UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
A ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY: A PERCEPÇÃO DE FONTE E
GESTO COMO BASE PARA A COMPOSIÇÃO MUSICAL ELETROACÚSTICA
ORLANDO SCARPA NETO
Rio de Janeiro
2013
A ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY: A PERCEPÇÃO DE FONTE E
GESTO COMO BASE PARA A COMPOSIÇÃO MUSICAL ELETROACÚSTICA
ORLANDO SCARPA NETO
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Música da UFRJ (Poéticas da
criação musical), Escola de Música da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Música
(Poéticas da criação musical).
Prof. orientador: Prof. Dr. Rodrigo Cicchelli Velloso
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2013
A ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY: A PERCEPÇÃO DE FONTE E
GESTO COMO BASE PARA A COMPOSIÇÃO MUSICAL ELETROACÚSTICA
Autor: Orlando Scarpa Neto
Orientador: Rodrigo Cicchelli Velloso
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em
Música(Poéticas da criação musical), Escola de Música, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Música.
Aprovada por:
_______________________________
Presidente, Prof. Dr. Rodrigo Cicchelli Velloso
_______________________________
Profa. Dra. Carole Gubernikoff
_______________________________
Prof. Dr. Rodolfo Caesar
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2013
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Maria Anunciação Almeida Scarpa, por absolutamente tudo.
Ao meu falecido Pai, Paulo Cesar do Nascimento Scarpa, por ter me apresentado
Velvet Underground, The Jimi Hendrix Experience, Neil Young, entre outras coisas, quando
eu ainda era garoto. O impacto que aquilo teve na época reverbera em vários trechos deste
trabalho e da minha vida.
Ao meu irmão, Paulo César Almeida Scarpa, por ter sempre me mostrado música,
livros e idéias interessantes e inspiradoras durante esses anos todos. Minha principal
referência bibliográfica, para tudo, sem dúvida.
À CAPES, pela concessão da bolsa no último ano desta pesquisa.
À Valeria Machado Penna, Barbara Lucia Pereira e Elizabeth Villela, por sempre me
ajudarem a resolver pequenos problemas na secretaria da pós-graduação da Escola de Música
da UFRJ. Sem a paciência boa vontade de vocês eu estaria eternamente perdido nos labirintos
do SIGMA.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Rodrigo Cicchelli Velloso, por ter pacientemente me
ajudado nesta pesquisa desde a sua primeira semana. Seus comentários (e correções de crase)
foram indispensáveis para a realização deste trabalho. E também por ter sido rigoroso nas
horas certas (“Orlando, me entregue isto em 3 dias. É tempo o suficiente”) e mais ainda por
ter sido extremamente tranquilo nas horas certas (“Orlando, você anda ansioso, relaxa. Vá à
praia”).
Ao Denis Smalley, por ter cedido uma entrevista que foi fundamental para a realização
desta pesquisa.
Ao Maurício Dottori, por ter feito eu me interessar por composição musical e música
eletroacústica. E também por sempre ter um ótimo café expresso em sua casa.
À Larissa Selhorst Seixas, por ter sido minha melhor amiga desde o tempo em que
meu bigode mal crescia.
À Karen Duek, pela amizade ao longo destes anos todos. Um dia ainda vou pra
Califórnia te visitar.
Ao Mário de Alencar, por sempre ter vinho e castanhas em casa e por me mostrar que
é possível fazer arte sem se entregar às pressões do Status Quo.
À Ruth Beirigo, por ter sido minha primeira guia para a cidade do Rio de Janeiro e
fazer com que eu não surtasse na capital carioca. E por sempre me deixar revigorado depois
de uma noite conversando.
Ao Rogério Brittes, amigo e roomate, por ter me aguentado falar incessantemente
sobre Smalley, Schaeffer e outras coisas. E também por ter me apresentado à uma porção de
boas idéias/filmes/músicas/autores, pelas conversas interessantes, pelos trocadilhos infames.
À Ana Paula Soares Carvalho e Frederico Abraham, por me acolherem diversas vezes
e por me aguentarem falando de Sartre às duas da manhã.
À Luisa Marques, pelas conversas sobre a vida, por sempre elogiar minhas tentativas
de drinks fracassadas (refresco de carambola não constitui um ingrediente) e por sempre topar
ir no Plano B, mesmo quando tudo indica que a noite vai ser fraca.
Ao Theo Duarte, pela companhia durante as suas várias visitas ao Rio e por sempre
(vale ressaltar, sempre) lavar a louça.
À Bruna Gisi que, mesmo longe, de tempos em tempos me mandou emails que davam
frio na espinha.
Ao Ismar Tirelli Neto, por me ensinar a dançar música italiana, por me apresentar
Frank O’Hara, por topar ser meu amigo em algum momento de 2011, pelo Autorretrato a
partir de uma praça e por me ensinar que John Ashbery e inglês mal escrito (engrish) estão
intimamente conectados.
À Maria Isabel Lamim, pela amizade, por sempre falar “porra, Orlando” na hora certa
e por sempre topar a famosa derrota recreacional na praça São Salvador.
Ao Pedro Kalil, líder do #Pedante, por sempre ser uma companhia incrível e
inspiradora.
Ao trio Leonardo Machado, Thiago Bragança Braga e Débora Faria. Curitiba não tem
a menor graça sem a presença de vocês.
Ao Felipe de Lima Mayerle, pelas caronas as 3 da manhã ouvindo música esquisita.
À Mariana Corrêa de Azevedo, pelas caronas as 3 da manhã com conversas esquisitas.
À Júlia Souza Cabo, por ter sido a melhor surpresa de 2012, por aguentar meus
monólogos sobre percepção e por coisas que é melhor não mencionar neste trabalho.
Aos responsáveis por reativar o chafariz da Praça São Salvador, que tornou a minha
vista mais agradável em um momento crucial desta pesquisa.
Aos meus dois cachorros, Dylan e Bonnie, que vieram a falecer durante esta pesquisa.
Mais de uma década de companheirismo.
À Taxi e à Cuíca, as duas gatas com quem divido meu espaço e que me fazem
companhia quando todo o resto desmorona.
RESUMO
A ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY: A PERCEPÇÃO DE FONTE E
GESTO COMO BASE PARA A COMPOSIÇÃO MUSICAL ELETROACÚSTICA
Autor: Orlando Scarpa neto
Orientador: Rodrigo Cicchelli Velloso
Este trabalho tem como objetivo discutir de que maneiras atribuímos fontes sonoras e
gestos a sons escutados em situações acusmáticas, i.e. situações em que não temos acesso
visual ao contexto que dá origem a determinado som. De forma mais específica, três conceitos
da espectromorfologia de Denis Smalley são a base para a discussão do fenômeno descrito
acima. São estes: ligação a fontes (source-bonding), causalidade (causality) e substituição
gestual (gesture surrogacy) (SMALLEY 1986; 1997). A pesquisa foi divida em duas etapas
distintas. A primeira etapa consiste em revisão bibliográfica e análise conceitual e a segunda
consiste na discussão de três obras de música eletroacústica de minha autoria. Na primeira
etapa, é feita uma análise detalhada dos conceitos de Smalley, correlacionando as idéias do
autor com a de outros que trabalham no mesmo campo. Smalley considera a sua
espectromorfologia como uma extensão da tipomorfologia de Pierre Schaeffer, apresentada
por Schaeffer em sua obra Traité des objets musicaux (1966). Por este motivo, são discutidas
as bases metodológicas da espectromorfologia, e a sua relação com a tipomorfologia
Schaefferiana, assim como uma análise de uma obra de Schaeffer por viés
espectromorfológico. A segunda etapa deste trabalho diz respeito a composição musical
propriamente dita. As idéias apresentadas no primeiro capítulo são então reintroduzidas em
uma discussão sobre a minha própria produção artística. É visto de quais maneiras a produção
musical pode se tornar um método para pesquisa espectromorfológica, e de quais maneiras a
pesquisa sonora pode complementar a pesquisa bibliográfica.
Palavras chave: escuta acusmática, espectromorofologia, composição musical, música
eletroacústica
ABSTRACT
A ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY: A PERCEPÇÃO DE FONTE E
GESTO COMO BASE PARA A COMPOSIÇÃO MUSICAL ELETROACÚSTICA
Autor: Orlando Scarpa neto
Orientador: Rodrigo Cicchelli Velloso
The following research aims to discuss how one attributes sources and gestures to
sounds heard in an acousmatic situation, i.e. situations in which we do not have visual access
to the context that is generating the sounds heard. Specifically, three concepts from Denis
Smalley’s spectromorofology (SMALLEY 1986; 1997) are used as a basis to discuss the
phenomenon described above. These concepts are: source-bonding, causality and gesture
surrogacy. The research is divided into two distinct phases. The first being concerned with
literature review and conceptual analysis, and the second with the discussion of three of my
own compositions. The first part of this dissertation consists of a a detailed analysis of
Smalley’s concepts, correlating the author’s ideas with other authors who conduct research in
the same field. Smalley considers his spectromorofology as an extension of Pierre Schaeffer’s
typomorphology, exposed by Schaeffer in his Traité des objets musicaux (1966). For this
reason, the methodological basis behind Smalley’s spectromorphology and its relation to
Schaeffer’s typomorofology are discussed, as well as a spectromorphological analysis of one
of Schaeffer’s own works (Étude Violette, premiered in 1948). The second part of this
research consists in a discussion of musical composition per se. The ideas presented in the
first part are reintroduced in regarding my own compositions. This final sections also
examines in which ways musical composition can become a method for spectromorphological
research, and in which ways sound research can complement bibliographical research.
Keywords: acousmatic listening, spectromorphology,
electroacoustic music
musical composition,
SUMÁRIO
Introdução ---------------------------------------------------------------------------------------- p.11
Capítulo I - Substituição gestual, ligação a fontes e causalidade na espectromorfologia
de Smalley
1.1.
A espectromorfologia de Smalley --------------------------------------------- p. 15
1.2.
Análise conceitual: relevância e metodologia ------------------------------- p. 19
1.3.
A espectromorfologia de Smalley e a tipomorfologia de Schaeffer ------ p. 22
1.4.
Substituição gestual, ligação a fontes e causalidade ----------------------- p. 24
1.5.
Análise espectromorfológica de Étude Violette, de Pierre Schaeffer ----- p. 38
1.5.1. Apresentação do material, 00m00s a 00m20s ---------------------- p. 40
1.5.2. Apresentação do material, 00m20s a 00m38s ---------------------- p. 41
1.5.3. Apresentação do material, 00m38s a 1m00s ----------------------- p. 41
1.5.4. Apresentação do material, 1m00s a 1m47s ------------------------- p. 42
1.5.5. Desenvolvimento do material, 1m47s a 1m57s -------------------- p. 42
1.5.6. Desenvolvimento do material, 1m57s a 2m27s -------------------- p. 42
1.5.7. Desenvolvimento do material, 2m27s a 3m00s --------------------- p. 43
1.5.8. Coda, 3m00s a 3m40s ------------------------------------------------- p. 43
Capítulo II - A espectromorfologia enquanto ferramenta composicional
2.1.
Produção artística enquanto trabalho de campo ---------------------------- p. 45
2.2.
Harmonicidade e Saturação: tecnologia enquanto timbre, timbre enquanto
gesto e fonte sonora --------------------------------------------------------------------- p. 48
2.3.
Em um quarto com cabos e vista: fonte, gesto e paisagem sonora enquanto um
recorte do tempo ------------------------------------------------------------------------- p. 54
2.3.1. Sons de praça e quarto ------------------------------------------------
p. 54
2.3.2. Os cabos do quarto: processamento digital e fonte sonora ------- p. 65
2.4.
On common people, signal-to-noise ratios and love in general:
espectromorfologia e metalinguagem ------------------------------------------------- p. 68
2.5.
A função do título na escuta espectromorfológica -------------------------- p. 72
Considerações finais ---------------------------------------------------------------------------- p. 74
Referências Bibliográficas --------------------------------------------------------------------- p. 77
Anexo I I.a -
Entrevista com Denis Smalley, realizada por email em abril de 2012
Captura de tela da conversa, via email, com Denis Smalley referente à
entrevista ------------------------------------------------------------------------- p. 82
I.b -
Reprodução do texto da entrevista enviado por Denis Smalley em 18 de abril
de 2012 --------------------------------------------------------------------------- p. 83
Anexo II -
CD com as peças de minha autoria discutidas no capítulo II e nas
considerações finais
II.a - Listas de arquivos contidos no CD ------------------------------------------- p. 87
II.b - CD anexado ----------------------------------------------------------------- contracapa
LISTA DE FIGURAS
Figura 1. - Primeiros compassos do segundo movimento de Musica Ricercata -------- p. 46
Figura 2. - Captura de tela da conversa, via email, com Denis Smalley ------------------ p. 82
11
INTRODUÇÃO
A escuta de música através de alto falantes se tornou uma atividade cotidiana ao longo
das últimas décadas. Ao escutar sons através de alto falantes ou fones de ouvido, ocorre uma
curiosa separação entre a visão e a escuta. Quando escutamos música em uma apresentação ao
vivo, vemos músicos executando aqueles sons; as imagens dos gestos produzidos por
indivíduos estão intimamente conectadas com os sons que chegam aos nossos ouvidos. A
escuta por alto falantes muda este cenário: escutando uma gravação temos acesso apenas aos
sons. Os gestos dos indivíduos que produziram aqueles sons, assim como os instrumentos que
produziram aqueles sons, não estão à vista; cabe ao ouvinte imaginar estas fontes sonoras e
gestos. Um gesto mais enfático em um contrabaixo produz um som com mais intensidade, um
gesto delicado tem o efeito contrário. Tratando-se de música produzida por meios eletrônicos,
onde o executante pode ser um computador, um sintetizador, parafernálias de circuit bending,
entre outras possibilidades, a dedução de gestos e fontes torna-se um pouco mais complicada.
Surge a questão de como imaginar um gesto que, essencialmente, não tem um correlato
visual; ou como imaginar uma fonte física de um som que foi produzida por aparelhos que
simulam diversas fontes físicas, ou ainda, criam fontes sonoras absurdas, estruturas híbridas
que tem em sua essência uma ambiguidade. Esta pesquisa trata justamente deste processo de
imaginar fontes e gestos para sons escutados em situações acusmáticas, i.e, situações em que
não temos acesso visual ao contexto em que surgem aqueles sons1. A maior parte do trabalho
é centrada em torno do repertório da música eletroacústica, em sua maior parte produzida
dentro do meio acadêmico. Este recorte foi feito devido à minha familiaridade com este
repertório, e pelo fato do meu próprio trabalho composicional estar inserido nesta categoria.
Porém, isto não significa que as idéias apresentadas aqui estão limitadas apenas à discussão
deste repertório. A princípio, as idéias apresentadas neste trabalho podem ser estendidas à
qualquer situação de escuta acusmática. No segundo capítulo deste trabalho, por exemplo, é
feito um paralelo entre a escuta de Em um quarto com cabos, peça de minha autoria, e o
discurso de alguns DJs envolvidos com a cultura dubstep do Reino Unido. Estender ainda
1
O termo acusmático está sendo usado aqui da maneira mais abrangente possível: sons que escutamos sem ter
acesso visual a sua fonte/causa. Schaeffer e Chion usam o termo mais ou menos no mesmo sentido, porém o
foco da investigação de ambos são sons que geralmente são tocados por alto falantes (telefones, rádios,
televisores, cd-players, etc.). Neste trabalho, o termo é usado para qualquer tipo de som em que sua fonte não é
visível, desde sons escutados em um rádio até sons ambientais que escutamos dentro de um apartamento, onde
as paredes impõe um limite visual às fontes.
12
mais os conceitos discutidos neste trabalho para além do campo da música eletroacústica é
perfeitamente possível. Porém, por questões de espaço, esta pesquisa não se propõe a fazer
esta extensão.
De forma mais específica, este trabalho tem como objetivo analisar três conceitos de
Denis Smalley que fazem parte de uma discussão mais ampla sobre espectromorfologia. As
idéias de Smalley sobre este tema foram publicadas primeiramente no artigo
Spectromorphology and Structuring Processes (1986) 2. Dez anos mais tarde, o autor
apresenta uma extensa revisão destes conceitos no artigo Spectromorphology: Explaining
Sound-shapes (1997). De acordo com Smalley, a espectromorfologia “não é uma teoria ou
método de composição, mas uma ferramenta descritiva baseada na escuta” (SMALLEY 1997,
p. 107), e sua intenção é ajudar o ouvinte a compreender o que foi desenvolvido nas últimas
seis décadas de música eletroacústica. Apesar da espectromorfologia não ser uma ferramenta
ou método composicional, Smalley afirma que “uma vez que o compositor tome consciência
das palavras e conceitos usados para diagnosticar e descrever, o pensamento composicional
pode vir a ser influenciado” (ibid., p. 107). Os conceitos da espectromorfologia discutem a
percepção de fontes sonoras, a percepção do gesto e de textura musical, a percepção de
variações no espectro de um som qualquer e a relação som/ruído em música eletroacústica,
sempre interpretando o som em termos de seu espectro e de suas mudanças no tempo (ou seja,
sua morfologia). O autor descreve em detalhes como se dá a compreensão de cada um destes
aspectos por parte do ouvinte, colocando as intenções do compositor em segundo plano.
Este trabalho se propõe a tentar compreender como estes conceitos de Smalley
dialogam com outras discussões dentro do mesmo campo, qual a base metodológica por trás
do discurso do autor, e qual a aplicabilidade destes conceitos na composição musical. Parte
deste trabalho consiste na análise conceitual, e a metodologia usada é a revisão bibliográfica e
leitura crítica de autores que trabalham no mesmo campo, além de uma entrevista de
esclarecimento feita com Smalley (via e-mail) em abril de 2012. Porém, parte deste processo
de análise conceitual diz respeito à aplicabilidade destes conceitos, e nesta etapa a própria
produção artística torna-se parte do método. Smalley baseia suas observações na sua própria
escuta, e esta pesquisa se propõe a fazer algo semelhante. Uma maneira possível de discutir,
2
Em uma nota de rodapé deste artigo, Smalley afirma que o mesmo é uma revisão de um artigo anterior
apresentado em uma conferência organizada pelo EMS (Elektronmusikstudion), em Stockholm, 1981.
(SMALLEY 1986, p. 220)
13
através da escuta, a coerência e relevância das idéias apresentadas é justamente usando-as
como base para a composição, descrição e análise de obras. Desenvolver o trabalho teórico
em paralelo ao composicional serve justamente para demonstrar que a teoria pode não apenas
contribuir para o desenvolvimento da pesquisa acadêmica, mas também pode servir de base
para uma produção musical que, por sua vez, levanta questões em relação à nossa percepção.
Através da união entre as duas partes do trabalho, espera-se criar uma produção artística que
tem o potencial de nos conscientizar de nossos processos de compreensão e estruturação do
material musical.
Por este motivo, o trabalho está divido em dois capítulos. O primeiro capítulo trabalha
mais diretamente com as idéias de Smalley e pretende esmiuçar a grade teórica do autor. Já o
segundo discute três peças minhas sob a ótica da espectromorfologia. O primeiro capítulo
inicia-se com uma apresentação da espectromorfologia de Smalley (1.1), e em seguida são
expostas as bases metodológicas do capítulo (1.2). A espectromorfologia se propõe a ser uma
extensão da tipomorfologia de Pierre Schaeffer, e a relação entre a pesquisa de Smalley e a de
Schaeffer é explorada na seção 1.3. Na seção 1.4, inicia-se uma discussão mais aprofundada
dos três conceitos de Smalley que são a base deste trabalho: ligação a fontes, causalidade e
substituição gestual. Para concluir o capítulo, Étude Violette, obra de Pierre Schaeffer
concluída em 1948, é analisada através do conceitos expostos ao longo das seções anteriores.
A escolha de uma peça canônica do repertório de música eletroacústica serve para
exemplificar algumas das maneiras como a espectromorfologia pode ser usada para a análise
musical. Neste contexto, o trabalho de análise acaba se tornando um trabalho de descrição
detalhada guiado pelos critérios destacados
O segundo capítulo é distinto em relação ao primeiro em termos de metodologia e
objetivos. Pelo fato do segundo capítulo discutir obras de minha autoria, o distanciamento
presente no capítulo anterior está menos presente. Na seção 2.1, é discutida a ideia de
produção artística enquanto uma espécie trabalho de campo; maneiras em que o trabalho
composicional pode servir como a uma plataforma para a aplicação de conceitos abstratos.
Em seguida, inicia-se a discussão das três peças: Harmonicidade e Saturação (2.2), Em um
quarto com cabos e vista (2.3) e On common people, signal-to-noise ratios and love in
general (2.4). A descrição da escuta de cada uma destas peças toca em pontos específicos dos
conceitos de Smalley. Os processos de ligação a fontes, causalidade e substituição gestual se
14
comportam de maneiras específicas em cada uma das obras e levantam questões distintas em
relação a carga conceitual de Smalley. O título cumpre uma importante função na escuta de
música eletracústica, tendo o potencial de guiar a nossa escuta para determinados caminhos, e
na última seção deste trabalho (2.5) é feita uma breve discussão acerca da função do título
dentro do repertório da música eletroacústica.
Dividindo a pesquisa em dois capítulos, fica clara a separação entre o trabalho teórico
e o trabalho composicional. Também fica claro que, apesar de serem campos separados,
ambos têm em sua base a pesquisa; de um lado a pesquisa teórica, onde conceitos são
contrapostos e comparados com o fim de elucidar idéias, e de outro lado a pesquisa sonora,
onde a reflexão a respeito do o que se deu no momento da composição e a descrição da minha
própria escuta são ao mesmo tempo o método, o resultado e a obra em si. Uma espécie
retroalimentação onde o trabalho teórico influencia a produção artística, que por sua vez nos
faz repensar o trabalho teórico.
15
1.
SUBSTITUIÇÃO GESTUAL, LIGAÇÃO A FONTES E CAUSALIDADE NA
ESPECTROMORFOLOGIA DE DENIS SMALLEY
1.1
A ESPECTROMORFOLOGIA DE SMALLEY
A espectromorfologia de Smalley tem como ponto de partida a tipomorfologia de
Pierre Schaeffer, apresentada em seu Traité des objets musicaux (1966), porém Smalley
expande os conceitos para darem conta de “um repertório espectromorfológico mais amplo, e
suas relações no contexto da estrutura musical” (SMALLEY 2012, p. 1). O trabalho de
Smalley é um desenvolvimento do trabalho de Schaeffer na medida em que ele não poderia
existir sem o Traité. Porém, em termos de metodologia e objetivos, existe uma diferença
significativa entre ambos. Enquanto Schaeffer, baseado na redução fenomenológica de
Husserl e em seu conceito de Époché, se preocupa em descrever e catalogar objetos sonoros
(CHION 2002, p. 28 e 29), Smalley parece mais preocupado em descrever sons e delinear o
processo de estruturação de material sonoro. Isto não impede que seus resultados (i.e., a sua
discussão conceitual e sua nomenclatura) sejam usados de outras maneiras como, por
exemplo, para fins pedagógicos (BLACKBURN 2011), desenvolvimento de plataformas para
improvisação (SPASOV 2011) e estudos sobre a noção de temporalidade em música
(PASOULAS 2011). As idéias de Smalley, assim como as de Schaeffer, também podem ser
usadas para a análise de peças eletroacústicas devido a sua capacidade de descrever sons a
partir deles mesmos, sem a necessidade de algum tipo de apoio visual, como é o caso da
partitura em alguns modelos de análise de música instrumental.
Smalley toma como ponto de partida a sua própria escuta, porém os conceitos da
espectromorfologia dizem respeito à escuta como um todo, e não apenas a experiência
subjetiva do autor ou a seu processo de criação musical. Segundo o autor:
Apesar do detalhamento da descrição espectromorfológica por vezes ser um
pouco difícil de ser compreendido (especialmente sem uma experiência
extensa com o repertório da música eletroacústica), ela está longe de ser uma
atividade esotérica. O pensamento espectromorfológico é simples e a
princípio facilmente compreendido por ter seus fundamentos na experiência
do fenômeno sonoro e não-sonoro fora do campo da música, um
conhecimento comum a todos – existe uma forte ligação entre o extrínseco e
o intrínseco. Neste sentido, a espectromorfologia é derivada de uma uma
base comum, natural e compartilhada que proporciona um grade teórica para
16
obras culturais e individuais de música eletroacústica. (SMALLEY 1997, p.
