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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO A ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY: A PERCEPÇÃO DE FONTE E GESTO COMO BASE PARA A COMPOSIÇÃO MUSICAL ELETROACÚSTICA ORLANDO SCARPA NETO Rio de Janeiro 2013 A ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY: A PERCEPÇÃO DE FONTE E GESTO COMO BASE PARA A COMPOSIÇÃO MUSICAL ELETROACÚSTICA ORLANDO SCARPA NETO Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da UFRJ (Poéticas da criação musical), Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Música (Poéticas da criação musical). Prof. orientador: Prof. Dr. Rodrigo Cicchelli Velloso Rio de Janeiro Fevereiro de 2013 A ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY: A PERCEPÇÃO DE FONTE E GESTO COMO BASE PARA A COMPOSIÇÃO MUSICAL ELETROACÚSTICA Autor: Orlando Scarpa Neto Orientador: Rodrigo Cicchelli Velloso Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Música(Poéticas da criação musical), Escola de Música, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Música. Aprovada por: _______________________________ Presidente, Prof. Dr. Rodrigo Cicchelli Velloso _______________________________ Profa. Dra. Carole Gubernikoff _______________________________ Prof. Dr. Rodolfo Caesar Rio de Janeiro Fevereiro de 2013 AGRADECIMENTOS À minha mãe, Maria Anunciação Almeida Scarpa, por absolutamente tudo. Ao meu falecido Pai, Paulo Cesar do Nascimento Scarpa, por ter me apresentado Velvet Underground, The Jimi Hendrix Experience, Neil Young, entre outras coisas, quando eu ainda era garoto. O impacto que aquilo teve na época reverbera em vários trechos deste trabalho e da minha vida. Ao meu irmão, Paulo César Almeida Scarpa, por ter sempre me mostrado música, livros e idéias interessantes e inspiradoras durante esses anos todos. Minha principal referência bibliográfica, para tudo, sem dúvida. À CAPES, pela concessão da bolsa no último ano desta pesquisa. À Valeria Machado Penna, Barbara Lucia Pereira e Elizabeth Villela, por sempre me ajudarem a resolver pequenos problemas na secretaria da pós-graduação da Escola de Música da UFRJ. Sem a paciência boa vontade de vocês eu estaria eternamente perdido nos labirintos do SIGMA. Ao meu orientador, Prof. Dr. Rodrigo Cicchelli Velloso, por ter pacientemente me ajudado nesta pesquisa desde a sua primeira semana. Seus comentários (e correções de crase) foram indispensáveis para a realização deste trabalho. E também por ter sido rigoroso nas horas certas (“Orlando, me entregue isto em 3 dias. É tempo o suficiente”) e mais ainda por ter sido extremamente tranquilo nas horas certas (“Orlando, você anda ansioso, relaxa. Vá à praia”). Ao Denis Smalley, por ter cedido uma entrevista que foi fundamental para a realização desta pesquisa. Ao Maurício Dottori, por ter feito eu me interessar por composição musical e música eletroacústica. E também por sempre ter um ótimo café expresso em sua casa. À Larissa Selhorst Seixas, por ter sido minha melhor amiga desde o tempo em que meu bigode mal crescia. À Karen Duek, pela amizade ao longo destes anos todos. Um dia ainda vou pra Califórnia te visitar. Ao Mário de Alencar, por sempre ter vinho e castanhas em casa e por me mostrar que é possível fazer arte sem se entregar às pressões do Status Quo. À Ruth Beirigo, por ter sido minha primeira guia para a cidade do Rio de Janeiro e fazer com que eu não surtasse na capital carioca. E por sempre me deixar revigorado depois de uma noite conversando. Ao Rogério Brittes, amigo e roomate, por ter me aguentado falar incessantemente sobre Smalley, Schaeffer e outras coisas. E também por ter me apresentado à uma porção de boas idéias/filmes/músicas/autores, pelas conversas interessantes, pelos trocadilhos infames. À Ana Paula Soares Carvalho e Frederico Abraham, por me acolherem diversas vezes e por me aguentarem falando de Sartre às duas da manhã. À Luisa Marques, pelas conversas sobre a vida, por sempre elogiar minhas tentativas de drinks fracassadas (refresco de carambola não constitui um ingrediente) e por sempre topar ir no Plano B, mesmo quando tudo indica que a noite vai ser fraca. Ao Theo Duarte, pela companhia durante as suas várias visitas ao Rio e por sempre (vale ressaltar, sempre) lavar a louça. À Bruna Gisi que, mesmo longe, de tempos em tempos me mandou emails que davam frio na espinha. Ao Ismar Tirelli Neto, por me ensinar a dançar música italiana, por me apresentar Frank O’Hara, por topar ser meu amigo em algum momento de 2011, pelo Autorretrato a partir de uma praça e por me ensinar que John Ashbery e inglês mal escrito (engrish) estão intimamente conectados. À Maria Isabel Lamim, pela amizade, por sempre falar “porra, Orlando” na hora certa e por sempre topar a famosa derrota recreacional na praça São Salvador. Ao Pedro Kalil, líder do #Pedante, por sempre ser uma companhia incrível e inspiradora. Ao trio Leonardo Machado, Thiago Bragança Braga e Débora Faria. Curitiba não tem a menor graça sem a presença de vocês. Ao Felipe de Lima Mayerle, pelas caronas as 3 da manhã ouvindo música esquisita. À Mariana Corrêa de Azevedo, pelas caronas as 3 da manhã com conversas esquisitas. À Júlia Souza Cabo, por ter sido a melhor surpresa de 2012, por aguentar meus monólogos sobre percepção e por coisas que é melhor não mencionar neste trabalho. Aos responsáveis por reativar o chafariz da Praça São Salvador, que tornou a minha vista mais agradável em um momento crucial desta pesquisa. Aos meus dois cachorros, Dylan e Bonnie, que vieram a falecer durante esta pesquisa. Mais de uma década de companheirismo. À Taxi e à Cuíca, as duas gatas com quem divido meu espaço e que me fazem companhia quando todo o resto desmorona. RESUMO A ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY: A PERCEPÇÃO DE FONTE E GESTO COMO BASE PARA A COMPOSIÇÃO MUSICAL ELETROACÚSTICA Autor: Orlando Scarpa neto Orientador: Rodrigo Cicchelli Velloso Este trabalho tem como objetivo discutir de que maneiras atribuímos fontes sonoras e gestos a sons escutados em situações acusmáticas, i.e. situações em que não temos acesso visual ao contexto que dá origem a determinado som. De forma mais específica, três conceitos da espectromorfologia de Denis Smalley são a base para a discussão do fenômeno descrito acima. São estes: ligação a fontes (source-bonding), causalidade (causality) e substituição gestual (gesture surrogacy) (SMALLEY 1986; 1997). A pesquisa foi divida em duas etapas distintas. A primeira etapa consiste em revisão bibliográfica e análise conceitual e a segunda consiste na discussão de três obras de música eletroacústica de minha autoria. Na primeira etapa, é feita uma análise detalhada dos conceitos de Smalley, correlacionando as idéias do autor com a de outros que trabalham no mesmo campo. Smalley considera a sua espectromorfologia como uma extensão da tipomorfologia de Pierre Schaeffer, apresentada por Schaeffer em sua obra Traité des objets musicaux (1966). Por este motivo, são discutidas as bases metodológicas da espectromorfologia, e a sua relação com a tipomorfologia Schaefferiana, assim como uma análise de uma obra de Schaeffer por viés espectromorfológico. A segunda etapa deste trabalho diz respeito a composição musical propriamente dita. As idéias apresentadas no primeiro capítulo são então reintroduzidas em uma discussão sobre a minha própria produção artística. É visto de quais maneiras a produção musical pode se tornar um método para pesquisa espectromorfológica, e de quais maneiras a pesquisa sonora pode complementar a pesquisa bibliográfica. Palavras chave: escuta acusmática, espectromorofologia, composição musical, música eletroacústica ABSTRACT A ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY: A PERCEPÇÃO DE FONTE E GESTO COMO BASE PARA A COMPOSIÇÃO MUSICAL ELETROACÚSTICA Autor: Orlando Scarpa neto Orientador: Rodrigo Cicchelli Velloso The following research aims to discuss how one attributes sources and gestures to sounds heard in an acousmatic situation, i.e. situations in which we do not have visual access to the context that is generating the sounds heard. Specifically, three concepts from Denis Smalley’s spectromorofology (SMALLEY 1986; 1997) are used as a basis to discuss the phenomenon described above. These concepts are: source-bonding, causality and gesture surrogacy. The research is divided into two distinct phases. The first being concerned with literature review and conceptual analysis, and the second with the discussion of three of my own compositions. The first part of this dissertation consists of a a detailed analysis of Smalley’s concepts, correlating the author’s ideas with other authors who conduct research in the same field. Smalley considers his spectromorofology as an extension of Pierre Schaeffer’s typomorphology, exposed by Schaeffer in his Traité des objets musicaux (1966). For this reason, the methodological basis behind Smalley’s spectromorphology and its relation to Schaeffer’s typomorofology are discussed, as well as a spectromorphological analysis of one of Schaeffer’s own works (Étude Violette, premiered in 1948). The second part of this research consists in a discussion of musical composition per se. The ideas presented in the first part are reintroduced in regarding my own compositions. This final sections also examines in which ways musical composition can become a method for spectromorphological research, and in which ways sound research can complement bibliographical research. Keywords: acousmatic listening, spectromorphology, electroacoustic music musical composition, SUMÁRIO Introdução ---------------------------------------------------------------------------------------- p.11 Capítulo I - Substituição gestual, ligação a fontes e causalidade na espectromorfologia de Smalley 1.1. A espectromorfologia de Smalley --------------------------------------------- p. 15 1.2. Análise conceitual: relevância e metodologia ------------------------------- p. 19 1.3. A espectromorfologia de Smalley e a tipomorfologia de Schaeffer ------ p. 22 1.4. Substituição gestual, ligação a fontes e causalidade ----------------------- p. 24 1.5. Análise espectromorfológica de Étude Violette, de Pierre Schaeffer ----- p. 38 1.5.1. Apresentação do material, 00m00s a 00m20s ---------------------- p. 40 1.5.2. Apresentação do material, 00m20s a 00m38s ---------------------- p. 41 1.5.3. Apresentação do material, 00m38s a 1m00s ----------------------- p. 41 1.5.4. Apresentação do material, 1m00s a 1m47s ------------------------- p. 42 1.5.5. Desenvolvimento do material, 1m47s a 1m57s -------------------- p. 42 1.5.6. Desenvolvimento do material, 1m57s a 2m27s -------------------- p. 42 1.5.7. Desenvolvimento do material, 2m27s a 3m00s --------------------- p. 43 1.5.8. Coda, 3m00s a 3m40s ------------------------------------------------- p. 43 Capítulo II - A espectromorfologia enquanto ferramenta composicional 2.1. Produção artística enquanto trabalho de campo ---------------------------- p. 45 2.2. Harmonicidade e Saturação: tecnologia enquanto timbre, timbre enquanto gesto e fonte sonora --------------------------------------------------------------------- p. 48 2.3. Em um quarto com cabos e vista: fonte, gesto e paisagem sonora enquanto um recorte do tempo ------------------------------------------------------------------------- p. 54 2.3.1. Sons de praça e quarto ------------------------------------------------ p. 54 2.3.2. Os cabos do quarto: processamento digital e fonte sonora ------- p. 65 2.4. On common people, signal-to-noise ratios and love in general: espectromorfologia e metalinguagem ------------------------------------------------- p. 68 2.5. A função do título na escuta espectromorfológica -------------------------- p. 72 Considerações finais ---------------------------------------------------------------------------- p. 74 Referências Bibliográficas --------------------------------------------------------------------- p. 77 Anexo I I.a - Entrevista com Denis Smalley, realizada por email em abril de 2012 Captura de tela da conversa, via email, com Denis Smalley referente à entrevista ------------------------------------------------------------------------- p. 82 I.b - Reprodução do texto da entrevista enviado por Denis Smalley em 18 de abril de 2012 --------------------------------------------------------------------------- p. 83 Anexo II - CD com as peças de minha autoria discutidas no capítulo II e nas considerações finais II.a - Listas de arquivos contidos no CD ------------------------------------------- p. 87 II.b - CD anexado ----------------------------------------------------------------- contracapa LISTA DE FIGURAS Figura 1. - Primeiros compassos do segundo movimento de Musica Ricercata -------- p. 46 Figura 2. - Captura de tela da conversa, via email, com Denis Smalley ------------------ p. 82 11 INTRODUÇÃO A escuta de música através de alto falantes se tornou uma atividade cotidiana ao longo das últimas décadas. Ao escutar sons através de alto falantes ou fones de ouvido, ocorre uma curiosa separação entre a visão e a escuta. Quando escutamos música em uma apresentação ao vivo, vemos músicos executando aqueles sons; as imagens dos gestos produzidos por indivíduos estão intimamente conectadas com os sons que chegam aos nossos ouvidos. A escuta por alto falantes muda este cenário: escutando uma gravação temos acesso apenas aos sons. Os gestos dos indivíduos que produziram aqueles sons, assim como os instrumentos que produziram aqueles sons, não estão à vista; cabe ao ouvinte imaginar estas fontes sonoras e gestos. Um gesto mais enfático em um contrabaixo produz um som com mais intensidade, um gesto delicado tem o efeito contrário. Tratando-se de música produzida por meios eletrônicos, onde o executante pode ser um computador, um sintetizador, parafernálias de circuit bending, entre outras possibilidades, a dedução de gestos e fontes torna-se um pouco mais complicada. Surge a questão de como imaginar um gesto que, essencialmente, não tem um correlato visual; ou como imaginar uma fonte física de um som que foi produzida por aparelhos que simulam diversas fontes físicas, ou ainda, criam fontes sonoras absurdas, estruturas híbridas que tem em sua essência uma ambiguidade. Esta pesquisa trata justamente deste processo de imaginar fontes e gestos para sons escutados em situações acusmáticas, i.e, situações em que não temos acesso visual ao contexto em que surgem aqueles sons1. A maior parte do trabalho é centrada em torno do repertório da música eletroacústica, em sua maior parte produzida dentro do meio acadêmico. Este recorte foi feito devido à minha familiaridade com este repertório, e pelo fato do meu próprio trabalho composicional estar inserido nesta categoria. Porém, isto não significa que as idéias apresentadas aqui estão limitadas apenas à discussão deste repertório. A princípio, as idéias apresentadas neste trabalho podem ser estendidas à qualquer situação de escuta acusmática. No segundo capítulo deste trabalho, por exemplo, é feito um paralelo entre a escuta de Em um quarto com cabos, peça de minha autoria, e o discurso de alguns DJs envolvidos com a cultura dubstep do Reino Unido. Estender ainda 1 O termo acusmático está sendo usado aqui da maneira mais abrangente possível: sons que escutamos sem ter acesso visual a sua fonte/causa. Schaeffer e Chion usam o termo mais ou menos no mesmo sentido, porém o foco da investigação de ambos são sons que geralmente são tocados por alto falantes (telefones, rádios, televisores, cd-players, etc.). Neste trabalho, o termo é usado para qualquer tipo de som em que sua fonte não é visível, desde sons escutados em um rádio até sons ambientais que escutamos dentro de um apartamento, onde as paredes impõe um limite visual às fontes. 12 mais os conceitos discutidos neste trabalho para além do campo da música eletroacústica é perfeitamente possível. Porém, por questões de espaço, esta pesquisa não se propõe a fazer esta extensão. De forma mais específica, este trabalho tem como objetivo analisar três conceitos de Denis Smalley que fazem parte de uma discussão mais ampla sobre espectromorfologia. As idéias de Smalley sobre este tema foram publicadas primeiramente no artigo Spectromorphology and Structuring Processes (1986) 2. Dez anos mais tarde, o autor apresenta uma extensa revisão destes conceitos no artigo Spectromorphology: Explaining Sound-shapes (1997). De acordo com Smalley, a espectromorfologia “não é uma teoria ou método de composição, mas uma ferramenta descritiva baseada na escuta” (SMALLEY 1997, p. 107), e sua intenção é ajudar o ouvinte a compreender o que foi desenvolvido nas últimas seis décadas de música eletroacústica. Apesar da espectromorfologia não ser uma ferramenta ou método composicional, Smalley afirma que “uma vez que o compositor tome consciência das palavras e conceitos usados para diagnosticar e descrever, o pensamento composicional pode vir a ser influenciado” (ibid., p. 107). Os conceitos da espectromorfologia discutem a percepção de fontes sonoras, a percepção do gesto e de textura musical, a percepção de variações no espectro de um som qualquer e a relação som/ruído em música eletroacústica, sempre interpretando o som em termos de seu espectro e de suas mudanças no tempo (ou seja, sua morfologia). O autor descreve em detalhes como se dá a compreensão de cada um destes aspectos por parte do ouvinte, colocando as intenções do compositor em segundo plano. Este trabalho se propõe a tentar compreender como estes conceitos de Smalley dialogam com outras discussões dentro do mesmo campo, qual a base metodológica por trás do discurso do autor, e qual a aplicabilidade destes conceitos na composição musical. Parte deste trabalho consiste na análise conceitual, e a metodologia usada é a revisão bibliográfica e leitura crítica de autores que trabalham no mesmo campo, além de uma entrevista de esclarecimento feita com Smalley (via e-mail) em abril de 2012. Porém, parte deste processo de análise conceitual diz respeito à aplicabilidade destes conceitos, e nesta etapa a própria produção artística torna-se parte do método. Smalley baseia suas observações na sua própria escuta, e esta pesquisa se propõe a fazer algo semelhante. Uma maneira possível de discutir, 2 Em uma nota de rodapé deste artigo, Smalley afirma que o mesmo é uma revisão de um artigo anterior apresentado em uma conferência organizada pelo EMS (Elektronmusikstudion), em Stockholm, 1981. (SMALLEY 1986, p. 220) 13 através da escuta, a coerência e relevância das idéias apresentadas é justamente usando-as como base para a composição, descrição e análise de obras. Desenvolver o trabalho teórico em paralelo ao composicional serve justamente para demonstrar que a teoria pode não apenas contribuir para o desenvolvimento da pesquisa acadêmica, mas também pode servir de base para uma produção musical que, por sua vez, levanta questões em relação à nossa percepção. Através da união entre as duas partes do trabalho, espera-se criar uma produção artística que tem o potencial de nos conscientizar de nossos processos de compreensão e estruturação do material musical. Por este motivo, o trabalho está divido em dois capítulos. O primeiro capítulo trabalha mais diretamente com as idéias de Smalley e pretende esmiuçar a grade teórica do autor. Já o segundo discute três peças minhas sob a ótica da espectromorfologia. O primeiro capítulo inicia-se com uma apresentação da espectromorfologia de Smalley (1.1), e em seguida são expostas as bases metodológicas do capítulo (1.2). A espectromorfologia se propõe a ser uma extensão da tipomorfologia de Pierre Schaeffer, e a relação entre a pesquisa de Smalley e a de Schaeffer é explorada na seção 1.3. Na seção 1.4, inicia-se uma discussão mais aprofundada dos três conceitos de Smalley que são a base deste trabalho: ligação a fontes, causalidade e substituição gestual. Para concluir o capítulo, Étude Violette, obra de Pierre Schaeffer concluída em 1948, é analisada através do conceitos expostos ao longo das seções anteriores. A escolha de uma peça canônica do repertório de música eletroacústica serve para exemplificar algumas das maneiras como a espectromorfologia pode ser usada para a análise musical. Neste contexto, o trabalho de análise acaba se tornando um trabalho de descrição detalhada guiado pelos critérios destacados O segundo capítulo é distinto em relação ao primeiro em termos de metodologia e objetivos. Pelo fato do segundo capítulo discutir obras de minha autoria, o distanciamento presente no capítulo anterior está menos presente. Na seção 2.1, é discutida a ideia de produção artística enquanto uma espécie trabalho de campo; maneiras em que o trabalho composicional pode servir como a uma plataforma para a aplicação de conceitos abstratos. Em seguida, inicia-se a discussão das três peças: Harmonicidade e Saturação (2.2), Em um quarto com cabos e vista (2.3) e On common people, signal-to-noise ratios and love in general (2.4). A descrição da escuta de cada uma destas peças toca em pontos específicos dos conceitos de Smalley. Os processos de ligação a fontes, causalidade e substituição gestual se 14 comportam de maneiras específicas em cada uma das obras e levantam questões distintas em relação a carga conceitual de Smalley. O título cumpre uma importante função na escuta de música eletracústica, tendo o potencial de guiar a nossa escuta para determinados caminhos, e na última seção deste trabalho (2.5) é feita uma breve discussão acerca da função do título dentro do repertório da música eletroacústica. Dividindo a pesquisa em dois capítulos, fica clara a separação entre o trabalho teórico e o trabalho composicional. Também fica claro que, apesar de serem campos separados, ambos têm em sua base a pesquisa; de um lado a pesquisa teórica, onde conceitos são contrapostos e comparados com o fim de elucidar idéias, e de outro lado a pesquisa sonora, onde a reflexão a respeito do o que se deu no momento da composição e a descrição da minha própria escuta são ao mesmo tempo o método, o resultado e a obra em si. Uma espécie retroalimentação onde o trabalho teórico influencia a produção artística, que por sua vez nos faz repensar o trabalho teórico. 