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Bonfim, F., & Schechter, R. Crítica à categoria universal de “mulher”: por uma articulação entre feminismo e
Psicanálise
Crítica à categoria universal de “mulher”: por uma articulação entre
feminismo e Psicanálise
Criticism to the Universal Category of “Woman”: For an Articulation
between Feminism and Psychoanalysis
Crítica a la categoría universal de “mujer”: por una articulación entre
feminismo y Psicoanálisis
Flavia Bonfim1
Rosa Schechter2
Resumo
A proposta deste artigo é problematizar a noção da categoria universal “mulher”, com a intenção de
pensar uma possível aproximação entre o feminismo e a Psicanálise. Para tanto, iniciamos com as
considerações do psicanalista Jacques Lacan sobre o feminino, a partir de seu aforismo “A mulher não
existe”. Em seguida, discutimos a crítica de Judith Butler sobre a inexistência do sujeito que o
feminismo almeja representar, na medida em que o momento inicial do movimento dissociou a
temática do gênero das questões raciais, classistas e étnicas. Como exemplo dessas questões
negligenciadas, destacamos o feminismo negro como um analisador dos impasses do discurso
universalizante no interior do movimento feminista. Por fim, concluímos que tanto Lacan quanto
Butler, com as particularidades de suas produções teóricas, denunciam a precariedade de uma
identidade “mulher”.
Palavras-chaves: Mulher. Psicanálise. Feminismo. Identidade. Feminismo negro.
Abstract
The purpose of this article is to analyze the universal category “woman” as a representation of
feminism in an effort to think a possible contact between the feminism and psychoanalysis. We start
by the psychoanalyst Jacques Lacan’s aphorism about the feminine, “The Woman does not exist”. We
then discuss Judith Butler’s criticism about the inexistence of the subject that feminism aims to
represent. This is because, according to her, at its inception the movement dissociated gender from
racial, class and ethnic issues. As an example of these neglected issues, we highlight black feminism
as one of the deadlocks of the universalizing discourse within the feminist movement. We conclude
that both Lacan and Butler, with the particularities of their theoretical productions, denounce the
precariousness of a “woman” identity.
Keywords: Woman. Psychoanalysis. Feminism. Identity. Black feminism.
Resumen
1
Psicóloga. Psicanalista. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em
Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj)
2
Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do
Projeto Praça Onze.
Pesquisas e Práticas Psicossociais, 16(3), São João del-Rei, julho-setembro de 2021. e-3541
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Bonfim, F., & Schechter, R. Crítica à categoria universal de “mulher”: por uma articulação entre feminismo e
Psicanálise
El propósito de este artículo es problematizar la noción de la categoría universal “mujer”, con la
intención de pensar en una posible aproximación entre feminismo y psicoanálisis. Con este fin,
empezamos con las consideraciones del psicoanalista Jacques Lacan sobre lo femenino, desde su
aforismo “La mujer no existe”. Luego discutimos la crítica de Judith Butler sobre la inexistencia del
tema que el feminismo pretende representar, ya que el primer momento del movimiento disoció el
género de los problemas raciales, de clase y étnicos. Como ejemplo de estos problemas desatendidos,
destacamos el feminismo negro como un analizador de los impases del discurso universalista dentro
del movimiento feminista. Finalmente, concluimos que tanto Lacan como Butler, con las
particularidades de sus producciones teóricas, denuncian la precariedad de una identidad “mujer”.
Palabras clave: Mujer. Psicoanálisis. Feminismo. Identidad. Feminismo negro.
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Psicanálise
Introdução
Um coletivo mais digno talvez possa advir
ali onde a alteridade consentida possa ser a
condição de estar com os outros.
(Fuentes, 2016, p. 198)
Partimos da Psicanálise. Isso implica
demarcar que nossa posição teórico-clínica
nos conduz a uma práxis cuja proposta está
em tratar o Real pelo Simbólico.
Afastando-nos
de
qualquer
noção
“individualista” acerca da Psicanálise,
Marie Helene Brousse (2003) nos alerta
quanto à necessidade de se interessar pela
política e pela cidade para nos
conduzirmos nessa práxis. Brousse toma o
próprio ensino lacaniano como ponto de
apoio para tal justificativa, na medida em
que Lacan afirmou que o analista deve
renunciar a sua função se não conseguir
alcançar em seu horizonte a subjetividade
de sua época.
O contexto social e político que
vivenciamos atualmente no Brasil, no qual
ganham força posições radicais e
extremistas, que promovem de forma
explícita o machismo, o racismo, a
segregação,
o
ódio
gratuito
aos
homossexuais e transexuais, dentre outras
formas de opressão, nos interroga como
mulheres orientadas pela Psicanálise sobre
o modo como frequentemente o feminismo
comparece em produções psicanalíticas (e
vice-versa). Entendemos que esses campos
se cruzam, se opõem, se encontram e se
desencontram. Por outro lado, sustentar
somente a vertente antagônica, por vezes
com tom desqualificador, nos parece ser
uma posição irresponsável nos dias atuais,
tendo em vista o aumento da violência e
das formas de opressão contra as mulheres.
Mulheres morrem por serem mulheres:
isso é suficiente para reconhecer a
importância do movimento feminista e
para pensar outras maneiras de se conduzir
nesse debate. Além disso, tanto o
feminismo quanto a Psicanálise sofreram
modificações em seu arcabouço teórico – o
que muitas vezes é desconhecido por
ambos os lados, fomentando um
distanciamento acirrado que exaure o
debate.
Nesse sentido, buscaremos aqui
trabalhar e problematizar a noção de
categoria universal de “mulher”, em um
esforço de pensar uma possível
aproximação
entre
feminismo
e
Psicanálise,
destacando
também
o
feminismo negro diante dos efeitos de um
discurso que se pretende universal no
interior do movimento feminista. A escolha
do feminismo negro não é aleatória, mas
busca apontar para a nossa posição política
na luta antirracista. É digno de nota que,
como mulheres brancas – ao nos
posicionarmos nessa luta –, estamos
cientes dos privilégios simbólicos e
materiais que dispomos em uma sociedade
racista como a brasileira, sobretudo, em
relação às mulheres negras – o que nos faz
distinguir as formas de opressão e o nosso
lugar de não protagonismo quando
levantamos essa discussão.