125, tradução nossa)3
A universalidade dos conceitos de Smalley pode ser questionada. O fato de todo
sujeito possuir um conhecimento a respeito do mundo sonoro a seu redor não garante que este
conhecimento seja estruturado da mesma maneira universalmente. Não seria exagero afirmar
que este conhecimento seja mais ou menos homogêneo dentro do meio da música
eletroacústica, mas levar estas generalizações além deste meio é arriscado teoricamente. No
entanto, alguns conceitos são mais universais que outros. A associação de sons acusmáticos a
fontes imaginadas ocorre de uma maneira na maioria das vezes intuitiva. Por sua vez,
capacidade de identificar a harmonicidade ou inarmonicidade de espectro sonoro demanda um
conhecimento específico e uma capacidade de discernimento que é adquirida em ambientes
como o das universidades de música. O conceito de escuta especialista, cunhado por
Schaeffer em seu Traité des objets musicaux (1966), trata justamente dos diferentes tipos de
escuta adquirida. Como resume Chion:
A escuta especialista se concentra em uma maneira específica de escutar.
Por exemplo, um som galopante: a escuta comum a identificaria como o som
de cavalos galopando, mas diferentes escutas especializadas escutariam este
mesmo som diferentemente; o especialista em acústica procura determinar a
natureza do sinal físico, o ameríndio escuta “o possível perigo de um inimigo
se aproximando”, e o músico escuta agrupamentos rítmicos. (CHION 2009,
p. 25, tradução nossa) 4
Isto não significa que a escuta especialista é mais objetiva, e a escuta comum mais
subjetiva. A escuta especialista tem em sua estrutura uma tendência a reduzir toda a
informação auditiva ao seu campo especializado. Um biólogo, ao escutar um som de um
pássaro qualquer sob o filtro de seu conhecimento especializado, irá extrair informações sobre
espécie, comportamento, idade, etc., ignorando todos os potenciais significados a respeito do
canto dos pássaro que algum outro ouvinte, com sua própria escuta especializada, poderia
3
“Although the detail of spectromorphological description may sometimes not be easy to follow, particularly
without an extensive experience of electroacoustic music repertory, it is far from being an esoteric activity.
Spectromorphological thinking is basic and easily understood in principle because it is founded on experience
of sounding and non-sounding phenomena outside music, a knowledge everyone has – there is a strong
extrinsic–intrinsic link. In this sense spectromorphology derives from a common, shared, natural base which
provides a framework for the individual, cultural works of electroacoustic music”.
4
“Specialist listening concentrates on a particular manner of listening. For example, the sound of galloping:
ordinary listening hears it as the galloping of horses, but different specialized listenings hear it differently; the
acoustician seeks to determine the nature of the physical signal, the Native American Indian hears “the
possible danger of an approaching enemy”, and the musician hears rhythmic groupings”.
17
ressaltar. Alguns conceitos da espectromorfologia de Smalley são mais facilmente
compreendidos por pessoas que tem a escuta especializada típica de compositores de música
experimental, o que em a parte anula a sua suposta universalidade.
Como mencionado anteriormente, dentre os conceitos desenvolvidos na
espectromorfologia de Smalley, este trabalho se concentra na discussão de três: substituição
gestual (gesture surrogacy), causalidade (causality) e ligação a fontes (source bonding). De
maneira resumida, a substituição gestual diz respeito ao ato de associarmos gestos possíveis
a sons escutados de forma acusmática; causalidade ao processo de um evento qualquer
impulsionar o início de outro, ou alterar um evento existente; ligação a fontes a tendência que
temos de associar sons a supostas fontes, e de agruparmos sons que parecem pertencer a
fontes semelhantes. Exemplificando, um ouvinte qualquer em um apartamento de qualquer
grande centro urbano escuta uma série de sons aos quais, devido aos limites impostos pelas
paredes do apartamento, não tem acesso visual. Sons de carros e sons de uma obra de
construção civil são comuns neste tipo de cenário, e apesar de existirem diversos sons de
carros diferentes, e o os sons de uma obra serem muito heterogêneos, a paisagem sonora
poderia ser descrita como sendo composta por sons de carro, e sons de uma obra. Nesta
descrição, estamos agrupando sons de fontes semelhantes. Também poderia ser dito a respeito
desta paisagem imaginária que alguém está, por exemplo, enfaticamente lixando algum
material, ou martelando algo em uma parede. Neste caso estamos deduzindo gestos físicos
através dos sons. O conceito de causalidade, que em uma primeira instância parece ser mais
relacionado à composição musical, pode ser percebido em qualquer grande cidade quando um
motorista aciona a buzina de seu carro e, como conseqüência, dezenas de outros motoristas
fazem o mesmo. Uma descrição mais detalhada dos mesmos conceitos será feita mais adiante.
Antes de prosseguir, é necessário deixar claro o que se entende por paisagem sonora.
O termo Paisagem Sonora (soundscape) foi cunhado por Murray Schafer (1969) e tem sido
usado e revisado por uma série de autores desde então. Neste trabalho será usada a definição
de Emily Thompson (2002) sobre paisagem sonora, ligeiramente diferente da visão de
Schafer, e mais focada em relação ao nosso objeto de estudo. Thompson afirma que, assim
como a paisagem visual (landscape), uma paisagem sonora é “simultaneamente um ambiente
físico e uma maneira de perceber este ambiente; é tanto o mundo quanto uma cultura
construída para dar sentido a este mundo”. A autora ainda afirma que “os aspectos físicos de
18
uma paisagem sonora consistem não apenas dos sons propriamente ditos […] mas também
dos objetos materiais que criam, e às vezes destroem, estes sons” (THOMPSON 2002, p. 2).
A autora ainda afirma:
Os aspectos culturais de uma paisagem sonora incorporam maneiras de
escutar científicas e culturais, a relação de um ouvinte com o ambiente, e as
circunstâncias sociais que determinam o que cada um escuta. Uma paisagem
sonora, como uma paisagem visual (landscape) está mais relacionada a
civilização que à natureza e, assim sendo, está constantemente em
construção e passando por mudanças. (THOMPSON 2002, p. 1-2)5
A diferença entre a definição de Thompson e a de Schafer é que o último tem uma
forte ligação com a ecologia. Nas primeiras páginas de A afinação do mundo, o autor afirma
que os novos sons do século XX têm “alertado muitos pesquisadores quanto aos perigos de
uma difusão indiscriminada e imperialista dos sons” (SCHAFER 1997, p. 17). O autor
também constata que a paisagem sonora contemporânea “atingiu o ápice da vulgaridade em
nosso tempo, e muitos especialistas têm previsto a surdez universal como a última
conseqüência desse fenômeno” (ibid.). Mais adiante, ao enumerar os objetivos de sua
pesquisa, Schafer deixa claro a sua relação com a ecologia:
Este estudo teria por objetivo documentar aspectos importantes dos sons,
observar suas diferenças, semelhanças e tendências, colecionar sons
ameaçados de extinção, estudar os efeitos dos novos sons antes que eles
fossem colocados indiscriminadamente no ambiente, estudar o rico
simbolismo dos sons e os padrões do comportamento humano em diferentes
ambientes sonoros, com o fim de aplicar conhecimento ao planejamento de
futuros ambientes. (SCHAFER 1997, p. 19)
O julgamento de valor que o autor faz em relação a certas paisagens sonoras (como,
por exemplo, chamar uma paisagem de vulgar e outra de natural) é algo dispensável neste
trabalho. A abordagem de Thompson não possui nenhum vínculo com a ecologia, tem apenas
a preocupação de descrever e analisar paisagens sonoras.
5
“A soundscape's cultural aspects incorporate scientific and aesthetic ways of listening, a listener's relationship
to their environment, and the social circumstances that dictate who gets to hear what. A soundscape, like a
landscape, ultimately has more to do with civilization than with nature, and as such, it is constantly under
construction and always undergoing change”.
19
1.2
ANÁLISE CONCEITUAL: RELEVÂNCIA E METODOLOGIA
Leigh Landy, em seu artigo Reviewing the musicology of electroacoustic music: a plea
for greater triangulation (1999), argumenta que um dos problemas centrais na musicologia
eletroacústica gira em torno do fato de existir um grande número de pesquisadores
trabalhando de uma forma um tanto isolada. Para Landy, isso pode ser evidenciado pelo
grande número de trabalhos que se baseiam nas visões particulares dos autores, desenvolvidos
com pouca ou nenhuma preocupação em fazer qualquer tipo de correlação com trabalhos já
existentes. Para Landy:
Este desequilíbrio, e não há outra palavra para descrever isto, constitui uma
questão ligada ao êmico: i.e., indivíduos reivindicando a autoria de uma
idéia, uma aproximação ou algo desta natureza sem uma contextualização
adequada, e, mais importante, com pouco ou nenhum feedback ou correlação
consistente, usando metodologias que são muitas vezes auto-referenciais.
(LANDY 1999, p.63, tradução nossa). 6
Para o autor, uma solução possível seria inclusão de três etapas na elaboração da
metodologia em pesquisas no campo da música eletroacústica:
Uma solução imediata para esta tendência ao isolamento seria que as pessoas
incluíssem o seguinte em seus trabalhos:
- uma indicação da relevância pretendida para os resultados da pesquisa; isso
enfatizaria o porquê do projeto ou pelo menos o contextualizaria;
- o uso de um modelo pesquisa-ação ou pelo menos a inclusão de alguma(s)
maneira(s) de triangulação como parte do projeto, e
- aplicabilidade/correlações de qualquer resultado obtido (LANDY 1999, p.
66, tradução nossa).7
Estas observações não se referem unicamente a pesquisas em música eletroacústica.
Porém, neste campo, a falta de reflexão a respeito da relevância das pesquisas e de seus
procedimentos metodológicos é um fator muito mais grave se comparado, por exemplo, à
6 “This
imbalance, and there is no other word for it, represents an issue linked to the emic: i.e. individuals
staking their claim to an idea, an approach or some such often without adequate contextualisation, but more
importantly here without adequate or any feedback or consistent correlation, using methodologies that are
often self-referential”.
7
“An immediate solution to the bias towards isolation would involve people including the following:
- a statement of the intended relevancy of any research outcome; this could emphasise the ‘why’ of the project
or at least contextualise it;
- the use of an action research model or at least the inclusion of some sort(s) of triangulation as part of any
project, and;
- applicability/linkage with regard to any outcomes”.
20
musicologia histórica. No caso da musicologia história, discussões da historiografia podem
servir como base metodológica às pesquisas. O conhecimento acumulado neste campo é
grande e bastante sistematizado. A pesquisa em composição musical e criação artística
permite tanto um viés cognitivista, quanto um viés completamente subjetivo ancorado em
discussões de poética. Devido à variedade de aproximações possíveis, um maior cuidado na
hora de estabelecer o método por vezes se faz necessário.
As idéias de Landy são relevantes para esta pesquisa. Uma análise conceitual mais
detalhada, que leve em consideração as observações acima, pode ser dividida em três etapas.
A primeira seria uma descrição detalhada da espectromorfologia de Smalley e de como os
conceitos de causalidade, ligação a fontes e substituição gestual se inserem dentro deste
sistema, apontando de que maneira eles se complementam e se relacionam entre si. Nesta
etapa também seria relevante mencionar quais autores influenciaram (mesmo que de forma
indireta) Smalley, e detalhar o processo de investigação destes autores.
Em um segundo momento, uma revisão bibliográfica sobre o que foi dito
especificamente sobre substituição gestual, causalidade e ligação a fontes, e considerações a
respeito da metodologia destes autores se faz necessária. Também será abordado a influência
de Pierre Schaeffer e Michel Chion nas bases metodológicas de Smalley; Pierre Schaeffer é
considerado pioneiro não só por seu objeto de estudo, mas também devido à metodologia
usada em sua investigação deste objeto. Ainda nesta etapa, seriam apresentados possíveis
aplicações analíticas/descritivas e teóricas dos conceitos expandidos.
A parte final do trabalho seria aplicar os resultados em composições musicais. Como
já foi dito anteriormente, um caminho possível dentro da composição musical eletroacústica é
tentar compor uma música que explore certos mecanismos da nossa percepção. Uma música
extremamente referencial, por exemplo, tende a induzir o ouvinte a refletir sobre o seu
processo de reconhecimento de fontes. Obviamente, não se espera o público em uma sala de
concerto esteja familiarizado com o trabalho de Smalley. Porém, quando um ouvinte qualquer
fica em dúvida em relação à fonte de um som, e acaba indagando a respeito de sua natureza,
ele está imerso em um processo mental que é justamente o que Smalley descreve em seu
conceito de ligação a fontes. Por exemplo, a peça acústmática Presque rien No. 1 ‘le lever du
jour au bord de la mer’, composta por Luc Ferrari em 1970, é inteiramente construída por
sons gravados ao longo de um dia inteiro em uma praia da então denominada República
21
Socialista Federativa da Iugoslávia. A peça dura cerca de 20 minutos, e os sons usados não
contém quase nenhum tipo de processamento; o compositor se utiliza apenas de técnicas de
edição, como crossfades para sobrepor ou criar transições entre cenas gravadas em momentos
diferentes do dia e a diferentes distâncias da fonte. Ferrari compacta várias horas de atividade
deste local em 20 minutos, e ao escutar a obra temos uma representação clara daquela
paisagem sonora. A escuta da obra induz o ouvinte a constantemente questionar a natureza das
fontes dos sons presente, e intuitivamente (i.e., sem recorrer a nenhum tipo de teoria
composicional eletroacústica) imaginamos uma possível paisagem visual correlacionada a
paisagem sonora que é oferecida. Em outras palavras, a lógica por trás da construção e
manipulação do material faz com que o ouvinte fique imerso em certos aspectos perceptivos
ao invés de outros. E, como conseqüência, o ouvinte tem a oportunidade de refletir sobre a
natureza destes mesmos processos perceptivos8. Obras acúsmáticas que trabalham com um
material muito processado (analogicamente ou digitalmente) tendem a imergir o ouvinte em
um tipo de percepção de uma natureza distinta, em que os gestos e sons são mais ambíguos, e
que por vezes podem apenas vagamente serem associados a fontes reais.
A música eletroacústica tem o potencial de nos induzir a perceber o material sonoro de
diferentes maneiras, e nos chamar a atenção para os nossos próprios processos perceptivos. A
parte composicional deste trabalho pretende explorar justamente este aspecto da música
eletroacústica através da composição de quatro peças acusmáticas. O foco desta terceira parte
seria uma descrição detalhada do processo de escuta destas peças, buscando sempre se colocar
na posição de um ouvinte, e enfatizando quais mecanismos da nossa escuta estão em jogo,
assim analisando até que ponto os resultados da pesquisa são aplicáveis.
Uma análise aprofundada da espectromorfologia de Smalley pode ser um interessante
ponto de partida para um trabalho composicional que tem como fundamento a reflexão a
respeito da percepção. Tal fundamentação pode servir como substituto a sistemas baseados em
dados matemáticos ou da acústica musical, como é o caso de diversos sistemas e
procedimentos influenciados (mesmo que indiretamente) pelo dodecafonismo, serialismo. e
espectralismo. Uma análise conceitual potencialmente aplicável torna-se mais relevante do
ponto de vista do compositor, e uma discussão teórica inserida dentro de uma estética
8
Quantificar esta reflexão, ou sequer ter algum tipo de certeza sobre sua existência, é algo praticamente
impossível. Entretanto, não é um absurdo supor que pelo menos uma parcela significativa dos ouvintes reflita a
respeito da música que, por livre e espontânea vontade, resolveu escutar.
22
composicional pode, com os devidos cuidados, ser um interessante ponto de partida para
pesquisas em música contemporânea. O trabalho de Landy aponta maneiras possíveis de
atingir esta união entre prática e teoria composicional, e a existência de diversos trabalhos
similares aos de Smalley (mencionados no decorrer deste trabalho), pouco referenciados entre
si, torna possível transformar estas sugestões em prática. Os conceitos de substituição gestual,
ligação a fontes e causalidade são ricos em potencial, e uma análise aprofundada das idéias
por trás da formulação destes conceitos pode não só contextualizar melhor trabalhos que
lidam com estas idéias, mas também servir como ponto de partida para pesquisas futuras.
1.3.
A ESPECTROMORFOLOGIA DE SMALLEY E A TIPOMORFOLOGIA DE
SCHAEFFER
Como mencionado anteriormente, a espectromorfologia de Smalley se propõe como
extensão do trabalho de Schaeffer. Porém, existem algumas diferenças fundamentais em
relação ao método e objetivos dos dois trabalhos. Se, por um lado, o objeto de estudo de
Smalley e Schaeffer é o mesmo, Schaeffer parece interessado em evitar as ciências exatas e a
acústica e, através de conceitos da filosofia, atingir algum tipo de reflexão objetiva a respeito
de sons.
Schaeffer não hesita em usar o termo ciência ao falar dos objetivos de seu trabalho. A
objetividade que Schaeffer procura não é a mesma da física. A escolha dos termos vem de
uma influência grande do pensamento de Husserl, e principalmente do seu conceito de
redução fenomenológica. A redução fenomenológica, ou époché, consiste em perceber objetos
por eles mesmos, eliminando informações espaço-temporais e focando na percepção em si.
Ao analisar uma mesa, por exemplo, nossa visão nos dá uma série de pontos de vista desta
mesa. Dependendo do ângulo em que olhamos para o objeto, temos uma visão diferente dele.
Porém, a percepção desta mesa não é meramente a soma de todos estes pontos de vista.
Percepção, do ponto de vista fenomenológico, é a compreensão da essência deste objeto a
partir da nossa imaginação. Este processo toma como ponto de partida os pontos de vista
apresentados, mas não se resume ao acúmulo dos mesmos. Compreender a mesa consiste em
se agarrar ao próprio ato da percepção. Ainda em torno do exemplo da mesa, Husserl afirma:
Partindo do exemplo dessa percepção da mesa, modificamos o seu objeto - a
mesa -, de maneira inteiramente livre, ao sabor da nossa fantasia,
23
preservando no entanto o caráter de percepção de alguma coisa: não importa
o que mas... alguma coisa. Começamos por modificar arbitrariamente - na
imaginação - sua forma, sua cor, etc., mantendo apenas o caráter de
"apresentação perceptiva". Em outras palavras, transformamos o fato dessa
percepção, abstendo-nos de afirmar seu valor existencial, em uma pura
possibilidade, entre outras, perfeitamente arbitrárias, mas no entanto puras
possibilidades de percepções. Transferimos dc qualquer forma a percepção
real ao reino das irrealidades, ao do "como se" que nos dá as possibilidades
“puras”, puras de tudo aqui que ligaria a um fato qualquer. (HUSSERL 2001,
p. 86)
Estas variações revelam justamente o que há de invariável (ou de essência) no objeto.
Não se trata de um modelo psicológico que considera percepção como impressões subjetivas
psicológicas de um estímulo físico objetivo (o objeto sonoro é formado na mente do
indivíduo), nem de um modelo baseado nas ciências naturais (o objeto sonoro existe no
mundo a priori). Como resume Chion:
Époché é o oposto de uma “fé ingênua” em um mundo externo, cheio de
objetos-em-si, as causas da percepção. É também o oposto do modelo
“psicológico” que considera percepções como impressões “subjetivas” de
um estímulo físico “objetivo”. Por último, ela difere da “dúvida metódica
cartesiana” na medida em que evita qualquer teoria sobre realidade ou
ilusão. (CHION 2009, P. 29) 9
Assim como Husserl rejeitava uma lógica fundamentada tanto em fatos empíricos do
mundo exterior quanto em generalizações através de experiências subjetivas (KANE 2007),
Schaeffer também buscava inaugurar um novo campo do conhecimento que, para falar de
música e sons, não se baseasse puramente no realismo da acústica nem na experiência
subjetiva da prática musical:
Devemos notar que existe, no mínimo, um vácuo entre acústica musical e
música propriamente dita, e é necessário preencher este vácuo com uma
ciência que descreva sons, juntamente com uma arte de escuta-los e que essa
disciplina híbrida fundamente nossos esforços musicais. (SCHAEFFER
1996, p. 30 apud KANE 2007, p. 16, tradução nossa.) 10
9
“Époché is the opposite of “naive faith” in an external world filled with objects-in-themselves, the causes of
perception. It is also the opposite of the “psychologist” model which considers perceptions as “subjective”
imprints of “objective” physical stimuli. Finally, it differs from “Cartesian methodical doubt”, in so far as it
avoids all theories about reality or illusion”.
10
“Let us note, at the very least, that a void exists between musical acoustics and music properly speaking, that
it is necessary to fill this void with a science describing sounds, joined to an art of hearing them, and that this
hybrid discipline clearly grounds our musical efforts “.
24
Este novo campo de conhecimento, de natureza híbrida, seria capaz de oferecer uma
taxonomia descritiva de sons. Schaeffer, então, propunha uma nova disciplina que não só nos
ajudaria a entender sons por um ponto de vista fenomenológico, mas também poderia ser a
base de uma nova maneira de compor e pensar composição musical.
Smalley, por sua vez, deixa claro que a espectromorfologia, apesar de baseada na
tipomorfologia de Schaeffer, não tem como objetivo fundamentar ou guiar a composição
musical. A espectromorfologia tem como tarefa descrever (e não classificar) sons e a
experiência da escuta. O autor não se baseia (pelo menos não explicitamente) em nenhuma
corrente filosófica, e tem como embasamento de sua teoria sua própria experiência musical11.
Não existe em seu trabalho nenhuma ambição de contrapor a objetividade da ciência com a
subjetividade da experiência psicológica. As idéias de Smalley, na prática, são enraizadas na
subjetividade de sua escuta e de seu trabalho composicional12 . Existe um grande ponto de
contato entre Schaeffer e Smalley em termos de objeto de estudo, e ambos se distanciam da
acústica em termos de método e objetivos ao mesmo tempo que se utilizam de sua
nomenclatura. Porém, Schaeffer propõe uma espécie de fenomenologia do objeto sonoro,
enquanto Smalley se preocupa com poéticas da criação musical, e principalmente na relação
espectromorfologia/contexto.
1.4.
SUBSTITUIÇÃO GESTUAL, LIGAÇÃO A FONTES E CAUSALIDADE
A discussão destes três conceitos começa, antes de tudo, pela escolha da tradução.
Causality, por ser um termo amplamente usando na filosofia e nas ciências naturais, não traz
nenhum tipo de problema em termos de tradução. Segundo consta no Dicionário de filosofia
de Nicola Abbagnano, a primeira “análise do sentido de noção de causa” (ABBAGNANO
2007, p. 125) está presente no livro I da Física de Aristóteles. O tratado de Aristóteles, escrito
no ano 350 a.C., parte do princípio que “conhecimento e ciência consistem em dar-se conta
das causas e nada mais são além disso” (ibid.). O conceito de causalidade se mantém como a
base das ciências naturais até a primeira metade do século XX, quando a física subatômica
11
Como dito anteriormente, Smalley, apesar de partir de sua experiência subjetiva, pretende alcançar algum tipo
de universalidade a partir de suas observações.
12
Schaeffer também se baseia na subjetividade de sua escuta. Porém, diferentemente de Smalley, Schaeffer usa
sua escuta para criar uma taxonomia descritiva dos sons.
25
passa a se ancorar nas noções de probabilidade e estatística ao invés de relações causais (ibid.,
p. 130). De uma maneira geral, causalidade nas ciências é definido como “a conexão entre
duas coisas, em virtude da qual a segunda é univocamente previsível a partir da
primeira” (ibid., p. 124), definição que não difere do sentido dado à palavra por Smalley em
sua espectromorfologia. Por este motivo, a tradução escolhida é causalidade, a mesma usada
dentro da filosofia e das ciências de maneira geral.
Diferentemente do termo causality, as traduções dos termos source-bonding e gesture
surrogacy apresentam algumas complicações. A tradução do termo source-bonding é um tanto
delicada. Bond pode significar tanto ligação, quanto contrato ou acordo. No contexto de
Smalley, bond (enquanto substantivo) é usado para se referir a uma conexão forte entre duas
coisas. Chemical Bond, por exemplo, se refere a força de atração entre átomos em uma
molécula ou cristal. O termo também é comumente usado para se referir ao elo existente entre
pais e filhos, ou a algum tipo de ligação amorosa entre duas pessoas. Bond, então, é usado
pelo autor para se referir a algum tipo de elo, laço, vínculo ou ligação extremamente forte
entre duas coisas. Enquanto verbo, to bond significa propiciar este elo. Source, no contexto de
Smalley, se refere a fonte. Source-bonding, então, diz respeito a algum tipo de elo que existe
entre um som acusmático e uma fonte imaginada pelo ouvinte (sentido reforçado pelo o uso
do gerúndio bonding, que faz o verbo atuar como substantivo). Baseado nesta interpretação, a
tradução escolhida para o termo foi ligação a fontes. O termo ligação, assim como bond, tem
uma gama de significados diferentes e permite diferenças interpretativas de maneira
semelhante ao termo original.