15 1. SUBSTITUIÇÃO GESTUAL, LIGAÇÃO A FONTES E CAUSALIDADE NA ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY 1.1 A ESPECTROMORFOLOGIA DE SMALLEY A espectromorfologia de Smalley tem como ponto de partida a tipomorfologia de Pierre Schaeffer, apresentada em seu Traité des objets musicaux (1966), porém Smalley expande os conceitos para darem conta de “um repertório espectromorfológico mais amplo, e suas relações no contexto da estrutura musical” (SMALLEY 2012, p. 1). O trabalho de Smalley é um desenvolvimento do trabalho de Schaeffer na medida em que ele não poderia existir sem o Traité. Porém, em termos de metodologia e objetivos, existe uma diferença significativa entre ambos. Enquanto Schaeffer, baseado na redução fenomenológica de Husserl e em seu conceito de Époché, se preocupa em descrever e catalogar objetos sonoros (CHION 2002, p. 28 e 29), Smalley parece mais preocupado em descrever sons e delinear o processo de estruturação de material sonoro. Isto não impede que seus resultados (i.e., a sua discussão conceitual e sua nomenclatura) sejam usados de outras maneiras como, por exemplo, para fins pedagógicos (BLACKBURN 2011), desenvolvimento de plataformas para improvisação (SPASOV 2011) e estudos sobre a noção de temporalidade em música (PASOULAS 2011). As idéias de Smalley, assim como as de Schaeffer, também podem ser usadas para a análise de peças eletroacústicas devido a sua capacidade de descrever sons a partir deles mesmos, sem a necessidade de algum tipo de apoio visual, como é o caso da partitura em alguns modelos de análise de música instrumental. Smalley toma como ponto de partida a sua própria escuta, porém os conceitos da espectromorfologia dizem respeito à escuta como um todo, e não apenas a experiência subjetiva do autor ou a seu processo de criação musical. Segundo o autor: Apesar do detalhamento da descrição espectromorfológica por vezes ser um pouco difícil de ser compreendido (especialmente sem uma experiência extensa com o repertório da música eletroacústica), ela está longe de ser uma atividade esotérica. O pensamento espectromorfológico é simples e a princípio facilmente compreendido por ter seus fundamentos na experiência do fenômeno sonoro e não-sonoro fora do campo da música, um conhecimento comum a todos – existe uma forte ligação entre o extrínseco e o intrínseco. Neste sentido, a espectromorfologia é derivada de uma uma base comum, natural e compartilhada que proporciona um grade teórica para 16 obras culturais e individuais de música eletroacústica. (SMALLEY 1997, p. 125, tradução nossa)3 A universalidade dos conceitos de Smalley pode ser questionada. O fato de todo sujeito possuir um conhecimento a respeito do mundo sonoro a seu redor não garante que este conhecimento seja estruturado da mesma maneira universalmente. Não seria exagero afirmar que este conhecimento seja mais ou menos homogêneo dentro do meio da música eletroacústica, mas levar estas generalizações além deste meio é arriscado teoricamente. No entanto, alguns conceitos são mais universais que outros. A associação de sons acusmáticos a fontes imaginadas ocorre de uma maneira na maioria das vezes intuitiva. Por sua vez, capacidade de identificar a harmonicidade ou inarmonicidade de espectro sonoro demanda um conhecimento específico e uma capacidade de discernimento que é adquirida em ambientes como o das universidades de música. O conceito de escuta especialista, cunhado por Schaeffer em seu Traité des objets musicaux (1966), trata justamente dos diferentes tipos de escuta adquirida. Como resume Chion: A escuta especialista se concentra em uma maneira específica de escutar. Por exemplo, um som galopante: a escuta comum a identificaria como o som de cavalos galopando, mas diferentes escutas especializadas escutariam este mesmo som diferentemente; o especialista em acústica procura determinar a natureza do sinal físico, o ameríndio escuta “o possível perigo de um inimigo se aproximando”, e o músico escuta agrupamentos rítmicos. (CHION 2009, p. 25, tradução nossa) 4 Isto não significa que a escuta especialista é mais objetiva, e a escuta comum mais subjetiva. A escuta especialista tem em sua estrutura uma tendência a reduzir toda a informação auditiva ao seu campo especializado. Um biólogo, ao escutar um som de um pássaro qualquer sob o filtro de seu conhecimento especializado, irá extrair informações sobre espécie, comportamento, idade, etc., ignorando todos os potenciais significados a respeito do canto dos pássaro que algum outro ouvinte, com sua própria escuta especializada, poderia 3 “Although the detail of spectromorphological description may sometimes not be easy to follow, particularly without an extensive experience of electroacoustic music repertory, it is far from being an esoteric activity. Spectromorphological thinking is basic and easily understood in principle because it is founded on experience of sounding and non-sounding phenomena outside music, a knowledge everyone has – there is a strong extrinsic–intrinsic link. In this sense spectromorphology derives from a common, shared, natural base which provides a framework for the individual, cultural works of electroacoustic music”. 4 “Specialist listening concentrates on a particular manner of listening. For example, the sound of galloping: ordinary listening hears it as the galloping of horses, but different specialized listenings hear it differently; the acoustician seeks to determine the nature of the physical signal, the Native American Indian hears “the possible danger of an approaching enemy”, and the musician hears rhythmic groupings”. 17 ressaltar. Alguns conceitos da espectromorfologia de Smalley são mais facilmente compreendidos por pessoas que tem a escuta especializada típica de compositores de música experimental, o que em a parte anula a sua suposta universalidade. Como mencionado anteriormente, dentre os conceitos desenvolvidos na espectromorfologia de Smalley, este trabalho se concentra na discussão de três: substituição gestual (gesture surrogacy), causalidade (causality) e ligação a fontes (source bonding). De maneira resumida, a substituição gestual diz respeito ao ato de associarmos gestos possíveis a sons escutados de forma acusmática; causalidade ao processo de um evento qualquer impulsionar o início de outro, ou alterar um evento existente; ligação a fontes a tendência que temos de associar sons a supostas fontes, e de agruparmos sons que parecem pertencer a fontes semelhantes. Exemplificando, um ouvinte qualquer em um apartamento de qualquer grande centro urbano escuta uma série de sons aos quais, devido aos limites impostos pelas paredes do apartamento, não tem acesso visual. Sons de carros e sons de uma obra de construção civil são comuns neste tipo de cenário, e apesar de existirem diversos sons de carros diferentes, e o os sons de uma obra serem muito heterogêneos, a paisagem sonora poderia ser descrita como sendo composta por sons de carro, e sons de uma obra. Nesta descrição, estamos agrupando sons de fontes semelhantes. Também poderia ser dito a respeito desta paisagem imaginária que alguém está, por exemplo, enfaticamente lixando algum material, ou martelando algo em uma parede. Neste caso estamos deduzindo gestos físicos através dos sons. O conceito de causalidade, que em uma primeira instância parece ser mais relacionado à composição musical, pode ser percebido em qualquer grande cidade quando um motorista aciona a buzina de seu carro e, como conseqüência, dezenas de outros motoristas fazem o mesmo. Uma descrição mais detalhada dos mesmos conceitos será feita mais adiante. Antes de prosseguir, é necessário deixar claro o que se entende por paisagem sonora. O termo Paisagem Sonora (soundscape) foi cunhado por Murray Schafer (1969) e tem sido usado e revisado por uma série de autores desde então. Neste trabalho será usada a definição de Emily Thompson (2002) sobre paisagem sonora, ligeiramente diferente da visão de Schafer, e mais focada em relação ao nosso objeto de estudo. Thompson afirma que, assim como a paisagem visual (landscape), uma paisagem sonora é “simultaneamente um ambiente físico e uma maneira de perceber este ambiente; é tanto o mundo quanto uma cultura construída para dar sentido a este mundo”. A autora ainda afirma que “os aspectos físicos de 18 uma paisagem sonora consistem não apenas dos sons propriamente ditos […] mas também dos objetos materiais que criam, e às vezes destroem, estes sons” (THOMPSON 2002, p. 2). A autora ainda afirma: Os aspectos culturais de uma paisagem sonora incorporam maneiras de escutar científicas e culturais, a relação de um ouvinte com o ambiente, e as circunstâncias sociais que determinam o que cada um escuta. Uma paisagem sonora, como uma paisagem visual (landscape) está mais relacionada a civilização que à natureza e, assim sendo, está constantemente em construção e passando por mudanças. (THOMPSON 2002, p. 1-2)5 A diferença entre a definição de Thompson e a de Schafer é que o último tem uma forte ligação com a ecologia. Nas primeiras páginas de A afinação do mundo, o autor afirma que os novos sons do século XX têm “alertado muitos pesquisadores quanto aos perigos de uma difusão indiscriminada e imperialista dos sons” (SCHAFER 1997, p. 17). O autor também constata que a paisagem sonora contemporânea “atingiu o ápice da vulgaridade em nosso tempo, e muitos especialistas têm previsto a surdez universal como a última conseqüência desse fenômeno” (ibid.). Mais adiante, ao enumerar os objetivos de sua pesquisa, Schafer deixa claro a sua relação com a ecologia: Este estudo teria por objetivo documentar aspectos importantes dos sons, observar suas diferenças, semelhanças e tendências, colecionar sons ameaçados de extinção, estudar os efeitos dos novos sons antes que eles fossem colocados indiscriminadamente no ambiente, estudar o rico simbolismo dos sons e os padrões do comportamento humano em diferentes ambientes sonoros, com o fim de aplicar conhecimento ao planejamento de futuros ambientes. (SCHAFER 1997, p. 19) O julgamento de valor que o autor faz em relação a certas paisagens sonoras (como, por exemplo, chamar uma paisagem de vulgar e outra de natural) é algo dispensável neste trabalho. A abordagem de Thompson não possui nenhum vínculo com a ecologia, tem apenas a preocupação de descrever e analisar paisagens sonoras. 5 “A soundscape's cultural aspects incorporate scientific and aesthetic ways of listening, a listener's relationship to their environment, and the social circumstances that dictate who gets to hear what. A soundscape, like a landscape, ultimately has more to do with civilization than with nature, and as such, it is constantly under construction and always undergoing change”. 19 1.2 ANÁLISE CONCEITUAL: RELEVÂNCIA E METODOLOGIA Leigh Landy, em seu artigo Reviewing the musicology of electroacoustic music: a plea for greater triangulation (1999), argumenta que um dos problemas centrais na musicologia eletroacústica gira em torno do fato de existir um grande número de pesquisadores trabalhando de uma forma um tanto isolada. Para Landy, isso pode ser evidenciado pelo grande número de trabalhos que se baseiam nas visões particulares dos autores, desenvolvidos com pouca ou nenhuma preocupação em fazer qualquer tipo de correlação com trabalhos já existentes. Para Landy: Este desequilíbrio, e não há outra palavra para descrever isto, constitui uma questão ligada ao êmico: i.e., indivíduos reivindicando a autoria de uma idéia, uma aproximação ou algo desta natureza sem uma contextualização adequada, e, mais importante, com pouco ou nenhum feedback ou correlação consistente, usando metodologias que são muitas vezes auto-referenciais. (LANDY 1999, p.63, tradução nossa). 6 Para o autor, uma solução possível seria inclusão de três etapas na elaboração da metodologia em pesquisas no campo da música eletroacústica: Uma solução imediata para esta tendência ao isolamento seria que as pessoas incluíssem o seguinte em seus trabalhos: - uma indicação da relevância pretendida para os resultados da pesquisa; isso enfatizaria o porquê do projeto ou pelo menos o contextualizaria; - o uso de um modelo pesquisa-ação ou pelo menos a inclusão de alguma(s) maneira(s) de triangulação como parte do projeto, e - aplicabilidade/correlações de qualquer resultado obtido (LANDY 1999, p. 66, tradução nossa).7 Estas observações não se referem unicamente a pesquisas em música eletroacústica. Porém, neste campo, a falta de reflexão a respeito da relevância das pesquisas e de seus procedimentos metodológicos é um fator muito mais grave se comparado, por exemplo, à 6 “This imbalance, and there is no other word for it, represents an issue linked to the emic: i.e. individuals staking their claim to an idea, an approach or some such often without adequate contextualisation, but more importantly here without adequate or any feedback or consistent correlation, using methodologies that are often self-referential”. 7 “An immediate solution to the bias towards isolation would involve people including the following: - a statement of the intended relevancy of any research outcome; this could emphasise the ‘why’ of the project or at least contextualise it; - the use of an action research model or at least the inclusion of some sort(s) of triangulation as part of any project, and; - applicability/linkage with regard to any outcomes”. 20 musicologia histórica. No caso da musicologia história, discussões da historiografia podem servir como base metodológica às pesquisas. O conhecimento acumulado neste campo é grande e bastante sistematizado. A pesquisa em composição musical e criação artística permite tanto um viés cognitivista, quanto um viés completamente subjetivo ancorado em discussões de poética. Devido à variedade de aproximações possíveis, um maior cuidado na hora de estabelecer o método por vezes se faz necessário. As idéias de Landy são relevantes para esta pesquisa. Uma análise conceitual mais detalhada, que leve em consideração as observações acima, pode ser dividida em três etapas. A primeira seria uma descrição detalhada da espectromorfologia de Smalley e de como os conceitos de causalidade, ligação a fontes e substituição gestual se inserem dentro deste sistema, apontando de que maneira eles se complementam e se relacionam entre si. Nesta etapa também seria relevante mencionar quais autores influenciaram (mesmo que de forma indireta) Smalley, e detalhar o processo de investigação destes autores. Em um segundo momento, uma revisão bibliográfica sobre o que foi dito especificamente sobre substituição gestual, causalidade e ligação a fontes, e considerações a respeito da metodologia destes autores se faz necessária. Também será abordado a influência de Pierre Schaeffer e Michel Chion nas bases metodológicas de Smalley; Pierre Schaeffer é considerado pioneiro não só por seu objeto de estudo, mas também devido à metodologia usada em sua investigação deste objeto. Ainda nesta etapa, seriam apresentados possíveis aplicações analíticas/descritivas e teóricas dos conceitos expandidos. A parte final do trabalho seria aplicar os resultados em composições musicais. Como já foi dito anteriormente, um caminho possível dentro da composição musical eletroacústica é tentar compor uma música que explore certos mecanismos da nossa percepção. Uma música extremamente referencial, por exemplo, tende a induzir o ouvinte a refletir sobre o seu processo de reconhecimento de fontes. Obviamente, não se espera o público em uma sala de concerto esteja familiarizado com o trabalho de Smalley. Porém, quando um ouvinte qualquer fica em dúvida em relação à fonte de um som, e acaba indagando a respeito de sua natureza, ele está imerso em um processo mental que é justamente o que Smalley descreve em seu conceito de ligação a fontes. Por exemplo, a peça acústmática Presque rien No. 1 ‘le lever du jour au bord de la mer’, composta por Luc Ferrari em 1970, é inteiramente construída por sons gravados ao longo de um dia inteiro em uma praia da então denominada República 21 Socialista Federativa da Iugoslávia. A peça dura cerca de 20 minutos, e os sons usados não contém quase nenhum tipo de processamento; o compositor se utiliza apenas de técnicas de edição, como crossfades para sobrepor ou criar transições entre cenas gravadas em momentos diferentes do dia e a diferentes distâncias da fonte. Ferrari compacta várias horas de atividade deste local em 20 minutos, e ao escutar a obra temos uma representação clara daquela paisagem sonora. A escuta da obra induz o ouvinte a constantemente questionar a natureza das fontes dos sons presente, e intuitivamente (i.e., sem recorrer a nenhum tipo de teoria composicional eletroacústica) imaginamos uma possível paisagem visual correlacionada a paisagem sonora que é oferecida. Em outras palavras, a lógica por trás da construção e manipulação do material faz com que o ouvinte fique imerso em certos aspectos perceptivos ao invés de outros. E, como conseqüência, o ouvinte tem a oportunidade de refletir sobre a natureza destes mesmos processos perceptivos8. Obras acúsmáticas que trabalham com um material muito processado (analogicamente ou digitalmente) tendem a imergir o ouvinte em um tipo de percepção de uma natureza distinta, em que os gestos e sons são mais ambíguos, e que por vezes podem apenas vagamente serem associados a fontes reais. A música eletroacústica tem o potencial de nos induzir a perceber o material sonoro de diferentes maneiras, e nos chamar a atenção para os nossos próprios processos perceptivos. A parte composicional deste trabalho pretende explorar justamente este aspecto da música eletroacústica através da composição de quatro peças acusmáticas. O foco desta terceira parte seria uma descrição detalhada do processo de escuta destas peças, buscando sempre se colocar na posição de um ouvinte, e enfatizando quais mecanismos da nossa escuta estão em jogo, assim analisando até que ponto os resultados da pesquisa são aplicáveis. Uma análise aprofundada da espectromorfologia de Smalley pode ser um interessante ponto de partida para um trabalho composicional que tem como fundamento a reflexão a respeito da percepção. Tal fundamentação pode servir como substituto a sistemas baseados em dados matemáticos ou da acústica musical, como é o caso de diversos sistemas e procedimentos influenciados (mesmo que indiretamente) pelo dodecafonismo, serialismo. e espectralismo. Uma análise conceitual potencialmente aplicável torna-se mais relevante do ponto de vista do compositor, e uma discussão teórica inserida dentro de uma estética 8 Quantificar esta reflexão, ou sequer ter algum tipo de certeza sobre sua existência, é algo praticamente impossível. Entretanto, não é um absurdo supor que pelo menos uma parcela significativa dos ouvintes reflita a respeito da música que, por livre e espontânea vontade, resolveu escutar. 22 composicional pode, com os devidos cuidados, ser um interessante ponto de partida para pesquisas em música contemporânea. O trabalho de Landy aponta maneiras possíveis de atingir esta união entre prática e teoria composicional, e a existência de diversos trabalhos similares aos de Smalley (mencionados no decorrer deste trabalho), pouco referenciados entre si, torna possível transformar estas sugestões em prática. Os conceitos de substituição gestual, ligação a fontes e causalidade são ricos em potencial, e uma análise aprofundada das idéias por trás da formulação destes conceitos pode não só contextualizar melhor trabalhos que lidam com estas idéias, mas também servir como ponto de partida para pesquisas futuras. 1.3. A ESPECTROMORFOLOGIA DE SMALLEY E A TIPOMORFOLOGIA DE SCHAEFFER Como mencionado anteriormente, a espectromorfologia de Smalley se propõe como extensão do trabalho de Schaeffer. Porém, existem algumas diferenças fundamentais em relação ao método e objetivos dos dois trabalhos. Se, por um lado, o objeto de estudo de Smalley e Schaeffer é o mesmo, Schaeffer parece interessado em evitar as ciências exatas e a acústica e, através de conceitos da filosofia, atingir algum tipo de reflexão objetiva a respeito de sons. Schaeffer não hesita em usar o termo ciência ao falar dos objetivos de seu trabalho. A objetividade que Schaeffer procura não é a mesma da física. A escolha dos termos vem de uma influência grande do pensamento de Husserl, e principalmente do seu conceito de redução fenomenológica. A redução fenomenológica, ou époché, consiste em perceber objetos por eles mesmos, eliminando informações espaço-temporais e focando na percepção em si. Ao analisar uma mesa, por exemplo, nossa visão nos dá uma série de pontos de vista desta mesa. Dependendo do ângulo em que olhamos para o objeto, temos uma visão diferente dele. Porém, a percepção desta mesa não é meramente a soma de todos estes pontos de vista. Percepção, do ponto de vista fenomenológico, é a compreensão da essência deste objeto a partir da nossa imaginação. Este processo toma como ponto de partida os pontos de vista apresentados, mas não se resume ao acúmulo dos mesmos. Compreender a mesa consiste em se agarrar ao próprio ato da percepção. Ainda em torno do exemplo da mesa, Husserl afirma: Partindo do exemplo dessa percepção da mesa, modificamos o seu objeto - a mesa -, de maneira inteiramente livre, ao sabor da nossa fantasia, 23 preservando no entanto o caráter de percepção de alguma coisa: não importa o que mas... alguma coisa. Começamos por modificar arbitrariamente - na imaginação - sua forma, sua cor, etc., mantendo apenas o caráter de "apresentação perceptiva". Em outras palavras, transformamos o fato dessa percepção, abstendo-nos de afirmar seu valor existencial, em uma pura possibilidade, entre outras, perfeitamente arbitrárias, mas no entanto puras possibilidades de percepções. Transferimos dc qualquer forma a percepção real ao reino das irrealidades, ao do "como se" que nos dá as possibilidades “puras”, puras de tudo aqui que ligaria a um fato qualquer. (HUSSERL 2001, p. 86) Estas variações revelam justamente o que há de invariável (ou de essência) no objeto. Não se trata de um modelo psicológico que considera percepção como impressões subjetivas psicológicas de um estímulo físico objetivo (o objeto sonoro é formado na mente do indivíduo), nem de um modelo baseado nas ciências naturais (o objeto sonoro existe no mundo a priori). Como resume Chion: Époché é o oposto de uma “fé ingênua” em um mundo externo, cheio de objetos-em-si, as causas da percepção. É também o oposto do modelo “psicológico” que considera percepções como impressões “subjetivas” de um estímulo físico “objetivo”. Por último, ela difere da “dúvida metódica cartesiana” na medida em que evita qualquer teoria sobre realidade ou ilusão. (CHION 2009, P. 29) 9 Assim como Husserl rejeitava uma lógica fundamentada tanto em fatos empíricos do mundo exterior quanto em generalizações através de experiências subjetivas (KANE 2007), Schaeffer também buscava inaugurar um novo campo do conhecimento que, para falar de música e sons, não se baseasse puramente no realismo da acústica nem na experiência subjetiva da prática musical: Devemos notar que existe, no mínimo, um vácuo entre acústica musical e música propriamente dita, e é necessário preencher este vácuo com uma ciência que descreva sons, juntamente com uma arte de escuta-los e que essa disciplina híbrida fundamente nossos esforços musicais. (SCHAEFFER 1996, p. 30 apud KANE 2007, p. 16, tradução nossa.) 10 9 “Époché is the opposite of “naive faith” in an external world filled with objects-in-themselves, the causes of perception. It is also the opposite of the “psychologist” model which considers perceptions as “subjective” imprints of “objective” physical stimuli. Finally, it differs from “Cartesian methodical doubt”, in so far as it avoids all theories about reality or illusion”. 10 “Let us note, at the very least, that a void exists between musical acoustics and music properly speaking, that it is necessary to fill this void with a science describing sounds, joined to an art of hearing them, and that this hybrid discipline clearly grounds our musical efforts “. 24 Este novo campo de conhecimento, de natureza híbrida, seria capaz de oferecer uma taxonomia descritiva de sons. Schaeffer, então, propunha uma nova disciplina que não só nos ajudaria a entender sons por um ponto de vista fenomenológico, mas também poderia ser a base de uma nova maneira de compor e pensar composição musical. Smalley, por sua vez, deixa claro que a espectromorfologia, apesar de baseada na tipomorfologia de Schaeffer, não tem como objetivo fundamentar ou guiar a composição musical. A espectromorfologia tem como tarefa descrever (e não classificar) sons e a experiência da escuta. O autor não se baseia (pelo menos não explicitamente) em nenhuma corrente filosófica, e tem como embasamento de sua teoria sua própria experiência musical11. Não existe em seu trabalho nenhuma ambição de contrapor a objetividade da ciência com a subjetividade da experiência psicológica. As idéias de Smalley, na prática, são enraizadas na subjetividade de sua escuta e de seu trabalho composicional12 . Existe um grande ponto de contato entre Schaeffer e Smalley em termos de objeto de estudo, e ambos se distanciam da acústica em termos de método e objetivos ao mesmo tempo que se utilizam de sua nomenclatura. Porém, Schaeffer propõe uma espécie de fenomenologia do objeto sonoro, enquanto Smalley se preocupa com poéticas da criação musical, e principalmente na relação espectromorfologia/contexto. 