Sendo assim, mais uma vez
reiteramos que partimos da Psicanálise,
mas seguimos em direção às discussões
que perpassam o movimento feminista,
especificamente a crítica apresentada no
livro Problemas de Gênero: feminismo e
subversão da identidade, de Judith Butler,
sobre a mulher como uma categoria
universal. Além disso, abordaremos os
questionamentos
produzidos
pelo
feminismo negro ao próprio movimento,
pois eles testemunham de maneira radical a
impossibilidade de tal universalidade.
Colocamo-nos, portanto, implicadas com o
que acontece para além das paredes do
consultório, o que, por sua vez, não deixa
de se refletir no que acontece dentro dele,
como um espaço moebiano que comunica
o dentro e o fora.
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“A mulher não existe”
O ensino lacaniano é permeado por
aforismos, com seus conteúdos opacos,
que não permitem serem apreendidos
apressadamente,
nem
de
maneira
puramente literal. Com seu estilo peculiar,
Lacan (1972-73/1985) afirma o quanto
suas elaborações têm por hábito produzir
mal-entendidos. Por outro lado, uns dos
efeitos desse modo particular de
transmissão é nos colocar em trabalho e
sinalizar o quanto a experiência do
discurso analítico permite apreender que o
sentido é aparência e pode nos conduzir
também ao fracasso.
A ideia de que “A mulher não existe”
é um desses aforismos. Ao contrário do
que se poderia supor, não implica em
afirmar que a mulher não existe em termos
de reconhecimento, nem se apresenta como
uma justificativa para fundamentar uma
inferioridade do lado feminino tão
frequentemente imposta ao longo da
história. Esse aforismo busca ressaltar que
não há um universal, um modelo do lado
feminino. Nas palavras de Lacan (197273/1985, p. 98): “A mulher, isto só se pode
escrever barrando-se o A. Não há A
mulher, artigo definido para designar o
universal”. Sobre isso, Colette Soler (2005,
p. 18) assinala: “se A Mulher, escrita com
maiúscula, é impossível de identificar
como tal, uma vez que ‘não existe’, isso
não impede que a condição feminina
exista”.
Dizendo de outro modo, a mulher
não possui um traço identificatório que
possa se apoiar e lhe indicar como ser
mulher ou o que é uma mulher. Não existe
um significante que forneça um suporte ao
ser feminino – o que implica que cada
mulher precisa se inventar. As mulheres
não podem ser localizadas em um conjunto
fechado, pois permanecem em sua
infinitude. Elas devem ser tomadas uma a
uma.
É necessário, então, situar que Lacan
formula a ausência de um universal do
lado feminino, tomando como recurso
teórico a noção de matema e a formulação
lógica em torno do que se passa no campo
denominado por ele de “sexuação”. Tais
elaborações correspondem ao que ficou
denominado de “último Lacan”, portanto,
referem-se a desdobramentos apresentados
durante a década de 1970, no qual Lacan
não está imune – e vice-versa – às
discussões apresentadas pelo movimento
feminista.
A construção da noção de sexuação
se inicia no Seminário 18: de um discurso
que não fosse semblante, passa pelo
Seminário 19: ...ou pior, contudo, é no
Seminário 20: mais, ainda, que Lacan
propõe seu quadro sobre as fórmulas
quânticas da sexuação. Nesse livro, Lacan
coloca em xeque toda a construção teórica
sobre a feminilidade apresentada por Freud
e, até então, por ele mesmo. Trata-se,
portanto, de um avanço teórico, visto que
desloca o Complexo de Édipo do cerne da
discussão sobre a sexualidade. Quanto a
isso, Soler (2005) argumenta que Lacan
refuta o campo do mito na Psicanálise – o
Édipo, o Totem e Tabu – para reduzir a
questão da sexuação à lógica da castração,
salientando que essa lógica não regula todo
o campo do gozo, visto que parte dele não
passa pelo Um fálico e permanece real,
fora do simbólico. Assim, para situar a
feminilidade, Lacan sustentou um além
Édipo, bem como passou a considerar que
o conceito de falo não é suficiente para dar
conta de tudo o que se passa com a
sexualidade das mulheres.
O conceito de falo acompanha as
teorizações
psicanalíticas
sobre
a
sexualidade, sendo um termo caro,
emblemático e controverso que não
escapou a muitos questionamentos 3 e
3
Entre os questionamentos, não podemos deixar de
mencionar as críticas empreendidas pela própria
Butler, em seu livro Problemas de gênero, à
Psicanálise por pensar a sexualidade a partir dos
conceitos de falo, Édipo, diferença sexual e
simbólico.
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confusões, especialmente ao se igualar falo
ao pênis (vertente imaginária). Confusão
que rendeu o esforço por parte de Lacan
em distanciar a noção de falo do órgão
masculino, para situá-lo como um
significante – que, como todo significante,
tem lugar no discurso do Outro – e
posteriormente, como uma função – tal
como é pensado nos Seminários 18, 19 e
20.
Lacan (1958/1998) pondera que
Freud, ao se servir do termo falo, extraiu a
referência de simulacro que a imagem
fálica tinha na antiguidade. Os símbolos
em forma de falo no mundo romano, grego
e egípcio visavam atrair fertilidade e sorte,
bem como afastar o “mau-olhado”
(Calvicchioli, 2008; Brandão, 2001). O
significado de sua imagem tinha um
estatuto metonímico: ele representava o
coito, a relação sexual, e não propriamente
o orgão masculino 4 (Biblio, 2018). Os
cidadãos passaram a fabricar falos e a
organizar procissões em culto ao deus do
falo (Priapo) como uma forma de antídoto
contra a impotência, traduzindo-se em
símbolo de fecundidade (Brandão, 1991).
Portanto, o que se extrai desse termo é que
desde a antiguidade ele se liga à esfera da
sexualidade e da fertilidade.
