisa, o aprofundamento teórico é imprescindível.
A grande facilidade que encontrei foi o acesso a esses documentos.
Como dito anteriormente, a consulta ao acervo é restrita, em função de
parte do seu conteúdo ser sigiloso. Porém, como aluno da disciplina de
Estágio em História IV, tive a oportunidade de pesquisar livremente a
documentação (oportunidade essa dada a todos os alunos da disciplina que
optam pelo CMRJU como campo de trabalho). Também pela minha
MÉTIS: história & cultura – MARMENTINI, Paulo Afonso Lovera – v. 11, n. 21
187
condição de estagiário do CMRJU na época da pesquisa, não tive maiores
problemas nesse quesito, além de já possuir uma noção macro dos conteúdos
específicos do arquivo, dada a minha intimidade e familiaridade com o
acervo.
Resultados: as possibilidades
Lidos os processos e coletadas as informações, alguns resultados e
conclusões foram alcançados. Penso que seja importante frisar que essas
conclusões partem muito da visão que o pesquisador tem sobre a história
como ciência e do grau de amadurecimento do mesmo no campo da pesquisa.
Os resultados a que cheguei passam diretamente por esses dois pontos.
Sendo assim, eles não são definitivos e, nem únicos. Reitero ainda que este
foi um trabalho desenvolvido durante a graduação, e que visa a levantar as
possibilidades de pesquisa, não abrangendo, portanto, a pesquisa em si,
embora alguns caminhos já sejam apontados no decorrer do artigo.
Dividi essas possibilidades de pesquisa em três tópicos maiores: o da
“obsessão” por inventariar, o dos herdeiros homens e o do “o que não está
nos autos”.
“Obsessão” por inventariar
Com a Proclamação da República em 1889, as antigas províncias do
Império passaram a ser configuradas em estados federalistas, tendo cada um
deles uma grande autonomia em questões políticas, judiciais e econômicas.
No Rio Grande do Sul, uma nova Constituição foi promulgada em 1891,
instituindo a cobrança de imposto territorial no valor de 5% do valor do
lote, cobrança essa que ficou sob a responsabilidade do estado. Já nessa
época, começava a ocorrer um relativo aumento da produção de excedentes
coloniais e, consequentemente, o aumento do comércio na Região Colonial
Italiana (RCI), o que atraiu os olhares do Tesouro do Estado, que via a
RCI como uma grande fonte de renda para os seus cofres, visto sua
configuração de divisão em pequenas propriedades territoriais. No caso
específico dos inventários e arrolamentos, esse imposto vigorava na
transmissão de bens (que eram principalmente terras) do inventariado para
o(s) herdeiro(s).
Partindo desses princípios, o estado deslocava um coletor de rendas
para a então Colônia Caxias. No período analisado, o coletor era Antonio
de Azambuja Kroeff, que agiu como uma espécie de “incriminador” nesses
188
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 183-192, jan./jun. 2012
processos, intimando famílias que não inventariavam os bens de seus
falecidos. Diante desse cenário, não havia nenhuma restrição aos
inventariados. Não havia distinção por classe social ou por origem, não
importando se era brasileiro, italiano ou austríaco. Todos deviam ser
inventariados.
A fim de obter uma maior rentabilidade, os preços das terras eram
sempre avaliados muito acima de seu real valor. Em um dos casos estudados
durante a leitura dos processos, o sujeito faleceu em 1914 e teve seu lote
avaliado em dois contos de réis, sendo que dois anos antes, havia comprado
esse mesmo lote por um conto de réis. Ou seja, para o avaliador de preços
do estado, a terra valia o dobro do que o preço real, aumentando, assim,
obviamente, o lucro obtido com a taxa de 5% no valor da transmissão de
posse.
Toda essa “obsessão”, provavelmente, partia de ordens do governo
estadual para obter a maior arrecadação possível. E isso se refletiu na
quantidade de processos de inventários e arrolamentos. Entre os anos de
1900 e 1920, há um total de 47 processos arquivados no CMRJU, e, dessa
totalidade, 27 correspondem a inventários e arrolamentos, o que equivale a
uma porcentagem de 57%. Assim, esses inventários “forçados” tornaram-se
uma grande fonte de renda para o Tesouro do Estado, obrigando os colonos
a se inserirem nessa nova política arrecadatória. Um estudo mais aprofundado
da Constituição e das finanças do Estado poderia revelar se a melhora nas
condições financeiras nesse período foi realmente significativa, a ponto de
a RCI começar a ser considerada uma região importante para as contas do
estado. Também um estudo comparativo com outras regiões do estado, se
as fontes permitissem, poderia revelar muito dessa faceta “cobradora” do
Estado.
Herdeiros homens
A partilha dos bens inventariados dava-se de maneira relativamente
simples: todos os bens do falecido eram avaliados, seus valores somados, e a
quantia final era dividida de forma igual entre os herdeiros, salvo o caso de
existir uma viúva ou viúvo meeiro, pois a lei garantia 50% da herança para
esse, restando os outros 50% para ser dividido de forma igual entre os
outros herdeiros. Esse era o desfecho de boa parte dos processos. Porém,
em alguns casos, alguns herdeiros abriam mão de sua parte na herança em
favor de um único herdeiro, e esse sempre era homem. E aqui não há um
padrão: há casos em que o filho primogênito herda integralmente a herança,
MÉTIS: história & cultura – MARMENTINI, Paulo Afonso Lovera – v. 11, n. 21
189
há casos de filhos “do meio” e também dos filhos mais novos receberem os
bens.
Não há registro em nenhum dos processos de que mulheres tenham
herdado sozinhas os bens inventariados. Também essas mulheres aparecem
sempre assistidas durante o processo judicial, geralmente por seus maridos,
mas também pelo pai ou pelo irmão mais velho, como se não possuíssem
uma voz própria e independente. Essa prática da Justiça permaneceu ainda,
ao longo de muitas décadas, depois do período estudado.
Pode-se aprofundar essa ideia estudando o papel da mulher na RCI
como provedora da casa, subordinada ao homem, a “dona do lar”. E o
mesmo em relação ao seu papel perante o Poder Judiciário. Se a mulher era
sempre assistida por um homem na execução dos trâmites legais do processo
judicial, a Justiça, definitivamente, não a via como uma voz autônoma e
independente, reconhecendo-a como inferior e submissa ao homem, ao
menos no que tange ao discurso.
Outra questão a se levantar é para onde iam as pessoas que abriam
mão da herança. Os lotes da RCI, baseados na ideia de pequenas propriedades,
não suportavam as necessidades de muitas famílias. Assim, passada a primeira
geração, e também em razão do alto número de filhos, algumas famílias
eram praticamente obrigadas a deixar a propriedade. Se as condições
financeiras permitiam, compravam um novo lote. Senão, provavelmente,
se mudavam para a cidade, onde um relativo comércio já havia se
desenvolvido, assim como pequenas fábricas e oficinas artesanais. A relação
de crescimento da região urbana, especialmente de Caxias do Sul, principal
centro urbano da região, pode também ser estudada a partir da documentação
presente no CMRJU.
“O que não está nos autos”
Uma das premissas básicas do Direito é a de que “o que não está nos
autos não está no mundo”, usada no sentido de que o que deve ser julgado
e levado em conta é o que consta nos autos, ou seja, as justificativas de
ambas as partes. Mas, em pesquisas históricas, devemos levar em consideração
também o que não está nos autos, pois o que deixa de ser inserido nos
autos também revela pistas preciosas para a escrita da história.
Alguns bens móveis (ferramentas, vestimentas e móveis de quarto,
como armário) e semoventes (animais de estimação) jamais constaram nas
listas de bens inventariados nos documentos analisados. Podemos concluir
190
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 183-192, jan./jun. 2012
que: 1) os bens existiam, mas não eram listados pelo escrivão, incluindo-os
no valor final do lote; 2) não possuíam esses bens; e 3) possuíam os bens,
mas eram sonegavam na tentativa de diminuir o valor final designado pelo
avaliador, reduzindo, assim, o valor do imposto a ser pago. Essa última
hipótese é algo que realmente deve ser levado em consideração, tendo em
vista que, ao descobrir como funcionavam os trâmites da Justiça, o colono
que se sentia lesado com a cobrança, provavelmente, tentava burlar o processo
em algum ponto. Assim, a omissão no processo de certos bens que
sabidamente possuíam valor comercial na época (especialmente ferramentas
e carroças) devia, em alguns casos, ter ligação com a sonegação.
Ainda uma outra questão observada é a das relações familiares. Há
casos de pais que ficavam com a guarda dos bens do cônjuge falecido, não
partilhando com os filhos. Esses, por sua vez, entravam com um processo a
fim de que o pai lhes desse os bens a inventariar e que a herança fosse
partilhada. Em casos como esse, fica evidente o rompimento das relações
familiares, quebrando o mito da historiografia tradicional que traz a família
do imigrante sempre como sendo um núcleo forte, com sólidas ligações
entre seus membros.
Considerações finais
O acervo do CMRJU possui um grande potencial de pesquisa ainda
inexplorado. A partir dele, é possível a escrita da história regional sob uma
nova perspectiva, com documentos ainda inéditos como dito anteriormente.
Porém, ainda é preciso que alguns pontos apresentem uma melhora.
Há, também, ainda uma certa carência na divulgação do acervo. Poucos
pesquisadores têm conhecimento do potencial; talvez não tenham
conhecimento da existência do arquivo. Há ainda o problema do acesso,
restrito, é verdade, a advogados ou pesquisadores ligados a instituições.
Isso já está sendo revisto pela coordenação do CMRJU, mas, por ora, a
situação continua a mesma. A abertura mais ampla a estudantes de graduação
poderia estimular uma nova leva de pesquisadores a se debruçar sobre essa
documentação. Por fim, uma melhoria no mecanismo de pesquisa (base de
dados), que encontra-se ainda num nível primitivo demais para permitir
um acesso total a determinado tema de pesquisa, seria de suma importância.
Apesar de todos os problemas enfrentados, o CMRJ conta com uma
coordenação decidida a torná-lo mais presente nos cursos de graduação em
História da UCS e também como centro de pesquisa. Questões burocráticas
MÉTIS: história & cultura – MARMENTINI, Paulo Afonso Lovera – v. 11, n. 21
191
e falta de verbas por vezes impedem algumas melhorias, mas creio que,
dentro de alguns anos, o CMRJU será um arquivo presente na mente de
qualquer pesquisador interessado na história de Caxias do Sul e região,
tanto pelo potencial de seu acervo quanto pela competência e dedicação de
seus funcionários e coordenadores.
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 183-192, jan./jun. 2012
O Poder Judiciário em Rondônia
The power of legal state of Rondonia
Nilza Menezes*
Resumo: O presente artigo faz algumas
anotações sobre a presença da Justiça em
Rondônia. As fontes utilizadas são os
documentos existentes no acervo da
instituição. Essa memória é marcada
pelas fases da história regional dividida
em três momentos distintos: o da
construção da Estrada de Ferro Madeira
Mamoré; o da criação do território
Federal do Guaporé e o da
transformação do Território no Estado
de Rondônia, criando três períodos
políticos e geograficamente distintos,
que marcam a história do lugar e a
presença da Justiça na região.
Abstract: This article makes some notes
about the presence of Justice in
Rondonia. The sources used are the
documents at the disposal of the
institution. This memory is marked by
the phases of regional history divided
into three distinct stages: the
construction of the Madeira Mamore
Railway, the creation of the territory in
the Federal Guaporé and the
transformation of the territory in the
State of Rondonia, creating three
political periods and geographically
distinct that mark the history of the
place and the presence of Justice in the
region.
Palavras-chave: judiciário; memória;
justiça.
Keywords: judiciary; memory; justice.
Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo/UMESP.
Graduada em História pela Universidade Federal de Rondônia. Especialista em História
do Brasil pela PUC/MG. Coordenadora do Centro de Documentação Histórica do TJRO.
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Gênero e Religião Mandrágora/Netlmal, da PósGraduação em Ciências da Religião da UMESP. E-mail: nilzamenezes@hotmail.com
*
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
193
Introdução
A trajetória do Poder Judiciário no Estado de Rondônia passa a ser
registrada como ocorrida no ano de 1982, com a transformação do Território
Federal de Rondônia, no Estado de Rondônia e a consequente criação do
Poder Judiciário do estado. Anteriormente, conforme estudo já realizado
(MENEZES, 1999), registrou-se a presença da Justiça na região desde o ano
de 1912, com atividades judiciais iniciadas pela instalação da Comarca de
Santo Antônio do Rio Madeira, no dia 8 de agosto, conforme ata. De
1912 até 1981, a presença da Justiça na região foi marcada por transformações
geográficas e políticas. Inicialmente, parte das terras, onde hoje é o estado,
pertencia ao Estado do Mato Grosso, e parte ao Estado do Amazonas. O
Território Federal (1943) foi formado dessas duas porções.
O grande evento do ano de 1982 foi a transformação do Território
Federal de Rondônia em Estado da Federação. Por isso, criou-se também o
Poder Judiciário do Estado de Rondônia. Assim, a partir desse fato, é
como se houvesse o nascimento de um novo tempo, e o passado fosse
composto de lembranças fragmentadas. Equivocadamente, encontramos
referências que parecem nos remeter a outra história, como se os
acontecimentos do período do Território não fizessem parte da história do
mesmo lugar. Porém, é importante assinalar que a documentação produzida
pelas atividades judiciais na região, de 1912 a 1981, permite observar, além
do fazer jurídico, toda a movimentação social e cultural do lugar.
É interessante lembrar o que se encontra anotado em ata de audiência,
do ano de 1937: quando do surgimento do Território Federal de Rondônia,
o Juiz Pedro Alcântara comemorou a liberdade e a possibilidade de um
novo tempo. Também em 1982 esse novo tempo foi comemorado e sonhado.
Há um processo de (re)invenção nos dois momentos, projetados segundo
o anseio da população. A trajetória da presença da Justiça em Rondônia
passou por várias mudanças, sendo marcada pelas transformações políticas
e geográficas. Da instalação da Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira,
pertencente ao Estado do Mato Grosso, no ano de 1912, à transformação
em Justiça dos Territórios Federais, na década de 40 (séc. XX), que vai
juntar um pedaço do Mato Grosso e um do Amazonas e, por fim,
culminando, no presente, com a criação do Poder Judiciário no ano de
1982, as transformações geográficas causaram uma sensação de mudança de
lugar, como se isso transformasse, e como se a trajetória do lugar sofresse
uma interrupção na sua linearidade, inventando-se uma nova história. Isso
ocorre nas décadas de 40 e 80. É como se o lugar não fosse mais “o lugar”.
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Essas transformações geram um problema quando falamos da história
da Justiça de Rondônia. É como se falássemos de três histórias diferentes: a
do Mato Grosso; a do Território Federal; e a do Poder Judiciário de
Rondônia. Em alguns momentos, estamos nos referindo, sim, a realidades
distintas; em outros, estamos falando da mesma coisa sendo modificada. A
história da Justiça em Rondônia é a história da Justiça no Brasil, portanto
fragmentá-la, reinventá-la, somente faz com que ela se apresente com aspecto
de “bolo fatiado”.
Conforme já anotado em Memória Judiciária, nas três primeiras décadas
do século XX, o atendimento judiciário era prestado pelo Estado do Mato
Grosso. As comarcas estavam subordinadas ao Tribunal de relação que ficava
em Cuiabá. Conforme observamos em atas de audiências da Comarca de
Guajará-Mirim, na década de 40 (séc. XX), o então Juiz da Comarca Pedro
Alcântara registrava alguns acontecimentos políticos, dos quais se pode
extrair que havia a ideia de uma população descontente com o atendimento
prestado pelo governo do Mato Grosso para com a região. Assim, a chegada
de Aluísio Ferreira e a criação do Território Federal do Guaporé foram
registradas como conquistas do povo do lugar.
Seguindo a trajetória, o Território foi transformado em Estado e assim
criado o Tribunal de Justiça de Rondônia. Contabilizam-se cem anos de
presença da Justiça na região, mas, em razão das transformações políticas e
geográficas, tivemos vários apagamentos na memória causando períodos de
esquecimento. Fragmentos dos períodos se apresentam na documentação
que dão suporte à criação dessa memória da presença da Justiça. No entanto,
essa presença sofreu cortes políticos e geográficos e se separaram em razão
de a presença da Justiça não existir durante o mesmo período como
instituição.
Anotações sobre a trajetória do Judiciário
A região que encantou e chocou o olhar de muitos viajantes dos séculos
anteriores, também registrada por cronistas e pesquisadores da época
(CRUZ, 1914; NOGUEIRA, 1913), entre o fim do século XIX e o início
do século XX, passou por uma fase de explosão econômica, seguida de um
declínio e estagnação, ocorrendo pequenos picos de crescimento em
decorrência da migração e mineração. Durante esse período, que pode ser
considerado como as quatro primeiras décadas, observa-se a clara presença
do Judiciário na região, desde a sua instalação até o fim dos anos 30 (séc.
XX), quase alcançando a década de 40 (do mesmo século).
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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O Judiciário passou por um período de quase ausência, porém ressurgiu
na década de 60 com visível crescimento, podendo-se dizer que houve um
renascimento entre as décadas de 70 e 80 (séc. XX). Essas afirmações são
feitas com base nos registros dos livros cartoriais de todos esses períodos.
Percebe-se que as atividades judicantes foram decisivas nos primeiros anos,
um pouco tímidas entre os anos 1945 e 1960 e, a partir de 1970, tomou o
rumo que fez formatar o Poder Judiciário, instalado no ano de 1982.
A Justiça está dividida basicamente em três épocas. A primeira fase
teve início com a instalação da Comarca, no dia 8 de agosto de 1912, na
Villa de Santo Antônio do Rio Madeira. A segunda teve o seu início com a
transformação das porções de terras do Mato Grosso e Amazonas em
Território Federal do Guaporé. A terceira fase começou com a criação do
estado e a instalação do Poder Judiciário em 1982. Tais etapas serão analisadas
no decorrer deste trabalho.
Fatos históricos como a construção da ferrovia, a luta pela borracha, a
transformação em Território Federal e a criação do Estado são
acontecimentos que marcaram, de forma decisiva, a história do Judiciário.
A importância da região amazônica, no início do século, foi mostrada pelo
jurista Carvalho em sua obra A nova aplicação do Direito Penal, publicada
em 1914. Ao fazer referência à Casa de Detenção de Manaus, teceu séria
crítica ao sistema penitenciário na Primeira República, evidenciando que a
região oferecia um aparato judicial idêntico ao do resto do País.
As precariedades e dificuldades da região não impediram que Santo
Antônio do Rio Madeira, Guajará-Mirim e Porto Velho, apesar dos períodos
de silêncio, oferecessem aos seus moradores os préstimos da Justiça. O
Judiciário era um dos aparelhos do estado que servia como órgão de disciplina
e controle (FOUCAULT, 1996, p. 153). Esse mesmo estado, em alguns
momentos, tratou a região com profundo descaso. Os desabafos dos juízes,
nas atas de audiência das décadas de 30 e 40 do séc. passado e nas falas
resgatadas através de entrevistas, em períodos mais recentes, dão a dimensão
dos problemas enfrentados, naquele momento, pela falta de juízes no
território, pelas dificuldades de contato com Brasília e, principalmente,
pela precariedade do alcance da própria Justiça. O juiz de Guajará-Mirim,
por exemplo, tinha jurisdição até a cidade de Vilhena, distante,
aproximadamente, 1.000 km, conforme relatos.
Em todas as fases dos acontecimentos, o Judiciário cumpriu o seu
papel de atendimento e controle, seja no primeiro momento de sua criação
em Santo Antônio do Rio Madeira, quando, nos processos, desfilam
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nordestinos, sírios, portugueses, peruanos e bolivianos, ou no segundo
momento, quando era acentuada a presença dos nordestinos, e estabelecida
a presença de sírios no comércio e o afastamento de outros estrangeiros, ou
ainda no processo de preparo do terceiro momento quando as qualificações,
como: caucheiro, seringueiro e seringalista, começaram a ficar ausentes
dando lugar ao funcionário público e ao comerciante.
A instalação do Judiciário está ligada ao auge econômico da borracha,
resultado de ação política, assim como o desinteresse pela região. Esse
desinteresse político resultará na desatenção do estado e na quase desativação
da Justiça. Nesse momento, Guajará-Mirim passou quase dez anos sem
juiz. Esse foi o período em que se percebeu o enfraquecimento do Judiciário,
pois o seu quase desaparecimento em Guajará-Mirim após houve a década
de 30 do séc. citado, e a mantença frágil em Porto Velho.
Coincidem esses acontecimentos com o período em que também ficaram
fechadas as representações políticas locais. As Câmaras Municipais que foram
fechadas com a Revolução de 1930, só voltaram a funcionar em janeiro de
1969, com um decreto-lei do governo federal, na administração do
presidente Costa e Silva. (MATIAS, 1998). A história da Justiça em Rondônia,
pela documentação analisada, acompanha as fases de evolução do Território
até a sua transformação em Estado em 1982, quando o então governador
Jorge Teixeira de Oliveira criou o Tribunal de Justiça e nomeou a primeira
turma de desembargadores, ou seja, com a transformação do Território
Federal em Estado, nasceu a Justiça no Estado de Rondônia.
Os documentos do arquivo do Poder Judiciário e os entrevistados
usam as expressões “criação” ou “reestruturação” da Justiça. Alguns entendem
que o Judiciário foi criado em 1982, como se o passado não existisse.
Outros afirmam que foi reestruturado, pois já existia Justiça no Território,
que teve o seu nascimento no tempo em que as terras do Estado de Rondônia
ainda faziam parte dos Estados do Mato Grosso e Amazonas. Neste trabalho,
usaremos o termo criação, devido ao decreto de criação da Justiça, no entanto,
70 anos de história do Judiciário (1912-1982) não podem ser olvidados,
até porque tanto os processos tiveram continuidade, como parte dos juízes
e Promotores de Justiça do Território foram transferidos para o novo Estado
de rondônia.
Na ata de instalação da Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira,
em 1912, está registrado que o Poder Judiciário, na região, estava vinculado
ao Tribunal de Justiça de Cuiabá, Estado do Mato Grosso. Já a Vila de
Porto Velho, distante apenas 7 km da Villa de Santo Antônio do Rio
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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Madeira, tinha seu atendimento jurisdicional vinculado ao Estado do
Amazonas. É importante assinalar o período em que a justiça esteve vinculada
ao governo do Estado do Mato Grosso. É importante falar da Justiça do
Mato Grosso, porque, no momento da instalação do Judiciário, nessa região,
grande parte das terras que hoje pertencem ao Estado de Rondônia, fazia
parte daquele estado. Por isso elaboramos uma pequena introdução sobre a
história da Justiça no Mato Grosso, a fim de proporcionarmos aos leitores
uma melhor compreensão sobre a trajetória do Judiciário no Estado de
Rondônia.
O Desembargador João Antônio Neto (1985) informa que a Justiça
do Estado do Mato Grosso tem como ponto de partida a ata de fundação
da Vila de Cuiabá, em 1717. (SIQUEIRA, 1990). Registra como primeiro
documento jurídico a ação do General Rodrigo César de Meneses,
governante da Capitania de São Paulo, que, logo após a sua visita à Vila de
Cuiabá, em 1726, extensão daquele, por correspondência enviada ao GuardaMor, Pascoal Moreira, instruiu sobre a arrecadação e exploração das minas
e orientava, também, sobre questões de ordem política e jurídica. (NETO,
1985).
Para o Desembargador Neto (1985) existe certa ambiguidade na
definição do eixo da Justiça no Estado de Mato Grosso, como resultado
das mudanças políticas ocorridas com a transferência da sede do governo,
em 1749, para a Vila Bela da Santíssima Trindade, nas margens do rio
Guaporé. O autor afirma que foi somente em 1758 que a Ouvidoria
transferiu-se para Vila Bela. Foram transferidos, também, todos os Cartórios
de Ouvidoria e Provedoria de Defuntos e Ausentes, ficando em Cuiabá
apenas os Juízes Ordinários. (NETO, 1985, p. 62). Mesmo assim, o autor
conclui que Vila Bela nunca foi o centro de colonização. Sua função, naquele
momento, era apenas de resistência e conquista. Para os governantes, ficar
em Vila Bela era uma espécie de degredo.
As comunicações entre Vila Bela da Santíssima Trindade e o Grão Pará
eram feitas, conforme descreve o historiador Pinto (1998), pela rota dos
rios Madeira e Guaporé. Ainda seguindo os passos das informações do
Desembargador João Antônio Neto, as atividades da Justiça em Cuiabá
foram iniciadas com a instalação da Junta de Desembargo em 1821,
antecessor mais próximo do Tribunal de Relação, criado em 1874, hoje
Tribunal de Justiça.
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 193-208, jan./jun. 2012
Santo Antônio do Rio Madeira
O Município de Santo Antônio do Rio Madeira foi criado pela Lei
494, de 3 de julho de 1908, mas executada apenas em 1912 (NOGUEIRA,
1913, p. 24-27), ano em que foi instalada a comarca. Júlio Nogueira,
viajante do início do século, registra sua história desde 1881, com a instalação
de uma coletoria na Villa de Santo Antônio do Rio Madeira. (p. 23).
Segundo esse autor, a instalação da Comarca ocorreu no dia 2 de julho de
1912 (p. 27), um mês antes da primeira audiência registrada em ata com a
chegada do primeiro juiz à Comarca, no dia 8 de agosto de 1912. A instalação
do Poder Judiciário, na Villa de Santo Antônio do Rio Madeira, em 1912,
demonstra claramente a preocupação das autoridades em manter sob o
controle do estado uma região considerada, na época, de grande importância
econômica para o País. Era oferecido um atendimento jurisdicional às
pessoas, com a presença de juiz, Promotor de Justiça e advogados. Todo o
aparato estadual na região era mantido.
O primeiro juiz (João Chacon) foi quem procedeu à instalação da
Comarca na Villa de Santo Antônio do Rio Madeira, com a presença das
autoridades municipais. O Judiciário funcionava na sala da Intendência
Municipal (administração), e todos os livros cartoriais, cíveis e criminais,
assim como os livros do Cartório de Notas e Registro Civil e Eleitoral
pertenciam a José Cassimiro Bayma, que, durante muitos anos exerceu o
cargo de escrivão e escrevente, sendo em poucas oportunidades substituído.
Observa-se pelos livros que os cartórios mudavam constantemente de
endereço.
A farta documentação mostra que, em Santo Antônio do Rio Madeira
e Guajará-Mirim, assim como nas demais localidades ao longo da ferrovia,
existia atendimento judiciário. Não podemos avaliar o alcance exato desse
atendimento, mas os crimes cometidos nos seringais próximos de Fortaleza
do Abunã, localidade pertencente a Porto Velho, ou em Generoso Ponce,
pertencente o Mato Grosso, eram apurados com rapidez. Os inquéritos
eram formados em cinco dias e encaminhados às Comarcas.
Sobre esse primeiro momento, existe pouca documentação que seja
referente à Comarca de Porto Velho que pertencia ao Amazonas. Santo
Antônio do Rio Madeira e Guajará-Mirim, que pertenciam ao Estado do
Mato Grosso, mantiveram um notável acervo de processos, que guarda a
história da Justiça desde o ano de 1912. São exemplares raros que revelam
como eram os procedimentos judiciais e mostram o perfil da população. As
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fases históricas do Judiciário também servem para mostrar as características
da população que habitava a região.
A Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira estendia sua jurisdição
por todo o trecho da ferrovia e adentrava os seringais. Cada localidade
tinha um subdelegado. Considerando a situação da região e o período, a
comarca recebia a comunicação de crimes com rapidez. Como já
referenciado, há exemplos de crimes cometidos nas localidades de Generoso
Ponce (Jacy Paraná), Presidente Marques (Abunã) e Esperidião Marques
(Guajará-Mirim) que, cinco dias, a Comarca já tinha em seu poder a
documentação necessária para autuação do processo.
Localidades pertencentes à Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira,
como Abunã e Jacy Paraná, são ainda hoje conhecidas na região. São
comunidades localizadas no caminho de Porto Velho/Guajará-Mirim. A
povoação de Generoso Ponce, de onde vinha grande número de processos,
localizava-se nas margens da ferrovia e era chamada de povoado ou distrito.
Generoso Ponce, hoje Jacy Paraná e Presidente Marques, hoje Abunã,
eram constantemente citadas nos processos. Havia atendimento judiciário
em todas as localidades ao longo da ferrovia. Em atas da Justiça Eleitoral,
encontramos a designação de sessões para essas localidades, assim como a
designação de subdelegados e Juízes de Paz.
Os processos eram instaurados na Vila de Porto Velho, porém, em
alguns casos, as sentenças eram proferidas em Humaitá. Isso ocorria em
Porto Velho e também na Vila de Santo Antônio do Rio Madeira, porque
muitos juízes não eram togados, e sim, nomeados como suplentes, na
maioria leigos, escolhidos entre os moradores ilustres da cidade, sendo
bastante comum a observação da patente de Major antes do nome. A função
de Juiz Suplente existiu em Guajará-Mirim até a década de 50 (séc. XX),
mas não foi tão evidente em Porto Velho, até mesmo em razão da falta de
documentos. Porto Velho, em decorrência de ter sido, em alguns momentos
da história, o Termo de Humaitá, contou com a figura do Juiz Municipal
que também exercia o cargo por intermédio de nomeação, podendo-se
fazer uma comparação com os juízes temporários no período do Território.
As cidades de Porto Velho e Villa de Santo Antônio do Rio Madeira,
embora pertencendo a estados diferentes, eram próximas. Essa proximidade
explica a presença de pessoas influentes, na época, em atas e documentos de
ambas as cidades. O Dr. Martinho Pinto, por exemplo, que foi Juiz
Municipal em Porto Velho, de 1916 a 1919, aparece como advogado em
processos da Comarca de Santo Antônio. O médico Joaquim Tanajura, em
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1912, foi prefeito de Santo Antônio e também exerceu cargos em Porto
Velho.
Nos livros dos atos da Justiça no período de 1914 a 1930, a população
de Santo Antônio e depois a de Guajará-Mirim (1930 a 1970), se mostra
com pele mais clara. Os seringueiros, os trabalhadores na ferrovia, os
funcionários públicos, os aventureiros, os comerciantes, as mulheres e tudo
quanto envolvia a vida dessas pessoas aparecem na forma do cotidiano de
sua vida. Em Porto Velho, ocorreu certo turbamento, uma vez que a
ingerência, ou o controle exercido pela ferrovia, impedia a ação livre da
Justiça.
Com a mudança da Comarca de Santo Antônio para Guajará-Mirim,
a formação do Território, que no primeiro momento foi motivo de euforia,
aos poucos vai se esmaecendo, ficando a população em total abandono. O
“braço” da Justiça, cuja finalidade era vigiar e punir (FOUCAULT, 1996)
continuou oferecendo o atendimento necessário.
Pontuações sobre a documentação
De 1912 a 1970, a população era formada, na sua maioria, por
nordestinos. Essa observação é feita por intermédio das qualificações das
partes e testemunhas cujas origens desfilam pelos processos, dando mostra
da característica do povo. O Rio Grande do Norte, aos olhos da
documentação judiciária, foi o estado que ofereceu o maior número de
trabalhadores para os seringais de Porto Velho e Guajará-Mirim, seguido
pelos Estados do Ceará, Piauí, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Pará e
Maranhão. Eram poucos os amazonenses, acreanos, assim como os
estrangeiros: sírios, portugueses, espanhóis, peruanos e bolivianos,
registrados nos processos. A predominância nordestina, sem dúvida, foi
fator importante no resultado das características do povo, de uma região, e
isso deve ser melhor analisado em trabalhos temáticos.
A predominância de nordestinos na região se refletiu também nos
magistrados. O Juiz José Júlio de Freitas Coutinho judicou na Comarca de
Santo Antônio do Rio Madeira, no período de 1915 a 1922. Era originário
do Estado de Pernambuco e formado pela Universidade do Recife. José de
Melo e Silva, juiz das Comarcas de Guajará-Mirim e de Porto Velho, no
período em que era Território, era cearense. Essa característica vai aparecer
até mesmo quando da formação da nova Justiça em 1982. Três dos sete
primeiros desembargadores eram de origem nordestina. Hoje, tais
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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características, tanto no Judiciário, quanto no estado apresentam-se
modificadas com a presença de pessoas naturais dos Estados do Sul e Sudeste,
ocasionado pela migração incentivada a partir da década de 60 (séc. XX),
chegando-se aos anos 80, com a região totalmente modificada culturalmente.
As qualificações dos réus, testemunhas e usuários dos serviços judiciários
demonstram que, no período de 1912 até meados do século XX, os
trabalhadores originários do Rio Grande do Norte eram a maioria nas
Comarcas de Santo Antônio e Porto Velho. Isso não significa afirmar que a
maioria dos migrantes nordestinos era do Rio Grande do Norte, mas que
havia maior concentração deles nas localidades atendidas pelo Judiciário ao
longo da ferrovia entre Santo Antônio e Guajará-Mirim.
Cabe aqui uma observação quanto a essas afirmações. Em
recenseamento realizado pela Superintendência de Porto Velho, publicado
no jornal Alto Madeira, de 27 de setembro de 1917, abrangendo o centro
da vila e as margens do rio Madeira, a população de Porto Velho somava
1.133 brasileiros e 712 estrangeiros. Na identificação por naturalidade, o
Estado do Amazonas tinha 278, o Ceará, 205, e o Rio Grande do Norte
vinha em terceiro lugar, com 119 migrantes. A esses, seguiam-se os Estados:
Pará, Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Piauí, Bahia, Sergipe, Mato
Grosso, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito Santo.
Como vemos pelo senso, o Estado do Ceará estava à frente do Rio
Grande do Norte, com considerável diferença. Contudo, como aqui temos
por objetivo mostrar a documentação do Poder Judiciário, nela a presença
dos naturais do Rio Grande do Norte é marcante.
A presença nordestina em todos os momentos é sempre lembrada em
trabalhos que abordam questões culturais. João de Jesus Paes Loureiro
comenta essa característica, frisando o isolamento dessas regiões em relação
ao resto do País até meados do século XX, o que nos dá suporte para
afirmar a influência dos nordestinos, que, durante o auge do ciclo da
borracha, embarcaram para a Amazônia (em número aproximado de
quinhentos mil indivíduos), muitos dos quais retornaram após a crise da
borracha, enquanto outra parte permaneceu na região e se integrou a ela.
Edgar Carone, em A Primeira República, fala sobre a vinda dos
nordestinos para essa região e a presença dos originários do Rio Grande do
Norte.
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A grande seca de 1877 obrigou a emigrarem do Ceará milhares
de pessoas que se dirigiam para o Pará e Amazonas; depois dessa
época, a afluência de emigrantes daquele Estado, do Rio Grande
do Norte foi extraordinária; e estes, pouco a pouco, foram
substituindo os tapuios, nas mesmas precárias condições. (1988,
p. 134).
Essa forte característica nordestina, no fim do século XIX, se estendeu
até meados do século XX. Samuel Benchimol, ao comentar o movimento
migratório da década de 40 (séc. passado), ressalta também a presença de
originários de outros estados na região, muito embora a presença do cearense
seja marcante no Amazonas.
O movimento migrantista da Batalha da Borracha, que se
desenvolveu no decorrer dos anos de 1941, 1942 e início de 1943,
à moda tradicional, com os flagelados e retirantes nordestinos
tangidos pela seca e/ou atraídos pela seringa, em busca da
Amazônica e de seus altos rios, iria adquirir um novo colorido,
com a chegada, a partir de 1943 e durante os anos de 44/45, de
novos contingentes humanos. Não apenas “cearenses” e
nordestinos, mas também oriundos das mais diversas regiões do
país: cariocas, paulistas, fluminenses, capixabas, mineiros, goianos,
matogrossenses, de todas as classes e profissões. Geralmente
provinham das grandes e médias cidades do Rio, São Paulo, Niterói,
Vitória, Salvador, Recife e Fortaleza. (1992, p. 188).
Ainda comentando as observações feitas por Benchimol quanto às
características desses migrantes, tem-se que
o nordestino vem com a família, fugindo da seca, expulso do sertão,
em busca da sobrevivência. Vinham pensando em voltar, mas isso
nem sempre acontecia. Os migrantes provenientes de centros
urbanos normalmente eram solteiros e vinham no sabor da
aventura. (1992, p. 189).
Benchimol refere-se ao Estado do Amazonas, daí a conclusão de que
muitos desses migrantes conseguiram retornar aolocal de origem, mas outros,
desiludidos e envergonhados pela pobreza, preferiram ficar e rumaram para
cidades, como: Rio Branco, Porto Velho, Manaus, Santarém e Belém. Nessas
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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cidades, afavelaram-se em pequenos vilarejos e cidades do interior para
recomeçarem a luta pela vida.
Nos processos judiciais arquivados, observamos a concentração de
migrantes de um mesmo estado. Nos processos criminais, e até mesmo em
algumas ações cíveis, havia uma predominância de naturais do mesmo estado
nos episódios. Por exemplo, no caso de um crime em que o réu fosse do
Estado da Paraíba, as testemunhas também eram, em sua maioria, paraibanas,
ocorrendo o mesmo com árabes, bolivianos, peruanos, portugueses e outros.
Esse corporativismo ocorria porque os trabalhadores eram trazidos
em levas. Assim, grupos de trabalhadores arregimentados no Ceará, por
um seringalista ou por seu preposto, eram colocados no mesmo seringal
para executar o trabalho ou divididos em grupos menores. Mesmo assim,
permaneciam agrupados por sentimentalismo e defesa.
Através da prestação de serviço jurisdicional, aparecem claramente as
características da população e os seus problemas sociais. O primeiro momento
da Justiça, quando desfilam pelos processos seringueiros, comerciantes e
prostitutas, é reflexo da realidade econômica, ou seja, a região oferecia
ocupação para esse tipo de mão de obra. Nos povoados, se aglomeravam
comerciantes e prostitutas, oferecendo as mercadorias necessárias para aquele
momento. No processo de arrolamento de um comerciante falecido em
1919, encontramos relacionadas as seguintes mercadorias: leques, fazendas,
perfumes para damas; cortes de brim, facas e munição para homens.
Quando falamos em prostitutas, não estamos nos referindo
genericamente a todas as mulheres da região. Elas aparecem com mais
frequência nas qualificações dos inquéritos e processos porque, em função
da profissão, acabavam envolvidas em incidentes com bebida, brigas e crimes
e, por essa razão, eram alcançadas pelo “braço” da Justiça. Outra leitura que
alguns processos possibilitam é que as prostitutas, dentro do espaço
controlado pelo estado, eram protegidas e tinham seus direitos respeitados.
Podemos dizer que, naquele momento, elas deixaram de ser uma classe
excluída economicamente, permanecendo apenas na exclusão moral. Eram
úteis, pois ajudavam no controle da massa trabalhadora, que era
essencialmente masculina.
As mulheres aparecem também, em especial, na Comarca de Santo
Antônio, nos livros que registram os casamentos de 1916 a 1919. O perfil
dos homens e mulheres que contraíam matrimônio era definido pela classe
social. Os sírios, normalmente, casavam-se com mulheres da mesma origem.
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Já os portugueses casavam-se com moças jovens da região. Moças com
idade entre 14 e 18 anos que se uniam com portugueses muito mais velhos
– entre 30 e 50 anos. Essa característica também ocorreu na Comarca de
Humaitá. Os seringueiros nordestinos uniam-se em casamento com moças
de idade equivalente, ou seja, um rapaz de 20 anos casava-se com uma
moça entre os 18 e 20; um rapaz de 30 anos casava-se com moça entre os
25 e 30 anos, dentro do que podemos chamar de uniões convencionais.
Uma característica que chama a atenção nas cerimônias de casamento
dos portugueses e árabes é o grande número de pessoas da sociedade que
assinavam como testemunhas. Isso, certamente, dava ao ato maior relevância
e comprovava o prestígio do noivo. No mesmo período, conforme os livros
de registro, a Comarca de Humaitá, com algumas distinções nos hábitos,
mantinha uma linha de conduta parecida. Os portugueses contraíam
matrimônio, na maior parte dos casos, com mulheres amazonenses mais
jovens. Os árabes, praticamente, não eram percebidos na região entre Porto
Velho e Humaitá. O destaque fica com os originários do Estado do Ceará
que compunham a grande massa dos habitantes das localidades. A tradição
de casamentos com pessoas da mesma origem era quebrada apenas pelos
portugueses.
A grande miscigenação que houve no interior dos seringais foi
consequência da infinidade de filhos nascidos de europeus e nordestinos
com as mulheres nativas. É de conhecimento popular esse processo de
miscigenação, porém, a documentação do Judiciário criou barreiras sobre
tais observações. Os documentos nos permitem avaliar acontecimentos
regulares, como casamentos com preferências entre idênticos e,
consequentemente, o registro de nascimentos dos filhos dessas uniões.
Há curiosidades, e não há como não observar a grande quantidade de
crianças registradas, no mesmo dia, por um cidadão, no papel de declarante.
Nesses registros constava o nome apenas da mãe, acrescido de dados como:
“Nascido no seringal onde o declarante reside.” Outro hábito comum
encontrado na documentação era o de descrever as características das crianças
de forma a destacar questões raciais dos mesmos. Em uma certidão datada
de 1932, feita na localidade do Lago Cuniã – Termo de Humaitá –, as
observações são: cor morena, cabelos crespos, cachos pretos, rosto redondo,
nariz chato, boca regular. Ainda consta na certidão, além do nome da mãe,
a descrição dos avós maternos como originários do Ceará e já falecidos.
Nos registros de uma criança, filha de pai português e mãe amazonense,
as características são rosto fino e nariz aquilino, ou seja, branca. Essas
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
205
informações são comuns nas certidões de nascimento do período. Em outra
certidão, cujo registrando já era pessoa adulta, efetuada na localidade de
Bom Fim, além das descrições já mencionadas, foi informado que o mesmo
não possuía os dentes superiores.
Existem diversos casos de o próprio marido ser o declarante da certidão
de nascimento da esposa. Após o registro dessa, o esposo comparecia em
cartório para registrar os filhos do casal. Há casos em que, na mesma data
do registro da esposa, o pai declarou o nascimento de quatro filhos,
demonstrando, com isso, a dificuldade de acesso e locomoção. Muitas
mulheres nascidas no começo do século, por exemplo, em 1907, no Estado
do Maranhão, só foram registradas na década de 30 do séc. findo. Segundo
a memória popular, os cartorários colocavam os livros nos barcos e saíam
pelos rios fazendo certidões de nascimento em troca de porco, galinha e
borracha. E, assim, quando o cartorário aparecia, os moradores da localidade
aproveitavam para registrar todos os filhos de uma só vez.
Na localidade de Primavera, jurisdição de Humaitá, em um dos livros
utilizados de 1907 a 1914, das 41 certidões de nascimento registradas, 29
eram do sexo masculino, e apenas 12 do sexo feminino. Esse dado também
pode ser observado em outros livros. Em determinados momentos, o registro
de crianças do sexo masculino é notadamente maior que o do sexo feminino.
Isso mostra a pouca importância dada às mulheres naquele momento, pois
que só eram registradas quando do casamento, em razão do registro dos
filhos, e cuja relevância, pode-se dizer, decorria da importância cívica e
econômica para os homens da época. Era comum a mulher ser registrada,
apenas, na hora do casamento ou pelo marido por razão do registro dos
filhos.
Voltando à questão cultural na região, quanto à observação de ter sido
a nacionalização da ferrovia um marco importante de acordo com a
documentação do Judiciário, chega-se ao seguinte raciocínio: a nacionalização
ocorreu em 1931. Nesse período, o Judiciário transfere a sede da Comarca
de Santo Antônio para Guajará-Mirim não sendo percebida, de imediato,
nenhuma mudança. Apenas a sede é transferida. Em nenhum momento
alterações culturais profundas são percebidas; são apenas mudanças políticas.
A população também permanece inalterada quanto às origens e costumes.
O fato de a ferrovia, antes da nacionalização, ser uma empresa estrangeira
com trabalhadores de diversas partes do mundo, reflete apenas o momento
político e econômico, pois, após a nacionalização, ainda continuaram a
chegar trabalhadores de diversos estados do Nordeste.
206
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 193-208, jan./jun. 2012
Com exceção dos árabes e dos portugueses, nenhum migrante de outra
nacionalidade permitiu a mistura de cultura com os nordestinos ou regionais,
pois formavam, aqui, comunidades isoladas. O povo caribenho, naquela
época maioria, resumido hoje a algumas famílias, vivia segregado e não
deixaram para a região nenhum legado cultural. Hoje não se realiza, na
cidade de Porto Velho, qualquer manifestação cultural de influência caribenha.
No Judiciário, a presença desse povo é mais notada a partir do ano de
1960, em processos da área cível.
A mudança cultural de um povo ou de uma região só pode ser percebida
em caso de mudança na grande massa populacional. Não foi o que ocorreu,
naquele momento, em Porto Velho ou em Guajará-Mirim. As imagens
apresentadas nas qualificações, nos registros de nascimento, casamento e
óbito eram as mesmas de 1891, em Humaitá.
Com algumas particularidades, as características de Santo Antônio
também seguiram o mesmo curso, ocorrendo o mesmo em Porto Velho e
Guajará-Mirim. Houve uma acomodação cultural na região, um processo
que já vinha sendo desenvolvido. Porto Velho, por ser a sede da ferrovia,
apresentou, nas três primeiras décadas, algumas diferenciações, mas que
não extrapolaram o pátio da empresa.
Thiéblot (1977) em Rondônia: um folclore de luta, comenta que a
pobreza na região é herança da servidão que os habitantes acumularam, em
decorrência do quadro da estratificação social do período de exploração da
goma. Segundo o autor, tais características só sofreram mudanças, a partir
de 1971, com a chegada das Companhias Mineradoras que provocaram
mudanças na forma de organização funcional. Porém, se observa que essas
empresas dependiam da arregimentação de trabalhadores braçais, coordenados
pela figura do “gato”, assim mantendo a situação de dependência e submissão.
Conforme frisa Loureiro (1995) Rondônia, até a década de 70 do
mencionado século, assim como parte da Amazônia, viveu isolada do resto
do País e mesmo da América Latina. Isso fez com que grande parte da
massa de trabalhadores nordestinos, embarcados para a região, nos ciclos
da borracha, fosse integrada à região, o que nos leva a considerar que até
essa década, podemos considerar a população do Território Federal de
Rondônia como uma população de maioria nordestina. A presença do
caribenho era segregada e a do árabe elitizada. Os demais grupos, minorias
ou não, eram excluídos.
No Estado de Rondônia, como colocado por João de Jesus Paes Loureiro
(1995), a cultura regional vai estar totalmente comprometida desde os
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
207
anos 60. Nesse momento, a região passou do pensamento mítico para um
pensamento racional, perdendo toda sua característica estetizadora e
amazônica. Essas colocações reforçam nossas observações sobre os caminhos
percorridos pela Justiça na região e nos dão suporte para afirmar que esses
períodos de profundas mudanças políticas, decorrentes do processo
econômico, causaram mudanças sociais decisivas.
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Batalha da Borracha. Manaus: Imprensa
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Company: considerações gerais sobre as
208
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 193-208, jan./jun. 2012
Condenados à força: a escravidão e
os processos judiciais no Brasil
Sentenced to be hanged: slavery and legal proceedings in Brazil
Olgário Paulo Vogt*
Roberto Radünz**
Resumo: A escravidão no Brasil foi uma
instituição garantida pelas bases legais,
tanto no período colonial, pelas
Ordenações Portuguesas, como no
período imperial, com a promulgação do
Código Criminal e todo o arsenal
jurídico em torno do tema. A condenação
de escravos à forca ocorria em situaçãolimite, via de regra, quando os cativos
rebelados atentavam contra a vida de seus
senhores, capatazes ou feitores. Este artigo
tem por objetivo analisar dois ritos
processuais: o primeiro que condenou à
morte natural para sempre na forca os
cativos Rodolpho e Leopoldo em 1828,
e o segundo, que levou ao patíbulo, em
1850, o preto Ricardo. Ambos os
processos referem-se a condenações
ocorridas na Província de São Pedro do
Rio Grande do Sul. Metodologicamente,
esses processos precisam ser analisados
considerando os devidos contextos
jurídicos. O primeiro, de 1828, refletiu
Abstract: Slavery in Brazil was an
institution which was guaranteed by the
legal bases both in the colonial period,
the Portuguese Orders as in the Imperial
period with the enactment of the
Criminal Code and all legal process
around the theme. The convictions of
slaves to be hanged occurred in an extreme
situation, usually when the captured rebels
threatened their Sirs, foremen or overseers
lives. This article aims to analyze two
procedural rites: the first who condemned
to natural death forever by hanging the
captives Leopoldo and Rodolpho in 1828
and the second, which led to the gallows
in 1850, the “black” Ricardo. Both cases
are related to convictions that occurred
in the province of São Pedro do Rio
Grande do Sul. These lawsuits must be
analyzed methodologically considering
the appropriate legal contexts. The first,
in 1828, strongly reflected the Philippines
Orders. The second, in 1850, was based
Professor na Universidade de Santa Cruz do Sul. Doutor em Desenvolvimento Regional
pela Unisc. E-mail: olgario@unisc.br.
**
Professor na Universidade de Caxias do Sul (UCS) e Universidade de Santa Cruz do Sul
(Unisc). Doutor em História pela PUCRS. E-mail: rradunz@ucs.br.
*
MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21
209
fortemente as Ordenações Filipinas. O
segundo, de 1850, embasou-se nos
dispositivos do Código de Processo
Criminal de 1832 e na Lei de 10 de junho
de 1835. Rodolpho, Leopoldo e Ricardo,
negros com nomes de brancos, foram
condenados e executados à pena capital.
Suas condenações tiveram caráter
pedagógico com vistas a reafirmar a ordem
e o estatuto escravista.
on the provisions of the Code of
Criminal Procedure from 1832 and the
law of June 10, 1835. Rodolpho,
Leopoldo and Ricardo, black men with
white men names, were sentenced to
death. Their convictions had a pedagogical
character to state the order and slavery
status.
Palavras-chave: escravidão; ritos
processuais; enforcamento; acervos.
Keywords: slavery; procedural rites;
hanging; collections.
A escravidão no Brasil foi uma instituição garantida por bases legais,
tanto no período colonial, pelas Ordenações Portuguesas, como no período
imperial, com a promulgação do Código Criminal e de todo o arcabouço
jurídico que dele decorreu. A condenação de escravos à forca ocorria em
situação-limite, via de regra, quando os cativos rebelados atentavam contra
a vida de seus senhores, capatazes ou feitores.
Este artigo tem por objetivo analisar dois ritos processuais: o primeiro
que condenou à morte natural para sempre na forca os cativos Rodolpho e
Leopoldo, em 1828; o segundo, que levou ao patíbulo, em 1850, o preto
Ricardo. Ambos os processos referem-se a condenações ocorridas na Província
de São Pedro do Rio Grande do Sul. Metodologicamente, esses processos
precisam ser analisados considerando os devidos contextos jurídicos. O
primeiro, de 1828, refletiu ainda aspectos das Ordenações Filipinas. O
segundo, de 1850, embasou-se nos dispositivos do Código de Processo
Criminal em 1832 e a sua modificação de 1841 e na Lei de 10 de junho de
1835. Rodolpho, Leopoldo e Ricardo, negros com nome de brancos, foram
condenados e executados à pena capital. Suas condenações tiveram caráter
pedagógico com vistas a reafirmar a ordem e o estatuto escravista.
Os processos-crime e a legislação como fonte para pesquisa
histórica
Há décadas a escravidão tem sido objeto de pesquisas de historiadores.
O tema que envolve trabalhadores cativos se converteu em um dos mais
dinâmicos da produção científica historiográfica do País. Apesar disso,
210
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012
muitos questionamentos que envolvem a escravatura continuam aguardando
respostas. Isso se deve, em larga medida, ao fato de os historiadores do
tema estarem condenados a compulsar não exatamente as fontes que desejam,
mas aquelas que conseguem encontrar nos arquivos. (REIS; SILVA, 1989, p.
14). As fontes históricas são constituídas por uma série de registros da
atividade humana das quais o pesquisador se vale para estudar o passado.
Na elaboração do presente texto, foram duas as fontes documentais
básicas utilizadas. Uma dessas fontes foram os processos criminais que
culminaram na condenação, à forca, dos escravos Rodolpho, Leopoldo e
Ricardo. A outra base empírica foi a legislação penal e processual que vigorou
no Brasil, até meados do século XIX.
Os processos criminais encontram-se no acervo do Arquivo Público
do Estado do Rio Grande do Sul (Apers). São fontes primárias que permitem
ao pesquisador entrar em contato com vestígios, pistas e práticas sociais de
pessoas comuns, de populares ou, no caso, com os trabalhadores feitorizados.
Nessa tipologia documental judicial, os cativos aparecem desempenhando
o papel de réus, de ofendidos ou de informantes. (MOREIRA, 2010, p. 18).
Dados como nome (raramente um escravo aparece com sobrenome),
procedência, idade (via de regra não precisa), profissão, estado civil, nome
do proprietário e se sabia ler e escrever, normalmente aparecem nos autos
dos processos. Em alguns casos, contém também valiosas informações
relativas ao cotidiano e a valores sociais de uma determinada época. Nesse
sentido, trata-se de fonte de inestimável importância para o pesquisador
decifrar aspectos da vida dos trabalhadores cativos, ou seja, “de onde vinham,
para onde iam, o que faziam, o que pensavam acerca do seu dia a dia”.
(SILVA, 2004, p. 47).
Ao se trabalhar com processos-crime, o pesquisador deve ter consciência
de que a fonte documental que maneja é oriunda, na realidade, de
depoimentos orais, e de que há notáveis diferenças entre língua falada e
língua escrita. Na transposição do oral para o escrito, as palavras podem ter
variado de forma e de conteúdo. Assim, na passagem do oral para o escrito
“não se opera uma simples transcrição” (MEIHY; HOLANDA, 2007, p134);
na realidade, há uma recriação dos discursos dos personagens envolvidos,
aparentemente para “comunicar melhor o sentido e a intenção do que foi
registrado”. (MEIHY; HOLANDA, 2007, p. 136). Assim, as falas existentes
nos processos devem ter sido filtradas e modificadas quando da transcrição
dos depoimentos. Os escrivães, influenciados pelos valores da época, deixam
o registro carregado de subjetividade. O filtro do juiz e/ou do escrivão
MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21
211
pode ter contaminado parcialmente o relato. Assim, parafraseando Carlo
Ginsburg (2006, p. 13), pode-se afirmar que essa fonte documental é
duplamente indireta: por ser escrita “e, em geral, de autoria de indivíduos,
uns mais outros menos, abertamente ligados à cultura dominante”.
Mas há outros fatos que devem ser levados em consideração pelo
historiador. Um deles é que o documento com o qual tem contato não
reproduz o cenário, a atmosfera de tensão ou de constrangimentos em que
os depoimentos efetivamente foram colhidos. Outro deles é que há coisas
que são indizíveis e que, portanto, não aparecem na letra fria do papel
compulsado. Dizem respeito à reação dos envolvidos que envolvem gestos,
emoções e silêncios, ou seja, a gesticulação, a alteração do timbre de voz, o
choro, o olhar aterrorizado de testemunhas, informantes, réus, acusadores
e defensores não são registrados.
Não obstante essas e outras tantas limitações que essa tipologia de
fonte documental apresenta, ainda assim ela é, possivelmente, aquela que
mais aproxima o pesquisador do mundo dos escravizados por fornecer
abundantes e ricas informações sobre o cotidiano dos cativos. (GUIMARÃES,
2001, p. 78, 101). E como afirma Ginzburg (2006, p. 5), “não é preciso
exagerar quando se fala em filtros e intermediários deformadores. O fato de
uma fonte não ser ‘objetiva’ (mas nem mesmo um inventário é ‘objetivo’)
não significa que seja inutilizável”. Arlete Farge (1999, p. 77), ao comentar
sobre a pesquisa com manuscritos existentes em arquivos policiais do século
XVIII – onde se encontram processos, inquéritos, interrogatórios,
testemunhos, acareações e outros – para permitir o acesso à palavra dos
desfavorecidos que não deixaram escritos, reafirma a validade dessa fonte
documental.
Portanto, os processos-crime se constituem em uma preciosa fonte
documental da qual o historiador pode se valer para travar contato com
culturas populares do passado. Entre essas culturas populares se incluem os
escravos africanos que, por quase quatro séculos, se constituíram na principal
força de trabalho do Brasil.
A outra fonte documental básica utilizada neste texto foi a legislação
penal e processual, que vigorou no Brasil durante o Império. Os instrumentos
legais são importante matéria-prima para a análise dos valores e da cultura
de uma determinada sociedade. Os códigos criminais definem os atos que a
sociedade julgava proibidos ou criminosos, passíveis de penalidade. Já o
código processual e outras leis complementares normatizam a forma como
os crimes eram investigados e julgados. O estudo de processos criminais
212
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012
exige do pesquisador o conhecimento da legislação em vigor em determinado
período. (GRINBERG, 2009).
Dentre a legislação consultada estão o Livro V das Ordenações Filipinas;
o Código Criminal do Império, de 1830; o Código de Processo Criminal,
de 1832 e sua respectiva alteração, ocorrida em 1841; e a Lei de 10 de
junho de 1835. Embora em 1822 o Brasil tivesse proclamado sua
independência política de Portugal, não se extinguiram, em uma única
tacada, as Ordenações, Leis, Regimentos, Alvarás, Decretos e Resoluções
promulgados ao longo do tempo pelos reis portugueses. Todo o arcabouço
jurídico de Portugal permaneceria em vigor, na parte em que não tivesse
sido revogado, para regular os negócios do interior do Império e enquanto
não se organizasse um novo código ou enquanto a legislação não fosse
derrogada. (NEQUETE, 2000, p. 37).
O caso dos cativos Rodolpho e Leopoldo
Em 15 de maio de 1829, os réus Rodolpho e Leopoldo, escravos do
Capitão Manoel Velloso Rebello, foram conduzidos, com baraço e pregão,
pelas ruas públicas de Porto Alegre e, no local onde havia a forca, sofreram
morte natural para sempre. A Junta de Justiça, único tribunal criminal
então existente na província, condenou-os, fundamentada nas Ordenações
Filipinas, por terem assassinado José Joaquim Mariano, capataz da fazenda
do dito Rebello.
A crer na devassa feita pelo juiz de fora,1 sargento-mor José Joaquim
de Figueiredo Neves, o episódio que deu origem à condenação ocorreu em
dia não especificado do mês de maio de 1828, no Município de Rio Pardo,
na Estância das Pederneiras, de propriedade do Capitão Manuel Velloso
Rebello. Sob a supervisão do capataz, na mangueira do porto da Fazenda
das Pederneiras, parava-se rodeio para marcar terneiros. Por terem deixado
umas vacas no campo e por não tê-las marcado, o capataz José Joaquim
Mariano ordenou ao preto Rodolpho que desse uns laçaços nos escravos
Caetano e Joaquim. Depois de já ter batido em Caetano e enquanto aplicava
a penalidade em Joaquim, o capataz ordenou ao escravo Rodolpho que
batesse com mais força. De pronto, Rodolpho retrucou: “Viesse ele dar
senão chegava da forma em que elle estava dando.” E largando o laço
“precohou por uma facca elhe deu uma facada na boca do estomago, com a
qual cahio o dito capataz, e logo o preto Leopoldo correu a huma cerca e
tirou hum páo com o qual deu uma porretada na cabeça do mesmo capatas
MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21
213
que ainda estava vivo, com a qual logo morreu”. Depois de cometido o
delito, Rodolpho ordenou aos pretos Jerônimo e Theodoro que lançassem
o cadáver do capataz no arroio Iruy com a roupa que tinha, esporas nos
pés, arreios do cavalo e espada na cinta, não lhe tirando coisa alguma.