1.4. SUBSTITUIÇÃO GESTUAL, LIGAÇÃO A FONTES E CAUSALIDADE A discussão destes três conceitos começa, antes de tudo, pela escolha da tradução. Causality, por ser um termo amplamente usando na filosofia e nas ciências naturais, não traz nenhum tipo de problema em termos de tradução. Segundo consta no Dicionário de filosofia de Nicola Abbagnano, a primeira “análise do sentido de noção de causa” (ABBAGNANO 2007, p. 125) está presente no livro I da Física de Aristóteles. O tratado de Aristóteles, escrito no ano 350 a.C., parte do princípio que “conhecimento e ciência consistem em dar-se conta das causas e nada mais são além disso” (ibid.). O conceito de causalidade se mantém como a base das ciências naturais até a primeira metade do século XX, quando a física subatômica 11 Como dito anteriormente, Smalley, apesar de partir de sua experiência subjetiva, pretende alcançar algum tipo de universalidade a partir de suas observações. 12 Schaeffer também se baseia na subjetividade de sua escuta. Porém, diferentemente de Smalley, Schaeffer usa sua escuta para criar uma taxonomia descritiva dos sons. 25 passa a se ancorar nas noções de probabilidade e estatística ao invés de relações causais (ibid., p. 130). De uma maneira geral, causalidade nas ciências é definido como “a conexão entre duas coisas, em virtude da qual a segunda é univocamente previsível a partir da primeira” (ibid., p. 124), definição que não difere do sentido dado à palavra por Smalley em sua espectromorfologia. Por este motivo, a tradução escolhida é causalidade, a mesma usada dentro da filosofia e das ciências de maneira geral. Diferentemente do termo causality, as traduções dos termos source-bonding e gesture surrogacy apresentam algumas complicações. A tradução do termo source-bonding é um tanto delicada. Bond pode significar tanto ligação, quanto contrato ou acordo. No contexto de Smalley, bond (enquanto substantivo) é usado para se referir a uma conexão forte entre duas coisas. Chemical Bond, por exemplo, se refere a força de atração entre átomos em uma molécula ou cristal. O termo também é comumente usado para se referir ao elo existente entre pais e filhos, ou a algum tipo de ligação amorosa entre duas pessoas. Bond, então, é usado pelo autor para se referir a algum tipo de elo, laço, vínculo ou ligação extremamente forte entre duas coisas. Enquanto verbo, to bond significa propiciar este elo. Source, no contexto de Smalley, se refere a fonte. Source-bonding, então, diz respeito a algum tipo de elo que existe entre um som acusmático e uma fonte imaginada pelo ouvinte (sentido reforçado pelo o uso do gerúndio bonding, que faz o verbo atuar como substantivo). Baseado nesta interpretação, a tradução escolhida para o termo foi ligação a fontes. O termo ligação, assim como bond, tem uma gama de significados diferentes e permite diferenças interpretativas de maneira semelhante ao termo original. No caso de gesture surrogacy, o termo gesture pode ser traduzido como gesto, mas alguns problemas surgem ao tentarmos achar uma tradução adequada a surrogacy. O termo diz respeito ao ato de substituir algo ou alguém, ocupando suas funções em um determinado contexto. Por exemplo, surrogacy pode se referir a maternidade por substituição, situação em que uma mulher aceita engravidar com o objetivo de ter seu filho biológico criado por outra pessoa. Neste sentido, gesture surrogacy se refere a algo que substitua um gesto, ou mais especificamente, como a nossa imaginação, ao interpretar sons acusmáticos, substitui a ausência de visualização de gestos físicos com um gesto imaginado. Baseada nesta interpretação, a tradução escolhida foi substituição gestual. 26 Smalley argumenta que da mesma maneira que podemos interpretar sons em termos de causa-fonte-espectromorfologia, o caminho inverso também é possível. O gesto (a causa) é uma trajetória de energia-movimento, que excita um corpo qualquer, que por sua vez produz espectromorfologias. Ao mesmo tempo, a partir de um som qualquer, conseguimos deduzir sua fonte e o conteúdo gestual analisando seu conteúdo espectromorfológico. Apesar de conseguirmos deduzir algum tipo de causa por trás de qualquer som escutado, a clareza desta causa varia conforme o som. A respeito destes diferentes níveis de ambiguidade, Smalley afirma: Existe uma diferença considerável, em termos de identificação, entre uma afirmação sobre textura que diz ‘são pedras caindo, uma segunda que diz ‘isto soa como pedras caindo’, e uma terceira que diz ‘isto soa como se estivesse se comportando como pedras caindo’. As três afirmações são conexões extrínsecas, mas em níveis crescentes de incerteza e afastamento da realidade. (SMALLEY 1997, 110, tradução nossa). 13 Como já foi dito, o conceito de substituição gestual diz respeito ao processo de relacionarmos gestos a sons que escutamos de maneira acusmática. Smalley , em seu artigo de 1997, identifica quatro tipos de substituição gestual: de primeira ordem, segunda ordem, terceira ordem e ordem remota (SMALLEY 1997, 111-112)14. A substituição de primeira ordem se refere a sons manipulados de maneira não instrumental, objetos de trabalho ou de recreação sendo manipulados de forma simples, no qual nós conseguimos claramente identificar uma ação humana ou algum outro tipo de causa/gesto. Geralmente em música instrumental sons desta ordem ainda não são considerados musicais. Substituição de segunda ordem diz respeito a sons como os tradicionalmente associados à música instrumental, em que os sons são manipulados com alguma habilidade específica, com pequenas variações de dinâmica, timbre, altura, etc. Substituições de terceira ordem são aquelas em que o gesto é imaginado, há um certo grau de incerteza a respeito da origem do som, tanto do gesto quanto da fonte. Incluem-se nessa categoria sons com ressonâncias que se comportam de maneira inesperada, sons com ataques ambíguos, entre outros. Em substituições de ordem remota, temos sons que não têm qualquer tipo de vestígio humano ou causa/fonte reconhecível, sons 13 “There is quite a difference in identification level between a statement which says of a texture, ‘It is stones falling’, a second which says, ‘It sounds like stones falling’, and a third which says, ‘It sounds as if it’s behaving like falling stones’. All three statements are extrinsic connections but in increasing stages of uncertainty and remoteness from reality”. 14 Em inglês, First order Surrogacy, Second Order Surrogacy, Third Order Surrogacy e Remote Surrogacy. 27 em que “fonte e causa são desconhecidas, e impossíveis de se conhecer, e qualquer tipo de ação humana desaparece” (SMALLEY 1997, p. 117). No artigo de 1986, Smalley identifica apenas três tipo de substituição gestual, e suas definições diferem em alguns aspectos em relação as definições apresentadas no artigo revisado em 1997. Em 1986, o autor identifica apenas três níveis de substituição gestual: primeiro, segundo e remoto. Gestos primários ou culturais (em um sentido mais amplo) não são mencionados. O primeiro nível de substituição gestual consiste no reconhecimento de gestos instrumentais e o segundo no reconhecimento de gestos imaginados ou ambíguos, porém sem um correlato instrumental específico. Em 1997, o autor amplia a terminologia acrescentando um nível anterior ao gesto instrumental. Segundo Smalley, esta mudança ocorreu quando, já na década de 1990, foi publicar o artigo original em francês, e o autor achou que seria uma boa ocasião para “revisar algumas idéias, e ampliar outras”, e a “versão revisada [de substituição gestual] parecia mais lógica” (SMALLEY 2012, p. 3)15. A idéia de substituição gestual é importante para a compreensão de música eletroacústica, um vez que boa parte do repertório de música acusmática explora as idéias de substituição de terceira ordem e substituição remota. Até mesmo sons tradicionalmente associados à música instrumental, quando inseridos em um contexto acusmático com sons de outra natureza, adquirem um grau de ambigüidade que muitas vezes requer uma terminologia mais específica para sua descrição. Também é importante diferenciar um gesto qualquer de um gesto musical. A fronteira entre os dois fenômenos não é muito bem definida, uma vez que pode-se escutar um som qualquer deixando de lado sua referencialidade a fontes (como, por exemplo, através da escuta reduzida Schaefferiana), como também se pode atrelar um valor estético ao ato de identificar fontes de sons, sejam as fontes ambíguas ou não. O próprio Smalley admite a dificuldade entre separar o que chamamos de escuta cotidiana de escuta musical Se a escuta musical e a escuta cotidiana estão separadas ou intimamente ligadas depende da atitude de escuta adotada. Eu posso escutar sons do cotidiano de uma maneira “musical” caso seja minha vontade – isto é, não apenas escutá-los devido às informações de ligação a fontes neles contidos. E, de fato, enquanto compositor eu tenho o hábito de fazer isto. Um dos 15 Neste trabalho, a nomenclatura usada será a da versão de 1997. 28 papeis do compositor acusmático, acredito, é revelar o que há de musical nos sons que nos cercam. (SMALLEY, 2012, p.2)16 Vale mencionar que existe uma forte ligação entre os conceitos de ligação a fontes e substituição gestual. A percepção de gesto necessariamente nos leva a fazer algum tipo de ligação à fonte sonora. Uma fonte sonora depende sempre de duas coisas: um objeto qualquer e uma perturbação à este objeto. Um gesto (real ou imaginado) é a perturbação que faz com que o objeto emita um som. A natureza e comportamento desta perturbação pode ser percebida e explicada através de sua espectromorfologia. Segundo Smallley: Gesto é ligado à fonte (source-bonded). Porém, vale lembrar que a ligação à fonte trata tanto de causas como fontes. […]. O gesto é uma causa. E, claro, gesto é apenas um tipo de causa. (SMALLEY 2012, p. 2, tradução nossa) 17 Michael Pedersen (2011) propõe ampliar a terminologia de Smalley separando causa e fonte como fenômenos distintos, e acrescentando uma nova categoria que ele chama de substituição transgressiva (transgressive surrogacy). Para o autor, existem gestos substituintes de causa e gestos substituintes de fonte, e ambos podem ser classificados como sendo de primeira, segunda, terceira ordem, ou ordem remota. Uma categoria particular de sons, que se comportam de uma maneira que o autor descreve como substituição transgressiva, se refere a sons causados pelo desgaste de mídia específica, onde causa e fonte se confundem. Pedersen cita alguns exemplo: CDs podem ser riscados, fitas k7 com o tempo passam a ter um chiado particular, arquivos mp3 podem ser corrompidos. Para o autor, todos os sons produzidos por estas situações não constituem substituição gestual, pois não fazem parte do som gravado, são sons gerados dentro do próprio ambiente da escuta, e o ouvinte releva estes sons com o intuito de preservar o fluxo da experiência musical. Porém, quando estes sons são intencionalmente incluídos na composição, temos um caso de substituição gestual. Schaeffer já havia abordado esta categoria de sons em sua discussão sobre acidente/ incidente. Incidente seriam sons que, devido à algum tipo de falha técnica, perturbam a escuta de um som principal (por exemplo, “clicks” acidentais ou o chiado de um disco de vinil mal 16 “Whether daily listening and musical listening are separate or closely allied depends on the listening attitude adopted. I can listen to daily sounds in a “musical” mode if I wish – that is, not just listen to them for the source-bonded information they carry. Indeed, as a composer, I have a habit of doing so. One of the acousmatic composer’s roles, is, I think, to unveil the musical in the sounds around us”. 17 “Yes, gesture is source-bonded. Bear in mind, though, that source bonding is concerned with both sources and causes. […]. A gesture is a cause. And, of course, gesture is only one type of cause”. 29 conservado). Apesar destes sons serem indesejáveis, eles ainda assim são uma parte fundamental do som e, consequentemente, relevantes para a nossa escuta (CHION 2009, p. 156). O autor chama de acidente uma perturbação que assuma um papel secundário em um som qualquer. Um pequeno ruído percussivo no final de uma arcada longa de violoncelo, ou uma pequena vibração indesejada em um címbalo. Diferentemente do incidente, a causa de um acidente não é técnica (no sentido tecnológico). 18 Se por um lado as observações de Pedersen de fato enriquecem o pensamento de Smalley, por outro, correm o risco de reduzir a nossa experiência auditiva a uma taxonomia conceitual excessiva. Suk Jun Kim observa que o próprio trabalho de Smalley já sofre deste problema ao “semantizar a percepção auditiva, codificando a nossa experiência sonora em um sistema semântico, precisamente o fenômeno hermenêutico que Smalley tentou evitar” (JUN KIM 2008, p. 97). Ampliar a discussão sobre substituição gestual não consiste necessariamente em criar novas categorias para sons que não se encaixam em nenhuma das existentes; simplificar a carga conceitual da discussão, e discutir quais as bases metodológicas da descrição da nossa experiência auditiva como uma forma de conhecimento válida é também um caminho possível. Neste sentido, o trabalho proposto aqui é um tanto distinto do de Pedersen, apesar de tratar dos mesmos conceitos. Os conceitos de Smalley abordados neste trabalho mantêm um certo diálogo com a produção acadêmica de música eletroacústica dos últimos anos. No caso de Schaeffer, o seu conceito de intencionalidade tem uma estreita relação com a causalidade e ligação a fontes, e os dois últimos níveis de substituição gestual (de terceira ordem e de ordem remota) induzem o ouvinte a um tipo de escuta semelhante à escuta reduzida de Schaeffer. Toda a metodologia de Smalley, a da descrição metafórica da experiência auditiva, tangencia a metodologia de Schaeffer. Luke Windsor, em seu artigo Frequency structure in electroacoustic music: ideology, function and perception (1997), ressalta o papel fundamental que o reconhecimento de fontes sonoras tem na estruturação (por parte do ouvinte) de música eletroacústica. Segundo o autor, “se escutamos dois sons e percebemos as suas fontes, então tal percepção não apenas pode dominar a estória que estes sons contam, mas também ser responsável pela motivação de os perceber como estruturalmente conectados” (WINDSOR 1997, p. 97). O 18 A discussão sobre acidente/incidente se insere em uma discussão maior do autor chamada morfologia externa, que tem como objetivo descrever/catalogar sons que, apesar de serem percebidos como um único objeto, são formados por elementos distintos. Ver CHION 2009, p. 156-158. 30 pensamento de Windsor é similar ao de Smalley 19, a diferença entre os dois é que enquanto Smalley está preocupado em descrever a nossa experiência, Windsor, assim como Schaeffer, tem como objetivo criticar algumas tendências da composição musical do século XX que se baseiam em dados da acústica musical, ou em modelos matemáticos influenciados pelo serialismo. Windsor critica tanto a idéia de que a música pode se referenciar a si mesma o tempo todo, sem recorrer a qualquer tipo de ligação extrínseca, quanto a idéia de que seja possível uma música que ignore qualquer relação interna entre as alturas e se constrói meramente referenciando sons cotidianos. O que Windsor busca é justamente achar algum tipo de meio termo (tanto teórico, quanto prático) para a composição musical: Tal visão polarizada sobre material sonoro pode nos levar a acreditar que apenas estruturas musicas tradicionais, ou análogas a elas, são relevantes (e.g. Lerdahl 1988); ou, ao contrário, uma polêmica rejeição de tais estruturas (e.g. Wishart 1985) e de sua dominância sobre o discurso musical. Admitir que sons musicais e sons do cotidiano são meramente rótulos para como usamos e escutamos sons, ao invés de categorias epistemológicas distintas, permite uma abordagem mais flexível: não é somente o material sonoro que determina isto, mas a nossa abordagem e o contexto em que é colocado. (WINDSOR 1998, p. 77, tradução nossa)20 Por morar em uma rua ao mesmo tempo estreita e movimentada, escuto diariamente pequenos acordes formados por 3 ou 4 buzinas de carro, separadas por poucos metros. Os intervalos que surgem entre as buzinas podem tanto ser ouvidos como sons musicais, quanto cotidianos (neste caso, desconsiderando as relações de consonância/dissonância que surgem entre as alturas definidas). Os intervalos que surgem entre as buzinas são em algumas ocasiões ouvidos meramente como um adensamento da paisagem sonora, não prestando atenção se os intervalos formados são consonantes ou dissonantes e extraindo daquele evento sonoro apenas a informação de que a rua está movimentada. Em outras ocasiões, escuto os mesmos sons como pequenos acordes formados espontaneamente. E, num mesmo instante, posso oscilar entre uma percepção e outra, ou ainda permanecer em uma terceira em que 19 Windsor, apesar de não citar Smalley diretamente, aponta o autor como um dos seus referenciais teóricos. (WINDSOR, 1997, p. 77 e p. 79) 20 “Such a polarised view of sonic material can lead to either a belief that only traditional musical structures or their analogues will do (e.g. Lerdahl 1988), or conversely, a polemic rejection of such structures (e.g. Wishart 1985) and their domination of musical discourse. Accepting that musical and everyday sounds are merely labels for how we use or hear sounds rather than epistemological categories allows for a rather more flexible approach: it is not sound material alone which determines this, but our approach to it, and the context in which it is placed”. 31 estabeleço uma relação causal entre o aumento do número de carros e os intervalos que surgem nas buzinas, e percebo que os sons dos carros (do cotidiano) formaram um acorde (musical). Na prática, oscilo entre estas três percepções, e focar em uma ou outra é na maioria das vezes uma questão de escolha ou intenção. Quando sons do cotidiano são inseridos em um contexto musical, a fronteira entre estes três tipo de escuta se torna ainda mais borrada, e o que determina qual delas vai se sobressair é, novamente, a intenção do ouvinte21. Já Pasoulas, em seu artigo Temporal Associations, Semantic Content and Source Bonding (2011), se propõe a analisar como a percepção de tempo é influenciada pelo significado semântico e características espectromorfológicas de eventos sonoros. O autor usa como referencial teórico a espectromorfologia de Smalley e a análise do cenário auditivo, de Albert Bregman (1990). A teoria de Bregman se propõe a compreender, por um viés da psicoacústica, como a mente consegue “construir percepções independentes de eventos que geram sons (sound-generating events), apesar das evidências [sonoras] estarem misturadas” (BREGMAN 2008). A primeira coisa que fazemos, aparentemente, é analisar e decompor o sinal em um grande número de componentes espectrais. Bregman se propõe a analisar como, através de diferenças de tempo e fase entre os sinais, conseguimos identificar quais sons são provenientes de quais fontes. Para o autor, uma evidência de que temos a capacidade de fazer isso é que, caso contrário, “combinaríamos sílabas de dois sujeitos falantes, criando palavras falsas” (BREGMAN 2008). Tendo como exemplo o som de um sino, Pasoulas afirma que as informações deduzidas pelo ouvinte a respeito desta fonte sonora não contêm apenas informações físicas (no caso do sino: tamanho, espessura, localização), mas também referências à religiosidade e ao sagrado. Existe uma carga de informação, obtida pelo som, que faz referência a fatores 21 Discussão semelhante está presente na abertura de O Cru e o Cozido de Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS 2004, p. 19-52), onde o autor faz uma divisão clara entre os sons do cotidiano (que ele chama de ruído) e sons musicais. Para Lévi-Strauss, existem dois níveis de articulação na linguagem musical. O primeiro é constituído de pequenos elementos que, não contendo nenhum significado em si, têm o potencial para quando combinados de certa maneira produzir significado, semelhante aos fonemas na língua falada. Neste primeiro nível estariam as notas musicas. O segundo nível seria onde o significado finalmente se estabelece. Porém, o autor afirma que ruídos, que são a paleta de sons da música concreta, não conseguem estabelecer relações significativas entre si no primeiro nível, impossibilitando o surgimento de um segundo. A única solução para este problema seria se a música concreta trabalhasse apenas com sons não processados. Porém, ao fazer isso, seu repertório ficaria pobre e limitado (ibid., p. 43-50). Neste mesmo trecho, Lévi-Strauss também faz uma crítica semelhante ao serialismo. Vale notar que o livro, originalmente publicado em 1964, é anterior ao Traité des objets musicaux (SCHAEFFER 1966). Não cabe dentro dos objetivos deste trabalho fazer uma análise detalhada da crítica de Lévi-Strauss à música concreta, e nem discutir de que maneira a sua argumentação pode ser inserida na espectromorfologia de Smalley. Para uma elaboração mais detalhada da relação entre as idéias de Lévi-Strauss e a música eletracústica, ver WISHART 1986, p. 52-56 e WISHART 1996, p. 167-169. 32 extra-musicais. A quantidade de informação a respeito de fatores extra-musicais depende, em parte, da clareza na percepção da fonte sonora: Quanto menos um som parece ser relacionado com uma fonte-causa conhecida, mais ambíguas são suas denotações, e mais conotações serão influenciadas pela imaginação do ouvinte, e pelo contexto da composição. (PASOULAS 2011, 63, tradução nossa) 22 Além de informações sobre fatores culturais ou extra-musicais, sons acusmáticos possuem uma grande quantidade de informação que se refere à temporalidade. Pasoulas destaca três categorias a que essa informação temporal pode pertencer: cenário temporal (temporal setting), duração alusiva (allusive duration) e ordem cronológica (chronological order). Um som carrega informações sobre o cenário temporal quando informações presentes neste som revelam um ponto no tempo em que este foi gravado. Sons de cigarras usados em Presque rien No. 1,23 de Luc Ferrari (1970), junto com os sons ambientais, nos revelam que aqueles sons ocorreram em algum momento específico do dia. Sons de atividade humana, como crianças brincando e movimentação intensa de carros, nos informam que estes sons também ocorreram durante o dia. Estas informações ficam prejudicadas caso a ambientação (em oposição ao som principal) seja omitida: No caso dos grilos e das cigarras, assim como em vários casos de gravação de sons ambientais, o cenário temporal está incorporado no cenário espaçotemporal, uma vez que informação sobre tempo e espaço está incorporado no material sonoro. O cenário temporal não pode ser separado de seu espaço. (PASOULAS 2011, p. 64, tradução nossa) 24 Mais será dito sobre Presque Rien e suas implicações temporais adiante. Por agora, vale apenas ressaltar que as categorias noite/dia que podem ser referenciadas a partir de sons gravados também têm, para o autor, conotações musicais culturalmente estabelecidas: Por exemplo, o reconhecimento de dia e noite é associado a claro versus escuro, visão clara versus visão obscurecida, seguro versus ameaçado ou vulnerável, acordado versus dormindo, e agitado versus calmo. Se 22 “The less a sound appears to be connected with a known source-cause, the more ambiguous the denotations are, and the more the connotations are left to be influenced by the imagination of the listener and the particular context of a composition”. 23 “Quase Nada No. 1 ‘o nascer do dia à beira do mar’ ” 24 “In the case of cicadas and crickets, as in many cases involving recorded environmental sounds, the temporal setting is incorporated into a spatio-temporal setting, because information about time and space is embedded in the sonic material. The temporal setting cannot be separated from its space”. 