Revista Entrelaces • V. 1 • Nº 16 • Abr.-Jun. (2019) • ISSN 2596-2817
Para, não: de Dalton
Trevisan (sobre) a
Katherine Mansfield
Katherine Funke129
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Resumo
Este artigo propõe acompanhar o escritor curitibano Dalton Trevisan por entre suas intenções
estéticas ligadas à ideia de repetição e diferença a partir de duas versões do conto em forma de
carta endereçada à escritora neozelandeza Katherine Mansfield. A carta “My darling
Katherine (Mansfield)” foi publicada originalmente em 1947, na edição n. 14 da revista
Joaquim. Ganhou nova versão, disponível em Até você, Capitu, de 2013, passando por duas
outras publicações com pequeninas alterações (no renegado Sete Anos de Pastor, de 1948, e
depois em Mistérios de Curitiba, de 1968, com o título de “Retrato de Katie Mansfield”). O
que norteia o artigo é a ideia de que, para Dalton, reescrever é um gesto vital, como destaca
Berta Waldman. De versão em versão, o vampiro sobrevive e sua obra ganha mais corpo. Na
insistência no procedimento da repetição, Dalton reafirma a originalidade de sua diferença
transgressora em relação a outras literaturas.
Palavras-chave
Dalton Trevisan. Katherine Mansfield. Carta. Correspondência. Repetição.
129
Doutoranda em Literatura UFSC (SC). Mestre em Literatura - UFSC (SC). Bacharel em Comunicação Social IELUSC (SC). Especialista em Jornalismo Contemporâneo - UNIJORGE (BA)
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Introdução
"Nós só vivemos se, de alguma forma, absorvemos o passado,
mudando-o."
(Katherine Mansfield)
Jorge Luis Borges afirmava jamais reler um texto seu após tê-lo publicado. Seu
modo de seguir adelante era simplesmente escrever outra coisa, algo novo. Embora tenha
com Borges a coincidência biográfica de ter começado a escrever contos logo após machucar
a cabeça em um acidente, Dalton Trevisan opera de modo oposto. Não só escreve sempre o
“mesmo” conto, repetindo os mesmos temas (o desejo, a vida ordinária) e dois personagens
básicos (o homem desejante e a mulher desejada), causando o efeito de que “quem leu um
conto já viu todos” (TREVISAN, 1994, p. 100-101), como também revisa constantemente o
que já publicou. Refaz e republica diversas vezes, numa obsessão que “faz de cada nova
edição uma errata da anterior” (SANCHES NETO, 1998, p. 16-17).
Ao se repetir e reeditar tanto, Dalton age desde jovem como o narrador ancestral
de voz grave que, paciente, senta o leitor no colo para contar-lhe de novo uma narrativa já
conhecida, mas retomada com gosto, gozando como quer das variações possíveis. Este
paradoxo já forneceu alguns giros teóricos sobre o caso, baseados nos estudos deleuzianos
sobre Diferença e repetição. Transgressor, Dalton faz o elogio da diferença pela repetição:
afirma a continuidade da vida de uma história já contada – já morta, já publicada –
modificando-a. O eterno retorno do mesmo, mas diferente. Vampiro, aceita a “vida após a
morte” das suas histórias como condição para manter a própria vida literária.
Coisa de vampiro (e de cafajeste, esse Dalton!), assinalou Berta Waldman: o
“vampiro” não está só no plano do conteúdo, mas no próprio procedimento literário. O gesto
vital de Dalton é o procedimento da repetição (WALDMAN, 2003, p. 28). O vampiro ganha
vida, evitando a morte, reedição após reedição, sugando/abusando mais de seus supostos
cadáveres: os textos já publicados. Nisso, parece contraditório: pois, se para ele “um bom
conto é pico certeiro na veia”, a cada vez que reescreve e republica uma história estaria, pela
lógica, como que testando de novo a veia. Mas, nada disso: ele age mesmo, enquanto escritor,
como vampiro. Cada teste, ao invés de mera tentativa de enfermeiro, prova seu
profissionalismo. Mesmo que repetido com mínimas variações, o pico sai sempre certeiro,
aterrador e centrado em tornar sua Obra apreensível apenas pela leitura (comparada) de todas
as edições e reedições (GALINDO, 2012, p. 11).