Lacan demarca que, na ausência do
instinto que produziria uma ordenação e
um saber sobre a sexualidade, o sujeito tem
do campo do Outro um significante, um
recurso puramente simbólico, para lidar
com sua estruturação sexual. Ele comporta
a presença e a ausência. É, nesse sentido
que, em seu primeiro ensino, seguindo os
passos de Freud, Lacan situou o homem
como aquele que pensa ter o falo, e a
4
Referência ao livro Falo no jardim: Priapéia
Grega, Priapéia Latina, do professor de letras
clássicas da USP, João Ângelo Oliva Neto,
extraído a partir dos comentários sobre sua
participação em uma atividade da Biblioteca da
Escola Brasileira de Psicanálise (EBP-MG) em
preparação ao XXII Encontro Brasileiro do
Campo Freudiano – A queda do falocentrismo:
consequências para a Psicanálise.
mulher como aquela que não tem e que se
faz ser o falo – estando a sexualidade
ordenada nesses termos. Já no fim do seu
segundo ensino, mais precisamente com os
avanços teóricos produzidos a partir das
fórmulas quânticas da sexuação, Lacan
continua a apontar que a referência fálica é
um organizador da sexualidade, mas
reconhece que a mulher não está
totalmente submetida a ela.
Nesse sentido, Lacan (1972-73/1985)
passa a discutir a questão da sexuação por
meio da oposição de duas lógicas (a do
todo-fálico nos homens e do não-todo nas
mulheres) e também a duas espécies
distintas de gozo (o fálico e o
suplementar). Lacan é categórico ao situar
que essa separação não corresponde à
distinção anatômica dos sexos. O que
realmente importa é a posição sexuada
determinada no discurso do sujeito, que
pode inclusive estar em desacordo com sua
própria anatomia. Não se trata, portanto, de
dizer que o sujeito nascido com o sexo
masculino estaria localizado na lógica
fálica e aquele nascido com o órgão
feminino estaria não-todo regido pelo falo.
A proposta lacaniana segue em outra
direção. É considerado do “lado
masculino” aquele totalmente regido pela
lógica fálica, aquele que se agarra e
estrutura seu gozo de forma defensiva pelo
falo e “feminino”, aquele que experimenta
e se posiciona a partir do gozo além do
falo. Para exemplificar essa modalidade de
gozo além do falo, Lacan cita São João da
Cruz e sua experiência mística de gozo.
Vale, então, ressaltar que esse gozo além
do falo permite pensar um campo mais
aberto às expressões e vivências com o
sexual e o gozo. Nesse sentido, não haveria
nenhuma objeção para pensar as mulheres
trans, por exemplo, pois não estamos aqui
no registro da identidade de gênero, nem
das práticas sexuais, mas do gozo. A
pergunta é sobre como o sujeito aceita,
nega, objeta ou satisfaz a função fálica –
operador lógico da sexuação nesse
momento do ensino lacaniano.
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Enfim, homens e mulheres são meros
semblantes, e a lógica do todo e não-todo
fálico não se refere à “anatomia ou ao
gênero, mas ao corpo falante, ao sujeito e
às suas marcas de gozo, à realidade sexual
do inconsciente e à dimensão sintomática
que lhe corresponde” (Macêdo, 2016, pp.
5-6). O interesse de Lacan está, portanto,
em discutir, para além dos semblantes, as
ordenações distintas de gozo e suas formas
de parcerias sexuais – sempre sintomáticas,
vale dizer, já que não há dois conjuntos
binários fechados, homem e mulher, que se
complementariam.
Nessas ordenações distintas de gozo,
Lacan (1972-73/1985) identifica o homem
como aquele que está totalmente inscrito
na função fálica, como já mencionamos.
Isso quer dizer que todo homem e o
homem como um todo está submetido à
castração.
Contudo,
a
partir
de
formulações lógicas, ele inclui a isso que
existe um homem para quem a função
fálica não funciona; existe um homem que
não está submetido à castração. Isso,
porém, é uma referência puramente mítica,
visto que esse homem seria o pai da horda
primitiva, configurando o Um totalizante.
A partir da relação entre a regra e a
exceção, que poderia ser pensada como
uma contradição, Lacan argumenta que a
exceção confirma a regra e configura o
todo masculino como um conjunto fechado
– todo homem. Esse Um totalizante indica
para o homem um modo de gozo fálico,
localizado e limitado, com um caráter
autístico de gozo, diz-nos Lacan (197273/1985).
Assim, uma vez que portar o pênis
não assegura o que é ser homem, a crença
é colocada no pai mítico como o portador
do falo, cujo efeito é unificar a experiência
de ser homem, no qual todos precisam se
posicionar de forma semelhante. A
sexuação fálica é sustentada, portanto, por
uma estrutura de “ficção”. Não obstante, é
importante destacar que a posse fálica é
instrumento de uma potência enganosa e
signo da impostura masculina nos termos
lacanianos.
Do lado da mulher, Lacan (197273/1985) propõe que o feminino não tem
um gozo guiado unicamente pelo falo. Em
termos lógicos, ele formaliza que não
existe mulher para quem a função fálica
não funcione, que não há mulher que não
esteja assujeitada à castração. Vale destacar
que, para Lacan, a noção de castração está
relacionada com o fato de que, em
determinado momento, o sujeito é forçado
a renunciar a algum gozo. Ou seja, o que
está em jogo é a perda de gozo e não do
pênis; portanto, essa noção pode se aplicar
a homens e mulheres.
Ainda sobre a lógica da sexuação do
lado das mulheres, Lacan (1972-73/1985)
estabelece que para não-todo sujeito é
correto afirmar que a função fálica
funcione. Isso implica em dizer que a
mulher é não-toda referida à castração, de
modo que nem tudo em uma mulher está
submetido à lei do significante. Algo fica
de fora e ultrapassa essa dimensão – o que
lhe dá acesso a um gozo suplementar, um
gozo ilimitado no corpo do qual os
místicos dão testemunho.