No caso de gesture surrogacy, o termo gesture pode ser traduzido como gesto, mas
alguns problemas surgem ao tentarmos achar uma tradução adequada a surrogacy. O termo
diz respeito ao ato de substituir algo ou alguém, ocupando suas funções em um determinado
contexto. Por exemplo, surrogacy pode se referir a maternidade por substituição, situação em
que uma mulher aceita engravidar com o objetivo de ter seu filho biológico criado por outra
pessoa. Neste sentido, gesture surrogacy se refere a algo que substitua um gesto, ou mais
especificamente, como a nossa imaginação, ao interpretar sons acusmáticos, substitui a
ausência de visualização de gestos físicos com um gesto imaginado. Baseada nesta
interpretação, a tradução escolhida foi substituição gestual.
26
Smalley argumenta que da mesma maneira que podemos interpretar sons em termos de
causa-fonte-espectromorfologia, o caminho inverso também é possível. O gesto (a causa) é
uma trajetória de energia-movimento, que excita um corpo qualquer, que por sua vez produz
espectromorfologias. Ao mesmo tempo, a partir de um som qualquer, conseguimos deduzir
sua fonte e o conteúdo gestual analisando seu conteúdo espectromorfológico. Apesar de
conseguirmos deduzir algum tipo de causa por trás de qualquer som escutado, a clareza desta
causa varia conforme o som. A respeito destes diferentes níveis de ambiguidade, Smalley
afirma:
Existe uma diferença considerável, em termos de identificação, entre uma
afirmação sobre textura que diz ‘são pedras caindo, uma segunda que diz
‘isto soa como pedras caindo’, e uma terceira que diz ‘isto soa como se
estivesse se comportando como pedras caindo’. As três afirmações são
conexões extrínsecas, mas em níveis crescentes de incerteza e afastamento
da realidade. (SMALLEY 1997, 110, tradução nossa). 13
Como já foi dito, o conceito de substituição gestual diz respeito ao processo de
relacionarmos gestos a sons que escutamos de maneira acusmática. Smalley , em seu artigo de
1997, identifica quatro tipos de substituição gestual: de primeira ordem, segunda ordem,
terceira ordem e ordem remota (SMALLEY 1997, 111-112)14. A substituição de primeira
ordem se refere a sons manipulados de maneira não instrumental, objetos de trabalho ou de
recreação sendo manipulados de forma simples, no qual nós conseguimos claramente
identificar uma ação humana ou algum outro tipo de causa/gesto. Geralmente em música
instrumental sons desta ordem ainda não são considerados musicais. Substituição de segunda
ordem diz respeito a sons como os tradicionalmente associados à música instrumental, em que
os sons são manipulados com alguma habilidade específica, com pequenas variações de
dinâmica, timbre, altura, etc. Substituições de terceira ordem são aquelas em que o gesto é
imaginado, há um certo grau de incerteza a respeito da origem do som, tanto do gesto quanto
da fonte. Incluem-se nessa categoria sons com ressonâncias que se comportam de maneira
inesperada, sons com ataques ambíguos, entre outros. Em substituições de ordem remota,
temos sons que não têm qualquer tipo de vestígio humano ou causa/fonte reconhecível, sons
13
“There is quite a difference in identification level between a statement which says of a texture, ‘It is stones
falling’, a second which says, ‘It sounds like stones falling’, and a third which says, ‘It sounds as if it’s
behaving like falling stones’. All three statements are extrinsic connections but in increasing stages of
uncertainty and remoteness from reality”.
14
Em inglês, First order Surrogacy, Second Order Surrogacy, Third Order Surrogacy e Remote Surrogacy.
27
em que “fonte e causa são desconhecidas, e impossíveis de se conhecer, e qualquer tipo de
ação humana desaparece” (SMALLEY 1997, p. 117).
No artigo de 1986, Smalley identifica apenas três tipo de substituição gestual, e suas
definições diferem em alguns aspectos em relação as definições apresentadas no artigo
revisado em 1997. Em 1986, o autor identifica apenas três níveis de substituição gestual:
primeiro, segundo e remoto. Gestos primários ou culturais (em um sentido mais amplo) não
são mencionados. O primeiro nível de substituição gestual consiste no reconhecimento de
gestos instrumentais e o segundo no reconhecimento de gestos imaginados ou ambíguos,
porém sem um correlato instrumental específico. Em 1997, o autor amplia a terminologia
acrescentando um nível anterior ao gesto instrumental. Segundo Smalley, esta mudança
ocorreu quando, já na década de 1990, foi publicar o artigo original em francês, e o autor
achou que seria uma boa ocasião para “revisar algumas idéias, e ampliar outras”, e a “versão
revisada [de substituição gestual] parecia mais lógica” (SMALLEY 2012, p. 3)15.
A idéia de substituição gestual é importante para a compreensão de música
eletroacústica, um vez que boa parte do repertório de música acusmática explora as idéias de
substituição de terceira ordem e substituição remota. Até mesmo sons tradicionalmente
associados à música instrumental, quando inseridos em um contexto acusmático com sons de
outra natureza, adquirem um grau de ambigüidade que muitas vezes requer uma terminologia
mais específica para sua descrição. Também é importante diferenciar um gesto qualquer de
um gesto musical. A fronteira entre os dois fenômenos não é muito bem definida, uma vez que
pode-se escutar um som qualquer deixando de lado sua referencialidade a fontes (como, por
exemplo, através da escuta reduzida Schaefferiana), como também se pode atrelar um valor
estético ao ato de identificar fontes de sons, sejam as fontes ambíguas ou não. O próprio
Smalley admite a dificuldade entre separar o que chamamos de escuta cotidiana de escuta
musical
Se a escuta musical e a escuta cotidiana estão separadas ou intimamente
ligadas depende da atitude de escuta adotada. Eu posso escutar sons do
cotidiano de uma maneira “musical” caso seja minha vontade – isto é, não
apenas escutá-los devido às informações de ligação a fontes neles contidos.
E, de fato, enquanto compositor eu tenho o hábito de fazer isto. Um dos
15
Neste trabalho, a nomenclatura usada será a da versão de 1997.
28
papeis do compositor acusmático, acredito, é revelar o que há de musical nos
sons que nos cercam. (SMALLEY, 2012, p.2)16
Vale mencionar que existe uma forte ligação entre os conceitos de ligação a fontes e
substituição gestual. A percepção de gesto necessariamente nos leva a fazer algum tipo de
ligação à fonte sonora. Uma fonte sonora depende sempre de duas coisas: um objeto qualquer
e uma perturbação à este objeto. Um gesto (real ou imaginado) é a perturbação que faz com
que o objeto emita um som. A natureza e comportamento desta perturbação pode ser
percebida e explicada através de sua espectromorfologia. Segundo Smallley:
Gesto é ligado à fonte (source-bonded). Porém, vale lembrar que a ligação à
fonte trata tanto de causas como fontes. […]. O gesto é uma causa. E, claro,
gesto é apenas um tipo de causa. (SMALLEY 2012, p. 2, tradução nossa) 17
Michael Pedersen (2011) propõe ampliar a terminologia de Smalley separando causa e
fonte como fenômenos distintos, e acrescentando uma nova categoria que ele chama de
substituição transgressiva (transgressive surrogacy). Para o autor, existem gestos
substituintes de causa e gestos substituintes de fonte, e ambos podem ser classificados como
sendo de primeira, segunda, terceira ordem, ou ordem remota. Uma categoria particular de
sons, que se comportam de uma maneira que o autor descreve como substituição
transgressiva, se refere a sons causados pelo desgaste de mídia específica, onde causa e fonte
se confundem. Pedersen cita alguns exemplo: CDs podem ser riscados, fitas k7 com o tempo
passam a ter um chiado particular, arquivos mp3 podem ser corrompidos. Para o autor, todos
os sons produzidos por estas situações não constituem substituição gestual, pois não fazem
parte do som gravado, são sons gerados dentro do próprio ambiente da escuta, e o ouvinte
releva estes sons com o intuito de preservar o fluxo da experiência musical. Porém, quando
estes sons são intencionalmente incluídos na composição, temos um caso de substituição
gestual. Schaeffer já havia abordado esta categoria de sons em sua discussão sobre acidente/
incidente. Incidente seriam sons que, devido à algum tipo de falha técnica, perturbam a escuta
de um som principal (por exemplo, “clicks” acidentais ou o chiado de um disco de vinil mal
16
“Whether daily listening and musical listening are separate or closely allied depends on the listening attitude
adopted. I can listen to daily sounds in a “musical” mode if I wish – that is, not just listen to them for the
source-bonded information they carry. Indeed, as a composer, I have a habit of doing so. One of the
acousmatic composer’s roles, is, I think, to unveil the musical in the sounds around us”.
17
“Yes, gesture is source-bonded. Bear in mind, though, that source bonding is concerned with both sources and
causes. […]. A gesture is a cause. And, of course, gesture is only one type of cause”.
29
conservado). Apesar destes sons serem indesejáveis, eles ainda assim são uma parte
fundamental do som e, consequentemente, relevantes para a nossa escuta (CHION 2009, p.
156). O autor chama de acidente uma perturbação que assuma um papel secundário em um
som qualquer. Um pequeno ruído percussivo no final de uma arcada longa de violoncelo, ou
uma pequena vibração indesejada em um címbalo. Diferentemente do incidente, a causa de
um acidente não é técnica (no sentido tecnológico). 18
Se por um lado as observações de Pedersen de fato enriquecem o pensamento de
Smalley, por outro, correm o risco de reduzir a nossa experiência auditiva a uma taxonomia
conceitual excessiva. Suk Jun Kim observa que o próprio trabalho de Smalley já sofre deste
problema ao “semantizar a percepção auditiva, codificando a nossa experiência sonora em um
sistema semântico, precisamente o fenômeno hermenêutico que Smalley tentou evitar” (JUN
KIM 2008, p. 97). Ampliar a discussão sobre substituição gestual não consiste
necessariamente em criar novas categorias para sons que não se encaixam em nenhuma das
existentes; simplificar a carga conceitual da discussão, e discutir quais as bases metodológicas
da descrição da nossa experiência auditiva como uma forma de conhecimento válida é
também um caminho possível. Neste sentido, o trabalho proposto aqui é um tanto distinto do
de Pedersen, apesar de tratar dos mesmos conceitos.
Os conceitos de Smalley abordados neste trabalho mantêm um certo diálogo com a
produção acadêmica de música eletroacústica dos últimos anos. No caso de Schaeffer, o seu
conceito de intencionalidade tem uma estreita relação com a causalidade e ligação a fontes, e
os dois últimos níveis de substituição gestual (de terceira ordem e de ordem remota) induzem
o ouvinte a um tipo de escuta semelhante à escuta reduzida de Schaeffer. Toda a metodologia
de Smalley, a da descrição metafórica da experiência auditiva, tangencia a metodologia de
Schaeffer. Luke Windsor, em seu artigo Frequency structure in electroacoustic music:
ideology, function and perception (1997), ressalta o papel fundamental que o reconhecimento
de fontes sonoras tem na estruturação (por parte do ouvinte) de música eletroacústica.
Segundo o autor, “se escutamos dois sons e percebemos as suas fontes, então tal percepção
não apenas pode dominar a estória que estes sons contam, mas também ser responsável pela
motivação de os perceber como estruturalmente conectados” (WINDSOR 1997, p. 97). O
18
A discussão sobre acidente/incidente se insere em uma discussão maior do autor chamada morfologia externa,
que tem como objetivo descrever/catalogar sons que, apesar de serem percebidos como um único objeto, são
formados por elementos distintos. Ver CHION 2009, p. 156-158.
30
pensamento de Windsor é similar ao de Smalley 19, a diferença entre os dois é que enquanto
Smalley está preocupado em descrever a nossa experiência, Windsor, assim como Schaeffer,
tem como objetivo criticar algumas tendências da composição musical do século XX que se
baseiam em dados da acústica musical, ou em modelos matemáticos influenciados pelo
serialismo. Windsor critica tanto a idéia de que a música pode se referenciar a si mesma o
tempo todo, sem recorrer a qualquer tipo de ligação extrínseca, quanto a idéia de que seja
possível uma música que ignore qualquer relação interna entre as alturas e se constrói
meramente referenciando sons cotidianos. O que Windsor busca é justamente achar algum
tipo de meio termo (tanto teórico, quanto prático) para a composição musical:
Tal visão polarizada sobre material sonoro pode nos levar a acreditar que
apenas estruturas musicas tradicionais, ou análogas a elas, são relevantes
(e.g. Lerdahl 1988); ou, ao contrário, uma polêmica rejeição de tais
estruturas (e.g. Wishart 1985) e de sua dominância sobre o discurso musical.
Admitir que sons musicais e sons do cotidiano são meramente rótulos para
como usamos e escutamos sons, ao invés de categorias epistemológicas
distintas, permite uma abordagem mais flexível: não é somente o material
sonoro que determina isto, mas a nossa abordagem e o contexto em que é
colocado. (WINDSOR 1998, p. 77, tradução nossa)20
Por morar em uma rua ao mesmo tempo estreita e movimentada, escuto diariamente
pequenos acordes formados por 3 ou 4 buzinas de carro, separadas por poucos metros. Os
intervalos que surgem entre as buzinas podem tanto ser ouvidos como sons musicais, quanto
cotidianos (neste caso, desconsiderando as relações de consonância/dissonância que surgem
entre as alturas definidas). Os intervalos que surgem entre as buzinas são em algumas
ocasiões ouvidos meramente como um adensamento da paisagem sonora, não prestando
atenção se os intervalos formados são consonantes ou dissonantes e extraindo daquele evento
sonoro apenas a informação de que a rua está movimentada. Em outras ocasiões, escuto os
mesmos sons como pequenos acordes formados espontaneamente. E, num mesmo instante,
posso oscilar entre uma percepção e outra, ou ainda permanecer em uma terceira em que
19
Windsor, apesar de não citar Smalley diretamente, aponta o autor como um dos seus referenciais teóricos.
(WINDSOR, 1997, p. 77 e p. 79)
20
“Such a polarised view of sonic material can lead to either a belief that only traditional musical structures or
their analogues will do (e.g. Lerdahl 1988), or conversely, a polemic rejection of such structures (e.g. Wishart
1985) and their domination of musical discourse. Accepting that musical and everyday sounds are merely
labels for how we use or hear sounds rather than epistemological categories allows for a rather more flexible
approach: it is not sound material alone which determines this, but our approach to it, and the context in
which it is placed”.
31
estabeleço uma relação causal entre o aumento do número de carros e os intervalos que
surgem nas buzinas, e percebo que os sons dos carros (do cotidiano) formaram um acorde
(musical). Na prática, oscilo entre estas três percepções, e focar em uma ou outra é na maioria
das vezes uma questão de escolha ou intenção. Quando sons do cotidiano são inseridos em um
contexto musical, a fronteira entre estes três tipo de escuta se torna ainda mais borrada, e o
que determina qual delas vai se sobressair é, novamente, a intenção do ouvinte21.
Já Pasoulas, em seu artigo Temporal Associations, Semantic Content and Source
Bonding (2011), se propõe a analisar como a percepção de tempo é influenciada pelo
significado semântico e características espectromorfológicas de eventos sonoros. O autor usa
como referencial teórico a espectromorfologia de Smalley e a análise do cenário auditivo, de
Albert Bregman (1990). A teoria de Bregman se propõe a compreender, por um viés da
psicoacústica, como a mente consegue “construir percepções independentes de eventos que
geram sons (sound-generating events), apesar das evidências [sonoras] estarem
misturadas” (BREGMAN 2008). A primeira coisa que fazemos, aparentemente, é analisar e
decompor o sinal em um grande número de componentes espectrais. Bregman se propõe a
analisar como, através de diferenças de tempo e fase entre os sinais, conseguimos identificar
quais sons são provenientes de quais fontes. Para o autor, uma evidência de que temos a
capacidade de fazer isso é que, caso contrário, “combinaríamos sílabas de dois sujeitos
falantes, criando palavras falsas” (BREGMAN 2008).
Tendo como exemplo o som de um sino, Pasoulas afirma que as informações
deduzidas pelo ouvinte a respeito desta fonte sonora não contêm apenas informações físicas
(no caso do sino: tamanho, espessura, localização), mas também referências à religiosidade e
ao sagrado. Existe uma carga de informação, obtida pelo som, que faz referência a fatores
21
Discussão semelhante está presente na abertura de O Cru e o Cozido de Lévi-Strauss (LÉVI-STRAUSS 2004,
p. 19-52), onde o autor faz uma divisão clara entre os sons do cotidiano (que ele chama de ruído) e sons
musicais. Para Lévi-Strauss, existem dois níveis de articulação na linguagem musical. O primeiro é constituído
de pequenos elementos que, não contendo nenhum significado em si, têm o potencial para quando combinados
de certa maneira produzir significado, semelhante aos fonemas na língua falada. Neste primeiro nível estariam
as notas musicas. O segundo nível seria onde o significado finalmente se estabelece. Porém, o autor afirma que
ruídos, que são a paleta de sons da música concreta, não conseguem estabelecer relações significativas entre si
no primeiro nível, impossibilitando o surgimento de um segundo. A única solução para este problema seria se a
música concreta trabalhasse apenas com sons não processados. Porém, ao fazer isso, seu repertório ficaria
pobre e limitado (ibid., p. 43-50). Neste mesmo trecho, Lévi-Strauss também faz uma crítica semelhante ao
serialismo. Vale notar que o livro, originalmente publicado em 1964, é anterior ao Traité des objets musicaux
(SCHAEFFER 1966). Não cabe dentro dos objetivos deste trabalho fazer uma análise detalhada da crítica de
Lévi-Strauss à música concreta, e nem discutir de que maneira a sua argumentação pode ser inserida na
espectromorfologia de Smalley. Para uma elaboração mais detalhada da relação entre as idéias de Lévi-Strauss
e a música eletracústica, ver WISHART 1986, p. 52-56 e WISHART 1996, p. 167-169.
32
extra-musicais. A quantidade de informação a respeito de fatores extra-musicais depende, em
parte, da clareza na percepção da fonte sonora:
Quanto menos um som parece ser relacionado com uma fonte-causa
conhecida, mais ambíguas são suas denotações, e mais conotações serão
influenciadas pela imaginação do ouvinte, e pelo contexto da composição.
(PASOULAS 2011, 63, tradução nossa) 22
Além de informações sobre fatores culturais ou extra-musicais, sons acusmáticos
possuem uma grande quantidade de informação que se refere à temporalidade. Pasoulas
destaca três categorias a que essa informação temporal pode pertencer: cenário temporal
(temporal setting), duração alusiva (allusive duration) e ordem cronológica (chronological
order). Um som carrega informações sobre o cenário temporal quando informações presentes
neste som revelam um ponto no tempo em que este foi gravado. Sons de cigarras usados em
Presque rien No. 1,23 de Luc Ferrari (1970), junto com os sons ambientais, nos revelam que
aqueles sons ocorreram em algum momento específico do dia. Sons de atividade humana,
como crianças brincando e movimentação intensa de carros, nos informam que estes sons
também ocorreram durante o dia. Estas informações ficam prejudicadas caso a ambientação
(em oposição ao som principal) seja omitida:
No caso dos grilos e das cigarras, assim como em vários casos de gravação
de sons ambientais, o cenário temporal está incorporado no cenário espaçotemporal, uma vez que informação sobre tempo e espaço está incorporado no
material sonoro. O cenário temporal não pode ser separado de seu espaço.
(PASOULAS 2011, p. 64, tradução nossa) 24
Mais será dito sobre Presque Rien e suas implicações temporais adiante. Por agora,
vale apenas ressaltar que as categorias noite/dia que podem ser referenciadas a partir de sons
gravados também têm, para o autor, conotações musicais culturalmente estabelecidas:
Por exemplo, o reconhecimento de dia e noite é associado a claro versus
escuro, visão clara versus visão obscurecida, seguro versus ameaçado ou
vulnerável, acordado versus dormindo, e agitado versus calmo. Se
22
“The less a sound appears to be connected with a known source-cause, the more ambiguous the denotations
are, and the more the connotations are left to be influenced by the imagination of the listener and the
particular context of a composition”.
23
“Quase Nada No. 1 ‘o nascer do dia à beira do mar’ ”
24
“In the case of cicadas and crickets, as in many cases involving recorded environmental sounds, the temporal
setting is incorporated into a spatio-temporal setting, because information about time and space is embedded
in the sonic material. The temporal setting cannot be separated from its space”.
33
considerarmos a última justaposição, conseguimos detectar similaridades
entre agitado/calmo e estados opostos de densidade de material sonoro.
(PASOULAS 2011, p. 64, tradução nossa) 25
A duração alusiva é uma característica que pode estar presente em sons quando eles
enfatizam uma certa simbologia da permanência. O autor cita o exemplo de Murray
Schaeffer: o som do mar é um bom exemplo de algo que carrega uma certa carga simbólica do
eterno. Porém, para o autor, um contexto musical adequado é necessário para que esta
característica do som seja ressaltada:
[…] A associação entre o mar e o duradouro não significa simplesmente que
o ouvinte irá se referir a esta característica temporal ao escutar sons do mar.
O que determina que a referência à característica temporal da “duração
alusiva” ocorra é a composição, e o fato do ouvinte se sentir atraído a isto.
Estruturas adequadas são necessárias para que a simbologia da permanência
seja enfatizada. (PASOULAS 2011, 65, tradução nossa). 26
O autor continua sua exposição usando o exemplo de uma peça sua, Vessel@Anchor
(2005). A peça pretende explorar a percepção de duração do ouvinte através de gestos longos,
texturas estáticas e gestos repetitivos. A última parte da peça, que dura dois minutos, é
percebida, segundo o autor, como muito mais longa do que de fato é. Isso ocorre devido á
inclusão de sons que remetem ao mar através de “gestos lentos e suas formas (morfologias)
que enfatizam o perfil da ondulação e a imagem de ondas” (PASOULAS 2011, 63). Para o
autor, as referências extrínsecas de um som carregam dentro de si informação a respeito de
duração e percepção psicológica do tempo.
E por último, Pasoulas define ordem cronológica da seguinte maneira:
Associações podem unir eventos sonoros sucessivos e gerar uma linearidade
temporal, uma narrativa, através do desenvolvimento natural e de interrelações. Eventos podem se conectar em ordem cronológica […]
25 “For
example, recognition of day and night is associated with light versus dark, clear versus obscured vision,
safe versus threatened or vulnerable, awake versus asleep, and busy versus calm. If we consider the last
juxtaposition, we can detect similarities between busy/calm and opposite states of sonic material densities”.
26
“[…] the association between the sea and its lasting duration does not simply mean that the listener will refer
to that particular temporal characteristic while listening to sea sounds. Whether a reference to the temporal
quality of ‘allusive duration’ is made depends on how this aspect is used in a composition, and whether the
listener is drawn to that aspect. Suitable structures are needed in order to emphasise this symbolism of
permanence”.
34
Associações podem vincular temporalmente material sonoro e são parte da
formação de escalas de tempo. (PASOULAS 2011, p. 66, tradução nossa)27
Além da criação de narrativa através de sons, também é possível interromper ou
perturbar narrativas conhecidas. Seqüências facilmente identificáveis (como, por exemplo, a
seqüência de sons em um ovo sendo frito) podem ter seus elementos trocados de lugar. Esta
perturbação (disturbance) da ordem dos eventos depende inteiramente da familiaridade do
ouvinte com a seqüência original. Além disso, sons que são espectromorfologicamente
similares podem se agrupar e formar algum tipo de narrativa. Por exemplo, em uma peça que
tenha vários sons diferentes de água, o ouvinte pode, ou tem uma certa inclinação a agrupar
esses sons em uma única narrativa, mesmo que eles ocorram em momentos diferentes.
O estabelecimento de uma cronologia dos eventos, por parte do ouvinte, tem um certo
caráter imprevisível, em que as experiências e cultura do ouvinte cumprem um papel
importante:
Às vezes relações extra-musicais e experiências autobiográficas podem unir
imagens sonoras de maneiras inesperadas, assim reordenando sua estrutura,
resultando em uma interpretação subjetiva do trecho musical. (PASOULAS
2011, 67, tradução nossa) 28
As idéias de Pasoulas a respeito de cenário temporal, duração alusiva e ordem
cronológica são influenciadas pelo conceito de ligação a fontes de Smalley, o próprio autor
aponta algumas semelhanças entre as duas discussões. Porém, os conceitos de causalidade e
substituição gestual de Smalley também podem enriquecer a discussão de Pasoulas. Tanto os
conceitos de Pasoulas quanto os de Smalley tentam de alguma maneira descrever o processo
perceptivo. Analisando trechos de algumas peças do repertório de música eletroacústica,
percebemos claramente como se dá a interação entre as idéias de ambos os autores.