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Fez exatamente isso quando dedicou algumas palavras para (e sobre) Katherine
Mansfield (1888-1923), em um conto disfarçado de carta disponível originalmente na revista
Joaquim em 1947 e depois retrabalhado e republicado três vezes, a mais recente publicada em
2003.
Nesta carta/conto, o desejo sexual narcísico, contemplativo e irrealizado, está
presente: ali estão, de um lado, como missivista, o homem desejante um tanto cafajeste,
porque promete o que não pode cumprir e deseja o que sabe que não pode alcançar (é o sujeito
contemplador); de outro, no papel passivo de destinatária (ou objeto contemplado), a mulher
desejada. Ela, ao contrário dele, já morreu: está inacessível. De certo modo, este se torna
assim o mesmo conto de sempre, com a tensão entre um joão desejoso e uma maria
inatingível, composta pela narração/contemplação de fatos ordinários ou cotidianos em que a
figura feminina protagoniza algo (fatos como jantar, almoçar, ir a lojas, ficar doente, pedir um
cigarro a um amigo, tossir, cuspir, esconder um amante debaixo da cama, morrer).
Só que, desta vez, se trata de um caso um tanto mais complexo: a maria não é uma
mulher qualquer ou anônima, mas a neozelandesa Katherine Mansfield, autora de Bliss e
tantos outros contos famosos. Mansfield se apresentava como uma das escritoras
conhecedoras de corações (masculinos) deflorados a que Dalton Trevisan tinha acesso na
juventude. Já na década de 1940, ele possuía elementos suficientes para escrever as densas
referências diretas e indiretas à obra dela, fazendo disso a matéria-prima principal de um texto
de pouco mais de trezentas palavras.
Também o homem desejante, na carta/conto, não constitui, portanto, exatamente
de novo um joão qualquer, mas alguém que demonstra conhecimento de detalhes da vida e da
obra de Katherine Mansfield. Eis algumas das diferenças dessa repetição específica do
“velho” conto de sempre.
1 Dalton com Katherine
Dalton e Katherine afirmaram, de modos diferentes (ele num release para fugir da
imprensa, ela em seu diário), grande prazer em ler contos de Anton Tchekov, tendo esse
hábito recorrente como uma das melhores coisas da vida. Mais que isso, o interesse temático
de suas produções como contistas desliza sobre pontos similares: paixão, casamento, traição,
separação, desejo, morte e a vida depois da morte, a vida possível para os mortos, entre os
ainda vivos, assim como a morte vivenciada por quem respira sem paixão.
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Muitos dos contos de ambos os autores deixam uma vaga, mas presente e densa
impressão de que o vazio ocupa mais espaço entre as pessoas, mesmo entre as que formam
casais, do que algo “maior” ou “legítimo” que as relacione. Alguns desses e outros aspectos
da obra da escritora parecem ter soprado, enfim, um hálito quente na imaginação do
vampiro, talvez tanto quanto ela mesma pôde se inspirar em Shakespeare ou em Chaucer.
Mas Katherine, além de estrangeira, é de uma geração anterior. Já tinha morrido
há dois anos quando Dalton nasceu. Da biografia dela, se tornou bastante conhecida e
escandalosa a fase jovem em Londres, quando casou com o irmão de um ex-namorado e
descasou logo em seguida. Pouco depois, ficou grávida de um terceiro, de quem fugiu.
Abortou com ajuda da mãe, voltou a Londres. Casada com o crítico literário John Murry, de
quem se separou e se reaproximou várias vezes em vida e que, afinal, depois seria seu viúvo,
teve amores platônicos e pelo menos um amante corpulento assumido (em Paris). Katherine
Mansfield teve, assim, vidas paralelas e gestos originais sobre o que fazer ou quando amar ou
deixar de amar, sobre os quais fazia anotações (ou fabulações) em seus diários. Nas cartas ao
marido, não deixou de abordar a liberdade sexual como virtude necessária para a experiência
e a imaginação de uma escritora como ela. Nos diários, registrava pesadelos em que era
crucificada por amigas como dama fingida ou femme marquée (MANSFIELD, 1996, p. 196).