Diante disso, não é possível
estabelecer a mesma relação entre a regra e
a exceção do lado feminino, tal como é
pensado para o lado do homem. Dizendo
de outra maneira, não existe do lado
feminino nenhuma figura fundadora de um
conjunto de mulheres, já que nenhuma se
situa fora da castração e nem faz exceção à
regra. Isto é: as mulheres não podem ser
incluídas em um conjunto fechado, só
podendo ser contadas uma a uma. A
radicalidade das diferenças entre as
mulheres alcança, assim, uma posição de
destaque. O que é ofertado na cultura, no
simbólico, para nomear e tentar cernir a
experiência do feminino é insuficiente e
precário. Nenhum significante, nenhum
lugar simbólico preestabelecido, nenhum
predicativo é capaz de defini-la, cabendo a
cada uma delas inventar seu próprio modo
de feminilidade.
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A consequência do não-todo,
portanto, é que a mulher, tal como o é para
o homem, é Outro dela mesma; ela é para
ela o próprio desconhecido. Isso explica a
curiosidade e o encantamento que as
mulheres têm umas pelas outras, pois, na
medida em que não existe um traço
simbólico que unifique e universalize todas
as mulheres, o recurso pode ser tentar
buscar em sua semelhante um traço de
feminilidade que lhe escapa. Dizendo de
outro modo, não há um único referente do
lado da mulher, permitindo dizer que “A
mulher não existe” enquanto um conjunto.
Nesse sentido, Ondina Machado (2012, p.
10 nos dá a seguinte indicação:
Um conjunto se forma em torno de uma
exceção interior ao próprio conjunto. No
caso do gozo feminino, como ele não se
organiza somente pelo falo, não há, sob a
ótica do simbólico, um ponto de
identificação que conjugue seus elementos.
É nesse sentido que esse conjunto não existe
porque ele só comporta diferenças.
O impossível da categoria universal de
“mulher”
É inegável toda a força produtiva e
contestatória produzida pelo movimento
feminista ao longo da história do Ocidente,
no qual a categoria “mulher” foi de
extrema importância para demarcar um
lugar, para apontar desigualdades e
preconceitos, bem como para reivindicar
direitos. Entretanto, em seu livro
Problemas de gênero: feminismo e
subversão da identidade (1990/2016),
Butler pondera que a “mulher”, como uma
categoria de gênero, foi entendida pelo
movimento feminista como tendo uma
identidade definida, como um sujeito que
deveria ser representado politicamente de
modo a garantir sua visibilidade e
legitimidade.
Servir-se dessa identidade revelou
sua importância, tendo em vista as
condições culturais, sociais e econômicas
que as mulheres viviam e toda falta de
representatividade que se colocava. Se, por
um lado, a representação serve como uma
ferramenta política para legitimar lutas e
dar voz às que são oprimidas,
discriminadas e subjugadas, por outro,
exerce uma função normativa de unificar
mulheres em categorias e tornar
homogêneo sujeitos singulares.
Convém situar que o feminismo ao
qual Butler se refere aqui é o movimento
feminista hegemônico, branco, centrado
nas experiências dos Estados Unidos e
Europa. Salientar essa localização no
campo do conhecimento torna-se relevante
para não desprezarmos a existência na
história de outras formas de lutas
protagonizadas por mulheres contra a
opressão em diferentes contextos de classe,
raça e fora do eixo europeu e americano.
Assim, para Butler, é no interior do
próprio movimento feminista que a
categoria mulher passa a ser repensada e
questionada, posto que o sujeito mulher
não é mais tomado como estável ou
permanente. De acordo com Carla
Rodrigues (2005), Butler sinalizou que
estamos diante de um problema, a saber: a
inexistência do sujeito que o feminismo
quer representar. Vale ressaltar que esse
debate já estava em evidência no meio
acadêmico e que, portanto, antecede a
Butler (Rodrigues, 2005). Inclusive, essa
discussão só é possível graças aos
questionamentos
anteriormente
apresentados, por exemplo, pelas teóricas
feministas de origem proletária e pelas
feministas negras.
Somando-se ao problema de se
pensar a categoria mulher como universal,
Butler inclui no debate a crítica ao modelo
binário de sexo e gênero. Esse inclusive, é
o ponto de partida central da autora, mais
do que propriamente a noção de
interseccionalidade. Sua crítica parte do
pressuposto de que a categoria “mulher”
foi construída no interior de uma matriz
heterossexual de poder, no qual o homem é
o opressor e a mulher oprimida. Portanto,
seu esforço se encontra tanto em
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desconstruir a noção de gênero quanto de
sexo.
Ao situar a categoria mulher em um
ponto
de
indeterminação,
Butler
(1990/2016) pondera que isso não
culminaria em um fracasso do feminismo;
pelo contrário, ela sustenta que “problemas
são inevitáveis e nossa incumbência é
descobrir a melhor maneira de criá-los, a
melhor maneira de tê-los” (Butler,
1990/2016, p. 7). Sua intenção é, portanto,
questionar um sistema epistemológico que
ontologiza
a
categoria
“mulher”,
produzindo uma identidade primária, que
responde a uma heterossexualidade
compulsória. Butler (1990/2016) entende
que a formalização de uma identidade de
mulher comum como fundamento da
política feminista coloca obstáculos para
uma compreensão crítica sobre as
construções e normas disciplinadoras que
sustentam as identidades por meio de um
binarismo de gênero. Nesse sentido, a
construção de mulheres como o sujeito
representado pela teoria feminista pode
atuar como uma reinteração das normas de
gênero – sendo contrário ao objetivo
feminista. Se a teoria faz críticas às
naturalizações perpetuadas pelo sistema
patriarcal do lugar destinado à mulher,
como então essencializar o sujeito possível
de ser representado pelo feminismo?
Para dar um encaminhamento a essa
discussão, Butler apoia-se em Focault.