Novamente, Presque Rien No 1 ajuda a exemplificar um conceito, neste caso o que
Pasoulas chama de cenário temporal. Ao analisar os aspectos rítmicos de uma obra como esta,
a tentativa de tentar representar a sucessão dos eventos através do ritmo métrico é,
27
“Associations can link successive sound events together and generate a temporal linearity, a narrative,
through natural development and interrelations. Events may connect to each other in a chronological order,
which is the third temporal quality addressed in this paper. Associations bind material together temporally and
are involved in the formation of timescales.”
28
“Sometimes, extra-musical relationships and autobiographical experiences may link sound images in
unexpected ways thus rearranging their structure, resulting in a personalised interpretation of a musical
section”.
35
obviamente, ineficaz. Mas mesmo que a palavra ritmo em seu sentido estrito seja um pouco
inadequada, podemos falar em temporalidade. O barulho de motor de barco, juntamente com
o som de crianças conversando em 6m00s, deixa claro que aqueles sons ocorrem durante o
dia; as implicações rítmicas (em termos de densidade de texturas) disto já foram expostas
anteriormente. Porém, algo não mencionado por Pasoulas diz respeito à natureza dos gestos
diurnos e noturnos. Não é apenas a referencialidade que nos revela informações sobre
momento do dia em que os sons foram gravados, mas também a intensidade dos gestos físicos
que geram estes sons. Madrugada e noite são essencialmente mais silenciosas que manhã e
dia, e gestos pouco intensos reforçam as particularidades destes períodos mais calmos.
Portanto, a temporalidade não está apenas relacionada ao reconhecimento de fontes, mas
também ao que Smalley chama de substituição gestual, uma vez que reconhecemos gestos
como predominantemente diurnos e outros como predominantemente noturnos. Em uma peça
minha, intitulada Em um Quarto, com Cabos e Vista (2011)29 , tentei explorar em alguns
trechos as relações entre ritmo, tempo e referencialidade. A peça é composta por notas longas
sintetizadas, gravações feitas de crianças brincando na Praça São Salvador (localizada na zona
sul do Rio de Janeiro), e gravações de objetos do cotidiano (papel sendo amassado, um copo
de metal caindo, gravações de eletrodomésticos, entre outras coisas). A peça dura cerca de 9
minutos, e inicia-se com uma nota longa, e um crescendo de sons da rua. Quando os sons da
rua atingem o seu volume máximo (0m47s), eles subitamente param, sendo interrompidos por
sons de copos metálicos caindo e portas fechando. A atividade rítmica neste trecho (0m48s a
0m54s) contrasta com o que veio antes, os gestos são mais marcados, e poderiam ser
reduzidos (caso fosse a vontade do analista) à notação métrica. Em 0m54s estes gestos
cessam, e o pedal do início reaparece, juntamente com gravações de crianças brincando na
praça. Dois conceitos de Smalley podem ser usados para descrever o que acontece entre
0m54s e 1m05s: o som pedal tem um caráter sintético 30, e é o que Smalley chamaria de
substituição gestual de terceira ordem. Algum tipo de ação humana pode ser imaginada como
geradora deste som, e seu envelope dinâmico é parecido com o de arcadas longas em seções
de cordas; trata-se de um som, de certa maneira, lento. Por outro lado, a atividade das crianças
29
Outros aspectos desta peça serão discutidos no capítulo seguinte.
30
Apesar de parecer sintetizado, o som possui uma origem concreta. Ele foi obtido através da manipulação de
gravações de pedais de distorção ligados em um loop de realimentação e sons de cabos ligados em apenas um
dos pontos da placa de som, que gera um hum estático de aproximadamente 480hz
36
na praça nos coloca em um modo de escuta em que a dedução das fontes é fundamental, e o
grande número de eventos sonoros, somados ao fato destes sons serem diurnos, faz com que
esta textura seja mais ritmicamente intensa. Ocorre, então, um contraste rítmico entre as duas
texturas. Se entendermos as relações rítmicas meramente como sucessão de eventos em uma
linha de tempo, esse contraste não existe. Porém, claramente existe uma sobreposição de
elementos distintos, e conceitos como cenário temporal, substituição gestual e ligação a fontes
auxiliam na descrição deste contraste.
Algo parecido ocorre na peça Le Vertige Inconnu (1993), de Gilles Gobeil. A peça, que
dura cerca de oito minutos, mescla sons ambientais, sons de máquina e sons sintéticos. O
início da peça exemplifica perfeitamente as diferenças entre cenário temporal e ordem
cronológica. A peça inicia com uma seqüência de sons de máquina, jatos de vapor, e algo que
soa como pedaços de madeira quase rachando. Todo evento que acontece parece ser resultado
do evento anterior; a forte causalidade entre os eventos dos primeiros nove segundos acabam
por agrupá-los em um único bloco. Em seguida temos uma súbita interrupção destes sons, e
cinco segundos de quase silêncio. Em 0m16s, uma nova sequência de sons mecânicos surge,
novamente com uma forte causalidade entre os eventos. A causalidade presente reforça o que
Pasoulas chama de cronologia, e estes dois fatores agrupam os eventos sonoros em um único
bloco. Também é curioso que logo após estes dois primeiros blocos de sons mecânicos, o
compositor usa uma gravação de campo com sons de cigarras, criando um contraste com a
primeira cena, que tem um certo caráter diurno. Os primeiros 45 segundos desta peça
demonstram que, por mais que possam ser separados em diferentes categorias para fins
teóricos, causalidade, ordem cronológica e cenário temporal são conceitos que se misturam e
se complementam durante o processo de escuta.
Outro exemplo de como estes conceitos se misturam é a peça Kit’s Beach Soundwalk
(1989), de Hildergard Westerkamp. A peça, citada pelo próprio Pasoulas em seu artigo,
consiste em um passeio pela praia, narrado pela própria compositora. À primeira instância, a
paisagem sonora parece bastante fiel, mas aos poucos a compositora começa a amplificar e
filtrar certos sons. Porém, o que há de curioso nesta peça é o fato da compositora explicitar
verbalmente alguns dos procedimentos técnicos utilizados. A cronologia dos eventos nesta
peça é de uma natureza completamente diferente em relação ao exemplo de Gobeil. O que há
de narrativo em Le Vertige Inconnu são as relações de causalidade entre eventos acusmáticos,
37
já Kit’s Beach Soundwalk é uma peça literalmente narrada. Westerkamp explica o que está
acontecendo em cada um dos momentos, e as expectativas criadas em relação aos eventos
seguintes estão mais relacionadas ao texto da compositora do que a fatores puramente
musicais. A praia que está sendo gravada é dentro de uma cidade, e a compositora, em 3m08s,
filtra os sons da cidade. Ela avisa o ouvinte que isto está acontecendo, e que foi editado em
um estúdio. Pasoulas destaca este trecho como um bom exemplo de duração alusiva; o
contraste entre os sons da cidade e os sons da praia (e depois apenas os sons da praia) ressalta
o caráter eterno/duradouro destes sons. Enquanto os sons da cidade se modificam
inteiramente de tempos em tempos, o som do mar é sempre constante. Porém, os sons do mar
e a narração da compositora, nesta peça, se complementam; é impossível falar de forma ou
textura separando os dois fatores. Assim com é impossível separar, no caso desta peça,
duração alusiva de ordem cronológica. A narração de Westerkamp cria uma expectativa na
seqüência dos eventos e ao mesmo tempo reforça a simbologia do mar.
Smalley não fala explicitamente sobre temporalidade em seu trabalho, porém há vários
fatores implícitos sobre ritmo e tempo em seus textos. O autor evita separar os vários aspectos
da experiência musical, e seu discurso sobre tempo e ritmo acaba sendo incorporado em seu
discurso geral. Pasoulas, ao relacionar o conceito de ligação a fontes de Smalley com as idéias
a respeito da análise do cenário auditivo, de Albert Bregman, enriquece o conceito de
Smalley. No entanto, dentro do conjunto teórico de Smalley, ligação a fontes é um conceito
que dificilmente pode ser separado de substituição gestual e causalidade. Tomando como
ponto de partida exemplos musicais do repertório da música eletroacústica, e tentando aplicar
as idéias de Smalley e Pasoulas na descrição destes trechos, fica claro de que maneira os
conceitos de Smalley se sobrepõem, e como questões sobre temporalidade se encaixam na
discussão.
O autores citados acima são apenas alguns exemplos de idéias semelhantes a de
Smalley que, quando contrapostas aos conceitos apresentados em sua espectromorfologia,
podem enriquecer os potenciais teóricos e práticos do sistema. Na próxima subseção, a
espectromorfologia de Smalley será usada para descrever/analisar uma obra canônica da
música eletroacústica: Étude Violette, o terceiro estudo dentro dos de Cinq Études de Bruits
de Pierre Schaeffer. No capítulo seguinte, os conceitos da espectromorfologia de Smalley
serão discutidos em paralelo com o meu próprio trabalho composicional.
38
1.5.
ANÁLISE ESPECTROMORFOLÓGICA DE ÉTUDE VIOLETTE, DE PIERRE
SCHAEFFER
Os Cinq Études de Bruits de Pierre Schaeffer, feitos em 1948, marcam o início da
música concreta. Os estudos foram as primeiras composições de Schaeffer, e foram realizados
com técnicas inovadoras para a época. Como descreve Palombini:
Trabalhando num estúdio de rádio um pouco modificado, Schaeffer
empregou um prato para gravação de acetatos, quatro pratos para
reprodução, um misturador de quatro canais, filtros, uma câmara de eco e
uma unidade móvel de gravação. As técnicas empregadas envolviam
variações das velocidades de gravação e reprodução, amostragem e edição
de sons por manipulação do braço, fechamento em anel do sulco gravado,
movimentação do disco em sentido reverso, modulações de intensidade,
fade-ins e fade-outs. (PALOMBINI 1999)
As idéias exploradas nestes estudos viriam a ser desenvolvidas mais tarde em outras
obras, e principalmente em sua principal obra escrita, Traité des objets musicaux (1966). A
técnica do sulco fechado, usada pela primeira vez nestes estudos, foi uma das práticas mais
bem sucedidas de Schaeffer do ponto de vista da pesquisa musical. A técnica consiste em
fechar um pedaço do sulco de um disco nele mesmo, criando uma espécie de anel, fazendo
com que uma vez que a agulha entrasse neste trecho ele seria repetido indefinidamente. Com
a repetição de pequenos trechos, relações causais e anedóticas do som ficariam em segundo
plano na nossa percepção, dando espaço ao que Schaeffer se refere como a escuta reduzida,
i.e. uma a “atitude de escuta que consiste em escutar o som por si mesmo, como um objeto
sonoro, através da remoção de suas fonte real ou imaginada e os significados que que podem
transmitir” (CHION 2009, p. 30). Para Schaeffer, evitar da tendência natural de buscar fontes
e significados durante a escuta de sons permite “clarificar muitos fenômenos implícitos em
nossa percepção” (ibid., p. 31).
O terceiro destes estudos, Étude Étude Violette, foi feito através da manipulação de
sons gravados de piano, com as técnicas mencionadas acima. O estudo foi estreado na Rádio
Nacional da França em 5 de outubro de 1948, com comentários de Schaeffer. A descrição do
compositor sobre a obra durante esta transmissão é focada em grande parte nos aspectos
técnicos, tentando informar o ouvinte sobre a maneira como aqueles sons foram produzidos:
O estudo que iremos escutar a seguir tem, como sua única fonte, os ruídos e
sons que podem ser extraídos de um piano. Uma atenção particular foi
dedicada para excluir todas as maneiras convencionais de se tocar o piano,
39
não por princípio, mas para deixara demonstração mais vívida. A
composição foi baseado na técnica do “sulco fechado” (criando loops em um
disco fonográfico); ela consiste em isolar fragmentos sonoros e figuras
rítmicas em andamentos e alturas diferentes, para ser usados estruturalmente
com diferentes técnicas: reverberação, playback reverso, etc. (SCHAEFFER
1997, p. 69, tradução nossa)31
Esta primeira descrição tecnológica de Schaeffer é uma maneira possível de se falar
sobre a obra, porém ela descreve apenas como os sons foram produzidos e diz muito pouco a
respeito de como estes sons são percebidos. Em seguida, Schaeffer fala brevemente dos
aspectos formais e gestuais da peça:
O estudo compreende um primeiro movimento rítmico ao qual sucede-se um
movimento melódico lento, em seguida uma retomada de variações rítmicas,
de novo cortadas por um motivo lento onde são exploradas os recursos de
três tessituras diferentes. O estudo termina em uma retomada rítmica que
lembra o tempo inicial. (SCHAEFFER 1997, p. 69, tradução nossa)32
Schaeffer é breve ao falar da música propriamente dita. Apesar da preocupação que
mais tarde viria a ter em seu tratado de descrever e classificar os vários tipos de objetos
sonoros através da escuta reduzida , Schaeffer fala pouco sobre o desenvolvimento do
material musical de Étude Violette do ponto de vista puramente perceptivo. Ele descreve o
desenvolvimento do material com termos um tanto vagos em um contexto eletroacústico,
indicando apenas a forma (A-B-A-C-A) e poucas palavras sobre a natureza dos sons.
Schaeffer se foca principalmente no que Denis Smalley chama de escuta tecnológica, que
ocorre quando a nossa escuta é direcionada à tecnologia ou técnica por trás da música,
deixando aspectos gestuais e propriamente musicais em segundo plano (SMALLEY 1997 p.
109).
Ao analisar a peça tomando como base os conceitos da espectromorfologia, é possível
dividir formalmente a obra em três trechos: apresentação do material (00m00s-1m47s),
desenvolvimento do material (1m47s-3m00s) e uma coda (3m00s-3m40s). A apresentação e o
31
“Toute l'étude qu'on va entendre a pour source unique les bruits et les sons qu'on peut tirer d'un piano. On
s'est attaché toutefois à exclure tout usage c1assique du piano, non par principe, mais pour rendre Ia
démonstration plus suggestive. La technique du "sillon fermé" est à Ia base de cene composition; elle consiste
à isoler des fragments sonores ou rythmiques dans différents tempo et à différents diapasons, pour une
construction ou entrent divers procédés: la réverbération, le son à l'envers, etc.”.
32
“L'étude comprend un premier mouvement rythmique, auquel succede unmouvement mélodiquement!ent, puis
une reprise de variations rythmiques, de nouveau coupées par un motif lent ou sont exploitées les ressources
de trais tessitures opposées. L'étude se termine par une reprise rythmique rappelant le tempo initial”.
40
desenvolvimento podem ser subdivididos, em termos de diferenças espectromorfológicas, em
trechos menores. A apresentação do material pode ser dividida em quatro partes distintas, o
desenvolvimento em três.
1.5.1. Apresentação do material, 00m00s a 00m20s
Nos primeiros vinte segundos temos a um gesto cromático descendente, que Schaeffer
se refere como um movimento rítmico, seguidos de dois tipos diferentes de ruído: ruído
granular e ruído saturado. A peça tem início com este gesto rítmico, que se mantém ao longo
dos primeiros vinte segundos, com pequenas variações. Logo após o início deste primeiro
gesto surge um ruidoso, que pode ser descrito segundo a espectromorfologia de Smalley como
ruído granular. Ruído granular pode ser extrinsecamente relacionado ao som do mar, ou ao
som de consoantes, e é percebido como “impulsos texturizados” (SMALLEY 1997, p. 120).
Logo após o ruído granular, aparece um som ruidoso que aparenta ser derivado de sons de
piano; este segundo ruído é um bom exemplo de ruído saturado. O ruído saturado é
caracterizado pelo que Smalley chama de compressão espectral, um número muito grande de
alturas definidas em uma tessitura limitada33. Devido à quantidade muito grande de alturas,
não conseguimos nos focar em nenhuma em particular, de maneira que aquela textura seja
percebida como ruído, porém diferente do ruído granular. O primeiro gesto rítmico é um gesto
de terceira ordem, em que podemos perceber alguns elementos humanos (marcação rítmica,
alturas descendendo cromáticamente), porém não conseguimos especificar exatamente qual a
fonte sonora, e como esta fonte pode estar sendo manipulada. O ruído granular e o ruído
saturado, apesar de soarem como fossem de fontes diferentes, têm a mesma natureza gestual
de ordem remota, e o contraste entre os dois tipos de ruído é marcante. Estas diferentes
categorias de ruído, apesar de não dizerem respeito a fonte sonora diretamente, dão pistas ao
ouvinte sobre a natureza da fonte. Parte do processo de ligação a fontes consiste em imaginar
fontes similares a sons que, de alguma maneira, soam similares. Dois sons ruidosos podem
soar como tendo fontes semelhantes caso ambos possuam as mesmas características
espectromorfológicas (sejam elas granulares, sejam elas saturadas). Dois sons ruidosos que
possuem características timbrísticas distintas (no caso, um granular e o outro saturado) podem
33
Em música instrumental, clusters podem ser considerados ruído saturado
41
soar para o ouvinte como tendo fontes distintas. No entanto, o fato de cada um destes sons
serem ligados a fontes distintas, apesar de sofrerem um processo de substituição gestual
similar, demonstra a relativa independência que fonte e gesto podem vir a ter.
1.5.2. Apresentação do material, 00m20s a 00m38s
Neste próximo trecho ocorre um crescendo dos ruídos, o que reforça mais ainda o
contraste entre saturação e granulação. Ao fundo, um som percussivo de pouca intensidade se
repete. Este som percussivo é um ótimo exemplo de gesto de primeira ordem: ele não é o que
tradicionalmente se chama de um som musical, e sua espectromorfologia contém um forte
elemento humano; temos a impressão que alguém está manipulando um objeto qualquer,
gerando sons percussivos. Este som se mantém constante durante quase todo o trecho, apenas
no fim ele é interrompido pelo gesto rítmico do trecho anterior. Uma forte relação causal é
percebida entre a interrupção do som percussivo e a entrada abrupta do gesto rítmico, e a
diferença entre os dois sons, um de primeira ordem e o outro de ordem remota, fica evidente.
O gesto rítmico é repetido algumas vezes, e desaparece em fade-out, deixando um pequeno
silêncio (ou respiração, em termos tradicionais) entre este trecho e próximo.
1.5.3. Apresentação do material, 00m38s a 1m00s
Neste trecho temos quatro sons distintos que se repetem: o som percussivo do trecho
anterior (de primeira ordem), o gesto rítmico apresentado no início da peça (de terceira
ordem), três notas tocadas no piano (de segunda ordem) e um som semelhante ao som do
piano, porém com seu ataque (ou início) e término alterados (criando um gesto de ordem
remota). A atenção é direcionada aos contrastes entre os diferentes graus de ação humana em
cada um destes sons. De 00m38s a 00m50s temos apenas os três primeiros sons, os sons de
ordem remota aparecem, neste trecho, apenas entre 00m50s e 1m00s, e com muito pouca
intensidade. A diferença de intensidade coloca estes sons de ordem remota em outra plano,
quase outro espaço físico, o que reforça ainda suas diferenças com os outros sons.
42
1.5.4. Apresentação do material, 1m00s a 1m47s
A última parte da apresentação do material começa com um acorde sendo tocado no
piano, e durante todo o trecho temos apenas este acorde e variações em seu envelope
dinâmico; o som do piano som, inalterado, sobreposto a suas variações criam diferentes
expectativas espectromorfológicas. O surgimento deste acorde sugere uma re-interpretação da
natureza de todas as fontes dos sons apresentados anteriormente. Parte da ambigüidade
presente em relação as fontes de alguns sons desaparece, e durante todo o trecho acontece o
que Smalley chama de bonding play, uma espécie de jogo que explora as incertezas em
relação às fontes dos sons presentes (SMALLEY 1997, p. 110). No fim da apresentação
ocorre uma pequena pausa, menos de meio segundo, e então começa o desenvolvimento.
1.5.5. Desenvolvimento do material, 1m47s a 1m57s
Em 1m57s começa o desenvolvimento do material. Este trecho pode ser considerado
um desenvolvimento devido ao fato de que nenhum material diferente, do ponto de vista
espectromorfológico, é introduzido na peça a partir deste trecho. O trecho inicia em fade-in, e
é composto apenas por sons percussivos de primeira ordem (os mesmos apresentados
anteriormente) e o foco do nos dez primeiros segundos do desenvolvimento é a gestualidade
humana por trás dos sons produzidos. Estes sons se repetem, com variações de dinâmica, até o
fim do desenvolvimento.
1.5.6. Desenvolvimento do material, 1m57s a 2m27s
Sons de ordem remota, similares aos de ordem remota apresentados entre 1m00s e
1m47, são sobrepostos aos sons percussivos. Eles possuem um espectro harmônico e altura
definida e, em termos espectrais, os sons percussivos são o exato oposto. Os dois sons estão
em lados opostos do contínuo nota-ruído e, por serem também distintos em termos gestuais,
temos a impressão que eles se desenvolvem de forma independente, em uma espécie de
polifonia de sons concretos34.
34
Sons concretos, neste trabalho, se refere a sons gravados (em oposição a sintetizados) e depois manipulados
em estúdio.
43
1.5.7. Desenvolvimento do material, 2m27s a 3m00s
O gesto rítmico apresentado nos primeiros segundos da peça interrompe a polifonia da
seção anterior. O som é repetido varias vezes, a cada repetição com menos intensidade, e
desaparece em fade-out ao longo da seção. Juntamente com a repetição do gesto rítmico,
temos também os mesmos sons de ordem remota da seção anterior transpostos cerca de sete
semi-tons pra cima. A transposição ocorre logo após a o reaparecimento do primeiro gesto
rítmico (2m27s), e uma forte relação causal pode ser percebida entre os dois.
1.5.8. Coda, 3m00s a 3m40s
Em 3m00s temos novamente um acorde sendo tocado ao piano, sem nenhum tipo de
alteração ou processamento. Este acorde, que é repetido ao longos dos últimos quarenta
segundos da peça, é semelhante harmonicamente e em termos de timbre35 com os sons de
ordem remota do trecho anterior. Esta semelhança sugere que ambos tenham uma fonte em
comum, e nos faz re-interpretar as fontes e gestos dos sons anteriores. Sons que em uma
primeira audição pareciam de ordem remota passar a ter um pouco mais de ação humana por
trás de suas espectromorfologias. É devido a este processo de re-interpretação que podemos
considerar este trecho uma espécie de coda; não há nada de novo em termos de material
sonoro nem de gesto/articulação, porém pela maneira como são sobrepostos os alguns dos
elementos apresentados anteriormente, acabamos recapitulando estes eventos de uma maneira
diferente, e temos uma nova percepção a respeito da natureza destes sons. Boa parte dos sons
que pareciam ser de fontes inimagináveis agora passam a ter uma forte relação com a
espectromorfologia dos sons do piano; passamos a escutar estes sons, mesmo que em nossa
memória, de uma forma diferente.
Com as ferramentas conceituais da espectromorfologia temos um vasto vocabulário
para conseguir descrever como se dá a escuta e compreensão de peças acusmáticas. A análise
torna-se então muito mais um processo descritivo, ao invés de tentar achar alguma lógica
conceitual entre os componentes internos, ou em tentar descobrir as intenções do compositor.
35
O conceito de harmonia usado é o mesmo que alguns compositores de música instrumental contemporânea.
Timbre enquanto extensão da harmonia, e vice versa (SMALLEY 1994, p. 36).
44
Escutando Étude Violette espectromorfológicamente, chegamos a conclusões diferentes a
respeito de sua divisão formal e gestual do que as pretendidas por Schaeffer, e a terminologia
de Smalley consegue descrever os eventos de uma forma precisa. As conclusões a respeito de
Étude Violette não são definitivas. A própria natureza das ferramentas permite uma constante
reexaminação do conteúdo da peça. Conceitos como o de ligação a fontes, substituição
gestual e causalidade são de uma natureza subjetiva, e não se propõem a dar nenhuma
resposta definitiva a respeito da nossa percepção de uma peça qualquer. Os comentários sobre
a percepção de Étude Violette do ponto de vista espectromorfológico são apenas uma
possibilidade. Fatores culturais e sociais influenciam profundamente a nossa percepção de
relações causais e conteúdo extrínseco, e é justamente deste aspecto subjetivo das ferramentas
de Smalley que vem o seu interesse enquanto ferramenta analítica. Uma outra maneira,
radicalmente diferente da apresentada nesta subseção, de usar a espectromorfologia como
ferramenta analítica/descritiva será apresentada a seguir.