33 considerarmos a última justaposição, conseguimos detectar similaridades entre agitado/calmo e estados opostos de densidade de material sonoro. (PASOULAS 2011, p. 64, tradução nossa) 25 A duração alusiva é uma característica que pode estar presente em sons quando eles enfatizam uma certa simbologia da permanência. O autor cita o exemplo de Murray Schaeffer: o som do mar é um bom exemplo de algo que carrega uma certa carga simbólica do eterno. Porém, para o autor, um contexto musical adequado é necessário para que esta característica do som seja ressaltada: […] A associação entre o mar e o duradouro não significa simplesmente que o ouvinte irá se referir a esta característica temporal ao escutar sons do mar. O que determina que a referência à característica temporal da “duração alusiva” ocorra é a composição, e o fato do ouvinte se sentir atraído a isto. Estruturas adequadas são necessárias para que a simbologia da permanência seja enfatizada. (PASOULAS 2011, 65, tradução nossa). 26 O autor continua sua exposição usando o exemplo de uma peça sua, Vessel@Anchor (2005). A peça pretende explorar a percepção de duração do ouvinte através de gestos longos, texturas estáticas e gestos repetitivos. A última parte da peça, que dura dois minutos, é percebida, segundo o autor, como muito mais longa do que de fato é. Isso ocorre devido á inclusão de sons que remetem ao mar através de “gestos lentos e suas formas (morfologias) que enfatizam o perfil da ondulação e a imagem de ondas” (PASOULAS 2011, 63). Para o autor, as referências extrínsecas de um som carregam dentro de si informação a respeito de duração e percepção psicológica do tempo. E por último, Pasoulas define ordem cronológica da seguinte maneira: Associações podem unir eventos sonoros sucessivos e gerar uma linearidade temporal, uma narrativa, através do desenvolvimento natural e de interrelações. Eventos podem se conectar em ordem cronológica […] 25 “For example, recognition of day and night is associated with light versus dark, clear versus obscured vision, safe versus threatened or vulnerable, awake versus asleep, and busy versus calm. If we consider the last juxtaposition, we can detect similarities between busy/calm and opposite states of sonic material densities”. 26 “[…] the association between the sea and its lasting duration does not simply mean that the listener will refer to that particular temporal characteristic while listening to sea sounds. Whether a reference to the temporal quality of ‘allusive duration’ is made depends on how this aspect is used in a composition, and whether the listener is drawn to that aspect. Suitable structures are needed in order to emphasise this symbolism of permanence”. 34 Associações podem vincular temporalmente material sonoro e são parte da formação de escalas de tempo. (PASOULAS 2011, p. 66, tradução nossa)27 Além da criação de narrativa através de sons, também é possível interromper ou perturbar narrativas conhecidas. Seqüências facilmente identificáveis (como, por exemplo, a seqüência de sons em um ovo sendo frito) podem ter seus elementos trocados de lugar. Esta perturbação (disturbance) da ordem dos eventos depende inteiramente da familiaridade do ouvinte com a seqüência original. Além disso, sons que são espectromorfologicamente similares podem se agrupar e formar algum tipo de narrativa. Por exemplo, em uma peça que tenha vários sons diferentes de água, o ouvinte pode, ou tem uma certa inclinação a agrupar esses sons em uma única narrativa, mesmo que eles ocorram em momentos diferentes. O estabelecimento de uma cronologia dos eventos, por parte do ouvinte, tem um certo caráter imprevisível, em que as experiências e cultura do ouvinte cumprem um papel importante: Às vezes relações extra-musicais e experiências autobiográficas podem unir imagens sonoras de maneiras inesperadas, assim reordenando sua estrutura, resultando em uma interpretação subjetiva do trecho musical. (PASOULAS 2011, 67, tradução nossa) 28 As idéias de Pasoulas a respeito de cenário temporal, duração alusiva e ordem cronológica são influenciadas pelo conceito de ligação a fontes de Smalley, o próprio autor aponta algumas semelhanças entre as duas discussões. Porém, os conceitos de causalidade e substituição gestual de Smalley também podem enriquecer a discussão de Pasoulas. Tanto os conceitos de Pasoulas quanto os de Smalley tentam de alguma maneira descrever o processo perceptivo. Analisando trechos de algumas peças do repertório de música eletroacústica, percebemos claramente como se dá a interação entre as idéias de ambos os autores. Novamente, Presque Rien No 1 ajuda a exemplificar um conceito, neste caso o que Pasoulas chama de cenário temporal. Ao analisar os aspectos rítmicos de uma obra como esta, a tentativa de tentar representar a sucessão dos eventos através do ritmo métrico é, 27 “Associations can link successive sound events together and generate a temporal linearity, a narrative, through natural development and interrelations. Events may connect to each other in a chronological order, which is the third temporal quality addressed in this paper. Associations bind material together temporally and are involved in the formation of timescales.” 28 “Sometimes, extra-musical relationships and autobiographical experiences may link sound images in unexpected ways thus rearranging their structure, resulting in a personalised interpretation of a musical section”. 35 obviamente, ineficaz. Mas mesmo que a palavra ritmo em seu sentido estrito seja um pouco inadequada, podemos falar em temporalidade. O barulho de motor de barco, juntamente com o som de crianças conversando em 6m00s, deixa claro que aqueles sons ocorrem durante o dia; as implicações rítmicas (em termos de densidade de texturas) disto já foram expostas anteriormente. Porém, algo não mencionado por Pasoulas diz respeito à natureza dos gestos diurnos e noturnos. Não é apenas a referencialidade que nos revela informações sobre momento do dia em que os sons foram gravados, mas também a intensidade dos gestos físicos que geram estes sons. Madrugada e noite são essencialmente mais silenciosas que manhã e dia, e gestos pouco intensos reforçam as particularidades destes períodos mais calmos. Portanto, a temporalidade não está apenas relacionada ao reconhecimento de fontes, mas também ao que Smalley chama de substituição gestual, uma vez que reconhecemos gestos como predominantemente diurnos e outros como predominantemente noturnos. Em uma peça minha, intitulada Em um Quarto, com Cabos e Vista (2011)29 , tentei explorar em alguns trechos as relações entre ritmo, tempo e referencialidade. A peça é composta por notas longas sintetizadas, gravações feitas de crianças brincando na Praça São Salvador (localizada na zona sul do Rio de Janeiro), e gravações de objetos do cotidiano (papel sendo amassado, um copo de metal caindo, gravações de eletrodomésticos, entre outras coisas). A peça dura cerca de 9 minutos, e inicia-se com uma nota longa, e um crescendo de sons da rua. Quando os sons da rua atingem o seu volume máximo (0m47s), eles subitamente param, sendo interrompidos por sons de copos metálicos caindo e portas fechando. A atividade rítmica neste trecho (0m48s a 0m54s) contrasta com o que veio antes, os gestos são mais marcados, e poderiam ser reduzidos (caso fosse a vontade do analista) à notação métrica. Em 0m54s estes gestos cessam, e o pedal do início reaparece, juntamente com gravações de crianças brincando na praça. Dois conceitos de Smalley podem ser usados para descrever o que acontece entre 0m54s e 1m05s: o som pedal tem um caráter sintético 30, e é o que Smalley chamaria de substituição gestual de terceira ordem. Algum tipo de ação humana pode ser imaginada como geradora deste som, e seu envelope dinâmico é parecido com o de arcadas longas em seções de cordas; trata-se de um som, de certa maneira, lento. Por outro lado, a atividade das crianças 29 Outros aspectos desta peça serão discutidos no capítulo seguinte. 30 Apesar de parecer sintetizado, o som possui uma origem concreta. Ele foi obtido através da manipulação de gravações de pedais de distorção ligados em um loop de realimentação e sons de cabos ligados em apenas um dos pontos da placa de som, que gera um hum estático de aproximadamente 480hz 36 na praça nos coloca em um modo de escuta em que a dedução das fontes é fundamental, e o grande número de eventos sonoros, somados ao fato destes sons serem diurnos, faz com que esta textura seja mais ritmicamente intensa. Ocorre, então, um contraste rítmico entre as duas texturas. Se entendermos as relações rítmicas meramente como sucessão de eventos em uma linha de tempo, esse contraste não existe. Porém, claramente existe uma sobreposição de elementos distintos, e conceitos como cenário temporal, substituição gestual e ligação a fontes auxiliam na descrição deste contraste. Algo parecido ocorre na peça Le Vertige Inconnu (1993), de Gilles Gobeil. A peça, que dura cerca de oito minutos, mescla sons ambientais, sons de máquina e sons sintéticos. O início da peça exemplifica perfeitamente as diferenças entre cenário temporal e ordem cronológica. A peça inicia com uma seqüência de sons de máquina, jatos de vapor, e algo que soa como pedaços de madeira quase rachando. Todo evento que acontece parece ser resultado do evento anterior; a forte causalidade entre os eventos dos primeiros nove segundos acabam por agrupá-los em um único bloco. Em seguida temos uma súbita interrupção destes sons, e cinco segundos de quase silêncio. Em 0m16s, uma nova sequência de sons mecânicos surge, novamente com uma forte causalidade entre os eventos. A causalidade presente reforça o que Pasoulas chama de cronologia, e estes dois fatores agrupam os eventos sonoros em um único bloco. Também é curioso que logo após estes dois primeiros blocos de sons mecânicos, o compositor usa uma gravação de campo com sons de cigarras, criando um contraste com a primeira cena, que tem um certo caráter diurno. Os primeiros 45 segundos desta peça demonstram que, por mais que possam ser separados em diferentes categorias para fins teóricos, causalidade, ordem cronológica e cenário temporal são conceitos que se misturam e se complementam durante o processo de escuta. Outro exemplo de como estes conceitos se misturam é a peça Kit’s Beach Soundwalk (1989), de Hildergard Westerkamp. A peça, citada pelo próprio Pasoulas em seu artigo, consiste em um passeio pela praia, narrado pela própria compositora. À primeira instância, a paisagem sonora parece bastante fiel, mas aos poucos a compositora começa a amplificar e filtrar certos sons. Porém, o que há de curioso nesta peça é o fato da compositora explicitar verbalmente alguns dos procedimentos técnicos utilizados. A cronologia dos eventos nesta peça é de uma natureza completamente diferente em relação ao exemplo de Gobeil. O que há de narrativo em Le Vertige Inconnu são as relações de causalidade entre eventos acusmáticos, 37 já Kit’s Beach Soundwalk é uma peça literalmente narrada. Westerkamp explica o que está acontecendo em cada um dos momentos, e as expectativas criadas em relação aos eventos seguintes estão mais relacionadas ao texto da compositora do que a fatores puramente musicais. A praia que está sendo gravada é dentro de uma cidade, e a compositora, em 3m08s, filtra os sons da cidade. Ela avisa o ouvinte que isto está acontecendo, e que foi editado em um estúdio. Pasoulas destaca este trecho como um bom exemplo de duração alusiva; o contraste entre os sons da cidade e os sons da praia (e depois apenas os sons da praia) ressalta o caráter eterno/duradouro destes sons. Enquanto os sons da cidade se modificam inteiramente de tempos em tempos, o som do mar é sempre constante. Porém, os sons do mar e a narração da compositora, nesta peça, se complementam; é impossível falar de forma ou textura separando os dois fatores. Assim com é impossível separar, no caso desta peça, duração alusiva de ordem cronológica. A narração de Westerkamp cria uma expectativa na seqüência dos eventos e ao mesmo tempo reforça a simbologia do mar. Smalley não fala explicitamente sobre temporalidade em seu trabalho, porém há vários fatores implícitos sobre ritmo e tempo em seus textos. O autor evita separar os vários aspectos da experiência musical, e seu discurso sobre tempo e ritmo acaba sendo incorporado em seu discurso geral. Pasoulas, ao relacionar o conceito de ligação a fontes de Smalley com as idéias a respeito da análise do cenário auditivo, de Albert Bregman, enriquece o conceito de Smalley. No entanto, dentro do conjunto teórico de Smalley, ligação a fontes é um conceito que dificilmente pode ser separado de substituição gestual e causalidade. Tomando como ponto de partida exemplos musicais do repertório da música eletroacústica, e tentando aplicar as idéias de Smalley e Pasoulas na descrição destes trechos, fica claro de que maneira os conceitos de Smalley se sobrepõem, e como questões sobre temporalidade se encaixam na discussão. O autores citados acima são apenas alguns exemplos de idéias semelhantes a de Smalley que, quando contrapostas aos conceitos apresentados em sua espectromorfologia, podem enriquecer os potenciais teóricos e práticos do sistema. Na próxima subseção, a espectromorfologia de Smalley será usada para descrever/analisar uma obra canônica da música eletroacústica: Étude Violette, o terceiro estudo dentro dos de Cinq Études de Bruits de Pierre Schaeffer. No capítulo seguinte, os conceitos da espectromorfologia de Smalley serão discutidos em paralelo com o meu próprio trabalho composicional. 38 1.5. ANÁLISE ESPECTROMORFOLÓGICA DE ÉTUDE VIOLETTE, DE PIERRE SCHAEFFER Os Cinq Études de Bruits de Pierre Schaeffer, feitos em 1948, marcam o início da música concreta. Os estudos foram as primeiras composições de Schaeffer, e foram realizados com técnicas inovadoras para a época. Como descreve Palombini: Trabalhando num estúdio de rádio um pouco modificado, Schaeffer empregou um prato para gravação de acetatos, quatro pratos para reprodução, um misturador de quatro canais, filtros, uma câmara de eco e uma unidade móvel de gravação. As técnicas empregadas envolviam variações das velocidades de gravação e reprodução, amostragem e edição de sons por manipulação do braço, fechamento em anel do sulco gravado, movimentação do disco em sentido reverso, modulações de intensidade, fade-ins e fade-outs. (PALOMBINI 1999) As idéias exploradas nestes estudos viriam a ser desenvolvidas mais tarde em outras obras, e principalmente em sua principal obra escrita, Traité des objets musicaux (1966). A técnica do sulco fechado, usada pela primeira vez nestes estudos, foi uma das práticas mais bem sucedidas de Schaeffer do ponto de vista da pesquisa musical. A técnica consiste em fechar um pedaço do sulco de um disco nele mesmo, criando uma espécie de anel, fazendo com que uma vez que a agulha entrasse neste trecho ele seria repetido indefinidamente. Com a repetição de pequenos trechos, relações causais e anedóticas do som ficariam em segundo plano na nossa percepção, dando espaço ao que Schaeffer se refere como a escuta reduzida, i.e. uma a “atitude de escuta que consiste em escutar o som por si mesmo, como um objeto sonoro, através da remoção de suas fonte real ou imaginada e os significados que que podem transmitir” (CHION 2009, p. 30). Para Schaeffer, evitar da tendência natural de buscar fontes e significados durante a escuta de sons permite “clarificar muitos fenômenos implícitos em nossa percepção” (ibid., p. 31). O terceiro destes estudos, Étude Étude Violette, foi feito através da manipulação de sons gravados de piano, com as técnicas mencionadas acima. O estudo foi estreado na Rádio Nacional da França em 5 de outubro de 1948, com comentários de Schaeffer. A descrição do compositor sobre a obra durante esta transmissão é focada em grande parte nos aspectos técnicos, tentando informar o ouvinte sobre a maneira como aqueles sons foram produzidos: O estudo que iremos escutar a seguir tem, como sua única fonte, os ruídos e sons que podem ser extraídos de um piano. Uma atenção particular foi dedicada para excluir todas as maneiras convencionais de se tocar o piano, 39 não por princípio, mas para deixara demonstração mais vívida. A composição foi baseado na técnica do “sulco fechado” (criando loops em um disco fonográfico); ela consiste em isolar fragmentos sonoros e figuras rítmicas em andamentos e alturas diferentes, para ser usados estruturalmente com diferentes técnicas: reverberação, playback reverso, etc. (SCHAEFFER 1997, p. 69, tradução nossa)31 Esta primeira descrição tecnológica de Schaeffer é uma maneira possível de se falar sobre a obra, porém ela descreve apenas como os sons foram produzidos e diz muito pouco a respeito de como estes sons são percebidos. Em seguida, Schaeffer fala brevemente dos aspectos formais e gestuais da peça: O estudo compreende um primeiro movimento rítmico ao qual sucede-se um movimento melódico lento, em seguida uma retomada de variações rítmicas, de novo cortadas por um motivo lento onde são exploradas os recursos de três tessituras diferentes. O estudo termina em uma retomada rítmica que lembra o tempo inicial. (SCHAEFFER 1997, p. 69, tradução nossa)32 Schaeffer é breve ao falar da música propriamente dita. Apesar da preocupação que mais tarde viria a ter em seu tratado de descrever e classificar os vários tipos de objetos sonoros através da escuta reduzida , Schaeffer fala pouco sobre o desenvolvimento do material musical de Étude Violette do ponto de vista puramente perceptivo. Ele descreve o desenvolvimento do material com termos um tanto vagos em um contexto eletroacústico, indicando apenas a forma (A-B-A-C-A) e poucas palavras sobre a natureza dos sons. Schaeffer se foca principalmente no que Denis Smalley chama de escuta tecnológica, que ocorre quando a nossa escuta é direcionada à tecnologia ou técnica por trás da música, deixando aspectos gestuais e propriamente musicais em segundo plano (SMALLEY 1997 p. 109). Ao analisar a peça tomando como base os conceitos da espectromorfologia, é possível dividir formalmente a obra em três trechos: apresentação do material (00m00s-1m47s), desenvolvimento do material (1m47s-3m00s) e uma coda (3m00s-3m40s). A apresentação e o 31 “Toute l'étude qu'on va entendre a pour source unique les bruits et les sons qu'on peut tirer d'un piano. On s'est attaché toutefois à exclure tout usage c1assique du piano, non par principe, mais pour rendre Ia démonstration plus suggestive. La technique du "sillon fermé" est à Ia base de cene composition; elle consiste à isoler des fragments sonores ou rythmiques dans différents tempo et à différents diapasons, pour une construction ou entrent divers procédés: la réverbération, le son à l'envers, etc.”. 32 “L'étude comprend un premier mouvement rythmique, auquel succede unmouvement mélodiquement!ent, puis une reprise de variations rythmiques, de nouveau coupées par un motif lent ou sont exploitées les ressources de trais tessitures opposées. L'étude se termine par une reprise rythmique rappelant le tempo initial”. 40 desenvolvimento podem ser subdivididos, em termos de diferenças espectromorfológicas, em trechos menores. A apresentação do material pode ser dividida em quatro partes distintas, o desenvolvimento em três. 1.5.1. Apresentação do material, 00m00s a 00m20s Nos primeiros vinte segundos temos a um gesto cromático descendente, que Schaeffer se refere como um movimento rítmico, seguidos de dois tipos diferentes de ruído: ruído granular e ruído saturado. A peça tem início com este gesto rítmico, que se mantém ao longo dos primeiros vinte segundos, com pequenas variações. Logo após o início deste primeiro gesto surge um ruidoso, que pode ser descrito segundo a espectromorfologia de Smalley como ruído granular. Ruído granular pode ser extrinsecamente relacionado ao som do mar, ou ao som de consoantes, e é percebido como “impulsos texturizados” (SMALLEY 1997, p. 120). Logo após o ruído granular, aparece um som ruidoso que aparenta ser derivado de sons de piano; este segundo ruído é um bom exemplo de ruído saturado. O ruído saturado é caracterizado pelo que Smalley chama de compressão espectral, um número muito grande de alturas definidas em uma tessitura limitada33. Devido à quantidade muito grande de alturas, não conseguimos nos focar em nenhuma em particular, de maneira que aquela textura seja percebida como ruído, porém diferente do ruído granular. O primeiro gesto rítmico é um gesto de terceira ordem, em que podemos perceber alguns elementos humanos (marcação rítmica, alturas descendendo cromáticamente), porém não conseguimos especificar exatamente qual a fonte sonora, e como esta fonte pode estar sendo manipulada. O ruído granular e o ruído saturado, apesar de soarem como fossem de fontes diferentes, têm a mesma natureza gestual de ordem remota, e o contraste entre os dois tipos de ruído é marcante. Estas diferentes categorias de ruído, apesar de não dizerem respeito a fonte sonora diretamente, dão pistas ao ouvinte sobre a natureza da fonte. Parte do processo de ligação a fontes consiste em imaginar fontes similares a sons que, de alguma maneira, soam similares. Dois sons ruidosos podem soar como tendo fontes semelhantes caso ambos possuam as mesmas características espectromorfológicas (sejam elas granulares, sejam elas saturadas). Dois sons ruidosos que possuem características timbrísticas distintas (no caso, um granular e o outro saturado) podem 33 Em música instrumental, clusters podem ser considerados ruído saturado 41 soar para o ouvinte como tendo fontes distintas. No entanto, o fato de cada um destes sons serem ligados a fontes distintas, apesar de sofrerem um processo de substituição gestual similar, demonstra a relativa independência que fonte e gesto podem vir a ter. 1.5.2. Apresentação do material, 00m20s a 00m38s Neste próximo trecho ocorre um crescendo dos ruídos, o que reforça mais ainda o contraste entre saturação e granulação. Ao fundo, um som percussivo de pouca intensidade se repete. Este som percussivo é um ótimo exemplo de gesto de primeira ordem: ele não é o que tradicionalmente se chama de um som musical, e sua espectromorfologia contém um forte elemento humano; temos a impressão que alguém está manipulando um objeto qualquer, gerando sons percussivos. Este som se mantém constante durante quase todo o trecho, apenas no fim ele é interrompido pelo gesto rítmico do trecho anterior. Uma forte relação causal é percebida entre a interrupção do som percussivo e a entrada abrupta do gesto rítmico, e a diferença entre os dois sons, um de primeira ordem e o outro de ordem remota, fica evidente. O gesto rítmico é repetido algumas vezes, e desaparece em fade-out, deixando um pequeno silêncio (ou respiração, em termos tradicionais) entre este trecho e próximo. 1.5.3. Apresentação do material, 00m38s a 1m00s Neste trecho temos quatro sons distintos que se repetem: o som percussivo do trecho anterior (de primeira ordem), o gesto rítmico apresentado no início da peça (de terceira ordem), três notas tocadas no piano (de segunda ordem) e um som semelhante ao som do piano, porém com seu ataque (ou início) e término alterados (criando um gesto de ordem remota). A atenção é direcionada aos contrastes entre os diferentes graus de ação humana em cada um destes sons. De 00m38s a 00m50s temos apenas os três primeiros sons, os sons de ordem remota aparecem, neste trecho, apenas entre 00m50s e 1m00s, e com muito pouca intensidade. A diferença de intensidade coloca estes sons de ordem remota em outra plano, quase outro espaço físico, o que reforça ainda suas diferenças com os outros sons. 42 1.5.4. Apresentação do material, 1m00s a 1m47s A última parte da apresentação do material começa com um acorde sendo tocado no piano, e durante todo o trecho temos apenas este acorde e variações em seu envelope dinâmico; o som do piano som, inalterado, sobreposto a suas variações criam diferentes expectativas espectromorfológicas. O surgimento deste acorde sugere uma re-interpretação da natureza de todas as fontes dos sons apresentados anteriormente. Parte da ambigüidade presente em relação as fontes de alguns sons desaparece, e durante todo o trecho acontece o que Smalley chama de bonding play, uma espécie de jogo que explora as incertezas em relação às fontes dos sons presentes (SMALLEY 1997, p. 110). No fim da apresentação ocorre uma pequena pausa, menos de meio segundo, e então começa o desenvolvimento. 