Relendo Butler a partir do pensamento
foucaultiano, Márcia Arán e Carlos Peixoto
Junior (2007) argumentam que as
regulações de gênero constituem uma
modalidade
de
poder
específico,
produtoras de efeitos constitutivos sobre a
subjetividade. Nesse sentido, os discursos
reguladores que produzem o gênero do
sujeito são os mesmos responsáveis pela
produção de sua sujeição – o que leva a
filósofa a afirmar que o gênero é uma
forma de regulação social. Nesse sentido,
não se trata de estabelecer um abismo entre
regulação e gênero, no qual o primeiro
atuaria sobre o sujeito sexuado, visto que o
sujeito só passa a existir à medida que se
sujeita às regulações. E, para Butler, tais
regulações instituem ao mesmo tempo uma
heterossexualidade compulsória e uma
hierarquia entre masculino e feminino
(Arán & Peixoto Junior, 2007).
Seguindo de forma mais radical o
pensamento
foucaultiano,
Butler
(1990/2016) problematiza o próprio
discurso feminista. Ela considera que a
política que representa as mulheres como
sujeito do feminismo é uma produção
discursiva com fins representacionais que
ao mesmo tempo constitui as próprias
mulheres. Ou seja, a política feminista
produz sujeitos com traços de gênero em
conformidade com a estrutura binária:
mulher, que luta contra a submissão e
objetificação, em oposição ao homem
entendido como dominador e opressor.
Ainda por esse viés, toda questão da
opressão das mulheres é reduzida a uma
forma única e hegemônica de dominação
masculina, no qual a noção de um
patriarcado universal pareceu atender –
noção que vem sendo criticada em alguns
estudos feministas.
Outro problema levantado por Butler
está no fato de que mesmo o uso do termo
mulheres para abarcar uma pluralidade
tornou-se problemático, pois o gênero
sofre alterações no que concerne a sua
coerência e consistência, dependendo do
contexto histórico e social em que se
insere. Além disso, não é possível dissociar
o gênero das interseções políticas e
culturais (raciais, classistas, étnicas,
sexuais e regionais) de identidades
constituídas que o acompanha. Portanto, a
luta política travada inicialmente pelo
movimento feminista desconsiderou outras
especificidades
do
feminino,
desvalorizando diferentes modalidades de
opressão e outros eixos de poder ao
promover uma noção singular e estável de
identidade, que não se encerra no
binarismo (Butler, 1990/2016).
Nessa mesma linha, Paul B. Preciado
(2018, p. 118) argumenta que o feminismo,
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ao reduzir seu sujeito representável às
mulheres, pode vir a atuar como “um
instrumento de normatização e de controle
político”. Para o autor, não há neutralidade
ou universalidade possível no termo
“mulher”, já que neste “esconde-se uma
multiplicidade de vetores de produção de
subjetividade:
sexo,
raça,
classe,
sexualidade, idade, capacidade, diferenças
geopolíticas e corporais, etc.” (Preciado,
2018, p. 118).
Portanto, mesmo tendo uma proposta
emancipatória, a ideia de um sujeito
estável e uno no feminismo encontra seus
limites por revelar os poderes coercitivos e
reguladores em suas reivindicações
representacionais. Não há uma base única
e permanente no feminismo. Pensar com
essa lógica, para Butler (1990/2016), é
naturalizar e imobilizar a identidade de
mulher, pois ela só encontra estabilidade e
coerência na matriz heterossexual. Logo,
isso leva a excluir outros sujeitos que não
se conformam com as exigências
normativas.
Diante disso, o intuito de Butler,
segundo Rodrigues (2005), é desconstruir
o conceito de gênero no qual o feminismo
está fundamentado. A política feminista
encontrou na divisão sexo e gênero seu
apoio para introduzir questionamentos e
reivindicações sobre a posição da mulher
na sociedade. O sexo, entendido como
natural, e o gênero, como algo socialmente
construído, foram os pilares fundacionais
dessa política. A partir desses pilares, as
teorias
feministas
procuraram
desnaturalizar o papel associado às
mulheres de fragilidade e submissão, que
serviu ao longo da história (e ainda serve)
para justificar opressões. Nesse caso, o
sexo foi aceito nas teorias feministas como
substância, como essência, como algo
idêntico a si mesmo – portanto, uma
proposição metafísica –, ao passo que o
gênero foi tomado como um “atributo” da
pessoa (Rodrigues, 2005).
Ainda de acordo com Rodrigues
(2005), podemos afirmar que a troca do
termo mulher para mulheres não é
suficiente para Butler, pois, na visão da
filósofa, ele ainda comporta uma
normatização e promove restrições à teoria
feminista ao tentar representar um sujeito
estável e fixo. Ou seja, trata-se de
distanciar o feminismo do campo do
humanismo, no qual se pressupõe uma
essência universal do homem. A ideia de
um sujeito com identidade fixa impede a
possibilidade de pensá-lo como um devir
permanente.
Em outras palavras, o feminismo se
alimenta do sujeito “mulher” como
categoria fixa, detentor de uma identidade
definida
para
poder
representar
politicamente o sujeito em questão. No
entanto, essa categorização da mulher
promove uma ideia naturalizante e
essencialista. Há uma presunção de um
binarismo na criação de um movimento
que precisa representar um gênero fixo
para atestar a sua existência. O movimento
feminista passa, então, a operar em
sintonia com a própria estrutura que é
questionada em sua teoria, o discurso
binário. O feminismo é um lugar
produzido a partir do discurso que
generaliza as posições hegemônicas e que
também as produz. Assim, enquanto poder
político, ou produtor de um discurso,
promove aquilo que condena e sobre o
qual tece as suas críticas. De acordo com
Butler (1990/2019, p. 19), “Assim, o
sujeito feminista se revela discursivamente
constituído, e pelo próprio sistema político
que supostamente deveria facilitar sua
emancipação”. Para Butler, as mulheres
não devem apenas questionar sobre como
podem ser representadas politicamente,
devem também perguntar como o discurso
feminista produz e reprime por meio da
categorização da “mulher”, enquanto
sujeito representável, na mesma estrutura
de poder pelo qual almeja se emancipar.