Fizeram isso para se livrarem do corpo e para que não parecesse que mataram
para roubar.
Esse episódico ocorreu quando o Capitão Manoel Velloso Rebello
encontrava-se na cidade de Porto Alegre, “respondendo a hum Conselho de
Guerra”. A denúncia do crime e o auto de corpo de delito ocorreram somente
a partir do dia 7 de agosto de 1828, portanto, depois de passados de dois a
três meses do fato verificado. Qual foi a razão dessa demora? Teria se dado
somente devido à ausência do proprietário? Além do capataz morto, havia
outros prepostos do Capitão Manuel Velloso Rebello na Fazenda das
Pederneiras? Essas são questões que ficam em aberto e sobre as quais se
pode apenas conjecturar, uma vez que os processos silenciam a respeito.
O auto indireto de corpo de delito foi realizado pelo Juiz de Paz,
Tenente Vasco Pereira de Macedo. Foram ouvidas, na sua casa, na Vila de
Rio Pardo, “como testemunhas na inquisição”, seis pessoas. Afirmaram ter
visto o cadáver do capataz Mariano que apresentava uma “faiada ou ferida
no lado esquerdo que mostrava ter feita por faca de ponta, em frente da
cabessa outra ferida feita a força de grande porrada de porrete” os seguintes
escravos, todos eles pertencentes ao Capitão Rebello: João de Sá, pardo,
solteiro, alfaiate, 28 anos; João Maia, da Nação Mina, solteiro, ferreiro, 20
anos mais ou menos; Theodoro, da Nação Congo, campeiro, 24 anos para
mais ou menos. Desses, apenas Theodoro foi enfático ao afirmar que o
cadáver fora lançado no arroio Iruy. As demais testemunhas, Ignacio Joze
de Carvalho, Joze Velloso Rebello, Antonio de Macedo, todos brancos,
casados e moradores da Vila de Rio Pardo, disseram o que ouviram falar de
alguns escravos do Capitão Rebello sobre o homicídio.
Aos juízes de paz, de acordo com o artigo 5º da Lei de 15 de outubro
de 1827, que mandava criar em cada uma das freguesias e das capelas curadas
um Juiz de Paz e um suplente, dentre uma série de atribuições administrativas,
judiciais e policiais, competia:
§ 7º. Fazer auto de corpo de delicto nos casos, e pelo modo
marcados na lei.
§ 8º. Sendo indicado o delinquente, fazer conduzil-o a sua
presença para interrogal-o à vista dos factos existentes, e das
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012
testemunhas, mandando escrever o resultado do interrogatorio. E
provado com evidencia quem seja o delinquente, fazer prendel-o
na conformidade da lei, remettendo-o immediatamente com o
interrogatorio ao Juiz Criminal respectivo. (COLEÇÕES DE LEIS DO
BRASIL DE 1827, p. 67-69).
Os juízes de paz, naquela época, eram eleitos pelo mesmo modo e
tempo dos vereadores das Câmaras, podendo ser juiz de paz somente aqueles
que podiam ser eleitores. Os eleitos não podiam escusar o ofício, a não ser
que justificassem ter contraído doença grave e prolongada ou possuir
emprego civil ou militar que fossem exercer conjuntamente com a função.
Os impedimentos eram encaminhados e avaliados pela Câmara Municipal.
Cabia-lhes os mesmos emolumentos dos juízes de direito. “Fazer autos de
corpo de delito não era privativa dos juízes de paz, posto que os juízes
criminais dos termos conservavam para isso sua jurisdição e a deveriam
exercitar sempre que lhes não fosse preventa por aqueles.” (NEQUETTE,
2000, p. 45).
Segundo o art. 6º da referida lei, cada juiz de paz teria um escrivão do
seu cargo, nomeado e juramentado pela Câmara, cujo provimento seria
gratuito e não sujeito à prestação alguma.
Realizado pelo juiz de paz “o corpo de delito indireto por inquirição
de testemunhas”, o caso foi remetido ao juiz de fora de Rio Pardo, que
procedeu à devassa. Em 9 de agosto, o tabelião Duarte Silveira Gomes
notificou a Antonio Simoens Pereira para atuar como curador dos escravos
que deveriam depor. No dia 12 de agosto, na casa do juiz de fora, o Alferes
Antonio Jose Landim, foram inquiridas as testemunhas. Os já citados
escravos Theodoro, José de Sá e José Maia depuseram assistidos pelo curador
na condição de terem presenciado o fato. Afirmaram saber do assassinato
“por ver”: Joaquim, preto, da nação Benguela, campeiro, de 40 anos;
Caetano, preto, da Costa, campeiro, 38 anos. Disseram saber do crime
“por ouvir de seus parceiros” os seguintes escravos do Capitão Rebello:
Valério, preto crioulo, 44 anos e Frederico, da nação Cabinda, 30 anos.
Além dos sete escravos mencionados, testemunharam saber do homicídio
“por ouvir dizer” mais outros 27 homens brancos residentes, quase todos
eles, na Vila de Rio Pardo, conforme os autos da devassa.
Em 25 de agosto de 1828, foram inquiridos os réus na casa de moradia
do juiz de fora. Rodolpho afirmou ser da Nação Cabinda, ter 30 anos de
idade e ter conhecido José Joaquim Mariano, que há mais de treze anos era
MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21
215
capataz da fazenda. Assumiu a autoria do crime, cometido em conjunto
com seu parceiro, Leopoldo. Perguntado sobre o motivo do crime, respondeu
que ele e Leopoldo já tinham a intenção de cometer o assassinato, esperando
uma ocasião para tal. Tratava-se, portanto, de um crime premeditado.
Afirmou que jogaram o corpo do capataz no arroio para se livrar da acusação
de que tinham cometido o seu assassinato com o fim de o roubar.
Leopoldo se apresentou como sendo da Nação Congo e que lhe parecia
ter 30 anos de idade. Assumiu a autoria da bordoada fatal que foi data no
capataz Mariano. Perguntado sobre o motivo de sua participação na morte
do capataz, “respondeu que o dito capatas hera cruel, a todos os escravos da
fasenda e constantemente os fasia castigar por qualquer falta que elles tinhao,
e por isso lhe tinhao inimizades esperavao ocasião oportuna para atacar”.
Ambos, sempre se chamando de parceiros, assumiram o assassinato do
capataz e inocentaram a participação dos demais escravos.
O processo silencia completamente sobre um virtual pedido de socorro
da vítima. Também não deixa pistas sobre os acontecimentos registrados
na fazenda, no período compreendido entre o fatídico dia, ocorrido em
maio, e o dia 7 de agosto, quando se deu início ao processo.
Junta de Justiça julga o caso dos pretos Rodolpho e Leopoldo
O processo foi então remetido pelo juiz de fora para Porto Alegre,
único local da província onde havia um tribunal para julgar os delitos.
Com a Provisão de 7 de outubro de 1809, que criou as quatro primitivas
Vilas de São Pedro (Porto Alegre, Rio Grande, Rio Pardo e Santo Antônio
da Patrulha), acompanhava a prescrição de dotar os locais com gente para o
exercício de funções judiciais. Para Rio Pardo, por exemplo, estavam
previstos dois Tabeliães do Público Judicial e Notas, dois Juízes Ordinários,
um Juiz dos Órfãos, um Escrivão dos Órfãos e um Distribuidor. O Alvará
que em 1819 deu origem à Vila de São João da Cachoeira, criou ainda o
cargo de Juiz de Fora do Cível, Crime e Órfãos. Esse magistrado teria
jurisdição sobre as Vilas de Cachoeira e Rio Pardo. (FORTES; WAGNER,
1963, p. 106-107).
O primeiro tribunal criminal do Rio Grande do Sul foi a Junta de
Justiça. Ela foi criada à época de D. João VI, em 1816, em virtude da alta
criminalidade existente na Capitania de São Pedro. Segundo Sérgio da
Costa Franco (2004, p. 17), a junta era integrada pelo governador da
Capitania, que exercia sua presidência, pelo ouvidor – era um só que atendia
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ao Rio Grande do Sul e Santa Catarina –, pelo Juiz da Alfândega e pelos
juízes de fora, que eram magistrados togados nomeados pelo rei e que
pertenciam às circunscrições de Rio Grande, Porto Alegre e Rio Pardo.
Entretanto, foi somente em 1818 que a junta, efetivamente, passou a
trabalhar. Ela funcionou até 23 de fevereiro de 1833, não obstante estar
extinta pela Lei Regencial de 29 de novembro de 1832, que promulgou o
Código de Processo Criminal do Império do Brasil. (LIMA, 1997, p. 142).
Em Porto Alegre, os dois réus foram inicialmente interrogados, na
prisão, pelo escrivão da junta, em 6 de setembro. José Peixoto Miranda foi
indicado curador e defensor dos réus. Em 30 de setembro, entregava, por
escrito, os autos de defesa dos réus ao escrivão da Ouvidoria, Luiz Manuel
Gonçalvez Lages. Seus argumentos foram no sentido de “minorar o crime e
mitigar a pena”.
A junta, em 2 de outubro de 1828, através de acórdão colegiado,
condenou Rodolpho e Leopoldo a serem levados, com baraço e pregão,
pelas ruas públicas da cidade de Porto Alegre, até o lugar da forca. Ali
deveriam sofrer “morte natural para sempre”.
Os réus, através do seu curador, pediram vistas da sentença na qual
foram condenados. O curador alegou, de próprio punho, que os réus haviam
feito “a confição em tormento”, e por direito de lei não poderiam “ser
prejudicados pella confição.” Também questionou o corpo de delito indireto,
“valendoçe para isto do juramento de escravos, não sendo validos semelhantes
juramentos pela proibição da Lei”. Segundo Wehling (2004, p. 483), o
Direito português, ecoando no Direito comum, admitia, na área processual,
que os escravos testemunhassem em apenas três situações: se era tido
geralmente por livre; se não havia outro modo de provar a verdade e como
informante.
Em 3 de outubro, os réus e o seu curador foram notificados da pena.
Ganharam um prazo de oito dias para apresentar àquele juízo requerimento
de absolvição de culpa à Sua Majestade, o Imperador. A Constituição
brasileira de 1824 previa, no seu artigo 101, Inciso VIII, que dentre outras
prerrogativas, o Poder Moderador poderia perdoar e moderar as penas
impostas a réus condenados por sentença. Regulamentando esse dispositivo
constitucional, a Lei de 11 de setembro de 1826 estabeleceu, no seu art. 1°,
que “a sentença proferida em qualquer parte do Império que impozer pena
de morte, não será executada, sem que primeiramente suba à presença do
Imperador para poder perdoar, ou moderar a pena”. O recurso de graça,
conforme Bandeira Filho,
MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21
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em sentido lato, abrange todos os actos de clemencia, misericordia,
perdão e esquecimento do soberano. Nessa accepção, ella
comprehende a amnistia. Mas, em seu sentido próprio, quer dizer
sómente o perdão e minoração das penas. A amnistia é uma medida
de alcance quasi sempre politico, e rege-se por princípios
differentes. (1878. p. 1).
No que concerne aos escravos, a petição de graça foi alterada em seguida.
Sua Majestade Real, pelo Decreto de 11 de abril de 1829, determinou que
todo réu escravo, condenado à pena máxima por assassínio do seu senhor,
devia ser executado, imediatamente, sem direito ao recurso de graça,
interposto ao Poder Moderador:
Tendo sido mui repetidos os homicidios perpetrados por escravos
em seus proprios senhores, talvez pela falta de prompta punição,
como exigem delictos de uma natureza tão grave, e que podem até
ameaçar a segurança publica, e não podendo jamais os rêos
comprehendidos nelles fazerem-se dignos de Minha Imperial
Clemencia: Hei por bem, Tendo ouvido o Meu Conselho de
Estado, ordenar, na conformidade do artigo 2º da Lei de 11 de
Setembro de 1826, que todas as sentenças proferidas contra
escravos por morte feita a seus senhores sejam logo executadas
independente de subirem à Minha Imperial Presença. As
autoridades a quem o conhecimento deste pertencer o tenham
assim entendido e façam executar. (ACTOS DO PODER EXECUTIVO,
1829, p. 263-264).
Em 17 de fevereiro de 1829, o Imperador, tendo ouvido o seu Conselho
de Estado sobre o Acórdão proferido pela Junta de Justiça da Província de
São Pedro contra os cativos Rodolpho e Leopoldo, não acatou as súplicas
dos réus e ordenou que fosse aplicada a pena capital em que os mesmos
foram condenados. Em 15 de maio, portanto cerca de um ano após o
assassinato do capataz José Joaquim Mariano, a sentença foi aplicada aos
condenados.
Nas Ordenações Filipinas a pena de morte aparece com diferentes
expressões e adjetivos: “morra morte natural”, “morra morte natural
cruelmente”, “morra por isso”, “morra por ello”, morra por isso morte
natural”, “morra morte natural de fogo”, “morra por ello morte natural”,
“morra morte natural para sempre”. A expressão “morra morte natural para
218
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012
sempre” era uma fórmula através da qual o legislador queria significar a
morte atroz, discriminada da morte simples (expressa pelo “morra morte
natural”) em face do acréscimo do complemento “para sempre” (THOMPSON,
1976, p. 100). Morrer de morte natural significava que o sentenciado,
depois de ser levado ao patíbulo e enforcado, teria seu cadáver recolhido e
sepultado. Já a sentença de morte natural para sempre equivalia ao condenado
ser levado e enforcado no patíbulo, lá ficando seu cadáver pendente até cair
podre sobre o solo. Na sentença, a palavra “baraço” designava corda ou laço
destinado ao enforcamento de réus; já o termo “pregão” se referia à leitura
pública de culpa do delito e de sua respectiva pena.
O caso do preto Ricardo
Na manhã do dia 23 de outubro de 1850, o escravo Ricardo foi
executado (pena capital na forca) construída nos Altos da Fortaleza, na
cidade de Rio Pardo. Ele foi sentenciado por haver tentado contra a vida de
José Bernardes, capataz da estância do desembargador Pedro Rodrigues
Fernandes Chaves, depois condecorado com o título nobiliárquico de Barão
do Quaraí. A estância estava localizada em Capivary, Município de Rio
Pardo/RS.
Tudo iniciou quando, em 24 de fevereiro de 1850, o preto Ricardo
feriu gravemente José Bernardes. Ricardo era um escravo crioulo nascido
em Encruzilhada, filho de Joanna, casada com o preto Antônio. Ele era
solteiro, de atividade campeira, não sabia ler e ignorava a sua idade. Informou
no processo que havia sido adquirido pelo desembargador Chaves de Zeferino
Escoto.
Certa noite, sem a anuência do seu capataz, Ricardo deslocou-se da
casa de campo da fazenda até a charqueada do seu senhor. O processo não
revela os motivos do “passeio”. Em depoimento ao promotor público,
Antônio Siqueira Pereira Leitão, o réu inquirido a respeito, respondeu de
forma evasiva: “Porque me deo na cabeça sahir com tenção de voltar.”2
Sentindo a ausência do escravo, o capataz do campo, João do Prado
Lima, 49 anos, “encarregado de governar os escravos campeiros”, arrolado
no processo como testemunha, saiu ao seu encalço. Pela falta cometida, o
escravo deveria receber chibatadas do capataz da fazenda. Observa-se, aqui,
a existência de uma hierarquia ou divisão de trabalhos entre os prepostos
do desembargador Chaves. No processo aparecem as figuras do capataz do
campo, João do Prado Lima, e a do capataz da fazenda, José Bernardes. A
MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21
219
figura do feitor não aparece explicitada no processo. Ao que tudo indica,
José Bernardes era o administrador do estabelecimento e o preposto direto
do desembargador Rodrigues Chaves. Devia ser também responsável pela
aplicação de penalidades internas mais severas a escravos infratores.
No regime escravista de produção, os senhores, normalmente através
de seus prepostos (feitores, administradores, capatazes), gozavam do direito
de aplicar penas corretivas aos seus cativos. (MACHADO, 1987, p. 28). O
controle e a vigilância perpassavam todo o trabalho em uma fazenda escravista.
“A necessidade de vigilância tinha origem, principalmente, na falta de estímulo
do produtor direto, o escravo, tanto para aplicar-se, quanto para melhorar
os métodos de trabalho.” (REIS; SILVA, 1989, p. 27).
Tudo leva a crer que o castigo que seria aplicado ao preto Ricardo
ocorreria em uma das dependências da charqueada do desembargador Chaves,
em Capivary. Os preparativos sugerem que o castigo seria cruel, pois, no
local, se encontravam, segundo o depoimento de Ricardo, “escada, bacaliau,
navalha, salmoura e pimenta”.3
Ricardo, possivelmente, pressentiu que seria vítima de um grande
castigo. Ele mesmo descreve a função dos instrumentos presentes na cena:
“A navalha era para cortar depois do castigo e a salmoura com pimenta era
para por nas feridas.” Observa-se que os castigos corporais que seriam
infligidos em Ricardo tinham o mesmo requinte de sofisticação daqueles
aplicados a escravos de outras regiões do Império.
Com as peças do tabuleiro da pena devidamente arranjadas, o escravo
reagiu. Num sobressalto, o negro chamando o feitor de “filho da puta, és tu
que queres me castigar”, fugiu em direção à porta. Agarrando o capataz por
trás, desferiu-lhe duas ou três facadas. Depois do ocorrido, Ricardo fugiu,
sendo capturado e preso algumas semanas após nas bandas de Camaquã.
Examinado o corpo do capataz, os peritos, o cirurgião José de Souza e
Silva e Joaquim Ferreira da Rocha, declararam que
encontrarão huma ferida incisa na região escapular duas polegadas
abaixo da escapula, penetrante a cavidade do pulmão do mesmo
lado, com trez polegadas de largura, profundidade até o pulmão;
e que alem da gravidade, que offerece a ferida pela posição em
que está collocada, pode comprometter para o futuro a vida do
paciente, declarão mais que o ferimento tinha sido feito com
instrumento perfurante e cortante, e que avalliarão o danno na
quantia de cem mil reis.
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012
A vítima, perguntada pelo subdelegado sobre quem lhe teria feito aquele
ferimento foi categórica em afirmar que tinha sido o crioulo campeiro de
nome Ricardo “para se livrar de um pequeno castigo que lhe hia fazer”.
Interessante nesse processo é a postura do subdelegado do Distrito de
Capivary, Manuel Affonso de Freitas Amorin. Alegando o fato da amizade
íntima que tinha com o senhor do referido escravo, considerou-se impedido
de ser formador de culpa. E previu que “um attentado tão horroroso, e que
pode ter funestas consequencias, he por certo digno da mais severa e exemplar
punição”. O crime contra o capataz poderia por em questão as bases das
relações escravistas na fazenda e nos arredores. Era necessário manter a
ordem. Mostrar aos escravos o que lhes poderia suceder caso se rebelassem.
Ricardo foi preso em 1º de maio de 1850 e conduzido à cadeia da
cidade de Rio Pardo. O delegado notificou as testemunhas para que, no dia
10 de maio, se fizessem presentes para dar início ao sumário. Convocou o
promotor para assistir à inquirição e nomeou Ignácio José Cabral e Costa
para curador do escravo. Pela lei, o escravo, como réu, ou acusado, caso seu
senhor não se prestasse a isso como seu curador nato, devia ter nomeado
pelo juiz do processo um defensor, ou curador. (CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL DE 1832, arts. 97, 98, 99, 142 e 263).
A confissão do réu, somada aos depoimentos de algumas testemunhas,
levou o Juiz Municipal, Francisco Pereira Monteiro, a concluir que “este
crime está plenamente provado”. O réu foi mantido em cárcere, e o escrivão
fpo autorizado a baixar o processo de formação da culpa. Tudo feito de
forma rápida, em conformidade com o que estabelecia a Lei de 10 de junho
de 1835.
Ricardo foi a julgamento em júri popular, realizado em 26 de junho
de 1850. O Juiz de Direito da Comarca, Antônio Vieira Braga, abriu a
sessão pelo toque da campainha. Em seguida, foi aberta a urna onde se
encontravam 48 cédulas, cada uma delas com o nome de um dos membros
do corpo de jurados do termo. De acordo com o Código de Processo
Criminal de 1832 e consoante a Lei 261, de 3 de dezembro de 1841, foram
extraídos, através de cédulas, 12 cidadãos para integrarem o corpo de jurados.
Lida a acusação contra o preto Ricardo, passou-se para a fase de
depoimentos. O Código de Processo Criminal de 1832, no seu art. 89,
previa que escravos não poderiam testemunhar; mas o juiz poderia informarse deles sobre o objeto da queixa, ou denúncia, e reduzir a termo a
informação. Foram ouvidas seis testemunhas, todos homens livres, que,
MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21
221
com poucas variações, responsabilizaram Ricardo pelo ferimento aplicado
ao feitor.
Na fase dos debates, o promotor público, Antônio Vicente de Siqueira
Pereira Leitão, acusou o réu de estar incurso no art. 1º da Lei de 10 de
setembro de 1835.
Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que
matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno,
ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave offensa
physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes,
que em sua companhia morarem, a administrador, feitor e às suas
mulheres, que com elles viverem. Se o ferimento, ou offensa physica
forem leves, a pena será de açoutes a proporção das circumstancias
mais ou menos aggravantes.
A condição indispensável para alguém ser julgado com base nessa lei,
também denominada “Lei de Exceção”,4 era a de ser escravo. Homens
livres e libertos responderiam pelo Código Criminal de 1830. Era uma lei
para regular as relações de produção, as relações entre senhor e escravo e
não entre escravos e outros homens livres ou entre si mesmos. (RIBEIRO,
2005, p. 418).
O defensor e curador do réu desenvolveram sua defesa referindo-se a
“factos que sustentam a inocência do acusado”. Como a partir da vigência
do Código de Processo Criminal de 1832, os julgamentos passaram a ser
feitos com júri popular, os debates entre acusação e defesa tornaram-se
orais e não mais escritos como no caso dos escravos Rodolpho e Leopoldo,
em 1828. Nessa modalidade de procedimento, dependendo do escrivão,
boa parte do conteúdo exposto verbalmente pode não ter sido devidamente
registrado.
Terminados os debates entre acusação e defesa, o juiz apresentou ao
corpo de jurados três quesitos para serem respondidos. No primeiro, foi
perguntado se o réu Ricardo, escravo do desembargador Pedro Rodrigues
Fernandes Chaves, feriu à facadas José Bernardes, capataz da fazenda do seu
senhor. Por unanimidade, os jurados responderam: sim. No segundo, foi
indagado se o ferimento feito na vítima era grave. Mais uma vez, os 12
jurados responderam de forma unânime: sim. Note-se que julgaram a
gravidade do ferimento com base no corpo de delito realizado. Caso
considerassem como não grave a lesão do capataz, a pena de Ricardo seria a
222
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012
de chibatadas. No terceiro quesito, os jurados foram indagados a respeito
de haver circunstâncias atenuantes a favor do réu. Por oito votos – dois
terços –, os membros do júri responderam: não. Caso reconhecessem
circunstâncias atenuantes, reconheceriam o direito de reação do escravo
diante da aplicação de castigos.
Nos julgamentos de escravos inclusos nessa Lei de Exceção não seria
necessária a unanimidade dos votos dos jurados. A pena de morte poderia
ser decretada com dois terços dos votos do corpo de jurados. E da decisão
condenatória não caberia qualquer recurso, não sendo permitida a revisão
da pena por um novo processo, a não ser o pedido de graça ou de clemência
ao Imperador. Essa, na prática, se constituiria na única chance para um
escravo condenado.
A Lei de 10 de junho de 1835 não reconhecia graduações de pena nem
atenuantes ou agravantes. Poderiam ir para a forca aqueles escravos que
matassem, ferissem ou atentassem contra a vida de seus senhores ou
prepostos. Ricardo foi literalmente linchado pelo júri popular, formado
por representantes da ordem escravista. Pela decisão do corpo de jurados, o
réu foi condenado “a sofrer a pena de morte que lhe será dada na forca que
será levantada em lugar bem público, e mais perto do delicto”. Em cem
mil-réis foram estimadas as custas do processo que deveriam ser pagos pelo
desembargador. O réu e seu curador ficavam intimados ainda para em um
prazo de oito dias “apresentar a petição de graça”. Tivesse sido julgada pelas
regras do Código Criminal de 1830, sua pena certamente seria bem mais
branda.
A pena imposta ao réu escravo foi extremamente exagerada. Ribeiro
(2005, p. 397) destaca que “o crime de Ferimentos Graves foi punido com
a morte principalmente nos cinco primeiros anos de nosso código negro”.
Mas, na época da condenação de Ricardo, na Corte, era raro um escravo ser
condenado à morte por ferir gravemente seu senhor. Muito mais improvável
ainda que a pena fosse aplicada a um cativo que tivesse ferido um preposto.
(p. 400-401). Possivelmente, Ricardo foi condenado à pena máxima não
exatamente pelo delito que cometeu, mas pela conjuntura que envolvia a
escravidão em Rio Pardo, na época. No fim da década de 40 (séc. XX), a
Câmara Municipal queixava-se ao presidente da província do grande número
de escravos fugidos e da insegurança que geravam os quilombos existentes
na região de Serra do município. Talvez, com o enforcamento do cativo,
autoridades e senhores de escravos procurassem sinalizar à escravaria que
estavam no controle da situação. (VOGT; RADÜNZ, 2010).
MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21
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Em 12 de julho de 1850, era remetida à presidência da província a
petição de graça do escravo Ricardo, em que seu curador pedia clemência
da pena decretada, e o relatório do processo com as cópias das sentenças de
pronúncia, de sustentação e de condenação do réu. O processo foi então
remetido à Corte, no Rio de Janeiro. Em 27 de setembro, o presidente da
província transmitia ao juiz municipal do termo da cidade de Rio Pardo o
aviso que baixou o Ministério da Justiça (em 3 de agosto) em que era
ordenado executar a sentença de morte contra o preto Ricardo, pois que,
no relatório do juiz de direito da comarca, “nenhuma circunstância se nota
que seja favorável ao sobredicto reo”.
Chama a atenção que, diante de um crime de menor gravidade, não
houve por parte do Imperador a comutação da pena de Ricardo. O Poder
Moderador, uma vez ouvido o Conselho de Estado, podia anular julgamentos
ilegais, reformar injustiças verificadas em julgamentos legais e comutar ou
minorar penas, mas, para o azar de Ricardo, não o fez. A partir de 1855,
tornou-se praxe o Imperador comutar a pena de morte para a de galés
perpétuas.
Em 20 de outubro de 1850, o juiz municipal Francisco Pereira
Monteiro julgou por terminada e concluída a sentença que mandava Ricardo
ao patíbulo por haver tentado contra a vida de José Bernardes. Ao
desembargador Chaves cabia pagar as custas acrescidas do processo, além
de perder o valor pecuniário do escravo.
Como Porteiro ad hoc na execução da pena de morte foi nomeado o
escrivão Francisco de Paula Lis. Também o oficial de justiça José Lopes da
Silva, foi intimado para comparecer na cadeia civil da cidade de Rio Pardo,
às 10 horas da manhã do dia 23 de outubro de 1850 a fim de infligir a pena
ao acusado.
Considerações finais
Como ilustrado ao longo do texto, nesse período de 22 anos que dista
um processo do outro se observam mudanças significativas nos ritos
processuais jurídicos que objetivavam manter a ordem escravista e o direito
de propriedade do escravo no Brasil.
Em 1828, no Brasil, ainda não existia uma estrutura jurídica própria.
O que havia era uma simbiose entre ordenações, decretos e resoluções que
mesclavam tradições do Estado absolutista moderno lusitano com ideais
iluministas oriundas da Europa no transcurso do século XVIII. Já em 1850,
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o quadro era bem diferente. Existia no Império uma estrutura jurídica
clara, pautada em leis como o Código Criminal de 1830, o Código de
Processo Criminal de 1832 e sua respectiva alteração, ocorrida em 1841, a
qual se fundamentava em princípios liberais. Na contramão desse espírito,
visando a garantir a ordem escravista, foi promulgada, em 1835, a Lei de
10 de junho, que é adjetivada como “Lei de Exceção”.
Seja pelas leis portuguesas, seja pelas leis brasileiras, refletindo o antigo
Direito Romano, a condição de escravo encerrava uma flagrante contradição:
a de ser mercadoria e sujeito ao mesmo tempo. Sendo mercadoria, era
negado ao cativo o status de pessoa. Não podia, por conseguinte, ter direitos
políticos nem exercer cargos públicos ou eclesiásticos. No entanto, em caso
de praticar algum crime, respondia à Justiça como sujeito. Em relação à lei
penal, “o escravo, sujeito do delicto ou agente delle, não é cousa, é pessoa
na acepção lata do termo, um ente humano, um homem enfim igual
pela natureza aos outros homens livres seus semelhantes. Responde,
portanto, pessoal e diretamente pelos delictos que cometta”. (MALHEIROS,
1866, p. 28). Mas seja pelas Ordenações Filipinas, seja pelo Direito Penal
do Império, nunca seria julgado por seus pares. Seria sempre julgado por
cidadãos, quase sempre proprietários de escravos.
Os escravos Leopoldo, Rodolpho e Ricardo foram condenados à morte
na forca. Dois parecem ter sido os objetivos com a aplicação da pena
capital a escravos: um deles era o de dar uma satisfação ao povo; o outro era
o de amedrontar e aterrorizar o trabalhador cativo. (GOULART 1971, p.
143). As três condenações aqui referidas tiveram caráter pedagógico com
vistas a reafirmar a ordem e o estatuto escravista.
MÉTIS: história & cultura – VOGT, Olgário P.; RADÜNZ, Roberto – v. 11, n. 21
225
Notas
As referências ao processo envolvendo
os escravos Rodolpho e Leopoldo foram
extraídas dos Processos-crime cuja fonte
são: Apers – Civil e Crime, Rio Pardo.
N. 256, M. 10, E. 33 – 1828; e Apers –
Civil e Crime, Rio Pardo. N. 276, M.
11, E. 10 – 1828.
1
As referências ao processo-crime
envolvendo o escravo Ricardo é: Apers –
Civil e Crime, Rio Pardo. N. 1655, M.
92, E. 5D – 1850.
2
226
O ritual de preparação do castigo está
descrito detalhadamente em Radünz e
Vogt (2010, p. 185-187).
3
Lei inteiramente excepcional porque era
totalmente fora do espírito liberal do
Código de Processo Criminal. Era uma
lei feita para aterrorizar escravos.
4
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012
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ou cometerem outra qualquer offensa
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brazileira contendo a indicação e analise das
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228
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 209-228, jan./jun. 2012
Corpo e maternalismo nos saberes
jurídicos e criminológico
Body and maternalism in Legal and Criminological knowledge
Rosemeri Moreira*
Resumo: Considerando o corpo e a
corporeidade como mergulhados em
sistemas simbólicos, este texto discute
alguns aspectos sobre a construção social
dos corpos na sociedade ocidental. O
enfoque é sobre os saberes do Direito e
da Criminologia como instâncias de
objetivação e produção do feminino e do
maternalismo. Para tanto, são abordados
referenciais bibliográficos sobre a
expansão do saber médico no discurso do
Direito; a construção do saber da
Criminologia Positivista europeia e a
influência do pensamento criminológico
europeu no pensamento de juristas e
criminologistas brasileiros nas décadas de
30-40 (séc. XX), no que se refere ao corpo
das mulheres, ao feminino e ao
maternalismo nele encarcerados.
Palavras-chave: gênero; corpo;
criminologia; maternalismo.
Abstract: Considering the body and
embodiment as steeped in symbolic
systems, this paper discusses some aspects
of the social construction of bodies in
Western society. The focus is on the
knowledge of Law and Criminology as
instances of objectification and
production of feminine and maternalism.
So it is discussed the bibliographic
references about the expansion of medical
knowledge in the discourse of law, the
construction of the knowledge of the
european Positivist Criminology and the
influence of the European criminological
thought in the brazilian jurists and
criminologists in the years 1930-1940,
when it refers to the body of women, the
feminism and the and female maternalism
in it.
Keywords: gender, body, criminology,
maternalism.
Doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora
na Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro-PR). Pesquisadora sobre os
seguintes temas: Gênero, História das Polícias e das Forças Armadas, Criminologia e
História do Corpo. Integrante do Laboratório de História Ambiental e Gênero (Lhag)/
Unicentro. E-mail: rosemeri_moreira@yahoo.com.br.
*
MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
229
Saber jurídico e algumas considerações sobre o corpo
Na perspectiva dos estudos culturais, o corpo é um campo de batalha
por significados os mais diversos. Nesta abordagem “o corpo é uma ficção,
um conjunto de representações mentais, uma imagem inconsciente que se
elabora, se dissolve, se reconstrói através da história do sujeito, com a
mediação dos discursos sociais e dos sistemas simbólicos”. (CORBIN et al.
2008, p. 9).
A expansão do saber médico sobre o corpo no campo do Direito se
deu na legislação e na cultura jurídicas, a partir do surgimento das
especializações médicas: Criminologia Medicina Legal.2 Na França, Ruth
Harris (1993) assinala que, no fim do século XIX, diversas correntes médicas
buscavam influenciar na legislação e nos Tribunais de Justiça, os quais se
tornaram locais de embates e rupturas com o paradigma do chamado Direito
clássico (iluminista).
O pensamento jurídico francês, ainda no fim do século XIX,
influenciado pelo pensamento médico, passou a se preocupar com a
individuação da pena trazendo à cena as circunstâncias atenuantes e agravantes
dos delitos. (HARRIS, 1993). O sujeito universal e abstrato do Direito
clássico francês começou nesse período a ser sobreposto, timidamente ou
de forma semiclandestina, a um sujeito com individualidade, trajetória e
características únicas e que possuía, sobretudo, um corpo.
O Direito clássico, ou liberal, se baseia na defesa do livre-arbítrio
absoluto que permeia quase todos os códigos penais da modernidade.
(BECCARIA, 1983). Na concepção do Direito liberal, a crença na capacidade
racional do indivíduo é a base da responsabilização de seus atos, e a
penalidade tem a função de separá-lo da sociedade. Ceder ao desejo de
praticar o ato delituoso é o que separaria o criminoso do não criminoso.
Para esse pensamento, o que deve ser julgado é o crime e a quebra do
contrato social por parte do criminoso. O fundamento da pena é a
culpabilidade do sujeito, e o seu fim é impedir a violação da lei. No texto
clássico de Cesare Beccaria, escrito em 1764, somente as crianças e os
loucos não poderiam ser responsabilizados por seus atos, uma vez que
careciam de racionalidade.
O discurso médico adentra o Direito, dando origem à Escola Positivista
do Direito Penal e à Criminologia, que, partindo de diversas abordagens se
contrapõe à concepção de sujeito, crime, criminoso e Estado, do Direito
clássico. Para Laurent Mucchielli (apud ALVAREZ, 2003), Cesare Lombroso,
considerado “herói fundador” da Criminologia, seria antes de tudo, um
230
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012
herdeiro, pois seu pensamento apresenta uma condensação de ensinamentos
da frenologia, antropologia, medicina legal e do alienismo, desenvolvidos
anteriormente. A Criminologia não começara em fins do século XIX, mas
estava inscrita nas ciências médicas desde o seu início, adquirindo status em
níveis e períodos diversificados conforme o país.
Deixando de lado o debate das paternidades, o pensamento lombrosiano
tem por base a defesa de que o ser humano é produto de um meio genético
e social cabendo à ciência da Criminologia compreender as causas do crime
e sua natureza. Uma natureza pensada como patológica e inscrita de forma
irreversível nos corpos. Uma questão de saúde física e mental que urgia
decifrar no corpo do criminoso, e que caberia ao criminologista – que seria
um misto de médico, policial, juiz e professor – detectar, prevenir, remediar
ou reeducar.
Mesmo aqueles que pouco assumiram os pressupostos do determinismo
biológico de Lombroso, o que ficou, no entanto, no Direito Penal Positivista,
foi a criação da figura do homo criminalis.3 A mudança de foco – do crime
para o criminoso – faz parte do processo de individuação da pena, citado
anteriormente.
Para Michel Foucault, na construção do Direito Positivista, a punição
legal passou a ser legitimada pela ciência e deixou de enfocar as infrações,
mas os indivíduos, “sobre aquilo que eles são, serão ou possam ser”. (1993,
p. 22).
Outras duas noções de suma importância que passaram a fazer parte
do pensamento jurídico são a periculosidade e defesa social. A partir dessas
noções, vinculadas ao homo criminalis, caberia ao Estado e ao criminologista,
seu principal agente, criarem instituições de detecção, prevenção e correção
das pessoas julgadas potencialmente criminosas.
Nesse embate entre clássicos e positivistas, o que se confronta, além da
ideia de verdade sobre a natureza humana, é a discussão sobre qual é a
função do Estado. Para Peter Fry e Sérgio Carrara (1986, p. 49), esse
debate foi travado entre duas concepções: “de um lado, um Estado gendarme
e liberal e de outro um Estado hobessiano sem uma separação nítida entre
público e o privado”.
No meio-termo dessa polarização, alguns juristas denominados
neoclássicos defendiam um livre-arbítrio relativo e postulavam que os “juízes
deveriam estar atentos ao ambiente físico e social onde o crime tinha sido
cometido.” (RIBEIRO FILHO, 1994, p. 134). A defesa dos neoclássicos de
MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
231
um livre-arbítrio relativo provém das dificuldades por eles expressadas da
aplicação do pensamento jurídico clássico, ou seja, os juristas deveriam
recorrer aos profissionais especialistas, aos peritos médicos de modo que
indicassem as condições físicas e sociais que propiciavam as patologias e as
insanidades.
Graduações de racionalidades e responsabilidades foram estabelecidas
baseadas no gênero, raça/etnia, geração, sanidade física e mental, as quais
poderiam ser tomadas como atenuantes ou agravantes. Para Ribeiro Filho,
“os neoclássicos apropriaram-se do homem racional solitário do direito
clássico e lhe deram um passado e um futuro”. (1994, p. 136). No
pensamento jurídico, o corpo das pessoas passou a ser o foco de detecção,
ordenamento, julgamento e punição. Tudo isso a partir das premissas
estabelecidas pelo saber médico da distinção, de classificação, higiene e
inventário. Esse saber criminológico embalou os sonhos dos médicos e
juristas brasileiros também no que concerne ao feminino/mulheres, como
uma esfinge, enfim, a decifrar.
Criminologias, criminologistas e diversas leituras do feminino
no Brasil (1930-1940)
A instauração do saber criminológico no Brasil se deu a partir de fins
do século XIX e foi consolidada na década de 30 do mesmo século. Esse
saber produziu as mais diversas leituras sobre o corpo classificado como
feminino. No fim do século XIX era ensaiada, no Brasil, sua virada
republicana, e os ideais liberais alastrados carregavam uma leitura específica.
Sobre esse contexto, José Murilo de Carvalho aponta às contradições e
adaptações efetuadas pela intelectualidade e pelos políticos brasileiros na
construção de um liberalismo e republicanismo “à brasileira”. O liberalismo
do período foi construído a partir da desconfiança das elites políticas e
intelectuais das ideias de igualdade e democracia diante de uma população
de ex-escravos e analfabetos. (CARVALHO, 1987, 1990). A legislação da
Primeirsa República carrega essa contradição.
De qualquer forma, o imaginário que embala os intelectuais, literatos
e políticos é uma modernização pensada como europeia. A modernização
no Brasil se deu em duas fases distintas: na primeira de 1870 a 1920,
construtora do liberalismo à brasileira, a questão “raça e civilização” era
essencial; na segunda fase, que corresponde à década de 30, o foco é deslocado
para a nativização e adequação da europeidade à realidade nacional.
(HERSCHMANN; PEREIRA, 1994, p. 34-35).
232
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012
Na primeira modernização, a meta era ficar em pé de igualdade com a
Europa através da importação do cotidiano, das ideias, das instituições e
da economia. Isso estava presente no cerne do imaginário da geração de
literatos de 1870, marcados pelo ideal cientificista. Na ânsia pela República,
para esse grupo de intelectuais, o bacharel e/ou burocrata era representante
da elite imperial e, como tal, ligado à tradição e aos atrasos cultural, político
e econômico, ao passo que os cientistas – especialmente os “artistas do
operatório”: os médicos – poderiam dar uma resposta satisfatória ao futuro
que se vislumbrava. (H ERSCHMANN ; P EREIRA , 1994, p. 60-61). A
institucionalização da medicina no Brasil se deu sob a égide de um Estado
republicano, do nacionalismo e de preocupações eugênico-raciais.
(SCHWARCZ, 1993).
No Brasil do fim do século XIX, o espaço urbano era a principal
preocupação, tanto do olhar médico sanitarista quanto do médico
criminologista. Essas perspectivas, longe de serem excludentes em sua
aplicação, foram sobrepostas em olhares que incidiam ora sobre a ordem
do corpo e da família ora sobre a desordem da cidade: a delinquência, o
crime e o criminoso.
Abordando representações do masculino/feminino no discurso médico,
Maria Izilda Santos de Matos (2003) aponta as releituras efetuadas no
Brasil entre 1890 e 1930 sobre essas construções e as ações dos médicos
sanitaristas que recaíram sobre o processo de urbanização da capital paulista.
Para essa autora, a instalação do regime republicano concentrou a
estruturação do Estado no binômio família/cidade e o conceito de pátria
ligado à família.
O Estado encabeçava o projeto sanitário-higienista em que o poder
médico foi sobremaneira ampliado ao se institucionalizar. Na perspectiva
da medicina sanitarista, caberia às mulheres o cuidado higiênico: consigo,
com a família, com o lar. A alimentação, o vestuário, a higiene pessoal, a
higiene das crianças e do espaço familiar faziam parte de um aprendizado
que buscava profissionalizar a maternagem encarregada dessa profilaxia que
conjugava higiene física e moral.
Pensando como sendo intrínseca às mulheres a capacidade do cuidado
com o Outro, o discurso higienista, paradoxalmente, normatiza através da
puericultura o aprendizado de ser mãe, esposa e dona de casa através da
profissionalização da maternidade. Esteio da moral, dos costumes e do
legado biológico, o corpo das mulheres, construído no modelo sexual dual
(LAQUEUR, 2001), é, em si mesmo, o corpo feminino.4
MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
233
Sobre a construção do maternalismo no Brasil, é importante lembrar
que, nesse período, surgiram e se desenvolver no Brasil as especializações:
ginecologia e obstetrícia, a partir da Faculdade de Medicina da Bahia e do
Rio de Janeiro (MARTINS, 2004, p. 217-259). Esses eram importantes lugares
para os intelectuais médicos elaborarem debates sobre o corpo feminino.
Releituras da medicina anatomofisiológica e da medicina ambientalista
se refletiam no pensamento jurídico de forma associada e não como
excludentes entre si. A Criminologia se constrói na junção/sobreposição
do saber médico com/ao saber jurídico, tendo a raça e a sexualidade papel
de destaque. (ALVAREZ, 2004).
O corpo – pautado nessa junção de saberes – é como um alfabeto que
proporciona as mais diversas leituras: mulher, homem, criança, adulto,
idoso, branco, preto, indígena, heterossexual, homossexual, mãe, esposa,
prostituta, doente, louco, etc.
A Faculdade de Medicina da Bahia e a Escola de Direito do Recife, no
fim do século XIX, foram os principais polos irradiadores do pensamento
criminológico no Brasil. Na Faculdade de Medicina da Bahia, segundo
Herschmann (1994, p. 50), a produção médica se concentrou na perícia
médico-legal e nas pesquisas antropológicas raciais, ao passo que na Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro a tendência foi combater os “maus costumes”
e as epidemias.
Raimundo Nina Rodrigues (na Bahia) e Oswaldo Cruz (no Rio de
Janeiro) foram os propulsores de um saber médico que se especializava e
adentrava outras áreas.5 O primeiro consolidou a cadeira de MedicinaLegal nos cursos de Medicina e a cadeira de Criminologia nos cursos de
Direito, sob influência de intelectuais italianos e alemães.6 O segundo,
vinculado ao pensamento francês, consolidou a Medicina HigiênicoSanitarista como cadeira nas universidades e, principalmente, como política
de governo.
Enquanto para os expoentes da Medicina carioca (Oswaldo Cruz e
Carlos Chagas) o importante era combater as doenças, epidemias e maus
hábitos da população, para os médicos baianos o foco era o corpo do
doente e as características pensadas como hereditárias. (HERSCHMANN, 1994,
p. 52).
A Escola de Direito do Recife, após a reforma curricular de 1879,
passou a defender o afastamento das humanidades e a necessidade de legitimar
o conhecimento jurídico através de um estatuto científico.7 O desejo de
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012
tornar científico o Direito encontrou, nos estudos criminais, um campo
fértil por excelência, uma vez que, através da releitura efetuada por Nina
Rodrigues, seguiria os postulados já firmados na Europa. Essa mesma
reforma de ensino criou a cadeira de Criminologia, na Faculdade de Direito
do Recife que passou a ser ministrada por Nina Rodrigues. Seus alunos se
tornaram futuros expoentes da consolidação da Criminologia na década de
30 do século XX.
Mesmo em descrédito na Europa, as teorias criminológicas italianas8
foram, no fim do século XIX, no Brasil, coroadas de êxitos. Pierre Darmon
denomina a América Latina de verdadeiro “eldorado” da Criminologia (Apud
ALVAREZ, 2004).
As razões desse sucesso se devem ao seu efeito tranqüilizador nas elites,
pois apresentava causas biológicas e naturais para os problemas visíveis no
processo de urbanização. Para Lilian Schwarcz (1993, p. 146) as novas
demandas sociais e os arranjos classistas colocavam a figura do povo e da
raça como pontos de reflexão e apreensão aos intelectuais do período.
As desigualdades sociais, inscritas nos corpos, é que exigiriam padrões
diferenciados de cidadania. O saber médico-jurídico reforçava as leituras
do corpo e criava outras tantas partindo de sua superfície, anatomia e
fisiologia: o negro e a mulher precisavam ser objetivados.
As propostas de mudanças no Código Penal de 1890, feitas por diversos
médicos criminologistas e por juristas, defendiam a necessidade da existência
de pareceres dos especialistas sobre a anormalidade/normalidade do criminoso;
detecção da possibilidade ou não de cura; e a criação de instituições
reformadoras mantidas pelo Estado.
Para Ribeiro Filho (1994, p. 138) o Código Penal de 1890 tem
inspiração liberal uma vez que defende que todo membro da sociedade é
dotado de livre-arbítrio e, como tal, é responsável por seus atos. Entretanto,
esse mesmo código prevê brechas na responsabilização daqueles que “por
imbecilidade nativa ou enfraquecimento senil” praticarem delitos. Além do
que, a consideração do denominado estado de “completa privação de
sentidos” poderia atenuar a responsabilidade de todas as demais pessoas.
Mesmo que os criminologistas tenham conseguido o intento de
influenciar na legislação somente na década de 40 (séc. XX), a prática jurídica
efetuada durante a vigência do Código Penal de 1890 estava permeada em
seus julgamentos e penalizações, de forma semiclandestina, da consideração
individualizada do réu (RIBEIRO FILHO, 1994; ALVAREZ, 2004). Ou seja, o
MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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pensamento médico-jurídico de fins do século XIX, no Brasil, conseguiu
espaço institucional, mas não apresentou a força necessária para mudar a
legislação vigente. Entretanto, se inseriu de forma sub-reptícia na prática
dos juristas.
A oficialização do Direito Penal Positivista no Código Penal brasileiro
foi feita por uma geração renovada de criminologistas e juristas, a partir da
segunda década do século XX. Esses intelectuais se colocaram como herdeiros
e, ao mesmo tempo, discordantes de Nina Rodrigues.
Os “novos” criminologistas e juristas reatualizaram antigas leituras do
corpo das mulheres agora com o acréscimo de interferirem na produção do
Código Penal de 1940, nos projetos de modernização das forças policiais,
além de possuírem maior autoridade nos cursos de Direito, principalmente
no Rio de Janeiro e São Paulo.9 O debate criminológico e jurídico foi
alojado no centro político e no já consolidado novo polo econômico do
País.
As diferentes concepções de Estado e cidadania, postuladas no debate
clássicos versus positivistas, foram intercaladas no Código Penal de 1940,
que instituiu a “medida de segurança” com um caráter preventivo pautado
na ideia de periculosidade. Foram criados, nesse código, a segregação
hospitalar; a assistência; o tratamento; a custódia e a reeducação dos
criminosos e infratores.
Na análise de Ribeiro Filho (1994, p. 146), o ecletismo desse código
classificava as pessoas em recuperáveis e irrecuperáveis: às primeiras segregar
(Direito clássico); às segundas reeducar/curar (Direito Positivista). Os
critérios de classificação adotados não somente pelos juristas, mas por todos
os agentes dos poderes de controle social são problematizados por Ribeiro
Filho. O discurso criminológico, além e anteriormente à própria legislação
fez “circular concepções e estigmas que impregnaram profundamente o senso
comum e as práticas dos operadores do direito e dos agentes do controle
social do país ao longo de quase um século”. (ALVAREZ, 2004, p. 5). Percepções
hierárquicas inscritas nos corpos estavam presentes no cotidiano das pessoas
e na ação policial, uma vez que a interpretação de periculosidade tinha por
base o olhar que hierarquizava e normalizava: classe social, gênero, raça/
etnia, sexualidade, etc.
O novo impulso da Criminologia, a partir da instalação do governo
provisório de Getúlio Vargas, é visto por James Green como um instrumento
de contenção da chamada desordem social, renovada nesse momento pela
presença de “comunistas, fascistas, criminosos, menores delinquentes, negros
236
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012
degenerados, homossexuais e outras figuras de desordem social”. (1999, p.
194).
A essa lista acrescento a prostituta, figura sempre dissecada nos textos
dos criminologistas, e a “mulher moderna” criada através de problematizações
anteriores de Francisco José Viveiro de Castro (1862-1906), de Afrânio
Peixoto (1876-1947), de Leonídio Ribeiro (1893-1976) e mais tardiamente
de Nelson Hungria (1891-1969).
Essa vanguarda inova ao incorporar à fisiologia, anatomia, eugenia e
às hereditariedades diversas, os postulados da psiquiatria e da psicanálise.
Permanece dos antecessores, em Afrânio Peixoto e nos demais, a ideia de
periculosidade e a necessidade da defesa social por parte do Estado, além de
se dedicarem a descrever, classificar e reordenar as mulheres no mundo
social.
Principal criminologista da primeira metade do século XX, Afrânio
Peixoto produziu 141 livros jurídicos e literários influenciando o pensamento
jurídico no Brasil até os dias atuais, mesmo que de forma sub-reptícia.10
Recentes declarações de juízes, delegados e policiais11 sobre a Lei 11.340/
2006, popularmente conhecida como “Lei Maria da Penha”, demonstram a
presença de postulados diversos construídos pela Criminologia sobre a
categoria mulheres – de Nina Rodrigues, passando por Afrânio Peixoto e
outros tantos. É importante ater-se mais detalhadamente ao pensamento
do criminologista Afrânio Peixoto uma vez que sua extensa produção focava
principalmente as mulheres.
A obra Criminologia, cuja primeira edição data de 1933, tornou-se o
manual por excelência dessa disciplina nos bancos universitários. Médico
baiano da “Escola Nina Rodrigues”, Afrânio Peixoto detectava, no aumento
da criminalidade, um problema degenerativo. Daí decorria seu projeto
eugênico de restituir a saúde à Nação. A eugenia que defende difere da linha
adotada por Nina Rodrigues que relacionava degeneração, raça e
criminalidade.
Mesmo não negando a herança genética da degeneração, Afrânio Peixoto
contesta que se tenha achado a natureza definitiva da predisposição à
criminalidade. (PEIXOTO, 1953, p. 39). Segundo Herschmann e Pereira,
Peixoto é reticente em relacionar crime e raça, especialmente num momento
em que a intelectualidade brasileira enfatizava a “necessidade de um ‘olhar’
capaz de visualizar o país enquanto algo radicalmente distinto do Velho
Mundo, dotado de uma especificidade que tomava a ‘mestiçagem’ como
um de seus referenciais”. (1994, p. 29). Para esses pesquisadores, os
MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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intelectuais de direita e esquerda, se encontravam seduzidos por esse referencial
de culto ao tipo nacional e à redescoberta do Brasil.
Deixando o termo raça de lado, Peixoto defende a criação de um
atestado médico pré-nupcial dos nubentes para autorização do casamento,
a fim de evitar prole doente e discorre sobre a necessidade de implantação de
uma política à qual chama “socioplástica”. (PEIXOTO, 1953, p. 295-318).
Afrânio Peixoto relaciona a criminalidade em geral e principalmente a
das mulheres ao mau funcionamento do sistema endócrino. 12
Categoricamente, afirma: “Normal ou invertido, honesto ou criminoso,
revoltado ou pacífico, revoltado ou patriota, céptico ou ciente... tudo são
nomes ‘leigos’ ou populares, não canônicos ou científicos, de determinantes
endócrinos”. As mulheres devassas e “insaciáveis messalinas [...] têm apenas
foliculina demais” ao passo que “as mulheres invertidas, as mulheres estéreis,
as mulheres obesas, naufragadas na gordura, endireitam-se, curam-se,
adelgaçam-se com a foliculina. Foliculina, és tôda a mulher!”13 Nessa leitura,
a solução para uma gama diversificada de problemas percebidos nas mulheres
resumia-se à maternidade e a prática do aleitamento.
Ao contrário de Lombroso e Nina Rodrigues, defende que a prostituta
nata é minoria: “biológica ou patológica, vem de deficiência mental
congênita, neurastenia, histeria, degeneração que, por incitações pervertidas
ou eróticas, ou por incapacidade de trabalho fixo, disciplinado, levam à
orgia”. (PEIXOTO, 1953, p. 199). Consideradas “prostitutas de índole”,
essas são exemplo de uma concepção simultânea de doença que se inscreve
na “natureza” do corpo e na sociedade: reciprocamente, são doentes naturais
e sociais. Para ele, as demais prostitutas não doentes biologicamente são
produto, ora dos luxos e gostos dos prazeres ou maus costumes, ora da
irresponsabilidade ou negação masculina de prover um lar. A primeira é
devassa e corrompida pela modernidade, e a segunda, vítima de um mundo
em que o “parceiro foge à obra comum” obrigando-a a trabalhar para
sobreviver, e uma vez que “naturalmente mais fraca e agravada mais com o
ônus da procriação, gestação, maternidade, aleitamento, criação e educação
dos filhos” (PEIXOTO, 1953, p. 1999) não consegue ganhar a vida como os
homens. Doentes sociais, esses dois tipos de mulheres se distinguem pela
culpabilização da primeira e vitimização da segunda.
Visto como um apavorante afrouxamento nos costumes, a maior
circulação de mulheres pela cidade trouxer transformações na imagem
feminina que passou de ociosa à fútil (RAGO, 2008, p. 67-79) e, para
Afrânio Peixoto e outros tantos criminalistas, potencialmente prostituta.
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012
Afrânio aponta as vítimas (1953, p. 201-202): as divorciadas; as que casaram
muito cedo; as que recebiam pouco salário (professoras, governantas); as
com pouca instrução (domésticas, copeiras, costureiras, arrumadeiras, aias);
e as de “ofícios de passagem” (cantoras, cabeleireiras e manicures). Todas
apresentam potencial à prostituição. Ao que parece, o trabalho das mulheres
no espaço urbano é visto como um passo à prostituição vitimizada, assim
como também os lazeres da cidade incitavam a mulher moderna que estava
a um passo da devassidão.
Presente nos textos de Lenídio Ribeiro ou, ainda, em Nelson Hungria
a “mulher moderna”, participante da cidade, pelo trabalho e/ou pelo lazer,
apontada por Viveiro de Castro já em fins do século XIX (1932, p. 21)
como a causa de desagregação da família e, consequentemente, da sociedade,
precisava ser contida.
Essa contenção foi edificada no Código Penal de 1940. A expansão
dos meios de comunicação na vida urbana, nesse período, é vista como
negativa às mulheres. Uma mulher que saiu “da proteção da intimidade
vigilante do lar, para ir trabalhar e/ou receber uma educação moderna,
tornou-se objeto de toda sorte de sedução”. (PEIXOTO, 1953, p. 126).
Impressionáveis e menos racionais as mulheres modernas do pós-Primeira
Guerra Mundial, não possuiriam força moral para sua própria proteção.
Esse fato afetaria a estrutura da família brasileira. O rádio, a imprensa e o
cinema são vistos nesses enunciados como “disseminadores de imagens de
uma modernidade moralmente questionável”. (MUNIZ, 2006).
Dessa forma, o discurso científico da Criminologia do período se
aproxima dos ditames da Igreja Católica que, a partir do pontificado de
Pio IX, condenava o mundo moderno. Passando pelo Papa Leão XIII até
Pio X, que, em 1910, determinou que “todos os candidatos a ordens
religiosas deviam prestar juramento abjurando o modernismo” (FISCHERWOLLPERT, 1991), o papado condenava a chamada vida moderna.
A presença de mulheres no espaço público, o movimento sufragista
em curso, as organizações operárias (comunistas e anarquistas), os meios
de comunicação, o tenentismo e a arte moderna dos anos 20 (séc. XX),
criavam apelos receosos contra um mundo moderno em que a família e “a
casa deixa de ser o centro da cidade, das decisões e passa a funcionar como
refúgio familiar”. (MUNIZ, 2006). Refúgio posto em risco pela existência,
nas palavras do jurista Francisco Viveiros de Castro, de uma mulher
“dominada que foi pela ideia errônea de sua emancipação faz tudo para
perder o respeito, a estima e a consideração do homem”. (CASTRO, 1932).
MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
239
De qualquer maneira, a mulher moderna e a mulher desamparada,
num processo de circularidade, seriam resultado da “influência familiar” e
causa de sua desestruturação. Sobre a família, Peixoto aponta como fatores
desagregadores: a ausência da figura do homem, o alcoolismo, a conduta
imoral da mãe, os pais separados ou falecidos, ou ainda, nas famílias que ele
considera como normais, o grande número de filhos que impedia a “vigilância
moral”. (PEIXOTO, 1953, p. 200).
Não sendo menos criminosas que os homens, as mulheres teriam,
entretanto, delitos específicos, tais como: o aborto, o infanticídio e o
envenenamentos e, ainda, eram ao mesmo tempo vítimas e causadoras de
crimes passionais, ditos “românticos”. Condena tanto os homens quanto
as mulheres que se deixavam levar pela sentimentalidade e criticava a
benevolência dos juízes, jurados e da imprensa com relação a um crime
tributário “desse estúpido século do Romantismo...” que propagou a “terrível
civilização romântica que tirou a mulher de seu trabalho colocando-lhe o
desejo no lugar”. (PEIXOTO, 1953, p. 90).
A mulher moderna, mundana, estava presente nos “teatros, cinemas,
modistas, palaces, salões, academias, chás, cabarés, praias de banho, dancings,
viagens, divertimentos, perversões”. Espaços esses para servir o amor
“perverso, assassino, imoral e torpe”. (PEIXOTO, 1953, p. 113).
Para ele as mulheres economicamente superiores eram “manequim de
futilidades e jóias, trapos caros e cheiros caríssimos, que demandam para
servi-las, criados, carruagens, palácios”. Eram produtos de uma sociedade
“doida pelo prejuízo sensualista, individualista, burguês, explorador”.
(PEIXOTO, 1953, p. 114). O que Afrânio Peixoto condenava através de sua
tipologia de mulheres eram o individualismo e a liberdade da sociedade e
da cidade moderna. Para ordenar a cidade, diversos de seus antecessores
que postulavam uma Criminologia científica de base biológica, mesmo que
a essa não se opusesse, Afrânio Peixoto acrescentou premissas que se
aproximam sobremaneira do viés católico,14 num momento conturbado
também pela ação das sufragistas no Brasil.