1.5.5. Desenvolvimento do material, 1m47s a 1m57s Em 1m57s começa o desenvolvimento do material. Este trecho pode ser considerado um desenvolvimento devido ao fato de que nenhum material diferente, do ponto de vista espectromorfológico, é introduzido na peça a partir deste trecho. O trecho inicia em fade-in, e é composto apenas por sons percussivos de primeira ordem (os mesmos apresentados anteriormente) e o foco do nos dez primeiros segundos do desenvolvimento é a gestualidade humana por trás dos sons produzidos. Estes sons se repetem, com variações de dinâmica, até o fim do desenvolvimento. 1.5.6. Desenvolvimento do material, 1m57s a 2m27s Sons de ordem remota, similares aos de ordem remota apresentados entre 1m00s e 1m47, são sobrepostos aos sons percussivos. Eles possuem um espectro harmônico e altura definida e, em termos espectrais, os sons percussivos são o exato oposto. Os dois sons estão em lados opostos do contínuo nota-ruído e, por serem também distintos em termos gestuais, temos a impressão que eles se desenvolvem de forma independente, em uma espécie de polifonia de sons concretos34. 34 Sons concretos, neste trabalho, se refere a sons gravados (em oposição a sintetizados) e depois manipulados em estúdio. 43 1.5.7. Desenvolvimento do material, 2m27s a 3m00s O gesto rítmico apresentado nos primeiros segundos da peça interrompe a polifonia da seção anterior. O som é repetido varias vezes, a cada repetição com menos intensidade, e desaparece em fade-out ao longo da seção. Juntamente com a repetição do gesto rítmico, temos também os mesmos sons de ordem remota da seção anterior transpostos cerca de sete semi-tons pra cima. A transposição ocorre logo após a o reaparecimento do primeiro gesto rítmico (2m27s), e uma forte relação causal pode ser percebida entre os dois. 1.5.8. Coda, 3m00s a 3m40s Em 3m00s temos novamente um acorde sendo tocado ao piano, sem nenhum tipo de alteração ou processamento. Este acorde, que é repetido ao longos dos últimos quarenta segundos da peça, é semelhante harmonicamente e em termos de timbre35 com os sons de ordem remota do trecho anterior. Esta semelhança sugere que ambos tenham uma fonte em comum, e nos faz re-interpretar as fontes e gestos dos sons anteriores. Sons que em uma primeira audição pareciam de ordem remota passar a ter um pouco mais de ação humana por trás de suas espectromorfologias. É devido a este processo de re-interpretação que podemos considerar este trecho uma espécie de coda; não há nada de novo em termos de material sonoro nem de gesto/articulação, porém pela maneira como são sobrepostos os alguns dos elementos apresentados anteriormente, acabamos recapitulando estes eventos de uma maneira diferente, e temos uma nova percepção a respeito da natureza destes sons. Boa parte dos sons que pareciam ser de fontes inimagináveis agora passam a ter uma forte relação com a espectromorfologia dos sons do piano; passamos a escutar estes sons, mesmo que em nossa memória, de uma forma diferente. Com as ferramentas conceituais da espectromorfologia temos um vasto vocabulário para conseguir descrever como se dá a escuta e compreensão de peças acusmáticas. A análise torna-se então muito mais um processo descritivo, ao invés de tentar achar alguma lógica conceitual entre os componentes internos, ou em tentar descobrir as intenções do compositor. 35 O conceito de harmonia usado é o mesmo que alguns compositores de música instrumental contemporânea. Timbre enquanto extensão da harmonia, e vice versa (SMALLEY 1994, p. 36). 44 Escutando Étude Violette espectromorfológicamente, chegamos a conclusões diferentes a respeito de sua divisão formal e gestual do que as pretendidas por Schaeffer, e a terminologia de Smalley consegue descrever os eventos de uma forma precisa. As conclusões a respeito de Étude Violette não são definitivas. A própria natureza das ferramentas permite uma constante reexaminação do conteúdo da peça. Conceitos como o de ligação a fontes, substituição gestual e causalidade são de uma natureza subjetiva, e não se propõem a dar nenhuma resposta definitiva a respeito da nossa percepção de uma peça qualquer. Os comentários sobre a percepção de Étude Violette do ponto de vista espectromorfológico são apenas uma possibilidade. Fatores culturais e sociais influenciam profundamente a nossa percepção de relações causais e conteúdo extrínseco, e é justamente deste aspecto subjetivo das ferramentas de Smalley que vem o seu interesse enquanto ferramenta analítica. Uma outra maneira, radicalmente diferente da apresentada nesta subseção, de usar a espectromorfologia como ferramenta analítica/descritiva será apresentada a seguir. 45 "Quando as pretensões do conhecimento perdem o ímpeto, as pretensões da criatividade ocupam-lhes o espaço” Susan Sontag 2. A E S P E C T R O M O R F O L O G I A E N Q U A N T O F E R R A M E N TA COMPOSICIONAL 2.1. PRODUÇÃO ARTÍSTICA ENQUANTO TRABALHO DE CAMPO Há um aspecto intuitivo no processo de composição de música acusmática, principalmente quando se trata de uma obra com sons concretos (i.e. não sintéticos). Em alguns casos de música instrumental, muitas vezes a lógica interna da harmonia ou de um conjunto de regras (como por exemplo as regras do dodecafonismo) nos ajuda a escolher um certo material ao invés de outro. Ou seja, regras pré estabelecidas guiam as escolhas composicionais. Este conjunto de regras é coerente, em parte, simplesmente por ser respeitado durante a obra inteira, e qualquer gesto musical que vá contra sua lógica interna pode causar um estranhamento (tanto perceptivo, quanto conceitual). Esta rigidez lógica certamente existe dentro da música acusmática, certos sons só devem ser inseridos em determinadas peças caso o objetivo seja causar algum tipo de estranhamento, quebra no ritmo ou dissonância. Porém, uma diferença fundamental da escrita instrumental em relação a música acusmática é que uma trabalha, na maioria dos casos, com notas que podem ser grafadas e a outra com sons concretos e/ou sintéticos. Quando a unidade mínima é a nota musical, ou gestos e sons compostos por agrupamentos de notas musicais (por exemplo, um cluster em um piano), é possível nomear os elementos de um trecho qualquer. No segundo movimento de Musica Ricercata de Ligeti, o compositor se utiliza do espaçamento entre as notas para criar oitavas que soam quase dissonantes. O movimento, que dura aproximadamente três minutos e meio, começa com o tema composto apenas pelas notas mi♯4 e fá♯4. No quinto compasso o tema é repetido, mas agora com as oitavas dobradas da seguinte maneira: mi♯5 e mi♯6 são tocados simultaneamente com mi♯1 e mi♯2, o mesmo acontece com a nota fá♯. O compositor consegue criar uma textura quase dissonante utilizando apenas oitavas, que soam estranhas devido ao espaçamento. Todos os elementos que criam aquela textura particular são facilmente 46 nomeáveis, o que faz com que o processo de escolhas composicionais seja um tanto diferente do da música acusmática. Em música acusmática, as regras que fazem com que um som seja estranho nem sempre conseguem ser explicitadas textualmente ou verbalmente; elas são, de certa maneira, mais intuitivas. A inclusão de um som sintético em Presque Rien certamente causaria este estranhamento mencionado acima por destoar completamente do resto do material apresentado durante a obra, por fugir da proposta estética e política do compositor36, por não ter a carga referencial que todos os outros sons da obra possuem, entre outros motivos. No entanto, não é possível nomear os fatores que levam a este estranhamento com a mesma precisão descrita em Musica Ricercata. Figura 1: Primeiros compassos do segundo movimento de “Música Ricercata” Um compositor quando realiza um trabalho de memorial descritivo em composição musical tem como objetivo analisar a sua própria obra. Expor aspectos formais, harmônicos, conceituais e explicitar todo o processo de escolhas que ocorreram durante o ato da composição musical. Este trabalho ganha uma dimensão curiosa na composição acusmática por ter a possibilidade de poder expor o pensamento composicional através de figuras de linguagem e conceitos a respeito da percepção musical e de sons do cotidiano (conceitos, por 36 Eric Drot (2009), usando como método a análise de trechos de entrevistas com Ferrari, afirma que Presque Rien pode ser interpretado como um ode ao amadorismo, uma tentativa de desconstruir o mito do compositor. O autor também afirma que, segundo o próprio Ferrari, a documentação da vida cotidiana é uma tentativa de unir suas ambições artísticas com suas ambições políticas. 47 exemplo, da espectromorfologia ou da tipomorfologia). Nem sempre a argumentação a respeito das escolhas acontece de forma tão clara durante o ato da composição. Por vezes, é apenas a posteriori que o compositor consegue perceber os motivos que o levaram a escolher um certo som ao invés de outro. Em música acusmática, é comum o trabalho de pré composição ser limitado quando comparado à música instrumental. É apenas durante o trabalho de composição em si, quando os sons a serem usados já estão razoavelmente encaminhados, é que podemos avaliar mais precisamente as suas possíveis funções musicais. Ou, como resume Manoury, “enquanto os sons não forem postos em jogo, é vão querer determinar o que quer que se seja no que diz respeito a sua organização. Aqui [na música eletrônica], a experimentação ocupa o lugar principal” (MANOURY 1996, p. 208). Esta visão apresenta um curioso paralelo com o que William James chama de experiência: EXPERIÊNCIA em seu caráter imediato parece-nos perfeitamente fluente. O senso ativo de viver que todos nós desfrutamos, antes da reflexão estilhaçar nosso mundo instintivo, é auto-explicativo e não sugere paradoxos. Suas dificuldades são decepções e incertezas. Elas não são contradições intelectuais. Quando intelecto reflexivo se coloca a trabalhar, no entanto, ele descobre coisas incompreensíveis neste processo de fluxo. Distinguindo seus elementos e partes, lhes dá nomes separados, e o que ele então desmonta ele não consegue facilmente remontar. (JAMES 1912, parágrafo 1-2, tradução nossa)37 Ao compor, o que pode orientar um compositor é seu senso estético e o que William James chama de Experiência. Este fluxo intuitivo, auto explicativo e imune a contradições por vezes ocorre durante o processo de composição 38. Tentar compreender a posteriori como se deu este processo é uma maneira de investigar não só os aspectos de uma obra específica, mas também a natureza do ato composicional. Cartier-Bresson, ao falar do ato de tirar uma foto, afirma que “pensar é algo que tem de ser feito antes e depois, nunca durante o processo de tirar uma foto” (BRESSON apud SONTAG 2011, p. 132-133). Este capítulo tenta retratar justamente a reflexão que vem após o término de uma obra, porém esta reflexão é sempre ancorada na memória da experiência de se compor. 37 “EXPERIENCE in its immediacy seems perfectly fluent. The active sense of living which we all enjoy, before reflection shatters our instinctive world for us, is self-luminous and suggests no paradoxes. Its difficulties are disappointments and uncertainties. They are not intellectual contradictions. When the reflective intellect gets at work, however, it discovers incomprehensibilities in the flowing process. Distinguishing its elements and parts, it gives them separate names, and what it thus disjoins it can not easily put together” 38 O fato deste processo ser autoexplicativo não quer necessariamente dizer que ele é sempre agradável, prazeroso ou sequer desejável. Ele é meramente autoexplicativo. 48 De forma mais específica, as quarto peças que serão discutidas a seguir foram compostas ao mesmo tempo em que pesquisava as idéias de Smalley e Schaeffer. Embora não pensasse especificamente nas idéias de Smalley durante o processo composicional, certamente o meu pensamento composicional foi influenciado por suas idéias. E, uma vez acabado o processo de composição, percebi que alguns conceitos da espectromorfologia eram úteis para descrever o meu processo de escuta. O processo composicional acusmático pode ser um terreno onde intuitivamente o pensamento espectromorfológico acontece, e revisitando essa experiência essencialmente prática (e que possui um envolvimento mais pessoal) à luz de uma grade teórica conceitual (neste caso, da espectromorfologia) é possível desenvolver teoria que tem como ponto de partida a experiência (no sentido de James) da escuta. A prática artística funciona como uma espécie de trabalho de campo, um trabalho prático que alimenta e é essencial para o pensamento teórico. Este capítulo se propõe a discutir o processo de composição e a escuta de quatro obras que foram compostas em paralelo com as leituras desta pesquisa, com o viés descrito acima. Por último, vale acrescentar que a escuta das peças citadas neste capítulo é imprescindível para uma melhor compreensão das discussões que serão levantadas. 2.2. HARMONICIDADE/SATURAÇÃO: TECNOLOGIA ENQUANTO TIMBRE, TIMBRE ENQUANTO GESTO E FONTE SONORA. A substituição gestual em sons com caráter sintético é, por vezes, difícil de classificar na terminologia de Smalley. Por um lado, os sons tocados em um sintetizador (por exemplo, um DX-7 da Yamaha) por um executante constituem uma substituição de segunda ordem; as sutilezas da performance, as pequenas variações de timbre e dinâmica e a unidade timbrística estão em primeiro plano durante a escuta do instrumento. Por outro, existe uma discrepância entre os gestos físicos do executante e os sons produzidos; os gestos deduzidos a partir do som são diferentes dos realizados pelo executante. Um grande crescendo é feito com o movimento sutil de um dedo, e não através de uma arcada (como nos instrumentos de corda), ou um aumento de atividade pulmonar (como nos instrumentos de sopro). Manoury já havia observado esta perversão das relações causais em 1988 ao afirmar que, em música feita com sintetizadores, “os efeitos parecem desmedidos com relação a suas causas” e “um pequeno 49 movimento pode desencadear pequenas tempestades” (MANOURY 1996, p. 207). Smalley, alguns anos mais tarde, trata da mesma questão na seguinte passagem: Boa parte da música que usa a simulação de sons instrumentais também pode ser considerada de segunda ordem, mesmo que estes instrumentos não sejam reais. O uso comercial de sintetizadores é deste tipo quando reconhecemos tanto o gesto envolvido quanto a fonte instrumental simulada. (SMALLEY 1997, p. 112, tradução nossa)39 No caso de sons sintéticos que tentam simular sons instrumentais, certamente estamos falando de uma substituição de segunda ordem. Porém, sons sintéticos que se baseiam em sons reais, mas não têm como objetivo emular um instrumento (por exemplo, pense num híbrido entre o som de um clarinete e violino, com um ataque percussivo) transitam entre uma substituição de segunda ordem (existe um executante, com gestos reais, manipulando um instrumento) e uma de terceira ordem (os gestos deduzidos espectromorfologicamente a partir do som não correspondem aos gestos feitos pelo executante, o gesto é imaginado). Tratandose de ligação a fontes, a fonte do som é sempre o sintetizador. Uma vez que o ouvinte se torna consciente que os sons partem de um instrumento específico (o que é diferente de um estúdio com vários equipamentos, ligados em rede), temos como fonte o sintetizador. Porém, patches de reverberação e de alteração timbrística remetem a uma infinidade de fontes (e espaços em que estas fontes se encontram) diferentes. Surge um curioso paradoxo: a fonte sonora é um instrumento que simula outras fontes sonoras. Existe uma unidade tecnológica que une aqueles sons, e todos os sons produzidos por aquele dispositivo são capazes de criar a ilusão de fontes diferentes. O grupo Tangerine Dream, em seu disco Phaedra, mantém uma unidade timbrística durante a obra toda. Esta unidade acontece por motivos tecnológicos: o uso dos mesmos sintetizadores em todas as faixas. Mesmo assim, o processo de ligação a fontes não deixa de ser rico. Porém, pelo fato de todos os sons serem sintéticos, não existe nenhum caráter indicial; um som pode se comportar como pedras rolando, mas não existe um som sintético que seja exatamente igual ao som de pedras rolando. O som remete a situações e objetos extrínsecos à música, mas nunca propriamente é uma um registro inalterado (ou quase inalterado) de um objeto do mundo. A gravação de uma praça, ou de uma praia, possui um 39 “Much music which uses simulation of instrumental sounds can also be regarded as second order since, although the instrument may not be real, it is perceived as the equivalent of the real. Commercial synthesizer usage is of this type when we recognise both the gesture involved and the instrumental source simulated”. 50 caráter indicial que liga diretamente a gravação àquele local; a gravação é um resultado direto de como aquele local agiu sobre a membrana do microfone40 . Uma grande parte dos sons usados presentes em Harmonicidade e saturação (peça com duração de 8m39s) tem caráter sintético. No entanto, a maioria destes sons têm uma origem concreta e foram processados através da filtragem e o uso de pedais de distorção. O único processo usado que se aproxima da síntese foi o uso de pedais de distorção ligados em loops de microfonia, operando como uma espécie de gerador de ruídos41. Os pedais de distorção (seja ligados em loop ou agindo sobre sons concretos) não foram usados como efeitos, mas como instrumentos em si, em uma abordagem essencialmente Schaefferiana. A manipulação por transposição e filtragem mascara completamente a origem concreta dos sons, porém ainda mantém a imprevisibilidade espectral que existe em sons não sintéticos. Os equipamentos de estúdio se transformam não mais em ferramentas de mixagem, mas em instrumentos em si. Sobre a instrumentalização de equipamentos em Schaeffer, Battier afirma que, no início da música concreta, o toca discos deixa de ser meramente um instrumento que reproduz sons gravados e passa a ser um “gerador de comportamentos sonoros jamais escutados” (BATTIER 2007, p. 195). Estes novos sons foram exaustivamente analisados sob a ótica da escuta reduzida através de transposições, inversões, filtragem e a técnica do sulco fechado. O aparato reprodutor se transforma em instrumento (BATTIER 2007) O uso razoavelmente limitado de equipamentos em Harmonicidade e Saturação42 cria uma unidade timbrística durante a obra inteira. Isso cria também uma unidade em termos de ligação a fontes, uma vez que fonte e timbre estão fortemente conectados. Para Smalley, timbre diz respeito ao “desdobramento e à modelagem do espectro sonoro no tempo, ou em outras palavras, à espectromorfologia” (SMALLEY 1994, p. 37). Fonte sonora, por também ser um atributo espectromorfológico, se torna uma questão. Como afirma Smalley: 40 Mais sobre essa discussão será abordado nas seções seguintes deste capítulo. 41 Ainda que o hum e ruídos de aterramento sejam sons que existem apenas dentro dos circuitos de equipamentos eletrônicos, existe uma presença marcante destes sons em nosso cotidiano. Em grandes centros urbanos, estamos cercados de equipamentos eletrônicos que produzem ruído a quase todo instante. Para mais sobre a inclusão destes ruídos eletrônicos em nosso cotidiano, ver THOMPSON 2002. 42 Os pedais usados foram: Electro-Harmonix Little Big Muff, DOD 250 Overdrive, DOD Supra Distortion, Behringer BDi 21 e Boss Ds-1 Distortion. Em termos de software, os únicos procedimentos utilizados foram: compressão, transposição, reverberação, delay, filtragem e equalização. 51 Todos aqueles atributos tradicionalmente incorporados dentro de timbre - as nuances e as articulações de objetos-nota e frase-forma, e o controle e variação de altura, incluindo a rugosidade/suavidade da nota-grão poderiam ser relacionadas à interação fonte-causa. (SMALLEY 1994, p. 37, tradução nossa)43 Contextos em que a unidade timbrística é decorrente do uso exclusivo de sons sintéticos, ou fortemente processados, tendem a levar o ouvinte a concluir que existe uma unidade, ou homogeneidade, em termos de fontes sonoras. O processo de adivinhação de fontes torna-se menos intenso, quase relegado a um segundo plano, e a questão do gesto ganha força e ímpeto. O gesto e seus substituintes agora podem, potencialmente, ser o foco da escuta e guiar a peça formalmente. O fato de gesto ocupar um lugar maior na escuta do que fonte sonora não quer dizer que a natureza espectromorfológica desses sons não seja limitante em termos de substituição gestual. No caso de Harmonicade e Saturação (assim como outras obras que compartilham essas mesmas características timbrísticas), a primeira ordem de substituição gestual é inexistente. A clareza e falta de ambiguidade presente em substituições de primeira ordem raramente ocorre em sons com caráter sintético. Uma fonte sonora real, não imaginada, é imprescindível para nos dar a impressão de gestos de trabalho ou lazer, sem a menor intenção de musicalidade dentro deles. Outro fator relevante na escuta da peça diz respeito à escuta tecnológica. Como mencionado anteriormente, Smalley considera a escuta tecnológica distinta da espectromorfologia. A descrição excessivamente técnica, em termos de tecnologia, corre o risco de priorizar um sinal que está acusticamente presente, porém não é psicoacusticamente relevante (SMALLEY 1997, p. 109). No entanto, em alguns contextos podemos ter uma espécie de escuta espectromorfológica da tecnologia. Antes da popularização de microsystems e aparelhos reprodutores de CD, o ruído (neste caso, enquanto interferência de um sinal) estava quase sempre presente nos aparelhos de reprodução sonora domésticos. Zumbidos de amplificadores e receivers, o chiado de toca-fitas e os pequenos estalos em LPs era sons indesejáveis (porém inevitáveis) da tecnologia de pouco tempo atrás. Ouvintes, então, aprendiam a abstrair estes sons e, como coloca Stan Link, a “escutar além do ruído” (LINK 2001, p. 36). Focar no ruído durante a escuta de um LP empoeirado certamente 43 “All those attributes traditionally packaged under timbre - the nuancing and articulation of note-objects and phrase-shapes, and the control and variation of tone, including the roughness/smoothness of note-grain could be traced to source-cause interactivity”. 