Vale destacar que uma das
repercussões dessa teorização de Butler foi
o fortalecimento da teoria queer e dos
movimentos organizados por gays,
Pesquisas e Práticas Psicossociais, 16(3), São João del-Rei, julho-setembro de 2021. e-3541
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Bonfim, F., & Schechter, R. Crítica à categoria universal de “mulher”: por uma articulação entre feminismo e
Psicanálise
lésbicas, bissexuais e transgêneros – o que
levou alguns a situar sua teoria como pósfeminista. Em entrevista a Porchat (2010),
Butler afirma que “é feminista” em termos
categóricos, sabendo que com isso estaria
se rendendo à linguagem de identidades –
ponto sobre o qual tece inúmeras críticas.
Por outro lado, sua função é ressaltar que
ainda que questione a identidade fixa de
mulher, não é possível abandonar o
feminismo, visto que, mesmo com alguns
avanços conquistados, o sofrimento, as
desigualdades, a opressão, a violência e a
discriminação econômica contra a mulher
não cessaram. A luta ainda está muito viva,
segundo ela. Portanto, o debate que Butler
introduz é sobre as formulações no interior
do movimento, e não uma teorização que
se colocaria como antifeminista (Porchat,
2010).
Impasses do discurso universalizante no
interior do movimento feminista
Quando o sujeito mulher passa a ser
questionado na própria teoria feminista,
surge toda uma discussão de quem são os
sujeitos que podem ou não ser
representados pelo feminismo. Para Butler
(1990/2019),
a
representação
no
feminismo é constituída pela exclusão dos
que não se conformam à norma, daqueles
que não estão inseridos em um contexto
binário. Diante disso, Butler (1990/2019,
p. 25) faz o seguinte questionamento: “Que
relações de dominação e exclusão se
afirmam não intencionalmente quando a
representação se torna o único foco da
política?” Com isso, Butler faz eco a uma
crítica que a antecede, fruto de um
conjunto de importantes lutas travadas por
feministas racializadas, homossexuais e
periféricas.
Se antes do feminismo as mulheres
não eram representadas ou mesmo alçadas
a uma categoria política com possibilidade
de representação, foi a partir desse
movimento
político
que
sujeitos
identificados como mulher vieram a ser
representados e subjetivados como
cidadãos que podiam e deveriam lutar pela
garantia dos seus próprios direitos. Sendo
assim, não questionamos aqui a
legitimidade do feminismo como política
que promoveu inúmeras conquistas sociais,
econômicas e jurídicas. No entanto, o que
podemos perceber mediante sua história é
que, em seu início, quem representava e
era representável tinha cor e classe: eram
mulheres brancas de classe média.
Foi a partir da diferença de classes
que o feminismo passou a ser questionado
em sua própria estrutura. As discussões
sobre classe e de como isso dividia as
mulheres
veio
antes
ainda
dos
questionamentos de raça. De acordo com
bell hooks (2019), as mulheres brancas
proletárias
reconheceram
pontos
excludentes do feminismo e se insurgiram
quanto à presença de classes no interior do
movimento feminista. Para a teórica norteamericana: “Inserir classe na pauta
feminista abriu um espaço em que
interseções entre classe e raça ficaram
aparentes” (hooks, 2019, p. 69).
No início do movimento feminista,
as reinvindicações das mulheres brancas,
de classes mais abastadas, eram mais
visíveis do que as de mulheres negras e
racializadas de outras classes. Isso se deu
na esfera do poder público, pois as
questões levantadas pelas mulheres
brancas
eram
as que ganhavam
visibilidade. No entanto, o feminismo
negro começou a se insurgir contra a
invisibilidade das pautas das mulheres
negras a partir da segunda onda do
feminismo, entre os anos 1960 e 1980
(Ribeiro, 2018). Apontando para as
diferenças de pautas e reinvindicações,
hooks (2015, p. 203) escreve que
mulheres negras observaram o foco
feminista branco na tirania masculina e na
opressão das mulheres como se fosse uma
revelação “nova” e acharam que esse foco
tinha pouco impacto na sua vida. Para elas, o
fato de as mulheres brancas de classe média
e alta precisarem de uma teoria para
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Psicanálise
“informá-las de que eram oprimidas” era
apenas mais uma indicação de suas
condições de vida privilegiadas.
Quando os marcadores de raça ou
classe não são reconhecidos na teoria ou
militância feminista, há a impossibilidade
de garantir que múltiplas mulheres possam
ser representadas a partir de um
movimento político. Ou seja, quando as
mulheres negras deixaram evidente a falta
de visibilidade que viviam no próprio
feminismo – que até a segunda onda se
considerava como sendo hegemônico e
universal –, foi possível compreender a
instabilidade do movimento como algo que
não pode representar múltiplos sujeitos. A
falta de empatia e reconhecimento das
opressões raciais, de classe, entre outras,
provocou a exclusão de várias mulheres do
feminismo. Nesse sentido, bell hooks
(2015, p. 196) comenta que
As mulheres brancas que dominam o
discurso feminista – as quais, na maior parte,
fazem e formulam a teoria feminista – têm
pouca ou nenhuma compreensão da
supremacia branca como estratégia, do
impacto psicológico da classe, de sua
condição política dentro de um Estado
racista, sexista e capitalista.
Para Sueli Carneiro (2003), é por
meio de um novo olhar feminista e
antirracista que surge a possibilidade de
uma identidade política que possa
representar a mulher negra. O movimento
de mulheres negras pode tornar visíveis as
reinvindicações das pautas raciais e, ao
mesmo tempo, as lutas feministas no
Brasil, fazendo com que ambas as
vertentes reconheçam as especificidades
das mulheres negras. Enegrecer a luta
feminista, para Carneiro, tem uma
importância de ação concreta, pois permite
instituir na agenda do movimento a
necessidade de pensar políticas públicas e
de saúde que considerem o peso da questão
racial.
Há de se levar em conta, por
exemplo, um modo particular de violência
contra as mulheres negras, no qual é
preciso pensá-la pelo viés do conceito de
“violência racial”. Há ainda a necessidade
de delimitar e dirigir a atenção para os
problemas de saúde específicos, que
incidem na população negra, e sobre as
políticas demográficas que excluem e
exterminam essa população. Não menos
importante,
faz-se
necessário
uma
discussão crítica sobre os mecanismos de
seleção do mercado de trabalho em torno
do perfil de “boa aparência”, na medida em
que mantém privilégios e desigualdades
entre mulheres brancas e negras (Carneiro,
2003).