Não por acaso, as principais mudanças efetuadas no Código Penal de
1940 dizem respeito à família e aos direitos sexuais. Esse código, tendo
por base o pensamento da nova criminologia, se apresentava como uma
tentativa de contenção moral e recondução das “mulheres para se dedicarem
exclusivamente à maternidade, aos cuidados com os filhos, maridos etc...
como guardiãs da moral e dos bons costumes”. (HUNGRIA; LACERDA, 1956,
p. 187).
240
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012
O crime de sedução presente nesse código colocava o corpo das mulheres
– seus hímens – como objetos de tutela do Estado. Muniz (2006) assinala
a permanência, no Código Penal de 1940, da figura do homem como chefe
do casal, e a retirada da “questão de honra da família”, que anteriormente
era tido como um direito e obrigação moral dos homens de reagirem contra
os outros homens e contra as mulheres de sua família.
Nesse contexto de fortalecimento do poder do Estado em detrimento
do poder patriarcal, os corpos das mulheres são deslocados simbolicamente.
Sua “virtude” passa a pertencer à sociedade como um todo e tem no Estado
seu principal guardião.
Importante é observar que a Criminologia no Brasil, na primeira metade
do século XX, apresentava um viés contrário aos postulados da Criminologia
do período precedente no que se refere às mulheres. Lembrando as análises
de Olivier Faure (2008, p. 55), é preciso assinalar que as correntes da
neurofisilogia, neurofisilogia evolutiva, anatomofisiológica, eugenista e
sanitarista haviam recriado o maternalismo intrínseco às mulheres sob um
viés científico e por diversos caminhos. A maternidade foi vista, nessas
perspectivas, como antídoto tranquilizador ao excesso de fluxo menstrual
que as ensandecia; como propícia à contenção moral da sociedade devido à
sua evolução primitiva e imune ao progresso, grande causador da
criminalidade; como destino anatomofisiológico excludente das atividades
intelectuais e delimitador do espaço público/privado; e, ainda, como
detentora da profilaxia física e moral.
Não sem razão, a Primeira Geração do Feminismo organizou-se em
busca de direitos de cidadania em nome ainda do maternalismo, todavia
realizando um deslocamento substancial. A Criminologia, na primeira metade
do século XX, no Brasil, retirou o poder moral e o maternal posto como
intrínseco às mulheres, e existentes nos discursos precedentes, e as colocou
como indesejáveis no espaço público, prováveis prostitutas, incapazes de
racionalidade, excessivamente sensíveis, um ser inferior. Uma maternidade,
novamente como antídoto, mas não contra a imoralidade do mundo
moderno, mas contra a imoralidade ou doença dela própria. Uma misoginia
latente que segue pari passu com a concretude de mulheres em espaços
“nunca dantes navegados”, tais como o próprio Direito e a medicina.
A defesa e a ressignificação do maternalismo efetuado pelas sufragistas
brasileiras se insere nesse contexto de disputa com as representações dos
criminologistas e dos juristas.
MÉTIS: história & cultura – MOREIRA, Rosemeri – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
241
Notas
A medicina no século XIX foi
institucionalizada como o saber que orienta
a sociedade e que constrói o corpo dando a
ele um sexo e um futuro. Esse saber foi
expandido, não sem embates, seletividade e
resistências, para outros campos e lugares,
como é o caso do saber jurídico. (ALVAREZ,
2004).
1
Alvarez (2003) aponta resistências à
Criminologia italiana na França, efetuada
pela Escola de Lyon tendo como principal
representante o médico Alexandre
Lacassagne, que enfatizava o meio social
como “caldo de cultura” do crime.
2
Essa junção parece não ter sido encerrada
na atualidade mesmo em algumas teorias
feministas criticadas por Judith Butler e
Elizabeth Badinter (1983). A primeira critica
a política identitária que exclui do feminino
os sujeitos e grupos que não nasceram com
o corpo classificado como sendo de uma
mulher. Para ela, essa exclusão se encontra
baseada ainda na construção binária do
sistema sexo/gênero e tem o corpo como
referente. (BUTLER, 2008). Badinter assinala
que a ênfase no maternalismo é incapaz de
superar a hierarquia entre homens e
mulheres.
3
Mariza Corrêa (1982) aprofunda a reflexão
sobre a constituição e consolidação das
especializações médicas e, partindo do
pensamento de Nina Rodrigues, enfoca as
disputas institucionais e a relação entre a
medicina e antropologia.
4
Segundo Maio (1995, p. 231), a cadeira
de Medicina-Legal surgiu em 1832,
momento de reforma curricular em que as
academias médico-cirúrgicas passaram a ser
Faculdades de Medicina. Para esse autor, os
memorialistas de Nina Rodrigues, muitos
5
242
deles seus ex-alunos, nos anos 30 e 40 do
séc. XX é que construíram a ideia de uma
“Escola Nina Rodrigues”.
A Escola de Direito do Recife foi criada
em 1854 com a transferência da Faculdade
de Direito de Olinda. Os primeiros cursos
de Direito no Brasil foram criados em 1827,
em São Paulo e Olinda. Segundo Ricardo
Fonseca, esses cursos eram baseados numa
concepção jusnaturalista, teológica e préliberal. Um curso muito próximo dos
ensinamentos de Coimbra. (FONSECA,
2005).
6
Uma mescla do pensamento de Cesare
Lombroso, Enrico Ferri (1856-1929) e
Rafaello Garofalo (1852-1935).
7
Paulo Egídio de Carvalho (1842-1906),
professor na Faculdade de Direito de São
Paulo, ex-aluno de Afrânio Peixoto, foi o
autor e diretor do projeto do Instituto
Disciplinar para menores abandonados e
delinquentes em São Paulo, inaugurado em
1902. Também em São Paulo foi fundada,
em 1922, a Sociedade de Medicina-Legal e
Criminal de São Paulo.
8
Com a tiragem total de noventa obras
impressas, alcançou ao todo 599.200
exemplares. (MOTA, 1994, p. 147).
9
ACAYABA, Cíntia. Mulher deve evitar
homem “pudim de cachaça” para se
proteger, diz juiz do RS. Folha de São Paulo,
São Paulo, 8 ago. 2008.
10
O autor apresenta diversos dados para
comprovar essa relação, mas afirma que o
disendocrinismo – mau funcionamento do
sistema endócrino – “é uma condição
facultativa do crime, e não suficiente ou
necessária”. (PEIXOTO, 1953, p. 64).
11
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012
12
Idem, passim, p. 55, 57, 59, 61. Peixoto
discorre longamente para explicar que a
produção da foliculina ocorrida no processo
periódico de ovulação, menstruação ou
gestação, regulava a “maquinaria feminina”.
Principalmente a Encíclica Graves de
Communi Re (Papa Leão XIII, 1901).
13
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 229-244, jan./jun. 2012
Atti di un processo per stupro: o interrogatório de
Artemisia Gentileschi no olhar do gênero1
Atti di un processo per stupro: the interrogation of
Artemisia Gentileschi under the view of gender
Cristine Tedesco*
Resumo: O artigo pretende analisar um
dos interrogatórios presentes nos autos do
processo-crime Stupri et lenocinij Pro
Curia et Fisco requerido por Orazio
Gentileschi em 1612. A súplica de
abertura do processo denuncia Agostino
Tassi pelo desvirginamento forçado
cometido contra Artemisia Gentileschi,
ambos pintores da Roma seiscentista.
Realizamos uma investigação atrelada às
discussões de gênero, pois entendemos que
as relações de poder entre o feminino e o
masculino são construídas culturalmente,
e que as identidades subjetivas de homens
e mulheres possuem origens sociais.
(SCOTT, 1990). Aproveitamos, ao mesmo
tempo, da metodologia de análise da
micro-história empregada por Carlo
Ginzburg (1989), uma vez que a pesquisa
Abstract: This article intends to analyze
one of the interrogations in the lawsuit
Stupri et lenocinij Pro Curia et Fisco
required by Orazio Gentileschi in 1612.
The opening plea of the lawsuit
denounces Agostino Tassi for forced
devirgination commited against Artemisia
Gentileschi, both of them Roman
painters from the 1600’s. We made an
investigation connected to the discussions
of gender as we understand that the
relations of power between the masculine
and the feminine are culturally built and
the subjective identities of men and
women have social origins. (S COTT ,
1990). We used the methodology analysis
from micro-history applied by Carlo
Ginzburg (1989), once the research is
turned to an individual trajectory, but
Este trabalho é parte da pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), sob o título provisório: E non dite
che dipingeva come un uomo: processo-crime, tormentos das sibilas e legado pictórico de
Artemisia Lomi Gentileschi num olhar generificado da história.
* Graduada em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Mestranda no
Programa de Pós-Graduação em História da UFPel. Orientação: Profa. Dra. Rejane Barreto
Jardim. E-mail: tedesco.cristi@gmail.com
1
MÉTIS: história & cultura – TEDESCO, Cristine – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
245
está voltada para uma trajetória
individual, mas permite outras
possibilidades de entendimento do
contexto do século XVII, além daquelas
já enraizadas na historiografia.
Palavras-chave: gênero; Artemisia
Gentileschi; processo-crime.
allows other possibilities of understanding
the context of the 17th century, besides
those already rooted in the historiography.
Keywords: gender; Artemisia Gentileschi;
lawsuit.
Introdução
Os estudos desenvolvidos por Carlo Ginzburg, na obra O queijo e os
vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição (1987),
a partir de dois processos abertos contra Domenico Scandella, o
“Menocchio”, distantes 15 anos um do outro e que culminaram em sua
morte por ordem do Santo Ofício, estabelecem uma discussão que
pretendemos também desenvolver no presente artigo.
Para Ginzburg, os acontecimentos históricos individuais podem
contribuir para explicações mais complexas da sociedade. Nesse caso, o
processo-crime desencadeado contra Agostino Tassi pode nos ajudar a
entender uma lógica social mais ampla no que se refere às relações de gênero.
Uma das questões importantes trazidas pela obra é a própria existência das
fontes sobre “Menocchio”, que contrariam as explicações da história
tradicional, o moleiro, inserido nas camadas populares, mostra que a
historiografia ainda não deu conta de muitos eventos.
Uma situação semelhante é apresentada pelas fontes sobre Artemisia
Gentileschi, nascida em Roma, aos 8 dias do mês de julho de 1593, filha de
Prudenza Montore e Orazio Gentileschi. Um dos principais marcos de sua
vida foi, sem dúvida, o ano de 1612 quando um processo foi aberto por
seu pai, em Roma, contra o pintor Agostino Tassi, acusado de desvirginá-la
forçadamente no ano anterior. Durante esse período, Tassi e Gentileschi
realizavam juntos a pintura do Casino delle Muse no Palazzo Rospigliosi.
Encerrado o processo que julgou Agostino Tassi de forma superficial, pelo
menos aos olhos de Artemisia, a pintora sai de Roma e se estabelece com
seu marido Pietro Antonio Stiattesi – união que foi arranjada pelo pai –
em Florença. Se Tassi não foi devidamente punido no tribunal, o será
através das representações pictóricas de Artemisia Gentileschi, marcadas
tecnicamente pelo caravaggismo romano, estilo florentino e pelo classicismo
napolitano.
246
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 245-259, jan./jun. 2012
Diferentes áreas do conhecimento produziram ao longo do tempo
verdades que nos parecem ainda presentes nas ciências: a ideia de que as
fontes sobre as mulheres são escassas. Isso acabou se tornando, como já
afirmou Michelle Perrot (1995), um pretexto para o silêncio e desencadeou
a existência de lacunas sobre as mulheres. Além dessa problemática, temos
o impasse da criação artística, que, por muito tempo, foi explicada pela
existência dos gênios.
As mulheres foram destinadas a ser as grandes musas dos então, gênios
da pintura. Uma analogia entre “Menocchio” e Artemisia Gentileschi é
identificada no sentido de que ambos não fazem parte das explicações da
história tradicional. É preciso entender que as mulheres não tiveram uma
história separada daquela dos homens, e que as fontes que hoje nos chegam
apontam à necessidade de uma revisão do saber histórico.
Para o presente estudo, não podemos deixar de considerar as reflexões
de Natalie Zemon Davis elaboradas ao longo da obra Nas margens: três
mulheres do século XVII, publicada nos Estados Unidos, em 1995 e traduzida
para o português em 1997. O texto constitui uma experiência de microhistória, guiada por uma inquietação, indicada pela historiadora no prefácio,
dirigida às três mulheres: Glikl bas Judah Leib (comerciante de Hamburgo,
mãe de 12 filhos e autora de uma biografia de sete volumes); Marie de
l’Incarnation (fundou a primeira escola cristã para mulheres ameríndias na
América do Norte); e Maria Sibylla Merian (naturalista protestante que se
embrenha na selva do Suriname para desenhar flores, insetos e lagartas).
Natalie Z. Davis dirige-se às três mulheres: “Procurei descobrir se vocês
tiveram de lutar contra a hierarquia dos sexos.” (DAVIS, 1997, p. 13). Essa
concepção demonstrada pela autora estará inserida nas problematizações de
Joan Scott (1990) quando define o conceito de gênero como um saber sobre
a diferença sexual construída social e culturalmente.
As mulheres estudadas por Davis, ainda que vivessem na periferia dos
centros políticos da Europa do século XVII ou, como dito pela própria
pesquisadora: “nas margens”, revelam questões importantes sobre o início
do mundo moderno. Mulheres que assumiram lugares diferentes daqueles
criados para elas pelos diferentes discursos em voga naquele contexto. O
questionamento feito por Davis, também é norteador para outras pesquisas
que tenham como objeto as mulheres.
Podemos nos perguntar, no caso da pesquisa aqui desenvolvida, por
exemplo: Artemisia Gentileschi precisou lutar contra a hierarquia dos sexos?
Ou ainda, utilizando-nos dos Estudos de Gênero: como os discursos,
MÉTIS: história & cultura – TEDESCO, Cristine – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
247
direcionados aos corpos sexuados, atuaram ou não sobre as mulheres? Além
disso, é possível perguntar: que importância teria o estudo histórico sobre
uma pintora do barroco romano para o saber histórico?
Diferentes olhares direcionados às fontes
As pesquisas nutridas pelo interesse de estudar personalidades individuais
têm perseguido “fios e rastros”, para usar uma expressão de Carlo Ginzburg
(2007). Nossas aproximações sucessivas com o objeto de pesquisa, por
vieses diferentes, criaram possibilidades para lançar questionamentos a partir
de uma inquietação que se demonstra interdisciplinar.
Do ponto de vista da produção pictórica, ainda que não sejamos
historiadores da arte, podemos contribuir para uma compreensão mais
aprofundada dos documentos figurativos, dentre os quais se apresentam as
obras de Artemisia Gentileschi. Foi através dos códigos da linguagem
imagética que a pintora nos legou sua visão de mundo e sua releitura sobre
os dramas das mulheres-heroínas, narrados pelos textos bíblicos do Antigo
Testamento. Judite, Ester, Madalena, Jael e Susana, representadas por
Artemisia Gentileschi, em algumas de suas obras, remetem à posição da
artista diante de suas histórias e sugerem uma atitude assumida por ela
diante de uma conjuntura marcada, também, pelas tensões de gênero.
Para a análise dos documentos escritos (autos do processo-crime e
cartas escritas por Artemisia Gentileschi – por meio das quais discutiu a
produção e valores a que seriam vendidas suas pinturas), estabelecemos
outras questões. Dentre elas, podemos destacar a preocupação com a
construção dos discursos normativos que determinavam funções para homens
e mulheres a partir de uma lógica androcêntrica e que também se fazem
presentes no contexto do século XVII.
Dessa maneira, discursos e atuações sociais são os dois grandes eixos
da pesquisa. Detemo-nos, agora, na discussão sobre um dos interrogatórios
do processo-crime requerido por Orazio Gentileschi, que acusava Agostino
Tassi de ter desvirginado forçadamente sua filha Artemisia Gentileschi.
Realizamos tal seleção devido ao início dos trabalhos de tradução da fonte,
desempenhada por Celso Bordignon e Vicente Pasinatto .2 A tradução,
ainda inédita em Língua Portuguesa, conta com o apoio do Museu dos
Capuchinhos do Rio Grande do Sul, localizado na cidade de Caxias do Sul.
248
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 245-259, jan./jun. 2012
Considerações sobre o Interrogatorio di Artemisia3
Aos 28 dias do mês de março de 1612, na casa de seu pai, cidade de
Roma, Artemisia Gentileschi é interrogada sobre as circunstâncias em que
o desvirginamento teria ocorrido. Quando questionada por Francesco
Bulgarello, que falava em nome da Cúria e do Fisco romanos, se sabia os
motivos pelos quais estava sendo inquirida, Artemisia, sob juramento de
“verdade”, afirma que sim. E interrogada para que declarasse o motivo pelo
qual supunha o estar sendo, Artemisia Gentileschi explica aquilo que para
ela constitui “a verdade”.
A pintora inicia sua narrativa dos acontecimentos que precedem o
desvirginamento lamentando o fato de ter sido alcovitada por Tuzia. Ela
garante ao interrogador ter sido a contribuição da inquilina Tuzia elemento
fundamental para o facilitado acesso, que teve Tassi ao interior da casa,
culminando no ato. Na primeira parte do interrogatório, Artemisia indica
que Agostino Tassi esteve em sua casa pelo menos duas vezes na companhia
de Cosmo,4 o qual tentou persuadi-la de tratar bem Tassi, pois esse seria
um homem distinto, elegante, boa figura. Diante disso e
recusando eu de fazer tal coisa e demonstrando de ter nojo que
ele me tratasse deste modo ele acrescentou: “Não destes a tantos,
poderias dar também a ele [Agostino]”. Eu então respondi a Cosmo
com cólera que, de palavras de patifes como ele eu tinha pouca
consideração e por isto se retirasse da minha frente e lhe virei as
costas.5 (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 17-18).
No segundo momento do interrogatório, Artemisia Gentileschi descreve
ao interrogador, o fatídico dia do desvirginamento forçado. Encontrando,
Agostino Tassi, a porta aberta da casa da família Gentileschi, entrou e se
deparou com Artemisia trabalhando na produção de uma pintura.6 Ele,
bruscamente, “me tomou a palheta e os pincéis da mão e os jogou em volta
e disse a Tuzia: “Vá embora daqui” e dizendo eu a Tuzia que não fosse e não
me deixasse que eu lhe havia acenado, no entanto ela disse: “Não quero
estar a discutir aqui quero ir com Deus [em paz]” .7 (ARTEMISIA apud MENZIO,
2004, p. 19).
Tomando Artemisia pela mão e percorrendo o espaço da sala até chegar
na porta do quarto, empurrou-a para dentro e trancou a porta.
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249
Me jogou sobre a borda [beira] da cama dando-me com uma mão
sobre o peito, me colocou um joelho entre as coxas [para] que eu
não pudesse fechá-las e levantando-me as vestes, que fez grande
esforço para levantá-las, me colocou um lenço à garganta e à boca
para [que] assim [eu] não gritasse e a mão como antes me retinha
com a outra mão me deixou, tendo esse antes colocado todos os
dois joelhos entre as minhas pernas e apontando-me o membro à
natureza [vagina] começou a empurrar e o colocou dentro que eu
sentia que me queimava forte e me fazia grande mal que pelo
impedimento que me segurava à boca não podia [eu] gritar,
também tentava gritar o melhor que podia chamando por Tuzia.
E lhe arranhei o rosto e lhe arranquei os cabelos e antes que o
metesse dentro ainda lhe dei uma doída [grande] apertada ao
membro que lhe arranquei ainda um pedaço de carne, com tudo
isto ele não considerou [avaliou] nada e continuou.8 (ARTEMISIA
apud MENZIO, 2004, p. 19).
A partir dessas afirmações de Artemisia Gentileschi, é possível fazer
algumas considerações sobre sua relação com Agostino Tassi. Fica
evidenciado, em seu depoimento, que o ato sexual não foi realizado com
seu consentimento. Na sequência, a artista menciona, ainda, que foi, com a
promessa de ser desposada 9 por Agostino, induzida a consentir
amorosamente com as vontades de Tassi por muitas vezes ainda.
Notamos que durante o interrogatório, Artemisia Gentileschi salienta
nunca ter estado com outros homens, isso possivelmente ocorreu por conta,
principalmente, dos comentários de Cosmo, que insistia em denegrir a
imagem de Artemisia Gentileschi. Salientamos, assim, a importância do
conceito de gênero para pensar a respeito dos elementos presentes, tanto no
interrogatório de Artemisia como ao longo dos outros depoimentos que
compõem o processo-crime. Em diversos momentos, podemos perceber as
tensões entre as ditas verdades de Artemisia Gentileschi, Agostino Tassi e
Tuzia, que estão sendo analisados nesta fase da pesquisa. O olhar do gênero
nos permite encontrar uma Artemisia Gentileschi que foge das normas de
comportamento feminino elaboradas pelos discursos do período.
Ao ser, no dia 2 de março de 1612, Tuzia,10 interrogada no cárcere
[cadeia] da Tor di Nona por Francesco Bulgarello e Porzio Camerario sobre
as relações entre Agostino e Artemisia (inquilina da família Gentileschi)
confirma o depoimento de Artemisia e sustenta que Agostino foi o único
homem com o qual esteve a sós. Ao afirmar, também sob juramento de
250
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verdade, não saber o motivo pelo qual estava encarcerada, Tuzia contradiz
as palavras de Artemisia Gentileschi, a qual afirmou terem se encontrado na
casa da própria família Gentileschi: Tassi, Cosmo e Tuzia, dias antes da
abertura do processo, onde teriam conversado sobre o que diriam se fossem
presos. No segundo interrogatório de Tuzia, realizado no dia 23 de março
de 1612, no cárcere [cadeia] da Tor di Nona [Torre Nona], foi a inquilina
dos Gentileschi
interrogada para que diga se já viu o dito Agostino sozinho com a
dita Artemisia, quantas vezes e onde.
Respondeu: Muitas vezes vi o dito Agostino sozinho no quarto
com a dita Artemisia que ela estava na cama espoliada [com pouca
roupa, nua] e ele estava vestido; que eu os encontrava por ocasião
que descia para baixo, que estavam burlando [brincando] juntos e
o dito Agostino estava às vezes jogado [estirado] sobre a cama assim
vestido. E eu a repreendi muitas vezes na presença também do
mesmo Agostino e ela me dizia: “Que queres! Cuida-te de ti e não
te intrometas naquilo que não te toca [não te diz respeito].”11
(TUZIA apud MENZIO, 2004, p. 32).
Mas como resolver o impasse diante das afirmações de Artemisia
Gentileschi e a inquilina de sua família, Tuzia? Uma das possíveis questões,
e mais relevante do que saber, afinal, qual das duas teria relatado de forma
mais fidedigna o ocorrido, é entender as relações de poder que envolvem e
até contribuem para determinadas ações dos indivíduos. Torna-se
significativo, além disso, compreender como o poder age sobre os indivíduos.
Para entender as diferentes problemáticas presentes nessa conjuntura,
no interior da trama histórica, como diria Foucault (2007), é necessário
perceber que “a ‘verdade’ está circularmente ligada a sistemas de poder, que
a produzem e apóiam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem”.
(p. 14). O poder produtor de discursos, como afirma o mesmo autor, deve
ser considerado ainda “como uma rede produtiva que atravessa todo corpo
social”. (p. 8).
A insurreição dos saberes dominados de que trata Foucault (2007) é
fundamental para refletirmos sobre as mulheres. “Por saber dominado12
entendo duas coisas: por um lado, os conteúdos históricos que foram
sepultados, mascarados em coerências funcionais ou em sistematizações
formais. [...] Uma série de saberes que tinham sido desqualificados como
MÉTIS: história & cultura – TEDESCO, Cristine – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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não competentes, hierarquicamente inferiores.” (p. 170). Assim, do
reaparecimento de saberes que “estão embaixo”, também fazem parte os
estudos que possuem como objeto de pesquisa as mulheres.
Aproveitamos discussões já elaboradas por Michel Foucault na obra A
arqueologia do saber, quando salienta:
Para a história, em sua forma clássica, o descontínuo era, ao mesmo
tempo, o dado e o impensável; o que se apresentava sob a natureza
dos acontecimentos dispersos – decisões, acidentes, iniciativas,
descobertas – e o que devia ser, pela análise, contornado, reduzido,
apagado, para que aparecesse a continuidade dos acontecimentos.
A descontinuidade era o estigma da dispersão temporal que o
historiador se encarregava de suprimir da história. [...] O tema e a
possibilidade de uma história global começam a se apagar, e vê-se
esboçar o desenho, bem diferente, do que se poderia chamar uma
história geral. (2008, p. 14-15).
As críticas em torno do saber histórico construído, assumidas por
diversos historiadores que questionaram sua neutralidade e sua base universal,
contribuíram para a transformação das abordagens globais da história, da
qual o desenvolvimento de estudos sobre as mulheres é tributário. Essas
reflexões implicaram outras questões; entendeu-se, por exemplo, que as
relações amorosas também se constituíam como relações de poder, e que a
existência de discursos políticos, religiosos, comportamentais, médicos,
destinados às mulheres ao longo dos séculos, não implicava, necessariamente,
que elas consentissem diante deles. Dessa forma, a relação entre homens e
mulheres passou a ser pensada como tensa e complexa, não mais de domínio
do masculino sobre o feminino.
O que foi também modificado de maneira significativa foi o olhar
negligente que muitos historiadores tinham diante das fontes. Para Michelle
Perrot (2000), é necessário, nos estudos sobre mulheres, considerar os poderes
multiplicados na sociedade, não esquecendo os contrapoderes através dos
quais as mulheres subvertem seus papéis aparentes. A mesma autora afirma
ainda que o poder “não se resume ao constrangimento ou à tomada de
decisão; ele consiste mais ainda na produção de pensamentos, dos seres e
das coisas por todo um conjunto de estratégias”. (PERROT, 2005, p. 263).
252
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Considerações finais
Neste primeiro contato com os autos do processo-crime que
constituem uma das principais fontes escritas que compõem o material
empírico utilizado na presente pesquisa, nos deparamos com o surgimento
de uma série de novas perguntas ao objeto de investigação. No que diz
respeito ao corpo feminino, por exemplo, Artemisia Gentileschi afirma,
quase no fins do seu primeiro interrogatório:
Houve bem, depois da primeira vez muitas outras vezes que [o]
dito Agostino me conheceu carnalmente [manteve relações sexuais],
fez sangue [sangrou] e perguntando eu o que significava este sangue
disse Agostino, ele me dizia que vinha [sangrava] porque eu era de
fraca constituição física.13 (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 2021).
O enfoque sobre o corpo feminino é uma das possibilidades para análise
do processo, já que o silêncio em torno “das histórias das mulheres” pesa
primeiramente sobre seus corpos, como indica Michelle Perrot (2003).
Vale lembrar que o interrogatório analisado precede pelo menos outros
15 interrogatórios. Agostino Tassi, acusado pelo desvirginamento forçado
de Artemisia, por exemplo, é interrogado seis vezes, além das acareações
com a testemunha Giovanni Battista Stiattesi e com Artemisia Gentileschi.
Durante a acareação entre Tassi e Artemisia, a jovem pintora é questionada
se está preparada para ratificar seu depoimento também nos suplícios.
“Respondeu: Sim Senhor que estou pronta também a confirmar nos
tormentos [nas torturas] o meu depoimento e onde for necessário”.14
(ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 80). Assim, o juiz,
para evitar toda a mancha de infâmia e qualquer dúvida que possa
surgir contra ela ou daquilo que ela disse, já que parece ter
culpabilidade no crime, e para melhor colaborar e fortalecer o
que disse, para toda outra boa finalidade e efeito mais eficiente,
decretou e ordenou, perante a cabeça e a cara [rosto] do
incriminado [Agostino] sujeitar-se aos tormentos das sibilas
levando-se em consideração que ela é mulher e que, pela
aparência, tem 17 anos.15 (CONFRONTO TRA AGOSTINO E ARTEMISIA
apud MENZIO, 2004, p. 80, grifo nosso).
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Antes do guarda do cárcere aplicar a tortura das sibilas, Artemisia foi
advertida para que não culpasse injustamente Agostino Tassi e que, para
provar o que dizia, deveria se submeter à tortura: “O fato narrado por ela,
mesmo que seja verdade, tudo deve ser confirmado mesmo nos tormentos
das sibilas”.16 (CONFRONTO TRA AGOSTINO E ARTEMISIA apud MENZIO, 2004,
p. 80).
As sibilas – profetizas da mitologia greco-romana, estão relacionadas
aos oráculos da Antiguidade – eram conhecidas por serem fiéis à verdade. A
tortura consiste em posicionar as mãos do acusado ou do indivíduo do
qual se quer obter a verdade, diante do peito na posição de oração, enrolar
uma espécie de barbante grosso ou corda entre cada um dos dedos e, aos
poucos, ir apertando com um torniquete, até que se consiga a verdade. O
torniquete poderia ser apertado até cortar ou quebrar os dedos do
interrogado.
Artemisia aceita provar suas palavras através de tortura. O juiz manda
o guarda do cárcere,
acomodar as sibilas e mãos juntas ante o peito e entre cada um dos
dedos, ajustadas as sibilas como de costume, segundo o uso, diante
da cabeça e da face dele [Agostino], comprimia [apertava] com os
fios da corda [espécies de barbantes muito grossos], ela começou a
dizer: É verdadeiro, é verdadeiro, é verdadeiro, é verdadeiro,
muitas e muitas vezes repetindo estas [preditas] palavras e depois
disse: Este é o anel que tu me dás e estas são as promessas?
[referindo-se às sibilas].17. (ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p.
80-81, grifo nosso).
A jovem foi interrogada mais vezes, e o torniquete era apertado. Repetia
sempre “È vero, è vero, è vero, è vero, tutto quello che ho detto. [É verdadeiro,
é verdadeiro, é verdadeiro, é verdadeiro tudo aquilo que [eu] disse”].18
(ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 81). Tassi, por sua vez, repetia: “Não é
verdadeiro, tu o mente pela goela [boca]”.19 (TASSI apud MENZIO, 2004:
81). E o torniquete seguia sento apertado pelo guarda. Artemisia replicava
as declarações de Tassi reafirmando que seu depoimento era verdadeiro.
Considerando as declarações dos dois, o juiz mandou parar a tortura. “Como
estivesse sentada num exíguo lugar, foi libertada.”20 (CONFRONTO TRA
AGOSTINO E ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 81).
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Uma questão que nos intriga é: por que para Artemisia foi indispensável
a aplicação da tortura das sibilas para que se comprovassem suas declarações?
E por que para Tassi essa possibilidade nem sequer foi cogitada pelos juízes,
ainda que tivesse entrado em contradição muitas vezes durante seus
interrogatórios? Podemos dizer que é por uma questão de gênero?
Sobre as possiblidades da pesquisa, podemos pensar, também, a partir
das problemáticas que surgem no processo-crime e do potencial das fontes
já mapeadas (cartas e obras pictóricas da artista), que se demonstram
importantes e significativas para a construção do conhecimento histórico,
na possibilidade de um estudo biográfico sobre Artemisia Gentileschi. A
esse respeito, a obra de caráter biográfico organizada por Ottavia Niccoli
(1991) e intitulada: Rinascimento al femminile, contribui para refletirmos
sobre a presença das mulheres em diferentes espaços da sociedade: viúvas,
humanistas, prostitutas, curandeiras, bruxas, freiras da contrarreforma...
Através dessas figuras, de diferentes particularidades, a historiadora perguntase na introdução da obra: seria possível um rinascimento per le donne?21
Segundo Niccoli (1991), a obra não pretende ser uma história das mulheres
no renascimento, contudo é, sim, uma tentativa de refletir sobre as distintas
faces do renascimento, inclusive, para as mulheres. A pesquisadora afirma
que “le serie di biografie femminili non sono una novità: anzi sappiamo
che si tratta di un genere storiografico antico, inaugurato da Plutarco con
le sue Mulierum virtutes e poi proseguito con grande fortuna nel medioevo
e soprattutto nel rinascimento”.22 (NICCOLI, 1991, p. 8).
Nesse sentido, é possível pensar também o período barroco italiano
à luz das fontes sobre a vida pública e privada de Artemisia Gentileschi? A
pintora, que era antes de tudo uma mulher, constitui um dos casos mais
conhecidos de participação feminina na arte pictórica barroca do século
XVII. Assim, teriam outras mulheres almejado ou ainda legitimado sua
presença em profissões artísticas no período barroco, contrariando as normas
dirigidas a elas pelos discursos? Esses são alguns dos nossos questionamentos,
que nos permitem reafirmar a importância de extrapolar os usos
metodológicos da micro-história por meio de um olhar microscópico da
sociedade, aqui efetivado pelo estudo de Artemisia Gentileschi e a rede de
relações estabelecida por ela, incorporando, principalmente, os debates
relativos ao gênero.
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Notas
Mestre (1993) e Doutor (2000) em
Arqueologia Cristã pelo Pontifício
Instituto de Arqueologia Cristã (Piac), de
Roma. Bordignon detém-se à tradução
literal dos interrogatórios do processocrime, em Língua Italiana arcaica, e
Vicente Pasinatto realiza as traduções dos
questionamentos feitos pelo interrogador
em Língua Latina.
1
As palavras entre colchetes ajudam a
compreender melhor o texto que, por
vezes, é bastante truncado, pois optamos
pela tradução literal. Os nomes próprios,
na sua maioria, permanecem em italiano.
Ex.: Cosmo [ao invés de Cosme];
Agostino [ao invés de Agostinho];
Francesco [ao invés de Francisco].
Traduzimos do Latim para o Italiano os
nomes próprios, por exemplo: Tutia
[Tuzia]; Artemitia [Artemisia]; Horatio
[Orazio]. O título do processo foi
traduzido para o Português: “Estupro e
libidinagem. Em favor da Cúria [Romana]
e do Fisco [Tesouro Romano].”
2
3
Segundo o que consta no interrogatório:
“Cosmo, porta-voz de Nosso Senhor”.
(ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 17).
Cosmo morreu antes do fim do processo.
“Recusando io di far tal cosa e
mostrando di haver a schifo che lui mi
trattasse in questa maniera lui mi
soggiunse: “N’havete dato a tanti ne
potete dar’anco a lui”. Io all’hora risposi
a Cosmo in collera che di parole di
bricconi come lui ne facevo poca stima e
però che mi si levasse dinanzi e gli voltai
le spalle”. (A RTEMISIA, apud M ENZIO,
2004, p. 17-18). (Trad. de Celso
Bordignon e Vicente Pasinatto).
4
De acordo com o depoimento de
Artemisia Gentileschi, a obra representava
o filho de Tuzia, entretanto não sabemos
se a obra foi concluída nem seu título e
localização.
5
“Mi levò la tavolozza e li pennelli di
mano e li buttò chi là e chi qua e disse a
Tutia: “Vattene via di qui”, e dicendo io a
Tutia che non si partissee non mi lassasse
ch’io l’havevo accennato innanzi lei disse:
“Non voglio stare a contendere qui me
ne voglio andare com Dio”. (ARTEMISIA
apud MENZIO, 2004, p. 19). (Trad. de
Celso Bordignon e Vicente Pasinatto).
6
“Mi buttò su la sponda del letto
dandomi con una mano sul petto, mi
mise un ginocchio fra le coscie ch’io non
potessi serrarle et alzandomi li panni, che
ci fece grandissima fatiga per alzarmeli,
mi mise una mano con un fazzoletto alla
gola et alla bocca acciò non gridassi e le
mani quali prima mi teneva con l’altra
mano mi le lasciò, havendo esso prima
messo tutti doi li ginocchi tra le mie
gambe et appuntatomi il membro alla
natura cominciò a spingere e lo mise
dentro che io sentivo che m’incendeva
forte e mi faceva gran male che per lo
impedimento che mi teneva alla boca non
potevo gridare, pure cercavo di strillare
meglio che potevo chiamato Tutia. E gli
sgraffignai il viso e gli strappai li capelli
et avanti che lo mettesse dentro anco gli
detti una matta stretta al membro che gli
ne levai anco un pezzo di carne, con tutto
ciò lui non stimò niente e continuò.”
(ARTEMISIA apud MENZIO, 2004, p. 19).
(Trad. de Celso Bordignon e Vicente
Pasinatto).
7
8
256
Promessa de casamento.
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 245-259, jan./jun. 2012
Esposa de Stefano Medaglia Romana.
Alugavam algumas peças no andar de cima
da casa dos Gentileschi. À pedido de
Orazio Gentileschi, Tuzia tornou-se
acompanhante de Artemisia.
9
Interrogata ut dicat an unquam viderit
dictum Augustinum de solo ad solum
cum dicta Artimitia et quoties et ubi.
10
Respondit: Più volte ho visto detto
Agostino di solo a solo in camera con detta
Artimitia che lei era letto spogliata e lui
stava vestito; ch’io ce li trovavo con
occasione che calavo a basso che stavano
burlando isieme e detto Agostino stava
delle volte buttato sul letto così vestito.
Et io l’ho ripresa più volte in presenza anco
del medesimo Agostino e lei mi diceva:
“Che volete! Abbadate a voi e non
v’impicciate di quel che non vi tocca”.
(TUZIA apud M ENZIO , 2004, p. 32).
(Trad. de Celso Bordignon e Vicente
Pasinatto).
“Por dominação eu não entendo o fato
de uma dominação global de um sobre
os outros, ou de um grupo sobre o outro,
mas as múltiplas formas de dominação
que podem se exercer na sociedade.”
(FOUCAULT, 2007, p. 181).
11
Agostino m’ha conosciuta carnalmente,
fatto del sangue e dimandando io che
volesse dire questo sangue a detto
Agostino lui mi diceva che veniva perch’io
ero di povera complessione.” (ARTEMISIA
apud MENZIO, 2004, p. 20-21). Trad. de
Celso Bordignon e Vicente Pasinatto).
Trad. de Celso Bordignon e Vicente
Pasinatto.
13
14
Idem.
15
Idem.
16
Idem.
17
Idem.
18
Idem.
19
Idem.
Um renascimento para as mulheres?
(NICCOLI, 1991, p. 5-8).
20
“As biografias femininas não são
novidades: na verdade sabemos que este é
um antigo gênero da historiografia,
inaugurada por Plutarco com sua
Mulierum virtutes, continuando com
grande sucesso na Idade Média e,
especialmente durante o renascimento.”
(NICCOLI, 1991, p. 8). (Tradução nossa).
21
Subdens postea ex se: “Ho ben, doppo
la prima volta molte altre volte che detto
12
MÉTIS: história & cultura – TEDESCO, Cristine – v. 11, n. 21, jan./jun. 2012
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A paixão como atenuante: crimes passionais
em Caxias do Sul nos anos 30 (séc. XX)
The passion as attenuation: crimes of passion in
Caxias do Sul during the 1930’s
Fabrício Romani Gomes*
Luiza Horn Iotti**
Resumo: A prática de crimes passionais
ainda está presente em nossos meios de
comunicação. O presente texto busca
refletir sobre a prática desses crimes e a
penalização dos criminosos. Para isso, são
analisados casos ocorridos na cidade de
Caxias do Sul, durante a década de 30
(séc. XX), quando há um aumento da
população urbana e um consequente
tencionamento nas relações entre homens
e mulheres. Busca-se uma reflexão sobre
os motivos que levam à prática de tais
crimes, assim como sobre as penas
atribuídas aos criminosos pela Justiça,
buscando perceber a influência de
campanhas nacionais dedicadas à busca de
uma penalização mais rígida aos réus.
Palavras-chave: relações de gênero; crime
passional; justiça.
Abstract: The practice of crimes of passion
still is in our media. This study seeks to
reflect on the practice of such crimes and
the punishment of these criminals. With
this in view, cases are being analyzed that
occurred in the city of Caxias do Sul,
during the 1930’s when we begin to see a
raise of the urban population and a later
tensioning on the relationships between
men and women. We aim to reflect upon
the motives that led to the practice of such
crimes and the penalties imposed to these
criminals by the Justice, we try to discover
the influence of national campaigns
dedicated to granting the appliance of
harsher penalties to the defendants.
Keywords: gender relations; crimes of
passion; justice.
* Professor de História na Rede Estadual de Ensino. Mestre em História pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: phabrisss@gmail.com.
** Professora na Universidade de Caxias do Sul (UCS). Doutora em História pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: lhiotti@ucs.br.
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Jéssicas, Carlas, Anas, Verônicas e tantas outras mulheres já foram, ou
podem ser, vítimas de violência no Brasil. Essa violência pode ocorrer de
formas variadas, assim como as suas motivações. Em 1943, por exemplo, a
“preta” Cecília que “saiu de sua residência, a fim de trabalhar na limpeza de
uma casa”, foi recebida, após 12 horas de trabalho, com “socos e ponta-pés”
pelo seu marido. Cecília foi agredida porque não teve “oportunidade de
preparar a refeição do meio-dia”.1 Para combater e punir essas violências, às
vezes cotidianas, surgiram, no Brasil, em diferentes momentos, campanhas
buscando a diminuição desses atos, a sua denúncia, ou ainda, solicitando a
punição dos agressores. Exemplo disso é a campanha realizada pelo Conselho
Brasileiro de Hygiene Social (CBHS), que, a partir de 1925, questiona a
tolerância do Poder Judiciário para com os assassinos de mulheres. O objetivo,
aqui, é buscar evidências que possam demonstrar se a campanha do CBHS
obteve sucesso. Busca-se, também, o entendimento das relações individuais
e sociais que envolvem os casos de crimes passionais, pois, segundo Boris
Fausto, “a criminalidade expressa a um tempo uma relação individual e
uma relação social indicativa de padrões de comportamento, de
representações e valores sociais”. (1984, p. 17). Para isso, analisemos alguns
casos de violência cyjas vítimas são mulheres de Caxias do Sul, durante a
década de 30 (séc. XX).
Optemos pela década de 30 por ela representar um período de
urbanização da cidade de Caxias do Sul e, como diz Susan Besse, “o
surgimento de uma sociedade urbano-industrial tend[e] a enfraquecer os
laços familiares”, pois passa “a propiciar novas aspirações e opções às mulheres
e, por conseguinte, intensificar o conflito entre os sexos”. (1989, p. 186).
Dessa forma, o texto foi divido em três partes: primeiramente são analisados
os fatores que colaboram para o crescimento urbano da cidade; depois,
caracteriza-se o crime passional, destacando sua trajetória no campo do
Direito e, também, faz-se uma análise de como o crime estava sendo julgado
no período; por último, são apresentados os casos levantados na pesquisa,
buscando compreender as razões que levaram aos crimes.
Caxias do Sul na década de 30
Caxias do Sul, hoje, uma das maiores cidades do Rio Grande do Sul,
com cerca de 450 mil habitantes, está localizada na Região Nordeste do
estado e tem suas origens na política de imigração adotada pelo governo
imperial brasileiro no fim do século XIX. Sobre os objetivos dessa política,
Vania Herédia sugere que
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o movimento de colonização trazia em seu bojo uma série de
objetivos que, interligados, mostravam a proposta do próprio
movimento. Entre eles a formação de um grande exército pela
necessidade de defesa do vasto território onde eram visíveis as
dificuldades de controle das fronteiras e conseqüentemente da
própria hegemonia; a ocupação dos espaços vazios que propiciasse
o desenvolvimento da agricultura, do comércio, da indústria,
criando classes sociais intermediárias entre o senhor das terras e o
escravo; a substituição da mão de obra escrava pela mão de obra
livre, assalariada devido à expansão do movimento abolicionista e
à implantação do trabalho livre que desenvolveriam as cidades,
estimulariam o comércio e fomentariam a criação de serviços de
infra-estrutura, gerando um maior desenvolvimento econômico
ao país. Além desses objetivos, havia a intenção de branquear a
raça. (1997, p. 31-32).
A região onde hoje está localizada a cidade começou a ser colonizada,
oficialmente, em 1875, majoritariamente por imigrantes oriundos da
península itálica. Esses imigrantes teriam enfrentado uma situação geográfica
difícil. Para Maria Abel Machado, esses primeiros imigrantes tiveram uma
realidade bem adversa. Segundo a historiadora, “as condições geográficas
da região, de difícil acesso pela floresta, solo pedregoso e muito acidentado,
condicionaram a nova colônia a um quase isolamento durante os primeiros
anos, o que favoreceu o surgimento das primeiras atividades rentáveis aos
colonos”. (1998, p. 34).
Devido a esse isolamento inicial, houve na colônia a necessidade de
uma produção diversificada, pois os colonos teriam que produzir todo o
necessário para sua subsistência. Não poderiam depender de produtos
primários vindos de outras regiões devido às dificuldades de transporte
impostas pela geografia da região. A princípio, essa produção era consumida
somente dentro da colônia, mas com produção excedente, houve o
fortalecimento das atividades comerciais. A falta de estradas dificultava,
mas não impedia as relações comerciais.
A situação de isolamento vai sendo paulatinamente resolvida com a
abertura de estradas, mas o comércio com outras cidades ainda era
problemático, principalmente com os maiores núcleos populacionais,
localizados mais próximos da capital Porto Alegre. A solução surge em
1910, depois de 20 anos da emancipação política, com a inauguração da
Estrada de Ferro que fazia a ligação Caxias do Sul-Capital. Além da construção
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da ferrovia, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e a instalação da energia
elétrica em 1913 aceleram e consolidam o desenvolvimento da cidade
“acabando com o isolamento natural em que se encontra[va] a região”.
(GIRON, 1977, p. 76). Assim, “no período de 1913 a 1920, há um
crescimento acelerado das indústrias caxienses, surgem as indústrias
metalúrgicas, fábrica de produtos químicos, de erva-mate, de velas, de cola,
de tecidos e uma charqueada”. (GIRON, 1977, p. 76).
A Primeira Guerra Mundial acabou incentivando a industrialização,
não só nacionalmente, mas também regional e localmente. Com o
envolvimento na guerra das grandes potências industriais e econômicas do
período, outras economias no mundo puderam se desenvolver, produzindo
para os mercados em guerra e para aqueles que deixaram de ser atendidos
pelas potências envolvidas no conflito. Assim,
durante o período da Primeira Guerra Mundial, as indústrias
tiveram um desenvolvimento importante para a região e seu
número se elevou para mais de quarenta empresas diversas, com
um capital de 4.789:000$000, nas quais trabalhavam
aproximadamente mil a mil e duzentos operários entre homens e
mulheres. (MACHADO, 2001, p. 207).
Vania Herédia também aponta para o desenvolvimento industrial da
cidade durante o período da Primeira Guerra Mundial, lembrando que
em 1920, segundo o Álbum Rio Grande, a indústria fazia de Caxias
um dos principais centros produtores do Estado, com uma riqueza
pública calculada em CR$ 80.000,00 […]. É interessante observar
os frutos decorrentes da Primeira Guerra Mundial que
desencadeou uma nova fase para a cidade que soube aproveitar os
instantes favoráveis e os impulsos do conflito mundial para instalar
e solidificar uma série de indústrias. (HERÉDIA, 1997, p. 69).
Nesse período, o vinho gaúcho vinha perdendo mercado, tanto o
interno quanto o externo. Isso se devia às adulterações que o vinho gaúcho
sofria “especialmente nos mercados do Rio [de Janeiro] e São Paulo”.
(MACHADO, 2001, p. 202). Para combater o problema, o intendente Penna
de Moraes buscou alternativas para melhorar a produção e diminuir as
fraudes. A intervenção do intendente nesse assunto beneficiou os produtores
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da região e, em especial, os caxienses. Por sua interferência, “foi criada em
1921 a Estação Experimental de Caxias, [que operou] como um laboratório
químico e uma adega experimental”. (MACHADO, 2001, p. 207).
A melhoria do modo de produção do vinho e a expansão do setor
trouxeram para a região uma significativa melhoria na economia,
especialmente de Caxias do Sul, onde se achavam as maiores
empresas vinícolas. A cidade sentiu seus reflexos através do
crescimento não só da zona urbana, como também das áreas da
zona suburbana, onde se encontravam os trabalhadores.
(MACHADO, 2001, p. 208).
O desenvolvimento econômico proporcionou a urbanização da cidade.
Em 1920, a população caxiense total chegava a 33.773 habitantes,
aproximadamente, 7.500 desses, estariam na zona urbana. O aumento da
população urbana fez com que os administradores da cidade investissem
mais na sua infraestrutura. Assim, serviços como de energia elétrica e
abastecimento de água foram privilegiados nas administrações. Houve
também uma preocupação com a educação, “através da ampliação do número
de escolas e do corpo de professores que também tiveram os seus salários
melhorados”. (MACHADO, 2001, p. 213).2
Com o final da guerra e a consequente restruturação das economias
antes envolvidas no conflito, o mercado para os produtos gaúchos começa
a reduzir com a concorrência dos produtos estadunidenses e europeus,
devido à recuperação desses últimos. Com isso, a economia gaúcha sofre
com um período de recessão, sentido, inclusive, na cidade de Caxias do
Sul. Além disso, o Rio Grande do Sul, no início da década de 20 do
mesmo século sofre com a crise política, que vai chegar ao seu ápice na
Revolução de 1923.
No pós-guerra, a recessão econômica, a rearticulação da economia
européia e recuo da demanda mundial repercutiram
negativamente sobre a economia rio-grandense. Em especial, o
início da década de 20 representou para o estado um momento
de crise, externa e interna. (PESAVENTO, 2002, p. 83).
Os conflitos de 1923 foram motivados, principalmente, pela política
borgista, que buscava desenvolver a economia do estado de forma ampla,
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global. Essa política ia contra os interesses pecuaristas da época. Além disso,
as fraudes eleitorais ocorridas nos processos políticos colaboraram para a
eclosão da revolta, principalmente depois da quinta vitória eleitoral de
Borges de Medeiros em 1922. A revolta iniciou no norte do estado, região
de Passo Fundo, mas logo se espalhou, agravando a situação econômica do
Rio Grande do Sul: “O comércio e a indústria locais estavam enfrentando
uma fase de crise financeira e de instabilidade”. (M ACHADO, 2001, p. 217).
As eleições de 1922 mostraram que o borgismo estava desgastado no estado,
e, em Caxias do Sul, “o resultado das eleições para os republicanos foi
desastroso. […] Caxias foi o município onde a oposição obteve a maior
diferença de votos. A zona colonial, com Caxias à frente, contribuiu para
que fossem eleitos no primeiro distrito três deputados da oposição”.
(MONTEIRO, 2003, p. 168).
Essa oposição registrada em Caxias do Sul, em parte, foi encabeçada
pela Igreja Católica. Muitos dos católicos apoiaram Assis Brasil. Como em
todo o resto do estado, em Caxias do Sul houve também fraudes no processo
eleitoral. Em um dos casos, colonos italianos não receberam os títulos de
eleitor e não puderam votar. Mas
as eleições finalizam com a vitória de Borges de Medeiros para o
governo do estado, porém a religião católica ficou marcada, na
região colonial, pela propaganda durante a campanha, na qual
assisistas acusavam os borgistas de serem inimigos da religião
católica, isto é, inimigos pelo fato de serem positivistas, portanto,
incompatíveis. (RELA, 2004, p. 46).
A incompatibilidade estava no fato de o positivismo possuir sua própria
religião. Assim, o Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), de ideologia
positivista, possuía sua própria religião, o que alimentava as discórdias
entre as correntes.
Depois da demonstração do descontentamento com o governo de Borges
de Medeiros em Caxias do Sul, o PRR começou a pensar nas próximas
eleições. Essas eleições seriam locais, ou seja, a administração municipal
seria renovada. E, como “na ‘Pérola das Colônias’ o grupo de colonos
italianos fazia-se presente no cenário político gaúcho como uma ameaça à
hegemonia do PRR local” (MONTEIRO, 2003, p. 168) foi necessário buscar
um nome de consenso.
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O nome para a eleição municipal recaiu em Celeste Gobbato, que,
para alguns, seria “capaz de atenuar as tensões políticas em Caxias”
(MONTEIRO , 2003, p. 171), pois, “embora ele não fosse radicado no
município, o fato de ser um italiano com estreitos vínculos com a atividade
agrícola, tornou a sua indicação necessária para atender os interesses da
Igreja local, dos italianos católicos e do PRR estadual”. (RELA, 2004, p.
47). Eleito, Celeste Gobbato “identificou-se com a elite local, junto à
qual passou a exercer uma liderança muito significativa” (M ACHADO,
2001, p. 210), iniciando seu governo em 1924.
No início de 1930, Caxias possuía uma população total de 32.622.
Esse número apresenta uma diminuição da população total, mas, quando
nos referimos à população urbana, há um aumento, se compararmos esses
aos números referentes ao início dos anos 20 (séc. XX). São 9.975 pessoas
vivendo na área urbana caxiense.
No cenário nacional, acontece a tomada do poder político federal pelo
gaúcho Getúlio Vargas. “Em Caxias, os empresários emprestaram todo o
apoio às forças getulistas, inclusive através do fornecimento de gêneros
alimentícios e de artigos de vestuário para os combatentes e suas famílias.”
(MACHADO, 2001, p. 259). Esse apoio, porém, não altera a situação da
economia gaúcha no período, mantendo-se a agropecuária voltada para o
mercado interno. “Durante a República Nova (1930-1937), o Rio Grande
do Sul manteve sua economia baseada na agropecuária. O governo federal
via o estado como destinado a complementar a economia central como
fornecedor de gêneros de subsistência para o mercado nacional.” (KUHN,
2002, p. 125).
Segundo Loraine Giron, “o desenvolvimento industrial se torna mais
lento entre 1925 e 1939, voltando a se fazer presente com a Segunda Guerra
Mundial”. (1977, p. 76). Para a historiadora, há uma estagnação no
desenvolvimento industrial de Caxias do Sul no período entre as guerras.
Para Vania Herédia, ocorre uma diminuição no surto industrial da região,
entendendo que
nas indústrias, o número de estabelecimentos era de 190 em 1930
e 280 em 1932, tendo crescido o número de empresas, mas não o
seu capital. A produção industrial demonstra claramente a crise
enfrentada no país nos anos trinta, pois há um decréscimo de
produção de Rs.5.496:792$500 que revela a diminuição do surto
industrial na região e indiretamente no município. (H ERÉDIA,
1997, p. 70).
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Sendo assim, a autora aponta para um crescimento industrial em
número de empresas, mas sem alteração do capital, concordando com a
ideia de estagnação industrial. Além disso, Herédia fornece dados relativos
aos comércio na região durante o período, dizendo que,
em 1930, o Município de Caxias apresentava um total de 325
estabelecimentos comerciais com um capital de
Rs.9.085:750$000, tendo crescido conforme o Censo Municipal
de 1932 para 450 estabelecimentos comerciais, com capital no
valor de Rs.4.031:575$000 além do citado anteriormente. (1997,
p. 69).
No comércio, Herédia destaca o crescimento do capital, ou seja, a
prática comercial na região não se altera, podendo-se dizer que houve um
crescimento das práticas comerciais na região. Isso pode ser reflexo da
política adotada por Getúlio Vargas, que buscava
apoiar as indústrias consideradas “naturais”, por beneficiarem
matéria-prima local (no caso de Caxias, o vinho, a banha, conserva
de frutas, os óleos vegetais, produtos têxteis e o trigo, entre outros),
houve um crescimento na produção, incrementando as atividades
industriais e comerciais. (MACHADO, 2001, p. 260).
O estágio de desenvolvimento econômico alcançado por Caxias do
Sul até a década de 30 citada, fez aparecer novamente os problemas de
infraestrutura, principalmente ligados ao fornecimento de energia elétrica e
falta de estradas. Em relação às estradas, somente na década de 40 do séc.
findo esse problema seria resolvido com a construção da BR 116, ligando a
cidade aos principais centros consumidores do País. Nesse momento, Caxias
do Sul experimenta um novo período de crescimento industrial, influenciado
pela Segunda Guerra Mundial. Isso acorre,
a partir do momento em que várias empresas foram declaradas de
interesse militar e passaram a produzir para o exército nacional,
utilizando toda a sua capacidade produtiva. Como consequência,
houve um aumento no número de empregos e os salários reais,
provocando aumento no consumo de bens e na circulação de
riqueza. (MACHADO, 2001, p. 267).
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Assim, Caxias do Sul encerra a década de 30 com uma população
urbana chegando a 20.123 habitantes, demonstrando um crescimento
populacional urbano de mais de 50%. Isso se deve, principalmente, ao
desenvolvimento econômico da cidade, que necessita de mão de obra e
passa a atrair a população rural para o mercado de trabalho em expansão nas
fábricas.
O crime passional
Estamos acostumados com notícias sobre crimes passionais hoje em
dia. O crime, quase sempre, é caracterizado pelo principal motivo que levar
ao assassinato: a paixão. Esse crime, na maioria das vezes, envolve como
personagens homens e mulheres, que, motivados pela paixão, acabam
assassinando seus antigos parceiros, seus antigos ou atuais amores.
Geralmente, isso acontece no fim de uma relação amorosa, quando um dos
envolvidos decide pôr fim ao relacionamento. No caso do assassinato de
mulheres, ou femicídios,3 “muitas foram mortas porque quiseram se separar
do companheiro ou marido, outras porque estavam na rua quando eles
voltaram para casa, outras porque não aceitaram a proposta de fazer sexo
ou resolveram procurar outro namorado/companheiro”. (TELES; MELO,
2002, p. 50).
Isso, de certa forma, significa dizer que um homem mata a sua mulher
quando “considera que não há mais como controlar a mulher e seu todo,
tanto o corpo como seus desejos, pensamentos e sentimentos”. (TELES;
MELO, 2002, p. 50). Já quando ocorre o contrário, quando a mulher mata
seu companheiro, considera-se que o assassinato aconteceu “porque as
mulheres eram maltratadas e reagiram para defender seus filhos e a si
próprias”. (TELES; MELO, 2002,p. 50).
O adultério, ou suposto adultério, foi (é) um dos maiores motivadores
de crimes passionais. Em algumas situações, basta o marido desconfiar que
está sendo traído que o destino de sua parceira será a morte. E, segundo
Mariza Corrêa, “no Brasil, a significação implícita da expressão crime
passional, no campo das discussões jurídicas como no da sua publicação
pela imprensa ou em sua utilização literária, era a de punição da esposa
adúltera”. (1981, p. 18).
A punição do adultério com a morte já esteve escrita nos códigos de
leis vigentes no Brasil. Nas Ordenações Filipinas, que vigoraram no Brasil
durante o período colonial, a esposa adúltera deveria pagar com a vida pelo
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seu “crime”. As ordenações dizem que “achando o homem casado sua mulher
em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero, salvo
se o marido for peão, e o adúltero fidalgo, ou nosso Desembargador, ou
pessoa de maior qualidade”. (CORRÊA, 1981, p. 15).
Esse rigor na punição do adultério é consequência do conceito de
direitos e prerrogativas advindas do casamento. Devemos lembrar que o
casamento prevê que o marido conceda à mulher uma certa “proteção”.
Segundo Luiz Azevedo, “a proteção que este concede à mulher reclama, por
sua vez, obediência, coabitação, fidelidade; ao marido cabem a eleição do
domicílio e a escolha quanto ao modo de educar os filhos”. (2001, p. 10).
Assim, em troca da proteção, a mulher deve ser, entre outras coisas, fiel.
O adultério feminino é punido há muito tempo, pois que ocorre
desde o Direito Romano, visando a assegurar a legitimidade da reprodução
dentro da família.
O adultério era, portanto, uma força desagregadora e destruidora,
mas revestido de uma importância diferente para homens e
mulheres. O discurso jurídico considerava o adultério masculino
um deslize aceitável, pois os filhos ilegítimos não traziam desonra
ao pai. No que tange ao adultério feminino, as implicações seriam
mais graves, pois a mulher adúltera introduzia a prole ilegítima no
seio do casamento e trazia a desonra ao marido. (BORELLI, 2002,
p. 136).