52 vai contra o que se pretende extrair do pensamento espectromorfológico. Com o desenvolvimento da tecnologia, estes artefatos se tornaram cada vez menos presentes. Atualmente, um micro-system razoavelmente comum (i.e., o que alguém que pretende ouvir música em casa normalmente adquire) não nos apresenta artefatos tão óbvios quanto o intenso ruído da estática de outrora. Os artefatos são mais sutis: a maioria dos aparelhos de som e fones de ouvido mais simples reproduzem frequências muito graves ou muito agudas com pouca fidelidade. Novamente, focar na resposta de frequência limitada ao escutar música sendo reproduzida em equipamento mais simples contradiz as premissas da espectromorfologia. Após a massificação destes aparelhos de som, uma curiosa reintrodução do ruído surge. A inclusão de ruídos gerados por equipamentos datados em gravações contemporâneas nos remete a situações de escuta do passado, e invoca uma certa nostalgia. De acordo com Link, o ruído de equipamentos antigos cria uma espécie de sentimento nostálgico na escuta. O ruído é uma “reconstrução de um ambiente de escuta” (LINK 2001, p. 37), e um ambiente de escuta requer um ouvinte. Neste sentido “ruído ocasiona presença” (ibid.) e a escuta de diferentes ruídos de outrora “nos permite escutar a gravação como uma espécie de mundo narrativo, reconfigurando música como uma espécie de espaço” (ibid., p. 38). Ruído cria, então, uma curiosa ligação a fontes que tem como viés a nostalgia. A presença de certos artefatos sonoros nos remete a um equipamento (i.e. uma fonte) que o produziu em algum momento. A percepção do tecnológico, então, passar a ser analisada sob o viés espectromorfológico. Harmonicidade e saturação é repleta de ruídos provenientes do uso de equipamentos analógicos, e o discurso da obra se apóia nas características espectromorfológicas destes ruídos. Alem disso, a resposta de frequência de alguns dos equipamentos usados privilegia o registro médio e tem pouca fidelidade nos registros grave e agudo. Os ruídos presentes ao longo peça, juntamente com os sons saturados no registro médio, criam uma ligação a fontes com equipamentos muito usados durante as décadas de 1970 e 1980. Embora estes equipamentos sejam usados até hoje, o uso extenso dos mesmos é algo que era mais comum 40 anos atrás do que hoje em dia. Harmonicidade e saturação também possui uma série de sons com altura definida, e a discussão a cerca de timbre e gesto ganha uma dimensão particular quando tratamos de sequências de sons com contornos melódicos. Apesar de possuir sons de altura definida, a peça não possui nenhum tipo de característica tonal ou de sistematização atonal das alturas. 53 Em contextos como esse, em que a altura intervalar não é o principal meio de expressar o pensamento musical, “altura e timbre podem coabitar em uma música espectromorfológica onde o ouvido tem a oportunidade de transitar para fora e para dentro de alturas definidas” (SMALLEY 1994, p. 41). Em alguns momentos, o foco é timbre. Porém, um evento pode surgir e deslocar nossa atenção para a relação entre as alturas definidas, e viceversa. A peça abre com gestos longos, que aprecem em fade-in, novas camadas vão emergindo e saturando o espectro, e de 1m17s a 1m20s temos um gesto essencialmente melódico. Durante estes 3 segundos, a perspectiva muda de textural a uma baseada em relações intervalares, e em 1m21s o aspecto textural é retomado. Eventos que estabelecem relações causais com a mudança de perspectiva de nota/timbre são recorrentes durante toda a peça. A inclusão deste gesto melódico logo no início da peça inaugura este jogo entre alturas definidas e timbre, e cria um terreno em que alturas definidas estão presentes mesmo quando não são o foco da escuta, e eventos específicos podem fazer com que as alturas venham para à superfície. Smalley descreve este tipo de situação da seguinte maneira: A altura definida está presente mesmo quando não percebida. Talvez ela esteja descansando, profundamente escondida em uma espectromorfologia, aguardando uma atenção possível, um momento quando, por exemplo, o contexto possa mudar para que o foco perceptivo seja direcionada para o que era anteriormente um atributo adormecido. (SMALLEY 1994, p. 41, tradução nossa)44 Nota, timbre, gesto e fonte sonora, neste contexto, são fatores que não podem ser separados, o que acontece é meramente o foco da escuta se preocupar em desvendar os potenciais significados presentes em cada uma destas categorias espectromorfologias. Os aspectos mencionados acima não dão uma descrição completa da peça, são apenas questões que podem ser levantadas a respeito da experiência de sua escuta. Harmonicidade e saturação, com sua palheta sonora lo-fi, convida o ouvinte a refletir sobre timbre, espaço, fontes imaginárias e gesto. A escuta da próxima peça a ser discutida aborda alguns destes mesmos temas de uma forma diferente. Diferente, porém ainda dentro do pensamento espectromorfológico. 44 “Pitch is present even when not perceived. Perhaps it is resting, hidden deep in a spectromorphology, awaiting possible attention, a moment when, for example, the context might change so that perceptual focus becomes directed towards what was a sleeping attribute.” 54 2.3. EM UM QUARTO COM CABOS E VISTA: FONTE, GESTO E A PAISAGEM SONORA ENQUANTO UM RECORTE DO TEMPO Como mencionado anteriormente, Em um quarto com cabos e vista é composta com sons gravados na Praça São Salvador (localizada no Flamengo, bairro da zona sul do Rio de Janeiro-RJ), sons de objetos do cotidiano sendo manuseados (portas fechando, chaves caindo, maquina de lavar roupas, sons de isqueiro, copos sendo manuseados, papel sendo amassado, etc.) e sons de cabos ligados em apenas um de seus lados (uma ponta ligada na entrada da placa de som, e a outra solta, produzindo um hum característico). Os sons de cabos usados depois passaram por diversos tipos de processamento digital, os sons da praça e dos objetos do cotidiano aparecem na peça às vezes com pouca ou quase nenhuma manipulação, e às vezes muito processados. Primeiramente, serão discutidos os sons da praça e do cotidiano; alguns processados, outros não. Em um segundo momento, serão discutidas as questões de ligação a fonte e substituição gestual nos sons de cabo processados. 2.3.1. Sons de praça e quarto. Os sons da praça remetem instantaneamente a um ambiente aberto, urbano, e com crianças. Nestas paisagens existe uma grande variedade de gestos e fontes sonoras acontecendo simultaneamente. Porém, em um nível estrutural mais profundo, existe apenas um gesto/fonte: o daquele ambiente urbano específico, que engloba toda a variedade espectral possível naquele contexto. Estas características são muito similares ao que Smalley chama de flocking motion: Movimento em rebanho [flocking] descreve um movimento livre, porém coletivo, de micro ou pequenos objetos os quais suas atividades e mudanças de densidade devém ser consideradas como um todo, como se fossem um rebanho. Pode-se imaginar um movimento em rebanho passando por diversos processos multidirecionais de crescimento. (SMALLEY 1997, p. 117, tradução nossa) 45 45 “Flocking describes the loose but collective motion of micro or small object elements whose activity and changes in density need to be considered as a whole, as if moving in a flock. One can imagine flocking motion passing through a variety of multidirectional growth processes”. 55 A nossa atenção pode se focar em pequenos elementos dos sons da praça: nos pedaços de diálogos que surgem, no barulho de uma moto que passou em determinado momento, nos sons das crianças brincando. Porém, é difícil esquecer que estes pequenos gestos fazem parte de um todo, uma espécie de rebanho de gestos e fontes sonoras urbanas. Estas transições de foco entre micro/macro estrutura, transição que está quase sempre a cargo do ouvinte, representam um aspecto essencial da textura sonora da praça. A segunda categoria de sons presentes na peça (os de portas fechado, copos caindo, etc.) se comporta espectromorfológicamente de uma maneira distinta dos sons da praça. Os sons muitas vezes contêm um gesto claro e sucinto (por exemplo, o já mencionado som de porta fechando em 0m48s). O fato do gesto ser claro não quer dizer necessariamente que a fonte sonora também seja. As duas coisas estão sempre relacionadas, porém o a ambiguidade contida na percepção da fonte nem sempre está presente na percepção do gesto. O gesto presente em 0m42s (que interrompe uma textura com características de rebanho mencionadas anteriormente) tem uma gestualidade clara: deduzimos a partir de seu comportamento espectromorfológico que algo cai, ou é arremessado em direção a uma parede. Porém, o objeto específico que é arremessado não se torna claro ao escutar este som (no caso, trata-se de um copo de alumínio). O ouvinte não tem como deduzir a fonte de maneira precisa, mas pode deduzir de forma mais ou menos precisa como aquela fonte está sendo manipulada. Precisão, neste contexto, não diz respeito a descobrir exatamente qual foi a fonte que gerou certo som. Precisão diz respeito ao ouvinte conseguir criar uma explicação satisfatória a respeito da fonte/gesto por trás de um som qualquer. Se o ouvinte deduz que a fonte é um prato de ferro, e se convence disso, ele cria uma explicação precisa (em oposição à ambígua) a respeito da fonte sonora ou gesto. O fato da fonte sonora ter sido, na verdade, um copo de alumínio e não um prato de ferro é irrelevante. Chion discute justamente sobre a relativa independência da percepção de fonte e a percepção de gesto: Mesmo sem identificar a fonte em termos da natureza do objeto causal, ainda podemos acompanhar de forma precisa o histórico causal do som em si. Por exemplo, podemos traçar a evolução de um som raspante (acelerando, rápido, desacelerando) e sentir mudanças de pressão, velocidade e amplitude 56 mesmo sem ter nenhuma ideia do que está sendo raspado contra o quê. (CHION 1994, p. 27, tradução nossa)46 Em Um quarto com cabos e vista, de 3m10s a 4m00, temos um som que exemplifica justamente o argumento de Chion. Em 3m10s surge um som que se comporta como algum objeto sendo raspado em outro. Juntamente com um som, temos um que parece se comportar como dois ou mais objetos chacoalhando. Existe algum tipo de relação causal entre estes dois sons, mas ela não é exatamente clara. De uma maneira difícil de precisar, a energia de um som parece estar se transferindo ao outro. Também ocorre uma intercessão entre as espectromorfologias. Alguns dos elementos escutados, em sua maioria na parte aguda do espectro sonoro, parecem pertencer a ambos os sons. Em 3m37 surge um terceiro som, em crescendo. Este terceiro som também se comporta como objetos se raspando, e tem alguma relação causal com os crescendos e diminuendos dos dois sons anteriores. Este jogo de causas e gestos entre os três sons continua até 3m56s, onde entra em fade-in um som de paisagem sonora urbana, enquanto os três sons desaparecem em fade-out. Dentro desta paisagem sonora urbana (que dura poucos segundos) está presente um som que é espectromorfologicamente muito próximo ao som anterior. Porém, ele não parece se comportar como algo raspando, mas sim como alguma espécie de serra47 . Um gesto raspante se transforma em um gesto serrante. Em nenhum momento desta descrição podemos ter uma ideia clara da fonte sonora. Os três primeiros sons citados foram tratados por processos de convolução, através do uso do software Max/MSP. Não foram gerados através de uma fonte real, mas sim uma fonte imaginada. Porém, escutando estes sons que se comportam como objetos do cotidiano sendo raspados e chacoalhados, um ouvinte poderia supor que são fontes reais, e não imaginadas. Uma fonte ser real ou não depende que ela seja percebida enquanto tal e este processo está nas mãos do ouvinte. Para Smalley, estes sons no qual as fontes são dúbias representam necessariamente uma substituição de terceira ordem ou ordem remota. As substituições de primeira ordem ocorrem somente se o ouvinte consegue “reconhecer a fonte (o tipo de material) e o tipo da causa gestual” (SMALLEY 1997, p. 112). Porém, uma das características 46 “Even without identifying the source in the sense of the nature of the causal object, we can still follow with precision the causal history of the sound itself. For example, we can trace the evolution of a scraping noise (accelerating, rapid, slowing down, etc.) and sense changes in pressure, speed, and amplitude without having any idea of what is scraping against what” 47 A fonte sonora deste som que parece ser uma serra nunca foi de fato descoberto. Este som foi gravado da janela de meu quarto. Eu conseguia ouvir o som, mas não conseguia ver a fonte. 57 das substituições de primeira ordem é justamente remeter a objetos do cotidiano e a produção de sons que não tem, a princípio, o objetivo de serem musicais (ibid.). Apesar destes sons não terem sido produzidos com a intenção de serem musicais, a situação acusmática é convidativa à escuta musical destes sons. Schaeffer, já na década de 1940, tinha observado este fato ao afirmar que “no rádio, a mínima respiração, o mínimo amassar de uma folha de papel, nós não só os ouvimos como também esperamos que signifiquem algo” (SCHAEFFER 2010, p. 73). No entanto, é importante ressaltar que alguns sons que possuem substituições de primeira ordem estão mais propícios a serem escutados enquanto musicais do que outros. Muitas vezes o que determina a potencial musicalidade de um som é o contexto em que ele aparece, porém alguns sons necessitam de situações mais engenhosas para que a sua escuta possa ser musical. O som de válvulas de pressão dos caminhões de lixo, que está presente em 7m30s de Em um quarto com cabos e vista, apresenta uma quantidade de nuances e sutilezas que facilitam a sua apreciação enquanto um objeto musical. Já os som de porta batendo e fechaduras que ocorrem entre 0m43s e 0m48s conseguem induzir uma escuta musical por possuírem um elemento narrativo e por estabelecerem relações causais com outros sons presentes. Não fosse isso, talvez a sua expressividade musical seria menos impactante. No caso dos sons descritos nos parágrafos acima, mesmo que a fonte e gesto por vezes sejam um pouco ambíguos, uma das características marcantes de suas trajetórias espectromorfológicas é justamente a sua qualidade de objetos do dia a dia. Este aspecto tem o potencial de ficar em primeiro plano para o ouvinte. Logo, no caso de alguns sons, a fronteira entre substituição de primeira e terceira ordem/ordem remota fica tênue48. John Young, em seu artigo Imagining the Source: The Interplay of Realism and Abstraction in Electroacoustic Music (1996), discute estas transições entre tipos diferentes de substituição gestual. Para o autor, a articulação do contínuo entre gestos reais (de primeira e segunda ordem) e gestos abstratos (de terceira ordem e ordem remota) acontece, na maioria das vezes, por justaposição ou mediação de gestos diferentes. Justaposição, para o autor, seria dois sons de ordens de substituição gestual distintas acontecendo simultaneamente. Um exemplo de justaposição de 48 Lembrando que substituição de segunda ordem é aquela típica dos sons instrumentais, onde a “habilidade performática foi usada para desenvolver um jogo extenso de articulação de registros” (SMALLEY 1997, p. 112). Ou seja, o que marca o caminho gestual destes sons é o fato de, a todo momento, o gesto que os originou foi feito com a intenção de ser musical. Estes sons que transitam entre primeira e terceira ordem/ordem remota não possuem esta característica, muito embora seja possível imaginar outros sons parecidos que, em outros contextos, poderiam ser tanto de primeira, quanto de segunda, quanto de terceira ordem. 58 gestos ocorre durante o final de Em um quarto com cabos e vista, onde sons sintéticos que aparecem paralelamente com os sons de praça. Mediação diz respeito à transição gradual entre ordens de substituição gestual distintas. Por exemplo, um gesto de primeira ordem que gradualmente se transforma em um de ordem remota. Para Young, estas transições entre substituições gestuais são uma parte importante do processo de escuta do repertório eletroacústico, e a fronteira entre justaposição e mediação é por vezes tênue devido ao fato que “estas articulações não são mutuamente exclusivas. Nossa atenção pode ser livremente deslocada de um tipo de articulação para outra em uma mesma obra” (YOUNG 1996, p. 84) O reconhecimento de fontes sonoras reais (i.e. não imaginárias/virtuais) não só nos remete à um objeto ou lugar real (por exemplo, uma praça ou uma britadeira), mas também cria a imagem de um ouvinte virtual posicionado de alguma maneira perto daquela fonte (por exemplo, uma britadeira em uma praça). Ao ouvir um som acusmático emitido por alto falantes, um ouvinte pode fazer duas perguntas a respeito da fonte sonora: qual a fonte sonora, e a qual distância desta fonte este som foi gravado. No caso de Em um quarto com cabos e vista, a Praça São Salvador foi gravada com dois microfones posicionados no seu centro, e do 10o andar de um prédio logo em frente à praça. A fonte sonora e os gestos deduzidos são os mesmos em ambos os casos, porém o posicionamento do ouvinte/compositor, aquele que presenciou a fonte sonora em primeira mão e resolveu grava-la, é diferente. Tratando-se de paisagens sonoras, as manipulações de perspectiva do ouvinte/compositor são uma relevante ferramenta composicional. Wishart chama este fator do posicionamento do compositor de “perspectiva auditiva” e afirma que sua dinâmica é parecida com aquela do zoom em cinema (WISHART 1986, p. 48). É possível, na experiência auditiva cotidiana, direcionar a nossa escuta a um determinado objeto. Porém, escutar sons que foram microfonados sendo tocados em alto falantes produzem uma espécie de “efeito de lupa” que é particular (ibid.). Estas manipulações da perspectiva auditiva estão presentes na música executada por alto falantes desde a primeira metade do sec. XX. Schaeffer, já nos anos 40, observava que uma das qualidade únicas do rádio era justamente sua capacidade de jogar com a perspectiva do ouvinte: [...] o rádio parece não ter limite, pois é capaz, ele, em meio ao triplo forte da orquestra, de fazer sussurrar uma voz ao nosso ouvido. Ele pode, do centro mesmo desse arrebatamento orquestral, escolher determinado instrumento e fazê-lo passar ao primeiro plano. Ele está apto, como já notamos, a garantir 59 simultaneamente não só a ubiquidade como a onipotência. (SCHAEFFER 2010, p. 60) A variação entre tipos de gestos e ligações a fontes diferentes, juntamente com manipulações de perspectiva, acabam por dar um aspecto narrativo em Em um quarto com cabos e vista. Wishart discute os aspectos narrativos em música eletroacústica por um viés fortemente ancorado na idéia de metáfora sonora. O autor argumenta que, de maneira parecida com o mito ameríndio na análise de Lévi-Strauss, a rede de significados presentes em sons de paisagens sonoras tem a capacidade de gerar metáforas que conseguem iluminar aspectos que dificilmente conseguiriam ser expressados através da linguagem musical convencional (WISHART 1996, p. 167-168). Wishart afirma que Wagner, através do uso de leitmotivs, estabelece relações entre estruturas musicais delimitadas, pessoas, objetos e idéias. Estas relações acontecem de forma associativa. Ao desenvolver e interrelacionar estas idéias musicais, Wagner cria um discurso que, por lidar com emoções não verbalizadas e com uma linguagem metafórica, transcende as “limitações do palco de ópera” (WISHART 1996, p. 165). Em música eletroacústica, é possível eliminar um dos elementos da equação e referenciar os objetos que irão construir a metáfora de uma forma mais direta. Segundo o autor: Não é preciso associar um objeto musical com, por exemplo, um pássaro e depois a um significado metafórico, podemos usar diretamente o som de um pássaro. E a concretude da encenação teatral é substituída por uma paisagem onírica que paira entre articulação musical e eventos do ‘mundo real’. (WISHART 1996, p. 165, tradução nossa)49 Desta maneira, as narrativas construídas em música eletroacústica não estão “contando uma estória no sentido mais comum, mas desdobrando estruturas e relações no tempo” (WISHART 1996, p. 166). Em Red Bird (1978), Wishart trabalha estes conceitos extensivamente, e se propõe a tentar unir os aspectos “sônicos e metafóricos” ao considerar ambos como “aspectos complementares de uma estrutura que se desdobra” (WISHART 1996, p. 166). Desta maneira, o processo de ligação a fontes não só nos coloca em um jogo de adivinhação de fontes, mas também permite que ao relacionar as diferentes fontes identificadas percebemos seus significados metafóricos. O ouvido oscila incessantemente 49 “We do not need to associate a musical object with, for example, a bird and then with a metaphorical meaning, we may use the sound of a bird directly. And the concretness of theatrical staging is replaced by a dreamlike landscape hovering between musical articulation and ‘real-world’ events”. 60 entre dois pólos: o da análise de qualidades espectrais e o da criação de significados. Para esclarecer o argumento acima, dois exemplos musicais serão usados: Industrial revelations de Natasha Barrett, e Red Bird, de Trevor Wishart. Em seguida, serão discutidos os aspetos narrativos de Em um quarto com cabos e vista. Em Red Bird, de 15m10s a 18m45s ocorre um crescendo. Este crescendo não acontece apenas em termos de amplitude, mas também em termos de saturação espectral: pouco a pouco mais sons, cada vez mais intenso, e cada vez mais espectralmente variados, invadem a paisagem sonora. Os sons provém de duas fontes facilmente identificadas: sons de pássaro, usado aparentemente com nenhum processamento além de edições discretas, e voz humana transposta para a região grave. Os sons de pássaros são facilmente identificáveis desde o início do trecho. Já a voz processada se encontra razoavelmente ambígua em termos de fonte sonora no início do trecho, tornando sua origem mais evidente ao longo do trecho. O momento exato em que a voz processada consegue ser identificada enquanto tal é impossível de precisar por ser um fator que varia radicalmente de ouvinte para ouvinte. Porém, não seria exagero supor que boa parte dos ouvintes com algum conhecimento a respeito de música eletrônica/experimental, em algum momento, conseguem identificar estes sons como voz humana processada. A partir de 18m15s, os sons de voz ganham ímpeto e aceleração. Deste ponto em diante, Wishart utiliza pequenos trechos de voz, com muita intensidade, e de durações curtas (menos de 1 segundo) para criar uma textura que pode ser descrita como um mosaico confuso e barulhento compostos por pequeníssimos samples de voz processada com uma base de sons de pássaros. Uma espécie de contraponto entre voz humana processada e sons de pássaro. A voz humana, ainda que processada, já é facilmente reconhecível. O sons dos animais, mesmo passando a impressão de estarem praticamente inalterados, tem um comportamento espectromorfológico que nos remete ao bizarro e ao exótico50. Em 18m36s, esta textura atinge o seu clímax e é interrompida por um som que se parece com vários objetos de vidro ou porcelana quebrando. Este gesto final termina com um som que me parece ser o som que um prato gera quando cai e gira em torno do seu próprio eixo, criando um trêmolo em accelerando que é interrompido subitamente quando este prato finalmente repousa e para de girar. A textura anterior entra em colapso, e é encerrada com um som de 50 Um dos samples usados, que aparece durante todo o trecho, me deixa em dúvida se é um pássaro que emite sons com características curiosamente humanas, ou se é um ser humano emitindo notas em falsete que possuem um curioso caráter de sons de pássaro. 