45
"Quando as pretensões do conhecimento perdem o ímpeto, as pretensões da criatividade
ocupam-lhes o espaço”
Susan Sontag
2.
A E S P E C T R O M O R F O L O G I A E N Q U A N T O F E R R A M E N TA
COMPOSICIONAL
2.1.
PRODUÇÃO ARTÍSTICA ENQUANTO TRABALHO DE CAMPO
Há um aspecto intuitivo no processo de composição de música acusmática,
principalmente quando se trata de uma obra com sons concretos (i.e. não sintéticos). Em
alguns casos de música instrumental, muitas vezes a lógica interna da harmonia ou de um
conjunto de regras (como por exemplo as regras do dodecafonismo) nos ajuda a escolher um
certo material ao invés de outro. Ou seja, regras pré estabelecidas guiam as escolhas
composicionais. Este conjunto de regras é coerente, em parte, simplesmente por ser respeitado
durante a obra inteira, e qualquer gesto musical que vá contra sua lógica interna pode causar
um estranhamento (tanto perceptivo, quanto conceitual). Esta rigidez lógica certamente existe
dentro da música acusmática, certos sons só devem ser inseridos em determinadas peças caso
o objetivo seja causar algum tipo de estranhamento, quebra no ritmo ou dissonância. Porém,
uma diferença fundamental da escrita instrumental em relação a música acusmática é que uma
trabalha, na maioria dos casos, com notas que podem ser grafadas e a outra com sons
concretos e/ou sintéticos. Quando a unidade mínima é a nota musical, ou gestos e sons
compostos por agrupamentos de notas musicais (por exemplo, um cluster em um piano), é
possível nomear os elementos de um trecho qualquer. No segundo movimento de Musica
Ricercata de Ligeti, o compositor se utiliza do espaçamento entre as notas para criar oitavas
que soam quase dissonantes. O movimento, que dura aproximadamente três minutos e meio,
começa com o tema composto apenas pelas notas mi♯4 e fá♯4. No quinto compasso o tema é
repetido, mas agora com as oitavas dobradas da seguinte maneira: mi♯5 e mi♯6 são tocados
simultaneamente com mi♯1 e mi♯2, o mesmo acontece com a nota fá♯. O compositor consegue
criar uma textura quase dissonante utilizando apenas oitavas, que soam estranhas devido ao
espaçamento. Todos os elementos que criam aquela textura particular são facilmente
46
nomeáveis, o que faz com que o processo de escolhas composicionais seja um tanto diferente
do da música acusmática. Em música acusmática, as regras que fazem com que um som seja
estranho nem sempre conseguem ser explicitadas textualmente ou verbalmente; elas são, de
certa maneira, mais intuitivas. A inclusão de um som sintético em Presque Rien certamente
causaria este estranhamento mencionado acima por destoar completamente do resto do
material apresentado durante a obra, por fugir da proposta estética e política do compositor36,
por não ter a carga referencial que todos os outros sons da obra possuem, entre outros
motivos. No entanto, não é possível nomear os fatores que levam a este estranhamento com a
mesma precisão descrita em Musica Ricercata.
Figura 1: Primeiros compassos do segundo movimento de “Música Ricercata”
Um compositor quando realiza um trabalho de memorial descritivo em composição
musical tem como objetivo analisar a sua própria obra. Expor aspectos formais, harmônicos,
conceituais e explicitar todo o processo de escolhas que ocorreram durante o ato da
composição musical. Este trabalho ganha uma dimensão curiosa na composição acusmática
por ter a possibilidade de poder expor o pensamento composicional através de figuras de
linguagem e conceitos a respeito da percepção musical e de sons do cotidiano (conceitos, por
36
Eric Drot (2009), usando como método a análise de trechos de entrevistas com Ferrari, afirma que Presque
Rien pode ser interpretado como um ode ao amadorismo, uma tentativa de desconstruir o mito do compositor.
O autor também afirma que, segundo o próprio Ferrari, a documentação da vida cotidiana é uma tentativa de
unir suas ambições artísticas com suas ambições políticas.
47
exemplo, da espectromorfologia ou da tipomorfologia). Nem sempre a argumentação a
respeito das escolhas acontece de forma tão clara durante o ato da composição. Por vezes, é
apenas a posteriori que o compositor consegue perceber os motivos que o levaram a escolher
um certo som ao invés de outro. Em música acusmática, é comum o trabalho de pré
composição ser limitado quando comparado à música instrumental. É apenas durante o
trabalho de composição em si, quando os sons a serem usados já estão razoavelmente
encaminhados, é que podemos avaliar mais precisamente as suas possíveis funções musicais.
Ou, como resume Manoury, “enquanto os sons não forem postos em jogo, é vão querer
determinar o que quer que se seja no que diz respeito a sua organização. Aqui [na música
eletrônica], a experimentação ocupa o lugar principal” (MANOURY 1996, p. 208). Esta visão
apresenta um curioso paralelo com o que William James chama de experiência:
EXPERIÊNCIA em seu caráter imediato parece-nos perfeitamente fluente. O
senso ativo de viver que todos nós desfrutamos, antes da reflexão estilhaçar
nosso mundo instintivo, é auto-explicativo e não sugere paradoxos. Suas
dificuldades são decepções e incertezas. Elas não são contradições
intelectuais. Quando intelecto reflexivo se coloca a trabalhar, no entanto, ele
descobre coisas incompreensíveis neste processo de fluxo. Distinguindo seus
elementos e partes, lhes dá nomes separados, e o que ele então desmonta ele
não consegue facilmente remontar. (JAMES 1912, parágrafo 1-2, tradução
nossa)37
Ao compor, o que pode orientar um compositor é seu senso estético e o que William
James chama de Experiência. Este fluxo intuitivo, auto explicativo e imune a contradições por
vezes ocorre durante o processo de composição 38. Tentar compreender a posteriori como se
deu este processo é uma maneira de investigar não só os aspectos de uma obra específica, mas
também a natureza do ato composicional. Cartier-Bresson, ao falar do ato de tirar uma foto,
afirma que “pensar é algo que tem de ser feito antes e depois, nunca durante o processo de
tirar uma foto” (BRESSON apud SONTAG 2011, p. 132-133). Este capítulo tenta retratar
justamente a reflexão que vem após o término de uma obra, porém esta reflexão é sempre
ancorada na memória da experiência de se compor.
37
“EXPERIENCE in its immediacy seems perfectly fluent. The active sense of living which we all enjoy, before
reflection shatters our instinctive world for us, is self-luminous and suggests no paradoxes. Its difficulties are
disappointments and uncertainties. They are not intellectual contradictions. When the reflective intellect gets
at work, however, it discovers incomprehensibilities in the flowing process. Distinguishing its elements and
parts, it gives them separate names, and what it thus disjoins it can not easily put together”
38
O fato deste processo ser autoexplicativo não quer necessariamente dizer que ele é sempre agradável,
prazeroso ou sequer desejável. Ele é meramente autoexplicativo.
48
De forma mais específica, as quarto peças que serão discutidas a seguir foram
compostas ao mesmo tempo em que pesquisava as idéias de Smalley e Schaeffer. Embora não
pensasse especificamente nas idéias de Smalley durante o processo composicional,
certamente o meu pensamento composicional foi influenciado por suas idéias. E, uma vez
acabado o processo de composição, percebi que alguns conceitos da espectromorfologia eram
úteis para descrever o meu processo de escuta. O processo composicional acusmático pode ser
um terreno onde intuitivamente o pensamento espectromorfológico acontece, e revisitando
essa experiência essencialmente prática (e que possui um envolvimento mais pessoal) à luz de
uma grade teórica conceitual (neste caso, da espectromorfologia) é possível desenvolver
teoria que tem como ponto de partida a experiência (no sentido de James) da escuta. A prática
artística funciona como uma espécie de trabalho de campo, um trabalho prático que alimenta
e é essencial para o pensamento teórico. Este capítulo se propõe a discutir o processo de
composição e a escuta de quatro obras que foram compostas em paralelo com as leituras desta
pesquisa, com o viés descrito acima. Por último, vale acrescentar que a escuta das peças
citadas neste capítulo é imprescindível para uma melhor compreensão das discussões que
serão levantadas.
2.2.
HARMONICIDADE/SATURAÇÃO: TECNOLOGIA ENQUANTO TIMBRE,
TIMBRE ENQUANTO GESTO E FONTE SONORA.
A substituição gestual em sons com caráter sintético é, por vezes, difícil de classificar
na terminologia de Smalley. Por um lado, os sons tocados em um sintetizador (por exemplo,
um DX-7 da Yamaha) por um executante constituem uma substituição de segunda ordem; as
sutilezas da performance, as pequenas variações de timbre e dinâmica e a unidade timbrística
estão em primeiro plano durante a escuta do instrumento. Por outro, existe uma discrepância
entre os gestos físicos do executante e os sons produzidos; os gestos deduzidos a partir do
som são diferentes dos realizados pelo executante. Um grande crescendo é feito com o
movimento sutil de um dedo, e não através de uma arcada (como nos instrumentos de corda),
ou um aumento de atividade pulmonar (como nos instrumentos de sopro). Manoury já havia
observado esta perversão das relações causais em 1988 ao afirmar que, em música feita com
sintetizadores, “os efeitos parecem desmedidos com relação a suas causas” e “um pequeno
49
movimento pode desencadear pequenas tempestades” (MANOURY 1996, p. 207). Smalley,
alguns anos mais tarde, trata da mesma questão na seguinte passagem:
Boa parte da música que usa a simulação de sons instrumentais também
pode ser considerada de segunda ordem, mesmo que estes instrumentos não
sejam reais. O uso comercial de sintetizadores é deste tipo quando
reconhecemos tanto o gesto envolvido quanto a fonte instrumental simulada.
(SMALLEY 1997, p. 112, tradução nossa)39
No caso de sons sintéticos que tentam simular sons instrumentais, certamente estamos
falando de uma substituição de segunda ordem. Porém, sons sintéticos que se baseiam em
sons reais, mas não têm como objetivo emular um instrumento (por exemplo, pense num
híbrido entre o som de um clarinete e violino, com um ataque percussivo) transitam entre uma
substituição de segunda ordem (existe um executante, com gestos reais, manipulando um
instrumento) e uma de terceira ordem (os gestos deduzidos espectromorfologicamente a partir
do som não correspondem aos gestos feitos pelo executante, o gesto é imaginado). Tratandose de ligação a fontes, a fonte do som é sempre o sintetizador. Uma vez que o ouvinte se torna
consciente que os sons partem de um instrumento específico (o que é diferente de um estúdio
com vários equipamentos, ligados em rede), temos como fonte o sintetizador. Porém, patches
de reverberação e de alteração timbrística remetem a uma infinidade de fontes (e espaços em
que estas fontes se encontram) diferentes. Surge um curioso paradoxo: a fonte sonora é um
instrumento que simula outras fontes sonoras. Existe uma unidade tecnológica que une
aqueles sons, e todos os sons produzidos por aquele dispositivo são capazes de criar a ilusão
de fontes diferentes. O grupo Tangerine Dream, em seu disco Phaedra, mantém uma unidade
timbrística durante a obra toda. Esta unidade acontece por motivos tecnológicos: o uso dos
mesmos sintetizadores em todas as faixas. Mesmo assim, o processo de ligação a fontes não
deixa de ser rico. Porém, pelo fato de todos os sons serem sintéticos, não existe nenhum
caráter indicial; um som pode se comportar como pedras rolando, mas não existe um som
sintético que seja exatamente igual ao som de pedras rolando. O som remete a situações e
objetos extrínsecos à música, mas nunca propriamente é uma um registro inalterado (ou quase
inalterado) de um objeto do mundo. A gravação de uma praça, ou de uma praia, possui um
39
“Much music which uses simulation of instrumental sounds can also be regarded as second order since,
although the instrument may not be real, it is perceived as the equivalent of the real. Commercial synthesizer
usage is of this type when we recognise both the gesture involved and the instrumental source simulated”.
50
caráter indicial que liga diretamente a gravação àquele local; a gravação é um resultado direto
de como aquele local agiu sobre a membrana do microfone40 .
Uma grande parte dos sons usados presentes em Harmonicidade e saturação (peça
com duração de 8m39s) tem caráter sintético. No entanto, a maioria destes sons têm uma
origem concreta e foram processados através da filtragem e o uso de pedais de distorção. O
único processo usado que se aproxima da síntese foi o uso de pedais de distorção ligados em
loops de microfonia, operando como uma espécie de gerador de ruídos41. Os pedais de
distorção (seja ligados em loop ou agindo sobre sons concretos) não foram usados como
efeitos, mas como instrumentos em si, em uma abordagem essencialmente Schaefferiana. A
manipulação por transposição e filtragem mascara completamente a origem concreta dos sons,
porém ainda mantém a imprevisibilidade espectral que existe em sons não sintéticos. Os
equipamentos de estúdio se transformam não mais em ferramentas de mixagem, mas em
instrumentos em si. Sobre a instrumentalização de equipamentos em Schaeffer, Battier afirma
que, no início da música concreta, o toca discos deixa de ser meramente um instrumento que
reproduz sons gravados e passa a ser um “gerador de comportamentos sonoros jamais
escutados” (BATTIER 2007, p. 195). Estes novos sons foram exaustivamente analisados sob a
ótica da escuta reduzida através de transposições, inversões, filtragem e a técnica do sulco
fechado. O aparato reprodutor se transforma em instrumento (BATTIER 2007)
O uso razoavelmente limitado de equipamentos em Harmonicidade e Saturação42 cria
uma unidade timbrística durante a obra inteira. Isso cria também uma unidade em termos de
ligação a fontes, uma vez que fonte e timbre estão fortemente conectados. Para Smalley,
timbre diz respeito ao “desdobramento e à modelagem do espectro sonoro no tempo, ou em
outras palavras, à espectromorfologia” (SMALLEY 1994, p. 37). Fonte sonora, por também
ser um atributo espectromorfológico, se torna uma questão. Como afirma Smalley:
40
Mais sobre essa discussão será abordado nas seções seguintes deste capítulo.
41
Ainda que o hum e ruídos de aterramento sejam sons que existem apenas dentro dos circuitos de equipamentos
eletrônicos, existe uma presença marcante destes sons em nosso cotidiano. Em grandes centros urbanos,
estamos cercados de equipamentos eletrônicos que produzem ruído a quase todo instante. Para mais sobre a
inclusão destes ruídos eletrônicos em nosso cotidiano, ver THOMPSON 2002.
42
Os pedais usados foram: Electro-Harmonix Little Big Muff, DOD 250 Overdrive, DOD Supra Distortion,
Behringer BDi 21 e Boss Ds-1 Distortion. Em termos de software, os únicos procedimentos utilizados foram:
compressão, transposição, reverberação, delay, filtragem e equalização.
51
Todos aqueles atributos tradicionalmente incorporados dentro de timbre - as
nuances e as articulações de objetos-nota e frase-forma, e o controle e
variação de altura, incluindo a rugosidade/suavidade da nota-grão poderiam ser relacionadas à interação fonte-causa. (SMALLEY 1994, p. 37,
tradução nossa)43
Contextos em que a unidade timbrística é decorrente do uso exclusivo de sons
sintéticos, ou fortemente processados, tendem a levar o ouvinte a concluir que existe uma
unidade, ou homogeneidade, em termos de fontes sonoras. O processo de adivinhação de
fontes torna-se menos intenso, quase relegado a um segundo plano, e a questão do gesto
ganha força e ímpeto. O gesto e seus substituintes agora podem, potencialmente, ser o foco da
escuta e guiar a peça formalmente. O fato de gesto ocupar um lugar maior na escuta do que
fonte sonora não quer dizer que a natureza espectromorfológica desses sons não seja limitante
em termos de substituição gestual. No caso de Harmonicade e Saturação (assim como outras
obras que compartilham essas mesmas características timbrísticas), a primeira ordem de
substituição gestual é inexistente. A clareza e falta de ambiguidade presente em substituições
de primeira ordem raramente ocorre em sons com caráter sintético. Uma fonte sonora real,
não imaginada, é imprescindível para nos dar a impressão de gestos de trabalho ou lazer, sem
a menor intenção de musicalidade dentro deles.
Outro fator relevante na escuta da peça diz respeito à escuta tecnológica. Como
mencionado anteriormente, Smalley considera a escuta tecnológica distinta da
espectromorfologia. A descrição excessivamente técnica, em termos de tecnologia, corre o
risco de priorizar um sinal que está acusticamente presente, porém não é psicoacusticamente
relevante (SMALLEY 1997, p. 109). No entanto, em alguns contextos podemos ter uma
espécie de escuta espectromorfológica da tecnologia. Antes da popularização de microsystems e aparelhos reprodutores de CD, o ruído (neste caso, enquanto interferência de um
sinal) estava quase sempre presente nos aparelhos de reprodução sonora domésticos.
Zumbidos de amplificadores e receivers, o chiado de toca-fitas e os pequenos estalos em LPs
era sons indesejáveis (porém inevitáveis) da tecnologia de pouco tempo atrás. Ouvintes,
então, aprendiam a abstrair estes sons e, como coloca Stan Link, a “escutar além do
ruído” (LINK 2001, p. 36). Focar no ruído durante a escuta de um LP empoeirado certamente
43
“All those attributes traditionally packaged under timbre - the nuancing and articulation of note-objects and
phrase-shapes, and the control and variation of tone, including the roughness/smoothness of note-grain could be traced to source-cause interactivity”.
52
vai contra o que se pretende extrair do pensamento espectromorfológico. Com o
desenvolvimento da tecnologia, estes artefatos se tornaram cada vez menos presentes.
Atualmente, um micro-system razoavelmente comum (i.e., o que alguém que pretende ouvir
música em casa normalmente adquire) não nos apresenta artefatos tão óbvios quanto o intenso
ruído da estática de outrora. Os artefatos são mais sutis: a maioria dos aparelhos de som e
fones de ouvido mais simples reproduzem frequências muito graves ou muito agudas com
pouca fidelidade. Novamente, focar na resposta de frequência limitada ao escutar música
sendo reproduzida em equipamento mais simples contradiz as premissas da
espectromorfologia. Após a massificação destes aparelhos de som, uma curiosa reintrodução
do ruído surge. A inclusão de ruídos gerados por equipamentos datados em gravações
contemporâneas nos remete a situações de escuta do passado, e invoca uma certa nostalgia.
De acordo com Link, o ruído de equipamentos antigos cria uma espécie de sentimento
nostálgico na escuta. O ruído é uma “reconstrução de um ambiente de escuta” (LINK 2001, p.
37), e um ambiente de escuta requer um ouvinte. Neste sentido “ruído ocasiona
presença” (ibid.) e a escuta de diferentes ruídos de outrora “nos permite escutar a gravação
como uma espécie de mundo narrativo, reconfigurando música como uma espécie de
espaço” (ibid., p. 38). Ruído cria, então, uma curiosa ligação a fontes que tem como viés a
nostalgia. A presença de certos artefatos sonoros nos remete a um equipamento (i.e. uma
fonte) que o produziu em algum momento. A percepção do tecnológico, então, passar a ser
analisada sob o viés espectromorfológico. Harmonicidade e saturação é repleta de ruídos
provenientes do uso de equipamentos analógicos, e o discurso da obra se apóia nas
características espectromorfológicas destes ruídos. Alem disso, a resposta de frequência de
alguns dos equipamentos usados privilegia o registro médio e tem pouca fidelidade nos
registros grave e agudo. Os ruídos presentes ao longo peça, juntamente com os sons saturados
no registro médio, criam uma ligação a fontes com equipamentos muito usados durante as
décadas de 1970 e 1980. Embora estes equipamentos sejam usados até hoje, o uso extenso dos
mesmos é algo que era mais comum 40 anos atrás do que hoje em dia.
Harmonicidade e saturação também possui uma série de sons com altura definida, e a
discussão a cerca de timbre e gesto ganha uma dimensão particular quando tratamos de
sequências de sons com contornos melódicos. Apesar de possuir sons de altura definida, a
peça não possui nenhum tipo de característica tonal ou de sistematização atonal das alturas.
53
Em contextos como esse, em que a altura intervalar não é o principal meio de expressar o
pensamento musical, “altura e timbre podem coabitar em uma música espectromorfológica
onde o ouvido tem a oportunidade de transitar para fora e para dentro de alturas
definidas” (SMALLEY 1994, p. 41). Em alguns momentos, o foco é timbre. Porém, um
evento pode surgir e deslocar nossa atenção para a relação entre as alturas definidas, e viceversa. A peça abre com gestos longos, que aprecem em fade-in, novas camadas vão
emergindo e saturando o espectro, e de 1m17s a 1m20s temos um gesto essencialmente
melódico. Durante estes 3 segundos, a perspectiva muda de textural a uma baseada em
relações intervalares, e em 1m21s o aspecto textural é retomado. Eventos que estabelecem
relações causais com a mudança de perspectiva de nota/timbre são recorrentes durante toda a
peça. A inclusão deste gesto melódico logo no início da peça inaugura este jogo entre alturas
definidas e timbre, e cria um terreno em que alturas definidas estão presentes mesmo quando
não são o foco da escuta, e eventos específicos podem fazer com que as alturas venham para à
superfície. Smalley descreve este tipo de situação da seguinte maneira:
A altura definida está presente mesmo quando não percebida. Talvez ela
esteja descansando, profundamente escondida em uma espectromorfologia,
aguardando uma atenção possível, um momento quando, por exemplo, o
contexto possa mudar para que o foco perceptivo seja direcionada para o que
era anteriormente um atributo adormecido. (SMALLEY 1994, p. 41,
tradução nossa)44
Nota, timbre, gesto e fonte sonora, neste contexto, são fatores que não podem ser
separados, o que acontece é meramente o foco da escuta se preocupar em desvendar os
potenciais significados presentes em cada uma destas categorias espectromorfologias.
Os aspectos mencionados acima não dão uma descrição completa da peça, são apenas
questões que podem ser levantadas a respeito da experiência de sua escuta. Harmonicidade e
saturação, com sua palheta sonora lo-fi, convida o ouvinte a refletir sobre timbre, espaço,
fontes imaginárias e gesto. A escuta da próxima peça a ser discutida aborda alguns destes
mesmos temas de uma forma diferente. Diferente, porém ainda dentro do pensamento
espectromorfológico.
44
“Pitch is present even when not perceived. Perhaps it is resting, hidden deep in a spectromorphology, awaiting
possible attention, a moment when, for example, the context might change so that perceptual focus becomes
directed towards what was a sleeping attribute.”
54
2.3.
EM UM QUARTO COM CABOS E VISTA: FONTE, GESTO E A PAISAGEM
SONORA ENQUANTO UM RECORTE DO TEMPO
Como mencionado anteriormente, Em um quarto com cabos e vista é composta com
sons gravados na Praça São Salvador (localizada no Flamengo, bairro da zona sul do Rio de
Janeiro-RJ), sons de objetos do cotidiano sendo manuseados (portas fechando, chaves caindo,
maquina de lavar roupas, sons de isqueiro, copos sendo manuseados, papel sendo amassado,
etc.) e sons de cabos ligados em apenas um de seus lados (uma ponta ligada na entrada da
placa de som, e a outra solta, produzindo um hum característico). Os sons de cabos usados
depois passaram por diversos tipos de processamento digital, os sons da praça e dos objetos
do cotidiano aparecem na peça às vezes com pouca ou quase nenhuma manipulação, e às
vezes muito processados. Primeiramente, serão discutidos os sons da praça e do cotidiano;
alguns processados, outros não. Em um segundo momento, serão discutidas as questões de
ligação a fonte e substituição gestual nos sons de cabo processados.
2.3.1. Sons de praça e quarto.
Os sons da praça remetem instantaneamente a um ambiente aberto, urbano, e com
crianças. Nestas paisagens existe uma grande variedade de gestos e fontes sonoras
acontecendo simultaneamente. Porém, em um nível estrutural mais profundo, existe apenas
um gesto/fonte: o daquele ambiente urbano específico, que engloba toda a variedade espectral
possível naquele contexto. Estas características são muito similares ao que Smalley chama de
flocking motion:
Movimento em rebanho [flocking] descreve um movimento livre, porém
coletivo, de micro ou pequenos objetos os quais suas atividades e mudanças
de densidade devém ser consideradas como um todo, como se fossem um
rebanho. Pode-se imaginar um movimento em rebanho passando por
diversos processos multidirecionais de crescimento. (SMALLEY 1997, p.