Tal comportamento parece perfeito aos interesses de Dalton Trevisan, a quem uma
das delícias da vida, além de Tchekov e outras poucas coisas mais, é um corpo nu de mulher
(TREVISAN, 1991, p. 5). Nada mais excitante, assim, do que uma escritora como Katherine
Mansfield, desnudada pela escrita e mesmo pela forma com que conduziu a própria vida.
Ao contrário do recluso Dalton, aliás, Katherine não se furtava a receber/visitar
outros escritores ou artistas, escrever críticas para livros alheios, enviar colaborações
solicitadas por revistas e, na medida do possível, frequentar locais públicos, como restaurantes
e teatros. Mesmo no seu longo período exilada para tratar da tuberculose, não deixou de se
corresponder e comentar obras de outros autores. Teve interlocutores grandiosos: D. H.
Lawrence, T. S. Eliot, Virginia Woolf.
Publicou-se postumamente quase tudo o que ela anotou em diários e cartas, e até
mesmo seus rascunhos de contos renegados ou inacabados chegaram ao público. Se já não era
uma alma sem pudores de se mostrar completamente ainda em vida, ficou completamente
nua, portanto, depois de morta.
Que condição deliciosa para um corpo literário como o do vampiro de Curitiba:
sobre (e para) esta mulher nua, morta, maria que pode ser contemplada e desejada mas que, já
se sabe, jamais corresponderá – autora de vasta obra publicada, passiva assim de ser violada,
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abusada ao ser lida e transformada em objeto de desejo quando e quantas vezes se desejar –
Dalton Trevisan fez jorrar uma história de amor, colocando-se no papel de signatário de uma
carta, “My darling Katherine (Mansfield)”.
A carta se destaca no conjunto das missivas tornadas públicas ao longo da vida de
Dalton Trevisan: em lugar de argumentos objetivos com teor intelectual emitidos a
interlocutores vivos e, geralmente, do mesmo sexo, neste texto dirigido a Katherine (no
original e nas variações) o contista assume a posição de um fã ardente, um fã que conversa
com ela como que ditando os dizeres de uma lápide.
Logo na primeira linha do texto, o narrador chama a destinatária da carta de
“amada Miss Beauchamp” (na primeira versão) ou “querida Miss Beauchamp” (na mais
recente). Beauchamp era o sobrenome do pai. Além disso, o sobrenome artístico da autora,
colocado em parênteses no título, (Mansfield), a deixa um pouco mais vulnerável, somente
Katherine, nada mais, aquela que poderia ser chamada de “minha querida Katherine”.
Este joão astuto coloca sua maria, deste modo, na situação cristalizada de ainda
solteira, ou mulher disponível, em lugar de comprometida. Na fabulação da carta, a imagem
de “disponível” e suscetível da amada destinatária ganha reforço: ela é descrita como aquela
que não gostava do marido, que assumia amantes e desejos por outros homens.
Descrevendo-a ao mesmo tempo em que a interpela, o signatário da carta fala
diretamente com Katherine, mas também demonstra consciência de que fala para um outro,
aquele/aquela que lê. Fala como se apresentasse a escritora, assim como seu amor por ela, a
desconhecidos. Assim, cria uma imagem de Katherine exclusivamente sua, uma “Katherine de
Dalton”.
Ele assina a carta com um “a” entre parênteses: “(a) Dalton Trevisan”. Ou seja:
escreve sobre Katherine, uma Katherine livre de ser Mansfield, ainda jovem, ainda Miss,
personagem inventada para (ou “a”) Dalton Trevisan, e ao modo de Dalton Trevisan. Pode ser
lida, portanto, como uma carta com outro destino do que a suposta destinatária; já é, desde a
origem, uma mensagem não-íntima nem exclusiva ou excludente, mas criada para ser tornada
pública, para que a intimidade de Dalton com Katherine fosse tornada pública, num gesto
deserdado de quem envia uma carta de amor a uma morta, sem esperança de resposta.
2 Leitura comparada
O detalhe a respeito do formato pouco convencional de assinatura torna o texto
original não apenas uma carta, mas um conto disfarçado, embora o título seja equivalente ao
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que se poderia esperar da primeira linha de uma correspondência, “My darling Katherine
(Mansfield)”. Talvez, justamente por perceber (ou querer assumir ou evidenciar) a
inadequação do texto enquanto carta propriamente dita, a versão de 1968 já trazia o título
reescrito para “Retrato de Katie Mansfield”, já sem a assinatura do signatário, o que foi
mantido na republicação revisada em 2003.