61 vários objetos (que possuem com uma ligação a fontes muito evidente) colapsando e quebrando. O significado de caos implícito no som de objetos do cotidiano sendo destruídos é claro e reforça o desabamento da estrutura musical anterior. Em seguida ocorre uma pausa de alguns segundos, que dá início a um novo trecho da peça, com características sonoras distintas do anterior. A criação de metáforas através de sons é uma das maneiras de se construir narrativas em música eletroacústica, mas certamente não a única. O próprio processo de identificar fontes tem, em si, um potencial narrativo: ouvintes podem, se tiverem tal inclinação, criar contextos narrativos que justifiquem a presença de fontes distintas em uma mesma obra. Certas obras, como Vertige Inconnu de Gilles Gobeil (discutida no capítulo 1) e Industrial Revelations de Natasha Barret, tendem a induzir o ouvinte a este processo51. Sun-Kim observa que a música eletroacústica pode, por vezes, “limitar - isto é, enquadrar - as potenciais imagens e possibilidades de sons escutados” (JUN KIM 2010, p. 50). O autor exemplifica seu argumento analisando os primeiros minutos de Industrial revelations: Por exemplo, em Industrial Revelations de Natasha Barret (2001), nem o pedal em 0:53, nem o rangido estridente [high-pitched squeak] por volta de 1:03 identifica um lugar em particular. Porém, escutados simultaneamente, repetidamente e cada vez mais intenso, estes dois sons podem formar uma imagem de um trem que se aproxima em uma velocidade acelerante, particularmente quando finalmente enquadrados pelo som confirmador de um trem real parando em uma estação. (SUN KIM 2010, p. 50, tradução nossa)52 O reconhecimento do trem na paisagem sonora da peça é um processo gradual e o desenrolar deste processo contém um elemento narrativo. Na mesma peça, Barrett inclui sons de uma soprano cantando. Estes sons aparecem pela primeira vez em 4m07s, e são repetidos em vários momentos ao longo de toda a peça. Sons de trem e sons de estação de trem (como anúncios de horários sendo tocados por alto falantes), os sons da soprano (às vezes processados, às vezes não) e diversos sons sintéticos são o principal material desta peça. Se o 51 Obras que trabalham com sons de caráter sintético (por exemplo, Phoné de John Chowning e a própria Harmonicidade e Saturação) tendem a ter um processo de ligação a fontes que não é tão diretamente ancorado em objetos do mundo material. Os aspectos narrativos são apresentados ao ouvinte por caminhos muito particulares, e substancialmente diferentes dos discutidos nesta subseção. 52 “For example, in Industrial Revelations by Natasha Barrett (2001), neither the drone at 0:53 nor the short, high-pitched squeak around 1:03 identifies a particular place. But heard together, repeatedly with ever increasing loudness, the two sounds may form the image of a train approaching with accelerating speed, especially when finally framed by the confirming sound at 1:31 of a real train stopping at a station” 62 ouvinte parte do princípio que os sons presentes naquela peça têm alguma razão de estarem lá, ele construirá alguma narrativa que justifique a justaposição de fontes sonoras distintas. Sun Kim afirma que a justaposição dos sons de trem e os “sons operísticos da soprano” causam uma “disjunção semiótica” devido ao fato do ouvinte não conseguir “inserir o corpo da soprano em uma estação de trem” (SUN KIM 2010, p. 51). De forma parecida, também é possível afirmar que, para reverter esta disjunção semiótica, o ouvinte pode criar uma narrativa que permita que estas fontes coexistam. Caso o ouvinte não tenha interesse em reverter este processo, a narrativa criada é uma que contemple a não resolução desta disjunção. Como ja foi mencionado, Em um quarto com cabos e vista possui uma série de fontes sonoras distintas: hum estático de cabos, copos caindo, portas fechando, sons de janela abrindo e fechando, isqueiro, vozes na praça, diapasão, sons processados (raspante, cortante, chacoalhado), sons de objetos do cotidiano sendo manipulados, sons de obra, sons de máquina de lavar, os sons de estalinhos sendo estourados na praça. Relações causais entre estas diferentes fontes acontecem ao longo da peça inteira. Logo no início, em 0m41s, o som de um copo de alumínio caindo interrompe um ruído de fundo. Este ruído consiste em um gravação dos sons que se escuta na área de serviço de meu apartamento. Um ruído um tanto estático e reverberado, com sons pouco intensos de atividade humana. Quando surge o som do copo, este ruído de fundo é interrompido. Seguem alguns segundos apenas com sons de cabo, e dois sons de chave girando em fechadura. Uma porta bate em 0m48s, e surge o som de uma praça. No final da peça, de 5m16s a 5m47s, temos uma espécie de drone feito a partir de sons de máquina de lavar processados. Em 5m48s, o som do copo caindo é repetido juntamente com o som de portas batendo. Após em 5m49s, surge novamente o som da praça e o drone inicia um processo de fade-out. Em 6m25s, este fade-out termina, e dà início a um fade-in do hum estático dos cabos. Os sons da praça aos poucos desaparecem, e a peça termina o hum estático, que eventualmente desaparece em fade-out. É difícil prever se um ouvinte poderia supor que estes sons estão contando uma história. Da mesma maneira, é difícil supor quais fontes estão claras para o ouvinte e quais não estão. Porém, é possível afirmar que alguns sons, como os sons das crianças, possuem um processo de ligação a fontes muito claro. No caso das vozes de crianças e adultos, o que fica ambíguo é o contexto. Os sons dos adultos e crianças interagindo contêm alguns elementos que indicam que aquele contexto 63 envolve, em algum nível, algum tipo de brincadeira. A risada enfática de uma menina em 0m53s; uma mulher, falando de forma enfática, “para com isso!; garotos se comunicando aos berros enquanto soltam estalinhos de 6m41s a 7m53s. Todos estes sons são comuns em parques, praças, festas infantis, ruas pouco movimentadas em fins de semana, entre outros. Eu(por ser quem compôs a peça) sei que se trata de uma praça, mas a grande maioria dos ouvintes não tem como ter acesso a esta informação: nem o título nem os fatores musicais remetem diretamente a uma praça53. Os sons de porta, de copos e de janelas, quando não processados com efeitos, também soam claros em termos de ligação a fontes. E, assim como os sons das crianças, o contexto que une estas diferentes fontes é criado na imaginação do ouvinte. O som da porta fechando tendo uma relação causal com o o som de um espaço aberto pode remeter à narrativa de alguém saindo de casa. O som de porta batendo carrega em si algum significado, mas o significado exato que ele vai criar no ouvinte é, em parte, imprevisível54. Em suma, as informações sobre fonte e gesto, nos sons mencionados acima, estão sempre incompletas. O ouvinte pode, caso ele tenda a ter este tipo de escuta, imaginar fontes, contextos e gestos deduzidos através das espectromorfologias. Os contextos, gestos e fontes imaginados pelo ouvinte constituem inevitavelmente uma narrativa. Por último, é relevante mencionar o caráter indicial contido em gravações de objetos de uso cotidiano e paisagens. Índice, no sentido de Pierce, é um signo que “refere ao objeto que ele denota por virtude de estar de fato afetado pelo objeto” (PIERCE 1903 apud. BERGMAN; PAAVOLA 2003); o indíce está “fisicamente conectado ao objeto, mas a mente interpretativa nada tem a ver com esta conexão, exceto por observa-lá depois de estabelecida.” (PIERCE 1894 apud BERGMAN; PAAVOLA 2003). Pierce nos dá alguns exemplos de índices, entre eles: Um barômetro a marcar pressão baixa e ar úmido é índice de chuva; isto é, supomos que as forças da natureza estabelecem uma conexão provável entre 53 Um dos títulos cogitados para a peça foi “Autorretrato a partir de uma praça”. Porém, este título acabou sendo usado em um outro trabalho, feito em parceria com o poeta Ismar Tirelli Neto. 54 Para exemplificar a grande variedade de escutas possíveis, vale mencionar um breve comentário de Rodolfo Caesar a respeito de Presque Rien. Caesar afirma que a escuta da obra de Ferrari não só “re-abre o espectro da experiência musical para a imaginação referencial” (CAESAR 2012, p.2), mas também estimula outros sentidos. O autor afirma que o aumento dos sons de insetos no trecho final da peça “estimula no ouvinte uma sensação de calor, atingindo assim o sentido tátil térmico” (ibid.) De todas as análises de Presque Rien citadas neste trabalho, esta é única que comenta a peça por uma perspectiva multisensorial. A multisensorialidade é uma percepção possível, mas não necessariamente uma escuta que é comum a todos. Mesmo assim, não deixa de ser relevante. 64 o barômetro que marca pressão baixa com o ar úmido e a chuva iminente. Um cata-vento é um índice da direção do vento dado que, em primeiro lugar, ele realmente assume a mesma direção do vento, de modo tal que há uma conexão real entre ambos. (PIERCE 2000, p. 67) Frances White, fazendo um paralelo com a discussão sobre fotografia de Susan Sontag, argumenta que por mais que tenhamos consciência de que uma gravação é apenas um “arranjo particular de partículas magnéticas em uma fita, (ou uma linha de números particulares) não podemos evitar de sermos afetados pela maneira como aquelas partículas ou números recriam um recorte particular de tempo” (WHITE 1990). Usando como exemplo a voz gravada, a autora argumenta que esta gravação “não é uma ‘representação’ ou ‘interpretação’ daquela voz; ela é aquela voz e, enquanto tal, é aquela pessoa falando conosco” (ibid.). White afirma ainda que o uso de sons concretos diminui a separação entre vida e arte, pois “a maneira como um compositor trata estes fragmentos [sonoros] é uma afirmação óbvia e irrefutável sobre a sua relação com o mundo. As conotações éticas e musicais desta relação não podem ser separadas”. Em música instrumental (mesmo que o instrumento seja eletrônico), White argumenta que existe uma camada de abstração entre o compositor e o mundo, abstração esta que não está presente na composição que faz uso de paisagens sonoras (ibid.)55 . Ao escutar o som de uma praça, o ouvinte se concentra nos elementos sonoros que aquela paisagem específica tem e nos gestos e fontes sonoras que podem ser recriados em sua imaginação. Escolher gravar aquele local, e selecionar um trecho específico daquela gravação para ser incluída na obra sempre tem um motivo, composição musical é sempre fazer escolhas, e raramente estas escolhas são gratuitas 56. Porém, o porquê daquele local ser gravado e editado de uma maneira específica não está necessariamente explicitado no material sonoro utilizado. O título, assim como outros elementos podem fornecer alguma pista ao ouvinte a respeito do propósito do objeto gravado estar presente na obra57 . Uma diferença crucial entre fotografia e música eletroacústica que trabalhe a questão 55 No entanto, sons instrumentais quando gravados e executados por alto falantes adquirem um aspecto indicial. Mesmo assim, existe uma diferença grande entre a gravação de uma sinfonia de Beethoven e uma peça acusmática que se utilize de diversos trechos de gravações de sinfonias de Beethoven. 56 Por mais que uma escolha tenha sido completamente arbitrária para o compositor, ela pode ser percebida como premeditada por parte do ouvinte. Assim como algo soar aleatório não impede que o compositor tenha feito escolhas durante o processo de composição. 57 A relação entre o título e a escuta espectromorfológica nas peças mencionadas neste capítulo será discutida na seção 2.5. 65 de paisagens sonoras é que a gravação de paisagens sonoras já surge fortemente associada a prática da composição musical eletroacústica, que não pretende ser um retrato neutro da realidade, mas sim um retrato possível da percepção subjetiva de um espaço (novamente, é possível citar Kit’s Beach Soundwalk como exemplo). Esta transição, na fotografia, de registrar o “aquilo que realmente percebo” ao invés do que “realmente existe (SONTAG 2011, p. 136) acontece algumas décadas depois da fotografia surgir. Já a paisagem sonora é, por definição, aquilo que percebo Neste sentido, a escolha e a gravação do material a ser usado já é parte do processo composicional; o material gravado nos guia inevitavelmente a algumas direções. O som instrumental/sintético é quase neutro. Em seguida, será discutido em mais detalhes a escuta dos sons sintéticos de Em um quarto com cabos e vista. 2.3.2. Os cabos do quarto: processamento digital e fonte sonora. A relação entre o som/ruído concreto e o som/ruído sintético é uma questão que é crucial não apenas para a música eletroacústica acadêmica, mas para a música eletrônica como um todo. Os diferentes subgêneros de música eletrônica, tanto da música acadêmica quanto da música feita fora da academia, frequentemente são em parte definidos pelos procedimentos técnicos utilizados. A musique concrète francesa se trata de música feita com sons gravados e editados, a elektronische musik alemã faz uso apenas de sons eletrônicos sintéticos, a computer music americana tem a computação musical como a base de seu processamento sonoro, a música glitch faz o uso intenso de sons de processamentos digitais que contém erros (por exemplos, sons que surgem com clips digitais, taxas de amostragens corrompidas, leitura das amostras na ordem errada, etc.), o dubstep do Reino Unido é fortemente dominado pelo uso de sintetizadores para compor as linhas de baixo. Apesar de muito diferentes entre si, quase todos estes subgêneros têm em suas fundações uma discussão entre as dicotomias som/ruído e concreto/sintético. Não cabe neste trabalho listar toda as instâncias em que estes pontos são levantados em cada um destes subgêneros58. Porém, dois exemplos do dubstep londrino me parecem particularmente relevantes dentro desta discussão. William Bevan (mais conhecido por seu nome artístico Burial), um renomado compositor/ 58 Para uma descrição mais detalhada das fronteiras dos principais gêneros da música eletroacústica, ver LANDY 2007, p. 9-19. 66 produtor de dubstep, é conhecido por incluir como pano de fundo em suas músicas (quase sempre em 4/4, com batidas graves marcantes) sons de ruído de vinil, chuva, interferências presentes em transmissões de rádio pirata, entre outros elementos. O músico, em uma entrevista para a revista The Wire, afirma que a inclusão destes ruídos concretos ajuda a mascarar “o quanto as minhas canções são sem-graça [lameness of my tunes]” (BEVAN 2007). Em outra entrevista, Bevan descreve como começou a incluir estes sons em seu processo composicional: Chiado de rádio pirata, chiado de vinil - eu gosto [destes sons]. […]. Este chiado fica sobre as minha batidas, esconde o espaço entre elas. Quando comecei a fazer música eu conseguia enxergar através [destas batidas] e fiquei decepcionado porque destruiu um pouco o mistério. Mas quando coloco chiado sobre ele, ele [o chiado] esconde o resto debaixo de camadas, já não me pertence mais. E você acaba sentindo um ambiente verdadeiro. (BEVAN 2006, tradução nossa)59 Em outras palavras, o ruído concreto, para Bevan, cria um contexto para os sons sintéticos e percussivos. Resignificados, estes sons têm o potencial para se tornarem o fio condutor de seu discurso musical. De maneira similar, Martin Clark e Dan Frampton (também compositores/produtores de dubstep, conhecidos pelo nome artístico DUSK + BLACKDOWN) afirmam que os sons sintéticos de bumbo, pratos e caixas de bateria, quando isolados em um “contexto sonoramente limpo” são percebidos enquanto “estéreis, sem contexto, à deriva, livres de cultura” (CLARK; FRAMPTON 2005). Para enriquecer estes sons estéreis, os músicos incluem o que eles chamam de sons-chave (keysounds): sons concretos (às vezes processados, às vezes não) como sons de chuva, trechos de conversas do cotidiano, sons do metrô, etc., que referenciam os aspectos que eles consideram marcantes da experiência de se viver em Londres (ibid.). Várias músicas da dupla contém um pano de fundo formado por sons-chave em loop, e estes sons “constroem um contexto: um som constante que faz surgir um ambiente, um espaço, uma cultura, uma cidade” (ibid.). Os sons de cabo de Em um quarto com cabos e vista são estéreis quando comparados aos outros sons presentes na peça. Quando colocados lado a lado com os sons de praça e de objetos do cotidiano, a capacidade de fazer alusão a significados presentes nos sons concretos 59 “Pirate radio crackle, vinyl crackle – I like. […]. That crackle sits over my drums, hides the space between them. When I started making music I could see through it and I was disappointed because it destroyed the mystery for a bit. But when I chuck crackle over it, it hides it under layers, it’s no longer mine. And you get a feel of a real environment” 67 ressalta a falta de capacidade dos sons sintéticos de se comportar da mesma maneira. Neste sentido, os sons sintéticos podem ser descritos como mais limitados. Isto não significa que os sons de cabo são, em si, pouco expressivos. Como mencionado anteriormente, as implicações gestuais e de fonte em sons sintéticos são complexas de outras maneiras. Porém, no caso específico de Em um quarto com cabos e vista, o jogo de significados que ocorre entre os sons concretos apresentam um discurso mais complexo e articulado do que o discurso apresentado pelos sons sintéticos. A separação dos discursos sintético/concreto é, em termos teóricos, forçada. Na prática, ambas as categorias de sons são articuladas em um discurso único. No entanto, o peso da dicotomia concreto/sintético permite, em alguns momentos, que os discursos sejam analisados separadamente. Assim como para Smalley é preciso separar o conteúdo espectral e a maneira como este é moldado no tempo, por não ser possível simultaneamente “descrever o que está sendo moldado e os moldes em si” (SMALLEY 1997, p. 3), para discutir (e perceber através da escuta) como o concreto e o sintético se misturam em um discurso único é preciso, em alguns momentos, tratá-los como discursos distintos. Os sons de cabos processados estão presentes durante a maior parte de Em um quarto com cabos e vista. As vezes aparecem em primeiro plano, as vezes enterrados em texturas concretas. Eles aparecem sozinhos, sem a presença de sons concretos, em apenas dois momentos: nos primeiros segundos e nos segundos finais da peça. Em todos os outros momentos os sons sintéticos aparecem justapostos aos sons concretos. Os primeiros 50 segundos da peça já foram discutidos em momentos diferentes deste trabalho para discutir a terminologia de Smalley (seção 1.4) e para ressaltar os aspectos narrativos da obra (seção 2.3.1). A seguir, este mesmo trecho será discutido com o foco na percepção dos sons sintéticos. No início de Em um quarto com cabos e vista, os sons de cabo permanecem apenas 26 segundos sem um acompanhamento concreto; em 0m27s surgem, em fade-in, os primeiros sons concretos da praça. Esta textura concreta é interrompida, em 0m41 pelo som de copo já mencionado anteriormente. O som de cabos, no entanto, segue inalterado. De 0m42s a 0m47s, o som dos cabos é acompanhado por sons de fechadura. Em 0m48s o som de uma porta batendo dá início à primeira aparição dos sons de praça. Novamente, o som dos cabos segue inalterado. Este início de peça, como mencionado anteriormente, é marcado por uma série de relações causais e narrativas entre os sons concretos. Os sons de cabo, no entanto, permanecem quase estáticos durante todo este trecho, e desaparecem em fade-out entre 1m00s 68 e 1m08s. Por um lado a falta de causalidade entre os sons concretos e os sintéticos pode fazer com que um ouvinte perceba cada uma destas categorias como distintas. Por outro, quando escutamos a peça sob a ótica de um único discurso que englobe o concreto e o sintético, o aspecto indicial dos sons concretos acaba por inserir os sons sintéticos em contexto. Os sons sintéticos estão acontecendo simultaneamente com os concretos, a justaposição de ambos faz as diferenças perceptivas entre estes sons se tornem imbricadas em um discurso único. Em um primeiro momento, as características únicas do concreto e do sintético são ressaltadas. Em seguida, é ressaltado o fato de ambos os discursos estarem acontecendo simultaneamente, e uma narrativa que dê conta desta simultaneidade pode vir a surgir no ouvinte. 2.4. ON COMMON PEOPLE, SIGNAL-TO-NOISE RATIOS, AND LOVE IN GENERAL: METALINGUAGEM E ESPECTROMORFOLOGIA A última peça a ser discutida, intitulada On common people, signal-to-noise ratios and love in general, tem dois elementos que a diferenciam das outras peças deste capítulo: a presença de voz humana (cantada e falada) e o aspecto documental de gravações. Todos os sons presentes na peça foram obtidos através de gravações de duas mulheres (Ana Paula Soares Carvalho e Maria Isabel Lamim) cantando canções e dos diálogos que ocorreram durante a gravação destas canções. Embora tenham frequentado, em momentos diferentes de suas vidas, aulas de música esparsas, nenhuma das duas se considera musicista. As canções interpretadas são Me deixa em paz, de Aírton Amorim e Monsueto, e Estrela do mar, de Paulo Soledade e Marino Pinto. Trechos editados das gravações de Ana Paula e Maria Isabel interpretando estas canções aparecem em vários momentos da peça. Além destes sons cantados, a minha própria voz falada aparece diversos trechos, às vezes conversando com elas, às vezes guiando a gravação (pedindo para que cheguem mais perto do microfone ou para que repitam o refrão) e às vezes simplesmente contanto uma história qualquer (como por exemplo, sobre quando trabalhei em uma rádio). Este material também foi alterado através de pedais de distorção e diversos procedimentos de processamento digital. O material processado/distorcido está presente sozinho em alguns trechos e acompanhado do material não processado em outros. Os processamentos foram usados com o intuito de gerar longos pedais e drones que, por mais abstrato que fossem, ainda conservassem algo dos aspectos 69 espectromorfológicos da voz humana, seguindo a premissa de Wishart de que a voz humana ainda é reconhecível mesmo quando “suas características espectrais específicas foram completamente alteradas” (WISHART 1986, p. 50). Há diversos tópicos relacionados a ligação a fontes e substituição gestual que podem ser discutidos a partir da escuta desta peça. Porém, várias destas questões, como a transição entre substituições gestuais de primeira para terceira ordem (por exemplo, o vocalize da vogal a entre 2m40s a 2m50s) e ambiguidade na percepção de fontes (por exemplo, o som distorcido em 6m25s), já foram discutidas nas seções anteriores deste trabalho. Levantar estes pontos, mas desta vez exemplificando os argumentos com trechos de On Common People, seria excessivamente redundante. Por este motivo, serão levantados apenas os tópicos acerca da escuta da peça que realmente acrescentam algo novo a discussão. O primeiro destes pontos diz respeito a relação entre o conceito de ligação a fontes e a voz humana. A voz humana quando escutada através de alto falantes cria uma uma relação de ligação a fontes muito particular. No caso dos diálogos de On Common People, a fonte que dá origem àqueles sons está agindo com completa consciência do que está fazendo. E, além disso, está nos tentando comunicar algo com linguagem. Os sons de cigarra de Presque Rien certamente carregam significado, mas chamar a informação que carregam de linguagem é uma afirmação que demanda reflexão e um certo cuidado. Chamar diálogo e canto de linguagem é uma afirmação muito menos audaciosa. Esta idéia está presente em vários momentos de On Common people60. A peça começa com um fade-in de sons processados e distorcidos, obtidos através da manipulação de trechos de notas cantadas. Em 0m43s, a minha voz entra e diz “não fica muito perto, nem muito longe. Fica tipo um palmo e pouquinho. Um pouquinho mais. Não, vai. Pode ir.”. Ana Paula responde com a pergunta “então são dois palmos?”. Em seguida (0m56s), aparece um som construído através da sobreposição de vários trechos Ana Paula falando. No meio deste som composto por sons menores, uma frase se sobressai: “mas não demora muito pra voltar, eu tenho medo de ficar sozinha com os gatos”. Esta frase encerra a textura anterior, e causa o início de uma textura nova composta por longos vocalizes processados da vogal a. Neste trecho, o som já faz uma ligação a fontes clara com a voz feminina. Caso o ouvinte tenha suspeitado que os sons do início da peça eram construídos a partir de voz processada, a entrada do som em 0m56s tende a confirmar esta 60 A voz humana também está presente em Em um quarto com cabos e vista, mas aparece sempre junto a outros sons, às vezes quase mascarado. Não há nenhum diálogo que possa ser percebido com muita clareza. 