117, tradução nossa) 45
45
“Flocking describes the loose but collective motion of micro or small object elements whose activity and
changes in density need to be considered as a whole, as if moving in a flock. One can imagine flocking motion
passing through a variety of multidirectional growth processes”.
55
A nossa atenção pode se focar em pequenos elementos dos sons da praça: nos pedaços
de diálogos que surgem, no barulho de uma moto que passou em determinado momento, nos
sons das crianças brincando. Porém, é difícil esquecer que estes pequenos gestos fazem parte
de um todo, uma espécie de rebanho de gestos e fontes sonoras urbanas. Estas transições de
foco entre micro/macro estrutura, transição que está quase sempre a cargo do ouvinte,
representam um aspecto essencial da textura sonora da praça.
A segunda categoria de sons presentes na peça (os de portas fechado, copos caindo,
etc.) se comporta espectromorfológicamente de uma maneira distinta dos sons da praça. Os
sons muitas vezes contêm um gesto claro e sucinto (por exemplo, o já mencionado som de
porta fechando em 0m48s). O fato do gesto ser claro não quer dizer necessariamente que a
fonte sonora também seja. As duas coisas estão sempre relacionadas, porém o a ambiguidade
contida na percepção da fonte nem sempre está presente na percepção do gesto. O gesto
presente em 0m42s (que interrompe uma textura com características de rebanho mencionadas
anteriormente) tem uma gestualidade clara: deduzimos a partir de seu comportamento
espectromorfológico que algo cai, ou é arremessado em direção a uma parede. Porém, o
objeto específico que é arremessado não se torna claro ao escutar este som (no caso, trata-se
de um copo de alumínio). O ouvinte não tem como deduzir a fonte de maneira precisa, mas
pode deduzir de forma mais ou menos precisa como aquela fonte está sendo manipulada.
Precisão, neste contexto, não diz respeito a descobrir exatamente qual foi a fonte que gerou
certo som. Precisão diz respeito ao ouvinte conseguir criar uma explicação satisfatória a
respeito da fonte/gesto por trás de um som qualquer. Se o ouvinte deduz que a fonte é um
prato de ferro, e se convence disso, ele cria uma explicação precisa (em oposição à ambígua)
a respeito da fonte sonora ou gesto. O fato da fonte sonora ter sido, na verdade, um copo de
alumínio e não um prato de ferro é irrelevante. Chion discute justamente sobre a relativa
independência da percepção de fonte e a percepção de gesto:
Mesmo sem identificar a fonte em termos da natureza do objeto causal,
ainda podemos acompanhar de forma precisa o histórico causal do som em
si. Por exemplo, podemos traçar a evolução de um som raspante (acelerando,
rápido, desacelerando) e sentir mudanças de pressão, velocidade e amplitude
56
mesmo sem ter nenhuma ideia do que está sendo raspado contra o quê.
(CHION 1994, p. 27, tradução nossa)46
Em Um quarto com cabos e vista, de 3m10s a 4m00, temos um som que exemplifica
justamente o argumento de Chion. Em 3m10s surge um som que se comporta como algum
objeto sendo raspado em outro. Juntamente com um som, temos um que parece se comportar
como dois ou mais objetos chacoalhando. Existe algum tipo de relação causal entre estes dois
sons, mas ela não é exatamente clara. De uma maneira difícil de precisar, a energia de um som
parece estar se transferindo ao outro. Também ocorre uma intercessão entre as
espectromorfologias. Alguns dos elementos escutados, em sua maioria na parte aguda do
espectro sonoro, parecem pertencer a ambos os sons. Em 3m37 surge um terceiro som, em
crescendo. Este terceiro som também se comporta como objetos se raspando, e tem alguma
relação causal com os crescendos e diminuendos dos dois sons anteriores. Este jogo de causas
e gestos entre os três sons continua até 3m56s, onde entra em fade-in um som de paisagem
sonora urbana, enquanto os três sons desaparecem em fade-out. Dentro desta paisagem sonora
urbana (que dura poucos segundos) está presente um som que é espectromorfologicamente
muito próximo ao som anterior. Porém, ele não parece se comportar como algo raspando, mas
sim como alguma espécie de serra47 . Um gesto raspante se transforma em um gesto serrante.
Em nenhum momento desta descrição podemos ter uma ideia clara da fonte sonora. Os três
primeiros sons citados foram tratados por processos de convolução, através do uso do
software Max/MSP. Não foram gerados através de uma fonte real, mas sim uma fonte
imaginada. Porém, escutando estes sons que se comportam como objetos do cotidiano sendo
raspados e chacoalhados, um ouvinte poderia supor que são fontes reais, e não imaginadas.
Uma fonte ser real ou não depende que ela seja percebida enquanto tal e este processo está
nas mãos do ouvinte. Para Smalley, estes sons no qual as fontes são dúbias representam
necessariamente uma substituição de terceira ordem ou ordem remota. As substituições de
primeira ordem ocorrem somente se o ouvinte consegue “reconhecer a fonte (o tipo de
material) e o tipo da causa gestual” (SMALLEY 1997, p. 112). Porém, uma das características
46
“Even without identifying the source in the sense of the nature of the causal object, we can still follow with
precision the causal history of the sound itself. For example, we can trace the evolution of a scraping noise
(accelerating, rapid, slowing down, etc.) and sense changes in pressure, speed, and amplitude without having
any idea of what is scraping against what”
47
A fonte sonora deste som que parece ser uma serra nunca foi de fato descoberto. Este som foi gravado da
janela de meu quarto. Eu conseguia ouvir o som, mas não conseguia ver a fonte.
57
das substituições de primeira ordem é justamente remeter a objetos do cotidiano e a produção
de sons que não tem, a princípio, o objetivo de serem musicais (ibid.). Apesar destes sons não
terem sido produzidos com a intenção de serem musicais, a situação acusmática é convidativa
à escuta musical destes sons. Schaeffer, já na década de 1940, tinha observado este fato ao
afirmar que “no rádio, a mínima respiração, o mínimo amassar de uma folha de papel, nós não
só os ouvimos como também esperamos que signifiquem algo” (SCHAEFFER 2010, p. 73).
No entanto, é importante ressaltar que alguns sons que possuem substituições de primeira
ordem estão mais propícios a serem escutados enquanto musicais do que outros. Muitas vezes
o que determina a potencial musicalidade de um som é o contexto em que ele aparece, porém
alguns sons necessitam de situações mais engenhosas para que a sua escuta possa ser musical.
O som de válvulas de pressão dos caminhões de lixo, que está presente em 7m30s de Em um
quarto com cabos e vista, apresenta uma quantidade de nuances e sutilezas que facilitam a sua
apreciação enquanto um objeto musical. Já os som de porta batendo e fechaduras que ocorrem
entre 0m43s e 0m48s conseguem induzir uma escuta musical por possuírem um elemento
narrativo e por estabelecerem relações causais com outros sons presentes. Não fosse isso,
talvez a sua expressividade musical seria menos impactante.
No caso dos sons descritos nos parágrafos acima, mesmo que a fonte e gesto por
vezes sejam um pouco ambíguos, uma das características marcantes de suas trajetórias
espectromorfológicas é justamente a sua qualidade de objetos do dia a dia. Este aspecto tem o
potencial de ficar em primeiro plano para o ouvinte. Logo, no caso de alguns sons, a fronteira
entre substituição de primeira e terceira ordem/ordem remota fica tênue48. John Young, em
seu artigo Imagining the Source: The Interplay of Realism and Abstraction in Electroacoustic
Music (1996), discute estas transições entre tipos diferentes de substituição gestual. Para o
autor, a articulação do contínuo entre gestos reais (de primeira e segunda ordem) e gestos
abstratos (de terceira ordem e ordem remota) acontece, na maioria das vezes, por justaposição
ou mediação de gestos diferentes. Justaposição, para o autor, seria dois sons de ordens de
substituição gestual distintas acontecendo simultaneamente. Um exemplo de justaposição de
48
Lembrando que substituição de segunda ordem é aquela típica dos sons instrumentais, onde a “habilidade
performática foi usada para desenvolver um jogo extenso de articulação de registros” (SMALLEY 1997, p.
112). Ou seja, o que marca o caminho gestual destes sons é o fato de, a todo momento, o gesto que os originou
foi feito com a intenção de ser musical. Estes sons que transitam entre primeira e terceira ordem/ordem remota
não possuem esta característica, muito embora seja possível imaginar outros sons parecidos que, em outros
contextos, poderiam ser tanto de primeira, quanto de segunda, quanto de terceira ordem.
58
gestos ocorre durante o final de Em um quarto com cabos e vista, onde sons sintéticos que
aparecem paralelamente com os sons de praça. Mediação diz respeito à transição gradual
entre ordens de substituição gestual distintas. Por exemplo, um gesto de primeira ordem que
gradualmente se transforma em um de ordem remota. Para Young, estas transições entre
substituições gestuais são uma parte importante do processo de escuta do repertório
eletroacústico, e a fronteira entre justaposição e mediação é por vezes tênue devido ao fato
que “estas articulações não são mutuamente exclusivas. Nossa atenção pode ser livremente
deslocada de um tipo de articulação para outra em uma mesma obra” (YOUNG 1996, p. 84)
O reconhecimento de fontes sonoras reais (i.e. não imaginárias/virtuais) não só nos
remete à um objeto ou lugar real (por exemplo, uma praça ou uma britadeira), mas também
cria a imagem de um ouvinte virtual posicionado de alguma maneira perto daquela fonte (por
exemplo, uma britadeira em uma praça). Ao ouvir um som acusmático emitido por alto
falantes, um ouvinte pode fazer duas perguntas a respeito da fonte sonora: qual a fonte sonora,
e a qual distância desta fonte este som foi gravado. No caso de Em um quarto com cabos e
vista, a Praça São Salvador foi gravada com dois microfones posicionados no seu centro, e do
10o andar de um prédio logo em frente à praça. A fonte sonora e os gestos deduzidos são os
mesmos em ambos os casos, porém o posicionamento do ouvinte/compositor, aquele que
presenciou a fonte sonora em primeira mão e resolveu grava-la, é diferente. Tratando-se de
paisagens sonoras, as manipulações de perspectiva do ouvinte/compositor são uma relevante
ferramenta composicional. Wishart chama este fator do posicionamento do compositor de
“perspectiva auditiva” e afirma que sua dinâmica é parecida com aquela do zoom em cinema
(WISHART 1986, p. 48). É possível, na experiência auditiva cotidiana, direcionar a nossa
escuta a um determinado objeto. Porém, escutar sons que foram microfonados sendo tocados
em alto falantes produzem uma espécie de “efeito de lupa” que é particular (ibid.). Estas
manipulações da perspectiva auditiva estão presentes na música executada por alto falantes
desde a primeira metade do sec. XX. Schaeffer, já nos anos 40, observava que uma das
qualidade únicas do rádio era justamente sua capacidade de jogar com a perspectiva do
ouvinte:
[...] o rádio parece não ter limite, pois é capaz, ele, em meio ao triplo forte da
orquestra, de fazer sussurrar uma voz ao nosso ouvido. Ele pode, do centro
mesmo desse arrebatamento orquestral, escolher determinado instrumento e
fazê-lo passar ao primeiro plano. Ele está apto, como já notamos, a garantir
59
simultaneamente não só a ubiquidade como a onipotência. (SCHAEFFER
2010, p. 60)
A variação entre tipos de gestos e ligações a fontes diferentes, juntamente com
manipulações de perspectiva, acabam por dar um aspecto narrativo em Em um quarto com
cabos e vista. Wishart discute os aspectos narrativos em música eletroacústica por um viés
fortemente ancorado na idéia de metáfora sonora. O autor argumenta que, de maneira parecida
com o mito ameríndio na análise de Lévi-Strauss, a rede de significados presentes em sons de
paisagens sonoras tem a capacidade de gerar metáforas que conseguem iluminar aspectos que
dificilmente conseguiriam ser expressados através da linguagem musical convencional
(WISHART 1996, p. 167-168). Wishart afirma que Wagner, através do uso de leitmotivs,
estabelece relações entre estruturas musicais delimitadas, pessoas, objetos e idéias. Estas
relações acontecem de forma associativa. Ao desenvolver e interrelacionar estas idéias
musicais, Wagner cria um discurso que, por lidar com emoções não verbalizadas e com uma
linguagem metafórica, transcende as “limitações do palco de ópera” (WISHART 1996, p.
165). Em música eletroacústica, é possível eliminar um dos elementos da equação e
referenciar os objetos que irão construir a metáfora de uma forma mais direta. Segundo o
autor:
Não é preciso associar um objeto musical com, por exemplo, um pássaro e
depois a um significado metafórico, podemos usar diretamente o som de um
pássaro. E a concretude da encenação teatral é substituída por uma paisagem
onírica que paira entre articulação musical e eventos do ‘mundo real’.
(WISHART 1996, p. 165, tradução nossa)49
Desta maneira, as narrativas construídas em música eletroacústica não estão “contando
uma estória no sentido mais comum, mas desdobrando estruturas e relações no
tempo” (WISHART 1996, p. 166). Em Red Bird (1978), Wishart trabalha estes conceitos
extensivamente, e se propõe a tentar unir os aspectos “sônicos e metafóricos” ao considerar
ambos como “aspectos complementares de uma estrutura que se desdobra” (WISHART 1996,
p. 166). Desta maneira, o processo de ligação a fontes não só nos coloca em um jogo de
adivinhação de fontes, mas também permite que ao relacionar as diferentes fontes
identificadas percebemos seus significados metafóricos. O ouvido oscila incessantemente
49 “We
do not need to associate a musical object with, for example, a bird and then with a metaphorical meaning,
we may use the sound of a bird directly. And the concretness of theatrical staging is replaced by a dreamlike
landscape hovering between musical articulation and ‘real-world’ events”.
60
entre dois pólos: o da análise de qualidades espectrais e o da criação de significados. Para
esclarecer o argumento acima, dois exemplos musicais serão usados: Industrial revelations de
Natasha Barrett, e Red Bird, de Trevor Wishart. Em seguida, serão discutidos os aspetos
narrativos de Em um quarto com cabos e vista.
Em Red Bird, de 15m10s a 18m45s ocorre um crescendo. Este crescendo não acontece
apenas em termos de amplitude, mas também em termos de saturação espectral: pouco a
pouco mais sons, cada vez mais intenso, e cada vez mais espectralmente variados, invadem a
paisagem sonora. Os sons provém de duas fontes facilmente identificadas: sons de pássaro,
usado aparentemente com nenhum processamento além de edições discretas, e voz humana
transposta para a região grave. Os sons de pássaros são facilmente identificáveis desde o
início do trecho. Já a voz processada se encontra razoavelmente ambígua em termos de fonte
sonora no início do trecho, tornando sua origem mais evidente ao longo do trecho. O
momento exato em que a voz processada consegue ser identificada enquanto tal é impossível
de precisar por ser um fator que varia radicalmente de ouvinte para ouvinte. Porém, não seria
exagero supor que boa parte dos ouvintes com algum conhecimento a respeito de música
eletrônica/experimental, em algum momento, conseguem identificar estes sons como voz
humana processada. A partir de 18m15s, os sons de voz ganham ímpeto e aceleração. Deste
ponto em diante, Wishart utiliza pequenos trechos de voz, com muita intensidade, e de
durações curtas (menos de 1 segundo) para criar uma textura que pode ser descrita como um
mosaico confuso e barulhento compostos por pequeníssimos samples de voz processada com
uma base de sons de pássaros. Uma espécie de contraponto entre voz humana processada e
sons de pássaro. A voz humana, ainda que processada, já é facilmente reconhecível. O sons
dos animais, mesmo passando a impressão de estarem praticamente inalterados, tem um
comportamento espectromorfológico que nos remete ao bizarro e ao exótico50. Em 18m36s,
esta textura atinge o seu clímax e é interrompida por um som que se parece com vários
objetos de vidro ou porcelana quebrando. Este gesto final termina com um som que me parece
ser o som que um prato gera quando cai e gira em torno do seu próprio eixo, criando um
trêmolo em accelerando que é interrompido subitamente quando este prato finalmente
repousa e para de girar. A textura anterior entra em colapso, e é encerrada com um som de
50
Um dos samples usados, que aparece durante todo o trecho, me deixa em dúvida se é um pássaro que emite
sons com características curiosamente humanas, ou se é um ser humano emitindo notas em falsete que
possuem um curioso caráter de sons de pássaro.
61
vários objetos (que possuem com uma ligação a fontes muito evidente) colapsando e
quebrando. O significado de caos implícito no som de objetos do cotidiano sendo destruídos é
claro e reforça o desabamento da estrutura musical anterior. Em seguida ocorre uma pausa de
alguns segundos, que dá início a um novo trecho da peça, com características sonoras distintas
do anterior.
A criação de metáforas através de sons é uma das maneiras de se construir narrativas
em música eletroacústica, mas certamente não a única. O próprio processo de identificar
fontes tem, em si, um potencial narrativo: ouvintes podem, se tiverem tal inclinação, criar
contextos narrativos que justifiquem a presença de fontes distintas em uma mesma obra.
Certas obras, como Vertige Inconnu de Gilles Gobeil (discutida no capítulo 1) e Industrial
Revelations de Natasha Barret, tendem a induzir o ouvinte a este processo51. Sun-Kim observa
que a música eletroacústica pode, por vezes, “limitar - isto é, enquadrar - as potenciais
imagens e possibilidades de sons escutados” (JUN KIM 2010, p. 50). O autor exemplifica seu
argumento analisando os primeiros minutos de Industrial revelations:
Por exemplo, em Industrial Revelations de Natasha Barret (2001), nem o
pedal em 0:53, nem o rangido estridente [high-pitched squeak] por volta de
1:03 identifica um lugar em particular. Porém, escutados simultaneamente,
repetidamente e cada vez mais intenso, estes dois sons podem formar uma
imagem de um trem que se aproxima em uma velocidade acelerante,
particularmente quando finalmente enquadrados pelo som confirmador de
um trem real parando em uma estação. (SUN KIM 2010, p. 50, tradução
nossa)52
O reconhecimento do trem na paisagem sonora da peça é um processo gradual e o
desenrolar deste processo contém um elemento narrativo. Na mesma peça, Barrett inclui sons
de uma soprano cantando. Estes sons aparecem pela primeira vez em 4m07s, e são repetidos
em vários momentos ao longo de toda a peça. Sons de trem e sons de estação de trem (como
anúncios de horários sendo tocados por alto falantes), os sons da soprano (às vezes
processados, às vezes não) e diversos sons sintéticos são o principal material desta peça. Se o
51
Obras que trabalham com sons de caráter sintético (por exemplo, Phoné de John Chowning e a própria
Harmonicidade e Saturação) tendem a ter um processo de ligação a fontes que não é tão diretamente ancorado
em objetos do mundo material. Os aspectos narrativos são apresentados ao ouvinte por caminhos muito
particulares, e substancialmente diferentes dos discutidos nesta subseção.
52
“For example, in Industrial Revelations by Natasha Barrett (2001), neither the drone at 0:53 nor the short,
high-pitched squeak around 1:03 identifies a particular place. But heard together, repeatedly with ever
increasing loudness, the two sounds may form the image of a train approaching with accelerating speed,
especially when finally framed by the confirming sound at 1:31 of a real train stopping at a station”
62
ouvinte parte do princípio que os sons presentes naquela peça têm alguma razão de estarem lá,
ele construirá alguma narrativa que justifique a justaposição de fontes sonoras distintas. Sun
Kim afirma que a justaposição dos sons de trem e os “sons operísticos da soprano” causam
uma “disjunção semiótica” devido ao fato do ouvinte não conseguir “inserir o corpo da
soprano em uma estação de trem” (SUN KIM 2010, p. 51). De forma parecida, também é
possível afirmar que, para reverter esta disjunção semiótica, o ouvinte pode criar uma
narrativa que permita que estas fontes coexistam. Caso o ouvinte não tenha interesse em
reverter este processo, a narrativa criada é uma que contemple a não resolução desta
disjunção.
Como ja foi mencionado, Em um quarto com cabos e vista possui uma série de fontes
sonoras distintas: hum estático de cabos, copos caindo, portas fechando, sons de janela
abrindo e fechando, isqueiro, vozes na praça, diapasão, sons processados (raspante, cortante,
chacoalhado), sons de objetos do cotidiano sendo manipulados, sons de obra, sons de máquina
de lavar, os sons de estalinhos sendo estourados na praça. Relações causais entre estas
diferentes fontes acontecem ao longo da peça inteira. Logo no início, em 0m41s, o som de um
copo de alumínio caindo interrompe um ruído de fundo. Este ruído consiste em um gravação
dos sons que se escuta na área de serviço de meu apartamento. Um ruído um tanto estático e
reverberado, com sons pouco intensos de atividade humana. Quando surge o som do copo,
este ruído de fundo é interrompido. Seguem alguns segundos apenas com sons de cabo, e dois
sons de chave girando em fechadura. Uma porta bate em 0m48s, e surge o som de uma praça.
No final da peça, de 5m16s a 5m47s, temos uma espécie de drone feito a partir de sons de
máquina de lavar processados. Em 5m48s, o som do copo caindo é repetido juntamente com o
som de portas batendo. Após em 5m49s, surge novamente o som da praça e o drone inicia um
processo de fade-out. Em 6m25s, este fade-out termina, e dà início a um fade-in do hum
estático dos cabos. Os sons da praça aos poucos desaparecem, e a peça termina o hum
estático, que eventualmente desaparece em fade-out. É difícil prever se um ouvinte poderia
supor que estes sons estão contando uma história. Da mesma maneira, é difícil supor quais
fontes estão claras para o ouvinte e quais não estão. Porém, é possível afirmar que alguns
sons, como os sons das crianças, possuem um processo de ligação a fontes muito claro.
No caso das vozes de crianças e adultos, o que fica ambíguo é o contexto. Os sons dos
adultos e crianças interagindo contêm alguns elementos que indicam que aquele contexto
63
envolve, em algum nível, algum tipo de brincadeira. A risada enfática de uma menina em
0m53s; uma mulher, falando de forma enfática, “para com isso!; garotos se comunicando aos
berros enquanto soltam estalinhos de 6m41s a 7m53s. Todos estes sons são comuns em
parques, praças, festas infantis, ruas pouco movimentadas em fins de semana, entre outros.
Eu(por ser quem compôs a peça) sei que se trata de uma praça, mas a grande maioria dos
ouvintes não tem como ter acesso a esta informação: nem o título nem os fatores musicais
remetem diretamente a uma praça53. Os sons de porta, de copos e de janelas, quando não
processados com efeitos, também soam claros em termos de ligação a fontes. E, assim como
os sons das crianças, o contexto que une estas diferentes fontes é criado na imaginação do
ouvinte. O som da porta fechando tendo uma relação causal com o o som de um espaço aberto
pode remeter à narrativa de alguém saindo de casa. O som de porta batendo carrega em si
algum significado, mas o significado exato que ele vai criar no ouvinte é, em parte,
imprevisível54. Em suma, as informações sobre fonte e gesto, nos sons mencionados acima,
estão sempre incompletas. O ouvinte pode, caso ele tenda a ter este tipo de escuta, imaginar
fontes, contextos e gestos deduzidos através das espectromorfologias. Os contextos, gestos e
fontes imaginados pelo ouvinte constituem inevitavelmente uma narrativa.
Por último, é relevante mencionar o caráter indicial contido em gravações de objetos
de uso cotidiano e paisagens. Índice, no sentido de Pierce, é um signo que “refere ao objeto
que ele denota por virtude de estar de fato afetado pelo objeto” (PIERCE 1903 apud.
BERGMAN; PAAVOLA 2003); o indíce está “fisicamente conectado ao objeto, mas a mente
interpretativa nada tem a ver com esta conexão, exceto por observa-lá depois de
estabelecida.” (PIERCE 1894 apud BERGMAN; PAAVOLA 2003). Pierce nos dá alguns
exemplos de índices, entre eles:
Um barômetro a marcar pressão baixa e ar úmido é índice de chuva; isto é,
supomos que as forças da natureza estabelecem uma conexão provável entre
53
Um dos títulos cogitados para a peça foi “Autorretrato a partir de uma praça”. Porém, este título acabou sendo
usado em um outro trabalho, feito em parceria com o poeta Ismar Tirelli Neto.