A noção de crime passional é mais recente e começou a ser discutida
em meados do século XIX. Os juristas que discutem o crime passional “vão
atribuir ao romantismo, com sua ênfase no amor e na paixão, a sua invenção”.
(CORRÊA, 1981, p. 15). Esse crime se beneficia da onda de amor romântico
do período e também das teorias de um grupo de italianos, que, sob a
orientação de Lombroso, em meados do século XIX, dizem que o criminoso
tem que ser analisado de forma individualizada. Sendo analisado dessa forma,
o assassinato da mulher passa a ser o único crime cometido por esse homem.
Aí, faz-se um histórico da vida dele. Se o mesmo estiver de acordo com os
padrões da época, poderá ser inocentado. Além disso,
dentro deste grupo, o criminalista Enrico Ferri teve uma atuação
importante, tendo sido o primeiro a definir o criminoso passional
como um criminoso social, isto é, alguém que comete um crime
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impulsionado por motivos úteis à sociedade [...], e sua importância
no Brasil será sempre atribuída apenas ao aspecto de sua obra
que permitia defender os assassinos de mulheres. (CORRÊA ,
1981, p. 16).
Esse crime seria útil à sociedade, pois retira do convívio social mulheres
que são adúlteras, ou seja, mulheres que não desempenham de forma
exemplar o seu papel social em determinada época. Mulheres que, inclusive,
colocavam dentro de sua família prole ilegítima. Sendo assim, eram
consideradas maus exemplos para as outras mulheres.
Além desses fatores, que contribuem para a absolvição do réu ou para
a diminuição de sua pena, aparecerá outro no segundo Código Penal
brasileiro, que já era republicano. Trata-se da questão da irresponsabilidade
criminal, que abria “a possibilidade de isentar de culpa ‘os que se acharem
em estado de completa perturbação de sentidos e de inteligência no ato de
cometer o crime’ [...]”. (CORRÊA, 1981, p. 21). Assim, “os advogados de
defesa de maridos, noivos, namorados ou amantes, assassinos de suas
companheiras, passaram a afirmar então que a paixão era uma espécie de
loucura momentânea, tornando irresponsáveis na ocasião do crime os que
estavam por ela possuídos”. (CORRÊA, 1981, p. 22).
O número de crimes passionais aumentava no início do século XX,
em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, e os jornais da época começaram
a noticiar esses crimes. A quantidade e a maneira como aconteciam os
assassinatos, acabaram influenciando nas primeiras produções
cinematográficas no Brasil. No período de 1908 a 1911, os filmes acabaram
reproduzindo os crimes passionais em seus roteiros. Segundo Paulo Gomes,
“predominaram inicialmente os filmes que reconstituíam os crimes,
crapulosos ou passionais, que impressionavam a imaginação popular”. (1996,
p. 11). Outros meios de comunicação, porém, demonstravam preocupação
com o aumento desse tipo de crime.
Os editores da famosa revista para mulheres, Revista Feminina,
afirmavam que as mulheres estavam sendo assassinadas “aos
montes”. Eles afirmavam que o número de mulheres mortas por
homens no Brasil crescera de uma a cada doze horas em 1919
para uma a cada meia hora em 1924! (BESSE, 1989, p. 183).
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Essa quantidade de crimes passionais é questionada por Susan Besse.
Para ela, a publicação desses números sugere mais uma preocupação dos
editores com a mobilização da opinião pública. Assim, a Revista Feminina e
outras publicações da época contribuíram para o surgimento, no Brasil, de
uma campanha “para acabar com a tolerância aos crimes da paixão”. (BESSE,
1989, p. 182). A campanha surge em 1925, tendo como organizador o
CBHS. Para Susan Besse,
o motivo pelo qual estes crimes começaram a ser considerados tão
ameaçadores à sociedade era que eles simbolizavam a desagregação
da família, e era exatamente a instituição da família que era
encarada como o cimento necessário para proporcionar a
estabilidade e a continuidade neste período de transformações
perigosamente rápidas. (1989, p. 187).
Então, nesse período, fim dos anos 20 e início dos anos 30 (séc. XX),
a sociedade brasileira entrega a família um papel importante na nova ordem
nacional. Ou seja, neste momento de transição, quando Getúlio Vargas
assume o poder político nacional, quando uma nova elite assume o poder,
há uma preocupação maior com os crimes passionais, pois, “se a família
fosse ser o pilar da nova sociedade burguesa, as relações entre maridomulher deveriam se ‘modernizar’, adquirindo ao menos uma aparência de
igualdade e reciprocidade”. (BESSE, 1989, p. 188-189).
Enfim, a campanha liderada por promotores públicos, como Roberto
Lyra, Carlos Sussekind de Mendonça, Caetano Pinto de Miranda
Montenegro e Lourenço de Mattos Borges e organizada pela CBHS alcança
sua vitória mais significativa em 1940, com o novo Código Penal. Nele
estava especificado “que a emoção e a paixão, enquanto circunstâncias
atenuantes, não excluíam a responsabilidade criminal”. (Apud BESSE, 1989,
p. 193). Além disso, Susan Besse traz os dados de um único estudo estatístico
sobre o sucesso da campanha: “Em 1932, de 36 casos de crimes da paixão
investigados nas cortes da cidade do Rio de Janeiro, 24 acusados foram
condenados à pena máxima, 7 tiveram seus casos tornados públicos e foram
punidos menos severamente, e 5 foram absolvidos”. (BESSE, 1989, p. 182).
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Alguns crimes passionais em Caxias do Sul – década de 30 (séc.
XX)
Em abril de 2005, o jornal Pioneiro publicou uma matéria sobre crimes
passionais na região. O jornal sugere a existência de uma preocupação devido
à reincidência desse tipo de crime. Até a publicação aconteceram cinco
crimes considerados passionais na região, o que representava 25% do total
de homicídios no mesmo período. Porém, aqui, vamos procurar evidências
desses crimes na já citada década de 30.
O primeiro caso – que pode ser considerado como um crime passional
na cidade – foi encontrado no Centro de Memória Regional do Judiciário
(CMRJ). Trata-se de um processo criminal, no qual o réu é acusado de
matar sua esposa, logo após a mesma dar à luz, em 1932. Segundo o
processo, o réu, passados alguns minutos do nascimento da criança, disse
que não perdoaria a traição da esposa. Para ele, a criança recém-nascida,
não é sua e sim de um “negro”. Acreditando nisso, o réu mata a esposa e
tenta o suicídio, não obtendo sucesso.
Depois de informados os fatos que levaram ao crime, o processo traz
depoimentos das testemunhas do caso. São realizados exames mentais no
réu e, ao fim, o Dr. Leonardo Ferreira Silva, juiz da Comarca de Caxias do
Sul, considera o réu culpado, dizendo que
em face, pois, das circunstancias mencionadas não ficou provado
que o réo, no acto de cometter o crime, estivesse em estado de
completa perturbação de sentidos e de intelligencia; ao contrario,
o que se infere da prova existente, é que o réo achava-se calmo,
chamando a parteira, interessando-se pelo bom sucesso do parto,
assistindo a este e somente veio a manifestar estar nervoso após o
nascimento da creança, vendo-a arroxeada. (PROCESSO 2, Caixa
88: CMRJ).4
O réu apela da decisão, mas é levado para julgamento, não sendo
atendido o seu pedido. Os jurados, por sua vez, absolvem o réu. Consideram
que, no momento do crime, “o réo agiu em estado de completa perturbação
dos sentidos e da intelligencia no acto de commetter o crime”. (PROCESSO
2, Caixa 88: CMRJ). Segundo Boris Fausto,
MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn
273
ainda que cada caso tenha notas específicas, a imagem de um frio
marido homicida raras vezes se ajusta à realidade. O agressor é
atravessado por intensos conflitos (muito mais complexos que a
“paixão”), o que não significa tomar partido a favor de sua
irresponsabilidade penal. Um indício disto reside na constatação
de que, no período analisado, um número considerável de maridos
homicidas em geral suicida-se ou tenta suicidar-se após a prática
do crime. (1984, p. 108).
Foram pesquisados casos publicados nos jornais da cidade. No jornal
O Momento, vinculado ao Partido Republicano Liberal (PRL), a primeira
notícia que chamou a atenção durante a pesquisa estava publicada na “Seção
Livre”, em 18 de janeiro de 1933. Andralina Benatto publica uma carta
dizendo o seguinte:
Injuriada, maltratada e até espancada pelo meu marido Fernando
Benatto, fui forçada, por ele próprio, a abandonar o lar,
acompanhada dos meus tres filhinhos menores, isso nos primeiros
dias de julho do ano p. findo, vendo-me na contingencia de
recorrer as serviços profissionais do Dr. Olmiro de Azevedo,
constituindo-o meu advogado. (O MOMENTO, 1933: AHMJSA).5
Segundo Andralina, ela vinha sendo espancada pelo marido, além de
sofrer outras violências psicológicas. Houve uma tentativa de reconciliação
entre o casal e, segundo Andralina, “de início, procurou o meu marido a
aparentar cordialidade, para, logo depois, voltar a proceder como dantes,
cumulando, agora, por ameaçar-me de morte!” (O MOMENTO, 1933:
AHMJSA). A tentativa de reconciliação, aparentemente, piorou o
relacionamento do casal, chegando Fernando a ameaçá-la de morte. O jornal
faz um acompanhamento do caso, dizendo, na publicação de 4 de setembro
de 1933, que o casal havia se separado, que os filhos ficaram com o marido,
e Andralina, se quisesse vê-los, deveria provar ser uma mulher “honesta” e
“trabalhadora”.
O Momento, de 29 de junho de 1933 chamou a atenção de seus leitores
com a seguinte manchete: “Tentativa de assassinato: discutiu com a esposa
e apunhalou-a nas costas.” Acompanhando a manchete, o jornal publica a
versão do marido sobre os acontecimentos. Segundo ele,
274
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012
começaram a surgir entre o casal serias divergencias em virtude,
segundo alega, das conversações da visinhança que continuamente
levava a falar de sua esposa, pelo que a miudo tinha com ela
discussões violentas nas quais ele a insultava: Terça-Feira, quando
regressava do serviço, sua esposa recebeu-o com uma série de
imprompérios, usando de termos bastante insultuosos, pelo que,
ele, exasperando-se tirou da faca que trasia consigo ferindo-a. Que
esse jesto atribui ao fáto de achar-se um pouco embriagado, pois
devido ao intenso frio que tem feito, havia tomado uns tragos! (O
MOMENTO, 1933: AHMJSA).
Os vizinhos acabam causando um certo incômodo ao casal. As falações
sobre a sua mulher acabaram influenciando na tentativa de assassinato.
Essas deveriam ser relativas ao dia a dia de sua esposa, podendo colocar em
questão, inclusive, a fidelidade da mesma. É importante perceber que o
marido diz que estava embriagado e por isso agrediu a mulher. A embriaguês
pode também ter salvo a vida dela. O estado em que se encontrava o
marido pode ter dificultado sua ação e intenção de matá-la. O fato de estar
alcoolizado poderia ter dificultado também a sua defesa perante o júri.
Como diz Boris Fausto, “o acusado deve construir uma imagem que se
ajuste ao modelo de sua identidade social, ao temor reverencial devido à
justiça. Isso se traduz não só pelas palavras, mas pelo gesto, pelo modo de
sentar-se, de responder às perguntas, de colocar-se diante do corpo de
jurados”. (FAUSTO, 1984, p. 25). Dessa forma, o seu estado de embriaguês
pode ter sido um complicador para elaboração de sua defesa.
Já no dia 4 de setembro de 1933, O Momento traz a seguinte notícia:
No dia 25, as 14 horas, realizou-se o julgamento de Antonio Petrin,
pronunciado por crime de morte na pessoa de sua própria esposa.
O conselho de sentença foi constituído pelos jurados Estacio
Zambelli, Adelar Facioli, Emílio Pezzi, Artur Rech e Armando
Rossi. A acusação foi desenvolvida pelo Dr. Paulo Rache […]. Após
os trabalhos da acusação e defesa, reuniram-se os jurados na sala
secreta dali voltando para proferir seu verititum pela absolvição
de Antonio Petrin, por reconhecer em seu favor a derimente da
perturbação dos sentidos e inteligencia no áto de cometer o crime.
(O MOMENTO, 1933: AHMJSA).
MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn
275
Aqui, se observa a utilização da irresponsabilidade criminal para aqueles
que, no momento do crime, “se acharem em estado de completa perturbação
de sentidos e de inteligência”. (CORRÊA, 1981, p. 21). Infelizmente, o
jornal não acompanhou o ocorrido, não trazendo mais informações sobre o
caso, as quais pudessem informar sobre os motivos que levaram Antonio
Petrin ao estado de “perturbação” no momento do crime.
Já no fim da década de 30, mais precisamente em 8 de fevereiro de
1937, ocorre outro assassinato, sendo uma mulher a vítima. O fato é
apresentado aos leitores do jornal com o seguinte título: “Um soldado do
exército mata uma decaída a tiros de revólver”, relatando, posteriormente,
o ocorrido da seguinte forma:
Segunda-Feira, pela madrugada, Caxias presenciou um ato de
profunda covardia e banditismo. Seriam pouco mais de meia noite
quando o soldado Arlindo Cardoso do 9 BC dirigiu-se a uma casa
de tolerancia à rua Borges de Medeiros, onde residia sua amante
Laudelina Silva, depois de ligeira troca de palavras com a amazia,
prosta-a a tiros de revolver. (O MOMENTO, 1937: AHMJSA).
Aqui se percebe a repulsa por parte dos redatores do jornal pelo fato
acontecido. Referem-se a ele como uma “covardia”, condenando a ação do
soldado. Isso pode indicar que, no fim dos anos 30, esses crimes começaram
a ser condenados de forma mais clara pelos redatores do jornal, o que devia
estar de acordo com a opinião dos leitores do periódico.
Algumas considerações finais
Durante a mencionada década de 30, percebe-se um grande aumento
da população urbana de Caxias do Sul. Esse aumento deve-se, principalmente,
à industrialização da cidade que, como foi demonstrado, necessita de mão
de obra, pois gera empregos na indústria e em outros setores econômicos.
Dessa forma, optou-se pela pesquisa nesse espaço temporal, já que, como
vimos, na opinião de alguns autores, o surgimento de uma sociedade urbanoindustrial enfraquece os laços familiares intensificando o conflito entre os
sexos. Dessa forma, a violência contra a mulher, no período estudado, está
relacionada à tentativa de independência feminina.
Em Caxias do Sul, percebe-se que o julgamento dos femicídios segue
a norma da época, ou seja, absolvem-se os acusados alegando que os mesmos
276
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012
agiram em momento de perturbação dos sentidos, em estado de “loucura
momentânea”. Mas é importante retomar a postura do Juiz Leonardo Ferreira
Silva que não acredita na suposta perturbação dos sentidos do acusado.
Essa postura pode ser considerada uma demonstração de que a campanha
da CBHS estava chegando até alguns dos aplicadores da Justiça ou que,
pelo menos, a campanha estava levando todos a uma reflexão maior sobre
os casos. Como a decisão do juiz acaba sendo desconsiderada pelo júri,
podemos imaginar que essa campanha pode ter chegado até alguns segmentos
sociais, porém não a todos.
Por fim, com base no último caso relatado, os redatores do jornal O
Momento condenam o assassinato de uma “decaída”. Essa postura parece,
também, refletir os ideais da campanha da CBHS, que vinha travando um
combate contra a absolvição daqueles que assassinavam mulheres.
MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn
277
Notas
Relatório – Lesão Corporal, 1943.
Acervo: Arquivo da Polícia Civil/Caxias
do Sul.
1
A instalação da Escola Complementar
de Caxias do Sul, no início dos anos 30
(séc. XX), demonstra “o interesse do
governo em diminuir o analfabetismo” e
auxilia para o aperfeiçoamento “moral e
intelectual da mocidade caxiense”.
(BERGOZZA; LUCHESE, 2010, p. 123-125).
2
O termo femicídio foi usado pela
primeira vez por Diana Russel e Jill
3
278
Radford, em seu livro The politics as
woman killing, publicado em 1992, em
Nova Iorque. A palavra já havia sido
empregada pelo Tribunal Internacional de
Crimes Contra as Mulheres, em 1976.
Entende-se por femícídio o assassinato de
mulheres por razões associadas às relações
de gênero. (TELES; MELO, 2002, p. 49).
4
Foi mantida a grafia original das fontes.
AHMJSA: Arquivo Histórico Municipal
João Spadari Adami.
5
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012
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MÉTIS: história & cultura – GOMES, Fabrício Romani; IOTTI, Luiza Horn
279
280
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 261-279, jan./jun. 2012
A conferência “O divórcio” – Jornal Forense
de Porto Alegre do ano de 1932
The conference “The Divorce” – Journal of
Forensic Porto Alegre the year 1932
Marília Conforto*
Gilberto Jacques Gonçalves**
Resumo: Apresenta-se a conferência: “O
Divórcio” publicado no jornal Forense de
Porto Alegre no ano de 1932. A
comunicação terá como objetivo principal
disponibilizar o documento como
contribuição para o estudo de gênero e
do Poder Judiciário. A introdução crítica
do documento foi realizada por uma
historiadora e um advogado, objetivando
a reflexão interdisciplinar. A conferência
sobre o divórcio reconduz para o âmbito
da reflexão jurídica as mudanças ocorridas
em termos econômicos na sociedade
brasileira, a partir de 1930, cujos
desdobramentos podem ser percebidos
nas mudanças nas relações entre homens
e mulheres e o avanço das lutas femininas
por seus direitos sociais. Procurou-se
demonstrar a contribuição do estudo
interdisciplinar no resgate da trajetória
histórico-social e daquela percorrida no
Abstract: It presents the conference: “The
Divorce” published in the Journal of
Forensic Porto Alegre in 1932.
Communication will aim to provide the
main document as a contribution to the
study of gender and the judiciary. The
introduction of the document review was
conducted by a historian and a lawyer,
aiming at interdisciplinary reflection. The
conference is tantamount to divorce under
the legal reflection of the changes in
economic status in Brazilian society, from
1930, whose developments can be seen
in the changes in relationships between
men and women and the advancement
of women’s struggles for their social
rights. We sought to demonstrate the
contribution of interdisciplinary study in
rescuing the trajectory of social and
historical trajectory within the legal
divorce theme in Brazilian society.
Professora no PPG – Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade e no curso de
História da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail: mc.14@terra.com.br
**
Advogado. Especialista em Direito Civil pelo Centro Universitário Ritter dos Reis
(UniRitter).
*
MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques
281
âmbito jurídico do tema divórcio na
sociedade brasileira.
Palavras-chave: divórcio; história; direito.
Keywords: divorce; history; law.
O jornal Forense de Porto Alegre faz parte do acervo do Centro de
Documentação da Universidade de Caxias do Sul (Cedoc/UCS). O Cedoc
possui o primeiro e o segundo números do jornal e o número 7 e 8, nos
quais se encontra publicada a conferência. O jornal tinha como objetivo
divulgar matérias que atendessem às seguintes temáticas: doutrina,
jurisprudência, legislação, crítica e noticiário. A leitura do jornal é
importante tanto do ponto de vista histórico como jurídico, pois oferece
um panorama dos assuntos e dos debates que pautavam o cotidiano da
sociedade e do trabalho jurídico nos anos iniciais da década de 30 (séc.
XX). Os jornais encontram-se em perfeito estado de conservação permitindo
a pesquisa. Na digitalização da conferência, manteve-se a grafia original.
“O Divórcio” na perspectiva histórica
Em uma sociedade são muitos os textos produzidos. Eles podem
abordar diversas temáticas: religiosa, ficcional, administrativa, jornalística
e jurídica. A conferência do Dr. Armando Dias de Azevedo reconduz para
o âmbito do debate jurídico a dissolução do casamento através do divórcio.
Nas primeiras linhas, fica evidenciada a opinião do Dr. Armando que é
contra o divórcio, e sua posição se fundamenta em vários motivos,
destacando-se os de ordem moral. É importante ressaltar que a conferência
sobre o divórcio evidencia modificações e questionamentos em termos
sociais que são importantes no resgate da história da mulher e no percurso
das lutas feministas no século XX.
Para entendermos as lutas femininas no decorrer do século XX, é
necessário lembrarmos que o percurso das conquistas femininas, no Brasil,
tem seu início ainda no século XIX, e que a análise da condição feminina,
nesse período e nos primeiros anos do século XX, respalda a importância
da conferência proferida na OAB sobre divórcio. Em outras palavras, o
fato de um advogado se debruçar sobre a questão denota que a luta feminina
iniciada no século XIX já começara a surtir seus efeitos; outra questão diz
respeito à preocupação da OAB em propiciar aos seus advogados um espaço
para reflexão sobre um assunto que, certamente, já era objeto de discussões
282
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012
sociais e logo chegaria aos escritórios como demanda juducial. O que se
entende da leitura da conferência é que o Dr. Armando procura orientar a
questão no sentido de que não haja a dissolução do casamento. Lembramos
que a OAB, através de suas conferências e da publicação do jornal, cumpria
também um papel pedagógico na área jurídica instruindo e sendo um fórum
de discussão para seus associados.
Retomando a história das conquistas femininas, lembramos que elas
datam da segunda metade do século XIX:
Um pequeno grupo pioneiro de feministas brasileiras proclamou
sua insatisfação com os papéis tradicionalmente atribuídos pelos
homens às mulheres. Principalmente por meio de jornais editados
por mulheres, agora esquecidos, surgidos nessa época nas cidades
do centro-sul do Brasil, elas procuravam despertar outras mulheres
para seu potencial de autoprogresso e para elevar seu nível de
aspirações. Tentaram iniciar mudanças no status econômico, social
e legal das mulheres no Brasil. Confiantes no progresso buscaram
inspiração e promessas de sucessos nas realizações de mulheres em
outros países. Bastante conscientes da oposição masculina, e da
indiferença feminina, e da aceitação limitada de suas próprias idéias,
essas mulheres corajosas se mantiveram convencidas da importância
de sua causa e de seu sucesso futuro. Ao contrário de muitos de
seus caluniadores masculinos, que afirmavam que as mulheres
seriam facilmente corruptíveis se pusessem o pé para fora de casa
e que a família enfraquecer-se-ia e estaria necessitada de defesa,
essas feministas manifestaram sua confiança nas mulheres e em
suas aptidões. (HAHNER,1981, p. 25-26).
É importante ressaltar que a luta pelos direitos femininos ocorreu em
um Brasil marcadamente patriarcal. June Hahner lembra que,
de acordo com o estereótipo comum da família patriarcal brasileira,
o marido autoritário, rodeado de escravas concubinas, dominava
seus filhos e a esposa submissa. Essa se transformou numa criatura
indolente, passiva, mantida em casa, que gerava muitos filhos e
maltratava os escravos. Relatos de diversos viajantes estrangeiros
dão testemunho dessa imagem. Por exemplo, Jonh Luccock, um
comerciante inglês, em 1888, comentou causticamente o
envelhecimento precoce e o crescente mau humor e gordura das
MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques
283
mulheres da classe superior no Rio de Janeiro, que ele atribuiu a
hábitos de reclusão e indolência. Todavia, o estereótipo da fêmea
pura, protegida, não era universalmente válido. O comportamento
real variava conforme a classe. As mulheres da classe inferior
conheceram maior liberdade pessoal, assim como trabalho físico
árduo. Mesmo entre a elite, nem todas as mulheres eram
confinadas à esfera privada do lar e excluídas da esfera pública,
entregue aos homens, como no caso de viúvas ativas que dirigiam
fazendas. Nas cidades, as mulheres da elite que permaneciam em
grande parte reclusas em suas casas, freqüentemente administravam
grandes estabelecimentos, cheios de parentes, servidores e escravos.
Tais mulheres puderam exercer influência indiretamente, nos
bastidores, sobre homens que ocupavam cargos de importância
na esfera pública. Contudo a autoridade do marido e do pai
permanecia suprema e a esposa era-lhes sujeita. (HANNER, 1981,
p. 26).
Foi nas primeiras décadas do século XX que um número crescente de
mulheres tenta novamente lutar pelo sufrágio feminino, um direito que a
Assembleia Constituinte de 1891 negara. Animadas pelo direito ao voto
conquistado por mulheres na Europa ocidental e nos Estados Unidos, foram
criadas organizações formais empenhadas na luta pelos direitos da mulher à
medida que a causa sufragista ganhava aceitação. Ressaltamos que essa
aceitação estava limitada a alguns setores da elite. (HAHNER, 1981).
Após a queda da bolsa de Nova Iorque em 1929 e, por consequência, a
restrição na importação do café brasileiro, as disputas das oligarquias
brasileiras por um lugar no poder levaram o gaúcho Getúlio Vargas à
presidência em 1930. A Revolução de 1930 destruiu as estruturas políticas
da Primeira República e abriu caminho para a modernização do Estado
brasileiro. Entre as características apontadas pela historiografia, destacamos
que o movimento de 1930 foi uma revolução das chamadas camadas médias
urbanas contra o predomínio e a hegemonia das oligarquias rurais do café,
do açúcar e a bacia leiteira na região de Minas Gerais.
Getúlio Vargas chega ao poder com o compromisso de modernizar o
País, e essa modernização passa, necessariamente, pelo processo de
industrialização. Esse processo será responsável por profundas mudanças na
ordem social, definindo novos papéis sociais e, consequentemente, abrirá
novas perspectivas sociais para a mulher. Ressaltamos o papel que o
284
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012
movimento modernista de 1922 que já iniciara, em termos culturais,
importantes questionamentos sobre a sociedade brasileira e sua cultura.
Segundo a historiadora Mary Del Priore,
nas primeiras décadas do século XX, algumas capitais de estados
sofrem reformas urbanísticas, metropolizam-se, criam novos
espaços de entretenimento onde se cruzam, para o bem ou para o
mal, homens e mulheres. Surgem platéias para todo o tipo de
serviço cultural: circos, teatros, cinemas, auditórios de rádio. A
“plebe” ou povo – trabalhadores, operários de fábricas, agitadores
anti-sociais, ambulantes, biscateiros – também construirá espaços
de lazer. Misturadas a ele, as “classes perigosas”: marginais,
malandros, bicheiros, capoeiras, proxenetas. No meio espremia-se
uma pequena classe média, composta de funcionários públicos,
profissionais liberais, comerciários. Salários, grandes ou pequenos,
porém regulares incentivavam o consumo de produtos, nos quais o
amor estava sempre presente; filmes que se rodavam precocemente,
libretos de burletas, letras de músicas reproduzidas em discos que
giravam em “radiolas” e nos programas de rádio, teatro de revista com
suas ondulantes bailarinas. (DEL PRIORE, 2006, p. 233).
Outras transformações são dignas de nota. Segundo Mary Del Priore,
se refere à prostituição doméstica, que, no Brasil, estava ligada ao sistema
patriarcal e à predominância do espaço rural na organização econômica;
ganha, a partir da República, no espaço urbano, o caftinismo. Os jovens
passaram a iniciar a sua vida sexual não só com as brasileiras como rezava a
tradição, mas também com estrangeiras nas cidades brasileiras. Se no século
XIX as famílias brasileiras tinham, em média, 10, 12, 15 filhos, no século
XX, o número de filhos ficou em torno de 5, 7, 8 crianças.
O mundo passou por transformações desde o início do século XX,
quase uma revolução, se levarmos em consideração o patriarcalismo da
sociedade brasileira no período do Brasil Colônia e do Brasil Império. As
antigas e gordas senhoras passavam o dia às voltas com os trabalhos de
agulha e dando ordem às escravas, apertadas em dolorosos espartilhos cobertos
por várias anáguas, parindo um filho a cada dois anos em média e tendo
como marido um homem muito mais velho do que elas. A mulher da
República corta os cabelos, livra-se do espartilho, inicia a prática de esportes
com o jogo de tênis e a bicicleta, vai à praia ainda que coberta por muitos
panos. A elegância passou a rimar com saúde como observa Mary Del
MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques
285
Priore. Segundo ela, nascia uma nova mulher e exemplifica essas mudanças
a partir de editoriais de revistas da época:
Hoje em dia, preocupada com mil frivolidades mundanas, passeios,
chás, tangos e visitas, a mulher deserta do lar. É como se a um
templo se evadisse um ídolo. É como se a um frasco se evolasse um
perfume. A vida exterior, desperdiçada em banalidades é um
criminoso esbanjamento de energia. A família dissolve-se e perde
a urdidura firme e ancestral dos seus liames, queixava-se um
editorial da Revista Feminina. Ela abandonara os penteados
ornamentais com ondas conseguidas graças a ferros de frisar para
cortar os cabelos à la garçonne. O esporte, antes condenado,
tornara-se indicativo de mudanças: Nosso fim é a beleza. A beleza
só pode coexistir com a saúde, com a robustez e com a força
alardeava o autor de A belleza feminina e a cultura física, em 1918.
(DEL PRIORE,2006, p. 244).
Mas, apesar das mudanças visíveis, a mulher ainda não era livre para se
divorciar. O casamento ainda era indissolúvel. No Brasil, encontramos
referências aos vocábulos casamento e divórcio desde a época de colônia.
Segundo o Dicionário da história da colonização portuguesa no Brasil, “as
regras matrimoniais foram claramente definidas e sistematizadas após o
Concílio de Trento, mas essa regulamentação só começou a presidir a prática
do matrimônio no Brasil no fim do século XVI e início do séc. XVII”.
(SILVA, 1994, p. 144). O divórcio também era praticado no Brasil Colonial
e designava a separação temporária ou perpétua entre os casais, determinada
por autoridade eclesiástica mediante um processo julgado no tribunal da
diocese, e todas as separações eram reconhecidas pelo Concílio de Trento.
(SILVA, 1999, p. 262). O que se observa é que, apesar da existência do
casamento e do divórcio, a mulher não tinha o direito de escolha do marido
nem desfazer o matrimônio.
Qualquer tentativa de rompê-lo era considerada imoral e, se, caso
acontecesse à mulher, essa era estigmatizada junto com seus filhos por uma
sociedade que se modernizava, mas ainda era marcadamente patriarcal em
termos comportamentais. Mary Del Priore aponta que o divórcio era “‘a
pior chaga da sociedade’; só em casos excepcionais e depois de um
rigorosíssimo processo”. (DEL PRIORE, 2006, p. 246). Nesse momento, o
Código Civil de 1916 respalda a visão que a sociedade patriarcal possuía
sobre a questão. No referido código mantinha-se
286
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012
o compromisso com o Direito Canônico e com a indissolubilidade
do vínculo matrimonial. Nele, a mulher era considerada altamente
incapaz para exercer certos atos e se mantinha em posição de
dependência e inferioridade perante o marido.
Complementaridade de tarefas, sim. Igualdade entre homem e
mulher, nunca. Ao marido, cabia representar a família, administrar
os bens comuns e aqueles trazidos pela esposa e fixar o domicílio
do casal. Quanto à esposa bem... essa ficara ao nível dos menores
de idade ou dos índios. Comparado com a legislação anterior, de
1890, o Código traz mesmo uma artimanha. Ao estender aos
“cônjuges” a responsabilidade da família, nem trabalhar a mulher
podia sem permissão do marido. Autorizava-se mesmo o uso da
legítima violência masculina contra excessos femininos. A ela cabia
a identidade doméstica; a ele, a pública. (DEL PRIORE, 2006, p.
246).
Acompanhado as determinações legislativas, observa-se que a sociedade
discutia o “lugar social” feminino. Hahner aponta que
como na Europa ocidental e nos Estados Unidos, a “questão da
mulher” tornou-se um assunto adequado para discussão pelos
homens de opinião. Em revistas elegantes como Kosmos, os homens
brasileiros ponderavam soluções para esse problema. Para os
positivistas, ele se equiparava em importância à “questão proletária”.
Continuavam a argumentar a superioridade moral das mulheres,
sua igualdade intelectual, mas inferioridade física, e advogavam
uma existência puramente doméstica para as mulheres. Estas
deveriam funcionar como “a alma da família”, que era a chavemestra da civilização, e como educadoras dos homens, mas não
como seus pares. (HAHNER, 1981, p. 90).
A conferência proferida pelo Dr. Armando ratifica em termos
discursivos a opinião da sociedade sobre o tema, e que o Código Civil já
definira em termos legislativos. O advogado inicia afirmando que o divórcio
a “vínculo” era uma calamidade social, pois dissolvia a “célula mater” da
sociedade, o casamento, e por consequência, a família. Ao defender a
manutenção do vínculo familiar, Dr. Armando chama a atenção que a
sociedade humana é composta por famílias e não por indivíduos, sendo
assim, os defensores do divórcio estariam incorrendo em um falso
MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques
287
pressuposto: o do individualismo. Desenvolvendo sua tese, o Dr. Armando
lembra que o interesse da família exigia a indissolubilidade do vínculo do
matrimônio, e que o divórcio poderia trazer sérias consequências para a
mulher e para seus filhos. Segundo ele,
o homem póde sahir da sociedade conjugal com todas as vantagens
de sua força e de sua autoridade, para se comprometter em novos
laços, a mulher não póde sahir della com toda a sua dignidade:
deixa ahi seus melhores bens, as primícias de sua honra e encantos
de sua mocidade e não retira sinão com difficuldade o dinheiro
trazido. (1932)
A solução para casamentos infelizes, segundo Dr. Armando, seria o
desquite, a separação de corpos e de bens, mas mantendo-se o vínculo
conjugal como era regulado pelo Código Civil e pelo Direito Canônico.
Ressalta, também, que o debate sobre o divórcio tinha origem na degradação
dos costumes, da moralidade dos tempos modernos. E citando argumentos
higiênicos ressalta que o casamento e a constituição de uma família são
salutares e naturais para o homem e a mulher. Conclui a conferência
ressaltando que o divórcio é sumamente prejudicial vendo no desquite a
solução para casos especialíssimos.
A conferência realizada pelo Dr. Armando, na Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB), data de 1932. A data é muito importante, pois marca não
só as lutas pelo direitos femininos, mas também a importante vitória pelos
direitos políticos da mulher, o sufrágio universal. A Constituição de 1934
confirmou essa vitória. Segundo Hahner, mesmo que a campanha pelo
sufrágio feminino no Brasil não tenha se tornado um movimento de massas,
mostrou-se maior e mais bem-organizado que a maioria dos que se seguiram
na América Latina. As lutas não pararam com a conquista do direito ao
voto, a década de 30 (do séc. XX), foi um período muito fértil para as
conquistas femininas. Bertha Lutz, durante seu mandato na Câmara de
Deputados, ajudou a criar a Comissão de Estatuto da Mulher, que ela
encabeçou. Essa comissão fomentou e impulsionou a decretação de um
estatuto da mulher, uma lei abrangente relativa ao status legal e aos direitos
sociais da mulher, que incluíam determinadas regras de trabalho para
mulheres. (HAHNER, 1981).
Concluindo esse esboço histórico, ressaltamos que a conferência sobre
a questão do divórcio surge em um momento de mudanças sociais, políticas
288
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012
e econômicas no Brasil. Junto com a modernização do País, a figura feminina
ganha importância e obviamente suas reivindicações, pois as mulheres
urbanas farão parte do novo mercado de trabalho. E como cidadãs produtivas
também buscam espaço e influência na esfera política através do voto e de
eleição de mulheres empenhadas na luta por suas causas.
“O Divórcio” na perspectiva do Direito
Quando falamos do divórcio, ou da dissolução da união conjugal, é
obrigatório que se faça referência ao instituto do casamento, eis que o
casamento válido somente é extinto pela morte de um dos cônjuges ou
pelo divórcio. Estando o divórcio, intrinsecamente ligado ao casamento, se
torna necessário mencionar todo o aspecto religioso e moral, discutido
quando se leva a debate questões referente ao divórcio. O casamento, como
instituto criador da família durante muito tempo, e ainda hoje, tem
influência e participação direta da Igreja, pois, como veremos, durante
muito tempo, a Igreja Católica foi a única a legislar sobre o casamento.
Em se tratando de palestra proferida pelo Dr. Armando Dias de
Azevedo, no ano de 1932, é de fundamental importância que entendamos
qual era o cenário socioeconômico e religioso da época, principalmente o
anterior. E preciso que se entenda que, em 1932, a mulher sequer havia
adquirido alguns direitos políticos, no Brasil, ao voto feminino somente
eram permitidas as mulheres casadas e com a autorização do marido. (Decreto
21.076, de 24 de fevereiro de 1932).
O Brasil da década de 30 (séc. passado) era um país eminentemente
católico, e o casamento era consolidado como o sacramento responsável
pela formação da família e, portanto, indissolúvel. Em parte, por influência
da Igreja Católica foi que durante todo o período colonial e grande parte
do período republicano brasileiro, tivemos o casamento como indissolúvel,
havendo, apenas, excepcionalmente, a possibilidade de separação dos cônjuges
e do patrimônio, mas nunca do vínculo conjugal contraído perante a Igreja
e o Estado.
A possibilidade do divórcio somente surgiu com a Emenda
Constitucional 9, de 28 de julho de 1977 que alterou o caráter indissolúvel
até então atribuído ao casamento, pois os cônjuges divorciados poderiam
contrair novas núpcias dissolvendo o vínculo matrimonial anterior, mas o
caminho até a legislação que instituiu o divórcio foi longo e tortuoso.
MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques
289
A primeira legislação brasileira a respeito do Direito de Família advém
do tempo do Império, com o Decreto Imperial de 3.11.1827 sob a égide
do Direito Canônico. Somente com o início da República no Brasil é que
surgiu o casamento laico, com o Decreto 182, de 24 de janeiro de 1890
que criou o casamento civil sendo esse o único reconhecido pelo Estado,
devendo esse sempre preceder o casamento religioso, sendo que a
Constituição Federal de 1891, somente reconhece como válido o casamento
contraído no civil, retirando por completo o privilégio da Igreja.
Esse rompimento ocorrido entre o Estado e a Igreja somente se
restabeleceu com a Constituição de 1934, que atribuiu ao casamento religioso
os mesmos efeitos do casamento civil.
O Código Civil de 1916 abrigava o pensamento da elite da época,
contrária ao divórcio, em total consonância com os ditames da Igreja
Católica, instituindo como forma de dissolução da sociedade conjugal o
desquite. O desquite permitia somente a dissolução do vínculo conjugal,
mas nunca da vínculo matrimonial contraído com o casamento. Na prática,
nenhum avanço foi feito eis que o Decreto 181, de 1890, já previa a
dissolução da sociedade conjugal com a separação de corpos e do patrimônio
do casal.
A questão da indissolubilidade do casamento permaneceu em todas as
Constituições e alterações legislativas que se sucederam. Foi somente em
28 de junho de 1977, que a Emenda Constitucional 9, com seu art. 175, §
1º inserido na Constituição Federal de 1969 e posteriormente pela Lei
6.515/1977, conhecida como “Lei do Divórcio” que revogou os artigos
315 a 318 do Código Civil de 1916, instituindo, no Brasil, o divórcio
como forma de dissolução do matrimônio.
Percebemos, por esse breve histórico da evolução legislativa, o longo
caminho que percorremos para que o Estado, através da lei reconhecesse a
dissolução do matrimônio pelo divórcio. A contextualização dessa
conferência publicada no jornal Forense de Porto Alegre demonstra o
descompasso entre as mudanças ocorridas no Brasil da década de 30 e o
processo de industrialização que se refletiu nas relações entre homens e
mulheres e no percurso das lutas femininas por um espaço na sociedade
brasileira, tradicionalmente patriarcal. Mesmo tendo herdado a herança do
mando masculino, as mulheres conseguiram avanços significativos, mas o
poder masculino ainda determina a posição da mulher na sociedade daquela
época. A legislação, por sua vez, legitima o seu poder e o uso da violência
contra a mulher. Ela deve ser “vigiada e punida”.
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012
Finalizando, é importante ressaltar que ainda havia um grande caminho
a ser trilhado pelas lutas femininas, principalmente para a mulher do espaço
rural. Retomemos a reflexão de Hahner que lembra que
as profissionais que levaram a campanha sufragista à vitória em
1932 compreendiam apenas um pequeno segmento da população
feminina nacional. A maioria das mulheres, bem como dos homens,
continuou sem instrução. Para os membros das classes inferiores, a
mudança veio mais lentamente. Mesmo entre os brasileiros mais
bem situados, a maioria das mulheres ainda ocupava uma posição
subalterna, com seus horizontes limitados ao lar. Para as mulheres,
ao contrário dos homens, esperava-se que os problemas da família
fossem mais importantes do que os demais. Hesitantes ou
indiferentes, muitas mulheres não tentaram atravessar a longa e
árdua trilha para a igualdade e a independência. (HAHNER, 1981,
p. 125).
Documento: Jornal Forense. Número 7 e 8 / outubro e novembro de 1932
Órgão da classe dos advogados e dos interesses forenses.
O DIVÓRCIO
Pelo Dr. Armando Dias de Azevedo (Conferência lida no Instituto da
Ordem dos Advogados do Rio Grande do Sul).
O divórcio “a vinculo” é uma calamidade social, pois vem mais nem
menos que dissolva a família cellula – “mater” da sociedade. Seus apologistas
partem do falso pressuposto do individualismo. Mas, como pondera Paul
Bourget, querer fundar o organismo social sobre o indivíduo é pretender o
traçado dum circulo quadrado: há “contraditio in adjecto”.
“A sociedade humana compõe-se de famílias e não de indivíduos”, diz
Augusto Comte e acrescenta: “... Um systema qualquer não pode ser formado
sinão de elementos semelhantes a elle e apenas menores. Uma sociedade
não é, pois, decomponível em indivíduos, do mesmo modo que uma
superfície geométirca não é o em linhas ou uma linha em pontos”.
O interesse da família exige a indissobilidade do vinculo do matrimonio,
pois proporciona “Um divorcio” as seguintes probabilidades: “probabilidades
de reflexão séria antes do compromisso, porque é irrevogável – probabilidade
MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques
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de cohesão mais estreita entre os antepassados, os Paes e os filhos,
porque a prole comporta menos elementos heteregeneos, –
probabilidades de união no espírito dos membros e de continuidade
na tradição”.
Vede as horríveis conseqüências do divorcio na vida da família como
nôlas pinta o genial romancista e psycologo:
“Vi ódios fraticidas entre filhos do primeiro e segundo, leito, Paes e
mães julgados e condemnados por seus filhos e filhas: aqui, choques
mortíferos entre o padrasto e seu enteado: ali, entre a segunda mulher e a
filha do marido: acolá, o ciúme do passado, dum passado tornado tão além,
lutas horríveis entre esses primeiro marido e sua antiga mulher em torno
das doenças de seu filho, ou uma vez crescido este, de suas paixões, de suas
loucuras de jovem, e, si é uma filha do casamento desta”.
Imaginea a situação moral das creanças que tenham pae, mãe,
“padrasto” e “madrasta” todos vivos!...
Há quem diga que o divorcio “a vinculo” é uma protecção Á mulher.
Pura illusão. “A mulher – diz Monsabré – é, mais do que o homem, a victima
das degradações que arrasta consigo o divorcio.
O homem póde sahir da sociedade conjugal com todas as vantagens
de sua força e de sua autoridade, para se compromotter em novos laços; a
mulher não póde sahir delle com toda a sua dignidade: deixa ahi seus
melhores bens, as primícias de sua honra e os encantos de sua mocidade e
não retira sinão com difficuldade o dinheiro trazido”.
Dizem alguns partidários do divorcio “a vinculo” que há casos
expecialissimos e situações extremas em que só elle póde ser remédio positivo
e radical.
O remédio para os casamentos infelizes, o remédio exctremo, é o
desquite, isto é, a separação de corpos e de bens, com a conservação do
vinculo conjugal, tal como é regulado pelo código civil e pelo direito
canônico.
Ademais, as leis não são feitos para os casos excepcionaes, mas para os
casos geraes, os casos normaes.
Nem se argumente que a indissolubilidade é uma fonte de concubinatos
e dessa torpe hyprocrisia que ultimamente se introduziu entre nós, sob o
euphemismo de “casamento por contracto” e que nada mais é que
concubnato. Pedir por tal motivo a instituição do divorcio “a vinculo” é
pedir a legalização do concubinato. Para evitar a este não devemos procurar
soluções nas leis, mas nos costumes, na moral, na religião. A continência
fora do matrimonio não é impossível. A possibilidade e conveniência della,
por motivos puramente hygienicos, têm sido demonstradas sobeyamente
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012
por sábios de reputação universal. Sobre tal assumpto deixo de estender,
para não invadir seara alheia, competindo, como compete, aos médicos
mostrar a inanidade da immoral theoria que quer justificar os
desregramentos, cobrindo-os com o manto augusto da sciencia.
Diz-se ainda que, sendo o casamento um contracto, tem por força de
ser rescindível. Distingamos. Há animal e animal. Há o animal irracional e
há o animal racional, chamado homem. Da mesm fórma há contracto e
contracto. O casamento é um contracto “suis generis”, que diz respeito a
interesses muito mais elevados que os garantidos por um contracto de compra
e venda, de doação, etc. Antes, porém, de ser um contracto civil, é um
contracto ntural e religioso. Delle depende a existencia do gênero humano.
“E” – como diz René Lamaire em sua monographia “Lê mariage civil”
– um contracto natural, porque desde a origem e em todos os tempos o
homem e a mulher foram levados a se unir, por sua natureza mesma e para
dar satisfação ás necessidades oraes e physicas dessa natureza, o amor mutuo
e a procreação.
É também, como diz o mesmo jurista, “um contracto religioso, porque
differente dos outros contractos que são conseqüências mais ou menos
forçados de necessidades ou situações variáveis, aquelle foi instituído, querido
directamente por Deus como elemento indispensável para a conservação
do gênero humano que creára”.
Só em terceiro logar é “um contracto civil, porque, dos diversos
interesses materiaes que os homens devem tratar entre si e regular por suas
leis, os que o casamento põe em jogo estão entre os mais importantes e os
mais dignos de attenção.
Nem se argumente com o exemplo dos outros povos. Ahi estão os
funestos resultados mostrando que não devemos trilhar caminho igual. As
estatísticas que nos apresenta Leonel franca em sua monumental obra, que
é a ultima palavra no assumpto, são, de sobejo, eloquentes.
Muito haveria a dizer sobre a magna questão do divorcio mas seria
execeder os limites dum artigo ligeiro.
Reproduzirei apenas a pagina magistral em que Bourget em “Um
divorce”, póe estas palavras na boca do padre Eurvard, dirigindo-se a
Madame Darras, uma divorciada que convolara novas nupcias:
“Permitti-me uma comparação vulgarissima, mas muito nítida. Um
navio acha-se diante dum porto onde um dos passageiros queria descer. Há
, para este, altos interesses Moraes e materiaes, rever um pae moribundo,
por exemplo, assistir a um processo de que depende o futuro dos seus.
Que sei eu?... Casos de peste deram-se a bordo. As autoridades da
cidade prohibem o desembarque por temos do contagio. Seria justo, seria
MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques
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caritativo ceder ás supplicas do viajnate, com o risco de contaminar uma
cidade de cem mil habitantes? Evidentemente não. Eis, pois, uma
circumstancia em que a justiça, em que a caridade exigem o sacrifício do
interesse individual ao interesse geral.
Este principio domina a sociedade. Entre duas medidas, das quaes uma
é certamente útil ao conjunto, e penosa a tal individuo, a outra agradável a
este individuo e prejudicial ao conjunto, a justiça e caridade queriam que a
primeira predomine.
É a pergunta que é mister fazer-se a propósito de qualquer instituição
para medir-lhe o valor”. E mais adiante, depois de dar os argumentos
racionaes, já acima transcriptos, acrescenta: “Que responde a historia, depois
da razão? Ela demonstra que, com effeito, todas as civilizações superiores
tende à monogamia. Ora, o divorcio não é monogamia, é polygamia sucessiva.
Não quero fazer-vos um curso de sociologia. Sabies, no entanto, o que
estabelece a estatística? Nos paizes em que existem o divorcio, o número dos
criminosos, dos loucos, dos suicidas é proporcionalmente o decuplo nos
divorciados. Por, conseguinte, para uma pessoa que, como vós e algumas
outras, traz ou preserva no divorcio todas as delicadezas de seu espírito e de
seu coração, a maioria ou já as tinha estragado ou perdeu nelle.
Regulamentar a sociedade em vista duma minoria de degenerados prováveis,
é procurar sua norma no que deve ficar sua decadência. Chamaes a isso um
progresso.
A sciencia chama-o regresso”.
Em conclusão:
Acho summamente prejudicial o divrocio “a vínculo” e considero
sufficientes para a solução dos casos especialíssimos e das situações extremas
da vida conjugal, no direito civil, o desquite, e canônico, a separação “quoad
thorum et habitationem”
Fonte: Jornal Forense. Órgão da Classe dos Advogados e Dos interesses Forenses. Jus et
Libertas. Labor est Justitia. Director: Octavio Pitrez do Instituto da Ordem dos Advogados
do Rio Grande do Sul. Doutrina, Jurisprudência, Legislação. Critica e Noticiário. Porto
Alegre, Outubro e Novembro 1932 n. 7 e 8. Redação Provisória: Duque de Caxias, 508
– Phone: 6224. Fundo: Laudelino Teixeira de Medeiros – LTM 2514/ Caixa: 137.
Série: Produção de Terceiros. Centro de Documentação da Universidade de Caxias do
Sul (Cedoc/UCS).
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012
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Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
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SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Dicionário
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Brasil. Lisboa: Verbo, 1994.
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VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil:
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2004.
MÉTIS: história & cultura – CONFORTO, Marília; GONÇALVES, Gilberto Jacques
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 281-295, jan./jun. 2012
O Código Penal de 1890 e a construção das relações de
gênero, no julgamento dos processos-crime de
homicídios, entre 1900 e 1940, na Comarca Caxias
The Penal Code 1890 and the construction of gender relations at trial processes
crime of homicide, between 1900 and 1940, at Comarca Caxias
Aquéle Hendz*
Jônatas Herrmann Dornelles**
Resumo: A violência presente nas
sociedades humanas é objeto de estudos
nos mais diversos espaços do Planeta,
assim como em variadas épocas. O
presente artigo tem por objetivo
demonstrar que os arquivos do Judiciário
são um manancial extremamente rico para
as mais distintas abordagens da pesquisa
histórica, além de analisar, a partir do
julgamento de crimes de homicídios, os
valores que o Poder Judiciário utilizou
para construir os diferentes elementos
sociais envolvidos nos processos que
ajudam na construção das relações de
gênero.
Abstract: The existing violence prevailing
in human societies is a subject discussed
in diversed fields of historigraphy. This
article aims to prove that the Judiciary
files are an extreme rich source to several
distinct approaches of historical researches,
besides reviewing, as from de judgment
of homicide crimes, the values considered
by the Judiciary to build different social
elements involved in processes that help
in the construction of gender relations.
Palavras-chave:
processo-crime;
violência; código penal.
Keywords: criminal process.; violence;
criminal code.
* Acadêmica de Licenciatura em História da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Bolsista
voluntária do Projeto de Pesquisa “História e Poder”. E-mail: aquelehendz@hotmail.com.
** Aluno do curso de Licenciatura em História da UCS. Estagiário no Centro de Memória
Regional do Judiciário (CMRJ)/UCS). Bolsista voluntário no projeto de pesquisa “História
e poder”. E-mail: jonatasherrmann@gmail.com.
MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann
297
Atualmente, vários estudos que estão voltados à história da Justiça
utilizam como objeto de pesquisa processos-crime judiciais, que são
essenciais à compreensão dos conflitos sociais e à posição do Poder Judiciário.
O acervo do Centro de Memória Regional do Judiciário (CMRJ),
vinculado ao Instituto Memória Histórica e Cultural da Universidade de
Caxias do Sul (UCS), abriga processos da Comarca de Caxias do Sul desde
o ano de 1898 até 2003. Entre esse vasto acervo, há processos-crime de
homicídios envolvendo homens e mulheres, nos quais se pode observar a
posição assumida pelo Poder Judiciário na região, possibilitando pesquisas
na área da História e do Direito e também a compreensão das relações de
gênero na época em foco.
O estudo de três processos de assassinato, um cuja vítima era um
homem (1915), e os outros dois cujas vítimas eram mulheres (1929 e
1932), permitiu que se buscasse compreender o modo de posicionamento
do Judiciário através do uso do Código Penal de 1890, no julgamento dos
processos, bem como de que forma seus julgamentos contribuíram para a
construção das relações de gênero, resultando, assim, no presente artigo.1
Os estudos apresentados pela Escola dos Anales têm interferido teórica
e metodologicamente no trabalho dos historiadores com a
interdisciplinaridade. Através dos mesmos, houve a aproximação com outros
territórios disciplinares, possibilitando a renovação da historiografia através
de “novos problemas”, “novas abordagens” e “novos objetos”, como coloca
Burke ao se referir à coleção editada pelo renomado medievalista francês
Jacques Le Goff.2
A seleção do período de estudo neste artigo foi a delimitação entre
1910 e 1940, pois que ainda não haviam sido identificados processos de
homicídio até 1900, e a base de dados do acervo do CMRJ ainda está
sendo alimentada.
O período abarcado entre 1900 e 1940 diz respeito ao contexto
histórico de vigência do Decreto 847, de 11 de outubro de 1890, que
promulgou, na época, o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil (CP
de 1890), que vigorou até 1940. Outra questão do contexto a ser
considerada é o fato de se tratar de uma região que recebeu a imigração
italiana a partir de 1875. É possível identificar, nos processos-crime de
homicídios, imigrantes italianos como partes envolvidas no papel de
transgressor que trazem em seus discursos, durante a fase de interrogatório,
o uso de sua identidade regional para justificação da prática do crime, que
será analisado mais a fundo posteriormente.
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012
Código Penal de 1890 e seus elementos discursivos
Para a compreensão dos processos-crime de homicídios e do CP de
1890 recorreu-se aos conceitos de Pierre Bourdieu, que aborda o campo
jurídico tratando de sua estrutura simbólica, seu lado interno, e faz uma
crítica à categoria dos marxistas que ficou cega à análise das ideologias das
estruturas sem se aprofundar no que as norteia internamente, sendo um
exemplo disso Louis Althusser que apresentou os Aparelhos ideológicos de
Estado, sendo “vítima de uma tradição que julga ter explicado as ‘ideologias’
pela designação de suas funções”. (BOURDIEU, 2003, p. 210).
Bourdieu estabelece a lógica do campo jurídico, quando fala que
as práticas e os discursos jurídicos são, com efeito, produto do
funcionamento de um campo cuja lógica específica está
duplamente determinada: por um lado, pelas relações de força
específicas que lhe conferem a sua estrutura e que orientam as
lutas de concorrência ou, mais precisamente, os conflitos de
competência que nele têm lugar e, por um outro lado, pela lógica
interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o
espaço dos possíveis e, deste modo, o universo das soluções
propriamente jurídicas. (2003, p. 211).
Através da citação, o autor destaca o quantoa área do Direito é
monopolizada pelos próprios agentes que o operam, elaboram seus produtos
e delimitam seus espaços e suas configurações através das leis.
O ato de uma pessoa recorrer a instâncias legais para a resolução de
conflitos significa que ela aceita uma única forma de resolvê-los, ou seja,
através da expressão e discussão, que nega a violência física. Assim, se fica
subordinado ao sistema, à ideologia que norteia o campo jurídico que já
tem sua organização, pois, como explica Bourdieu,
o campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual
se opera a transmutação de um conflito direto entre partes
diretamente interessadas no debate juridicamente regulado entre
profissionais que atuam por procuração e que têm de comum o
conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer, as
leis escritas e não escritas do campo – mesmo quando se trata
daquelas que é preciso conhecer para vencer a letra da lei. (2003,
p. 229).
MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann
299
Partindo desse pressuposto e pensando nas partes que são arroladas em
um processo judicial, pode-se aferir que muitos decidem optar pelo apoio
dos meios judiciais para obter a solução legal aos diferentes conflitos sociais
o que significa que essa procura representa aceitar e ter confiança nas decisões
dos donos do monopólio do saber jurídico e, ao mesmo tempo, se
subordinam às regras e às ideologias que norteiam tal território.
Usando o Poder Judiciário como instância legal para a resolução de
conflitos, os envolvidos, sejam eles o autor ou o réu/transgressor, juntamente
com seus advogados, utilizam as leis a seu favor ficando a cargo do Poder
Judiciário a punição ou a absolvição.
No contexto dos processos-crime estudados vigorava, no Brasil, o
Código Penal de 1890. Alvarez, Salla e Souza (2007) ao estudarem o Código
Penal de 1890 e suas tendências, durante o período da Primeira República,
na sociedade, afirmam que esse conjunto de leis assumiu a função de
“instrumento de controle social no período”, sendo “incapaz de dar conta
dos novos desafios colocados pelas transformações sociais e políticas do
período republicano”.
O Código Penal de 1890 foi elaborado com o intuito de fazer a
“construção da ordem legal republicana” que, segundo Alvarez, Salla e Souza
(2007), foi publicado após o sistema escravista, quando se iniciou a expansão
da urbanização no Brasil.
As considerações sobre o objetivo da implantação do CP de 1890
revelam a relação dialética entre sociedade e lei. Nesse contexto, o fim da
escravidão e o início do desenvolvimento urbano foram alguns dos fatores
determinantes que justificaram a necessidade de publicação desse código
pelos detentores do poder, no sentido de ter um conjunto de leis que
regesse e determinasse as relações sociais de uma nova proposta de sociedade.
Bourdieu reforça essa ideia quando explica a relação entre campo jurídico
e campo social, argumentando que “é no interior deste universo de relações
que se definem os meios, os fins e os efeitos específicos que são atribuídos
à ação jurídica”:
Deixando de se perguntar se o poder vem de cima ou de baixo, se
a elaboração do direito e a sua transformação são produto de um
“movimento” dos costumes em direção à regra, das práticas
coletivas em direção às codificações jurídicas ou inversamente, das
formas e das fórmulas jurídicas em relação às práticas que elas
informam, é preciso ter em linha de conta o conjunto das relações
300
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012
objetivas entre o campo jurídico, lugar de relações complexas que
obedece a uma lógica relativamente autônoma, e o campo do poder
e, por meio dele, o campo social no seu conjunto. (BOURDIEU,
2003, p. 240-241).
Também é importante acrescentar a essa questão do monopólio do
saber jurídico que, historicamente, a área jurídica sempre foi representada
e refletida pelo grupo masculino que ficou responsável para pensar os
comportamentos da sociedade, pela elaboração das leis, decretos e
jurisprudências, colocando a sua visão e, consequentemente, levando ao
julgamento final sua visão sobre como a sociedade deveria ser regida.
Louise A. Tilly (1994, p. 54) revela a pouca importância da mulher no
mundo político e “[as mulheres podiam] assistir aos processos nas cortes,
mas elas não podiam esperar desempenhar, em hipótese nenhuma, um papel
no funcionamento da justiça nem tomar parte ativa no seu grandioso
espetáculo”. (TILLY apud DAVIDOFF; HALL).
O próprio CP de 1890 mostra a visão que o saber jurídico teve quando
elencou os crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do
ultraje público ao pudor. Em seu Título VIII, o art. 268 apresenta as
penalidades a quem “estuprar mulher virgem ou não, mas honesta”. Outros
artigos também indicam sobre a existência de “tipos de mulheres”, mostrando
haver a aplicação de penalidades diferentes, quando fossem violados os
direitos da mulher pública/prostituta ou da mulheres honrada/honesta.
Estudo dos casos
Alvarez, Salla e Souza (2003), quando falam dos avanços da legislação
processual republicana, veem o aumento das “possibilidades de defesa dos
acusados nos crimes comuns” como um avanço. Assim, “a oralidade do
julgamento vigorava nos debates plenários diante do júri; entretanto, o
processo escrito dominou todo o procedimento preliminar do inquérito
policial ou de formação de culpa”. Talvez, isso tenha tornado os processos
judiciais portadores de um conteúdo mais vasto, onde os historiadores
podem encontrar uma maior variedade de discursos, falas, interrogatórios
registrados, que podem ser lidos nas entrelinhas para a busca de indícios
que ajudarão na interpretação dos mesmos.