Diante disso, se constatamos que as
opressões não incidem igualmente em cada
sujeito, a questão se coloca em como poder
representá-los. Os questionamentos de
Butler
(1990/2019)
incidem
na
problemática no que tange a delimitar se
há algo em comum que permeie todas as
mulheres.
Estariam
as
mulheres
identificadas a partir das opressões? Mais
ainda, existe algo que permeie todas as
práticas de ser mulher, de se sentir mulher,
de performar um gênero dito feminino, que
possamos encontrar em todas as culturas?
Posto isso, Butler (1990/2019, p. 21)
argumenta que
A presunção política de ter de haver uma
base universal para o feminismo, a ser
encontrada numa identidade supostamente
existente em diferentes culturas, acompanha
frequentemente a ideia de que a opressão das
mulheres possui uma forma singular,
discernível na estrutura universal ou
hegemônica da dominação patriarcal ou
masculina.
Para
Butler
(1990/2019),
o
feminismo corre o risco de fracassar, já
que há uma recusa em ver que se utiliza
dos mesmos mecanismos presentes nos
discursos opressores. Apesar de apontar a
instabilidade do sujeito, daquele que
precisa se fazer representar por intermédio
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Bonfim, F., & Schechter, R. Crítica à categoria universal de “mulher”: por uma articulação entre feminismo e
Psicanálise
das demandas políticas, Butler não orienta
para
uma
recusa
das
políticas
representacionais, mas sinaliza para a
possibilidade de existir um período pósfeminista, momento em que poderia haver
a reflexão sobre o sujeito inserido no
feminismo e a premissa de existência desse
sujeito como categoria fixa. Butler aponta
ainda para a importância de formular a
prática da política feminista por meio de
uma outra política representacional.
É a partir da necessidade de se
apontar uma política de representação que
podemos pensar sobre o uso político da
identidade com Avtar Brah (2006). Para a
autora, em alguns momentos esse uso se
justifica principalmente para criar uma
unidade de reinvindicação de direitos. Por
meio da criação dessas identidades, podese exceder a sua origem de opressão e
discriminação, bem como utilizá-las como
ferramenta política e forma de resistência.
Quando pensado como resistência, o uso
político do conceito de identidade
transcende à sua origem. Em vez de se
criar uma identidade oriunda de um olhar
de fora, estereotipado, pode-se pensar a
partir de dentro e mobilizar aquilo pelo
qual se luta. Ao localizar um determinado
grupo e delimitá-lo como categoria, temos
a possibilidade não só de pensarmos sobre
as vivências desse grupo, mas também de
propor e elaborar políticas públicas
específicas para atender às demandas
grupais. Nas palavras de Brah (2006, p.
375), “Em sua necessidade de criar novas
identidades políticas, grupos dominados
muitas vezes apelarão para laços de
experiência cultural comum a fim de
mobilizar seu público”.
Sobre as políticas identitárias,
Kimberlé Crenshaw (1991) – uma das
principais intelectuais norte-americanas
sobre a teoria crítica da raça – atenta para a
tensão existente desse uso. Para grupos
tidos como minoritários, Crenshaw
considera que o uso político tem sido uma
fonte
de
força,
comunidade
e
desenvolvimento intelectual. No entanto,
categorias identitárias, como raça e gênero,
são muitas vezes vistas como vestígios de
dominação e sujeição. Outro problema
apontado pela intelectual é que o uso do
conceito de identidade frequentemente
ignora diferenças intragrupais. No artigo
“Mapping the Margins: Intersectionality,
Identity Politics, and Violence against
Women of Color”, Crenshaw (1991, p.
1242, tradução nossa) analisa que
No contexto da violência contra as mulheres,
essa exclusão da diferença nas políticas de
identidade
é
problemática,
fundamentalmente porque a violência que
muitas
mulheres
experimentam
é
frequentemente
moldada
por
outras
dimensões de suas identidades, como raça e
classe. Além disso, ignorar a diferença
dentro dos grupos contribui para a tensão
entre os grupos, outro problema da política
de identidade que incide nos esforços para
politizar a violência contra as mulheres. Os
esforços feministas para politizar as
experiências das mulheres e os esforços
antirracistas para politizar as experiências
das pessoas racializadas, frequentemente,
procederam como se os problemas e as
experiências de cada grupo ocorressem em
terrenos mutuamente exclusivos.
Crenshaw (1991) aponta ainda que as
experiências enfrentadas por mulheres
negras não podem ser separadas em
diferentes dimensões, desconsiderando os
marcadores de raça ou de gênero. A
indissociabilidade entre esses marcadores
também é apontada por Grada Kilomba
(2019, p. 94) nos seguintes termos: “A
experiência envolve ambos porque
construções racistas baseiam-se em papéis
de gênero e vice-versa, e o gênero tem um
impacto na construção de raça e na
experiência do racismo”.
É com base nessa problemática que
abordamos uma noção fundamental para as
discussões do feminismo: o conceito de
interseccionalidade. A interseccionalidade
explicita como as múltiplas dimensões em
que raça, gênero e outras identidades
sociais interagem e se interseccionam para
mostrar que não é possível avaliar apenas
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Bonfim, F., & Schechter, R. Crítica à categoria universal de “mulher”: por uma articulação entre feminismo e
Psicanálise
uma única vertente da experiência quando
estudamos sistemas relacionados à
opressão. “De pronto, a interseccionalidade
sugere que raça traga subsídios de classegênero e esteja em um patamar de
igualdade analítica” (Akotirene, 2019, p.
36). Portanto, analisar as opressões vividas
por mulheres negras sob o viés do racismo
ou do machismo separadamente não abarca
toda a realidade em que essas múltiplas
opressões submetem essas mulheres.
Por exemplo, em seus estudos,
Crenshaw (1991) analisa experiências de
mulheres racializadas vítimas de violência.