54
Para exemplificar a grande variedade de escutas possíveis, vale mencionar um breve comentário de Rodolfo
Caesar a respeito de Presque Rien. Caesar afirma que a escuta da obra de Ferrari não só “re-abre o espectro da
experiência musical para a imaginação referencial” (CAESAR 2012, p.2), mas também estimula outros
sentidos. O autor afirma que o aumento dos sons de insetos no trecho final da peça “estimula no ouvinte uma
sensação de calor, atingindo assim o sentido tátil térmico” (ibid.) De todas as análises de Presque Rien citadas
neste trabalho, esta é única que comenta a peça por uma perspectiva multisensorial. A multisensorialidade é
uma percepção possível, mas não necessariamente uma escuta que é comum a todos. Mesmo assim, não deixa
de ser relevante.
64
o barômetro que marca pressão baixa com o ar úmido e a chuva iminente.
Um cata-vento é um índice da direção do vento dado que, em primeiro lugar,
ele realmente assume a mesma direção do vento, de modo tal que há uma
conexão real entre ambos. (PIERCE 2000, p. 67)
Frances White, fazendo um paralelo com a discussão sobre fotografia de Susan
Sontag, argumenta que por mais que tenhamos consciência de que uma gravação é apenas um
“arranjo particular de partículas magnéticas em uma fita, (ou uma linha de números
particulares) não podemos evitar de sermos afetados pela maneira como aquelas partículas ou
números recriam um recorte particular de tempo” (WHITE 1990). Usando como exemplo a
voz gravada, a autora argumenta que esta gravação “não é uma ‘representação’ ou
‘interpretação’ daquela voz; ela é aquela voz e, enquanto tal, é aquela pessoa falando
conosco” (ibid.). White afirma ainda que o uso de sons concretos diminui a separação entre
vida e arte, pois “a maneira como um compositor trata estes fragmentos [sonoros] é uma
afirmação óbvia e irrefutável sobre a sua relação com o mundo. As conotações éticas e
musicais desta relação não podem ser separadas”. Em música instrumental (mesmo que o
instrumento seja eletrônico), White argumenta que existe uma camada de abstração entre o
compositor e o mundo, abstração esta que não está presente na composição que faz uso de
paisagens sonoras (ibid.)55 . Ao escutar o som de uma praça, o ouvinte se concentra nos
elementos sonoros que aquela paisagem específica tem e nos gestos e fontes sonoras que
podem ser recriados em sua imaginação. Escolher gravar aquele local, e selecionar um trecho
específico daquela gravação para ser incluída na obra sempre tem um motivo, composição
musical é sempre fazer escolhas, e raramente estas escolhas são gratuitas 56. Porém, o porquê
daquele local ser gravado e editado de uma maneira específica não está necessariamente
explicitado no material sonoro utilizado. O título, assim como outros elementos podem
fornecer alguma pista ao ouvinte a respeito do propósito do objeto gravado estar presente na
obra57 . Uma diferença crucial entre fotografia e música eletroacústica que trabalhe a questão
55
No entanto, sons instrumentais quando gravados e executados por alto falantes adquirem um aspecto indicial.
Mesmo assim, existe uma diferença grande entre a gravação de uma sinfonia de Beethoven e uma peça
acusmática que se utilize de diversos trechos de gravações de sinfonias de Beethoven.
56
Por mais que uma escolha tenha sido completamente arbitrária para o compositor, ela pode ser percebida como
premeditada por parte do ouvinte. Assim como algo soar aleatório não impede que o compositor tenha feito
escolhas durante o processo de composição.
57
A relação entre o título e a escuta espectromorfológica nas peças mencionadas neste capítulo será discutida na
seção 2.5.
65
de paisagens sonoras é que a gravação de paisagens sonoras já surge fortemente associada a
prática da composição musical eletroacústica, que não pretende ser um retrato neutro da
realidade, mas sim um retrato possível da percepção subjetiva de um espaço (novamente, é
possível citar Kit’s Beach Soundwalk como exemplo). Esta transição, na fotografia, de
registrar o “aquilo que realmente percebo” ao invés do que “realmente existe (SONTAG 2011,
p. 136) acontece algumas décadas depois da fotografia surgir. Já a paisagem sonora é, por
definição, aquilo que percebo
Neste sentido, a escolha e a gravação do material a ser usado já é parte do processo
composicional; o material gravado nos guia inevitavelmente a algumas direções. O som
instrumental/sintético é quase neutro. Em seguida, será discutido em mais detalhes a escuta
dos sons sintéticos de Em um quarto com cabos e vista.
2.3.2. Os cabos do quarto: processamento digital e fonte sonora.
A relação entre o som/ruído concreto e o som/ruído sintético é uma questão que é
crucial não apenas para a música eletroacústica acadêmica, mas para a música eletrônica
como um todo. Os diferentes subgêneros de música eletrônica, tanto da música acadêmica
quanto da música feita fora da academia, frequentemente são em parte definidos pelos
procedimentos técnicos utilizados. A musique concrète francesa se trata de música feita com
sons gravados e editados, a elektronische musik alemã faz uso apenas de sons eletrônicos
sintéticos, a computer music americana tem a computação musical como a base de seu
processamento sonoro, a música glitch faz o uso intenso de sons de processamentos digitais
que contém erros (por exemplos, sons que surgem com clips digitais, taxas de amostragens
corrompidas, leitura das amostras na ordem errada, etc.), o dubstep do Reino Unido é
fortemente dominado pelo uso de sintetizadores para compor as linhas de baixo. Apesar de
muito diferentes entre si, quase todos estes subgêneros têm em suas fundações uma discussão
entre as dicotomias som/ruído e concreto/sintético. Não cabe neste trabalho listar toda as
instâncias em que estes pontos são levantados em cada um destes subgêneros58. Porém, dois
exemplos do dubstep londrino me parecem particularmente relevantes dentro desta discussão.
William Bevan (mais conhecido por seu nome artístico Burial), um renomado compositor/
58
Para uma descrição mais detalhada das fronteiras dos principais gêneros da música eletroacústica, ver
LANDY 2007, p. 9-19.
66
produtor de dubstep, é conhecido por incluir como pano de fundo em suas músicas (quase
sempre em 4/4, com batidas graves marcantes) sons de ruído de vinil, chuva, interferências
presentes em transmissões de rádio pirata, entre outros elementos. O músico, em uma
entrevista para a revista The Wire, afirma que a inclusão destes ruídos concretos ajuda a
mascarar “o quanto as minhas canções são sem-graça [lameness of my tunes]” (BEVAN
2007). Em outra entrevista, Bevan descreve como começou a incluir estes sons em seu
processo composicional:
Chiado de rádio pirata, chiado de vinil - eu gosto [destes sons]. […]. Este
chiado fica sobre as minha batidas, esconde o espaço entre elas. Quando
comecei a fazer música eu conseguia enxergar através [destas batidas] e
fiquei decepcionado porque destruiu um pouco o mistério. Mas quando
coloco chiado sobre ele, ele [o chiado] esconde o resto debaixo de camadas,
já não me pertence mais. E você acaba sentindo um ambiente verdadeiro.
(BEVAN 2006, tradução nossa)59
Em outras palavras, o ruído concreto, para Bevan, cria um contexto para os sons
sintéticos e percussivos. Resignificados, estes sons têm o potencial para se tornarem o fio
condutor de seu discurso musical. De maneira similar, Martin Clark e Dan Frampton (também
compositores/produtores de dubstep, conhecidos pelo nome artístico DUSK +
BLACKDOWN) afirmam que os sons sintéticos de bumbo, pratos e caixas de bateria, quando
isolados em um “contexto sonoramente limpo” são percebidos enquanto “estéreis, sem
contexto, à deriva, livres de cultura” (CLARK; FRAMPTON 2005). Para enriquecer estes
sons estéreis, os músicos incluem o que eles chamam de sons-chave (keysounds): sons
concretos (às vezes processados, às vezes não) como sons de chuva, trechos de conversas do
cotidiano, sons do metrô, etc., que referenciam os aspectos que eles consideram marcantes da
experiência de se viver em Londres (ibid.). Várias músicas da dupla contém um pano de
fundo formado por sons-chave em loop, e estes sons “constroem um contexto: um som
constante que faz surgir um ambiente, um espaço, uma cultura, uma cidade” (ibid.).
Os sons de cabo de Em um quarto com cabos e vista são estéreis quando comparados
aos outros sons presentes na peça. Quando colocados lado a lado com os sons de praça e de
objetos do cotidiano, a capacidade de fazer alusão a significados presentes nos sons concretos
59
“Pirate radio crackle, vinyl crackle – I like. […]. That crackle sits over my drums, hides the space between
them. When I started making music I could see through it and I was disappointed because it destroyed the
mystery for a bit. But when I chuck crackle over it, it hides it under layers, it’s no longer mine. And you get a
feel of a real environment”
67
ressalta a falta de capacidade dos sons sintéticos de se comportar da mesma maneira. Neste
sentido, os sons sintéticos podem ser descritos como mais limitados. Isto não significa que os
sons de cabo são, em si, pouco expressivos. Como mencionado anteriormente, as implicações
gestuais e de fonte em sons sintéticos são complexas de outras maneiras. Porém, no caso
específico de Em um quarto com cabos e vista, o jogo de significados que ocorre entre os sons
concretos apresentam um discurso mais complexo e articulado do que o discurso apresentado
pelos sons sintéticos. A separação dos discursos sintético/concreto é, em termos teóricos,
forçada. Na prática, ambas as categorias de sons são articuladas em um discurso único. No
entanto, o peso da dicotomia concreto/sintético permite, em alguns momentos, que os
discursos sejam analisados separadamente. Assim como para Smalley é preciso separar o
conteúdo espectral e a maneira como este é moldado no tempo, por não ser possível
simultaneamente “descrever o que está sendo moldado e os moldes em si” (SMALLEY 1997,
p. 3), para discutir (e perceber através da escuta) como o concreto e o sintético se misturam
em um discurso único é preciso, em alguns momentos, tratá-los como discursos distintos.
Os sons de cabos processados estão presentes durante a maior parte de Em um quarto
com cabos e vista. As vezes aparecem em primeiro plano, as vezes enterrados em texturas
concretas. Eles aparecem sozinhos, sem a presença de sons concretos, em apenas dois
momentos: nos primeiros segundos e nos segundos finais da peça. Em todos os outros
momentos os sons sintéticos aparecem justapostos aos sons concretos. Os primeiros 50
segundos da peça já foram discutidos em momentos diferentes deste trabalho para discutir a
terminologia de Smalley (seção 1.4) e para ressaltar os aspectos narrativos da obra (seção
2.3.1). A seguir, este mesmo trecho será discutido com o foco na percepção dos sons
sintéticos. No início de Em um quarto com cabos e vista, os sons de cabo permanecem apenas
26 segundos sem um acompanhamento concreto; em 0m27s surgem, em fade-in, os primeiros
sons concretos da praça. Esta textura concreta é interrompida, em 0m41 pelo som de copo já
mencionado anteriormente. O som de cabos, no entanto, segue inalterado. De 0m42s a 0m47s,
o som dos cabos é acompanhado por sons de fechadura. Em 0m48s o som de uma porta
batendo dá início à primeira aparição dos sons de praça. Novamente, o som dos cabos segue
inalterado. Este início de peça, como mencionado anteriormente, é marcado por uma série de
relações causais e narrativas entre os sons concretos. Os sons de cabo, no entanto,
permanecem quase estáticos durante todo este trecho, e desaparecem em fade-out entre 1m00s
68
e 1m08s. Por um lado a falta de causalidade entre os sons concretos e os sintéticos pode fazer
com que um ouvinte perceba cada uma destas categorias como distintas. Por outro, quando
escutamos a peça sob a ótica de um único discurso que englobe o concreto e o sintético, o
aspecto indicial dos sons concretos acaba por inserir os sons sintéticos em contexto. Os sons
sintéticos estão acontecendo simultaneamente com os concretos, a justaposição de ambos faz
as diferenças perceptivas entre estes sons se tornem imbricadas em um discurso único. Em um
primeiro momento, as características únicas do concreto e do sintético são ressaltadas. Em
seguida, é ressaltado o fato de ambos os discursos estarem acontecendo simultaneamente, e
uma narrativa que dê conta desta simultaneidade pode vir a surgir no ouvinte.
2.4.
ON COMMON PEOPLE, SIGNAL-TO-NOISE RATIOS, AND LOVE IN
GENERAL: METALINGUAGEM E ESPECTROMORFOLOGIA
A última peça a ser discutida, intitulada On common people, signal-to-noise ratios and
love in general, tem dois elementos que a diferenciam das outras peças deste capítulo: a
presença de voz humana (cantada e falada) e o aspecto documental de gravações. Todos os
sons presentes na peça foram obtidos através de gravações de duas mulheres (Ana Paula
Soares Carvalho e Maria Isabel Lamim) cantando canções e dos diálogos que ocorreram
durante a gravação destas canções. Embora tenham frequentado, em momentos diferentes de
suas vidas, aulas de música esparsas, nenhuma das duas se considera musicista. As canções
interpretadas são Me deixa em paz, de Aírton Amorim e Monsueto, e Estrela do mar, de Paulo
Soledade e Marino Pinto. Trechos editados das gravações de Ana Paula e Maria Isabel
interpretando estas canções aparecem em vários momentos da peça. Além destes sons
cantados, a minha própria voz falada aparece diversos trechos, às vezes conversando com
elas, às vezes guiando a gravação (pedindo para que cheguem mais perto do microfone ou
para que repitam o refrão) e às vezes simplesmente contanto uma história qualquer (como por
exemplo, sobre quando trabalhei em uma rádio). Este material também foi alterado através de
pedais de distorção e diversos procedimentos de processamento digital. O material
processado/distorcido está presente sozinho em alguns trechos e acompanhado do material
não processado em outros. Os processamentos foram usados com o intuito de gerar longos
pedais e drones que, por mais abstrato que fossem, ainda conservassem algo dos aspectos
69
espectromorfológicos da voz humana, seguindo a premissa de Wishart de que a voz humana
ainda é reconhecível mesmo quando “suas características espectrais específicas foram
completamente alteradas” (WISHART 1986, p. 50).
Há diversos tópicos relacionados a ligação a fontes e substituição gestual que podem
ser discutidos a partir da escuta desta peça. Porém, várias destas questões, como a transição
entre substituições gestuais de primeira para terceira ordem (por exemplo, o vocalize da vogal
a entre 2m40s a 2m50s) e ambiguidade na percepção de fontes (por exemplo, o som
distorcido em 6m25s), já foram discutidas nas seções anteriores deste trabalho. Levantar estes
pontos, mas desta vez exemplificando os argumentos com trechos de On Common People,
seria excessivamente redundante. Por este motivo, serão levantados apenas os tópicos acerca
da escuta da peça que realmente acrescentam algo novo a discussão. O primeiro destes pontos
diz respeito a relação entre o conceito de ligação a fontes e a voz humana.
A voz humana quando escutada através de alto falantes cria uma uma relação de
ligação a fontes muito particular. No caso dos diálogos de On Common People, a fonte que dá
origem àqueles sons está agindo com completa consciência do que está fazendo. E, além
disso, está nos tentando comunicar algo com linguagem. Os sons de cigarra de Presque Rien
certamente carregam significado, mas chamar a informação que carregam de linguagem é
uma afirmação que demanda reflexão e um certo cuidado. Chamar diálogo e canto de
linguagem é uma afirmação muito menos audaciosa. Esta idéia está presente em vários
momentos de On Common people60. A peça começa com um fade-in de sons processados e
distorcidos, obtidos através da manipulação de trechos de notas cantadas. Em 0m43s, a minha
voz entra e diz “não fica muito perto, nem muito longe. Fica tipo um palmo e pouquinho. Um
pouquinho mais. Não, vai. Pode ir.”. Ana Paula responde com a pergunta “então são dois
palmos?”. Em seguida (0m56s), aparece um som construído através da sobreposição de vários
trechos Ana Paula falando. No meio deste som composto por sons menores, uma frase se
sobressai: “mas não demora muito pra voltar, eu tenho medo de ficar sozinha com os gatos”.
Esta frase encerra a textura anterior, e causa o início de uma textura nova composta por
longos vocalizes processados da vogal a. Neste trecho, o som já faz uma ligação a fontes clara
com a voz feminina. Caso o ouvinte tenha suspeitado que os sons do início da peça eram
construídos a partir de voz processada, a entrada do som em 0m56s tende a confirmar esta
60
A voz humana também está presente em Em um quarto com cabos e vista, mas aparece sempre junto a outros
sons, às vezes quase mascarado. Não há nenhum diálogo que possa ser percebido com muita clareza.
70
suspeita. Esta textura se mantém, e em 1m47s surge um diálogo entre eu e a segunda voz
feminina a aparecer na peça, de Maria Isabel. O diálogo segue até 1m58s, quando é
subitamente interrompido por um som que parece ser de uma janela, ou persiana, sendo
fechada bruscamente. Abaixo, uma transcrição deste diálogo.
[1m46s - 1m58s]
Maria Isabel: assim, como você disse que ia sair mesmo do apartamento no
(…), eu meio que ‘ah, já tá aí fora, vai lá”61.
Orlando Scarpa: tá, eu desço.
Maria: mas aí você vai deixar gravando, ou eu que boto pra gravar ou… ?
Orlando: não eu vou deixar gravando
Maria: Tá, e aí se tiver um… não tem problema se rolar um…
O diálogo sofre uma interrupção abrupta, e em seguida (de 1m59s a 2m12s) surge uma
colagem composta por vários trechos de Maria Isabel cantando Estrela do mar. A palavras
que estão sendo cantadas neste trechos ficam pouco compreensíveis devido ao aspecto de
colagem, mas novamente, uma frase se sobressai: de 2m06s a 2m12s escutamos claramente
Maria Isabel cantando “ (…) depois, muito depois, apareceu uma estrela no mar”. Após este
trecho, surge um novo trecho composto por vocalizes processados. Este trecho em vocalize,
porém, é encerrado de uma maneira diferente em comparação ao vocalize presente no início
da peça. Entre 2m22 e 2m25s, a voz processada e muito reverberada se transforma (via
crossfade) em voz não processada. Em 2m26s temos uma breve risada de Ana Paula, e em
seguida o seguinte diálogo:
[2m27s - 2m39s]
Ana Paula: eu não faço idéia de qual nota foi essa. [seguido de um breve
miado de gato]
Orlando: Nem eu. Ninguém sabe. Você não tem nada pra comparar. Tá, faz
de novo.
Em 2m39, surge um novo vocalize da voz processada de Ana Paula. O diálogo
continua com o este vocalize em segundo plano:
[2m46s - 3m24s]
Orlando: Tá. Então, eu vou sair. Qual música você vai cantar mesmo? Você
não sabe?
Ana: [leve suspiro] Eu tô entre uma e outra
Orlando: Canta as duas, então. Ou você não quer cantar as duas?
Ana: é… [breve pausa]. Que uma é muito curtinha também, né. Me deixe em
paz é muito curtinha. Só se eu cantar ela várias vezes.
61
Alguns trechos do dialógo gravado são incompreensíveis. As palavras que não são compreensíveis serão
marcadas com o símbolo “(…)”
71
Orlando: Não, canta uma vez só. Qual que era a outra?
Ana: a Dança da solidão.
Orlando: então canta as duas. Ó, eu vou… daqui a 3 minutos eu não tô mais
aqui.
Ana: mas não demora muito pra voltar, eu tenho medo de ficar com os gatos.
Orlando: eu vou fechar a porta aqui. Cuíca, sai pra lá.
Em 3m25s, o mesmo som de persiana presente em 1m58 interrompe o diálogo e marca
a entrada de um longo trecho (que dura até 6m00s) composto por uma densa textura de
vocalizes. De 3m25s a 9m20s em diante, não há a inserção de nenhum elemento novo. Este
trecho inteiro (que dura 5m55s, mais que a metade da duração total da peça) é construído por
vocalizes processados, diálogos entre intérpretes e compositor, montagens com trechos das
canções62, alguns poucos sons de objetos do cotidiano sendo manipulados (o som da janela,
sons do pedestal de microfone sendo ajustado) e o breve miado do gato que aparece
sutilmente em apenas um 2m27s. Em 9m21s surgem sons ruidosos obtidos através de cabos
ligados em apenas uma de suas extremidades63. Este sons reaparecem em seis outros instantes
até o final da peça, quase sempre desencadeando um rarefação da textura. O último destes
sons de cabo ocorre entre 9m53s e 9m56s, reduzindo a textura geral, que instantes antes era
formada por várias sobreposições da voz de Ana Paula cantando, a apenas duas vozes
cantadas. Uma dessas vozes é interrompida em 10m00s, e a peça termina com apenas uma
camada da voz de Ana Paula cantando “nem deixar eu me apaixonar”.
Os gestos produzidos pelo diálogo, em uma primeira impressão, podem ser
classificados como de primeira ordem, i.e., sons de trabalho, recreacionais ou do cotidiano.
Porém, o nível de nuance e sutileza presente na comunicação verbal se equipara (ou até
mesmo ultrapassa) o nível de sutileza e controle de sons instrumentais (que seriam
considerados de segunda ordem). Tratando-se de voz humana, a fronteira entre substituição de
primeira ordem e segunda ordem se torna tênue. A ligação a fontes também adquire uma
camada extra de significado: a fonte que produz o som pode estar (no caso de On Common
People, ela de fato está) completamente consciente dos sons que está produzindo. A voz
falada passa a conter, além do caráter indicial, um fator documental. As gravações dos
62
As colagens de Ana Paula cantando Me deixa em paz aparecem pela primeira vez em 7m00s. Entretanto, seria
um erro considerar estes trechos como material novo por serem espectromorfologicamente muito próximos das
colagens feitas com a voz de Maria Isabel.
63
Estes sons são similares aos presentes em Em um quarto com cabos e vista. A diferença entre ambos é que,
enquanto os sons presentes presentes foram processados e filtrados, os sons de cabo em On common people
não sofreram nenhum tipo de processamento além da edição.
72
diálogos não são apenas um indício de algo que aconteceu em determinado instante, são
também uma interpretação subjetiva da interação entre duas pessoas em determinado
momento. Enquanto Em um quarto com cabos e vista pretendia ser, em parte, uma peça sobre
os sons de praça e de quarto, On common people tem o potencial de ser percebida enquanto
uma peça sobre o processo de se gravar sons. Um discurso metalinguístico sobre a
experiência acusmática, ou em outras palavras, uma peça acusmática que discute o processo
de se fazer peças acusmáticas. Esta camada de metalinguagem faz com que os sons de voz
cantada e os sons processados sejam escutados de outra maneira. O ouvinte, se tiver
inclinação para discussões do tipo, não consegue mais se esquecer que On common people foi
composta por uma pessoa específica, que se insere diretamente na peça.
2.5.
A FUNÇÃO DO TÍTULO NA ESCUTA ESPECTROMORFOLÓGICA
A espectromorfologia, como mencionado diversas vezes neste trabalho, é ancorada na
escuta. Logo, a composição musical que se utiliza das ferramentas espectromorfológicas deve
tentar se manter, sempre que possível, no mesmo viés: a discussão e problematização da
escuta se tornam a base do pensamento composicional. No entanto, por vezes é difícil saber
até que ponto a percepção de causalidade, substituição gestual e ligação a fontes acontecem
da mesma maneira em ouvintes distintos. Para ter o mínimo de certificação que estes
processos ocorrerão em pelo menos uma parte dos ouvintes, é necessário deixar o discurso o
mais claro possível. Para introduzir esta breve discussão sobre a função do título na clareza do
discurso, vale notar um curioso paralelo que existe entre a música eletroacústica e a pintura
expressionista abstrata como discutida por Mikel Dufrenne (2008).
Para Dufrenne, “o título é, então, uma indicação que orienta nossa percepção
entregando-nos o assunto: substituto da figuração” (DUFRENNE 2008, p. 264). Assim como
a pintura abstrata “nos adverte do que quer dizer e confia em nós para decidir se, de fato, o
disse; pede a nossa colaboração e se submete ao nosso juízo” (ibid., 265), as peças discutidas
neste capítulo tem a intenção de salientar certos tipos de escuta e o ouvinte está a todo
momento livre para discordar que tal peça de fato está discursando sobre tal assunto, ou o
induzindo a certa escuta. O título é um elemento essencial neste processo colaborativo entre
compositor e ouvinte pois ele, antes mesmo do ouvinte iniciar a escuta da peça, já dá algum
73
indício de qual tema será tratado. Em um quarto com cabos e vista remete, por exemplo, a
dois lugares: o interior de um quarto e ao mundo exterior a este quarto. O título On common
people, signal-to-noise ratios and love in general deixa explícito que, nos próximos 10
minutos, algo será dito sobre pessoas comuns, a relação sinal-ruído e o amor de maneira geral.