Essa alteração significativa veio junto à extinção integral ou parcial de algumas
frases e o acréscimo de novas informações. Entre a primeira e a última versão publicada, o
número de parágrafos dobrou (de seis para doze). O texto mais recente tem parágrafos mais
curtos e cortantes, mas mantém quase a mesma quantidade de palavras em relação ao
publicado na Joaquim (tem exatas seis palavras a menos).
Analisadas no conjunto, as mudanças entre a versão mais antiga e a mais recente
se mostram mais profundas do que muitos outros casos de revisões realizadas pelo autor. Com
o novo título, a intenção ou tom do texto ganhou também um novo registro: mais fabulações,
mais ironia e menos interpelações diretas à destinatária. O conto deixou cair o disfarce.
Sempre se perde algo nas revisões, “o autor tem de escolher e pôr de lado alguma coisa
válida”, como escreveu Carlos Drummond de Andrade a Lygia Fagundes Telles em 1966, ao
perceber no livro Jardim Selvagem (1965), um conto que Lygia havia feito publicar três anos
antes em um jornal, com leves, mas significativas alterações.
“My darling Katherine (Mansfield)” trazia constantes interpelações diretas à
destinatária, chamando-a por apelidos carinhosos, só conhecidos pelos íntimos de seus diários
ou de sua biografia (“dear, oh dear”, “poor Tig”, “poor Kathy”). Mas, se até o terceiro
parágrafo parecia estar falando para ela (com “você”), por flexionar os verbos na terceira
pessoa (bebia, tomava, sentindo-se, amava, gostou etc), no quarto parágrafo, ao usar o verbo
flexionado na segunda pessoa do singular, seguido de uma interpelação direta (“sabes,
Kathy?”) fica sugerido que a maioria dos verbos está flexionada na terceira pessoa porque
falam dela, de uma mulher que não é apenas destinatária, mas o próprio tema da carta.
O conto/carta original já contém, assim, uma dupla presença de Katherine: uma
com quem fala e a outra de quem fala. Tratando-a por “tu", fala para a destinatária da carta,
Katherine (sem o Mansfield), sobre fatos biográficos, cenas de contos, anotações de diários ou
cartas de Katherine Mansfield, como neste trecho, em que faz menção às repetidas esperas por
correspondências registradas por Mansfield em seus diários: “Triste, sabes, Kathy?, tão triste,
ao lado da cancela, esperando um velhinho carteiro – e essa carta que não chegou”. E também
para ela, mas também dela, esse conto trouxe, no parágrafo final:
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Poor Kathy, feia mas tão linda, faltou-lhe na vida (essa mágoa matou-a) um coronel
da Índia como eu, bravo moço de óculos que, morta ainda, lhe beija com delírio as
mãos de onde nascem, entre risos gaios, petúnias. (TREVISAN, 1947, p. 10)
“Faltou-lhe”, e não “faltou a ti”. Se fosse uma carta íntima, o mesmo trecho seria
reescrito de modo direto e em primeira pessoa, algo como “te beijo com delírio”, em vez de
“(ele) lhe beija”. O conto cria uma personagem a quem faltou ser beijada, assim como um
outro personagem, o missivista, que deseja beijar.
Em quantidade, o texto original também contém muito mais elementos
descritivos/narrativos ou citações indiretas de contos de Katherine Mansfield (como “garden
party”, no segundo parágrafo, ou “pintarroxos”, no seguinte) do que elementos de um diálogo
com ela. Assim, já de partida, as portas estavam sendo deixadas abertas por Dalton para
prováveis reescritas, com mais fabulações sobre aquela Katherine.
Reescritas fabuladoras que, de fato, vieram e fizeram da versão mais recente mais
um perfil ou retrato do que uma missiva. Antes de verificar mais a fundo, é preciso anotar
ainda que, já na versão original, a fabulação dá lugar não só a homenagens amáveis, mas
também à ironia, elemento comum aos contos de Dalton. A querida Katherine é ao mesmo
tempo saudada diretamente (“bravo miss Beauchamp”) e ironizada com frieza e crueldade
vampirescas, ao ser descrita, por exemplo, no ambiente íntimo de um quarto de dormir, como
aquela que, “saco de ossos retorcido” [sic], escrevia cartas a um marido de quem nunca
gostou. Ou aquela que, apesar de ter medo de ser violada por um soldado, também poderia
escondê-lo embaixo da cama.