Para se pensar em estratégias de
intervenção, não é suficiente considerar as
situações vividas por essas mulheres
somente sob o viés do gênero. Por não
compartilharem a mesma classe ou cor, as
barreiras enfrentadas são absolutamente
diferentes. Para Crenshaw, o caso das
mulheres racializadas vítimas de violência
exemplifica como os diferentes padrões de
subordinação se interseccionam em suas
experiências. Pelo fato de as mulheres
negras serem submetidas pelo racismo de
uma forma diferente das opressões sofridas
por homens negros, e vivenciarem o
machismo de uma forma distinta das
mulheres brancas, o feminismo e as lutas e
práticas antirracistas separadamente são
limitadas para descreverem a experiência
vivida por elas. Para a autora, embora as
pautas formais do feminismo e das lutas
antirracismo incluam mulheres negras, o
racismo
normalmente
não
é
problematizado no feminismo, assim como
o sexismo não é problematizado nos
discursos antirracistas.
Nesse sentido, podemos dizer que o
feminismo negro testemunha e escancara
toda uma dificuldade para o próprio
movimento feminista de propor uma
universalidade em torno de pautas e lutas
sob a categoria “mulher”. O lugar da
mulher negra na estrutura social aponta
para problemas que vão além do gênero.
Ao combinar questões de raça, classe e
formas de opressão diversas, o feminismo
negro
contribui
para
um
olhar
interseccional altamente importante para o
avanço de perspectivas teóricas e políticas
tanto do feminismo quanto de outros
campos de produção de conhecimento.
Considerações finais
Diante dos desdobramentos que
traçamos neste artigo, foi possível perceber
os atravessamentos que a inexistência de
uma identidade “mulher” engendra no
sujeito e na política feminista. Da
Psicanálise e, consequentemente, da
clínica, recolhemos que o não-todo
feminino se articula com a falta de um
suporte, de um significante, de um traço
identificatório que defina o que é ser
mulher, no qual cada uma precisa se
inventar – o que lhe dá, sem dúvida,
maiores possibilidades de operar com os
semblantes, ao mesmo tempo em que
comporta dificuldades quanto a faltas de
garantias e sustentação para lidar com a
complexidade do sexual e do seu gozo. Se
da cultura vem sendo imposta às mulheres
a identificação com o lugar de mãe com
características como a passividade, a
fragilidade, a submissão, a falta, todas
essas identificações fracassam e não
permitem dizer o que é uma mulher e
como ela pode experimentar e viver sua
sexualidade, pois a sexuação sempre
implica em um trabalho singular de saberfazer com o gozo.
Na política feminista que extraímos
das concepções de Butler, constatamos o
quanto a identidade “mulher” foi
importante em um dado momento histórico
para contrapor um sistema que as oprimia
em nível cultural, social e econômico, com
um rechaço a sua representatividade.
Atualmente, contudo, essa unificação tem
uma função normativa que pretende
homogeneizar sujeitos singulares, visto
que desconsidera as interseções políticas e
culturais (raciais, classistas, étnicas,
sexuais
e
regionais).
Isso
teve
consequências na própria história do
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Bonfim, F., & Schechter, R. Crítica à categoria universal de “mulher”: por uma articulação entre feminismo e
Psicanálise
movimento feminista, que em seu início
abarcou predominantemente mulheres
brancas de classe média com suas formas
particulares de opressão e dificuldades.
É nesse sentido que o feminismo
negro vem se colocar como um ponto
questionador dos impasses do discurso
universalizante no interior da teoria
feminista, indicando a necessidade de sua
reformulação e da não invisibilização de
pautas e lutas de mulheres racializadas e
periféricas, no qual o conceito de
interseccionalidade torna-se fundamental
para uma abordagem teórica e política do
feminismo. Não seria demais dizer que o
feminismo negro extrapola o próprio
campo do feminismo, uma vez que tem
produzido
importantes
avanços
epistemológicos em diferentes campos de
saber, inclusive para a Psicanálise. Aliado
a uma perspectiva decolonial, o feminismo
negro tem produzido um forçamento sobre
os psicanalistas a respeito da necessidade
de refletir sobre as particularidades do
processo de constituição e sobre a
modalidade de sofrimento específico da
pessoa negra por estar inserida em um
sistema racista. Foge do escopo deste
trabalho nos aprofundarmos nessa questão,
mas não podemos deixar de mencionar
algumas importantes mulheres negras e
psicanalistas que têm contribuído para o
avanço da práxis psicanalítica, como
Neusa Santos, Isildinha Nogueira, Lélia
Gonzalez e Grada Kilomba. Avanços
importantíssimos para pensarmos uma
clínica descolonizada em solo brasileiro.
Assim, para além dos caminhos e
alcances teóricos e práticos distintos,
identificamos que tanto a Psicanálise
lacaniana como a política do movimento
feminista questionam a universalidade da
noção de mulher e a inconsistência dessa
identidade, permitindo reconhecer uma
aproximação
onde
historicamente
predominam tensões. Isso não implica em
desconsiderar que elas existem, no entanto,
nossa intenção foi sustentar que, para além
das divergências, há também uma possível
articulação que poderia enriquecer o
debate, bem como salientar que seria
frutífero pensar em mais possibilidades de
diálogo entre a Psicanálise e o feminismo.
Destarte, encerramos ressaltando que
não há para Lacan nem para Butler
nenhuma essência de mulher, logo, suas
possibilidades estão abertas a invenções.
Posto isso, as precisas considerações de
Rafael Cossi e Christian Dunker (2017, p.
7) nos parecem bem oportunas para
finalizar essa discussão:
A mulher surge como uma categoria
intrinsecamente crítica da lógica da
identidade, como queria Butler. Ficamos
então entre as múltiplas identificações em
Butler e nenhuma identificação em Lacan. A
mulher como gênero-categórico deve ser
refutada. Mulher é uma construção
normativa que promove a ilusão de uma
identidade de que tanto Butler quanto Lacan
denunciam a precariedade. É só a partir da
conceituação de que a mulher não pode
existir que as construções históricas
referentes às mulheres podem mudar.
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