As palavras Harmonicidade/saturação indicam que, de alguma maneira, a peça a ser escutada
tem em seu material alguma harmonicidade e alguma saturação (e tanto saturação quanto
harmonicidade que podem ser interpretadas de diversas maneiras). Os significados que eu,
enquanto compositor, percebo nas palavras de todos os títulos mencionados e a sua relação
com o material musical estão inacessíveis ao ouvinte, e os possíveis significados que estes
títulos podem evocar são variados demais para se propor uma interpretação única. A natureza
aberta da grande maioria das obras acusmáticas traz necessariamente uma incompletude no
título. E é nesta incompletude que está a força do título. Citando novamente uma observação
de Dufrenne sobre a pintura figurativa:
A pintura figurativa corre menos riscos: ela impõe ao espectador um assunto
cuja presença não poderá ser contestada por ele. Mas ela corre um outro
risco: é que o assunto, açambarcando a atenção do espectador, torna-se para
ele o único fim da pintura, em tal caso não se trata mais de beleza da obra,
mas somente de sua verossimilhança. (DUFRENNE 2008, p. 65)
Apesar de não ser uma preocupação deste trabalho a busca pela beleza de obra
alguma, Dufrenne levanta uma questão relevante para nossa discussão neste trecho. A música
acusmática, na maioria das vezes, não corre o risco de ser reduzida à uma busca da
verossimilhança entre assunto proposto e a obra concretizada. Os elementos indiciais
presentes não se concretizam enquanto assunto, mas sim enquanto maneiras de escutar
implicadas nas entrelinhas das obras. Para que o título possa auxiliar a projeção destas
entrelinhas para um primeiro plano, é necessário que haja um diálogo entre o discurso
implícito no título e o discurso implícito na música escutada.
74
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reflexão a cerca da nossa própria percepção é sempre um processo complexo. Por
um lado, a tentativa de universalizar o subjetivo é muitas vezes ineficiente. Por outro, ancorarse num discurso subjetivo e excessivamente pessoal pode também ser limitante. As
ferramentas conceituais da espectromorfologia podem auxiliar a cruzar esta ponte entre a
percepção individual e a coletiva. Não é absurdo supor que a maioria dos ouvintes de música
percebam coisas como gesto, fonte e relações causais em situações de escuta acusmática.
Conceitos como o de ligação a fontes, causalidade e substituição gestual são úteis para
detalhar como se dá este processo. Correlacionar as idéias de Smalley com a de outros autores
que trabalham no mesmo campo ajuda a estender as noções de fonte e gesto para campos não
mencionados pelo autor. A fonte à qual um som está associado possui uma série de símbolos
que também fazem parte do processo de escuta. Como já mencionado, o som do mar, inserido
em um contexto musical, nós remete a toda uma simbologia associada. O som de um sino é
interessante não só por suas características espectrais, mas também por trazer consigo a idéia
de religiosidade, entre outros fatores.
Investigar as relações entre o trabalho de Schaeffer e o de Smalley também ajuda a
esclarecer as premissas de ambos. O trabalho de Pierre Schaeffer marca o início das
investigações de sons gravados, e é o ponto de partida para o trabalho de Smalley. Porém,
como foi discutido, enquanto Schaeffer procura fazer uma fenomenologia do objeto sonoro
baseado no conceito de èpoche de Husserl, Smalley se baseia em sua subjetividade e em
figuras de linguagem para tentar descrever as relações entre espectromorfologia/contexto e a
sua própria poética de criação musical.
Como já foi mencionado diversas vezes, juntamente com a discussão conceitual, esta
pesquisa aborda o meu próprio processo de criação musical. Ao revisitar as proposições da
espectromorfologia após ter sentido a sua influência no meu processo composicional, propusme a relatar como se dá a minha escuta espectromorfológica do meu próprio trabalho. O
processo de composição, muitas vezes intuitivo, uma vez reavaliado à luz da bibliografia
selecionada aponta diversos fatores que não estavam claros em uma primeira instância. A
relação entre timbre, tecnologia e fonte sonora em Harmonicidade e Saturação; a
indicialidade das paisagens sonoras contraposta aos sons processados de Em um quarto com
75
cabos; e a relação entre metalinguagem e espectromorfologia em On common people, signalto-noise ratios and love in general são questões que estavam presentes em minhas reflexões
durante o processo composicional, mas que só foram tomar corpo enquanto discurso
argumentativo (em oposição a discurso musical) a posteriori. Seguindo este caminho, a
composição musical se transforma em um método e a escrita nos serve para organizar as
idéias que surgiram no fluxo da experiência64 . A contraposição de experiência e teoria nós
permite criar um discurso que em alguns momentos mergulha em uma subjetividade extrema,
e em outros consegue se distanciar do seu objeto de estudo.
Por último, vale mencionar uma última peça, composta já nos estágios finais desta
pesquisa e que não é mencionada nos capítulos deste trabalho. A peça, intitulada A respeito
dos sons que escolhemos ignorar, é composta por sons gravados na cidade de Rio de Janeiro.
A peça dura 4m44s e é composta por trechos de diálogos que escutamos na rua, sons de
cigarra no final da tarde, sons do metrô, sons de camelôs vendendo produtos nas ruas, sons de
elevador, entre outros. A idéia é justamente buscar uma escuta musical de sons do cotidiano
que normalmente ignoramos. Os sons de cigarra que aparecem em 1m46s são longos pedais
de altura definida, com pequenas flutuações no espectro que lembram notas tocadas em
instrumentos de sopro. O som de uma porta pantográfica abrindo, que aparece pela primeira
vez em 0m02s, é formado por um único gesto rítmico bastante claro. Existe alguma
expressividade nestes sons, e definir o que se entende por expressão musical neste contexto, e
porque estes sons possuem esta expressividade, é um possível tema para pesquisas futuras.
Juntamente com esta questão, há também a discussão sobre ruído. Uma análise conceitual
mais rigorosa a respeito de ruído, e principalmente como o conceito ruído se insere dentro da
espectromorfologia, é algo que por limitações de tempo e espaço não foi incluído neste
trabalho. Se definirmos ruído como sons que indesejáveis que atrapalham a transmissão de
uma mensagem principal, todos os sons de A respeito dos sons que escolhemos ignorar são
ruidosos. Porém, isto não impede que alguns dos sons presentes sejam mais propícios à escuta
musical que outros. E, pelo fato de alguns sons se sobressaírem enquanto mais musicais que
outros, e uma delimitação conceitual mais rigorosa sobre o que se entende por som e o que se
entende por ruído dentro da escuta espectromorfológica se faz necessária em pesquisas
64
Experiência como definida por William James (1912).
76
futuras. E, novamente, um caminho possível para discutir estas idéias que estão por vir é
conciliar a discussão teórica com a produção artística.
77
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. Traduzido por Alfredo Bosi et al.. São Paulo:
Martins Fontes, 2007.
BATTIER, M. What the GRM brought to music: from musique concrète to acousmatic music.
In: Organised Sound , n. 12 (3). Cambridge: Cambridge University Press, p. 189-202, 2007.
BERGMAN, M.; PAAVOLA, S. The Commens dictionary of Pierce's terms. Livro HTML,
2003. disponível em <http://www.helsinki.fi/science/commens/dictionaryfront.html>. Acesso
em: 25 de novembro de 2012.
BEVAN, W. (BURIAL). Entrevista online. Disponível em: <http://
blackdownsoundboy.blogspot.com.br/2006/03/soundboy-burial.html>. Acesso em: 29 de
novembro de 2012.
______. Entrevista em site da revista The Wire, 2007. Disponível em: <http://
www.thewire.co.uk/in-writing/interviews/burial_unedited-transcript>. Acesso em: 29 de
novembro de 2012.
BLACKBURN, M. The visual sound-shapes of spectromorphology: an illustrative guide to
composition. In: Organised Sound, n. 16 (1). Cambridge: Cambridge University Press, p.
5-13, 2011.
BREGMAN, A. S. Auditory scene analysis: the perceptual organization of sound.
Massachusetts: MIT Press, 1990.
______. ASA theory. website, 2008. Disponível em: <http://webpages.mcgill.ca/staff/Group2/
abregm1/web/asa.htm>. Acesso em: 08 de maio, 2012.
CAESAR, R. O tímpano é uma tela?. Artigo online, 2008. Disponível em: <http://
www.academia.edu/1487234/O_Timpano_e_Uma_Tela_primeira_versao_>. Acesso em: 29
de novembro de 2012.
CHION, M. Audio-vision: sound on screen. Traduzido por Claudia Gorbman. Nova Iorque:
Columbia University Press, 1994
______. Guide to sound objects. Tradução de por John Dack e Christine North. Londres: Ears
- Electroacoustic Resource Site, 2009. Disponível em: <http://www.ears.dmu.ac.uk/spip.php?
page=articleEars&id_article=3597>. Acesso em: 15 de novembro de 2011.
CLARK, M.; FRAMPTON, D. (DUSK + BLACKDOWN). Publicação em website, 2005.
Disponível em: <http://blackdownsoundboy.blogspot.com.br/2005/06/keysoundrecordings.html>. Acesso em: 29 de novembro de 2012.
78
DUFRENNE, M. Estética e filosofia. Tradução por Roberto Figurelli. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2008.
DROTT, E. The politics of Presque Rien. In: ADLINGTON, R (Org.). Sound Commitments:
Avant-garde Music and the Sixties. Nova Iorque: Oxford University Press, 2009, p. 145-166
HUSSERL, E. Meditações cartesianas: introdução à fenomenologia. Traduzido por Frank de
Oliveira. São Paulo: Madras, 2001.
JUN KIM, S. Imaginal listening: a quaternary framework for listening to electroacoustic
music and phenomena of sound-images. In: Organised Sound 15(1). Cambridge University
Press, p. 43-53, 2010.
______. Listeners and imagination: a quaternary framework for electroacoustic music
listening and acousmatic reasoning. Tese de doutorado (Doutorado em Filosofia) Departamento de Filosofia da Universidade da Flórida. Disponível em: <http://etd.fcla.edu/
UF/UFE0022616/kim_s.pdf>. Acesso em: 15 de novembro de 2011.
KANE, B. L’Objet Sonore Maintenant: Pierre Schaeffer, sound objects and the
phenomenological reduction. In: Organised Sound n. 12(1). Cambridge: Cambridge
University Press, p. 15-24, 2007.
JAMES, W. The things and its relations. In: Essays in radical empirism. E-book, 1912.
Disponível em: <http://ebooks.adelaide.edu.au/j/james/william/radical/
chapter3.html#chapter3>. Acesso em: 08 de outurbro, 2012.
LANDY, L. Reviewing the musicology of electroacoustic music: a plea for greater
triangulation. In: Organised Sound 4(1). Cambridge: Cambridge University Press, p. 61–70,
1999.
______. Understanding the Art of Sound Organization. Massachusetts: MIT Press, 2007.
LINK, S. The work of reproduction in the mechanical aging of an art: listening to noise. In:
Computer Music Journal 25(1). Massachusetts: MIT Press, 2001.
MANOURY, P. O gesto, a natureza e o lugar: um demônio nos circuitos. Tradução por Flo
Menezes. In: MENEZES, F (org.). Música eletroacústica: história e estéticas. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1997, p. 205-211.
PALOMBINI, C. A música concreta revisitada. In: Revista Eletrônica de Musicologia 4(1).
Revista online, 1999. Disponível em: <http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv4/vol4/artpalombini.htm>. Acesso em :25 de julho de 2011.
PASOULAS, A. Temporal associations, semantic content and source bonding. In: Organised
Sound, n. 16(1). Cambridge: Cambridge University Press, p. 63-68, 2011.
79
PEDERSEN, M. Transgressive sound surrogacy. In: Organised Sound, n. 16(1). Cambridge:
Cambridge University Press, p. 27-35, 2011.
PIERCE, C. Semiótica. Traduzido por José Teixeira Coelho. São Paulo: Editora Perspectiva,
2000.
SCHAEFFER, P. Traité des objets musicaux. Paris: Éditions du Seuil, 1966.
______. L'oeuvre musicale. Encarte de CD. Catálogo 1006-09-CD. Paris: INA-GRM, 1990
______. Ensaio sobre o rádio e o cinema. Texto traduzido e estabelecido por Sophie Brunet,
Carlos Palombini e Jaqueline Schaeffer. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010
SCHAFER, M. The new soundscapee: a handbook for the modern music teacher. Canadá:
BMI, 1969.
______. A Afinação do mundo. Tradução por Marisa Trench. São Paulo: Editora UNESP,
2001.
SMALLEY, D. Spectro-morphology and structuring processes. In: EMMERSON, S. (Org.).
The Language of Electroacoustic Music. Londres: The Macmillian Press Ltd, p. 61-96, 1986.
______. Defining timbre - refining timbre. In: Contemporary Music Review, 10 (2). Londres:
Routledge, p. 35-48, 1994.
______. Spectromorphology: explaining sound-shapes. In: Organised Sound n. 2 (2).
Cambridge: Cambridge University Press, p. 107-26, 1997.
______. Entrevista feita com o autor via email, em 21 de abril de 2012.
SONTAG, S. Sobre fotografia. Tradução por Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011.
SPASOV, M. Music composition as an act of cognition: ENACTIV – interactive multi-modal
composing system. In: Organised Sound, n. 16(1). Cambridge: Cambridge University Press,
p. 69-86, 2011.
TANZI, D. Extra-musical meanings and spectromorphology. In: Organised Sound, n. 16(1).
Cambridge: Cambridge University Press, p. 36-41, 2011.
THOMPSON, E. The soundscape of modernity: architectural acoustics and the culture of
listening in America: 1900-1933. Massachusetts: MIT Press, 2002.
WHITE, F. Composer and material in musique concrète. Artigo online, 1990. Disponível em:
<http://www.rosewhitemusic.com/concrete.html>. Acesso em: 28 de outubro de 2012
80
WINDSOR, L. Frequency structure in electroacoustic music: ideology, function and
perception. In: Organised Sound , n. 2(2). Cambridge: Cambridge University Press, p. 77–82,
1997.
WISHART, T. In: EMMERSON, S. (Org.). Sound symbols and landscapes. The Language of
Electroacoustic Music. Londres: The Macmillian Press Ltd, p. 41-60, 1986
______. On sonic art. Amsterdam: Harwood Academic Press, 1996.
YOUNG, J. Imagining the Source: The Interplay of Realism and Abstraction in
Electroacoustic Music. In: Contemporary Music Review, n. 15 (1-2). Londres: Routledge, p.
73-93, 1996.
PARTITURAS
LIGETI, György. Musica Ricercata. Londres: Schott., 1995.
DISCOGRAFIA
BARRET, Natasha. “Industrial Revelations”. In: Isostasie. Canada: Empreintes DIGITALes,
2002. 1 CD.
CHOWNING, John. “Phoné”. In: Turenas · Stria · Phoné · Sabelithe. Mogúncia: Wergo,
1998. 1 CD.
FERRARI, Luc. “Presque Rien No. 1 ‘Le Lever du Jour au Bord de la Mer’”. In: Presque
Rien. Paris: INA-GRM, 1995. 1 CD.
GOBEIL, Gilles. “Le Vertige Inconnu”. In: La Mécanique des Ruptures. Canada: Empreintes
DIGITALes. 1994. 1 CD.
PASOULAS, Aki. “Vessel@Anchor”. Não lançado, 2005. Arquivo Mp3 parcialmente
disponível em <http://journals.cambridge.org/action/displayIssue?
jid=OSO&volumeId=16&seriesId=0&issueId=01>. Acesso em: 12/01/2013.
SCARPA NETO, Orlando. “Em um quarto com cabos e vista”. In: Cinco peças com temas
sobrepostos. 2013. Disco digital disponível em http://orlandoscarpa.bandcamp.com.
______. “Harmonicidade e saturação”. In: Cinco peças com temas sobrepostos. 2013. Disco
digital disponível em http://orlandoscarpa.bandcamp.com.
81
______. “On common people, signal-to-noise ratios, and love in general”. In: Cinco peças
com temas sobrepostos. 2013. Disco digital disponível em http://
orlandoscarpa.bandcamp.com.
______. “A respeito dos sons que escolhemos ignorar”. In: Cinco peças com temas
sobrepostos. 2013. Disco digital disponível em http://orlandoscarpa.bandcamp.com.
SCHAEFFER, Pierre. “Etude Étude Violette”. In: L'Oeuvre Musicale. Paris: INA-GRM,
1990. 1 CD.
TANGERINE DREAM. Phaedra. Inglaterra: Virgin, 1974. 1 LP.
WESTERKAMP, Hildegard. “Kits Beach Soundwalk”. In: Transformations. Canada:
Empreintes DIGITALes, 1996. 1 CD.
WISHART, Trevor. “Red Bird”. In: Red Bird: A Political Prisoner's Dream . Iorque: York
Electronic Studios, 1978. 1 LP.
82
ANEXO I -
ENTREVISTA COM DENIS SMALLEY, REALIZADA VIA EMAIL EM
ABRIL DE 2012
I.a.
CAPTURA DE TELA DA CONVERSA, VIA EMAIL, COM DENIS SMALLEY
REFERENTE À ENTREVISTA
Figura 2: captura de tela da conversa, via email, com Denis Smalley:
83
I.b.
REPRODUÇÃO DO TEXTO DA ENTREVISTA ENVIADO POR DENIS
SMALLEY EM 18 DE ABRIL DE 2012
Orlando Scarpa - In which ways do you consider Spectromorphology to be an
extension of the work of Pierre Schaeffer? What differences do you see in terms of
methodology and approach towards sound?
Denis Smalley - Schaeffer arrived only at a broad taxonomy of sound morphologies
(typo-morphology) largely based on the instrumental model (in terms of morphology) but also
attempting to categorise different types of spectral content found in electroacoustic music. His
taxonomy stopped at the level of the “sound object” and did not venture into larger structures
or attempt to tackle relationships among sounds within musical structures.
Spectromorphology starts with Schaeffer’s morphological basics – they are very basic – but
expands into concepts for dealing with a wider spectromorphological repertory, and their
relationships in the context of musical structure.
Orlando Scarpa - The concepts of source-bonding and gesture surrogacy appear to be
strongly related and even overlap and complement each other in some ways. Both are
concerned with factors that are generally considered extra-musical, and both take into account
the fact that the electroacoustic listening experience frequently invites us to reflect upon our
own daily listening experience. What similarities do you see between the two concepts? Do
you think it is possible to consider musical and daily listening as two separate experiences?
Denis Smalley - I highlighted the idea of gesture, partly because at the time of
elaborating spectromorphological concepts (starting in 1981), I thought that the use of
gesturally-based morphologies (whether actual or imagined) was important because they
could be immediately and instinctively grasped by listeners, since they are based on types of
sound making present in every culture, and since they form the basis for all instrumental
music. In other words they had an evident source-bonded value. I blamed the dullness, or
sterility, of some of the electroacoustic music of that time on the absence of gestural cues. I
would not go as far as that these days (there are many other types sound model which can
connect directly with listeners), but still regard the presence of gesture and its surrogates as
fundamental means of communicating musically with listeners.
84
Yes, gesture is source-bonded. Bear in mind, though, that source bonding is concerned
with both sources and causes. (You can have one without the other, and each can be more or
less “real” or imagined – in all, a potentially complex, ambiguous web of “surrogates”.) A
gesture is a cause. And, of course, gesture is only one type of cause.
Whether daily listening and musical listening are separate or closely allied depends on
the listening attitude adopted. I can listen to daily sounds in a “musical” mode if I wish – that
is, not just listen to them for the source-bonded information they carry. Indeed, as a composer,
I have a habit of doing so. One of the acousmatic composer’s roles, is, I think, to unveil the
musical in the sounds around us.
Orlando Scarpa - What led you to re-write Spectromorphology and Structuring
Processes (1986) ten years later?
Denis Smalley - It was intended to publish the original article in French, and I thought
it a good occasion to revise some ideas, and extend others. You will find my comments on the
changes in the chapter entitled Spectromorphology in 2010 (under the heading “1986 versus
1995”) in the Polychrome Portrait book on my ideas and music published in 2010.
Orlando Scarpa - Also, in 1986, you identified only three types of gesture surrogacy,
and their definitions are quite different from the ones presented in the 1997 version of the
article. What was the reason behind this change?
Denis Smalley - The revised version seemed more logical. I quote the relevant
passage from the Polychrome book mentioned above, p. 93:
“There is one concept, quite often referred to, which changes between 1986
and 1995 - that of gestural surrogacy.65 In 1995, discussion of the concept
was reworked, and I increased the number of levels, separating out
proprioceptive and non-sonic gesture, prior to any sonification, as “primal”
gesture (level zero, if you like). Sounding gesture in culture (for example, in
work and play) is level 1 (first-order), instrumental gesture is level 2 (second
order, one stage removed from general cultural sounding gesture), and
inferred or imagined gesture (as often found in acousmatic music, but now
also evident in live electronics) is level 3 (third order). Beyond that we end
up in remote surrogacy territory of vestiges and traces. In 1986, primal
gesture was not mentioned, and level 1 comprised instrumental gesture, and
65
A process where it becomes increasingly problematic for the listener to identify spectromorphologies as being
clearly linked to a specific human gestural cause, associated with a known source. In remote surrogacy, traces
of a spectromorphology may remind the listener of a gestural image even if the sound is not “real” and the
type of gesture somewhat ambiguous.
85
so on. 66 The change causes confusion, particularly if one is not sure whether
1986 or 1995 is referred to. Perhaps an unwise change, therefore, although
1995 is more appropriate.”
Orlando Scarpa - In your work, you avoid treating vocal sound as a
spectromorphological model. The reason, as you mention in the 1997 version of the article, is
the lack of space (p. 111) and to include this discussion would possibly entail an entirely
different article. But if someone were to explore this path, what suggestions would you give?
Are there any key concerns regarding vocal sounds that you have considered writing about, or
have dealt with in your own compositions?
Denis Smalley - The sounds of the voice, when detected in an acousmatic work
(whether actual or imagined) are automatically source-bonded in the listener’s mind, and
denote some kind of human presence in the sounding flow of the music. Their source-bonded
character is normally much stronger than any more (abstract) spectromorphological attributes.
They therefore often have a role in some kind of “scene”, which can probably best be
analysed initially using appropriate attributes of space-form – as discussed in my article
Space-Form and the Acousmatic Image, Organised Sound 12(1), 2007. It may be appropriate
to discuss the spectromorphology of vocal sounds - e.g. onset/attacks of consonants; the
spectral qualities of vowels and noise, as found in phonemes and syllables - where these come
to the fore in creating correspondences with other sound-types. Other spectromorphological
concepts, like behaviour, and motion and growth may also be appropriate. So in principle my
spectromorphological concepts are relevant to the voice.
Individual units of vocal sound, and streams of vocal sounds (whether spoken, or
sung, or behavioural i.e. utterance, in general) can, of course, be spectromorphological
models; and in spectromorphologically oriented composition these inevitably share attributes
with a wider sonic repertory. We can refer to vocal “gesture” in a metaphorical sense, which
in contrast to instrumental gesture, emerges from the interior of the human body (interior
cause and source). Some instrumentally-based gestures – sounds produced using wind
instruments – can be regarded as hybrids of vocal and instrumental gesture.
66
The orders of surrogacy as set out in 1986 are also discussed under “gesture”, as one of the nine “indicative
fields” in my article entitled The Listening Imagination which has been published twice in English and also
translated into Portuguese. The original publication was in 1992, and the more accessible re-publication was
in 1996 (Contemporary Music Review, Vol. 13, Part 2, 1996, pp. 77-107). Note that 1986 surrogacy therefore
still existed concurrently with the 1995 revision. More confusion.
86
I have used vocal sounds in my two most recent compositions. In my last composition
Spectral Lands vocal sounds are important, sometimes recognisable, sometimes more
ambiguous. They participate in scenes, functioning as human references in relation to nature/
environment; pitched vocal sounds also have a central role in the pitch language which
provides the spine of the piece. I am sorry I can’t provide you with a copy of this multi-track
piece, which can only be heard, for now, in concert, using a properly set up loudspeaker
installation.
87
ANEXO II.
CD COM AS PEÇAS DE MINHA AUTORIA DISCUTIDAS NO
CAPÍTULO II E NAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
II.a.
LISTAGEM DOS ARQUIVOS CONTIDOS NO CD
O CD anexado a seguir contém as seguintes peças, todas de minha autoria em arquivo
WAVE, 44.1 kHz, 16 bits:
1. A respeito dos sons que escolhemos ignorar
2. Em um quarto com cabos e vista
3. Harmonicidade e saturação
4. On common people, signal-to-noise ratios and love in general.