E o signatário também assumia a voz da escritora, sarcástico, reproduzindo o
modo como chamava o marido (“oh Jack”) e outros interlocutores dela (“oh Bill”). Ao fazêlo, contudo, Dalton demonstra não (só) ironia ou sarcasmo, mas um conhecimento que só
poderia ter um leitor devotado a Katherine Mansfield.
A referência ao soldado, por exemplo, condensa os medos registrados por ela em
seus diários em 1918, ao presenciar/conviver com bombardeios da Primeira Guerra em Paris.
O fato de Katherine parecer um saco de ossos enquanto escrevia ao marido, por sua vez, é
uma menção à doença que a afastou de Londres e do marido para se tratar em locais arejados
ou alternativos – afastamento físico que deu lugar a fofocas de que John Murry teria uma
princesa inglesa como amante, e por sua vez, embora o tal affair não tenha sido confirmado,
há certa raiva/desencanto entre os dois.
São dados, enfim, que só quem leu os diários e as cartas de Katherine Mansfield
poderia saber. E, para ler esse tipo de material íntimo de alguém, é preciso ser devotado o
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bastante para querer estar no mesmo quarto silencioso que uma tuberculosa de mente
turbulenta, justo ela, a mais feia entre suas muitas irmãs, potencialmente homicida: em 1919,
aprendeu a atirar; depois, dormia com pistola automática ao lado da cama, entre livros; às
vezes registrava que gostaria de matar alguém bem próximo, como quando uma amiga contou
não se arrepender nem um pouco de ter se divertido pagando caro demais por um café
especial: “nunca dei um tiro nela porque seria muito difícil me descartar do corpo, depois.
Não se poderia fazer com ele um embrulho bem-feito, ou colocá-lo sob uma pedra, e ela
nunca queimaria” (MANSFIELD, 1996, p. 138).
Assim, o texto original espalha várias pistas da devoção de Dalton, leitor de
Katherine, como uma espécie de saboroso lembrete enviado ao Dalton do futuro sobre
deliciosos/delicados aspectos da vida e da obra da escritora. Outra pista está no uso de
palavras estrangeiras sem qualquer alteração gráfica no meio das frases, hábito que ela
também tinha em cartas, revezando sem aviso o inglês nativo com expressões em francês,
italiano e, mais raramente, em alemão.
Ao misturar o estilo dela com o próprio, o vampiro fortalece o próprio sangue, seu
corpo/obra, estimulado pelo amor com que picou essa veia, isto é, se deitou sobre o corpo
morto, publicado, de Katherine. O parágrafo final da versão original é a prova mais visível de
que esse amor ultrapassou a admiração literária a ponto de criar uma virtual paixão, do
personagem-autor da carta, “coronel da Índia” (ou então do próprio Dalton, talvez ele mesmo
o “bravo moço de óculos” citado no trecho), pela contista.
Na versão mais recente, a devoção também está lá, mas em menor grau, ou de
forma mais seca, sem a ideia de que lhe faltaram beijos, sem petúnias entre as mãos do
cadáver, e sem nenhum bravo moço apaixonado em cena. No “Retrato de Katie Mansfield”, a
passagem do tempo arrefeceu a paixão e aumentou a distância entre Dalton e Katherine, entre
seu conto e a protagonista que, fugidia, teve sua imagem esmaecida, como um retrato que
perde as cores, perde a nitidez e ganha um pouco de poeira e algumas rachaduras.
O tom ficou menos ardente e mais pungente. Os parágrafos mais curtos, mais
ágeis, agora não apenas seis, mas doze, chicotam com força e precisão para quebrar o que
restou do esqueleto de Katie, agora sim, “Katie Mansfield”, vista em sua inteireza, embora
com o apelido carinhoso para o prenome. Já não é mais, portanto, uma Katherine vulnerável,
que esperava o carteiro velhinho e olhava a chuva pelas manhãs, mas uma mulher com nome
e sobrenome, “mulher casada” a quem Dalton, o vampiro, desconstrói o que nela resiste de
respeitável ou íntegro para substituir pela imagem de quem viveu “desonrando”, já de cara, o
próprio pai – informação acrescentada no primeiro parágrafo, ranhura no retrato, veio
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profundo que separa para sempre dois contos, que coloca de um lado a primeira Katherine
(Mansfield) e esta Katie Mansfield.