70 suspeita. Esta textura se mantém, e em 1m47s surge um diálogo entre eu e a segunda voz feminina a aparecer na peça, de Maria Isabel. O diálogo segue até 1m58s, quando é subitamente interrompido por um som que parece ser de uma janela, ou persiana, sendo fechada bruscamente. Abaixo, uma transcrição deste diálogo. [1m46s - 1m58s] Maria Isabel: assim, como você disse que ia sair mesmo do apartamento no (…), eu meio que ‘ah, já tá aí fora, vai lá”61. Orlando Scarpa: tá, eu desço. Maria: mas aí você vai deixar gravando, ou eu que boto pra gravar ou… ? Orlando: não eu vou deixar gravando Maria: Tá, e aí se tiver um… não tem problema se rolar um… O diálogo sofre uma interrupção abrupta, e em seguida (de 1m59s a 2m12s) surge uma colagem composta por vários trechos de Maria Isabel cantando Estrela do mar. A palavras que estão sendo cantadas neste trechos ficam pouco compreensíveis devido ao aspecto de colagem, mas novamente, uma frase se sobressai: de 2m06s a 2m12s escutamos claramente Maria Isabel cantando “ (…) depois, muito depois, apareceu uma estrela no mar”. Após este trecho, surge um novo trecho composto por vocalizes processados. Este trecho em vocalize, porém, é encerrado de uma maneira diferente em comparação ao vocalize presente no início da peça. Entre 2m22 e 2m25s, a voz processada e muito reverberada se transforma (via crossfade) em voz não processada. Em 2m26s temos uma breve risada de Ana Paula, e em seguida o seguinte diálogo: [2m27s - 2m39s] Ana Paula: eu não faço idéia de qual nota foi essa. [seguido de um breve miado de gato] Orlando: Nem eu. Ninguém sabe. Você não tem nada pra comparar. Tá, faz de novo. Em 2m39, surge um novo vocalize da voz processada de Ana Paula. O diálogo continua com o este vocalize em segundo plano: [2m46s - 3m24s] Orlando: Tá. Então, eu vou sair. Qual música você vai cantar mesmo? Você não sabe? Ana: [leve suspiro] Eu tô entre uma e outra Orlando: Canta as duas, então. Ou você não quer cantar as duas? Ana: é… [breve pausa]. Que uma é muito curtinha também, né. Me deixe em paz é muito curtinha. Só se eu cantar ela várias vezes. 61 Alguns trechos do dialógo gravado são incompreensíveis. As palavras que não são compreensíveis serão marcadas com o símbolo “(…)” 71 Orlando: Não, canta uma vez só. Qual que era a outra? Ana: a Dança da solidão. Orlando: então canta as duas. Ó, eu vou… daqui a 3 minutos eu não tô mais aqui. Ana: mas não demora muito pra voltar, eu tenho medo de ficar com os gatos. Orlando: eu vou fechar a porta aqui. Cuíca, sai pra lá. Em 3m25s, o mesmo som de persiana presente em 1m58 interrompe o diálogo e marca a entrada de um longo trecho (que dura até 6m00s) composto por uma densa textura de vocalizes. De 3m25s a 9m20s em diante, não há a inserção de nenhum elemento novo. Este trecho inteiro (que dura 5m55s, mais que a metade da duração total da peça) é construído por vocalizes processados, diálogos entre intérpretes e compositor, montagens com trechos das canções62, alguns poucos sons de objetos do cotidiano sendo manipulados (o som da janela, sons do pedestal de microfone sendo ajustado) e o breve miado do gato que aparece sutilmente em apenas um 2m27s. Em 9m21s surgem sons ruidosos obtidos através de cabos ligados em apenas uma de suas extremidades63. Este sons reaparecem em seis outros instantes até o final da peça, quase sempre desencadeando um rarefação da textura. O último destes sons de cabo ocorre entre 9m53s e 9m56s, reduzindo a textura geral, que instantes antes era formada por várias sobreposições da voz de Ana Paula cantando, a apenas duas vozes cantadas. Uma dessas vozes é interrompida em 10m00s, e a peça termina com apenas uma camada da voz de Ana Paula cantando “nem deixar eu me apaixonar”. Os gestos produzidos pelo diálogo, em uma primeira impressão, podem ser classificados como de primeira ordem, i.e., sons de trabalho, recreacionais ou do cotidiano. Porém, o nível de nuance e sutileza presente na comunicação verbal se equipara (ou até mesmo ultrapassa) o nível de sutileza e controle de sons instrumentais (que seriam considerados de segunda ordem). Tratando-se de voz humana, a fronteira entre substituição de primeira ordem e segunda ordem se torna tênue. A ligação a fontes também adquire uma camada extra de significado: a fonte que produz o som pode estar (no caso de On Common People, ela de fato está) completamente consciente dos sons que está produzindo. A voz falada passa a conter, além do caráter indicial, um fator documental. As gravações dos 62 As colagens de Ana Paula cantando Me deixa em paz aparecem pela primeira vez em 7m00s. Entretanto, seria um erro considerar estes trechos como material novo por serem espectromorfologicamente muito próximos das colagens feitas com a voz de Maria Isabel. 63 Estes sons são similares aos presentes em Em um quarto com cabos e vista. A diferença entre ambos é que, enquanto os sons presentes presentes foram processados e filtrados, os sons de cabo em On common people não sofreram nenhum tipo de processamento além da edição. 72 diálogos não são apenas um indício de algo que aconteceu em determinado instante, são também uma interpretação subjetiva da interação entre duas pessoas em determinado momento. Enquanto Em um quarto com cabos e vista pretendia ser, em parte, uma peça sobre os sons de praça e de quarto, On common people tem o potencial de ser percebida enquanto uma peça sobre o processo de se gravar sons. Um discurso metalinguístico sobre a experiência acusmática, ou em outras palavras, uma peça acusmática que discute o processo de se fazer peças acusmáticas. Esta camada de metalinguagem faz com que os sons de voz cantada e os sons processados sejam escutados de outra maneira. O ouvinte, se tiver inclinação para discussões do tipo, não consegue mais se esquecer que On common people foi composta por uma pessoa específica, que se insere diretamente na peça. 2.5. A FUNÇÃO DO TÍTULO NA ESCUTA ESPECTROMORFOLÓGICA A espectromorfologia, como mencionado diversas vezes neste trabalho, é ancorada na escuta. Logo, a composição musical que se utiliza das ferramentas espectromorfológicas deve tentar se manter, sempre que possível, no mesmo viés: a discussão e problematização da escuta se tornam a base do pensamento composicional. No entanto, por vezes é difícil saber até que ponto a percepção de causalidade, substituição gestual e ligação a fontes acontecem da mesma maneira em ouvintes distintos. Para ter o mínimo de certificação que estes processos ocorrerão em pelo menos uma parte dos ouvintes, é necessário deixar o discurso o mais claro possível. Para introduzir esta breve discussão sobre a função do título na clareza do discurso, vale notar um curioso paralelo que existe entre a música eletroacústica e a pintura expressionista abstrata como discutida por Mikel Dufrenne (2008). Para Dufrenne, “o título é, então, uma indicação que orienta nossa percepção entregando-nos o assunto: substituto da figuração” (DUFRENNE 2008, p. 264). Assim como a pintura abstrata “nos adverte do que quer dizer e confia em nós para decidir se, de fato, o disse; pede a nossa colaboração e se submete ao nosso juízo” (ibid., 265), as peças discutidas neste capítulo tem a intenção de salientar certos tipos de escuta e o ouvinte está a todo momento livre para discordar que tal peça de fato está discursando sobre tal assunto, ou o induzindo a certa escuta. O título é um elemento essencial neste processo colaborativo entre compositor e ouvinte pois ele, antes mesmo do ouvinte iniciar a escuta da peça, já dá algum 73 indício de qual tema será tratado. Em um quarto com cabos e vista remete, por exemplo, a dois lugares: o interior de um quarto e ao mundo exterior a este quarto. O título On common people, signal-to-noise ratios and love in general deixa explícito que, nos próximos 10 minutos, algo será dito sobre pessoas comuns, a relação sinal-ruído e o amor de maneira geral. As palavras Harmonicidade/saturação indicam que, de alguma maneira, a peça a ser escutada tem em seu material alguma harmonicidade e alguma saturação (e tanto saturação quanto harmonicidade que podem ser interpretadas de diversas maneiras). Os significados que eu, enquanto compositor, percebo nas palavras de todos os títulos mencionados e a sua relação com o material musical estão inacessíveis ao ouvinte, e os possíveis significados que estes títulos podem evocar são variados demais para se propor uma interpretação única. A natureza aberta da grande maioria das obras acusmáticas traz necessariamente uma incompletude no título. E é nesta incompletude que está a força do título. Citando novamente uma observação de Dufrenne sobre a pintura figurativa: A pintura figurativa corre menos riscos: ela impõe ao espectador um assunto cuja presença não poderá ser contestada por ele. Mas ela corre um outro risco: é que o assunto, açambarcando a atenção do espectador, torna-se para ele o único fim da pintura, em tal caso não se trata mais de beleza da obra, mas somente de sua verossimilhança. (DUFRENNE 2008, p. 65) Apesar de não ser uma preocupação deste trabalho a busca pela beleza de obra alguma, Dufrenne levanta uma questão relevante para nossa discussão neste trecho. A música acusmática, na maioria das vezes, não corre o risco de ser reduzida à uma busca da verossimilhança entre assunto proposto e a obra concretizada. Os elementos indiciais presentes não se concretizam enquanto assunto, mas sim enquanto maneiras de escutar implicadas nas entrelinhas das obras. Para que o título possa auxiliar a projeção destas entrelinhas para um primeiro plano, é necessário que haja um diálogo entre o discurso implícito no título e o discurso implícito na música escutada. 74 CONSIDERAÇÕES FINAIS A reflexão a cerca da nossa própria percepção é sempre um processo complexo. Por um lado, a tentativa de universalizar o subjetivo é muitas vezes ineficiente. Por outro, ancorarse num discurso subjetivo e excessivamente pessoal pode também ser limitante. As ferramentas conceituais da espectromorfologia podem auxiliar a cruzar esta ponte entre a percepção individual e a coletiva. Não é absurdo supor que a maioria dos ouvintes de música percebam coisas como gesto, fonte e relações causais em situações de escuta acusmática. Conceitos como o de ligação a fontes, causalidade e substituição gestual são úteis para detalhar como se dá este processo. Correlacionar as idéias de Smalley com a de outros autores que trabalham no mesmo campo ajuda a estender as noções de fonte e gesto para campos não mencionados pelo autor. A fonte à qual um som está associado possui uma série de símbolos que também fazem parte do processo de escuta. Como já mencionado, o som do mar, inserido em um contexto musical, nós remete a toda uma simbologia associada. O som de um sino é interessante não só por suas características espectrais, mas também por trazer consigo a idéia de religiosidade, entre outros fatores. Investigar as relações entre o trabalho de Schaeffer e o de Smalley também ajuda a esclarecer as premissas de ambos. O trabalho de Pierre Schaeffer marca o início das investigações de sons gravados, e é o ponto de partida para o trabalho de Smalley. Porém, como foi discutido, enquanto Schaeffer procura fazer uma fenomenologia do objeto sonoro baseado no conceito de èpoche de Husserl, Smalley se baseia em sua subjetividade e em figuras de linguagem para tentar descrever as relações entre espectromorfologia/contexto e a sua própria poética de criação musical. Como já foi mencionado diversas vezes, juntamente com a discussão conceitual, esta pesquisa aborda o meu próprio processo de criação musical. Ao revisitar as proposições da espectromorfologia após ter sentido a sua influência no meu processo composicional, propusme a relatar como se dá a minha escuta espectromorfológica do meu próprio trabalho. O processo de composição, muitas vezes intuitivo, uma vez reavaliado à luz da bibliografia selecionada aponta diversos fatores que não estavam claros em uma primeira instância. A relação entre timbre, tecnologia e fonte sonora em Harmonicidade e Saturação; a indicialidade das paisagens sonoras contraposta aos sons processados de Em um quarto com 75 cabos; e a relação entre metalinguagem e espectromorfologia em On common people, signalto-noise ratios and love in general são questões que estavam presentes em minhas reflexões durante o processo composicional, mas que só foram tomar corpo enquanto discurso argumentativo (em oposição a discurso musical) a posteriori. Seguindo este caminho, a composição musical se transforma em um método e a escrita nos serve para organizar as idéias que surgiram no fluxo da experiência64 . A contraposição de experiência e teoria nós permite criar um discurso que em alguns momentos mergulha em uma subjetividade extrema, e em outros consegue se distanciar do seu objeto de estudo. Por último, vale mencionar uma última peça, composta já nos estágios finais desta pesquisa e que não é mencionada nos capítulos deste trabalho. A peça, intitulada A respeito dos sons que escolhemos ignorar, é composta por sons gravados na cidade de Rio de Janeiro. A peça dura 4m44s e é composta por trechos de diálogos que escutamos na rua, sons de cigarra no final da tarde, sons do metrô, sons de camelôs vendendo produtos nas ruas, sons de elevador, entre outros. A idéia é justamente buscar uma escuta musical de sons do cotidiano que normalmente ignoramos. Os sons de cigarra que aparecem em 1m46s são longos pedais de altura definida, com pequenas flutuações no espectro que lembram notas tocadas em instrumentos de sopro. O som de uma porta pantográfica abrindo, que aparece pela primeira vez em 0m02s, é formado por um único gesto rítmico bastante claro. Existe alguma expressividade nestes sons, e definir o que se entende por expressão musical neste contexto, e porque estes sons possuem esta expressividade, é um possível tema para pesquisas futuras. Juntamente com esta questão, há também a discussão sobre ruído. Uma análise conceitual mais rigorosa a respeito de ruído, e principalmente como o conceito ruído se insere dentro da espectromorfologia, é algo que por limitações de tempo e espaço não foi incluído neste trabalho. Se definirmos ruído como sons que indesejáveis que atrapalham a transmissão de uma mensagem principal, todos os sons de A respeito dos sons que escolhemos ignorar são ruidosos. Porém, isto não impede que alguns dos sons presentes sejam mais propícios à escuta musical que outros. E, pelo fato de alguns sons se sobressaírem enquanto mais musicais que outros, e uma delimitação conceitual mais rigorosa sobre o que se entende por som e o que se entende por ruído dentro da escuta espectromorfológica se faz necessária em pesquisas 64 Experiência como definida por William James (1912). 76 futuras. E, novamente, um caminho possível para discutir estas idéias que estão por vir é conciliar a discussão teórica com a produção artística. 77 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO, N. 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Iorque: York Electronic Studios, 1978. 1 LP. 82 ANEXO I - ENTREVISTA COM DENIS SMALLEY, REALIZADA VIA EMAIL EM ABRIL DE 2012 I.a. CAPTURA DE TELA DA CONVERSA, VIA EMAIL, COM DENIS SMALLEY REFERENTE À ENTREVISTA Figura 2: captura de tela da conversa, via email, com Denis Smalley: 83 I.b. REPRODUÇÃO DO TEXTO DA ENTREVISTA ENVIADO POR DENIS SMALLEY EM 18 DE ABRIL DE 2012 Orlando Scarpa - In which ways do you consider Spectromorphology to be an extension of the work of Pierre Schaeffer? What differences do you see in terms of methodology and approach towards sound? Denis Smalley - Schaeffer arrived only at a broad taxonomy of sound morphologies (typo-morphology) largely based on the instrumental model (in terms of morphology) but also attempting to categorise different types of spectral content found in electroacoustic music. His taxonomy stopped at the level of the “sound object” and did not venture into larger structures or attempt to tackle relationships among sounds within musical structures. Spectromorphology starts with Schaeffer’s morphological basics – they are very basic – but expands into concepts for dealing with a wider spectromorphological repertory, and their relationships in the context of musical structure. Orlando Scarpa - The concepts of source-bonding and gesture surrogacy appear to be strongly related and even overlap and complement each other in some ways. Both are concerned with factors that are generally considered extra-musical, and both take into account the fact that the electroacoustic listening experience frequently invites us to reflect upon our own daily listening experience. What similarities do you see between the two concepts? Do you think it is possible to consider musical and daily listening as two separate experiences? Denis Smalley - I highlighted the idea of gesture, partly because at the time of elaborating spectromorphological concepts (starting in 1981), I thought that the use of gesturally-based morphologies (whether actual or imagined) was important because they could be immediately and instinctively grasped by listeners, since they are based on types of sound making present in every culture, and since they form the basis for all instrumental music. In other words they had an evident source-bonded value. I blamed the dullness, or sterility, of some of the electroacoustic music of that time on the absence of gestural cues. I would not go as far as that these days (there are many other types sound model which can connect directly with listeners), but still regard the presence of gesture and its surrogates as fundamental means of communicating musically with listeners. 84 Yes, gesture is source-bonded. Bear in mind, though, that source bonding is concerned with both sources and causes. (You can have one without the other, and each can be more or less “real” or imagined – in all, a potentially complex, ambiguous web of “surrogates”.) A gesture is a cause. And, of course, gesture is only one type of cause. Whether daily listening and musical listening are separate or closely allied depends on the listening attitude adopted. I can listen to daily sounds in a “musical” mode if I wish – that is, not just listen to them for the source-bonded information they carry. Indeed, as a composer, I have a habit of doing so. One of the acousmatic composer’s roles, is, I think, to unveil the musical in the sounds around us. Orlando Scarpa - What led you to re-write Spectromorphology and Structuring Processes (1986) ten years later? Denis Smalley - It was intended to publish the original article in French, and I thought it a good occasion to revise some ideas, and extend others. You will find my comments on the changes in the chapter entitled Spectromorphology in 2010 (under the heading “1986 versus 1995”) in the Polychrome Portrait book on my ideas and music published in 2010. Orlando Scarpa - Also, in 1986, you identified only three types of gesture surrogacy, and their definitions are quite different from the ones presented in the 1997 version of the article. What was the reason behind this change? Denis Smalley - The revised version seemed more logical. I quote the relevant passage from the Polychrome book mentioned above, p. 93: “There is one concept, quite often referred to, which changes between 1986 and 1995 - that of gestural surrogacy.65 In 1995, discussion of the concept was reworked, and I increased the number of levels, separating out proprioceptive and non-sonic gesture, prior to any sonification, as “primal” gesture (level zero, if you like). Sounding gesture in culture (for example, in work and play) is level 1 (first-order), instrumental gesture is level 2 (second order, one stage removed from general cultural sounding gesture), and inferred or imagined gesture (as often found in acousmatic music, but now also evident in live electronics) is level 3 (third order). Beyond that we end up in remote surrogacy territory of vestiges and traces. In 1986, primal gesture was not mentioned, and level 1 comprised instrumental gesture, and 65 A process where it becomes increasingly problematic for the listener to identify spectromorphologies as being clearly linked to a specific human gestural cause, associated with a known source. In remote surrogacy, traces of a spectromorphology may remind the listener of a gestural image even if the sound is not “real” and the type of gesture somewhat ambiguous. 85 so on. 66 The change causes confusion, particularly if one is not sure whether 1986 or 1995 is referred to. Perhaps an unwise change, therefore, although 1995 is more appropriate.” Orlando Scarpa - In your work, you avoid treating vocal sound as a spectromorphological model. The reason, as you mention in the 1997 version of the article, is the lack of space (p. 111) and to include this discussion would possibly entail an entirely different article. But if someone were to explore this path, what suggestions would you give? Are there any key concerns regarding vocal sounds that you have considered writing about, or have dealt with in your own compositions? Denis Smalley - The sounds of the voice, when detected in an acousmatic work (whether actual or imagined) are automatically source-bonded in the listener’s mind, and denote some kind of human presence in the sounding flow of the music. Their source-bonded character is normally much stronger than any more (abstract) spectromorphological attributes. They therefore often have a role in some kind of “scene”, which can probably best be analysed initially using appropriate attributes of space-form – as discussed in my article Space-Form and the Acousmatic Image, Organised Sound 12(1), 2007. It may be appropriate to discuss the spectromorphology of vocal sounds - e.g. onset/attacks of consonants; the spectral qualities of vowels and noise, as found in phonemes and syllables - where these come to the fore in creating correspondences with other sound-types. Other spectromorphological concepts, like behaviour, and motion and growth may also be appropriate. So in principle my spectromorphological concepts are relevant to the voice. Individual units of vocal sound, and streams of vocal sounds (whether spoken, or sung, or behavioural i.e. utterance, in general) can, of course, be spectromorphological models; and in spectromorphologically oriented composition these inevitably share attributes with a wider sonic repertory. We can refer to vocal “gesture” in a metaphorical sense, which in contrast to instrumental gesture, emerges from the interior of the human body (interior cause and source). Some instrumentally-based gestures – sounds produced using wind instruments – can be regarded as hybrids of vocal and instrumental gesture. 66 The orders of surrogacy as set out in 1986 are also discussed under “gesture”, as one of the nine “indicative fields” in my article entitled The Listening Imagination which has been published twice in English and also translated into Portuguese. The original publication was in 1992, and the more accessible re-publication was in 1996 (Contemporary Music Review, Vol. 13, Part 2, 1996, pp. 77-107). Note that 1986 surrogacy therefore still existed concurrently with the 1995 revision. More confusion. 86 I have used vocal sounds in my two most recent compositions. In my last composition Spectral Lands vocal sounds are important, sometimes recognisable, sometimes more ambiguous. They participate in scenes, functioning as human references in relation to nature/ environment; pitched vocal sounds also have a central role in the pitch language which provides the spine of the piece. I am sorry I can’t provide you with a copy of this multi-track piece, which can only be heard, for now, in concert, using a properly set up loudspeaker installation. 87 ANEXO II. CD COM AS PEÇAS DE MINHA AUTORIA DISCUTIDAS NO CAPÍTULO II E NAS CONSIDERAÇÕES FINAIS II.a. LISTAGEM DOS ARQUIVOS CONTIDOS NO CD O CD anexado a seguir contém as seguintes peças, todas de minha autoria em arquivo WAVE, 44.1 kHz, 16 bits: 1. A respeito dos sons que escolhemos ignorar 2. Em um quarto com cabos e vista 3. Harmonicidade e saturação 4. On common people, signal-to-noise ratios and love in general.