Os testemunhos dos processos-crime de homicídio podem ser
compreendidos e analisados considerando o método de Morelli citado por
MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann
301
Ginzburg (1989), que consiste no levantamento minucioso dos indícios
que podem indicar sinais aparentes de revelações necessárias e, nesse caso, a
atuação do CP de 1890 na construção das relações de gênero nos processoscrime de homicídios que podem ser observados nos diversos interrogatórios
institucionais e nas inquirições e respostas das testemunhas.
Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições,
ele aprendeu a reconstruir as formas e os movimentos das presas
invisíveis pelas pegadas na lama, ramos pregados, bolotas de esterco,
tufos de pêlos, plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu
a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais com
fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com
rapidez fulminante, no interior de um denso bosque ou numa
clareira cheia de ciladas. (GINZBURG, 1989, p. 152).
Lange relaciona o trabalho de identificação de indícios à tarefa do
pesquisador quando diz:
Desse modo, o caçador/observador e, hoje um pesquisador; a partir
de um levantamento heterogêneo das pistas, dos sintomas e indícios
deverá assumir uma postura cognoscitiva sobre os dados recolhidos
conforme um paradigma indiciário – selecionar, conjeturar e organizar
(fazer análises, comparações, classificações). (2008, p. 25).
O primeiro caso de estudo consta do translado de um processo de
1915, que narra o resultado de um crime cuja vítima foi o subintendente
do Município de Caxias do Sul:
No dia 15 do corrente pelas sete horas e três quartos mais ou menos,
era o denunciado conduzido para Intendência Municipal desta
cidade pelo sub-intendente interino A. M. por ter furtado alguns
objetos da casa de G. R. Ao passarem pela rua Sinimbu em frente
à casa de J. A., o denunciado saca de uma pistola e a desfecha em
A. M.; produzindo-lhe os ferimentos descritos no auto de exame
cadavérico de fls., e que causou-lhe pouco depois a morte. E porque
o denunciado assim procedendo, tenha incorrido na sacção do art
294 do Cod. Penal da Rep. O representante do Ministério Público
vem oferecer esta denúncia, para que contra ele se proceda na
forma da Lei. (p. 1 – verso).
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012
O CP de 1890, em seu art. 7°, trata do crime como “violação imputável
e culposa da lei penal”, já atribuindo a responsabilidade a quem o praticou.
Observa-se que os autos do processo fazem menção ao art. 294 do CP de
1890, cujo título do capítulo é “Do homicídio”, e o do art. 294 é “Matar
alguém” e ao peso da pena em relação às circunstâncias agravantes ou
atenuantes. Observa-se, também, que é o próprio representante do
Ministério Público quem faz a denúncia, onde “havia a necessidade
preeminente de justificar que o ato foi cometido através da vontade do
agente, seja esta manifesta ou latente”, como explicam Alvarez, Salla e Souza
(2003). Não se pode deixar de considerar, também, que o “ofendido” é um
subintendente, o que influi muito na acusação e nas decisões tomadas devido
às relações de poder existentes.
Não houve dúvidas em relação a esse crime por parte dos juízes e do
advogado, devido à sua evidência e aos depoimentos das testemunhas, como,
por exemplo, o da primeira testemunha inquirida:
Que no dia quinze do corrente, pelas oito horas mais ou menos,
passeando pela rua Sinimbu na quadra entre as casas de J. A. e A.
G., encontrou o sub-intendente, A. M., junto com o réu, parados
discutindo aquele: “Vamos até a intendência” Respondendo o réu:
“Não vou”. Então A. M. pegou-o pelo casaco replicando: “Vamos”.
Ali o réu puxando de uma pistola de dois canos, engatilhou-a e
fez fogo, em A. M., segurando este na ocasião com a mão esquerda
o cano da referida pistola. Disse mais que a vítima depois de ferida
lutou com o agressor e não podendo mais devido ao seu estado
pediu a testemunha que o ajudasse e ela segurando o criminoso
pelas costas procurou derrubá-lo, porém este conseguiu escapar,
disparando rua fora, sendo perseguido em seguida pelo
comandante da polícia. (p. 10).
O réu foi condenado a 24 anos de prisão celular, cuja pena máxima
prevista pelo CP de 1890 era de 30 anos.
O segundo processo foi a investigação de um assassinato ocorrido em
1929, onde foi realizada a exumação e necropsia do cadáver de A. B.,
devido à alegação, dias depois, de M. B., pai da vítima, “que a morte desta
estava em volta do mistério, já por haver sido quase repentina”. O laudo de
análise toxicológica procedida nas vísceras da vítima atestou que foram
encontradas substâncias tóxicas no corpo da vítima, que foram retiradas,
MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann
303
aplicadas em um animal (neste caso de uma rã) que morreu sob o efeito
dessas substâncias, comprovando que a causa da morte de A. B. foi
envenenamento por estricnina.
O relato do Dr. Rufino Ignácio Bezerra revelaz todo o processo pelo
qual aquela família passou, até se encerrar com a morte da vítima:
Compareceu o Sr. Dr. R. I. B., com 39 anos de idade, brasileiro,
casado, médico, residente neste distrito que declarou o seguinte:
Que no dia 18 de fevereiro a tardinha foi ao seu consultório o Sr.
W. R. foi consultar para sua esposa, dizendo que a mesma sentia
dores no ventre, fraqueza e mal estar, perguntando por que não a
trazia ao consultório para ser examinada, respondeu que a mesma
era muito acanhada, e que mais tarde ela viria afim de ser
examinada. Pedindo-me que receitasse um medicamento para as
cólicas que sofria, imediatamente receitei umas cápsulas, cuja
formula é a seguinte: Pó de Dorei 0,20 – calomelanos, 0,50 –
santonina 0,10, para ser dividida em 4 cápsulas; usar uma cápsula
por noite. No dia seguinte às 21 horas foi chamado para atender
Sra. A. esposa do Sr. W. que não se achava bem, ao chegar lá
encontrei-a na cama sentada e com convulsões, tendo antes da
minha chegada necessitado, motivo porque ele declarou-me que
queria da cápsula que ela havia tomado, em seguida atendia
fazendo-lhe uma injeção de éter outra de morfina, porque notei
que o sistema nervoso era muito agitado; pois apresentava
contrações musculares, ameaçando ter ataque. Perguntei-lhe se
sentia dores no estomago, queimar, azia, dores no ventre, se tinha
cólicas, se urinava bem, se não tinha diarreia e se não sentia mais
alguma coisa de anormal. Declarou-me que sentia alguma coisa
ruim pelo corpo e lhe agitava as pernas e os braços. Notando que
não havia envenenamento pelo medicamento ingerido e por mim
receitado fiquei atendendo-a até às 23 horas da mesma noite,
porque ela vomitou três a quatro vezes e fazia ânsias de vômitos,
tendo as convulsões antes de sentir ânsia.
O marido quando diz que sua esposa é “acanhada” para justificar sua
ausência ao médico, dá indícios da submissão da mulher a ele, já que suas
respostas fazem com que lancemos alguns questionamentos: teria realmente
a mulher optado por ficar em casa pelo fato de ser acanhada ou seria essa
uma observação do entendimento do próprio marido?
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012
O médico destaca que a enferma teve vômitos e que, quando indagou
à família se alguém havia oferecido alimentação a ela, obteve uma resposta
positiva. No outro dia, o médico foi chamado novamente para examiná-la,
encontrando-a bem disposta. Entretanto, no mesmo dia fora chamado
novamente, pois a enferma estava passando mal quando a encontrou tendo
ataques e contorcendo os seus membros devido às contrações violentas.
Mesmo tendo sido aplicados medicamentos, ela faleceu naquele dia.
O depoimento das demais testemunhas começaram a dar indícios do
possível responsável pelo envenenamento de A. B., como consta no
depoimento de E. A:
Daí a pouco chegou Dr. B. perguntando aos presentes o que
tinham dado para comer e beber, o que respondeu a depoente,
que não sabia e que mais tarde soube que a sua sogra havia dado
uma sopa de arroz com leite, que a depoente viu mais que depois
do terceiro ataque a enferma estava com um movimento somente
mexendo com os braços e a cabeça, notando que as unhas da mesma
logo depois de expirar, estavam completamente roseadas, quando
foram banhar a morta viu quando o Sr. W. P. esposo da morta
agarrou de cima da cômoda três capsulas que estavam enroladas,
guardando-as no bolso, nada mais vendo a respeito das aludidas
cápsulas. (p. 4).
O depoimento de C. T. de O. que dizia ter 32 anos, ser brasileira e
viúva, destacou uma carta que J., a possível amante de W., recebera do
mesmo, mostrando ao subdelegado um dos possíveis motivos do
envenenamento de A., quando declarou:
A uns oito dias, antes do facto da morte de Sra. A. B. R. A srta J.
A. havia lhe mostrado uma carta, de Sr. W. que lhe havia
endereçado, a qual relatava que havia esquecido o seu pai, mãe,
mulher e filha e que deveria de se sacrificar por ela, e se ela não
acreditasse ele haveria de furar uma veia e mandar-lhe um pouco
de sangue. Passado dias, tornou a mostrar a depoente um bloco de
cartas que ela havia recebido de Sr. W., por ocasião do aniversário
de seu irmão em que o mesmo dançou uma marcha com ela e lhe
havia entregue o aludido bloco, lendo algumas cartas, na qual o
mesmo fazia-lhe declarações amorosas. Na noite o do velório da
esposa de Sr. W., Srta. J. havia lhe dito que tinha recebido um
MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann
305
bilhete de Sr. W. dizendo-lhe que a esperasse a meia noite; Disse
mais a depoente que Srta. J. lhe havia declarado na noite do velório
que Sr. W. havia estado em sua casa na véspera da morte de sua
esposa fazendo-a jurar que havia de casar com ele que não lhe
desse cuidado por isso ele sabia o que ia fazer, tendo a depoente
respondido: então foi Sr. W. quem envenenou a sua esposa. Ao
que respondeu Srta. J. se ele cometeu o isto, ele terá remorso para
o resto da vida. Tendo Srta. J. pedido à depoente antes da confissão
para que jurasse de joelhos, para que nada do que ia lhe confiar.
Mas que diante do ocorrido, não podendo por mais tempo ocorrido
guardar semelhante segredo contou ao seu irmão e outras pessoas.
E disse mais a depoente que Srta. J. lhe havia dito que possuía
vinte e tantas cartas de Sr. W. cujas cartas seu cunhado Sr. H. M.
R. as viu e rasgou na vista dela e que partes delas foram queimadas
por Srta J. na vista da depoente. (p. 4).
Outra testemunha inquirida depôs sobre o estado de perturbação de
W. quando disse que,
em Dezembro do ano findo, conversando com Sr. W. R. marido
de D. A. B. R. e que estava o depoente hospedado no Hotel Italia,
em São Marcos, e que foi procurado por Sr. W. R. P., o qual lhe
confessou que era o homem mais desgraçado que existia e que não
podia mais suportar a vida e que por isso o único remédio que
tinha era estourar cabeça com uma bala. [...] O depoente
aconselhou-o que mudasse de ideia, ao que Sr. W. respondeu que
o seu plano estava traçado e que se ele não metesse uma bala na
cabeça, seria a desgraça [...] de uma ou mais pessoas de São Marcos.
(p. 6).
Os depoimentos das testemunhas ouvidas no processo foram
consideradas suficientes para a polícia chegar a conclusão de que
pelos referidos laudos se evidencia de modo irrefutável, que D. A.
B. R. foi envenenada por meio de Estricnina. A morte da vítima
se deu logo após, a mesma ter tomado um prato de arroz. [...] Sr.
W. R. P., mantinha relações amorosas com a senhorinha J. A. a
quem prometera, arranjar um meio de desvencilhar-se de sua
esposa, a fim de casar com a mesma J. (p. 6).
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012
Em Taquara, município para onde o réu se mudou após cometer o
crime, o mesmo foi inquirido, juntamente com mais testemunhas, quando
o Juiz Distrital, o escrivão e o Promotor Público fizeram questionamentos
acerca do relacionamento do casal. R. I. B. foi questionado durante a
interrogação:
Se é ou não exato que Sr. W. R. P., foi sempre marido estimoso,
tratando sua mulher com dedicação e estima? R. que é exato o que
se contém na pergunta, pelo o que o depoente viu durante mais
de ano em que o depoente vivia bem com a família do réu. Se é ou
não exato que a família B. sempre se opôs tenazmente ao casamento
de Sr. W. com A. B., o que levou aquele a raptá-la de casa para que
o casamento se fizesse? R. o que sabe de consciência própria que a
família da Sra. A. B. se opunha, ao seu casamento com o réu, e
que sabe também que o réu raptou Sra. A. a B., conseguindo a
muito custo o consentimento do pai da vítima para o casamento
dos dois. (p. 16).
Em função de o crime ter sido cometido na cidade de São Marcos, o
processo faz menção ao alarde que o fato provocou na população, bem
como ao fato de o mesmo ocupar espaço nas páginas do jornal, contribuindo
assim para aumentar a seriedade com que o caso foi encarado pelos juristas.
Quando o réu foi interrogado, o mesmo chegou a afirmar que o que
justificava a sua inocência era a existência de uma carta deixada por sua
esposa, na qual ela avisava que iria se envenenar:
Sr. W. querido. Eu te ama muito, mas me perdoa eu fui obrigada,
Sr. W. meus pais querem que eu te deixe por força, eles disseram
que se eu não te deixar que te matam, mau Neno cuida bem da
nossa filhinha, eu vou me envenenar, mas não é por meu gosto,
querido estou muito nervosa. (p. 31).
Entretanto, o fato de o réu ter se envolvido com uma moradora do
município de Bento Gonçalves e por ter uma depoente exposto que viu ele
pegando algumas cápsulas de cima da cama e as colocando no bolso,
tornaram-se fatores desfavoráveis a ele, pois a própria J. também foi intimada
e confirmou os depoimentos ajudando na decretação da prisão preventiva
de Sr. W.
MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann
307
Consta na ata do júri que o advogado de defesa pediu a absolvição do
réu, mas sem surtir efeito. De acordo com a votação do júri, o réu foi
declarado culpado por ter colocado Estricnina na comida de sua falecida
esposa. Havia tudo para o caso ter circunstâncias agravantes, mas em vista
do réu ser menor de idade, o júri respondeu ao nono quesito: “Sim, por
quatro votos: Existem a favor do réu as atenuantes de ter exemplar
comportamento anterior é ser de menor idade quando praticou o crime”.
(p. 60 verso). Entretanto, o presidente do júri, na sentença, condenou o
réu a 16 anos e 6 meses de prisão celular.
Nos depoimentos da mãe de W., ela assume ter preparado a comida
que foi dada à vítima e, posteriormente, o advogado de defesa do réu
utilizou o fato como argumento para fazer a apelação, questionando: “Quem
viu o W. dar estricnina à A. B. num prato de alimento? A resposta morre
estrangulada pela verdade, pois “ninguém viu”, o que levou ao entendimento
de que A. B. envenenou-se por conta própria ou fora envenenada por outra
pessoa.
O fim do processo revela o acórdão judicial que deu provimento em
parte à apelação, reduzindo a pena do acusado de 16 anos para 12 anos de
prisão celular, com base no grau mínimo do art. 294, § 1° que fala das
circunstâncias agravantes, combinado com o art. 296 que se refere à pena
destinada a quem cometer crime de envenenamento, ambos do Código
Penal.
Outro processo diz respeito a caso ocorrido no ano de 1932: uma
mulher, logo após dar à luz, é acusada pelo marido de tê-lo traído, sendo
assassinada por ele através de arma de fogo.
O Promotor Público, no uso de suas atribuições, fez a denúncia de L.
V. pelo crime:
Sr. L. V., de naturalidade italiana, comerciante estabelecido, com
casa de negócio [...], nesta cidade, ali residia com sua esposa em
segundas núpcias, dona Sra. I. B. V. Já semanas após o enlace
matrimonial, começaram as rixas do casal, por motivo de ciúmes
de L. V., o qual terminava quase sempre tais cenas, pelo
espancamento brutal de sua esposa. Achando-se grávida, [...], dona
Itália chamou, no dia 5 do corrente mês de Janeiro, a parteira M.
C. para assisti-la. [...] Nascida a criança, como estivesse um tanto
arroxada, em consequência do próprio nascimento, ao ser mostrada
a L. V., este, dirigindo-se a esposa, bradou: – Me enganaste pela
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segunda vez a primeira te perdoei. E, voltando-se para a parteira,
M. C., declarou que a criança não era seu filho, pois, sua primeira
esposa lhe aparecera em sonhos, e dissera, que Sra. I. ia ter um
filho de um negro. Após tão revoltante cena, verificou-se entre o
denunciado e sua sogra presente, dona J. B., rápida alteração,
retirando-se a ultima para sua casa. Sra. M. C. procura convencer
L. V. da absurdez de suas ideias, mostrando-lhe ser branca a
criancinha. L. V. demonstra, então, estar arrependido, e chega,
mesmo, a ajoelhar-se junto ao leito de sua esposa, que
bondosamente, lhe perdoa a infâmia pretendida. Neste ínterim,
chega Sr. V. B., pai de dona I., que, penetrando na casa pelos
fundos, dirigia-se para o quarto de sua filha, no que é obstado por
Sra. M. C., que para evitar, complicações, o leva para a cozinha.
Ali estavam V. B. e Sra. M. C., quando ouvem tiros e acorrendo
vêm, ainda, L.V. empunhando um revólver, virar a arma contra si.
[...] Em sua fúria homicida, L. V. procurou, também, matar o recém
nascido, alvejando-o com o balázio. (p. 0).
L. V., no hospital, após despertar, revela que não se lembrava de nada,
mas, mesmo assim, é decretada a sua prisão preventiva. Durante todos os
momentos do processo, ele e seu advogado alegaram que o réu estava sob
estado de perturbação mental, e que o seu sangue de calabrês (por ter
nascido na região da Calábria, na Itália) o havia influenciado no ato.
O art. 27 do CP de 1890 trata dos indivíduos que não se enquadram
na categoria de criminosos, e o que fortalece o discurso do réu é o § 3° que
diz que não seriam considerados criminosos “os que por imbecilidade nativa,
ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação”; e
o § 4° quando destaca: “Os que se acharem em estado de completa privação
de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime.”
Nesse sentido, o CP de 1890 vai ao encontro da justificativa do réu e
do advogado (estar sob privação dos sentidos), o que reforça, de certo
modo, a defesa da honra masculina por ter acreditado, no momento, que,
realmente, sua esposa o havia traído com o “Negro Bastião”.
Chalhoub (2001, p. 180) faz um paralelo entre o discurso médico e o
discurso jurídico dizendo que “o homem ofendido em sua honra ficava em
estado de ‘privação de sentidos e inteligência’ e cometia o crime em um
momento de desvario, de loucura momentânea”, reforçando assim “o direito
de dominação do homem sobre a mulher no relacionamento amoroso”.
MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann
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J. B., mãe da vítima, conta que após o casamento de sua filha com L.,
veio de Garibaldi uma moça chamada A. S. para ajudar nas tarefas da casa,
e que I. passou a desconfiar do marido e pediu para que A. fosse embora e
que, mesmo após a sua saída, ela manteve correspondência com L.
O advogado de defesa do réu, insistindo na inocência de L. pediu que
fossem ouvidas outras testemunhas através de carta precatória expedida em
outros municípios. Assim, a solicitação do advogado foi respeitada, e outras
testemunhas foram arroladas no processo. Uma delas, quando perguntada
sobre a conduta moral da vítima respondeu que por ser vizinha da vítima
conhecia a boa conduta moral da vítima, destacando “que nunca viu a
vítima falar com pessoa alguma e muito menos com negros e nem viu
negro algum entrar em sua casa para qualquer cousa”. (p. 69).
Duas testemunhas de defesa do réu oferecem sua opinião sobre o crime:
o primeiro era o cônego da cidade que dizia que, quando ocorreu o
homicídio, estava nas praias de banho, e que não poderia falar mais nada
devido ao seu segredo profissional; e o segundo quando argumentou que
“os habitantes do Sul da Itália especialmente os calabreses, em questão de
honra, são muito rigorosos e ciumentos e que costumam lavar com sangue
a honra defendida”.
Entretanto, o resultado do laudo do médico atestou que o réu não
estava com a dita “perturbação dos sentidos”, mas o advogado de defesa
apelou para o passado do réu, relatando que “quis entrar para um convento,
em virtude de um sonho que tivera com S. Francisco, tomando todas as
providências necessárias e não efetivando sua resolução, por não terem
chegado da Itália os papéis necessários exigidos; (vide depoimento D. Remelo
Carbene)”. (p. 130).
E, por fim, o pai da vítima desistiu da ação em face do resultado da
votação do júri, que foi favorável a L. V.:
[...] Primeiro quesito: O réu Sr. L. V., em cinco de janeiro de mil
novecentos e trinta e dois, na sua residência nesta cidade, a rua
Julio de Castilhos, fez, com projéteis de arma de fogo, na pessoa
de Sra. I. B. V., sua esposa as lesões corporais descritas no auto de
exame medico legal [...] ? Responderam, Sim por unanimidade de
votos [...]. Segundo quesito: Essas lesões por sua natureza e sede
foram a causa eficiente da morte da ofendida? Responderam: Sim,
por unanimidade de votos. Responderam os jurados [...].
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Terceiro quesito (a requerimento da defesa): O réu agiu em estado
de completa perturbação dos sentidos e da inteligência no ato de
cometer o crime? Responderam, Sim, por unanimidade de votos.
Apesar de o laudo médico de L. V. confirmar que ele não tinha
transtornos psíquicos de qualquer natureza, o júri o absolveu.
Considerações finais
Os três crimes de homicídio nos oferecem pistas acerca do entendimento
do que alguns homens, no papel de marido ou de solteiro, fizeram das
mulheres com as quais se relacionavam e, quando enfrentam o tribunal,
utilizam como apoio o Código Penal de 1890 para se livrarem da penalidade
aplicada nos processos-crime de homicídios, conseguindo através da mesma
lei culpar aquela que, num primeiro momento do processo, era a vítima,
ou seja, a mulher.
No primeiro caso, não há o envolvimento de mulheres, porém o réu é
condenado, pois a vítima em questão era um homem com importante
papel na sociedade.
O Código Penal de 1890, em seu Título III diz da “responsabilidade
criminal; das causas que dirimem a criminalidade e justificam os crimes”, e
no seu art. 22 que “a responsabilidade é exclusivamente pessoal”. Porém, o
art. 27 tece considerações aos não criminosos:
[...]
§ 3º. Os que por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil,
forem absolutamente incapazes de imputação;
[...]
§ 4º. Os que se acharem em estado de completa privação de
sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime;
[...].
Nos outros dois processos sobre homicídios, estão presentes, nos
discursos de defesa dos réus, questões ligadas a má-conduta da mulher, que
é entendida como geradora da desonra do homem. Honra masculina que
precisava ser lavada por meio de uma atitude passível de ser inocentada,
justificando-se pelo “estado de perturbação mental”, como é percebido no
MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann
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processo do assassinato de I., esposa de L., o advogado de defesa recorre à
decisão judicial que foi embasada no laudo médico que revelou:
É verdade que estes médicos (Drs. Carbone e Fracasso) atenderam
ao réu depois do delito praticado e, pela “lei penal, e estado de
perturbação dos sentidos e da inteligência ha de ser simultâneo
com a ação material do delito, deve coexistir com o ato da
perpetração de crime, suprimindo a “consciência sceleris”.
Os interrogatórios realizados também investigam o passado recente
das partes envolvidas para chegarem a uma possível conclusão sobre os
rumos e acontecimentos que nortearam a vida dessas pessoas os quais
poderiam ser utilizados como o fator desencadeador de todo o processo
que culminou no ato criminal. O mesmo é possível de ser identificado
quando é investigado o passado mais remoto dos indivíduos envolvidos
para se chegar às devidas conclusões e, posteriormente, ao julgamento. O
caso do assassinato de I. após dar à luz o seu rebento, demonstra que o
advogado de defesa relata um fato do passado do réu, dizendo que o mesmo
teve interesse pela vida religiosa, utilizando a fé como forma de reforçar
uma boa imagem criada sobre o criminoso.
A sentença final indica que o Poder Judiciário ajudou e contribuiu,
baseado no CP de 1890 e através de suas decisões e julgamentos, para
reforçar as desigualdades entre as relações de gênero na sociedade.
Em um dos processos-crime, a opinião do juiz na sentença foi baseada
nas circunstâncias atenuantes sobre as agravantes, como mostra o Código
Penal de 1890:
Art. 36. As circunstâncias agravantes e atenuantes dos crimes
influirão na agravação ou atenuação das penas aqueles aplicáveis.
[...]
Art. 38. No concurso de circunstâncias atenuantes e agravantes,
prevalecem umas sobre as outras, ou se compensam, observadas as
seguintes regras:
§ 1.º Prevalecerão agravantes:
a) quando preponderar a perversidade do criminoso, a extensão
do dano e a intensidade do alarme causado pelo crime. [...]
312
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012
Sidney Chalhoub (2001, p 180) faz considerações sobre os julgamentos
e as normas impostas pela sociedade, explicando que as pessoas que se
envolvem em crimes são julgadas mais pelo seu comportamento em relação
“às regras de conduta moral consideradas legítimas”, do que pelo ato do
crime. Assim, entra em questão a “honra do homem”, que depende
inteiramente da “conduta da mulher”, pois ela lhe deve fidelidade por ser
dependente hierarquicamente do marido.
Bourdieu ensina sobre o “efeito de apriorização”, ou seja, o campo
jurídico se apodera de elementos da língua comum e elabora seus enunciados
“com uma impersonalidade e neutralidade”. Para ele, o uso que se faz de
verbos na terceira pessoa ou de indefinidos, do presente intemporal ou do
futuro jurídico exprimem as normas de conduta, e cita, como exemplo, “o
bom pai de família”, e isso deixa pouco espaço às “variações individuais”.
(p. 215).
Todas essas questões levantadas pelos processos-crime estão ligadas à
forma e a quem o Direito é organizado, pois, como foi exposto
anteriormente, o campo jurídico historicamente foi monopolizado por
homens, e, quando houve a presença de mulheres, essas sempre foram a
minoria.
A leitura inicial dos processos aponta que os advogados sempre eram
homens, e que os discursos de defesa e acusação, provavelmente, seguiam a
lógica dominante do ponto de vista masculino na sociedade, o que também
ajuda na construção das relações de gênero.
Uma possível explicação para os crimes de homicídios contra mulheres,
levados a cabo por homens, é que a sociedade educa as mulheres para a
preservação de uma ordem de sujeição e de aceitação da dominância patriarcal.
No terceiro processo, o relato feito pelo promotor dá conta de que o réu
sempre terminava suas brigas com “espancamento brutal de sua esposa”. O
corpo da mulher é o lugar, por excelência, do exercício do poder masculino.
Não temos ainda bases para tipificar as razões que levaram esses (e
outros) homens a matar as próprias mulheres no contexto conjugal. As
causas diretas são diversas. O adultério ou a desconfiança de adultério,
entre outras, são as razões mais invocadas para o cometimento do crime.
Percebemos que não há, nos processos, a confissão da vontade de matar.
Frequentemente, os homens assumem-se como vítimas e/ou como estando
no exercício de um direito dado pela sua condição de marido e proprietário.
MÉTIS: história & cultura – HENDZ, Aquéle; DORNELLES, Jônatas Herrmann
313
Notas
Este artigo está relacionado ao projeto
de pesquisa “História e Poder: discursos e
práticas de gênero no Judiciário de Caxias
do Sul – 1900-1950”, coordenado pela
Profa. Dra. Luiza Horn Iotti.
1
Burke fala mais sobre as perspectivas da
Nova História em A escrita da história:
novas perspectivas. 1929. p. 9.
2
Referências
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chorar: análise das relações familiares e
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CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e
botequim. 2. ed. Campinas: Ed. da
Unicamp, 2001.
314
Fontes:
As fontes utilizadas estão sob custódia do
CMRJudiciário/UCS.
Processo n. 02 acondicionado na caixa 90,
do ano de 1915.
Processo n. 01 acondicionado na caixa 90,
do ano de 1929.
Processo n. 01 acondicionado na caixa 88,
do ano de 1932.
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 297-314, jan./jun. 2012
Amásias, esposas e prostitutas: da situação
de vítimas ao papel de transgressoras
Mistresses, wives and prostitutes: from victims to transgressors
Daysi Lange*
Resumo: Este artigo faz parte da pesquisa
em andamento intitulada: História e
poder: discursos e práticas de gênero no
Judiciário de Caxias do Sul: 1900 a 1950.
Tem como problemática de pesquisa
investigar quais são as representações que
o Judiciário de Caxias do Sul elaborou, no
contexto em questão, sobre as mulheres que
se envolveram em processos criminais na
posição de vítimas e/ou transgressoras. A
documentação pesquisada faz parte do
acervo do Centro de Memória Regional do
Judiciário, sob a custódia da Universidade
de Caxias do Sul. (CMRJU/IMHC/UCS).
Abstract: This article is part of a current
research entitled: History and power: gender
discourse and practices in the Judiciary of
Caxias do Sul, from 1900 to 1950. As a
research problematic it has the
investigation of which representations the
Judiciary of Caxias do Sul elaborated, in
the period analyzed, about the women
involved in criminal processes in the role
of victim and/or transgressor. The
documentation used is part of the collection
of the Centro de Memória Regional do
Judiciário, under the custody of the
Universidade de Caxias do Sul. (CMRJU/
IMHC/UCS).
Palavras-chave: gênero; Poder Judiciário;
prostituição.
Keywords: gender; Judiciary Power;
prostitution.
Docente do Centro de Ciências Humanas da UCS. Doutora em Comunicação Social
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: daysilange@gmail.com
*
Por questões de ética, optou-se por utilizar nomes fictícios.
MÉTIS: história & cultura – LANGE, Daysy – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012
315
No fim do século XX, houve a organização de diferentes movimentos
sociais, que passaram a exigir ações de reparação às discriminações
historicamente experimentadas, diante do passado de injustiça e exclusão social
brasileira. Entre os diferentes movimentos sociais, a mulher faz parte de um
dos grupos que levantam a questão de gênero como tema, o qual, por muito
tempo, foi omitido. Além disso, soma-se o fato de existir certa ignorância
sobre a relação que foi estabelecida entre o Estado e a sociedade civil.
Ao se debruçar ante a questão do papel da mulher na sociedade, em
diferentes contextos históricos, ainda é possível identificar, na atualidade, a
persistência do imaginário social que aceita que elas devam ser tratadas
como propriedade e sejam submetidas ao comando do sexo oposto: pais,
maridos e irmãos. Trata-se de certa naturalização que ajuda a confirmar o
suposto direito do homem de exercer autoridade sobre a filha, irmã e/ou
esposa, bem como exercer o controle e a correção das condutas e atitudes
de mulheres.
A perpetuação desse imaginário manifesta-se através de práticas que se
expressam, às vezes, de forma violenta, como, por exemplo, em homicídios
que, quando extrapolam o espaço do ambiente doméstico e ganham
visibilidade pública, ajudam a reforçar a ideia de que a morte foi merecida
ou legitimada.
Nesse sentido, destaca-se a divulgação sensacionalista que a mídia dá
aos casos de violência contra mulheres e que, muitas vezes, ajuda a reforçar
a assimetria existente nas relações de gênero. Observa-se que o
sensacionalismo existente nos casos de violência contra a mulher tende a
mostrar o quanto os homens têm poder de vida e morte sobre elas e,
paradoxalmente, provocam situações de medo às mulheres, pois a experiência
cotidiana da violência fá-las-á recuar diante de uma situação de denúncia
contra as agressões experimentadas, preferindo manter a relação, por mais
opressiva que seja, na tentativa de resguardar sua vida.
A sociedade brasileira, historicamente, é responsável pela prática de
interdição oferecida aos diferentes grupos sociais, como, por exemplo,
racismo, preconceito, discriminação e exclusão. Com a conquista da
sociedade de direito, temos, cada vez mais, de forçar a necessidade de
implementar políticas que assegurem que os interesses de grupos
historicamente marginalizados não sejam mais ignorados ou menosprezados
por outros grupos dominantes. Entretanto, acredita-se que o sucesso desse
movimento depende, também, da organização dos movimentos contra o
esquecimento.
316
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012
Vilela (2001) afirma que existe um direito à memória, que é um dever
de transgressão e resistência que representa a necessidade de transgredir os
significados legitimados pelos diferentes regimes de poder. O autor destaca
que o papel do pesquisador, através de sua obra (pesquisa, estudo), deve
construir um significado que vá ao encontro da memória do Outro, ou
seja, a possibilidade de dar visibilidade ao que foi esquecido, pois não
existem memórias periféricas. Enfatiza que cada uma das diferentes vítimas
é a figura da humanidade, e que somente a educação e, consequentemente,
a pesquisa pode assumir a intencionalidade desse esforço humano de
significação do silêncio e da voz daqueles que são os Outros. Acredita que é
através da comunicação dessa memória que será possível construir o caminho
de uma memória exemplar que é, afinal, um lugar de resistência. O passado
não pode ser aceito como inalterável; é necessário opormo-nos a esse passado
desde o presente – que é o acontecimento no qual o lastro do passado
consome e recria todos os sentidos possíveis. (LARROSA, 2001, p. 253).
Desse modo, também é possível identificar que, historicamente, a
violência contra as mulheres não foi tratada como um crime real, dada a
falta de consequências severas a tais atos. De acordo com a historiografia,
as Ordenações Filipinas atribuíam o direito ao marido de fazer com que
obedecem a ele a mulher, os criados, os filhos e os escravos, bem como de
corrigi-los e castigá-los.
A publicação do Código Civil de 1916, no período republicano,
consolidou ainda mais o modelo assimétrico e patriarcal da sociedade
brasileira, pois, até então, o pátrio poder também dava o direito ao marido
de exigir a obediência da mulher. Entende-se que a relação assimétrica e
patriarcal da sociedade e da própria legislação brasileira contribuiu para
reforçar as relações de gênero.
Na tentativa de conceituar as relações de gênero, partimos do
pressuposto de que elas demonstram e sistematizam as desigualdades
socioculturais existentes entre homens e mulheres, que se repercutem na
esfera da vida pública e da privada de ambos os sexos, impondo a eles
papéis sociais diferenciados que foram construídos historicamente, criando
polos de dominação e submissão. Impõe-se o poder masculino em detrimento
dos direitos das mulheres, subordinando-as às necessidades pessoais e políticas
dos homens, tornando-as invisíveis e dependentes. (MELO, 2004, p. 15).
A sociedade assimétrica e patriarcal idealiza a supremacia do mando
masculino, o que impede o pleno desenvolvimento e o reconhecimento da
voz das mulheres. O gênero pode ser apreendido como instrumento que
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317
facilita a percepção das desigualdades entre homens e mulheres, devido à
discriminação histórica atribuída a elas. Oferece possibilidades mais amplas
de estudo sobre a mulher, percebendo-a em sua dimensão relacional com os
homens e o poder. (MELO, 2004, p. 16).
Em 1930, a Igreja Católica ironizava os movimentos sociais que
levantavam a bandeira do divórcio e do desejo de emancipação feminina,
principalmente, quando associava o casamento à situação de prisão, à
inferioridade da mulher e que o divórcio representaria a sua libertação.
Com o objetivo de criticar a situação de divórcio, a Igreja Católica dizia
que bastava avaliar a organização biológica da mulher para observar a
exigência de um regime de união indissolúvel. Justificava que a mulher
envelhecia mais cedo que o homem, pois era o momento em que ela perdia
os atrativos físicos. Segundo a Igreja, a própria organização psíquica da
mulher, mais afetiva e emocional do que a do homem, exigia a tranquilidade
inabalável do lar.
Negromonte (1948) diz que a Igreja, inclusive, apontava às diferenças
entre homens e mulheres na constituição da família, pois era o espaço em
que o homem entrava com a proteção, e a mulher, com as exigências de sua
fraqueza. No caso de separação, o homem sairia com a sua autoridade, mas
a mulher não levaria tudo que houve para o casamento – virgindade,
juventude, beleza, fecundidade. Assim, a mulher sem a auréola da virgindade,
sem a consideração da realeza do lar e sem a superioridade da virtude,
restaria a ela muito pouco. A mulher, uma vez separada, poderia ser
procurada por outros homens, mas nunca para colocá-la novamente no
papel de esposa, pois a separação e o divórcio significava a sua degradação e
abriam espaço para a poligamia, ou seja, podia tornar-se escrava dos prazeres
do homem.
A Igreja também retomava constantemente o ensinamento do Capítulo
5 da Epístola aos Efésios, relativo aos mútuos deveres dos conjuges, quando
São Paulo dizia (apud NEGROMONTE, 1948, p. 35): “As mulheres, sejam
sujeitas a seus maridos, como ao Senhor, porque o marido é a cabeça da
mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja, seu corpo, do qual ele é o Salvador.
Ora, assim como a Igreja está sujeita a Cristo, assim o estejam as mulheres
aos seus maridos em tudo.”
Em 1930, o Papa Pio XI publicou a Enciclíca Casti Connubii que,
entre outras considerações, reafirmava a santidade do matrimônio,
lembrando que a família era anterior ao Estado, o vínculo indissolúvel do
casamento e defendia a necessidade de manter-se contrário a quaisquer
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012
tentações de infidelidade, quando apontava às virtudes domésticas da casta
fidelidade de um e de outro cônjuge e da honesta sujeição da mulher ao
marido.
Dotti (2007) diz que, na Região de Colonização Italiana (RCI) no
Rio Grande do Sul os imigrantes, diante da necessidade de tornar possível
a vida no Brasil e de viabilizar suas pequenas propriedades, reproduziram e
reforçaram, em muitos momentos, um comportamento coletivo e relações
de poder marcadas por papéis bem definidos. Desse modo, a ideologia
cristã do casamento, mantenedora da mulher sob a tutela do marido,
encontrou ambiente propício para aprofundar suas raízes e se naturalizar
por todo o corpo social.
Fávaro (1996) diz que, na RCI, no Rio Grande do Sul, a mulher
socialmente aceita e valorizada, era aquela que sabia ficar no seu lugar,
representando os papéis tradicionais. Qualquer alteração desse precário
equilíbrio entre o ser e o querer constituía um perigo, do qual era necessário
precaver-se. A recusa em acatar as normas comportamentais implicava
discriminação.
A autora também destaca que, visando a assegurar e a manter o status
quo,
a Igreja outorgou-se o dever e o direito de aplicar diferentes formas
de pressão sobre as pequenas comunidades imigrantes em formação
na região de colonização italiana. A família, núcleo social e
econômico por excelência, devia manter a coesão interna e a
imagem externa a qualquer preço, pois era por seu intermédio
que o controle da sociedade se efetivava. [...] Por família a Igreja
entendia a família legítima, a que era fruto do casamento
matrimonial. A sexualidade feminina em tal contexto deveria ser
controlada, porque neste comportamento residia o limiar entre a
honra e desonra. (FÁVARO, 1996, p. 213).
Fávaro (1996) também ensina que ao homem fora concedido o direito
de governar a família, de conduzi-la segundo a sua vontade, tanto em termos
sociais como econômicos, permitindo afirmar que a condição de submissão
das mulheres-mães aos maridos e, por extensão à família, manteve-se
praticamente inalterada até, aproximadamente, a década de 50 (séc. XX).
Destaca, ainda, que, mesmo com a implantação do modo capitalista, a
urbanização e o recrutamento de mão de obra feminina para a indústria
MÉTIS: história & cultura – LANGE, Daysy – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012
319
nascente, foi acentuado o discurso misógino de controle sobre a conduta
feminina, o qual reforçava a incapacidade feminina na gestão de seu próprio
destino. Além disso, a Igreja reafirmava a rígida separação entre o espaço
público masculino e espaço doméstico feminino dizendo que
o seu lugar é o lar doméstico; a sua missão é ser mãe de seus filhos
e esposa de seu marido. Qualquer coisa que venha atrapalhar esta
grande missão natural da mulher deve ser considerada moralmente
má e condenável. (FÁVARO, 1996, p. 226).
Foucault (apud EWALD, 1993) afirma que é através do Direito, da
Justiça e, consequentemente, do sistema penal, que a sociedade define o
bem e o mal, o permitido e o não permitido, o legal e o ilegal, ou seja, a
maneira como ela exprime todas as infrações e transgressões feitas à sua lei.
Em seus estudos sobre as formas de poder, Foucault (apud EWALD, 1993)
identifica o sistema jurídico-discursivo como o enunciado da regra e/ou
lei; o espaço entre aquilo que é permitido pela lei e o que ela proíbe. Assim,
podemos afirmar que o Poder Judiciário é correlato aos paradigmas e/ou
aos valores dominantes.
Para o pensador francês, o poder jurídico discursivo aparece como
sendo aquele que exclui, sujeita, recusa e interdita as pessoas e o faz
pronunciando a lei, a regra. Em todas as instâncias da sociedade, a forma
geral do poder seria a forma do Direito, uma vez que esse se definiria pelo
jogo entre o lícito e o ilícito, a transgressão e o castigo.
Ao conceituar a norma, Foucault (apud EWALD, 1993, p. 78) diz que é
a arte de julgar. A norma, no início do século XIX, vai designar, ao mesmo
tempo, certo tipo de regras, uma maneira de produzi-las e, sobretudo, um
princípio de valorização. A norma, segundo o autor, designa sempre uma
medida que serve para apreciar o que é conforme à regra e o que dela se
distingue e não se encontra ligado à ideia de retidão. A norma toma o seu
valor de jogo nas oposições entre o normal e o anormal, ou entre o saudável
e o patológico. Normalizar significa fornecer documentos de referência,
que viabilizem soluções para problemas técnicos ou comerciais que se colocam
de maneira repetida por ocasião das relações entre parceiros econômicos,
técnicos, científicos e sociais. Normalizar é produzir normas, instrumentos
de medida e de comparação, regras de juízo. Para o autor, não se pode
conceber uma sociedade sem normalização.
320
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012
Segundo Foucault, as normas são plurais, como, por exemplo, normas
industriais, de comportamento, normas de vida, normas jurídicas, políticas,
entre outras. Desse modo, a norma pode ser definida como um critério,
uma medida ou um exemplo de procedimento, de processo, de dimensão,
de extensão, de quantidade, de qualidade ou de tempo, estabelecido por
uma autoridade, pelo costume ou pelo consenso, como base de referência
ou comparação.
Processos-crime
Entre os objetivos da pesquisa, destaca-se a importância de caracterizar
práticas e discursos forenses, analisando como o Judiciário percebeu as
mulheres que se envolveram em processos e examinar como as mulheres
envolvidas em processos foram representadas/julgadas pela sociedade e pelo
poder jurídico. Para dar conta desses objetivos, realizou-se a leitura de
processos-crime envolvendo mulheres na posição de vítimas e/ou
transgressoras, entre as décadas de 30 e 40 (séc. XX).
Partindo do pressuposto de que o discurso do Poder Judiciário é aquele
que exclui, sujeita, recusa e interdita as pessoas e que o faz pronunciando a lei,
os processos-crime, ao oferecem as narrativas utilizadas pelos diferentes
agentes institucionais e pelos grupos sociais envolvidos, ajudam a evidenciar
a maneira como eles percebem a si mesmos e os outros, definindo-se e se
posicionando no entorno social. As narrativas contribuem para a
identificação dos comportamentos, necessidades, interesses e atitudes dos
diferentes elementos sociais envolvidos nos processos-crime. Nesse sentido,
os agentes institucionais, os réus, os transgressores e as testemunhas arroladas
apresentam comentários sobre as condutas das pessoas envolvidas nos
processos-crime.
O tratamento metodológico escolhido ao levantamento da pluralidade
discursiva é a técnica da análise de conteúdo que pretende ser o meio de
detectar os valores sociais, imagens, modelos empregados pelos diferentes
atores sociais, bem como as diferentes ideologias subjacentes à realidade
cotidiana.
Embora provisório, o estudo dos processos-crime apontam para indícios
reveladores da sociedade caxiense, pois o fato de aparecerem mulheres com
comportamentos e atitudes diferentes dos que a sociedade transmite ou
quer transmitir, revela como são contraditórias as imagens e os modelos
oferecidos e, principalmente, o comportamento idealizado para a mulher.
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Na leitura das denúncias do Ministério Público, a violência praticada
contra amásias, esposas, amantes e prostitutas em Caxias do Sul, Rio Grande
do Sul, entre as décadas de 30 e 40 citadas, percebe-se que, na grande
maioria dos conflitos entre homens e mulheres, elas, inicialmente, estão
posicionadas no papel de vítimas, mas, no desenrolar do processo, são
transformadas em transgressoras numa clara tentativa de mostrar o
tratamento atribuído às mulheres de vida desonesta e desonrada. E o homem
que é apresentado no papel de transgressor, é inocentado por ser possuidor
da razão e dotado de certas liberdades não pertencentes à mulher, reforçando
ainda mais as diferenças e desigualdades entre os gêneros.
Em 1947, o Ministério Público denunciou Alberto,* homem solteiro,
brasileiro, 28 anos e com profissão definida pela prática que ocorreu no
Dancing Americano, zona de meretrício, que, através de discussão, agrediu
Ana, dando-lhe golpes com uma cadeira. O defensor público destacou que
Alberto não poderia ser enquadrado no art. 129 do Código Penal, que
estipulava a pena de detenção de três meses a um ano a quem ofendesse a
integridade corporal ou a saúde de outrem, pois agiu em legítima defesa
sendo “injustamente injuriado e agredido pela vítima”. Pedindo que a
denúncia de agressão contra Ana fosse considerada improcedente, baseado
no art. 19, inciso II do Código Penal, que estipulava que não havia crime,
quando o agente praticava o fato em legítima defesa, o defensor dizia que o
suposto acusado era vítima de uma “mulher de péssima reputação,
turbulenta, desordeira e agressiva”.
Foi realizada a denúncia, em 1946, contra Antonio que se apresentava
como homem casado, com 32 anos, profissão “do comércio” e residente
em Porto Alegre. Dizendo que, na madrugada do dia 22 de setembro,
perto da 1 hora da madrugada, a meretriz Carmen foi chamada a casa da
meretriz Ana a fim de pernoitar com Antonio. Atendendo ao chamado,
Carmen falou com Antonio, mas não concorda com suas pretensões, dizendo
que estava comprometida com outro homem.
Com a recusa, o denunciado resolveu efetuar o pagamento de suas
despesas na casa da meretriz Ana, situada na zona do meretrício, surgindo
um desentendimento no recebimento do troco. Estando ele alcoolizado,
deu-se início a uma discussão em que o denunciado provocou lesões em
Carmen e em Ana. Entretanto, em sua defesa, foi utilizado o argumento de
1
Por questões de ética, optou-se por utilizar nomes fictícios.
322
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012
que possuía domicílio certo e que era comerciante estabelecido, cidadão
digno e chefe de família exemplar, sendo incapaz do procedimento
denunciado pelas meretrizes Ana e Carmem.
Em 1949, o Ministério Público apresentou denúncia contra Adão que
era brasileiro, casado, 28 anos, empregado no comércio, alfabetizado,
católico, branco, residente e domiciliado em Caxias do Sul, pela prática de
agressão à sua esposa, após ela tê-lo insultado. O defensor pedia a
improcedência da acusação, pois era uma inverdade afirmar que o acusado
ter praticado lesões na referida esposa.
O representante do Ministério Público, em 1942, também denunciou
Amâncio, homem brasileiro, casado, 33 anos, natural de Alfredo Chaves,
funcionário da Associação Comercial de Caxias do Sul, dizendo que às
23h30min, do dia 1º de janeiro, ao discutir e espancar sua esposa, seu
sogro, em defesa da filha, investiu contra Amâncio com socos e armado de
uma cadeira. Destaca que as diferenças entre Amâncio e o sogro tiveram
início na parte da tarde daquele mesmo dia, quando ele tratou a sua esposa,
Adélia, com rudeza em função do esquecimento de uma chave, o que foi
contestado pelo sogro, pai de Adélia, fazendo com que Amâncio proibisse a
presença do sogro em sua residência.
Os argumentos utilizados pelo defensor público foram de inocentar
Amâncio no enquadramento do art. 129 do Código Penal, destacando que
ele não agrediu o sogro, e que, as lesões constantes no exame de corpo
delito não foram provocadas pelo acusado e sim eram manifestações sifilíticas,
e que,ao exigir a retirada do seu sogro de sua residência, exercitou um
direito regular e incontestável, e que o acusado era possuidor de “bons
antecedentes, estando empregado há anos na Associação Comercial a cujos
associados presta os melhores serviços com zelo e atividade”.
Em 1943, ocorreu denúncia contra Everaldo, homem brasileiro, casado,
37 anos, ajudante de motorista, residente e domiciliado em Caxias do Sul.
Everaldo foi denunciado por sua esposa, que revelou que há mais de dois
anos o marido deixara de oferecer sustento material e moral à família; e que
a esposa, ao perguntar ao marido sobre o local onde ele pernoitara, passaram
a discutir, e ele desferiu socos na esposa.
Em defesa do acusado, o defensor público destacou que o acusado
nunca deixou de oferecer os meios básicos de sustento à esposa e aos filhos,
acreditando que a denúncia foi feita em função do ciúme e despeito de sua
esposa para com quem ele teve um desentendimento temporário e que,
apesar de o acusado reconhecer a espancara, declarou ter feito no exercício
MÉTIS: história & cultura – LANGE, Daysy – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012
323
de um direito reconhecido em lei. (art. 233 do Código Civil). Como chefe
da sociedade conjugal no seio da qual pretendia implantar o respeito e a
obediência, dizendo que era possuidor de bons antecedentes, não havendo
nada em desabono de sua conduta individual e nem como chefe de família.
Nesse sentido, os processos-crime acima destacados oferecem pistas
das imagens e dos modelos de comportamento oferecidos às mulheres na
sociedade que, mesmo estando no papel de mulheres honradas e honestas
através do exercício da função de esposa e mãe, faz identificar que a honra
da família era constantemente vigiada pelo marido, pois toda e qualquer
transgressão e rebeldia por parte da esposa/mãe era submetida ao interesse
do poder absoluto do chefe da casa: o marido.
Entretanto, os processos envolvendo as relações estabelecidas na zona
de meretrício, nas pensões e na prática do concubinato apontam que os
homens, fossem solteiros e/ou casados, ocupando os mais variados estratos
sociais, circulavam em zonas de aventura e mantinham encontros amorosos.
E, quando envolvidos em conflitos, pelo livre-exercício da sexualidade
masculina, é possível identificar a tendência dos defensores públicos de
inocentarem as atitudes desse gênero, indicando que a transgressão foi
provocada pela mulher, que se comportava como sedutora não sendo
merecedora do tutelamento da Justiça.
Uma vez marginalizada, a mulher, no papel de amante, amásia e
prostituta representava a transgressão da excelência da família conjugal e da
moral patriarcal. Mulheres que, sob o olhar da Justiça, foram avaliadas
pelos seu comportamento, indicando a necessidade de seu isolamento do
convívio social através do argumento da falta de austeridade moral,
obediência, sujeição e respeito à hierarquia dos papéis sexuais destinados a
homens e mulheres.
Segundo Rocha e Jourand (2008), os estudos da prostituição no Brasil
têm focalizado quatro aspectos que são complementares e que, de certa
forma, se interligam: os discursos médicos e jurídicos, que classificam e
organizam a prostituição, explicando-a como um fenômeno social e natural;
os códigos de sexualidade e de feminilidade; e os estudos dos meretrícios,
enfocando a questão econômica da prostituição.
Entretanto, a leitura inicial dos processos-crime do acervo do Centro
de Memória Regional do Judiciário, sob custódia na Universidade de Caxias
do Sul (CMRJU/IMHC/UCS), mesmo possuindo lacunas em sua totalidade,
é uma fonte inesgotável de indícios dos conflitos sociais que chegaram à
324
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012
Justiça, indicando onde, frequentemente, se desenvolveu a ação, os elementos
envolvidos, o conjunto de oposições que permearam a vida cotidiana, os
modelos que lhes foram oferecidos e as transgressões entre os diversos
comportamentos de homens e mulheres. A fase inicial de pesquisa tem
direcionado nosso olhar para a identificação das representações que a Justiça
elaborou sobre as mulheres que se envolveram em processos na posição de
vítimas e/ou transgressoras, bem como na construção das relações de gênero.
MÉTIS: história & cultura – LANGE, Daysy – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012
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FONTE
Os processos analisados para este artigo
estão sob custódia no CMRJ/IMHC/UCS;
acondicionados na caixa 17C; maço 7.
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 315-326, jan./jun. 2012
Poder Judiciário e fronteiras de gênero:
conflitos nos processos de investigação de
paternidade na Comarca Caxias (1900-1950)
Judiciary power and gender boundaries: conflict in the
processes of paternity investigation in the County of
Caxias do Sul (1900-1950)
Natalia Pietra Méndez*
Resumo: O Centro de Memória do
Judiciário da Comarca Caxias reúne acervos
de fontes que podem ser interpretadas
através da análise do discurso jurídico como
instância normativa de identidades,
sujeitos e condutas sociais. O tema deste
trabalho parte de uma aproximação teórica
com os estudos de gênero para analisar
processos que versam sobre investigação de
paternidade datados da primeira metade
do século XX. A maioria dos processos
selecionados iniciou com a ação de
mulheres em busca do reconhecimento de
paternidade de seus filhos. Constituem,
portanto, uma fonte singular para discutir
as práticas da Justiça na constituição de
elementos de prova – favoráveis ou avessos
aos pedidos de reconhecimento da
paternidade. Em busca dessas provas,
diferentes estratégias eram utilizadas para
examinar a conduta feminina. Esse é o tema
que – recorrentemente –compunha o
Abstract: The Archive of the Judicial
System of the County of Caxias do Sul
(Centro de Memória do Judiciário da
Comarca Caxias) keeps collections of
documents from sources that can be
interpreted through the analysis of the
judicial discourse as the delegate of
identities, individuals and social behaviors.
The theme of this work emerges as a
theoretical approximation to gender studies
in order to analyze processes on paternity
investigation from the first half of the
twentieth-century. Most of the processes
selected started with the lawsuit of women
in search of recognition of paternity for
their children. Thus, they constitute a
singular source of discussion about the
judicial practices on the formation of legal
evidences – favorable or contrary – to the
lawsuits for the recognition of paternity.
In search of these evidences, different
strategies were used in order to examine
Professora no Centro de Ciências Humanas da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: npietramendez@hotmail.com
*
MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21
327
centro do debate jurídico para decidir os
processos em questão. Ao analisar este
conjunto de fontes, o trabalho debate a
função do discurso jurídico na constituição
de condutas sociais femininas e masculinas.
Nas entrelinhas da história dos processos
jurídicos, o trabalho procura igualmente
tornar visíveis as práticas que conflitavam
com as fronteiras de gênero socialmente
reconhecidas produzindo mudanças e seus
eventuais deslocamentos.
the feminine conduct. This was the
recurring theme in the center of the
judicial debate. Analyzing these collections
of documents, our work debates the
function of the judicial discourse on the
constitution of the feminine and the
masculine conducts. We search for the
implied sense of these judicial processes,
aiming to make visible the practices that
controverted the gender boundaries
socially recognized, allowing changes and
eventual displacement.
Palavras-chave: estudos de gênero;
discurso jurídico; investigação de
paternidade; Comarca Caxias. 19001950.
Keywords: gender studies; judicial
discourse; paternity investigation; County
of Caxias. 1900-1950.
O tema deste trabalho parte de uma aproximação teórica com os estudos
de gênero para analisar processos que versam sobre investigação de paternidade
datados da primeira metade do século XX. Tomo as contribuições da
historiadora Joan Scott para analisar o gênero como forma de significar as
relações de poder e como elemento constitutivo das relações sociais, baseadas
nas diferenças percebidas entre os sexos. Scott (1994, p. 86) propõe que o
gênero pode contribuir para examinar normas e significados “expressos em
doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas que tomam
a forma típica de uma oposição binária fixa que afirma, de maneira categórica
e inequívoca, o significado do homem e da mulher, do masculino e do
feminino”.
Os processos judiciais selecionados são parte da base de dados do
CMRJ da Comarca Caxias, sediado no Instituto Memória Histórica e
Cultural da Universidade de Caxias do Sul (IMHC/UCS). Esses
documentos constituem uma fonte para discutir as práticas da Justiça na
constituição de elementos de “prova” – favoráveis ou avessos aos pedidos
de reconhecimento de paternidade. Em busca dessas provas, diferentes
estratégias eram utilizadas para examinar a conduta feminina. Esse é o
tema que – recorrentemente – compunha o centro do debate jurídico.
Pretendo, através da análise dessas fontes, refletir sobre como o discurso
jurídico organiza, normatiza e segmenta as condutas sociais femininas e
masculinas. Além de identificar as tentativas de organizar os lugares de
gênero, há que buscar, nas narrativas dos processos, os indícios de práticas
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012
sociais conflitantes com as regras sociais reconhecidas. Assim, uma das
problemáticas do trabalho é inferir até que ponto o discurso jurídico presente
nos processos de investigação de paternidade pode evidenciar as
permanências e as mudanças nas relações de gênero.
É necessário, antes de tudo, reconhecer, brevemente, qual era o cenário
dos debates jurídicos nas primeiras décadas do século passado. O primeiro
processo estudado teve seu início em 1926, dez anos depois da aprovação
do Código Civil brasileiro. O código, cuja proposta inicial foi redigida
pelo jurista Clóvis Beviláqua entre 1899-1916 e levou mais de quinze anos
para ser aprovado. De acordo com a historiadora fluminense Keila Grinberg
(2001) a versão final do código diferiu em vários aspectos da proposta
original de Beviláqua.
Entre os diversos aspectos legais tratados, chamam a atenção aqueles
relacionados ao papel central que a família teve na nova legislação,
considerada a instituição mais importante do novo regime republicano. O
Código Civil brasileiro manteve a influência das Ordenações Filipinas no
reconhecimento da condição de maridos e esposas como parceiros desiguais
da propriedade familiar, situação jurídica que era mais igualitária se comparada
aos Códigos Civis de matriz anglo-saxônica já que essa tradição conferia
aos esposos o poder absoluto sobre o casal. (GRINBERG, 2001).
Todavia, o Código de 1916 consolidou uma diferença substancial entre
homens e mulheres, dotando somente os primeiros de capacidade jurídica
perante a lei. As mulheres casadas deveriam acolher a determinação dos
maridos quanto ao local de residência, a administração dos bens do casal e
autorização para o exercício de atividades remuneradas.
Com relação à paternidade, as Ordenações Filipinas reconheciam aos
filhos naturais o mesmo direito que era conferido aos filhos ilegítimos e,
ainda, possibilitava aos ilegítimos resultantes de relações incestuosas ou
adultério o reconhecimento desde que com uma permissão especial do rei.
Já o Código de 1916 produziu um enrijecimento legal, estabelecendo, em
seu artigo 358 que os filhos incestuosos e os adulterinos não poderiam ser
reconhecidos. O não reconhecimento de filhos ilegítimos estava associado
às disposições do art. 183, que estabelecia motivos para impedimentos do
matrimônio.1
Os processos judiciais da primeira metade do século XX evidenciam
quais foram os efeitos normatizadores dessa nova moral jurídica, considerada
“reacionária” por Clóvis Beviláqua. Amásias, concubinas e filhos “ilegítimos”
são personagens presentes e cada vez mais recorrentes nos processos judiciais
MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21
329
brasileiros na primeira metade do século XX. Esse fenômeno pode ser uma
amostra do crescente reconhecimento do poder judicial na mediação de
conflitos que, em outros tempos, seriam reservados ao âmbito da privacidade
familiar ou, quando muito, confiados ao padre. (VINCENT, 1992).