Esta outra Katie Mansfield morre no último parágrafo cuspindo sangue numa
garrafa de rum. “Cuspia delicadamente”, informa o conto, na verdade, mas é algo bem
diferente de morrer com petúnias nas mãos, prestes a ser beijada por um moço de óculos. Essa
outra Katie desonra, toma dois porres por dia, vomita, cospe, belisca centenas de asas de
frango, escreve na cama por fazer e usa uma franjinha desalinhada. É apresentada como
“pérfida”, “coitadinha”, “fatídica de olho pálido” e, sem piedade, de “pobre máquina de
tossir”.
Assim, a “maria" de quem se fala na versão mais recente do conto também é
menos ingênua: anda pelas ruas desertas e sente aflição e desejo de ser violada. Não é mais a
mocinha amada a quem se conta que ela ou uma outra, “Triste, sabes, Kathy?”, esperava uma
carta que nunca receberia. Esse trecho do quarto parágrafo do conto original nem existe mais
no “Retrato”: não há agora nenhuma fala direta com algum “tu”; ao contrário, mesmo o
número de interpelações à destinatária se reduz ou se modifica para dar lugar a clichês e se
colocar no lugar das mesmas marias de sempre dos contos de Dalton Trevisan, em especial
neste trecho totalmente novo em relação ao original: “A vida que é a vida, ó minha princesa?
Um sórdido corredor de pensão curitibana, mil olhos vigiando cada vez que você entra no
banheiro” (TREVISAN, 2003, p. 11).
Parece que o “joão" virou Nelsinho, um tantinho mais cruel, um tantinho mais
violento em relação à sua vítima. Por outro, essa aparência de abandono da devoção inicial
não ocorre no nível da matéria literária. Pelo contrário, cada dado acrescentado na nova
versão faz sentido quando colocado em relação com a obra publicada de Katherine Mansfield.
A questão do incômodo corredor de pensão que leva ao banheiro, por exemplo, foi registrada
por ela em seus diários, quando ela viveu numa pensão em Paris. Só que, em vez de Paris, o
retrato traz Curitiba como sede dessa metáfora da vida: nada mais coerente com a reafirmação
do “velho conto de sempre” de Dalton Trevisan e também com seu procedimento de revisar
um texto já publicado, seu gesto vital de criar o eterno retorno do diferente.
Ao mesmo tempo em que perde a aura de carta e também alguma doçura ainda
válida na versão do século passado, o “Retrato de Katie Mansfield” não deixa de ser uma
homenagem à escritora, mas com mais apego aos aspectos bizarros de sua vida e obra. O
registro do abismo entre retratante e retratada é que importa agora: o olho dela, em vez de
namorar a chuva pela janela, ficou pálido. E a franjinha na testa deixou de ser lírica para ficar
“toda alvoroçada”.
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O tempo aumentou a distância, fez pensar em novos aspectos, e o que havia antes
sumiu – ou mudou de lugar. Quase sessenta anos depois de publicar a primeira versão, o
vampiro, com sua saúde boa e nenhuma notícia de que esteja mais ou menos próximo de
morrer, pôde jorrar novos parágrafos de peso sobre o absurdo desperdício de sangue cuspido
por Katherine – mulher que passou apenas 35 anos nesta dimensão terrena da existência. É
como se dissesse a si mesmo: deixa de ser besta, amar uma vez só é pouco, que tal amar de
novo, um pouco mais? Ou: “Rasga, ó bicho, rasga o prepúcio do teu coração” (TREVISAN,
1999, p. 67).
Vinicius de Moraes também amou Katherine Mansfield e, antes de Dalton, ainda
em 1938, publicou uma carta em versos para ela. Nunca escreveu outra versão do “Soneto a
Katherine Mansfield”; não era seu procedimento. Mas, neste caso, é a leitura da carta que, a
cada vez, recria o efeito. Com os primeiros versos, o soneto provoca a impressão de
ressurgimento da vida da escritora. Quase torna-se possível sentir o aroma da pele de
Katherine deixado no papel por Vinicius de Moraes: “O teu perfume, amada – em tuas cartas /
Renasce, azul... – são tuas mãos sentidas!”.