Filhos e filhas de concubinato: os caminhos para o
reconhecimento da paternidade
Na Comarca Caxias – geograficamente afastada das grandes
metrópoles – Candida e Pillar,2 requereram da justiça o reconhecimento de
paternidade do seu suposto progenitor. O requerimento foi realizado
“assistidas por seus esposos”, em acordo com o estatuto jurídico que o
Código Civil de 1916 conferia às mulheres casadas. Candida e Pillar –
através do advogado nomeado para o caso, alegavam ser (cito) “filhas naturaes
de José do período em que as mães das suplicantes, conhecidas como
Inocência e Francisca, viveram em concubinato com José”.
Cabe aqui um pequeno esclarecimento: o finado José, de acordo com
as duas e com algumas testemunhas arroladas, teria vivido em concubinato
primeiro com a mãe de Candida. Depois de se separar dessa, conheceu
Inocência, com quem viveu “amaseado” por mais alguns anos. E, segundo
alguns testemunhos processuais, José ainda teria dividido seus dias com
uma terceira rapariga, com quem teve mais alguns filhos, que pretendia
reconhecer antes de ser assassinado.
A história em questão parece um tanto distante do quadro moral da
família prescrito no Código Civil. Todavia, isso não impediu que a legislação
em vigor fosse utilizada, por ambos os lados, na tentativa de determinar
provas capazes de resolver a querela.
Nos autos do processo, três depoentes arrolados por Candida e Pillar
foram ouvidos. Todos eram do sexo masculino e tinham – à época do
processo – 59 anos ou mais. Foram identificados como casados, e sua
atividade laboral foi descrita como “criadores”. Em um desses depoimentos,
a testemunha afirma:
[...] Sabe de ciência própria que José foi amazio da finada Inocência
com quem viveu maritalmente mais de quatro anos, isto é, de mil
novecentos e setenta e quatro a mil oitocentos e setente e nove,
mais ou menos, que dessa amancebia Inocência concebeu e deu a
luz em outubro de mil oitocentos e setenta e seis uma criança do
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012
sexo feminino que foi baptizada com o nome de Candida Maria e
hoje conhecida pelo nome [...] que José sempre reconheceu como
filha, que a depoente e todas as pessoas que conheceram a José e
conhecem a Candida acham que esta tem os traços fisionômicos
da’aquelle, que o depoente vê em Candida retrato de José, que do
ano de mil oitocentos e setenta e nove em diante José viveu
amancebado muitos anos com Francisca [...] que dessa amancebia
Francisca concebeu uma filha que nasceu no dia de São Paulo, e
março de mil oitocentos e noventa e seis, sendo baptisada com o
nome de Pillar e actualmente é casada com Cirilo; que José e
Inocência morreram em estado de solteiros; que Francisca é solteira.
(Processo 6, caixa 5, CMRJU/IMHC/UCS).
Pelo lado da acusação, Jerônimo, irmão de José, disse ao juiz que
Inocência “era mulher do mundo” [...]. José não era pai de Candida
[...] que a mesma era filha de um fulano Eleutério; que “[Francisca]
era rapariga do mundo e que tinha muita família; Que José não
viveu concubinado com nenhuma dellas que não [...] relações com
ambas. (Grifos meus).
O processo teve prosseguimento na comarca até 1933, quando foi
transferido para o Juizado de Lagoa Vermelha. Mas o elemento que aqui
mais interessa não é o seu desfecho, nem saber se, afinal, Candida e Pillar
foram ou não reconhecidas como filhas pela Justiça brasileira. O resultado
aqui é secundário, sendo o elemento central a observação do uso das palavras
como prova, a palavra dita e a palavra negada.
Foucault (2008) atenta para a existência social de um princípio de
exclusão através da palavra que opera pela separação e rejeição. Exemplifica
citando o caso dos loucos desde a Idade Média. Diz Foucault: o louco é
aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros, ou seja,
pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja
acolhida, não tendo verdade nem importância, não podendo
testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um
contrato, não podendo nem mesmo, no sacrifício da missa, permitir
a transubstanciação e fazer do pão um corpo; pode ocorrer
também, em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas
as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o
MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21
331
de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo
que a sabedoria dos outros não pode perceber. É curioso constatar
que durante séculos na Europa a palavra do louco não era ouvida,
ou então, se era ouvida, era escutada como uma palavra de
verdade. [...] Era através de suas palavras que se reconhecia a
loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separação;
mas não eram nunca recolhidas nem escutadas. (FOUCAULT,
2008, p.10-11).
Ao propor um olhar sobre o trânsito das palavras e sua escuta nos
processos jurídicos, é preciso dar atenção a quem fala, de quem se fala e o
que se fala. Esses atos da palavra são indícios dos elementos que conformam
o sujeito jurídico. É através da separação, rejeição, distinção, aceitação e
escuta que a Justiça cria diferenças entre sãos e loucos, aptos e inaptos,
homens e mulheres, filhos legítimos e ilegítimos, todos transformados em
sujeitos identificáveis no discurso judiciário.
No processo em questão, Candida e Pillar foram as autoras da ação.
No entanto, a palavra lhes foi negada. Podemos ouvir apenas outros
testemunhos de três cidadãos que atestaram a “solteirice” de suas progenitoras
à época em que viveram com José. Esses testemunhos serviriam como prova
para demonstrar que nada as impedia de casar com José. Não obstante
provar que as mesmas engravidaram durante o período de concubinato
com o finado, era relevante também para a credibilidade do processo atestar
a boa conduta das raparigas ao longo de toda a vida. Além do mais, mostrar
que as mães se mantiveram solteiras, e que o suposto pai fizera o mesmo
era necessário amparar legalmente o pedido de reconhecimento de
paternidade. Cabe ressaltar que a abertura do processo ocorreu poucos
meses após o óbito do suposto pai, quando seus dois irmãos, Jerônimo e
Aparecida, aparentemente herdariam o patrimônio do falecido. Representadas
por seus maridos, Candida e Pillar tentaram angariar na Justiça mais do
que um sobrenome, mas talvez o direito ao patrimônio que julgavam
também ser seu.
Ao requerer a intervenção do Estado em tema que até então ficara
restrito à privacidade dos segredos familiares ou, no máximo, à boataria da
vizinhança, Candida e Pillar transformaram suas mães no centro da
investigação judicial. O discurso jurídico concentrou seu debate na conduta
das duas progenitoras e nas suas relações com José. As autoras, nesse caso,
se tornaram totalmente coadjuvantes na ação.
332
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012
Ao acusar Inocência e Francisca de ser “do mundo”, o irmão de José
não estava proferindo uma ofensa. O Código Civil de 1916 havia criado o
precedente para a diferenciação entre as mulheres honestas e desonestas,
sendo essas últimas aquelas que não se casavam virgens. A situação de
desonestas abria precedentes para que fossem deserdadas por seus pais e
para que os casamentos fossem anulados. (GRINBERG, 2001). Qual seria o
grau de desonestidade de uma concubina? Figura híbrida no Código Civil,
sua existência jurídica se materializava no capítulo que versava sobre o
reconhecimento dos filhos ilegítimos, como se verifica no parágrafo I do
art. 363, que versava sobre o direito dos filhos ilegítimos que poderiam
demandar reconhecimento de filiação: “I – Se o tempo da concepção a mãe
estava concubinada com o pretendido pai.” (CÓDIGO CIVIL, 1916). Adultério
e concubinato aparecem no código como arranjos possíveis, mesmo que
marginais, em uma legislação pretensamente moralizadora. Todavia, nos
meandros da Justiça, essa “brecha” aberta pelo Código Civil podia ser
utilizada por advogados hábeis. Bastava comprovar que o concubinato e a
honradez não eram incompatíveis.
Esse foi o centro do debate que envolveu o processo de investigação
de paternidade movido por João filho, em 1938, contra sua suposta meia
irmã Carolina e o marido dessa, chamado à ação na condição de marido e
“administrador dos bens do casal”. Na abertura do processo, João (filho),
através do seu advogado que aqui chamarei de Dr. Barcellos, alegava
[...]
– que o Autor é filho natural de João [pai], este já falecido, e de
Joana [...], sendo o fruto único da ligação ilegítima havida entre
seus referidos progenitores;
II
– Que essa ligação amorosa ocorreu ao tempo da viúves de João, o
qual, por ser a ré Carolina de pouca idade, chamou Joana ao seu
serviço domestico, vindo com ela, nessa convivência, a manter
relações sexuais;
III
– Que a mencionada Joana, mãe do Autor, era de menoridade á
época de seu desvirginamento, tendo convivido com João durante
dois anos, aproximadamente;
MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21
333
IV
– Que, após engravidada, Joana foi enxotada por seu patrão João,
passando a residir com seus progenitores, em cuja companhia
manteve-se sempre, com honestidade e recato;
V
– Que o delito cometido por João foi abafado pela autoridade
policial de então, mas o sucedido tornou-se publico e o Autor veio,
em conseqüência disso, a ser batisado, em Caxias, como filho de
João, com autorisação do próprio;
VI
– Que o nascimento do Autor deu-se em 1898, na casa de seus
avós maternos, neste município, sendo diversos os documentos de
fé publica atestadores de sua filiação;
VII
– Que por força da disposição contida no art. 363 e seu inciso n.
I, do Código Civil Brasileiro, cabe ao Autor ação contra os
herdeiros de seu progenitor para ser reconhecido como filho de
João. (Processo 5 A, caixa 8, CMRJU/IMHC/UCS).
Aos autos do processo, Dr. Barcellos anexou certidões de batismo,
certidões de casamento do autor e outros documentos que endossavam a
suposta filiação. Contudo, as palavras constantes dos testemunhos foram,
novamente, reveladoras dos jogos de poder que normatizavam uma distinção
para comportamentos femininos e masculinos. Um dos depoimentos mais
instigantes foi o do Cônego convocado pelo advogado do autor. O Cônego
foi chamado, supostamente, para prestar informações sobre as condições
em que fora concebida uma certidão de batismo que constava nos autos do
processo. Na mesma, o Autor aparecia registrado com o mesmo sobrenome
do pretenso pai. O Código Civil abria a possibilidade para que declarações
por escrito dos progenitores pudessem ser utilizadas como provas. Talvez,
por essa razão, o Cônego tenha sido convocado como testemunha. No
entanto, ele pouco pôde esclarecer sobre as circunstâncias em que o
documento foi redigido. Quando questionado sobre a paternidade do autor,
disse que “que o que sabe é apenas ter ouvido de muitos colonos e do
próprio autor ser este filho de João [pai], que quanto ao batismo pode
apenas declarar o que consta da certidão de folhas vinte e oito destes autos”.
O advogado o indagou, ainda, sobre o conceito que tinha sobre Joana, ao
que respondeu: “Sabe ter sido cazada com Pedro, tendo bom
comportamento. Não soube informar se João (sênior) era tio carnal de
334
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012
Joana”. Questionado, ainda, pelo advogado se o velho João era um “bom
católico”, o Cônego respondeu “afirmativamente”.
A segunda testemunha, de nome Marco, identificado como proprietário
rural, natural da Itália e residente em Caxias do Sul, disse que conheceu
Joana quando criança e depois, quando casada com Pedro e sabia ser a mãe
do Autor. Sobre o conceito gozado por Joana respondeu: “Que de criança
propria a teve sempre como honesta e também ouviu dizer isso nos tempos
em que Joana era moça. [...] Ouviu dizer que Joana foi empregada de João
[...] isso quando dos fatos surgidos em torno desta ação.”
A testemunha Lucrécia, de 86 anos, viúva, identificada como doméstica
e natural da Itália, também residente na cidade, disse que
segundo consta no boato corrente o autor é filho realmente do
falecido João [...] com Joana [...] não sabe se Joana era menor de
idade a época de seu desvirginamento e não tem conhecimento se
a mesma conviveu com João [...] durante dois anos que sabe e
recorda – se que a referida Joana trabalhou em casa do finado
João, que não sabe si o fato do finado haver mantido relações carnais
com João foi levado ao conhecimento da autoridade policial mas
que, realmente, o sucedido tornou-se publico [...] que [Joana ] era
boa cristã e que errou naquela ocasião passando a se re comportar
honestamente. (Grifo nosso).
O comportamento “honesto” de Joana se converteu no epicentro do
processo. Os depoimentos eram ambíguos quanto à sua honestidade. Marco,
o amigo de infância, atestou que quando criança ela era honesta e depois
“ouviu dizer” que quando moça continuou honesta. A sentença “ouviu
dizer” possivelmente teve menos efeito de prova do que a afirmativa: “Era
honesta quando criança.” O Cônego, por sua vez, limitou-se a emitir juízo
sobre o comportamento de Josefina em sua vida de casada com Pedro, ou
seja, posterior ao período dos fatos do processo. E a viúva Lucrécia, embora
confirme as versões do autor, diz que Joana errou, mas passou a se “re
comportar honestamente”.
Das palavras arroladas no processo, restaram dúvidas sobre em quais
momentos da vida, afinal, Joana correspondeu ao ideal de mulher honesta e
boa cristã. Todavia, até o momento, as testemunhas tendiam a corroborar
que Joana foi uma mulher honesta, mesmo que em algum momento tivesse
dado um “mau passo”.
MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21
335
A dúvida sobre sua honestidade torna-se certeza de leviandade em
outros depoimentos. Por exemplo, no testemunho de Mario, de 65 anos,
casado, profissão enólogo, natural da Itália. Ele afirmou que a mãe do
Autor era sobrinha carnal do falecido João, que ele o conhecera, sendo um
“homem de conduta irreprensível de grande conceito, não acreditando por
isso o depoente fosse ele pae do autor, apezar de algum boato ter ouvido
depois do nacimento do autor. De acordo com seu depoimento, o finado
João não teve participação na gravidez de Joana; essa apareceu grávida e foi
então que o velho João a despediu e mandou de volta à casa paterna. O
depoente conclui sua apreciação sobre os fatos afirmando que Joana
“era meio mansa” resultando disso a gravidez; que havia boatos a
respeito disso, mas o depoente pensa no seu raciocíonio que si o
velho fosse o autor da gravidez teria ficado com a sobrinha na sua
companhia ou a amparado. [...] Que o depoente nada pode dizer
contra o comportamento de Joana e isso informa de ciência propria
porque naquela época [...] que esse bom comportamento persistiu
após o nascimento do autor, que sabe que depois ela cazou-se.
À figura de uma Joana cada vez menos honesta e mais “mansa” no
período da mocidade, ou seja, disponível, o depoente contrapõe a imagem
de um João de caráter irrepreensível. Nos autos, fica evidente que sua opinião
sobre o comportamento duvidoso de Joana tomava como base boatos.
Contudo, o depoimento de Mario se somou ao de outros processos para
lançar mais dúvidas sobre a honestidade da progenitora do autor.
Outro testemunho nessa direção, de Antônio, 59 anos, proprietário e
viúvo, declarava que João, o falecido, era tio carnal de Joana e que a conhecera
ainda solteira, quando teve o filho:
Quando Joana estava na companhia do falecido João seu tio antes
de ter tido o filho, era freqüentada por dois amigos do depoente,
ambos já falecidos. [...] Ambos tinham relações sexuais com a mesma
Joana [...] sabendo o depoente direto naquela época por seus já
referidos amigos; que não recorda do motivo porque Joana saiu da
casa do seu tio e também não tem certeza do lugar em que teve o
filho: si na colônia ou na casa do seu referido tio. [...] Que o falecido
era um bom velho desfrutando conceito social e Joana já foi
mocinha para a casa dele, ignorando em que condições. [...] Que
conheceu realmente Joana tendo algumas vezes frequentado a casa
336
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012
do velho [...] e o que sabe quanto ao seu comportamento naquela
época é o ouvido de seus aludidos companheiros e que
pessoalmente nada notou o depoente que possa desabonar o
comportamento.
Os companheiros, que, de acordo com o testemunho, mantiveram
relações sexuais com Josefina já estavam mortos, não podendo ser ouvidos.
Outro aspecto que chama a atenção no depoimento é a reiteração do “bom
conceito social” do falecido João, em oposição às dúvidas sobre o
comportamento de Joana, que foi já mocinha para a casa de João, apresentado
nesse depoimento – e em outros – como tio da rapariga e, ainda, sabe-se lá
em que condições, levantando dúvidas quanto à virgindade da moça na
época em que foi acolhida pelo velho João. As palavras contra Joana se
avolumaram no processo, sendo o testemunho de Etore incisivo ao afirmar
que “Joana era uma moça leviana, acontecendo até ter uma irmã que soube
uma filha de seu próprio pai, Bruno [...]. Naquela época nunca ouviu que o
filho fosse de João sênior”.
Joana não foi ouvida no processo. Vozes terceiras, dotadas do poder
de prova que lhes confee o ritual jurídico 3 entraram em cena para
testemunhar, reconhecer e atestar a sua conduta. Desse ritual, nós só
conhecemos o que consta nos autos do processo. Nos escapam certas
circunstâncias e práticas, nos foge a possibilidade de examinar os gestuais
que confeririam o efeito de legitimidade às palavras. Como lembra Foucault,
os discursos “não podem ser dissociados dessa prática de um ritual que
determina para os sujeitos que falam, ao mesmo tempo, propriedades
singulares e papéis pré-estabelecidos”. (2008, p. 39).
Na contestação dos réus, o advogado desses, interpreta as palavras
de algumas testemunhas e lhes confere o efeito “de prova” afirmando que
não fosse suficiente essa prova toda dos maus precedentes de Joana,
teríamos ainda a das testemunhas de fls. 68, 75 e 72, todas de
idoneidade incontestável.
Joana foi enxotada da casa de seu pai e encontrou gazalhado no
lar de seu tio João [...]. Como era uma rapariga “meio mansa”
resulou, digo, resultou, disto em pouco a gravidez, mandando-á
João [...] de volta aos pais. Sua mansidão ia ao ponto de manter,
antes do nascimento do A, relações sexuais com dois rapazes a um
tempo – M. e B. (fls. 72). Era uma rapariga “leviana”, filha de
MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21
337
degenerados, foi uma irmã que teve um filho do próprio pai, Bruno
(fls. 75)!
Na conclusão do juiz, o processo foi considerado improcedente. As
razões? Em suas palavras, o autor (o filho) era filho incestuoso, não podendo
ser reconhecido como filho pelo Cógido Civil. Contudo, o Juíz da Comarca
adenda que o autor não conseguiu provar ser descendente das relações sexuais
mantidas entre Joana e o falecido João. Eis alguns trechos de sua sentença:
Sendo condição essencial para procedência da ação de investigação
de paternidade que o investigante não incida em nenhuma das
hipóteses em que legalmente é defesa a investigação aludida [...].
Como filho incestuoso, o A. não póde ser reconhecido e não tem
ação para pleitear o reconhecimento da filiação [...]. Pouco importa
que á época da sua concepção, 15 de julho de 1898, antes portanto,
da vigência do citado código, os pretendidos pais não estivessem
inibidos de casar. É jurisprudência firmada que a ação de
investigação de paternidade deve regular-se pela legislação em
vigor no momento.
Ademais, não fez o A. prova convincente de sua filiação. As
testemunhas ouvidas [...] nada esclareceram no tocante ao alegado
concubinato, quer sobre as relações sexuais referidas pelo A. Pague
ele as custas.
Publicada, intime-se.
Caxias, 27 de outubro de 1939.
Ao que tudo indica, o juiz resolveu considerar as provas de parentesco
entre João e Joana, bem como a palavra daqueles que testemunharam a
existência de relações sexuais entre os dois ao sentenciar que o autor do
processo era “filho incestuoso”. Como tal, João (o filho), perdia perante o
poder judicial o direito de requerer o reconhecimento da paternidade
almejada. Todas as demais alegações se tornariam secundárias no processo.
Curiosamente, após a Justiça rejeitar a João o direito ao reconhecimento da
paternidade (por considerá-lo o fruto de um incesto), diz que o autor não
conseguiu provar sua filiação. Os argumentos das testemunhas e do advogado
dos réus sobre a conduta de Joana possivelmente interferiram na segunda
parte da sentença. Coube ao juiz deixar clara suas dúvidas sobre a veracidade
das alegações de João (filho), suas suspeitas sobre a conduta sexual pouco
338
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012
ortodoxa que dona Joana, ao julgar pela palavra das testemunhas respeitáveis,
apresentou quando rapariga. A sentença reintegra o finado João à condição
de cristão respeitável, define o outro João como filho incestuoso e marca
Joana como mulher de conduta duvidosa.
O sujeito do discurso judiciário é um sujeito sexuado e cujo julgamento
será avaliado através de regras e significados atravessados pelo gênero. Nem
todas as palavras tinham a mesma legitimidade, nem todos podiam ser
escutados pela Justiça. As mulheres envolvidas nos dois processos aqui
analisados se tornaram personagens dos processos ditas por outros. Maridos,
filhos, advogados e, em casos raros, outras mulheres (chamadas a
testemunhar), eram ouvidas para provar ou refutar a tese da paternidade
investigada. Ao recorrer ao Estado para que esse reconhecesse a paternidade
alegada, as pessoas que moviam o processo deslocavam uma fronteira entre
o público e o privado. O controle sobre as normas de sociabilidade, sobre o
que era permitido para homens e mulheres, sobre as condutas sexuais deixava
de ser exercido na esfera familiar ou da vizinhança e se tornava tema dos
tribunais. O Estado, imbuído de uma missão moralizadora, como sinaliza
o Código Civil de 1916, se certificaria de que não havia nenhum
impedimento legal/moral para que os filhos pudessem ser reconhecidos. E
isso, em última instância, significava realizar uma devassa sobre a vida da
mãe que havia dado à luz aquela criança ilegítima.
MÉTIS: história & cultura – MÉNDEZ, Natalia Pietra – v. 11, n. 21
339
Notas
1
“CAPÍTULO II
DOS IMPEDIMENTOS
Art. 183. Não podem casar (arts. 207 e
209):
I. Os ascendentes com os descendentes,
seja o parentesco legítimo ou ilegítimo,
natural ou civil. II. Os afins em linha reta,
seja o vínculo legítimo ou ilegítimo. [...]
III. O adotante com o cônjuge do adotado
e o adotado com o cônjuge do adotante
(art. 376). IV. Os irmãos, legítimos ou
ilegítimos, germanos ou não e os colaterais,
legítimos ou ilegítimos, até o terceiro grau
inclusive. [...]
V. O adotado com o filho superveniente
ao pai ou à mãe adotiva (art. 376).
VI. As pessoas casadas (art. 203).
VII. O cônjuge adúltero com o seu co-réu,
por tal condenado.
VIII. O cônjuge sobrevivente com o
condenado como delinqüente no
homicídio, ou tentativa de homicídio,
contra o seu consorte.
IX. As pessoas por qualquer motivo coactas
e incapazes de consentir, ou manifestar, de
modo inequívoco, o consentimento.
X. O raptor com a raptada, enquanto esta
não se ache fora do seu poder em lugar
seguro.
XI. Os sujeitos ao pátrio poder, tutela, ou
curatela, enquanto não obtiverem, ou lhes
não for suprido o consentimento do pai,
tutor, ou curador (art. 211).
XII. As mulheres menores de dezesseis
anos e os homens menores de dezoito.
Todos os nomes citados são fictícios com
o objetivo de preservar a identidade.
2
Para Foucault, a forma mais superficial
dos sistemas de restrição pode ser chamada
de ritual, ou seja, a qualificação que devem
possuir os indivíduos que falam. O ritual
é composto de um jogo que define os
gestos, os comportamentos, as
circunstâncias e um conjunto de signos que
acompanha os discursos. (2008, p. 38-39).
3
Referências
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.
17. ed. São Paulo: Loyola, 2008.
GRINBERG, Keila. Código Civil e
cidadania. 1. ed. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 2001. v. 1.
SCOTT, Joan. Prefácio a gender and
politics of history. Cadernos Pagu – Núcleo
de Estudos de Gênero, São Paulo:
Unicamp, n. 3, 1994.
340
VINCENT, Gérard. Uma história do
segredo? In: PROST, A.; VINCENT, G.
(Org.). História da vida privada 5: da
Primeira Guerra aos nossos dias. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
Fontes:
Processo 6, caixa 5, CMRJU/IMHC/UCS.
Processo 5 A, caixa 8 A, CMRJU/IMHC/
UCS.
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 327-340 , jan./jun. 2012
Seduzidas e desonradas: o discurso
nas fontes judiciais
Seduced and dishonored: the speech in judicial sources
Elizete Carmen Ferrari Balbinot*
Resumo: O presente artigo propõe uma
análise do discurso produzido pelo
Judiciário nos processos de defloramento
da Comarca de Caxias do Sul, entre 1900
a 1950, tendo como inflexão inicial o
estudo de gênero relacionado à moral e à
sedução de mulheres caxienses. O binômio
história e criminalidade, no contexto,
possibilita investigar uma temática ainda
pouco explorada pela historiografia. Para
o estudo estão sendo utilizadas fontes
primárias que fazem parte do acervo do
Centro de Memória Regional do
Judiciário. Nesse sentido, a leitura dos
processos judiciais de sedução e
defloramento visa à identificação dos
valores morais e religiosos nos discursos
Abstract: This article proposes an analysis
of the discourse produced by the Judiciary
in the defloration lawsuits from Comarca
of Caxias do Sul, between 1900 and 1950,
having as initial reflection the study of
gender related to moral and seduction of
Caxias do Sul women. The binomial
History and criminality, in this context,
allows to investigate a thematic still few
explored by historiography. To this study,
the primary sources used are part of the
Regional Center of Judicial Memory. In
this sense, the reading of the seduction and
defloration lawsuits intends to the
identification of moral and religious values
in the discourses present in the context of
the historic formation and affirmation of
* Graduada em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Especialista em
Gestão de Patrimônio Cultural pela mesma instituição. Mestranda no Programa de PósGraduação em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), com
apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Integrante
do grupo de pesquisa do CNPq “Memória, Justiça e Poder”. Funcionária no Centro de
Memória Regional do Judiciário (CMRJU), integrado ao Instituto Memória Histórica e
Cultural (IMHC) da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail:
elizeteferrari@gmail.com.
MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari
341
presentes no contexto de formação e
afirmação histórica da sociedade caxiense,
procurando pistas e sinais que nos levem à
compreensão do perfil dos envolvidos desde
a abertura do processo ao julgamento da
ação. Observar os processos judiciais como
uma narrativa demonstra como é possível
discorrer sobre a construção de discursos e
a afirmação social e histórica da sociedade.
Significa, também, compreender como a
sociedade e seus sujeitos históricos
conceberam as relações de gênero, a
sexualidade, a moralidade e outros tipos
de comportamento social.
Palavras-chave: Poder Judiciário; sedução;
defloramento; gênero.
the Caxias do Sul society, searching for the
clues and signs which leads to the
comprehension of the profile of the
involved ones since the opening to the
judgment of the proceeding. To observe
the lawsuit as a narrative demonstrates how
it is possible to think about the
construction of the discourses and the
social and historic affirmation of the
society. It means also to comprehend how
the society and its historic characters
conceived the relations of gender, sexuality,
morality and another types of social
behaviors.
Keywords: judiciary;
defloration; gender.
seduction;
O presente artigo tem por objetivo refletir sobre uma temática
comumente deixada à margem e muitas vezes desprezada pela historiografia
tradicional: o estudo de gênero relacionado à moral e sedução. Nesse sentido,
o artigo é fruto das pesquisas em desenvolvimento com referência ao projeto
intitulado Moral e sedução: o discurso do Judiciário nos processos de
defloramento na Comarca de Caxias do Sul, entre 1900 e 1950". O projeto
utiliza os processos-crime de sedução e defloramento que foram acionados
e julgados pelo Poder Judiciário da comarca local. Neles se observa que a
mulher, com a ilusão da promessa de casamento, sentia-se segura, pois o
matrimônio significava a possibilidade de se libertar da tutela paterna/
familiar, o que nos leva a algumas interrogações: seria esse o caminho para
a independência e/ou simplesmente ela deixaria de ser submissa ao pai para
se tornar subordinada a outro homem? Até que ponto o matrimônio oferecia
à mulher sua independência e autodeterminação? Qual foi o destino das
mulheres que foram difamadas, esquecidas e ignoradas em benefício de
uma história heroica e idealizadora dos grupos elitistas? De que maneira os
processos judiciais, como fonte histórica, podem dar visibilidade às mulheres
que, durante, décadas foram silenciadas em sua historicidade?
Estudar documentos oficiais gerados pelo Poder Judiciário constituise numa forma de analisar o discurso produzido pelo verdadeiro produtor
da moral social: o Estado. Os processos-crime de sedução e defloramento
revelam aspectos culturais a respeito da participação feminina quando ela
ocupa o papel de ré e/ou de vítima, embora a construção da identidade
342
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012
cultural de grupos minoritários seja, muitas vezes, encoberta por
argumentações advindas de corporações de profissionais liberais que detêm
o saber. Observar a atuação da jurisprudência possibilita identificar os valores
éticos, morais e religiosos imbricados nas relações de gênero e as práticas
normativas do corpo e da mente, bem como a visão de espiritualidade da
sociedade regional, o que requer cuidado e atenção, assim como atentar à
complexa teia de relações sociais, culturais, econômicas e comportamentais
em que nada pode ser considerado irrelevante. Uma vez que se está
trabalhando com fontes relacionadas a processos-crime de sedução e
defloramento, não podemos deixar de considerar que o Poder Judiciário
contribui na construção das diferentes subjetividades utilizando os valores
apregoados pelos grupos dominantes.
Os Annales realizaram uma transformação teórica e metodológica
ampliando a possibilidade historiográfica sobre problemas e inquietações
que, aos poucos, se faziam presentes, mas até então difíceis de serem tratados
pela história tradicional (positivista). A revolução historiográfica proposta
pela nova história contribuiu para que os historiadores se interessassem por
temas até então ignorados. Com a interdisciplinaridade e o contato com
outras fontes e abordagens ampliou-se o leque de problematização que
procurou desvendar obscurantismos tidos até há pouco tempo como
perigosos à sociedade, bem como rever os conceitos de memória e história.
Nesse sentido, as abordagens de Ginzburg, sobre micro-história tratam,
entre outros temas, do conceito de cultura, chamando a atenção para a
circularidade cultural, não havendo separação entre a cultura da elite e a
cultura popular (1987). Com relação à questão de gênero, Perrot (2005)
destaca que, em pleno século XVIII, ainda se questionava se o sexo feminino
era um ser racional (humano) como o sexo oposto, ou se a mulher estaria
mais próxima dos seres bestializados. No século XIX, o discurso do modelo
burguês dizia que a mulher destinava-se ao sacerdócio do taciturno, era
tida, dentro do enclave masculino, como um estado de glorificação. Nesse
sentido, Perrot ensina que
o silêncio é um mandamento reiterado através dos séculos pelas
religiões, pelos sistemas políticos e pelos manuais de
comportamento. Silêncio das mulheres na igreja ou no templo
[...]. Silêncio nas assembleias políticas [...], silêncio, até mesmo na
vida privada [...], afastada pelas obrigações mundanas que ordenam
que as mulheres evitem os assuntos mais quentes – a política em
MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari
343
primeiro lugar – suscetíveis de perturbar a convivialidade, e que
se limitem às conveniências da polidez. “Seja bela e cale a boca”,
aconselha-se às moças casadoiras, para que evitem dizer bobagens
ou cometer indiscrições. (PERROT, 2005, p. 9-10).
“O discurso constitui a sociedade.” A partir dessa informação, Norman
Fairclough (2001) adverte que se pode ter clareza de que o homem vive
num meio em que o discurso não só reflete e representa a sociedade, mas
também cria sentidos, constrói e constitui a mesma. Ainda segundo
Fairclough (2001), o discurso não só constrói a identidade, mas também
contribui para processos de mudança cultural, nos quais as identidades
sociais são rearticuladas, reconstruídas e redefinidas.
Com o objetivo de realizar um percurso interdisciplinar, a nossa
problemática de pesquisa está relacionada ao fato de identificar o significado
dos valores morais e religiosos explícitos ou não no discurso presente nos
processos judiciais de crimes de sedução e defloramento, apresentados como
modelo de comportamento nas relações de gênero.
A leitura dos processos judiciais de sedução e defloramento – como
modelo de comportamento nas relações de gênero – visa a identificar os
valores morais e religiosos nos discursos presentes no contexto de formação
e afirmação histórica da sociedade caxiense, procurando as pistas e os sinais
que nos levem à compreensão do perfil dos envolvidos desde a abertura do
processo até o julgamento da ação, no que se relaciona: à filiação, à cor, ao
nível socioeconômico, à religião, à alfabetização, entre outros; procura
descrever os dispositivos legais de toda a tramitação dos processos, o
chamamento das testemunhas, o depoimento dos pais da vítima, da vítima
(deflorada), do réu, do médico-legista, entre outros; verificar o significado
da honra nos discursos dos pais das defloradas e no discurso do Judiciário,
uma vez que, no recorte temporal da proposta de estudo, era composto
exclusivamente por homens; e levantar o número de réus defloradores que
casaram com suas vítimas, seja por coerção familiar, seja por imposição
social e/ou judicial.
Os autos criminais, ou processos judiciais, que são as fontes utilizadas
para o estudo em questão, indicam outras realidades, o que amplia a visão
do contexto histórico da Comarca de Caxias do Sul. Acredita-se que os
valores que permeiam os processos de sedução e defloramento apontam
para uma bagagem cultural, moral e religiosa que foi reforçada na sociedade
caxiense através da imigração italiana, no fim do século XIX, especificamente
344
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012
na comarca local. Os temas das questões relativas à moral e à sexualidade
foram, por muito tempo, marginais à historiografia, pois a cultura vigente
não permitia que assuntos obscenos e desmoralizadores viessem à tona,
acreditando-se que causariam a destruição da sociedade burguesa que utilizou
o tripé: família, religião e moral para se apoiar.
Acreditamos que, em Caxias do Sul, vigorou a Lei do Silêncio quando
o assunto era sexualidade, pois o poder da Igreja e da moral católica é um
aspecto cultural de longa duração. A mulher devia resignar-se à obediência
do confessor (padre), que ensinava que a mulher devia dedicar-se
exclusivamente ao trabalho do lar, à educação dos filhos e, especialmente,
ao dever conjugal, esse com um único objetivo: a maternidade, a reprodução
da prole, necessária para custear a subsistência da família e o desenvolvimento
social.
O Estado, através dos jurisconsultos, no fim do século XIX, empenhouse para regulamentar as condutas femininas, já que essas eram consideradas,
segundo Clarisse Ismério, “seres nocivos ao homem e à sociedade, pois
todas eram movidas unicamente pelo instinto sexual”. (1995, p. 45).
Portanto, o regramento deveria ser imposto pelos homens representantes
das leis e, assim, atender aos anseios positivistas da moral e dos bons costumes.
Nesse sentido, Michel Foucault sustenta que o “jurista, preocupado com a
sexualidade, teve que falar de sexo e falar publicamente. Cumpre falar de
sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar,
mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos,
fazer funcionar segundo um padrão ótimo”. (2004, p. 27).
No Brasil, de acordo com a historiografia, desde o período colonial,
os crimes sexuais de sedução e defloramento apontam que as mulheres, ao
tentar transgredir as regras sociais, deveriam ser repreendidas rigorosamente.
O regramento da sexualidade foi o meio que o Estado e a Igreja encontraram
para estabelecer uma ordem na sociedade. Essa ordem foi criada com base
nos princípios instituídos pelas regras contidas no Direito Romano e nas
Ordenações e Leis do Reino de Portugal ou Código Philippino.2
Na sequência, em 1830, foi apresentado o Código Criminal do Império
do Brasil, em que, no Capítulo II, eram tratados os crimes sexuais, que,
com a “rubrica dos crimes contra a segurança da honra, tutelava a liberdade
do corpo em função das relações sexuais”.
Com o fim do Império, em 11 de outubro de 1890, entrou em vigorar
o Código Penal Republicano,3 que passou a censurar a violência com o
objetivo de satisfação sexual. Em especial o art. 267, que se refere ao
MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari
345
defloramento de mulher de menor idade (maior de 16 anos e menor de 21
anos), empregando sedução, engano ou fraude. A punição do deflorador
que não assumia o crime cometido era de um a quatro anos de reclusão em
penitenciária. O aparelhamento do Estado, legitimado através de
jurisprudência, tinha por objetivo regrar a família e a sociedade seguindo
os parâmetros do progresso e da civilização.
Com o Código Penal de 1890, o Estado passou a ser o tutor direto da
família, tirando da Igreja Católica a função de protetora, até então exercido
sobre seus seguidores. O Estado assumiu o controle da sexualidade, e o
poder ético-jurídico, de julgar os crimes previstos que atingissem o corpo
social, familiar e feminino. A dignidade da mulher, quando necessário,
seria restabelecida, já que a partir dessa data, a responsabilidade de sua
guarda deixou de ser privada, tornando-se objeto de reflexão pública através
do exercício do Poder Judiciário. Sueann Caulfield enfatiza as implicações
políticas na época da produção dos códigos republicanos, quando destaca:
Os juristas, ansiosos por promover o aperfeiçoamento social e racial
da população, viam no direito positivo uma justificativa, um
método para intervir no desenvolvimento físico e moral da nação.
Se na Europa a nova escola prometia a “melhor moral da
humanidade”, certamente ela poderia ajustar os juristas brasileiros
a reverter a degeneração física e cultural que, de outra forma,
poderia condenar o Brasil a uma perpétua inferioridade.
(CAULFIELD, 1996, p. 71).
Era preciso identificar os padrões moralizadores, normatizá-los e aplicálos. Para que o Estado melhor se aparelhasse, os jurisconsultos elaboraram,
em 1940, um novo Código Penal.4 No que tange à sexualidade, o art. 217
do Código Penal de 1940 objetivava frear os avanços da modernidade,
impedindo que a expansão e a representação das tecnologias no meio social
contagiassem a moral social e, consequentemente, a familiar. Alguns juristas
viam o rádio como um meio de comunicação, o mais utilizado na época,
capaz de conduzir a família e a sociedade a um mundo desprovido de pudor.
Adriano Prosperi assinala que o crescimento econômico das famílias e o
acesso aos bens de consumo compeliam o sujeito aos prazeres da vida. Esse
avanço deveria ser subtraído/controlado, caso contrário, seria o fim da
moral familiar; daí a necessidade de serem “criados novos códigos de
comportamento”. (2010, p. 134). No Código Penal de 1940, os juristas
346
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012
trataram de reafirmar as interdições já consagradas no Código Penal de
1890, bem como mantiveram o discurso que rotulava a imagem da mulher
como um ser ingênuo, emotivo, frágil, assexuado, assujeitado e irracional,
alimentando um perfil subordinado ao sexo oposto. Quanto ao saber
produzido pelo Estado, Pierre Bourdieu (2003) afirma que o “corpus jurídico”
apresenta em seu discurso uma relação de força sobre os dominados que
passa a se constituir em saber adquirido e reconhecido, anulando, assim,
qualquer possibilidade de manifestação subjetiva de grupos minoritários
no meio social: as mulheres.
Nesse sentido, no conjunto documental do CMRJU/IMHC/UCS, há
significativo número de autos e/ou processos que revelam parte do cotidiano
do sexo feminino caxiense. Mulheres que, muitas vezes, foram esquecidas
e/ou ignoradas em benefício de uma história heroica e idealizada pela elite
dominante. Silenciadas por décadas de história, as vozes femininas ganham
visibilidade por meio dessas fontes. Histórias que destacam a identidade e
a memória de mulheres que, pela lei e pela moral social, foram dadas como
criminosas, já que qualquer atitude esboçada de forma diferente do
preestabelecido podia ser considerada extravagante, transformando a mulher,
segundo Caufield (2000, p. 186-93), uma virgem impura.
No princípio, nos crimes de sedução e defloramento, o elemento
fundamental para o acionamento da Justiça caxiense pelas famílias das vítimas
deveu-se, sobremaneira, ao sentimento de desonra provocado pelo
defloramento. Geralmente, esse sentimento era manifestado pelos genitores
e/ou parentes mais próximos, seguindo/aprovando uma estrutura patriarcal
e se revelavam através de discursos e elementos fundamentais para a
identificação de preconceitos/estereótipos, que continham comentários
maledicentes e preconceituosos.
Podemos compreender que esses elementos discursivos, presentes nos
crimes de sedução e defloramento, constituem parte dos valores que circulam
e que são aceitos pela sociedade e, principalmente, as relações de gênero.
São princípios que fazem parte, segundo Bourdieu, da “cultura dominante”
que, provavelmente, era aceita, difundida e reproduzida pela “classe
dominante assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus
membros e distinguindo-os das outras classes”. (2003, p. 10).
Essa hierarquia de valores é visível na leitura dos processos de
defloramento, quando identificamos que o gênero masculino, na figura do
réu, terá a sua sentença proferida por quem detém o saber e o poder,
atrelada à figura também masculina do juiz. A força concentrada nas mãos
MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari
347
da Justiça utilizou-se de vários meios coercitivos durante o interrogatório
para, de forma secreta, segundo Foucault (2010), “construir suas provas”.
Essa construção elenca elementos necessários, seja para punir exemplarmente
o acusado como também toda a sociedade, servindo de exemplo ou de uma
forma de pedagogia para evitar outros crimes.
Em Caxias do Sul, desde o início do século XX, é visível, pelos processos
de defloramento analisados, que sexo e pecado se fundem, assim como
ideologia e cultura, pois essa, conforme Bourdieu, une, mas também separa
(p. 11).
Sandra Pesavento diz que à análise dos processos criminais é uma fonte
que “permitirá perseguir” os atores sociais na “contramão da ordem e da
vida, para que se possa resgatar melhor os roteiros contraditórios da sua
incriminação e julgamento”. (2001, p. 24).
No que concerne à sexualidade, acredita-se que a regra era o silêncio,
que somente seria quebrado quando a filha comunicass alguma leviandade à
mãe. Deve-se ressaltar que, segundo a moral social, os genitores eram os
responsáveis pela conduta física e moral de sua prole, principalmente a
feminina, pois essa nunca poderia ficar à mercê de situações desmoralizantes.
Dificilmente, a mulher era vista como um ser pensante, mas como um ser
dependente, dócil, facilmente corrompível, que poderia manchar de “sangue”
a honra familiar.
Ismério destaca que “se efetivamente o homem é a cabeça, a mulher é
o coração, e se um tem o primado do governo, a outra pode e deve contribuir
com seu primado de amor” (ISMÉRIO, 1995: 44), esse amor entendido
como doação e submissão total à boa conduta da família. Porém, foi possível
identificar que muitas mulheres transgrediram a moral social, e o amor,
não raramente, se transformou em paixão. A paixão para o homem e/ou
namorado só era verdadeira mediante uma prova de amor que, quando
consumada, revertia-se em medo para muitas mulheres, que também era
incorporado ideologicamente pelo poder constituído.
Todo o aparelhamento do Estado e a ideologia difundida pela Igreja
Católica oficializaram-se como meio ao que Foucault (2010) chama de
interdições, sendo que, por um lado, existem indivíduos com desejos inerentes
a todo ser humano e, pelo outro, um poder dominador e excludente. Um
discurso que, provavelmente, representou uma verdade mascarada como
foi possível identificar nas leituras dos processos-crime, nos quais a mulher
que não aceitasse o saber vigente, de acordo com Ismério, o
“condicionamento moral e simbólico, […] cairia em profunda desgraça e o
348
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012
seu erro não seria perdoado”. (1995, p. 30). Ainda segundo a autora, o
homem não seria rotulado de leviano se ele mantivesse um ou mais
relacionamentos extraconjugais, já que viveria mais feliz e não seria censurado
pela sociedade.
Da análise de um processo: sedução e defloramento5
Em 18 de janeiro de 1946, Emilda,6 mãe da adolescente Égide, com
17 anos de idade, foi à delegacia de polícia denunciar o médico higienista
Luís, pelo delito de sedução e defloramento de sua filha. O delegado, ao
tomar conhecimento do ocorrido, solicitou que se procedesse ao exame de
“conjunção carnal” na filha da queixosa e deu início ao inquérito, intimando
a ofendida, o indiciado, o namorado Antônio e as testemunhas.
Emilda, no depoimento ao delegado de polícia, relata que sua filha
Égide foi ao consultório do médico Luís, pois estava com dores abdominais,
moléstia que a preocupava. Ao entrar no consultório, o médico levantou as
vestes examinando-a superficialmente e, em seguida, conduziu-a a uma
outra sala quando,
segurou-a pelos braços e fechou a porta, mandou tirar as roupas,
inclusive as calças que a mesma vestia, que como ela julgasse que
ainda seria submetida a exame, não teve o menor constrangimento.
[...] sEgurou-a pela cintura e manteve relações sexuais com a mesma.
Nesse momento minha filha quis gritar por socorro e foi impedida
pelo médico que lhe tampou a boca e deflorou-a. Para que seu
silêncio fosse garantido, o médico lhe prometeu dinheiro e fez
proposta para se juntar com ela. Conseguindo assim manter
relações sexuais outras vezes. (p. 14).
Emilda sabe que o Estado tem o poder e o dever de ampará-la, por
isso solicitou providências à polícia por acreditar que essa se constituía em
uma “polícia do sexo”. Ela procurou o poder por entender que a Justiça
podia disciplinar e coibir práticas sexuais que constituíam a destruição da
família. Outro fator que incidia desfavoravelmente sobre ela era seu estado
civil e socioeconômico: sozinha e sem marido que a representasse na esfera
pública, a deixava ainda mais vulnerável.
Logo após o depoimento da mãe, foi ouvida a ofendida que confirmou
ter sido deflorada pelo médico Luís quando esteve em seu consultório, em
MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari
349
um importante hospital desta cidade, no dia 11 de dezembro de 1945,
aproximadamente, às 16h30min. Contou em detalhes como tudo ocorreu,
dizendo que “foi consultar a respeito de umas dores que sentia no ventre,
[...] este facultativo após examiná-la, fê-la passar para uma salinha contígua
a do consultório, na qual, decorridos poucos momentos, deu-lhe para beber
um líquido amargo que depois de ingerido a fez sentir-se um pouco tonta e
foi deflorada”. (p. 18).
De acordo com o depoimento de Égide, provavelmente, o médico
tenha usado algum sedativo ou narcótico e, sob efeito desse, foi consumado
o crime de conjunção carnal. Nesse contexto, a moça indefesa transformouse em vítima do médico. Porém, no depoimento ela também destacou que
passados alguns dias retornou ao consultório “para ser examinada pelo Raio
X”, sendo que ali, à força, o médico novamente manteve relações sexuais
com ela. Entretanto, o retorno de Égide ao consultório, desacompanhada,
depois de ter sido violentada deixou a autoridade policial reticente. Que
resistência opôs a ofendida? Diante das evidências presentes, o delegado
questionou sobre o motivo que a levou a esconder de sua mãe o que havia
acontecido e ela destacou: “O Dr. Luís havia pedido com insistência que
nada contasse, pois lhe daria tudo o que precisasse e que estava disposto a
abandonar sua esposa para viver com a ofendida.” (p. 18). Uma afirmação
duvidosa e contraditória, pois ela havia atestado que o médico agira
rapidamente, presume-se sem diálogo, logo sem tempo para seduzi-la. As
falas produzidas pela mãe e pela filha representam pessoas comuns da
sociedade caxiense que, diante de uma instância de poder poderiam estar
falando a verdade ou, talvez, estivessem sendo pressionadas a reproduzir o
discurso do saber.
A afirmação feita pela interrogada suscitou algumas dúvidas à autoridade
do delegado, pois, de acordo com os exames médicos, foi diagnosticado
que Égide estava com “vaginite “Colpite” granulosa, mucopurulenta com
flúor, também conhecido por (corrimento vaginal)”. (p. 43). O que leva a
suspeitar da acusação, pois seria um profissional da área da saúde capaz de
colocar em risco a sua integridade física em troca de um momento de
prazer? A revelação da promessa de mancebia com uma jovem desconhecida
alertou até o defensor público na época. Provavelmente, o promotor estivesse
habituado com o discurso de jovens defloradas afoitas para restabelecer o
mal praticado e ele passa a incriminar a deflorada principalmente quando
ela diz que houve promessa de casamento após o fato ter sido consumado.
Nesse sentido, Viveiros de Castro explica que o discurso de uma jovem
350
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012
ofendida devia ser analisado com reservas, pois se o pedido de casamento
não fosse formal e público, não podia ser considerado como tal. A jovem
deveria saber distinguir um pedido sério/solene de uma fraude, pois, se ela
se deixasse enganar com o intuito de obter alguma vantagem, “presume-se
ter a mulher consentido livremente, por prazer, e não se deve dar-lhe
ouvidos, quando ela se diz seduzida”. (CASTRO, 1932, p. 78).
O delegado concluiu que havia indícios de contradição nos depoimentos
e resolveu buscar informações sobre a família de Emilda, quando foi
informado de que, há algum tempo, houve um desentendimento entre a
queixosa e o denunciado. Nesse sentido, é possível perceber que a autoridade
policial, através da figura do delegado de polícia, investigou não somente a
situação da mulher-vítima, mas também a vida da família, o que nos leva a
supor que a moral familiar constitui-se, a priori, o fator preponderante do
pré-julgamento final da vítima.
Caso o Estado, aqui representado pela Justiça, não fosse acionado, as
jovens defloradas, segundo Michelle Perrot (2008), estariam fadadas à
decadência e ao desastre e cabia à mãe, na ausência do pai, tentar, pelas vias
judiciais, minimizar o escândalo sexual em que sua filha estivesse envolvida.
Certamente, Emilda temia que viessem à tona outras ações desabonatórias
cometidas no passado, já que negligenciara em vão, à autoridade policial,
seu real estado civil. O delegado solicitou a certidão de nascimento da filha
Égide como documento capaz de comprovar a menoridade, mas ela
titubeou, baldado esforço. O comissário de polícia solicitou no Cartório
de Registro Civil de Nascimentos, a cópia da certidão de nascimento de
Égide, que revelou: “O registro de nascimento da menina acima declarada é
filha ilegítima de Emilda.” (p. 15). A certidão de nascimento da filha de
Emilda lhe fez vivenciar novamente a situação que ela, provavelmente,
mais temia, pois sua filha estava repetindo o mesmo erro ao ser deflorada,
desonrada e se tornar mãe solteira. Entretanto, Emilda procurou o único
meio de remediar o irremediado, pois entre ficar calada, guardar para si o
acontecido ou ir à polícia registrar queixa do defloramento da filha, preferiu
tornar o defloramento da filha um fato público, acreditando que a lei estivesse
ao seu favor.
A Justiça e, consequentemente, a sociedade, não julgou somente a
jovem deflorada, mas também o passado de sua família foi investigado,
tornando-se uma peça determinante na decisão a ser tomada pelo Poder
Judiciário. Nesse sentido, Viveiros de Castro alerta para a necessidade de
avaliar todo o núcleo familiar, pois “os precedentes da ofendida e de sua
MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari
351
família devem ser cuidadosamente examinados, pois indicarão se trata de
uma moça honesta, de uma família respeitável e séria, ou de uma mulher já
corrompida, educada entre gente sem moral, e sem escrúpulo, ávida de
dinheiro e capaz de tudo”. (1932, p. 91). De acordo com a moral da época,
a culpa recaiu sobre a mãe, pois, na ausência do “cabeça de casal”,
representado pela figura masculina, Emilda era uma mãe corrompida, um
ser frágil e leviano aos galanteios de homens tidos como inteligentes e
conquistadores. Como mãe, Emilda não soube manter sua filha no recato
do lar, sob sua vigilância e com uma educação que deveria prepará-la para o
casamento.
Emilda rompeu a situação de silêncio e decidiu procurar a Justiça que
se apresentava como responsável e guardiã da moral social. Uma ordem
dominante que, por meio das elites, produz e difunde discursos amparados
em uma ordenação sociopolítica impressa em leis e instituições. Assim, o
Estado exerce o controle da sociedade por meio de verdades produzidas
segundo os seus princípios. E sobre o cotidiano feminino, como, por
exemplo, em Emilda e Égide, provavelmente, vigorava uma aura associada
ao medo e à culpa.
No início da denúncia dos processos-crime de defloramento, era de
praxe que as ofendidas passassem pelos trâmites legais, ou seja, o exame de
corpo de delito para ser analisado e testado clínica e cientificamente o
estado do hímen da deflorada. Esse exame denominava-se “autoexame de
defloramento” ou “autoexame de conjunção carnal”, peça-chave no
desvendamento de parte do mistério que envolvia a suposta seduzida. Égide,
submetida à análise científica, sabia que se estivesse mentindo seria
descoberta. Assim, entrava em cena o médico-legista que tinha a
responsabilidade de confirmar se o defloramento era recente ou antigo, e a
gravidez da vítima se houvesse. A mãe de Égide, em seu depoimento,
alertava que há “dois meses” a filha não menstruava. Mais tempo que a data
do defloramento declarada pela deflorada e o tempo cientificamente
comprovado. Égide sabia que o resultado do exame seria anexado ao
processo, pois era a prova cabal para o enquadramento da tipologia do
crime que poderia ser: defloramento, estupro ou falso testemunho.
Em 29 de março de 1946, a denúncia chegou à Promotoria. Logo em
se seguida, foram chamados para depor o médico Thomé, diretor do hospital,
e seus colegas: Pedro e Mário, ambos médicos do Posto de Higiene. É
possível perceber que esses profissionais deviam ter relações de “coleguismo,
amizade ou dependência” com o médico denunciado pelo defloramento.
352
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012
Porém, os depoimentos dos médicos ajudaram a fortalecer as dúvidas do
comissário, quando novamente ele deixa transparecer desconfiança quanto
à idoneidade do depoimento da vítima. Fortaleceram-se os indícios e
prevaleceu a ética profissional, pois todos depuseram a favor do médico
denunciado.
Os indícios do processo mais parecem uma cena novelesca de violência
do que de sedução. O acusado, de acordo com a vítima, usou da força,
subjugou-a rapidamente para obter seu intento deflorando-a. A leitura do
processo aponta para a existência de contradições, pois se evidenciam
flagrantes diferenças: mãe e filha relatam o ocorrido de diferentes formas,
porém não houve testemunhas, e a cena foi secreta. O que nos leva a
algumas interrogações, como, por exemplo: não estaria Égide querendo
incriminar o médico para eximir a culpa do namorado? Se seu intento fosse
levado a cabo, passaria de mulher leviana, desonrada, difamada para vítima,
uma situação muito favorável; possivelmente a sociedade a perdoaria. O
promotor, em sua argumentação, foi enfático quando disse: “Não nos
convencemos da criminalidade do indiciado. Questões de ordem moral ou
inerentes a determinadas profissões não constituem objeto de ciência penal”.
(p. 6). A Promotoria, com sua argumentação, abriu mão do caso, inocentando
o médico que, no exercício do seu ofício, provavelmente, procedeu conforme
requer a prática da medicina. A mãe, ao ir à delegacia denunciar a desonra
da filha, não imaginou o quanto “maquiavélica” sua filha estava sendo,
mesmo que essa tenha agido em defesa de sua honra. No vislumbre da
promessa de casamento, não hesitou em acusar o médico Luís.
Passados dois anos, em novembro de 1948, Égide voltou à promotoria
não para dar continuidade ao processo que fora instaurado para incriminar
o médico, mas para denunciar seu “ex-noivo Antônio, como autor de seu
defloramento”. (p. 59). Ele foi o mentor de toda a teia incriminatória que
se teceu contra o médico Luís. A ofendida declarou que com promessa de
casamento foi seduzida e deflorada pelo noivo, que, temendo ser descoberto,
tramou com muita astúcia a acusação com o objetivo de subornar o médico.
Égide relatou que, com o montante obtido através da extorsão, o noivo
prometeu que eles iriam morar na Região Norte do País, longe dos olhares
da sociedade que a julgaria uma mulher pervertida, sem honra e sem moral.
Entretanto, o ex-noivo, Antônio, no emaranhado das investigações, fugiu,
deixando Égide sozinha e grávida. Concluído o sonho de felicidade plena,
ela percebeu que foi abandonada, desonrada e “falada”, sem possibilidades
de encontrar um pretendente que assumisse um filho ilegítimo. Com a
MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari
353
nova declaração, ela deu fim a uma investigação que, certamente, causou ao
médico, chefe do posto de saúde, Luís, muitos constrangimentos, bem
como denunciou a trama ardilosa do ex-noivo. Égide declarou, também,
que a criança nasceu, estava bem e vivia em perfeita saúde e, no entender da
jovem mãe e pela moralidade católica, seu filho foi batizado e legitimado
com o nome do pai. As questões que remetem ao poder da instituição
Igreja Católica deverão ser aprofundadas em momento oportuno.
No processo acima destacado, observou-se a presença de um discurso
impregnado de preconceitos morais, no qual a sexualidade e, provavelmente,
a ideologia religiosa, estavam intimamente imbrincadas na cultura difundida
pelo Estado e pelo Clero. São discursos tidos como verdades, que, em
tempos hodiernos, não importa mais quem os originou; o que importa é
saber o que está por trás dessas falas e o que as torna verdadeiras, já que,
estando disseminadas entre grupos leigos, são facilmente aceitas. Para
Foucault, romper com posturas arraigadas requer “que não mais se relacione
o discurso ao solo inicial de uma experiência nem à instância a priori de um
conhecimento, mas que nele mesmo o interrogue sobre as regras de sua
formação”. (2004, p. 89). Foucault reporta-se à história do pensamento,
pois versa sobre o discurso como descontinuidade, já que cada um deve ser
interpretado em seu tempo e com suas especifidades.
Reafirma-se que a temática em discussão foi ignorada e silenciada pelas
narrativas tradicionais e que, em função das diferentes mudanças na sociedade
e nas relações de gênero, é de fundamental importância compreender, cada
vez mais, as questões ligadas à sexualidade, bem como de que forma é
encarada e praticada a sexualidade, as práticas normativas do corpo e da
mente, a negação e depreciação do coito sexual em favor do espiritual e as
influências dessas práticas de afirmação e negação do sexo, de sublevação e
inferiorização do mesmo na teia sociocultural das relações humanas.
Nossos atores sociais, Emilda, Égide, Luís e Antônio (ex-noivo), todos,
de uma forma ou de outra, se envolveram em uma história que hoje pode
ser estudada como fonte para se entender parte dos valores morais da
sociedade local. Vejamos o caso de Égide, filha de mãe que se declarou
viúva: durante o inquérito policial, foi possível identificar que ela era filha
de pai ignorado, consequentemente, de mãe solteira, mas mãe e filha
acreditavam que a desonra poderia ser reparada pelo casamento. Porque
essa mãe e a sociedade perceberam que erraram na educação dessa moça? A
filha estaria repetindo o erro da mãe? Por que foram estigmatizadas pela
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012
sociedade? São algumas indagações que podemos realizar, as quais Burke
(1992) identificou como sendo os problemas de explicação da micro-história.
O promotor discorre sobre a falta de credibilidade que há nos
depoimentos da deflorada. Talvez a jovem desejasse apagar as lembranças
que mais lhe causaram dor e constrangimentos do que boas recordações, e
os homens do saber insistiam em relembrá-la durante a investigação. Alguns
quesitos da inquirição eram oficiais, porém parece que havia uma espécie
de vislumbre satírico por trás dos interrogatórios e do exame do corpo
feminino, pois ela foi obrigada a relembrar a data do ocorrido, o horário, o
local e toda sorte de indícios que relatassem, nos mínimos detalhes, o ato
criminoso. Para os representantes da Justiça, indiferentes à questão de gênero,
as vítimas eram profundas conhecedoras das malícias libidinosas dos impulsos
sexuais masculinos, e o ato sexual só acontecia porque havia consenso entre
o casal, o que criminalizava a mulher, independentemente da idade.
Conclusão
Através do artigo foi possível lançar alguns questionamentos relativos
ao papel da Justiça na Comarca de Caxias do Sul, entre os anos de 1900 a
1950 e, consequentemente, os valores da moral social. A Justiça, quando
procurada, defendeu as vítimas aplicando normas coercitivas nos
transgressores como papel socializador e como prática judicial. O Ministério
Público parecia estar disponível em zelar, manter e restabelecer a identidade
e subjetividade dos desfavorecidos. Durante a fase de leitura e classificação
dos processos, foi possível identificar que muitas mães procuraram a Justiça
para denunciar a desonra das filhas. Elas acreditavam, que a lei lhes daria
proteção, porém não queriam que o fato se tornasse público ou caísse na
“boca” da vizinhança, para evitar que fossem ainda mais desmoralizadas.
Havia, também, provavelmente, o preconceito, o desprezo e a humilhação
de ter que passar pelo crivo de todo o corpo investigativo, as falas e os
olhares trocados entre esses, os quais Foucault definiu como “vontade de
verdade”. Verdades científicas que estão em poder “do corpo social” técnico
especializado, “existem relações de poder múltiplas que [...] não podem se
dissociar” do saber. (2003, p. 179). Esses grupos sociais que detêm o
poder são os produtores dos discursos que hoje abrem campo para
questionamentos e estudo, por constituir um saber que desmoraliza outros
saberes, em especial, no recorte temporal analisado: as mulheres. O contexto
discursivo dominante entra em conflito com outros discursos ou forças
MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari
355
antagônicas que atuam de forma contraditória ora em defesa, ora contra a
mulher.
Um silêncio consubstancial, no que tange à honra feminina vigorou
durante décadas. Nesse sentido, foi possível identificar que, hodiernamente,
o que elas mais queriam era que, mesmo na condição de jovens desonradas,
não fossem colocadas no rol das mulheres sem ética, sem moral, enjeitadas
e excluídas do meio social, mas que fossem entendidas como sujeitos com
“vontade de verdade”, com memória e história, que só poderia ser reparada
pelo casamento e pela família organizada, uma ordem idealizada pelo discurso
dominante e pela moral social.
Assim, as paixões e os desejos das mulheres foram, durante séculos,
velados e ignorados, por constituir desordem moral (pecado). Permaneceram
nos porões do obscurantismo histórico como se não existissem, neutralizados
por ordem do poder disciplinador. No entanto, hoje é possível dar “luz” a
esses desejos por meio de estudos das fontes produzidas pelo Judiciário, o
que possibilita reflexões para a compreensão dos discursos apregoados pelo
sentimento de medo, desejo, vingança e justiça.
356
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012
Notas
O Código Filipino foi promulgado em
11 de janeiro de 1603 pelo monarca Felipe
III na Espanha, ou Felipe II quando rei
em Portugal e vigorou no Brasil até 16 de
dezembro de 1830. As leis foram escritas
e distribuídas em livros. Assim, os crimes
contra a honra dos homens estavam escritos
no Livro V, sob a rubrica dos Títulos XIII
ao XXXIII. Essas leis puniam todos os atos
praticados
por
homens
e
consequentemente pelas mulheres que
fugissem das convenções estabelecidas.
Disponível em: <http://www1.ci.uc.pt/
ihti/proj/filipinas/l5ind.htm>. Acesso em:
25 ago. 2011.
1
O Título VIII diz: “Dos crimes contra a
segurança da honra e honestidade das
famílias e do ultraje público ao pudor”.
No Capítulo I: “Da Violência Carnal”,
encontra-se o art. 266: “Atentar contra o
pudor de pessoa de um ou de outro sexo,
por meio de violências ou ameaças, com
o fim de saciar paixões lascivas ou por
depravação moral.” A punição aplicada ao
infrator era de um a quatro anos de prisão
celular. Pena a que também incorria o
sujeito que “corromper pessoa de menor
idade, praticando com ela ou contra ela
atos de libidinagem.” O art. 268 é o que
difere defloramento de estupro, pois este
só é praticado quando a mulher for virgem
ou não, porém honesta. A pena imposta
ao estuprador é de um a seis anos.
Disponível em: <http://pt.scribd.com/
2
doc/55636995/Codigo-Penal-de-1890Completo>. Acesso em: 25 ago. 2011.
O Código Penal de 1940, no que tange
à criminalização da mulher, pouco
mudou, apenas a terminologia
defloramento foi substituída por sedução.
Plácido e Silva (2004) diz que sedução,
na terminologia do Código Penal de
1940, é entendida como o ato de enganar,
ludibriar mediante o emprego de
manobras ardilosas e fraudulentas para a
consumação de um fato. Na visão do
Judiciário, “sedução configura o fato de se
induzir a mulher a que consinta a manter
relações sexuais, fora do casamento,
mediante o emprego de meios ardilosos,
ou bastante convincentes para influírem
sobre sua vontade”. (p. 1.261). O art. 217,
do Código Penal de 1940, configura
crime de sedução a conjunção carnal;
virgindade da mulher; menoridade, idade
da ofendida compreendida entre 14 e 18
anos; consentimento obtido pelo engano,
com aproveitamento de sua inexperiência
e justificável confiança. Para o infrator, a
reprimenda imposta era de dois a quatro
anos de reclusão celular.
3
O processo analisado para este artigo está
sob custódia no CMRJU/IMHC/UCS;
acondicionado na caixa 11B, processo 5,
ano 1946.
4
Por questões de ética, optou-se por
utilizar nomes fictícios.
5
MÉTIS: história & cultura – BALBINOT, Elizete Carmen Ferrari
357
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 341-358 , jan./jun. 2012
Feminino e masculino: a presença das mulheres no
poder judiciário de Rondônia
Male and female: the presence of women in power of legal state of Rondônia
Nilza Menezes*
Resumo: Este artigo analisa o papel das
mulheres no Poder Judiciário de Rondônia.
Divididas em duas classes de trabalhadoras
– as juízas e as servidoras –, elas são tratadas
com grande importância dentro da
estrutura de poder. São elogiadas nos
discursos, que as apresenta como
portadoras de uma imagem diferenciada
dentro da instituição por serem maioria.
Assim, analisamos o que representa essa
superioridade numérica na instituição com
relação ao exercício de poder.
Abstract: This article examines the role of
women in the judiciary Power of
Rondonia. Divided into two classes of
workers – the judges and servants – they
are treated with great importance within
the power structure. Are praised in
speeches, which presents as bearers of a
distinctive image within the institution
because they are the majority. Thus, we
analyze the numerical superiority that
represents this institution in connection
with the exercise of power.
Palavras-chave: poder; gênero; trabalho.
Keywords: power; gender; work.
O presente artigo faz algumas reflexões sobre a condição das mulheres
trabalhadoras no Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia. O trabalho
foi feito a partir de pesquisa nos documentos do acervo da instituição1 e
relatórios fornecidos pelos departamentos.
Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp).
Graduada em História pela Universidade Federal de Rondônia. Especialista em História
do Brasil pela PUCMG. Coordenadora do Centro de Documentação Histórica do TJRO.
Pesquisadora no Grupo de Pesquisa em Gênero e Religião Mandrágora/Netmal, do
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Umesp. E-mail:
nilzamenezes@hotmail.com.
*
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 359
Partimos da premissa de que há dois grupos de mulheres: as juízas e as
servidoras. Justificamos a separação em face dos diferentes papéis exercidos
dentro da estrutura institucional. As servidoras fazem parte da classe de
trabalhadoras subordinadas à estrutura de poder. As juízas pertencem à
estrutura, podendo ascender dentro dela.
Por ocasião das datas comemorativas, a exemplo do dia 8 de março,
matérias jornalísticas são dedicadas às mulheres mostrando a importância
das mesmas. As festas e homenagens são rendidas às mulheres que, dentro
da instituição, exercem cargos ou funções relevantes, são juízas ou servidoras.
O discurso presente é o de que um grande número de servidoras é prestigiado,
pois recebe um salário igual ao dos homens, ocupam cargos relevantes e
ainda são numericamente superiores.
Os registros históricos, até 1960, pela documentação produzida acerca
das atividades da Justiça na região não registram a presença feminina, na
condição de funcionárias, servidoras, magistradas ou qualquer outra função
relativa aos trabalhos realizados. As mulheres, até então, se apresentam na
condição de parte nos processos cíveis – especificamente na condição de
viúvas – ou nos processos criminais, como vítima, ré ou testemunha.
Vale uma ressalva com relação aos primeiros anos da instalação da
Justiça na região, 1912 a 1930, quando os processos estão relacionados à
extração da borracha e à construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré
(EFMM).2 Esse primeiro período foi de intensa atividade da Justiça, e a
presença de mulheres na condição de vítimas, rés ou testemunhas esteve
bastante presente. Também, pela presença das comunidades árabe, hebraica
e portuguesa na Comarca de Santo Antônio do Rio Madeira, a presença de
nomes femininos em diversos documentos, tais como inventários e lista de
testemunhas de casamento, indicam que a presença feminina fazia parte das
atividades sociais daquele lugar3 apesar da imagem deixada pelos escritos de
viajantes e que passou a fazer parte da memória coletiva de que aquele
lugar, naquele tempo, era um mundo apenas de homens.
Foi somente a partir dos anos 70 (séc. XX), que percebemos a presença
feminina em atividades judiciárias, tanto na condição de servidoras como
na condição de magistradas. Quando ainda era o Território Federal de
Rondônia e o atendimento jurisdicional prestado era da Justiça dos Territórios
Federais, registra-se a tímida presença de alguns nomes femininos nos
documentos produzidos, tais como: processos, atas, ofícios, etc. Na Comarca
de Guajará-Mirim, a servidora era Zélia Jorge. Em Porto Velho, Raquel
360
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012
Moreb, as Juízas Maria Elisa Muniz Chamberlain e Maria Rita Capone
Krause e, ainda, como Promotora de Justiça Ledy Fischer.
Com a criação do Poder Judiciário de Rondônia, em 1982, nomes
femininos passam a fazer parte dos documentos, de forma mais visível,
aparecendo em atas como secretárias, escrivãs e outras funções relativas ao
fazer da Justiça. Não pode deixar de ser observado que às mulheres cabia
ainda o papel de auxiliares das funções masculinas numa instituição
extremamente masculinizada. A primeira composição do Tribunal de Justiça
foi composta por sete desembargadores. Assim, a cúpula de Poder, naquele
momento, era formada apenas por homens.
Nos 25 anos que se seguiram, podemos perceber algumas mudanças.
No decorrer das décadas, e a cada realização de concurso para juízes, percebese que as mulheres, lentamente, buscaram ocupar espaços, aparecendo seu
nome em listas de aprovadas em concursos para a Magistratura. No entanto,
os números são ainda muito tímidos, e as listas continuam masculinas:
“Lista de juízes aprovados” “Concurso para Juiz substituto” e “Concurso
para magistrados”.
Conforme registros sobre o primeiro concurso, apenas uma mulher
foi aprovada. No segundo, novamente apenas um nome feminino figura na
lista de aprovados. Nos concursos seguintes, a proporção era de uma ou
duas mulheres para cada dez a quinze homens. No décimo quinto concurso,
percebe-se uma mudança: o número de mulheres quase alcançou o de homens.
Dos nove aprovados, quatro eram mulheres. Nos concursos seguintes, nomes
femininos sempre fizeram parte da lista numa proporção que sempre entre
10, 20 a 30 por cento. No último concurso realizado, dos 20 aprovados,
sete eram mulheres, o que equivale a um terço.
Atualmente, a estrutura de Poder da instituição conta com 17
desembargadores, sendo que apenas duas são mulheres. No quadro geral, o
número de homens é de 124, para 27 mulheres. Portanto, em toda a estrutura,
o número de mulheres equivale a 21,8%, o que quer dizer que a instituição
continua representada por uma maioria masculina. Pela lista de antiguidade,
é possível fazer uma projeção para os próximos dez anos e, nesse sentido,
não se vislumbra mudança no quadro. Em razão de aprovação, apenas de
uma, duas, a três mulheres nos primeiros concursos, dos 20 próximos
juízes a serem promovidos ao cargo de desembargador, somente duas serão
mulheres. Assim, numa projeção para os próximos dez anos, esse quadro
não indica mudanças, permanecendo a maioria masculina, havendo, assim,
a indicação de uma grande demora para o emponderamento das mulheres
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 361
na Magistratura de Rondônia. Estudos que busquem esclarecer e pontuar
essa problemática seriam muito importantes e dariam maior visibilidade à
história das mulheres de Rondônia. Questões como acesso às universidades,
origens e economia podem ser a causa dessa característica.
No que tange ao quadro de funcionários, normalmente, se comemora
no Judiciário a grande presença feminina. As planilhas funcionais apresentam
um quadro cujos números remetem a uma grande vantagem das mulheres.
São 2.368 funcionários, sendo que 1.315 são mulheres,4 portanto o número
total de homens é 1.053. Estatisticamente, tem-se, então, uma maioria
feminina. Porém, desse número de mulheres, 155 são servidoras
comissionadas, o que significa que não prestaram concurso para exercer
funções na instituição; mesmo assim, a diferença é de 268 mulheres. Dos
55 cargos de DAS-5 – a maior gratificação funcional na instituição –, 32
são ocupados por mulheres. Contudo, desse número, 19 são assessoras de
desembargadores, incluindo-se, nesse grupo, a função de chefe de gabinete,
que, apesar do salário equiparado, cumpre o papel de secretária especial,
não havendo nessa função o exercício de poder de forma efetiva.
Em comparação aos homens, que somam 23, apenas nove exercem a
função de assessor. Excetuando os assessores e assessoras de desembargadores,
o número de cargos com a gratificação referida torna-se, no fim, de igual
para igual. Treze homens e 13 mulheres ocupam funções cuja remuneração
é idêntica. Nos últimos oito anos, no entanto, o secretário administrativo
e o diretor de DRH são funções ocupadas por homens. Essas duas funções
podem ser consideradas como mais relevantes dentro da estrutura
institucional, por representarem lugar de comando e não de organização.
Isso reflete o que vem sendo pontuado pelas teorias dos estudiosos de
gênero. Conforme Joan Scott, “a suposta falta de racionalidade das mulheres
tem sido historicamente não só uma justificação para negar-lhes a educação
ou a cidadania, mas também tem servido para apresentar a razão como uma
função de masculinidade”.5
Nesse sentido, podemos perceber que as funções que exigem
racionalidade, força e comando são, preferencialmente, ocupadas por homens.
No entanto, funções que requerem maior organização, atendimento especial,
obediência e servilidade são ocupadas por mulheres, legitimando um
pensamento historicamente cristalizado dos papéis sociais de homens e
mulheres.6
Logo abaixo, na escala funcional, encontramos um número significativo
de mulheres exercendo função gratificada com DAS-4. São seis mulheres
362
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012
para três homens. Nesse patamar, encontram-se as coordenadoras de
departamento, função que requer capacidade para organizar e atender. Abaixo
disso, as funções são ocupadas de acordo com a disponibilidade de
funcionários. Assim, vamos encontrar os cargos de DAS-3, 2 e 1 e
gratificações classificadas de FG de 1 a 5, ocupadas por homens e mulheres
em números proporcionais aos funcionários, de acordo com a disponibilidade
e aptidão para a função. Como a instituição requer, nos seus departamentos,
secretarias, setores e comarcas, organização, obediência prestatividade e
docilidade, as mulheres se acomodam melhor às condições oferecidas.
Raramente as mulheres disputam posição ou buscam alternativas de
trabalhos e acabam se acomodando à função exercida. Entre os homens, é
mais comum a insatisfação e a busca de outras oportunidades de trabalho,
dentro ou fora da instituição. Não conformados com a atividade ou com o
salário, fazem concursos para outras instituições, são mais propensos a
aventuras, tornando-se menos domesticáveis e mais instáveis que as mulheres
na instituição, já que essas, normalmente, se acomodam, ou se resignam,
com o destino.
As mulheres têm logrado ocupar cargos dos mais diversos que vão de
escrivã a administradora, sendo as mesmas secretárias, auxiliares em geral,
sem contar com os serviços de copa, já associados ao feminino. Alguns
homens fazem parte do quadro nessas funções, em razão da necessidade de
contratação dos mesmos para serviços de limpeza nos grandes prédios da
instituição, por ser essa atividade considerada “pesada”.
Dessa forma, concluímos que, quando tratamos da questão funcional,
faz-se necessário levar em consideração que, sem dúvida, há uma maioria
feminina no quadro funcional, e que muitas mulheres ocupam funções ou
cargos relevantes na instituição. Contudo, ao analisarmos o lugar dessas
mulheres, na hierarquia de poder, percebemos que ainda exercem trabalhos
que caem na armadilha do discurso que eleva e engrandece, mas que, na
verdade, serve para excluir. No discurso da aparente igualdade, levando-se
em consideração os números, o que há de fato é uma “igualdade dentro da
diferença” que, conforme Simone de Beauvoir, serve para segregar e
discriminar.7 Nesse sentido, devemos lembrar que o Poder Judiciário é uma
instituição e, como tal, é uma rede de discurso apoiada no suporte da
distribuição institucional que exerce outros discursos8 que, na verdade, se
organiza de acordo com o observado por Foucault:
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 363
Se é verdade que sua organização piramidal lhe dá um “chefe”, é o
aparelho inteiro que produz “poder” e distribui os indivíduos nesse
campo permanente e contínuo. O que permite ao poder disciplinar
ser absolutamente discreto, pois está em toda parte e sempre alerta,
pois em princípio não deixa nenhuma parte às escuras e controla
continuamente os mesmos que estão encarregados de controlar; e
absolutamente “discreto”, pois funciona permanentemente e em
grande parte em silêncio.9
Outra importante fonte de análise, o acervo fotográfico nos apresenta
os eventos oficiais com indiscutível maioria masculina. Essas fotos referemse aos atos oficiais, públicos, em que a instituição se apresenta. Porém, em
atividades “extras”, como festas comemorativas, jantares e reuniões de
trabalho – o que poderíamos chamar de a grande massa de trabalhadores –
a presença da mulher é majoritária.
Por isso, a questão da comemoração dos números deve ser pensada de
forma mais articulada e mais política. O fato de existirem tantas mulheres
no quadro funcional é um grande avanço e uma grande conquista, mas elas
continuam ocupando cargos e funções subalternas e não cargos de poder.
Continuam a ser secretárias, lembradas no dia 8 de março pela graça e
beleza, conforme frase no cartão-convite distribuído às servidoras,10
reforçando o conceito de que a mulher, para exercer alguma função, precisa
ser bonita. Sabemos que não é esse o critério para ascensão ao quadro
funcional da instituição, que faz concurso e que tem, nesse quadro, por
aprovação, uma presença feminina relevante, porém concepções cristalizadas
continuam sendo reproduzidas.
Representações sobre o que é ser homem e o que é ser mulher continuam
sendo disseminadas impensadamente pelas próprias mulheres. Enquanto as
organizadoras de eventos designam mulheres para atividades de cozinha,
festinhas ou ainda onde mulheres-autoridades ou de autoridades em
ambientes formais e de poder recebem flores, significa que elas estão ali
como enfeites ou enfeitadas. Num mundo masculinizado, onde a produção
da linguagem se mantém do homem para o homem, a mulher continua
sendo a ajudante com um discurso cuja ordem é dada pelas estruturas de
poder que não é corporal, mas é físico, exercido de forma relacional como
uma máquina.11.
O Tribunal de Justiça é um espaço de trabalho e de poder, à mulher
cabe estar ali nessa condição, representando a igualdade. A sua condição
364
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012
sexual não pode significar tratamento diferenciado como o outro, como o
diferente. Por ser mais sensível e mais apta a alguns serviços como
organização, limpeza e alimentação – porque essas atribuições a remetem
ao lar e à maternidade – essas posições são utilizadas, historicamente, como
fator de diferença e de exclusão.
Fazem-se festas, apresentam-se relatórios e homenagens jornalísticas,
distribuem-se flores e bombons em razão do grande número de mulheres
no quadro funcional, no entanto, esse número levando em consideração os
cargos de poder ocupados por homens, às mulheres cabe, geralmente, cargos
auxiliares, normalmente aplaudidos e elogiados, mas que, de fato, mantêm
aquilo que está cristalizado como sendo o papel das mulheres.
Como massa trabalhadora, as mulheres são as grandes figuras de
sustentação de um poder que vem de cima para baixo e que, na verdade, as
oprime e as castra, num discurso embalado pela ideia de proteção, de prestígio
e reconhecimento. Isso não é consciente, é cultural, mas todos os dias são
realimentados com as representações de grandes trabalhadoras que
engrandecem e embelezam. O mundo masculino tem apresentado essas
mulheres e dado a elas um lugar na instituição. Um lugar que o mundo
construído do masculino para o masculino, entende-se como lugar e papel
feminino.12
Com relação ao quadro de servidoras, é inegável o fato de que diversas
mulheres ocupam cargos relevantes e bem-remunerados, no entanto, se
percebe, ainda, que, em sua maioria, os cargos nos remetam a funções
femininas. As mulheres, geralmente, ocupam funções onde se faz necessária
uma maior capacidade de organização, de delicadeza e atendimento. Poucas
mulheres, na instituição, romperam com esse paradigma. Há casos de
mulheres que ocuparam cargos relevantes e de poder, no entanto, como são
de confiança e remanejáveis, esses cargos são disponibilizados de acordo
com os interesses e/ou a simpatia.
É necessário que, nos espaços públicos e de poder, as mulheres não
sejam lembradas nem homenageadas pela graça e beleza, ou conforme outro
cartão distribuído também no dia 8 de março, homenageadas por serem
“Mãe, esposa e filha: símbolos de amor, compreensão e amizade”,13 frisadas
pela sensibilidade e fragilidade, cumprindo o papel de “verdadeiras
mulheres”,14 recebendo flores e bombons. Ser uma “verdadeira mulher” é
ser uma mulher que cumpre seu papel de beleza e sensibilidade femininas,
adjetivos que estão dissociados do mundo dos homens, ao que Simone de
Beauvoir chamou de “hiato na vida de mulher, diferenciando-a e a colocando
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 365
na condição do outro”.15 Ser colocada na condição do outro, do diferente,
não favorece as mulheres, ao contrário, as oprime e as exclui.
A mulher deve e precisa ser lembrada pela capacidade, pela ascensão
profissional e respeito que lhe empresta dignidade e que lhe coloca em pé
de igualdade como ser humano. Se para o homem, conforme Beauvoir,16
não há hiato para a vida pública e a vida privada, é preciso que a mulher
também tenha esse direito.
Sabemos ainda da histórica constituição da sociedade patriarcal, em
que as representações do feminino e do masculino são cristalizadas e
reproduzidas de forma inconsciente. As próprias mulheres, tanto na condição
de subalternas, como quando exercem alguma forma de poder, reproduzem
ideias e pensamentos que externam essa condição de subalternidade, quase
sempre embaladas no papel da beleza, da fragilidade e da importância como
ajudadoras. Ainda lembrando Scott,17 sabemos agora que “homens e
mulheres” não são simples descrições de pessoas biológicas, senão
representações que consolidam seus significados através de contrastes
interdependentes: forte/frágil, ativo/passiva, razão/emoção, publico/privado,
político/doméstico, mente/corpo.
Conforme Heleietth Saffioti,18 algumas mulheres conseguem fugir do
destino, mas é uma minoria. Casos individualizados e que não podem ser
tomados como expressão da categoria mulheres, que é extremamente
diversificada. A autora observa que algumas poucas mulheres chegam ao
empoderamento, exercendo cargos e funções de poder, mas servem apenas
como mulheres-álibi, para dizer às outras que se não chegaram lá foi por
falta de coragem, de responsabilidade e por não lutarem o suficiente. Assim,
excluem de culpa toda a hostilidade que a sociedade patriarcal lhes impõe,
amparadas nas relações de gênero, milenarmente construídas e que
estabelecem hierarquias entre seres socialmente desiguais.
Se a análise considerar apenas os números, é possível que tenhamos
um resultado distinto. Contudo, o entendimento da instituição, como
estrutura de poder, deve ser pensado de forma mais analítica e politizada.
Assim, nos parece que, apesar dos números merecidamente
comemorados, ainda terá que se esperar muito tempo para se rejubilar com
uma transformação e, realmente, com uma igualdade feminina no Poder
Judiciário de Rondônia.
366
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012
Notas
O Centro de Documentação Histórica
do Tribunal de Justiça do Estado de
Rondônia foi criado no ano de 1999 e
conta com importante documentação
datada a partir de 1912, relacionada às
práticas judiciárias na região.
1
A Estrada de Ferro Madeira Mamoré
foi construída em 1907. Conferir
Hardman (1988) e Ferreira (1969).
2
Documentos do acervo do Centro de
Documentação do Tribunal de Justiça de
Rondônia.
3
Dados fornecidos pelo Departamento
de Recursos Humanos em junho de
2008.
4
SCOTT, Joan. Reverberaciones
feministas. Mora – Revista del Instituto
Interdisciplinar de Estudios de Gênero.
Buenos Aires, n. 9/10, 2004.
5
BOURDIEU, Pierre. A dominação
masculina. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2005.
6
BEAUVOIR, Simone de. O segundo
sexo. São Paulo: Nova Fronteira, s.d.
7
FOUCAULT, Michel. A ordem do
discurso. São Paulo: Loyola, 1999.
8
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir.
Petrópolis: Vozes, 2001.
9
Ignorar a mulher é ignorar a graça e a
beleza. Frase do cartão-convite distribuído
às servidoras no dia 8 de março de 2007,
“Dia da Mulher”.
10
11
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir.
Petrópolis: Vozes, 2001.
BOURDIEU, Pierre. A dominação
masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2005.
12
Cartão distribuído às servidoras no dia
8 de março.
13
14
BEAUVOIR, Simone de. O segundo
sexo. São Paulo: Nova Fronteira, s/d.
15
Idem.
16
Idem.
SCOTT, Joan. Reverberaciones
feministas. Mora – Revista del Instituto
Interdisciplinario de Estudios de Gênero,
Buenos Aires, n. 9-10, 2004.
17
18
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero,
patriarcado, violência. São Paulo:
Fundação Perseu Abramo, 2004.
MÉTIS: história & cultura – MENEZES, Nilza – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012 367
Referências
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Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
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Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BOURDIEU, Pierre. A dominação
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2005.
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado,
violência. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2004.
FERREIRA, Hugo. Reminiscências da
MADMAMRLY e outras mais. Porto Velho,
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mundo contemporâneo. Rio de Janeiro:
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FOUCAULT, Michel. História da
sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir.
Petrópolis: Vozes, 2001.
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HARDMAN, Francisco Foot. Trem
fantasma: a modernidade na selva. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988.
368
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Mora – Revista del Instituto
Interdisciplinar de Estudios de Gênero.
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THERBORN, Göran. Sexo e poder. São
Paulo: Contexto, 2006.
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 359-368 , jan./jun. 2012
A quadrilha de falsários: imigrantes judeus nas
ações policiais e judiciais da era Vargas
A gang of forgers: Jewish immigrants in police
action and lawsuits in the age of Vargas
Cristine Fortes Lia*
Resumo: Ao longo da Era Vargas, uma
expressiva campanha contra os imigrantes
foi organizada em todo o Brasil. O Estado
do Rio Grande do Sul mereceu atenção
especial por sediar muitas das
comunidades etnicamente distintas
existentes no País. Dentre os imigrantes
apontados como minorias étnicas não
integradas à Nação brasileira, no estado
gaúcho, estavam os judeus, considerados
os mais inassimiláveis dentre os
inassimiláveis. Esses indivíduos passaram
a ganhar um amplo espaço na imprensa
escrita local, em especial, como tema de
artigos que condenavam a presença judaica
em terras brasileiras. Outro aspecto que
passou a ser abordado pela referida
imprensa foi o envolvimento dos
imigrantes judeus em atos criminosos, que
variavam de badernas nas ruas das cidades
gaúchas à formação de quadrilhas
internacionais. Essas ações criminosas
atingiam a opinião pública, que passava a
ver um determinado grupo cultural como
potencialmente perigoso e naturalmente
Abstract: Throughout the time Getúlio
Vargas was ahead the Brazilian
government, a significant campaign against
immigrants was organized all over the
country and especially in the State of Rio
Grande do Sul, which was hosting many
distinct ethnic communities. Among the
immigrants identified as ethnic minorities
unintegrated to the Brazilian Nation, in
State of Rio Grande do Sul the Jews were
considered the most unassimilable. These
individuals began to have more space in
local press as the main subject of articles
clearly against the Jewish presence in
Brazilian lands. Another aspect that has
became spoken by that media was the
participation of Jewish immigrants in
criminal acts, ranging from huge messes
on the streets of the state cities to
formation of international gangs. These
criminal actions have influenced the public
opinion that started to see a particular
cultural group as potentially dangerous
and naturally intended crime. The case of
the forgers gang involving Jewish
Doutora em História pela PUCRS. Docente na Universidade de Caxias do Sul (UCS).
E-mail: cflia@ucs.br
*
MÉTIS: história & cultura – LIA, Cristine Fortes – v. 11, n. 21, p. 369-379
369
destinado à criminalidade. O caso da
quadrilha de falsários, envolvendo
imigrantes judeus, corresponde a um
desses interessantes casos, nos quais um
determinado grupo étnico era
responsabilizado por ações criminosas de
âmbito internacional. A análise do caso dos
falsários judeus, objeto deste estudo,
através das notícias divulgadas na imprensa
da época, das ocorrências policiais e dos
processos judiciais conduzidos para os
mesmos, permite ampliar a compreensão
sobre a percepção de criminosos que recaiu
sobre alguns imigrantes, bem como
possibilita identificar o tratamento
recebido pela comunidade judaica nas
ações judiciais.
immigrants corresponds to one of these
interesting cases in which a certain ethnic
group was responsible for criminal actions
from international scope. The analysis of
the forgers Jews case is the object of this
study, through the news published in the
press at that time, the police reports and
court proceedings conducted. It provides
a wider understanding on the perception
of criminals over some immigrants. As
well, it allows to identify the treatment
received by the Jewish community in the
lawsuits.
Palavras-chave: judeus; processos;
imigração.
Keywords: jews; lawsuits; immigration.
Durante a Era Vargas, em especial nos anos do Estado Novo, foi movida
uma intensa campanha contra comportamentos culturalmente distintos no
Brasil. Entre os objetivos do período estava o de consolidar o perfil de
brasileiro ideal, que deveria ser branco, católico, de ascendência lusa e bom
trabalhador. Para alcançar o considerado modelo perfeito de nacionalidade,
era necessário nacionalizar toda a população que residia no Brasil. Assim,
além de investimentos na educação cívica dos brasileiros, foi direcionada
uma atenção especial às comunidades imigrantes, que deveriam romper
totalmente com sua cultura de origem e abrasileirar-se o mais rápido possível.
Alguns grupos de imigrantes foram considerados mais aptos a
incorporarem a verdadeira nacionalidade, outros foram apontados como
incapazes de ser nacionalizados, sendo identificados como indesejáveis ou
inassimiláveis. As razões que justificavam os indivíduos a serem classificados
como tais variavam de motivação, podendo ser em função do idioma falado,
da religião professada, da atividade econômica realizada, entre outros fatores.
Os imigrantes judeus nunca foram verdadeiramente desejados em terras
brasileiras. Sempre foram vistos sob suspeita por não serem cristãos, não
trabalharem na agricultura (e por isso não constituírem o perfil de colonos)
e carregarem em si toda a carga de preconceitos que o pensamento antissemita
elaborou por séculos. A partir dos anos 30 (séc. XX), esses estereótipos
370
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 369-379 , jan./jun. 2012
ganharam maior visibilidade, uma vez que os judeus estavam entre aqueles
que foram considerados inassimiláveis à cultura brasileira. O fato de não
serem católicos nem objetivarem a conversão, acarretou duras críticas à
comunidade. Como não trabalhavam com agricultura foram rotulados de
usurários.
Dessa forma, a comunidade judaica passou a ser vista como perigosa,
pois era incapaz de ser inserida na verdadeira brasilidade e, ainda, tinha
potencial para desvirtuar o valoroso povo brasileiro. Também era necessário
evitar a entrada de novos imigrantes, pois o aumento da periculosidade do
grupo era temido. Assim, uma expressiva campanha antijudaica surgiu em
vários estados brasileiros. No Rio Grande do Sul, essas manifestações contra
os judeus foram representativas por ser o estado que os recebeu em processo
imigratório na primeira década do século XX. Esse fluxo de imigrantes
entrou no Sul do Brasil por acordos realizados entre autoridades brasileiras
e a Iídiche Colonization Association I(CA), companhia colonizadora
responsável por trazer judeus para a América.
O período, no qual a campanha antijudaica ganhou expressão,
correspondeu ao momento de maior necessidade de ampliar as cotas para
imigrantes vindos da Europa em guerra. Assim, as manifestações contra
esses indivíduos focaram, em grande parte, as tentativas de impedir a entrada
de novos imigrantes. Contemplando essa motivação, os judeus passaram a
ser acusados de formarem quadrilhas internacionais, com o objetivo de
abrasileirar pessoas e inseri-las, de forma ilegal, em solo brasileiro. Inúmeros
processos foram movidos contra o grupo, sob a constante acusação de
traição dos ideais da nação.
Em 17 de maio de 1940, o jornal Correio do Povo, da cidade de Porto
Alegre, publicou no seu “Noticiário” uma reportagem, que ocupava uma
página inteira, sobre uma terrível quadrilha de falsários, que agia em diversos
países e que estava iniciando suas atividades em território brasileiro. Essa
quadrilha era liderada por indivíduos de origem judaica, cujos nomes e
fotos foram todos registrados na reportagem.
Na foto abaixo, que ilustrava a notícia do periódico Correio do Povo
sobre a “quadrilha”, temos, fileira da esquerda para a direita, o rosto de
Demetrio Giacomazzi, Ary Kulmann, Osmar Sacarparo e Panfilio Chiapini,
Max Rohrsetzer, Angelo Postal e Victoriano da Costa Filho, todos acusados
de estarem envolvidos nas atividades ilegais do grupo de criminosos.
MÉTIS: história & cultura – LIA, Cristine Fortes – v. 11, n. 21, p. 369-379
371
Fonte: Jornal Correio do Povo, 17 maio 1940, p. 2.
Entre os diversos delitos do grupo de criminosos estava o de facilitar a
entrada de elementos indesejáveis no Brasil, o que foi considerado como a
pior das ações praticadas pelo grupo. Além de ressaltar várias vezes nomes
como os de Ary Kulmann e Max Rohrsetzer, os indesejáveis introduzidos
pela quadrilha acabavam se lançando ao crime quando chegavam ao estado
(isso quando já não eram criminosos em seu país de origem).
As autoridades policiais de Porto Alegre, após alguns dias de
movimentadas diligências, conseguiram desmascarar completamente
todos os elementos que formavam uma organização de falsários, com
sede em Buenos Aires e ramificações na capital do Uruguai e no Rio
Grande do Sul. Nos moldes da quadrilha que foi descoberta, há bem
pouco tempo, pela polícia local, e desenvolvia sua atividade criminosa
introduzindo clandestinamente indesejáveis em nosso território, a
que acaba de ser agora desmascarada, também agia com elementos
nacionais que, para isso, eram recompensados com lucros mais ou menos
apreciáveis. (CORREIO DO POVO, 17 maio 1940, p. 2).
Essa tendência à criminalidade que o artigo do periódico reforçava
insistentemente contribuía para reafirmar a posição do judeu como imigrante
indesejável e como elemento que precisava ser cuidadosamente vigiado
dentro do território nacional. A ideia de quadrilhas que objetivavam a
entrada ilegal de imigrantes judeus, considerados potencialmente perigosos,
foi constantemente explorada pela imprensa.
Em maio de 1939, o jornal Diário de Notícias, da cidade de Porto
Alegre, iniciou uma série de reportagens a respeito da agência “A fortuna”,
372
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 369-379 , jan./jun. 2012
organização criminosa que agia na América do Sul e era representada no
Brasil pelo judeu russo Gedal Katz. “A fortuna” seria em uma rede com sede
em diversos lugares do mundo, cujo objetivo principal, além de outros
pequenos delitos, consistia em promover a entrada de elementos indesejáveis
em vários países.
No Rio Grande do Sul, as sedes localizavam-se em Bagé e Rio Grande,
sendo a primeira dirigida por Jaime Rubim (que, segundo o periódico, era
clandestino no Brasil por ter sido expulso 20 anos antes) e a segunda por
Luiz Rosembaum, além de outros agentes. O plano da organização centravase, além de no enriquecimento de seus representantes, em possibilitar a
entrada ilegal de 4 mil judeus no Rio Grande do Sul. Novamente
evidenciamos a forma como era traçado o perfil do imigrante judeu, que,
muitas vezes, foi apontado como usurpador da má-sorte de seus patrícios,
pois, desprovido de solidariedade, cobrava altas quantias para facilitar a
imigração de indivíduos de origem judaica.
Noticiamos vários detalhes da trama urdida com grande astúcia
chegando a envolver em suas malhas inúmeros policiais
inescrupolosos, que se deixaram facilmente tentar pela promessa
de lucros fáceis, causando sérios prejuízos ao país, pois, por seu
intermédio devem ter entrado no Brasil, algumas centenas de
elementos indesejáveis, cafteus, prostitutas, arrombadores, ladrões,
etc...[...] Gedal Katz, pretendia agir em Livramento, tendo
procurado estabelecer ligações com inspetores da delegacia de
policia daquela cidade fronteiriça, a fim de que lhes fosse facilitada
a entrada de estrangeiros, pagando dois contos por cabeça. O
inspetor Braulio da Fonseca da seção de estrangeiros, tendo
percebido uma proposta do russo Gedal levou o fato ao delegado
de polícia de Livramento, que imediatamente tomou as
providências necessárias. Gedal dissera-lhe que existiam no
Uruguai 4000 judeus que pretendiam entrar clandestinamente
no Brasil, acrescentando que cada um lhe pagaria a importância
de dois contos, fazendo com que ele enriquecesse imediatamente.
(DIÁRIO DE NOTÍCIAS, 5 maio 1939, p. 6).
As notícias sobre “A fortuna” também circularam através dos periódicos
do interior do estado, provocando intenso alarde em torno da perversa
organização judaica. Em 5 de maio de 1939, o jornal Diário Popular, da
cidade de Pelotas, noticiava, na p. 8, os inúmeros estrangeiros indesejáveis,
MÉTIS: história & cultura – LIA, Cristine Fortes – v. 11, n. 21, p. 369-379
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obviamente judeus, que estavam munidos de passaportes falsos para
ingressarem no território brasileiro. Além dos nomes já citados no Diário
de Notícias, o periódico pelotense destacava os nomes de Paulo Grass e sua
esposa, secretária da organização, e de Paul Rotschild, todos empenhados em
garantir a maior quantidade de dinheiro possível pelos documentos falsos.
Interessante é observar que, apesar de os integrantes da quadrilha fazerem
referências à participação de autoridades policiais no processo de entrada
clandestina no Brasil, nunca foi mencionado o nome de nenhum policial
brasileiro, nem mesmo a imprensa demonstrou surpresa ou indignação
com esse fato, que possivelmente nem tenha sido apurado.
Outro tipo de quadrilhas frequentemente apontada como composta
por imigrantes judeus, no Rio Grande do Sul, eram as de exploradores de
mulheres. Tanto os agenciadores, como as mulheres dedicadas ao meretrício
eram constantemente apontados, pela imprensa, como membros da
comunidade judaica. No entanto, o enfoque dado entre a relação de
prostituição e a exploração de mulheres com a comunidade judaica, através
da imprensa, foi bem mais intenso nos Estados do Rio de Janeiro e São
Paulo, do que no Rio Grande do Sul.
Em 19 de fevereiro de 1940, o periódico A Opinião Pública, da cidade
de Pelotas, promoveu imenso alarme sobre a presença de um caften na
Região Sul do estado. O jornal enfatiza o fato de que, desde 1930, Leon
Kleiman já realizava atividades de exploração de mulheres na cidade de São
Paulo, na qual havia sido preso e tido sua expulsão do País decretada em
março de 1934, quando Kleiman havia conseguido fugir da cadeia da referida
cidade.
Foragido da cadeia e com a ordem de expulsão decretada, Leon Kleiman
refugiou-se no Sul do Brasil, onde começou a trabalhar em um pequeno
comércio de joias, retornando, em pouco tempo, para suas atividades de
explorador de mulheres. Até 1940 seu destino havia permanecido ignorado
para a polícia, até ser identificado no Rio Grande do Sul, o que lhe acarretou
uma nova detenção e sua transferência para a cidade de São Paulo, na qual
as autoridades policiais iriam se encarregar de realizar sua expulsão.
O Dr. Renato Costa, delegado de capturas, recebeu, há dias,
comunicação que Leon Kleiman encontrava-se na cidade de Pelotas,
estabelecido à rua 7 de setembro, 335, com uma casa de jóias.
Adiantava ainda a mesma comunicação que esse indivíduo que, aqui
residia, aproximadamente a uns quatro anos, explorava uma mulher
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 369-379 , jan./jun. 2012
de nome Olga Schneider, residente em Rio Grande, à rua Paissandu,
nº 218. Essa mulher semanalmente, isto é, todas as segundas-feiras,
vinha de trem a Pelotas, onde entregava seu dinheiro a Kleiman. Por
sua vez, explora também, mais seis companheiras, em cuja companhia
reside, entregando o dinheiro para o caften (A OPINIÃO PÚBLICA,
19/ fev. 1940, p. 4).
No jornal Correio do Povo, de 17 de abril de 1940, foi publicada mais
uma matéria que relacionava os imigrantes judeus a atividades ilegais, com
o título: “Uma verdadeira fábrica de brasileiros”, acusava funcionários da
Jewish Colonization Association (JCA ou ICA) de entrarem no Brasil como
sendo turistas e depois se registrarem como brasileiros natos, bem como
estariam facilitando a entrada de judeus clandestinos, que posteriormente
também iriam se registrar como brasileiros.
O periódico ressaltava a inocência da JCA, que estaria sendo vítima da
má-fé de alguns de seus funcionários. “Nada há contra a ‘Jewish Colonization
Association’, organização que procura incentivar o gosto pela agricultura
entre os imigrantes, que tem apenas a finalidade de colonizar. Entretanto a
culpa recai sobre vários funcionários da mesma, que desrespeitaram as nossas
leis.” (CORREIO DO POVO, 17 abr. 1940, p. 5).
O artigo ressaltava novamente a importância de terem perfil de agricultor
e que os imigrantes seriam bem-vindos, característica essa que correspondia a
uma minoria da população judaica. Principalmente no ano de 1940, momento
no qual as necessidades imigratórias eram marcadas pela urgência, em função
das intensas perseguições na Europa, o que tornava ainda mais inviável a
possibilidade do imigrante judeu agricultor aqui se instalar.
A maioria dos registrados estrangeiros como nascidos no Brasil são
russos – judeus russos – O Dr. Muniz Reis detalha tudo com a intenção
de dar às altas autoridades policiais uma visão exata dos fatos
ocorridos. Assim registramos o seguinte: Em 04 de março do corrente
ano a Delegacia de Polícia de José Bonifacio, enviou em juízo a
investigação policial em que o russo Jacob Kippel, com a conivencia
do escrivão Eugenio Spanzerla e de Domingos Galeska, registrou como
nascido no Brasil os seus filhos Aarão, Mauricio e Brunilde; no dia
seguinte aconteceu o mesmo com Leonardo Golberg, que se registrou
como brasileiro, no dia 14 de março, as russas Helena e Gara, filhas
de Leonardo Golberg, também foram denunciadas a justiça.
(CORREIO DO POVO, 17 abr. 1940, p. 5).
MÉTIS: história & cultura – LIA, Cristine Fortes – v. 11, n. 21, p. 369-379
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Além de registrarem a si próprios e aos seus filhos como cidadãos
brasileiros, os judeus russos citados no periódico também costumavam
casar várias vezes, com o intuito de abrasileirarem muitas mulheres. Foi o
caso de Emil Bruxbaum, alto funcionário da ICA, que se casou duas vezes,
em cidades diferentes, no Brasil com Alvine Auguste Prahman, tendo ambos
se registrado como brasileiros natos. Nesse caso, a má-fé dos judeus não se
evidenciava através da tentativa de enriquecer em função do destino dos
indivíduos da mesma etnia, mas pela forma corrupta que desempenhavam
suas atividades no Brasil, gerando, inclusive, uma forte desconfiança sobre
a ICA.
Aliás, em alguns periódicos, a desconfiança lançada sobre a ICA
transformava-se em certeza de má-fé. É o caso do jornal Diário da Manhã,
de Passo Fundo, que, apesar de muitas vezes publicar extensas matérias
com elogios à ação da ICA naquela região, não poupou a organização judaica
das mais duras críticas no episódio dos estrangeiros ilegais. Em 5 de abril
de 1940, antecipando-se ao periódico da capital, o Correio do Povo, o Diário
da Manhã publicou exaustivo texto, considerando a ICA como “uma das
portas de entrada clandestina de estrangeiros no Brasil”. (DIÁRIO DA MANHÃ,
5 abr. 1940, p. 4).
Segundo o mesmo, a organização e não apenas alguns funcionários
como propunha o Correio do Povo, burlava as leis brasileiras, introduzindo
judeus como turistas e depois os registrando como brasileiros natos, que,
como tais, tratavam de, imediatamente, contrair núpcias, em maior número
possível, seguindo a já citada fórmula de abrasileiramento de várias mulheres.
Todas essas notícias sobre a formação de grupos criminosos entre os
imigrantes judeus não se limitaram em construir uma imagem negativa
sobre eles. A ideia sobre quadrilhas rendeu múltiplos processos para esses
indivíduos. Coube à ICA a tarefa de neutralizar essa campanha. As
publicações dessas notícias mobilizaram os funcionários da ICA, como
evidencia a documentação da associação, arquivada e disponível no Arquivo
Histórico Judaico Brasileiro, na cidade de São Paulo.
Na documentação da ICA desse período, encontram-se cópias das
páginas dos jornais, como do Correio do Povo e do Diário de Notícias, que
noticiaram o escândalo de corrupção da companhia colonizadora, o que
demonstra o interesse da referida associação em ter conhecimento sobre o
que se dizia sobre ela e os imigrantes judeus. Através dos periódicos gaúchos,
em especial o Diário da Manhã, de Passo Fundo, a companhia colonizadora
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 369-379 , jan./jun. 2012
buscou desconstruir a ideia de funcionários corruptos e associação criminosa
que estava sendo veiculada.
Da mesma forma, a companhia colonizadora se empenhou em prestar
auxílio jurídico aos imigrantes judeus. Muitos eram recolhidos à Casa de
Correção de Porto Alegre, onde ficavam aguardando os advogados da ICA,
pois, na ausência desses poderiam ser deportados ou expulsos do País. A
documentação da companhia evidenciava essa preocupação com os membros
da comunidade judaica, todo o cuidado em prestar a assistência necessária
para evitar prisões e deportações.
A própria companhia precisou recuperar sua imagem perante a Justiça
e a sociedade, pois foi acusada de ser a mentora de muitas das quadrilhas
que burlavam as leis imigratórias do Brasil. Depois de provar sua inocência,
pediu a retratação dos periódicos que caluniaram a instituição, o que, no
entanto, raramente aconteceu. Mas, com relação aos imigrantes acusados, a
ICA conseguiu, na maioria das vezes, provar a falsidade da acusação que
recaía sobre os mesmos e evitar maiores danos a tais pessoas.
Os advogados eram contratados pela companhia e se mobilizavam de
forma intensa na busca da documentação que isentava os réus das acusações.
A importância desses defensores não se limitava ao fato de sua ação
profissional nos acusados, mas também ao apoio que prestavam aos mesmos,
trazendo notícias da família e esclarecendo que a ICA não desistiria de
provar a falta de veracidade dos processos.
Além disso, alguns acusados eram imigrantes recém-chegados ao Brasil
e não possuíam domínio da Língua Portuguesa, o que dificultava o contato
com indivíduos que não falassem seu idioma de origem. Os advogados da
companhia falavam a língua dos réus, o que facilitava a defesa. Muitos dos
imigrantes recolhidos à Casa de Correção de Porto Alegre tiveram seus
processos comprometidos por ausência de comunicação com seus defensores,
em função do idioma. Alguns imigrantes, em especial os alemães, chegaram
a ser recolhidos ao Manicômio Judiciário por serem considerados insanos,
em função de não se expressarem em Português. As tentativas desesperadas
de se fazerem entender em outra língua foram interpretadas, na época,
como insanidade.
Outra preocupação constante da ICA era a questão dos danos morais
contra a comunidade judaica. Em um período, o da Segunda Guerra
Mundial, no qual as organizações judaicas visavam a alargar as cotas para
avinda de novos imigrantes ao Brasil, era necessário esclarecer rapidamente
MÉTIS: história & cultura – LIA, Cristine Fortes – v. 11, n. 21, p. 369-379
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a população de que as acusações de grupos criminosos judaicos eram
equivocadas. O que conferia grande agilidade nas ações da companhia
colonizadora.
Assim, os processos movidos contra as quadrilhas, enquadrados como
crimes graves (já que eram ações contra a verdadeira brasilidade, ou seja,
eram delitos contra a Nação), foram cautelosamente cuidados pela ICA,
que se empenhou na defesa dos imigrantes judeus. Na maior parte das
vezes, a companhia e seus protegidos saíram vitoriosos, já que os processos
careciam de provas, e as investigações sobre documentos falsificados (acusação
comum contra os judeus) raramente procediam.
No entanto, não é possível minimizar os impactos dessas acusações de
quadrilhas e de outros crimes dentro da comunidade. O medo das ações
policiais e judiciais rondou os imigrantes judeus ao longo do período da
Era Vargas. Por serem crimes contra a Nação brasileira esses processos eram,
na grande maioria, enviados ao Departamento de Ordem Política e Social
(DEOPS), onde ficaram arquivados.
Em função de uma série de fatores, como vários incêndios, uma parte
significativa dos arquivos do DEOPS da época foi perdida; entre eles,
alguns da comunidade judaica do Rio Grande do Sul. Mas o Arquivo
Histórico Judaico Brasileiro de São Paulo conserva a documentação da
Companhia Colonizadora (ICA), no qual muitas informações sobre as
quadrilhas e seus processos estão preservadas e disponíveis. Esse diálogo
com a documentação do Judiciário permite estudos importantes sobre as
comunidades imigrantes, durante a Era Vargas, e sua relação com as ações
policiais e judiciais da época.
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Referências
Documentos utilizados
Periódicos consultados:
Documentação da Secretaria de Segurança
Pública e da Casa de Correção de Porto
Alegre: Matrícula dos presos recolhidos à
Casa de Correção (de 1935 a 1939); Livro
dos Sentenciados (de 1937 a 1939);
Registro de condenados (de 1926 a 1948);
Ofícios recebidos da Brigada Militar e do
Exército (de 1939 a 1946); Registro de
tratamento médico (de 1941 a 1945) –
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
A Opinião Pública, Pelotas, de 1930 a
1945.
Correio do Povo, Porto Alegre, de 1935 a
1945.
Diário da Manhã, Passo Fundo, de 1937 a
1945.
Diário de Notícias, Porto Alegre, de 1935 a
1945.
Diário Popular, Pelotas, de 1930 a 1945.
Documentação do DOPS. Pastas: Colônia
Penal Agrícola (1942); Chefatura de Polícia
e Repartição Central de Polícia de Porto
Alegre (1939); Secretaria do Interior
(1942); Relação de presos de nacionalidade
alemã (1942); Documentação relativa ao
DOPS e a elementos estrangeiros (1942)
– Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
Documentação da ICA (de 1938 a 1946)
– Arquivo Histórico Judaico Brasileiro de
São Paulo.
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A força do comércio na expansão
urbana da zona colonial italiana
The power of trade in urban expansion
in the Italian Colonial Zone
Vania B. M. Herédia*
Resumo: A história do comércio na Região
Colonial Italiana (RCI) no Nordeste do Rio
Grande do Sul reflete os interesses das
classes econômicas na ocupação do solo
urbano e aponta para os conflitos existentes
na história urbana da cidade. A organização
do comércio em torno de uma forte
associação de comerciantes assegurou a
representação de seus interesses no Poder
Público para a ocupação do espaço e
construção da cidade. Os comerciantes
aproveitaram as situações que lhe foram
favoráveis, impulsionando o crescimento
urbano, estimulando os colonos a
produzirem em maior escala, não apenas
produtos agrícolas, mas também artesanais,
tendo em muitos processos a origem de
indústrias. Investiram seu lucro em capital
imobiliário e, dessa forma, foram agentes
de mudança. A influência do comerciante,
aliada ao seu espírito empreendedor, fez
com que conseguissem regulamentar o
comércio e propiciassem às colônias um
crescimento econômico, melhorando a
infraestrutura urbana, participando das
Abstract: The history of trade in the Italian
Colonial Region in the Northeast of the
State of Rio Grande do Sul reflects the
interests of economic classes in the
occupation of the urban ground, and
points out the conflicts existing in the city’s
urban history. Organizing trade around a
strong association of traders assured the
representation of their interests in the
public sector to occupy space and build
the town. Traders took advantage of
favorable situations, driving urban growth,
stimulating settlers to produce on a larger
scale not only produce but also handicraft,
being many processes the very origin of
industries later. They invested their profit
in real estate capital and, this way, were
agents of change. The influence of the
trader allied with his/her entrepreneurial
spirit enabled the regulations of trade and
colonies to grow economically, improving
urban infrastructure, participating in the
decisions to expand the town and,
consequently, interfering in collective lives.
The economic history of Caxias do Sul
Doutora em História pela Università degli Studi di Genova, Verona (Itália). Professora
Titular no Centro de Ciências Humanas da Universidade de Caxias do Sul (UCS).
E-mail: vheredia@terra.com.br
*
MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397
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decisões de expansão das cidades e,
consequentemente, interferindo na vida
coletiva das mesmas. A história econômica
de Caxias do Sul comprova que a
Associação dos Comerciantes acompanhou
de perto tudo que dizia respeito às questões
referentes à infraestrutura e ao
desenvolvimento econômico da cidade.
Desde a criação da associação ocorreu um
movimento de organização do setor
empresarial, sob a liderança dos
comerciantes, com o intuito de formar
uma representação de classe para mediar
as relações entre os comerciantes, os
industriais, o poder público e as
instituições congêneres existentes em
outros municípios.
proves that the Traders Association followed
closely everything respective to issues
referring to the town’s infrastructure and
economic development. Since the
beginning of the Association there was an
organization movement of the business
sector under the leadership of traders with
the purpose to build a class representation
to mediate the relationship among traders,
industry people, public sector, and
congenerous institutions existing in other
municipalities.
Palavras-chave: Região Colonial Italiana;
história econômica; imigração.
Keyswords: Italian Colonial Region;
economic history; immigration.
Este estudo faz parte do projeto “Da Lei de Terras ao êxodo rural: a
relação entre latifundiários, colonos, escravos e libertos na Serra Gaúcha
(1850- 1950)”, que tem como objetivo analisar as relações sociais existentes
na região da Serra Gaúcha, relacionando a ação dos comerciantes com o
desenvolvimento econômico, na perspectiva historiográfica regional, a fim
de avançar nos estudos realizados no Núcleo de Pesquisa “Imigração, Cultura
e Região”.
A história do comércio na zona colonial italiana, no Nordeste do Rio
Grande do Sul reflete os interesses das classes econômicas na ocupação do
solo urbano e aponta para os conflitos existentes na história urbana da
cidade. A organização do comércio, em torno de uma forte associação de
comerciantes, assegurou a representação de seus interesses no Poder Público
para a ocupação do espaço e a construção da cidade. Os comerciantes
aproveitaram as situações que lhe foram favoráveis, impulsionando o
crescimento urbano, estimulando os colonos a produzirem em maior escala,
não apenas produtos agrícolas, mas também artesanais, tendo, em muitos
processos, a origem de suas indústrias. Investiram seu lucro em capital
imobiliário e, dessa forma, foram agentes de mudança.
A influência do comerciante, aliada ao seu espírito empreendedor, fez
com que conseguissem regulamentar o comércio e propiciassem às colônias
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012
crescimento econômico, melhorando a infraestrutura urbana, participando
das decisões de expansão das cidades e, consequentemente, interferindo na
vida coletiva das mesmas.
A história econômica de Caxias do Sul comprova que a Associação
dos Comerciantes de Caxias do Sul acompanhou de perto tudo que dizia
respeito às questões referentes à infraestrutura e ao desenvolvimento
econômico da cidade. Desde a criação da associação, ocorreu um movimento
de organização do setor empresarial, sob a liderança dos comerciantes, com
o intuito de formar uma representação de classe para mediar as relações
entre os comerciantes, os industriais, o Poder Público e as instituições
congêneres existentes em outros municípios.
O estudo é de natureza descritiva e abrange o período que se estende
de 1930 a 1945. As fontes utilizadas foram os relatórios dos intendentes
municipais e as atas da Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul. O
estudo aponta à força dos comerciantes na construção da cidade e da
infraestrutura necessária para o desenvolvimento econômico da região.
Ações dos comerciantes em benefício da cidade
A crise mundial dos anos 30 do século passado, simbolizada pela queda
da Bolsa de Valores de Nova Iorque, trouxe muitas transformações
econômicas para o Brasil. O País teve a possibilidade de voltar suas atividades
produtivas para o mercado interno, adotando uma política econômica de
substituição das importações. O modelo vigente substituiu o agroexportador
e deu à economia brasileira condições propícias para o desenvolvimento
econômico. Com a ausência de investimentos estrangeiros, restritos pela
política nacional, os recursos nacionais se direcionaram para o mercado
interno.
O processo de “desenvolvimento para fora” foi substituído pelo
“desenvolvimento para dentro”, e a sociedade agrária tradicional começou a
se transformar numa sociedade urbano-industrial. De acordo com Ianni
(1991, p. 30), o Rio Grande do Sul, “tradicional estado de economia
periférica, fornecedor do mercado interno brasileiro, aparecia com um
sentido preciso, colaborando para a estruturação deste novo modo de
acumulação de capital”. Esse autor chama a atenção que a economia sulrio-grandense se caracterizava pelo setor agropecuário que fornecia produtos
a baixos custos.
MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397
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Diante das mudanças econômicas e políticas ocorridas no Brasil, a
Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul apoiou de forma irrestrita a
posição de Getúlio Vargas para chegar ao poder. Os associados sempre
tiveram uma relação amistosa com o governo do estado e, nesse momento,
reconheciam a importância de Vargas na Presidência da República.
A forma de governar, anunciada por Vargas, estava vinculada a um
novo “estilo político e de um modelo econômico baseado num capitalismo
nacional visando à substituição de importações”. (LOPEZ, 1987, p. 69).
Segundo Machado, o apoio a Vargas havia começado ainda quando era
presidente do Estado do Rio Grande do Sul em 1928. As relações que
foram estabelecidas entre os comerciantes e o governo estadual “foram
importantes para o desenvolvimento do município que, na ótica das classes
empresariais, precisava confirmar a sua trajetória na busca de mercado
nacional para os seus produtos”. (2001, p. 255).
As mudanças no modelo econômico durante o governo Vargas e a
política adotada, no sentido de dar maior apoio às indústrias consideradas
“naturais”, por beneficiarem a matéria-prima local, como vinho, banha,
conservas de frutas, óleos vegetais, produtos têxteis, farinha de trigo, entre
outros, foram vistas como positivas para os comerciantes da região. Muitos
dos produtos considerados naturais, produzidos por empresas locais,
passaram a ter estímulo à sua produção e comercialização.