Dalton Trevisan, não. Rescreveu seu conto de um jeito tão seco e cortante que
tirou dele até o perfume das petúnias prestes a brotar nas mãos da morta, trocando-o por um
pobre vaso de violetas: flores lindas, sensíveis, mas humildes e sem nenhum aroma. Trouxe,
além disso, o cheiro de sangue, de rum, de whisky, de frango e de vômito.
A segunda versão tem muito mais ritmo e velocidade, como o trabalho ansioso de
uma pá a desenterrar o cadáver. Esse retorno ao caso demorou quase seis décadas, mas veio
com força total: é a tal “velocidade da sombra” com que Dalton escreve, como afirma
Marcelino Freire (FREIRE, 2012, p. 18). Não um gesto calmo em busca da primavera, como o
leve e amável soneto do Poetinha, mas um movimento denso na direção da noite sem volta da
morte, para uma nova mordida do vampiro, revisitando o cadáver publicado tantas décadas
antes.
Conclusão
Como? Dalton Trevisan reescreve e reedita tanto porque não poderia fazer outra
coisa. Porque reconhece, na insistência em seu procedimento de republicar cópias dotadas de
eternas sempre outras diferenças, um processo de extração da beleza – um modo todo seu de
buscar “o que é belo e bom”, como defendia o Paul Verlaine citado no “Manifesto para não
ser lido” da primeira edição da revista Joaquim. Equivale ao que Dalton escrevia para o amigo
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Carlos Drummond de Andrade em uma carta enviada em setembro de 1955: “Ruins os contos,
por piores que sejam, não me impedem que os cuide de fazer mais melhor. E como? Eu é que
lhe pergunto”.
“Os versos são experiências e é preciso ter vivido muito para escrever um só
verso”, avisava o trecho de Rilke selecionado por Dalton para o mesmo “Manifesto para não
ser lido". Se há necessidade de viver muito para escrever um só verso (ou conto), e se não
pode viver mais de uma vida, reescrever contos já publicados e assim buscar novos efeitos,
portanto, surge como uma saída possível, mesmo que seja para causar uma fissura entre um
personagem que ama e a figura amada, mesmo que seja para se afastar dela ainda mais um
pouco, mesmo que seja para olhar de mais longe, rasgando o retrato que ele guardava, o
retrato a ele destinado, o retrato que ele mesmo tinha tirado quando se imaginava um moço de
óculos a beijar o cadáver.
Só se vive uma vez, e Dalton vive intensamente quando reescreve. Quem sabe
assim, na próxima revisão da carta endereçada a Katherine Mansfield, a “amada Miss
Beauchamp” renasce das mãos ardilosas do vampiro de Curitiba, agora para uma vida eterna e
plena, com um saboroso
Referências
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Graal, 1988.
DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Conto de você fica ressoando na memória. Carta a
Lygia Fagundes Telles. Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1966. Correio IMS. Disponível em:
<https://www.correioims.com.br/carta/conto-de-voce-fica-ressoando-na-memoria/>. Acessado
em: 21 fev.2019.
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TO, NO: FROM DALTON TREVISAN (OVER)
TO KATHERINE MANSFIELD
Summary
This article proposes to accompany the writer from Curitiba, Dalton Trevisan, among his
aesthetic intentions linked to the idea of repetition and difference from two versions of the
short story addressed to New Zealand writer Katherine Mansfield. The letter "My Darling
Katherine (Mansfield)" was originally published in 1947, issue n. 14 of Joaquim magazine.
He won a new version, available in Until you, Capitu, from 2013, through two other
publications with minor changes (in the renegade Sete Anos de Pastor, 1948, and later in
Mysteries of Curitiba, 1968, entitled "Portrait of Katie Mansfield "). What guides the article is
the ideia that, for Dalton, rewriting is a vital gesture, as Berta Waldman points out. From
version to version, the vampire survives and his work gains more body. In insisting on the
procedure of repetition, Dalton reaffirms the originality of his transgressive difference from
other literatures.
Keywords
Dalton Trevisan. Katherine Mansfield. Letter. Correspondence. Repetition.
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Recebido em: 09/11/2018
Aprovado em: 21/02/2019
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