Com isso, registrou-se o incremento das atividades comerciais e
industriais de Caxias do Sul, o que ultrapassou rapidamente a capacidade
produtiva instalada e, em consequência, surgiram problemas de energia
elétrica e de transporte, pela falta de usinas, estradas e comunicações. As
empresas de maior porte passaram a se ressentir dessas deficiências,
comprometendo a própria expansão do setor fabril.
Por outro lado, essa constatação provou que o Município de Caxias
do Sul havia crescido, e isso representava a capacidade industrial que os
empresários haviam instalado e o potencial que o município possuía. No
Censo de 1930, foi constatado o acelerado crescimento da cidade e a
diversificação que a mesma desenvolvia em sua economia, sendo que
dispunha de 190 estabelecimentos industriais e de uma produção industrial
orçada, naquela época, em R$ 5.496:792$500. Segundo dados oficiais da
Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, “a produção industrial cresceu rapidamente
em confronto com a produção agrícola”. (HERÉDIA, 1997, p. 71).
As deficiências na infraestrutura enfrentadas por algumas empresas do
município refletiram-se na oferta feita por municípios de outras regiões
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012
para que as mesmas se transferissem para lá. Esses convites têm duas
interpretações: a primeira, o crescimento econômico de Caxias do Sul e de
suas empresas, e o segundo, as dificuldades de infraestrutura existentes no
município, as quais eram de conhecimento dos empresários e que não
acompanhavam o crescimento econômico correspondente, seja pela questão
da energia, da telefonia, das estradas, seja pela questão dos impostos
municipais.
Essas deficiências na infraestrutura levaram as autoridades municipais
a tomarem providências a fim de minimizar as dificuldades evidenciadas.
O crescimento das atividades econômicas do município fez o intendente
Thomas Beltrão de Queiróz solicitar à Companhia Telefônica Rio-Grandense
melhorias nos serviços, para manter o contrato de exploração dos serviços
telefônicos que o município mantinha desde 1912. O contrato tinha a
duração de 30 anos e deveria vigorar até 1942. Diante das contínuas
reclamações, o intendente municipal Thomas Beltrão de Queiróz decidiu
solicitar à citada Companhia Telefônica a qualificação dos serviços. Essa
companhia respondeu que atenderia à solicitação desde que fosse autorizado
um aumento nas tarifas.
Ainda na gestão de Thomas Beltrão de Queiróz que antecedeu às
mudanças do modelo econômico brasileiro, o Município de Caxias do Sul
identificava a necessidade de dois grandes investimentos para seu crescimento
econômico: a ampliação da rede de transportes e o suprimento de energia.
Dessa maneira, para resolver o primeiro – que dependia da administração
do estado – o município sugeria melhoria nas condições do tráfego entre
Porto Alegre e Caxias do Sul, bem como a abertura do “escoadouro de
Torres, o sonho dourado dos habitantes de toda esta vasta e rica zona do
Estado”. (RELATÓRIO DO INTENDENTE THOMAS BELTRÃO DE QUEIRÓZ, 1929,
p. 16).
O projeto para a construção de uma estrada para Torres ocorreu na
reunião de diretoria da Associação dos Comerciantes, em 23 de agosto de
1931, quando a associação fundou a Associação das Estradas de Rodagem,
sendo coordenada e dirigida por Dario Granja Santanna. A construção
dessa estrada gerou muitos movimentos entre as classes empresariais para
sua concretização, movimentos que, em cada década, se configuraram de
forma própria, adequando-se às condições econômicas e políticas de cada
governo.
Quanto ao segundo, o suprimento de energia estava diretamente
vinculado aos poderes locais. Foi pensado o aproveitamento da queda do
MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397
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rio Lajeado Grande, no Município de São Francisco de Paula, considerado
como o manancial, que oferecia as condições mais apropriadas, para fornecer
ao Município de Caxias do Sul energia mais econômica, levando em conta
a distância, o vulto e o custo das obras a serem executadas.
Esse empreendimento também foi adiado pela falta de proponentes e
pelo fato de que o domínio das quedas e dos cursos-d’água intermunicipais
dependia da autorização do estado por serem dele pertencentes.
Algumas demandas, por muitas décadas, foram temas de discussão na
Associação dos Comerciantes, entre elas as normas de funcionamento do
comércio. Entretanto, na década de 30 do século XX, esse assunto retornou
à pauta, uma vez que a política econômica instalada restringia a jornada de
trabalho a oito horas diárias. (GOMES, 1979).
Esse tema foi motivo de união de alguns comerciantes, que acreditavam
na necessidade de uniformizar os horários de atendimento ao público. Apesar
de muitos comerciantes não seguirem as regras estabelecidas, a associação,
em 1933, resolveu definir um calendário de funcionamento do comércio
local:
De 1° de abril a 30 de setembro, as portas das casas comerciais
deviam fechar às 18h30min e aos sábados às 20h; de 1° de outubro
a 31 de março, o horário devia ser às 19h45min e aos sábados às
21h. Foi deliberado, também, sobre os dias santos e feriados em
que o comércio deveria fechar: Corpus Christi, Natal, Sexta-Feira
Santa, Dia de Finados, 1° de janeiro, 7 de Setembro, 15 de outubro
e 15 de novembro. O comércio devia fechar a partir do meio-dia
em: 6 de janeiro, 30 de outubro, 1° de novembro e 8 de dezembro
e mais em 25 de agosto, sempre que houvesse festejos
comemorativos ao Dia do Soldado. (A SSOCIAÇÃO DOS
COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1933, s.p.).
A Prefeitura Municipal de Caxias do Sul, na ocasião, apoiou a decisão
dos comerciantes, tendo sido nomeado um fiscal para controlar o horário
de abertura e fechamento das casas comerciais. (ASSOCIAÇÃO DOS
COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1933). As normas foram regulamentadas
pela Prefeitura, através da Lei 5, de 1933.
Outro tema de interesse, vinculado aos comerciantes, era a definição
do aumento da linha de crédito com os gerentes locais de bancos em
386
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012
funcionamento na região. A crise econômica instalada a partir de 1930
afetou o estado, e o Município de Caxias do Sul foi atingido por uma crise
financeira, causada pela falta de dinheiro nos bancos, deixando as empresas
em dificuldades para prosseguirem com suas atividades produtivas. A busca
de crédito nos bancos fez com que a associação reunisse os gerentes das
agências bancárias locais para, juntos, solucionarem o problema do crédito.
A reunião contou com os gerentes dos seguintes bancos: Banco da
Província do Rio Grande do Sul, Banco Pelotense, Banco Popular do Rio
Grande do Sul, Banco Nacional do Comércio, Banco do Rio Grande do
Sul e Banco Porto-Alegrense. “Muitos foram os comerciantes e industriais
que ficaram sem capital de giro e sem possibilidade de saldar seus débitos”
(GIRON; BERGAMASCHI, 2001, p. 140), levando-os à falência e à perda de
seus estabelecimentos.
Em 1931, o governo brasileiro estabeleceu três decretos que refletiram
mudanças no sindicalismo do País. Um deles, o Decreto 19.770, de 19 de
março daquele ano, levou as classes empresariais a se reunirem para discutir
formas de regularizar a sindicalização das classes patronais e operárias. Havia
a necessidade de criar uma Comissão Mista de Conciliação das Classes
Empresarial e Trabalhadora, destinada a fazer cumprir as disposições legais
do trabalho. (ASSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1933).
Esse decreto apresentava algumas restrições à atividade sindical, pois
expressava “a efetivação de objetivos políticos do governo, ou seja, a criação
de entidades que servissem de mediadoras entre empresários e trabalhadores,
assegurando a plena execução da política da paz social”, como explica Martins
(1979, p. 49).
A associação, no que diz respeito às novas condições de trabalho, se
posicionou diante das mudanças na legislação trabalhista. A jornada de oito
horas de trabalho, o fechamento do comércio, a lei de férias, a legislação
dos dois terços, a regulamentação do trabalho feminino e a criação das
carteiras profissionais foram exigências legais que deviam ser cumpridas, e
a associação precisava orientar seus associados. (O MOMENTO, 1934, p. 2).
Alguns anos mais tarde, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)
regulamentou de forma definitiva as exigências introduzidas naquele período.
Entretanto, a associação havia criado uma infraestrutura para orientar seus
associados e o fez por meio de seu serviço jurídico.
A associação foi presidida em 1931 por Dante Marcucci, Marcos
Fischer, Oscar Ludwig, Abramo Eberle, Alfredo Germani, Ângelo De Carli,
João Arhends e Segundo Mandelli.
MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397
387
Muitas ações importantes ocorreram em 1931, entre elas, a criação da
primeira Festa da Uva, que ocorreu no prédio do Edifício Operário, em
1931, sob a responsabilidade de Joaquim Pedro Lisboa e de um grupo de
empresários atentos à atividade econômica, baseada na produção da uva e
em sua industrialização. A uva era um produto importante para a região, e
divulgá-la passou a ser uma estratégia para ampliar o mercado, qualificar o
produto e abrir portas para a exportação. A ideia de se fazer a Festa da Uva
era, também, uma proposta de criar um espaço para apresentar ao mercado
os produtos feitos na região. A exposição de produtos trazia consigo um
aspecto que fazia parte das feiras, costume esse que os europeus tinham
para estabelecer trocas. (BRAUDEL, 1996, p. 14).
Essa festa provocou uma série de efeitos positivos para a economia
do município, uma vez que, além da exposição de seus produtos, reconhecia
a capacidade empreendedora de seus habitantes e o potencial de ampliar sua
economia. Na história da cidade, esse ritual ocorreu anualmente, até o fim
dos anos 30 do século XX, quando foi interrompido devido à situação
econômica e política mundial decorrente da Segunda Guerra Mundial.
O assunto referente ao vinho foi um tema que reapareceu em diversos
períodos da história da associação. Afinal, o vinho havia se transformado
no produto que caracterizava a economia da região, e os comerciantes não
desistiam de defendê-lo dos falsificadores e dos interessados em desqualificálo.
Diante dessa situação, a associação encaminhou pedido para criar um
entreposto de vinho que pudesse se equiparar ao de Porto Alegre, com
vistas a proteger os pequenos produtores e a enfrentar as questões derivadas
dessa condição. Essa solicitação das cooperativas sul-rio-grandenses de vinhos
representava os interesses de todas as cooperativas vinícolas da região.
Diante do crescimento econômico do município, a Associação dos
Comerciantes de Caxias do Sul, junto com associados e autoridades
municipais, começou uma campanha para a regularização do transporte
para que permitisse a expansão do comércio, conforme já citado. A
vinculação dos comerciantes à Viação Férrea e ao governo do estado passou
a ser pauta frequente da associação na gestão de Ottoni A. Z. Minghelli.
Esse empresário acreditava na possibilidade de conseguir trens noturnos
que fizessem o percurso “Caxias – Porto Alegre e garantisse o transporte de
passageiros para facilitar negócios, diminuir o tempo das viagens e também
propiciar a possibilidade de circulação de mercadorias”. (ASSOCIAÇÃO DOS
COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1934).1
388
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012
O interesse pela oferta regular de trens entre a cidade e a capital foi
tema de luta, que envolveu comerciantes, industriais e representantes do
Poder Público municipal. O transporte férreo era uma garantia do
escoamento da produção da zona colonial aos mercados.
A criação do Departamento Varejista-Molhadista foi um
acontecimento relevante à associação. Os comerciantes varejistas que
buscavam uma solução mais efetiva para o comércio, no centro da cidade,
resolveram fundar a Associação de Classe dos Pequenos Varejistas de Caxias
do Sul, com o objetivo de defender seus interesses. A criação dessa associação
estava sustentada na argumentação de que suas demandas seriam mais
rapidamente resolvidas se participassem de uma associação mais forte, com
toda infraestrutura montada.
Esses motivos levaram os pequenos comerciantes a se inscreverem nessa
associação, formando o mais novo grupo na entidade, tendo como
consequência o fortalecimento da mesma. Ficou claro, entretanto, que os
problemas dos varejistas seriam resolvidos na associação, por meio de estudos
realizados por uma comissão permanente.
Os comerciantes varejistas estavam preocupados com os maus pagadores,
com o comércio clandestino, os sindicatos e as cooperativas que
comercializavam, sem pagar impostos, entre outros assuntos. Diante de
preocupações sérias, decidiram organizar um registro, denominado “Livro
Negro”, no qual seriam anotados os nomes dos maus pagadores. Esse registro
serviria de referência para os associados, que teriam acesso a ele, caso houvesse
necessidade de oferta de crédito. A inclusão dos varejistas na associação
conduziu ao estabelecimento de regras quanto ao comércio varejista, o que
representou uma nova organização das regras de funcionamento do comércio
e das condições de crédito. A associação assumiu a causa de combater o
comércio clandestino, e foi formada uma comissão que defenderia os
interesses do comércio varejista.
Dessa maneira, foi criado o Departamento dos Varejistas-Molhadistas,
ligado à associação, e as vendas a crédito foram regulamentadas. Por meio
dessa regulamentação, foi discutida a possibilidade de os empresários
pagarem seus empregados quinzenalmente, o que permitiria quitar os
pagamentos sem prejudicar a categoria. Percebeu-se que havia problemas
comuns decorrentes do não pagamento das contas, o que prejudicava a
obtenção de novos créditos. A inadimplência sempre fora uma preocupação
do comércio, e as soluções coletivas poderiam ser soluções para tais
problemas.
MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397
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O regulamento do crédito previa que a sua abertura deveria ser solicitada
ao Departamento dos Varejistas após o preenchimento de formulário, em
que constassem o valor do crédito, o nome do requerente, a residência, a
profissão e a atividade, o prazo de duração das compras, a forma e época de
pagamento das compras e o nome do fiador. Previa, ainda, que a abertura
de crédito dependeria da não existência de dívidas anteriores. Estabelecia
que o crédito só seria concedido com a apresentação de fiador ou de garantias
correspondentes.
O regulamento chamava a atenção para o fato de que todos os
“associados deverão colar nas cadernetas um exemplar deste Regulamento
Geral de Vendas a Crédito”, a fim de demonstrar ao comprador as normas
de crédito estabelecidas.
Essa regulamentação foi uma demonstração da preocupação com o
crédito na cidade e também com a definição das regras para o funcionamento
do comércio varejista-molhadista. A discussão do crédito veio acompanhada
de discussão em nível nacional, acerca do salário-mínimo. Para tal, a diretoria
elegeu alguns empresários para participarem de comissão que representaria
as atividades econômicas caxienses perante o Ministério do Trabalho.
Ainda em junho de 1939, a cidade reclamou das condições dos estábulos
dentro do perímetro urbano. Era ação frequente dos moradores dos
municípios vizinhos (ou mesmo da zona rural) fazerem compras em Caxias
do Sul, e a cidade necessitava de um local para os estábulos. A associação
encampou essa luta com o delegado de Higiene, solicitando que, de maneira
definitiva, fosse dada uma solução ao problema. Isso reflete os meios de
transporte utilizados na época e as condições que os animais enfrentavam
para se recuperar dos percursos, bem como das condições de higiene
suportadas pelos moradores diante dessa condição.
O Sr. João Scopel pediu que fosse aprovada a indicação referente
à localização em pensões, dos animais de que se servem os colonos
para vir à cidade fazerem suas compras. A Higiene não permitia
que esses animais ficassem agrupados em lugar algum, nem mesmo
nos dias chuvosos. Seria conveniente, portanto, lembrar àquele
senhor se facilitasse nas pensões, a construção de abrigos, onde os
animais sejam conservados, enquanto seus proprietários andam na
cidade, tratando de seus afazeres. (ASSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES
DE C AXIAS DO SUL, 1939, p. 51).
390
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012
A associação solicitou às autoridades sanitárias um estudo para resolver
esse problema, pois perceberam as precárias condições que enfrentavam os
colonos e seus animais, utilizados como meio de transporte na vinda para a
cidade.
O tema de discussão em 1940 foi a construção da Usina de Lajeado
Grande, devido aos problemas que a cidade enfrentava quanto à energia
elétrica. Como Caxias do Sul deveria receber a visita do presidente da
República, Getúlio Vargas, a associação passou a se preocupar com assuntos
ligados às antigas reivindicações da cidade. Acreditava que a construção da
Usina de Lajeado Grande resolveria o problema energético; era necessário,
portanto, organizar as reivindicações para apresentar ao presidente da
República. (ASSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1940, p.
65).
Esse fato foi uma demonstração que os problemas do município, no
que diz respeito à infraestrutura necessária, não foram resolvidos, mas
delegados aos futuros governos.
A Associação dos Comerciantes e a Prefeitura Municipal de Caxias do
Sul homenagearam um dos responsáveis pela construção da Estrada Federal
BR-116, o engenheiro Iedo Fiuza, no Clube Juvenil, no dia 27 de outubro
daquele ano. A estrada, que ligava o município à capital do estado e ao
centro do País, foi considerada fator importante para o desenvolvimento
econômico do município. A estrada, inaugurada em meados de 1941, incluía
Caxias do Sul no Plano Rodoviário Nacional. O traçado original envolvia
vários municípios, passava por Nova Petrópolis, São Francisco de Paula,
São Joaquim, Lages, estando Caxias do Sul fora desse roteiro.
Essa alteração do traçado refletiu a força da Associação dos Comerciantes
e sua capacidade de articular, com as autoridades estaduais e federais, seu
potencial, suas demandas e suas possíveis realizações. Dante Marcucci 2
havia argumentado ao presidente da República sobre a importância da
referida estrada para esse centro industrial, uma vez que o mesmo sempre
contribuíra para o desenvolvimento do estado e do País. Essa iniciativa
havia começado ainda antes da definição do traçado.
Segundo relato de Ary Zatti Oliva (PARLAMENTO, 1988, p. 14), houve
grande “empenho de Dante Marcucci para que a estrada BR-2, hoje BR116, ligando Porto Alegre a Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, agora
estendida de Sul a Norte do país, passasse por Caxias do Sul”. Quando o
prefeito de Caxias do Sul soube que o projeto estava sendo providenciado
pelo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, entrou em contato
MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397
391
com o engenheiro Irineo Braga, para auxiliar, dando as informações
necessárias. Entretanto, o percurso de Canoas até Nova Petrópolis estava
estabelecido, mas ainda faltavam outras definições.
A BR-2 deveria corrigir seu rumo, abandonando os contrafortes
da Serra Geral, evitando seus vales e gargantas. [...] O novo traçado
propunha que a BR-2 prosseguisse de Nova Petrópolis, fletindo a
Leste, pelo divisor de águas, até alcançar os campos de São
Francisco de Paula e daí, rumo norte, transpor o Rio Pelotas,
demandando os campos de São Joaquim e de Lages, Santa Catarina.
(OLIVA, 1988, p. 14).
Esse episódio mostra a força e a garra dos políticos que administravam
a cidade. Apesar de tantos motivos plausíveis contra o traçado que incluía a
cidade de Caxias do Sul no projeto, o mesmo foi aprovado. Não venceu
apenas a força política que superou a lógica de um traçado mais acessível,
mais curto e mais econômico; venceu também a perspectiva do que
representava Caxias do Sul para a economia do estado.
Dante Marcucci, na mesma direção, ou seja, de envolver Caxias do
Sul no traçado nacional de estradas, propiciou a construção da pista de
pouso que oportunizou a criação do primeiro campo de aviação de Caxias
do Sul. Esse fato, conforme narra Ary Zatti Oliva (1988, p. 16), teve a
presença dos Diários Associados e fez parte da Campanha Nacional da
Aviação. Essa iniciativa se efetivou com a doação do primeiro avião de
Campanha, o Duque de Caxias. Essas ações mostram que a cidade estava
presente no circuito nacional, e que seus dirigentes possuíam prestígio
político e estavam atentos ao desenvolvimento nacional.
Em 1943, a Associação dos Comerciantes buscava uma solução definitiva
para a grave situação de abastecimento energético que enfrentava o estado.
A reunião com o engenheiro Pedro Kerber, da Companhia Rio-Grandense
de Energia Elétrica, visava a solucionar as questões referentes à energia
elétrica. A primeira proposta sugeria fosse dividida a cidade em duas zonas:
pela manhã uma receberia energia, e a outra, à tarde. Outra solução seria a
construção de uma linha de emergência de Gramado e Galópolis para Caxias
do Sul, para aproveitar o excedente de energia que Galópolis oferecia, por
meio da Sociedade Anônima Companhia Lanifício São Pedro.
A questão da energia elétrica continuou a preocupar os empresários, já
que a cidade ressentia-se das precárias condições de abastecimento. A
392
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012
entidade não esperava da Companhia Rio-Grandense de Usinas Elétricas,
em Caxias do Sul, uma solução, uma vez que as reclamações já haviam sido
feitas. Foi constituída uma comissão, formada por Agostinho Panceri, João
Leonardelli, Dinarte Soares e José Gazolla, com o objetivo de conversar
com o prefeito, a fim de assumir medidas em conjunto com o governo do
estado. (ASSOCIAÇÃO DOS COMERCIANTES DE CAXIAS DO SUL, 1945, p. 116).
Percebeu-se que os problemas vinculados à infraestrutura continuavam, e
que a entidade assumiu, historicamente, o papel de reivindicar em nome de
seus associados e da própria cidade.
Ainda na gestão de Dante Marcucci, o tema água voltou a preocupar o
sistema público de abastecimento3 devido a uma forte seca. Diante desse
impasse, a prefeitura propôs como solução algumas medidas técnicas, entre
elas a construção de mais duas represas, o que ampliaria a capacidade de
represamento de água, junto com o montante da represa Dal Bó, revisar a
tubulação da represa Maestra, a fim de verificar os motivos pelos quais a
mesma não cumpria com o previsto em seu projeto e “levantar a muralha
de contenção da represa Dal Bó à altura necessária para decuplar o
armazenamento”. (OLIVA, 1988, p. 14). A realização dessas propostas
oportunizou a Caxias do Sul a oferta de água por meio das três represas
assim denominadas: São Pedro, São Miguel e São Paulo.
A Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul, na metade do século
XX, encerrou mais um ciclo de sua história, que se alternava com a mudança
do governo federal, com as mudanças estruturais no modelo econômico
brasileiro e com a decisão de alguns associados de fundarem, em Caxias do
Sul, uma delegacia do Centro de Indústria Fabril, a qual pudesse representar
apenas os interesses da indústria e não mais o de todas as atividades
econômicas integradas. Essa intenção se concretizou quando, em 1951,
diversos empresários fundaram o Centro de Indústria Fabril, que separava
os interesses do comércio dos da indústria.
Vinte anos mais tarde, esses empresários voltaram a se fundir,
acreditando que uma associação forte ajudaria a desenvolver as atividades
econômicas do município e eles fortaleciam por meio da união.
Considerações finais
A história econômica de Caxias do Sul comprova que a Associação
dos Comerciantes de Caxias do Sul acompanhou de perto tudo que dizia
respeito às questões referentes à infraestrutura e ao desenvolvimento
MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397
393
econômico da cidade. Além de defender os interesses econômicos de seus
associados, defendeu sempre os interesses da cidade.
É oportuno recordar que a economia desse município seguiu o processo
de desenvolvimento dos primeiros núcleos coloniais europeus no estado
onde o processo inicial de crescimento deu-se com atividades extrativas,
sustentadas no desmatamento e na agricultura de subsistência, seguida pela
agricultura comercial, especializada na produção de gêneros alimentícios.
O comércio colonial reflete a organização dos núcleos como interpostos
entre a colônia italiana e a capital do estado. Do capital comercial, houve
um direcionamento à formação da indústria e sua expansão. A Associação
dos Comerciantes de Caxias do Sul sempre contou com a presença de
líderes econômicos e políticos que demonstraram, em suas ações, o verdadeiro
papel de agentes sociais, marcando a vida econômica de Caxias do Sul e do
Estado do Rio Grande do Sul. Esses homens acreditaram na importância
da agremiação como forma de união, de força e de representação.
A associação nasceu da necessidade que os comerciantes do município
enfrentaram para equacionar seus problemas e resolvê-los como categoria.
Entretanto, ao longo de sua história, assumiu ela um papel reivindicatório,
de representação dos interesses não apenas dos comerciantes, mas também
da cidade. Constata-se, nessa trajetória, que a cidade cresceu e se desenvolveu
graças ao espírito empreendedor de seus habitantes que sempre acreditaram
no seu potencial desde a sua formação.
A associação foi sempre uma instituição que interferiu nas decisões
fundamentais do desenvolvimento das economias local, regional e nacional.
Na defesa dos interesses de seus associados, promoveu um contínuo diálogo
com as instituições públicas e privadas, revelando suas crenças na promoção
do crescimento econômico da cidade. Sua atuação reflete a ligação que se
estabeleceu com as diversas instâncias do poder e das classes produtivas. As
lutas políticas lideradas pela associação mostram o poder que a mesma
construiu ao longo de sua história e das estratégias que utilizou para vencer
suas causas e defender os interesses de seus associados.
Desde sua criação, foi defensora das causas econômicas da categoria,
assumindo os problemas da agricultura, principalmente porque esses afetavam
diretamente o comércio local. A questão do vinho foi, por várias décadas,
motivo de preocupação por parte da entidade. O vinho era um produto de
exportação e, por inúmeras circunstâncias, era acusado de ser um vinho
falsificado, o que levou a associação a tomar uma série de medidas, inclusive
394
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012
com o governo do estado na defesa do produto. Mais tarde, várias ações
foram realizadas para garantir a qualidade do vinho que era produzido.
Além do vinho, também procurou discutir e pressionar as autoridades
públicas para a melhoria da infraestrutura. As condições precárias das estradas
afetavam a exportação dos produtos para outros estados, e a luta por melhores
meios de transporte e a abertura de estradas e melhorias nas já existentes foi
uma constante. A conquista da estrada de ferro fez com que o comércio
tivesse à disposição uma forma de escoar os produtos da zona colonial. A
estrada de ferro, que ligava o Município de Caxias do Sul à capital do
estado, passava por São João de Montenegro.
Por muitas décadas, foi o meio de transporte mais seguro para os
comerciantes, acompanhando o modelo de substituição das importações,
enfraquecido nos anos 60 do século XX, devido à troca pelo transporte
rodoviário.
A regulamentação do comércio, o horário de funcionamento das casas
comerciais, o fechamento nos feriados, domingos e dias santos, a presença
do comércio ambulante, a fiscalização pelos órgãos públicos da ação dos
mascates e a criação do Departamento Varejista-Molhadista foram ações
que a citada associação promoveu após muitas discussões com seus
associados. Sempre preocupada em defender o comércio, criou mecanismos
em defesa do crédito e de garantias para diminuir a inadimplência.
A Associação dos Comerciantes de Caxias do Sul foi um instrumento
de defesa dos interesses da zona colonial italiana no Nordeste do Estado do
Rio Grande do Sul, e que contribuiu para a consolidação desse setor
econômico pela sua capacidade de articulação política com as diversas esferas
do Poder Público e com os distintos setores privados. Ajudou na construção
de espaços de conhecimento e reconhecimento acerca do potencial que a
cidade oferecia. A intervenção da categoria, na definição dos espaços públicos
e privados, como forma de representação do poder que esses possuíam, foi
uma demonstração de sua capacidade produtiva.
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395
Notas
A associação foi presidida por Ottoni
A. Z. Minghelli de 1935 a 1944. A
Associação dos Comerciantes de Caxias
do Sul fundada em 1901 modificou seu
nome em 1939, passando a chamar-se
Associação Comercial de Caxias.
(HERÉDIA, 2007, p. 53). Em 1963, a
associação altera seu estatuto e modifica
novamente sua denominação, passando a
chamar-se “Associação Comercial e
Industrial de Caxias do Sul”. (HERÉDIA,
2007, p. 65).
1
396
Dante Marcucci foi prefeito de Caxias
do Sul durante 11 anos, tendo assumido
o primeiro mandato em 1935. (ADAMI,
1963, p. 185). Antes de ser eleito prefeito
de Caxias do Sul, foi presidente da
Associação dos Comerciantes de Caxias
do Sul, na gestão 1931-1933.
2
A Hidráulica Municipal foi remodelada
na gestão de Dante Marcucci, uma vez que
a data do início dos serviços remete a
1925.
3
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012
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MÉTIS: história & cultura – HERÉDIA, Vania B. M. – v. 11, n. 21, p. 381-397
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398
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 381-397 , jan./jun. 2012
As “Sete maravilhas” do
município de Caxias do Sul
The seven “wonders” of the city of Caxias do Sul
Daniela Barbosa Maino*
Resumo: A concepção de beleza e
patrimônio cultural foi se alterando ao
longo da história da humanidade. Quando
se relata a história de uma cidade, deve-se
levar em consideração todas as influências
que podem estar presentes nesse discurso.
Acredita-se que a história de Caxias do Sul
é representada através de uma única
perspectiva: a da imigração e cultura
italianas. Essas representações sociais, que
constantemente são reforçadas pelo Poder
Público, não são levadas em considerações
as agregações de saberes entre uma cultura
e outra, e as influências externas do mundo
globalizado. Este artigo tem como objetivo
reconhecer, através da concepção de
“maravilhas”, o patrimônio material e
imaterial do Município de Caxias do Sul,
presente no imaginário dos entrevistados.
Para tanto, foram entrevistados 56 alunos
do curso de História da Universidade de
Caxias do Sul, que, no primeiro semestre
deste ano (2011), estavam cursando as
disciplinas: Realidade Educacional
Abstract: The conception of beauty and
cultural heritage has changed throughout
the history of humanity. As far as the
history of a town is reported, every present
influence in this report must be taken into
consideration. It is believed that the history
of Caxias do Sul is represented by only one
perspective which is the Italian
immigration and its culture. In this social
representation, which is often reinforced
by the government, the aggregation of
knowledge between one and another
culture, and the influences of the global
world are not taken into account. This
article aims to recognize the material and
immaterial heritage as a conception of the
“wonders” of Caxias do Sul present in the
interviewees’ imaginary universe. For this
reason 56 students of History
Undergraduate Degree at University of
Caxias do Sul were interviewed. These
students were carrying out the classes
Brazilian Educational Reality, and
Theoritical Foundations of Cultural Heritage
* Aluna no curso de História da Universidade de Caxias do Sul (UCS). E-mail:
dbmaino@ucs.br.
MÉTIS: história & cultura – MAINO, Daniela Barbosa – v. 11, n. 21, p. 381-397
399
Brasileira e Fundamentos Teóricos do
Patrimônio Cultural. Foram elencadas sete
maravilhas, e, a partir dessas, se procurou
identificar se a sociedade atualmente
incorpora os valores culturais da etnia
italiana. A fundamentação do texto está
baseada nos relatos dos entrevistados
juntamente com uma pesquisa
bibliográfica onde se aborda a história de
Caxias do Sul, paralelamente com os
conceitos de patrimônio e cultura.
in 2011 first term. Seven wonders were
listed and from them it was attempted to
identify if society embodies the cultural
values of the Italian ethnie. The text
fundamentation is based on the
interviewees’ repor t along with a
bibliographical research where the history
of Caxias do Sul and the concepts of
heritage and culture are approached.
Palavras-chave: patrimônio cultural; etnia
italiana; representações sociais.
Keywords: Cultural heritage. Italian ethnie.
Social representation.
A história de uma cidade pode ser vista através de diferentes ângulos, e
uma das perspectivas que se pode utilizar são os bens culturais, os quais
fazem parte do conceito de patrimônio cultural. Essa herança deixada por
gerações anteriores permite não somente o contato com elas, mas
interpretações das memórias presentes na sociedade em que vivemos. A
história de Caxias do Sul vista por essa perspectiva retrata a trajetória de
uma etnia que trouxe, segundo Tejo (apud HERÉDIA, 2010, p. 121) “uma
tradição de trabalho e uma experiência das coisas que as gentes do Novo
Mundo não haviam tido tempo ainda de adquirir”. Dessa forma, o presente
texto tem como objetivo reconhecer através da concepção de maravilha o
patrimônio material e imaterial do Município de Caxias do Sul, presente
no imaginário dos pesquisados. Relacionando-os com a história da cidade
e suas representações sociais, procuraremos identificar se a sociedade atual
incorpora os valores culturais da etnia italiana.
Através do curso de extensão “Escola e Pesquisa: um encontro possível”,
o qual tem como objetivo fomentar a pesquisa em sala de aula, surgiu a
oportunidade e o interesse de trabalhar o tema. Como a metodologia do
curso está baseada no programa “Nossa Escola Pesquisa sua Opinião”
(Nepso), vinculado ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
o método utilizado será uma pesquisa de opinião. Portanto, essa foi
direcionada aos acadêmicos do curso de História da UCS, que, no primeiro
semestre de 2011, estavam cursando as disciplinas Realidade Educacional
Brasileira e Fundamentos Teóricos do Patrimônio Cultural. Foram
entrevistados 56 alunos, sendo que 65% dessa população-amostra encontramse na faixa de 17 a 24 anos de idade. Através de um questionário
400
MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 399-410 , jan./jun. 2012
autoaplicativo buscou-se, mesmo que de maneira breve, perceber os bens
culturais, que esses consideram importantes na cidade, e se a representação
social que é constantemente reafirmada pelo Poder Público está presente na
sociedade atual.
A concepção maravilha foi somente um ponto de partida para que os
entrevistados elencassem suas preferências e respondessem ao questionário
de maneira descontraída, portanto não iremos nos aprofundar quanto à
história e o significado desses artefatos. Porém a estrutura do texto será
baseada em pesquisa bibliográfica onde será abordada a história de Caxias
do Sul, paralelamente com os conceitos de patrimônio e cultura.
A cidade
Elencar as “Sete Maravilhas” de uma cidade como Caxias do Sul requer
um cuidado muito especial, até porque muitas são suas maravilhas. “A
palavra patrimônio está historicamente associada ou à noção de sagrado,
ou à noção de herança, de memória do indivíduo, de bens de família.”
(SANTOS, 2001, p. 43). “Sugere o professor francês Hugues de VarineBoham que o Patrimônio Cultural seja dividido em três categorias: os
elementos pertencentes à natureza, os referentes ao conhecimento, e os
bens culturais.” (LEMOS, 2004, p. 8). Considerando que este texto se
preocupará em identificar os bens culturais da cidade, mesmo assim, a
variedade de elementos que podem se enquadrar é muito ampla.
Se utilizarmos a antropologia para definir cultura, Roberto DaMatta
(1981) nos dirá que “cultura é um conjunto de regras que nos diz como o
mundo pode e deve ser classificado”. Geralmente, quem lê a história de
Caxias do Sul não deixa de perceber a escolha para evidenciar uma etnia, e
o mesmo autor explica que “as regras apenas indicam os limites, o modo
pelo qual elas se engendram novas combinações em situações concretas é
algo que só a realidade pode dizer”. Diante de tantos fatos históricos e
políticos que contemplam um país ou mesmo uma cidade, as representações
sociais que se têm de uma localidade, na prática, nem sempre se reproduzem.
Portanto, quando se questiona o que é o Patrimônio Cultural de um lugar,
muitas perspectivas surgem, pois a realidade contrasta com a ideologia
A história de Caxias do Sul começa a ser contada no ano de 1875
quando chegaram ao Rio Grande do Sul os primeiros imigrantes italianos,
“um movimento populacional que se encadeou a interesses tanto do governo
brasileiro quanto do italiano”. (IOTTI, 2010, p.13).
MÉTIS: história & cultura – MAINO, Daniela Barbosa – v. 11, n. 21, p. 381-397
401
As maravilhas
Citado por 23% dos entrevistados como a principal maravilha da cidade
de Caxias do Sul, o Monumento Nacional ao Imigrante “representa as
primeiras origens da colonização italiana”. (E1) Origens essas que estão
arraigadas às representações sociais, que, ao longo dos anos, devido a diversos
fatores sociais e econômicos, foram sendo reforçadas na mentalidade da
população. Segundo Iotti
a maioria das autoridades louvava as qualidades dos europeus,
argumentando que sua introdução representaria um importante
papel para o desenvolvimento do processo civilizatório na província
e, conseqüentemente, no país. Entre as qualidades destacadas,
estavam a disposição para o trabalho, o caráter morigerado, a
índole pacífica e ordeira. (s.d., p. 3).
De fato, a cultura italiana teve um papel importante na construção da
identidade do município. Na época, o desejo de se tornar autossuficiente,
o sonho da propriedade privada e o valor à terra caminharam paralelamente
às necessidades de povoamento da região e do desenvolvimento da economia
primária. Em um momento histórico em que o sentido do trabalho estava
vinculado ao caráter de inferioridade, a etnia italiana não se importou com
o preconceito em ser colono e, aos poucos, rompeu o paradigma existente.
Dessa forma, o Monumento Nacional ao Imigrante é um Patrimônio
Cultural que representa, justamente, essa transformação social, não no
sentido de que outras etnias não fossem capazes de garantir os
desenvolvimentos social e econômico da cidade, mas no sentido de priorizar
e acreditar que o trabalho, e somente ele, transformaria sua situação social.
A família, presente na simbolização, retrata que o desejo de vencer não era
individual, todos, de alguma forma, contribuíram com essa ideologia. Assim,
surge “o trabalho como o mito fundador da região”. (GIRON, 2007, p. 48).
Caracterizado pelos entrevistados “por ter importância na região”, “por
contar a história da cidade”, “por representar a origem italiana”, na fala de
um deles, o Monumento Nacional ao Imigrante também é visto “como
uma referência para outras etnias, e não apenas uma, a italiana, ou seja,
todos os grupos sociais presentes na cidade”. Considerando que 55% dos
entrevistados não são naturais de Caxias do Sul, isso nos leva a refletir que,
tal ideologia da cultura italiana ao longo da história foi se incorporando na
identidade de outras etnias e as pessoas que atualmente estão migrando de
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suas cidades em busca de oportunidades profissionais e financeiras, ao chegar
em Caxias do Sul se identificam com o monumento, ou melhor, se
identificam com o mesmo propósito dos imigrantes italianos, a
independência econômica. Conforme Bergamaschi
a propriedade da terra era aspiração máxima, meta pela qual
deixaram a pátria natal. A propriedade dava-lhes a garantia contra
a exploração de outros indivíduos, e ainda possibilitava ao grupo
familiar a segurança contra a fome e a miséria, permitindo a
mudança de antiga condição de servo para o de senhor de sua
terra, ou seja, a da ascensão social. (2007, p. 19).
A política que foi proposta em 1875 atendia às necessidades dos dois
lados envolvidos. Atualmente, a cidade de Caxias do Sul recebe um número
bastante significativo de migrantes por dia. No entanto, as necessidades da
cidade não vão ao encontro do perfil dessas pessoas que estão se estabelecendo,
e, apesar de a Prefeitura Municipal desenvolver uma política de incentivo a
vários setores básicos como qualificação profissional, habitação, entre outros,
esses programas não são suficientes para garantir o trabalho e a estabilidade
financeira dos que chegam. Inaugurado em 1954, o Monumento Nacional
ao Imigrante tinha como principal motivação a comemoração do 75º Ano
de Imigração Italiana no RS, assim como a “Casa de Pedra”, como é
conhecida popularmente, contemplou o Centenário de Caxias do Sul em
1975.
A concepção de patrimônio se alterou ao longo da história, de
construções grandiosas que representavam a manifestação do poder a elemento
formador de identidade, a partir da Revolução Francesa. No Brasil, em
meio a tantas obras e documentos destruídos, foi somente no século XX
que a mentalidade de preservação começou a se manifestar, sendo
“caracterizada pela transposição de elementos de composição arquitetônica
de uma construção abandonada para outra”. (LEMOS, 2004, p. 36). Em
1925 surgiu, pela primeira vez, a preocupação em preservar os bens
mobiliários, e, na década de 30 (séc. XX), motivado pelo projeto do escritor
Mário de Andrade, foi sancionada a Lei de Preservação do Patrimônio
Artístico Nacional, que, segundo Lemos
MÉTIS: história & cultura – MAINO, Daniela Barbosa – v. 11, n. 21, p. 381-397
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às vezes está ela designando a obra de interesse eminentemente
estético, mas em grande parte do tempo está ligada ao artesanato.
[...] No seu projeto, Mário de Andrade agrupava as obras de arte
em oito categorias: arte arqueológica, ameríndia, popular, histórica,
erudita nacional, erudita estrangeira, artes aplicadas nacionais e
artes aplicadas estrangeiras. (2004, p. 38-39).
Indicada como a segunda “Maravilha” da cidade, por 15% dos
entrevistados, o Museu de Ambiência Casa de Pedra é um dos pontos turísticos
mais frequentados da cidade (E2), “porque prevê uma das principais imigrações
em Caxias do Sul” (E3) e retrata a cultura popular cotidiana dessa imigração.
Esse patrimônio atendia à categoria de bens culturais que para Lemos (2004,
p. 10) “englobam toda sorte de coisas, objetos, artefatos e construções
obtidas a partir do meio ambiente e do saber fazer”. Na opinião de 50%
dos entrevistados, para uma obra ou monumento ser considerado uma
Maravilha, precisa representar a cultura local. Assim, o museu representa não
somente o cotidiano da cultura italiana, mas a expressão de resgate das
origens populares do País. De acordo com a lei aprovada em dezembro de
1937, a Casa de Pedra se enquadra na categoria de arte arqueológica, pelos
seus instrumentos de trabalho e objetos de uso doméstico, na arte popular
pelos variados artefatos, nas artes aplicadas onde se entende o mobiliário e
a decoração. Embora a lei não tenha sido aplicada com o mesmo desejo e
interesse com que foi escrita, ela significou uma transformação social, um
novo olhar para o patrimônio. Nessa mesma linha, podemos citar a terceira
Maravilha da cidade: a Igreja de São Pelegrino.
A Igreja Matriz inaugurada no ano de 1953 é destacada por 13% dos
entrevistados como o marco religioso da cidade. A igreja abriga pinturas e
obras artísticas de grande importância para a história de Caxias do Sul. (E4)
Entre elas se destacam a “Santa Ceia” que adorna as paredes e o teto, e os
14 quadros que retratam a Via-Sacra (CORREIO DO POVO, 2002). A arte do
pintor italiano Aldo Locatelli contribuiu para que a Igreja de São Pelegrino
fosse mais do que um espaço religioso, mas uma reafirmação dos valores
cristãos. Segundo Oliveira
os estudos acerca da obra do artista centram-se em grande parte,
na sua produção de cunho religioso. [...] na Catedral São Francisco
de Paula, em Pelotas, e na Igreja de São Pelegrino, em Caxias do
Sul, as pinturas elaboradas em ambos os templos são de
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fundamental importância para os estudos acerca da sacra sul-riograndense, dada a precisão técnica do trabalho e a capacidade de
síntese do artista em representar todo um quadro de crenças e
imagens próprias da comunidade católica. (2010, s.p.).
Ao emigrarem para o Brasil (1875), os imigrantes italianos trouxeram
a experiência de “uma nação recém-unificada, onde o Papa perdera o poder
e o direito sobre os Estados Pontifícios, sendo também proibida aos católicos
a participação na política”. (RELA, 2004, p. 32). Nesse novo contexto, Rela
destaca:
Os imigrantes italianos, […] a princípio, não possuíam um fator
comum que os unisse. Recém-chegados eram tratados como
estrangeiros. Porém, também, não se sentiam mais italianos, pois a
recente unificação atingira suas convicções, quer políticas, quer
religiosas. A língua também não servia como fator de agrupamento,
pois os dialetos eram os mais variados. (2004, p. 15).
A necessidade de unificação do grupo italiano e a associação à Igreja
como um ponto de referência fizeram com que a etnia buscasse a
“continuidade de sua vivência religiosa, praticada nas aldeias rurais da Itália”.
(RELA, 2004, p. 31).
Segundo De Boni (apud RELA, 2004, p. 15), “restou à religião atuar
como elo de união entre eles: a quase totalidade confessava-se católica, e a
fé católica forneceu-lhes os subsídios indispensáveis para reiniciar, individual
e coletivamente, a existência”. Entretanto, enquanto o cristianismo na Itália
sofria uma inversão de valores com o Estado, aqui se procurava manifestar
o domínio da Igreja Católica reforçando seus dogmas. Assim, a religiosidade
se apresenta baseada em um processo de romanização, “a busca desse
fortalecimento era primordial tendo em vista a necessidade de superar a
predominância luso-brasileira na administração de Caxias”. (RELA, 2004,
p. 16). Dessa forma, no imaginário da comunidade, as pinturas de Aldo
Locatelli representam a cultura local em sua plenitude, a religiosidade, o
crescimento de Caxias. (E5). No entanto, mesmo que tenham sido concluídas
décadas depois (1960), sua representatividade é de uma visão macro, de
uma Igreja que exerce seu poder sobre o seu povo, de aspectos resgatados
não somente da imigração italiana, mas de uma colonização anterior a essa,
uma mentalidade europeia de colonização.
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405
A religião assim como as festividades sempre estiveram muito presentes
na realidade das cidades do interior. “O Começo de Tudo” foi em 1931,
expor a uva e comemorar a colheita era seu objetivo. (MACHADO, 2001, p.
239). Passando pelos “100 Anos de Imigração”, chegaram à “Festa das
Festas!”1 Uva, Cor, Ação! A Safra da Vida na Magia das Cores! Simboliza o
espírito da sociedade atual que comemorará a próxima Festa Nacional da
Uva.
Indicado por 8% dos entrevistados como a quarta maravilha da cidade,
os Pavilhões dessa Festa serviu de palco para a comemoração de mais de
vinte edições. Inaugurado em fevereiro de 1954, é um lugar de convivência,
encontro e celebração. (E6)
Conforme Ribeiro (2002, p. 40), “o espaço da festa, embora
preexistindo como área física, é um espaço construído ritualmente, [...]
possui a extraterritorialidade do quotidiano e é, do mesmo modo que o
tempo, um espaço utópico”. Em meio a um cenário urbano diferentemente
dos primórdios, a Festa Nacional da Uva foi lentamente se transformando e
se adaptando ao desenvolvimento econômico da cidade, assim como os
pavilhões foram agregando particularidades necessárias para atender a diversos
grupos sociais. Exemplos disso são o Espaço Multicultural, as Feiras
Industriais e Artesanais que, além de receberem expositores de vários países,
prestigiam a comunidade local.
Outro espaço popular que se destaca são as Paradas do Ópera. Esses
terminais de ônibus localizados no centro de Caxias do Sul atendem às
regiões norte e oeste da cidade. Embora sejam, visivelmente, apenas paradas
de ônibus, sua representatividade está relacionada a, pelo menos, três fatores
importantes: diversidade cultural, expansão territorial urbana, e o memorável
Cine Teatro Ópera. Para 4% dos entrevistados é um espaço que faz parte do
cotidiano de milhares, de Caxias do Sul; (E7) e o fluxo de pessoas e a
distribuição de trabalhadores, ao mesmo tempo que contrastam com as
representações sociais da cidade, ilustram o esforço de todos em busca de
realizações pessoais. É um espaço onde as relações culturais e sociais são visíveis
e subverte a própria ideia de beleza, de grandiosidade, característica dos espaços
oficiais. (E8) É nesse momento que se reconhece que a população caxiense
é composta de vários grupos sociais. Atualmente, “as paradas” estão
localizadas no centro da cidade, porém, em 1878, quando se deu o início
da expansão urbana, esse local era uma quadra anterior, limítrofe a oeste,2
da cidade. Como Nascimento conclui em seu artigo (2010, p. 66) “o projeto
de ocupação do espaço da sede de Caxias, organizado por Luiz Manuel de
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 399-410 , jan./jun. 2012
Azevedo, em 6 de dezembro de 1878, foi o embrião do crescimento da
cidade. Primeiramente ela se expandiu para leste, depois para oeste”. Essa
primeira expansão marcou territorialmente a cidade, criou-se uma linha
imaginária dividindo-a, as Paradas do Ópera servem de ponto de referência
dessa divisão, mas o fator mais significativo e o que gerou o nome dado a
elas é a lembrança do Cine Teatro Ópera, que, após uma reforma em 1950,
substituiu o cinema Apollo. Giron e Pozenato lembram que,
com a reforma do prédio, mudaram também os frequentadores,
Com o tempo, o cinema Ópera tornou-se um dos símbolos da
cidade. As matinês eram concorridas, o mesmo ocorrendo com o
“Dia da Dama”. As estréias de filmes aconteciam nos finais de
semana e eram longas as filas de espera para entrar em uma das
duas sessões que eram realizadas aos sábados e domingos.” (2007,
p. 84).
Em 1985 o prédio do Cine Ópera foi decretado de utilidade pública.
A justificativa dada pelo prefeito era de que esse prédio “podia abrigar
1.800 espectadores sentados, número que a casa da cultura não comportava”.
(GIRON; POZENATO, 2007, p. 87). Em meio a tantas outras justificativas, a
população era favorável à sua preservação.
A geração de estudantes da época devem se lembrar do “abraço” dado
ao Ópera, mesmo sem ter a maturidade suficiente e o conhecimento
necessário acerca de patrimônio. A mobilização que foi realizada nas escolas
contribuiu para que o teatro permanecesse na memória de muitos adultos
de hoje. Porém, em dezembro de 1994, um incêndio destruiu o que hoje
poderia ser uma das “maravilhas” da cidade.
Também com 4% dos votos, a Catedral Diocesana de Caxias do Sul
foi indicada como uma das “maravilhas” da cidade. Localizada no centro da
cidade, sua história está bastante relacionada com a Praça Dante Alighieri.
Segundo Machado (2001, p. 286), o cumprimento das obrigações religiosas,
aos domingos, vinha ao encontro da comercialização dos produtos na praça.
Primeiramente conhecida como Paróquia de Santa Tereza, foi concluída em
1899, mas, posteriormente, passou por outras transformações devido ao
rebaixamento da praça e, em 1947 recebeu a fachada atual. (MACHADO,
2001, p. 286). Além da contribuição religiosa, a Catedral também é um
marco na cidade (E9) devido ao seu ambiente externo que incorpora aspectos
do trabalho: o saber fazer. A troca de mercadorias na praça permitia o
MÉTIS: história & cultura – MAINO, Daniela Barbosa – v. 11, n. 21, p. 381-397
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contato do agricultor com o comércio, e esse contato, somado à presença
da Igreja, fortalecia o grupo social.
A sétima e última “maravilha” citada pelos entrevistados é a Universidade
de Caxias do Sul (UCS). Sua contribuição refere-se à preservação e
conservação do meio ambiente, pois abriga infinitas espécimes, no nível
animal e arbóreo, além da privilegiada localização e vista. (E10) Contemplada
sob essa perspectiva, a UCS realmente transmite esse sentimento de
liberdade, sensação que não está vinculada somente à sua beleza externa,
mas à liberdade interna, a satisfação do conhecimento. Fundada em fevereiro
de 1967, atualmente sua atuação abrange cerca de 69 municípios. (SITE
UCS, 2012). Indicada por 2% dos entrevistados, a UCS é um espaço em
que se procura construir novos olhares para a sociedade, sendo o
conhecimento o ponto de partida para que se reconheça e respeite outras
formas de cultura.
Considerações finais
No primeiro momento, a intenção desta pesquisa era reconhecer o
processo de maturação e criticidade dos acadêmicos do curso de História
da UCS. Acreditava-se que, ao ingressar na academia, o discurso dos
estudantes estava baseado em um pensamento do senso comum, mas com
o conhecimento da história, a visão do aluno passava por um processo de
transformação, e aspectos como: religião, política e diversidade cultural
adquiriam um novo significado. Entretanto, a pesquisa revela que o tempo
para acomodação do conhecimento não é suficiente em um curso de
graduação. A capacidade e a sensibilidade de relacionar o conhecimento
teórico com os problemas sociais da atualidade exigem um exercício baseado
em constantes questionamentos. O poder da mídia de influenciar o
imaginário da população está muito presente nessa sociedade.
Relacionados a essas hipóteses também se pretendia reconhecer o
patrimônio material e o imaterial da cidade de Caxias do Sul. Elencamos
sete “maravilhas” da cidade: o Monumento Nacional ao Imigrante, a Casa
de Pedra, a Igreja de São Pelegrino, os Pavilhões da Festa Nacional da Uva,
as Paradas do Ópera, a Catedral Diocesana e a UCS. Essas, respectivamente,
são reflexos de sete princípios: o trabalho, a família, a religião, a festividade,
a diversidade, as trocas e o conhecimento. A ordem de importância
corresponde aos aspectos mais valorizados na cidade: o trabalho, a família e
a religião – símbolos que não permitem a influência de nenhuma outra
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 399-410 , jan./jun. 2012
cultura. Nas festas, lentamente, está se abrindo um espaço para outras
comemorações, e isso também se relaciona com a necessidade de comercializar
e atender à diversidade de grupos sociais. Já o conhecimento é destaque,
mas não é prioridade na cidade, lembrando que essa mentalidade não se
restringe somente ao âmbito do município; é, da mesma forma, uma prática
nacionalista.
Mesmo que de uma maneira breve, conseguiu-se apontar o patrimônio
material que permeia a cidade, porém não foi possível identificar algo que
poderia se tornar um patrimônio imaterial. Acredita-se que as representações
fazem parte de um discurso superficial, pois as pessoas concordam com
essas ideias sem questioná-las. O resgate cultural é importante na medida
em que se tenha o conhecimento da história sem omitir a contribuição de
outras etnias. Para que se identifique um patrimônio imaterial, é necessário
que esse corresponda ao sentimento de pertencimento ao grupo. Lembrando
que 55% dos entrevistados não são naturais de Caxias do Sul, se presume
que a população atual incorporou os valores étnicos que se relacionam com
a cultura italiana, porém não existe um elemento que a faz pertencente a
esse grupo.
Enquanto o conhecimento for a última representação social de uma
localidade, a história continuará a ser vista sob a mesma perspectiva.
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Notas
1
Entre aspas: temas da Festa Nacional da
Uva de edições anteriores.
2 Limite oeste: Rua 20 de Setembro.
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410
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MÉTIS: história & cultura – v. 11, n. 21, p. 399-410 , jan./jun. 2012
Política editorial e normas
para publicação
Objetivos:
• Publicar e divulgar trabalhos inéditos e traduções relevantes na área de História e
Cultura.
• Proporcionar o diálogo acadêmico-científico sobre sua área de enfoque.
Política Editorial:
• A revista terá periodicidade semestral.
• Será composta das seguintes seções:
a) dossiê a respeito de temas relevante da História e da Cultura;
b) artigos e ensaios diversos (livres);
c) resenhas de obras recém-publicadas; e
d) reprodução de fontes documentais impressas.
•
A revista será distribuída seguindo duas modalidades:
a) online, na página eletrônica da Universidade de Caxias do Sul, na internet.
b) impressão em papel.
Direção
A revista será coordenada de acordo com a seguinte estrutura:
• Editoria;
• Conselho Editorial; e
• Conselho Consultivo.
•
A Editoria será composta por um editor-responsável e por dois editores adjuntos,
escolhidos dentre os docentes do curso de História do Centro de Ciências Humanas/
UCS ou por eles indicados em assembleia. São funções da Editoria:
a) responder pela execução e administração da revista; e
b) convocar, quando necessário, reunião do Conselho Editorial.
•
O Conselho Editorial será composto pela Editoria e por até mais 10 (dez)
integrantes indicados pela Editoria e aprovados em assembleia dos docentes do
curso de História do Centro de Ciências Humanas/UCS. Compete aos integrantes
do Conselho Editorial:
•
•
a) contribuir na definição da política editorial;
b) emitir, quando solicitados, dentro de sua competência acadêmica, pareceres
científicos sobre as matérias enviadas para publicação; e
c) atender, quando solicitados, à convocação da Editoria para reuniões.
O mandato dos membros do Conselho Editorial será de 3 (três) anos, com
possibilidade de recondução. Na falta de um ou mais conselheiros, a Editoria
poderá indicar substitutos interinos ou efetivos.
O Conselho Consultivo será formado de, no mínimo, 10 (dez) membros indicados
pelo Conselho Editorial. Os integrantes do Conselho de Consultores deverão ser
pesquisadores e professores com titulação mínima de Doutor e/ou possuir notório
saber. Compete ao Conselho Consultivo:
a) emitir parecer sobre os materiais enviados para publicação, quando solicitados
pela Editoria e dentro de sua área de competência acadêmica; e
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obedecendo às conveniências da revista e do próprio consultor.
•
Normas para Publicação
A revista publica artigos e resenhas em Português, Espanhol e Italiano. Serão
aceitos, excepcionalmente, originais em Francês e Inglês; a publicação fica
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•
Os artigos devem ser inéditos no Brasil e observar às seguintes características técnicas:
extensão mínima de 10 (dez) e máxima de 25 (vinte e cinco) laudas; página A-4;
fonte Times New Roman, corpo 12 e espaçamento duplo.
•
Os artigos devem conter título, resumo de até 10 (dez) linhas e 3 (três) palavraschave, todos em Português e Inglês.
•
As citações literais curtas – menos de 3 (três) linhas – são integradas no parágrafo,
colocadas entre aspas. As citações de mais de 3 (três) linhas são destacadas no texto
em parágrafo especial, a 4cm da margem esquerda, sem aspas e com fonte menor.
•
As notas devem ser referidas no fim do texto, não podendo consistir em simples
referências bibliográficas. Essas devem aparecer no corpo do texto com o seguinte
formato: sobrenome do autor em maiúsculas / vírgula / ano de publicação / vírgula /
página ou páginas, separadas por hífen ou por vírgula, conforme o caso. (Ex.:
WAGLEY, 1977, p. 160-162).
•
As referências devem seguir as normas da ABNT e ser elencadas após as notas, em
ordem alfabética de sobrenome.
•
As colaborações devem ser postadas no site da Revista: www.ucs.br/etc/
revistas/index.php/metis
•
Ilustrações, figuras ou tabelas deverão ser enviadas em folhas separadas, numeradas
e com indicação do local de sua inserção no texto.
•
As colaborações encaminhadas serão apreciadas pelo Conselho Editorial e pelo
Consultivo, pelo sistema blind rewiew, com prazo de 60 (sessenta) dias contados
da data do recebimento para resposta ao primeiro ou único autor.
•
Todos os textos serão submetidos a dois pareceristas. No caso de haver um parecer
contrário, a Editoria enviará o trabalho a um terceiro consultor.
•
Os textos serão avaliados a partir de um formulário elaborado pela Editoria que
tem como principais critérios de avaliação a forma e o mérito do trabalho,
estabelecendo quatro níveis de recomendações: (a) publicar o texto na forma em
que for apresentado; (b) publicar o texto, depois de cumpridas pequenas correções;
(c) publicar o texto após revisão substancial; (d) rejeitar o texto.
•
Em casos especiais, a Editoria poderá enviar trabalhos específicos para pareceristas
ad hoc, não integrantes de seus conselhos, observando a titulação mínima de Doutor
e/ou notória especialização, bem como especialidade na área do trabalho em questão.
•
Será garantido o anonimato de autores e pareceristas no processo de avaliação dos
trabalhos.
•
Serão aceitas resenhas de livros publicados (ou reeditados), no máximo há 1 (um)
ano, em caso de edição nacional, e, no máximo, há 3 (três) anos, no caso de edição
estrangeira.
•
As resenhas terão, no máximo, 5 (cinco) laudas e obedecerão ao mesmo formato
dos artigos. Deverão, ainda, apresentar a referência completa das obras analisadas,
mas não devem conter título.
•
O envio dos trabalhos à revista implica cessão de direitos autorais e de publicação.
Essa se compromete a informar os autores sobre a pertinência ou não de sua
publicação. Os originais não publicados não serão devolvidos.
•
Sob o nome do autor que segue após o título, deve constar apenas sua afiliação
institucional e país.
•
Pela publicação do artigo, o autor receberá 3 (três) exemplares da revista. No
caso de resenha, o autor receberá 2 (dois) exemplares.
• A revista aceita permuta com outras publicações da área de Ciências Humanas.
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